Untitled - Asociación Latinoamericana de Filosofía de la Educación
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1 EJE 2: LAS CONCEPCIONES FILOSÓFICAS DE LA EDUCACIÓN EN LA HISTORIA Nietzsche e a suspeita ao projeto de esclarecimento............................................................................. 9 Vicente Zatti ............................................................................................................................................ 9 Marx e Foucault: aportes para pensar a educação contemporânea .................................................... 18 Kelin Valeirão ........................................................................................................................................ 18 Avelino da Rosa Oliveira ........................................................................................................................ 18 Locke e a formação do gentleman ........................................................................................................ 31 Christian Lindberg Lopes do Nascimento .............................................................................................. 31 Interpretação, leitura e Formação Humanista em Nietzsche ............................................................... 40 Antonio Carlos Lopes Petean ................................................................................................................ 40 Doutor em Sociologia pela UNESP/Araraquara ................................................................................... 40 La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método” ....................................................... 44 Eduardo Álvarez Mosquera ................................................................................................................... 44 Hegel: El concepto de formación (Bildung) ante los retos y fines de la educación. ............................ 56 Andrés Felipe Hurtado Blandón ............................................................................................................ 56 Instituto de Filosofía ............................................................................................................................. 56 Universidad de Antioquia...................................................................................................................... 56 Medellín, Colombia............................................................................................................................... 56 La libertad de conciencia en la reforma escolar durante el Siglo XIX en Francia.................................. 65 Louise Ferté, .......................................................................................................................................... 65 Educar para una estética de la existencia ............................................................................................. 72 Prof. Marina Camejo ............................................................................................................................. 72 A importância do conhecimento histórico para compreensão do pensar filosófico ............................ 83 Joana Rios Ribeiro Maia Carbonesi ....................................................................................................... 83 2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: .................................................................. 96 UM OLHAR NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDIGENA TAPUIO. .................................................................... 96 Silvania Maria Sandoval Borges ............................................................................................................ 96 Pedagogía anarquista y estética de la existencia. Siete ejercicios espirituales para docentes. ......... 110 “Las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques. La conferencia en el Círculo Literario” .... 119 Petrucci, Liliana Cecilia. ....................................................................................................................... 119 A respeito de uma concepção filosófica da educação no advento da modernidade: um estudo sobre o lugar da filosofia no ensino jesuítico do século XVI ............................................................................ 132 Marcos Roberto de Faria ..................................................................................................................... 132 Platão e o debate educativo sobre as concepções de paideia na Grécia clássica .............................. 146 Lidia Maria Rodrigo ............................................................................................................................. 146 La educación de las mujeres en la obra de Flora Tristán .................................................................... 155 Carolina Clavero White ....................................................................................................................... 155 REVISITANDO O CEJA A PARTIR DE MICHEL FOUCAULT ..................................................................... 165 Luciana Bandeira Barcelos .................................................................................................................. 165 PROBLEMATIZANDO O CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DELEUZIANA .................................................. 177 LIMA NETTA, Ranúzia Moreira ............................................................................................................ 177 HERÁCLITO .......................................................................................................................................... 190 Prof. Dr. Fausto dos Santos Amaral Filho ............................................................................................ 190 HISTÓRIA E MEMÓRIA DO ENSINO DE FILOSOFIA NO CEARÁ-BRASIL ................................................ 198 Profa. Dra. Cristiane Maria Marinho ................................................................................................... 198 Contribuições da imaginação criadora na formação da criança nas fases iniciais de escolarização .. 216 Meire Luci Bernardes Silva Machado .................................................................................................. 216 La construcción del sujeto veraz desde una mirada cínica. ................................................................ 228 Máximo Núñez .................................................................................................................................... 228 Bettina Curbelo ................................................................................................................................... 228 Luciana Bianchi .................................................................................................................................... 228 3 Pasado-Presente en la Educación ....................................................................................................... 239 Héctor Fernando López Acero............................................................................................................. 239 A educação pulsional de Nietzsche ..................................................................................................... 251 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: A ATUALIDADE DO ANTIGO ........................................................................ 277 Filipi Vieira Amorim ............................................................................................................................. 277 Mauro Grün ......................................................................................................................................... 277 A autonomia do educando na paideia grega ...................................................................................... 287 Armando Lourenço Filho ..................................................................................................................... 287 Samuel Mendonça............................................................................................................................... 287 “A formação ética na história da filosofia: entre projetos de educação por modelos e projetos de educação pela razão.” ......................................................................................................................... 299 Liliane Sanchez. ................................................................................................................................... 299 Natureza, infância e ciência no Brasil escolanovista: a pedagogia moderna na formação de bioidentidades escolares..................................................................................................................... 309 El ideal moral en Kant vs. el ideal del deseo en sade .......................................................................... 318 Una lectura de "Kant con Sade" de Lacan ........................................................................................... 318 Josefina Magaña Solís ......................................................................................................................... 318 Epistemocracia teocrática y paideia en Platón ................................................................................... 327 Rodolfo Isaac Cisneros Contreras........................................................................................................ 327 Las metas de la educación................................................................................................................... 337 Dr. René Rogelio Smith........................................................................................................................ 337 Universidad Adventista del Plata ........................................................................................................ 338 El debate en torno a la distinción entre educación y adoctrinamiento en la tradición analítica del siglo XX......................................................................................................................................................... 348 Manuel Amado .................................................................................................................................... 348 Laura Mesa .......................................................................................................................................... 348 Ministro Gustavo Capanema: alterações no programa do ensino de filosofia em função da Reforma Educacional na Era Vargas .................................................................................................................. 362 4 La aporía como razón y violencia en la formación humana ................................................................ 371 María Cristina Rico León ..................................................................................................................... 371 Discursos de Crotona y el ideal de formación pitagórico.................................................................... 381 María Cristina Rico León ..................................................................................................................... 381 A concepção crítica de educação em Álvaro Vieira Pinto ................................................................... 392 Rodrigo Marcos de Jesus ..................................................................................................................... 392 Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre ...................................................................... 405 Luis Miguel Hernández Pérez .............................................................................................................. 405 Educação e liberdade no Mercosul ..................................................................................................... 413 André Gustavo Ferreira da Silva .......................................................................................................... 413 O pensamento marxista-gramsciano .................................................................................................. 428 A Educação e o Ideal Libertário: história das experiências pedagógicas do movimento anarquistas.437 Luiz Renato Dias Gomes Padilha – UNIRIO. ........................................................................................ 437 A educação de platão como antecedente do totalitarismo e do racismo segundo Karl Popper ....... 444 Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto .................................................................................................... 444 Hermenêutica filosófica e educação: do estranhamento de si ao diálogo. (ii)................................... 452 Dr. Almir Ferreira da Silva Junior......................................................................................................... 452 Educação, liberdade e interligação na filosofia do diálogo Martin Buber .......................................... 465 Maria Betânia do Nascimento Santiago .............................................................................................. 465 Montaigne: conversação e formação do julgamento ......................................................................... 477 Maria Cristina Theobaldo .................................................................................................................... 477 O jornalismo como uma filosofia radical: uma análise dos enunciados sobre educação nos periódicos brasileiros do século XIX...................................................................................................................... 490 Gisela Maria do Val ............................................................................................................................. 490 A concepção de hábito na paideia aristotélica................................................................................. 500 Prof. Dr. Giovane do Nascimento........................................................................................................ 500 A paidéia aristotélica e a formação para a polis ................................................................................. 509 5 A balança eu-nós na teoria antropológica de Rousseau: .................................................................... 516 Michelle Larissa Gandolfo Pansarelli................................................................................................... 516 Educação formal e não-formal no pensamento pedagógico de hoje e de outrora: ........................... 530 ecos genealógicos ............................................................................................................................... 530 Elisa Vieira ........................................................................................................................................... 530 Encontros insólitos: ressonâncias filosóficas em experiências mal sucedidas ................................... 540 Lisete Bampi ........................................................................................................................................ 540 Fabricio Tourrucôo .............................................................................................................................. 540 Kant: la filosofía y la educación o de la importancia del arte en el primer movimiento romántico... 553 Luis Miguel Hernández Pérez .............................................................................................................. 553 A Escolástica como Filosofia e Método de Ensino na Universidade Medieval: uma reflexão sobre o Mestre Tomás de Aquino .................................................................................................................... 563 OLIVEIRA, Terezinha ............................................................................................................................ 563 O hábito das virtudes morais em Ética a Nicômaco: uma possibilidade de refletir sobre a Arte a Educação ............................................................................................................................................. 575 Nunes, Meire Aparecida Lóde ............................................................................................................. 575 Oliveira, Terezinha .............................................................................................................................. 575 Paidéia platônica: da paidiá à ideia .................................................................................................... 587 Daniel Figueiras Alves.......................................................................................................................... 587 a filosofia agostiniana na educação do cavaleiro medieval presente em o livro da ordem de Cavalaria, de Ramon Llull ..................................................................................................................................... 595 Paula Carolina Teixeira Marroni .......................................................................................................... 595 Lei e justiça como elementos que ordenam para o bem comum: um olhar da história da educação 604 Sandra Regina Franchi Rubim ............................................................................................................. 604 Terezinha Oliveira ............................................................................................................................... 605 A produção intelectual de Theobaldo Miranda dos santos e suas reflexões no manual de filosofia da educação: breves apontamentos ........................................................................................................ 617 Jaqueline de Andrade Calixto – UFU ................................................................................................... 617 6 Armindo Quillici Neto – UFU ............................................................................................................... 617 Um estudo sobre os manuais de filosofia da educação publicados durante o Século XX .................. 627 Armindo Quillici Neto (UFU)................................................................................................................ 627 Jaqueline de Andrade Calixto (UFU).................................................................................................... 627 Ensino e prática musical nas missões jesuíticas no ............................................................................. 644 Novo Reino de Granada (1604 – 1767) ............................................................................................... 644 Zuley Jhojana Duran Peña ................................................................................................................... 644 Silvio Ancizar Sánchez Gamboa ........................................................................................................... 644 Enseñanza y aprendizaje en Carlos Vaz Ferreira: una mirada desde el presente. .............................. 645 Sofía Ache Tricot, ................................................................................................................................ 645 Nohelia Corbo Quiroga,....................................................................................................................... 645 Andrea Gómez Adrover ....................................................................................................................... 645 Educação, Ética e Diálogo: o papel do Outro na educação ética da alteridade em Martin Buber e Emmanuel Levinas............................................................................................................................... 655 Willamis Aprígio de Araújo .................................................................................................................. 655 Educação ética: a formação moral na obra “Sobre a Pedagogia” de Immanuel Kant ........................ 672 Luis Lucas Dantas da Silva ................................................................................................................... 672 André Gustavo Ferreira da Silva .......................................................................................................... 672 O imperativo pedagógico de John Dewey:.......................................................................................... 686 a formação do sujeito na sociedade democrática .............................................................................. 686 Christiane Coutheux Trindade............................................................................................................. 686 Jean Maugüe: continuidades e descontinuidas do ensino da filosofia no brasil ................................ 697 Paideia aristotélica, o cómo ser feliz mediante la virtud .................................................................... 709 Irazema Ramirez .................................................................................................................................. 709 Anísio Teixeira: um homem além do seu tempo ................................................................................ 719 Cloves Antonio de Amissis Amorim .................................................................................................... 719 Pura Lucia Oliver Martins .......................................................................... Error! Bookmark not defined. 7 Anísio Teixeira e a defesa da escola de tempo integral a partir dos pressupostos de John Dewey ... 732 Marisa Xavier Coutrim Dalri ................................................................................................................ 732 Kant y Foucault:................................................................................................................................... 739 Luis Alejandro Domínguez Gutiérrez................................................................................................... 739 Una revisión de la noción de aprendizaje desde el psicoanálisis ........................................................ 753 Ana Ma. Fernández Caraballo ............................................................................................................. 753 Raíces socráticas en nuevos paradigmas de la filosofía del lenguaje y de la educación ................... 760 Amelia Croce ....................................................................................................................................... 760 8 NIETZSCHE E A SUSPEITA AO PROJETO DE ESCLARECIMENTO1 Vicente Zatti2 Resumo: A escola surge na modernidade com a função de promover o esclarecimento, emancipar o homem por meio de uma educação voltada para o desenvolvimento do sujeito racional. O projeto moderno centrava a emancipação na ideia de sujeito, que pela razão chegaria à ação moral e intelectual esclarecidas. Tal concepção tem em Kant seu exemplo mais típico. Nietzsche, ao desconstruir as concepções metafísicas de razão, sujeito, moralidade, conhecimento, que fundamentavam o projeto moderno de esclarecimento, coloca toda essa tradição sob suspeita. O objetivo desse trabalho é demonstrar como a genealogia da cultura ocidental promovida por Nietzsche põe sob suspeita o projeto pedagógico moderno. Mas, qual a extensão dessa suspeita? Ela encerra as possibilidades emancipatórias de tal projeto? Ou abre possibilidades para uma reconstrução mais fecunda? Nosso trabalho demonstra que a suspeita de Nietzsche se volta aos fundamentos metafísicos do projeto moderno de esclarecimento, desse modo, há possibilidades de reconstrução a partir de uma perspectiva pós-metafísica. Para Nietzsche, o sentido da vida, da história, os valores morais, não se estabelecem por um suprassensível, por um a priori, mas, se estabelecem como perspectivas humanas. Tanto o conhecimento quanto a moral são tentativas do homem em impor ordem ao mundo. Desse modo, sua investigação genealógica demonstra que elementos que sempre foram postos como verdades metafísicas, são produtos de uma história de interpretação humana. Tal desconstrução muito mais põe em questão a metafísica do que as possibilidades emancipatórias do projeto de esclarecimento. No entanto, obriga o seu 1 O presente artigo resultou das pesquisas e discussões que integraram o Curso de Extensão “Discussões Filosóficas: Nietzsche e a suspeita ao projeto de esclarecimento”, por mim desenvolvido em 2012 no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) – Câmpus Canoas. 2 Professor de Filosofia do IFRS – Câmpus Canoas, Brasil. Doutor e Mestre em Educação pela UFRGS, Graduado em Filosofia pela FAFIMC. 9 repensar, sua reconstrução a partir de uma perspectiva pós-metafísica, o que abre espaço para a pluralidade pedagógica que visualizamos na educação contemporânea. Palavras-chave: 1. Nietzsche; 2. Esclarecimento; 3. Emancipação O projeto moderno de esclarecimento tem em Kant seu representante mais típico. Para ele, a finalidade da educação é a emancipação, é a maioridade, que é atingida através de um processo de esclarecimento que envolve a libertação das visões dogmáticas e imagens religiosas do mundo. Liberto dessas e de outras heteronomias, o sujeito racional se torna responsável pelo seu próprio destino. No texto Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Kant (2005, p. 64-65) define o esclarecimento como a saída do homem da menoridade da qual ele próprio é culpado. É preciso coragem para servir-se do próprio entendimento, ou seja, o sujeito racional é a possibilidade da maioridade. Essa compreensão que Kant possui do esclarecimento expressa com muita força o ideal de homem emancipado que a modernidade funda: o esclarecimento significa mais que conhecer simplesmente, acima de tudo, significa a realização de sua filosofia prática, que busca a moralização da ação humana através de um processo racional. O lema Sapere aude (ouse saber) refere-se à razão em seu sentido mais amplo, não exclusivamente à razão científica. O esclarecimento implica na superação da menoridade, requer a decisão e a coragem de servir-se de si mesmo, ou seja, de servir-se de sua própria razão para pensar por conta própria, e guiar-se sem a direção de outro indivíduo. Segundo Mühl (2005, p. 309), o princípio fundamental da pedagogia kantiana está relacionado à palavra Aufklärung, o esclarecimento, dado pelas luzes da razão, “possibilita o indivíduo abandonar a ignorância, permitindo sua ascensão a um nível superior de cultura, educação e formação” (idem). Kant alerta que é difícil para um homem desvencilhar-se da menoridade quando ela se tornou para ele quase uma natureza, mesmo assim, para que tal ocorra, nada mais se exige a não ser liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões. Kant (2005, p.66) entende como uso público da razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público letrado, todavia, entende como uso privado aquele que qualquer homem pode fazer de sua razão em um cargo público ou função a ele confiado. A liberdade de fazer uso público da razão é necessária para que se possa pensar por conta própria, ou seja, segundo a própria razão. 10 Kant com sua concepção de sujeito, maioridade, esclarecimento, é uma das principais influências ao projeto pedagógico moderno que traz uma proposta educacional como uma ética aplicada, baseando-se na metafísica aspira à universalidade e pressupõe a ideia de aperfeiçoamento moral. Nietzsche com sua desconstrução é o filósofo que põe sob suspeita os fundamentos ahistóricos de qualquer projeto humano, demonstra os fundamentos não racionais da razão metafísica. Desse modo, os alicerces do projeto de esclarecimento são abalados naquilo que era posto como seu fundamento. Para Nietzsche, o sentido da vida, da história, os valores morais, não se estabelecem por um suprassensível, por um a priori. “Não há assim um poder transcendental que dê sentido à vida, nem a religião, nem a moral legitimada pelo suprassensível, pelo a priori, pelo princípio causal”.(HERMANN, 2001, p. 71). Como a tradição pedagógica moderna está alicerçada em uma metafísica racionalista, a desconstrução nietzschiana deixa a tradição pedagógica “sem solo”. Tal desconstrução é realizada por meio do método genealógico que demonstra a origem histórica daquilo ao qual sempre foi atribuído um princípio, um fundamento com status metafísico. Isso provoca instabilidade, o repensar, pois o horizonte que era certo, agora desaparece ou torna-se problemático. Tal abertura de horizontes provocada pela desconstrução de Nietzsche é representada na obra A Gaia Ciência com o anúncio da morte de Deus: Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘procuro Deus! Procuro Deus?! [...] Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem deu a esponja para apagar o horizonte? (NIETZSCHE, 2011, p. 147). Não havendo uma metafísica que fundamenta e dá sentido à realidade, o destino do homem é algo indefinido, é algo que cabe a ele definir, ou seja, o mar está novamente aberto e o horizonte é algo indeterminado, é algo por se fazer. A inexistência de uma origem metafísica remete às origens históricas do mundo humano. Nesse sentido, Nietzsche demonstra que tanto o conhecimento quanto a moral são tentativas do homem em impor ordem ao mundo. A força da qual deriva tanto a capacidade de conhecer quanto a capacidade de produzir valores é denominada por Nietzsche de vontade de poder. Nietzsche utiliza a vontade de poder como uma chave geral para entender os processos da vida. Isso, entre outras obras aparece em Assim falou Zaratustra: “onde encontrei vida, ali 11 encontrei vontade de potência, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor”.(NIETZSCHE, 1996a, p. 222). A vontade de poder está em obra em todo vivente. Os seres vivos não procuram apenas se manterem vivos, querem dar vazão à sua força. “Os fisiólogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder-: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequentes consequências disso”. (NIETZSCHE, 2005, p. 19). Na vontade de poder se encontra a explicação para a geração, nutrição, para o estabelecimento do bem e do mal. Essa chave da existência compreende também a atividade racional que se estabelece a partir da necessidade de autoconservação. “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu caráter inteligível – seja justamente vontade de poder e nada mais”. (idem, p.40). Mas em Nietzsche a vontade de poder não é uma força absoluta que a tudo domina, não é um princípio universal. Ela é uma força operante em todo o acontecer e é composta por uma pluralidade de forças. Segundo Müller-Lauter (1997), a vontade de poder é a multiplicidade das forças em combate umas com as outras. Nietzsche enxergou que o poder não é algo substancial, mas relacional. É o jogo e o contrajogo dessa multiplicidade de forças. As unidades de poder são mutáveis, a unidade é apenas organização, sob a ascendência transitória de vontades de poder dominantes. Dessa forma: “A unidade de formação de domínio, nas quais está inserida a multiplicidade de quanta de força, não tem nenhum ser”.(MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 75). Para Nietzsche a unidade é uma tentativa de nosso intelecto para compreender e simplificar a realidade, o que leva ao engano e à ilusão. “De fato, nada até agora teve mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser,...” (NIETZSCHE, 1996b, p. 375). Por isso, na tentativa de auto-afirmação, de criar, de querer mais, a vontade de poder cria um número infinito de verdades. Nietzsche refuta a existência de conhecimentos profundos no sentido metafísico, para ele o conhecimento é uma força de superfície. Isso porque o conhecer se faz por meio de conceitos e assim sendo, o pensar é um denominar, o que decorre do arbítrio do homem e não provém de nenhuma essência. Os conceitos surgem a partir da diferenciação. Comparando os diferentes, o homem coloca semelhanças e com elas formula os conceitos. Esse processo é arbitrário, é o ser humano que confere um sentido ao acontecimento, domina-o, coloca-o numa forma adequada a si próprio. “Portanto, conhecer é um processo de poder no qual estão 12 forças criativas, um processo que culmina em figuras e ideias acabadas, poderosas, vitais. O que afirma dessa maneira então é chamado de verdade. Nesse processo a verdade é um poder que se torna verdadeira na medida em que se impõe”.(SAFRANSKI, 2002, p. 262-263). A ordem, a clareza, o caráter sistemático não são necessariamente inerentes às coisas em si. Elas são colocadas pelo intelecto nas coisas para que elas possam ser compreendidas. Por isso os acontecimentos têm para o homem um caráter interpretativo. O interpretador agrupa fenômenos selecionados e reunidos. Então ocorre uma antromorfização, introdução de nossos modos de avaliar e compreender nos acontecimentos. “Introduzimos os nossos valores dentro das coisas como interpretação. Todo sentido é vontade de poderio”. (MARQUES, 1989, p. 87). Se as verdades não são dadas a nós a priori e sim criadas por nós, elas são, portanto, interpretações que fazemos da realidade, são perspectivas em meio a inúmeras outras. O critério de verdade deixa de ser universal e passa a ser condicionado ao poder que a interpretação possui para se estabelecer. “O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos..., após longo uso, aparecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões...”(NIETZSCHE,1996c, p. 57). Verdades são ficcionais, são ficções úteis a serviço da autoconservação, e servem para a afirmação da vontade de poder. A lógica é um exemplo de criação feita por abstração e simplificação pelo homem. “A lógica fornece o modelo de uma ficção completa. Procede-se aqui a invenção de uma maneira de pensar em que um pensamento é posto como causa de outro pensamento”.(MARQUES, 1989, p. 79). O pensamento lógico ou qualquer espécie de conhecimento consiste na introdução de ficções completas como modelos com que pensamos os processos mentais de uma maneira mais simples do que acontece na realidade. Mas é devido a essa simplificação que o pensamento se torna captável por sinais, perceptível e comunicável. Essa simplificação dá a falsa ideia de analogia e identidade. Por isso o conhecimento é a falsificação do heterogêneo e do imensurável a tal ponto de torná-los idênticos, análogos, mensuráveis. No entanto, é justamente essa falsificação que torna possível a vida. “A vida, por conseguinte, só é possível em virtude de um tal aparelho de falsificação. Pensar é um transformar falsificado, sentir é um transformar falsificado, querer é um transformar falsificado”.(idem, p. 80). O fato de ser condição da vida não elimina o caráter fictício. Isso ocorre porque aquilo que para uma perspectiva é insuportável, para outras é adequado. 13 Portanto, conhecer foi uma forma que nossa espécie encontrou para afirmar sua vontade de poder, já que não possuía chifres ou presas para tal. Dessa forma, a verdade perde seu status tradicional. Passa a ser resultado de uma designação da realidade como metáfora, em que o homem na tentativa de afirmar sua vontade de poder produz tais verdades. “A nossa capacidade de produzir verdades não passa de impulso do intelecto, como uma ramificação da vontade de potência. O mundo inteligível e suas verdades são produzidas por essa vontade”.(HERMANN, 2001, p. 78). No entanto, penso que a teoria nietzschiana não suprime o conceito de verdade. O filósofo, ao desenvolver sua teoria, ao colocar sua perspectiva, possui a pretensão que ela encerre em si alguma verdade. Por isso, Nietzsche abre espaço para a aceitação da pluralidade, das diferenças, mas não necessariamente nos leva ao relativismo, caminho adotado por muitos de seus estudiosos. Nietzsche exclui a validade incondicional de uma construção que impõe o conhecer e o agir como fundamento absoluto e vai falar que o único fundamento é o ato de fundar, impor, valorar, ato criativo que aprecia ou deprecia. Esse ato criativo é uma forma de interpretação que impõe sua perspectiva, também no campo moral. “A interpretação instituidora de novos valores, por parte dos futuros poderosos perspectivas”.(MÜLLER-LAUTER, 1997, só pode ser, do mesmo modo, p. 132). Na Genealogia da Moral, Nietzsche procura mostrar que os conceitos de bom e mau não são conceitos que se estabelecem de acordo com uma razão prática universal. Esses conceitos são expressões do modo de ser daqueles que avaliam. Quem avalia estabelece um valor, portanto, não há fato moral e sim uma interpretação moral. Para Nietzsche o conceito ‘bom’ inicialmente foi estabelecido pelos mais fortes: “Foram os bons mesmos, isto é, os nobres poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu”.(NIETZSCHE, 1998, p. 19). Então os mais fortes que tiveram condições de afirmar sua vontade de poder fizeram valer sua interpretação e estabeleceram como bons seus próprios atos e pensamentos. Já os “plebeus” que tinham menos força de afirmação, tiveram seu modo de vida posto como sinônimo de ruim. A origem do conceito de ruim está próxima a comum, a baixo. Bom era a afirmação da aristocracia, do mais nobre, do guerreiro mais forte. Enquanto os juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos valorizavam a guerra, a aventura, a caça, a dança, o vigor físico, o modo de valoração nobre-sacerdotal estabelecia 14 seus valores a partir de sua impotência. “Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa”.(idem, p. 25). Para Nietzsche a vingança sacerdotal gerou a inversão dos valores aristocráticos e estabeleceu que bons seriam os pobres, impotentes, sofredores, necessitados, feios, doentes. Para esses últimos, caberia toda bem-aventurança e, para os nobres e poderosos, a desventurança, o castigo eterno. Essa ‘revolta de escravos’, como fala Nietzsche, perpassa o pensamento judaico-cristão. “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”.(ibidem, p. 28-29). Foram esses homens ressentidos que estabeleceram o conceito de ‘mau’ para seu inimigo, o homem nobre. Nota-se que o homem nobre se estabelece como bom e cria o conceito de ruim para aquilo que é diferente e inferior. Já os ressentidos atribuem a seu inimigo, o conceito de mau. Então, com a rebelião escrava ocorre uma transvaloração que cria novo sentido aos valores. O ‘bom’ da moral do nobre se torna o ‘mau’ e o ‘ruim’ se torna o ‘bom’. Segundo a teoria de Nietzsche, a impotência dos fracos em reagir contra o inimigo, fez a vingança tomar roupagem de virtude que cala, renuncia, espera e remete a vingança a Deus e a um reino imaginário, o Reino dos Céus. Isso também é fruto do instinto de autoconservação, autoafirmação, é uma tentativa doente de exercício de poder. Com isso, o autor não pretende justificar qualquer poder aristocrático, mas demonstrar a origem histórica de uma moral que era dita universal. Assim, Nietzsche mostra os fundamentos não-morais da moral. Eles são resultado das relações de luta e de força. Não há moral como atributo da natureza humana, moralidade a priori. “Para os genealogistas da moral, nos moldes de Nietzsche, entretanto, ela se revela apenas como uma espécie de moral humana entre inúmeras outras possíveis, ou que deveriam sê-lo”. (GIACOIA-JUNIOR, 2005, p. 38). Como Nietzsche percebeu as dificuldades de fundamentação metafísica da moral e do conhecimento, buscou sua origem e a encontrou na vontade de poder. “A capacidade de conhecer e produzir valores deriva da vontade de potência. Na vida, a vontade de potência, de autoafirmação se manifesta em todos seus movimentos instintivos. Quando o homem entra em contato com algo, ele o faz para conservar-se, e disso resulta a pluralidade de forças, perspectivas que lutam pelo poder”.(HERMANN, 2001, p. 71). Não havendo uma compreensão de mundo como unidade da forma como pretendia a metafísica, abre-se a 15 possibilidade para várias interpretações, para as perspectivas, para a pluralidade, para as diferenças. Com Nietzsche tem início a desconstrução, pela crítica à moralidade e ao conhecimento, dos nossos profundos hábitos mentais e pressupostos metafísicos. Ele põe em suspeita a tradição e a educação que pretendam ter universalidade ética e levar ao aperfeiçoamento moral. Sendo o sujeito constituído por relações de poder e não por normas objetivas, não havendo um mundo em si, não havendo um absoluto (Deus) que garanta a universalidade; só o sujeito pode constituir-se e constituir o mundo como forma de autoconservação e expressão de sua vontade de poder. Nietzsche demonstra a origem histórica da moral e do conhecimento, demonstra como cada perspectiva se coloca como verdade de acordo com o poder que possui para se estabelecer como tal, com isso, o autor abala o conceito de verdade e a visão unitária da metafísica, em favor das questões referentes à pluralidade. Por isso autodenomina sua filosofia como filosofia do meio dia, a filosofia dos homens que são capazes de olhar para trás e perceberem as origens históricas do mundo e, desse modo, criar a possibilidade de olhar para frente de um modo inaudito, como quem tem todo um horizonte a ser construído: Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência, um grande meio-dia, em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote, e coloque a questão do por quê?, do para quê? pela primeira vez como um todo - , essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade não segue por si o caminho reto, sob as suas mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o instinto de décadence que governou sedutoramente. (NIETZSCHE, 2008, p. 76). Essa compreensão filosófica que desconstrói as concepções metafísicas e traz de novo a possibilidade de um futuro em aberto, insere o niilismo como um problema central. Segundo Müller-Lauter ( 2009, p. 177), com o niilismo ativo, o niilismo atinge seu máximo de força de destruição. Nietzsche é um niilista ativo na medida em que a sua filosofia, feita à marteladas, tem como finalidade a edificação da vida. Sua desconstrução se volta contra o racionalismo, o platonismo, o cristianismo, ou seja, contra sistemas de pensamento que ao fundarem uma metafísica também selaram o desprezo ao mundo. Nietzsche quer resgatar o amor ao mundo, 16 mas, para isso, é preciso denunciar os mais de dois mil anos de negação à vida incrustada no pensamento ocidental. Desse modo, a desconstrução nietzschiana provoca um imenso repensar em toda a cultura ocidental que desde Sócrates e Platão esteve alicerçada em uma metafísica. A suspeição à metafísica provoca o repensar da ideia de esclarecimento, põe em suspenso seu otimismo e crença no progresso humano. Isso gera imensas transformações em educação, pois a suspeição de tal fundamentação metafísica abre a possibilidade para o advento de múltiplas formas de compreensão do para quê? educar. Enfim, a suspeita de Nietzsche ao projeto de esclarecimento possui um valor terapêutico ao desmascarar os pressupostos metafísicos ocultos em tal projeto. No entanto, a desconstrução de tais bases metafísicas não representa o esgotamento do projeto de esclarecimento. BIBLIOGRAFIA: GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sonhos e pesadelos da Razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo: Editora UPF, 2005. HERMANN, Nadja. Pluralidade ética em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MARQUES, António. Sujeito e perspectivismo: seleção de textos de Nietzsche sobre teoria do conhecimento. Lisboa: Dom Quixote, 1989. MÜHL, Eldon. MÜHL, Eldon Henrique. A criança e a educação para a maioridade: considerações a partir de Walter Benjamin. In: DALBOSCO, Claudio Almir; FLICKINGER, Hans-Georg (org). Educação e maioridade: dimensões da racionalidade pedagógica. São Paulo: Cortez; Passo Fundo: Ed. da Universidade de Passo Fundo, 2005. MÜLLER-LAUTER, Wolfang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997. _____. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São Paulo: Ed. UNIFESP, 2009. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. In. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996a. 17 _____. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo. In. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996b. _____. Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral. In. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996c. _____. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _____. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2011. _____. Ecce homo. São Paulo: Companhia das letras 2008. KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. SAFRANSKI, Rüdigger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. 2ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2002. Marx e Foucault: aportes para pensar a educação contemporânea Kelin Valeirão3 Avelino da Rosa Oliveira4 Resumo: O presente trabalho objetiva propor uma reflexão para problematizar a Educação Contemporânea que se declare, ao mesmo tempo, de Marx e de Foucault. Para Marx a sociedade capitalista se estabiliza, sendo concebida, na vida cotidiana, como a única sociedade possível. Como se não bastasse, para legitimar ainda mais a ideia da naturalidade, de que uns têm os meios de produção e outros sua força de trabalho, há o poder da ideologia dominante que faz um certo ocultamento da realidade social, permitindo a legitimação e a dominação. Por isso, Marx afirma que a ideologia dominante numa dada época histórica é a 3 Doutoranda em Filosofia e História da Educação na Universidade Federal de Pelotas – UFPel. 4 Doutor em Educação e Professor Titular na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. 18 ideologia da classe dominante. Foucault, ao contrário, vê o próprio sistema educacional não como transformador e reprodutor ao nível das ideologias, mas, antes, aos condicionamentos que a escola produz nos indivíduos ao nível da postura espaço-temporal. Assim, propondo uma crítica à ideia de (in)consciência Foucault defende que o poder não contém um pensamento do mundo, não é uma representação do modelo real. A educação assujeita, sim, mas não ideologicamente. De modo resumido, parece-nos que Marx e Foucault não são filósofos para todas as estações. Embora seja sabido que o pensamento de ambos foi e é utilizado em longa escala, eles não servem para tudo! Na área da Educação, podemos afirmar que os filósofos trazem contribuições inegáveis. Mesmo sabendo que não propusseram nenhum tratado educacional, os filósofos apresentam pistas que contribuem na problematização de questões que, embora atuais, constituiram-se historicamente e trazem arraigadas um modelo moderno, questionado e discutido incansavelmente sob diferentes aspectos: econômicos, sociais, culturais e demais possíveis. Palavras-chave: Marx, Foucault, educação contemporânea Introdução A crítica que Foucault faz ao Estado moderno poderia ser vista como algo próximo à crítica, ao mesmo Estado que recebeu a denominação pejorativa de burguês, executada por um grupo de intelectuais denominados marxistas. Sob esta lógica argumentativa, Foucault aparece como um possível marxista destinado a destrinchar o fenômeno do poder, mas a crítica ao poder é também uma crítica ao conceito de ideologia. Assim, o filósofo francês, teve grandes impasses com o marxismo e, principalmente, com o pensamento de diferentes pensadores e militantes, ditos marxistas. Acerca de Marx, como sabemos, foi o precursor do conjunto de ideias que constituiu o marxismo, juntamente com Friedrich Engels. Contudo não podemos esquecer que o marxismo foi desenvolvido por seus seguidores, ou seja, ultrapassou as ideias do próprio Marx. Assim, podemos dizer que o marxismo acabou se tornando uma corrente político-teórica que abarca 19 uma grande quantidade de marxistas que apresentam diferentes posições teóricas e políticas, inclusive, às vezes, antagônicas. Neste contexto, talvez o próprio Marx acabaria se assustando com o leque de possibilidades que o marxismo acabou abrindo, uma vez que o autor não esteve vivo para ver o que o marxismo do século XX se tornou. Foucault e a relação com Marx, o marxismo e os marxistas Com essas poucas palavras, iniciais e necessárias, adentramos propriamente na relação existente entre Marx e Foucault esse último estava mais próximo do primeiro que muitos pensadores e militantes marxistas. Isso fica implícito e, inclusive, explícito ao longo dos escritos do autor: Acontece com freqüência de eu citar conceitos, frases, textos de Marx, mas sem me sentir obrigado a ajuntar a pequena peça autenticadora, que consiste em fazer uma citação de Marx, em colocar cuidadosamente a referência em nota de pé de página, e em acompanhar a citação de uma reflexão elogiosa, mediante o que se é considerado como alguém que conhece Marx, que reverencia Marx e que se verá honrado pelas revistas ditas marxistas. Eu cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas, e como eles não são capazes de reconher os textos de Marx, eu passo por ser aquele que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, sente a necessidade de citar Newton ou Einstein? Ele os utiliza, mas não tem necessidade de aspas, de notas em pé de página ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do mestre (FOUCAULT, 2006, p. 173). Nesta citação, muitas questões estão presentes. Entre elas, fica claro que Foucault faz uso, sim, do pensamento de Marx, com propriedade. Talvez mais visivelmente quando adere ao Partido Comunista em 1950, por influência de Louis Althusser. No entanto, vinha tentando se engajar desde 1947, mas não era aceito. Sobre Foucault é importante apontarmos que leu Marx e, quando estava no Partido Comunista, considerava a doutrina marxista a mais prudente. Nesta época, os pontos de referência eram Hegel, Marx, Heidegger, dentre outros. Mais tarde, por volta de 1953, ocorre o encontro com Nietzsche, sendo uma influência determinante até seus últimos escritos. No que diz respeito a esta leitura, no fim da vida Foucault confessa conhecer Nietzsche bem melhor que Heidegger, frisando que se não tivesse lido Heidegger, provavelmente não teria lido Nietzsche. 20 Ainda, cabe salientar que Foucault não fez questão de que sua obra fosse coerente com um método único. Não queria ser situado, resumido a uma perspectiva filosófica. E chegou a declarar infinitas vezes que não pretendia dizer quem era tampouco conservar-se o mesmo. Foucault remodela seu pensamento: ele muda e evolui constantemente, enveredando por novos e diferentes caminhos. Assim, quem venha a se aventurar a ler e a pesquisar o pensamento deste pensador-tipo5 precisa, antes de mais nada, saber lidar com as inconstâncias, com o pensamento nômade de Foucault, com suas idas e vindas que chega a causar um certo constrangimento inicial, pois quando pensamos que estamos começando a entender o que o ele quer dizer viramos a página e nos deparamos com afirmações consistentes que dizem justamente o contrário do que fora antes dito. O pensamento de Foucault é assim: uma caixinha de surpresas! Para Rajchman (1987), Foucault não pretendia deixar como legado uma doutrina, um método ou uma escola de pensamento. E enfatiza: [...] em discussões norte-americanas, Richard Rorty, o filósofo neo-deweyano, pode criticar Foucault por um despeito recalcado em relação à classe burguesa, enquanto que David Rothamn, o historiador social, pode queixar-se de que Foucault omitiu qualquer menção à classe burguesa em sua análise. Do mesmo modo, na França, Foucault foi acusado tanto de negligenciar o Estado como de fazer sua interferência tão profunda e total que não sobrava espaço para a “sociedade”. Pode-se inferir que a história de Foucault não se harmoniza facilmente com as nossas grandes histórias sobre capitalismo, burocracia e Estado (RAJCHMAN, 1987, p. 45). Em 1950 Foucault estava ao centro de um grupo de normaliens comunistas chamado “o grupo folclórico” ou “o Saint-Germain-des-Prés marxistas”. O grupo era composto por Paul Veyne, Jean-Claude Passeron, Gérard Genette, Maurice Pinguet, Jean Molino e JeanLouis van Regermoter. Eles eram comunistas embora não seguissem à risca o partido. Ainda nesta época, Foucault era chamado de le Fouk’s e criou um laboratório de psicologia numa antiga discoteca desativada. Ao receber os visitantes mostrava uma caixa de sapato com um rato e exprime com ironia: “esse é o laboratório”. Assim como os demais colegas do “grupo folclórico”, Foucault adere ao Partido Comunista, ao qual ficará ligado até 1953. Chegou a afirmar em uma entrevista concedida a Ducio Trombadori, em 1978: 5 Expressão utilizada por Paulo Rouanet no texto A gramática do Homicídio para descrever Foucault que, segundo Rouanet “mais que qualquer outro escritor, Foucault tem se consagrado à construção de um saber inteiramente despojado de conotações antropocêntricas” (ROUANET, 1996, p. 91). 21 Para muitos de nós, jovens intelectuais, o interesse por Nietzsche e Bataille não representava uma forma de se afastar do marxismo ou do comunismo. Ao contrário, era a única via de comunicação e de passagem para o que acreditávamos dever esperar do comunismo (...). Foi assim que, sem bem conhecer Marx, recusando o hegelianismo, sentindo-me mal com os limites do existencialismo, decidi aderir ao Partido Comunista. Estávamos em 1950: nessa época ser “comunista nietzschiano”! Uma coisa no limite do vivível e, se quiser, talvez um pouco ridícula; eu sabia disso (In: ERIBON, 1990, p. 65-66). Aqui uma questão um tanto curiosa, o encontro de Foucault com Nietzsche se deu, mais tarde, em 1953, justamente no ano em que o filósofo francês sai do Partido Comunista. Como se não bastasse, posteriormente, em 1983, em conversa com Paul Veyne Foucault declara ver no marxismo uma doutrina sensata. Talvez Foucault não esteja sendo muito sincero ao intitular-se um “comunista nietzschiano”, pois ao lermos os seus textos desta época percebemos que o pensamento de Nietzsche não se faz presente. Independente da sinceridade ou não de Foucault, o fato é que em 1953 se afasta do partido por vários motivos: entre eles, sentia-se extremamente constrangido em participar de um “partido que rejeitava e condenava o homossexualismo como um vício da burguesia e um sinal de decadência” (ERIBON, 1990, p. 69). Todavia, Foucault acabou acrescentando uma outra razão: o caso “dos aventais brancos”6 e, por fim, declara ter saído do PCF depois do famoso complô dos médicos de Stálin, no inverno de 52, e por causa de uma persistente sensação de mal-estar. Mais tarde, ao ser questionado a saída de Foucault, Althusser reforça que Foucault saiu mesmo do partido por causa de sua homossexualidade. No final de 1966, em setembro, Foucault vai para a Tunísia para lecionar Filosofia na Faculdade de Letras e Ciências Humanas, num antigo Liceu da cidade que se transformou em Universidade, uma espécie de exílio pessoal, se desliga administrativamente de ClermontFerrand e assume um contrato com previsão de três anos, mas acaba ficando dois. 6 Em 1952 os médicos de Stálin foram acusados de conspirar contra a sua vida, os membros do Partido Comunista (PC) acreditam na versão soviética oficial, ou seja, os médicos tentaram matar Stálin. Contudo Foucault relata a Ducio Trombardi que André Wurmser convoca uma reunião para explicar o complô e todos os membros do PC acreditam na versão embora não estejam realmente convencidos. Três meses após a morte de Stálin descobrem que a ideia do complô é pura invenção e escrevem ao Wurmser, solicitando um esclarecimento acerca do ocorrido, mas nunca recebem a resposta. Foucault qualifica a atitude como desastrosa, e confessa que se sentia mal em estar no PC. 22 Na Tunísia os alunos não gostavam de ouvir Foucault citar Nietzsche sobre qualquer pretexto e tampouco a sua hostilidade com relação ao marxismo. Em 1967, Foucault é classificado pelos alunos como “à direita”. Em contrapartida, Foucault, segundo relatos de Eribon (1990), declara que os alunos reivindicam o marxismo, com uma violência, uma intensidade, uma paixão extraordinária. O marxismo era não só uma análise melhor das coisas, como também uma espécie de energia moral, de notável demonstração de existência. Em um passeio com o diretor de Le Nouvel Observateur, Jean Daniel, chega a declarar ao ver um grupo de estudantes pela rua que estes seriam a revolução. Foucault vai para a Tunísia para, de certa forma, se afastar da vida política. Afinal, estava decepcionado com o PC e o que buscava era justamente uma vida entre os prazeres do sol e a ascese filosófica. Porém, seus dias estavam contados e a política novamente o agarra. Não tardou para Foucault se envolver num movimento político juntamente com os alunos na Tunísia. Chegou, inclusive, a esconder o mimeógrafo do grupo e vários panfletos em seu jardim, assim como não se conforma com a passividade e dá refúgio a estudantes perseguidos pela polícia em sua própria casa; e ao voltar das férias de verão de 1968 tenta depor nos processos a favor dos estudantes, ficando bastante abalado (...) Devo dizer que esses rapazes e moças que corriam riscos terríveis redigindo um panfleto, distribuindo-o ou fazendo um apelo à greve... que realmente corriam risco de ser privados da liberdade! ... me impressionaram muito, muito. Para mim foi uma experiência política. De minha passagem pelo Partido Comunista, do que pude ver na Alemanha, da maneira como as coisas se passaram com relação aos problemas que eu queria colocar a propósito da psiquiatria, quando voltei à França... de tudo isso guardei uma experiência política um pouco amarga, um pouco de ceticismo muito especulativo, não escondo... Lá, na Tunísia, fui levado a dar uma ajuda concreta aos estudantes... De algum modo tive de entrar no debate político (In: ERIBON, 1990, p. 181). Em 1968, no outono, Foucault volta à França, e no dia 23 de janeiro de 1969 entra na gesta esquerdista. Talvez essa atitude seja motivada pela experiência que teve juntamente com os alunos na Tunísia embora seja considerado pouco engajado pelos esquerdistas, uma vez que não estava na França no maio de 68. A questão é que a partir de 1969 começa a encarar a própria figura do intelectual militante, temos um Foucault das manifestações e dos manifestos, das lutas e das críticas. 23 Após maio de 68 o governo cria, como medida paliativa, a reforma do ensino superior na França e é constituída uma Comissão de Orientação composta por aproximadamente vinte pessoas, entre elas Jean-Pierre Vernant, Georges Canguilhem, Emmanuel Le Roy Ladurie, Roland Barthes, Jacques Derrida. Eles têm a tarefa de recrutar o corpo docente da nova faculdade. Foucault, por intermédio de Georges Canguilhem, é indicado para dirigir o Departamento de Filosofia. A notícia causa um mal-estar geral entre os esquerdistas, pois além de Foucault não ter participado do maio de 68 ele também é considerado um gaullista. A questão é que Foucault assume o Departamento de Filosofia e durante os dois anos que fica na Universidade de Vincennes trata de reunir a sua volta o que considera que a Filosofia tem de melhor na França. Inicialmente solicita Deleuze, mas este teve que recusar devido ao seu estado de saúde. Após solicita Michel Serres que atende ao chamado imediatamente. Em seguida, Foucault vai à procura dos alunos de Althusser e Lacan, mas muitos estão prestando serviço militar. A filha de Lacan, Judith Miller, Alain Badiou, Jacques Rancière, François Regnault, Henri Weber, Étienne Balibar, François Châtelet são solicitados, entre outros. Em dezembro de 1968, a Universidade de Vincennes abre as portas e no dia 23 de janeiro do ano seguinte o comitê de ação do liceu Saint-Louis resolve projetar filmes sobre maio de 68 durante uma reunião. A reitoria proíbe e solicita que seja cortada a energia elétrica para que a reunião não ocorra. Mais de 300 alunos entram com um gerador e o filme é projetado. Em seguida, saem em passeata e um comício é organizado. Uma palavra de ordem é feita: “ocupação da reitoria”. Os estudantes e alguns professores invadem também a faculdade, tudo serve: mesa, cadeira, armários, etc. À noite a polícia intervém e estudantes e professores são levados ao centro de controle da polícia parisiense – Beaujon. Foucault e Daniel Defert estão entre os últimos a serem interrogados, os olhos ainda vermelhos por causa do gás. Como os demais, Foucault é liberado ao amanhecer. Em janeiro de 1970 o ministro da Educação, Olivier Guichard, denuncia o caráter marxista-leninista do ensino de Filosofia no ano de 1968-1969 e resolve suprimir a habilitação nacional dos diplomas concedidos por Vincennes nessa disciplina, ou seja, os estudantes não poderão se apresentar aos concursos de recrutamento do ensino secundário. Aqui outra questão curiosa, Foucault está na direção do Departamento de Filosofia que apresenta um programa de cursos que é considerado de caráter marxista-leninista. Fica a 24 interrogação: como Foucault pode ser considerado contra Marx, contra o marxismo, contra os marxistas e aprovar um programa de caráter marxista-leninista, a ponto de correr o risco da habilitação nacional do curso ser suprimida? Colocar Marx e Foucault em pólos antagônicos parece-nos, no mínimo, um devaneio falacioso! Foucault, como diretor do Departamento de Filosofia, defende que sendo o objetivo estudar o mundo contemporâneo, o departamento não poderia deixar de ser uma reflexão sobre a política. Dias mais tarde, na entrevista intitulada Le piège de Vincennes, publicada no dia 9 de fevereiro de 1970, no Le Nouvel Observateur, Foucault questiona como dar cursos desenvolvidos e diversificados com 950 alunos para oito professores e problematiza o que é a filosofia e em nome de que, de que texto, de que critério, de que verdade rejeitam o que fizeram até então. E passando à contra-ofensiva, polemiza que o essencial do discurso do ministro não são as razões que ele apresenta e, sim, a decisão que ele quer tomar. Decisão clara: os estudantes que tiverem cursado Vincennes não terão o direito de lecionar no secundário. E Foucault (1970) faz algumas perguntas: por que esse cordão de isolamento? O que a filosofia (a classe de filosofia) tem de tão perigoso que é preciso tanto cuidado para protegê-la? E o que há de tão perigoso em Vincennes? E a essas alturas Foucault já estava enfastiado. O diretor do Departamento de Filosofia, que age com desembaraço na contestação esquerdista e nas manifestações diárias, parece estar traumatizado com a experiência em Vincennes. Alguns defendem que Foucault, ora foi visto com barra de ferro prestes a atacar comunistas, ora foi visto atirando pedras em policiais. A questão é que ele várias vezes diz, entre amigos, estar farto e lhe agrada a ideia de sair de Vincennes onde, aliás, sempre soube que teria uma presença transitória. Neste mesmo ano, cumpre os rituais de ingresso no Collège de France, deixando o Departamento de Filosofia nas mãos de François Châtelet. No mesmo ano de 1970, mais exatamente no dia 2 de dezembro Foucault realiza a aula inaugural7 no Collège de France. Ele tinha 43 anos e, depois de uma carreira8 dividida 7 Aula inaugural significa abertura de um ensinamento, o lugar onde Foucault mostra todos os recursos de seu saber, trabalho e talento pedagógico diante das multidões sempre numerosas e ardentes que se encontram na sala 8 e nas salas sonorizadas. 8 Ao utilizarmos a palavra “carreira”, reportamo-nos às diferentes instituições educacionais ou atividades relacionadas ao ensino em que o professor Foucault esteve envolvido profissionalmente até ingressar no Collège de France. Para saber mais acerca do professor Foucault sugerimos a obra Michel Foucault (1926-1984), de 25 entre cidades e distribuída de um cargo a outro, Foucault liga-se a um glorioso instituto de saber, no coração de Paris. Pouco tempo depois, publica a aula na íntegra sob o título A ordem do discurso. O Collège de France é uma instituição de ensino que se utiliza de uma metodologia própria. Não há uma relação de diálogo entre professor e alunos. Os alunos comparecem à instituição somente num encontro semanal, atuando como ouvintes. Em uma entrevista concedida em 1975, uma reportagem sobre os grandes professores das universidades francesas, Foucault chega a declarar a um jornalista que quando a aula não foi boa bastaria uma pergunta para consertar tudo, mas essa pergunta nunca vem e diz ter uma relação de ator ou de acrobata. E quando termina de falar há uma sensação de completa solidão. A relação teatral que Foucault anuncia advêm da tradição da instituição de ensino a que estava ligado. Neste sentido, é importante salientar que no Collège de France O professor deve apresentar na aula uma pesquisa, “a ciência se fazendo”, segundo a fórmula de Renan. Com a obrigação de inovar todos os anos. Assim, Foucault expõe o material sobre o qual trabalha, formula as hipóteses sobre as quais reflete. Isso se tornará Surveiller et punir ou La volonté de savoir, ou ainda a parte final de sua Historie de la sexualite. De qualquer forma essa atividade magisterial exige um trabalho de preparação muito grande. E nos últimos anos de sua vida ele muitas vezes falará de sua vontade de acabar com esse fardo que cada vez lhe pesa mais e mais (ERIBON, 1990, p. 207). Embora Foucault demonstre um enorme cansaço pela dura rotina da instituição, permaneceu nela até sua morte. E justamente no período em que esteve ligado a ela, torna-se uma figura pública, sendo fartamente mencionado por seus livros, suas crônicas e outras produções acadêmicas e extra-acadêmicas. Talvez, daqui, nasça a tão conhecida frase: “Foucault como pãezinhos”9, ramerrão nas capas de revistas e jornais parisienses. Na década de 70, Foucault faz acreditar que cada um dos seus interlocutores é o único com quem mantém relação privilegiada, resultando em perspectivas deformadas nas relações Didier Eribon. Esta constitui-se numa biografia da vida e obras de Foucault, trazendo trechos de livros, fotos, documentários, dentre outras tantas informações pertinentes. A terceira e última parte da obra intitulada Militante e professor no Collège de France é bastante sugestiva para aprofundar a questão do Foucault professor. 9 Nome dado ao artigo que o jornal Le Nouvel Observateur dedicou às melhores vendas de 1966. Em agosto e setembro de 1965 Foucault vem ao Brasil e, em São Paulo, entrega a Gérard Lebrun um manuscrito para revisão. Este constitui-se na obra publicada em abril de 1966 intitulada Les mots e les choses que por surpresa do próprio autor e editor é um enorme sucesso. 26 desta época. Isso acaba justificando que, em Foucault, tudo se confunde, se imbrica, se mistura quando é preciso situar determinado fato no tempo ou numa seqüência que lhe dê sentido. Ainda nesta mesma época, o filósofo se divide entre as manifestações (militância) e as assembléias, aulas e seminários no Collège de France. As escolhas de Foucault parecem causar uma certa perturbação em alguns colegas professores. Num dia de 1971, uma ligação é feita a Georges Dumézil na qual um professor declara estar apavorado com as atitudes espalhafatosas de Foucault. Dumézil sugere ao professor que se acalme e diz que a recepção de Foucault na instituição de ensino foi uma ação sensata. Foucault assume uma postura diferenciada da maioria dos demais professores do Collège de France. Isso causa um certo desconforto. Afinal assim como não há um único Marx10, não há apenas um Foucault! O filósofo assume máscaras e sempre as muda. Como se não bastasse, faz de seu próprio pensamento um percurso cheio de idas e vindas, trazendo uma enorme insegurança. Não há como situar Foucault, não há como resumi-lo a uma posição política ou ideológica. Seu pensamento é complexo e mutável, quando pensamos que estamos começando a entender o pensamento do filósofo outro curso é publicado e percebemos, novamente, que não estamos mais no caminho certo. Se adentrarmos o envolvimento político do filósofo Há um conjunto de problemas comuns à história de Foucault e a sua meta-história que gera um dilema para o seu compromisso intelectual com a esquerda. O dilema pertence a uma situação mais geral dos intelectuais franceses, atribuída ora a uma desvalorização do pensamento marxista, a um declínio no espírito oposicionista simbolizado por 1968, a um “fim da ideologia” ou mesmo à vitória socialista, resultando daí que já não pode ser admitido como ponto pacífico que um intelectual é automaticamente de gauche (RAJCHMAN, 1987, p. 40). Mais tarde, acerca dos socialistas, Foucault se ressente e silencia. A tal ponto que acaba ironizando entre os amigos que quando quis falar, em dezembro de 1981, disseram para 10 Para Bobbio (2006, p. 304), “existem muitos Marx e de que, à distância de mais de um século, não dá para salvar a todos eles nem para jogá-los todos fora”, a isso o autor chama de “dissociação” a qual a recuperação se dá diante à dissociação dos vários Marx: o economista, o historiador, o sociólogo, o filósofo, dentre outras faces do personagem Marx. 27 calar a boca. E quando ele se cala o silêncio espanta. O que significa, para Foucault, uma única coisa: só concedem o direito à palavra se concorda com eles. No verão de 1983, Foucault publica um livrinho intitulado A cabeça dos socialistas, como resposta às críticas a seu silêncio, defendendo que aos socialistas falta a arte de governar. Isso acaba justificando não somente alguns dos cursos proferidos no Collège de France acerca da arte de governar, mas também o recuo na história proposto nos últimos volumes da História da Sexualidade. Outra questão bastante curiosa depois que Foucault se distancia da fase esquerdista, é que mantém as amizades feitas naquela época, com exceção de uma, que para Eribon constituia-se em uma das mais antigas e com certeza das mais verdadeiras: a amizade com Gilles Deleuze, que nasce em 1962, em Clermont-Ferrand, à sombra de Nietzsche e não sobrevive à reorganização de suas opções políticas após 1975. Amizade que foi mantida durante anos e, inclusive, muitas vezes manifestada na troca afetuosa de publicações cruzadas e elogios de um ao outro. Pouco antes de morrer, um dos desejos de Foucault era justamente reconciliar-se com Deleuze. Falava muito com seus amigos, especialmente com Paul Veyne a quem dizia com frequência que Deleuze era o único espírito filosófico da França. Parece que o desejo de reconciliação era recíproco Deleuze acaba recitando um trecho 11 do Prefácio da obra O uso dos prazeres, de Foucault no pátio do hospital Pitié-Salpêtrière, onde Foucault foi internado no dia 9 de junho de 1984 e falece no dia 25 do mesmo mês, aproximadamente às 13h 15 min. Na tarde de 29 de junho, horas após a homenagem de despedida de Deleuze, o caixão é sepultado no modesto cemitério de Vendeuvre. Algumas considerações Foucault sempre permaneceu atento a Marx, a sua maneira. Com isso, não defendemos que ele foi ou deixou de ser um marxista12 tampouco que não o era. A questão que interessa é 11 Foucault (1984, p. 13): “De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?”. 12 Afinal, como rotular um escritor como Foucault que passou a vida tentando não ser capturado por classificações? Talvez o que estejamos realmente tentando é, de certa forma, trazer à tona alguns detalhes da vida do autor que ao invés de repelir o pensamento de Marx, conforme nos é dito, começa a questionar se 28 clara: Foucault fez uso do pensamento de Marx e no fim da vida admite que poderia ter evitado muitos erros através de uma leitura mais precoce da Teoria Crítica, situando seu próprio pensamento numa tradição voltada para a ontologia do presente, saindo de Kant e Hegel, via Nietzsche e Weber, até a Escola de Frankfurt. Por fim, parece-nos que Marx e Foucault não são filósofos para todas as estações. Embora seja sabido que o pensamento de ambos foi e é utilizado em longa escala, eles não servem para tudo! Na área da Educação, podemos afirmar que os filósofos trazem contribuições inegáveis, como, por exemplo, respectivamente, o conceito de “ideologia” e o neologismo “governamentalidade”. Mesmo sabendo, conforme já anunciado, que não propusseram nenhum tratado educacional, os filósofos apresentam pistas que contribuem na problematização de questões que, embora atuais, constituiram-se historicamente e trazem arraigadas um modelo moderno, questionado e discutido incansavelmente sob diferentes aspectos: econômicos, sociais, culturais e demais possíveis. No que tange à relação entre Marx e Foucault, percebemos que este último tem uma visão clara da diferença existente entre a pessoa Marx e seu pensamento, o marxismo e os marxistas. Talvez daí venha o espanto, o choque, de Foucault ao perceber que desde o início foi considerado um inimigo pelos marxistas. Foucault não estava justamente tentando fazer do marxismo uma ciência, coisa que outros marxistas não fazem ao dizer “Amém” aos escritos de Marx. 29 Referências: ALIAGA, L.; AMORIM, H.; MARCELINO, P. Marxismo:Teoria, História e Política. São Paulo: Alameda, 2011. BOBBIO, N. Nem com Marx, nem contra Marx. 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Por fim, a argumentação reflete sobre a motivação do filósofo inglês em formar um sujeito virtuoso, como também há a preocupação de relacionar a sua teoria do conhecimento com o educativo. 2 A epistemologia lockeana e o impacto no seu pensamento educativo Ao publicar o Ensaio sobre o entendimento humano, Locke apresenta sua teoria do conhecimento, que tem como objetivo investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano. Ao mesmo tempo, combate as ideias inatas formuladas por René Descartes (1596-1650), filósofo francês que exerceu forte influência intelectual no início do XVII. Para este, o conhecimento decorre de uma dúvida metódica, que tem como consequência, não só a garantia da existência de um ser pensante, mas também um ser questionador e investigador das coisas que o rodeiam, estabelecendo uma confiança total na razão para conhecê-las. A partir de uma perspectiva sistemática do saber, Descartes une ciência e filosofia. Isso se dá porque compreendera que não é suficiente pesquisar e resolver problemas científicos se não conseguir justificar a própria legitimidade da ciência, produzindo verdades indubitáveis e universais. Em contraposição, o filósofo inglês afirma que a maneira pela qual o conhecimento é adquirido, constitui prova suficiente de que não é inato, porque as ideias não se encontram naturalmente impressas na mente das crianças, idiotas: Em resumo: não vejo qualquer razão para pensar que aqueles princípios especulativos sejam inatos; não dão origem a um consenso universal; a aceitação que geralmente recebem é a mesma que distingue muitas outras proposições que não são tidas por inatas, essa aceitação, como demonstrarei neste Tratado, não provém de uma inscrição natural no espírito mas deve-se a causa diversa. E se tais ‘primeiros princípios’ do conhecimento e da ciência não são inatos, por maioria de razão se deverá concluir que 32 nenhumas outras máximas especulativas poderão sê-lo. (LOCKE, 1999, p.51). Assim, é equivocado afirmar que qualquer proposição está na mente sem jamais termos conhecido pela sensações, o que demonstra que as ideias não são inatas ao entendimento. Em relação aos princípios práticos, constata-se que não existe também nada inato na mente humana, não assumindo assim, uma acepção universal. Locke exemplifica esta afirmativa a partir da religião e da justiça, que não são compreendidas por todos os homens como princípios, porque como regras morais necessitam de prova. No caso da virtude, ela é geralmente aprovada não pelo seu caráter inatista, mas porque é proveitosa aos homens, e qualquer que seja a ação humana, ela nos convence que a regra da virtude não consiste em seu princípio interior, mas sim uma ação exterior. No mesmo sentido, os princípios práticos não alcançam um significado universal, porque os homens têm princípios práticos opostos, de acordo com a região que habitam ou a educação que recebem. Em não sendo inato, qual a proposta do inglês no que se refere à obtenção do conhecimento? Ele advoga que as ideias são adquiridas pela experiência. Em não sendo inato na mente humana, Locke compara-a a uma folha em branco, sem nada preenchido, necessitando que as ideias ocupem os “gabinetes vazios” da nossa mente. Esse preenchimento ocorre através da sensação ou da reflexão. Do mesmo modo, há no homem, o desafio constante de obter mais e mais conhecimento, o que lhe permite a possibilidade de por sempre em movimento e constante transformação o saber adquirido. No campo educacional, a crítica ao inatismo também teve consequências. A partir da teoria do conhecimento lockeana, observa-se que a criança está em um estágio mais propício à aprendizagem. Desse modo, a educação se transforma em um instrumento essencial para a obtenção do saber. Em Locke é possível à educação desenvolver o entendimento humano como instrumento capaz de almejar o conhecimento, estabelecendo sua autonomia, sendo o homem concebido como um ser ativo e a veracidade dos fatos advindo da experiência individual. Formar a mente e governar as ações dos menores ainda ignorantes, até que a razão ocupe seu lugar e os liberte deste incômodo – é disso que os filhos precisam e disso que os pais estão obrigados a fazer. Pois Deus, ao conferir ao homem um entendimento para governar suas ações, concedeu-lhe uma liberdade de vontade e de ação como a estas pertinente [...]. Mas, enquanto ele estiver numa situação em que não tenha entendimento próprio para governar sua vontade, não terá nenhuma vontade própria para seguir: aquele que entende por ele deve também querer por ele; deve prescrever sua vontade e governar suas ações; mas, quando chegar à situação que fez de seu pai um homem livre, o filho será um homem livre também. (LOCKE, 2001, p. 434). Com a publicação de Alguns pensamentos sobre a educação, o filósofo inglês aborda a questão da formação das crianças, denominada por gentleman. Enfatiza que o caráter de uma pessoa se molda a partir do cultivo de bons hábitos, desde a infância, pois como ele próprio 33 afirma: “Poucos anos requerem poucas regras e com o progresso de sua idade, quando praticálas bem, pode adicionar outras regras.” (LOCKE: 1996, p.40, tradução nossa). A formação de bons hábitos na criança, através da prática constante, é o procedimento mais apropriado para ensinar ao gentleman, empregando para isso, o exercício de situações que o preceptor queira instruir no educando. Esta preocupação com a formação das crianças, especialmente com o esforço de divulgar o método educacional mais apropriado para formar jovens virtuosos, tem como resultado primordial constituir neles a máxima: mens sana in corpore sano. No entanto, deve ser considerado mais o aspecto espiritual, por causa da necessidade de formar homens virtuosos, capazes de exercer a liberdade e dominar os desejos, deliberando em função do correto uso da razão. Dentre os aspectos importantes na proposta lockeana para a educação, destaca-se o fato de que a dimensão mais admirável na educação não é a instrução ou o saber acumulado, mas a formação. Ora, existe então uma distinção no pensamento de Locke entre instrução e formação? Sim, essa diferenciação traz consigo o real objetivo do projeto educativo do filósofo inglês. Embora a instrução seja o assunto principal quando se disserta sobre educação, já que é através dela que se adquire a capacidade da escrita, da leitura, etc., Locke tem a convicção de que será compreendido como um insano, alguém que não queira constituir um homem virtuoso e prudente mais do que um estudante pedante. Por formação Locke compreende como a capacidade de dominar as paixões e de empregar apropriadamente a razão por parte do gentleman. Assim, a instrução é necessária, porém deve ser um meio para adquirir qualidades mais nobres. Para tanto, o conteúdo educacional deve ter uma utilidade prática e cada estudo deve encontrar justificativa na contribuição que é dada para a vida, não à atual da criança, mas sim ao seu futuro como homem. Locke compreende que com a utilidade que o currículo exerce para a vida, torna-se possível a constituição do indivíduo virtuoso. Isso remete a necessidade dos pais procurarem um preceptor capacitado para formar os seus filhos. Como requisito, Locke afirma que ele deve saber não apenas o latim ou a lógica, como era o costume da época, mas que tenha as condições necessárias para ensinar os bons costumes, garantindo a inocência da criança, corrigindo os defeitos e fortaleça as boas inclinações, além de fazê-la adquirir bons hábitos. Mas como educar de modo a assegurar o desenvolvimento completo da personalidade da criança em formação? Locke sugere a união da educação intelectual com a corporal, garantindo assim, a formação plena do gentleman. No Alguns pensamentos sobre a educação, o filósofo inglês tece detalhadas sugestões no que se refere aos conhecimentos a serem lecionados, como se ensinar, para que se ensinar, além de registrar uma preocupação com a saúde física da criança. 34 A estreita associação daquela obra com o Ensaio sobre o entendimento humano possibilita compreender que a educação permite inúmeras oportunidades para que o indivíduo possa conhecer. No entanto, a mesma relação existente entre essas duas obras, remete a um método educacional para a obtenção do saber, que denomina-se empirismo educacional. A constituição desse indivíduo é um fim em si mesmo? Por estar inserido no contexto político da Inglaterra do século XVII, Locke também associa o seu pensamento educacional à ação, adotando assim uma defesa nítida do caráter prático que os conteúdos curriculares devem ter na formação dos indivíduos. 3 Sobre a divisão do trabalho O trabalho está dividido em três partes, composto por seus respectivos subitens. No primeiro, estabelece-se o que ficou denominado de as bases do pensamento filosófico e político de Locke. Para tanto, é demonstrado como o conceito de lei da natureza em Locke é fundamental para a compreensão de suas obras mais conhecidas. O estudo é iniciado com a descrição do significado desse termo, frisando que a lei da natureza estabelece uma moralidade no ser humano, antes da constituição da sociedade política e é a partir desta lei que o inglês constrói o esboço de seu pensamento, que se manifestara publicamente a partir do Ensaio sobre o entendimento humano. O segundo subitem abordado é o conceito de propriedade que é ancorado nos Dois tratados sobre o governo civil. Locke afirma que os homens possuem dois tipos de propriedade: as imateriais (vida, liberdade) e as materiais (meios de subsistência) que é adquirida pelo ser humano a partir do trabalho. Advoga também que a propriedade é ofertada aos homens por Deus, que lhes deu de forma igualitária. Outra propriedade humana que o Criador deu foi a razão, no intuito que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida. Já a terceira parte, aborda a origem da sociedade política. Esta é formada quando há a transgressão do direito individual à propriedade, ocorrida no estado definido por Locke como estado de natureza. Essa infração do estado de natureza tende a conduzir a humanidade a outro tipo de estado, o de guerra. A diferença básica entre o estado de natureza e o estado de guerra é que, naquele o homem está numa situação de paz, assistência mútua e preservação, enquanto no estado de guerra, o ser humano vive sob um estado de inimizade, violência e destruição mútua. Por isso, evitar o estado de guerra é a grande razão pelo qual os homens se unem em sociedade e abandonam o estado de natureza. No entanto, ele questiona sobre quem tem o direito de arbitrar tal infração? Este árbitro exercerá o poder da punição imparcialmente? 35 Locke propõe como solução a saída do ser humano deste estado de natureza. Para tal empreendimento, ele sugere a formação de um governo civil, entendido como a solução adequada para as inconveniências do estado de natureza. Assim, o que conduz os homens à união e a estabelecerem livremente entre si o contrato social é a realização da passagem do estado de natureza para a sociedade política. Esta sociedade é formada por um corpo político único, dotado de legislação e tem como objetivo a preservação da propriedade e a proteção de seus membros, pelo consentimento de seus integrantes. A concepção que Locke apresenta para a constituição desta sociedade política foi expressa também nas Cartas sobre a tolerância, em que ele define sociedade política ou civil, como sendo aquela em que os homens constituem apenas para a preservação e melhoria dos bens civis de seus membros. O poder do governo civil diz respeito apenas aos bens civis dos homens e está confinado para cuidar das coisas deste mundo. Já a Igreja é uma sociedade espontânea, livre, composta por homens que se reúnem por afinidade ao culto de Deus, objetivando assim, sua salvação eterna. Locke faz essas definições para fundamentar a separação entre o Estado e a Religião. Na segunda parte, inicia-se a análise do pensamento educacional lockeano. No primeiro subitem é observado como a teoria do conhecimento do filósofo repercute na educação. Dessa maneira, a forma como adquirimos o conhecimento constitui suficiente prova de que não é inato, porque podemos adquirir todo o conhecimento que possuímos sem a ajuda de impressões inatas. Em não sendo inato, qual a proposta do inglês no que se refere à obtenção do conhecimento por parte dos humanos? Ele advoga que as ideias precisam ser adquiridas pela experiência, condicionando inicialmente a sua aquisição, à prática. Esse preenchimento ocorre através da sensação ou da reflexão. Dos impactos da teoria do conhecimento na educação, faz-se necessário abordar também a repercussão do projeto político. Desse modo, quando se afirma que a garantia dos pressupostos da sociedade política passa pelo magistrado, percebe-se que a sua formação deve ser no sentido de manter os direitos de cada membro que compõe uma determinada sociedade. Nas Cartas sobre a tolerância, Locke afirma que é dever do magistrado civil preservar e assegurar, ao povo em geral e para cada um em particular, a propriedade (vida, liberdade e bens materiais). Compete também ao magistrado a imparcialidade na elaboração das leis e a fiscalização do livre convívio entre os homens de diversas religiões. No entanto, qual o método educacional mais apropriado para formar este indivíduo que irá exercer funções política? Esta é a pergunta que foi respondida no terceiro subitem deste capítulo, considerando as análises expostas pelo filósofo nos Alguns pensamentos sobre a educação, como também em outras obras, a exemplo de Sobre a conduta do entendimento e Do estudo. Feitas estas exposições, o projeto educacional de Locke visa formar um indivíduo livre, mas que aja de acordo com os desígnios da própria razão. Por liberdade, o filósofo compreende ser o poder que o homem tem para fazer ou deixar de fazer qualquer ação 36 particular, segundo determinação ou pensamento da mente, por meio do qual uma coisa é preferida à outra. A terceira e última parte é dividida da seguinte forma: a) a definição de criança e a responsabilidade em educá-la; b) qual o objetivo da educação compreendido pelo filósofo; c) que cuidados a educação deve ter com a saúde corporal; d) qual a relação entre instrução e formação do gentleman. Ao término de cada subitem, demonstra-se as principais contribuições de Locke para o debate educacional, ratificando qual a relevância do conceito de formação para a sua obra política. 4 Aspectos conclusivos Conclui-se este trabalho realizando algumas observações. Nos textos educacionais do filósofo, ele não demonstra nenhuma pretensão de ser inserido na história da educação ou muito menos na história da filosofia da educação. O que existe é a preocupação de tornar a educação em peça fundamental, não somente por formar as futuras gerações, mas para constituir um caminho mais seguro para o cumprimento dos preceitos estabelecidos na teoria política lockeana. Qualquer estudo feito sobre o pensamento educativo de Locke deve considerar esse fator como preponderante, até porque qualquer projeto político necessita de um educacional que tenha em vista a constituição de um ‘novo ser’. Em Locke, esta concepção se materializa no conceito de formação. Assim, por formação entende-se ser o somatório dos ensinamentos transmitidos pelo preceptor que tem em vista dotar a criança de autonomia, no sentido de permitir-lhe que aja racionalmente. Esta soma de questões é composta pela preocupação com a saúde física - que permite ao indivíduo resistir às adversidades da vida - mais a preocupação com o espírito - que agrega a instrução, a sabedoria, a boa educação e a virtude. No entanto, estes componentes regidos pelo preceptor têm que estar conectados com a realidade social e política, ou seja, deve ter uma utilidade prática. A criança é dotada de ensinamentos que lhe possibilite não só conhecimentos, mas também compreender as circunstâncias antes que delibere suas ações. Por outro lado, a utilidade dos ensinamentos deve permitir o desenvolvimento cognitivo da criança, para que esta exercite seu entendimento de forma a promover a reflexão diante dos acontecimentos. É bom frisar que a formação da criança é fundamental para a materialização do projeto político do filósofo, já que há a necessidade de formar indivíduos aptos a exercerem as funções governamentais de forma imparcial, até porque esta formação é reservada aos filhos da aristocracia inglesa, como afirma Baillon: “Além do simples projeto educacional reservado para uma elite específica, o modelo do comportamento definido por Locke nos Pensamentos faz parte de uma ampla transformação da sociedade inglesa em direção ao progresso dos bons modos.” (BAILLON, 2006, p.101, tradução nossa). De tal modo, o projeto político e social implica no estabelecimento de indivíduos que se relacionem com base no processo 37 civilizatório em curso, regulamentado pelo uso da razão e tendo a educação o seu componente formador. Por outro lado, a formação da criança também é circunstanciada, como também é exclusivamente destinada ao que se propõe para o bem público, a saber, a felicidade. Este viés político adotado pelo filósofo é o que condiciona a educação. Consequentemente, o projeto educativo de Locke está a serviço da reforma moral que ele tanto enfatiza e defende para a Inglaterra, que vivia em uma grande crise de valores. É o conceito de formação que permite fechar o “sistema moral” existente na obra de Locke, que começa a ser elaborado nos Ensaios sobre a lei de natureza, depois no Ensaio sobre o entendimento humano, perpassa os Dois tratados sobre o governo e as Cartas sobre a tolerância e é ratificada no Alguns pensamentos sobre educação. Porém, esta compreensão não descarta outros escritos do filósofo, até porque é possível perceber uma relação direta entre os primeiros escritos do autor com os principais textos lockeanos. Locke demonstra a relevância de constituir um indivíduo racional como premissa fundamental para a materialização de seu projeto político. Esta importância tem no conceito de formação sua base fundamental, pois só assim se forma a nova geração de governantes que agirão balizados pela razão, visando garantir os direitos naturais de cada indivíduo. Ora, o filósofo inglês advoga que a felicidade é o fim supremo de todos os indivíduos neste mundo e esta é concretizada pela ação moral de cada um. Por fim, o projeto educacional de Locke tem como objetivo central formar indivíduos aptos para agirem na sociedade. Para tanto, foi desenvolvido uma análise sobre a teoria do conhecimento e a filosofia política lockeana, como também outros textos do autor. Este caminho se fez necessário porque há uma conexão entre os textos do Locke, sendo o conceito de moral o denominador comum. Nesse sentido, o projeto educacional sugerido pelo filósofo vai estar alicerçado no desenvolvimento intelectual e corporal da criança, que, sob a tutela dos pais e/ou preceptor, contribui com a edificação de uma nova sociedade na Inglaterra. O conceito de formação surge como meio para efetivar os objetivos gerais da educação, a saber: tornar a criança livre, que tenha garantido o direito de suas propriedades materiais e que controle as paixões humanas. Mais que isso, é através da formação de uma nova classe dirigente que a Inglaterra corrigirá seus defeitos, já que Locke propõe que a formação do gentleman seja reservada aos filhos da burguesia inglesa. É através do conceito de formação que Locke une sua teoria educacional com a teoria do conhecimento e a política. 38 Referências BAILLON, J.F. Une philosophie de l’éducation: John Locke, Some thougths concerning education (1693). Domont-FRA: Dupli-Print, 2006. DESCARTES. Discurso do método. Tradução Enrico Corvesieri. São Paulo: Abril Cultural, 1999a. (Os pensadores). EBY, F. História da educação moderna. Rio de Janeiro: Globo, 1962. GOYARD-FABRE, S. John Locke et la raison raisonnable. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1986. JORGE FILHO, E. J. 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Nietzsche fez críticas a formação tecnicista da Alemanha voltada, segundo ele, para os interesses do mercado e do Estado. Uma educação, que segundo Nietzsche, prestava-se a formar homens aptos a ganharem dinheiro e servirem aos interesses do Estado. Sendo assim, a prática da leitura não levava em consideração a heterogeneidade dos leitores. Esta educação tecnicista, rápida e massificante foi criticada por Nietzsche. Uma educação na qual a prática da leitura não era trabalhada considerando o sujeito leitor. 40 Palavras-Chave: Estado; Mercado; Formação Humanista. Nietzsche preocupou-se com a formação cultural e educacional que os jovens alemães estavam recebendo no ensino secundário e universitário da Alemanha em pleno século XIX. Suas preocupações diziam respeito ao excesso de formação técnica em detrimento de uma formação humanista. Nietzsche via no excesso de formação técnica, uma clara preocupação em formar homens aptos a exercerem atividades que fossem importantes para o mercado e para o Estado. Para Dias (1991) Nietzsche observou que o processo de formação que os jovens alemães estavam recebendo nos estabelecimentos de ensino secundário e universitário estava voltado para atender as necessidades do mercado e do Estado Alemão, criando homens úteis e rentáveis e não homens de personalidades amadurecidas. Diante desta formação a leitura e a interpretação dos textos deveriam seguir a rapidez do mercado. Para Nietzsche, o ato de ler um texto assemelha-se ao ato de ler a vida, o mundo e, portanto, o próprio homem (Larrosa, 2002). Acreditamos ser pertinente a recuperação das reflexões de Nietzsche sobre as relações entre a interpretação e a leitura no atual contexto sócio-econômico. Os textos traduzidos no Brasil, que abordam as preocupações de Nietzsche sobre a educação são: “Sobre o Futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” e “Consideração intempestiva: Schopenhauer educador”. Textos que compõem o livro “Escritos sobre educação”, traduzido por Noéli Correia de Melo Sobrinho. Nietzsche denuncia o caráter imediatista, técnico e econômico da educação na Alemanha durante o século XIX. Segundo Dias (1991) o filósofo Nietzsche condenou os três preconceitos que pairavam sobre o sistema educacional alemão. Preconceitos que o filósofo diz serem egoísmos. Eram eles: o egoísmo das classes comerciantes, o egoísmo do estado e o egoísmo da ciência. O egoísmo dos comerciantes ficava evidente na preocupação em formar homens para atenderem as necessidades do mercado, do sistema de manufaturas, e aptos, fundamentalmente em ganharem dinheiro. Quanto ao egoísmo do Estado ele podia ser percebido na formação técnica preocupada em formar homens para preencherem os postos estatais e tornarem-se fiéis servidores do Estado. E, a base destes dois egoísmos esta na formação científica, que possibilita uma formação tecnicista que interessa apenas ao 41 sistema econômico em gestação na Alemanha no século XIX. Daí o sistema educacional privilegiar uma formação técnica, rápida e voltada ao progresso material, sem nenhuma preocupação humanística. Nietzsche alerta para o perigo deste tipo de formação e seus efeitos. Para ele, esta formação técnica, ao exigir rapidez não permite aos jovens terem uma personalidade amadurecida e, muito menos estarem preparados para a atividade crítica, que só a leitura dos clássicos da literatura nacional e o estudo da língua permitem. Além disso, Nietzsche afirmou que o ato de ler requer paciência, calma, tranqüilidade e profundidade. Mas os estabelecimentos de ensino e a própria vida não toleram mais um leitor imaginado por ele. Para Nietzsche o ato de ler um texto ou uma obra literária é como ler o mundo e o próprio homem. Ao analisar o pensamento educacional de Niezsche, Larrosa (2002) nos indica que o filósofo afirmava que ler é interpretar, é dar sentido ao texto, ao mundo e ao próprio homem. Se entendermos que todo ato de interpretar é criar sentidos novos, então devemos considerar todo leitor, também, um produtor de textos. A relação que se estabelece é entre dois produtores de textos e de sentidos. Uma relação entre duas subjetividades: a do autor e a do leitor-autor. Mas o sistema de ensino castra esta possibilidade de um leitor-autor ao exigir que o aluno procure e reconheça a verdade escondida nos textos. Que o aluno encontre a suposta verdade escondida e que será revelada com a ajuda do professor. Um grave problema gerado por esta perspectiva é a castração da criatividade e da curiosidade. Segundo Morin (2010) desenvolver a curiosidade e a reflexão investigativa é fundamental para o desenvolvimento geral da mente e da capacidade para resolver problemas. Mas, se afinal o sentido já foi revelado, porque ocupar-se com aquilo já descoberto. Segundo Larrosa (2002) Nietzsche afirma que não existe um sentido único ou uma verdade no texto, pois o texto, assim como o homem e o mundo ainda estão para serem lidos. Múltiplos sentidos podem ser produzidos a partir de múltiplas leituras. Exigir dos jovens que encontrem o suposto “sentido” já dado, definido, é tolher a criatividade e, além disso, é cumprir as exigências de um sistema educacional que não tolera a criatividade, a critica e a curiosidade. É transformar o ato de ler em um ato mecânico, objetivo. Um sistema de ensino pautado nesta lógica obedece as regras do pensamento positivista e mecanicista. Um pensamento que valoriza a formação tecnicista, voltada a formar homens aptos a servirem ao mercado e ao Estado. 42 Referencia DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Editora Scipione, 1991. LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos Sobre Educação. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio e Edições Loyola. 43 La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método” Eduardo Álvarez Mosquera Profesor de Filosofía Educación Secundaria y Educación Técnico-Profesional (UTU) [email protected] [email protected] RESUMEN: En este informe se incursiona en el “Discurso del método” de Descartes con el objetivo de mostrar ciertos planteos pedagógicos del filósofo francés y dejar abierta la cuestión de su actualidad. Por eso mismo nos remitimos a su parte crítica, la de la educación con base en el empirismo, que incluye a la educación formal e informal, y también a lo que puede llamarse el programa educativo de Descartes sostenido desde el racionalismo. Finalmente se discute la coherencia interna de la posición de Descartes, y si en contra de él puede pensarse una educación racionalista democrática y no elitista, para terminar preguntándonos si habría algo de todo eso que pudiéramos aprovechar. 44 PALABRAS CLAVES: Autoeducación - Educación - Método - Razón - Verdad La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método” I. El tema Cuando se lee el “Discurso del método” -de ahora en adelante, DM-, lo primero que a uno le viene a la cabeza es que Descartes postula allí un método que pretende constituirse en la base del discurso filosófico y del discurso científico. Esto es bien sabido. Sin embargo considero que el método va más allá de lo filosófico y lo científico. Creo que en él hay otra dimensión que ha sido algo descuidada por sus comentaristas: la pedagógica13, a pesar de los muchos indicios de Descartes acerca de su importancia. 13 Goguel, en un texto ya viejo, expresa de un modo paradigmático esta postura: “la doctrina cartesiana tenia como preliminar una crítica tan aguda del contenido de la enseñanza tradicional que se hubiera podido esperar que, en cambio, iba a ofrecer sugestiones nuevas respecto a la manera de enseñar. Pero en el Discurso todos los golpes apuntan a las materias de enseñanza, sin que Descartes formule siquiera una objeción al modo cómo se las enseñaba.” (pp. 1816-1817). 45 Vaya como los más relevantes el señalamiento del método como la herramienta en la “que quería emplear en instruirme”14, la puntillosa crítica que le hace a las diferentes formas de educación aceptadas y lo que propone en su lugar. Por eso mismo en este informe se tratará de hacer una breve recorrida por los cuestionamientos a la educación de su época y por lo que podríase denominar el proyecto educativo de Descartes. II. La aspiración inicial Para entrar en tema, lo que primero hay que señalar es el propósito confeso de Descartes en el DM, que en sus palabras es el siguiente: “Me impulsaba un imperioso deseo de aprender a distinguir lo verdadero de lo falso para juzgar con claridad de mis acciones y caminar rectamente por la senda de la vida”15. Con esto Descartes no deja dudas, su deseo, muy fuerte por cierto, es aprender. Su asunto es educarse. El objetivo es bien preciso. Formar juicios claros y tener una vida recta. En otras palabras de Descartes: “adquirir un conocimiento claro y seguro de lo que es útil a la vida”16. Y el medio para alcanzarlo es contar con un método y aprenderlo. Para enjuiciar y vivir rectamente necesitaba de un saber primero, uno que oficiara de marco para distinguir lo verdadero de lo falso. Es que si no se dispone de un criterio demarcatorio de la verdad, la verdad y la vida recta son indefendibles. Esto no era menor, implicaba que el método constituía un saber a priori17 y que su educación debía comenzar por ahí18. 14 DM, Sexta Parte, p. 36. 15 DM, Primera Parte, p. 12. 16 DM, Primera Parte, p. 10. Obsérvese que Descartes parece dar a entender aquí que el conocimiento claro y seguro no es una exigencia filosófica, sino pedagógica que sí recoge la filosofía. 17 Cf. VÁSQUEZ, Miguel. “El método a priori y su relación con la experiencia: una lectura del método cartesiano desde la propuesta de Desmond Clarke” 46 No obstante, para que no quedase ninguna duda sobre este punto, a Descartes le quedaba un problema por resolver: demostrar que el saber y el tener una educación de base empirista no es otra cosa que privarse del poder de distinguir lo verdadero de lo falso, y por lo tanto, privarse del buen juicio y de la vida recta. Por eso es que no asombra que se haya aplicado a la crítica de toda educación fundada empíricamente, empezando por la educación formal que recibió. III. La educación formal en el banquillo de los acusados De entrada y con su acostumbrada modalidad autobiográfica de escribir, Descartes señala que la educación recibida lo desencantó. Dos eran los motivos que lo habían llevado a ese extremo. Uno, que la educación formal no cumplió con lo que prometía. Decía haber sido persuadido que educándose obtendría el conocimiento que necesitaba para la vida, y sin embargo, ya educado, lejos estaba de contar con tal conocimiento. Su culpa estuvo en atarse a una idea libresca de educación en la que el libro aparece como conteniendo el saber que se necesita para vivir bien19, sostendrá Descartes con firmeza. Descartes nos cuenta su experiencia. Había aprendido lenguas, y éstas solo le habían servido para poder entender los libros antiguos. Y cuando finalmente pudo entender los libros antiguos, encontró que lo único que podía saber con ellos era lo que se pensó en el pasado. Nada había allí que valiera la pena para la vida que estaba viviendo20. Dos. Descartes descubre que lo único que le había dejado la educación formal no era otra cosa que la certeza de seguir siendo un ignorante. 18 Trujillo en p. 15 cita a Debesse y a Mialaret para explicar esto mismo: saber y educación convergen, por cuanto si hay un método para educarse y enseñar es porque hay un método para conocer.” 19 En un primer momento se podría pensar que esta es una forma de desresponsabilizar a sus profesores pero tengamos en cuenta también que en ello hay una severa crítica hacia ellos. Ver Segunda Parte del DM, pp. 14-15. 20 Con ello, Descartes no estaba diciendo que los libros que se utilizaban en la educación formal no sirviesen para nada. Al contrario, les reconoce un alto valor. Encontró en ellos belleza, elocuencia, inventiva, etc., todo lo que puede servir para adornar a una persona. No menos, pero no más que eso. 47 No sin cierta decepción nos revela que a pesar de haber sido un discípulo destacado en una de las universidades más importantes de Europa, la educación que allí recibió no evitó que volviese a equivocarse y que sus dudas gozaran de buena salud. Siguió sin poder distinguir lo verdadero de lo falso, sin saber juzgar sus propias acciones, ni qué hacer para tener una vida recta21. Un balance negativo el de Descartes: leyó, escuchó a sus maestros que eran grandes lectores, y solo le quedaba un saber del pasado que no podía conectar con su presente y un presente que no sabía manejar. No obstante había en esto algo positivo. Se había dado cuenta que debía abandonar la educación formal y tomar otro camino, el de los viajes. IV. El mundo como educador fallido Sustituir los libros y la universidad por los viajes, podría pensarse como una extravagancia de Descartes; sin embargo él no lo veía así. Primero, porque para Descartes viajar era más de lo mismo. Para él, leer era viajar. Ya lo había dicho, leyendo viajaba al pasado. Lo nuevo con los viajes por el mundo era poder estar en lugares diferentes y en un tiempo presente. En segundo lugar, viajar educa. A título de ejemplo, no parece desacertado sostener que puede saberse más de las costumbres de un pueblo yendo al pueblo que leyendo un libro sobre él. Y tercero, los viajes eran la prueba de fuego de la versión educativa más crudamente empirista. Ahora se trataba de ver si de la experiencia directa con las cosas y con los hombres podría extraerse el criterio de verdad que estaba buscando. ¿Y qué descubre Descartes con sus viajes? Que hay ventajas. Viajando, la sensación de presente y vida es muy fuerte. Por si fuera poco, los viajes terminan favoreciendo la destrucción de los prejuicios. Descartes cuenta que tuvo ocasión de ver que hay hombres como él que viven sus costumbres bien distintas de la misma manera que él vive las suyas y no por eso son menos inteligentes y sus costumbres ridículas22. Pero también descubre que hay en ello desventajas y que las desventajas son mayores. 21 DM, Primera Parte, p. 12. 22 DM, Primera Parte, p. 12. 48 La tal educación educa des-educando. Quien viaja mucho, dirá Descartes, se vuelve cosmopolita, y por lo tanto, un extranjero en su tierra23. Los viajes educan para vivir en cualquier parte y en ninguna, y el viajero acaba des-educado para vivir con sus paisanos. Lo peor de la educación viajera sin embargo no es esto, lo peor es que patrocina al relativismo. Si valen lo mismo las costumbres propias y ajenas, lo verdadero y lo falso desaparece, y no hay forma de hacer creíble cualquier afirmación que pretenda decir cómo es que hay que actuar para llevar una vida recta24. El saldo también es negativo, los viajes por el mundo tampoco dan la enseñanza a la que aspira Descartes. Era tiempo de volver a casa. V. La educación como autoeducación Y Descartes, echándole las culpas al invierno por impedirle reunirse con sus compañeros de armas, termina encerrado él solo en su propia casa teniendo como única ocupación, pensar25. V.a. El sujeto como centro Esto, más allá de si le creemos o no a Descartes que solo era una cuestión de estación, no tenía nada de inofensivo. Había renunciado a la universidad, a sus maestros, a sus libros, al mundo, a las cosas del mundo y a sus habitantes, con la excusa de que no le enseñaron lo que quería aprender. Y Descartes tenía razón, no se lo enseñaron26. 23 DM, Primera Parte, p. 11. 24 DM, Primera Parte, p. 12. 25 DM, Segunda Parte, p. 13. En este contexto, el vocablo “pensar”, como lo dice Ortega y Gasset en “El tema de nuestro tiempo”, IV, pp. 45-46, debe ser entendido como pensar lo verdadero, y que en modo alguno incluye la posibilidad de un pensamiento fracasado, equivocado. 26 En este punto me parece de recibo que pueda plantearse la cuestión de cuán razonable es la demanda de Descartes cuando le pide a la educación formal y a los viajes que cumplan con sus específicos deseos de aprender. 49 Pero estaba en un lío. Seguía intacto su deseo de aprender y por decisión propia ya no contaba con los apoyos educativos tradicionales. ¿Quién lo educaría entonces? El único que le quedaba, él mismo. Ahora el punto es éste: ¿puede ser uno un buen candidato para educarse? La respuesta por sí, que es la de Descartes, le evita admitir que no podría educarse, pero a su vez lo coloca en una posición incómoda. Por un lado porque postula algo así como su autosuficiencia educativa. Por otro lado, porque puestas las cosas así, maestro y discípulo coinciden, son el mismo. Y todo esto iba en contra de la educación formal y la informal. No hay que olvidar que la escuela exige que maestro y discípulo sean personas distintas y que la educación informal necesita de otros y de un mundo que no se conoce, ya que lo que ella enseña es lo que yo no sé porque nunca lo vi. ¿Y cómo sale de esto Descartes? Sale por el lado del método. Si lo empírico en cualquiera de sus formas no puede generar conocimiento que esté fuera de toda duda, el sujeto debe inventar una serie de reglas que le permitan decidir con certeza qué cosa es conocimiento y qué cosa no lo es. En eso consiste el método. Dicho en pocas palabras, si quiere aprender estará obligado a postular una educación primera cuyo lema será aprender para aprender. V.b. El programa autoeducativo de Descartes: aprender a aprender Con tal propuesta, y habiendo desactivado a la educación formal y al mundo como educadores, quedaba desactivada la imaginación y los órganos de los sentidos como instrumentos de una tal autoeducación27; solo le quedaba a Descartes la inteligencia o razón. Además de única, ésta parecía ser la mejor opción; en ella no jugaba lo exterior. Sin embargo, a Descartes, que era un buen observador, no se le escapó que de hecho es muy frecuente que la razón se extravíe. Era un gran contratiempo y por eso explica esto en el comienzo mismo del DM. Allí sostiene que la diversidad de opiniones de los hombres no tiene su origen en racionalidades distintas. Y agrega, hay una sola razón pero es usada de modos diferentes y en 27 DM, Cuarta Parte, p. 24. 50 cosas diferentes28. Luego, en sentido estricto la razón no se equivoca. Hay que admitir entonces que cuando hay un error se trata de una ineptitud individual en su manejo o en aquello dónde quiere aplicársela; se trata de accidentes que no la rozan formalmente. Y con esto viene al menos un par de problemas en donde lo que está en juego es cómo educarse y qué lo habilita para considerarse educado. Por eso el primero tiene que ver con cómo evitar ser ineptos en el manejo de la razón y llevarla por el buen camino. El otro, con qué es lo que legitima un auténtico uso de la razón. El primer punto es el del método según vimos, punto crucial en esto de aprender a aprender. Y lo es por cuanto el método es concebido como una técnica que permite direccionar a la razón, única para obtener un conocimiento cierto29. La ventaja de pensar la propia educación en estos términos es evidente y Descartes es el primero en reconocerlo: seguirlo sería fácil y el único problema es formar el hábito de seguirlo30. Sin embargo una cosa es estar convencido de la necesidad de un método para la razón, y otra cosa es determinar cuál debe de ser ese método. Descartes había aprendido de estudiante tres métodos: el lógico, el geométrico y el algebraico, pero no podía aceptarlos tal como venían de la educación formal, a la que le había dado la espalda, y tenía buenos motivos para ello. El lógico contenía junto a preceptos útiles, preceptos superfluos. El geométrico y el algebraico se referían a cosas abstractas que no tenían aplicación. ¿Y qué fue lo que hizo Descartes? Inventó otro método en el cual no faltara lo mejor de los que ya había aprendido. En apretado resumen y en palabras de Felipe Giménez, este nuevo método consta de las siguientes cuatro reglas: 1º Evidencia intelectual o certeza como criterio de verdad. 2º Análisis o disección de lo complejo y reducción a sus partes simples. 3º Síntesis según el orden de recomposición de lo analizado inverso al orden de descomposición de lo complejo. 28 DM, Primera Parte, p. 9. Con este comentario Descartes parece adscribirle a la razón un carácter meramente instrumental; la razón sería algo así como un martillo, que puede ser usado para clavar un clavo o para golpearle la cabeza a alguien. No obstante de esto no tiene la culpa la razón y el texto es claro. Como sostiene Ortega y Gasset en “El tema de nuestro tiempo”, III, p. 36, la razón es un absoluto en Descartes, y “Si no fuera por los pecados de la voluntad, ya el primer hombre habría descubierto todas las verdades que le son asequibles”. 29 DM, Segunda Parte, p. 17. 30 DM, Segunda Parte, p. 17. 51 4º Regla mnemotécnica, enumeración de todas las partes del análisis y revisión sintética para la intuición global del conjunto.31 Según puede notarse, tales reglas son de carácter técnico y no hacen más que expresar las condiciones ideales de cómo aprender. En la primera Descartes nos dice que lo que se aprende es lo verdadero y cuál es el criterio por el que se distingue lo verdadero. Con la segunda y la tercera está indicando cómo es que va a hacer trabajar a la razón para que haya aprendizaje. La razón se encargará de analizar y sintetizar. Y con la cuarta pretende que no haya omisión alguna, como requisito para que lo verdadero sea efectivamente verdadero. El segundo punto, aquel que tenía que ver con lo que habilita el considerarse educado, se divide en tres: la postulación de Descartes como sujeto epistémico, la necesaria existencia de Dios y los efectos de la aplicación del método. Si se repasan las cuatro reglas del método podrá observarse que en todas Descartes se coloca como el centro. Esto ya lo habíamos dicho, pero agreguemos ahora esto otro: la educación es cosa del sujeto. Él es quien dice qué es verdadero, cómo se razona, qué no hay que olvidar, y por lo tanto es autónomo en términos epistémicos. ¿Y cómo podría ser eso? Porque como asegura Descartes, “comprendí que yo era una sustancia, cuya naturaleza o esencia era a su vez en pensamiento”32. Pero quedaba algo pendiente, ¿quién legitima al sujeto epistémico? Éste podría decir todo lo que quiere sobre su educación, pero bien podría no estar educado; de ahí que Descartes recurra a Dios. Tiene que demostrar la existencia divina porque ésta sería la garantía de que cuando el sujeto epistémico dice qué es lo verdadero, cómo se razona y qué no hay que olvidar, y que en nada de eso se equivoca. Si Dios existe y existe tal como lo concebimos, cosa que trata en la Cuarta Parte, el sujeto epistémico, como sujeto dependiente de Dios, habla con verdad33. Por otra parte además, Descartes no deja de señalar que el método es pedagógicamente exitoso. A partir de él, según confesión de Descartes, “no solo resolví cuestiones que en otros tiempos me parecieron complicadísimas, sino que hasta llegué a poder formar juicio de otras desconocidas para mí”34. Su aplicación disipa las dificultades y acumula conocimiento35. 31 Cf. “Lecciones sobre René Descartes”. 32 DM. Cuarta Parte, p. 22. 33 Este es un punto muy discutido, incluso situándose en el lugar de Descartes. Su exigencia de un sujeto epistémico, aunque solidaria con Dios, no implica su obligatoriedad. 34 DM, Segunda Parte, p. 17. 35 Cf. “El problema del conocimiento” de Ernst Cassirer, t. I, que abunda en ejemplos de esto. 52 En términos pedagógicos todo esto equivale a decir que la educación primera, la que concierne al método, es condición necesaria de una educación segunda, la que versa sobre “la realidad de las cosas”36, y que teniendo las dos, cualquiera puede considerarse educado y legítimamente educado. VI. Un problema pedagógico importante: ¿educación de elite o democrática? Sentado esto, finalicemos el informe centrándonos en algo que dice Descartes sobre su educación primera: “Mi propósito no es enseñar el método que cada uno debe adoptar para conducir su razón; es más modesto; se reduce a explicar el procedimiento que he empleado para dirigir la mía”37. Con ello Descartes venía a decir que su educación primera no estaba pensada como proyecto pedagógico para los demás. Ahora, y más allá de la modestia que utilizó como excusa, ¿le era legítimo a Descartes sostener tal cosa? En modo alguno, y hay un poderoso motivo en el mismo inicio de DM: “El buen sentido es una de las cosas mejor repartidas en el mundo” 38. Y en el párrafo siguiente agrega: “sentido común o razón, es igual por naturaleza en todos los hombres”. Estaba reconociendo de esa manera que no hay diferencia alguna entre su razón y la del resto de los hombres. Entonces, si el método fue bueno para Descartes ¿por qué no habría de serlo para los demás? Porque después de todo, si todos cuentan con la misma razón, y conducirla no pasa de memorizar y ejercitarse en aplicar apenas cuatro reglas, una técnica que para dominarla solo necesita hacerse habitual, no se entiende por qué no podría universalizársela en el marco de un proyecto educativo. ¿Y por qué lo sostuvo? Diría que en principio por su natural cautela. Aunque todos los hombres sean racionales, nunca se tendría la seguridad de que todos pudieran aplicar el método. Era lógicamente posible pensar así. Pero hay otra cosa más, y que hay que señalarlo. No se trata solo de una cuestión lógica; Descartes está convencido que el método, la educación primera, en modo alguno es para todos. Él lo señala en forma explícita, espera que “sea útil a algunos” 39, y con ello viene a 36 DM, Segunda Parte, p. 17. 37 DM, Primera Parte, p. 10. 38 DM, Primera Parte, p. 9. 39 DM, Primera Parte, p. 10. 53 sostener que la educación, y en particular la educación primera, es cosa de una elite, que como indica Goguel, está formada por autodidactas40. Por esto mismo, la educación debiera enfocarse a educar a una aristocracia de y en la razón y declarar como ilusorio cualquier proyecto educativo democrático. VII. A modo de conclusión Ya en el final solo nos quedan preguntas. La primera: ¿cuánto de esta concepción de la educación seríamos hoy capaces de aceptar? Segunda: ¿puede crearse un proyecto pedagógico universal con lo que lleguemos a aceptar? Y tercera: ¿valdría la pena? BIBLIOGRAFÍA: 40 “Descartes y la pedagogía”, p. 1822. 54 CASSIRER, Ernst. 1953. “El problema del conocimiento”, tomo I, F.C.E., México-Buenos Aires DESCARTES, R. 1965. “Discurso del método” en “Obras escogidas”, Ed. Schapire, Buenos Aires GIMENEZ, Felipe. “Lecciones sobre René Descartes”, Cuaderno de Materiales, www.filosofia.net/materiales/tem/descart.htm GOGUEL DE LABROUSSE, Eusabeth. 1949. “Descartes y la pedagogía” Actas del Primer Congreso Nacional de Filosofía, tomo 3, Mendoza ORTEGA Y GASSET. 1976. “El tema de nuestro tiempo”, Revista de Occidente, Madrid TRUJILLO GARCÍA, Sergio. 2008. “Pedagogía de la afectividad: La afectividad en la educación que le apuesta a la formación integral, ir al núcleo del sujeto” en Tesis Psicológica, Nº 3, Fundación Universitaria Los Libertadores, Colombia. Pp. 12-23 VÁSQUEZ, Miguel. 2008. “El método a priori y su relación con la experiencia: una lectura del método cartesiano desde la propuesta de Desmond Clarke” incluido en “Apuntes filosóficos”, Universidad Central de Venezuela, pp. 109-128, www.dialnet.uniroja.es/servlet/articulo?codigo=3132224 55 Hegel: El concepto de formación (Bildung) ante los retos y fines de la educación. Andrés Felipe Hurtado Blandón Instituto de Filosofía Universidad de Antioquia Medellín, Colombia Quien no se ha pensado a sí mismo no es libre. G. W. F. Hegel La época que vio nacer a los reconocidos movimientos u orientaciones intelectuales clásicos alemanes y con ellos (pero no necesariamente a causa de ellos) a las transformaciones políticas, sociales, culturales y económicas más importantes de la historia de la Alemania moderna cuenta, también entre sus logros, según Fichte, el haber perfeccionado la formación (Bildung) en todos sus pasos (Cf. Fichte, 1984, 146). Independientemente de que resulte cierta o no esta afirmación, lo que sí es claro es que hasta aquella época, y podría afirmarse incluso que hasta la nuestra, nunca el concepto de formación y los procesos, experiencias y aspectos más importantes relacionados con ella, habían logrado un grado de teorización y fundamentación filosófica tan amplios. Se sabe que entre algunos de los más destacados pensadores alemanes de aquella época en este asunto se cuenta a Goethe, Herder, Schiller, Wilhelm von Humboldt, Schleiermacher, Friedrich Schlegel, Kant, Fichte y fundamentalmente a Hegel (Véase Gadamer, 1993, 40). El tratamiento, sentido y papel que estos autores dieron a la formación lo hicieron a la luz y sobre la base de sus más importantes teorías o sistemas de pensamiento. De ahí la riqueza, rigurosidad y amplitud semántica del concepto. Sobre el concepto alemán Bildung, cuya acuñación fue lograda parcial e inicialmente por estos pensadores, se puede contar entre sus principales características e interpretaciones, las siguientes: Una formación corporal, así como una evolución y desarrollo en crecimiento, según un ideal o tipo. Unas tendencias culturales que están determinadas en una cultura. Un hombre ilustrado que se encuentra en evolución de sus conocimientos según unas reglas. Un momento de completar la madurez individual y con ello adquirir mayor visión de intereses. 56 Un cambio en un saber o educación escolar que pudiera facilitar el camino a una formación posterior. Una supervaloración de las formas sociales estimadas. Un cuidado de las buenas maneras, así como una propia especialización (Ipland, 1988: 33). Además de estos aspectos, solo en apariencia heterogéneos, vale anotar su concepción filosófica más elaborada, que supone o implica aquellos: Bildung como proceso de capacitación para la autodeterminación racional del individuo (Klafki, 1990) o como proceso de desarrollo y ejercicio de una verdadera autonomía moral e intelectual (Mündigkeit, mayoría de edad kantiana). Bildung como un proceso que, siguiendo a Vierhaus (2002), no se concibe ni se da al margen de los conceptos y formas fundamentales de la libertad (Freiheit), la cultura (Kultur) y el espíritu (Geist) de la época, sino que más bien, se encuentra en una relación esencial con ellos, y en ellos obtiene su mayor significación y desarrollo. En pocas palabras, puede decirse que Bildung consiste en el conjunto de procesos mediante los cuales el individuo (aunque valga anotar que el concepto también aplicó para formación de la sociedad, el Estado, el espíritu y la humanidad en general) desarrolla plenamente sus potencialidades internas (Humboldt) o llega ser lo que realmente es (Kant, Hegel). Se trata, en los términos más amplios y conocidos, de un proceso dialéctico-integral de ascensión del individuo desde la particularidad o inmediatez de su ser, saber y hacer hasta aquella universalidad histórico-racional (ciencias, artes, instituciones, libertad, Estado de derecho, etc.) en la cual puede llegar a realizarse y reconocerse en sociedad como lo que esencialmente es, esto es, como un ser libre y racional. Ahora bien, para el caso de Hegel, puede decirse que la matización que hace del concepto sigue siendo además de rigurosa bastante amplia ―por lo que no se excluyen muchas de las características anteriormente descritas―. Tal amplitud es debida, 1- a los diversos enfoques desde los cuales trata el problema de la formación; 2- a la gran influencia que tuvieron sobre Hegel los demás pensadores; 3- a su gran interés y amplia experiencia en asuntos pedagógicos y docentes; 4- a la alta presencia que le otorga a la formación en la totalidad de su obra, y con ello, 5- al muy importante papel que en ésta desempeña. Grosso modo, esto quiere decir, que el concepto o tema de la Bildung en Hegel no debe ser tratada al margen de las principales coordenadas de su sistema filosófico; y en sentido inverso, dichas 57 coordenadas tampoco deberían ser consideradas al margen de una significación y desarrollo esencialmente formativos. Con una intención más crítica y reflexiva que meramente expositiva, me detendré entonces en señalar brevemente, de acuerdo con el título sugerido, los aspectos en los cuales se considera que el planteamiento hegeliano tiene aún una gran vigencia para pensar nuestros problemas sociales y educativos más determinantes. Para ello dividiré el texto en dos momentos. En el primero, esbozaré grosso modo los aspectos fundamentales de la formación en Hegel; y en el segundo, los aspectos a partir de los cuales puede considerarse su importancia y vigencia según el carácter dialéctico de la formación y el principio de la mediación. I. En primer lugar, vale decir que Hegel parte de la consideración de que el hombre no es por naturaleza lo que debe ser, y por ello es que debe formarse. Reconoce en él dos aspectos esenciales: uno singular y otro universal; el primero refiere a los instintos, inclinaciones, sentimientos y pasiones: a lo meramente natural e inmediato en el hombre; el segundo aspecto, a su ser racional o a la capacidad de pensar, querer y actuar conforme a reglas y principios. Su deber para consigo, y el de sus protectores frente a él, consiste en adecuar su ser singular a su ser universal por vía de la autodeterminación o, dicho de otro modo, el que él sea capaz de reconocerse integralmente, y hacerse reconocer y reconocer a otros como sujetos autónomos (moral e intelectualmente) y de derechos al interior de y conforme a la estructura racional de una sociedad o Estado. Para Hegel el hombre es además una voluntad libre, por la cual entiende el modo y la posibilidad de un comportamiento teórico y práctico que se desarrolla entre la tendencia a la infinitud y la gradual conciencia de la finitud. La formación del individuo para Hegel tiene como fin último la libertad. Ésta es tanto presupuesto como meta genuina de toda educación y formación. Presupuesto en tanto consideración antropológica inicial: el hombre es esencialmente libre, una voluntad libre; objetivo o meta en el sentido de que tal esencia es apenas un impulso o tendencia, algo formal, abstracto que necesita ser desarrollado por vía de una acción consciente: mediante procesos continuos experienciales de negación y superación (Aufhebung) de sí, en sus diversas relaciones consigo mismo y con los otros. Tales procesos de negación y superación 58 de sí tienen un carácter tanto individual como social, a su vez que teórico y práctico. Es individual en el sentido en que depende del arbitrio y disposición de cada individuo efectuar y afrontar todas y cada una de las diversas experiencias que le permitirán alcanzar su libertad y autonomía; es social, en el sentido en que tanto su ser, como su vida y su libertad solo devienen reales al interior de una sociedad o comunidad, la cual interviene simultáneamente sobre su pensar, querer y actuar mediante la disciplina, la instrucción, y su reconocimiento jurídico y moral; es teórico, en cuanto incluye, por un lado, procesos de relación, categorización, significación y juicio en su inmersión y relación con el mundo cultural, social y humano; y por otro lado, una reflexión exhaustiva (filosófica) sobre la naturaleza y necesidad de los procesos implicados; es un proceso práctico, también en dos sentidos, de una parte, implica un proceso de limitación de sus propias acciones conforme a las normativas regentes, y de otra parte, una participación política y social comprometida con las necesidades de su comunidad, la cuales suponen o implican a su vez las suyas. Así, el individuo solo alcanza la libertad mediante una comprensión de y consecuencia con la implicación y determinación mutua entre todos y cada uno de los elementos implicados en dichos procesos experienciales y configurativos de sí; tal comprensión no es en modo alguno espontánea, ni el ceñimiento o plegamiento a sus principios y leyes un acto voluntario sin más. Por el contrario, exige sacrificios y esfuerzos en todos y cada uno de tales aspectos. Visto por el lado del individuo en lo que se refiere a su formación e integridad, implica procesos de determinación en lo moral, cognitivo, estético y práctico (Klafki, 1990); y por el lado de lo social, procesos de determinación en lo familiar, social, cultural, estatal e histórico. Acerca de los principios que han de regir tales procesos individuales y sociales de determinación podrían señalarse, entre otros, los siguientes: 1. Necesidad de una ruptura con lo inmediato y natural. Superación de todo interés particular y punto de vista estático o dogmático. Primera condición de lo espiritual. 2. Elevación a los principios y conocimientos más universales. Por ellos se entiende los conocimientos científicos y los elementos culturales, políticos y económicos que, para el momento, dan muestra de una gran racionalidad (no instrumental) en comparación con otros. 59 3. Necesaria mediación con la diferencia. A partir de ello se devela la relación intrínseca entre las partes opuestas y se da lugar a una relación de reconocimiento recíproco y superación de las unilateralidades o falencias de sus estados actuales. 4. Conciencia de la negatividad y absolutez inherente a las cosas, a partir de lo cual se comprende su naturaleza y marco de relaciones como en un constante devenir. Dicha conciencia aplica tanto para los conocimientos científicos como para los diversos sistemas y principios normativos sociales. 5. Relación intrínseca entre el todo y las partes. Sólo por la comprensión de su necesidad mutua se puede superar cualquier unilateralidad impositiva y anulativa bajo la forma, verbi gratia, de un individualismo exacerbado o de un totalitarismo criminal. Aplica también para este caso la ruptura con lo inmediato, la mediación con la diferencia y el reconocimiento (Anerkennung) recíproco entre las partes de la relación. Dichos principios filosóficos, que habrían de lograr la libertad concreta por medio de la formación en los diferentes aspectos señalados, constituyen la pauta y la ley bajo las cuales puede explicitarse y hacerse efectiva la vigencia de una propuesta formativa como la hegeliana. Veremos. II. En cortas palabras podría decirse que, por lo que respecta a su naturaleza, en tanto proceso constante, integral y necesario de negación y superación de sí, la formación es fundamentalmente dialéctica ―en esto radica su vigencia―. Ella exige, por un lado, superar el ser meramente natural o animal del individuo mediante procesos y formas de disciplinamiento, instrucción y socialización propios de su época y sociedad. Estos le permitirán al individuo ampliar su horizonte de comprensión de sí mismo y del mundo y aprender a comportarse, en consecuencia, según principios, puntos de vista, necesidades e intereses de carácter objetivo. La objetividad es aquello que corresponde con la verdad y la racionalidad de una sociedad y época: ciencias, leyes, instituciones, costumbres. Por su parte, el individuo, en tanto voluntad libre, está en la capacidad y el derecho social y humano (el 60 cual debe garantizársele) de apropiarse de ésta y actuar críticamente conforme a ella, esto es, en palabras de Hegel, hacerse universal: El individuo debe reconocerse como destinatario y a su vez inspector y agente de la racionalidad de dicho marco de objetividad. Ello implica, para efectos de reconocimiento (Anerkennung) y verdad, pensar y actuar conforme a los principios de la mediación con la diferencia y la unidad intrínseca y necesaria entre el todo y sus partes. Esto quiere decir, que entre ciudadanos y Estado, o entre individuos y sociedad, hay una determinación y necesidad mutua que debe desarrollarse integralmente con vistas a su unificación y no a la imposición arbitraria de uno sobre otro; sobre ellos no hay más autoridad que la de la razón (Vernunft), aun cuando se sea consciente de la historicidad o finitud humana de la misma; para Hegel, la razón también es dialéctica y negativa. La dialéctica constituye por ello, en tanto negatividad racional ―y lo racional es real―, la ley inmanente del pensar y el principio de todo progreso científico, social y humano. La dialéctica, cuyo principio motor es la contradicción, cuyo desarrollo implica necesariamente ruptura con todo estado y relación abstracta o inesencial (unilateral, dogmática), cuyo alcance trasciende a la existencia misma del individuo, y cuyo plegamiento y consecuencia con sus leyes y fines intrínsecos le implican necesariamente a éste experiencias de desgarramiento o negación de sí, constituye por ende el fundamento de toda formación orientada a la libertad y a la autonomía moral e intelectual del individuo. La formación en Hegel exige ante todo la experiencia de la mediación; ésta, según la estructura lógica de su filosofía, implica un continuo salir de sí y retornar a sí más determinado o enriquecido en comparación con su estado anterior. La mediación tiene dos sentidos: mediación consigo y con lo otro; y un solo fin: la reconciliación. A su vez exige una concientización imprescindible: la negatividad intrínseca a las cosas o el hecho de que todo está en constante devenir. Por ello, la mediación, como quehacer dialéctico, no puede ser en principio más que negativa, y para el individuo también dolorosa o incómoda: implica una crítica constante a sí mismo sin contemplaciones, una limitación de nuestros intereses, una disposición permanente a la crítica de sí mediante el diálogo, una revisión permanente sobre los principios y fines de nuestras acciones, y una restructuración frecuente de nuestra identidad conforme a lo que, según el marco amplio de facultades, derechos y libertades de sí mismo y de los demás, constituye lo que deberíamos ser o lo que podemos llegar a ser. 61 Tanto en un sentido teórico como práctico, la mediación implica un reconocimiento de la diferencia: ni el saber actual ni los principios de las acciones predominantes son algo acabado; en términos adornianos, siempre hay algo que escapa a todo proceso de pensamiento o identificación que debe ser reivindicado en su totalidad y según su derecho. La negatividad de las cosas radica precisamente en su incompletud al concebirlas. Sólo si lo otro o la diferencia es reconocido como esencial, lo uno puede reclamar su derecho a tal reconocimiento: también algo esencial. Para Hegel toda otra acción es abstracta y en tal sentido limitada: no acorde con el concepto o verdad de las cosas. En comparación con el presente, es decir, grosso modo, en relación con la extraña coexistencia de dos extremos lógico-ontológicos instrumentales: de una parte, un individualismo exacerbado producto de la instauración del consumo desmedido; y de otra, un sistema ideológico (político, económico y cultural) totalitario que opera bajo el marchamo de la reificación social y humana que anula toda forma de individualidad auténtica, es que la propuesta hegeliana de la formación, en el sentido dialéctico y bajo los principios arriba expuestos, no sólo resulta teóricamente válida sino ante todo prácticamente necesaria para poder hacer frente a las dificultades que impiden alcanzar lo que, como producto de la modernidad y específicamente bajo el concepto de Bildung expuesto, sería el fin de toda educación y formación humana. De manera particular, dichos fines podrían mostrarse también a la luz de los de la Ley general de educación colombiana (115/1994), en la cual se encuentran consignados, entre otros, los siguientes: 1.El pleno desarrollo de la personalidad sin más limitaciones que las que le imponen los derechos de los demás y el orden jurídico , dentro de un proceso de formación integral, física, psíquica, intelectual, moral, espiritual, social, afectiva, ética, cívica y demás valores humanos. 2. La formación en el respeto a la vida y a los demás derechos humanos, a la paz, a los principios democráticos, de convivencia, pluralismo, justicia, solidaridad y equidad, así como en el ejercicio de la tolerancia y de la libertad. 3. La formación para facilitar la participación de todos en las decisiones que los afectan en la vida económica, política, administrativa y cultural de la Nación. Sin entrar en las descripciones que como la Escuela de Frankfurt y las corrientes pedagógicas revolucionarias latinoamericanas de las décadas anteriores han descrito 62 detalladamente acerca de las consecuencias sociales del capitalismo, las cuales padecemos hoy en día, resulta claro que al individualismo exacerbado y al totalitarismo de los gobiernos actuales promovido por dicho modelo económico, de acuerdo con la lógica del consumo, el criterio de la posesión, el remolino de la moda y el principio del control de la información y los movimientos de los individuos, es claro que ante ello, debe oponérsele a los individuos en formación una educación que promueva en ellos una actitud crítica constante frente al mundo y frente a sí, un diálogo abierto, el respeto por la diferencia o el reconocimiento, y la comprensión de la necesidad de construir conjuntamente el reino de lo ético o la Eticidad: “la idea de la libertad como bien viviente que tiene en la autoconciencia su saber, su querer y, por medio de su actuar, su realidad […]” (Hegel, 1975, 195; énfasis del autor). Esta concepción de formación, que es dialéctica, entrará entonces a cumplir en el individuo y la sociedad también una función dialéctica. Implicará procesos de ruptura con las identificaciones ideológicas actuales y un esfuerzo por la reivindicación de la diferencia o lo no-idéntico. Implicará, bajo el principio de la mediación, la conciencia de la negatividad, y de las potencias internas y derechos sociales e inalienables del hombre, procesos de transformación en todos los niveles: a nivel micro y macro, individual y social, político y económico, moral y cultural, y fundamentalmente a nivel educativo. Su finalidad, que es la libertad, en su sentido negativo tomará la forma de la emancipación; posteriormente, conforme al sentido también positivo o especulativo de la dialéctica hegeliana, la forma de la acción ética, esto es, de la construcción de la libertad como un ideal viviente, real y social y no meramente como un bien interno e individual. Más allá de Hegel, pero de acuerdo con los mismos principios expuestos de su filosofía, los procesos de construcción de lo ético, como proceso individual y social, tendrán que dar prioridad a las formas de participación e inclusión política. En ello se perfila una finalidad y potencial esencialmente democrático. Tanto la formación integral de los individuos (Bildung) como la de una democracia que garanticen mancomunadamente la realización efectiva de la libertad civil y humana, constituyen los fines más genuinos del presente (no sólo latinoamericano) a los que debemos apuntar y, en consecuencia, la necesidad acuciante de asumir el compromiso serio de cumplir nuestros propios retos: la superación programática y progresiva de nuestras condiciones adversas, el reino contradictorio del individualismo y el totalitarismo exacerbados. 63 BIBLIOGRAFÍA FICHTE, J.G., Discursos a la nación alemana, traducción A. Acosta y María Jesús Varela, Buenos Aires, Orbis, 1984. GADAMER, H. G. Verdad y Método I, Salamanca: Ediciones sígueme, 1993, pp.3848. GINZO, A. “Hegel y el problema de la educación”; en: HEGEL, G.W.F., Escritos Pedagógicos, traducción e introducción de Arsenio Ginzo, Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1998. HEGEL, G. W. F., Principios de la Filosofía del Derecho, traducción de Juan Luis Vermal, Buenos Aires, Sudamericana, 1975. HEGEL, G.W.F. Fenomenología del Espíritu. Traducción de Wenceslao Roces, México: Fondo de Cultura Económica, 1993, HEGEL, G.W.F., Escritos Pedagógicos, traducción e introducción de Arsenio Ginzo, Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1998. IPLAND, Jerónima. El concepto de Bildung en el Neohumanismo alemán. Huelva: Hergué, 1998. págs. 7-80. KLAFKI, Wolfgang. La importancia de las teorías clásicas de la educación para una concepción de la educación general hoy. Revista de Educación núm. 291, 1990, págs. 105-127. PIPPIN, Robert. “Hegel, Freedom, The Will. The Philosophy of Right (§§ 1-33)”; en: HEGEL, G.W.F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Ludwig Siep (ed.). Berlín: Akademie Verlag, 1997, págs. 31-55. VIERHAUS, R., “Formación” (Bildung), traducción de Juan Guillermo Gómez para la revista Educación y Pedagogía, Universidad de Antioquia, Vol. XVI, nro. 33, 2002. VIEWEG, Klaus. “Wer sich nicht gedacht hat, ist nicht frei. Bildung und Freiheit in Hegels Grundlinien der Philosophie des Rechts”, en: EICHENHOFER, Eberhard und Klaus Vieweg. Bildung zur Freiheit, Zeitdiagnose und Theorie im Anschluss an Hegel. Wüzburg: Kónigshause & Neumann, 2010, pág. 9-21. 64 La libertad de conciencia en la reforma escolar durante el Siglo XIX en Francia Louise Ferté, Doctorada, Universidad de Saint-Etienne (Francia) Resumen extendido Mi trabajo, entre filosofía y ciencias políticas, investiga históricamente sobre los escritos de los pensadores del siglo XIX, para entender sus concepciones de laicidad, y la importancia que representa para ellos la libertad de conciencia en el proceso de laicización y de secularización. Los revolucionarios franceses no logran hacer coexistir la libertad religiosa y la existencia de una religión civil como en los Estados Unidos, porque en Francia, la religión civil sólo hubiera podido ser la religión católica dominante, que entra en contradicción con la libertad religiosa. Entonces, inventan la “laicidad” y afirman en el artículo 10 de la Declaración de los derechos humanos y del ciudadano del 1789 que “Ninguna persona podrá ser molestada por sus opiniones, incluso religiosas, siempre que su manifestación no perturbe el orden público establecido por la ley” – lo que corresponde a una afirmación moderada de la libertad de conciencia. En 1882, al principio de la Tercera República francesa, la laicidad se vuelve un principio de la escuela republicana, gracias a las leyes de Jules Ferry. Después de esta victoria en el campo escolar, la laicidad se vuelve un principio de la República en 1905, con la ley francesa de Separación de la Iglesia y del Estado, que proclama como principio institucional que “La República asegura la libertad de conciencia” – esa cronología demuestra la importancia de la reforma escolar para las reformas generales de la sociedad. 65 En efecto, la escuela parece un medio para establecer la laicidad en toda la sociedad. La institución escolar representa un reto para la futura sociedad, ya que forma los futuros ciudadanos. Los principios vinculados por la escuela tienen influencia sobre los alumnos y sobre sus concepciones de la sociedad. Mi estudio se encarga pues de las reformas escolares a lo largo del siglo XIX, que repiten los principios de la Revolución francesa y que anuncian la ley de Jules Ferry. Me interesa sobre todo como se usa la expresión de “libertad de conciencia” por los reformistas escolares – especialmente Hippolyte Carnot, Edgar Quinet, Victor Duruy, Jules Simon, Charles Renouvier, Jules Ferry y Ferdinand Buisson: esos son casi todos filósofos e/o teólogos que tienen a veces un cargo político en uno de los numerosos regímenes del siglo XIX (en el gobierno o en la oposición en la asamblea nacional). Todos esos pensadores están convencidos que la escuela es una manera de establecer los principios de la Revolución, incluso la laicidad. ¿Porque elijo el prisma de la “libertad de conciencia”? Ese principio que funda la laicidad está muy mal definido en Francia, aunque esta presente a lo largo de los debates sobre la laicidad entre la Iglesia y el Estado a lo largo del siglo XIX. Este principio permite además acercar esa reflexión a partir de una problemática a la vez política, religiosa y pedagógica. Ese resumen extendido me permite abordar esas tres caras de mi problemática a partir de la presentación de tres reflexiones, no exhaustivas. La libertad de conciencia, de la Reforma protestante a la reforma escolar Considero la libertad de conciencia como un concepto polisémico, y esa manera de definirla así pone de relieve mi problemática de trabajo. Históricamente, la libertad de conciencia es un principio creado durante la Reforma protestante, durante el siglo XVI. Contra el poder autoritario de la Iglesia romana sobre los cristianos, Luther rompe con el poder del Papa y crea otra religión cristiana: el protestantismo. Puesto que la conciencia de los individuos es un lugar sagrado que abriga la relación entre el hombre y Dios, esa religión protestante pide que nadie intervenga sobre ella. Ninguna intervención exterior debe forzar esa relación: ni el sacerdote – ni el profesor, como lo dirán los reformistas del siglo XIX. Esa libertad de conciencia estaba concebida de manera vasta por algunos teólogos del siglo XVII: para Bayle, los derechos de la conciencia incluyen la ausencia de creencias religiosas, la tolerancia debe incluir a los ateos; y la intervención sobre 66 la moral y la conciencia de los seres humanos no sirve porque permite solamente un cambio superficial, solo Dios puede intervenir realmente en lo de la conciencia. No sólo es un principio que trata de religión, pero ya en el siglo XVI, la libertad de conciencia es un principio que debe permitir la paz social y civil dentro del estado: la tolerancia que debe resultar de la aplicación de este principio es primordial para evitar las guerras o la separación de la nación en diferentes castas religiosas. La libertad de conciencia es un principio cuya esencia se encuentre en la confluencia de la religión y de la política. Este principio de libertad de conciencia esta reintroducido por la Revolución francesa como un principio de laicidad de la República, y del fin de la hegemonía de la Iglesia romana en Francia. Este principio se vuelve un principio entre lo católico y lo repúblico: es una libertad pública que la nueva República quiere imponer, contra el poder de la Iglesia católica. La tolerancia es el único medio para asegurar la aceptación en la sociedad de cada religión, y abandonar los principios sociales que pertenecen a la Iglesia católica: esos principios no están en conformidad con los nuevos ideales de libertad de la República, sino con los principios autoritarios del antiguo régimen. Declarar la libertad de conciencia permite entrar en un régimen de libertades y dejar el antiguo sistema. La libertad de conciencia esta aplicada con el principio de laicidad dentro de las escuelas; aparece en las reformas escolares durante el siglo XIX. En la misma época aparece también en Francia teorías pedagógicas, inspiradas de Pestalozzi o de Fröbel, que tienen en cuenta la noción de “conciencia” del alumno. Es decir, me parece que en el contexto de secularización de la sociedad francesa y de los discursos políticos sobre la laicización de la escuela, ese principio de “libertad de conciencia” se seculariza también, para volverse, en el contexto pedagógico, el principio según lo cual se debe respetar la conciencia de los alumnos. Muchos métodos pedagógicos fundidos en la intuición y en los sentimientos del niño se desarrollan durante esa época. Ferdinand Buisson, a partir de 1875, preconiza el método intuitivo por ejemplo, que fue creado por Comenius durante el siglo XVII y desarrollado por Rousseau en Emile, entre otros. Buisson se refiere particularmente a Pestalozzi, cuyo postulado es: “la intuición es la fuente de todos conocimientos nuestros”. Entonces se debe encontrar maneras para ejercitar nuestras facultades, no para cultivarlas artificialmente, pero para facilitar su desarrollo espontaneo, normal y natural. Es una “pedagogía del descubierto” que se apoye sobre la naturaleza del infante. 67 Mi primera reflexión consiste entonces en la definición problematizada de la “libertad de conciencia” en esos tres campos vinculados: religioso, político y pedagógico. La moral laica : entre libertad de conciencia y valores republicanos Se debe distinguir la libertad de conciencia de la libertad de religión o de los cultos. Como lo dijimos justo antes, la libertad de conciencia puede aplicarse a las personas que no creen en Dios, o que creen en una religión que no esta reconocida por el estado – al contrario, la libertad de los cultos es una libertad de algunos cultos reconocidos por el estado. La libertad de conciencia es universal, se dirige a todos. Por eso, la aplicación de este principio dentro de la institución escolar impide que la escuela quede en las manos de las religiones positivas, que se dirigen solamente a una parte del pueblo. En Francia, la Iglesia solía encargarse del campo educativo, y particularmente escolar; pero ese cargo fue cuestionado a partir de la Revolución francesa. Sólo el estado tiene el poder, los medios materiales y la pretensión a la universalidad que le permiten remplazar la Iglesia en el campo educativo, respetando siempre la libertad de conciencia y los principios de la República en materia religiosa. Pero esa operación de substitución de la Iglesia por el estado en el campo escolar no fue fácil. Si las escuelas se vuelven públicas al principio del siglo XIX con profesores laicos, no significa que las escuelas se vuelvan laicas o que respeten la libertad de conciencia. En primer lugar, la libertad de la enseñanza se debate a lo largo de las reformas escolares del siglo XIX. Permite la existencia de escuelas privadas religiosas en las cuales la libertad de conciencia no es respetada. Se opone entonces la libertad de existir de las religiones positivas, particularmente de la Iglesia católica, y la libertad de conciencia y de cultos. En segundo lugar, se plantea la cuestión de la enseñanza de la moral dentro de la escuela pública. La Iglesia se declara ser la única instancia capaz de intervenir en el campo moral y hasta la Tercera República, ninguna reforma se atreve a proponer una enseñanza laica de la moral: el sacerdote de cada religión positiva enseña su propia moral dentro de la escuela, y se supone que cada alumno sigue una enseñanza con arreglo a su religión – debía elegir una religión reconocida por el Estado, o sea el catolicismo, el protestantismo y el judaísmo. Ese funcionamiento no satisface el principio republicano de libertad de conciencia. Entonces, en la ley “Ferry” de laicización de la escuela en marzo de 1882 se propone una enseñanza de 68 “moral laica”, que impide la religión de entrar en la institución escolar. La religión se puede enseñar solamente fuera de la escuela pública. La moral laica se substituye por la moral religiosa, y principalmente católica, con el fin de disminuir el poder de la Iglesia católica. La enseñanza de la moral laica se inscribe en la voluntad de apartar a la Iglesia toda autoridad temporal – sólo pueda intervenir como autoridad spiritual, en el campo privado. Pero esa moral laica no sólo se debe entender en un sentido negativo, como una manera de impedir la entrada de la religión en la escuela pública. También es un objetivo o un ideal político que representa la voluntad de establecer la República y los principios proclamados durante la Revolución francesa. La moral laica es un medio para establecer la libertad, gracias a la enseñanza de los principios morales de la República. La escuela es la institución que forma los futuros ciudadanos, y es a través de ella que se perenniza el régimen político y sus valores. La moral laica permite la constitución de un consenso republicano, en un contexto de miedo de una vuelta de la autoridad. Pues, la enseñanza de moral laica debe promover la razón contra los dogmas y desarrollar el espíritu crítico de los niños, dado que la critica es un valor imprescindible para el régimen democrático: según esa moral, los preceptos morales pueden estar renovados con arreglo a las circunstancias – no son fijos e inmutables. La institucionalización de la enseñanza de la moral laica se vuelve la garantía del respeto del principio de libertad de conciencia – pues que parece difícil, incluso imposible, institucionalizar un principio. La “moral laica” es una problemática fundamental de mi trabajo, porque se refiere a la dificultad del pasaje de una educación religiosa a una educación republicana, en un contexto de lucha entre el estado y la religión con el fin de imponer sus principios a lo largo del siglo XIX. La moral laica creada por los reformistas laicos presenta entonces una paradoja: ¿como enseñar una moral laica, entendida a la vez como el respeto de principios fundamentales para la República, y como una libertad de conciencia cuyo respeto impone respetar las conciencias diversas de cada uno y sus particularidades? Es quizás posible superar esa paradoja si consideramos que la moral laica no se refiera a la República, sino a una religión laica y universal. Laicidad y religión nueva Esa tercera reflexión se interesa al aspecto religioso de la “libertad de conciencia” y a las concepciones religiosas de las reformistas a través del estudio de las reformas: ¿Corresponde 69 la laicidad inscrita en la reforma escolar a una voluntad de borrar toda noción religiosa? Parece que no. En efecto, en 1882, con la ley de la laicidad de la escuela se establece una “instrucción moral y cívica”, que aparece en los programas como una clase de instrucción cívica por un lado, y como una enseñanza de moral laica por otro lado. Esa moral laica debe, según el programa, enseñar los obligaciones hacia si mismo, hacia los demás y por fin, hacia Dios. Entonces, Dios es una figura de la enseñanza laica. Me parece que no se debe sólo entender como una concesión hacia la Iglesia católica y los católicos que están contra la laicización de la escuela y más generalmente de la sociedad, sino que tradicionalmente, los defensores de la laicidad en Francia son anticlericales, pero no antireligiosos. La mayoría de las reformistas escolares a lo largo del siglo XIX se oponen al poder de la Iglesia dentro de la escuela pública, pero no se oponen a la presencia de Dios y al respeto de las diferentes creencias religiosas: creen en la existencia de Dios, y según ellos, el respeto de los escritos sagrados es imprescindible para constituir la moral civil de una sociedad pacifica y tolerante. En el ministerio de la instrucción pública de Jules Ferry, al principio de la Tercera Republica, en la época de las reformas de la escuela primaria – sobretodo la afirmación de los tres principios fundamentales: la obligación, la gratuidad y la laicidad –, se encuentran en los puestos claves protestantes liberales: Ferdinand Buisson, director de la enseñanza primaria entre 1876 y 1896, que participa activamente en la elaboración de las leyes y de los programas; Félix Pécaut y Jules Steeg. La acción de esos tres protestantes, que conocen perfectamente los Escritos sagrados y la teología católica y protestante, es determinante para el proceso de laicización de la escuela francesa. La aplicación de la laicidad esta vinculada con una concepción protestante de la religión. ¿Cuales son las fuentes de esa concepción de la laicidad? A partir de la Revolución francesa, se critica la hegemonía de la Iglesia católica, y se generaliza la critica protestante según la cual la Iglesia romana se vuelve una religión autoritaria que ya no respeta más a los principios del primer cristianismo: ella se preocuparía sobre todo de asuntos políticos y de su poder sobre los regímenes europeos, sin actuar para los pobres y las libertades, como lo pide la Biblia según la lectura liberal. Saint-Simon por ejemplo, propone un Nuevo Cristianismo en 1825: esa obra guía la escuela de Saint-Simon, a la cual pertenecían algunos reformistas escolares estudiados en ese trabajo. Según ese libro, la sociedad necesita reorganizarse mediante una nueva escala de valores, cuyo principal valor es hacer “el mayor bien para el 70 mayor numero posible”: ese valor es el del primer cristianismo, que olvidaron según SaintSimon la Iglesia católica como el protestantismo. Así, durante el siglo XIX, la reflexión religiosa está muy presente en los debates, y la laicidad parece una condición previa – el fin de la hegemonía de la Iglesia católica en la sociedad francesa y en el funcionamiento de las instituciones –, antes de la aplicación de una nueva religión que esta fundada en los principios del primer cristianismo. Edgar Quinet es el mentor de Ferdinand Buisson y es el filosofo republicano que escribe más sobre el vínculo entre la religión, la escuela y la Republica, analizando históricamente y filósofamente la laicidad y el proceso revolucionario en Francia desde la Revolución francesa. Según él, “la religión es la sustancia de los pueblos”, y la organización política pues no puede ignorar esa sustancia religiosa. Entonces, por una parte, cada revolución política debe estar acompañada por una revolución religiosa para que el cambio se haga en las almas y que no sea solamente una ilusión sin cambio de mentalidad; por otra parte, esa revolución religiosa remite al advenimiento de una nueva fe que se funda sobre los principios liberales de la Republica – o más bien, la Republica se funda sobre los principios de la nueva religión. El respeto del principio de libertad de conciencia se acompaña entonces según Quinet en la creación de una nueva religión, una religión laica que apoya el cambio político y que permite el advenimiento de los principios repúblicos o democráticos. Dios, así que sus acciones y parábolas relatadas por la Biblia, debería volverse el fondo legitimado de cada régimen político. Gracias a ese eje de reflexión, me intereso el vínculo entre la laicidad, la libertad de conciencia y la voluntad de regresar a ese primer cristianismo, o más bien de crear otra religión respetuosa de los valores republicanos. En primer lugar, trato de mostrar la importancia de esa religión nueva para unos reformistas, y como esa perspectiva llevo a una interpretación de la laicidad completamente diferente de la que resulta de la perspectiva de la laicidad como borrador de todas referencias religiosas. En segundo lugar, se plantea las cuestiones siguientes: ¿como concebir esa religión universal, a la vez laica y civil? Y ¿como pensar la libertad de conciencia dentro de una religión, mientras que la libertad de conciencia parece un principio exterior a las religiones? 71 Educar para una estética de la existencia Prof. Marina Camejo Historia y Filosofía de la Educación Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, UdelaR República Oriental del Uruguay [email protected] Resumen: La presente ponencia tiene como objetivo principal mostrar la relación desde la perspectiva de Foucault entre la epimeleia heautou (cuidado de sí) y la estética de la existencia. Entendemos que es de vital importancia mostrar la conexión entre estos conceptos en tanto ambos aluden a cómo el sujeto se constituye en cuanto tal. Foucault retorna a y retoma el estudio de la cultura grecorromana para dar cuenta de cómo la noción de estética de la existencia supone modos de sujeción, en otras palabras supone formas en las que el sujeto se encuentra vinculado a un conjunto de reglas y de valores (ética). A través de los conceptos 72 de epimeleia heautou y estética de la existencia mostraremos las formas en que se concebía la educación del sujeto en la antigüedad desde una lectura foucaultiana. Este modo de sujeción se caracteriza por el ideal de tener una vida bella, dejando la memoria de una existencia bella. Desde esta perspectiva, la vida en tanto bíos, es tomada como el material de una obra de arte. Si la vida ha de ser vivida y ha de ser conformada como una obra de arte entonces la clave para ello radica en el cuidado de sí. Este cuidado de sí supone la capacidad desarrollada por cada individuo de gobernarse a sí mismo por sí mismo en su articulación con las relaciones con los otros. El cuidado de sí supone una pedagogía, un conjunto de consejos de conducta, un conjunto de ejercicios espirituales, la prescripción de modelos de vida, etc. Aprender a cuidar de sí teniendo como horizonte la vida bella implica por parte del sujeto aceptar ciertas maneras de comportarse y determinados valores porque entiende, decide y quiere realizar en su vida la belleza que dichas formas de comportarse y dichos valores proponen. Pretendemos concluir que educar para una estética de la existencia, educar para una vida como obra de arte no puede estar desvinculada de una ética, no entendida como conjunto de preceptos o codificación de los actos sino como una relación del sujeto consigo mismo, relación que se da a través del cuidado de sí. Palabras clave: cuidado de sí, parrhesía, estética de la existencia, ética, pedagogía. Introducción: Cómo educar y para qué educar son cuestiones centrales para todo educador o todo profesional de la educación, de ahí que consideremos pertinente preguntarnos si es posible educar para una estética de la existencia. Para contestar a dicha pregunta partiremos de la lectura realizada por Michel Foucault respecto al papel que toma el cuidado de sí como instrumento para educar. Foucault en “La hermenéutica del sujeto” plantea que el concepto de epimeleia heautou o cura sui es el principio filosófico que predomina en el modo de pensamiento griego, helenístico y romano. Tal principio resulta para el autor central en la historia misma de la subjetividad, o dicho de otra forma en la historia de las prácticas de la subjetividad.41 41 Foucault Michel, “Hermenéutica del sujeto”, Altamira, Argentina, 1996,pág. 37 73 Entender como el sujeto se concebía, se transformaba y se constituía como tal es posible si la epimeleia heautou (cuidado de sí) se torna un concepto central, pero además la epimeleia como principio filosófico supone a nuestro entender implicaciones éticas en tanto conlleva formas de actuar. La epimeleia heautou o cuidado de sí en primer lugar es una actitud que involucra la relación con uno mismo, con los otros y con el mundo. En segundo lugar la epimeleia heautou comporta una forma de mirarse a sí mismo, a través de ella se abandona la mirada depositada en el mundo y la misma se concentra en el propio sujeto, de manera tal que esa mirada ejerce una vigilancia respecto a lo uno piensa y sobre lo que acontece en el mundo. En tercer lugar implica una cierta forma de actuar que supone ejercer sobre uno mismo ciertas prácticas que llevan a la transformación, a la modificación, a la purificación de uno mismo.42 En ese retornar a y retomar de la cultura grecorromana Foucault se concentra en la figura de Sócrates, ya que resulta ser quien encarna de mejor manera la inquietud de sí que lleva a un conocimiento de sí que redunda en un cuidado de sí. Muchas son las lecturas que se han realizado de la figura de Sócrates entre las que podemos mencionar la de Nietzsche, Kierkegaard, o Rancière. Frente a dichas lecturas interesa mostrar la que el último Foucault realiza de Sócrates, lectura que se apoya en las nociones de cuidado de sí e igualdad. Sócrates es rescatado por Foucault como el hombre de la espiritualidad que funda la filosofía, así Sócrates atestigua a través de su vida la conexión entre filosofía y espiritualidad, apoyándose sobre la noción de parrhesía. La noción de parrhesía (decir veraz) en relación al cuidado de sí es inaugurada por Foucault en “El gobierno de sí y de los otros” obra que recoge las clases dictadas en 1983, pero continuada en “El coraje de la verdad” que recoge el curso dictado entre febrero y marzo de 1984. De todas maneras es importante resaltar que en “La hermenéutica del sujeto” Foucault ya se encontraba interesado por las relaciones entre sujeto y verdad a partir de la noción de cuidado de sí mismo. Foucault lleva a cabo un rescate de Sócrates como verdadero parrhesiasta a través de la Apología, del Fedón y del Laques. En esta oportunidad, en pos de mostrar como el cuidado de sí conduce al desarrollo de una estética de la existencia nos centraremos en el diálogo Laques. De qué hablamos cuando hablamos de parrhesía 42 Idem. pág. 36. 74 La noción de parrhesía (el decir veraz, el decir franco) es para Foucault una noción ante todo y fundamentalmente política que se desplegaba y problematizaba como tal en democracia, pero que posee derivaciones en la esfera ética y en la constitución del sujeto moral. Al comprender que la parrhesía tiene una raíz política además de una derivación moral, entonces es posible plantear, tematizar las relaciones entre sujeto y verdad desde el punto de vista de la práctica de lo que el autor entiende como gobierno de sí y de los otros. La parrhesía es la actividad consistente en decirlo todo, de allí que encontremos dos valores asociados a la misma. El primero de ellos peyorativo, consistente en decirlo todo, en decir cualquier cosa, decir todo tal cual se presenta a mi mente y que sirva a mis propósitos. Desde esta perspectiva el parrhesiasta es percibido como un charlatán que no puede ajustarse a ningún principio de racionalidad ni de verdad. La segunda valoración es positiva y consiste en decir la verdad sin reservas, sin disimulación sin ningún ornamento teórico que enmascare el discurso. El decirlo todo es decir la verdad sin ocultar ninguno de sus aspectos. Para que la parrhesía pueda constituirse como tal es necesario que pueda decirse todo y que pueda decirse todo con verdad, pero esto es insuficiente si no se dan ciertas condiciones complementarias. No se trata solo de que quien ejerce la parrhesía diga la verdad sino que la diga en cuanto es lo que piensa. Junto a esto quien dice la verdad debe correr un riesgo, riesgo que pone en conflicto la relación misma que él mantiene con su interlocutor. Llevar a cabo la acción parrhesiasta esconde el riesgo de la violencia pues el decir la verdad puede suponer irritar, encolerizar, ofender o suscitar en el otro conductas violentas. A consecuencia de esto ser parrhesiasta implica cierta forma de coraje, ya que el comprometerse en decir la verdad y la verdad tal cual se piensa supone el riesgo de poner fin a la relación con el otro. Así podemos ser espectadores del coraje implicado en la verdad, pero también de la verdad del coraje. Ser parrhesiasta supone asumir un riesgo, ser capaz de decir la verdad implica que el sujeto debe poseer coraje para asumir las consecuencias de su veridicción pero también supone dar cuenta de la verdad implicada en el coraje que supone un juego de por lo menos dos en tanto el decir la verdad no se puede desplegar si no hay un otro dispuesto a escucharla. Que el otro acepte escuchar mi verdad con el peligro que esto implica para la propia relación, como para la propia vida del parrhesiasta es asumir el juego de la parrhesía. Así formar parte 75 del juego parrhesiasta nos enfrenta a un doble coraje, el coraje de quien dice la verdad, y el coraje de quien escucha, que lleva a que se comporte de forma magnánima. La parrhesía no es un arte, no es un oficio aunque posee elementos de carácter técnico, sino que es una actitud emparentada con la virtud, es una manera de hacer. Por lo que la parrhesía ha de entenderse como una manera del decir veraz. Podemos reconocer cuatro formas o modalidades del decir veraz: el decir veraz de la profecía, el decir veraz del sabio, el decir verdad del técnico (docente), y el decir verdad del parrhesiasta. Cada una de estas modalidades se desarrolla de forma diferente, de tal manera que podemos oponer el decir veraz del parrhesiasta, al decir veraz del profeta, del sabio y del técnico. Por ejemplo, el profeta tiene un decir veraz que se constituye como tal en su papel de intermediario, en este papel el profeta ilumina, devela lo que está oculto a los hombres pero lo realiza de una forma oscura que exige por parte de los hombres interpretación. Esto no lo encontramos en la actitud del parrhesiasta que plantea un decir verdad que es propio, que refiere a sus propias convicciones. También se opone el decir veraz del parrhesiasta al del sabio. El decir veraz del sabio es propio, en tanto manifiesta su pensamiento, pero conserva su sabiduría en reserva. Así el sabio no está obligado a compartir su pensamiento, por lo que para Foucault el sabio es estructuralmente silencioso. El parrhesiasta no puede mantener su pensamiento en reserva por el contrario podemos decir que está obligado a expresarlo, su decir veraz es cuestión de deber, no es un deber respecto al ser de las cosas y de la naturaleza como en el sabio sino que es un deber que apunta a individuos y situaciones a develar lo que son. El parrhesiasta no revela a su interlocutor lo que él es, sino que le ayuda en tal develación. Por último podemos dar cuenta del decir veraz del técnico que se diferencia a la del parrhesiasta. El técnico posee una techné, la ha aprendido y como tal tiene que transmitirla. El técnico pertenece a una tradición por lo que su decir veraz y su saber han de ser transmitidos. Pero este decir veraz no supone riesgo alguno como en el caso del parrhesiasta, quien siempre que expresa la verdad está poniendo en juego su relación con el otro e incluso su vida. El parrhesiasta pone en juego el discurso veraz de lo que los griegos llaman ethos. Esto último no ocurre en el técnico, ya que su decir veraz ha de ser transmitido si lo que se pretende es que el conocimiento sobreviva. Foucault resume lo planteado hasta aquí de la siguiente forma: “…el ethos tiene su veridicción en la palabra del parrhesiasta y el juego de la parrhesía. Profecía, sabiduría, 76 enseñanza, parrhesía: tenemos con ellas, creo, cuatro modos de veridicción que, (en primer lugar) implican personajes diferentes; en segundo lugar, exigen modos de habla diferentes, y en tercer lugar, se refieren a ámbitos diferentes (destino, ser, techné, ethos)”.43 Sócrates encarna o combina para Foucault estas formas de decir veraz, donde la parrhesía, juega un papel preponderante en su relación con los otros. Para el autor la parrhesía más que una técnica encarna modos de vida y quien mejor la ejemplifica es Sócrates. La parrhesía es para Foucault “el nexo de unión entre el cuidado de sí y el cuidado de los otros, entre el gobierno de sí y el gobierno de los otros, la frontera en la que viene a coincidir ética y política.”44 Parrhesía, cuidado de sí y estética de la existencia en el Laques El Laques es uno de los diálogos platónicos elegidos por Foucault para mostrar a través de él la figura parrhesiasta de Sócrates, y ello por varias razones: aunque el Laques es un diálogo corto sobre el valor la palabra parrhesía aparece utilizada tres veces (suficiente como para rastrear en que sentido Sócrates hace uso de la parrhesía), además al principio del mismo como Foucault señala los personajes Lisímaco y Melesias aparecen caracterizados por su parrhesía o franqueza en tanto hablaran de todo sin tapujos, concentrándose la conversación en el tipo de educación que deben darle a sus hijos. Para poder decidir cuándo se está frente a buen maestro, o dicho de otra forma como distinguir un buen maestro de aquel que no lo es, acuden a Nicias y Laques para que les ayuden con la decisión. Acuden a Nicias y Laques porque estos no son ciudadanos comunes sino que como hombres de larga experiencia militar y política podrán desde esta experiencia contribuir a determinar los rasgos de una buena educación. Sin embargo no logran hacerlo. Sócrates que ha presenciado toda la conversación entre Lisímaco, Melesias, Nicias y Laques es requerido por estos últimos en cuanto a su opinión. Sócrates entra en escena recordando que la educación se ocupa del cuidado del alma, así él expresa “Se trata, pues, de saber, cuál de nosotros es lo bastante experto en el tratamiento que se debe al alma para ser capaz de cuidarla bien, y si ha tenido buenos 43 Foucault, Michel, “El coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II.”, FCE, Argentina, 2010, pág. 41. 44 Gabilondo, Ángel, Fuentes Megías, Fernando en “Michel Foucault. Discurso y Verdad en la antigua Grecia”, Paidós, Bs. As. 2004, pág. 23. 77 maestros en este arte.”45 Nicias por su parte permite que Sócrates examine su alma porque lo reconoce como un verdadero parrhesiasta aceptando el juego parrhesiástico, en sus palabras: “Porque pareces ignorar que si uno pertenece al grupo íntimo y, por así decirlo, a la familia de los habituales interlocutores de Sócrates, se ve uno forzado, sea cual sea el tema que uno quiera tratar, a dejarse llevar por el hilo de la conversación a una serie de explicaciones sobre sí mismo, sobre su propio género de vida y sobre toda su existencia anterior. Una vez uno ha llegado a esto, Sócrates no os deja aún sin haber pasado antes todo esto por la criba de las bellas maneras. En cuanto a mí, que conozco las costumbres de Sócrates, sé que uno no puede evitar ser tratado así, y veo con claridad que tampoco yo escaparé a ello. Pues, siento agrado y placer, Lisímaco, en su compañía, y no siento mal que se me haga recordar el bien o el mal que he hecho o que hago aún; estimo que, experimentando esta prueba, se hace uno más prudente para el futuro, si uno está en la disposición, según el precepto de Solón, de aprender durante toda la vida y de no creer que la vejez por sí sola nos aporta sabiduría. Sufrir el examen de Sócrates no significa para mí ni una novedad ni una cosa desagradable, desde hace tiempo sé que, con Sócrates no iban a ser solamente los jóvenes los que debían ser examinados, sino que también íbamos a pasar por ello. Lo repito, pues: en lo que a mí concierne, no me opongo a que Sócrates converse con nosotros de la manera que le agrade.”46 Teniendo en cuenta el fragmento anterior Nicias reconoce a Sócrates como parrhesiastes y en consecuencia puede aceptar su juego parresiástico, este juego como ya hemos indicado anteriormente supone por parte de los interlocutores estar dispuesto a decir y a escuchar toda verdad, aún cuando esta duela o provoque conflicto. La parrhesía esconde violencia. Nicias describe el juego parresiástico de Sócrates, el mismo supone intimidad en el sentido del cara a cara, además da cuenta de la pasividad del oyente, que consiste en ser conducido por “el logos socrático a ‘dar explicación’, -didómai logón- de sí mismo, ‘de su modo actual de vida y el que ha llevado en el pasado.”47 ¿Qué es dar explicación de su modo actual de vida y el que ha llevado en el pasado? No se trata de realizar una introspección donde dé cuenta de faltas, pecados, errores o aciertos, no debemos entender ese examen con tono confesional. Ese autoexamen al que nos conmina Sócrates no es otro que una forma de cuidar de sí mismo, dar cuenta del bíos no es entender la vida como una sucesión cronológica de eventos, dar cuenta del bíos es mostrar la 45 Platón, “Laques o del Valor”, en “Obras Completas”, Aguilar, Madrid, 1972, 185 d. 46 Idem, 187 e. 47 Op. Cit., pág. 132. 78 relación entre el discurso racional, el logos que se es capaz de usar y la vida que se vive. Lo que se busca es que haya armonía entre ambos niveles del ser, entre lo que se piensa- dice y lo que se hace. Más tarde en el mismo diálogo Sócrates en conversación con Laques, le solicita que dé cuenta de su valor. Aquí Laques asiente a tal solicitud, acepta entrar en el juego parresiástico de Sócrates porque entiende que más allá del valor que Sócrates haya podido mostrar en la batalla de Delio, lo que él reconoce en Sócrates es una armonía entre lo que dice y su vida. Esta armonía es lo que lleva a Laques a aceptar el discurso de Sócrates. Esa armonía ontológica que encontramos en Sócrates, entre su lógos y su bíos, es una armonía dórica, que se puso en manifiesto en el valor demostrado en Delio. De igual forma cuando Sócrates hace tal solicitud, no está buscando que Laques realice una narración de sus hazañas en la guerra del Peloponeso, sino que lo que pretende es que Laques realice un relato racional de su valor, que dé cuenta del lógos de su valor. En definitiva “La trayectoria es: de la armonía entre vida y discurso de Sócrates a la práctica de un discurso veraz, un discurso libre, un discurso franco. El hablar franco se articula con el estilo de vida. No es el coraje en la batalla el que autentifica la posibilidad de hablar del coraje.”48 Sócrates a diferencia de los sofistas puede utilizar la parrhesía y hablar libremente porque lo que dice concuerda exactamente con lo que piensa, y lo que piensa concuerda exactamente con lo que hace. De esta forma, Sócrates -que es verdaderamente libre y valiente- puede, por tanto, funcionar y ser reconocida como figura parrhesiástica. En el diálogo el papel que está siendo asumido por Sócrates es el de básanos, o piedra de toque, en tanto básanos Sócrates a través de su interpelación busca determinar en el otro la naturaleza de la relación entre el lógos y el bíos de aquellos que entran en contacto con él. Como básanos a través del ejercicio parrhesiástico la tarea de Sócrates consiste en revelar la verdad de la vida de alguien, en otras palabras su tarea permite y conduce al otro al encuentro de la relación que tiene con la verdad, lo que está en juego es cómo se constituye el sujeto en alguien que tiene que conocer la verdad, y cómo esta relación con la verdad es puesta de manifiesto ontológica y éticamente en su propia vida. 48 Op. Cit. pág. 163. 79 El examen de Sócrates nos conduce a desear cuidar de nosotros mismos, a cuidar de nuestras vidas, de tal manera que uno cuide de su vida para hacer de la misma la mejor vida que podamos tener, querer tener la mejor vida que se pueda tener se traduce en un entusiasmo y deseo por aprender y cuidar de uno mismo sin importar la edad que se tenga. La parrhesía socrática es una parrhesía filosófica o ética en tanto supone el hablar franco de manera personal, supone el cara a cara, es una parrhesía que tiene como horizonte el bíos. El bíos emerge como criterio ético para su misión como básanos. Lo que intentamos mostrar es que más allá de Sócrates asumir la actividad parrhesiástica permite vislumbrar la naturaleza de las relaciones entre la verdad y el estilo de vida de las personas, y entre la verdad y una estética de la existencia. A través del Laques, entonces, podremos ser testigos de cómo se va modelando la subjetividad, subjetividad que encuentra anclaje en el propio sujeto, más específicamente en la vida, en el bíos, es decir encuentra anclaje en la existencia y en la manera en como la llevamos. En palabras de Foucault “Esa instauración de sí mismo, esa autoinstauración ya no como psyché sino como bíos, ya no como alma sino como vida y modo de vida, es correlativa de un modo de conocimiento de sí que, desde luego, de cierta manera y en lo fundamental, supone sin duda el principio del “conócete a ti mismo”…”49 Este modo de sujeción o de constitución de la subjetividad se va perfilando a través del conócete a ti mismo que es la base del cuidado de sí, y se caracteriza por el ideal de tener una vida bella, dejando la memoria de una existencia bella. Mediante la parrhesía el sujeto debe convencerse de cuidar de sí mismo y de cuidar a los otros; pero para ello debe cambiar su vida. En esto último es que radica el reto. ¿Cómo educar para ejercer la parrhesía de forma tal que nos conduzca al deseo de cambiar de vida? ¿Cómo hemos, si es posible educar para una estética de la existencia? Desde esta perspectiva, la vida en tanto bíos, es tomada como el material de una obra de arte. Si la vida ha de ser vivida y ha de ser conformada como una obra de arte entonces la clave para ello radica en el cuidado de sí. Foucault pretende a través de la figura de Sócrates mostrarnos y demostrarse a sí mismo que “del surgimiento y la fundación de la parrhesía 49 Foucault, Michel, “El Coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II”, FCE. Argentina, 2010, pág. 172. 80 socrática, la existencia (el bíos) se constituyó en el pensamiento griego como un objeto estético, objeto de elaboración y percepción estética: el bíos como una obra bella.”50 Este cuidado de sí supone la capacidad desarrollada por cada individuo de gobernarse a sí mismo por sí mismo en su articulación en las relaciones con los otros. El cuidado de sí supone una pedagogía, un conjunto de consejos de conducta, un conjunto de ejercicios espirituales, la prescripción de modelos de vida, etc. Aprender a cuidar de sí teniendo como horizonte la vida bella implica por parte del sujeto aceptar ciertas maneras de comportarse y determinados valores porque entiende, decide y quiere realizar en su vida la belleza que dichas formas de comportarse y dichos valores proponen. Así esta estética de la existencia tiene a la propia vida como material para una obra de arte. Para modelar este material, es necesario el uso de técnicas, de artes o habilidades que consisten en realizar un trabajo sobre mí mismo. De esta manera cada hombre es su propio escultor, que se cincela a sí mismo a través de prácticas que se forjan en esa actividad permanente del cuidado de sí. Cincelarse a sí mismo es el resultado de un adecuado dominio de las propias pasiones, entendido como una libertad activa, no disociada de una relación estructural, instrumental y ontológica con la verdad. Lo anterior nos lleva a preguntarnos cómo es posible educar para aprender a cuidar de sí, un cuidado de sí que supone entrar en contacto con un decir veraz acerca de mi mismo en relación conmigo, con los otros y con el mundo. Decir veraz que ha de manifestarse en la vida como obra de arte. Pretendemos concluir que educar para una estética de la existencia, educar para una vida como obra de arte no puede estar desvinculada de una ética, no entendida como conjunto de preceptos o codificación de los actos sino como una relación del sujeto consigo mismo, relación que se da a través del cuidado de sí. 50 Idem, pág. 174. 81 Bibliografía: Foucault, Michel, “Hermenéutica del sujeto”, Argentina, Altamira, 1996. Foucault, Michel, “Discurso y verdad en la antigua Grecia”, Barcelona, Paidós, 2004 Foucault, Michel, “El coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II”, Argentina, FCE, 2010. Kaminsky, Gregorio, “El yo minimalista. Conversaciones con Michel Foucault”, La Marca, Bs. As, 2003. Kohan, Walter, “Sócrates: el enigma de enseñar”, Bs. As, Biblos, 2009. Platón, “Laques”, en Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1972. 82 A importância do conhecimento histórico para compreensão do pensar filosófico Joana Rios Ribeiro Maia Carbonesi Universidade de Brasília/UnB Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história Brasil [email protected] Juliana Rios Ribeiro Maia Carbonesi Centro Universitário/UDF Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história Brasil [email protected] Eneida Orbage de Britto Taquary Centro Universitário/UDF Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história Brasil [email protected] Resumo O que assistimos cotidianamente na realidade da sala de aula do ensino superior é que existe muito mais dificuldade compreensiva por parte do educando quanto ao conteúdo programático contemplado na diretriz curricular das disciplinas: Introdução à Filosofia, Filosofia Jurídica, Filosofia da Educação e outras aplicadas às diferentes áreas de formação superior, quando os discentes não possuem domínio do conhecimento histórico, ou seja, quando o desenvolvimento do conhecimento humano não está historicamente situado. Russell (2003), ao discorrer sobre o desenvolvimento do pensamento ocidental, busca mostrar o paralelo que se constrói entre as indagações filosóficas nas diferentes áreas do conhecimento e a história humana a partir dos seus mais variados questionamentos. Portanto, o presente trabalho tem como objetivo mostrar a importância do encontro que deve acontecer entre o saber histórico e o saber filosófico para que ocorra o entendimento das questões que foram problematizadas por diferentes filósofos nos mais variados contextos do universo social. Para isso, trabalhamos com uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório e usamos fontes 83 secundárias a partir de pesquisa bibliográfica para coleta de dados. O processo reflexivo desenvolveu-se no sentido de mostrar a relevância da construção dialógica existente entre o conhecimento histórico e as estruturas de pensamento filosófico para o entendimento das diferentes realidades humanas. Palavras-chave: Pensamento Filosófico. História. Ensino Superior. INTRODUÇÃO O mundo humano de pensamentos e realizações nos remete ao que somos, mas, sobretudo, ao que pretendemos ser como seres que significam e resignificam de forma reflexiva a realidade política, religiosa, jurídica e econômica construída a partir das mais variadas relações sociais, que se estruturaram sobre o alargamento do horizonte humano, no decorrer do seu caminhar como sujeito histórico. Portanto, somos, construímos, indagamos, buscamos entendimentos e respostas sobre o desconhecido a partir do que vivemos e sentimos no âmbito do universo das relações sociais, normalmente traduzidos nas mudanças estruturais causadas por necessidades humanas em tempos históricos distintos. A busca pela decifração do desenvolvimento e consolidação dos campos do conhecimento humano a partir das diferentes perspectivas que se construíram e se constroem, nos mais variados entendimentos da realidade humana por meio do pensamento filosófico, nos põe de frente com as modificações e alterações de velhas e novas necessidades humanas provocadas pelo processo de interação eminentemente humano desenvolvido entre homem/homem, homem/natureza e homem/grupo, resultado da atuação do homem social na realidade histórico-cultural. Portanto, ao se buscar refletir sobre a necessidade do entendimento que o aluno de graduação deve construir sobre as problemáticas humanas e os caminhos propostos pelas diferentes abordagens filosóficas, como possibilidade de resolução para essas inquietações, apontadas como uma manifestação interpretativa da realidade, pensa-se que o fluxo de entendimento precisa estar paralelamente relacionado à dimensão temporal do pensar filosófico em seu contexto histórico. 84 Assim, este trabalho tem como proposta reflexiva o entendimento de que é necessário que o aluno esteja ambientado com o conhecimento histórico do desenvolvimento das ações humanas e o impacto das mesmas, como fruto de interação do indivíduo com o meio social, para que haja melhor compreensão dos grupos de significados das diferentes estruturas de pensamento filosófico, que são interpretados e reinterpretados no decorrer dos séculos. A relação entre ambas as áreas de conhecimento, possibilita pensar o homem, suas ações, seus significados e os fluxos mentais que foram construídos por diferentes filósofos de forma historicamente direcionados e relacionados. 1.1 - O pensar filosófico entendido a partir do contexto histórico revisitado Captar o processo histórico por meio dos acontecimentos sociais, seus conjuntos de transformações qualitativas e quantitativas, suas rupturas e revoluções, suas influências e seus significados nas novas maneiras que o homem buscou se relacionar com a natureza e com o seu igual, pode ser uma ferramenta que possibilita o entendimento do como e do porque diferentes pensadores convidaram os homens a interpretar o mundo e a existência humana por meio das mais variadas perspectivas reflexivas do pensar filosófico. De um modo geral podemos dizer que quando o texto se estrutura e se explica mentalmente, a partir de um contexto, compreendem-se melhor os preceitos filosóficos que nasceram das indagações de alguns filósofos. Segundo Van Loon: Vivemos sob a sombra de um gigantesco ponto de interrogação. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Lentamente, mas sem perder a coragem, temos feito recuar cada vez mais esse ponto de interrogação rumo aquela linha distante que fica além do horizonte, onde esperamos encontrar a resposta. (VAN LOON, 2004, p. 3) Nossos antepassados gregos se preocuparam bastante com essas questões. Desde então, cada historiador na sua época teve seus olhos e mente voltados para a busca da compreensão de um cotidiano cultural que possibilitasse a intelegibilidade do itinerário 85 percorrido pelo homem, com suas peculiaridades de questionamentos e respostas. Pode-se reconhecer aqui, que ao lado dos questionamentos históricos, grandes interrogações filosóficas foram estruturadas e a partir delas foi erguido o edifício intelectual do homem ocidental. Tal concepção de relação possibilita pensar que a cultura filosófica que buscou por meio da inteligência humana pensar o mundo e seus contornos com certo afastamento das amarras do circuito fechado da crença aos mitos gregos, se localiza nos processos históricos vividos na Grécia Antiga, que por sua vez serviram como alicerce do pensamento filosófico de Sócrates, Platão e Aristóteles. A oposição de Sócrates à proposta Sofista de venda do saber e a perspectiva diferenciada de ambos para com o genuíno processo do aprendizado, foi reflexo da postura política exigida do homem social da Grécia Clássica, frente à necessidade do exercício prático da eloquência e da sagacidade das exposições orais que deveriam se estruturar no decorrer das diferentes participações dos cidadãos nas assembléias democráticas que ocorriam na pólis grega. As reflexões filosóficas de Platão nas obras: A República (2004) e o Diálogo de Fédon (2004), são provavelmente reflexos de uma estrutura social e política vivida em um momento histórico específico. Quando o filósofo pensa a estrutura de um governo ideal, onde cada grupo do tecido social teria uma forma específica de ser educado e de viver; quando propõe o entendimento da dualidade entre mundo das ideias e mundo dos sentidos e, a partir disso, a imortalidade da alma e a soberania da razão, pode-se dizer que o mesmo estava movido pelos resultados de um contexto histórico marcado pela Guerra do Peloponeso, o Governo dos Trinta Tiranos, os comportamentos políticos democratas que levam Sócrates a ser condenado à morte e as matizes tirânicas do governo de Dionísio na cidade grega de Siracusa. A influência dos aspectos políticos e sociais sobre as obras de Platão, pode ser claramente percebida pela crítica por ele estruturada para com as vicissitudes da política, o qual posicionamento crítico parece ser reflexo de uma realidade histórica específica. Bem entendido se mostra no diálogo que ele desenvolve de forma literária entre Sócrates e Trasímaco, quando na obra A República (2004) busca discutir o conceito de justiça, os diferentes tipos de governo, a formação do rei filósofo e as injustiças democráticas vividas em 86 Atenas. Platão deixa explícito que sua estrutura de pensamento filosófico, a partir do mito da caverna e seu projeto político/filosófico para formação do Estado, são reflexos dos contrastes que se desenvolveram em sua existência histórica e social no mundo da Grécia Clássica. O século IV a.C, desenhado pelo domínio macedônio, foi também palco da filosofia paripatética, desenvolvida por Aristóteles no Liceu. A coexistência entre a estrutura de pensamento filosófico de Aristóteles e a realidade histórica vivenciada pelo pensador, pode ser considerada um aspecto relevante para se entender como se construiu a partir das conquistas de Alexandre da Macedônia uma nova abordagem filosófica da realidade circundante e consequentemente uma nova interpretação do ser no mundo social antigo. É interessante ressaltar as considerações feitas por Russel (2003) quando afirma que: [...] parece seguro afirmar que não houve muita coisa que ambos pudessem ver sobre o mesmo ângulo. As opiniões políticas de Aristóteles se baseavam na cidade-estado dos gregos, então em declínio. Impérios centralizados como o do Grande Rei, pareceriam a Aristóteles, e na verdade a todos os gregos, uma invenção bárbara. (RUSSEL, 2003, p. 122-123) Essas afirmações mostram que a concepção aristotélica de sociedade e política, e consequentemente de existência do ser social, eram divergentes do momento histórico de governo vivido pelo filósofo. Em sua obra: A Política (2004), Aristóteles pensou criticamente o fim da autonomia das cidades-estados, a globalização do mundo conhecido e a imposição de um mesmo tipo de governo para sociedades humanas de naturezas culturais distintas, estas características expressavam as bem-sucedidas conquistas de Alexandre e a partir delas a sua perspectiva de mundo social. Assim como as conquista do Rei da Macedônia serviram como cenário no momento em que Aristóteles buscava a compreensão do real funcionamento do mundo circundante, o fim deste reinado como acontecimento histórico direcionou o caminho final do último filósofo da antiguidade. O mundo, o universo e as relações humanas foram interpretados por Aristóteles a partir da multiplicidade dos sentidos, da classificação hierarquizada dos seres, do método investigativo, da noção de ato e potência, de substância e de acidente. As interpretações aristotélicas construídas neste período histórico perdurou como base do conhecimento humano por muitos séculos. 87 A permanente sensação de insegurança oriunda das mudanças estruturais vividas no contexto histórico de expansão e consolidação do Império Romano foi fator determinante no desenvolvimento da filosofia estóica defendida pelo senador romano Sêneca. Resignado, buscou conviver da melhor forma com os eventos naturais que deveriam ser inevitavelmente vividos por ele frente à posição social que ocupava no governo dos Imperadores romanos Calígula, Cláudio e Nero. As reflexões filosóficas construídas pelo pensador foram verdadeiras oficinas na busca pela aceitação de situações e fatos que interpretados a partir da perspectiva do estoicismo, não poderiam ser mudadas e nem controladas. A organização social e política do período histórico vivido por Sêneca forneceram subsídios suficientes para que ele desenvolvesse sua estrutura de pensamento embasada nos princípios norteadores da filosofia estóica. Sêneca por meio do gênero epistolar buscou refletir em sua obra Aprendendo a viver (2009), sobre o comportamento humano e suas contradições frente à morte, ao sofrimento, ao poder e à miséria. Na obra: Sobre a brevidade da vida (2009), nos mostra sua preocupação com o tempo de vida cotidiana que as pessoas desperdiçam com coisas fúteis e irrelevantes para o crescimento da consciência humana e com o descaso que estas têm para com o conhecimento filosófico, pensado por ele, como instrumento que possibilitasse de forma eficaz que o homem controlasse suas paixões, seus impulsos, e, sobretudo, lhe conduzisse a um caminho de vida feliz e alma tranquila. Grandes acontecimentos históricos marcaram o período representado pelo pensamento filosófico medieval. Pode-se dizer que a partir do século III, com a intensificação das invasões bárbaras e, consequentemente o progressivo declínio do Império Romano, o desenvolvimento de uma nova estrutura econômica, política e religiosa interferiu de forma decisiva no desenvolvimento do conjunto de ideias que fundamentaram a estrutura de pensamento filosófico defendido pelos representantes da filosofia patrística. O processo de consolidação do cristianismo como religião oficial do mundo medieval trouxe consigo a necessidade de bases mais sólidas para a defesa dos preceitos e dogmas defendidos pelo pensamento cristão. Nesse contexto do universo histórico social, desenvolveu-se os princípios norteadores das argumentações filosóficas defendidas por Aureliano Agostinho, mais tarde conhecido como Santo Agostinho, o bispo de Hipona. Este representante da filosofia patrística buscou responder suas inquietações filosóficas pautado nos preceitos da fé cristã. 88 Defensor dos dogmas do cristianismo, Santo Agostinho a partir de obras como: Confissões (1984) e A cidade de Deus (1990), busca mostrar a superioridade da alma, sobre o corpo, entendendo que só o homem pecador, a partir do uso do livre arbítrio faz a inversão desta supremacia. Segundo ele, o pecador é aquele que permite que o corpo assuma o comando da alma, que o transitório prevaleça sobre o eterno e que a essência seja substituída pela aparência. Para Santo Agostinho, a linguagem personificada por meio da educação religiosa era o instrumento ideal para que o indivíduo se socialize com o conhecimento da verdade pura, pois, era por meio da oração e da contemplação que o homem podia se libertar da visão enganosa de mundo fornecida pelos sentidos e pela cultura. A filosofia agostiniana foi um grande marco do pensamento filosófico da Idade Média, ao afirmar a vinculação pessoal do indivíduo com a figura de Deus para o alcance da salvação como graça divina. Este período histórico foi pensado e interpretado filosoficamente por aqueles que podem ser definidos como: filósofos de Deus. O mundo ocidental do século XV conviveu simultaneamente com a permanência da tradição, que cimentou a história humana durante vários séculos sobre o domínio da espada do cavaleiro e a obediência à Igreja, e às mudanças estruturais que possibilitaram o processo corrosivo do sistema social até então estabelecido. Historicamente, pode-se dizer que o período da filosofia medieval se finaliza a partir do século XV quando se inicia as produções filosóficas que caracterizam o período da Idade Moderna. A transição de um período para o outro mostra claramente a mudança de mentalidade que possibilitava a formação de um novo conjunto de valores e consequentemente uma nova concepção de ser, de fazer, de pensar e de viver. A desconstrução de um mundo ordenado e previsível, e, o desenvolvimento de uma nova percepção do homem e seu lugar no mundo social não foi um processo tranquilo. Diversos acontecimentos históricos como: a formação dos Estados absolutistas, o mercantilismo, a invenção da imprensa, a reforma protestante e o renascimento propiciaram a consolidação de uma mentalidade moderna. A filosofia, a partir desta perspectiva de existência humana e de história social, desenvolve novas bases para o pensar filosófico. A partir destas transformações, temos compondo o quadro histórico e filosófico do período renascentista a abordagem teórica de Thomas More. O autor, como Pensador 89 humanista e conhecedor da realidade política e social da Inglaterra governada por Henrique VIII, em sua obra A Utopia (2010), reflete filosoficamente sobre os rumos do País inglês frente a nova realidade que se configurava a partir do rompimento com a Espanha e o papado, a consolidação da Igreja protestante e a coroação de Ana Bolena como rainha da Inglaterra. Na ilha Utopia, o autor personifica a existência de uma sociedade perfeita, pontuando aspectos como: a geografia, a política, a religião, a jurisdição, a guerra e o convívio em grupo, para se remeter à proposta de bem-estar e harmonia coletiva. Ao narrar de forma idealizada um novo modelo de sociedade, negando a real realidade política vivida na Inglaterra de Henrique VIII, expõe suas idéias políticas filosóficas, que expressas em suas ações, valores e princípios, o conduziram ao caminho da condenação à morte. Participando de uma realidade política diferente da de Thomas More, entretanto, compartilhando com ele um contexto histórico em curso, Nicolau Maquiavel diante da circunstância social desfavorável, desequilibrada, fragmentada, conflituosa e extremamente violenta da Itália de sua época, tem como preocupação central de suas reflexões o estabelecimento de um governo unificado. A filosofia política maquiavélica esboçada na obra O Príncipe (2010), deslumbra mostrar os limites definidores existentes entre o governo ideal e o governo real, e quais seriam estrategicamente os caminhos que deveriam ser percorridos pelo governante para que a Itália unificada mudasse o curso da sua história. Como pensa o autor: Não se deve, portanto, deixar passar essa ocasião para que a Itália, depois de tanto tempo, veja surgir seu redentor. Não posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas as províncias que sofreram devido a esses aluviões externos, com que sede de vingança, com que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas! (MAQUIAVEL, 2010, p. 131) A realidade histórica, coração do movimento renascentista, que subsidiou as reflexões filosóficas da obra O Príncipe, foi desenhada pelo tortuoso e sangrento universo político da Itália do século XV e XVI, que em particular teve como arquitetos de suas estruturas figuras históricas como: César Bórgia, os exércitos mercenários, a família Médici, Michelangelo, 90 Leonardo Da Vinci e o próprio Maquiavel. Como pensador político, Maquiavel avidamente aparece como testemunha histórica da realidade italiana renascentista. A obstinação deste pensador político em retratar a verdadeira realidade política da Itália, seus múltiplos aspectos negativos, o cinismo, a corrupção, as traições e as imbecilidades da Igreja, lhe levou a escrever a obra: A Mandrágora (2008), que de forma memorável e coerente com seus tratados políticos, retrata de forma cômica sua luta contra a anarquia vivida nos territórios fragmentados da Itália de sua época histórica. A construção histórica segue seu curso, esboçada pelas ações humanas, que resultaram de diferentes transformações, entre elas as causadas pelas revoluções burguesas e o movimento iluminista do século XVIII. Os acontecimentos históricos deste século impulsionaram os fundamentos ideológicos de igualdade e liberdade, que mais tarde representaram os princípios norteadores do caminhar humano rumo à proposta de se estabelecer um pacto que viesse proporcionar uma ordem justa de convívio social entre os homens. A partir dos acontecimentos históricos que caracterizaram esse tempo da existência social, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, em sua obra: Do contrato social (2000), expressa os anseios de um pensador que se propôs a refletir sobre as problemáticas vividas no âmbito das relações sociais em uma determinada época histórica. As premissas dessa concepção teórica política representaram uma forte inspiração para o movimento revolucionário que culminou na Revolução Francesa. O pensamento rousseauniano, a partir de uma perspectiva política, propõe que os pactuantes do contrato constituam um universo social sustentado no interesse do bem comum, que neguem condutas arbitrárias, que busquem a superação da desigualdade entre os homens e fortaleçam o predomínio da vontade geral. Como afirma o autor: [...] Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha como já disse, o nome de soberania. (ROUSSEAU, 2000, p. 95) As reflexões filosóficas sobre o poder político e suas diferentes roupagens ao longo das construções históricas, encontram-se também ancoradas no conjunto de ideias que ecoam 91 das argumentações teóricas de Karl Marx no século XIX. A elaboração de suas obras reflete uma época histórica marcada por uma crise social resultante dos acontecimentos desencadeados pela Revolução Francesa e Revolução Industrial. A nova estrutura de dominação econômica e política capitalista, que veio acarretar em todos os âmbitos da existência social uma situação de miséria e opressão para a classe trabalhadora, forneceu a visão crítica que subsidiou as argumentações teóricas de Marx na obra: O Capital (2012). O balanço crítico e efetivamente prático realizado por Marx (2012) por meio do materialismo dialético histórico sobre a exploração do trabalho humano pela classe economicamente privilegiada, e consequentemente, dominante, desde a antiguidade até o desenvolvimento do modelo econômico capitalista, forneceu a ele elementos de análise que lhe levaram a afirmar que cada época histórica era definida pela dinâmica estabelecida pelos homens nas suas relações de produção, as quais se corporizam na relação dominador/dominado, explorador/explorado. Para este pensador o funcionamento das diferentes esferas da vida social estava diretamente relacionado ao modelo econômico e suas leis operacionais. Em suas concepções teóricas Marx, por meio do materialismo histórico, entende que as forças produtivas, os modos de produção e as relações de produção são os motores da história. Os fluxos das experiências humanas elucidam novas realidades históricas, que representam os novos caminhos objetivados pelo homem, que agindo no mundo, busca responder as suas necessidades como ser social. Inseridas nesses novos conjuntos de valores e normas morais, oriundos das diferentes configurações históricas, estão as concepções de mundo que corporizaram o século XX. Este século, se por um lado, representou o apogeu dos avanços técnico-científicos, por outro lado, é ilustrado pelo terror e brutalidade causados por aquilo que historicamente é nomeado de dominação nazista. Na busca de respostas para as questões humanas, muitos filósofos do século XX buscaram refletir em torno dos eventos de violência registrados como resultado dos massacres sangrentos provocados pelas duas grandes guerras mundiais. Entre esses pensadores, encontra-se Hannah Harendt (1999). O ponto central de sua crítica está no drama humano vivido na barbárie dos campos de concentração nazista. Sua preocupação frente à realidade histórica que foi desenhada pelos ideais de dominação e destruição nazista, conduziu suas 92 reflexões filosóficas para a busca do entendimento da percepção dramática e angustiante da banalização do mal. Suas abordagens filosóficas sobre a maldade disfarçada e seus mais cruéis instrumentos de ação, marcaram e foram marcadas, por uma época, por um tempo histórico. A partir dessa realidade, esta filósofa do século XX buscou pensar criticamente a condição humana, refém do governo totalitário de Adolf Hitler. As experiências pessoais vividas por ela e o registro do extermínio em massa nesse quadro histórico estavam intimamente fundidos na construção do seu pensamento filosófico. Portanto, entende-se o desenvolvimento das diferentes concepções filosóficas como ressonância de um tempo religioso, político, militar, administrativo e econômico. Nessa perspectiva estabelece-se um intercâmbio, uma relação de cumplicidade entre o curso percorrido pelo pensar filosófico e sua idade histórica. CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreende-se que cada época histórica, construída e vivida pelos diferentes grupos sociais, representa uma etapa da história da filosofia. No decorrer dos séculos que sucederam o período dos antigos gregos, berço do pensamento ocidental, desenvolveu-se diferentes concepções de mundo e de existência social. No decorrer da reflexão em torno da relação intrínseca existente entre os contextos históricos e sua ligação com as construções filosóficas, tem-se um repertório de situações que revelam uma analogia entre a história vivida e as indagações filosóficas propostas. A pesquisa bibliográfica mostra que as construções reflexivas, que em diferentes tempos da vida em grupo buscam pensar as problemáticas humanas, revelam que os pontos de vistas dos filósofos estão diretamente relacionados com o seu tempo histórico. Portanto, as perspectivas reflexivas se constroem a partir do complexo sistema relacional existente entre o homem e seu mundo histórico cultural. O filósofo e sua concepção de mundo e de existência do homem como ser social estão historicamente localizados, por isso, é importante que se reconheça a afinidade existente entre o desenvolvimento das reflexões filosóficas e o momento histórico vivido por cada pensador. 93 Acredita-se que as indagações críticas propostas e as respostas encontradas ao longo do desenvolvimento do pensamento filosófico, nos permitem construir uma consciência de que somos seres pensantes e de ação, capazes de refletir sobre as perturbações que atormentam a humanidade há mais de 2.500 anos, e de construir, por meio dessas reflexões, conhecimentos sólidos sobre nós mesmos e sobre o mundo histórico do qual somos sujeitos. Entende-se que o indivíduo ao se propor pensar criticamente o existir humano como resultado das produções históricas oriundas das ações empreendidas pelo homem, se torna consciente de que o processo de produção do conhecimento representa o movimento de interpretação e reinterpretando que o pensamento faz sobre a sucessão de acontecimentos históricos vividos pelo homem, seus resultados e as propostas de novos caminhos como trafegar do pensar filosófico. Observa-se que a história se constrói por meio das ações do homem fundido no seu espírito de aventura e mudança, e a filosofia pela interpretação crítica dessas ações e suas consequências no âmbito do convívio humano. Entretanto, não será aqui que se esgotará a busca pelo entendimento de que existe uma relação estreita entre o pensar filosófico e as organizações históricas sociais, e que para que haja um melhor entendimento do desenvolvimento das estruturas do pensar filosófico, se faz necessário que as reflexões críticas estejam historicamente situadas. Mas, fica o convite reflexivo quanto à concepção de intercâmbio, de comunicação estabelecida entre ambas as áreas do conhecimento humano, como definidores dos olhos que buscam entendimento das questões do homem histórico por meio dos fundamentos do pensar filosófico. REFERÊNCIA AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 1990. ______. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 94 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ______. A mandrágora. São Paulo: Martin Claret, 2008. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. ______. Fédon. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultura, 2000. v. 1. RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. ______. Aprendendo a viver. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. VAN LOON, Hendrik Willem. A história da Humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 95 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: UM OLHAR NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDIGENA TAPUIO51. Silvania Maria Sandoval Borges52 [email protected] 51 O nome ‘Tapuio’ é uma palavra tupi que designa pessoas inimigas ou diferenciada em termos étnicos. No “Novo Dicionário da Língua Portuguesa” de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, além deste sentido original, Tapuio é o índio, seja ele bravio ou manso, mestiço e em contato permanente com a cultura e sociedade nacionais. Para um fazendeiro da região do Carretão: Tapuio é simplesmente um modo sertanejo de chamar o índio. (ALMEIDA, Rita Heloisa de Almeida (org.). Aldeamento Carretão segundo os seus herdeiros Tapuios: Conversas gravadas em 1980 e 1983. – Brasília: FUNAI/CGDOC, 2003. 422p. 52 Mestranda em Educação na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, especialista em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. 96 Resumo: O objeto de estudo deste trabalho é a Educação Escolar Indígena do povo Tapuio. Tem como objetivo apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos povos indígenas desde a colonização. A educação escolar indígena começou no inicio da colonização deste país através dos Jesuítas, no século XVI. Tinha o objetivo de implantar projetos para a dominação e invasão das terras para a exploração das riquezas. O trabalho dos Jesuítas durou 210 anos e durante esse período realizaram a catequese dos índios, através dos aldeamentos (as missões). Após a expulsão dos Jesuítas, o processo de educação não foi substituído de imediato. As ações de educação para os índios só reiniciaram com o a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, como órgão oficial do governo federal responsável pelas políticas indigenista no país, entre elas a educação. O trabalho do SPI foi realizado até 1967 quando foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que além das diversas atribuições a ela destinadas, era responsável também pela educação escolar dos índios. A educação promovida aos indígenas era em português. Em 1966 através de Decreto Presidencial é autorizado o ensino da língua materna entre os índios, mas somente a partir de 1970 é implementado o ensino bilíngue nas escolas indígenas. Porém, foi com a constituição de 1988 que de fato garantiu-se a utilização da língua indígena, dos costumes e teve seus princípios educacionais respeitados. Em 1991 passou-se ao Ministério da Educação (MEC) a competência para coordenar as ações de educação e às secretarias estaduais e municipais a execução das ações de educação. Os processos e responsabilidades de execução da educação escolar indígena passaram por várias etapas, desse modo foi importante apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos povos indígenas desde a colonização, focando a comunidade indígena Tapuio. Percebemos que a legislação garante uma educação escolar indígena especifica e diferenciada, entretanto, na prática ela ainda deixa lacunas e continua a busca pelos índios da garantia da sua execução dentro da escola. Palavras chaves: História, Educação, Educação Escolar Indígena, Povo Tapuio. Introdução 97 A Educação num conceito geral é pensada como meio de transmissão de conhecimento, independente do conhecimento, pois todos os conhecimentos e saberes de uma comunidade, de uma sociedade ou de um povo, seja tradicional passado de pai para filho e do mais velho ao jovem; seja o modo de vida da comunidade, as práticas culturais, as formas de produção de alimentos, de artefatos necessários ao dia-a-dia, os rituais, são importantes para o desenvolvimento da sociedade, do povo. Para Brandão “existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância.” (BRANDÃO, 1986, p. 9-10). Ela é livre e deve ser para todos, ela é uma forma de as pessoas se tornarem comuns entre si. É através da educação que os conhecimentos, ideias, crenças, o que é comunitário, os bens, o trabalho, a vida são socializados. Cada sociedade tem seu modo próprio de se organizar e de fazer educação, considerando os repertórios culturais inerentes a cada povo. Os conhecimentos de uma sociedade, de um povo são impostos socialmente aos indivíduos de modo que não resistem e aceitam o que é posto pela sociedade. Durkheim define a educação como a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objeto suscitar e desenvolver na criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais dela exigidos tanto pela sociedade política em seu conjunto quanto pelo meio especial ao qual ela está particularmente destinada. (DURKHEIM, 2010, p. 36-37) Para Brandão, entretanto, “a educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros.” (BRANDÃO, 1986, p. 12). A educação tem como objetivo a igualdade entre as pessoas, pois na educação os conhecimentos são compartilhados, as tradições, os costumes, o trabalho, os bens, para a continuidade da existência do povo e da vida. Além dessa educação comum existente nas sociedades como modo de se organizarem, de partilharem seus conhecimentos, seus bens, ela pode existir como instituição. Nesse sentido ela é usada como meio de impor um sistema 98 centralizado de poder, e é essa educação institucionalizada, que controla o saber, o conhecimento e leva a desigualdade entre os indivíduos em todos os aspectos, seja na divisão dos bens, direitos e símbolos. Então surge a escola, institucionalizada, com normas, regras, direitos e deveres. Para Brandão a educação da comunidade de iguais que reproduzia em um momento anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças naturais, começa a reproduzir desigualdades sociais por sobre igualdades naturais, começa desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas pedagógicos e as leis do ensino para servir ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. (BRANDÃO, 1986, p. 34). Para Bourdieu a educação é reprodutora e legitimadora da desigualdade social. Para ele até a década de 60 a educação pregava a igualdade de oportunidades, a meritocracia, a justiça social. “A educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de instancia transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais.” (NOGUEIRA E NOGUEIRA, 2002, P. 17). Nessa perspectiva, a escola era uma instituição neutra que difundia o conhecimento e os direitos dos indivíduos investidos na escola eram iguais para todos e competiam em condições de igualdade. As instituições formais têm profunda influência sobre os processos sociais, à medida que socialização envolve aspectos abrangentes da condição humana, e cada sociedade seleciona o que as novas gerações irão aprender de forma complexa. Qualquer processo de aprendizagem supõe uma seleta esfera de significados, valores e práticas, de acordo com o que se considera como necessário aprender na dinâmica das relações de forças de uma sociedade. (CANEZIN, 2011, P. 145). Este artigo tem como objeto de estudo a Educação Escolar Indígena do povo Tapuio. O objetivo é apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos povos indígenas desde a colonização. Conhecer como foi tratada ao longo da história da colonização do Brasil a Educação Escolar para os povos indígenas, quais eram os seus objetivos e quais propostas a educação ofertada trazia em cada momento dessa história. Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica para conhecer o conceito de Educação trazido por alguns autores como Durkheim (2010), Brandão (1986), Bourdieu 99 (2010) entre outros autores consultados. Um estudo sobre a educação indígena no Brasil e sobre a etnohistória do povo Tapuio. Processo de Escolarização Indígena no Brasil A educação escolar foi trazida ao Brasil com o objetivo de civilização dos índios. Teve sua origem com os Jesuítas que chegaram ao Brasil, ainda no século XVI, trazidos com o objetivo de implantar projetos escolares destinados, inicialmente, as populações indígenas. Esses projetos de educação tinham o objetivo o controle político do governo, pois a intenção era dominar os índios, para a invasão de suas terras e a exploração das riquezas naturais. As escolas foram desenvolvidas de forma planejada e sistematizadas, de modo que os missionários jesuítas responsáveis pelas escolas se esmeraram para a sua implantação. Bourdieu define “o 'sistema de educação' como o conjunto dos mecanismos institucionais ou habituais pelos quais se encontra assegurada a transmissão entre as gerações da cultura herdada do passado,” (BOURDIEU, 2010, p. 31). Foi com esse objetivo que os Jesuítas iniciaram os trabalhos entre os indígenas, ou seja, inculcar a cultura europeia nos índios. No contexto histórico da época a educação não constituía uma prioridade do governo, considerando que para a agricultura não se exigia formação especial. Os trabalhos missionários e pedagógicos eram para converter os gentios e impedir os colonos de desviarem-se da fé católica. A ação dos missionários Jesuítas foi rápida, em quinze dias colocou em funcionamento na cidade de Salvador, recém-fundada, uma escola de ler e escrever. Iniciou-se, portanto, no Brasil um processo de criação de escolas elementares, secundárias, seminários e missões, espalhadas por várias regiões. Durante o trabalho dos Jesuítas, eles realizaram a catequese dos índios, a educação dos filhos de colonos, a formação de novos sacerdotes e da elite intelectual, além do controle da fé e da moral entre os habitantes aos quais tiveram acesso. Ou seja, a ação pedagógica, os métodos usados para cada contexto social pelos Jesuítas, eram diferentes e tinham objetivos diferentes, nesse sentido, é legitimado o arbitrário cultural dominante. Como enfatiza Bourdieu “toda ação pedagógica é 100 objetivamente uma violência simbólica53 enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural.” (BOURDIEU, 2010, p. 26). Para os Jesuítas o trabalho de instalação de um sistema de educação se tornava difícil, devido à diversidade já existente, ou seja, de um lado os índios com suas línguas e cultura diferente e de outro os colonizadores portugueses que vieram para cá sozinhos, sem família, com modos e hábitos54 difíceis na visão da religião. A educação para os índios constituía-se basicamente em cristianizar e pacificar para torná-los dóceis facilitando dessa forma o trabalho nas aldeias. Ao mesmo tempo em que os Jesuítas incluíam os índios no sistema escolar, os excluíam quando a educação dos índios e dos filhos dos colonos era distinta entre eles. Pois: a visão etnocêntrica que motivava a educação europeia na colônia fez com que sempre se desprezasse a cultura popular, influenciada pelos indígenas e negros e que permaneceu marginal e condenada à expectativa de homogeneização, uma vez que a cultura erudita e europeizada era o modelo a ser seguido. (ARANHA, 2006, p. 166). “Os Jesuítas não só atuavam nas missões, convertendo os indígenas, mas também nas cidades e junto aos engenhos de açúcar, ocupando-se, portanto, com a educação da elite.” (ARANHA, 2006, p. 144). Por um período de 210 anos, os Jesuítas fizeram de forma maciça a catequese dos índios, a educação dos filhos dos colonos, formaram novos sacerdotes e filhos da elite intelectual, além de 53 Violência Simbólica: A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobre a qual se apoia o exercício da autoridade. Bourdieu considera que a transmissão pela escola da cultura escolar (conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas lingüísticas), própria à classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes populares. (VASCONCELLOS, Maria Drosila. PIERRE BOURDIEU: A HERANÇA SOCIOLÓGICA. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002, p. 80-81). 54 Assim, o conceito de habitus que ele desenvolverá ao longo da sua obra corresponde a uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. (VASCONCELLOS, Maria Drosila. PIERRE BOURDIEU: A HERANÇA SOCIOLÓGICA. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002, p. 79) 101 controlarem a fé e a moral dos habitantes da nova terra. Os Jesuítas permaneceram no país até 1759, à frente da educação, quando foram expulsos por Marquês de Pombal sob várias alegações entre elas de enriquecimento, intromissões politicas e interesse de formação de império temporal cristão nas missões. O Processo de educação construído pelos Jesuítas não foram substituídos de imediato por outras instituições escolares. O marquês de Pombal introduziu ideias iluministas, realizando reformas do ensino. A educação passou a ser leiga e de responsabilidade do Estado. O objetivo de Pombal, portanto, continuava, não diferente das politicas anteriores de inserir o índio na sociedade envolvente, ou seja, “civilizar” o índio. Assim criou o Diretório que garantia a criação de escola nos aldeamentos, além disso, estabelecia que os índios deveriam trazer a partir de então o sobrenome português e fazer uso de roupas entre outras coisas impostas pelo Diretório. A educação nas escolas dos aldeamentos passou a ser responsabilidade do Diretor Geral, cargo criado pelo Governador, que acumulava a função Temporal e espiritual, substituindo os missionários. A função do Diretor era a “de preparar os indígenas, por meios diretivos, para serem úteis à Coroa.” (OSSAMI DE MOURA, 2008, p. 82). Com a criação do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, as ações educacionais entre os índios passaram a ser executada por eles nas aldeias. O SPI foi criado através do Decreto-Lei nº 8.072 de 20 de junho de 1910, como órgão do governo federal responsável pelas políticas indigenista no país e garantir a ocupação territorial. O Governo Federal incumbiu-se de evitar o extermínio dos povos indígenas. O trabalho agora era pacificar os povos indígenas que se encontravam lutando contra segmentos da sociedade nacional em diversos pontos do território brasileiro. O coronel Cândido Mariano da Silva Rondon foi convidado para dirigir o novo órgão. Com ideias positivistas, estabeleceu a política de integração, na qual o índio era reconhecido como sujeito transitório, ou seja, preparando-se para ingressar na civilização. Nesse sentido, O SPI desenvolveu suas atividades demarcando as terras dos índios para evitar que fossem invadidas; protegia os índios da exploração por comerciantes, exploradores de produtos naturais etc. Prestava atendimento de saúde, ensinava técnicas de cultivo, de administração dos bens e vários ofícios, além da educação formal que foi implementada nas terras onde os índios moravam. Em 1957, o SPI entrou num processo de decadência administrativa e ideológica. Passou por diversos problemas e irregularidades e, em 5 de dezembro de 1967, após a 102 instalação no Brasil do regime militar, e em sua fase mais agressiva, o SPI foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio – Funai, através do Decreto 5.371 de 05 de dezembro de 1967. O decreto de criação da Funai diz que o órgão deverá estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada em alguns princípios entre eles promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional. Desse modo, dos jesuítas ao SPI e Funai, o processo de Educação Escolar Indígena sempre teve os mesmos objetivos a integração e assimilação dos índios a sociedade nacional. A Educação Escolar Indígena até a gestão do Serviço de Proteção ao Índio – SPI e Fundação Nacional do Índio – FUNAI, foi promovida em língua portuguesa, seja por missionários ou por professores desses órgãos. As escolas eram monolíngues, utilizavam apenas o português. Com o Decreto do Presidente do Brasil, nº 58.824, de 14 de julho de 1966, que promulgou a Convenção 107 sobre a proteção e integração das populações indígenas e outras populações tribais e semi-tribais de países independentes, é que são adotadas medidas legais para adotar a língua materna no ensino e em relação a outras questões sobre a educação para os povos indígenas. A Funai, portanto, até década de 1990 promove a Educação Escolar Indígena nas aldeias. Na década de 1970 a língua indígena começa a ser adotada nas escolas indígenas e assim têm garantida a escolarização dos povos indígenas com a utilização de suas línguas maternas. Para isso, foi realizado um convenio com o Summer Institut of linguistics – SIL, com sede nos Estados Unidos da América. Esse convênio atendeu vários povos indigenas e teve inicio em 1972, realizando a capacitação de indígenas para atuar como monitor bilíngues nas escolas indígenas. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, nos Artigos 210 e 215 foram garantidos aos povos indígenas o direito a uma educação especifica e diferenciada. Pois até então as Constituições Federais do País, viam o índio numa perspectiva de extermínio. Algumas delas, apesar de ter sido discutido e lembrados nos projetos das Constituições, algumas delas como a de 1824 e a de 1891 deixaram de constar em seus textos as questões indígenas. A de 1834, no artigo 11, § 5º, transferia para as Assembleias Provinciais a catequese e a civilização dos índios, o estabelecimento de colônias, para promover a instalação de imigrantes europeus nas terras indígenas. As constituições que vieram depois traziam em seus textos questões sobre os índios, mas sempre com o mesmo objetivo de 103 incorporá-los a sociedade nacional. As últimas constituições, entretanto, traziam textos sobre as terras que os índios habitavam. A de 1967, porém, integrou as terras indígenas ao patrimônio da união, restando a eles o usufruto dessas terras. Já a Constituição de 1988 trouxe em seus textos uma abrangência maior sobre as questões indígenas, inclusive, sobre a educação. Isso ocorreu devido às organizações dos índios e os movimentos de apoio aos indígenas. A partir da Constituição de 1988 a Educação Escolar Indígena muda, pois garante o direito à utilização de suas línguas, seus costumes e seus princípios educacionais respeitados. Através do Decreto 26, de 04 de fevereiro de 1991, o governo federal atribui ao Ministério da Educação e Cultura - MEC, a competência para coordenar as ações relativas à Educação Indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, sendo ouvida a Funai. O mesmo Decreto no Artigo 2º estabelece que as ações de educação sejam desenvolvidas pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação em consonância com as Secretarias Nacionais de Educação do MEC. Desse modo, levaram-se alguns anos para que os Estados e os Municípios assumissem de fato as Escolas Indígenas. Hoje as ações das Escolas Indígenas são desenvolvidas pelos Estados e Municípios, de acordo com cada situação e região. O processo de mudança, ou seja, quando o MEC passou a ter competência para coordenar as ações da Educação Escolar Indígena, causou situações no mínimo confusas no processo de gerenciamento da assistência educacional, como afirma Grupioni, “criou-se uma situação de acefalia no processo de gerenciamento global da assistência educacional aos povos indígenas.” (GRUPIONI, 1.997, p.190). Na maioria das vezes, essas dificuldades foram causadas pela falta de conhecimento sobre a educação escolar indígena, pois tiveram que assumir a educação sem preparo algum. As pessoas que estavam inseridas no processo, não estavam habilitadas a desenvolver as ações de educação indígena. Mudanças ocorreram na legislação e na prática em relação à educação indígena nas últimas décadas, entretanto, essas mudanças e as adequações continuam sendo realizadas para que de fato a educação para os índios atenda o que realmente a legislação prevê e o que os índios querem. Principalmente, porque para os índios a educação se mistura com a vida com o cotidiano. 104 Os Tapuio no contexto histórico do país55 Para compreender o processo de educação dos Tapuio é necessário conhecer a etno história desse povo, a trajetória percorrida até o reconhecimento da identidade. A colonização no Brasil iniciou-se com a chegada dos portugueses a terra brasileira com o objetivo de escravizar o índio56. O povo Tapuio originou do contexto histórico do país, das politicas indigenistas e de ocupação do território brasileiro. Ou seja, nos séculos XVIII a XIX, entre 1741 a 1872, como política indigenista, o governo ordenou a criação de aldeamentos, com o objetivo de desocupar as terras ocupadas pelos índios para garantir a expansão da exploração mineral e atividades agropastoris. Esses aldeamentos, com o apoio do terceiro governador geral do Brasil - Mem de Sá se desenvolveram rapidamente, com o objetivo de consolidar o domínio português sobre os índios e assim concluir a colonização do Brasil. Nesses aldeamentos os Jesuítas tinham o poder espiritual e temporal e sua administração tinha como modelo de organização administrativa as cidades portuguesas. O processo de construção de aldeamentos teve quatro fases e foi na segunda fase que com vários aldeamentos foi criado o de Carretão ou Pedro III, a 22 léguas de Vila Boa, onde hoje situa a cidade de Goiás/GO. Para esse aldeamento foram trazidos os Akuên Xavante, pois os Xavante (Akwên) representava ameaças, pois constantemente atacavam os núcleos urbanos de Crixás, Pilar e Tesouras, também porque os Xavantes levavam negros fugidos das minas para suas aldeias, afetando de forma desastrosa a economia das minas de Goiás. Mais tarde, também foram levados para o aldeamento Carretão índios das etnias Karajá, Javaé, Kaiapó, Xerente. A construção do aldeamento Carretão se deu numa fase de transição política e econômica, quando a agropecuária já se implantava em Goiás em substituição ao ciclo da mineração de ouro em decadência. Nesse período foram priorizados os núcleos populacionais, considerando que vários haviam sido desativados, assim era necessário capturar os índios para garantir o crescimento desses povoados. Civilizar os índios, para que fossem a base de novos povoamentos, bem como transformá-los em mão-de-obra 55 Este texto faz parte do meu Projeto de Pesquisa apresentado a Coordenação de Pós Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. 56 Índio é todo individuo reconhecido como membro por uma comunidade de origem pré-colombiana que se identifica como etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com que está em contato. (RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo. Companhia das Letras, 1986, p. 285 .). 105 para trabalharem nas lavouras e em outros trabalhos necessários para garantir a manutenção dos povoamentos. Segundo Ossami de Moura, “a população do Aldeamento Carretão, como atestam os depoimentos de diferentes autores, sofreu sérios reveses, como fome, doença, tratamento ofensivo, e até perseguição por partes dos empregados do aldeamento”. (OSSAMI DE MOURA, 2008, p. 95). Iniciou-se então um processo de decadência econômica que acarretou na destituição de vários aldeamentos. Em 1835, já era visível o desinteresse em manter o Aldeamento Carretão. Com o fim das minas a região deixou de ter uma importância econômica para o governo e a região do Carretão ficou isolada. Com o fim do aldeamento alguns índios ali resistiram, pois estavam casados entre indígenas de outras etnias e também com não índios e haviam perdido os traços culturais. Portanto, os Tapuio originaram-se desse aldeamento, da mistura, ou seja, da união entre indígenas das etnias Xavante, Karajá, Javaé, Kaiapó, Xerente e de negros escravos que fugiam de fazendas e buscavam abrigo no antigo Aldeamento Carretão. Os Tapuio viveram por muito tempo invisíveis como indígenas. “A invisibilidade dos Tapuios faz parte de um processo nacional de negação de identidades indígenas especificas, que teve lugar na segunda metade do século XIX”. (OSSSAMI DE MOURA, 2008, p. 291). Esse processo de invisibilidade iniciou-se com a política indigenista colonial de integração dos povos indígenas, que tinha como objetivo a descaracterização ou homogeneização étnica. Foi na década de 1940, que houve o processo de ressurgimento dos índios no cenário indígena brasileiro, entre eles estavam os Tapuio. Para os Tapuio esse processo de ressurgimento se deu por causa de conflitos fundiários. E foi a questão territorial que os auxiliou a buscar o reconhecimento e reconstruírem a unidade do grupo. Foi através dos primeiros habitantes do Aldeamento Carretão que os Tapuio sustentaram a “reconstrução” de sua identidade e o consequente reconhecimento como povo indígena. Os Tapuio acionaram a memória, buscando nos acontecimentos transmitidos através das gerações, interpretações para legitimar a identidade étnica do grupo. No final da década de 1970, os Tapuio foram em busca da Funai – órgão indigenista oficial para falar dos problemas enfrentados e denunciar as perseguições e invasões de suas terras. A Funai por sua vez, designa, no inicio de 1980, uma Antropóloga – Rita Heloiza de Almeida Lazarin, para realizar os levantamentos necessários sobre os Tapuio. Em 1984 a Funai conclui a demarcação administrativa de duas glebas não continuas, conforme Instrução Executiva n. 038/DPI, de 9 de outubro de 1984. Essa demarcação se baseou na primeira 106 demarcação feita pelo Governo de Goiás, através da Lei 188 de 1948, que tinha 1.430ha. ampliada pela demarcação feita pela Funai para 1.666ha. Com a demarcação veio o reconhecimento e a assistência para a população Tapuio. A Terra Indígena Carretão está localizada nos municípios de Nova América e Rubiataba em Goiás, entre o ribeirão Carretão e a Serra Dourada. Fica distante da capital Goiânia/GO cerca de 285 quilômetros. Está dividida em duas glebas não continuas. Os Tapuio não se organizam como as aldeias tradicionalmente conhecidas, há uma divisão espacial entre famílias que respeitam a primeira doação feita pela coroa portuguesa em 1788 e registrada como terras indígenas no Registro Paroquial de Pilar em 1885 (OSSAMI DE MOURA, 2008), e, a demarcação feita pelo governo do estado de Goiás em 1948, atendendo pedido das quatro famílias que permaneceram no território do aldeamento, devido o assédio de fazendeiros que estavam invadindo suas terras. Hoje a população Tapuio está em torno de 198 pessoas aldeadas e 218 vivendo fora da Terra Indígena. Educação Escolar Indígena Tapuio Os Tapuio tem hoje na aldeia uma Escola Estadual Indígena, gerida pela Secretaria Estadual de Educação do Estado de Goiás. Essa escola oferece o ensino fundamental que atende do 1º ano inicial ao 9º ano e o Ensino Médio. Apesar da escola na aldeia trazer o modelo da cidade como calendário escolar, matriz curricular, merenda escolar, etc., “o direito a educação escolar diferenciada já começa a ser observado” (AZARIAS, 2008, p. 58). A escola foi criada pelo Governo de Goiás, oficialmente, em 2004. Pois antes desta escola, a unidade escolar da aldeia era municipal e oferecia o ensino do 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental, com processos pedagógicos iguais das escolas da região. A escola entre os Tapuio funciona desde 1972, inicialmente, por falta de espaço físico apropriado, era realizada na casa de um Tapuio. Tempos depois foi construído com recursos da comunidade um prédio para acolher a escola. Em 1980 o município constrói outro prédio com dois cômodos, sendo uma sala de aula e uma cozinha. Nessa época os Tapuio para continuidade dos anos seguintes de estudo que não era ofertado na escola da aldeia tinha que ir para outras regiões do município para estudar. O ensino oferecido na escola Tapuio por muito tempo foi multiseriado, ou seja, várias séries (ano) em uma única sala. As aulas eram ministradas por duas professoras Tapuio. 107 Como citamos anteriormente, as mudanças ocorridas com a passagem da educação para o MEC e Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, causaram, inicialmente, uma situação difícil para ambos, principalmente pelo despreparo das pessoas que foram envolvidas com a educação indígena nesse período. Com certeza levaram alguns anos para se acostumarem e se prepararem para lhe dar com a educação indígena, mas hoje se percebe que isso ficou para trás, o MEC tem buscado novos mecanismos para garantir de fato uma educação diferenciada para os povos indígenas. “É verdade que, hoje, a escola está tentando mudar o processo educativo oferecido aos índios, buscando valorizar sua cultura, seu processo de ensinar e aprender, suas formas de conhecer e de aprendizagem”. (AZARIAS, 2008, P.110). E para os Tapuio isso é uma realidade, pois o primeiro passo foi conquistar a autonomia, através da gestão da escola e da educação na sala de aula, executadas pelos próprios Tapuio. Isso com certeza contribui para a conquista da educação diferenciada, pois não há uma interferência direta do não-índio no cotidiano da escola e nem na comunidade. E os professores Tapuio tem inserido em suas aulas a vida dos Tapuio, a arte, os costumes e o modo de ser. Os professores Tapuio que atuam na escola tem formação superior, condição exigida na legislação brasileira para atuar como professor. A autonomia do povo Tapuia como de tantos outros povos indígenas só poderá ser conquistada à medida que forem oferecidas condições necessárias para que os indígenas possam ser ‘eles mesmos’, o que não supõe a eliminação total da presença do Estado na vida indígena.” (AZARIAS, 2008, P. 111). A escola tem, portanto, contribuído para a autonomia dos Tapuio, que hoje tem “o controle da educação na escola” e, desse modo, dos conhecimentos ofertados as crianças da aldeia, ou seja, são os responsáveis pela educação de suas crianças e de seus jovens. Não há interferência direta do não índio na transmissão desses conhecimentos, eliminando assim, o que por séculos aconteceu com esse povo, uma educação voltada à cristianização, pacificação, civilização e integração. BIBLIOGRAFIA 108 ARANHA, Maria Lucia de Arruda. 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Tolstoi pedagogo Un fragmento de un artículo de Tolstoi, “Una revolución sin ejemplo”, da cuenta de una actitud característica en los seres humanos: la de vaciar las palabras y otorgarle un sentido tergiversado: “Hay un procedimiento muy usado por los hombres para justificar sus errores. Considerando axioma irrefutable el error que profesan, confunden este error y todas sus consecuencias en una sola idea y un solo vocablo, y luego atribuyen a la una y al otro una significación vaga y mística. Tales son las ideas y palabras de Iglesia, Ciencia, Derecho, Estado, Civilización. Así la Iglesia no es lo que es, o sea la reunión de ciertos hombres caídos en el mismo error, sino la unión de verdaderos creyentes. El Derecho no es el conjunto de leyes injustas elaboradas por ciertos hombres, sino la definición de condiciones equitativas en que los hombres pueden vivir. La Ciencia no es el resultado de azarosas especulaciones que ocupan a los ociosos, sino el único, el verdadero saber. Asimismo la Civilización no es el resultado de las autoridades y de la nociva actividad de las naciones occidentales que quieren librarse de la opresión por la 110 opresión, sino la sola vía cierta hacia la felicidad futura de los hombres”, (citado por Barrett, AM, “Gorki y Tolstoi”, 1912: 69-70). Todo educador debería tener este fragmento ante sus ojos para ser recordado una y otra vez en las largas horas de trabajo en su escritorio. La historia ha dado numerosos y escalofriantes ejemplos de esta tendencia humana y sus consecuencias en el campo político y pedagógico. A pesar de juicios sugestivos como éste, el pensamiento de León Tolstoi posee rasgos propios que al lector contemporáneo, demasiado sujeto por categorías estancas, le resulta extraño, de un sabor raro e incomprensible. Solo por citar un ejemplo, en la “Historia de las ideas políticas” de Touchard, cuando se refiere al anarquismo, aclara: “¿Es preciso mencionar el anarquismo de León Tolstoi? Se trata más bien de un moralismo obsesionado por el pecado y deseoso de volver, mediante la humildad, a la ley de Cristo. Casi llega, mediante un rodeo, a condenar la acción voluntaria del hombre, a rechazar las leyes, a abandonarse a un éxtasis místico”; (Touchard: 2007: 552). No podemos detenernos aquí en esta afirmación, solo tal vez advertir que no deberíamos desprendernos tan fácilmente de las consecuencias políticas de su pensamiento. Veremos si en su concepción pedagógica existe tal “éxtasis místico” y ese “moralismo obsesionado por el pecado”. Esas peculiaridades del pensamiento pedagógico de Tolstoi se deben a un lento proceso de maduración y desarrollo, -proceso que da cuenta no solo en sus escritos pedagógicos- en estrecha relación con sus ideas libertarias y religiosas, y forjada además a través de su experiencia concreta como maestro. Algunos rasgos de su pensamiento La convicción profunda de Tolstoi, piedra angular de su pensamiento, diseminada en toda su obra, es la certeza de que el problema fundamental e inmutable del ser humano, más allá de las épocas, de los lugares o del estatus económico, es el de la vida: ¿qué justifica, qué confiere sentido y valor a la existencia? La muerte aparece como el horizonte que empuja de modo angustiante a responder esa pregunta. Una primera respuesta, de inspiración roussoneana, consiste en concebir la felicidad humana, su logro y desarrollo, en estrecho contacto con la naturaleza y como contrapartida, alejado de la civilización que obstaculiza y desvía su desarrollo espiritual. La religiosidad de Tolstoi es una religiosidad terrenal de evidentes implicaciones de carácter político-social, es un cristianismo práctico, en el sentido de que los imperativos morales emanados de la lectura bíblica, se vinculan estrictamente a la vida cotidiana; (Paradisi, 2007: 13). Tina Tomassi sintetiza de este modo las implicancias de su pensamiento: La suprema ley del amor impone el rechazo de cualquier tipo de injusticia y opresión, incluidas las derivadas de la propiedad privada y de la cultura y de todos los 111 instrumentos que sirven para el dominio de pocos sobre muchos, empezando por el estado; exige también el rechazo del juramento hecho a cualquier tipo de autoridad por ser vínculo inadmisible para la conciencia, así como la no aceptación del matrimonio legal, de las leyes penales y sobre todo del servicio militar”; (Tomassi, 1988: 134). En la misma línea que Godwin y Proudhon, Tolstoi tiene más confianza en la persuasión que en la fuerza; predica “la no resistencia al mal”, concepto polémico que le granjeó muchas críticas, así como algunos seguidores (recordar el concepto de aimsha en Ghandi). Pero, lejos de abogar por la resignación ante la injusticia, Tolstoi en su diario, en 1898 aclara: “Yo digo que no es necesario resistirse al mal con el mal”, queriendo decir, aclara Tomassi, que “el ideal de la no violencia no excluye la lucha contra los adversarios, con tal que sea conducida con otros medios, entre ellos eficacísimo del de la “desobediencia civil”; (Tomassi, 1988: 135). Más allá de que el mismo Kropotkin en la voz “Anarquismo” de la Enciclopedia Británica pusiera a Tolstoi como ejemplo de una vida anarquista y del homenaje que Luigi Fabbri le brindara ante su desaparición; (Fabbri, 1910), el antiteísmo, de fuerte arraigo en muchos anarquistas, ha impedido valorar cabalmente su pensamiento. En nuestras tierras, Rafael Barrett, homenajeando al escritor ruso ante la noticia de su muerte y un mes antes de que ocurriera su propio deceso, escribía: “En Tolstoi, el ascetismo estético se confunde con el ascetismo moral, el poeta con el profeta. Es el anarquista absoluto. La tierra para todos, mediante el amor; no resistir al mal; abolir la violencia; he aquí un sistema contrario a toda sociedad, a toda asociación, sindical o no, fines de políticos, porque toda ley, todo reglamento, toda forma permanente del derecho –derecho del burgués o derecho del proletario, -se funda en la violencia”, (Barrett, AM, “La muerte de Tolstoi”, 1912: 7; subrayado nuestro). Aparece aquí, en esta llamativa referencia, una identificación entre la dimensión estética y la dimensión ética, tema que posteriormente señalará Michel Foucault, como veremos. Ejercicios espirituales En el ciclo de seminarios que Foucault dictó a propósito del estudio sobre las relaciones entre sujeto y verdad en la antigüedad a través de la noción de inquietud de si, ha sostenido que el siglo XIX fue un período en el que se intentó refundar una nueva estética y 112 una nueva concepción del ser humano57. En El coraje de la verdad, Foucault aborda el tema de la “verdadera vida”, una estética de la existencia que pretende comulgar la búsqueda de una existencia bella en la forma de la verdad y una práctica, buscar la forma más bella posible de la existencia en la forma de la verdad y un ejercicio: el decir veraz; (Foucault, 2011). En este sentido, retoma la tesis de Pierre Hadot, para quien las obras filosóficas de la antigüedad no fueron concebidas como exposición de un determinado sistema, sino a modo de técnicas que perseguían fines educativos concretos. Desde esta perspectiva hermenéutica el filósofo se distancia de aquella imagen que lo presenta como un erudito, investigador del mundo, cuya pretensión consistía fundamentalmente en informar a sus discípulos. Más bien, la actitud de este amante de la sabiduría pretendía incidir en el espíritu de sus lectores u oyentes buscando producir o formar en ellos cierto estado de ánimo. Estas técnicas Hadot las denomina “ejercicios espirituales”; su ámbito no se reduce a una dimensión particular de nuestra existencia, sino que su alcance es extraordinariamente amplio, abarca la totalidad de nuestra vida cotidiana.58 Es interesante destacar, como sugiere el autor, que la idea de ejercicios espirituales puede funcionar como base interpretativa para releer la historia del pensamiento de manera que nos permita descubrir ciertas dimensiones filosóficas de algunos pensadores, dimensiones que habitualmente son orilladas por el estudio tradicional de la historia de la filosofía; (Hadot, 1998: 42). Foucault asume esta perspectiva, al punto que esta “la elección de vida como escándalo de la verdad”, vale decir, este despojamiento de la vida como una manera de constituir, en el cuerpo mismo, el teatro visible de la verdad, cree encontrarla en el cinismo antiguo, y con él, a través de un movimiento “transhistórico”, también en el cristianismo y en los anarquistas del siglo XIX; (Foucault, 2011: 195). 57 Las alusiones a lo largo del texto que recoge aquel seminario dictado entre 1981 y 1982 son las siguientes: “Retomen toda la filosofía del siglo XIX [...] y verán que [...] ya sea descalificado, [...] o, [...] exaltado como sucede en Hegel, [...] –el acto del conocimiento- sigue ligado a las exigencias de la espiritualidad. En todas estas filosofías, cierta estructura de espiritualidad intenta vincular el conocimiento, el acto de conocimiento y sus efectos, a una transformación en el ser mismo del sujeto”; (Foucault, Michel; 2006: 42). ...“Y puede pensarse, me parece, toda la historia de la filosofía del siglo XIX como una especie de presión por medio de la cual se trató de repensar las estructuras de la espiritualidad dentro de una filosofía que, desde el cartesianismo o, en todo caso, la filosofía del siglo XVII, procuraba liberarse de esas mismas estructuras”; (Foucault, Michel; 2006: 42). “Puede pensarse toda una zona del pensamiento del siglo XIX como [...] una serie de tentativas difíciles para reconstituir una ética y una estética del yo. Ya tomemos, por ejemplo, a Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, el dandismo, Baudelaire, la anarquía, el pensamiento anarquista, etcétera, tenemos toda una serie de intentos muy diferentes unos de otros, claro, pero que, creo, se polarizan más o menos en torno de la cuestión: ¿es posible constituir, reconstituir una estética y una ética del yo? ¿A qué precio, en qué condiciones? ¿O la ética y la estética del yo no deben, en definitiva, invertirse para transformarse en el rechazo sistemático del yo?”; (Foucault, Michel; 2006: 246). 58 Por una parte la palabra “ejercicio” remite a una práctica, una actividad, un trabajo en relación con uno mismo, una ascesis del yo, forman parte de nuestra experiencia. El término “espiritual” no se limita a concepciones religiosas o teológicas, abarca la “totalidad psíquica del individuo”, es decir, pensamiento, imaginación, sensibilidad, voluntad. Constituye un modo de vivir, una forma de vida, una elección vital; “una práctica destinada a operar un cambio radical del ser”, (Hadot, 1998: 42). 113 La vida de León Tolstoi es un cruce de caminos de estas tradiciones, y por tanto, no permanece ajena a esta búsqueda incansable que alcanzó hasta sus últimos minutos; en él, la elección de vida asumió el escándalo de la verdad a través de la excomunión, la incomprensión de su esposa, el rechazo a la frivolidad de la aristocracia a la que perteneció, el deseo de una vida purificada a través del contacto con la naturaleza, el desprecio a la institución militar, el asumir una vida como campesino bajo el entendido de que quien no comparte en algo la vida de los pobres es imposible que comprenda algo de sus existencias… En sus propia vida buscó delinear esos trazos indelebles así como en la institución educativa que creó; Yasnaia Poliana (YP), es un “teatro visible” de esa tarea. Tolstoi quiere hacer de YP reflejo de una verdad, la de una experiencia educativa con niños concretos, que tienen nombres y características singulares. Yasnaia Poliana En este sentido, la intención de Tolstoi al presentar la revista de Yasnaia Poliana es la de describir la escuela desde un punto de vista "realista", si por él entendemos también el movimiento estético-literario que el autor asumió como propio en sus novelas, por ejemplo, en “Guerra y Paz”, obra de la que se ha dicho que refleja una “filosofía de las masas”, opuesta a la de los héroes; (Tomassi, 1988: 8-9). La escuela de YP no pretende ser un "modelo útil y bueno", "no quiero más que mostrarla tal cual es"; (Tolstoi, 1978: 20). Y esta "lisura" con la que se propone describir la escuela, según la traducción que contamos, significa también atrevimiento o desparpajo, ausencia de fingimiento. Tres son los propósitos que mueven esta descripción: 1. dar cuenta de cómo se formó el espíritu actual de la escuela 2. por qué el autor la encuentra "buena". 3. por qué le sería "absolutamente imposible cambiarla, aunque quisiera". Y sería imposible que una sola persona pueda cambiarla porque YP posee un “espíritu” propio, este espíritu de la escuela presenta las siguientes características: Es algo indefinible Escapa a la acción del maestro Es algo desconocido por la ciencia pedagógica Sin embargo, constituye el buen éxito de la enseñanza “está sometido a leyes ciertas y a la influencia negativa del maestro”, “el espíritu de la escuela se encuentra siempre en razón inversa de la intervención del maestro en la órbita del pensamiento, en razón directa del número de alumnos, en razón inversa de la duración de las lecciones, etc. “ 114 Este espíritu de la escuela es algo que se comunica de un alumno a otro… como la saliva para la digestión. ¿En qué consiste? Principalmente, según la descripción que de ella hace Tolstoi, al desarrollo libre de sus integrantes59: los estudiantes, por ejemplo, “tienen el derecho de no frecuentar la escuela, y aún frecuentándola, pueden no escuchar al maestro”; esta práctica, desconcertante para muchos docentes y observadores recién arribados a la escuela, no obstante, “no va en detrimento de la autoridad del maestro”; (Tolstoi, 1978: 20). Por el contrario, este ejercicio de libertad ha ido confirmando desde la fundación de la escuela una regla: "A medida que adelantan los niños en el estudio, más se extiende la enseñanza y más se impone la necesidad del orden (…) cuanto más instruidos son los discípulos, más capaces de orden resultan, más sienten ellos mismos la necesidad de él, y más fácilmente, bajo este punto de vista, se establece la autoridad del maestro"; (Tolstoi, 1978: 21). Para salvaguardar este ejercicio de libertad, se busca evitar la certeza de un método definitivo, el educador debe adaptarse al educando y al momento; este aparente “desorden”, Tolstoi lo denomina "orden libre", y sostiene que es "útil e indispensable" para una correcta educación de los niños; (Tolstoi, 1978: 21). Las principales limitaciones para la práctica de este ejercicio las encuentra Tolstoi fundamentalmente en el mundo adulto: la instrucción que hemos recibido nos condiciona terriblemente y nos impide comprender la fecundidad de este ejercicio; por otra parte, la violencia ejercida por nosotros impide el desarrollo natural que obtendrá un orden más "perfecto y estable" que el impuesto por el adulto; (Tolstoi, 1978: 21). Supuestos: a) los escolares son hombres, y todos los hombres tenemos las mismas necesidades, no los subestima ni los minusvalora, esto atribuye responsabilidad y compromiso por parte de ellos. b) sólo ceden a las leyes naturales o derivadas de la naturaleza (en consonancia con Bakunin y Rabelais). Indisciplinas: Los dos casos de indisciplina que cita Tolstoi parecen dar cuenta de ello: el primero, una pelea de niños, Tolstoi aconseja no intervenir, la multitud provocó sentimientos de justicia: pegarse es desagradable. Generalmente cuando intervenimos, nuestros medios son arbitrarios e injustos. El otro caso es el robo en el laboratorio de Física, los niños, 59 “J’estime aujourd’hui comme je l’ai fait autrefois que la liberté est une condition indispensable de toute instruction vraie, aussi bien pour ceux qui apprennent que pour ceux qui enseignent ; cela veut dire que les menaces, les punitions, tout aussi bien que les promesses de récompenses (privilèges, etc.) pour l’acquisition de certaines connaissances ne concurrent nullement à la vraie, instruction, mais lui sont au contraire la plus grande entrave » ; (Tolstoi 1925, 32). 115 reproduciendo la lógica de los adultos, reprodujeron prácticas similares a la de los trabajadores forzados. Por esto, reflexiona Tolstoi: “Estoy convencido de que la escuela no debe intervenir en la educación, pura incumbencia de la familia; no debe castigar ni recompensar lo que ella no tiene derecho, que su mejor policía y administración consiste en dejar a los alumnos en absoluta libertad de aprender y de arreglarse entre ellos como mejor les parezca. Convencido estoy de eso, y no obstante las antiguas costumbres de los establecimientos de educación están tan arraigadas en nosotros, que en la escuela Yasnaïa Poliana nos apartamos con frecuencia de esta regla”; (Tolstoi, 1978: 25). Ahora bien, para la consecución de este ideal, no hay que permanecer cruzado de brazos, implica para el educador una disposición, una actitud espiritual con ejercicios bien concretos, algunos de los cuales pueden entresacarse de la misma redacción que propone el pedagogo ruso: Ejercicios espirituales del educador: 1. Buscar por todos los medios que “nuestra astucia” no termine cercenando la facultad de elección de los niños, no interferir en el proceso que ellos realizan; el ejemplo de lectura e interpretación de un pasaje del Wig de Gogol, muestra la obstinación del maestro en la comprensión de la forma de un pasaje que él mismo juzgó posteriormente como mala, “había marchitado y pulverizado todas las flores de inteligencia, poco antes abiertas en todos sentidos”; (Tolstoi, 1978: 60). Por otra parte, que nuestra intervención como educadores no impida el desarrollo de su capacidad para protestar, para la rebeldía (capacidad que Bakunin ya había señalado como la más propiamente humana). 2. El ejemplo del aprendizaje de la lectura mecánica y progresiva echó a luz una actitud usual en los docentes, que es preciso combatir: “El maestro está siempre impulsado involuntariamente a escoger el procedimiento de enseñanza más cómodo –cuanto más cómodo es este procedimiento para el maestro, más incómodo resulta para los discípulos- sólo es bueno aquel que satisface a los alumnos”; (Tolstoi, 1978: 47-48). 3. Es imperioso –aunque parezca de Perogrullo- que el docente ame el estudio y “para amar el estudio le es preciso reconocer su falsedad, la insuficiencia de sus conocimientos acerca de las cosas, y presentir, por la intuición, el horizonte nuevo que el estudio va a descubrirle”; (Tolstoi, 1978: 87). 116 4. Reflexionar sobre nuestros desaciertos, es preciso reconocer públicamente con extraordinaria sinceridad cuando nuestro métodos no funcionan. 5. Estar abierto a experimentar constantemente; en el caso de la elección de un método apropiado de lectura, por ejemplo, Tolstoi experimenta con todos los métodos que conoce, los niños escogen el más apropiado. El escritor ruso está convencido que todos los métodos presentan ventajas y desventajas: “Se ha dejado a cada alumno la facultad de emplear todos los sistemas que le plazcan, y es de notar que cada uno de ellos usa de todos los sistemas conocidos por mí”; (Tolstoi, 1978: 50). Es necesario favorecer la diversidad y no un canon fijo, ya que “todas las buenas cualidades, se tornan en defectos desde que este procedimiento, u otro cualquiera, se extiende a la escuela entera”; (Tolstoi, 1978: 52). YP posee un “espíritu flexible”; (Tolstoi, 1978: 49), que posibilita esto, que cada alumno encuentre su método apropiado, una variedad no regida por ningún principio común, uniformizado; (Tolstoi, 1978: 52). “La dificultad nos parece tal, únicamente porque no logramos desembarazarnos del antiguo prejuicio que consideraba la escuela como una compañía disciplinadora de soldados, que hoy manda un subteniente y mañana otro. Para el instructor, familiarizado con la libertad de la escuela, cada alumno tiene su propia individualidad; cada uno expone sus gustos particulares, a los cuales sólo permite satisfacer la libertad de elección”; (Tolstoi, 1978: 52-53). 6. El docente debe asumirse como intelectual, y no como mero funcionario o empleado de una institución. Ante la posible objeción del benefactor: “¿es necesario enseñarles tanto?”; “¿por qué perfeccionarlos hasta ese punto?”; (Tolstoi, 1978: 40), -y cuidado que el Estado también asume, en ocasiones, el ropaje del benefactor- Tolstoi señala que no es posible sepultar el tesoro que la humanidad nos legó: “Fedka, el hijo del campesino está deseoso de investigar y se lo queremos impedir?; “Confiad el campesino a la naturaleza, y veréis cómo él saca de ella lo que la historia os encargó que le transmitiérais, lo que vuestros propios sufrimientos han elaborado en vosotros”; (Tolstoi, 1978: 41). 7. Por último, la selección de la información curricular debe estar guiada por la significación que docentes y alumnos le otorguen a la actualidad, al presente que los envuelve, y para esto es preciso tener una mirada atenta. Para el estudio de la historia, por ejemplo, sugiere comenzar no por el principio sino por el fin: “Cualquiera que 117 haya tratado mucho a los niños debe saber que, en el espíritu de todo pequeño ruso, el universo entero es una Rusia como la habitada por él”; (Tolstoi, 1978: 98). Asimismo, es preferible comenzar el estudio de la geografía “por la clase de la escuela, por nuestro lugar”; (Tolstoi, 1978: 109). “Inspirar el deseo de saber cómo vive, ha vivido, se ha transformado y desenvuelto el género humano en los diferentes reinos, saber las leyes según las cuales la humanidad evoluciona eternamente, inspirar, de otro lado, el deseo de comprender las leyes de los fenómenos naturales en el mundo entero y la distribución del género humano sobre la superficie del globo”; (Tolstoi, 1978: 113). Un problema actual: Finalmente quisiera dejar planteado un problema que Tolstoi señala, y que estamos lejos de haberlo resuelto: la distancia cada vez mayor entre la cultura popular y los mejores frutos de la tradición cultural de la humanidad, “una cuestión insoluble para nosotros” afirma Tolstoi; (Tolstoi, 1978: 57): “Para la instrucción del pueblo es preciso darle la posibilidad y el deseo de leer buenos libros; pues bien, los buenos libros están escritos en un lenguaje que el pueblo no entiende. Para llegar a comprender es necesario leer mucho, y para tener afán por leer es preciso comprender… ¿Cuál es el remedio, y cómo salir de esta situación?”; (Tolstoi, 1978: 57). Causas: “nuestro alejamiento del pueblo”; “acaso hoy el pueblo no comprende y no quiere comprender nuestro lenguaje libertario, porque en él nada hay que comprender para el pueblo” (…) Es necesario que el pueblo elabore nuevos conocimientos “que convengan a todos (…) a las gentes de sociedad y a las gentes del pueblo”; (Tolstoi, 1978: 116). Bibliografía: Fabbri, Luigi, (1910); El pensiero anarchico di Leone Tolstoj”, Il Pensiero, 16 de diciembre, Bologna. Foucault, Michel; (2006), La hermenéutica del sujeto: curso en el Collège de France: 1981-1982, FCE, Buenos Aires.. Foucault, Michel; (2009), El gobierno de sí y de los otros: curso en el Collège de France: 1982-1983. FCE, Buenos Aires. 118 Foucault, Michel; (2011), El coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II: curso en el Collège de France: 1983-1984, FCE, Buenos Aires. Hadot, Pierre, (2006); Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Biblioteca de ensayo 50, Editorial Siruela, Madrid. 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Madre Tierra-Móstenes, Madrid, Touchard, Jean, (2007); Historia de las ideas políticas; Tecnos, Madrid. “Las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques. La conferencia en el Círculo Literario” Petrucci, Liliana Cecilia. 119 Objetivo: Analizar las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques que tuvieron una fuerte influencia en el Río de la Plata .En particular se abordará las contenidas en su conferencia “Las artes, las ciencias y las letras”, dictada en el “Círculo Literario” de Buenos Aires en 1864. -Justificación: Este viajero intelectual se destaca por sus actuaciones pedagógicas y sus concepciones filosóficas que dejaron una huella importante en el pensamiento filosófico y educacional del Río de la Plata vinculada al ‘eclecticismo de cátedra’ (Roig 2006:11).Eclecticismo de cátedra, positivismo, racionalismo espiritualista, son los nombres de las ideas filosófico-pedagógicas que se vinculan a la contribución de Jacques y que se debaten en la construcción de “una filosofía riorplatense”. -Resultados esperados: Despejar y deslindar la vinculación que realiza cierta re- construcción historiográfica de la filosofía que ubica como antecedente del positivismo a la obra de Amadeo Jacques y que se deben tanto al desconocimiento de sus ideas como a la indistinción entre racionalismo y positivismo. -Resumen de la presentación: El presente trabajo forma parte del proyecto de investigación:"Discursos de viajeros europeos y cultura escrita en la Argentina (1810-1910)" que se encuentra en proceso. Amadeo Jacques (1813-1865) es precedido por un pasado “liberal republicano” jalonado por las producciones e intervenciones en Francia que se vinculan a la filosofía y a la defensa de de su independencia de la religión. (Roig 1997, Vermeren 1998). El exilio obligado por los sucesos políticos en Francia en 1851 lo llevan a recalar en Montevideo en 1852, destino que abandona debido a las dificultades y penurias económicas. Inicia así un itinerario por distintas ciudades de la Confederación Argentina, entre ellas se destacan las actuaciones realizadas en San Miguel de Tucumán y en Buenos Aires. El influjo de sus iniciativas y concepciones fueron plasmadas en la dirección del Colegio de San Miguel de Tucumán y como director del Colegio Nacional de Buenos Aires. Su intervención en la organización de la instrucción general y universitaria está expresada en la “Memoria de 1865”. Se retomará en esta instancia la conferencia que dictó Amadeo Jacques en el Círculo Literario de Buenos Aires el 30 de setiembre de 1864 sobre “Las artes, las ciencias y las 120 letras”. Dicho texto es considerado como el único propiamente filosófico publicado60 durante su exilio (Vermeren, 1998). Allí se centra en la crítica a una filosofía abstracta y a las “ciencias positivas” que en beneficio de la industria vaticinan la muerte del Círculo. Parte de la consideración de la separación tajante entre las ciencias, las artes, las letras y la filosofía que implican el desconocimiento de los fundamentos necesarios para el desarrollo fructífero de las ciencias. Las mismas necesitan del desarrollo de la “inteligencia” y la sensibilidad para no quedar formulas vacías que llevarían a una aplicación mecánica. Ponencia: Los discursos de los viajeros intelectuales se inscriben en una tradición cultural y científica que, muchas veces, se articula a una significación político- económica -el viaje de exploración, de conquista y dominio territorial, el científico, el burgués, el letrado… (Colombi, 2006:13)-. La circulación de lo impreso y el empuje que supondrá en el siglo XIX su industrialización, la relevancia de la lectura y la escritura y sus modificaciones, se engarzan con el proyecto ilustrado que los consideraba como condiciones para el ‘progreso’. En la Argentina, Tedesco (1993) destaca su impacto en la disputa por la orientación de la instrucción –utilitaria o formación del ciudadano-. Amadeo Jacques( 1813-1865) se destaca de entre los viajeros intelectuales que tuvieron que emigrar de Francia- específicamente por los acontecimientos políticos ocurridos en 1851y por la huella que dejó en el “pensamiento filosófico y educacional” del Río de la Plata vinculado al ‘eclecticismo de cátedra’(Roig 2006:11).Por otro lado, según la lectura de Horacio Sanguinetti (1963) sus actuaciones en nuestras orillas no hubieran perdurado con la resonancia que aún mantienen si no fuera por las páginas que le dedica Miguel Cané al magisterio de Jacques en el Colegio Nacional de Buenos Aires en “Juvenilia”61(Sanguinetti, 1963:28) 60 Publicada en La Revista de Buenos Aires, bajo la dirección de Miguel Navarro Viola y Vicente G. Quesada, Tomo V, 1864 (Mantovani, J. 1954: LXVII ) 61 En “Juvenilia” Cané resalta que el estado de los estudios en el colegio era deplorable hasta que tomó su dirección Jacques, el hombre más sabio que hasta el día haya pisado tierra argentina” (Cané 2007:33).La filosofía, señala Cané, se renueva con el espíritu liberal que junto al cartesianismo estudia Bacon, Espinosa, Hobbes, Condillac, Hegel, Kant, Fitche, entre otros. La que se inscribe en el eclecticismo presidido por Cousin, “un sistema cuya vaguedad misma, cuya falta de doctrina fundamental, respondía maravillosamente a las vacilaciones intelectuales de la época” (Cané 2007:34). 121 El exilio de Jacques está precedido por su producción filosófica, en especial el Manual de Filosofía (1845) elaborado junto a Julio Simon y Emilio Saisset orientado a la segunda enseñanza y con fines didácticos, sus intervenciones como docente de distintos Liceos y como conferencista en la Escuela Normal Superior y en el debate filosófico –político a través de la fundación, a fines de 1847, de la revista “La libertad de pensar” -proyecto del que participa Julio Simon-. Su labor en la difusión y accesibilidad del conocimiento filosófico mediante la publicación de distintas obras vinculadas a las ideas filosóficas en las que abrevaba el eclecticismo de cátedra, merecen destacarse. La elección de los autores formaba “parte de la estrategia de la escuela ecléctica de volver accesible un corpus que sirva de referencia a la filosofía de la Universidad” (Vermeren, 1998:39). Se formó en el eclecticismo de cátedra de Víctor Cousin signado por su ortodoxia, según la lectura de Mantovani, y que en el despliegue de sus estrategias políticas implicará una impronta conciliadora con la iglesia. Aspecto este último que marcará el distanciamiento de Amadeo Jacques de su maestro. En el “concurso de 1843 en la Facultad de Letras”, Jacques recalca que “el estoicismo” fundado en el deber y la razón prioriza la virtud y lo útil por sobre el placer pero, a diferencia de este, se debe atender a todo lo que es humano en tanto obra de Dios. Asimismo precisa que el enlace de “elementos aparentemente contradictorios” no se realiza sin reglas –“elige, restringe y ordena lo que se encuentra en la naturaleza humana y en la historia”- (citado por Vermeren, 1998: 35). Es así que, esta escuela se distingue por la independencia del saber ligada al método y la claridad- de impronta cartesiana-. El avance del “partido clerical” significó la puesta en disponibilidad, por decisión ministerial, de A. Jacques (octubre de 1850) en las cátedras de filosofía que dictaba en diferentes liceos. Posteriormente, la publicación en la revista republicana “La liberté de penser”, en diciembre de 1850, de un artículo de su autoría tildado como contrario al “cristianismo y a todos los cultos reconocidos en Francia y enseñados en los colegios”62, conllevará su denuncia ante el Consejo de Instrucción Pública, y más tarde la expulsión y prohibición de ejercer la enseñanza. 62 Nota del Ministro para la sección permanente del Consejo Superior, 26 de diciembre de 1850. Citado en Vermeren, P (1998: 26) 122 Jacques abandona Francia y el 30 de julio de 1852 arriba a Montevideo con algunos aparatos de física y una carta de Alejandro de Humboldt- donde “lo recomienda como un sabio y un educador capaz de fundar en el Nuevo Mundo un importante establecimiento de enseñanza”(Mantovani 1945:XXXI). En Montevideo dicta en la Universidad Mayor un curso de física y química en español, público y gratuito, acompañado de experiencias prácticas posibilitadas por el instrumental que traía consigo. A pesar de que tuvo muy buena recepción el curso, no consigue una remuneración por lo que debe vender los instrumentos al Colegio de Paraná dirigido por Alberto Larroque. A continuación realizaremos una apretada síntesis de algunos aspectos destacados de su trayectoria. Un viajero intelectual y pedagogo que en su patria se dedicaba a la filosofía y que en la adoptiva se dedicará a las ciencias, en respuesta a las necesidades del medio rioplatense, vinculada a su formación63. Como lo decía en una de sus cartas a Guillemont (1853) durante su estadía en Montevideo, cuando todavía estaba itinerando en busca de un lugar, más que juristas se necesitan hombres con conocimientos de agricultura, minería,…La enseñanza práctica basada en las “ciencias de aplicación directa a la agricultura, al comercio, a la industria” (Jacques, A. 1954: 59-60) adquieren preeminencia por sobre las especulaciones metafísicas. La distinción entre educación e instrucción, su distribución e impulso, se asentó sobre la diferenciación entre las necesidades del pueblo, del ciudadano, y las de la élite -gobernante, pensante, con talento y fortuna...-. Para estos últimos, a los que se acopla la distinción de ‘buenos’ alumnos, va dirigida la instrucción literaria equilibrada por los conocimientos científicos más útiles. En la carta de 1858 dirigida al redactor de “El Eco del Norte” reseña su propuesta de educación para la juventud vinculada a su labor como Director del Colegio de San Miguel de Tucumán (1858-1862), en donde destaca la formación requerida según las condiciones del ‘nuevo país’: “fundar…una escuela profesional, donde no se formarían sabios, sino hombres útiles, ingenieros prácticos, contramaestres para explotaciones industriales y agrícolas, presentes o futuras. Se enseñaría en mi escuela, sobre todo las ciencias positivas, y de estas 63 Contaba con el título de Licenciado en Ciencias Naturales y con experiencia práctica. Una formación que en Francia era común a ciertos títulos en las dos facultades- Letras y Ciencias-. 123 ciencias no sólo el lado teórico, sino el lado práctico, es decir todo lo que tiene una aplicación directa a las necesidades materiales y a las necesidades de la vida…” (Jacques en Mantovani, 1945: 62). Esta referencia a las ciencias positivas, a una formación basada en ellas, puede ser el equívoco que llevan a algunas interpretaciones posteriores a vincularlo con el positivismo, desconociendo las diferencias de este con la ‘ciencia natural romántica’, además de las otras aristas de sus ideas filosófico-pedagógicas. Las intervenciones de Amadeo Jacques están vinculadas a la obra educacional de la Presidencia de Mitre: a la organización del primer Colegio Nacional y al proyecto de organización de la instrucción general y universitaria contenido en la “Memoria de 1865” (Mantovani 1945: LX). Documento que Mantovani (1954), Caruso-Dussel (1997), Vermeren (1998) signan como la ‘argentinidad de Jacques’, por la articulación que evidencia entre las concepciones personales, su crítica a la organización de la formación en Francia, el reconocimiento de las condiciones educativas, culturales, económicas y las necesidades de ‘desarrollo’ de la Argentina Entre algunas de las cuestiones que singularizan su propuesta para organizar el sistema de instrucción pública contenida en la Memoria de 1865, enfatiza la orientación de la enseñanza elemental, los métodos de enseñanza que deberán estar guiadas por: la ‘sencillez’ de la forma, una ciencia vasta y variada y una inteligencia que puede poner el saber a la altura de los alumnos. En relación a la educación secundaria expone y defiende los méritos de una formación general por encima de las distintas carreras/oficios que la fragmentarían. Posición fundada en la consideración de la inteligencia humana, la que está por encima de cualquier aplicación y es la base para el entendimiento. Además, explicita la necesidad de mantener un equilibrio entre el peso otorgado a las humanidades y a las ciencias. Liga la formación del ‘espíritu’ y la apertura de perspectivas que supone una formación general con la existencia de una ‘nación civilizada’ (Mantovani 1945:18). Actuaciones sucintamente mencionadas que, permitirán la inclusión de Jacques entre los “hombres de la generación de los constituyentes” (Manganiello: 1980). En nuestras orillas, el espiritualismo impulsado por la generación de 1837, por la cátedra de ‘Ideología’ de Diego Alcorta en la Universidad de Buenos Aires y la traducción de la obra 124 de Víctor Cousin por sus alumnos, dará lugar al eclecticismo de cátedra (Roig 2006:11). La generación del 37 irá apartándose del eclecticismo para adherir a un “racionalismo moderado” que caracteriza también a Jacques, teniendo en cuenta su postura crítica respecto a la relación iglesia- estado-educación y la “lucha ideológica” que lo distinguía. Una independencia que Jacques enfatiza en la definición de la filosofía como el “deseo de saber más alto”, como la “ciencia de los primeros principios”, de lo más científico, “de una ciencia de las ciencias”,… (Jacques en Roig, 2006:40). La filosofía es pues, una epistemología y un saber axiológico. Parte de una psicología de corte espiritualista para la que el hombre es una fuerza conciente de su poder, el libre albedrío se apoya en la razón que es un reflejo de las ideas divinas, absolutas y morales -que son a priori. Un eclecticismo que irá modificándose para mantenerse como método, aunque el uso del “Manual de Filosofía” perdurará en la enseñanza a través del magisterio de compatriotas, discípulos y amigos de las ideas en distintos puntos del país hasta comienzos del siglo XX. La conferencia conocida como “Las artes, las ciencias y las letras”, denominación otorgada por Juan Mantovani (1954: 157), fue pronunciada el 30 de setiembre de 1864 en el Círculo Literario presidido por Juan María Gutiérrez. Jacques comienza destacando que si bien es una asociación literaria, la literatura y las artes siempre se han encontrado unidas en el coro de las ‘Musas’. Si bien la filosofía no ha permanecida ajena, señala que aparece en su peor semblante, como silogismos abstractos o como sofisticaciones. Pero más temible que esa filosofía le resulta la invasión de las llamadas “ciencias positivas”, la química y sus ‘hedores’ y la física con la gravedad que provoca pesadez, son algunos de los ejemplos de los palabreríos sin fundamentos que parecieran vaticinar junto con “el arte industrial” la muerte del Círculo (Jacques en Mantovani, 1954: 157,158). Llama la atención semejantes diatribas cuando es Jacques el que preconiza un conocimiento práctico y desplaza del centro de sus intereses a la filosofía en beneficio de la enseñanza de las ciencias. Pero no nos apresuremos, pues tal vez la disputa no es entre una u otra opción sino por el modo de articulación y el desplazamiento que implican. Es así que reivindica al Círculo que ha unido la literatura, las ciencias, las bellas y las feas artes y propone centrarse en los principios. Para ello parte de Platón, para descubrir la fuente de lo bello que el filósofo griego denominaba “lo bello en sí y para sí” para posteriormente determinar si la ciencia puede participar en ello. La referencia a Dios como dador de las 125 facultades principales de inteligencia y sensibilidad, le permite ir desarrollando su articulación y presencia en la vida cotidiana que es causa de placer y admiración desinteresada. Parte de la idea de “fuerza” para establecer su simplicidad e imposibilidad de definición y que atraviesa tanto los fenómenos naturales- como fuerzas inanimadas- como los humanos, en tanto animadas y conscientes (Jacques en Mantovani, 1954: 159,160). A pesar de las dificultades para definirla, la misma se enlaza con la noción de fuerza de Leibniz para plantearla como origen del sentimiento estético. Esa idea de inteligencia y sensación está presente en un artículo que había publicado en la revista “la Libertad de Pensar”- Tomo I de 1847-, titulado “De l’imagination en matière philosophique”, que analiza Arturo Andrés Roig (2009).No nos detendremos en la referencia a la imaginación y al uso de metáforas a las que no escapa la teoría platónica. Sólo queremos mencionar la vinculación de la inteligencia con “la fuerza pura” que en tanto no se somete a la realidad física y se trasciende a sí misma. Es “lo que se llama conciencia o razón desde donde aprovechamos los datos que nos ofrece la sensación” (Jacques comentado por Roig, 2099: 799). La participación de la imaginación en la razón y el lenguaje, reconocida desde Aristóteles, no implica negar la capacidad de juzgar de la razón (Jacques comentado por Roig, 2099: 800). Retornando a la conferencia presentada en el Círculo, se refiere a partir de distintos ejemplos, a la ciencia de la fuerza denominada “Mecánica”. Señala los principios abstractos y racionales que la caracterizan además de sus múltiples aplicaciones. La reivindicación de sus resultados amerita la vinculación de la literatura con ella. Su estudio permitiría un mejor entendimiento y no está reñida con la búsqueda de lo bello que peculiariza a la literatura. En esta relación entre la ciencia y la literatura, tal vez podríamos reconocer la recepción de la ciencia en clave romántica y racionalista. Una vinculación que se reitera cuando se refiere a la “fuerza moral, esto es la voluntad libre de los arrebatos de la pasión, luchando contra los obstáculos y enemigos de afuera…” (Jacques en Mantovani, 1954: 162) En esa distinción entre un adentro y una afuera nos resuenan los ecos de la concepción cartesiana del sujeto. Pero, sin embargo se contrapone a la separación abismal entre un “yo” y un “no yo”, que en Cousin conlleva el secuestro de la psicología en el recurso a la imaginación para salvar ese abismo. A partir de la analogía propuesta por Pascal: “El hombre es una pajilla la más débil de la naturaleza; pero es una pajilla que piensa”, reivindica los valores ilustrados y su relación en la 126 literatura con el Drama y la Novela, y con los que son objeto de estudio en la ciencia psicológica. Esta última también está llamada a proveer al arte literario de “verdades científicas” que le otorgan valor y fundan “lo verdaderamente bello”. Una vinculación que se reitera entre la arquitectura- en tanto belleza de los monumentos- y los rigores y aridez de la geometría que, participa de lo bello. “…las condiciones científicamente demostradas de la regularidad, del orden y de la simetría de las figuras hiere penosamente la vista de los ignorantes así como de los sabios” (Jacques en Mantovani, 1954: 163). Acá vemos como a pesar de la diferencia que hace la ilustración, tiende un hilo sensible y estético entre sabios e ignorantes. Una cuestión que nos parece una singularidad que se diferencia de la distancia planteada por Cousin entre las clases populares y las élites”. Para Cousin, la filosofía en las clases populares no sólo es ingenua sino que está abocada a la moralización a través de la fe cristiana y sus principios éticos (Vermeren, 2009:188). La Música no escapa la articulación que viene proponiendo entre las ciencias y las bellas artes, en este caso con la física, aunque la matemática tampoco le es ajena. La física provee de las “razones profundas y las condiciones necesarias de la armonía de los sonidos” (Jacques en Mantovani, 1954: 163). Si bien no “todo lo que es bello resulta de un fin alcanzado; ni conseguir su objeto es siempre una condición suficiente de belleza”, recalca cuando se refiere a los comentarios sarcásticos de Voltaire, que la locomotora puede ser objeto de admiración por su fuerza, por la disposición hábil de todos sus ‘órganos’. Y a pesar de su hollín supone emociones artísticas, “él es un artista, pues, a su manera: pensabais que esto era pura mecánica, y había sido casi estética” (Jacques en Mantovani, 1954: 165, 166). No podía faltar a esta convocatoria que venimos comentando la “Historia Natural”. A partir de la observación del comportamiento de las abejas, seleccionado de uno de los tomos de M. de Saussure, y de los experimentos que realizó, le permiten concluir que la sabiduría en la conducta de los abejas, como en otros tantos estudios de la historia natural ameritan formar parte de una rama de la Literatura. No podía faltar a la cita el “Arquitecto Supremo”, el “eterno Geómetra” que, sin menguar su presencia, la ciencia aporta los conocimientos de cálculo, la geometría y la mecánica que permiten predecir el movimiento de los planetas. “…el cálculo es la más poderosa de cuantas 127 ha inventado el genio del hombre. Alivia a la mente del peso del pensamiento, permitiéndole operar mecánicamente sobre el signo, sin ocuparse de la cosa significada… formulas bonitas, como hay hermosos teoremas y demostraciones elegantes” (Jacques en Mantovani, 1954:169) Concluye la conferencia reafirmando la vinculación del artista con el sabio, de la literatura con la ciencia, “puesto que lo bello no existe separado de lo verdadero y no es sino uno de sus aspectos”. Rechaza a su vez la “retórica escolástica, que enseña a decir agradablemente unas nadas y a rescatar por lo precioso de la forma, lo insignificante de la materia” (Jacques en Mantovani, 1954: 169). Con la frase de Platón “la belleza es el resplandor de la verdad” rescata la necesaria identificación entre sí de “lo verdadero, lo bello, lo justo y lo útil”. Esta ligazón propuesta podría ser considerada como la cautela y balance de la imaginación que provee el uso de la razón, de la inteligencia y de la ciencia para discernir las falsas imágenes de las verdaderas y fructíferas. La separación postulada entre la ciencia y la literatura que recorre Jacques para demostrar su mutuo enriquecimiento, supone una polémica con la institucionalización de su diferencia en la universidad. La instauración de las fronteras entre la ciencia y ese resto no controlableque es la literatura-, está marcada por la sospecha que recae sobre las pasiones y fantasías que erosionan la estabilidad de una identidad – preocupación presente en Platón- y por no ajustarse a los parámetros de cientificidad. Según lo que plantea de Certeau “el divorcio entre la historia y la literatura” es de larga data y comienza a evidenciarse en el siglo XVII a través de la ruptura entre “historias” y “memorias” que divide el “campo de la literatura histórica”. Separación entre las “letras” y las “ciencias” legitimada en el siglo XVIII e “institucionalizada en el siglo XIX por la organización universitaria” (de Certeau, 1998:97) Un señalamiento que nos permite situar a Jacques a contrapelo de una tendencia espiritualista y cientificista desde un racionalismo que apuesta contra del ‘genio maligno’ cartesiano, a la libertad del ser que puede resistir y desconfiar de la imaginación. En este sentido Roig comenta la crítica que Jacques realiza a Cousin en el artículo sobre la imaginación, citado precedentemente (“De l’imagination en matière philosophique”), que ha caído en un “abuso de imaginación y metáfora” convertido en “sistema” (Roig, 2009: 800). 128 En síntesis, el planteo de Jacques en la conferencia del “Circulo Literario” no coincide con la atribución positivista que, posteriormente, algunos de los que emprenden la construcción historiográfica de la filosofía en el Río de la Plata le atribuye. Indudablemente no es la ciencia la que queda desplazada en provecho de una especulación metafísica, sino que se le asigna a la filosofía una función epistemológica, una ciencia de la ciencia que junto a las artes y las letras permiten una comprensión más profunda, armónica y estética. Sin embargo, nos parece se presenta una oscilación en la consideración de la imaginación, su reivindicación es modulada y corregida por la filosofía en tanto epistemología y axiología y por la ciencia en tanto conocimiento de los principios materiales. En este sentido, entendemos que la diferencia planteada por Jacques con el espiritualismo y el cientificismo se basa en un racionalismo que apuesta a la libertad y a la imaginación regulada/encaminada por la razón. Salvo esta Conferencia en el Círculo Literario que se inscribe en la filosofía, las actuaciones de Jacques durante su exilio estuvieron vinculadas a las intervenciones pedagógicas y docentes. Condiciones y producciones que suscitan diferentes interpretaciones. Por un lado, están las que destacan el lugar excepcional del Manual de Filosofía, las tesis de doctorado y la Memoria sobre el sentido común (Ponce 1958[1927]:154). Por otro, las que vinculan la interrupción de su proyecto filosófico a: los conflictos políticos sufridos por Jacques que lo obligaron al exilio, a su apuesta pedagógica y a las demandas del naciente “Estado moderno Argentino” que lo llevan a priorizar la popularización de los fundamentos naturales de la ciencia (Vermeren 1998: 107/117). Retornando así, a lo que siempre lo distinguió la enseñanza, dar clase. La docencia sin “obra filosófica”pero sí, propositiva, proyectiva y como relación educativa. Aparecen esbozadas dos modos de relación con ‘el otro’, por un lado la vinculada a la noción de “progreso” – vinculadas fundamentalmente a las propuestas educativas de Jacques- y por otro, la escritura, su desplazamiento, su modo de presencia- ausencia. En la definición de “progreso” en el “Dictionnaire Général de la Politique par Maurice Block” publicado en 1884, que recorre Weinberg (1995), está presente como el adelanto hacia la perfección ideal, las conquistas del hombre sobre la naturaleza, el descubrimiento de una nueva ley, el desenvolvimiento de los principios de la razón,… (Weinberg, 1995:187). El progreso ligado al bienestar y al desarrollo de las ciencias y la industria, como lo destaca el eminente historiador argentino, se irá incorporando al lenguaje cotidiano, un lugar común que trasunta un “estilo de vida” y un “espíritu”. En América Latina, con sus diferencias, significará la “europeización” en tanto expresión ideológico129 política de la “oligarquía liberal”. La exaltación del cosmopolitismo en detrimento de la creación cultural, la adhesión a las pautas culturales y educacionales de Europa y de Estados Unidos, se articulan al denominado “desarrollo nacional” (Weinberg, 1995:216). Por otro lado, la escritura como el ‘otro’, como el logos encarnado en el cuerpo, haciendo cuerpo, aparece vinculado a ese otro rasgo que distingue el proyecto ilustrado o revolucionario (de Certeau, 1996:157), la teoría transformando la historia y la naturaleza en pos de la ‘civilización ‘ y el ‘progreso’. Bibliografía: BARTHES, Roland, 2003(1972) El Grado cero de la escritura. Seguido de Nuevos ensayos críticos, Siglo XXI, Bs. As. CARUSO, Marcelo- DUSSEL, Inés, 1997 Sobre Viajes, Exilios y Pedagogías: La experiencia americana de Amadeo Jacques. Anuario de Historia de la Educación, Nº 1 -1996/1997, Universidad Nacional de San Juan COLOMBI NICOLIA, Beatriz, 2006 El viaje y su relato, Latinoamérica revista de Estudios latinoamericanos, Nº 43, México. DE CERTEAU, Michel, 1996 La invención de lo cotidiano. 1 Artes de hacer, México, Universidad Iberoamericana 996/1997, Universidad Nacional de San Juan. 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WEINBERG, Gregorio, 1995 Modelos Educativos en la historia de América Latina, UNESCepal_PUND, A_Z editora, Bs. As. 131 A respeito de uma concepção filosófica da educação no advento da modernidade: um estudo sobre o lugar da filosofia no ensino jesuítico do século XVI Marcos Roberto de Faria Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/Brasil [email protected] Resumo O trabalho tem por objetivo investigar o “lugar” ocupado pelas disciplinas filosóficas no ensino jesuítico do século XVI. Para tanto, faz-se uso de uma documentação muito pouco explorada, pesquisada no Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma. Os documentos escolhidos para esta pesquisa são aqueles que se referem, sobretudo, às práticas educacionais dos padres da Companhia de Jesus na América portuguesa do século XVI. A partir de tal documentação, foi possível fazer alguns apontamentos a respeito do currículo e das disciplinas ministradas nos colégios jesuíticos, perceber a importância dada a cada uma destas disciplinas e verificar as exigências feitas para se cursá-las. A fim de aprofundar essas questões, recorreu-se também ao texto do jesuíta Cipriano Soares, que em 1562 escreveu a Arte de retórica, um manual utilizado nos Colégios dos jesuítas no período. Para Soares, o 132 objetivo deste manual era o de “ajudar os adolescentes a ler os doutíssimos livros de Aristóteles, de Cícero e de Quintiliano, em que se contêm as fontes da eloquência”. Ao incluir este manual, objetivou-se situar em seu tempo as temáticas filosóficas e os autores escolhidos como referência para o ensino no período, em sintonia com as “convenções retóricas” contra-reformistas. Nesse sentido, o problema de pesquisa aqui levantado pode ser apontado pelas seguintes questões: qual o “lugar” ocupado pelas disciplinas filosóficas no ensino ministrado pelos padres da Companhia de Jesus no século XVI? Pela análise da documentação estudada, é possível afirmar que a filosofia permanece ainda como “serva” da teologia neste período? A partir da análise destas fontes, que contribuições podem ser oferecidas no sentido de se conhecer melhor a concepção filosófica da educação no período? A documentação utilizada nesta pesquisa, certamente caminha na direção de avançar no esclarecimento destas questões. Justifica-se, portanto, o aprofundamento das perguntas levantadas, sobretudo porque a pesquisa, ao privilegiar o uso de fontes pouco exploradas, oferece algumas contribuições no sentido de se conhecer um pouco mais a respeito das concepções filosóficas da educação dispostas pela Contra-Reforma no decorrer do emblemático século XVI. Palavras-chave: Contra-Reforma, Jesuítas, Século XVI. Agradeço à CAPES pela bolsa de estudo e à FAPEMIG pelo apoio. 1. Introdução Certamente é possível afirmar que o século XVI é marcado por uma crise que se instalou na relação entre religião, poder e relações sociais. Como consequência, pode-se dizer que a Igreja Católica lança mão de vários instrumentos de “ordenação”, usados para “colocar tudo em ordem” 64. Dentre estes instrumentos, pode-se afirmar que a organização de uma “campanha pedagógica”, tendo como base formar para a “virtude” se constituiu, como uma de suas principais expressões. Esta “campanha”, se fez ainda por meio de um rígido controle sobre as letras e as práticas de instrução neste período. Como consequência, percebe-se o enrijecimento dos modos de prescrever o que se deveria conhecer, a forma como deveriam ser repassados os conteúdos e quem deveriam ser os sujeitos considerados “capazes” de aprender o que era “digno” de conhecimento. Cabe salientar, ademais, que a chamada Contra-Reforma apropriou-se de grandes tradições filosóficopolíticas para embasar suas práticas. Nesse sentido, o artigo considera essas tradições, que são fundamentais para a compreensão de aspectos da concepção filosófica da educação disposta pela 64 Para Hansen, “ordem” é um conceito teológico-político que regula virtude e vício (Cf. HANSEN, 2004, p. 26). É nesse sentido que esse conceito deve ser tomado aqui. 133 Contra-Reforma e sua relação com a atuação de agentes considerados a principal expressão deste movimento: os jesuítas. 2. Desenvolvimento 2.1. Sobre o lugar da filosofia na prática pedagógica jesuítica: um estudo sobre as convenções retóricas contra reformistas Na verdade a eloquência não é mais do que a sabedoria que fala com abundância. Cipriano Soares Os padres da Companhia de Jesus estavam ligados às disposições retóricas, sobretudo com o intuito de serem úteis e eficazes no trabalho missionário. Para eles, era preciso persuadir pela fala e pela escrita. Em 1562, o jesuíta Cipriano Soares escreveu sua Arte de retórica, um manual usado nos Colégios dos jesuítas no período. Na saudação que Soares fazia ao “leitor cristão”, logo no início do texto, lia-se: os nossos superiores desejavam que todas as partes da eloquência explicadas por definições, ilustradas com exemplos, fossem compendiadas num livro, com método e ordem, baseado no pensamento de Aristóteles, e não só no pensamento mas também frequentemente nas palavras de Cícero65 e Quintiliano. Julgavam que havia de ser possível, se isso se fizesse, que os discípulos, juntamente com os vulgares preceitos de Retórica, percebessem aqueles mais recônditos acerca dos lugares-comuns dos argumentos, da amplificação, do tipo de discurso e de número oratório. Esta missão, tendo-a eu tomado por vontade daqueles a quem de bom grado entreguei os planos da minha vida, reuni nestes três livros os preceitos da arte da palavra; fi-lo na medida em que as exíguas forças do meu talento o puderam realizar e conseguir, para ajudar os adolescentes a ler os doutíssimos livros de Aristóteles, de Cícero e de Quintiliano, em que se contêm as fontes da eloquência (SOARES, 1995, p. VIII – grifos meus). 65 Em seu instigante estudo, Adverse destaca que no período sobre o qual se ocupa este trabalho, Cícero aparece como “o grande restaurador da dignidade da retórica, porque ela desempenha em seu pensamento uma função muito mais importante do que no pensamento aristotélico. Para Cícero ela está longe de se reduzir a uma techné. Além do mais, não apenas em seus textos mas também em sua vida Cícero realiza a união entre eloquência e atividade cívica, ou seja, ele encarna a figura do orador. Daí é possível compreender mais uma característica do vínculo que atrela a retórica à política. A ligação entre uma e outra é, sobretudo, ética. No ideal do vir bonus vemos fundidas as imagens do orador e do político, o que significa que o problema da eloquência não pode ser dissociado do problema das virtudes e da excelência. Para sermos mais precisos, moral, política e retórica são domínios que se sobrepõe, que se complementam tanto no pensamento ciceroniano quanto no humanismo renascentista” (ADVERSE, 2009, pp. 140-1). 134 Como é possível notar pelo excerto citado, os jesuítas bebiam em fontes antigas e delas retiravam o fundamento para sua prática. Para O’Malley, o conteúdo ético dos clássicos e sua necessidade para o cultivo de um estilo agradável e persuasivo de discurso para o ministério eram a base principal com a qual os jesuítas justificavam os clássicos para si mesmos66. Argumentavam, ainda, que o estudo dos clássicos era útil para entender a Bíblia (O’MALLEY, 2004, p. 399). Hansen destacou que a retórica assumia, assim, papel fundamental na prática dos padres. Nesse sentido, o Ratio studiorum especificava que a retórica deveria dar conta de três coisas essenciais que então resumiam e normalizavam toda a educação: os preceitos, o estilo e a erudição. O autor reforça que, para ensinar estas três coisas em seus Colégios na formação dos futuros pregadores, os jesuítas recuperaram as autoridades antigas, principalmente Cícero e Quintiliano. No século XVII, a Retórica ensinada segundo essas fontes fundamenta todas as artes, que então se associam intimamente à difusão do modelo cultural do cortesão, como apologia do ideal civilizatório da discrição católica fundamentada na prudência das ações, na agudeza da dicção e na civilidade das maneiras... (HANSEN, 2001b, p. 26). Neste contexto, é pertinente destacar que Hansen discute um tema importante para a discussão deste artigo: o ideal de homem discreto visado pela educação jesuítica. Para tanto, o autor recorre à obra El discreto, de 1646, do jesuíta espanhol Baltasar Gracián, na qual se tratou da vida sob o ponto de vista da morte e dos fins últimos, prescrevendo que a educação era uma arte que preparava o discreto para morrer bem. 66 E o estudo dos clássicos era um meio para se alcançar a sabedoria. Soares, ao escrever sobre “os bens do espírito e a virtude que se vê pela ciência”, destacava que a sabedoria “é a principal de todas as virtudes, é a ciência das coisas humanas e divinas. As outras qualidades na verdade são como que servas e companheiras da sabedoria; uma delas chama-se dialética e indica e avalia as coisas que são verdadeiras e falsas pela discussão; a outra chama-se oratória. Na verdade a eloquência não é mais do que a sabedoria que fala com abundância. Esta retirada do mesmo gênero que a que se aplica à discussão é mais abundante, mais extensa e mais apropriada a incitar as paixões do espírito e a sensibilidade do vulgo. Também o estudo de todos os conhecimentos intelectuais tem a ver com este tema” (SOARES, 1995, pp. 34-5). 135 Etimologicamente, o substantivo discreto, como em ‘o discreto’, vem do particípio passado do ‘discernir’. O termo significa a qualidade intelectual do juízo capaz de penetrar no mais intrincado dos assuntos, como perspicuidade ou perspicácia, para distinguir o verdadeiro do falso e estabelecer o meio-termo justo que é próprio da prudência. A discrição relacionava-se intimamente ao talento intelectual da invenção, o engenho, definido nesse tempo como um talento natural onde convergem retórica e dialética, ou seja, capacidade lógico-analítica da avaliação dos assuntos, como juízo dialético, que se acompanha de formas sintéticas ou agudas de expressão. Como uma categoria central dos Exercícios espirituais, de Inácio de Loyola, no mundo católico dos séculos XVI e XVII a discretio significava a capacidade lógica e ética de discernimento do juízo aconselhado pela luz natural da Graça inata (HANSEN, 2002, pp. 6465 – nota). Para Hansen, o discreto, “enquanto não morre, aprende a controlar as paixões, integrando-se virtuosamente no ‘corpo místico’ da monarquia absoluta orientada pela ‘razão de Estado’. Nela, a liberdade individual é a ‘servidão livre’, doutrinada por Suárez, ou submissão à hierarquia, na qual a posição se deduz da forma de representação verossímil e decorosa aplicada às várias ocasiões. É a educação que fornece tal conhecimento e suas pragmáticas”. Desde menino, o discreto se prepararia para entrar no mundo da Corte, dedicando-se inicialmente ao estudo de línguas, com as quais se formaria e informaria. “Aprende ‘duas universais’, o latim e o espanhol, e outras, ‘singulares’, grego, italiano, francês, inglês e alemão. Depois, dedica-se à história, definida ciceroniamente como magistra vitae, mestra da vida”. A memória do discreto era definida como uma parte da prudência; esta, por sua vez, seria virtude própria de príncipes e repartida com muita avareza pela natureza. “Se a muitos deu grandes engenhos, a poucos conferiu grande prudência. Assim, a educação jesuítica ordenada pelo Ratio studiorum ensina a adquiri-la no exercício dos atos de uma educação de letras, artes e teologia a ser complementada pelo exercício das armas”. Tal educação reedita um mito heróico e faz da vida uma obra de arte (por exemplo, com os Exercícios espirituais, de Loyola) (HANSEN, 2001a, pp. 36-40). A meu ver, as questões apontadas acima são fundamentais para o estudo dos ideais educacionais do movimento contra-reformista. Vejamos, portanto, como se deu esta campanha na América portuguesa. 136 2.2. A respeito do lugar das disciplinas filosóficas na campanha pedagógica jesuítica na América portuguesa Quais eram as disciplinas ministradas nos colégios jesuíticos no período? De acordo com Leite, os Colégios procuraram adaptar-se ao Ratio studiorum gradativamente. No Brasil do início do XVII liase neles: Retórica: O 6º livro da “Eneida” de Virgílio; o 3º livro das “Odes” de Horácio; Cícero, “De Lege Agraria”, e “De Oratore”; - em grego, os “Diálogos” de Luciano. Humanidades67: “De Bello Gallico” de César, o 10º livro da “Eneida”, e a Gramática grega. 1ª Classe de Gramática68: o 5º livro da “Eneida”, a “Retórica” do P. Cipriano Soares, e o Discurso “Post Reditum”, de Cícero. 2ª Classe de Gramática: Cícero, “De Officiis”; Ovídio, “De Ponto” (Pônticas). 3ª Classe de Gramática: Ovídio, “De Tristibus”, “Cartas” de Cícero. 4ª Classe de Gramática: Cartas Familiares de Cícero e a 2ª Parte de Gramática Latina. 5ª Classe de Gramática: Rudimentos da Gramática Latina, com uma seleção das Cartas de Cícero (LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil – (HCJB), VII, pp. 151-2). O programa acima era o do Colégio de Évora, do ano de 1563. De acordo com Leite, estes estudos correspondiam aos usados sempre no Brasil. Para o autor, “o Brasil procurou adaptar-se à lei geral, mas a princípio estava mais próximo do programa do Colégio de Évora de 1563” (LEITE, HCJB, VII, p. 152). A partir, contudo, do acesso ao documento que tratava do modus parisiensis, adotado desde o nascimento da Companhia, vê-se que essa divisão em classes e a determinação específica sobre o que se ensinaria em cada uma delas era uma prática adotada por toda a Companhia e que não estava, portanto, restrita ao Colégio de Évora. Observe-se o que diz o documento: “Modo parisiense” modelo de estudos da Companhia de Jesus – Aqui cabe dizer alguma coisa sobre o “modo parisiense”. Com efeito é motivo de louvor do Padre Nadal ter aplicado e posto em prática este modo tão louvado pelos nossos, em Messina, para a finalidade da Companhia. O Modo Parisiense opõe-se ao Modo Italiano. Neste momento em Paris na vida universitária prevalece o corpo dos professores, na Itália o corpo dos estudantes; lá as leituras 67 No entender dos jesuítas, o estudo das humanidades ajudava na compreensão da Sagrada Escritura. Era uma matéria propedêutica tradicional para a filosofia que proporcionava uma introdução sólida para outros assuntos, habilitava a pessoa a expressar melhor seus pensamentos e desenvolvia os talentos em oratória que os ministérios jesuítas requeriam. Para O’Malley, os jesuítas adotaram o programa humanístico por determinadas razões, mas especialmente porque, assim como seus contemporâneos acreditavam, os estudos humanistas formavam o bom caráter, pietas (O’MALLEY, 2004, pp. 328-31). 68 Entenda-se gramática como aula de latim. 137 são feitas em Colégios agregados à universidade, aqui na própria universidade; lá grande disciplina, aqui grande liberdade dos estudantes; em Paris um caminho escolástico bem determinado a ser percorrido pelo professor e pelos estudantes, leituras do professor mais frequentes, às quais se seguem exercícios escolásticos; são constituídas classes distintas, nas quais são colocados os discípulos segundo a doutrina; para cada classe é designado um mestre próprio e a matéria a ser transmitida; os discípulos são promovidos à classe superior após rigoroso exame; o relacionamento entre o mestre e o discípulo é familiar; e aquele é solícito para com o aproveitamento deste na doutrina. Estas são algumas propriedades do modo parisiense, em virtude das quais a Companhia prefere este modo ao italiano; de fato, por este método o jovem percorre o caminho escolástico mais rápida e frutuosamente (Monumenta Paedagogica Societatis Iesu – (MPSI), Vol. 5, p. 5 - grifos meus). De acordo com O’Malley (2004, pp. 337-8), o modus parisiensis era, de fato, o polo oposto de muito do que encontravam nas escolas italianas. Era baseado num exigente programa de aulas, complementado por uma ordem de exercícios, repetições e disputas. Os estudantes de todos os níveis eram divididos em classes de acordo com um plano estabelecido de progressão do domínio de uma habilidade para o domínio da próxima. Exames determinavam quem estava pronto para passar à nova classe. Uma “classe” representava uma unidade de trabalho a ser assimilada, não um período de tempo. Portanto, os alunos mais brilhantes poderiam progredir através do currículo mais rapidamente do que outros. Para o autor, Esses princípios e técnicas, embora aplicados às “letras humanas”, desenvolveram-se em Paris como parte da tradição escolástica, com uma grande tendência à ordem, ao sistema e à “disputa”. O modus parisiensis abarcava muitas coisas, mas o que mais claramente deu ao sistema jesuíta foi um plano organizado para o progresso do estudante por meio de matérias incrivelmente complexas e uma codificação das técnicas pedagógicas designadas a provocar uma resposta ativa do professor (O’MALLEY, 2004, p. 338). As aulas e o programa das práticas religiosas formavam a espinha dorsal dos Colégios jesuítas, mas também eram importantes desde o início as peças de teatro e as celebrações acadêmicas nas quais os estudantes exibiam seus talentos e habilidades para um público mais amplo. Em Paris e em outros lugares, os primeiros jesuítas tinham aprendido que tais eventos faziam parte do exercitium requerido de estudantes e eram, portanto, uma parte integral de sua educação. Os jesuítas levaram a memória desses “espetáculos” com eles para a Itália e estavam conscientes de onde obtiveram seu modelo, porque abriram o ano acadêmico em Ferrara em 1552 com poemas latinos e discursos recitados pelos estudantes num programa “celebrado em estilo parisiense” (O’MALLEY, 2004, pp. 344-5). 138 Os jesuítas produziram uma imensa quantidade de documentação concernente a seu empreendimento educacional na medida em que se direcionavam para a edição definitiva do Ratio studiorum em 1599. Porém, de acordo com O’Malley, a grande quantidade de seus escritos referentes à educação torna difícil o trato de seus conteúdos. “Os documentos tendiam, além disso, a misturar características que hoje seriam claramente separadas em capítulos, descrições e tarefas, ‘afirmação de missão’, perfis do graduado ideal, esquemas de aula, currículos, técnicas pedagógicas e cursos” (O’MALLEY, 2004, p. 352). Bem, se as determinações concernentes ao empreendimento educacional inaciano eram complexas, penso que, na Província do Brasil, as determinações locais (do provincial, do reitor ou do visitador) eram o que realmente se praticava como norma no âmbito educacional. Mas essas determinações não estavam sistematizadas por assunto, como nos documentos oficiais da Companhia. Nesse sentido, pode-se discutir a questão da adaptação gradativa do Brasil às normas do Ratio, como foi apontado por Leite, pois os documentos oficiais, em muitos casos, eram inaplicáveis aqui, principalmente nas aldeias. Por outro lado, na Europa o caminho que se fez foi diferente. Dessa forma, de acordo com Dainville (1978), na Europa, os anos de 1600-1660 caracterizaram a fidelidade ao Ratio studiorum. Nada era praticado sem autorização. Nas palavras do autor: La première moitié du dix-septième siècle se caractérise par sa fidélité aux prescriptions du Ratio studiorum. Nulle part, semble-t-il, sés règles ne furent plus scrupuleusement observées. En 1604, le général incitait les jésuites allemands à suivre l’exemple de leurs confrères de France, “qui exactissime novam studiorum formam servant”. Ceux-ci n’allaient-ils pás jusqu’à demander au père général la nature de l’obligation attachée à la pratique de ses régles? Ils ne prennent nulle liberte qu’ils n’en aient obtenu l’autorisation (DAINVILLE, 1978, p. 190). Na Província do Brasil, no entanto, pareceu-me que as práticas se distanciavam cada vez mais das determinações de Roma e, assim, o Ratio não foi aplicado imediatamente por aqui. Tal ajustamento e adaptação, porém, não eram vistos com bons olhos por Roma. Assim, o latim era a língua obrigatória em todas as atividades; no teatro, permitia-se o uso de português em diálogos dramáticos, mas não em tragédias e comédias. Por exemplo, em 1596, o geral advertia o provincial brasileiro de que as representações teatrais não estavam sendo feitas em latim. Em 1568, a Congregação Provincial da Bahia propôs ao geral a conveniência de se estudar dialética no Colégio da Bahia. O curso de artes (filosofia e ciências) começou em 1572 [...] a teologia dogmática (ou especulativa) passou a ser ensinada em 1572 para os membros da Companhia de Jesus e, a partir de 1575, para externos. No Colégio da Bahia 139 havia quatro anos de leitura do De summa theologiae, de São Tomás de Aquino69 (HANSEN, 2001a, p. 17 – nota). Nesse sentido, certamente é possível dizer que as cartas produzidas no período foram basilares no processo de organizar a empresa educacional dos inacianos. Através das correspondências enviadas pelo geral da Ordem no período, padre Aquaviva, para o provincial do Brasil, é possível adentrar nas regras e na “pedagogia da vigilância” que determinavam a atividade dos padres como educadores. Assim, as missivas de Aquaviva eram importantes nesse ambiente no qual ele pretendia “colocar tudo em ordem”: por exemplo, o geral esclarecia, no excerto que se segue, que, dos estudos internos da Companhia, a teologia especulativa era o mais alto curso, para o qual não eram admitidos todos os estudantes. Havia uma seleção eliminatória, a começar na lógica (menor e maior), expressa para a Província do Brasil em carta de 2 de setembro de 1600 ao provincial Pero Rodrigues: Ano de Lógica: Todos o devem estudar; o seu exame só se fará uma vez, isto é, não se repete; e só serão admitidos a novo exame os rudes, mas para se convencerem da sua inaptidão para estudos maiores. Filosofia: Devem fazer este curso todos estudantes de talento mediano (“medíocre”). Teologia: Os medianos estudam-na só até ao 2º ano (Curso Breve); os de talento insigne, também o 3º e 4º anos (Curso Longo) (AQUAVIVA, HCJB, VII, p. 175). O teor e o conteúdo das cartas entre os provinciais do Brasil e o geral em Roma se me afiguram extremamente interessantes. O fragmento acima mostra que as cartas do geral procuravam deixar bem clara a posição de Roma: explicitamente rígida e, ao que me parece, contrária à adaptação às condições locais de ensino. Repare-se que a filosofia ainda figura como “serva” da teologia. Para Hansen (2001a), a intenção de Aquaviva era estabelecer “uma regra universal”. E isso fica claro quando se tem contato com o que o geral escreveu ao provincial do Brasil. Assim, Por meio da comparação de experiências e da adaptação dos métodos de ensino a novas circunstâncias, considerando as especificidades locais dos Colégios já existentes em várias partes do mundo, Aquaviva pretendia estabelecer uma regra universal, válida para todos em todos os lugares (HANSEN, 2001a, p. 15). Veja-se como aparece essa questão no excerto que se segue, no qual Aquaviva determinava “que houvesse letras humanas no Colégio”: Cópia de uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva para o Pe. Visitador Christóvão de Gouveia de 15 de Fevereiro de 84. Acerca da falta de mestres de latinidade V. Rev. [...] será bom que nela 69 Aquaviva impôs o ensino de Tomás de Aquino em 13 de dezembro de 1613 (LEITE, HCJB, VII, p. 178). 140 se hajam como se tem feito nas demas Ccasas da Comp... que haja letras humanas no Colégio da Baía, havendo alguma academia de exercícios literários desta faculdade dentro de casa... Parece que tem havido alguma facilidade em fazer os noviços do noviciado para formar nos Colégios. V. Rev. tenha em mãos que guardem suas regras exatamente... (Archivum Romanum Societatis Iesu – (ARSI), Brasilia Epistolae – (Bras.) 2, fl. 54 – grifos meus)70. No fragmento adiante transcrito, o geral se mostrava atento à organização dos estudos e dizia que os estudantes da Província do Brasil eram “fracos no saber” e por isso os estudos de teologia “especulativa” deveriam durar quatro anos. Acompanhe-se: Cópia de uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva para o Visitador Christóvão de Gouveia, de 15 de julho de 85. É muito necessário para a ajuda dessa Província que os exercícios literários se pratique nas academias e que se derrubem as dificuldades que ocorram para impedir isso, procurando fazer mestres para ela, o que ajudará promover alguns dos que agora vivem na graça do Senhor por mestre da Classe superior, por que como ele tem boa humanidade, fará também bons discípulos... Foi bem ordenar V. R. ao Pe. N. que em quatro anos acabe a especulação da teologia, porque segurar os nossos por esse tempo, onde os estudantes são tão fracos no saber e fazê-los passar a idade (ARSI, Bras. 2, fl. 56 – grifos meus). O geral também estava preocupado com as atividades realizadas em “língua vulgar”: Cópia de uma de N. P. Geral Aquaviva para o Pe. Visitador Christóvão de Gouveia em 10 de agosto de 1585. Em uma de 6 de setembro de 84 pedia V. R. que nos atos que se fazem os escolásticos como diálogos, tragédias e comédias se admita alguma coisa em língua vulgar, e me parece pelas razões que V. R. dá que nos diálogos somente se pode fazê-lo, porém em tragédias e comédias, não, por serem coisas mais escolásticas e graves (ARSI, Bras. 2, fls. 56-57). Escrevendo ao geral, Pe. Aquaviva, em 31 de dezembro de 1585, Anchieta ressaltava o número de alunos que frequentavam as aulas no Colégio da Bahia. Havia estudantes de fora: no caso, os filhos dos portugueses. Não havia, portanto, índios estudando ali. Veja-se: 70 Na transcrição dos documentos manuscritos pesquisados no ARSI, a grafia foi modernizada para facilitar a compreensão. Foram respeitadas as abreviaturas e a pontuação, sempre que possível. 141 As ocupações dos nossos com os próximos são: uma lição de teologia que ouvem dois ou três estudantes de fora, outra de casos de consciência que ouvem outros tantos e uma e outra alguns de casa, um curso de artes que ouvem dez de fora e alguns de casa, escola de ler, escrever e contar que tem até 70 rapazes filhos dos portugueses, duas classes de humanidades, na primeira aprendem 30 e na segunda 15 escolares de fora e alguns de casa (ANCHIETA, 1933, p. 415 – grifos meus). Logo em seguida, Anchieta depreciava os estudantes do Colégio da Bahia, dizendo que “tudo se leva em festas” e colocava a culpa na “terra relaxada”. Acompanhe-se: Os estudantes nesta terra, além de serem poucos, também sabem pouco, por falta dos engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terra o dá de si por ser relaxada, remissa e melancólica, e tudo se leva em festas, cantar e folgar (ANCHIETA, 1933, p. 415). Escrevendo ao provincial Pero Rodrigues, Aquaviva apertava o cerco em relação aos “abusos” nas festas que se realizavam nos colégios e não queria saber de práticas que causassem “distração e perturbação”. O geral cuidou que se colocasse em prática, uma vez mais, a “pedagogia da vigilância” contra-reformista entre os inacianos. Observe-se: De outra de N. P. de 13 de fevereiro de 96 para o Pe. Provincial Pero Rodrigues. Encarregamos V. R. da observância... no tocante às comédias e tragédias... o abuso de se fazerem estas festas... e seguiremos com... devoção... Desta maneira será melhor celebrada a festa do que com comédias e tragédias em que há tanta distração e perturbação (ARSI, Bras. 2, fl. 91 – grifos meus). No ano seguinte, escrevendo novamente a Rodrigues, o geral concedeu licença para se dar grau de mestre e demonstrou preocupação com a formação dos futuros operários da vinha: De uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva de 4 de outubro de 97 para o Pe. Provincial Pero Rodrigues. Damos licença a V. R. para se dar o grau de mestre em Artes... Rogamos muito que V. R. haja no 3º ano de probación porque esperamos que com essa boa ajuda cresçam em espírito e se formem nas sólidas virtudes para serem fiéis operários, como convém (ARSI, Bras. 2, fl. 130). A intenção do geral era estabelecer uma fórmula de educação que tratasse da doutrina em questões especulativas e prescrevesse o modo de tratar as letras, as artes e a teologia na prática. Como parte desse esforço de uniformização nasceu o Ratio studiorum. Nesse sentido, para Dainville (1978), “On peut dire en général, precise le Ratio studiorum de 1599, qui résume et normalise la pensée du siècle, qu’elle comprend essentiellement trois choses: les préceptes, le style et l’érudition” (DAINVILLE, 142 1978, p. 186). Hansen concordou com Dainville, especificando que alguns traços que tipificavam a Companhia de Jesus desde a sua fundação foram mantidos e sistematizados no Ratio studiorum de 1599, caracterizando o ensino ministrado no século XVII (HANSEN, 2001a, p. 17). O autor destacou, por conseguinte, a “ortodoxia” do Ratio, quando ressaltou o fato de o Ratio studiorum ser um regulamento que inclui programaticamente os 50 anos precedentes de experiência pedagógica da Ordem, não rompendo com a tradição do seu ensino, mas selecionando o que nela era considerado o melhor. A Companhia é uma ordem eminentemente não contemplativa e também o Ratio studiorum de 1599 orienta o ensino das letras, artes e teologia no sentido de desenvolver as capacidades de assimilar, transferir e aplicar conhecimentos como intervenção nas questões do presente. Na situação contrareformista do século XVII, tal intervenção não podia ser dissociada da prática das virtudes cristãs. Assim, o sentido, por assim dizer, “final”’ das normas e práticas do Ratio studiorum de 1599 é o da ortodoxia, seguindo-se com a máxima fidelidade a tradição e os textos canônicos autorizados pela Igreja a partir do Concílio de Trento (HANSEN, 2001a, p.18). O Ratio constituiu-se, pois, em uma estratégia romana de uniformizar as práticas e unir o “corpo disperso” que crescia cada vez mais. A intenção de Roma era a de constituir uma regra que valesse para todos, como deixou claro o geral Aquaviva. É importante frisar, contudo, que, não obstante as determinações “unificadoras” de Roma, a Província do Brasil não abriu mão de reagir a essas ordens. Na carta que se segue, Rodrigues foi enfático ao apontar as condições da Província, que em nada se comparam ao que queria Roma. Observe-se que o provincial salientava a escassez de cursos e de estudantes: que pode o Pe. Provincial dar grau de doutor. Parece-me coisa escusada e imprópria. Escusado parece este grau aos nossos, como o seja até agora, não havendo as escolas crescido em número de vocações. Impróprio parece dar grau em estudos que não são Universidade. Visto primeiro se convém dar este grau a estudos, aonde não há mais que cinco lições ordinárias e uma extraordinária, a saber: uma escola de meninos, os de latim, onde [se alega a ser?] princípios de retórica, uma de casos de consciência, uma de teologia há 15 estudantes, cinco de casa e dez de fora. A extraordinária é um curso de artes de quatro em quatro anos... (ARSI, Bras. 15 – II, fl. 407v – grifos meus). Para Rodrigues, uma das questões que não deviam ser deixadas de lado era a condição da terra, que para ele era “frouxa”. Atente-se para a solução do problema – uma “gota de vinho”: 143 A terra, como está em zona tórrida, é frouxa e os mantimentos de pouca substância. Até não se comer pão, senão farinha de raízes e se... não se dar uma gota de vinho a pessoas que trabalham e têm trabalhado de 50, 60 anos ou mais de idade, com razão o sentem... Da Bahia, 20 de dezembro de 92. Pero Rodriguez (ARSI, Bras. 15 – II, fl. 408 – grifos meus). O mesmo Rodrigues, porém, escrevendo da Bahia em 1605 – portanto, ocupando o cargo de provincial – falava sobre os graus acadêmicos que eram conferidos no Colégio daquela cidade. O jesuíta parecia ter mudado de opinião e agora elogiava os estudantes da Província. Porém, como se trata de uma carta “editada” por Leite, não é possível afirmar se o historiador “deixou de fora” algumas lamentações do provincial. Confira-se: há estudos públicos das faculdades que os padres costumam ensinar que são ler, escrever, contar, lições de humanidades, curso em que se graduam em mestre em artes, e teologia moral e especulativa, donde saem muitos bons filósofos, artistas e pregadores (RODRIGUES, HCJB, I, p. 100). 3. Considerações Finais Para finalizar, ao que me pareceu, o ensino jesuítico passava por um processo de reorganização e de adaptação às condições da Colônia nesse período. Como foi possível constatar, alguns religiosos propuseram que se suspendesse o “curso de artes”, a ser substituído pelo estudo da língua da terra, interferindo, assim, na formação dos que se destinavam à carreira eclesiástica. É possível afirmar ainda que a “campanha pedagógica contra-reformista” colocou em cena a “pedagogia da vigilância”, por meio de um rígido controle sobre as letras e as práticas de instrução neste período. Creio que, quando se instituiu essa rigidez, o que aconteceu foi um enrijecimento dos modos de prescrever o que se deveria conhecer, a forma como deveriam ser repassados os conteúdos e quem deveriam ser os sujeitos considerados “capazes” de aprender o que era “digno” de conhecimento. Como foi possível notar, fica clara também a ênfase na formação para a virtude. Formar o homem virtuoso, que se prepara dignamente para a morte era uma meta fundamental a ser alcançada. Para tanto, as disciplinas curriculares regulavam os “apetites” e os “vícios”, a fim de estabelecer a “ordem” e conduzir o “discreto” à formação integral, capaz de produzir “corpos dóceis” para o Estado e para a Igreja. O meio para se chegar a tanto, era a educação. A intenção deste trabalho foi, pois, aproximar o leitor desses fundamentos e da ambiência que provocou e tornou possíveis os embates e as bases sobre as quais se fundavam as práticas educacionais do período. 144 4. Referências bibliográficas ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. ANCHIETA, José. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Rio de Janeiro: Biblioteca de Cultura Nacional, 1933. Col. Afrânio Peixoto da Academia Brasileira de Letras. DAINVILLE, François de. L’éducation des jésuites (XVI-XVIII siècles). Paris: Les Éditions de Minuit, 1978. 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Silvério Augusto Benedito (mimeog.). Parte integrante da dissertação de mestrado em literaturas clássicas – área de literatura latina, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, 1995. 145 5. Fontes consultadas Archivum Romanum Societatis Iesu – (ARSI): Brasilia Epistolae – (Bras.). MONUMENTA PAEDAGOGICA SOCIETATIS IESU – (MPSI). VOLUME V – Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (1586, 1591, 1599). Romae: Institutum Historicum Societatis Iesu, Via dei Penitenzieri, 20. Platão e o debate educativo sobre as concepções de paideia na Grécia clássica Lidia Maria Rodrigo71 A noção de educação como paideia na Grécia antiga remete à formação integral do indivíduo com base em uma concepção ideal de homem, ideal cuja realização histórica, no período clássico (séculos V e IV a.C.), dependeu, em ampla medida, da relação do homem com a polis, visando, sobretudo, a formação do cidadão. A polissemia do termo paideia, continha em si, simultaneamente, todos os sentidos com que usualmente costuma ser traduzido: educação, cultura, tradição, civilização, etc. Na época clássica da história grega o termo abarcava concepções divergentes sobre pontos específicos da formação do homem grego, tanto em relação aos conteúdos quando aos procedimentos inerentes a esta formação. Ao menos três concepções coexistiram na Grécia clássica, possuindo entre si algumas afinidades e muitas divergências: a da poesia, a da sofística e a da filosofia socrático-platônica. A afirmação da filosofia como paideia deu-se por intermédio do pensamento socrático-platônico: sem negar seu caráter especulativo, a filosofia passou a ser concebida também como um saber formador de homens, como guia da educação grega. Na construção de sua paideia filosófica Platão teve de entrar em discussão com as outras duas outras concepções que também tinham pretensões educativas: a poesia e a sofística. Assim, a 71 Professora no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP (Brasil). 146 contestação de Platão às pretensões educativas da paideia tradicional veiculada pela poesia homérica e da paidéia dos sofistas abriu caminho para a construção da hegemonia da paideia filosófica. A paideia inerente à poesia homérica A poesia dotada de caráter educativo constituiu um traço peculiar à cultura grega, em cuja história a oralidade foi predominante. As culturas baseadas em formas orais de comunicação enfrentam uma dificuldade: como preservar a memória social do povo da qual depende, afinal, sua identidade cultural? A fala ritmada da poesia forneceu aos gregos uma solução, na medida em que permitia elaboração de um discurso propício à preservação da memória oral. No século VIII a. C., ainda no período arcaico, Homero foi responsável pelos primeiros registros por escrito dessa tradição oral, produzindo as duas primeiras obras da literatura ocidental: a Ilíada e Odisseia. Esses poemas, juntamente com as narrativas épicas, continham um conjunto de ensinamentos, desde valores éticos e modelos de comportamento humano, até conhecimentos técnicos sobre culinária, medicina, confecção de artefatos, etc. Portanto, mesclada à história épica e associada a ela, uma formação ou educação se fazia presente. A poesia é a mais antiga paideia grega; desde a época micênica até o final do período arcaico os poetas gozaram de grande poder na sociedade. A palavra poética era vista como de inspiração divina; por isso sua veracidade era estabelecida de imediato, por meio do mero enunciado, sem necessidade de demonstração nem possibilidade de contestação. Ao poeta competia dupla tarefa: celebrar os mortais, isto é, as façanhas dos heróis e dos homens corajosos, e também os imortais, quer dizer, contar a história dos deuses. O louvor aos atos heróicos tornou possível instituir uma forma humana de imortalidade, fundada na glória e perpetuação da memória. Graças à palavra do poeta os heróis poderiam gozar do privilégio de sobrepujar a morte física e o esquecimento, permanecendo vivos na memória da posteridade. Assim, o poeta acabava tendo o poder de decidir quais os homens que permaneceriam na memória das gerações futuras e quais os que seriam esquecidos, sendo o esquecimento a pior forma de censura por atos covardes ou reprováveis. 147 Os ensinamentos, preceitos e prescrições contidos na poesia eram socializados por meio da recitação oral, feita pelos pais no âmbito doméstico, e por profissionais, aedos e rapsodos, nos eventos e festividades públicas. A memorização de trechos poéticos funcionava como instrumento de uma educação pautada pela mimese, na medida em que as ações e comportamentos exemplares de heróis e deuses eram tomados como paradigmas ou modelos a serem imitados. Portanto, a função estética da poesia na antiguidade – despertar prazer, divertindo e comovendo os homens - estava estreitamente associada à sua função moral e educativa, isto é, propiciar a formação de valores e orientar comportamentos e procedimentos tanto que Homero era considerado como o grande educador de toda Grécia. Durante muitos séculos – quer dizer, do período micênico – sec. XV a XIII a.C., passando pelo período arcaico, e chegando até o período clássico - a educação grega esteve a cargo da poesia exclusivamente. Esse quadro só se modificou com o surgimento dos sofistas. A paideia sofística Os sofistas são mais importantes para a história da educação do que para a história da filosofia; afinal, a sofística foi um movimento essencialmente educativo que teve em Protágoras e Górgias seus principais expoentes. A paideia sofística, contemporânea da polis, surgiu no período clássico, centrada no ensino da retórica. Retórica designa a arte de persuadir pelo discurso, ou seja, convencer alguém a acreditar em alguma coisa. Os sofistas fizeram da retórica o objeto de uma educação voltada para a cultura geral e política; o ensino que ministravam, segundo eles próprios, tinha como objetivo capacitar os homens a bem governar suas casas e suas cidades. Esta modalidade de ensino adquiriu uma importância fundamental com o surgimento da polis democrática, uma vez que as decisões sobre a vida da cidade eram tomadas nas assembléias realizadas em praça pública. Na democracia grega, a participação política não se fazia por representação, mas de forma direta. O reconhecimento da excelência dos indivíduos dependia, sobretudo, de suas qualidades de orador: vencia nas assembléias quem fosse bom orador e soubesse argumentar de modo convincente para persuadir os cidadãos e obter os seus votos. 148 O exercício competente da fala, a capacidade de convencer, de persuadir, tornou-se fonte de poder e condição para atuar na política. Quem tivesse ambições políticas tinha de aprender a fazer um uso hábil da palavra, o que criou uma demanda pelos serviços dos sofistas que, como mestres de retórica, ofereciam esses ensinamentos para todos aqueles que estivessem dispostos a pagar por suas lições. Seu trabalho educativo veio, portanto, suprir uma necessidade social e política, o que significa dizer que as exigências a que procuravam responder não eram de ordem teórica e científica, mas de ordem prática. Os sofistas estavam menos preocupados em produzir ciência do que em exercer influência no mundo em que viviam: a sofística é menos uma doutrina do que um saber prático, ligado à vida política e à arte de ensinar. Com a sofística, a possibilidade de adquirir cultura política estava, em princípio, aberta a todos os cidadãos. Contudo, mesmo ampliando o raio da ação educativa em relação ao período aristocrático, a paideia sofística não tinha como finalidade a educação do povo, mas a dos futuros dirigentes políticos. Werner Jaeger (1986; p. 236) chega a afirmar que a atuação dos sofistas “no fundo não era senão uma nova forma de educação dos nobres”. O autor quer dizer que, mesmo com as mudanças ocorridas, ainda se mantinha uma postura aristocrática sobre a educação, na medida em que permanecia restrita a um grupo de privilegiados. A crítica de Platão às concepções poéticas e sofísticas a) Crítica à paideia poética Embora muitos pensadores da Grécia antiga tenham endereçado críticas à poesia, o maior ataque à tradição poética foi levado a cabo por Platão, especialmente no diálogo A República. As censuras do autor à poesia, contudo, não eram endereçadas ao pensamento mítico propriamente dito, mas ao modo pelo qual os poetas retratavam os deuses, atribuindolhes atos e comportamentos condenáveis como roubo traição, adultério, excessos na comida, na bebida, no sexo, assim como posturas indignas e inadequadas a seres dessa categoria. Do ponto de vista educativo, a crítica platônica visava a pedagogia implícita nos poemas homéricos, baseada nos conceitos de paradigma (modelo) e de mimesis (imitação). As ações exemplares dos deuses e dos heróis deveriam oferecer um modelo ideal de virtude 149 (arete) a ser seguido ou imitado pelos homens. Nos Livros II e III da República, Platão argumenta que os retratos poéticos dos deuses e dos heróis ofereciam maus exemplos: as fraquezas e iniquidades desses seres superiores poderiam ser usadas pelos homens como desculpa para justificar seus próprios comportamentos condenáveis, atenuando a responsabilidade pelos seus atos. Na sociedade grega o poeta era visto como portador de um saber universal. Platão coloca em questão tal representação, perguntando se Homero e os demais poetas possuíam efetivamente um verdadeiro conhecimento da virtude política, isto é, da arte de administrar, legislar, combater, ou eram meros produtores de imagens dessas coisas, simples imitadores. Pondera que os poetas jamais foram administradores de cidades, nem legisladores, nem comandaram nenhuma batalha, e que “a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade”. (Rep., 600e) Como o imitador não possuía nenhum conhecimento válido sobre aquilo que imitava, limitava-se a ostentar a falsa aparência de um saber universal por meio de estratégias que iludiam e enganavam. Em suma, sob a ótica filosófica de Platão, o poeta não passava de um charlatão. As críticas contundentes dirigidas à palavra dos poetas deviam-se à hegemonia que estes exerciam sobre a formação dos cidadãos, uma vez que os poemas funcionavam como veículo de educação e transmissão de parâmetros culturais. Do ponto de vista de Platão, a poesia não conduzia ao desenvolvimento das virtudes essenciais à boa formação das diferentes classes de cidadãos. Na República, obra em que se desenvolve o pensamento do autor sobre o assunto, o exame crítico da poesia é feito do ponto de vista de duas classes de cidadãos: os militares, nos Livros II e III, e os governantes, no Livro X. Nos dois casos, a questão recebe soluções diferenciadas, pois à medida que se ascende nos níveis de conhecimento e de educação, a poesia vai perdendo sentido. Na educação dos guerreiros, a poesia ainda é mantida, embora expurgada de alguns de seus conteúdos e formas; em relação à educação do governante, entretanto, ela é inteiramente banida. Com base em parâmetros filosóficos, na República o questionamento à fragilidade educativa dos discursos poéticos sobre os mitos compreende, essencialmente, três aspectos: 150 - moral: deuses e heróis são retratados com um comportamento imoral e impiedoso, indigno de ser tomado como paradigma ou modelo de virtude; - ontológico: os poetas, assim como os pintores, não imitam a realidade, mas apenas um reflexo sensível dela, permanecendo no nível da mera aparência; - epistemológico: o mito é mera narrativa, sem nenhuma argumentação, não operando a transição da doxa para a episteme. b) Crítica à paideia sofística A retórica, como arte do discurso ensinada pelos sofistas, foi submetida a um exame crítico no diálogo Górgias. Segundo Platão, a retórica sofística preocupa-se com a persuasão e não com a verdade. A oposição entre saber e persuasão tem a intenção de evidenciar que o discurso sofístico não tem compromisso com o verdadeiro conhecimento; a aparência de saber é suficiente para persuadir a massa ignorante, com base em artifícios retóricos que apelam para uma aparência sedutora, em lugar de procurar convencer pela verdade. A retórica sofística, visando a aprovação e o aplauso popular, é interpretada como um discurso demagógico. Do ponto de vista platônico não se pode dizer que a retórica ensinada pelos sofistas constituía autêntica paideia política, uma vez que não visava tornar os homens melhores, mas apenas agradá-los. Ao discurso retórico, que visava satisfazer o demo, isto é, o povo ateniense, dizendo apenas o que ele queria ouvir e evitando contrariá-lo, Platão opõe outra forma de retórica, praticada pelo filósofo, que buscava, sobretudo, a formulação de um discurso coerente, ainda que fosse contra a opinião do demo. Haveria, assim, duas formas de retórica política: a primeira, sendo pura lisonja, é uma retórica demagógica; a segunda, identificada com a filosofia, é uma retórica nobre, porque consiste “no esforço de tornar as almas dos cidadãos tão boas quanto possível, e no empenho persistente de declarar o que é o melhor, independentemente de se mostrar mais ou menos prazeirosa aos ouvintes.” (Górg., 503a) Por outro lado, a oposição entre saber e persuasão tem a intenção de evidenciar que o discurso sofístico não tinha compromisso com o verdadeiro conhecimento; a aparência de saber era suficiente para persuadir a massa ignorante. 151 Também em relação à virtude (arete) Platão manifesta-se contrário à direção proposta pelo ensino sofístico, voltado para a prática (techne) e a ação política. Do ponto de vista socrático, a excelência humana não reside nem na sabedoria técnica nem no êxito social e político; ela se define, sobretudo, pelo reconhecimento do valor normativo da razão sobre a conduta humana. Outro aspecto contestado no pensamento dos sofistas foi o relativismo do conhecimento, defendido particularmente por Protágoras, com a sua teoria do “homem medida”, usualmente condensado na afirmação de que o homem é a medida de todas as coisas; das que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são. Essa teoria converte a subjetividade humana em critério de verdade. Como conseqüência, não existe uma verdade universal, válida para todos, mas apenas uma multidão de opiniões particulares segundo o ponto de vista de cada indivíduo. Esse relativismo é inteiramente contrário à estabilidade do conhecimento como expressão das essências, que caracteriza a verdade universal sob a ótica de Platão. A visão pejorativa sobre os sofistas, que marcou o pensamento ocidental, deveu-se principalmente à interpretação de Platão. Conforme esta visão, o sofista não se ocupa do conhecimento do ser, mas da aparência; em lugar de buscar a ciência (episteme), ele se contenta com a opinião (doxa). Do ponto de vista ético-político, não visa a sabedoria e a virtude, mas o poder pessoal e o dinheiro. Por isso, a sofística não passa de pseudo-sabedoria, ou uma sabedoria das aparências. Há outras interpretações que defendem uma visão positiva dos sofistas como divulgadores da cultura grega para círculos mais amplos que os tradicionais, fundadores da pedagogia democrática enquanto educação do cidadão para participar da vida política e defensores do livre debate de opiniões. A interpretação platônica da paideia sofística ressalta, sobretudo, seus traços negativos; a possibilidade de uma retórica do verdadeiro, que não fique submissa ao critério demagógico da aprovação popular, deve ser buscada em outra instância: na dialética filosófica. Afirmação da superioridade da paideia filosófica 152 A paideia socrático-platônica também se desenvolveu no período clássico, distinguindo-se intencionalmente das duas anteriores. Simultaneamente à contestação feita por Platão às pretensões educativas da poesia e da sofística, há a emergência do seu próprio projeto político-pedagógico, fundamentado na filosofia, e reivindicando para esta última a função de orientadora da educação. A filosofia ocidental nasceu na Grécia, no período arcaico, entre o final do século VII a.C. e o início do VI, alcançando o auge de seu desenvolvimento no período clássico - séculos V e IV a.C. -, com o pensamento socrático-platônico. O surgimento da filosofia foi responsável pela substituição das soluções mitológicas por respostas racionais, construindo teorias sobre os fenômenos naturais que trocavam as explicações baseadas nas divindades pela ação de leis naturais e pela interação entre elementos primordiais como água, terra, fogo e ar. O discurso filosófico deixou os deuses de fora, para justificar-se com base na argumentação e coerência lógica. A filosofia distinguiu-se da poesia por ser uma fala essencialmente humana, que deveria justificar-se pelo encadeamento das idéias e pela articulação entre premissa e conclusão. O discurso poético, sendo de inspiração, divina, não era da responsabilidade pessoal do poeta, que não estava obrigado a apresentar as razões do que dizia, nem demonstrar sua veracidade. O filósofo, este sim, deve apresentar as razões das afirmações que faz. Por outro lado, a filosofia diferenciou-se da retórica, porque o conteúdo desta última constitui uma fala particularizada, que trata das questões pertinentes ao mundo da política e diz respeito aos problemas da cidade. A filosofia, por sua vez, aborda questões universais, sobre os princípios e a significação do real e da existência humana. Sócrates defendeu que todo comportamento humano, inclusive no âmbito político, tinha de ser orientado racionalmente e julgado por normas éticas intransigentes. Platão adotou e desenvolveu estes princípios, procurando levá-los o mais longe possível em sua filosofia da educação. Para ele, como para todos os gregos do período clássico, a educação era inseparável da vida do cidadão na polis; contudo ele concebeu essa formação política de modo bem diferente dos sofistas. Para Platão a educação deveria estar fundamentada na filosofia, o único 153 saber apto a promover a formação de um tipo superior de cidadão, quer dizer, capaz de ter uma conduta racional e formular juízos morais corretos. Conhecimento fundamentado na razão aliado à excelência ética, eis o alicerce da formação humana segundo a paideia socrático-platônica. Em nome desses ideais educativos, Platão contestou as pretensões educativas da poesia e da sofística, movido pela intenção de conferir à filosofia um lugar privilegiado entre as potências educativas do seu tempo. À aparência de saber oferecida pelo ensinamento dos poetas e dos sofistas, ele contrapôs a verdade superior da filosofia, elaborada segundo exigências estritamente racionais e éticas, com base nas quais reivindicou para a filosofia a função de orientadora da educação. A paideia platônica, enquanto educação da parte racional da alma supõe, então, um itinerário longo e difícil de ascensão da alma do mundo sensível ao mundo inteligível, degrau por degrau, até o ponto mais alto do conhecimento – a apreensão das essências inteligíveis - e, simultaneamente, um percurso em direção ao aprimoramento ético do homem, de modo a alcançar a instância suprema no mundo das idéias: a idéia do bem. Este processo de educação da alma encontra-se detalhado no Livro VII da República. A vocação pedagógica da filosofia platônica, por meio da qual ela se configurou como saber formador de homens, levou o autor a revestir sua teoria do conhecimento de um sentido educativo, convertendo-a em alicerce de um processo formativo cujas etapas vão das formas inferiores e mais simples de conhecimento até as formas superiores. Em Platão, a crítica à insuficiência educativa da poética e da sofística caminha paralelamente à construção de uma paideia filosófica que nada mais é do que a afirmação da sua própria filosofia como paideia. Como digno continuador da perspectiva socrática, ele reivindicou para a filosofia a função de orientadora suprema na formação de homens. Bibliografia - Detienne, Marcel. (s/d). Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro, Zahar. - Guthrie, W. K. C. (1995). Os Sofistas. São Paulo: Paulus. 154 - Jaeger, Werner. (1986). Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. - Platão. (1993). A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 7ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. - _____. (2007a). Diálogos I: Teeteto, Sofista, Protágoras. Bauru, SP: EDIPRO. - _____. (2007b). Diálogos II: Górgias, Eutidemo, Hípias Maior, Hípias Menor. Bauru, SP: EDIPRO. - Reboul, Olivier. (1998). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes. - Rodrigo, Lidia Maria. (2006). Platão contra as pretensões da poesia homérica. In: Educação & Sociedade. Campinas, vol 27, nº 95, maio/ago. - Vernant, Jean-Pierre. (1990). Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra. La educación de las mujeres en la obra de Flora Tristán Carolina Clavero White72 RESUMEN Los historiadores señalan el surgimiento del feminismo hacia mediados del siglo XIX en las sociedades occidentales inmersas en las transformaciones de la revolución industrial y la organización republicana de gobierno. Si bien durante los siglos XVII y XVIII, ya se articularon discursos por la igualdad de los sexos, es en el período comprendido entre la Revolución Francesa (1789) y el fracaso de la revolución liberal de 1848 en Francia donde emergen importantes ideas revolucionarias y experimentos con nuevas concepciones de la 72 Docente de Filosofía egresada del Instituto de Profesores Artigas de Montevideo. Maestranda en Género, Sociedad y Políticas Públicas por PRIGEPP-FLACSO, Argentina. 155 sociedad. Es en ese mismo período donde ubicamos la vida y el pensamiento de una de las primeras feministas- socialista: Flora Tristán (1803- 1844). La autora llega asombrosamente para su época a realizar un paralelismo novedoso entre la situación de la mujer y de la clase obrera. Sostiene que ambos han estado oprimidos por unos mismos explotadores, quienes los han considerado inferiores hasta el punto de que, por las condiciones en que se les ha sumido, han llegado a serlo realmente. En vías de la emancipación intentó convencer a los obreros varones de la ventaja que sería para él y sus hijos que la mujer gozara de los mismos derechos que los hombres. Y para lograr su emancipación, proclamó estrategias basadas en la educación. Más allá de que la elaboración teórica de Tristán se enfrenta a problemas y ambigüedades y no se escapa del utopismo, la lectura de su obra nos permite comprender una de las tantas posiciones en que fue concebida la identidad social e individual de la mujer, y constatar los aportes y la novedad que conlleva a las épocas siguientes. Nuestro trabajo pretende entonces, mostrar la función que Flora Tristán le otorga a la educación para el logro de la emancipación de la mujer, la igualdad entre varones y mujeres y la liberación del proletariado europeo. Por otra parte, se busca visibilizar el pensamiento de las mujeres, aquel que la historia de la filosofía ha ocultado. Nos basamos en el análisis de cuatro obras: Peregrinaciones de una paria (1838); Paseos en Londres (1840); La Unión Obrera (1843) y La emancipación de la Mujer o el testamento de la paria (1843, obra póstuma). 1. La herida fundadora La vida de Flora Tristán transcurre entre 1803 y 1844. Nacida en Francia, se crió en Vaugirard hasta los 4 años, edad en que murió su padre sin haber legalizado el matrimonio. Esta situación obligó a su madre a trasladarse con sus hijos a un barrio pobre de París. Frente a la situación de pobreza, ingresó con 15 años a trabajar a un taller de pintura y grabado. A los 17 se casó con el propietario del taller André Chazal, con quien tuvo tres hijos, entre ellos Aline, futura madre del pintor Paul Gauguin. En 1825 se separó de su esposo, situación que le acarreó amenazas, agresiones y pleitos judiciales a lo largo de toda su vida. Lo relatado anteriormente pretende resaltar su condición de “ilegitimidad”, el desgarro inicial o la falla fundadora que - desde la perspectiva sartreana- será anunciador del programa que desarrollará el resto de su vida.73 El objeto de reconstrucción es su condición de paria: por ser hija ilegítima y mujer 73 Dosse, François “La apuesta biográfica. Escribir una vida” Valencia, PUV, 2007. 230-231 156 separada y con hijos74 en una sociedad que todavía no aceptaba el divorcio. Tristán comprende que las mujeres viven en una situación de opresión a cusa de las costumbres sociales que se trasmiten a través de una educación inapropiada y por las leyes, portadoras de prejuicios. “Hasta ahora, la mujer no ha contado para nada en las sociedades humanas. ¿Cuál ha sido el resultado de esto? Que el sacerdote, el legislador, el filósofo, la han tratado como verdadera paria. La mujer (la mitad de la humanidad) ha sido echada de la Iglesia, de la ley, de la sociedad”75 Esta argumentación, nunca demostrada, ha dejado a las mujeres sin educación durante miles de años. Simplemente “…se la ha educado para ser una graciosa muñeca y una esclava destinada a distraer a su dueño y a servirle” 76 “Basta con quedarse unos meses en Inglaterra, para darse cuenta de la inteligencia de y la sensibilidad de las mujeres”77 Pero por desgracia, estas cualidades han sido esterilizadas por el sistema de educación inglés y por el despotismo masculino. “La educación se halla dominada por la preocupación por las apariencias. Se proscriben ciertas palabras y se las oculta a la memoria de las jóvenes las escenas de violación, de amor adúltero, de prostitución y orgía” El trasfondo es de “incultura y aburrimiento”. Una vez casada, la mujer queda confinada a la casa. “Es una cosa, un mueble más. El marido ordena, va a sus asuntos, mantiene a su mujer alejada de sus decisiones, dilapida la dote sin que la esposa pueda defender sus intereses”.78 Concluye- realizando un razonamiento por analogía con la condición de los varones en el antiguo régimen feudal– que todas las mujeres sufren la misma exclusión: “Obreros, en 1791, vuestros padres proclamaron la mortal declaración de los DERECHOS DEL HOMBRE, y a esta solemne declaración debéis el ser hoy en día hombres libres e iguales en derechos frente a la ley. ¡Honor a vuestros padres por esta gran obra! Pero, proletarios, os queda a vosotros, hombres de 1843, una obra no menor que llevar a cabo. A vuestra vez liberad a las últimas esclavas que aún quedan en la sociedad francesa; proclamad los DERECHOS DE LA MUJER (…)”79 74 Según Yolanda Marco “una frase de su tío materno, el comandante Laisney, al enterarse de que ha abandonado a su marido (“Una esposa que huye del domicilio conyugal y se lleva los frutos del matrimonio, no tiene lugar en la sociedad: es una paria”), le sugiere el calificativo exacto para sí misma: de ahora en adelante, Flora sabe exactamente lo que es ser una mujer, una paria”. Yolanda Marco, Introducción en Flora Tristán, Unión Obrera. España, Ed. Fontamara, 1977. 17. 75 Unión Obrera, p.110 76 Unión Obrera, p.115. La cursiva es de la autora. 77 Paseos en Londres, p. 137- 146. 78 Idem. 79 Unión Obrera, p. 132 157 Tristán demuestra, por la vía de los hechos que con dicha declaración la “plebe” pasó a llamarse “pueblo”, y “los villanos y los patanes” a llamarse “ciudadanos”. El hombre quedó así “muy sorprendido al comprender que iba a gozar de derechos civiles, políticos y sociales, y que, finalmente se convertiría en igual de su antiguo señor y dueño.” 80 De allí que se pueda esperar lo mismo para las mujeres: basta una legislación libre de prejuicios que las iguale a los varones, acompañada de una “educación racional, sólida, severa”, que le permita “comprender bien su dignidad de ser y tener conciencia de su valor como miembro de la sociedad”81. 2. El programa y la propuesta Flora Tristán no tuvo ningún tipo de educación sistemática. La educación le fue vedada por su género y por su clase. Sus conocimientos los adquirió por sí misma, a través de lecturas sobre literatura romántica, novela y teatro. En 1825 lee la obra de la irlandesa Mary Wollstonecraft: Vindicación de los derechos de la mujer. En ella encuentra un modelo femenino e ideas que después desarrollará. Hacia 1829, año en el que conoce al saint-simoniano Enfantin, toma contacto con las escuelas de pensadores socialistas y orienta sus lecturas casi exclusivamente hacia la literatura proletaria, obras escritas por los obreros, que la influyeron decisivamente.82 En la Unión Obrera, Tristán sistematiza y da cuenta del conocimiento que tiene de las obras de los intelectuales precedentes como Saint- Simón, Fourier y Owen83, e incluso de obras escritas por otros obreros como Agricol Perdiguier, Pierre Moreau o Gosset. Reconoce que sus autores son “hombres inteligentes y conscientes, que conocen perfectamente el tema del que hablan”84, pero sus propuestas apuntan a “pequeñas reformas particulares”85. Nuestra autora cree que todas ellas sufren del mismo olvido: “Sí, la MISERIA: porque a causa de la miseria la clase obrera se ve condenada a perpetuidad a pudrirse en la ignorancia”86 Es una paria consciente de su situación y se siente llamada a asumir ese espacio y poner en práctica lo vedado a otros o lo que otros todavía no han podido hacer. Para ella esto tiene un carácter de misión87: “Me he dicho a mi misma que ha llegado la hora de actuar”- y esa misión consiste en: “ir yo misma, 80 Unión Obrera, p. 112-113. Idem. 82 Marco. Yolanda. “Introducción en Flora Tristán, Unión Obrera. España, Ed. Fontamara, 1977. 17-18. 81 83 “Desde hace veinticinco años, los hombres más inteligentes y más abnegados han consagrado su vida a la defensa de vuestra sagrada causa; ellos, con sus escritos, discursos, informes, memorias, encuestas, estadísticas, han señalado, han constatado, han demostrado al Gobierno y a los ricos que la clase obrera, en el actual estado de cosas, se encuentra material y moralmente, en una situación intolerables de miseria y de dolor” en Unión Obrera, p. 71. La cursiva es de la autora. 84 Unión Obrera, p. 79 Idem. p, 80 86 Idem. p, 80-81. 87 Se inspira en los Apóstoloes de Cristo. 85 158 con mi proyecto de unión en la mano, de ciudad en ciudad, de un extremo a otro de Francia, a hablar a los obreros que no saben leer y a los que no tiene tiempo de leer.”88 Tristán considera que la mayoría de las obras han tenido como protagonistas a los grandes actores de del orden social. A diferencia de ellos, se centra desde su primera trabajo – Peregrinaciones de una paria89 - en las personas comunes de pueblo90. Lo que escribe de ellos son memorias, reportes, relatos, convirtiéndose así en una de las primeras reporteras de la miseria91 y por lo tanto en una cabal conocedora de la realidad social de los sectores más marginados. La reflexión de Tristán es producto de una praxis. El carácter de la investigación que llevó adelante fue en la calle, en los talleres, en las fábricas, mirando las cosas objetivamente, examinándola por ella misma, aprendiendo las técnicas, pidiendo cifras, informándose constantemente92 . Su obra Paseos en Londres de 1840 – resultado de varias visitas a Inglaterra, en diferentes períodos, y con diferentes perspectivas de la realidad social93- es una clara manifestación de este método: Tristán camina por las calles, observa el clima, el carácter de los londinenses, visita teatros, barrios, clubes, y entra a los lugares más marginales: fábricas, prisiones, asilos. Es tan grande su deseo de conocer que incluso pide la protección de algún hombre para entrar a los prostíbulos y conocer la realidad de las “mujeres públicas” y el trato que reciben, o se disfraza de varón para poder conocer lo que acontece en las Cámaras del Parlamento inglés. De esta praxis, surge un testimonio crítico , el adverso de una imagen social: la vida del pueblo pobre, las condiciones lamentables del trabajador, la explotación social, la prostitución, la trata de mujeres, el inhumano trato hacia las mujeres y los niños, la indiferencia de los poderosos frente a las condiciones de injusticia. Entiende que no basta con presentar los hechos. Es necesario haber sufrido para comprenderlos. El dolor, “rudo maestro”, es quien hace progresar la raza humana. El aprendizaje requiere un receptor que haya sufrido y experimentado. Esta afirmación, la habilita a escribir y publicar. Ella se siente capaz de 88 Idem. P. 77. Flora Tristán publica su primera obra Peregrinaciones de una paria en 1838 como resultado de un viaje que realiza a América entre 1833 y 1834. 89 90 “El carácter moral de un hombre del pueblo no ofrecía ningún interés a los ojos de un gran señor de entonces. Sin embargo, el valor de un individuo no radica en la importancia de las funciones que desempeña, en el rango que ocupa o en las riquezas que posee. Su valor, a los ojos de Dios, está proporcionado a su grado de utilidad en sus relaciones con la especie humana íntegra, y es con esta escala con la que, en adelante, deberá medirse el elogio o la censura.” En Peregrinaciones de una paria, p.17. 91 Perrot, Michelle. Salir en Historia de las mujeres de occidente. George Duby y Michelle Perrot (directores). Tomo 8 El siglo XIX Cuerpo, Trabajo y Modernidad. España, Taurus, 1993, 155. 92 Jean Baelen, Feminismo y socialismo en el siglo XIX. Madrid, Taurus, 1973, 133-134 “Cuatro veces he visitado Inglaterra, siempre con el objetivo de estudiar sus costumbres y su espíritu. En 1826, la encontré sumamente rica. En 1831, lo estaba mucho menos, y además la noté sumamente inquieta. En 1835 el malestar empezaba a dejarse sentir en la clase media así también como entre los obreros. En 1839, encontré en Londres una miseria profunda en el pueblo, la irritación era extrema y el desconsuelo general” en Paseos en Londres, p. 1. 93 159 comprender la situación social de las mujeres porque ella misma la ha sufrido. Especialmente, se identifica con las mujeres proletarias, quienes están doblemente excluidas: materialmente (por su condición de clase) y social –culturalmente (por su condición de género, considerado hasta entonces inferior al varón) Su conocimiento le permite describir la función insustituible de la mujer en la vida de los hombres de esta clase: “(…) la mujer lo es todo en la vida del obrero: como madre, tiene una acción sobre él durante toda su infancia (…) Como amante, tiene una acción sobre él durante toda su juventud, ¡y qué poderosa acción podría ejercer una muchacha bella y amada! Como esposa tiene acción sobre él las tres cuartas partes de su vida. Finalmente, como hija, tiene acción sobre él en su vejez. Observad que la posición del obrero es completamente distinta a la del ocioso. Si el hijo del rico tiene una madre incapaz de educarle, se lo pone en pensión o se le procura un aya 94. Si el muchacho rico no tiene amante, puede ocupar su corazón y su imaginación en el estudio de las bellas artes o de la ciencia. Si el hombre rico no tiene esposa, no le faltará encontrar distracciones en el mundo. Si el anciano rico no tiene hija, encuentra algunos viejos amigos o jóvenes sobrinos que consienten muy gustosamente en venir a jugar su partida de bostón, mientras que el obrero, al que todos los placeres están prohibidos, tiene por toda alegría, por todo consuelo, la compañía de las mujeres de su familia, sus compañeras de infortunio.”95 Ante ello propone: “Sería de la mayor importancia, desde el punto de vista de la mejora intelectual, moral, y material de la clase obrera, que las mujeres del pueblo reciban desde su infancia una educación racional, sólida, apta para desarrollar todas las buenas inclinaciones que hay en ellas, con el fin de que puedan convertirse en obreras hábiles en su oficio, en buenas madres de familia capaces de educar y guiar a sus hijos y ser para ellos, como dice “La Prensa” , repetidores naturales y gratuitos de las lecciones de la escuela, y con la finalidad de que puedan servir también de agentes moralizadores a los hombres sobre los que tienen acción desde su nacimiento hasta su muerte. […] Reclamo derechos para la mujer porque es el único medio para obtener su rehabilitación frente a la Iglesia, frente a la ley y frente a la sociedad, y porque hace falta esta rehabilitación previa para que los mismos obreros sean rehabilitados” 96 Flora Tristán inspirada en los ideales de la Ilustración, enfatiza –como no podía ser de otra manera- el papel de la educación: “Instruid, pues, al pueblo; es por ahí por donde debéis 94 Persona encargada de educar y criar a un niño. Unión Obrera, p. 123-124. 96 Unión Obrera, p. 124-126. La cursiva es de la autora 95 160 empezar para entrar a la vía de la prosperidad. Estableced escuelas hasta en las aldeas más humildes: esto es lo urgente en la actualidad”.97 La garantía para asegurar el progreso es combatiendo los prejuicios, entre ellos el de considerar que el trabajo es rol exclusivo del esclavo: “desde el mismo momento en que ya no se suponga deshonor trabajar con las manos, en que ese trabajo sea incluso un hecho honorable, todos, ricos y pobres trabajarán porque la ociosidad es a la vez una tortura para el hombre y la causa de sus males”98 Por último, y para resumir: “Reconocer la urgente necesidad de dar a las mujeres del pueblo una educación moral, intelectual y profesional para que se conviertan en agentes moralizantes de los hombres del pueblo. / Reconocer, en principio, la igualdad de derechos del hombre y de la mujer como único medio de construir la UNIDAD HUMANA.”99 3. Feminismo y la cuestión de lo femenino100 La elaboración teórica de Tristán no deja de enfrentarse a problemas y ambigüedades en la medida en que funda la superioridad de la mujer en una desigualdad natural con el varón y en las funciones sociales de unos y otros. Si bien proclama para las mujeres una educación adecuada que le permita ser soberana e independiente, lo hace porque considera que es el medio para superar la opresión y la miseria que vive toda la clase obrera. Así, la mujer es un medio y no un fin en sí mismo. La justificación que ofrece Tristán, tiene que ver con la concepción antropológica que subyace en todo su pensamiento: considera que varones y mujeres tienen atributos naturales diferentes; y su vez, ellos están vinculados con el carácter heredado de la Creación. Para Tristán, el hombre, que es generación activa, está representado por la fuerza. La mujer, en cambio, es el amor inteligente que tornándose de pasiva en activa, puede darle vida al hombre 97 Peregrinaciones de una paria, p. 14. Unión Obrera 163-164. La misma idea la expone en Peregrinaciones de una paria: “hasta que el trabajo cese de ser considerado como patrimonio del esclavo y de las clases ínfimas de la población, todos harán mérito de él algún día y la ociosidad, lejos de ser un título a la consideración, no será ya mirada sino como un delito de la escoria de la sociedad”, p. 14. 99 Unión Obrera, p. 167. La cursiva y la mayúscula son de la autora. 100 Este apartado es parte de un artículo publicado en la Revista Relaciones Nº 338 bajo el título “Flora Tristán: pensamiento y acción”. Montevideo, julio de 2012. p. 16-19 98 161 que no es más que arcilla. De ahí, que opone a los errores del hombre, la inspiración de la mujer y quiere para ella la soberanía, la autarquía y la reacción.101 Tristán entiende que de acuerdo a los atributos naturales dados por Dios a las mujeres, corresponden actividades específicas que son propias del género femenino, como por ejemplo: la alimentación, el cuidado del cuerpo de los otros y la contención afectiva, aspectos que hasta el día de hoy, son considerados por muchos sectores como privativos de las mujeres. Por otra parte, asume una postura acrítica en relación a la división sexual del trabajo, y esta se vincula estrechamente con lo anterior: “Pues, si bien es cierto que es la madre la quien une a la familia, es el padre quien la alimenta. / La mujer es la reina de la armonía y por ello debe situársele a la cabeza del movimiento regenerador del porvenir. / Porque para que viváis como verdaderos hermanos, precisa que la madre os enseñe a amaros los unos a los otros.” 102 El feminismo es desde sus inicios una protesta contra la exclusión política, social y cultural de la mujer. Sin embargo, persiguiendo el objetivo de defender a las mujeres en nombre de ellas mismas, acababa por alimentar la “diferencia sexual” que buscaba eliminar. Esta paradoja que anota Joan Scott para las feministas francesas del siglo XIX, permeó el pensamiento de Tristán, así como también, del feminismo como movimiento político a lo largo de su historia.103 Más allá de ello, leer a Tristán nos permite comprender una de las tantas posiciones en que fue concebida la identidad social e individual de la mujer. Y aunque presente paradojas, señala los avances y retrocesos de un proceso de emancipación propio de quien busca ser reconocido como sujeto. Nuestro esfuerzo debe ser el de comprender los conceptos que las feministas usaron, en el marco de su época y su contexto específico de vida. De ese análisis sobresalen los aportes y la novedad que conllevaron a las épocas subsiguientes. 4. El legado De lo dicho hasta aquí, podemos resumir que Tristán- como los socialistas de su épocaentendió que la sociedad justa sólo se da como consecuencia de la mejora del ser humano, 101 Nota final de La emancipación de la mujer La emancipación de la mujer, p. 61 103 Joan W. Scott. A cidada paradoxal. As feministas francesas e os directos do homem. Florianópolis. Mulheres, 2002. 27 102 162 esto es, hombres y mujeres a través de la educación. Pues, si la mujer no está preparada en su educación, se detiene el progreso y el porvenir de la sociedad. Por esa razón, asume y resignifica su situación social de exclusión a través de la búsqueda de un saber. Ese saber proviene por la vía de los hechos, de la práctica, del relacionamiento y conocimiento del Otro/ Semejante: las mujeres y la clase proletaria. Desatacamos el autodidactismo como instancia educativa promovida por el propio interés y a partir del contexto disponible. El interés o el motor es la herida fundadora mencionada al principio: su condición de paria- una metáfora de exclusión que fue usada por otras mujeres del siglo XIX104- y que tuvo su contrapartida positiva: la iniciar un programa emancipador para sí misma y para todas las mujeres. El contexto: la situación de miseria provocada por la revolución industrial, de la que Tristán supo mostrar la doble carga que eso significaba para las mujeres más pobres. Las teóricas feministas posteriores que se inscriben dentro del socialismo, retomarán esa línea de reflexión bajo el nombre del “Doble Sistema”. Se trata de los dos sistemas de opresión hacia las mujeres que hoy podemos denominar patriarcado y capitalismo. Por otra parte el autodidactismo conlleva la creatividad. En Tristán esa creatividad se ve reflejada en un método de búsqueda, de aproximación a distintos saberes. Su obra tiene todas las virtudes y fallos de cualquier autodidacta: aúna la carencia de una instrucción elemental a una cultura universalista, y eso se puede observar en su forma de escribir; sin embargo es, en cierta forma, precursora en la formación de un lenguaje que empezaba: el del proletariado consciente, el de los nuevos oprimidos. “Cuesta concebir hoy la potencia de aquel gran río revolucionario y reformista” del siglo XIX- escribe Sartre haciendo mención a Marx, Flora Tristán, Michelet, Proudhon y Jorge Sand105. Sin embargo de estas concepciones del pasado nos quedan preguntas insoslayables y trayectos poco profundizados que todavía se necesitan para revitalizar la educación actual. Nos queda también la confianza en que esa educación- lejos de legitimar y reproducir la exclusión social- permita el tránsito hacia una sociedad más justa entre todos sus miembros. 104 Varikas, Eléni. Paria: una metáfora de la exclusión femenina en Redalyc Política y Cultura, primavera, número 004. México. Universidad Autónoma Metropolitana- Xochimilco. (81-89), 82. 105 Jean Paul Sartre. “Boudelaire”, Ed. Losada, Bs. As. 1949. p 116. 163 BIBLIOGRAFÍA Obras Fuentes: Tristán, Flora. Peregrinaciones de una paria (1838) Orbis Ventures S.A.C, Perú, 2005. ----------------- Paseos en Londres (1840) Biblioteca digital andina, Perú, 19?? ----------------- Unión Obrera (1843) Ed. Fontamara, España, 1977. ------------------La emancipación de la mujer o El testamento de la paria (1843 obra póstuma) Ed. P.T.C.M, Lima, 1948. Bibliografía General: Baelén, Jean. Feminismo y socialismo en el siglo XIX. Ed. Taurus, Madrid, 1973. Bowen, James. Historia de la educación occidental. Tomo tercero. Barcelona. Ed. Herder, 1992. Clavero White, Carolina. “Flora Tristán: pensamiento y acción” en Revista Relaciones. Nº 338. Montevideo, julio de 2012. p. 16-19 Dosse, François. La apuesta biográfica. Escribir una vida. Valencia, PUV, 2007. Marco, Yolanda. Introducción en Flora Tristán, Unión Obrera. Ed. Fontamara. España, 1977. Perrot, Michelle. Salir en Historia de las mujeres de occidente. George Duby y Michelle Perrot (directores). Tomo 8 El siglo XIX Cuerpo, Trabajo y Modernidad. Ed. Taurus, España, 1993. Sartre, Jean-Paul. Boudelaire, Ed. Losada, Bs. As. 1949. Scott, Joan W. A cidada paradoxal. As feministas francesas e os directos do homem. Mulheres, Florianópolis, 2002. Varikas, Eléni. Paria: una metáfora de la exclusión femenina en Redalyc Política y Cultura, primavera, número 004. Universidad Autónoma Metropolitana- Xochimilco. México. pág. 8189. 164 REVISITANDO O CEJA A PARTIR DE MICHEL FOUCAULT Luciana Bandeira Barcelos ProPEd/UERJ [email protected] 1-DISCIPLINAR, EXAMINAR, CERTIFICAR. SITUANDO A OFERTA NO CENÁRIO EDUCACIONAL. O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las, procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo [...] A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício [...] Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos. (FOUCAULT, 2011, p.164). Considerando o texto em epígrafe e meu objeto de pesquisa, um Centro de Estudos de Jovens e Adultos (CEJA), onde se desenvolvem práticas de escolarização de sujeitos jovens e adultos, posso constatar aquilo que o próprio Foucault por vezes tentou evidenciar, a existência de relações de poder cotidianas que muitas vezes nos parecem ínfimas ou que sequer são notadas. Conforme suas palavras, “humildes modalidades, procedimentos menores”, por vezes tão óbvios que passam despercebidos e são naturalizados, tidos como necessários à nossa existência. Pequenos detalhes, que formam a política de controle e utilização dos homens e que constituem um dos elementos que sustentam a organização escolar. E que “vão pouco a pouco, invadir as formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos”, criando o homem necessário à sociedade do momento. 165 O poder disciplinar, presente nos espaços escolares, objetiva a formação de corpos dóceis, adequados à vida na sociedade do momento, pois conforme palavras do próprio Foucault apud Veyne, “não se pode pensar qualquer coisa em qualquer tempo”. (2011, p. 49), enquanto sujeitos que vivem em determinada época, estamos de certa maneira, restritos a pensar conforme possível nessa época, estabelecendo verdades provisórias, ainda que nos pareçam definitivas. O poder disciplinar baseia-se em mecanismos que visam conhecer, dominar e utilizar de forma apropriada os corpos dos indivíduos, relacionando atos, diferenciando-os, medindo e hierarquizando em termos de valor e capacidades, buscando estabelecer presenças e ausências, criar formas de encontrá-los, instaurar e interromper comunicações, conforme sua utilidade ou não, vigiar o comportamento de cada um, criando um campo de saber e traçando um limite que definirá a diferença em relação aos padrões de conduta estabelecidos, criando um padrão de conduta a ser seguido, estabelecendo um conceito de normal. Conforme destaca Foucault, O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente (2011, p. 133). Não se trata de um momento único e específico, mas sim da combinação de diversos momentos, nascidos para responder a exigências da sociedade, que culminam no que Foucault denominou “anatomia política do detalhe”. (ibidem p. 134), em meio a qual nasce o “homem do humanismo moderno”. Em outras palavras, a disciplina torna-se o elemento estruturador das relações humanas por meio dos detalhes, das pequenas coisas que tomadas num contexto maior, direcionam a formação de corpos dóceis, submissos e exercitados, aptos a desempenhar os papéis que lhe são destinados. Ainda segundo Foucault, Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se 166 determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. (ibidem, p.133). Corpos necessários à vida em sociedade, criados em situações de relações de poder, entendido não como algo que se detém, mas como algo que se exerce na relação consigo mesmo e com o outro. Uma prática social, construída historicamente e como tal provisória, válida em determinado momento, que se dissemina por toda a estrutura social e que “fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e à manutenção da sociedade industrial, capitalista”. (FOUCAULT, 2012, p. 22), a sociedade do momento vivido, cuja “dominação política do corpo que realiza, responde à necessidade de sua utilização racional, intensa, máxima, em termos econômicos”. (ibidem, p.22). É nesse contexto de atendimento a necessidades da sociedade capitalista, no início dos anos 1970, em plena ditadura militar, quando princípios como “conscientização e participação” (SOARES, 1996) deixavam de fazer parte do ideário da educação de jovens e adultos no Brasil, então impregnado pelo tecnicismo educacional, caracterizado pela excessiva centralização na metodologia, e na finalidade última da educação: servir ao mercado de trabalho que surgem, os então chamados Centros de Estudos Supletivos (CES), atuais Centros de Estudos de Jovens e Adultos (CEJAs), criados para atender a uma necessidade premente da sociedade brasileira da época, então chamada a ingressar no mercado econômico mundial e para tanto necessitando promover a formação de mão de obra adequada à promoção do que ficou conhecido como “milagre econômico”, que levaria o país ao desenvolvimento econômico nos moldes do modelo capitalista que se tentava implementar. Na origem, organização e objetivos iniciais desse modo de oferta, identifico características do poder disciplinar descrito por Foucault, assim como o surgimento do que denomino práticas de resistência a práticas de assujeitamento implícitas nesse modo de oferta, que embora sob o discurso do atendimento individual, atento a necessidades de cada indivíduo, desconsiderava trajetórias e singularidades dos sujeitos jovens e adultos que a integrariam e buscava conformá-los a lógica da sociedade da época. Os CEJAs são unidades escolares da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, que atendem a modalidade de educação de jovens e adultos, nos níveis fundamental e médio, por meio de ensino semipresencial, preveem avanços sequenciados de módulos, sem caráter de seriação. 167 Em 1971, conforme destacam Santos e Oliveira (2004), a Lei de ensino n. 5692/71, dedicava pela primeira vez, um capítulo ao ensino supletivo, definindo suas finalidades, abrangência e formas de operacionalização, estabelecendo como finalidade, no artigo 24, “suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria”. Outro marco importante, o Parecer 699/72, do Conselho Federal de Educação, elaborado pelo Conselheiro Valnir Chagas, instituiu o que ficou conhecido como “doutrina do ensino supletivo”, estabelecendo os pressupostos norteadores do então denominado ensino supletivo, em conformidade com a Lei n. 5692/71, definindo suas funções: suplência, relativa à reposição de escolaridade; suprimento, relativo ao aperfeiçoamento ou atualização; aprendizagem e qualificação, referentes à formação para o trabalho e profissionalização. Tais funções demonstram claramente a preocupação com a preparação para o trabalho. A referida “doutrina do ensino supletivo” é decorrente de política educacional então vigente, baseada no que ficou conhecido como Acordos MEC/USAID (Ministério da Educação e United States Agency for International Development), cujo objetivo era introduzir no Brasil o modelo americano, de base taylorista, anteriormente implantado nas indústrias do começo do século como forma de tornar mais ágil a produção em série. Para implementar tal concepção cria-se no MEC o Departamento de Ensino Supletivo (DESU), cujo objetivo era coordenar o desenvolvimento de todas as atividades relacionadas à educação de adultos. Dentro dessa concepção, ainda na década de 1970, o MEC/DESU propõe a implantação dos então denominados Centros de Estudos Supletivos (CES), doravante referido como CEJA, atual nome da unidade escolar. Os CEJAs foram considerados a solução mais viável para sujeitos jovens e adultos, de modo a atender, ao mesmo tempo, “ao trinômio: tempo (rapidez de instalação), custo (aproveitamento de espaços ociosos) e efetividade (emprego de metodologias adequadas)” (SANTOS e OLIVEIRA, 2004). Mais uma vez se faz presente o dispositivo disciplinar, entendido como meio que: Aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a 168 potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 2011, p. 134). A orientação metodológica do CEJA, segundo Santos e Oliveira (2004, p.9), baseou-se em módulos instrucionais e no estudo dirigido visando ao atendimento individualizado por meio da autoinstrução, com o auxílio do que ficou conhecido como orientador de aprendizagem, que atendia estudantes em horários predeterminados, não havendo frequência obrigatória, ficando as idas ao CEJA a critério do aluno e dos processos de ensino e aprendizagem em curso. Na organização pedagógica do CEJA, é possível identificar várias características do poder disciplinar, como a organização do espaço, que contempla a distribuição dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, hierarquizado, aqui representado pela organização de conteúdos em módulos instrucionais, estanques, “opondo à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante”. (FOUCAULT, 2011, p. 207), assim como pela organização do atendimento de professores em cabines de atendimento individual, por disciplinas; a instituição do espaço sala de provas, para a realização de avaliações, sempre elaboradas em forma de múltipla escolha, estritamente a partir dos conteúdos dos módulos, não permitindo a livre expressão do aluno, enfim um controle do espaço, feito de tal forma que possibilita assinalar as presenças, as ausências, a circulação dos indivíduos, controle presente até mesmo na organização do sistema de matrícula, que atribui a cada aluno um número, demarcando e registrando seu lugar; o controle do tempo, que sujeita o corpo ao tempo, com o objetivo de produzir mais em menor tempo, determinando-se tempo máximo para empréstimo e realização de avaliações, assim como para esclarecimento de dúvidas e a padronização dos processos que precisam ser vencidos um a um; a vigilância, que transfere para o outro a visão de quem o observa, a lógica do ensino semipresencial, onde não há aulas e cada um é responsável por si, autodisciplina, organização para o estudo e o registro contínuo do conhecimento, que ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber, que se efetiva no CEJA pelo registro minucioso de todas as atividades, ao longo do percurso do aluno na escola, desde seu ingresso no espaço escolar, por meio das fichas de registro individual, de acompanhamento dos professores, do registro da sala de provas, e do registro do consumo da merenda escolar, etc. criando um saber sobre esse aluno passível de utilização nos processos de disciplinarização desenvolvidos pela própria escola. 169 Em síntese, um processo contínuo de “enquadramento do aluno” em um modelo prédeterminado, dito “normal”, que transforma a escola em um “aparelho de aprender, onde cada aluno, cada nível e cada momento, se combinado da maneira correta, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino”. (FOUCAULT, 1987, p. 140, apud MOURA, 2010, p. 57) e que coloca o indivíduo num campo de vigilância onde todas as suas atividades são mapeadas e registradas. Um campo no qual muitos são excluídos por não se enquadrarem no modelo previsto pelo sistema. Os mecanismos de poder presentes no dispositivo disciplinar agem de duas formas: adestrando e submetendo os indivíduos e excluindo de forma punitiva todos aqueles que não se submetem a seus processos. Especificamente no caso do CEJA, agem por meio de basicamente três ações: disciplinar, ou seja, adestrar o corpo; examinar, medir o quanto de sujeição e domesticação já foi assimilado pelo corpo e certificar, atestar a normalidade desse sujeito e sua condição de integração à sociedade. Dessa maneira efetiva-se o que para muitos constitui a máxima do CEJA: produzir eficiência com o máximo de eficácia, ou seja, certificar o maior número de pessoas, no menor tempo e com o menor custo possível, em suma, efetivar o trinômio, tempo/custo/efetividade. Criava-se um modelo contraditório, pois ao oportunizar um espaço de atendimento individual, que permitia ao professor olhar particularmente o aluno, observando deficiências e necessidades, ao mesmo tempo, exigia que esse professor buscasse inseri-lo em um padrão previamente determinado, que desconsiderava a trajetória anterior de cada um, sujeitos em maioria oriundos de formação escolar — parafraseando Souza (2000, p. 3) — “marcada por problemas de seletividade, descontinuidade e fraturas”. Essa tentativa de homogeneização, objetivo inicial dos idealizadores do CEJA, encontra resistência no interior do próprio CEJA, por meio dos elementos que o constituem, seres humanos, imprevisíveis e inconstantes, inconclusos, sempre em busca de algo mais, pois o homem é o único ser que não nasce totalmente programado, mas necessita apropriar-se do conhecimento historicamente construído para tornar-se um ser humano-histórico, construção que se efetiva em sua relação com o outro. Tal situação vai ao encontro das palavras de Foucault (1892) apud Revel (2006, p. 60) ao afirmar que: O poder só se exerce sobre sujeitos livres, e na medida em que são livres, entenda-se por isso sujeitos individuais ou coletivos, que têm em sua frente 170 um campo de possibilidades no qual várias condutas, várias reações e diversos modos de comportamento podem ter lugar. Essa característica, a possibilidade de vislumbrar diferentes caminhos e condutas, presente não apenas nos jovens e adultos que buscavam o CEJA, mas também em seus professores, foi gradativamente provocando inquietações que levaram a questionamentos internos, na tentativa de compreender o processo de criação dessas verdades e seus efeitos, e a busca de caminho alternativo para práticas institucionalizadas, para que se alterem seus efeitos, visto que estas não eram suficientes para abarcar a gama de situações que se apresentavam. Os professores começam a se perguntar, ainda que movidos por motivos diversos, se a educação que ofereciam realmente atendia as necessidades dos alunos; se apenas iniciativas esparsas de alguns professores eram suficientes para promover educação amparada não apenas na quantidade, mas, na qualidade do ensino ofertado; que reconhecesse a diversidade de saberes que esses jovens e adultos haviam construído em seus diferentes percursos de vida; e que se refletisse no sucesso acadêmico de cada um e, consequentemente, no sucesso pessoal. Em síntese que auxiliasse jovens e adultos a tornarem-se sujeitos de sua própria ação. Tais inquietações, aliadas a modificações legais, levam a tentativas de superação do modelo tradicional do CEJA, instituindo-se práticas diversificadas de atendimento, reinventando-se políticas públicas legalmente instituídas, na busca da melhoria da qualidade de ensino ofertado nesse espaço. 2-DE CES A CEJA, CAMINHOS E DESCAMINHOS ENTRE PRÁTICAS INSTITUÍDAS E INSTITUINTES. Mudanças na sociedade e tendências pedagógicas do mundo atual forçam mudanças na educação brasileira, desde a Constituição Federal de 1988, que preconiza a educação como direito de todos, até a LDBEN, Lei n. 9394/96 e o Parecer 11/2000 que regulamenta a EJA, possibilitaram aos CEJAs, que até então privilegiavam somente atendimentos individualizados, o início de um caminhar de conquista de novas formas de atendimento ao aluno, em que se reforçava a necessidade de modos mais coletivos, que oportunizassem um espaço de discussão e reflexão em torno dos problemas atuais, considerando-se as modificações por que passa a sociedade, em que a educação tornou-se uma necessidade para a vida e a concepção de EJA vigente, não mais entendida como suplência, como educação 171 permanente, cujo objetivo é apenas a inserção no mercado de trabalho, mas como formação humana, que por ser humana é ininterrupta e inacabada e se estende pela vida. Mais uma vez, evidencia-se o fato de a educação buscar atender as necessidades de sua época, conforme destaca Veyne (2001, p. 49-50), Como não podemos pensar qualquer coisa em qualquer momento, pensamos apenas nas fronteiras do discurso do momento [...] sempre somos prisioneiros de um aquário do qual nem sequer percebemos as paredes [...] saímos de nosso aquário sob a pressão de novos acontecimentos do momento ou ainda porque um homem inventou um novo discurso e obteve sucesso. Mas se mudamos então de aquário é para nos vermos em um novo aquário. Esse aquário ou discurso é, em suma, o que poderíamos chamar de a priori histórico. Esse a priori histórico, “longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano, é passível de mudança, e nós mesmos terminamos por mudá-lo”. (ibidem, p. 50). Essa possibilidade de mudarmos nosso “aquário”, vai ao encontro ao pensamento freireano, que justifica a necessidade de permanente autoconstrução, por sermos “seres inconclusos”, inacabados, com possibilidade de transformação. Ainda segundo Freire (1997, p. 55), “o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento”. Essa característica, a incompletude, define o ser humano e caracteriza sua necessidade de saber, de aprender, continuamente, por toda a vida. A consciência de seu inacabamento faz o homem ter esperança de que esse aprender, que se estende pela vida, possa ajudar a transformá-la. A consciência da incompletude produz no homem a esperança e reafirma a consciência do sentido e da importância do educar. Nesse cenário, de inquietações internas e mudanças na legislação e na concepção de EJA, inicia-se no CEJA em questão, um movimento que tenta superar suas práticas instituídas, com a implementação de atividades coletivas e diversificadas nesse espaço, buscando ao reconhecer as necessidades, possibilidades, dificuldades e aspirações dos sujeitos jovens e adultos, a melhoria da qualidade de ensino por ele ofertado. Movimento difícil, pois pensar atendimento coletivo em uma unidade escolar cujo modo de atendimento oficialmente instituído é o individual, implica superar concepções, 172 preconceitos e a resistência de professores, desacostumados a lidar com o burburinho e as tensões provocadas pelo atendimento a grupos de alunos. As práticas diversificadas que se buscam instituir no CEJA têm por objetivo não apenas a superação de um modo de atendimento previamente instituído, mas a superação de uma concepção vigente no ideário de professores e alunos, que entende a educação como um processo individualizante, de desvelamento de verdades universais, constituído por etapas que se vencem individualmente, cujo objetivo final é a conformação de um sujeito necessário a uma sociedade movida pelo capital e não um processo de formação humana, que considera a singularidade com que cada indivíduo tece conhecimentos ao atribuir sentido e significado às informações que recebe, ou seja, como constrói seu caminho, ao caminhar. As práticas de atendimento escolares, que no dizer de Veiga-Neto constituem os “processos educacionais”, por meio dos quais, “dizemos as verdades e as espalhamos e perpetuamos por aí afora”. (ibidem, p.88), direcionam a formação do indivíduo e legitimam os saberes adequados às estratégias de poder vigente, por meio de práticas de assujeitamento que ignoram necessidades, potencialidades e aspirações dos sujeitos envolvidos no processo, constituindo-se em um instrumento ativo e perigoso. No que tange ao CEJA, em que a relação tempo/custo/efetividade ainda predomina, cabe indagar se o embate entre práticas instituídas e instituintes evidencia uma melhora na qualidade do ensino ofertado nesse espaço e se o direciona ao ideal de superação de práticas de assujeitamento, revelando como práticas de atendimento são compreendidas e apreendidas por professores e alunos, e como recursos e dispositivos escolares se põem a serviço dessa forma de atendimento. As práticas instituintes no CEJA constituem espaços de resistência e reconhecimento da diversidade de saberes dos jovens e adultos, entendendo que educar não se resume a acumular conhecimentos, ou constituem apenas mais um mecanismo de assujeitamento, ao possibilitar a certificação de sujeitos incapazes de se reconhecerem como sujeitos de direito, ou como diria Foucault, sujeitos de saber-poder? É nesse sentido que se discute a relação entre práticas instituintes e qualidade de ensino, pois o que se busca com sua instituição não é apenas o aumento/aligeiramento da certificação, mas a possibilidade de mudança na vida dos sujeitos que emergem de tais práticas. Ninguém sai ileso de uma ação sobre o outro. Uma experiência só tem valor e se 173 constitui como experiência se produz mudança, se modifica aqueles que experienciaram e permite a cada um colocar-se na direção de sua própria vida. Muitas práticas instituintes no CEJA ainda não procuram atender a esse objetivo, mas é nas brechas possibilitadas por sua efetivação, que busca instituir-se um novo modo de pensar a educação de jovens e adultos. Uma modalidade que reconhece os diferentes saberes que jovens e adultos construíram em suas trajetórias de vida e não apenas “aligeira” sua certificação. Que reconhece a existência de diferentes trajetos de formação e possibilita a cada jovem e adulto o reconhecimento e respeito à suas necessidades, possibilidades, dificuldades e aspirações. 3-CONCLUSÕES PARCIAIS Pensar o CEJA em uma perspectiva foucaultiana, significa compreendê-lo como instituição criada no âmbito de uma sociedade disciplinar, atualmente em vias de transformarse em sociedade de controle106, cujo objetivo não seria promover condições de resistência, de crescimento individual, mas sim disciplinar, coordenar, criar corpos dóceis, aptos a viver na sociedade do momento, uma sociedade capitalista, que busca a inserção de forma produtiva no chamado mercado de trabalho. No dizer de Foucault, uma sociedade onde “as Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”. (2011, p. 209). Um espaço escolar perpassado por relações de poder, que se exercem em práticas cotidianas, na relação com o outro, seja ele professor, aluno ou qualquer elemento da instituição. Um poder que configura um dispositivo, “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”. (FOUCAULT, 2012, p. 20). Uma instituição que em suas origens utiliza como meio de coerção dos indivíduos: Processos de separação e de verticalidade, de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano, barreiras tão estanques quanto possível, de definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante. (FOUCAULT, 2011. p. 207). 106 Fato evidenciado pelas propostas de reformulação do CEJA, advindas do sistema escolar em se insere e que indicam um encaminhamento para um controle cada vez maior de suas atividades e num plano maior, da própria população que constitui seu público alvo. 174 Perspectiva que busca a homogeneização, a conformação e fabricação dos sujeitos necessários à manutenção do sistema capitalista no qual se insere e que ao longo do tempo mostrou-se insuficiente, face à diversidade oriunda de seu público alvo, sujeitos jovens e adultos, produto de trajetórias descontínuas e fragmentadas, com uma multiplicidade de saberes e de modos de pensar, o que produziu grande evasão e exclusão do e no espaço escolar. Outra contribuição foucaultiana para se pensar o CEJA é o entendimento do saber como algo contingencial, político, que existe a partir de “condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber. [...] todo saber é político [...] porque todo saber tem sua gênese em relações de poder”. (ibidem, p. 28). Tal assertiva corrobora a ideia de que educar não é uma ação neutra, destituída de sentido e significado, mas sim um ato intencional, em que reproduzimos concepções subjacentes a nossa compreensão da ação educativa, sempre condicionada ao discurso de nossa época. Como destaca Veyne, Os discursos são as lentes através das quais, a cada época, os homens perceberam todas as coisas, pensaram e agiram; elas se impõem tanto aos dominantes quanto aos dominados, não são mentiras inventadas pelos primeiros para dominar os últimos e justificar sua dominação [...] longe de serem ideologias mentirosas, os discursos cartografam o que as pessoas realmente fazem e pensam, e sem o saber. (2011, p.50-51). Tal constatação, porém não nos impede de ver além de tais lentes, rompendo o aquário em que nos encontramos, pois afinal a principal característica humana, a inconclusão, tem na imprevisibilidade uma de suas formas de expressão, que faz com o homem busque sempre ser mais, ir além do que lhe foi originalmente proposto. O CEJA, diante dessa característica humana, a inconclusão, presente tanto em seus professores, quanto em seus alunos, viu-se então diante de um dilema, manter seu modelo homogeneizante e totalizante, amparado em uma concepção disciplinar, ou buscar caminhos ao enfrentamento das inconsistências geradas pela efetivação de seu modelo original. Essa busca de alternativas a seu modelo histórico conduz a embates em seu interior, que possibilitam o surgimento de práticas instituintes, nascidas no cotidiano escolar, como formas de enfrentamento a práticas disciplinares, de assujeitamento, então vigentes. Cabe indagar, partindo do princípio de que toda ação educativa é política, se tais práticas realmente 175 representam uma alternativa a seu modelo original, ou se apenas reproduzem práticas já existentes mudando apenas o rótulo nelas impresso. A obra de Foucault contribui grandemente para se pensar o CEJA, suas origens e as relações que se estabelecem em seu interior, porque permite que sejam evidenciadas relações de poder cotidianas que nos parecem por vezes ínfimas e que sequer notamos. Foucault desconstrói noções que nos são caras e nas quais nos apoiamos para dar sentido a nossas concepções e aspirações e as substitui pela dúvida permanente, pela vontade de saber. Nas palavras do próprio Foucault apud Veiga-Neto, ao descrever o objetivo de sua obra, Mostrar às pessoas, que um bom número das coisas que fazem parte de sua paisagem familiar, que elas consideram universais, são o produto de certas transformações históricas bem precisas. Todas as minhas análises [...] acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de que espaço de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças que podem ainda se efetuar. (2006, p. 80). Diante de várias lutas e verdades em jogo, o pensamento foucaultiano pode representar uma ferramenta na luta pela verdade do nosso tempo, verdade provisória, mas que lutamos para estabilizar. Afinal, De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. (FOUCAULT, 1998, p. 13). 4-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei Federal de n. 5692/71, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 10 e 20 graus e dá outras providências. Disponível em http:// www.pedagogiaemfoco.pro.br. Acesso em 23 jun. 2007. FOUCALT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2012. 176 _______________. Nietzche, a Genealogia, a história, p. 260-281. In MOTTA, Manoel Barros da (org.). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento, Ditos e Escritos, volume II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _______________. História da Sexualidade II. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998. _______________. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. REVEL, Judith. Nas origens do biopolítico: de Vigiar e punir ao pensamento da atualidade. In GONDRA, José e KOHAN, Walter (orgs.). Foucault, 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. SANTOS, Edicleia Aparecida Alves dos, OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva, Caminhos e Descaminhos da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Disponível em http://www.periodicoscapes.gov.br. Acesso em 14 ag. 2004. SOUZA, Graça Helena Silva de. Educação de Jovens e Adultos. Estudo de Caso no Centro de Estudos Senai. Dissertação de Mestrado em Educação. Programa de Pós Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. ProPed – UERJ. 2005. VEIGA-NETO, Alfredo. Na oficina de Foucault, p. 79-91. In GONDRA, José e KOHAN, Walter (orgs.). Foucault, 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. VEYNE, Paul. Foucault, seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PROBLEMATIZANDO O CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DELEUZIANA LIMA NETTA, Ranúzia Moreira (UFPE-CAA)107 107 Graduanda de Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco – [email protected] Bolsista PIBIC com o subprojeto CATIVEIROS DA TRABALHADORA RURAL - RAÇA/ ETNIA, GERAÇÃO E SEXUALIDADE: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE AS MULHERES DO MST-PE E AS DO MMTRNE, sob a orientação da Profa. Dra. Allene de Carvalho Lage (UFPE/CAA). 177 Resumo: Este artigo objetiva discorrer sobre a filosofia de Gilles Deleuze, caracterizada pela criação de conceitos e a perspectiva rizomática anunciada pelo autor, a qual vem descaracterizar o currículo que demarca a pedagogia atual que se delineia por fins, e que hierarquiza o saber, o fazer e o aprender, delimitando a construção do saber como uma árvore que tem raiz, caule e folhas. E, percorre um caminho aberto, que não supõe hierarquias, diante das construções sem imposições, tendo liberdade para inventar, para significar, e ainda considera o múltiplo, como original, as linhas de fuga como possibilidades. Palavras-chave: Deleuze. Multiplicidade. Plano de Imanência. Rizoma. Currículo. Introdução Esse trabalho originou-se na disciplina eletiva Teorias da Educação108, que compõe a matriz curricular do curso de Pedagogia, e foi apresentado como atividade avaliativa final. A disciplina teve por objetivos compreender o significado das Teorias Educacionais, reconhecendo a importância das múltiplas abordagens na interpretação do fenômeno educativo; estudar as concepções teóricas de pensadores da contemporaneidade – Nietzsche, Foucault e Deleuze, no que se refere à problemática educacional, refletindo sobre as condições de uma autoeducação na experiência escolar; analisar as condições da formação humana na atualidade à luz desses referenciais teóricos; e desenvolver a capacidade de leitura e análise de textos filosóficos, a partir do estudo de obras dos autores selecionados, relacionando as contribuições desses pensadores à nossa realidade109. Tal leitura poderia se constituir a partir do pensamento desses filósofos, mas pelo percurso livre, pela caracterização de singular – múltiplo inventivo, criativo, que (re)significa o já existido de forma não delineada em fins, elegemos Gilles Deleuze110 para ser o foco deste trabalho. Objetivamos apresentar alguns aspectos da filosofia deleuziana relacionados, especificamente, com os conceitos de multiplicidade, plano de imanência e perspectiva 108 Disciplina cursada no 5º semestre do curso Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco, Centro Acadêmico do Agreste, regida por: Profa. Dra. Maria Betânia do Nascimento Santiago, ministrada no primeiro semestre de 2012. 109 Extraído do Programa de Componente Curricular da Disciplina Teorias da Educação no dia 11 de julho de 2012. 110 Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês, vinculado aos denominados movimentos pós-estruturalistas, categorizações que o próprio Deleuze questionava pelo que trazem, ainda, da visão e luta pelo idêntico extraído do site: http://www.ricesu.com.br/colabora/n8/homenagem/index.htm. (acessado em 21/05/12, às 00h:26min). 178 rizomática, entendendo que a especificidade dessas três perspectivas apontadas para a criação de conceitos é, sobretudo, a marca da filosofia de Deleuze que a considerava como “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.” (DELEUZE e GUATTARI, p. 10). O percurso metodológico contemplou leituras baseadas na análise do discurso, por ser uma teoria que dá conta de reflexões e interpretações sobre formas de compreendermos enunciados discursivos que vão para além do que está escrito, uma vez que um texto, um diálogo, não se esgota em sua formação, em sua apresentação, pois estes sempre nos apresentam um processo histórico-significativo do dito e do não dito. Trata-se de percepções construídas a priori e que implicitamente e explicitamente compõem o enunciado apresentado. Como assinala Fischer (2001, p. 210), O campo enunciativo acolhe novidades e imitações, blocos homogêneos de enunciados, bem como conjuntos díspares, mudanças e continuidades. Tudo nele se cruza, estabelece relações, promove interdependências. O que é dissonante é também produtivo, o que semeia a dúvida é também positividade crítica. Isso significa que as construções discursivas são decorrentes de implicações diversas, sejam de outros discursos, de conceitos criados, da arte, da música, da literatura, e implicam sempre uma formação discursiva. Segundo Foucault (Apud FISCHER, 2001, p. 211): ... [não há] enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências. Com base no que foi exposto acima, este trabalho aborda algumas concepções que são pressupostos da filosofia Deleuziana para a teorização curricular, o trabalho encontra-se estruturado em: 1) a perspectiva de criação de conceitos, sendo esta a marca fundamental e que desencadeia as demais conceituações; 2) a perspectiva da multiplicidade, sendo esta permeada pela composição do uno-múltiplo, e, sobretudo, pelas demarcações dos/as outros/as no nós, sendo este o “sujeito” ou o objeto; 3) a perspectiva de plano de imanência, que é a imagem do pensamento, estando associado à criação de conceitos, o qual é o uso do pensamento sendo inerente ao ser; e 4) a perspectiva rizomática, que é a caracterização do rizoma e como esse se desenvolve e articula-se na filosofia de Gilles Deleuze. 179 Tendo em vista a caracterização e a (re) significação dos conceitos assinalados por Gilles Deleuze, essas quatro perspectivas traduzem um percurso de (re) significações, baseados na perspectiva rizomática, na ideia de multiplicidade, levando em conta o plano de imanência. Essas questões serão ponderadas ao longo desse trabalho, não finalizando aqui as concepções interpretativas como únicas, e, sobretudo, como as corretas, mas problematizando as quatro perspectivas diante da proposta curricular atual, pensando-a de forma aberta e inventiva, oportunizando experimentações através das subjetivações. 1 – Criar Conceitos em Deleuze Na concepção de Gilles Deleuze criar conceitos é fazer filosofia, pois como Mostafa (2009, p. 23) afirma: “(...) o conceito como ideia filosófica é o cerne da filosofia. Sempre foi, desde que a filosofia se instaurou entre os gregos. Então, falar de conceitos é falar de filosofia”. E, fazer filosofia através da criação de conceitos, é transformar o mundo, é desenvolver possibilidades variadas de comunicação. Criar conceitos, é criar o uno-múltiplo, é refletir, é (re) significar, é transformar, é mudar, é reaprender. Para Gallo (2008, p. 43): O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos pões a pensar. Se o conceito é produto, ele é também produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é o conceito que recorta o acontecimento, que torna possível. O conceito apresenta-se em suas peculiaridades, permitindo o pensar sem delimitações, sendo parte principal da filosofia Deleuziana, pois é a partir da criação de conceitos que as outras conceituações decorrem tendo uma nova significação. Definindo-se de acordo com as maneiras diversas de existência, não se estabelecendo como uma verdade, a criação de conceitos permite, através de acontecimentos, a liberdade do pensamento, destacando-se vários componentes, pois segundo Deleuze (apud MOSTAFA, 2009, p. 24), “Todo o conceito tem componentes, e se define por eles”. Percorrer caminhos segundo o viés Deleuziano é abrir mão de padrões estabelecidos, é convidar através de perguntas o pensar caracterizado pela multiplicidade, denominando assim 180 não o sujeito, pois a especificidade, o eu, não tem uma demarcação nessa filosofia, pois não há o eu, mas há composições de outros na formação da peculiaridade e da alteridade do múltiplo. Destarte, Gilles Deleuze e Felix Guattari (2011, p. 17) dizem que: “Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados”. Além disso, na composição do sujeito que não é sujeito111, mas “ao contrário do sujeito, a hecceidade é o efeito da experimentação do mundo, cujo movimento produz lugares de reinvenção como singularização do mundo que se singulariza” (GELANO, 2007, p. 306). É nessa perspectiva que Deleuze (apud Mostafa, 2009, p. 31) afirma: “eu não desejo nada que não seja visto, pensado ou possuído por um outrem possível.” Então, subentende-se que a criação de um conceito ou de algo materializado, deve ser permeada por visibilidade. Possibilitando a um – muitos o contato com esse instrumento, com esse pensamento etc.. Desse modo, o pensamento é livre para criar problemas, para criar conceitos, tendo como pressuposto o esquecimento, para que os conceitos, os valores não se enraízem, não delimitem o pensar, não sufoque o inventar, não fixem poder, saber. Como afirma Schérer (2005, p. 1187): “não se pode aprender sem começar a se desprender. A se desprender, é claro, dos preconceitos anteriores, mas, antes de tudo, e sempre, a se desprender de si”. 2 – Delineando alguns Conceitos da Filosofia Deleuziana Este estudo aborda alguns conceitos desenvolvidos pelo filósofo Francês e que caracteriza sua filosofia, de sua criação de conceito e (re) significação dos conceitos de outros filósofos. Trata-se da ideia de multiplicidade, plano de imanência e a perspectiva rizomática. 2.1 A Ideia de Multiplicidade Pensar a multiplicidade em Deleuze é recorrer a uma questão fundamental de sua filosofia que é a criação de conceito. Nessa sentindo, é importante considerar que para o autor não existe conceito puro, único, acabado. 111 “Deleuze não usou mais a noção de sujeito como sendo relativa a um “Eu” qualquer ou ao “Eu” do cogito cartesiano. Todas as vezes que encontramos a palavra sujeito em sua obra, ela está relacionada a uma hecceidade que, na linguagem deleuziana, quer dizer uma subjetivação sem sujeito, um processo de experimentação, seja de pensar, seja de sentir, mas que não esteja centrado na razão abstrata representacionista. Assim, uma hecceidade experimenta e expressa o mundo, não pensa por representações mentais. É pela experimentação do mundo que se cria condições para conhecer diferentemente aquilo que se experimentou, em vez de simplesmente representar, pela razão, as sensações ou pensamentos, de adequar a experiência ao pensamento”. (GELAMO, 2007, p. 305). 181 Todo o conceito é uma multiplicidade, não há conceito simples. O conceito é formado por componentes e defini-se por eles; claro que totaliza seus componentes ao constituir-se, mas é sempre um todo fragmentado, como um caleidoscópio, em que a multiplicidade gera novas totalidades provisórias a cada golpe de mão (GALLO, 2008, p. 40). Nesse contexto a multiplicidade são as diversas formas de existir, de caminhar, pois não há mais o uno, ou seja, para Deleuze e Guattari (2011): “Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza” (p.23). Determinações essas que são composição de múltiplos, criações de múltiplos. 2.2 Plano de Imanência Segundo Mostafa (2011), o “plano de imanência permite orientar-se no pensar, é como a imagem do pensamento, apesar de não representar um conceito pensável, nem pensado. Uma imagem do que significa pensar” (p.43). O plano de imanência é algo inerente, que age com os conceitos criados, que o norteiam, são as linhas do rizoma. Como assinala Escobar (1991, p. 21): são as multiplicidades que povoam o campo da imanência, um pouco como as tribos povoam o deserto sem que ele deixe de ser um deserto. E o plano de imanência deve ser construído, a imanência é um construtivismo, cada multiplicidade assinalável é como uma região do plano. Diante disso, percebemos que a multiplicidade está intimamente ligada ao conceito de plano de imanência pelo fato da construção do pensamento, pelas formas de existir, pois o múltiplo compõe a realidade do individuo, sem descaracterizá-lo, permitindo-o (re) significar e criar conceitos. Esse plano é uno-múltiplo - são as ações do pensamento, são as direções do pensamento, são as realidades, não com uma sequência como apresentado no Método Cartesiano ou não como o transcendente Kantiano, mas são deslocamentos, são formações, criações. 2.3 Perspectiva rizomática 182 O conceito de rizoma pode ser considerado um dos mais significativos da filosofia de Gilles Deleuze. Pois este é Segundo Machado (2009) a “imagem do pensamento”, sendo esta permeada não por algo uno, mas por multiplicidades. Sendo ainda caracterizado como: “O rizoma é horizontalidade que multiplica as relações e os intercâmbios que dele se originam. A vida assim compreendida é um contínuo fluxo e refluxo, potência de interação e produção de sentidos” (LINS, 2005, p. 1232). Esta perspectiva rizomática, é desenvolvida e/ou rompida apenas no meio através de rizomas abertos, livres, e que se conectam embora não estejam ligados. Sobre essa questão Gallo (2008, p. 17) afirma: “Nunca há um rizoma, mas rizomas, na mesma medida em que o paradigma, fechado, paralisa o pensamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos”. O rizoma tem seis princípios, os quais são peculiaridade múltiplas apresentadas na obra Mil Platôs (2011): 1º e 2º Princípios de conexão e de heterogeneidade, que assinala o fato de que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.” 3º princípio de multiplicidade, ainda no mesmo texto, “as multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização.” E, é importante elencar que são essas que segundo Escobar (1991) “povoam o campo de imanência”. 4º princípio de ruptura assignificante, “um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas” 5º e 6º princípio de cartografia e de decalcomania, “um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo’. (...) A arvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da arvore. Diferente é o rizoma, mapa e não decalque”. Essa analogia posta como princípios fazem parte do plano de imanência, que de fato será uma composição de muitos, sem cair na heterogeneidade através da multiplicidade. A perspectiva rizomática é inventiva pelo fato de romper com a ideia hierárquica da árvore, a qual não abarca e não compreende a multiplicidade. Tem uma segmentação e gira em torno de algo fixo. É nesse sentindo que o rizoma inova, descaracteriza, cria, pois ele assume formas diversas, sendo essas ramificadas em sentidos distintos. Tal perspectiva é assim caracterizada por Deleuze e Guattari (2011, p. 22): Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. [...] Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, 183 econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. O rizoma é apresentado em linhas, destarte, linhas que se conectam e que independe da forma que estão posicionadas. São linhas que se houverem rompimentos, ainda continuarão conectadas, pois, não são delineadas em inicio, meio e fim, como a arborescente, que tem raiz, caule e folhas. Este é segundo MP (apud ZOURABICHVILI, 2004, p.52): “Um antimétodo que parece tudo autorizar – e de fato o autoriza, pois este é seu rigor, do qual seus autores, sob o termo “sobriedade”, enfatizam de bom grado, pensando nos alunos apressados, o caráter ascético”. Diante da perspectiva rizomática, estabelecemos uma relação ao cenário educacional, o qual se apresenta de forma enclausurada, estando a escola, o currículo e as práticas pedagógicas limitadas, sendo desenvolvidas como paradigmas fechados que delimita o pensar. Diante disso, observamos a dinâmica do rizoma, que descaracteriza as ações pedagógicas atuais, segundo Lins (2005, p. 1230): Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinâmica do rizoma: resistir, infectar e vitalizar o instituído, no aqui e no agora da pedagogia “real”, isto é, no molar em ruptura com o molecular, no molar não mais acoplado ao molecular como diferença, mas asfixiado pelo ideal identitário, para o qual o retorno é redundância vazia e não diferença. Dessa forma, a escola que tem uma dinâmica rizomática, estabelece caminhos contrários aos paradigmas fechados, resistindo-os, infectandos-os e vitalizandos-os. Seguindo uma proposta baseada na liberdade do pensamento. Permitindo o/a aluno/a extrair significados e transformá-lo de acordo com a sua formação múltipla. 3 – Pensando o currículo a partir de Gilles Deleuze A escola tem sido um lugar de objetivo, de sequência, de avaliação hierárquica, saberes fragmentados, dessa forma é percebido que as práticas pedagógicas - curriculares estão pautadas em perspectivas diferenciadas, mas que delimitam a autonomia do/a aluno/ao, através de hierarquias e objetivações, limitando a constituição de um pensar livre, o qual segue um percurso como uma arborescente. Nesse âmbito, é ressaltada a perspectiva rizomática de Gilles Deleuze, pois as conexões do rizoma é a expressão do fazer o múltiplo. É nessa perspectiva que poderemos pensar a escola de forma inventiva e problematizadora, que favoreça a vivência da verdadeira autonomia. Não aquela apenas 184 cogitada ou problematizada, e destacada nas teorias, mas uma autonomia de fato, que possibilite ao aluno/aluna, criar seus problemas, independente de ter respostas, e a partir daí criar conceitos, que contribuam para uma compreensão além do que é sistematizado e requerido pela escola, com isso, o currículo também necessita de transformações, proporcionando uma aprendizagem inventiva, e composta por novidades, novidades estas no aprender, no ensinar, no criar Segundo Kastrup (2005, p. 1277): A noção de aprendizagem inventiva inclui então a invenção de problemas e revela-se também como invenção de mundo. Trata-se de dotar a aprendizagem da potencia de invenção de mundo. Trata-se de dotar a aprendizagem da potência de invenção e de novidade. Uma aprendizagem engenhosa, rompendo paradigmas, podando as árvores, arrancando suas raízes, (re) significando seus frutos, e permitindo ser uma planta inovada na perspectiva rizomática, descobrindo, sobretudo o prazer de criar, de pensar e de saber o sentido de uma reconfiguração enquanto múltiplos, para que outros que terão os nossos nós, sejam múltiplos nossos com uma desenvoltura do pensar para além do que conseguimos imaginar e como nos diz Daniel Lins, que a pedagogia escolar seja “uma pedagogia rizomática, seja a da desconstrução e da diferença, do individuo como singularidade. Uma pedagogia que não trabalha com formas, mas com encontros nômades, desejos, encruzilhadas e bifurcações.” (LINS, 2005, p.1252). O aprendizado é um sentimento livre, uma construção sem imposições, é transitar por muitas verdades ou por não verdades, é construir problemas, é construir caminhos, é também se perder nesses caminhos, é desprender-se, desapegar-se. Para René Schérer (2005, p.1191): A aprendizagem segue a via dos encontros e dos amores e não os métodos de uma pedagogia sempre impotente, ultrapassada pelas paixões. “Não existe método para encontrar os tesouros e muito menos para aprender”. É no âmbito do debate curricular que essa leitura vem revelando seu potencial elucidativo para a educação, e mesmo descaracterizando visões já consolidadas, acerca da teoria do currículo. Observamos esse fato ao compararmos com o que é dito por Silva (1999, p. 14): “a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado”. A crítica em relação ao que deve ser ensinado são as limitações que são postas juntamente com essa deliberação, com esse saber que se propõe a colocar em prática. Trata-se propriamente da problemática da organização curricular, como afirma Gallo (2008, p. 70-1): 185 A organização curricular das disciplinas as coloca como realidades estanques, sem interconexão alguma, dificultando para os alunos a compreensão do conhecimento como um todo integrado, a construção de uma cosmovisão abrangente que lhes permita uma percepção totalizante da realidade. A educação contemporânea, seguindo a proposta curricular de ensinar isso ou aquilo, constituído um binarismo, delimita o aprender do/a aluno/a, dessa forma impossibilitando-o/a de perceber as composições múltiplas da realidade, ficando focado/a em apenas um caminho, uma realização, uma atividade, ou seja, são caminhos que se cruzam em alguns momentos, mas que logo se deslocam, separam-se. Considerar a perspectiva rizomática na organização do currículo significa assumir o que é próprio aos rizomas, no qual suas linhas se cruzam, permitindo assim, está conectado por um rizoma a vários rizomas, e assim proporcionando a autoformação. Nessa perspectiva, é preciso reconhecer a exigência que se coloca a essa experiência formativa: o desejo de ser. Como assinala Daniel Lins (2005, p. 1235): O ser não é dado, mas querido, almejado, conquistado; nesse sentido, o ser autoprodução. Não se nasce ser, torna-se, ou não, ser. O ser não é uma questão de substancia ou de transcendência, o ser é uma produção desejante: pura invenção do desejo. É tornar-se quem deseja, é correr, quebrar-se, mudar-se, criar, sem sair do meio. É o currículo múltiplo, que descaracteriza, liberta o pensar, que permite caminhar por linhas de fugas buscando novas direções: “os campos de saberes são tomados como absolutamente abertos; com horizontes, mas sem fronteiras, permitindo trânsitos inusitados e insuspeitados” (GALLO, 2008, p.81). Pensar na proposta rizomática é pensar em uma pedagogia diferenciada, uma pedagogia inovada, que deixa o/a aluno/a e o/a professor/a permitindo aprender e ensinar / ensinar e aprender através da criação de conceitos, da liberdade do pensar e do transitar por caminhos não delimitados. Tal compreensão oferece uma possibilidade, um olhar que nos permite problematizar a educação atual, e a forma que o currículo é vivenciado pela escola, pois como dito acima, o currículo tem sido hierárquico, com problemas e soluções. Não permitindo o recriar, reconfigurar, (re) significar, mas desenvolvendo uma falsa criticidade. Tal realidade nos permite afirmar que apesar de todos os avanços educativos para o ensino e aprendizagem acontecer, ainda temos uma educação que se aproxima do modelo tecnicista, tradicional, e, sobretudo competitiva. 186 Considerar uma proposta curricular rizomática, significa reconhecer os novos papéis do/a professor/a, como também do/a aluno/a; reconhecer a importância do aprender de formas mútuas. Um aprendizado decorrente da realidade e do pensamento, como afirma Lins (2005, p. 1248): Um aprendizado imanente, de um “método” rizomático que acolhe o ser zero da pedagogia que é, ao mesmo tempo, causa e dom, é o que não é ainda. O participado (suposto professor) torna-se o principio ativo ao passo que o participante (suposto aluno) é o efeito. Sem hierarquia nem lugares, inauguram-se encontros e não apenas quadros relacionais. Professor e aluno, ambos intercessores, tornam possível aquilo que parecia impossível: transmitir sem dominar, transmitir sem ofuscar os devires, receber sem dever, sem morrer às criatividades nem se deixar engolfar por uma alteridade moral que esvazia, mediante a dívida e a erosão dos desejos, a vontade positiva de potencia, vontade superior de desejar. A proposta curricular Deleuziana vai além da horizontalidade, da verticalidade, fala-se em uma transversalidade, permitindo circular por vários campos dos saberes. Como afirma Gallo (2008, p. 79): A transversalidade rizomática, por sua vez, aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicação, para a atenção às diferenças e à diferenciação, construindo possíveis trânsitos, pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões. Uma visão transversal rompe com os “verticalismos e horizontalismos” que segundo Gallo (2008) são insuficientes para uma abrangência de visão de todo o “horizonte de eventos”, superando as diferentes partes impostas, ou vistas, com um processo educativo heterogêneo, singular, não delineada em unidades. Mesmo com essa perspectiva, acreditamos que nem esse transversal proposto por Deleuze seja suficiente para abarcar as múltiplas diferenças existentes, uma vez que um currículo triangular, circular, horizontal, vertical, transversal, essas formas de organizar o currículo ainda serão formas de delimitar o que é querido e como este será finalizado. Por isso, propõe-se a liberdade do pensamento e do aprender, sem sequências, sem possibilidades limitadas. Isso significa a defesa de um currículo múltiplo em todas as segmentações, em todas as facetas existentes, possibilitando o criar, mas um criar além do que é conhecido atualmente, um criar sem objetivos pré-estabelecidos, criar valores e (re) criá-los, (re) significá-los. O pensamento sendo concebido em movimentos infinitamente aberto e infinitamente em evolução, para além dos fechamentos existentes. 187 Considerações Finais Assumimos a afirmação de Schérer (2005, p. 1193): “Aprender com Deleuze é também aprender Deleuze. O que não quer dizer sabê-lo” (p. 1193). Ou seja, discorrer sobre o fazer filosofia através das criações conceituais, ver a multiplicidade na formação do ser, apresentando uno-multiplo, além do plano de imanência, a imagem do pensamento, que estão associados nas criações dos conceitos, é saber e não saber. Pois há lacunas, há perguntas sem respostas, que se procura em seus textos, e de seus seguidores ou críticos, e não consegue compreender algumas questões. Talvez porque este seja o ponto crucial de sua filosofia: não ter tudo pronto e acabado, mas construído, para ser refletido e (re) significado, reconhecendo a multiplicidade que caracteriza a realidade. Talvez a filosofia de Deleuze se apresente para nós, ainda hoje, como uma pedagogia muito diferenciada. E, que a proposta curricular na perspectiva rizomática não se efetive na prática. No entanto, essas conceituações, desestruturam qualquer base “sólida”, estabelecida em verdades ditas como absolutas, em poderes políticos, sociais, econômicos, fazendo cair às vendas que tapam os olhos dos múltiplos que se consideram uno. Desestabiliza os teóricos que discorrem sobre práticas curriculares, e seus objetivos pedagógicos, desestabiliza o ensino aprendizagem, desestabiliza a hecceidade que existe em cada multiplicidade. Certamente ela pode suscitar muitos embates, sobretudo entre aqueles que não querem se desprender de conceitos pré-estabelecidos, dos aprendizados e implicações de outras filosofias, de outros conceitos. Com efeito, negar ou não reconhecer a multiplicidade existente é negar a si mesmo, é negar as gerações, é negar os aprendizados, é, sobretudo, negar o que se é. Por isso, a escola é convidada a (re) significar suas práticas, superando hierarquias, e a tentação de determinar o que deve ser seguido. Cada escola, cada professor/a é convidado/a para assumir uma prática que favoreça a liberdade do aprender, a significação de algo no aprender. É permitir inventar. 188 Referências Bibliográficas DELEUZE, G.; GUATARRI, F. O que é Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, Gilles, 1925 – 1995, Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1/Gilles Deleuze, Félix Guattari; tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélioo Guerra Neto e Celia Pinto Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1995. 2ª edição – 2011. ESCOBAR, Carlos Henrique de, Dossier Deleuze, Hólon editorial, Copyright, 1991/ Carlos Henrique de Escobar. FISCHER, Rosa Maria Bueno, Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197-223/2001. GALLO, Silvio, Deleuze & a Educação / Silvio Gallo. – 2 ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2008. GELAMO, Rodrigo Pelloso, Introdução à filosofia da educação: temas contemporâneos e história/Pedro Pagni, Divino José da Silva (organizadores); Cláudio Roberto Brocanelli... [et al.]. – São Paulo: Avercamp, 2007. KASTRUP, Virgínia, Políticas Cognitivas na formação do professor e o problema do devirmestre. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1273-1288, Set./Dez. 2005. LINS, Daniel, Mangue’s school ou por uma pedagogia rizomática, Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1229-1256, Set./Dez. 2005. MACHADO, Roberto. Deleuze, Arte e Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. MOSTAFA, Solange Puntel, Para ler a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari / Solange puntel Mmostafa, Denise Viuniski da Nova Cruz. - - Campinas, SP: Editora Alínea, 2009. SCHÉRER, René, Aprender com Deleuze, Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1183 – 1194, Set./Dez. 2005. SILVA, Tomaz Tadeu da, Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeu da Silva. – Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ZOURABICHVILI, François, O vocabulário de Deleuze, tradução André Telles, Rio de Janeiro, 2004. 189 HERÁCLITO Prof. Dr. Fausto dos Santos Amaral Filho Heráclito de Éfeso certamente é um dos pensadores gregos que mais contribuiu para a constituição da filosofia, sendo, portanto, um dos alicerces originários do pensamento ocidental. Estando assim, instalado em nossas origens, permanece sempre adstrito à contemporaneidade, dando-nos ainda e sempre muito que pensar. Levando em conta a classificação historiográfica que costumamos seguir, é um filósofo pré-socrático; o que, dito dessa maneira, pouco nos diz a respeito daquilo que pensou, revelando-nos, antes, um aspecto da sua cronologia. Tendo isso em vista, melhor seria, talvez, fazermos como Aristóteles, chamando-o de physikós, ou seja, um filósofo da phýsis: aquilo que se manifesta enquanto abertura para um despertar. Como sabemos, a filosofia surge como uma tentativa de ruptura com a concepção exclusivamente mítica da realidade, até então vigente. Para os filósofos, pode-se dizer até hoje, não basta mais saber auscultar, repetindo, a linguagem dos deuses, o mythos, mas sim, estar aberto para as possibilidades do lógos: a fala que advém, sustentando, a ordenação (kósmos) daquilo que se mostra a partir do movimento de si mesmo (phýsis). É tendo isso em vista que podemos reafirmar que Heráclito é um filósofo exemplar. Conheçamos, pois, um pouco a respeito da sua vida. Ainda que não exclusivamente, a maior parte do que sabemos sobre a vida de Heráclito encontra-se em Diógenes Laércio, na obra intitulada Vida, opiniões e sentenças dos filósofos mais ilustres. No entanto, não esperemos de Laércio algo assim como uma biografia objetivamente constituída, aos moldes das exigências da historiografia moderna, o que ao seu tempo, evidentemente, ainda não era o caso. Provavelmente escrita por volta do terceiro século d. C., a obra de Laércio é uma espécie de compilação daquilo que as gerações anteriores haviam dito sobre os filósofos da antiguidade, em tom não raras vezes jocoso e fabulosamente mitificado. O que, é claro, antes de ser puramente um prejuízo historiográfico, 190 adentrando na seara da produção de sentido, ajuda-nos a compreender sobremaneira o impacto causado por Heráclito aos seus póstumos. Com alguma certeza podemos dizer que nosso filósofo nasceu em Éfeso, cidade situada na costa ocidental da Ásia Menor. Não podendo precisar a data do seu nascimento, nem da sua morte, sabemos, contudo, que sua vida transcorreu entre o final do século VI e o início do século V a. C., sendo que, o auge de sua existência - a faixa dos 40 anos – teria se dado em meio a sexagésima nona Olimpíada (entre 504 – 501 a. C.). Ainda segundo Diógenes Laércio, Heráclito teria sido uma pessoa admirável desde a sua infância. Filho da Aristocracia local, contudo, ao contrário do que comumente se esperava dos bem nascidos, recusou-se a participar do governo da cidade, tendo, inclusive, renunciado ao título de Rei em favor do seu irmão; ao que tudo indica, decepcionado com os rumos da política local, o que equivale dizer, de uma maneira geral, com a vida que então se levava em sua cidade. Deixando-nos antever a vocação político-pedagógica do filósofo, preocupado com a paidéia (educação) do cidadão, ao invés de imiscuir-se diretamente na política já corrompida da pólis, onde pouco ou quase nada de bom poderia ser feito, Heráclito retirou-se para o templo de Artemis, local apropriado para a constituição do saber, onde passava os seus dias entretido com as crianças, certamente preocupado com a formação (paidéia) dos futuros cidadãos. E, quando os seus conterrâneos o questionavam por essa sua atitude, sem papas na língua, repreendia-os: “Imbecis, o que isso tem de assombroso? Não será melhor passar o tempo assim, em vez de administrar o Estado em vossa companhia?”(LAÉRCIO, IX, 2). Por essas e outras ficou conhecido pelo seu caráter “excepcionalmente altivo e arrogante”(LAÉRCIO, IX, 1). Outro exemplo das ações político-pedagógicas de Heráclito – e da sua altivez – pode ser percebida pela seguinte história: estando a cidade de Éfeso cercada pelos Persas, os seus moradores não deixaram de levar a vida opulenta com a qual estavam habituados. Porém, quando se deram conta de que o cerco ao qual foram submetidos poderia durar algum tempo, comprometendo, assim, o abastecimento da cidade, os cidadãos reuniram-se para deliberar sobre o que poderia ser feito. Contudo, ninguém chegou a sugerir que deveriam precaver-se, refreando os seus impulsos, adotando um modo de vida menos faustoso, mais modesto. Foi então que Heráclito, em silêncio, juntando um pouco de farinha de cevada com água, sentouse no chão e comeu a mistura, “foi um lição para todos”(TEMÍSTIOS, DK 22 A 3b). Mas, além das suas ações silenciosas, nosso filósofo também sabia dirigir a palavra aos seus 191 concidadãos quando necessário: “Que a riqueza não vos venha a faltar, Efésios, a fim de vossa miséria desvendar-se toda”(Fr. 125). Ainda que uma parcela da tradição aponte para o fato de que Heráclito teria tomado aulas com Xenófanes e com o pitagórico Hipase (Cf. LAÉRCIO, IX, 5; SUDA, DK 22 A 1a), isto parece ser bem improvável112; reforçando, assim, a ideia de que “ele não foi aluno de ninguém”(LAÉRCIO, IX, 5), tendo sido “educado pela natureza e pelo seu próprio zelo”(SUDA, DK, 22 A 1a). Ideia essa propagada pelo próprio filósofo, “pois dizia que é necessário estudar a si mesmo e tudo aprender por si mesmo”(LAÉRCIO, IX, 5). Contudo, o que não significa dizer que Heráclito não conhecia, evidentemente, tanto a tradição míticopoética do seu tempo, quanto o pensamento dos filósofos de então, sendo-lhes, antes pelo contrário, por conhecê-los, um crítico ferrenho; como atesta o Fragmento 40: “Muito saber não ensina sabedoria, pois teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu”. Dessa maneira, sendo de fato um filósofo, como normalmente acontece quando efetivamente filosofamos, Heráclito não retirou o seu pensamento de uma cartola, como se o fizesse ex nihilo, por um passe de mágica, mas sim, adentrou em um diálogo crítico com a tradição filosófica do seu tempo através da sua historicidade própria. Sabemos que Heráclito escreveu um livro, embora não saibamos muito bem como a dita obra teria sido estruturada; assim como ocorre com todos os pré-socráticos, dos seus escritos restaram apenas fragmentos, recolhidos através de vários ensaios doxográficos, citações e testemunhos, cuja compilação mais famosa em nossos dias é aquela realizada por Hermann Diels, editada pela primeira vez em 1903 e revisada posteriormente por Walther Kranz em 1934 e em 1952. Como de resto acontece com praticamente todos os livros dos filósofos daquela época, consta que a obra de Heráclito também se chamava Sobre a Natureza (Perì Phýseos), e, a julgar pelo testemunho de Diógenes Laércio, escrita em prosa, ela estaria dividida em três seções: Do Universo, Da Política e Da Teologia (LAÉRCIO, IX, 5). Embora também saibamos da existência daqueles que defendem que a obra do filósofo teria sido escrita em versos, havendo ainda os que pensam que o livro de Heráclito seria uma espécie de compilação de sentenças e aforismos (Cf. COSTA, 2002). O fato é que, atentando para o estilo do que nos restou dos seus escritos, podemos notar um tom, além de apotegmático e críptico, um tanto quanto oracular. Estilo esse que, impondo sérias dificuldades para a 112 Para a confirmação de tal improbabilidade ver: SPINELLI, 1998. 192 compreensão do pensamento do filósofo, desde a antiguidade lhe valeu o epíteto de o obscuro. Por conta principalmente de Platão, influenciado sobremaneira por Crátilo, discípulo de Heráclito, nosso filósofo de Éfeso passou para a história como o pensador do constante devir, do fluxo contínuo de todas as coisas, pensamento este sedimentado na fórmula pánta rheî (tudo flui). Cujo fragmento mais representativo é aquele que nos diz que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”(Fr. 91). Aristóteles, seguindo o Mestre da Academia reforçou ainda mais esta interpretação, ressaltando os problemas que tal concepção impõe a filosofia113. Na modernidade é Hegel quem dá continuidade a esta interpretação, ao conceber a filosofia de Platão como a síntese dialética entre pensamentos opostos, o movimento em Heráclito (pánta rheî) e o repouso em Parmênides (hén kaì pán). E assim, no mais das vezes, é como continuamos a conceber até hoje o pensamento de Heráclito114. Contudo, ainda que reconheçamos a importância de tal interpretação para a constituição histórica da filosofia, se esquecermos um pouco esta tradição interpretativa e nos voltarmos diretamente para os fragmentos de sua obra, veremos que “a filosofia de Heráclito está longe de se reduzir à mera proclamação do fluxo universal das coisas”(REALE, 1993, p. 65). Pois, de fato, se tudo fluísse incessantemente, sem que nada pudéssemos apreender a não ser a mudança escorredoura, nenhum projeto pedagógico seria possível. O que, evidentemente, não é o caso do nosso filósofo, pois tanto quanto a filosofia de Platão educador por excelência -, a filosofia de Heráclito “tem, em geral, uma clara orientação educadora”(SPINELLI, 1998, p. 252). Assim, se de fato encontramos entre os quase cento e trinta fragmentos que temos de Heráclito, três que, através da metáfora do rio, ressaltam o fluxo constante das coisas115, lendo 113 “Como vissem que todo este mundo sensível está em movimento, e a respeito do que muda nenhuma declaração verdadeira se pode fazer, disseram que no tocante àquilo que por toda parte e a todos os respeitos está mudando, evidentemente nada se podia afirmar com segurança. Foi essa opinião que floresceu na mais extrema das doutrinas acima mencionadas, a dos que se dizem discípulos de Heráclito, qual a defendida por Crátilo”(ARISTÓTELES, Met. 4, 1010 a). 114 “É entre Parmênides e Heráclito que se abre o espaço em que, desde então, se faz Filosofia. Parmênides dizendo que Tudo é Uno, fornece o elemento do Logos universal que abrange tudo; Heráclito, dizendo que Tudo flui, que tudo é movimento de pólos opostos, fornece o elemento da Dialética. Hen kai Pan e Panta Rei, “O todo e o Uno” e “tudo Flui” são desde então lemas de toda e qualquer Filosofia”(CIRNE-LIMA, 1996, p. 23). 115 “Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores”(Fr. 12). “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”(Fr. 49a). “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”(Fr. 91). 193 os restantes podemos perceber claramente que, para o nosso filósofo, “o que tinha importância vital era a ideia complementar de medida inerente à mudança, a estabilidade que persiste através dela e a governa”(KIRK; RAVEN, SCHOFIELD, 1994, p. 192). Ideia essa presente, sobretudo, nos diversos usos que a palavra lógos comporta. Muito se fala sobre “a indigência da nossa língua ante a riqueza dos recursos verbais do povo”(SCHÜLER, 2007, p. 21) grego e, com isso, aponta-se para a dificuldade particular que a palavra lógos impõe aos seus tradutores, ainda mais nos usos que dela faz Heráclito. Assim como o nosso pensador, a palavra lógos empregada por ele “e aquilo que ela designa são obscuros”(HEIDEGGER, 2002, p. 251). Afinal, se Heráclito foi chamado de o obscuro é porque, ao fim e ao cabo, “ele pensa o ser enquanto o que se vela e tem que pronunciar a palavra de acordo com o que assim se pensa”(HEIDEGGER, 2002, p. 47). Como diz o Fragmento 123: “surgimento já tende ao encobrimento”. O lógos é justamente o que favorece este acontecer, na medida em que constitui o próprio acontecido; por isso é preciso saber escutá-lo: “Auscultando não a mim, mas o lógos, é sábio concordar que tudo é um”(Fr. 50). Dessa maneira, para tentarmos compreender melhor o que Heráclito nos faz pensar através do lógos, talvez o melhor seja pensarmos com ele; até mesmo porque, é bem provável que este seja um dos seus maiores ensinamentos pedagógicos, diga-se de passagem, muito propício para ser lembrado em nosso tempo, onde confundimos informação com conhecimento: acumular informações transmitidas não é exatamente compreender o mundo, devemos, antes, saber pensá-lo. Como diz o Fragmento 40 já citado anteriormente, só que agora em outra tradução: “A polimatia, ou o aprender muita coisa, não aperfeiçoa a inteligência”. Para Heráclito, a verdadeira paidéia, capaz de constituir a sabedoria, “consiste em uma simples coisa: conhecer o pensamento, que ordena tudo em toda parte”(Fr. 41), e não acumular uma infinidade de informações desconectadas da totalidade. Pois, desconectado do todo, imerso apenas e tão somente na acumulação, é o próprio homem que acaba perdendo as possibilidades de compreensão de si mesmo e do mundo, fragmentado na particularidade da percepção de cada um. Portanto, se a Educação tem a capacidade de desenvolver a totalidade das potencialidades humanas, e visto que “é dado a todos os homens conhecer-se a si mesmo e pensar”(Fr. 116), ela não pode se restringir ao acúmulo de informações, mas antes, deve “dar um rumo, um sentido básico a estas informações, na medida em que se estabelece um relacionamento adequado com o todo da realidade, de tal modo que a pessoa possa situar 194 qualquer realidade num todo coerente de sentido”(OLIVEIRA, 1997, p. 242). Esta é a tarefa própria do lógos pensante, da sabedoria, que conjuga informações, pois “pensar reúne tudo”(Fr. 113). Consequentemente, é “necessário serem os homens amantes da sabedoria para investigar muitas coisas”(Fr. 35). Se assim não for, ficamos como aqueles homens do Fragmento 34 do nosso filósofo: “Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta: presentes estão ausentes”; para os quais “lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono”(Fr. 1). Logo, isto é o próprio da Educação: desencobrir o mundo revelando-o para além do meramente aparente. Fazendo-nos perceber o extra-ordinário em meio à cotidianidade fenomênica que, no mais das vezes, imergindo-nos na azáfama das ocupações do dia-a-dia, oblitera tal possibilidade. Pois “o fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário”(KOSIK, p. 15, 1976), em conjunção com o lógos. Mas, para percebê-lo, é preciso saber auscultá-lo em meio à fragmentação da cotidianidade, para então perceber a unidade da totalidade, “pois tudo é uno, e o uno é tudo”(Fr.10). Pois bem, se Saviani tem razão, e “o clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual” (SAVIANI, 2008, p. 14), pelo que pudemos ver, com certeza, Heráclito é um clássico tanto para a Filosofia quanto para a Educação. Pois, recorrendo ao pensamento do Filósofo de Éfeso podemos pensar uma das questões mais urgentes para a Pedagogia na contemporaneidade: a fragmentação do mundo, que acaba por fragmentar o próprio homem, cerceando-lhe a possibilidade de viver a sua humanidade integralmente. Pois, afinal, como Oliveira não nos deixa esquecer: No sentido mais originário da palavra, é precisamente isto que o ocidente chamou de Educação, ou seja, o processo através do qual o homem singular e empírico adquire um relacionamento adequado com a totalidade, de tal modo que se abre o espaço para a efetivação de sua liberdade nas estruturas fundamentais de seu ser pessoal e social (OLIVEIRA, 1996, p. 240). 195 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Metafísica. Edición trilingüe por Valentin García Yebra. Madrid: Editorial Gredos, 1982. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die fragmente der vorsokratiker. Weidmannsche Verlagsbuchandlung, 1960. DIOGENES LAERTIUS. Life of eminent philosophers. Vol. I, II. England: Havard University Press, 1995. HEIDEGGER, Martin. Heráclito: lógica: a doutrina heraclítica do logos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. HERÁCLITO. Fragmentos. 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O fato desse livro compor a coluna vertebral dessa pesquisa constitui, também, uma homenagem a Adísia Sá, tanto pelo seu trabalho no 198 âmbito do ensino da Filosofia no Ceará quanto por sua iniciativa pioneira do registro desse ensino. O desenvolvimento do texto resultante da pesquisa vem sendo desenvolvido com o traçado de um quadro cronológico do ensino cearense de Filosofia, relativo ao período que vai de 1726 ao final do século XX e, dentre outras questões, apresenta: principais instituições e nomes representativos dessa história; existência de grupos não institucionais que contribuíram para a divulgação da Filosofia no Ceará; documentos que testemunham esse percurso de construção do ensino filosófico; e, finalmente, entrevistas com nomes que marcaram esse percurso. A seguir, serão apresentados aspectos sumariados dessa pesquisa visando compor uma sinopse cronológica desse ensino com os principais fatos que marcaram o estudo e o ensino da Filosofia no Ceará. A Colônia (1500-1822) e os primórdios do ensino cearense de Filosofia Para situar o estudo da Filosofia no Ceará é preciso remeter ao estudo da Filosofia no Brasil. A história do ensino da Filosofia no Brasil começa com o ato de D. João III determinando a vinda dos Jesuítas. Os primeiros chegaram ao Brasil em 1549, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega que, logo em 1553, fundou a escola primária Colégio dos Meninos de Jesus. Mas em virtude do projeto pedagógico da Companhia de Jesus priorizar o ensino secundário, essa escola, três anos após a sua fundação, foi transformada em nível secundário denominado Colégio de Jesus da Bahia. Essa mesma transformação foi acompanhada por todos os colégios jesuítas da Colônia. Dessa forma, assevera Lima (1972, p. 27): O Colégio de Jesus de Salvador é considerado o gérmen do ensino secundário no Brasil. Ali, na sua 6ª classe, nasceu também o ensino de Filosofia no Brasil. O Colégio Jesuíta de Olinda, de onde partiram os primeiros mestres para o Ceará, já incluía também no seu programa do 1º ciclo o ensino de Filosofia. Outro local de ensino de Filosofia no Brasil Colônia foram os seminários póstridentinos. O primeiro seminário deste tipo no Brasil foi instituído também na Bahia e teve a direção dos Jesuítas. Os estudos superiores aí presentes eram, prioritariamente, destinados à formação dos futuros membros da Ordem e, basicamente, ministrados pelos próprios Jesuítas (Wals, 1972). Muitos alunos ilustres da época frequentaram esses seminários que tinham a 199 preocupação de formar as elites espirituais dirigentes da nova terra. Essas escolas, juntamente com o seu modelo, foram se multiplicando conforme a colonização avançava no novo território. Com a fundação dos núcleos colonizadores, em 1607 aconteceu também a tentativa dos jesuítas para aldear os índios e desenvolver uma educação a partir das ideias inacianas. No Ceará, depois de percorrer os sertões cearenses, uma missão colonizadora missionária vinda do Maranhão e liderada pelos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira foi dizimada pelos índios Tabajaras na Serra da Ibiapaba (Cf. Lima, 1972, p. 25). Os documentos de 1720, cartas régias, representações, ordens régias, datas de sesmarias etc. (Cf. Lima, 1972, p. 29) constatam o aumento do aldeamento dos índios do Ceará, sob a direção dos missionários, com os padres Antônio Ribeiro e Pedro Pedroso. Nessa época, o aldeamento de Ibiapaba havia progredido bastante sob a jurisdição de Pernambuco. Em 1721, chegam mais padres da Companhia de Jesus para ajudar no aldeamento e na catequese dos índios. É quando surgem os primeiros ensinamentos de leitura e escrita, provavelmente em Viçosa e Aquiraz, sendo que o funcionamento dessas escolas cearenses aconteciam “nos moldes das outras escolas jesuítas, como o Colégio de Jesus em Salvador, fundado em 1553, e o Colégio Jesuíta de Olinda, fundado em 1570” (Lima, 1972, p. 27). Lima relata, ainda, que em 1721, D. João recomendou aos vereadores e oficiais de Aquirás que ajudassem o padre Antonio de Sousa Leal, que voltava às capitanias do Ceará e Piauí, para “continuar o ministério de missionário que nelas exercitou por espaço de 18 anos” (Studart apud lima, 1972, p. 29). Apesar de serem muito raros os dados dessas origens, há a informação segura de que em 1726 teria sido criada na capital da Província uma cadeira de Filosofia, apesar de nunca ter sido ministrada 116 (Cf. Alcântara, 1972, p. 13). Segundo Rodrigues (1972, p. 45) e Lima (1972, p. 27), devemos buscar as origens do ensino da Filosofia no Ceará no início do século XVIII e meados do século XIX nas iniciativas pedagógicas dos colégios secundários jesuítas, fundados em Viçosa e Aquiraz, 116 Em 1826, foi criada outra cadeira de Filosofia, que também não foi provida. Em 1830, foram instituídas as cadeiras de Geometria, de Português, de Francês e de Filosofia. Em 1831, foram criadas as cadeiras de Filosofia Racional e Moral, Retórica, Geometria e Francês, localizadas em Fortaleza. Todas elas, posteriormente, foram incorporadas ao Liceu do Ceará, fundado em 1844. 200 posteriormente fechados com a expulsão pombalina. Os programas adotados nos colégios jesuítas do Ceará deveriam ser os mesmos utilizados na Bahia e em Pernambuco, pois os padres que ensinavam aqui obtinham sua formação naquelas províncias. O Colégio de Olinda, por exemplo, ensinava no primeiro ciclo, além das primeiras letras, letras humanas, teologia moral e Filosofia (Cf. Rodrigues, 1972). Sendo que: Do colégio de Olinda é que vieram, mais tarde, os primeiros mestres do Ceará. Os primeiros colégios do Ceará foram fundados sob os auspícios dos mestres vindos de Olinda. Não há porque, pois, não admitir que nos colégios jesuítas dos inícios do século XVIII é que nasceu o ensino da Filosofia no Ceará. No colégio de Viçosa e no colégio de Aquirás (Rodrigues, 1972, pp. 45- 46). A expulsão dos Jesuítas, decretada por Pombal em 1759, praticamente paralisou o ensino de Filosofia no Brasil. Uma retomada mais dinâmica desse ensino só vai acontecer no período imperial. Nos séculos XVII e XVIII, o cearense só podia estudar Filosofia nos centros de estudos superiores fundados pelos Jesuítas ou em algum Seminário Maior. Como essas escolas não existiam no Ceará, era necessário o deslocamento até os centros de estudos superiores como, por exemplo, à Bahia onde existiam uma escola dos Jesuítas e o primeiro seminário pós-tridentino do Brasil. Praticamente não há registro sobre as obras e os filósofos estudados naquela época, mas é sabido que a maior parte dos jesuítas ensinava a Filosofia Escolástica, de cunho apologético. Essa filosofia que era ensinada nos centros de estudos superiores acabou influenciando fortemente o ensino de Filosofia no Ceará, pois os cearenses tiveram a sua formação filosófica nesses centros. Em 1800, na Província do Ceará havia apenas 5 escolas públicas de nível primário, para igual número de nível secundário (aulas de latim). Os que tinham maiores recursos iam para o Seminário de Olinda e os de menores recursos frequentavam essas escolas onde aprendiam somente a ler, escrever, calcular e rezar. Portanto, o povo não tinha acesso à instrução secundária, privilégio de uma elite econômica (Cf. Lima, 1972). Nesse período, final da Colônia e primórdios da Independência, um fato determinante para o ensino da Filosofia no Ceará foi a fundação do Seminário de Olinda, em Recife, no fim do século XVIII, mais especificamente entre os anos de 1798 e 1800. A elite intelectual que surgiu na Província cearense educada no Seminário teve relevante papel nas lutas republicanas de 1817, na Revolução do Equador de 1824 e no ciclo de movimentos liberais do 201 Nordeste. O currículo desse Seminário se orientava pelo enciclopedismo e pela Filosofia Iluminista que influenciaram a Revolução Francesa e incluía, além das matérias tradicionais, o estudo das línguas, desenho e ciências naturais. O Império (1822-1889) e a consolidação do ensino de Filosofia no Ceará Em 1826 foi criada em Fortaleza uma cadeira de Filosofia, no entanto, essa iniciativa caiu no vazio, pois com a expulsão dos jesuítas não havia ninguém que ensinasse essa matéria. A lei imperial de 1827 em muito beneficiou a educação brasileira. Foram inaugurados, por exemplo, os cursos jurídicos de Olinda, nos quais se formaram 42 cearenses até o ano de 1845. Eram nesses cursos que ocorriam o ensino da Filosofia, pois não existia nenhum magistério autônomo dessa matéria. Wals (1972, p. 85) assevera que “no começo do século XIX, o cearense ainda não encontrava na sua terra onde estudar a Filosofia”. Recife e Olinda representavam o centro eclesiástico e científico, incluindo medicina e engenharia, para onde os cearenses se dirigiam. E nesse âmbito é que se desenrolava o ensino da Filosofia, sempre agregado a alguma outra área. Aquela lei também decretava a criação de escolas primárias, chamada de primeiras letras, em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Dessa forma, foram criadas no Ceará mais de 20 escolas primárias e cinco aulas de latim, nas localidades de Fortaleza, Aquiraz, Icó, Sobral e Viçosa (Cf. Lima, 1972, p. 31). O ensino da Filosofia também é comtemplado nessa esteira de reformas educacionais promovidas no período imperial. Assim, na época da Regência Trina, em 1831, foram criadas em Fortaleza as cadeiras de Filosofia Racional e Moral, Retórica, Geometria e Francês. Infelizmente a cadeira de Filosofia não foi provida, por absoluta inexistência de quadros. Três instituições de ensino – Liceu do Ceará, Seminário da Prainha, Escola Normal – e um movimento cultural – Academia Francesa do Ceará – são significativos no ensino da Filosofia em terras cearenses no período imperial. O Liceu do Ceará foi fundado em 1844 e uma fase nova se abre para a educação cearense. Um enorme contingente de jovens alunos procura estudar no Liceu, pois era o estabelecimento de ensino secundário que respondia às exigências da época. Entre os alunos da primeira geração do Liceu do Ceará encontramos Farias Brito e Clóvis Beviláqua (Cf. Rodrigues 1972, p. 47). 202 Lima (1972, p. 32) relata que as cadeiras que compunham o currículo da nova instituição de ensino secundário eram: Filosofia Racional e Moral, Retórica, Poética, Aritmética, Geografia, Trigonometria, Geografia e História, Inglês e Francês. E alerta para dois fatos interessantes: o fortalecimento do ensino secundário da Filosofia no Ceará e a presença simultânea do inglês e do francês, demonstração da forte influência econômica e cultural da Inglaterra na nossa Província. Ao Liceu foi incorporada a cadeira de Filosofia criada em 1831 que nunca havia sido provida. Foi nessa instituição cearense que, de fato, pela primeira vez ocorreu um ensino mais sistemático do saber filosófico, bem como uma educação que possibilitasse aos cearenses uma formação a altura das outras Províncias. Rodrigues é enfático ao afirmar esse início: “O Liceu foi propriamente o primeiro centro cearense de expansão do ensino da filosofia. [...] a partir daqui, podemos dizer, nasce efetivamente o ensino da Filosofia no Ceará” (1972, p. 47). Apesar do estudo da Filosofia ter tomado um grande impulso a partir dessa época, no entanto, em 1845, sob a direção do Padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil, a Filosofia ensinada no Liceu era ainda muito ligada aos cursos jurídicos, o próprio Tomás Pompeu era formado em Faculdade de Direito de Recife. Wals (1972, p. 86) chega a afirmar que a Filosofia ensinada nessa época e nessa instituição era uma “Filosofia ‘pro forma’ dos cursos jurídicos, embora sustentasse o ensino da Filosofia, não cultivou a Filosofia pura”. Contudo, o Liceu por aproximadamente duas décadas permaneceu sendo o grande centro irradiador do pensamento cearense, incluindo aí o ensino de Filosofia. O Seminário Diocesano da Prainha foi fundado em 1864 e foi fundamental para o ensino da Filosofia no Ceará. Inicialmente o seu principal objetivo era proporcionar uma formação mais adequada dos candidatos ao sacerdócio no Ceará. O seu fundador, Dom Luiz Antônio dos Santos, instalou o Curso de Teologia, com duração de quatro anos, e o Curso de Preparatórios, com duração de seis anos, que incluía no seu sexto ano o estudo da Filosofia. Somente a partir do ano de 1913, é que o ensino da filosofia foi incorporado ao programa do Curso Superior do Seminário. A partir de 1964, o Seminário Provincial de Fortaleza foi entregue à direção dos padres diocesanos e no ano de 1966, uma parte dos seminaristas do curso Superior foi transferida para os seminários Regionais de Recife, Belo Horizonte e São Paulo. Antes desse 203 período, muitos dos seus alunos fizeram curso na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e depois voltaram para ensinar Filosofia no Ceará. Entre outros nomes ilustres, lecionaram no Seminário da Prainha, nos últimos anos acima referidos, os professores: Manfredo Tomás Ramos (Introdução à Filosofia e Lógica, Teoria do conhecimento, Metafísica, Teodiceia e Ética) e Paulo Melo Jorge, carinhosamente conhecido como Paulo Petrola (História da Filosofia). A Academia Francesa do Ceará foi fundada, em 1872, por um grupo liderado por Raimundo Antônio da Rocha Lima, inspirado na Escola do Recife117 que conheceu ao viajar para Pernambuco no ano anterior. O grupo da Academia era composto, dentre outros, por João Capistrano de Abreu, Tomás Pompeu de Souza Filho, João Lopes Ferreira Filho, Xilderico Araripe de Faria e Araripe Júnior, Clóvis Beviláqua, Joaquim Catunda, Farias Brito118. A Academia Francesa, tida como a primeira entidade de cunho filosófico do Ceará, teve um período de curta duração, 1872 a 1875, e uma existência não convencional, sem formação de diretoria, regulamento ou livro de ata. Da mesma forma, também, não deixou um legado bibliográfico expressivo: A Academia foi um grupo que [...] ‘utilizava as ideias livres, arremessandoas contra o romantismo acomodado, pondo em espanto e inquietação o tradicionalismo provinciano, que ainda ignorava ou fingia ignorar o tumulto que, do recife, saía aos quatro ventos [...]. [...]. As reuniões da Academia eram na casa de Rocha Lima e as discussões versavam sobre os mais palpitantes temas filosóficos da época, desde o comtismo puro, ao racionalismo, da revolução francesa, à Filosofia alemã e sobre a Índia (Sá, 1972, p. 127-128). A Academia Francesa do Ceará teve dois grandes desdobramentos de suas atividades, o Jornal Fraternidade, fundado a 4 de novembro de 1873, e a Escola Popular, criada a 31 de maio de 1874. O jornal se caracterizava por uma postura nitidamente contrária ao Clero, e de inspiração fortemente maçônica. A escola, por sua vez, era frequentada por “pobres e operários” e também pela sociedade fortalezense em geral. (Cf. Sá, 1972, p. 128). 117 Importante movimento filosófico, político e cultural, encabeçada por Tobias Barreto e Silvio Romero, surgido em Pernambuco em 1870. 118 Outra instituição importante no ensino da Filosofia no Ceará nessa época da Academia Francesa foi o Seminário do Crato, fundado em 1875, que funcionava de modo suplementar ao Seminário da Prainha. Em ambos funcionavam o Curso de Preparatórios. 204 O outro estabelecimento importante no ensino da filosofia no Ceará foi a Escola Normal, inaugurada em 1884, depois de um longo processo que se arrastou desde 1837, quando foi instalada uma Escola Normal temporária de primeiras letras sob a presidência da Província de Martiniano de Alencar. A lei que instituiu inicialmente a implantação da Escola Normal foi suspensa sob a alegação do tesouro provincial não suportar os gastos necessários à sua criação e funcionamento, bem como, devido ao fato de seu mentor ter deixado o governo. Depois de suspensa a implantação da Escola Normal, o seu projeto é retomado em 1881 funcionando em um anexo ao Liceu do Ceará, mas somente em 1884 é finalmente inaugurada a Escola Normal, com a finalidade de preparar professores para erradicar o analfabetismo dos jovens que predominava na Província. (Silveira, 1990, p. 21). O ensino de Filosofia ministrado na Escola Normal foi estreitamente ligado à Filosofia e História da Educação, com caráter predominantemente pedagógico (Cf. Sá, 1972, p. 57 e Silveira 1990, p. 91 e ss.). Silveira (1990, p. 21) ressalta que o ensino normal no Ceará e no Brasil tem início efetivo na época da influência do pensamento liberal e sua defesa da liberdade, igualdade, democracia e do direito à escola pública, bem como da campanha abolicionista e das ideias republicanas. A República (1889 – 1990) e a expansão do ensino de Filosofia no Ceará No início do século XX a instituição marcante no ensino de Filosofia no Ceará foi a Faculdade de Direito, que teve inicialmente a denominação “Academia Livre de Direito do Ceará”, instalada no dia 1º de março de 1903. O Curso de Direito inicia neste mesmo ano sob a tutela do Estado e somente em 1938 tem seu reconhecimento oficial pelo Governo Federal. Vários estudiosos chamam a atenção para o fato importante da predominância da Filosofia no cerne do ensino do Curso de Direito do Ceará. No quadro das disciplinas, por exemplo, desde o começo a Filosofia do Direito fazia parte das disciplinas da Faculdade (Cf. Kelly, 1972, p. 120). Outro elemento importante a ser considerado no que diz respeito à Faculdade de Direito ser uma instituição representativa no ensino da Filosofia no Ceará, é a presença, desde o início, em seu corpo docente, de uma das figuras mais representativas no ensino e pesquisa nessa área, o Professor Alcântara Nogueira; estudioso que posteriormente ocupou diversas 205 disciplinas filosóficas em várias instituições de ensino, bem como produziu uma vasta obra de estudos filosóficos. A Escola Militar do Ceará, por sua vez, foi fundada em 1889 e funcionou até 1897 com a missão de formar oficiais de carreira do Exército. Em seu lugar foi criado o Colégio Militar do Ceará que funcionou de 1919 a 1938, sendo substituído pela Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza em 1942 que teve duração até 1961 quando foi criado em seu lugar o Colégio Militar de Fortaleza, funcionando até hoje (Cf. Marques, 2009, p. 10). É nesse contexto do ensino militar que permanece o ensino da Filosofia no início do século XX em terras cearenses. Rodrigues (1972) informa que além do Liceu do Ceará e do Seminário da Prainha, somente o Colégio Militar do Ceará dava continuidade ao estudo da Filosofia. Sá (1972, p. 55) informa também que no Colégio Militar o ensino de Filosofia a partir de 1968 era ministrado somente em uma série, o 2º científico, tendo esta matéria a duração de dois anos, tinha o caráter reprovativo e sua carga horária era composta de três aulas semanais. O conteúdo do programa era: Introdução à Filosofia; Psicologia; Lógica; Filosofia da Arte; Moral. Atualmente a disciplina de Filosofia é ensinada no Colégio Militar de Fortaleza (CMF), seguindo as orientações do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) e as determinações da lei que estipula a volta obrigatória dessa matéria no ensino médio (Silva, 2009, p. 46-47). No Ceará, a presença dos capuchinhos no ensino de Filosofia tem maior expressividade a partir da década de 40 do século XX. Em Sobral, Dom José é responsável pela vinda de vários frades e pela ordenação desses religiosos, que foram extremamente importantes no desenvolvimento cultural daquela cidade. Há indício da criação de um curso de Filosofia em Sobral nesse período, mas o que teve maior repercussão foi o da Serra de Guaramiranga, no qual tinha no currículo as seguintes disciplinas: Introdução à Filosofia; Lógica; Cosmologia e Psicologia Racional; Metafísica; Teoria do Conhecimento; Teodiceia; Ética e História da Filosofia (Kelly, 1972, p. 106). O Centro de Ciências e Filosofia do Ceará, criado a 04 de agosto de 1945, “instituiu-se para servir à cultura científica e filosófica do Ceará”, segundo os seus fundadores. Em sua curta existência, nunca chegou a ter sede própria, realizando suas sessões em salas cedidas pelo Palácio do Comércio, Rotary Clube e Instituto do Ceará. Moradores de 206 Fortaleza, seus fundadores e outros sócios eram estudiosos reconhecidos daquela época, que acabavam por se reconhecerem e se agregarem, principalmente pelo objetivo comum de valorizar a ciência e a Filosofia mediante a hegemonia da literatura nos círculos intelectuais da cidade (Cf. Sá, 1972, p. 129). No dia 4 de maio de 1946, Aluísio Pinheiro lança uma declaração em meio a uma crise de desânimo vivida pelo grupo, com o título oficial de Proclamação ao Centro de Ciências e Filosofia, no qual convoca para a retomada do ânimo inicial do grupo expondo os motivos maiores da luta pela sobrevivência do Centro e de sua importância histórica, ou seja, a pesquisa científico-filosófica em meio à predominância literária e seu espírito vanguardista. Assim, o Centro seria: A única instituição científica do Ceará, todas as demais sendo literárias ou paraliterárias; a única em que a liberdade de pensamento é um fato; a única que é formada pela mocidade estudiosa de nossa capital e ainda, finalmente, a única que não há velhos, a cousa mais perigosa nestes tempos de transformação político-sociais, pois todo velho, em tese, é um empecilho à evolução (Pinheiro apud Sá, 1972, p.263). Em seu discurso, Pinheiro apresenta diversos fatores que comprovavam o baixo nível de cultura científica e filosófica em nossa terra, que chegava mesmo a ser um “menosprezo pela Ciência”: a ausência de obras de ciência pura nas livrarias; nos colégios, a existência de grêmio de cultura literária e nenhum de estudos científicos; excesso de professores de línguas, escassez de professores de Matemática, Física, Química e Biologia; o não reconhecimento social das pessoas que estudavam ciência. No Ceará, enquanto os homens de ciência eram esquecidos, havia quase um enaltecimento místico dos seus homens de letras. No Centro de Ciências e Filosofia do Ceará havia uma discussão constante entre seus membros sobre a necessidade de se criar uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em Fortaleza. E assim, foi a partir do Centro que se conseguiu fundar a Faculdade Católica de Filosofia. Talvez o fruto mais importante daquele grupo de jovens professores. Aluísio Pinheiro, além de membro do Centro, era professor do Colégio Cearense Marista, onde mantinha excelentes relações com a ordem mantenedora daquela instituição. Precisamente por esses fatos, é que ele foi encarregado de expor aos maristas a importância de se ter na capital cearense uma Faculdade de Filosofia que viesse a cumprir os objetivos ansiados pelo Centro, relativamente à uma formação mais científica e filosófica da juventude fortalezense. O fato é que a ideia obteve um êxito rápido e em 11 de abril de 1947 a Faculdade foi criada (Cf. Sá, 1972, p. 133). 207 Dessa forma, a criação da Faculdade significou a extinção do Centro, que a partir daí teve todos os seus membros voltados para a nova Faculdade: “algumas reuniões do grupo aconteceram na própria Faculdade, mas já sem o grande estímulo inicial, transferido completamente para a Católica” (Sá, 1972, p. 134). Outro grupo de estudos filosóficos é fundado em maio de 1960 em Fortaleza, o Instituto Cearense de Filosofia. Seus fundadores eram tais como: Moacir Teixeira de Aguiar, Paulo Bonavides, José Teixeira de Freitas, José Parsifal Barroso, Luís Gonzaga Coelho de Albuquerque, Afonso Banhos, Álvaro Menezes Craveiro e pe. Francisco Luz. Paulo Bonavides foi o presidente na primeira diretoria do Instituto (Sá (1972, p. 135). Em outubro de 1960, o Instituto Cearense de Filosofia, que nasceu autônomo, foi absorvido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia que estava em plena expansão nacional, capitaneada pelo seu presidente Miguel Reale. Assim, houve a reinstalação solene da sociedade, agora sob o nome de Instituto Brasileiro de Filosofia, Secção Ceará. Ou seja, ocorreu a absorção do grupo cearense I.C.F. pelo IBF. Miguel Reale estava presente nessa solenidade e proferiu uma oração, transcrita posteriormente em um número da revista do Instituto, sob o título: A Filosofia como auto-consciência de um povo (Sá, 1972, p. 138). A sede do Instituto, instalado em 1960 na Faculdade Católica, ali permaneceu até o ano seguinte (Cf. Sá, 1972, pp. 141-142). O Instituto Brasileiro de Filosofia, Secção do Ceará, publicou seus estatutos em novembro e lançou mais um número da Revista Filosófica do Nordeste, que teve o seu primeiro número em setembro de 1960 com edição da Imprensa Oficial do Ceará. (Cf. Sá, 1972, p. 137). O diretor da Revista Filosófica do Nordeste era Paulo Bonavides. O segundo número da Revista foi apresentado na Livraria Renascença e trouxe trabalhos de Miguel Reale e Paulo Bonavides, bem como uma entrevista com Jean Paul Sartre concedida ao Instituto Brasileiro de Filosofia – Secção do Ceará (Cf. Sá, 1972, p. 139). Em 1963 saiu o terceiro número da revista, para a qual Miguel Reale colaborou com um artigo. E “em 1967, sai o 4 º número da revista, sob os auspícios, desta vez, da Secretaria Estadual de Cultura, (desmembrada da Secretaria de Educação) composto e impresso no departamento de Imprensa Oficial” (Sá, 1972, p. 140). O Regimento Interno do I. B. F. Secção Ceará, assinado pelo presidente Paulo Bonavides e publicado no Diário Oficial, em novembro de 1961, indica que seus objetivos e a suas atividades eram, dentre outros: congregar no Ceará os estudiosos da Filosofia; promover 208 a Filosofia através de cursos, conferências, simpósios, seminários, congressos regionais, nacionais ou internacionais; publicar semestralmente a Revista Filosófica do Nordeste; manter intercâmbio filosófico com outros países; patrocinar a publicação de obras filosóficas; conceder bolsas de estudo aos seus associados no País e no estrangeiro; colaborar com a Universidade do Ceará e Faculdades de Filosofia nas pesquisas, estudos e divulgação de obras filosóficas; manter biblioteca especializada; (Cf. Sá, 1972, pp. 268-269). O IBF, Secção Ceará, realizou dois grandes eventos filosóficos em Fortaleza. Em 1961, o Instituto promoveu, juntamente com a Faculdade Católica de Filosofia, a Semana da Antropologia Filosófica. Em 1962, organizou o IV Congresso Nacional de Filosofia (Sá, 1972, p. 142). Em 1966, a Faculdade Católica de Filosofia do Ceará foi encampada pelo Estado e passa a se chamar Faculdade de Filosofia do Ceará - FAFICE através de Decreto estadual do Governador Virgílio Távora. Assim, o Decreto estadual determinou também a encampação ao patrimônio estadual do acervo do material da antiga Faculdade, bem como de equipamentos, instalações, direitos e obrigações. Da mesma forma, o pessoal docente e administrativo foi aproveitado no Serviço Público da nova Faculdade na qual continuaram funcionando os cursos de Letras, Geografia, História, Pedagogia, Filosofia e Matemática. Assim, a FAFICE, criada em 1966 como resultado da encampação da antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará fundada pelos Maristas em 1947, que, por sua vez, foi inspiração do Centro de Ciências e Filosofia do Ceará, fundado em 1945, somente fez seu primeiro concurso de provas e títulos para os cargos de professor adjunto em 1968. A parte do Edital relativa ao Departamento de Filosofia abrangia duas áreas: uma vaga para a área de Metafísica, compreendendo Ontologia, Gnosiologia, Cosmologia e Teodiceia; uma vaga para a área de Antropologia Filosófica, abrangendo Antropologia, Ética, Axiologia. Na área de metafísica foi aprovada em primeiro lugar Maria de Adísia Barros de Sá e na área de antropologia Filosófica foram aprovados dois candidatos, Expedito Teles e Mirtes Mirian Amorim Maciel, ambos contratados pelo Departamento de Filosofia. (Cf. Kelly, 1972, pp. 113-112). Contudo, foi somente na III Semana Pedagógica de 1970, que a Filosofia, pela primeira vez, constou do quadro das disciplinas para análise dos programas. Até então, o programa ou roteiro da Filosofia no ensino médio, seguido pelos professores dos colégios 209 oficiais do estado, datava de 1968, e foi elaborado pela Comissão Técnica do Departamento de Ensino do Segundo Grau, com a presença de professores da matéria. Nessa época de Ditadura Militar, encontros semelhantes à Semana Pedagógica eram escassos, o que transformava o pequeno número de professores de Filosofia em um grupo disperso, forçados a serem meros espectadores da exclusão da Filosofia dos currículos dos estabelecimentos do Estado. Assim, O programa de Filosofia nos colégios oficiais do Estado ficou praticamente, durante este período, a critério de professores. Sabe-se, e convém que se diga, que os poucos professores de Filosofia continuaram ministrando a disciplina segundo o programa traçado pelo MEC, isto é, os constantes da portaria nº 966, de 2 de outubro de 1951, inclusive depois de retirada a disciplina do chamado científico. Isto é, ficou sendo lecionada a parte referente ao antigo clássico, sob critério do professor, evidentemente, até 1968 [...] (Sá, 1972, p. 58). O resultado da participação de professores e alunos da faculdade de Filosofia do Ceará junto à III Semana Pedagógica, em 1970, foi a elaboração da proposta de um currículo para o Conselho Estadual de Educação. Sá (1972, p. 67) informa que esse currículo “não levou em consideração conveniências de grupos ou pessoas; foi um currículo elaborado dentro de uma Filosofia educacional realista”, voltado para a nossa realidade. Os proponentes desse currículo foram Mirtes Miriam Maciel, Francisco Auto Filho, Wilson Noca, Francisco de Assis Santos Oliveira e Adísia Sá, professores e alunos da Faculdade de Filosofia do Ceará e levado ao C.E.E. em nome do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia do Ceará (Cf. Sá, 1972, p. 68). No Ceará, em 1971, ainda em função do Preparatório para o Vestibular, o ensino da Filosofia estava presente nos cursos de preparação para o vestibular voltado para as Graduações na área de Humanidades (Grupo B), o chamado Clássico. Nos cursos preparatórios para o vestibular para as Graduações na área das Ciências (Grupo A) não havia aulas de Filosofia. Em função da maior procura para as escolas da área A, os colégios foram eliminando as turmas B (ou clássico), resultando que em 1971 apenas dois estabelecimentos de ensino secundário oficial do Estado (Justiniano de Serpa e Liceu) que ministravam Filosofia e somente nas duas últimas séries (Cf. Sá, 1972, p. 55). A situação era a mesma nos colégios particulares. No Colégio Batista, por exemplo, Filosofia era ensinada nas três séries do Clássico. Em 1970 a cadeira ficou restrita ao 2º 210 clássico, numa turma de 33 alunos, fechando definitivamente em 1971, e, consequentemente, deixou de existir a cadeira de Filosofia (Sá, 1972, p. 55). Pouco resultado teve a luta por um novo currículo de Filosofia, pois essa disciplina foi retirada do Vestibular da Faculdade de Filosofia do Ceará, inclusive do vestibular do curso de Filosofia. Essas alterações foram instruídas pelo próprio Ministério de Educação e Cultura, da mesma forma que no dia 11 de agosto de 1971 foi assinada a Lei nº 5692, que fixava as diretrizes e bases para o ensino do 1º e do 2º graus, bem como as Normas do Conselho Federal de Educação fixavam as disciplinas a serem ministradas nos 1º e 2º graus. E entre elas não constava a Filosofia (Sá, 1972, pp. 77-78). Ainda no final da década de 1960, surge outro centro de estudo de Filosofia, Centro de Estudos, Pesquisas e Debates (CEPEDE) ligado ao Departamento de Filosofia e Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal e tinha como principal objetivo “divulgar a necessidade do estudo da Filosofia e da reflexão, notadamente no meio universitário, e ainda o de despertar estudantes do ensino médio para o Curso de Filosofia” (Sá, 1972, p. 155). Através do artigo 3º dos Estatutos do Cepede, que trata de suas finalidades, Sá (1972) oferece uma noção geral desse Centro de Estudos, Pesquisa e Debates. a) promover estudos, debates, seminários, cursos, conferências e pesquisas relacionadas à Educação e à Cultura, principalmente nas áreas do direito, Filosofia, Cultura, Medicina e Pedagogia, para o que utilizará a experiência e a capacidade de pessoas e técnicos devidamente habilitados; b) realizar por si só ou com entidades governamentais e privadas Cursos de Divulgação Cultural em nível médio e superior, nos campos a que se refere o item anterior; c) publicar, segundo as conveniências e as possibilidades financeiras, revistas e informes de cunho cultural e educacional e o resultado de suas atividades, preferentemente em edições próprias; d) manter relações com entidades congêneres, nacionais e estrangeiras, no País, visando à divulgação e ao interesse das atividades do cepede; e) organizar e promover, quando possível, certames úteis à integração social dos jovens; Exposições artísticas; exibições de filmes e festivais que contribuam para o levantamento dos padrões culturais da comunidade e para a afirmação da cultura brasileira (Sá, 1972, p. 156). Em novembro de 1969, para cumprir essa finalidade de difundir o conhecimento filosófico, o Centro promoveu o 1º Seminário de Estudos Filosóficos. Assim, o 1º Seminário de Estudos Filosóficos do CEPEDE foi promovido pelo Departamento de Filosofia e Direito do Cepede, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia do Ceará e Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará. A pretensão inicial era a de que ele fosse o primeiro de uma série de outros cursos sobre Filosofia, mas infelizmente ele foi o único. 211 No dia 2 de fevereiro de 1971, a Arquidiocese de Fortaleza publicou o Decreto nº 15, do Governo da Arquidiocese de Fortaleza, formando o Instituto de Ciências Religiosas juntamente com a criação de um curso de Filosofia na denominada Faculdade de Filosofia da Fortaleza – FAFIFOR. O Curso funcionava atrelado ao Departamento de Antropologia. A Coordenadoria Pastoral, após estudos realizados em 1966-1967, relativamente ao Plano de Pastoral de Conjunto da Arquidiocese, conclui que havia necessidade de reformas estruturais de base para se adequar aos problemas levantados pela Pastoral do Concílio Vaticano II. Uma iniciativa urgente a ser tomada era a criação e organização do Instituto Superior de Cultura Religiosa, que seria também o Seminário Maior da Província de Fortaleza. Para o decreto de criação, o Instituto teria importante papel na “formação de todo o Povo de Deus”, bem como economizaria os altos custos com pessoal e prédios relativos à multiplicidade de órgãos religiosos então existentes. Da mesma forma, o Instituto teria um papel de aglutinar e fortalecer as vocações religiosas para a vida pastoral, fortalecendo as tradições espirituais do presente e das futuras gerações em um projeto coletivo (Cf. Kelly, 1972, p. 103). Quanto ao funcionamento e objetivos do Instituto Superior de Cultura Religiosa, podem-se realçar os seguintes aspectos: não tinha o objetivo imediato de formar sacerdotes; funcionaria com o Departamento de Teologia, com cursos menores, e com o Departamento de Pastoral, ministrando cursos de Missiologia, Catequese, Liturgia, Ecumenismo etc.; teria um Departamento de Antropologia visando suplementar a formação de universitários das Faculdades leigas; poderia desenvolver trabalhos de pesquisas por meio do departamento especializado no assunto (Cf. Kelly, 1972, p. 105). A Faculdade de Filosofia de Fortaleza foi criada em dezembro de 1971 e aprovada pelo Conselho Federal de Educação (CFE) e, no ano seguinte, por decreto presidencial. Sua implantação e funcionamento tiveram o suporte das instalações e da biblioteca do antigo Seminário da Prainha. Foi organizada em quatro departamentos: Filosofia, Ciências Sociais, Pedagogia e Teologia, oferecendo o curso de Filosofia e Teologia. Teve uma duração de aproximadamente quinze anos, quando começa a ser extinta em 1987, com a transferência de seus alunos para a UECE, e fechando suas portas em 1989 (Cf. VIEIRA, 2002, p. 295). Em 1977, foi criada a Universidade Estadual do Ceará (UECE), que integrou ao Patrimônio Público Estadual diversas faculdades, dentre elas a FAFICE, bem como o Curso de Filosofia, dentre outros. Em 1984 a UECE acolheu os alunos da extinta Faculdade de 212 Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR), oriunda da Arquidiocese de Fortaleza. A tradição do Curso de Filosofia na UECE é a Licenciatura, que funciona conjuntamente com o Bacharelado. Até a década de 70 funcionava somente a Licenciatura em Filosofia. Já na década seguinte foi criado o Bacharelado. Em 1998 foi fundado o Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE, tendo como linhas de pesquisa: Ética Fundamental, ética e Filosofia Social e Política. A UFC criou a Graduação em Filosofia em 2000, e o ensino de Filosofia em nível de pós-graduação com o Mestrado em Filosofia, em 1999, e o Doutorado em Filosofia em 2011, ambos com duas linhas de pesquisa: Filosofia da Linguagem e do Conhecimento; Ética e Filosofia Política. Conclusão Este trabalho investigativo já vem sendo desenvolvido há alguns anos e com certa dificuldade, pois os materiais relativos ao ensino da Filosofia no Estado do Ceará são quase inexistentes. Esse fato demonstra o descaso da nossa cultura com a própria preservação da memória histórica e é justificativa expressiva para a presente pesquisa. As entrevistas com algumas figuras representativas dessa trajetória não poderam ser apresentadas aqui em virtude do espaço, mas constarão no livro a ser publicado quando do término dessa pesquisa em andamento. Apesar dessa primeira etapa da pesquisa ser predominantemente de exposição cronológica, há o objetivo de desenvolver a investigação para rumos mais analíticos, buscando uma problematização social do desenvolvimento do ensino da Filosofia no Ceará. 213 REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, José Denizard Macêdo de. Subsídios históricos para a Filosofia cearense. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). LIMA, Domingos Andrade. O Estudo da Filosofia no Ensino Médio Brasileiro. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). MARINHO, Cristiane M. A Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e a Filosofia da Educação no Brasil. Relatório de pós-doutorado UNICAMP. Campinas, SP, 2012. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000851942 MARQUES, Janote Pires. A casa do amor imorredouro: História e Memória da Educação Militar no Ceará. In: Educare Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza, FortalezaCE, v. 1, n. 1, 131 p. jun. 2009. RODRIGUES, Padre Antônio Sidra. Origens do Ensino da Filosofia no Ceará. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). SÁ, Adísia. O lugar da Filosofia na Escola Média Cearense Contemporânea. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). 214 SILVEIRA, Yolanda Perdigão. Formação da professora primária na escola pública: reprodução ou transformação. Dissertação de Mestrado. UFC. 1990. SILVA, Maria Regina Ponte da. Perspectivas sobre a obrigatoriedade da filosofia no Ensino Médio. In: Educare Revista Científica do Colégio Militar de Fortaleza, Fortaleza- CE, v. 1, n. 1, 131 p. jun. 2009. WALS, Padre Brendan Patrick. A Filosofia no Ensino Superior. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). KELLY, Padre Michael Augustine. Filosofia no Curso Superior do Ceará. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). SÁ, Adísia. Entidades e Estudos Filosóficos. In: Ensino da Filosofia no Ceará (Coord. Adísia Sá). Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas). VIEIRA, Sofia Lerche. História da educação no Ceará: sobre promessas, fatos e feitos. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. 215 CONTRIBUIÇÕES DA IMAGINAÇÃO CRIADORA NA FORMAÇÃO DA CRIANÇA NAS FASES INICIAIS DE ESCOLARIZAÇÃO Meire Luci Bernardes Silva Machado UNIUBE/Brasil [email protected] Adriana Paula Martins – UNIUBE/Brasil [email protected] Sueli Terezinha de Abreu Bernardes (Orientadora) REDECENTRO/UNIUBE/BRASIL [email protected] Resumo Este texto tem como tema as contribuições da imaginação criadora na formação da criança nas fases iniciais de escolarização, na perspectiva teórica de Gaston Bachelard. O estudo tem como objetivo compreender como a imaginação criadora despertada pelo contato com a arte contribui para a formação da criança nas fases iniciais de escolarização. Entre as teorias que discutem a relação de complementaridade entre o imaginário e o real está a fenomenologia 216 bachelardiana. A importância dessa teoria para o campo da educação emerge da afirmação de que o contato com a arte viabiliza a experiência de transformação, de metamorfose do sujeito. Assim, torna-se necessário analisar as implicações a as relações da imaginação criadora com o processo formativo do aluno em sua escolarização inicial. O estímulo ao imaginário nessa construção do saber nos períodos iniciais possibilita momentos de constantes descobertas. Nessa fase, a criança está à procura do novo, do desconhecido. Tudo se torna ações dinâmicas, um constante desafio para ela explorar, inventar, recriar seus caminhos de aprendizagens. Este tempo de "aprender a fazer", de "construir" é um caminho à ser guiado pela imaginação criadora. O devaneio poético que o contato com a criação artística proporciona leva o aluno a querer realizar o que imagina, o que sonha. Discussões como essa podem contribuir para reflexões sobre a complementaridade entre a ciência e a imaginação criadora no campo da filosofia da educação. Parte-se da questão: como a imaginação criadora contribui para a formação da criança nas primeiras fases de escolarização? Nos momentos em que ela se encontra em ações de construção e descobertas como a brincadeira, o brinquedo, as artes plásticas, as artes cênicas e a construção e a manipulação de diferentes objetos, ela viverá uma experiência que lhe possibilitará uma relação do real com o imaginário. Essa vivência dos anos iniciais de aprendizagem escolar proporciona um diálogo transformador na busca do conhecer, do aprender e do criar, tendo o fazer, o experimentar, o brincar e o imaginar como fontes de aprendizagem. Palavras-chave – Fenomenologia bachelardiana. Imaginação criadora. Arte. Formação da criança. Introdução É com interesse em ressaltar os diversos caminhos que a educação concede na formação da criança, e as relações com a imaginação criadora, que se aproxima neste texto das reflexões e contribuições sobre um modo de compreensão da imaginação como fonte primeira para o processo ensino-aprendizagem. O que se pretende apresentar é como a imaginação criadora contribui para a formação do ser, em fases iniciais de seu período escolar. Para fundamentar esta questão relacionada ao desenvolvimento total do ser humano e seu mundo, nessa fase de desenvolvimento da criança, busca-se por meio de uma pesquisa bibliográfica, enfatizar, sobretudo, nesse artigo autores como Gaston Bachelard (1996) e sua 217 comentadora brasileira a Sandra Richter (2006, 2009), cujas pesquisas e estudos proporcionam maior entendimento e compreensão sobre o tema. O filósofo francês desenvolve a fenomenologia da imaginação em sua obra filosófica, na qual se inspira nas imagens criadas pelos devaneios dos poetas. A comentadora em questão apoia-se na fenomenologia bachelardiana em suas pesquisas sobre a educação infantil. As fases iniciais da criança nos oportunizam identificar que é por meio das experiências vividas com o fazer, o experimentar, o brincar, o imaginar que se concebe a verdadeira fonte de aprendizagem por diferentes vias de leitura das linguagens plásticas, poética, corporal e lúdica. Portanto, entre os veículos para essa viagem do imaginário no real, estão os procedimentos utilizados pelos docentes, que poderão permitir grandes e inovados momentos para essa aprendizagem. A formação implica essencialmente uma desconstrução e reforma do sujeito. Os obstáculos no percurso para a construção do conhecimento devam ser destruídos na tentativa de acertos e erros, pois o erro se impõe como mola propulsora para o desenvolvimento do saber. Segundo Bachelard, é nas atividades intersubjetivas empreendidas em sala de aula entre mestre e aluno (docente – discente) que o racionalismo se espelha, é fundamental para o ser. Essa razão pedagógica é variável e seus princípios, assim como os próprios conteúdos pedagógicos, se transformam ao longo de sua trajetória de processo. A imaginação criadora Por meio deste estudo busca-se uma aproximação com tema da imaginação criadora e a infância em suas fases iniciais de escolarização, considerando que essa seja uma etapa de grandes descobertas. O interesse em pensar a relação entre imaginação criadora e as ações educativas com crianças, é o da promoção da aprendizagem vivenciada em uma linguagem de formação humana completa, seja plástica, poética e corporal. Uma construção do saber entrelaçada às realizações da infância. Nessa dimensão da imaginação criadora explicita-se o poder do lúdico, que transforma os diferentes momentos de convivência da criança, seja ela coletiva ou individual. É um período da vida da criança em que ela pode ser estimulada em busca de uma projeção de descoberta, como diz Bachelard (apud BARBOSA e BULCÃO, 2004 p. 41), “um 218 voo ascensional, é um dos aspectos primordiais da imaginação criadora que impulsiona o ser num movimento vertical, uma ponte entre a terra e o céu, o finito e o infinito”. Pela imaginação se constitui autonomia, é a própria mola da produção e aceleração do psíquico, ela provoca um fluxo de imagens novas. Nessa vertente fica claro que a imaginação liberta e impulsionam o homem para uma busca de si mesmo, imagens que ultrapassam a realidade. Para Sandra Richter (2006, p. 24), a criança impõe “atividades” modeladoras de uma realidade prenomeada. Ela considera importante problematizar as concepções de imaginação criadora que orientam o ato de “educar a visão” infantil. A experiência problematizada na infância decorre diretamente da intencionalidade das ações pedagógicas propostas. É importante que a imaginação é que faz fluir a inesgotável “criatividade”. São muitas ações e dinâmicas empregadas para a promoção da aprendizagem, dentre elas destacam-se a linguagem plástica, a linguagem poética, a linguagem corporal, o lúdico, tudo para favorecer e garantir o ato criador na escola. Já dizia Bachelard (1996, p. 14), que a imaginação poética nos faz “criar aquilo que vemos”: a imagem vai ao real e não parte dele. A imaginação é capaz de fazer engendrar aquilo que se pode ver, porque faz crer no que vê e inventa uma visão, uma previsão. (RICHTER, 2006, p. 2). O filósofo da imaginação permite o mergulho em devaneios poéticos para compreender a dimensão da imaginação criadora como fonte inesgotável na educação do homem, em sua existência no mundo. Sandra Richter (2006, p.243) deixa claro o papel da imaginação na fenomenologia barchelardiana ao afirmar que “é aquela que adere corpo-alma e mundo, é inverter ou substituir, diante do mundo, a percepção pela admiração, não é o abandono às fantasias”. A imaginação criadora, defende-se aqui, é uma ação alimentada pelo próprio corpo da criança, em uma dimensão do mundo em que se vive e descobre. As fases iniciais de uma educação em constante descoberta são onde acontecem grandes possibilidades e encontros transformadores de concepção de mundo do aprendiz. A educação é considerada como um lugar de especiais encontros na formação do homem. Os fazeres proporcionados na educação oferecem o privilégio de se estar em constante construção, pois é projetando ações, realizando experiências laboriosas de aprender que se encontra com o ato lúdico de operar diferentes linguagens. 219 Barbosa e Bulcão acreditam que educação para Bachelard implica fundamentalmente na formação do sujeito (2004, p.50). A noção de formação, segundo o filósofo, é muito mais completa e abrangente. O ato de conhecer não se reduz a repetição monótona, e sim um conhecer, de si aventurar no reino do novo, é estabelecer novas verdades, são experiências de coisas opostas que se integram no novo, é um dialogo com a experiência em uma construção constante no desenvolvimento e formação do sujeito. Bachelard nos diz que o conhecimento não parte de uma certeza primeira. Ele começa sempre por um dialogo, pela troca de argumentos e pela negação e retificação do saber anterior, para em seguida alcançar novas verdades. O que percebe que o conhecimento é essencialmente uma atividade dinâmica de recomeço e de reorganização constante ideias. Para Sandra Richter (2006, p. 243) “abordar a experiência poética em sua dimensão educativa, desde o pensamento de Bachelard, exige colher a imaginação criadora como um ato alimentado pelo corpo, não se encerra na ‘mente’, mas se espalha pelos gestos, exigindo nossas forças”. As experiências vividas a respeito do próprio corpo, nos gestos humanos, significam agir em direção à transformação do corpo e do mundo. Para Bachelard (1996, p. 152), o cogito do devaneio enuncia-se: “eu sonho o mundo, logo o mundo existe tal como eu o sonho”. O dom de sonhar e abstrair, que se carrega desde o início da vida, orienta a criança para a criança e a invenção, o objeto, o desenho, a pintura, o viver o corpo; conduz a um plano da sensibilidade, o que faz dá imaginação um ato de importância vital na formação, indispensável à produção do conhecimento. A imaginação criadora atua com um forte impacto de realidade, uma fonte da invenção e da originalidade é de impressões armazenadas pela experiência. Bachelard, em seu livro ‘A poética do devaneio’, chama atenção para as imagens da infância que se leva para o resto da vida. Um período que sempre fica esquecido nos pensamentos dos adultos. Devem-se ativar os próprios sonhos, propulsar o imaginário, iluminar as lembranças em sua existência poética, deve-se ter coragem de revitalizar e sonhar com o ser criança. Um pensamento enquanto reinvenção de si mesmo lembra um trecho da obra “A poética do devaneio”: 220 Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda, [...]. Essa infância, que aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira (BACHELARD, 1996, p. 85). Em uma abordagem reflexiva quanto a iniciativa de dar às coisas outro curso, outra autora diz: Considerar a primeira aprendizagem realizada pelas crianças em suas fases iniciais de escolarização torna-se indispensável ressaltar suas experiências e esforços de aprender a compartilhar estratégicas- sempre lúdicas -, [...] de colocar em movimento o corpo, imagens e palavras em seus jogos e brincadeiras (RICHTER, 2009, p.4). Em uma dimensão de concepções e linguagem, considera-se insubstituível a contribuição da cultura, da experiência vivida através do corpo, sendo essa condição corpórea que se desdobra em decisões teóricas e práticas da vida e do conhecimento. Através dessas experiências com o corpo é que se pode imaginar, sonhar, desejar, pensar, narrar, conhecer e escolher. Para Sandra Richter (2006, p.7), “as imagens desenhadas ou pintadas, modeladas ou construídas, modificam nossa relação com as coisas, com o mundo, com o corpo. O sentido que se dá as escolhas, as construções e desconstruções na promoção do conhecimento do ser, promove um vaivém, opondo um progresso e um crescimento espiritual como meio de realização pessoal. Nessa busca a imaginação material desperta na criança sentido, sensações e vontades de aderir à um corpo a corpo com a materialidade do mundo, tornando-se uma escolha dinâmica e transformando em suas experiências. O mundo da criança O mundo da criança é representado por meio de suas expressões, vivenciadas por ela por meio do jogo, da imitação, do desenho, da modelagem. Esse é um processo significativo para a educação. 221 Trata-se da ideia de que a imaginação conduz à liberdade, a descoberta, pois permite o surgimento do novo, do surpreendente, do inesperado, de uma forma imprevista em nosso caminho. Grande parte desse mundo vivido pela criança se dá nos espaços escolares. Para Bachelard a escola como lugar de cultura deve, pois, ser um lugar de formação, mas principalmente de deformação e de reforma no qual a criança, em construção permanente, renasce a cada instante a se desenvolver e a crescer espiritualmente. Essa constituição de si mesmo conta com sentido positivo do erro que para ele deixa de ser uma falta, impondo-se como mola propulsora que impulsiona o individuo para a invenção de novas ideias. Tem-se que ressaltar outras contribuições que são essenciais no processo de construção do conhecimento das crianças e significativos para o processo de sua formação. A criança é um ser em sua individualização, e é fundamental compreender sua história de vida e sua família, valorizá-la como um ser em formação; como um ser completo, considerando o imaginário como um fenômeno primordial ao processo de conhecimento. O domínio corporal, suas possibilidades e potencialidades são condições de aprendizagem; a valorização da comunicação, da fala, da expressão corporal da criança, considerando uma pedagogia autônoma e com abertura às reflexões pedagógica para as experiências vivenciadas pelas crianças, são fatos consideravelmente importantes para sua formação. É através de diferentes experimentações, fazendo imagens, interagindo com diversas situações que a criança vai construindo repertórios gestuais e interpretando sentidos culturais diferentes, e configurando novos sentidos e imagens. Um ato que implica conceber sua formação nas fases iniciais de escolarização, como tempo e lugar de aprender e encantar-se com o ato lúdico de operar diferentes linguagens. É assim que se destacam as implicações educacionais, como um modo de aprender a realidade. Sandra Richter comenta (2006, p.245) “a imaginação é geradora, não apenas de formas, mas de valores e qualidades que apelam para a sensibilidade, uma sensibilidade que diz respeito ao nosso poder de escuta ao sermos olhados pensados e imaginando pelo mundo”. Esse momento introspectivo faz produzir as lembranças , os sonhos, formando um único caminho na superação e descobertas de novas aprendizagens. O poder poético na 222 criança deve ser sempre estimulado através da imaginação criadora, proporcionando descobrir um ser transformador de suas próprias experiências. A criança deve ser regada de estímulos, que a levem a gerar e produzir sonhos, de onde abrirá caminhos para o dinamismo criador da imaginação, o que irá gerar uma linguagem, uma leitura desses sonhos. Por meio dessas experiências de devaneios, novos pensamentos serão construídos. No ideário bachelardiano afirma-se que para aprender seja preciso “desaprender”. É recomeçar sempre, é desafiar o novo a todo o momento. Essa concepção de formação da criança faz um alerta sobre o tempo e ritmo em que cada uma delas se encontrará no seu interior e na questão da maturação para as diferentes linguagens. Para o pensamento bachelardiano, ritmo, hábito, retificação e conversão constituem-se fenômenos temporais elementares, um tempo do pensamento (ciência e poesia), onde está sempre em recomeço repetição em formação lenta e contínua. Vale considerar nessa fase inicial de formação da criança, uma fase que se transforma e que derruba obstáculos, que produz e cria novos fenômenos. Uma construção e reconstrução do conhecimento em um processo de transformação incessante do pensamento e dos sonhos. Para os infames, há necessidade de transpor suas imagens, sonhos para a realidade do dia-a-dia se tornam significativos, legítimos, para que ultrapassem seus medos e inseguranças de viver o jogo da vida. Os momentos de a educação abordar a experiência fabulador adora na infância, o poder produtivo das ações educativas, o modo escolar de aprender, as concepções sobre o ato de criar e imaginar, voltadas para as realizações das crianças através das atividades lúdicas do desenho, da pintura, da modelagem, das brincadeiras e aproximar aprendizagem e domínio das diferentes linguagens na infância. O que as concepções pedagógicas minimizam na educação é o poder de as crianças aprenderem aquilo que não compreendem ainda através da experiência. O que atrapalha muitas vezes são as expectativas criadas pelos adultos, tornando-as sufocantes. A espontaneidade infantil, imaginativa, criativa da valoração da fantasia e dos jogos de faz de conta, permite naturalizar uma concepção educativa, enraizada na imaginação, ao 223 poder produtivo das linguagens, ampliando novas visões das coisas. O que é fascinante na infância é o quanto a criança demonstra coragem para suas descobertas. Enquanto o adulto está sempre na retaguarda, a criança não se intimida de avançar a um estímulo, ela quer e acredita que algo poderá acontecer. Seus sentimentos, suas descobertas podem ser observados por suas ações corporais. Seu corpo fala, logo, ele percebe e reproduz. As informações adquiridas e vivenciadas por ela são acolhidas e aprendidas através da memória corporal. É ele, o corpo, o instrumento para a compreensão e o discernimento das várias linguagens. Para Bachelard (1994, p.134), “a infância é fonte de nossos ritmos. É na infância que os ritmos são criadores e formadores”. O filósofo de Bar-sur-Aube afirma que a imaginação se vincula à experiência poética, de tudo que pode ser considerado distante do sentido habitual. Quanto mais a criança devanear o seu mundo, mais intenso será o poder de realidade poética. Ela irá transpor os seus sentimentos, sua criatividade através da sensibilidade alimentada pela imaginação produtora e não produtora. O filósofo do devaneio reflete que se imagina primeiro, se percebe em seguida e se lembra quando a circunstância acontece (RICHTER, 2006, p. 251). Uma forma de expandir a imaginação é por meio do jogo lúdico – a dramatização espontânea vivida pela criança em seu espaço de aula – proporciona oportunidades, um despertar da criatividade. Por esse caminho do imaginar – perceber-agir, a criança abstrai e multiplica oportunidades de alcançar aprendizagem que parte do corpo e que marcam profundamente a vida adulta. Uma criança que tem oportunidade de produzir, criar, manipular diferentes experiências, manipulando diferentes materiais, irá construir e interpretar sentidos e percepções que a levará a operar diferentes linguagens. A autora de “A marca da infância: quando o fazer é fingir” afirma: Abordar a experiência de instaurar, transformar e transfigurar imagens na infância é predispor-se a abarcar os modos como as crianças plasmam experiências com a materialidade do e no mundo para configurar e transformar sentidos com outros através de suas narrativas icônicas. Não é ainda criação ou produção artística, antes é experiência de si por ser inseparável de uma historia corporal, do modo como o corpo aprende a estabelecer relações com outros corpos a partir dos ritmos singulares de cada 224 gesto que deixa marcas no mundo: é pensamento em ato (RICHTER, 2006, p.. 12). A infância é marcada pelas ações e experiências que implicam a formação do ser humano. Nessa fase deve-se garantir o tempo e lugar para a criança aprender e encantar-se com o ato lúdico de formar linguagens, aprender e transformar imagens e palavras para a leitura de mundo. Como diz Sandra Richter (2006,p.13) “não se trata de afirmar o que “devem” aprender, mas destacar as implicações educacionais das repercussões dessas primeiras aprendizagens no corpo infantil”. Os instrumentos pedagógicos que os educadores irão lançar mão serão sem dúvida os instrumentos mais valiosos para desenrolá-lo da fase em que se encontra em formação. As fases iniciais da criança em sua escolarização são destacadas como o marco inicial de uma vida que poderá ter um destaque brilhante ou um marcos de frustrações e desestímulos ofuscantes. Tudo que é apresentado à criança como estimulo e motivação de descoberta, ela ira tornar vivo e manterá sempre um projeto de desejo para sua vida. As artes plásticas, a poesia no corpo e na imaginação, o jogo lúdico, o brinquedo, as brincadeiras, as cantigas de roda são instrumentos que darão aos aprendizes e educadores o canal para despertar a imaginação criadora. É tarefa do educador ciente de sua responsabilidade formadora, buscar meios para transformá-la. A imaginação criadora é o espaço destinado a oportunizar e tornar significativo e legitimo as experiências novas e diferenciadas. É importante ressaltar que a criança tem o desejo e a necessidade de experimentar e viver vários caminhos que proporcionam uma viagem lançada à descoberta de saberes. Afinal, ninguém sabe as mesmas coisas, do mesmo jeito. Cada criança é uma caixinha de surpresas, que se expande a todo o momento em que é estimulada. Para Bachelard (19996, p.21) “a relação professor-aluno não é uma relação de poder. O educador deve dialetizar a experiência”. A autora bachelardiana vem destacar em suas pesquisas um dos momentos de luz do ser humano: Quando uma criança chega ao mundo, algo se lança no movimento insaciável do aprender: invenção e existência se aderem o imprevisível acontece, se faz, se forma, se torna... Assim, mesmo quando a viagem do espirito conduz a muito longe e muito alto, o que leva consigo é encarnado, 225 ritmado, experimentado, suportado pelo corpo. As especulações mais abstratas supõem vigílias, expansões e contrações, mobilizam nervos e músculos, tonalizam emoções, despendem energias vitais que vitalizam o ato de compartilhar a existência (RICHTER, 2006, p.14). As oportunidades que são lançadas para o mundo infantil, o jogo de palavras, atividades lúdicas e plásticas, são também atividades que permitem à criança expressar suas vontades e desejos, suas faltas e medos, os delírios e os dissabores do seu estar no mundo. Tudo que lhe é proporcionado já faz parte direta ou indiretamente dessa fase inicial do ser humano. A infância é um marco esplendoroso para aquele que a descobre e não queima nenhuma etapa. As atividades pedagógicas são levadas para o resto da vida dos adultos, são marcos que se carregam na memoria e na imaginação, fios condutores para viver e descobrir caminhos que levem ao conhecimento. O espaço escolar passa a ser o espaço mais enriquecedor, que anima e proporciona ricas experiências para a criança. Um espaço que proporciona e transforma sua cultura, destruindo todos os obstáculos encontrados em sua vida. O despertar da imaginação criadora faz com que alunos e professores deem asas para imaginar, criar, metamorfosear seu mundo, sua vida. O mundo que se cria e se descobre com a criança é sem dúvida um tempo que se está aprendendo, onde sempre se irá renovar aprendizagens e leituras de uma vida em construção. Considerações finais Ao buscar conhecimentos e esclarecimentos sobre o tema imaginação criadora na formação da criança, já se podia antever um tema rico e com uma abrangência e discussões de grandes estudiosos com Gaston Bachelard e, entre outra pesquisadora do sul do nosso país, Sandra Richter. Este estudo é apenas o inicio de uma busca de conhecimento sobre o assunto. Pensar na criança-infância é pensar em um capitulo especial de uma vida em busca do novo. Abstve-se aqui de simplesmente focar a imaginação criadora como imaginação reprodutora, que oportuniza a utilização dos sentidos, das emoções, do fazer, imaginar e criar. Trata-se da ideia de que a imaginação criadora conduz à liberdade, pois permite o surgimento do novo e do inesperado, de forma imprevista em nosso caminho. Tanto na epistomologia 226 como na poética está presente a ideia de imaginação como fonte de produção de conceitos e geradora de imagens que brotam no âmago da consciência. Nesse sentido, alunos e professores podem querer dar início a uma nova buscar da própria vida em diferentes mundos da imaginação. Na tentativa de conhecer e entender mais sobre as contribuições e concepções da imaginação criadora nas fases de escolarização, acrescente-se aqui, mesmo que superficialmente, o lúdico como procedimento para o processo ensino-aprendizagem. Nos estudos apresentados o lúdico é considerado uma ação transformadora, no sentido de desencadear atividades que valorizam o prazer de aprender por meio das concepções e das imagens criadas livremente pela fomentação da fantasia e imaginação do ser. Para que o processo de construção das diferentes linguagens ocorra, é de fundamental importância a presença de docentes preparados em desafiar os seus próprios medos. Uma característica que ira ressaltar esse profissional é a coragem. Coragem de criar, inventar o novo. Como já dizia Bachelard, do educador exige coragem de reinventar a si mesmo, reinvenção que passa pela experiência de imaginar-se e fazer-se. O período que se partilha com as crianças é o período mais rico em novos desafios. A imaginação criadora pode ser um caminho para a aprendizagem significativa e transformadora. Nesse sentido, a diversidade das aprendizagens envolvidas no ato de imaginar, viver e criar será o grande desafio para o processo de formação. Este estudo pode ser uma oportuna sugestão para a descoberta de uma aprendizagem significativa com o uso das diferentes linguagens. Mas o que importa, sem duvida, é encontrar um caminho que seja mais claro e oportunize momentos ricos de desenvolvimento global nas fases iniciais da criança. Referências BACHELARD, G. A Poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FRONCHOWIAK, A. C.; RICHTER, S. A poética do devaneio e da imaginação criadora em Gaston Bachelard. In: Seminário Educação, Imaginação e Linguagens Artístico-Culturais 227 da UNESC, 2005, Criciúma. Anais eletrônicos... Seminário Educação, Imaginação e Linguagens artístico-Culturais da UNESC, 2005. RICHTER, S. R. S. Bachelard e a experiência poética como dimensão educativa. Revista Educação. Santa Maria, n. 2, v.31, p.241-254, jul./dez.2006. RICHTER, S. R. S. A marca da infância: quando o fazer é fingir. In: 29ª Reunião Anual da ANPED: Educação, Cultura e Conhecimento na Contemporaneidade: desafios e compromissos. Anais 2006. Caxambu-MG:ANPED, outubro 2006. BARBOSA, E.; BULCÃO, M. Bachelard: pedagogia da razão pedagógica da imaginação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. RICHTER, S. R. S. A dimensão ficcional da arte na educação da infância. 2005. 289 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. La construcción del sujeto veraz desde una mirada cínica. Máximo Núñez Bettina Curbelo Luciana Bianchi 228 Resumen Detenernos a observar al sujeto, su construcción y la relación de la verdad en este sentido, es el fundamento de nuestro estudio. La pregunta por el hombre, es aquella que intenta acercarlo a una reflexión desde la crítica, apelando a una búsqueda y descubrimiento de la verdadera vida y la felicidad, como respuesta a una inquietud de sí. Palabras claves: Cínicos- Verdad- Verdadera vida- Educación- Inquietud de sí. “Diógenes decía: Los hombres se procuran los medios para vivir, pero no se procuran los medios para vivir bien”. (Estobeo en Martín García. J. 2008: 305) Esta cita impulsa nuestra ponencia para este Congreso. Estamos en un congreso de Filosofía de la Educación, entonces estaremos pensando en el sujeto, en su construcción y la relación de la verdad en este sentido. Lo ilustraremos con los Cínicos, pues de ellos hemos encontrando una fuente de riqueza que permite que nos detengamos en observar a la Educación y sus funcionalidades. Nuestra clave de pensamiento está puesta en la mirada sobre esta escuela filosófica y cómo podemos hacer un aporte, al menos desde las interrogantes, al sistema educativo actual. Un pequeño recorrido histórico – ilustrativo Los filósofos cínicos conforman una de las escuelas filosóficas de la antigüedad, se ubican dentro del período llamado helenístico romano. Según los autores consultados como Hadot, es un período muy extenso en el tiempo, marcando su comienzo las expediciones y conquistas territoriales de Alejandro Magno, y la aparición del mundo llamado helénico, o mejor dicho, la renovada forma que toma la civilización griega a partir de la expansión de su cultura a través del mundo llamado “bárbaro”, desde Egipto hasta las fronteras de la India; este hecho permite el contacto con civilizaciones con características diversas. 229 El cinismo es una de estas escuelas a las cuales se las consideró como marginales y en pugna con el platonismo. A los cínicos se los llamó “pequeños socráticos” o “socráticos menores”, lo que marca de por sí el lugar que ocupó el platonismo en la antigüedad y posteriormente a lo largo de la historia de la filosofía en occidente. Los retratos realizados de los cínicos, por sus contemporáneos y ulteriores, los caricaturizan, satirizan y descalifican por no considerarlos como verdaderos filósofos, por el contrario el estatus que le otorgan es del vagabundo, el errante, el loco, el que está por fuera de la sociedad y de los valores establecidos. Un ejemplo de ello es que a Diógenes el cínico se lo llamó “Sócrates loco” por sus coetáneos. Epicteto119 nos los presenta como los que carecen de refugio, de patria, de recursos, de esclavos. Que duermen en el suelo, que no tienen ni mujer, ni hijos, ni palacio de gobernador, sino la tierra sola y el cielo, y apenas un viejo manto. Pero, ¿por qué esta censura tan despiadada? Esto responde a las contradicciones que el cinismo tenía con las convenciones y las normas vigentes por considerarlas alejadas de su ideal ético. A través de la razón buscan aproximar al hombre a la naturaleza misma, ligarlo a sus orígenes primarios, a una animalidad perdida. Su doctrina ética se sostenía en un ideal de virtud basada en la naturaleza en su estado más puro en contraposición a los que ellos consideraban valores antinaturales y falsos, admitidos por la sociedad de su época. Sostenían que era necesario reevaluar aquellos valores que aprecian lo superfluo como el dinero, la codicia, la fama, el placer por sobre lo que realmente es esencial. Y una de las características que más nos llama la atención, es la que a través de su modo de actuar expresan públicamente lo que sostienen en el discurso. Sus actos más íntimos no están excluidos de exposición, porque los consideraban como parte de su naturaleza, lo cual no debía producir ni vergüenza ni rechazo, sostenían que si los animales lo podían hacer, ¿por qué los hombres, que también son animales, no podrían? A su vez, sus actitudes desafiantes y denunciantes utilizaban la burla para censurar o ridiculizar otras actitudes llevadas a cabo por los “hombres comunes” que no coincidían con su moral y ética. Y lo que más nos interesa, es que el cinismo hacía un ejercicio particular del decir franco, de la parrhesía, porque afirmaba a través de ella la libertad de expresión en todas sus 119 ” (Epicteto en Foucault 2010:311) 230 formas: decir, actuar y pensar. Su objetivo era la independencia, la autarquía, la liberación de los condicionamientos sociales para buscar en la naturaleza todo lo esencialmente necesario, es así que afirmaban su autosuficiencia pues todo lo que necesitan lo tiene a su alrededor. Martín García en Los filosóficos cínicos y la literatura moral serioburlesca dice: “…Fueron llamados cínicos por cuatro razones: …ellos practicaban, como los perros, la indiferencia de comer y hacer el amor en público, pasear descalzos, dormir en toneles o en los cruces de caminos. Hacían esto por aspirar al bien por naturaleza, porque decían que si algo es bueno, se debe realizar en público y en privado, mientras que si algo no es bueno, no se debe realizar ni en público ni en privado… lo válido para ellos era habla abiertamente, porque a nadie temo en absoluto. Esta es la primera razón. La segunda razón es porque el perro es un animal desvergonzado y ellos mismos practican la desvergüenza…practicaban esa desvergüenza que es superior al pudor, como ladrar a los ajenos a su filosofía. La tercera razón es que el perro es un animal guardián, y ellos también velaban por los principios de su filosofía mediante demostraciones de hecho y se sentían muy orgullosos de ello…La cuarta es que el perro es un animal discernidor, que en razón de su conocimiento y su desconocimiento distingue al amigo y al extraño…aceptan benévolamente a los aptos para la filosofía, mientras que rechazaban a los ineptos, ladrándoles al modo de los perros. Y distinguir la verdad de la mentira es propio sólo del filósofo. Éste es, pues, el quinto modo.” (Martín García, J: 2008:140) Veamos que en la presente cita se encuentra uno de los aspectos tradicionales relacionados con el concepto de verdadera vida; aquella, no disimulada que refiere a no ocultar nada a los ojos de los demás. La comparación con el perro también puede interpretarse por el lado del instinto ya que los cínicos cumpliendo la función de Katáskopos, de explorador tienen el olfato de poder distinguir los amigos de los enemigos. Tenían una visión cosmopolita, se consideraban ciudadanos del mundo como decía Diógenes el cínico, y como tales se sentían guardianes y vigilantes de todos los hombres, una especie de rol social altruista por el cual se sentían encargados de guiar a la humanidad a través del ejemplo de su propia vida, de su propio cuerpo, de sus actitudes, un testimonio viviente de verdad, revelando de esta manera lo que ellos consideraban la “verdadera vida”. Quien mejor nos ilustra en este punto es Foucault, pues dentro de este contexto y del cuidado de sí, es que vemos un estudio sobre la verdad, donde se destaca la vida de los cínicos y la manera que estos con-vivían con esa libertad de palabra. En ellos había un coraje por la verdad que lograba definirlos, diferenciarlos, en fin, hacía de ellos un modelo de vida. 231 Resulta interesante ver cómo se manifiesta el ser cínico mediante la verdad, esto es para Foucault, alguien que, puede autentificar sus hechos y es reconocido como un ser que “practica” la verdad. Esto, que resulta fundamental en este estudio, posee característica de denominación, pues cuando hablamos de los Cínicos, necesariamente los identificamos con la verdad, podemos decir entonces, que el sujeto es reconocido y se reconoce a sí mismo como un “emisor de la verdad”. He aquí pues, un coraje de demostrar al mundo lo que se es y cómo se es, con un contexto que conlleva un inquietarse a vivir la verdad, que deriva en un conocimiento de sí. Foucault nos presenta a los Cínicos como aquellos que están “en las esquinas de las calles, en las plazas públicas, a la puerta de los templos, interpelando a la gente para cantarle cuatro verdades”120. Esta referencia de Foucault nos cuestiona el hecho de que el hombre no pueda apreciar en su vida la verdad como una posibilidad de crecimiento, como un eslabón más en ese proceso que confiere libertad. Y en este punto enfatizamos la época antigua tanto como la actual. Pues claro está que lo ideal, tal vez, sería que cada uno descubriera la verdad sin necesidad de que se las canten. Se ha de tener en cuenta que el cínico es quien hace de la verdad una práctica de vida, reconociendo que esto es posible para vivir la libertad plenamente, aportando un conocimiento a su vida que es el reflejo de la inquietud de sí. Lo importante no era el adoctrinamiento meramente intelectual, sino uno que estuviera cargado de transmisión para la vida, de ahí su elección por la mendicidad. Esto, indudablemente se acompaña con una visión de la educación, de la forma de enseñar, pues, según nos presenta Foucault, en los cínicos encontramos una filosofía de la autosuficiencia: “(...) los cínicos habían despojado del dominio de la filosofía la lógica y la física. Sólo consideraban como principio verdaderamente filosófico la moral.”121 Dentro de la concepción de verdad que venimos manejando, es importante tener claro que hablamos de una realización de verdad en la praxis misma de las cotidianeidades. Un cínico vive, manifiesta, produce y se compromete con la verdad desde lo que es. Por lo tanto, la verdad se acompaña desde la realización y no desde los ideales. Y dentro de este contexto, se maneja como verdadero en la filosofía previa y posterior al cinismo, aquello que “(…) no está oculto, disimulado (...), que no engaña, no embauca (...), es lo completamente visible (...), lo que no se somete a ninguna mezcla con otra cosa (...), tampoco está alterado (...), es lo recto (...), se deduce (...), lo que existe y se 120 121 Foucault: 2009: 207. Foucault: 2009: 221. 232 mantiene más allá de todo cambio, lo que existe en la identidad, la inmutabilidad y la incorruptibilidad”122, dirá Foucault en “El gobierno de sí y de los otros”. En fin, al Cínico nada se le puede pedir, excepto que viva plenamente sus convicciones, cargado de virtudes que lo posicionan en un punto central. Ignorante, vagabundo, de mala apariencia y con pocas comodidades; siendo parte del mundo, pero alejado de sus características, viviendo lamentaciones por aquello que dista de la felicidad y aparentemente miserable. Podemos sintetizar este punto diciendo que la experiencia cínica, el requerimiento de una forma de vida con reglas bien definidas se encuentra en estrecha relación con el principio del decir veraz sin vergüenza, sin temor. Es un hablar franco ilimitado que lleva, según Foucault, el coraje y la intrepidez hasta llegar a ser irritante. El vínculo entre el decir veraz y el modo de vida es esencial en el cinismo. Un paso más: Epicteto habla del cínico como un explorador, un espía, empleando el término katáskopos123 El cínico como katáskopos es el explorador de la humanidad, es quien determina qué cosas pueden o no ser buenas para el hombre; es un explorador pero también un guía de la humanidad, porque es a través de sus observaciones, de sus experiencias que determina lo que es favorable o perjudicial. Es el hombre que galopa por delante de la humanidad; pero es imprescindible que luego de su partida y su misión, retorne para anunciar la verdad sin temor; hable francamente a los demás sin paralizarse por el miedo, es necesario que exprese aquello que ha aprendido, que ha descubierto en su misión de katáskopos. Surge de acuerdo a lo explicitado hasta el momento la problemática del “decir franco” con la vida misma de quien es portador de dicha franqueza. Esta relación entre el decir veraz y la manera de vivir es muy compleja en el cinismo porque va más allá de la vida que muestra ciertas virtudes, caracterizándose la vida de los cínicos por formas muy precisas de comportamiento. Dirá Foucault. “El cínico es el hombre del bastón, el hombre del zurrón, el hombre del manto, el hombre de las sandalias o los pies descalzos, el hombre de la barba hirsuta, el hombre sucio. Es también el hombre que vagabundea, el hombre que carece de toda inserción; 122 Foucault: 2009: 232. 123 Dicha palabra tiene un sentido en el ámbito militar, que hace referencia a las personas que se enviaban antes que el ejército para observar al enemigo. 233 no tiene ni casa, ni familia, ni hogar, ni patria, y es así mismo el hombre de la mendicidad” (Foucault: 2010: 182) La descripción realizada por Foucault sobre el hombre cínico muestra aquello en lo que consiste la práctica filosófica del cinismo. Las condiciones de vida necesarias para ser el espía de la humanidad. Para cumplir con dicha función es necesario estar totalmente desapegado a lo material, no tener ataduras de ningún tipo, a tal punto de no poder formar una familia propia porque la familia del cínico es la humanidad. Este modo de vida es condición necesaria para ejercer la parrhesía, existiendo en esta forma de ser y actuar una función reductora que es destacada por Foucault, en cuanto a que los filósofos cínicos reducen todas aquellas obligaciones, convenciones y dogmas que consideran inútiles y que los demás hombres aceptan. Además este estilo de vida llevado por los cínicos permite poner en relieve las únicas cosas esenciales e imprescindibles para la vida. Tal modo de vida manifiesta en su libertad lo que es y debe ser la vida. En el cinismo la práctica de la vedad no tiene como única finalidad la de decir y mostrar qué es el mundo en su verdad, sino que también pretende revelar que el mundo no podrá establecer su propia verdad, no podrá transformarse y convertirse en otro, si no es al precio de un cambio en la relación que uno tiene consigo mismo. La verdadera vida es también otra vida que permite el acceso a un mundo otro. El cínico demuestra que la vida que aplica el principio de la verdadera vida es una vida otra respecto a aquella que llevan generalmente los hombres.124 El cinismo es una especie de mueca de la verdadera vida tradicional y es también su paradoja. Pero ¿hacia dónde vamos con esto? Vamos, junto con Diógenes, hacia la búsqueda del hombre. Con esto se nos está dando a entender que buscaba al hombre que vive de acuerdo con su esencia, que sin importar las apariencias ni las convenciones sociales, sabe encontrar su legítima naturaleza, vive conforme a ella y sabe ser feliz. La idea de felicidad en los cínicos se encuentra directamente relacionada con la concepción que éstos tienen acerca de los placeres. 124 En el Cristianismo no se da una relación con el mundo otro sino con el otro mundo. La verdadera vida del asceta cristiano es de alguna manera otra vida en este mundo que le permite el acceso al otro mundo y su verdad. 234 La educación cínica busca que el verdadero filósofo, es decir aquel que lleva una verdadera vida pueda poseer control sobre las emociones y la capacidad de discernir, los placeres negativos que alienan al hombre de los placeres positivos que lo liberan. En la concepción cínica de felicidad aquel hombre que llega a ser verdaderamente feliz es el sabio, es decir el sujeto que se basta a sí mismo. La enseñanza, para esta escuela filosófica, debía basarse en un conjunto de conocimientos, no en gran cantidad, a los cuales se los consideraba útiles para la vida, para aquellos acontecimientos a los cuales la persona podría enfrentarse en lo cotidiano y en cualquier momento. La utilidad, la aplicabilidad práctica en la vida es lo que le dará el valor a un conocimiento sobre otro. Por lo tanto, existiría un primacía del saber práctico (episteme praktike) por sobre un saber teórico (episteme theoretike). Foucault, en relación al saber práctico, hace mención al verbo gymnazesthai “hacer gimnasia”125 lo cual se vincula con el esfuerzo, el sufrimiento y el entrenamiento. No se pretendía realizar una transmisión de conocimientos teóricos sino ofrecer una instrucción moral guiada por la razón. Conclusiones: “Preguntándosele al mismo (Diógenes): ¿Qué es lo más pesado que sostiene la tierra?, respondió: Un hombre sin formación.”126 Esta cita impulsa nuestra reflexión final: Consideramos importante rescatar la figura del cínico, es decir, dichos filósofos enseñaban a través del ejemplo, no se guiaban por un programa o currículo atiborrado de contenidos como sucede en la actualidad. Su educación era más bien enfocada a la ética, al cómo vivir y para ello la actitud de éstos, la forma de conducirse en la vida era vital como forma de transmitir sus enseñanzas, predicaban con el ejemplo, no bastaba la palabra, más allá de que se caracterizaban por tener el coraje de gritar las verdades ante cualquier persona por 125 M. Foucault profundiza sobre el tema en la Hermenéutica del sujeto. 126 (Estobeo II, en Martín García, José A. 2008: 305) 235 más poder que pudiera tener, ellos eran el ejemplo vivo de cómo vivir bien, de cómo ser libres y felices. En una sociedad como la actual, consumista, donde la felicidad parece estar unida al confort, al tener, al comprar… la filosofía cínica parece estar obsoleta o al menos no ser compatible con nuestro tiempo. Si tomamos en cuenta la conocida imagen de Diógenes y el farol, arriesgándonos a hacer una interpretación del simbolismo de la misma; podría estimarse posible que el farol representa al cinismo, que con su luz hace visible las verdades que los demás no ven. Pensando en nuestro sistema educativo, en los programas escolares atestados de contenidos, en la figura del maestro surgen algunos cuestionamientos; los cínicos enseñaban a través del ejemplo, de su actuar, ¿somos los maestros un ejemplo para nuestros alumnos? ¿La sociedad ve a los maestros como un ejemplo a seguir? Los cínicos no tenían doctrina o más bien ésta era muy rudimentaria por lo cual puede cuestionarse ¿son necesarios programas tan densos en contenidos? Entre otras interrogantes que pueden surgir en nuestro reflexionar. Otro aspecto que se ha considerado importante es la idea de felicidad para los cínicos, estos filósofos entendían que era feliz aquel hombre que se basta a sí mismo, consideraban que los bienes materiales iban en contra de la felicidad; cuanto más desapegado a lo material y más dominio de las emociones tuviera el hombre, más feliz sería. A. Camus señaló que la gente en estos tiempos sufre por no poseer el mundo completamente, por tanto, siguiendo el pensamiento del mencionado autor, entendemos que las personas debido a ese deseo de poseer inagotable no logran ser felices, de acuerdo con ello, los cínicos no estaban tan equivocados en pensar que cuanto más desapegados podamos estar de aquello material, más felices seríamos. Para los filósofos cínicos alcanzar la felicidad era posible, su idea de felicidad estaba estrechamente unida al concepto de libertad que manejaban, necesariamente para ser feliz se debía ser libre, libre de aquello material que nos limita, que nos ata… además de buscar vivir siempre de acuerdo a nuestra esencia sin importar las apariencias y convenciones sociales. La felicidad en la modernidad y posmodernidad parece estar en el progreso personal como afirma A. Germain, en tiempos modernos la felicidad parece residir en todo lo que puede sacar al hombre del anonimato, de la multitud, de lo cotidiano. Entonces: ¿Qué nos hace felices? ¿En qué medida educamos para la felicidad, para la libertad? 236 En este sentido, la educación puede ser un factor decisivo en la toma de decisiones existenciales, éticas y filosóficas. El objetivo educativo en la filosofía cínica, como ya lo hemos mencionado, era preparar a los hombres para estar en el mundo y tener una actitud activa sobre él. El fin último de su enseñanza era la transfiguración del mundo a partir de las transformaciones individuales. Una especie de recorrido que se inicia en un intimismo, una espiritualidad, una inquietud de sí para culminar en un tipo de altruismo que persigue um objetivo común a toda la humanidad: un mundo transformado en “otro” a través de un profundo conocimiento y dominio de sí. La educación cínica motiva la revolución, la transgresión, la transformación. Primero, de uno mismo frente a lo establecido, institucionalizado, normalizado social y culturalmente. Para luego de vencer esa primera barrera personal se llegaría a poseer una visión social conformándose en un ciudadano del mundo, ser consciente de la existencia de uno mismo y de los otros no como obstáculos sino como partes de la naturaleza, partes de un mundo en el cual somos una unidad mínima. Si nos detenemos un momento en este punto, en la actualidad nos encontramos muy alejados de nuestra animalidad y de la naturaleza. Preguntémonos entonces: ¿Dónde quedó el lugar del sujeto, de sus inquietudes, del conocimiento de sí en la educación actual? Las preocupaciones educativas muchas veces orientadas al mundo laboral, al enciclopedimismo, al fraccionamiento de conocimientos especializados han contribuido a perder de vista a los protagonistas del proceso educativo (educadores y alumnos) y el conocimiento que tienen de sí, del valor que le dan a la vida, a su propia vida. ¿La educación hoy en día prepara para la vida? La vida, la verdadera vida a la que Foucault hace referencia, no parece tener lugar en el sistema educativo actual. Deberíamos pensar una educación que propicie instancias de reflexión racional sobre conceptos como verdad y felicidad. Deberíamos pensar en aquello que sentimos, creemos, en fin, de lo que somos, aprendiendo a vivir, a dialogar y a confrontar las verdades que coexisten en un mundo relativista. La educación intenta hacer grande los procesos que se articulan en función de los medios, pero el hombre permanece inmóvil, paralizado, desacreditado ante variados intentos. Seamos realistas en nuestras reflexiones y preguntémonos: ¿cuánto de nuestra educación promueve el escándalo de la verdad?, ¿cuánto de nuestra educación privilegia la 237 verdad (con lo que ella significa) como punto de partida?, ¿cuánto de nuestros impulsos por la educación se pueden visualizar como promoción de la verdad dentro del proceso? (y entendamos promoción aquí, como el ejercicio libre y completo de lo que se realiza). Pues bien, la educación ha de ser, en términos de Foucault, un “decir veraz”, un “hablar franco”, un “dar razón de sí mismo”, “la posibilidad de autocontemplarse”, un “modo de existencia” y todo, bajo una interpretación adecuada de la realidad en sí mismo. La educación ha de tender a ubicar implícitamente en sus “acciones-manifestaciones” a la verdad como escándalo desde su razón de ser. Como afirmaba Diógenes el cínico... la esperanza es la educación. Bibliografía utilizada y consultada: Abbagnano, N. (1996) Diccionario de filosofía. Fondo de Cultura Económico. México. Arriano. (1963). Epitecto. Pláticas. Libro III. Texto revisado y traducido por Pablo Jordán De Urríes y Azara. Ediciones Alma Mater S.A. Barcelona. Foucault, M. (2009). El gobierno de sí y de los otros.: Curso en el Collège de France: 1982 – 1983. 1ª ed. Fondo de Cultura Económica. Bs. As. ___________ (2010). El coraje de la verdad: el gobierno de sí y de los otros II. Curso en el Collége de France (1983 – 1984). Fondo de Cultura Económica. Bs. As. ___________ (2000). La hermenéutica del sujeto: Curso en el Collège de France. (1981 – 1982). Fondo de Cultura Económica. Bs. As. Hadot, P. (2006). Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Siruela. Madrid. Laercio, D. (1991). Vidas de los filósofos más ilustres. Porrúas, S.A. México. Lorenzini, D. “El cinismo de la vida hace una aleturgie” Apuntes para una relectura del recorrido filosófico del último Michel Foucault. En www.academia.edu Martín García, J. (2008). Los filosóficos cínicos y la literatura moral serioburlesca. Akal, S.A. Madrid. Onfray, M. (2007). Las sabidurías de la antigüedad. Anagrama. Barcelona. Páginas de Internet consultadas: www.laeducacionprohibida.com 238 www.academia.edu Pasado-Presente en la Educación Héctor Fernando López Acero. Resumen: El texto tiene como propósito mostrar las diferencias entre la paideia griega y la educación contemporánea. Si la paideia griega fue concebida por primera vez por Platón como un saber autónomo que tenía lugar al margen del poder, la interpretación contemporánea ve en el poder el fundamento de la educación. La educación de occidente ha oscilado desde la autonomía del pensar por sí mismo en la academia hacia la des-espitualización y funcionalización de los modernos centros de enseñanza. Palabras clave: Paideia, educación, desregulación, funcionalidad. 1. La educación griega Desde Platón se institucionalizó la diferencia entre saber académico e inteligencia popular. El pensar académico no actúa en un escenario sino en aquel espacio reservado que ni se exhibe y prefiere el silencio del pensador solitario. El pensar académico no se propuso tener la audaz fuerza como Esquilo de abrirse paso mediante la genialidad de los actores dramáticos. 239 La escuela platónica protagoniza la primera ruptura de la cultura occidental de la academia con el teatro. Ninguno de los grandes pensadores ha sido un pensador de escenario y se enorgullecían de no serlo pues el emerger de la verdad tiene lugar en el silencio de una larga meditación y no en las fantasiosas escenas del teatro. Los filósofos se concibieron como pensadores en un no escenario desde Platón y Aristóteles pasando por los pensadores grecoromanos hasta Heidegger. La fundación de la academia entre los años 387 y 386 antes de nuestra era que se interpretó a sí misma como una comunidad de pensadores se opuso a la decisión de los coregos127 de permitir la repetición de las piezas teatrales que gozaban de particular éxito en las fiestas dionisiacas. La poesía dramática de la Europa antigua no había comenzado entonces bajo la influencia del arte y la creación literaria autónoma sino bajo la influencia política de culto y ocupación religiosa de la comunidad. Este acontecimiento histórico habría de introducir la ambivalencia en la cultura al transformar las prácticas religiosas en un acontecimiento estético. Sustituir la religión por el teatro significa parodiarla, esto es, despojarla de su seriedad y su insustituibilidad. Peter Sloterdijk interpreta este fenómeno como una revolución en lo que hoy se entiende como los medios en la medida en que era en la religión antigua y no en otra parte donde residía el poder de educar a los hombres para que pudieran hacer parte de una comunidad culturalmente elevada. Era a través de la religión que las sociedades europeas antiguas ejercían un control social y una formación mítico-moral. El primero que percibió el significado de estos cambios trascendentales para el devenir de la cultura occidental fue Platón. Su obra La Politeia constituye el primer rechazo del pensar occidental a la práctica política de una educación no fundada en sí misma. La filosofía platónica puede ser entendida como una ofensiva contra la educación fundada en principios diferentes a los del propio pensar. Supone, por tanto, una oposición a la educación política que gira alrededor del teatro sin restricciones. Platón fue el primero en pensar la gravedad de una educación político-pedagógica y señalar sus consecuencias a todas luces negativas en la construcción de un Estado que nos alertan a nosotros los hombres contemporáneos de los efectos contraproducentes de una 127 En la Grecia antigua se llamó “coregos” a los ciudadanos ricos encargados de costear los “cantos del macho cabrío” y las fiestas trágicas en honor del dios, esto es, los patrocinadores del teatro ateniense. Véase Peter Sloterdijk, Has de cambiar tu vida, Valencia, Editorial Pre-Textos, 2012, pp. 222-228. 240 educación que realiza alianzas con la política y el mercado. La idea de educación platónica es reveladora toda vez que la formación de las generaciones jóvenes no debe dejarse en manos de sectas sino de escuelas. Ello proyectado a la educación contemporánea significa que la educación contemporánea no debe dejarse en manos de sectas político-criminales y de empresas económico-depredadoras sino en manos de la academia. El medio de la educación platónica fue, por consiguiente, el no-teatro que proyectado a la actualidad significa un tomar distancia de las esferas del poder político, económico y religioso. La paideia, término utilizado por los griegos para referirse a lo que hoy se entiende por educación, giro en torno al ser y quizás en lo que menos se reparaba era que acusase un carácter de utilidad. Ser significa para los griegos el estar en sí erguido, en cuanto es lo que está surgiendo, pero como tal, el ser es perdurar “constante”. No ser significa salir de la constancia, que también se designa como caída, inclinación: un apartarse de la constancia de lo estante y, por eso mismo, un desviarse de él. En el fragmento 53 Heráclito dice: “La guerra es el padre y el rey de todas las cosas. A algunas ha convertido en dioses, a otras en hombre; a algunas ha esclavizado y a otras ha liberado”128. La ontología heideggeriana interpreta el término “guerra” como el conflicto que impera con anterioridad a lo divino y lo humano y no la guerra según el modo de los hombres. La guerra pensada por Heráclito hace separar en opuestos lo que es, hombres y dioses, esclavos y libres, y constituye lo único que permite relacionar en la presencia la posición, condición y jerarquía. El mundo llega a ser por la separación, que no se debe entender como disociación, sino como unidad: la reunión de los opuestos. La guerra hace surgir lo hasta entonces no dicho ni pensado. La fuerza imperante de la guerra llega a ser estante en lo que está presente y sólo así el ente llega a ser ente. La guerra tiene una doble consecuencia: hace estar fuera o nacer el conflicto y conserva al ente en su constancia. El temple de ánimo que se debatía en un combate entre el des-ocultamiento y el ocultamiento definía un carácter de nobleza que conformaba los perfiles de la cultura. De ahí que Werner Jaeger hable de la educación griega como de una forma aristocrática progresivamente espiritualizada. La virtud está unida a una actitud de heroísmo guerrero129. 128 Heráclito, Fragmentos, Buenos Aires, Editorial Aguilar, 1968, p. 141. 129 “En el concepto de areté se concentra el ideal educador de este período en su forma más pura”. Werner Jaeger, Paideia, Bogotá D.C., Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 21. 241 La paideia no consiente ninguna traducción y significa, según la esencia del pensar platónico, el acompañamiento para la reversión de todo hombre en su esencia: es un tránsito del estado de ceguera hacia la luz. Su esencia no consiste en verter meros conocimientos en el alma desprevenida como en un recipiente vacío, sino en transformar al espíritu en su totalidad al hacer retroceder al hombre desde la banalidad de su vida cotidiana hacia el lugar esencial y acostumbrarlo a esta morada. La areté, que designa la excelencia humana pero también la superioridad de los dioses, es un atributo propio de la nobleza. Lo que decide es el conflicto entre lo que es y no es, lo oculto y lo des-oculto, la verdad y la no-verdad y, por eso, el temple de ánimo fundado en la lucha y en la victoria es la verdadera prueba de fuego de la virtud humana. La poesía griega muestra un doble carácter del espíritu humano capaz de reunir en un solo hombre la virtud: su destreza en la guerra que involucra al honor y su nobleza de espíritu. El aspirar a ser dioses que en la cultura griega equivale a convertir lo imposible en una posibilidad realizable habría de ser caracterizado por el cristianismo como vanidad pecaminosa. Desde Platón sabemos que la escuela es un nuevo medio que toma distancia de los poderes establecidos, trátese de poderes místico-religiosos y político-económicos, toda vez que aspira a determinarse desde sí misma fundada en un solo principio: pensar. Y pensar se ha revelado como una actividad que desde sus más remotos orígenes toma distancia de las esferas del poder que aspiran siempre a sacar alguna ventaja. Desde la fundación de la academia, o también podríamos decir de la escuela platónica, que es el escenario por excelencia del lugar de la verdad, el pensar ha superado en rango a las esferas místico-político-religiosas y político-económicas como medio de manifestación de lo que es. Ha sido la escuela y no las esferas de influencia del poder la que en la tradición de occidente ha mantenido el espacio abierto del proceso civilizatorio. 2. Educación moderna y contemporánea Los modernos acuñaron el término formación para designar aquella dimensión del ser superior y más interior que procede del conocimiento y del sentimiento de toda la vida espiritual y ética y que se extiende armoniosamente sobre la sensibilidad y el carácter130. En esta concepción se percibe claramente la determinación del espíritu histórico: la 130 Véase Hans-Georg Gadamer, Verdad y método, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1993, pp. 38-48. 242 reconciliación con uno mismo, el reconocimiento de sí mismo en el ser de otro. En la “Universidad alemana”, que es el título de una de las dos conferencias que Heidegger impartió el 15 y 16 de agosto de 1934 en un curso para extranjeros, señala cómo en la educación de Alemania a principios del siglo XIX tres potencias tuvieron su influjo: la nueva poesía alemana (Herder, Goethe, Schiller y el romanticismo), la nueva filosofía alemana (Kant, Fichte, Schleiermacher, Schelling, Hegel) y la nueva voluntad política alemana en los que se destacan entre otros el nombre de Humboldt. En este proceso sobresale la esencia natural e histórica del pueblo alemán y no unas simples reglas de un nuevo entendimiento que se reflejaron en cuatro hechos significativos: 1. Se trataba de una universidad nueva que no tenía el lastre de los viejo, 2. El peso principal no fue de origen externo –una orientación globalizada de la educación la llamamos hoy- sino en la vocación de creativos pensadores y profesores ejemplares, 3. La universidad giró en torno a la facultad de filosofía: la filosofía estuvo en conexión interna con todas esenciales del saber y 4. la universidad obtuvo libertad de enseñanza y de aprendizaje sobre la base de su gran determinación. En este marco, la ciencia tenía todavía el significado de un saber que se dirige necesariamente al todo, es decir, que es en sí mismo filosófico. En sus orígenes modernos la filosofía estuvo en conexión interna con todas las ramas esenciales del saber y la universidad obtuvo libertad de enseñanza y de aprendizaje sobre la base de una gran determinación. No obstante, con el desarrollo del saber y su inevitable especialización se rompió el nexo con los otros campos de saberes y se hizo a un lado la pregunta por el todo: la ciencia se convirtió en ciencia propiamente dicha en la medida en que se apartaba de su raíz filosófica. Este desarraigo se vio favorecido por la aparición de la técnica cuya dinámica siempre ha fomentado la industrialización. La cosmovisión, que en sus orígenes fue un asunto filosófico, se convirtió entonces en un punto de vista relativo a los individuos, los grupos y los partidos y, correlativamente, el Estado comenzó a ver en la universidad al establecimiento educador práctico-técnico que hoy conocemos. La investigación cada vez más especializada se convirtió en un valor cultural en sí mismo sin que se pensara en sus consecuencias. Las facultades se mantuvieron juntas en un campo universitario solo gracias a una administración central y a una idea muy curiosa: colaborar por sí mismas en el fomento de la cultura. La ciencia no es valorada como el fundamento de la existencia en un sentido griego sino que aparece ahora como un “bien cultural” que se divorcia definitivamente de la autonomía de la escuela en el sentido platónico y comienza a 243 ser regulada por la política y la economía. Los criterios de perfeccionamiento y de potenciación productiva así concebidos reciben el nombre de valores131. En la filosofía de Nietzsche se muestra que lo que la valoración moderna valora es al hombre mediocre. Si el nacimiento de los hombres grandes dependiese de estas valoraciones, es decir, del consentimiento multitudinario, jamás se hubiera logrado conseguir un hombre de valor. Merced a que la marcha de las cosas tiene lugar sin el consentimiento de las mayorías, en la tierra pueden producirse sucesos sorprendentes. En donde abundan las cualidades medias de las cuales depende la persistencia de una medida estándar que es el modelo entitativo de la universidad en la era industrial, ser persona resulta ser un lujo pues lo que abunda son más bien portadores e instrumentos de transmisión. Comparado con la importancia de lo mediano, la persona resulta algo casi antinatural. Ser en la sociedad industrial es ser productivo y no resulta extraño, por eso, que la virtud de la educación consista en hacer a un hombre lo más útil posible hasta convertirlo en máquina. La educación promueve, por tanto, aquellos estados de ánimo que hacen trabajar al individuo de una manera maquinal y rechaza todo lo demás. La actividad maquinal trae consigo la uniformidad y el aburrimiento y, no por otra razón, aprender a soportar tales efectos es el objetivo de toda educación fundada en los valores de competitividad, eficiencia y productividad. La educación maquinal trasforma lo aburrido, desagradable y fastidioso en algo agradable honrando la obediencia ante la fuerza del poder: hacer voluntariamente las cosas desagradables es la intención del gran ideal. La educación asume entonces el carácter de domesticación132. La ciencia en su devenir especializado se convierte en investigación merced al proyecto y al aseguramiento en el rigor del proceder anticipador. Proyecto y rigor se despliegan y convierten en el método. Así, el método determina el segundo carácter esencial para la investigación. La regla está referida a la fijación de los hechos y la constancia de su variación como tal. La ley está a su vez referida a lo constante de la transformación en la necesidad de su transcurso. Regla y ley determinan la claridad de los hechos de la naturaleza como los 131 “Los valores de la cultura sólo se aseguran significación, dentro del todo de una cultura, al limitarse a su propia validez: la poesía, en virtud de la poesía; el arte, en virtud del arte; la ciencia, en virtud de la ciencia”. Martin Heidegger, Introducción a la metafísica, Buenos Aires, Editorial Nova, 1969, p. 85. 132 “La educación es, esencialmente, el medio para arruinar la excepción a favor de la regla. La instrucción es, esencialmente también, el medio de enderezar el gusto contra la excepción a favor de la mediocridad”. Friedrich Nietzsche, La voluntad de poderío, Madrid, Editorial Edaf, 1981, p. 500. 244 hechos que son. Así, la investigación de los hechos es la exposición y preservación tanto de las reglas como de las leyes por medio de las cuales una cosa es clara. Dicha aclaración tiene un doble significado: fundamenta algo desconocido por medio de algo conocido y, a su vez, garantiza eso conocido por medio de lo desconocido. La aclaración se realiza en la exploración o el examen. En las ciencias de la naturaleza esto tiene lugar por medio del experimento. Las ciencias de la naturaleza no se convierten en investigación gracias al experimento sino al contrario: donde el conocimiento de la naturaleza adopta la forma de investigación. Disponer de un experimento significa representar una condición en la cual un determinado conjunto de movimientos puede tornarse apto a ser manipulable por medio del cálculo. El objeto, un determinado rango de lo ente, ofrece la medida y vincula a la condición el representar anticipador. Las hipótesis no son arbitrarias pues se desarrollan a partir del rasgo fundamental de la naturaleza inscritas en él. El experimento refleja aquel procedimiento dirigido por la ley que se establece como hipótesis con el propósito de producir los hechos que confirmen o nieguen la ley. En las ciencias históricas el equivalente del experimento es representado por la búsqueda, selección, confirmación, valoración y presentación de las fuentes. Tanto en las ciencias naturales como en las ciencias del espíritu el método tiene un solo objetivo: representar aquello que es constante. La historia se convierte de este modo en objeto y su objetividad depende del pasado: lo constante del pasado. Lo comparable permite, a su vez, que la explicación reúna lo único y lo múltiple. En la permanente comparación del todo con el todo se realiza el cálculo de lo comprensible y se confirma como el rasgo fundamental de la explicación histórica. Aquí lo grande se mide con el rasero de lo habitual y lo estándar. Mientras explicar signifique reducir a lo comprensible y mientras la ciencia histórica siga siendo una investigación no podrá haber otra explicación de la historia. Y es precisamente este rasgo de proyectar y objetivar el pasado en el sentido de un conjunto de efectos explicable y visible el que exige fundamentarse en la crítica de fuentes. Toda ciencia es particular pues en tanto investigación está fundada sobre el proyecto de un sector de objetos delimitado. El desarrollo de la ciencia en tanto investigación exige de una especialización. En la edad moderna la ciencia se desarrolla bajo el carácter de empresa. Los propios resultados de la ciencia rigen como camino y medio del método progresivo. Este carácter explica, a su vez, la 245 necesidad del desarrollo de la ciencia como institución. Su carácter de institución permite el aseguramiento de la primacía del método sobre el ente –naturaleza e historia- el cual se convierte en algo objetivo dentro de la investigación. El carácter de empresa de la ciencia acuña ahora otro tipo de hombres: el sabio de antaño da paso al investigador moderno que ya no necesita de una biblioteca sino de bancos de información. La información está vinculada, a su vez, a las instituciones. El trabajo pierde igualmente su carácter de erudición y se convierte en una actividad esencialmente técnica capaz de garantizar la eficacia y objetividad de los resultados. La educación deja de fundamentarse en lo espiritual para hacerlo en lo real. Dicho fenómeno se manifiesta en la especialización de la ciencia y en la particular unidad de las empresas. El proyecto y el rigor así como el método y la empresa, al plantearse constantes exigencias recíprocas, conforman la esencia de la ciencia moderna y la convierten en investigación. El conocimiento bajo la forma de investigación pide cuentas a lo ente de cómo y hasta qué punto está a disposición de la representación: la investigación dispone de lo ente al calcularlo por adelantado (naturaleza) o a posteriori como pasado (historia). Solo aquello que así se convierte en objeto es: existe. La ciencia se convierte en investigación en el momento en que busca al ser de lo ente en la objetividad. La objetividad de lo ente tiene lugar en la representación cuyo objetivo es colocar a todo lo ente ante sí de forma que el hombre que calcula pueda tener certeza de lo real. La verdad se transforma en certeza de la representación. Lo ente se determina ahora como objetividad de la representación y la verdad como certeza133. La existencia europea de deslizó entonces hacia un mundo vacío, breve, efímero caracterizado por una ausencia total de profundidad en el pensamiento. Tal proceso registró una homogenización de todas las cosas en el mismo plano semejante a un espejo ciego que es incapaz de reflejar y de devolver nada. La dimensión que se impuso fue la de la extensión y el número y no por otra razón en la educación contemporánea la argumentación metafísica y fenomenológica es sustituida progresivamente por la cifra que adquiere el estatus de prueba. En muchos casos el problema de la investigación no se reduce a una cuestión política centrada en el Estado sino a complejos industriales-militares e interestatales donde lo teórico y práctico se entrecruzas y se mezclan y termina por perder sus diferencias toda vez que se programa el 133 Véase Martín Heidegger, “La época de la imagen del mundo (1938)”, Caminos de bosque, Madrid, Alianza Editorial, 1998, pp. 63-90. 246 saber de manera autoritaria y se orienta y organiza de acuerdo a la utilidad. En la educación contemporánea, por consiguiente, el límite establecido por la filosofía kantiana entre el esquema técnico y el esquema arquitectónico en la organización sistémica del saber ha dejado de existir. Las diferencias entre razón pura y razón práctica son cada vez más difíciles de encontrar y se confunden entre sí. El pensar profundo y sereno es sustituido por unos conocimientos de carácter técnico, susceptibles de ser aprendidos por todos y siempre vinculados al carácter productivo del mundo del trabajo, llegando al extremo de trasformar lo cuantitativo en una peculiar cualidad. Jaques Derrida ha mostrado que el conocimiento teórico en disciplinas que antes actuaban al margen de poder como el psicoanálisis, la semiótica, la literatura y hasta la misma filosofía han sido utilizadas por las potencias industriales para fines bélicos en el marco de la guerra psicológica y se han combinado con la tortura. 134 El debilitamiento del espíritu se expresa en varios fenómenos: el espíritu se transforma en inteligencia que es interpretada como mera capacidad de entender mediante el cálculo. La degradación del espíritu y su conversión en inteligencia se desarrolla hasta desempeñar el papel de instrumento al servicio de determinados fines que son valorados como lo real propiamente dicho. La interpretación instrumentalista del espíritu hace retroceder los poderes del acontecer espiritual, trátese de la poesía, la música, la pintura o los poderes del estado y la religión, a una posible asistencia de planificación dirigida135. El mundo espiritual asume, de este modo, el carácter de cultura por medio de la cual el hombre individual intenta perfeccionarse.136 La educación contemporánea busca producir un carácter productivo que se adapte sin mayores traumatismos a las exigencias del rendimiento máximo. La definición del profesional queda circunscrita, en consecuencia, a la visión científica y técnica ligada a la lógica del poder para quien el ente solo representa una cualidad: ser un recurso productivo. Desde entonces alcanzar la máxima productividad en el menor tiempo posible se convirtió en 134 Véase Jaques Derrida, “Las pupilas de la universidad. El principio de razón y la idea de universidad”, Hermenéutica y racionalidad, Gianni Vattimo (compilador), Madrid, Editorial Norma, 1994. 135 “…la razón es la instancia del pensamiento calculador que organiza el mundo para los fines de la autoconservación y no conoce otra función que no sea la de convertir el objeto, de mero material sensible, en material de dominio…El ser es contemplado bajo el aspecto de la elaboración y la administración”. (Max horkheimer y Theodor W. Adorno, Dialéctica de la ilustración. Fragmentos filosóficos, Madrid, Editorial Trotta, 1994, p. 131). 136 Véase Martin Heidegger, La autoafirmación de la universidad alemana, Madrid, Editorial Técnos, 1996. 247 la nueva religión de los hombres. La educación contemporánea fundada en la sobre-especialización profesional quedó circunscrita a la productividad: el hombre dejó de entregar su alma a Dios para dársela al poder. Ser profesional significa entonces alcanzar el valor supremo: ser productivo. Toda acción que intente ir más allá de la productividad carece de sentido: es improductiva. Aquí se abre un interrogante: ¿Qué pasa con lo improductivo? Lo improductivo es lo que carece de sentido precisamente por no derivarse de allí ninguna utilidad. Lo improductivo es la nada de la productividad y no se deja someter al dominio de lo productivo. Y al ser declarado un antivalor el poder pasa factura a la osadía de quien pretenda sobrepasar su límite. La estructura de la conciencia moderna establece una clara distinción entre productivo e improductivo, útil e inútil, eficaz e ineficaz, e impone una camisa de fuerza al individuo mucho más represiva incluso que la de la santa inquisición, solo que la dominación se ejerce ahora desde una dimensión inconsciente. El hombre de hoy no diferencia entre libertad y obediencia y toda su psicología ha quedado reducida a participar en el juego.137 Más allá de la cultura de los juegos del poder, la vida, la historia, la conciencia, el sentimiento, pierden todo significado. ¿Qué pasa entonces con lo no productivo? Solo existe lo objetivo-rentable y más allá no hay nada. La sociedad ha venido transformándose, por consiguiente, desde aquella imagen que tenían los hombres de sí mismos de estar cerca de los dioses, y que tuvo como fruto la creación de la filosofía, la tragedia y la ciencia antigua, hasta aquella otra con la que sueñan millones de seres en el mundo: ser las tuercas de un complejo engranaje. Cuanto más se aleja el hombre de la esencia de sus facultades intelectuales y transforma esa energía en disposición técnica tanto mejor profesional es. Tanto más degradante y estúpida es la actividad que desarrolla, piénsese en los modelos publicitarios, las comentaristas y narradores deportivos, los animadores de televisión, etc., solo para citar algunos ejemplos, tanto más remunerado es el profesional. Allí donde los valores de la sociedad industrial suprimen la diferencia entre ser y éxito desaparece la necesidad del preguntar. La figura de más prestigio en una empresa, el ejecutivo, no piensa, ejecuta. La educación deja de fundarse en atribuirle sentido a las cosas y se convierte en una actividad funcional. El conocimiento no se experimenta como búsqueda de sí mismo y del mundo, y adopta la forma de una prostituta: se vende al mejor postor. Solo reducido a ser una pieza bien aceitada del monstruoso organismo se es. Solo empequeñecido a 137 Véase Ernst Junger, El trabajador. Dominios y figura, Barcelona, Editorial Trotta, 2003. 248 su imagen de disposición técnica alcanza su más sentido objetivo: ser profesional. Cuando Oscar Wilde138 dijo que “el medio más seguro de no saber nada de la vida es intentar hacerse útil” no lo decía en broma. Quien no tiene autonomía carece de entendimiento y se convierte en garantía de eficacia. Independiente y autónomo es únicamente aquel ser que se tiene así mismo y no puede ser ni medio ni objeto de otro. Ser profesional es ser el medio a través del cual el poder realiza su orgía rentística y persigue sus propios fines. La existencia profesional es una existencia para otro y esta negación de la esencia se experimenta como éxito. Los predicados que definen al poder son los mismos que definen al ser profesional: el olvido del ser trasmigra al mundo de la vida como ideal supremo. La acotación de lo profesional referido a la utilidad borra las diferencias de la singularidad humana y las transforma en una única cualidad: ser un recurso viviente. En la medida en que la educación transforme su energía vital en energía productiva, borre progresivamente aquellas singularidades que definen su condición de mortal y se asemeje cada vez más a una máquina, tendrá mayores posibilidades de éxito. La educación asume en este contexto un carácter eminentemente auto-referencial que ya no es capaz de formar ciudadanos y cada vez actúa por fuera de la excelencia humanística al fundar toda su acción en rutinas didácticas des-espiritualizadas. La des-humanización de la educación se transforma de esta manera en un valor o, como los economistas sueles decir, en una ventaja comparativa. El concepto de libertad implícito en una educación auténtica sufre, de esta manera, una transformación radical: deja de ser la medida en que se expresa la existencia individual y solo cobra sentido allí donde la persona singular se transforma en una simple pieza de un complejo engranaje y se integra a la totalidad de los fenómenos. El estudiante es sometido a las virtudes del orden y ya nadie es indispensable: todos son sustituibles. El rendimiento es potenciado por una educación funcional y se hace patente tanto en los exámenes de Estado que presentan los estudiantes para promocionarse socialmente como en las pruebas psicotécnicas de una empresa encaminadas a seleccionar personal. Las diferencias entre libertad y obediencia desaparecen y las vivencias no se experimentan como únicas sino como unívocas. No existen diferencias tampoco entre el espacio educativo y el mundo del trabajo y lo que decide las 138 Véase Oscar Wilde, Ensayos y artículos, Barcelona, Ediciones Orbis S.A., 1986, pp. 66-67. 249 diferencias en ese espacio es el rendimiento encarnado en unos símbolos fácticos. El éxito de la educación se mide entonces por la capacidad de reconocer esos símbolos y hacerlos suyos. ¿Cuál es el destino de la libertad y de la autonomía de la educación? Su destino es funesto pues ambos términos, libertad y autonomía, representan sólo una caricatura de lo que significaron en sus orígenes: la incondicionalidad del pensar. Ambos han sido inoculados por el poder del dinero y vaciados de todo contenido ontológico. Como en la fábula kafkiana, la libertad y la autonomía universitaria se han metamorfoseado en un enorme insecto que susurra en el oído de estudiantes, profesores y directivas: ¡no piensen, obedezcan! Lo que se impone es una razón totalitaria, cínica y ciega que corresponde a la voluntad de poder del ente que ha sido abandonado así mismo y que se manifiesta en la preeminencia de lo programable de lo real previamente calculado. El desprecio de la libertad, de la autonomía y del pensar aparecen con nombre propio: abstracción total. El estudiante deja de identificarse con un ser, una persona, un ciudadano, un sujeto, para hacerlo con un código productivo. Cuanto más grande se hace la brecha entre el pensar y la voluntad de dominio más fascinación adquiere la abstracción del código que niega y exorciza la complejidad del objeto: todo lo reduce a la formalización matemática. La pregunta que interroga por el sentido de la educación ha caído en el olvido con la misma celeridad en que las escuelas crecen en el negocio de ofertar diplomados, especializaciones y maestrías fundamentadas en un solo principio: la rentabilidad Lo esencialmente mediocre hay que buscarlo, por tanto, en aquellas ideas y valores con pretensiones de validez universal que orientan a la educación pero que mutilan al Dasein y lo trasforman en un recurso humano productivo. Se trata de una educación funcional, impersonal y abstracta que se deslinda de los problemas ontológicos fundamentales y cuyo carácter existencial se hace patente como medianía: lo originario se torna de repente banal, lo laboriosamente conquistado por una larga tradición se vuelve trivial, todo misterio pierde su fuerza. El estudiante es valorado como un ente y no como un ser: la esencia incondicionada de la subjetividad se despliega entonces como brutalitas de las bestialitas. Una concepción que contrasta con la idea de paideia griega. 250 A educação pulsional de Nietzsche 1. Introdução Estudos e pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche tem se tornado cada vez maiores, e, consequentemente, tem sido maior também a quantidade de pesquisas e trabalhos sobre a relação do pensamento de Nietzsche com a educação. Diversas delas têm mostrado um Nietzsche cada vez mais afinado com os problemas e as necessidades do campo educacional. A maior parte destes trabalhos concentra-se em análises feitas de obras do primeiro período de produção filosófica de Nietzsche, que podemos chamar de o jovem Nietzsche. Têm importância ressaltada nestes trabalhos os textos: Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como educador e um conjunto de conferências realizadas pelo então professor Friedrich Nietzsche, da universidade da Basileia, Sobre o futuro de nossas instituições educacionais. É claro que estes textos são de grande importância para o pensamento de Nietzsche, porém refletem ainda grande imaturidade conceitual, são textos de um período em que o filósofo ainda estava profundamente vinculado ao pensamento de Schopenhauer e ao ambiente artístico instaurado em torno de Wagner, e também intentava desenvolver uma metafísica de artista. Isso quer dizer que circunscrever o pensamento educacional de Nietzsche aos textos de sua juventude, e utilizar os textos do período intermediário, ou maduro, como auxiliares cria uma insuficiência interpretativa, graças à qual Nietzsche é pensado tão somente como um crítico da expansão e universalização do ensino, ou um idealista da escola formadora do gênio, todavia as possibilidades são muito maiores do que isso. A proposta deste trabalho então é expandir o horizonte interpretativo do papel da educação no pensamento de Nietzsche, expandindo, consequentemente, o universo bibliográfico de análise, tomando como referências principais para a compreensão do pensamento educacional do autor, as obras do seu período intermediário, e ainda mais as obras do período maduro, podendo deste modo compreender como a educação no pensamento de Nietzsche passa por uma reinterpretação da própria subjetividade humana, na qual a 251 educação, só se dá efetivamente, quando a estrutura pulsional que uma pessoa é ao nascer é radicalmente transformada pelas suas vivências. Temos então o que se poderia chamar de uma hipótese: só há educação, aos moldes nietzscheanos, quando a estrutura da subjetividade de uma pessoa é alterada pelas suas vivências, isso não ocorrendo, não se pode falar em educação. 2. Subjetividade Pulsional Comumente, nos trabalhos sobre Nietzsche, a sua teoria pulsional aparece como um subitem da análise da vontade de poder, dando-se maior importância a esta do que àquela. Neste trabalho, optou-se por uma inversão dessa abordagem, ou seja, partir-se-á da teoria pulsional para versar sobre a vontade de poder. Nesse sentido, é importante analisar um fragmento póstumo de Nietzsche, que parece mostrar a tentativa aqui proposta como desnecessária ou infundada: Nosso intelecto, nossa vontade, bem como nossos sentimentos, descendem de nossas estimativas de valor: estas correspondem às nossas pulsões e suas condições de existência. Nossas pulsões são redutíveis à vontade de poder. A vontade de poder é o último Factum ao qual podemos descer. (NIETZSCHE, KSA XI, 40[61], p. 661). O fato de Nietzsche afirmar que a vontade de poder é o último fato ao qual se pode descer, o elemento final ao qual se pode chegar na análise de qualquer acontecimento que envolva o humano, e que as pulsões são redutíveis a ela, apenas afirma o movimento ou modus operandi das pulsões: elas agem em direção ao poder. A vontade de poder não é a substância formada pelas pulsões nem seu substrato, a vontade de poder é a indicação do modo de ser das pulsões. Foi a partir de Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais que Nietzsche constatou que as valorações e crenças morais não derivam de fontes metafísicas ou extrahumanas, pelo contrário, elas são bastante humanas, pois nascem de algo em nós, uma força não deliberada, uma força irracional e que se volta para a vida em face de qualquer circunstância, mesmo do rebaixamento da vida. Mas como nomear tal descoberta? O léxico com o qual Nietzsche nomeou esse conjunto de forças é bastante variado, em especial no período anterior a Além do bem e do mal. Algumas das palavras mais utilizadas são: pulsão (Trieb), instinto (Instinkt), afeto (Affekt) e paixão (Leidenschaft). Embora o uso 252 indiferenciado de termos tão distintos tenha causado problemas de interpretação, seria difícil e até infrutífero tentar diferenciá-los no modo como o filósofo os utilizou. Em apenas um caso essas palavras possuem ressonância em alemão. É o caso da palavra Instinkt, cuja definição no dicionário Duden da língua alemã é: “1. impulso natural para certos comportamentos. 2. direito, correto, sentimento inconfundível” (DROSDOWSKI, 1988. Grifo meu). Também o dicionário de sinônimos da editora alemã Directmedia (Berlin, 2003) apresenta a palavra Trieb como sinônima da palavra Instinkt. A relação contrária também se verifica, sendo Instinkt apresentado como sinônimo de Trieb. Quanto às palavras afeto (Affekt) e paixão (Leidesnchaft), elas não possuem relação uma com a outra nem com as demais palavras utilizadas por Nietzsche. Todavia, se se analisam as principais definições de todas elas, descobre-se um elemento comum que pode servir de pista para melhor compreender a utilização dessas palavras pelo filósofo. Pulsão: 1. forte [natural] desejo de certos atos. Instinto: 1. impulso natural para certos comportamentos. Afeto: agitação violenta: desencadear, causar emoções. Paixão: desejo ou solicitação forte; forte sentimento de emoção. (As quatro citações: DROSDOWSKI, 1988). Nos quatro casos há acontecimentos volitivos que indicam um forte arrastamento ou inclinação não racional em direção a alguma coisa, como se uma pessoa “tomada” por um desses “sentimentos” ou “sensações” não pudesse reagir racionalmente, podendo apenas obedecer a essa ordem não racional e aceder aos seus caprichos. Usou-se a palavra “volitivos”, entretanto, ela também não dá conta, no pensamento nietzscheano, da amplitude do problema: as pulsões não são atos volitivos; pelo contrário, os atos volitivos são consequências das relações pulsionais no interior de um indivíduo. Analisando os textos de Nietzsche, percebe-se que esses termos são facilmente cambiáveis, como no caso a seguir: Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação (Selbsterhaltungstrieb) como o impulso (Trieb) cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequentes consequências disso. – em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos! – um dos quais é o impulso de conservação (Selbsterhaltungstrieb) (nós o devemos à inconsequência de Spinoza). Assim pede o método, que deve ser 253 essencialmente economia de princípios. (NIETZSCHE, ABM, p. 13. Grifos meus). É bastante claro que nas partes destacadas do texto poder-se-ia substituir pulsão (Trieb) por instinto (Instinkt) ou correlatos e não haveria perda de sentido, tendo-se então: “instinto de autoconservação” em vez de “impulso de autoconservação”. Nesse caso, o impulso é mostrado como uma força primitiva, anterior à conservação, base da vontade de poder. Lê-se na mesma obra: (...) na época moral da humanidade, sacrificava-se ao deus os instintos (Instinkte) mais fortes que se possuía, a própria “natureza”: é esta alegria festiva que reluz no olhar cruel do asceta, do entusiasta “antinatural”. (Idem, p. 58). Nesse caso, substituindo a palavra “instintos” por “pulsões” tem-se a mesma compreensão do trecho citado, ou seja, que na época moral da humanidade sacrificava-se o que havia de mais forte e não racional no homem, o que nele era natural. As outras duas palavras, paixão (Leidenschaft) e afeto (Affekt), têm incidência bem menor na obra de Nietzsche como significação das pulsões. Mesmo assim, é possível ler abaixo um exemplo claro em que a palavra paixão poderia ser substituída por instinto, sem perdas: A desrazão ou razão oblíqua da paixão (Leidenschaft) é aquilo que o vulgar despreza no nobre, mais ainda quando esta se volta para objetos cujo valor lhe parece fantástico e arbitrário. Ele se aborrece com quem sucumbe à paixão (Leidenschaft) do estômago, mas entende a atração que há por trás dessa tirania; não entende, porém, como se pode colocar em jogo a saúde e a honra pela paixão (Leidenschaft) do conhecimento, por exemplo. (NIETZSCHE, GC, p. 56. Grifo meu). No trecho que antecede essa citação, Nietzsche explica como é difícil para o homem vulgar, não nobre, compreender alguns rompantes dos senhores, por exemplo, ao cometer uma loucura quando deu sua palavra, ao invés de quebrar a palavra. Nietzsche, então, afirma que os servos são mais astutos e inteligentes, justamente porque não se deixam arrastar por essas forças, e continua com o trecho citado acima. Nele pode-se perfeitamente substituir a palavra paixão pela palavra instinto, resultando em: “a desrazão ou razão oblíqua do instinto é aquilo que o vulgar despreza no nobre”. A paixão nesse caso não é um ato de volição de um ser dotado de vontade e consciente de suas escolhas, pelo contrário, é um arrastamento ao 254 qual “o intelecto tem de silenciar ou servir” (Idem). A paixão não é um sentimento, mas, sim, uma pulsão, que tem a mesma característica não racional e não volitiva, anterior a tudo isso. Na seção de número 109 de Aurora há uma perfeita correlação entre afeto e pulsão; Nietzsche utiliza-os como sinônimos. É uma seção mais longa que o comum para o período e a obra e tem o intrigante título Autodomínio e moderação, e seu motivo último. Nietzsche oferece seis métodos para o controle das pulsões e explica o funcionamento de cada um. O quarto método constitui-se em um estratagema intelectual: associa-se ao impulso que se quer combater uma imagem dolorosa e penosa, e com o tempo, a sensação de prazer ou a manifestação desse impulso trará para a mente, automaticamente, a imagem dolorosa e sua correlata sensação; então, o filósofo afirma: Isso também ocorre quando o orgulho de um homem se rebela, como lorde Byron e Napoleão, por exemplo, e se sente como uma afronta o predomínio de um determinado afeto (Affectes) sobre a atitude geral e a ordem da razão; daí surge o hábito e a vontade de tiranizar o impulso (Trieb) e fazê-lo como que gemer. (NIETZSCHE, AU, p. 80. Grifo meu). Esse é, sem dúvida, o mais claro dos exemplos, pois nele Nietzsche tomou ambas as palavras (afeto e pulsão) como sinônimas. Apesar de, na obra de Nietzsche, essas palavras muitas vezes serem usadas como sinônimos, em muitas outras elas têm um sentido totalmente distinto, em especial paixão e afeto, as quais o filósofo também utilizou com um sentido bastante comum, sem dar a elas a mesma carga semântica que atribui à palavra pulsão. Mesmo a palavra pulsão às vezes é utilizada, principalmente nas obras iniciais, em um sentido distinto do que se viu na citação anterior. Em vez de usá-la como a força irracional que constitui mais intimamente o humano, Nietzsche utiliza-a como um sinônimo de vontade, um elemento associado ao processo de realização de algo que surge com a volição e que se materializa por meio da vontade. O que, então, são as pulsões? Independentemente da palavra que Nietzsche tenha usado para significar o conceito de pulsões, esse conceito possui um conjunto de ideias que o especifica, porém uma afirmação presente em um fragmento não publicado oferece uma ótima compreensão do que sejam: Não resta coisa (Ding) alguma, apenas quanta dinâmicos, em uma relação de tensão com todos os outros quanta dinâmicos: sua essência está na sua relação 255 com todos os outros quanta, em seu ‘efeito’ sobre eles. (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[79], p. 259). Pensar as pulsões como quanta dinâmicos de energia é a melhor saída para o perigo representado por interpretações substancialistas e classificatórias das pulsões, ambas fazendo a teoria das pulsões de Nietzsche redundar em uma ontologia na qual as pulsões ganham a característica de ser. Entretanto, chamar as pulsões de quanta de energia ou quanta dinâmicos de energia não seria apenas mudar o nome das pulsões e repetir o processo pelo qual elas são vistas como ser, ou seja, atribuir-lhes identidade, permanência e igualdade? O risco persiste e é real, mas quando se pensa que esses quanta de energia não existem como seres reais, mas apenas enquanto estão em conflito uns com os outros, e que a partir do momento em que tal conflito cessa, cessa também seu existir, então, foge-se à possibilidade de repetir a ontologização do pensamento de Nietzsche quanto às pulsões. Elas sempre devem ser pensadas como conflito ou relação entre pulsões, como ação de umas sobre as outras, nunca apenas como pulsões: para Nietzsche não é concebível uma energia que não seja atuante. Essa visão das pulsões como quanta de poder é reforçada por Casa Nova, quando afirma que: Em todo acontecimento nos defrontamos com o estabelecimento de uma relação entre elementos perspectivísticos de ordenação da pluralidade de forças em jogo. Cada um destes elementos perspectivísticos encerra em si mesmo uma determinada ascensão sobre esta pluralidade de forças e uma determinada capacidade de resistir aos elementos contrários à sua vigência. O mundo caracteriza-se então por um embate entre princípios de composição e estes princípios não estão senão inseridos em uma relação necessária de poder uns em relação aos outros. De acordo com uma certa formulação recorrente nos cadernos nietzscheanos de 1887/88, eles são quanta de poder e se instauram em sua identidade própria a partir “do efeito que exercem e ao qual resistem”. Porque o mundo é marcado originariamente por uma luta entre quanta de poder e porque se mostra em sua dimensão mais primordial enquanto uma guerra entre perspectivas detentoras de uma capacidade de domínio, temos a cada instante o despontar de uma conjuntura de poder. Esta conjuntura de poder precisa incessantemente transmutar-se em função de sempre novas composições, visto que a sua instauração não encerra de uma vez por todas a guerra (...). (CASA NOVA, 2001, p. 43). Desse modo, vê-se que a teoria pulsional de Nietzsche toma o ser humano como um conjunto caótico de pulsões em constante luta e que só momentaneamente conseguem arranjos de poder que dão à existência a aparência de permanência. As pulsões são quanta de poder em constante conflito e não são pensáveis fora do conflito: as pulsões só existem 256 enquanto se encontram em luta. Não apenas o corpo humano é fruto dessas pulsões, mas tudo que envolve o corpo humano, inclusive a sua personalidade. Nietzsche radicalizou essa ideia quando afirmou que mesmo o sujeito nada mais é do que a consequência de toda essa luta constante, apenas uma pelinha de maçã sobre um caos constante. 3. Vontade de poder e condição de vida A vontade de poder é um dos assuntos mais estudados no pensamento de Nietzsche. Suas interpretações são as mais diversas, indo desde a leitura ontologizante de Heidegger até a interpretação política de Pearson. Obviamente, tal profusão de estudos não é sem motivo: a vontade de poder é sem dúvida um conceito inovador na história da filosofia e ponto privilegiado para a compreensão do pensamento de Nietzsche. Neste trabalho, como foi dito, optou-se por abordá-la dentro da teoria pulsional, sabendo, todavia, que há outras maneiras de interpretá-la. Até agora não foi abordada diretamente, somente tangenciando sua realidade e mencionando-a, porque tentar-se-á realizar um novo exercício hermenêutico da vontade de poder, associando-a aos conceitos de condição de nascimento, condição de vida e condição de morte. Para apresentar esses conceitos é importante verificar o modo como a vontade de poder aparece no pensamento de Nietzsche. Tendo sido profundamente influenciado por Schopenhauer em sua juventude, era quase inevitável que Nietzsche trouxesse em seu pensamento as marcas de seu primeiro mestre. Embora a vontade de poder não reflita mais o pensamento schopenhauriano, a palavra vontade persistiu no vocabulário de Nietzsche. Encontram-se nas obras de seu período intermediário os primeiros rudimentos do que seria a sua teoria da vontade de poder. Para referir-se às intuições que já tinha de que o mundo é intrinsecamente vontade de poder, o filósofo usou diversas expressões, como sentimento de poder (AU, p. 108) e desejo de poder (GC, p. 64). Contudo, a primeira utilização da expressão vontade de poder (Wille zur Macht) apareceu em um texto dos fragmentos póstumos, do final de 1876 ao verão de 1877, em que Nietzsche afirmou que o medo e a vontade de poder são suficientes para explicarem nossa consideração pelas opiniões alheias, sendo o medo um princípio negativo e a vontade de poder um princípio positivo (NIETZSCHE, KSA VIII, 23[63], p. 425). Esse foi o período em que Nietzsche escreveu suas Considerações extemporâneas, período anterior a Humano, demasiado humano; por isso, a vontade de poder tem ainda um sentido utilitário, juntamente com o medo. 257 A primeira vez em que o conceito apareceu de modo definitivo, como hoje é entendido, foi em A gaia ciência, no quinto livro, introduzido na obra em sua segunda edição, em 1887, período de A genealogia da moral. Antes disso, o conceito apareceu de maneira relativamente próxima ao uso maduro que Nietzsche lhe deu em um fragmento não publicado do verão de 1880 (NIETZSCHE, KSA IX, 4[239], p. 159). Como se vê, a elaboração do conceito é relativamente tardia, mas a ideia de que o poder associado à vontade formaria um novo conceito já aparecia desde a juventude de Nietzsche. Na teoria nietzscheana das pulsões, tudo o que se refere às pulsões, refere-se direta ou indiretamente à sua constante luta por mais poder. Manter-se vivo é apenas uma précondição em um organismo para que busque mais poder; manter-se vivo, porém, não basta. Deste modo se pode dizer que a vontade de poder é o modo único do caos pulsional. Só há conflito entre as pulsões porque cada uma delas busca impor-se sobre as demais, absorvê-las, subjugá-las, transformá-las em suas subalternas. Assim, a vontade de poder descreve o que para Nietzsche é o movimento da vida: crescimento e expansão incessantes em busca de mais poder. Poder aqui é entendido das mais diversas maneiras; nele estão incluídos poder físico e político, mas não apenas. Querer reduzir a vontade de poder a uma busca por força físicomuscular ou poder político seria reduzi-la a apenas duas de suas muitas interpretações. Mesmo quando uma pulsão, ou indivíduo como si, conjunto de pulsões, submete-se a outro, essa submissão é uma estratégia da vontade de poder atuando nesse indivíduo: submete-se para no futuro submeter. Spinks afirma que a teoria da vontade de poder está dividida em três concepções básicas: a primeira é a de que a vida é um campo de luta constante entre as pulsões, que criam, assim, a vontade de poder, de onde deriva também a consciência humana e seus efeitos; a segunda é a de que o objetivo da vida não é nem autopreservação nem iluminação moral ou espiritual, mas o aumento do poder, e que o impulso-guia da vida (life-drive) é a acumulação de força e a superação de resistências; o terceiro elemento é o de que a vontade de poder interpreta o mundo hierarquizando as diferentes forças e conjuntos de forças que constituem o humano (SPINKS, 2003, p. 137). Spinks nos oferece um ótimo caminho para seguir, na busca de uma melhor compreensão da vontade de poder, a saber: a) apresentação da vida como vontade de poder; b) o movimento pulsional dá-se em direção ao poder, não em direção à conservação; c) a 258 vontade de poder não é um princípio utilitário, ou seja, não trabalha em uma relação prazer/desprazer, mas age sempre em busca de novos conflitos que, superados, aumentam a sensação da força. A caracterização da vida como vontade de poder produz, muitas vezes, tonalidades dramáticas no pensamento de Nietzsche. Se a vontade de poder é resultante do caos pulsional e tem como modo de funcionamento o crescimento e a expansão, é de se supor que também na vida isso esteja presente. Quando Nietzsche criticou a moral, em especial a moral cristã, ele o fez em vista do que chama de falseamento da vida e também de contranatureza: impor a si e ao mundo uma moral, e tomá-la como fundamento da vida, é contrário à natureza humana (caos pulsional), principalmente uma moral do perdão e do amor ao próximo acima do amor de si. Porém, o filósofo não perde de vista que se essa moral prega isso, o modo como se impôs às demais não foi esse: as morais sempre se impõem umas às outras como as pulsões no interior de um organismo: por meio de disputas de força nas quais acontecem submissões e surgem comandantes e comandados. Desse modo, enxergar na vida o constante movimento da vontade de poder não é tornar a vida mais terrível do que ela é. Apenas a moral cristã nos fez acreditar em outro mundo em que isso não aconteceria, mas essa moral também se impôs às outras e tratou seus dissidentes da mesma maneira. Por isso, Nietzsche afirmou: (...) a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...). A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto. (NIETZSCHE, ABM, p. 171). Os contemporâneos defensores da democracia e dos direitos humanos espantariam-se com as palavras de Nietzsche, acusando-o de defensor da barbárie. Contudo, Nietzsche não está, de maneira alguma, fazendo apologia de tal comportamento, está apenas assumindo que historicamente esse foi, até o momento em que ele viveu, e infelizmente até o momento em que vivemos, a maneira pela qual os seres humanos interagiram uns com os outros. Embora politicamente tal assunção seja dolorosa, como diz o filósofo, há de ser honesto até esse 259 ponto. Mesmo as teorias que mais pregaram a igualdade ou a liberdade desandaram em autoritarismos individualistas e tirânicos. Um dos mais importantes episódios da história moderna, que Nietzsche conheceu e não se cansou de criticar, foi a Revolução Francesa: as loucuras que Robespierre cometeu em nome da igualdade e da liberdade dão prova das afirmações de Nietzsche. Houve outras experiências que Nietzsche não conheceu, como o totalitarismo nazista, que matou, trucidou e explorou em nome de uma suspeita beleza, a tirania socialista de Stálin e outros tiranos espalhados pelo mundo que, em nome da igualdade, também perseguiram, mataram e exploraram. Mesmo a atual expansão da democracia, com a ofensiva dos Estados Unidos da América e de seus aliados no Oriente Médio, é feita por meio da guerra, da violência e da exploração, em uma contraditória, porém verdadeira, democracia absolutista, por mais paradoxal que isso possa ser. Essa é a característica básica da vida, embora Nietzsche aposte que a vontade de poder possa manifestar-se de formas menos drásticas e dolorosas, como a arte, a conversão e o convencimento. Desse modo, para Nietzsche, a vontade de poder seria uma teoria unificadora capaz de explicar tudo o que está envolvido e pressuposto no fenômeno vida, como afirmou em Além do bem e do mal: (...) – Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição – é um só problema –, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder. O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu “caráter inteligível” – seria justamente “vontade de poder”, e nada mais. (Idem, p. 43). Retomando a segunda proposição de Spinks, tem-se a ideia de que a vida se move em direção a um aumento de poder, e não em direção à conservação. Nesse ponto, Müller-Lauter está de acordo com Spinks quando afirma que a vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processos de dominação. Por isso querer-poder (Macht-wollen) não é apenas “desejar, aspirar, exigir”. A ele pertence o “afeto do comando”. Comando e execução pertencem ao um da vontade de poder. Assim, “um quantum de poder (...) é designado por meio do efeito que ele exerce e a que resiste.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 54-5). 260 Nietzsche opôs-se ao darwinismo, pois para o filósofo alemão apenas uma vida decadente e enfraquecida busca a conservação. Ele afirmou, reiteradas vezes, que onde encontrou exuberância na vida encontrou a busca pelo poder, por um quantum a mais de poder. No entanto, mesmo essa vida decadente busca poder, sendo a conservação uma fase transitória e às vezes aparente. Isso pode parecer contraditório, porém, não o é. Se a conservação é uma etapa na busca pelo poder – conserva-se aquilo que está vivo –, é fundamental que um organismo enfraquecido primeiro se conserve para, em seguida, buscar o poder. Desse modo, a vontade de poder não é uma característica das pulsões fortes e dominantes ou dos homens fortes e dominantes: ela é uma característica geral de tudo que vive. Mais uma vez a crítica da moral aponta para isso. Em um comportamento classificado por Nietzsche como vermiforme, o autor afirma que o verme, quando é pisado, encolhe-se para não ser pisado novamente. Enquanto os moralistas classificariam isso como humildade, ele via como vontade de poder; o verme busca preservar-se, mas única e tão somente para poder, em alguma ocasião, exercer poder e buscar mais poder. Trazendo a ideia para o campo das relações humanas, o filósofo afirma: “Onde eu vi vida, eu encontrei vontade de poder: e mesmo na vontade dos serviçais eu encontrei vontade de poder. O homem submete-se aos grandes, para ser senhor dos pequenos: esse princípio nos convence à submissão.” (NIETZSCHE, KSA X, 13[10], p. 459). Outro exemplo mais claro de que a vontade de poder não é uma exclusividade dos fortes – e que os fracos, inclusive, podem submeter os fortes – aparece na primeira dissertação de A genealogia da moral. Lá Nietzsche mostra como, por meio de uma série de artifícios do espírito, ou seja, da inteligência, os fracos dominaram os fortes por meio da moral dos escravos. Spinks faz outra observação importante sobre a vontade de poder: ela não possui um caráter utilitarista, ou seja, a vontade de poder não atua buscando prazer e evitando desprazer. Prazer e desprazer são meras consequências daquilo que a vontade de poder busca: mais poder. Nietzsche ressaltou que por vezes uma pessoa se arrisca, arrisca a própria vida e ferese, movida pela vontade de poder. O desprazer muitas vezes é um obstáculo importante para a vontade de poder, e o prazer não está em se obter algo, mas em poder continuar o conflito: 261 quando a vontade de poder assimila algo, não há prazer, mas apenas o aumento do desejo por uma nova tensão, por uma nova contraposição. Nietzsche ironizou esse eudemonismo, que faz toda a vida circular em torno da busca pela felicidade e que reduz a felicidade ao prazer. Em Crepúsculo dos ídolos, essa ironia se intensificou com a afirmação de que esse é o ideal “(...) com o qual sonham o comerciante, o cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas (...)” (NIETZSCHE, CI, p. 95). Para Nietzsche, o que está em questão nesse utilitarismo é um rebaixamento do ser humano, tornando-o preguiçoso e desabituado à luta. Segundo Giacoia, tal rebaixamento é indissociável da “redução utilitarista do ideal de felicidade e conforto, segurança e bem-estar, da hipócrita autocompreensão do europeu civilizado como sendo o sentido do progresso e o ‘final da história’” (GIACOIA apud NIETZSCHE, GP, p. 12). Seguindo as indicações de Spinks, chega-se a uma boa compreensão da vontade de poder, porém, é preciso compreender como essa vontade de poder se expande e domina. Mais uma vez não se pode tirar da teoria da vontade de poder seu caráter dramático e doloroso, expresso pela exploração e, muitas vezes, subjugação violenta. Mas essas não são as únicas maneiras pelas quais as pulsões dominam umas às outras em seu movimento direcionado ao poder. Nietzsche referiu-se com grande frequência à disputa pulsional como fundação e interpretação de mundo, ou seja, uma das maneiras de um grupo pulsional ou uma pulsão dominar as demais é apresentar-lhes interpretações diversificadas e variadas do mundo nas quais cada uma delas tenha importância e exerça algum poder. Aqui se depara com uma linguagem estratégica, inevitável quando se trata da relação pulsões/vontade de poder, mas, independentemente do léxico usado e de sua matriz, o que importa é não perder de vista o significado do conflito pulsional em sua vontade de poder. Essa interpretação de mundo não tem, porém, um intérprete. Mais uma vez é necessária cautela para não se resvalar para o subjetivismo, que precisa inserir um intérprete por trás da interpretação. A interpretação de mundo das pulsões não tem um sujeito; as pulsões ou a vontade de poder não são sujeitos, pois sua existência só é presumida no processo da luta, faltando-lhes duração e permanência, características fundamentais ao sujeito. Partindo da interpretação de mundo resultante da vontade de poder, Nietzsche chega a uma incrível análise da fisiologia do corpo sem, no entanto, tornar-se finalista. Uma mão não é algo desenvolvido pelo corpo para segurar. A mão surgiu aleatoriamente e um determinado 262 grupo pulsional a tomou para si e a integrou em seu domínio, passando, então, a usá-la para segurar. O filósofo afirmaria que, provavelmente, ao longo da história humana, houve outras maneiras de se utilizar as mãos, dependendo do arranjo pulsional interno de cada indivíduo. Então, por que hoje, em sua maioria, há apenas uma maneira de utilizar cada órgão do corpo, por exemplo? Para Nietzsche, a resposta é simples: vive-se a hegemonia de uma determinada interpretação de mundo fundada no domínio de determinados grupos pulsionais. Se houvesse uma reviravolta nesse arranjo, tudo poderia se modificar. Todavia, os incríveis acasos que asseguraram o atual arranjo pulsional que se vê, de um modo mais ou menos parecido na maior parte dos seres humanos, deve ser duradouro, pois foi capaz de desenvolver um “órgão” que assegura sua preservação ao criar uma ilusão de unidade externa que se autoengana, pensando-se também como unidade interna: a consciência. O filósofo alemão mostra a importância da constituição da consciência e do Eu e sua manutenção em cada sujeito, pelos diversos arranjos pulsionais que formam a vontade de poder: A vontade de poder interpreta: na formação de um órgão há uma interpretação, que delimita, determina graus, diferencia poderes. Meras diferenças de poder não poderiam perceber a si mesmas como tal: deve haver um algo que quer crescer e que interpreta qualquer outra coisa que queira crescer de acordo com seu próprio valor (...). Na verdade a interpretação é, ela mesma, uma maneira de se vir a ser senhor sobre alguma outra coisa. (NIETZSCHE, KSA XII, 2[148], p. 139-40). Se até no surgimento e utilização de um órgão Nietzsche via a vontade de poder agindo de modo a assegurar o domínio de determinado conjunto de pulsões, o que será esse algo mais, que deve crescer e que interpreta qualquer outra coisa que também quer crescer, segundo seus próprios critérios? Não resta dúvida de que Nietzsche se refere à consciência e, indiretamente, ao que a ela está ligado: sujeito, lógica etc., pois é por meio da lógica que o Eu sujeito pode passar da aparência à igualdade, operação fundamental da lógica. Essa consciência interpreta a si mesma e se, dentro de si, detectar outro supostamente igual que também quer crescer, deve interpretá-lo segundo suas regras, ou seja, segundo algo que ameaça internamente seu domínio de poder. Um exemplo disso é o modo como nossa consciência “vigia” os “impulsos passionais” que tantas vezes querem nos fazer perder a consciência. 263 A respeito dos atos volitivos da consciência, enquanto máscara das pulsões sobre outras pulsões que ameaçam a hegemonia do grupo que domina a consciência, Giacoia faz uma importante observação: nesse processo volitivo há, ao mesmo tempo, em cada indivíduo, algo que manda e algo que obedece. De acordo com a reconstituição nietzscheana do ato volitivo, o querer consiste também, sobretudo, numa disposição de ânimo: ao fazê-lo, somos tocados, tomados e movidos pelo afeto do comandar, pelo sentimento de dispor de algo, que obedece. Existe, pois, internamente – mesmo que não movamos um músculo –, uma divisão entre um eu que comanda e um ele, uma curiosa espécie de alteridade, um algo que obedece – que, justamente em razão de sua inserção naquela complexa correlação de forças que constitui todo querer, tem de obedecer. (GIACOIA, 2001, p. 68). Essa observação nos permite concluir que o Eu vive o incrível prazer da tensão no momento do comando sobre si mesmo ao sentir que, enquanto comanda, há algo que obedece, mesmo internamente. Percebe-se uma forte identificação entre o si (conjunto pulsional que cada humano é e que Nietzsche chamou de Selbst) e o Eu, pois o si que uma pessoa é, e que ignora ser, geralmente se identifica e se alegra com as conquistas do Eu que ele forjou e que essa pessoa acredita ser. Enquanto essa pessoa se ilude imaginando que as conquistas de sua consciência fortalecem seu caráter, o que elas fazem é fortalecer o si que essa pessoa é. Quanto mais forte é o Eu, mais ignora o si e mais fiel e intensamente exerce seu papel de escudo protetor do si, ao mesmo tempo sua ponte com o mundo exterior e principal canal de comunicação e domínio desse mesmo mundo. Desde o momento em que um novo ser humano nasce, aqueles que o recebem esforçam-se, de alguma forma, por moldar nele uma personalidade e caráter, por conseguinte, uma consciência e, desse modo, possibilitam que a configuração da vontade de poder das pulsões existente neles se reproduza na criança e que o processo se expanda, assegurando cada vez mais domínios de poder para esse conjunto pulsional. 4 – As condições da existência: ascensão e decadência pulsional Falar do estado original das pulsões no momento em que um ser humano nasce é sempre muito difícil sem recorrer ao vocabulário tradicional da filosofia metafísica, pois este se especializou justamente em tentar mostrar o que as pessoas são. Todavia, tal vocabulário 264 foi descartado pelo filósofo aqui em estudo. Também não se pode recorrer ao vocabulário da filosofia moderna, pois, a despeito de Nietzsche usar com frequência palavras como natureza e outras mais, retiradas ao léxico da filosofia moderna, ele também nos advertiu de que “a verdadeira natureza humana – [é uma – VS] frase proibida” (NIETZSCHE, KSA IX, 6[150], p. 235). Mas por que é tão importante a condição na qual nasce o ser humano? Quando se fala em educação e se tem como pressuposto o pensamento de Nietzsche, refere-se a um processo radical de transformação. Para saber o quanto esse processo é realmente radical, é fundamental saber o que um ser humano é ao nascer e saber o que esse processo educacional pode fazer com ele. Para melhor compreender o alcance da educação no pensamento de Nietzsche é fundamental que se conheça os arranjos pulsionais que cada indivíduo é ao nascer, somente assim será possível avaliar até que ponto realmente a educação ocorreu em relação a uma pessoa, pois, para Nietzsche, só há educação quando as experiências pelas quais uma pessoa passa a levarem a se tornar um ser humano diferente, se estas experiências forem capazes de fazer com que um indivíduo passe por uma modificação tipológica, ou seja, se seus arranjos pulsionais o tornam um tipo superior, sua educação consistirá na variação do tipo; se seus arranjos pulsionais o constituem em um tipo inferior, também aí a educação ocorrerá com a variação do tipo. Deste modo em Nietzsche há educação tanto na ascensão tipológica, quanto na decadência dos tipos. Aqui, porém, se depara com cum problema: como falar da organização pulsional que um humano é, aquilo que mais intimamente o constitui, sem recorrer ao jargão tradicional da filosofia, em especial à natureza humana ou essência, conceitos que o próprio Nietzsche interditou? Para evitar esses problemas, será usada a expressão condição de nascimento para significar o estado do arranjo pulsional em um ser humano no momento de seu nascimento. A condição de nascimento refere-se ao modo como as pulsões atuam umas sobre as outras em um indivíduo da espécie humana quando nasce e passa a receber sobre si a pressão de outras organizações pulsionais de poder para moldá-lo à imagem e semelhança delas.139 Não nos 139 Para Nietzsche, os homens mais fortes são múltiplos e não precisam se impor aos outros. Eles suportam a diferença em si sem enlouquecerem. O filósofo afirma que o grande homem é medido pela liberdade que dá a esses animais (as pulsões), sem, no entanto, ser controlado por elas. Na Genealogia da moral, Nietzsche mostra como esse homem é forte, porém, pela sua abertura para a diferença, é presa fácil do homem fraco, centrado em torno de uma única pulsão e totalmente fechado à multiplicidade pulsional. Vem daí uma ideia constante em Nietzsche, desde as obras da juventude: é preciso defender o forte do fraco. 265 importa saber qual é o exato conteúdo da condição de nascimento, quais são as pulsões superiores, quais são as pulsões subalternas, ou que tipo de Eu e consciência essas pulsões desenvolverão em seu favor, nem sequer se elas o farão. Tampouco nos interessa que tipo de moral essas pulsões tomarão como interpretação do mundo. O que importa é apenas saber se isto que se é quando se nasce pode ser alterado. Será possível que os vários acontecimentos que tomam lugar na vida de um ser humano podem alterar sua condição de nascimento? Serão utilizados outros dois conceitos correlatos à condição de nascimento: condição de morte, expressão que significará o estado do arranjo pulsional em um ser humano no momento em que morre, e condição de vida, significando os diversos arranjos pulsionais que tomam lugar em um mesmo corpo formando personalidades diversas, Eus diversos, consciências diversas que adotam morais diversas, tudo isso ao longo de uma única vida. Assim, é possível atualizar a tese anteriormente apresentada para este trabalho: só há educação, nos moldes nietzscheanos, quando as várias condições de vida permitem que a condição de morte seja distinta da condição de nascimento. Quando Nietzsche afirmou que nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas (ABM, p. 25), ele quis dizer que ao longo de uma vida é possível que se viva tantas condições de existência que a condição de morte é radicalmente distinta da condição de nascimento. O agente que opera essa diferenciação é, inegavelmente, a vontade de poder; e a alteração dá-se em função dos constantes embates pulsionais. No vocabulário nietzscheano, só é possível chamar de educação o processo que faça brotar, da aparente unicidade do Eu, a multiplicidade (consciente ou inconsciente) do si, sem que, no entanto, esse si sucumba à louca tensão das pulsões em conflito140. A educação, para Nietzsche, é um dos mais duros e raros processos humanos; e que não haja ilusões, não é prazerosa, mas é uma tentativa irreversível da vontade de poder, que muitas vezes falha. Muitas pessoas, em face da atual sociedade burguesa dos homensengrenagens-de-máquinas, terão como condição de morte a mesma condição de nascimento, sem nunca conhecerem uma condição de vida que fosse diferente, para Nietzsche, destes, jamais se poderá dizer que conheceram a educação. 140 Tal sucumbência seria, para o filósofo, um retrocesso nas organizações pulsionais a períodos anteriores à civilização e nele se perderia o esforço de milênios. 266 Para melhor compreendermos o problema da educação no pensamento de Nietzsche é fundamental então que compreendamos como se dá a ascensão e a decadência tipológicas, acontecimentos que são, para o filósofo de Zaratustra, os índices da educação. No que se refere à tipologia nietzscheana, uma das mais importantes perguntas que se deve fazer é aquela da mutabilidade dos tipos: é possível haver transição entre os tipos? Ou, ainda, um tipo superior pode tornar-se inferior e vice-versa? Essas perguntas têm sua importância aumentada quando se trata do pensamento educacional de Nietzsche, principalmente neste trabalho, que toma como pressuposto a ideia de que para ele só há educação quando a condição de morte é distinta da condição de nascimento, o que indica, claramente, alteração nos arranjos pulsionais, que, em nível máximo, é a própria mudança do tipo. Esses problemas ficaram caracterizados no pensamento de Nietzsche sob a rubrica da decadência e seu contramovimento, a ascendência. A aproximação de Nietzsche do tema da decadência, tema já bastante conhecido na história ocidental, se deu pela aproximação com o professor de história da Universidade da Basileia, Jacob Buckhardt, que profetizou a decadência cultural da Europa, diagnóstico com o qual Nietzsche concordava. Burckhardt exerceu grande influência sobre o jovem Nietzsche quando este buscava progressivamente afastar-se do pensamento de Schopenhauer e da arte wagneriana, ao ponto de Nietzsche denominá-lo como “o maior mestre” (LARGE, 2000, p. 38-39). A ideia de cultura de Burckhardt, em especial, influenciou profundamente o jovem professor Nietzsche, e foi justamente por meio da cultura que Nietzsche chegou à decadência, ou melhor, ao diagnóstico da decadência da Europa, isso em sua obra juvenil. A passagem da decadência cultural para a decadência tipológica deu-se por meio de uma associação operada por Nietzsche entre decadência, doença e saúde, que permitiu ao filósofo, tardiamente, tornar a decadência um problema tipicamente fisiológico. Mas, claro, tratar-se-ia então de outra fisiologia, uma fisiologia pulsional. Em Humano, demasiado humano I, encontra-se o aforismo (§ 214) que demonstra essa aproximação: decadência cultural, saúde e doença, nele Nietzsche explica que os homens antigos viam no impulso afrodisíaco uma divindade e que, por senti-la em si, acabavam tratando-a com gratidão. A partir daí Nietzsche faz o jogo de valoração dos senhores: aquilo que está no tipo superior é digno de admiração, mesmo a doença, o que levou os gregos a tratarem suas doenças como algo digno de admiração, rendendo-lhe culto. 267 Nesse breve parágrafo encontra-se toda a complexidade que se tornaria, no futuro, o problema da ascensão/decadência dos tipos: decadência e ascensão aproximadas de saúde e doença, ou seja, tornadas problemas fisiológicos; ao mesmo tempo a cultura é colocada em uma relação que não é nem inversa, nem direta, porém paralela com a doença: não é a cultura que adoece, mas é o homem adoecido que gera a cultura adoecida. Esse homem, quando superior, admirará nele até a doença, e, quando inferior, buscará extirpá-la, o que aumenta o problema, pois é possível pensar que a doença (decadência) é útil e rica em possibilidades criativas, desde que seja a doença dos tipos superiores, desde que não tenha dominado totalmente esse tipo superior. No segundo livro de Humano, demasiado humano, há outro aforismo fundamental para a compreensão do problema da decadência fora da esfera da decadência cultural, ideia recorrente no jovem Nietzsche e mais próxima da perspectiva do Nietzsche maduro: a decadência como um problema fisiológico-pulsional. Na citação anterior, saúde e doença são tomadas como saúde e doença de alguém, como saúde e doença dos gregos, que as tornaram objetos de veneração. Todavia, saúde e doença para Nietzsche não são estados pertencentes ao sujeito, mas estados constituintes e/ou desagregadores do sujeito: Utilidade da saúde frágil. – Quem frequentemente está doente tem não só um prazer muito maior em estar são, devido à sua frequente reconquista da saúde, mas também um aguçado sentido para o que é são ou doente nas obras e ações: de modo que, por exemplo, justamente os escritores doentios – entre os quais estão quase todos os grandes, infelizmente – costumam ter, em suas obras, um tom de saúde bem mais seguro e constante, pois entendem mais que os fisicamente robustos da filosofia da saúde e convalescença psíquica e de seus mestres: manhã, sol, floresta e fontes. (NIETZSCHE, HDH II, p. 146). Esse aforismo é uma antecipação do que Nietzsche, em 1866, escreveria no prefácio de A gaia ciência sobre a saúde, mais precisamente em três pontos: perda e recuperação da saúde; saúde e doença nas obras e nas ações; e uma filosofia que é a voz da saúde, da doença e da convalescença. Esses são três pontos que tornam resplandecente, para estudos da ideia de decadência e convalescença em Nietzsche, o prólogo de A gaia ciência. Ali, é fundamental estar atento ao que se passa: o livro foi escrito após uma das piores e mais longas crises de saúde do filósofo. A maior parte do livro não foi propriamente escrita por Nietzsche, mas ditada por ele ao seu amigo Peter Gast, que tomava os apontamentos do filósofo adoecido. 268 Nesse prólogo, Nietzsche oferece a ideia-mestra para se entender a ideia de decadência como um problema prioritariamente fisiológico-pulsional e não mais, ou não apenas, como um problema cultural: lá Nietzsche explica como a doença filosofou nele e conta que foi o contato íntimo e próximo com a doença, a decadência, que lhe permitiu recuperar a saúde. O que se depreende das afirmações do filósofo é que a doença não era o seu mal, ou sua decadência propriamente dita; na verdade, a doença foi o sintoma que permitiu ao filósofo recuperar a si mesmo, como futuramente escreveria, o filósofo nele defendeu-o da decadência. Porém, se a doença não é a decadência em si, o que é a decadência? A decadência, como Nietzsche a pensou, é o processo pelo qual os tipos superiores se enfraquecem, transitando entre os diversos tipos da mesma tipologia (espíritos livres, homens superiores, bestas louras etc.), podendo até mesmo se tornar tipos inferiores. Se a principal caracterização dos tipos superiores é encontrada na multiplicidade e coesão de sua constituição pulsional, pois, como lembrou o filósofo, estes são “as formas mais ricas e complexas – pois a expressão “tipo superior” não significa nada mais que isso” (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 317), a coesão que não dispensa os conflitos internos, pelo contrário, permite a expressão das múltiplas pulsões, tornando o querer manifestar-se das outras pulsões em “vozes” de sua própria consciência. Se é esta complexa “sociedade” pulsional que constitui os tipos superiores, a decadência, então, consiste na desagregação dessa sociedade, na instauração, mesmo que em parte, do caos pulsional. Com essa ideia concorda Onate ao afirmar que: Décadence significa sobretudo retração na intensidade vital ou, na refinada terminologia do filósofo, impotência à potência (Ohnmacht zur Macht), determinando que, “onde, sob qualquer forma, a vontade de potência declina, há também, toda vez, uma regressão fisiológica, uma décadence” (AC/AC § 17). No décadent predomina a contradição dos instintos, fruto da deficiência no centro de gravidade responsável pela força organizadora; fica obstruído o canal hierarquizador natural, impedindo assim que os instintos fundamentais desfrutem da supremacia e tornando-os gradativamente voláteis, vazios, ideais. O universo instintivo básico estreita-se, cedendo terreno para um cabedal ilusório de noções e princípios, que se apresenta como instrumento disciplinador do fluxo instintual, mas que, no fundo, é mero corolário do decréscimo de potência, sua mais astuta cartada dissimulatória. (ONATE, 1996, p. 25). 269 Onate oferece alguns elementos a mais para a compreensão da decadência: a) a desorganização da hierarquia pulsional; b) a diminuição da vontade de poder; c) a alteração na estrutura valorativa; d) e aqui o mais relevante, a regressão fisiológica. Pode-se afirmar que nos três primeiros itens há uma relação causal: a desorganização da hierarquia pulsional (a) é o processo interno no qual as pulsões mais fortalecidas e com força diretiva e organizadora são subjugadas por conjuntos numéricos maiores, todavia individualmente mais fracos e, consequentemente, sem a capacidade organizadora e a “vocação” para o domínio. Que não se espante quanto a isso, a subjugação do número maior de pulsões enfraquecidas sobre aquelas fortalecidas, pois, como Nietzsche asseverou em fragmento não publicado: “Nós desaprendemos, agora, a falar do saudável e do doente como oposições: [a diferença VS] é de graus.” (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[119], p. 29). Sendo a saúde e a doença uma questão de graus, esse grau é o da força das pulsões em comando, logo, é plausível e aceitável que um número maior de pulsões enfraquecidas subjuguem pulsões fortalecidas, mas que estão em menor número. Tais acontecimentos gerariam uma queda na vontade de poder (b), pois sendo a vontade de poder a resultante do conflito pulsional, e as pulsões enfraquecidas dominando, e sendo a castração e destruição da diferença seu modo de domínio, é de se esperar que a vontade de poder também diminua, e, por fim, a mudança nas estruturas valorativas (c) se constitua como novo modus operandi das pulsões agora em comando. Essa mudança valorativa assegura seu domínio sobre as demais pulsões, em constante diminuição, e sobre o mundo externo das mais diversas formas. Mas em todas elas as pulsões, agora em comando, deixam transparecer para o Eu e para a consciência uma nova tábua de valores. Onate traz ainda outra importante informação na citação acima: a decadência gera, ou está associada, a um tipo de regressão fisiológica, com o que concorda Müller-Lauter ao afirmar que: “Nietzsche evidencia a falta de unidade orgânica, que deve remeter por fim à décadence fisiológica” (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 18). Müller-Lauter tratou, em linguagem um pouco mais cifrada, o mesmo problema: falar que a falta de unidade orgânica gera decadência fisiológica pode parecer, à primeira vista, redundante, pois o orgânico e o fisiológico assemelham-se, Nietzsche tomou ambos como simultâneos e contíguos. Então, o que se tem é que um desarranjo orgânico, ou seja, pulsional, remete, por fim, à decadência fisiológica, sendo o fisiológico duplamente significante, pois é corporal/somático, mas também psíquico/psicológico. 270 Decadência, como Nietzsche a concebe, envolve uma carência de integração. Decadência psicológica envolve uma falta de integração das pulsões ou instintos que compõem o si. Enquanto Nietzsche claramente associa decadência com fraqueza, ele também a acha [a decadência – VS] instrumentalmente valiosa. Ele escreve em Ecce Homo que ele pode reavaliar os valores só porque ele experimentou ambas: decadência e saúde. (MULLIN, 2000, p. 400). A contribuição de Mullin é significativa ao clarear a ideia de que a decadência psicológica concerne à integração das pulsões que constituem o si, si que representa a totalidade daquilo que se é: a soma das pulsões e daquilo que é orgânico e possui relação de simultaneidade com as pulsões. Mullin oferece outra contribuição que permitirá adentrar mais profundamente no problema da educação no pensamento de Nietzsche e sua relação com a decadência e ascendência. Evocando citação da autobiografia de Nietzsche, a autora afirma que o filósofo experimentou a decadência e a saúde, ou seja, viveu tanto o processo de decadência como desagregação pulsional, como a ascendência, ou seja, retomada da saúde pulsional e de sua organização hierárquica. Seria bastante simples admitir tal hipótese se não se esbarrasse com um trecho de fragmento póstumo no qual o filósofo afirmou que: “O tipo permanece constante: não se pode ‘desnaturar a natureza’.” (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 315). Se o tipo não pode ser modificado, aparentemente todo o esforço educativo se perde; porém, essa seria uma conclusão ligeira demais. É necessário antes compreender toda a discussão que envolve o trecho citado. Trata-se de um texto póstumo da primavera de 1888, um dos que Nietzsche intitulou de “Anti-Darwin”, e não sem motivos, pois todo o texto se constitui em uma crítica ao pensamento darwinista, baseada em dois pontos centrais: (1) a seleção natural e seu corolário; (2) a preponderância do melhor adaptado, que na interpretação nietzscheana significava o mais forte, promovendo por fim a evolução. É este o ponto central da objeção nietzscheana: a evolução. O filósofo de Zaratustra admitia modificações e mudanças nos seres humanos e nos demais animais, já que Nietzsche não distinguia entre humanos e outras espécies. Todavia, para Nietzsche, a ideia de evolução como Darwin havia proposto estava eivada de ideias morais, principalmente a finalidade e a melhoria em um sentido que, para Nietzsche, aproximava-se muito do melhoramento do homem tentado pela Igreja, tanto que no início do 271 texto o filósofo refere-se à possibilidade de domesticar o homem, ou seja, amansá-lo, torná-lo pequeno, “melhoramento” bastante criticado por Nietzsche. Para Nietzsche, as transformações em uma espécie não tendem a um fim específico, mas acontecem por acaso, e o acaso age de forma semelhante tanto para os tipos superiores quanto para os tipos inferiores: “Nós, ao contrário, nos certificamos que, na luta pela vida, o acaso favorece tanto aos fracos quanto aos fortes”. (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 315). Se o acaso, então, favorece aos fortes e aos fracos da mesma maneira, a seleção natural não altera os tipos, por isso, Nietzsche pôde afirmar que o tipo permanece, e mais, não se pode perder de vista que a distinção dos tipos era quantitativa e não qualitativa. Verifica-se, então, claramente, que para Nietzsche a mudança tipológica é uma realidade e que está na conta do acúmulo e perda de força no domínio pulsional, e tudo o mais decorre daí. Todavia, se a decadência é claramente possível, assim como as mudanças tipológicas que a envolvem, resta saber se o inverso também é possível e como ele acontece. Em sua obra, Nietzsche dá alguns exemplos de pessoas que degeneraram, é o caso de Napoleão e também de Pascal, mas há poucos exemplos, ou talvez nenhum caso, de ascendência tipológica; o que se tem bem documentado na obra do filósofo é apenas o próprio caso, ao qual o filósofo se referiu nos seguintes termos no prefácio de O caso Wagner: “Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.” (NIETZSCHE, CW, p. 9). Confrontadas essas informações com aquelas da introdução de A gaia ciência, onde o filósofo fala da recuperação de sua saúde, é possível perceber que Nietzsche, após um período de decadência, restabeleceu-se, teve uma convalescença e ascendeu novamente ao tipo ao qual ele achava que pertencia, o tipo superior. Quando Nietzsche afirmou que o filósofo nele se defendeu, estava claramente se referindo às pulsões que falam eu, ou seja, em sua decadência, uma pulsão ou conjunto de pulsões fortalecidas assumiu o controle do todo, impedindo que a decadência fosse maior. Essas pulsões fortalecidas são as que organizam e que conseguem suportar sobre si, e sua consciência, o peso das demais. A ideia de curar-se a si mesmo foi retomada no Ecce Homo, porém, com um agravante: “Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio.” (NIETZSCHE, EH, p. 25). 272 O que quer dizer ser sadio no fundo? Esse é um problema fundamental para a compreensão do outro movimento, o movimento contrário ao da decadência, a ascendência, e também os seus limites. A esse trecho da autobiografia de Nietzsche faz eco outro texto, mais intenso na agudeza do problema da transformação humana, mais intenso no problema da mudança tipológica e, consequentemente, na possibilidade da educação como diferenciação entre condição de nascimento e condição de morte. Hoje, onde qualquer “o homem deve ser assim e assim” já nos põe uma pequena ironia na boca, onde nós absolutamente asseguramos que alguém, apesar de tudo, apenas vem a ser aquilo que é (apesar de tudo: quer dizer educação, instrução, meio, acidentes e acasos). (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[113], p. 290). Ao contrário da decadência, que é uma possibilidade constante, ilimitada e sempre à espreita, a ascendência tem um limite: o limite no qual a multiplicidade pulsional não foi totalmente destruída, ou seja, é possível convalescer e ascender a um tipo superior desde que as demais pulsões não tenham sido totalmente destruídas, acontecimento que, enquanto possibilidade, pareceu plausível a Nietzsche, sem que tal depauperamento final das pulsões representasse a morte. Todavia, embora a especulação racional mostre essa possibilidade, em uma espécie de niilismo ascético, o filósofo não deu exemplos disso; pelo contrário, na terceira dissertação de A genealogia da moral, quando falou do sacerdote como o tipo ideal do ascetismo, o que Nietzsche tentou mostrar foi justamente o esforço desse condutor de rebanho (o sacerdote ascético) para impedir o total aniquilamento pulsional no interior de um indivíduo. Desse modo, enquanto houver multiplicidade pulsional, mesmo que em “latência”, é possível haver convalescença e ascendência, por meio de um atiçamento das lutas internas, momento no qual as pulsões enfraquecidas, que no início estavam em maior número, mas foram se destruindo, perdem seu lugar para as pulsões fortalecidas e com o poder para organizar o todo. É o que se pode depreender de outro fragmento não publicado: |Nós não acreditamos que um ser humano se torne outro, se ele já não o é: ou seja, se ele não é, como muitas vezes acontece, uma pluralidade de pessoas, ou ao menos de bases para pessoas.| (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[151], p. 332). 273 Ou seja, a ascendência depende da multiplicidade pulsional ou, ao menos, como diz o filósofo, de pulsões que possam simular vestígios de personalidade141. Se o duplo movimento de ascensão e decadência pulsional é possível, notar-se-á que ambos criam ou ensejam vertentes de educação e de formações culturais distintas: uma cultura superior e uma cultura inferior. Se o problema da organização pulsional de cada pessoa se sobressai como um problema de constituição interna, não é possível ignorar as influências externas que se abatem sobre cada pessoa no que diz respeito à sua organização pulsional. O sistema educacional para Nietzsche era acima de tudo um esforço coletivo e social de modelagem pulsional. Resta saber que tipo de modelo pulsional se busca estabelecer com esses sistemas educacionais e os limites deles na realização daquilo que para Nietzsche realmente era educação: diferenciação entre condição de nascimento e condição de morte. Conclusão É certo que Nietzsche pode ser pensado como um filósofo da educação, para isso porém é fundamental que se encare sua obra como um todo e se esteja disposto a pensar que o pensamento educacional do filósofo extrapola suas obras da juventude, enraizando-se, em especial nas obras da maturidade e do período intermediário. Só assim se poderá compreender a teoria nietzscheana da constituição da subjetividade humana, para, a partir dela perceber a educação como um processo radical e total de transformação da intimidade humana. 141 Aqui se usa a palavra personalidade na tentativa de significar o conjunto de hábitos e características que fazem com que um membro da espécie humana pareça único aos demais membros dessa espécie. De resto, em outros momentos do texto são usadas palavras como pessoa, indivíduo, gente etc., com o intuito de significar o si que um membro da espécie humana é, e como os outros membros dessa espécie o reconhecem e distinguem, e como ele mesmo, ou melhor, o Eu de seu si apresenta-se para si mesmo. 274 Bibliografia CASA NOVA, Marco Antônio. Interpretação enquanto princípio de constituição do mundo. In: Cadernos Nietzsche, vl. 10, p. 27-47. São Paulo: USP, 2001. GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo (RS): Editora Unisinos: 2001. LARGE, Duncan. “Nosso Maior Mestre”: Nietzsche, Burckhardt e o conceito de cultura. In: Cadernos Nietzsche, vl. 9, p. 3-39. São Paulo: USP, 2000. LEE Spinks. Friedrich Nietzsche. New York: Routledge, 2003. Routledge critical thinkers (collection). MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. Tradução: Oswaldo Giacoia Júnior. São Paulo: Annablume, 1997. ______. Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner. Tradução: Scarlett Marton In: Cadernos Nietzsche, vl. 6, p. 11-30. São Paulo: USP, 1999. MULLIN, Amy. Nietzsche's free spirit. In: Journal of the History of Philosophy, 38, 3; p. 383-405. Baltimore (Maryland): Academic Research Library, 2000. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A “Grande Política”, fragmentos. Introdução, seleção e tradução: Oswaldo Giacoia Jr. Campinas (SP): Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-IFCH-UNICAMP, 2002. ______. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2001. ______. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 1992. ______. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2004. ______. Crepúsculo dos Ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2006. ______. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 1995. ______. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres, volume II. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2008. 275 ______. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres, volume I. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2000. ______. KSA. München: Walter de Gruyter GmbH e Co. KG, Berlin, 1967-77 und 1988. ______. O Caso Wagner: um problema para músicos/Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Vontade de verdade: uma abordagem genealógica. In: Cadernos Nietzsche, vl. 1, p. 07-32. São Paulo: USP, 1996. 276 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: A ATUALIDADE DO ANTIGO Filipi Vieira Amorim Mauro Grün INTRODUÇÃO O ideal de formação/educação que os gregos desenvolveram em seu tempo (Idade Antiga) perpassa o contexto social da época e se mostra atual em suas propostas e objetivos à luz da Paideia. Destarte, em tempos conflituosos entre pensar e agir, entre prática pedagógica e teoria educacional, entre adesões pragmáticas por parte de profissionais da educação e pela mercantilização da própria educação em nome dos ideais capitalistas, é relevante a proposta de uma reflexão histórica para a retomada da perspectiva indissociável entre Filosofia e Pedagogia, entre aplicação técnica-científica e ética. O objetivo deste artigo é descrever os pontos de aplicabilidade – em relação ao modelo de educação contemporâneo – desse ideal antigo, mas de abrangência e alcance tão atuais quanto necessários. É com os gregos que nasce o logos, a razão, e a partir disso seria legada à cultura ocidental toda uma tradição capaz de se manter influente por milênios. A justificativa para este ensaio se dá no que corresponde à filosofia e à educação enquanto resgate de uma proposta firmada por ideais que não perderam a validade, mas que foram ignorados pelo surgimento da modernidade na incansável busca pelo novum. O pensar e o agir dos gregos estão associados a uma opção, um modo de ser e estar no mundo. O logos grego, enquanto caminho para a sabedoria, se mantém distante de estar relacionado a propostas abstratas, ou, então, ao fato de transmitir e adquirir conhecimento, simples e unicamente. Mais do que tudo, para os gregos o autoconhecimento individual e a universalidade do bem e da justiça são os rumos da sociedade. Além disso, por conceberem a polis como uma extensão da família, a formação ética e política eram vistas como a efetivação dessa aspiração. A discussão teórico-metodológica de nossa abordagem está fundamentada a partir da Hermenêutica Filosófica e embasada na Paideia grega. A hermenêutica filosófica será a base para a elevação do real (do atual) ao conceito; sendo assim, o esforço fenomenológico vai ao encontro da compreensão sobre a realidade e permite elaborar uma orientação para a prática educacional contemporânea. Com isso, apresentamos neste ensaio uma constatação feita 277 através da conceitualização da realidade, deixada surgir em sua integralidade, e de um retorno aos clássicos gregos e seus ideais de universalidade fundados no belo, no justo e no verdadeiro. O entrelaçamento de história e educação, filosofia e pedagogia, hermenêutica e fenomenologia aponta rumos no longo caminho da compreensão de nós mesmos e do mundo. Os resultados e a discussão final, apresentados como conclusões provisórias, vão ao encontro de uma proposta de educação enquanto formação ética e política que considera o pensar e agir indissociáveis para um caminho salutar à filosofia da educação na contemporaneidade. PAIDEIA: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Existe uma clara ambigüidade estabelecida no ato de falar sobre Educação. Por um lado é simples, se considerarmos a presença da Educação em todos os nossos atos e interrelações sociais cotidianas. Porém, sua complexidade se apresenta à medida que precisamos elevar o real, nossas vivências e experiências, ao conceito, como um exercício fenomenológico que busca a essência. Tal exercício não se preocupa com o produto, mas com o processo de formação/Educação historicamente construído. Goergen (2009, p. 25), ao contextualizar historicamente a Educação a apresenta como “uma necessidade comum a todos os seres humanos atendida segundo as crenças, os valores, os ideais e as condições materiais de cada circunstância”. Por isso, esse processo ao qual denominamos formação não é linear, não é padrão e “não conhece verbos regulares” (MENDES, 1998). Aqui, abordaremos a questão da aplicabilidade dos ideais gregos na Educação Contemporânea, por isso, mesmo correndo o risco de elaborarmos uma abordagem reducionista e fragmentada, efetuaremos um recorte histórico. Seria uma falha fechar a história da Paideia às contribuições feitas por Jaeger (2001), bem como encerrá-las na filosofia de Platão e Aristóteles, como nos alerta Paviani (2009). Assim, com o intuito de evitar esse “fechamento”, fixaremos um olhar hermenêutico nessa tarefa e isso proporcionará o reconhecimento do que está perdido, daquilo que é estranho, estrangeiro à nossa experiência, para torná-lo conhecido, compreensível e, talvez, aplicável. Desse modo, como uma espécie de nota de esclarecimento ao leitor, não temos a pretensão de escrever um tratado 278 revolucionário à Filosofia da Educação. Este ensaio se estabiliza e tem como cerne um diálogo aporético – como em O Laques142 (PLATÃO, 1966). A palavra Paideia não se permite elevar a um único sentido, a uma determinação fechada, pois é resistente às formulações conceituais abstratas. Jaeger (2001) assemelha o conceito de Paideia a outros conceitos difíceis de definir, como filosofia e cultura. Mas, assegura que o termo Paideia é o que define exatamente o que significa a história, os ideais e o percurso da educação grega. O surgimento da Paideia se dá com base na universalidade do bem, do justo, do belo, e é assim que se desenvolvem os ideais de formação do homem grego. Salientamos o fato de que a priori o surgimento da Paideia reflete unicamente a preocupação com a formação dos meninos, mas, a posteriori, com o desenvolvimento de seus princípios, a Paideia adquiriu particularidade histórica e singularidade ímpar, as quais junto à influência da cultura grega se disseminaram pelo ocidente. Hans-Georg Gadamer (1900-2002), um dos mais importantes filósofos do século XX, assegura que um retorno aos gregos é para todos nós, ocidentais, uma espécie de encontro com nós mesmos (GADAMER, 2000a; GADAMER, 2001). Gadamer se refere ao legado grego no modo como elaboraram a Filosofia, diferente do modo como a empregamos na atualidade, mas de forma mais ampla. A amplitude da Filosofia Grega diz respeito às preocupações compreendidas pela totalidade teórica, e com isso podemos incluir também a totalidade científica, a qual, sem dúvidas, foi responsável pelo impulso da civilização moderna (GADAMER, 2000a). Assim se justifica esse encontro entre nós modernos, e ao mesmo tempo gregos, quando nos consideramos processo que resulta da cultura de formação grega antiga. Como sinalizamos anteriormente sobre a necessidade de um recorte histórico neste ensaio, apontaremos os ideais propostos por Sócrates143 (469-399 a.C.) e narrados por 142 “O Laques” é um diálogo entre Sócrates, Nícias e Laques que, convidados por Lisímaco e Melésios a assistir uma aula de esgrima, são indagados por Sócrates a emitirem um parecer sobre a importância da prática da esgrima na educação dos jovens. No decorrer da conversa os interlocutores de Sócrates são convidados a discutir sobre o conceito de “coragem”. Mesmo redefinindo alguns conceitos e discutindo sobre questões de alcances atuais, o diálogo termina sem que se chegue a uma conclusão definitiva, mas, antes disso, temporária. 143 Sócrates é considerado o filósofo mais influente da história e da cultura ocidental. O que temos e sabemos sobre Sócrates é graças a algumas obras escritas que nos foram deixadas por seus discípulos, as quais chegaram até nosso tempo. Entre os discípulos de Sócrates destacam-se Platão, Antístenes, Euclides de Megara, Aristipo de Cirene, Isócrates (HADOT, 1999). Cabe registrar que Sócrates não nos deixou nada escrito. 279 Platão144 (427-347 a.C.), seu discípulo. Dono de uma espécie de “não-saber”, Sócrates era visto pelos seus concidadãos como ser sábio e irônico ao mesmo tempo. Hadot (1999), quando trata da filosofia antiga, narra esse “não-saber” socrático e aborda as estratégias de Educação, ou ainda, de formação, propostas por Sócrates. De maneira “desinteressada”, Sócrates se aproximava de seus interlocutores nas ruas, nas praças, em suas casas e, entre outros lugares, os indagava sobre seus ofícios, especialidades, profissões e opiniões gerais. A estratégia de Sócrates sempre fora o diálogo e no decorrer desse diálogo fazia com que seus interlocutores fossem se auto-descobrindo, desconstruindo certezas e verdades e (re)construindo outras. Sócrates, ao questionar seus interlocutores, fazia com que algumas compreensões e entendimentos, embasados num conhecimento secular, fossem fragilizados e reformulados ao mesmo tempo. A prioridade em Sócrates é fazer com que o interlocutor encontre em si suas próprias verdades145. Podemos acrescentar à figura de Sócrates a colocação feita por Jaeger (2001). Para o autor, Sócrates concebe o diálogo como apresentação primordial do pensar filosófico e percurso único capaz de nos levar ao entendimento e compreensão das nossas relações com os outros. Sem se apresentar como “dono da verdade”, Sócrates também é um aprendiz, ao passo em que seu interlocutor vai elaborando suas próprias verdades. Neste ponto, comungamos com a crença de Gadamer (2000b, p. 10): “creio que só se pode aprender através da conversação”. O autor, no mesmo ensaio referenciado, também indica que “educação é educar-se”, e “formação é formar-se”. A Paideia socrática se apresenta como pesquisa e problematização, pois Sócrates se mantém em busca da libertação individual e do amadurecimento intelectual de seus interlocutores que, por sua vez, acolhem interiormente a voz do mestre e se fazem mestres de si mesmo (CAMBI, 1999). Os alcances pedagógicos dessa prática da dialética socrática estão sempre voltados ao coletivo, ou seja, mesmo efetuada individualmente é a universalidade que se apresenta como essência. Hadot (1999) faz menção à obra O Banquete, de Platão, dizendo que a postura de 144 Platão foi quem nos deixou, no formato de textos, uma das maiores riquezas da cultura grega. Seus textos imortalizaram a figura de Sócrates e os ideais propostos pelo filósofo. 145 Apenas como registro, em O mundo de Sofia encontramos o seguinte: “Dizem que a mãe de Sócrates era parteira, e o próprio Sócrates costumava comparar a atividade que exercia como a de uma parteira. Não é a parteira que dá à luz ao bebê. Ela só fica por perto para ajudar durante o parto. Sócrates achava, portanto, que sua tarefa era ajudar as pessoas a ‘parir’ uma opinião própria, mais acertada, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro e não pode ser obtido ‘espremendo-se’ os outros. Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento” (GAARDER, 1995, p. 80). 280 Sócrates, seu modo de ser e estar no mundo, mostra-nos que ele (Sócrates) é o homem que procura aproximar-se dos outros e fazer os outros se aproximarem dele, usando como elemento mediador a busca pela sabedoria. Os ideais e as atitudes de Sócrates nos servem, aqui, como exemplo de ser ético e político, que apresenta ideais salutares à sua época e dignos de uma validação contemporânea. Em Sócrates, onde pensar e agir estão unidos, visualizamos como princípio, ou ainda, como justificativa para a (re)ligação entre filosofia e educação, esse exercício de elevar crítica, incansável e inesgotavelmente o real, nossas vivências, nosso cotidiano, ao conceito. A partir do momento em que adquirimos, ou então, (re)tomamos essa perspectiva da qual somos herdeiros, estaremos materializando a articulação do diálogo ético; o que Flickinger (2010, p. 92) chama de uma recuperação da “ética dialética de Platão, articulada no diálogo socrático”. Ser e estar no mundo de maneira “ética dialética” articulada ao modo do “diálogo socrático” permite que outros rumos se mostrem possíveis na formação contemporânea. O pensar e agir insolúveis e a dialética, na perspectiva em que elaboramos essa abordagem, não permitiria a manutenção e a busca por verdades e certezas absolutas. O diálogo por essa via não se sustenta enquanto condição definida para se afirmar um “saber verdadeiro” ou alcançar a “verdade única”. Não há um sujeito que detém a verdade e outro(s) que a(s) desconhece(m). O que acontece de fato é que as verdades não estariam de antemão presentes, ou disponíveis a um ou outro locutor, as verdades são construídas com o fim último de fundamentar os discursos, sem que sejam consideradas constantes e imutáveis. A MODERNIDADE146 NEGLIGENCIA A PAIDEIA Na contramão dessa exposição que nos remete aos gregos, sobretudo, mas não somente, a Sócrates e a Paideia, a Idade Moderna em sua ascensão, por volta dos anos 1600, passa a questionar a busca pela “verdade” onde o sujeito carrega consigo seus preconceitos, suas vivências e experiências, materializadas nas socializações do “diálogo vivo”. Esse “diálogo vivo” é colocado em xeque porque o pressuposto elaborado pela racionalidade 146 Não temos o objetivo de discutir se vivemos em um período chamado “Moderno” ou “Pós-Moderno”. Destarte, afirmamos nossa crença de que a modernidade é um “período”, ainda, inacabado, mas não desconsideramos – como disse Carvalho (2006, p. 308) – “as opções epistemológicas que subjazem às categorias de pós-modernidade e alta modernidade”. 281 “unicamente” científica de alguns autores147 – Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-1642), René Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727), entre outros – que integram o movimento que se soma a legitimação da modernidade, é de que seria possível chegar a uma verdade última, inquestionável, universal e imutável. Como fizemos na contextualização do título anterior – PAIDEIA: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – aqui também anunciamos a necessidade de um recorte. Para tanto, vamos nos ater a algumas considerações a respeito da proposta elaborada por René Descartes em seus ensaios Discurso do Método e Meditações. Descartes estudou em La Fleche, Paris, em um dos melhores colégios da Europa a sua época. Em sua formação inicial estudou poesia, retórica, lógica e literatura, mas afirmou ter recebido nesse período várias informações falsas tidas por verdadeiras (DESCARTES, 1983). Após um contato com a geometria e a matemática, Descartes passou a considerar “uma enorme perda de tempo” sua formação inicial (GRÜN, 2005, p. 148); à medida que o conhecimento das áreas de estudo anteriores (retórica, lógica, poesia e literatura) fazia com que seu saber e pensar continuassem atracados em dúvidas. Concluindo, assim, que na matemática e na geometria era impossível a manutenção de questionamentos incertos. Em Meditações, Descartes (1983, p. 85) descreve a necessidade de formular novos fundamentos para que fosse possível “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”, ou seja, verdades incontestáveis, imutáveis e universais. Esses novos fundamentos seriam a base para que a filosofia fosse reconhecida como uma teoria da ciência, isto é, reconhecida como ciência. Como destaca Rorty (2001, p. 43) essa influência da Ciência Moderna divide o pensamento filosófico do século XIX em duas “correntes”: os techies e os fuzzies. Os techies são filósofos amigos da técnica, objetivos, mestres da filosofia analítica herdeira de Descartes que afirmam a filosofia como ciência, pautada na lógica e na matemática. Já os fuzzies carecem de objetividade e, como se diz segundo o autor na Califórnia, são uns “especuladores alucinados”. Com isso podemos ver que a Ciência Moderna, ainda hoje, impera nas discussões teóricas e influencia com rigor o pensamento filosófico, a filosofia, a formação e as teorias da Educação, tratando com demérito o que não se compatibiliza ao método rigoroso do racionalismo moderno. A visão de que as verdades eram provisórias e que cada sujeito as descobria de 147 Cambi denomina os anos 1600 como o tempo da nova ciência e cita os autores “entre travessões” como personagens marcantes e fortemente influentes nesse período. Ver: CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999, p. 300-304. 282 maneira particular passa a ser considerada ilusão. Descartes (1998), no Discurso do Método, elabora um modelo, um “método infalível” para a obtenção da verdade. Diante de suas contribuições, o diálogo vivo é reprimido e abandonado, agora o que vale é o cogito, idéias claras e objetivas organizadas em um modelo analítico. O questionamento socrático, que considerava o ser como um todo, carregado de paixões, perturbações, preconceitos e paixões, em seu logos dialógico na busca incansável pela sabedoria, dá lugar ao racionalismo cartesiano. Ao encontro da colocação de Prestes (1996, p. 18), o ideal cartesiano nada mais é que a busca pela comprovação, demonstrada pela matemática “através de unidades intelectualmente previsíveis, claras, impossíveis de serem recusadas”. Todo esse movimento, essa síntese cartesiana, serve-nos como marco da “objetificação” das ciências, dos sujeitos e da coletividade na busca pela legitimação do conhecimento humano. Essa ruptura sinaliza também o fim da “influência da postura humana na configuração do saber” (ALMEIDA; FLICKINGER; ROHDEN; 2000, p. 07). Também outras formas de saber humano que não se enquadram ao conceito de verdade alcançado por um método, testado e comprovado, são desconsideradas no mercado do valor científico e nada valem. Ainda que essas formas de saber humano sejam necessárias àquela ou a esta comunidade, que sejam salutares nos programas educacionais, necessárias à vida, à formação dos sujeitos, de nada valem, continuam sendo consideradas suspeitas e desprovidas de valor científico. CONCLUSÕES PROVISÓRIAS Nossas conclusões se apresentam aqui de maneira provisória porque compartilhamos da busca pela sabedoria presente na aporia socrática. E justificamos amparados pelas considerações de Chauí (2002), onde a autora revela que a aporia socrática representa a filosofia, philosophis, que nada mais é do que a amizade pela sabedoria, a qual está longe da posse e do domínio, como nos apresenta metodicamente Descartes. Apresentamos aos leitores dois períodos distintos e com ideais incongruentes referentes à Educação. De um lado situamos os gregos, a Idade Antiga, e de outro os modernos, a Idade Moderna. Consideramos os dois períodos como influentes até os dias de 283 hoje em todos os setores da sociedade. O retorno aos gregos foi fundamentado com as citações de Gadamer (GADAMER, 2000a; GADAMER, 2001), que julga ser esse retorno um encontro com nós mesmos. A modernidade se mostra influente nos nossos atos cotidianos, seja na economia, na política, na cultura, na educação, no convívio com os outros, etc., mesmo que existam algumas correntes filosóficas e epistemológicas que defendem estarmos vivendo em uma sociedade “pós-moderna”. A investigação científica e filosófica dos gregos se difere do modelo proposto pela Idade Moderna com Descartes. Quando Descartes desenvolve e se apropria de um método, impreterivelmente, esse mesmo método determina o rumo da investigação e a postura do sujeito para com os objetos. Com Sócrates e os gregos os próprios objetos é que dão rumo e sentido à investigação. Podemos nos apropriar do que diz Grün (2005), fazendo essa comparação entre Sócrates e Descartes, para reforçar nosso entendimento e explicação do comparativo. Para Grün, na filosofia e ciência grega o percurso da investigação é dado pelo objeto, e na ciência moderna o objeto é determinado pelo método. Talvez a pergunta que o leitor está fazendo agora seja: a Paideia e o retorno aos gregos são um caminho salutar para pensarmos a Filosofia da Educação na contemporaneidade? Se acontecer este questionamento, consideramo-nos satisfeitos, pois Gadamer (2002) acredita que no emergir da pergunta a experiência a acompanha. Se começamos a nos questionar isso significa que estamos abertos a novas vivências e essa “abertura” é a essência da pergunta. Assim como o fez Sócrates a valorização do ato de perguntar, de questionar, aponta novos rumos para a Filosofia da Educação. Ora, se existir a pergunta o caminho para o “diálogo vivo” estará mais próximo, fortalecendo a idéia de que a “linguagem é (...) um dos mais convincentes fenômenos da nãoobjetividade” (GADAMER, 2000, p. 58). Se a linguagem não caracteriza a “objetificação” parece ser esse o caminho salutar, atual e necessário, tanto à Filosofia da Educação quanto à sociedade como um todo. 284 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans-Georg; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999. CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. As transformações na esfera pública e a ação ecológica: educação e política em tempos de crise da modernidade. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 11, n. 32, ago. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141324782006000200009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 05 jun. 2010. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das letras, 2002. DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: Editora UnB, 1998. 285 ___. Meditações. 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Para isso, partimos do estudo das três principais referências educacionais do período: a Paideia poética, a Paideia 287 sofística e a Paideia socrático-platônica, procurando descobrir como era pensada a questão da autonomia discente. Assim, do ponto de vista formal, desenvolvemos nossa investigação partindo da seguinte pergunta: como a questão da autonomia do educando foi discutida na Paideia grega do período clássico? Consideramos a autonomia discente como a necessidade de sua emancipação intelectual, relacionada ao desenvolvimento de um pensamento crítico e ao exercício prático decorrente dessa racionalidade, ou seja, a vida cotidiana. Nesse sentido, pensamos esta característica como fundamental para o desenvolvimento integral do indivíduo, tanto no que se refere aos aspectos educacionais, enquanto elemento que favorece a aprendizagem e potencializa o seu aproveitamento escolar, quanto aos aspectos relacionados às atitudes e práticas sociais, na direção da sua formação para a cidadania. Como resultados, percebemos a dificuldade do desenvolvimento da autonomia do educando na Paideia poética, devido ao aprisionamento desencadeado pela força do pensamento mítico daquele contexto, entretanto, em contraposição, observamos a crítica platônica àquela noção de verdade absoluta, estimulando o seu interlocutor ao questionamento e à racionalidade. Percebemos, com isso, na concepção platônica, a importância da educação como condição para mudança na vida do homem. A educação grega, nos moldes platônicos, não diz respeito a uma educação instrumental e utilitarista, como no modelo sofista; antes, significa a formação do caráter do homem, com isso, o desenvolvimento da autonomia é a condição para o aperfeiçoamento desta disposição humana na busca da verdade e da virtude. Percebemos também que os diálogos de Sócrates demonstram a sua atitude como educador, jamais oferecendo respostas prontas aos seus educandos, mas estimulando-os a pensar, permitindo que encontrem por si mesmos as melhores soluções, tornando-os cada vez mais conscientes. Com isso nos questionamos sobre como a ação pedagógica de um professor poderia interferir na formação de seus alunos, tornando-os conscientes e críticos. Palavras-chave: Autonomia; Paideia; Poética; Sofística; Platão. Introdução A autonomia é uma palavra de origem grega e significa uma norma ou uma lei pessoal, ou seja, o governo de si mesmo. Etimologicamente, é definida a partir dos termos autós - αὐτος (próprio, de si mesmo) e nomos - νόμος (lei, regra, norma), e situa-se em oposição à palavra heteronomia: héteros - ἕτερος (outro) e nomos - νόμος (lei, regra); ou seja, 288 ser governado pelas regras do outro. A acepção comum do termo autonomia, segundo Ferreira (2010), é autogoverno, ou, o ato de governar-se a si mesmo de acordo com as próprias leis, o que, para o caso específico da educação, pode se remeter diretamente ao ato de aprender a pensar e a agir por conta própria, ou seja, à autonomia intelectual dos educandos. O presente texto propõe como tema central a discussão acerca da autonomia dos educandos, estabelecendo como contexto histórico a Grécia do período clássico, na esfera de algumas das principais concepções educacionais ali desenvolvidas. Compreendemos o conceito de autonomia discente pela necessidade de sua emancipação intelectual, relacionada ainda ao desenvolvimento de um pensamento crítico e ao exercício prático decorrente dessa racionalidade, ou seja, a vida cotidiana. Independentemente da época ou período histórico, o desenvolvimento desta característica é, em nossa perspectiva, fundamental para o desenvolvimento integral do indivíduo, tanto no que se refere aos aspectos educacionais, enquanto elemento que favorece a aprendizagem e potencializa o seu aproveitamento escolar, quanto aos aspectos relacionados às atitudes e práticas sociais, na direção da sua formação para a cidadania. Nesse sentido, destacamos que a discussão sobre a questão da autonomia discente é frequentemente pauta das discussões educacionais, justamente porque é compreendida como elemento fundamental para o desenvolvimento acadêmico e social do educando, influenciando, assim, tanto as situações de ensino e aprendizagem como a sua vida pessoal, como cidadão. Para exemplificar, destacamos que o inciso III, do Artigo 35, da Seção IV, do Capítulo 2 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, define como finalidade do Ensino Médio: “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 2010, p. 29). Acreditamos que, quando o educando se envolve de forma espontânea e consciente na sua própria formação, os resultados de sua aprendizagem são efetivos, permitindo também o exercício e o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. Assim, pensamos que os efeitos desse processo venham a repercutir tanto no nível acadêmico quanto social, não permanecendo circunscrito às salas de aula, mas, alargando-se e influenciando também todas as outras áreas de suas vidas, contribuindo, portanto, para sua formação como cidadão. Assumimos ainda como pressuposto inicial o fato de que as diferentes abordagens educacionais teórico-metodológicas, com suas características específicas relacionadas a um 289 dado contexto histórico, social e cultural, possam contribuir para favorecer ou inibir o desenvolvimento da autonomia dos educandos. Desta forma, afirmamos que alguns tipos de abordagens pedagógicas teriam características que, ao menos aparentemente, incentivariam e favoreceriam o desenvolvimento da autonomia dos educandos, enquanto outras apresentariam uma tendência à inibição do caráter autônomo e criativo, por conta, talvez, de uma postura, em geral, reprodutivista e acrítica, demonstrando, por exemplo, uma concepção mais tradicional e fechada, centrada na forma, no conteúdo e no professor, sendo por isso, menos disposta às intervenções ou participações dos educandos. Entretanto, acreditamos também existir a possibilidade de que este último paradigma educacional, mais tradicional, possa contribuir, mesmo que indiretamente, para o surgimento dessa autonomia, não por meio do método, mas em contraposição a ele. Não por sua postura filosófica ou política, mas numa espécie de reação individual e particular contra elas, em que o sujeito não vê outra saída, senão romper com o sistema ou, em alusão à alegoria de Platão, a “sair da caverna”, ou seja, emancipar-se intelectualmente e procurar desenvolver como forma de resistência e de reação um comportamento crítico e autônomo. Procuramos, desta maneira, por meio deste trabalho compreender como era tratada a questão da autonomia dos educandos na Grécia Clássica e, com isso, ressaltar a importância da retomada das concepções clássicas da história do pensamento educacional para a formação docente, sobretudo daqueles que se preocupam com o desenvolvimento de seus educandos e, por consequência, com o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. Para isso, partimos do estudo das concepções pedagógicas de dois dos três principais referenciais educacionais do período Clássico da Grécia: a Paideia poética, a Paideia sofística148 e a Paideia socráticoplatônica, procurando encontrar pistas sobre como era pensada a questão da autonomia discente naquele momento da história educacional da sociedade grega. Assim, do ponto de vista formal, desenvolvemos nossa investigação a partir da seguinte pergunta: como a questão da autonomia do educando foi discutida na Paideia grega do período clássico? 1. A educação na Grécia Clássica: Paideia Cronologicamente, a história da Grécia pode ser organizada em cinco períodos distintos: Período Micênico, que vai do século XV ao século XIII a.C., a Idade das Trevas, 148 Por uma questão de limite deste texto, em decorrência das regras do Congresso, suprimimos a discussão da Paideia sofística versus Paideia socrático-platônica. 290 entre os séculos XIII e IX a.C., o Período Arcaico, entre os séculos VIII e VI a.C., Período Clássico, compreendido entre os séculos V e IV a.C. e, por fim o Período Helenístico, que vai do ano de 338 a.C. com a conquista da Grécia por Filipe II da Macedônia até o ano de 146 a.C. quando o império Macedônico foi definitivamente anexado por Roma. (JAEGER, 1994, HAVELOCK,1996, RODRIGO, 2006). No período da Grécia Clássica foi elaborado o projeto educacional mais avançado e audacioso da Antiguidade (JAEGER, 1994). Este projeto visava a construir um tipo de homem, segundo o qual seria possível pensar em uma configuração social diferenciada, desenvolvido exclusivamente em função da polis. O surgimento das cidades-estados deu-se entre o final do período Arcaico e o início do período Clássico, configurando-se como fator essencial para o desenvolvimento dessa nova concepção de indivíduo e, por conseguinte de sociedade. Segundo Rodrigo (2006, p. 527), “o quadro social e político que se instaura posteriormente no período clássico, inclusive com o advento da polis, produz modificações substanciais em relação à situação anterior”. Nesse sentido, Jaeger (1994, p. 106) afirma que “é na estrutura social da vida na polis que a cultura grega atinge pela primeira vez a forma clássica”, a polis é assim, considerada um marco para a história da formação grega, pois, somente esse tipo de estrutura social e política possibilita o desenvolvimento de todos os aspectos espirituais e humanos abarcados pela Paideia. O conceito de Paideia, de acordo com Gadotti (2002, p. 30), é o de “uma educação integral, que consistia na integração entre a cultura da sociedade (...) uma pedagogia da eficiência individual e, concomitantemente, da liberdade e da convivência social e política”, nesse sentido, destaca que, de forma integral, essa educação cuidava do desenvolvimento do corpo, da mente e da moral do homem grego, associando-os, contudo, aos diversos aspectos da vida social da comunidade, sendo, portanto, indispensável para a composição da estrutura global da sociedade grega. Percebemos, com isso, a grande importância que é conferida à coletividade nesse modelo educacional, de maneira que a formação humana assumia notadamente, como elemento norteador, o aspecto social do indivíduo, buscando prepará-lo para assumir o seu papel de cidadão, constituído no interior da polis. Jaeger (1994) distingue em seu estudo as três concepções de Paideia que coexistiram no Período Clássico: a poética, a sofística e a socrático-platônica. A Paideia poética é a forma mais antiga de educação do povo grego, século VII a.C., narrando acontecimentos épicos da história grega ainda mais remotos, supostamente ocorridos por volta do século XII a.C. A 291 Paideia sofística, por sua vez é o resultado da demanda provocada pela nova configuração social e política instituída com o advento das cidades-estados, a partir do final do período Arcaico, século VI a.C. e, a Paideia socrático-platônica, teve seu ápice no século IV a.C. e, refere-se ao pensamento filosófico educacional de Platão, desenvolvido sobretudo a partir da interlocução com as outras duas concepções; ora em contraposição a elas, ora como forma de complementação ou aperfeiçoamento dos modelos anteriores. 2. A Paideia poética e a crítica de Platão a essa concepção A primeira conformação da Paideia grega originou-se a partir das narrações poéticas, em que se destacam principalmente os textos da Ilíada e da Odisséia, de autoria atribuída a Homero. Homero, personificando, dessa forma, os poetas educadores gregos, utilizando-se das propriedades artísticas e peculiares da poesia, atrai a atenção das pessoas e faz reviver, por meio de suas narrativas os momentos gloriosos da história da civilização grega, contando as façanhas dos seus deuses e heróis, de maneira a despertar em seus ouvintes tanto um sentimento de unidade nacional quanto o desejo de querer seguir seus exemplos, imitando-os, configurando dessa forma um princípio formativo baseado em figuras épicas de grande destaque entre toda a nação. Essa modalidade da formação educacional grega baseava-se, inicialmente, no princípio da “ginástica para o corpo e música para a alma” (PLATÃO, 1993, p. 86, 376e), sendo essa “música” pensada no sentido de “arte das musas”, composta pela poesia, pelas artes e pela música propriamente dita. Embora os textos da Ilíada e da Odisséia não tivessem sido escritos originalmente com a finalidade específica de educar o povo (RODRIGO, 2006, p. 526), cumpriam muito bem esse papel, e, nesse contexto, a tradição oral era a grande responsável por manter e transmitir às futuras gerações a identidade sociocultural da nação grega, por meio das poesias, carregadas de elementos que serviam de base para as práticas do cotidiano, abordando desde procedimentos ritualísticos até atos de valentia e nobreza dignos de serem admirados e imitados. Nesse sentido, Havelock (1996, p. 137) explica que a poesia foi o meio encontrado para que “todo um modo de vida, e não simplesmente as façanhas de heróis, devia ser reunido e tornado, dessa forma, transmissível de geração a geração”. A construção poética permitiu, pelo caminho da estética, que se realizassem composições rítmicas nas narrativas, muito bem elaboradas gramaticamente, o que por sua vez, favorecia para que fossem memorizadas e recitadas tanto em casa como em eventos 292 públicos. Quanto a isso, Rodrigo (2006, p. 525) explica que “a fala ritmada da poesia se presta muito melhor do que a prosa para garantir a conservação e fixidez na transmissão oral”. Vale destacar que, embora essa concepção de Paideia baseada na poesia tenha surgido no período Arcaico, onde a escrita ainda era pouco utilizada, sendo ofício exclusivo dos escribas, ainda era frequente no período Clássico, mesmo com maior difusão da linguagem escrita. De acordo com Rodrigo (2006, p. 525), “embora na primeira metade do século IV a.C. a alfabetização já estivesse razoavelmente disseminada entre a população, as formas orais continuavam predominando na comunicação de modo geral”. Destacamos também que uma das mais importantes características da poesia épica é o fato de que o elemento específico (peculiar, exclusivo de cada personagem) se transforma em típico (que se repete na vida cotidiana), formulando um paradigma atemporal, incentivando uma série de comportamentos sociais pré-determinados. Configurava assim, um modelo de educação baseado na mimese, na imitação dos arquétipos, como força formativa inspirada nos grandes personagens das histórias poéticas. Outra importante característica da Paideia poética, e que, por sua vez, relaciona-se diretamente ao objeto de nosso trabalho, a autonomia dos educandos, é que sua fonte de inspiração são as Musas149, conferindo-lhe assim, um aspecto divino e sobrenatural, não humano. Com isso, a palavra dos poetas era tida como inquestionável não admitindo qualquer espécie de contestação, mesmo porque, os poetas não eram considerados os inventores, mas os narradores dos fatos históricos de um passado glorioso que marca o início da civilização grega, assim, eram tidos como divinamente inspirados e, consequentemente, como portadores de uma “verdade” indiscutível (JAEGER, 1994). Por isso, Platão afirma que embora muitos considerem Homero como o “educador da Grécia” (PLATÃO, 1993, p. 475, 607a), ele apenas o considera como um grande poeta e “nada mais”. Embora o próprio Platão reconheça a poesia como uma arte especial, que seduz e encanta os homens, inclusive a ele mesmo (PLATÃO, 1993, p. 476, 607d), acha que melhor seria se ela fosse excluída de sua cidade ideal, priorizando assim que o homem cultive o conhecimento e a razão ao invés da emoção, alertando para que não se preocupem com a poesia “como detentora da verdade, e como coisa séria, mas o ouvinte deve estar prevenido, 149 As Musas, na mitologia grega, cantavam o presente, o passado e o futuro, eram consideradas também responsáveis por inspirar a produção artística da humanidade. São as nove filhas da deusa Memória e de Zeus, conferindo-lhe status de divindades mitológicas gregas (JAEGER, 1994). 293 receando pelo seu governo interior, e acreditar nas nossas afirmações acerca da poesia” (PLATÃO, 1993, p. 477, 608b). Platão, em seu livro A República, critica, assim como outros filósofos predecessores, a supremacia do mito na formatação do pensamento grego, dizendo que a maioria dessas “fábulas” deveria ser rejeitada (PLATÃO, 1993, p. 87, 377c), pois, segundo seu argumento, tais histórias constituem-se de “fábulas falsas” (PLATÃO, 1993, p. 88, 377e). O filósofo também alerta que alguns trechos desse tipo de poesia não deveriam ser administrados a qualquer pessoa: “não deviam contar-se assim descuidadamente a gente nova, ainda desprovida de raciocínio” (PLATÃO, 1993, p. 89, 378a), pois, segundo ele, “quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não o é” (PLATÃO, 1993, p. 90, 378d). Notemos ainda, que essas citações apresentam dois elementos a serem observados. Por um lado Platão está falando sobre um tipo de ouvinte: “gente nova”, mas, por outro lado, ele especifica ainda mais esse ouvinte, afirmando que são “desprovidos de raciocínio” ou, “incapazes de distinguir”, demonstrando o perigo de uma mente despreparada, que ainda não é autônoma e que não consegue governar-se a si mesmo. A partir disso pensamos essa questão, procurando compreender qual era o comportamento dos ouvintes frente a esse modelo educacional e formativo da sociedade grega. Como será que eles recebiam essas informações carregadas de elementos históricos e culturais? Ao que nos parece, esse tipo de construção pedagógica em torno da poesia grega, configurava-se em um modelo que estimulava a apreensão dos conteúdos nela inseridos bem como a imitação de seus paradigmas, no entanto, segundo o nosso entendimento, isto parece ocorrer de forma acrítica, pois, como vimos anteriormente, a voz dos poetas era tida como divina e livre de contestação. Como, pois, poderia se desenvolver nos educandos um comportamento crítico e investigativo, característicos de um indivíduo autônomo, sendo que a educação grega, segundo essa concepção, mostrava-se fechada e inquestionável? Nessa perspectiva, toda atitude de dúvida ou indagação, ao que nos parece, já estaria fadada ao fracasso antes mesmo de nascer, pois, este tipo de pensamento demonstra limitações a toda posição contrária à estabelecida, assim a sua possível contestação remeteria à heresia. Dessa forma, compreendendo a autonomia intelectual como o autogoverno, que se dá, entre outras formas, a partir do julgamento pessoal e do exercício crítico da razão, não seria possível imaginar, nesse caso, outra forma de governo que não a heterônoma, pois, se as leis são, nesse sentido, divinas, como poderiam ser questionadas? Por outro lado, se isso de fato 294 ocorresse, o pensamento autônomo poderia ser, então, considerado herético, a não ser que assumisse espontaneamente, como suas regras pessoais de conduta o cumprimento das orientações “canônicas” contidas nas poesias, mas, sem se permitir questioná-las. Entretanto, seria isso autonomia? O que percebemos é que a intenção de Platão (1993) nesse texto, não é a de desabonar as divindades, mas alertar as pessoas para o fato de que, embora os “deuses não mintam” (PLATÃO, 1993, p, 98, 382e), os poetas podem mentir. A poesia não se constitui em verdade absoluta. Com isso, procura esclarecer seu interlocutor para que aprenda a julgar corretamente as coisas que ouve, não aceitando prontamente todas as informações que recebe como se fossem de fato divinas, mas, concebendo-as como sujeitas a outros tipos de intervenções. Segundo Jaeger (1994) a passagem do pensamento mítico para o pensamento filosófico, investigativo e cientificista, foi o ponto fundamental para o desenvolvimento e avanço do ideal educacional grego, pois, até então “a função de guia da educação nacional estava indiscutivelmente reservada aos poetas, a quem se associavam o legislador e o homem de Estado” (JAEGER, 1994, p. 190). Assim, quando Platão (1993) versa sobre a nocividade de poesia mimética, explica que obras dessa espécie podem gerar a “destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza” (PLATÃO, 1993, p. 451, 595b), retomando mais uma vez a importância sobre o esclarecimento sobre a essência do conhecimento, das suas reais intenções, dos conteúdos e da forma da poesia enquanto elemento educacional. É importante destacar que a idealização de uma concepção de Paideia nos moldes de Platão não se desenvolve por acaso, antes, fundamenta-se em contraposição às concepções educacionais vigentes em sua época, ou seja, o filósofo posiciona-se criticamente em relação a alguns aspectos da concepção poética e da concepção sofística de Paideia, assim, para uma maior compreensão dos ideais educacionais socrático-platônicos, é necessário analisar também a abordagem dos sofistas, pois, foi também em contraposição a ela que Platão desenvolve seu ideal formativo, assumindo-os, algumas vezes como interlocutores e outras como adversários em seus diálogos. Considerações finais 295 Neste trabalho, procuramos apontar algumas características sobre a discussão do tema da autonomia do educando na Grécia Clássica. Lembramos que a intenção de nosso trabalho não é a de apresentar uma perspectiva reducionista, nem empobrecer os debates acerca da temática destacada, mas fornecer elementos para uma possível análise acerca da visão de cada modelo de Paideia sobre a questão da autonomia do educando. Assim, se em um primeiro momento destacamos a dificuldade do desenvolvimento da autonomia do educando na Paideia poética, devido ao aprisionamento desencadeado pela força do pensamento mítico, presente naquele contexto, em seguida observamos a crítica platônica àquela noção de verdade absoluta, estimulando o seu interlocutor ao questionamento e à racionalidade. Se ainda, nós apontamos que a essência do conhecimento sofista está na techné do como fazer, destacamos também a crítica de Platão que considera que o mais importante do que saber como fazer, é saber o que fazer e por que. É o conhecimento da essência das coisas. Com isso, a primeira consideração que tecemos em relação à autonomia na Paideia grega diz respeito à necessidade de se inserir a educação como condição para mudança de percepção da vida do homem. A educação grega, nos moldes platônicos, não diz respeito a uma educação instrumental e utilitarista; antes, significa, sobretudo, a formação do caráter do homem, logo, o desenvolvimento da autonomia é a condição para o aperfeiçoamento desta disposição humana na busca da verdade e da virtude. Para Platão (1993) a educação deve contribuir para uma conversão, uma mudança de olhares, e dessa forma, “serviria para atrair a alma para a verdade e produzir o pensamento filosófico, que leva a começar a voltar o espírito pra a as alturas e não cá para baixo” (PLATÃO, 1993, p. 339, 527c). Outro importante ponto é que a concepção educacional platônica tinha como objetivo a formação do indivíduo para a sua participação social, ou seja, o desempenho de uma atividade prática e colaborativa junto à sociedade; isso pressupõe a necessidade do desenvolvimento da sua autonomia intelectual. A autonomia do educando é, portanto, o elemento que faz a ligação entre o mundo da teoria, presente nas atividades educativas e a vida prática do seu cotidiano, em que se situa como cidadão crítico, participativo, enfim, emancipado. Por conta disso, talvez possamos dizer, como Sócrates150, que a autonomia “dá à 150 Segundo März (1987), Sócrates, inspirado pela profissão da sua mãe, uma parteira, acreditava que da mesma forma poderia trazer à luz o conhecimento de seus discípulos, auxiliando-os a externá-lo, embora não se considerasse capaz de gerar neles o saber: “nunca aprenderam nada de mim, embora fazem progressos admiráveis, o conhecimento já estava neles”, dizia. 296 luz”, ou seja, oferece as condições para a prática educacional, na medida em que lhe confere sentido e razão de ser, e sua necessidade e importância, independe do momento histórico ou condição social em que vive o sujeito, pois deve estar presente em todos. Nesse sentido, percebemos que os diálogos de Sócrates demonstram a sua atitude como educador, jamais oferecendo respostas prontas aos seus educandos, mas permitindo que eles consigam encontrar em si mesmos as soluções mais adequadas. Sócrates os procurava guiar, interrogando-os e estimulando-os a pensar e a reconhecer as causas e as consequências de seus atos, tornando-os cada vez mais conscientes. Nisso pensamos sobre como a ação pedagógica de um professor pode interferir na formação de seus alunos, seja tornando-os conscientes e críticos, direcionando-os para uma postura que favoreça e evidencie o desenvolvimento de sua autonomia ou apenas reproduzindo um sistema político e pedagógico que engessa a capacidade intelectual dos educandos subordinando-os aos seus caprichos, aprisionando-os na passividade e inibindo sua espontaneidade, delegando sua tarefa reprodutivista daquilo que lhes foi exigido. März (1987), discorrendo também sobre o antigo filósofo grego, pode complementar esse pensamento: Sócrates está consciente do seu não-saber e quer ajudar os outros a chegarem a essa idéia. Para ele, esse autoconhecimento é o início do caminho para o verdadeiro saber. E o aprender a andar nesse caminho não se faz como a aprendizagem de competências intelectuais, não se realiza como recebimento passivo de conteúdos oferecidos de fora, mas como busca ativa e trabalhosa, como redescoberta de um saber inato que cada qual tem que descobrir novamente por si. (MÄRZ, 1987, p. 2). Por derradeiro, argumentamos, acompanhando a perspectiva socrática, considerando a leitura de Jaeger (1994, p. 546), que a educação deve ser política. Esta acepção explicita a dimensão social a que Sócrates reivindicava, no sentido de que a educação tem a função de preparar o indivíduo para respeitar as leis da cidade, para governar e, principalmente, para o autogoverno. O que tácito nesta vertente educacional é a dimensão da autonomia; afinal, não é possível pensar uma educação política que não tenha, de saída, o desenvolvimento dela. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. Revisão Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. 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Campinas, v. 27, n. 95, maio/agosto, 2006. 298 “A formação ética na história da filosofia: entre projetos de educação por modelos e projetos de educação pela razão.” Liliane Sanchez. Na história das concepções socialmente instituídas de formação ética, chamamos de “educação pelos modelos” um conjunto de propostas que se caracterizam pela exigência de fixação de personagens que dão carne e consistência prática aos valores sociais que se pretende difundir. Em todas as circunstâncias, a educação pelos modelos representa uma concepção de formação ética em que, antes de qualquer outra coisa, a afetividade é valorizada. Isso significa que ela se assenta sobre a capacidade humana de identificação com os heróis, mitos e santos, processo pelo qual se dá não somente uma transmissão dos valores sociais que esses personagens exemplares representam, mas um investimento afetivo que implica e justifica a projeção de que são objeto esses tipos extraordinários, que se tornam a figura pública dos desejos, das aspirações, dos projetos, enfim, das finalidades que privadamente os sujeitos constroem para si e para sua existência. Os personagens históricos ou ideais constituem-se em modelos para uma construção afetiva que, em seguida, deve encontrar apoio em um mínimo de elaboração racional. No extremo oposto, para uma educação da razão convergem as propostas que têm como ponto de partida a fixação de valores inteiramente abstratos e por isso mesmo dados por universais, devendo estar rigorosamente baseados em raciocínios e operações lógicas que, corretamente aplicados, são fiadores da validade das verdades colocadas em ação. Espera-se, evidentemente, que essas abstrações racionais venham eventualmente a modelar a afetividade dos indivíduos racionais, para que, além de identificar o Bem, eles passem também a desejálo. Boa parte de nosso trabalho foi aqui dedicado a identificar, nas diversas elaborações filosóficas que cruzam as diferentes construções culturais, concepções de formação ética que, distintas, guardam em comum o pertencimento a um dos dois conjuntos de características acima descritas. Ao abordar nossa temática, pretendemos situar o ser humano como projeto duplamente significado: determinado social e politicamente, ele é também agente de sua própria formação – é sujeito criador. Sendo instituído pela sociedade, o humano (em seu coletivo) é também agente instituinte da sociedade em que vive e de suas próprias possibilidades de instituição. 299 Não queremos com isso ignorar os limites em que se pode dar esse tipo de criação, ou mais especificamente, os limites que se apresentam para o projeto de formação humana. Queremos deixar claro que tal projeto se relaciona sempre com o projeto da formação da própria sociedade, da qual a educação (formal ou informal) é parte inerente. Sociedade e indivíduo, elementos interdependentes, se criam e se auto-criam ao mesmo tempo, sendo um para o outro, a cada vez, condição e limite. Se falamos do humano como espécie, pressupomos que há uma unidade, um elo entre cada indivíduo, que, para além das diferenças que caracterizam e singularizam cada membro do grupo, permite a recriação contínua dessa coletividade. Dessa forma, cada homem é único em sua especificidade, mas é também indivíduo social, membro de uma coletividade. È ao mesmo tempo, igual aos outros homens, em muitos aspectos (o que caracteriza a espécie humana) e diferente (o que caracteriza a subjetividade). Sendo assim, o projeto de formação humana lida sempre com esses dois aspectos: a individuação, que dá origem tantos modos únicos de ser para uma subjetividade coletivamente instituída quantos são os indivíduos, e a socialização, que fornece a todos eles características comuns. De um lado, concebemos o humano como um ser “moldável”, capaz de se adaptar às características e exigências da sociedade em que se insere. De outro lado, consideramos que o homem é muito mais do que a história do Gênesis nos conta. Se existe uma dimensão sua que se presta a um tipo de modelagem, tal qual a argila na composição da cerâmica – ou, em imagem ainda mais tosca, tal qual a fabricação industrial de produtos em série, existe outra, indissociável da primeira, que escapa ao controle da forma. Essa segunda, relacionada também aos desvios patológicos da produção da loucura, é também o lugar da criação. O que nos torna agentes instituintes é, afirma Cornelius Castoriadis, o poder disfuncionalizado de criação que somente ele caracteriza o humano entre todos os viventes (CASTORIADIS, 1992, p. 233). É ela quem permite que criemos o mundo em que vivemos, numa dinâmica de movimento, num fluxo que não é mensurável. É pela criação e auto-criação que se institui a sociedade e que cada sujeito se faz existir. Por isso, todo projeto de formação humana que não considera a questão da criação e da auto-criação é um projeto estéril, elaborado com bases numa visão reduzida e redutora do humano. Um projeto de formação humana que se pretende todo pronto e acabado, inteiramente derivado dos modelos exemplares ou das abstrações racionais e lógicas instituídos socialmente não visa outra coisa que não seja a heteronomia – e, portanto, a negação do que, ao menos formalmente, cada 300 concepção ética precisa reivindicar, para dar sentido e legitimidade a sua própria atividade: a liberdade humana. …a autonomia não só não tem nada a ver com uma “adaptação” qualquer ao estado das coisas existentes, mas é o contrário disso, uma vez que ela significa precisamente a capacidade de questionar essa ordem…(CASTORIADIS, 1992, p. 233) No entanto, em ambos os conjuntos de propostas aqui mencionados, o que se acaba por operar é a tentativa de adequação ao instituído – herói ou idéia transformado em dogma. No período arcaico, o modelo de virtude do herói (Aquiles, apresentado por Homero), centrada na figura de um indivíduo guerreiro capaz de se sacrificar pela sua pátria, não se presta a qualquer tipo de contestação. Apesar de caracterizar uma educação ética voltada para uma idealidade, o modelo elaborado vai ao encontro das necessidades estabelecidas por aquela sociedade, enaltecendo como valores aqueles que representam as qualidades do guerreiro. No modelo do herói, esses valores estão estampados de forma mais nítida, mais ampliada, mais forte, por isso o homem virtuoso se destaca, se diferencia dos demais. O modelo de virtude é “personalizado”, porém direcionado para os interesses da coletividade, pois o herói é alguém que serve ao seu povo e que inspira, justifica e enobrece as ações guerreiras. Com Hesíodo, existe uma tentativa de aproximar o ideal de virtude do homem real, do trabalhador, do camponês, pois se valorizam as qualidades relacionadas à honestidade, à integridade e aos esforços de uma vida dedicada ao trabalho, à disciplina, à persistência. Características que ainda dependem do aperfeiçoamento de cada indivíduo, apesar de também dizerem respeito às relações que ele estabelece com seus semelhantes e com a sociedade. Hesíodo, mais do que uma alternativa ao modelo do guerreiro nobre, é o contraponto necessário, que permite que a idealidade do aner grego se mantenha. Porém, em ambos os períodos da Grécia Arcaica não há espaço para o questionamento desses modelos, pois não se discute publicamente o conceito de virtude. Será no ambiente democrático, pelas características específicas de tal contexto, que essa discussão se fará presente, fazendo da educação ética um projeto coletivo nos diferentes aspectos de sua institucionalização: elaboração, finalidade, permanente questionamento. Esses aspectos, estarão interligados e terão como causa e conseqüência a questão da autonomia. 301 Com os sofistas, existe uma relativização do conceito de virtude: o cidadão virtuoso é aquele que no cotidiano da pólis encarna mais perfeitamente o ideal de justiça e de perfeição humanos; contudo, não há, como Platão faz questão de ressaltar, qualquer clareza formal sobre o que é a virtude e como ela deve ser ensinada (VALLE, 2002, p. 236). O espaço de “indeterminação” é o que permite os acirrados debates a que se entregam os mestres sofistas – que, no entanto, acabam quase todos por convergir na fabricação de um modelo de homem que se capacita para o bem falar e agir na sociedade, para a plena participação no poder. Assim, a formação ética é elaboração coletiva – projeto de uma sociedade democrática – mas depende também de critérios pessoais, relativos a cada um, a cada interpretação e a forma de lidar com o tema, ainda que se pretenda formar um modelo de cidadão virtuoso para agir na comunidade. Com Sócrates, o questionamento dos projetos de formação ética instituídos pela democracia tem por base uma concepção que se afasta da atividade prática política – atuação e intervenção na vida publica – para uma atividade de reflexão, um exame interior. Observase uma espécie de torção no foco da atividade virtuosa, que não perde de todo a sua dimensão política, pelas próprias características da época, a exigir uma participação ativa do cidadão na vida publica, mas instaura uma dinâmica cada vez mais direcionada para dentro do homem, uma ética que começa a se construir no interior de cada um, pelo exame de si. A formação ética deve, a partir de então, originar-se na privacidade do indivíduo, de sua interioridade, para voltar-se à exterioridade, para o exercício da virtude na vida cívica. No entanto, sob a influência platônica essa interioridade aumenta as suas proporções, pois instaura-se um modelo de virtude que relaciona o exame de si a uma idealidade de um Bem supremo, uma espécie de sabedoria a ser encontrada, mas que é um tipo de instância metafísica, ao alcance de poucos. O modelo do filósofo como cidadão mais virtuoso e governante dos outros limita o alcance pleno do ideal de virtude para todos, instaurando uma desigualdade que também reforça a questão da individualidade na formação ética. A virtude volta a ser idealidade (o bem supremo), desencarnada, tornando-se distante dos fatos da vida real, da vida concreta dos seres humanos, e por isso também difícil de ser alcançada. Existe a idealização de um modelo de homem virtuoso que se oferece como figura de comparação/inspiração (o filósofo). Ainda que todos os modelos de virtude da Grécia sejam elaboração coletiva, eles se prestam à composição de um tipo humano que irá se relacionar com seus semelhantes nos 302 diferentes contextos sociais nos quais se inserem. Na democracia, com a vida cívica como atividade política (da pólis), a diferença se estabelece pelo questionamento sobre as certezas instituídas e a deliberação coletiva, que se realiza na paidéia como meio e fim da formação ética. É essa interrogação a respeito dos valores instituídos, o exame das causas e conseqüências, dos meios e dos fins, a chamada “deliberação coletiva e pública” sobre a vida cívica no contexto democrático que assegura uma dimensão aberta e plural da formação ética. Com Aristóteles, essa questão se torna mais intensa, pois o conceito de virtude, que em Platão estava direcionado para um ideal, volta a se conjugar claramente com as ações práticas. Aristóteles compõe o retrato de um ser humano mais real, mais encarnado, dotado de psique (racional e irracional) e de soma. A atividade política realça o caráter prático da ética e a formação se dá com base também no hábito, no exercício da própria atividade virtuosa, não mais restrita à idealidade pura, não mais distanciada da vida real e das possibilidades concretas do indivíduo. A lei, a elaboração das leis é também garantia para uma vida virtuosa, pois institui os valores que foram deliberados e que pautarão a conduta de todos na mesma sociedade, sendo também princípio de igualdade. Com Aristóteles, o projeto de formação ética parece se “humanizar”, tornar-se mais próximo do humano ordinário, pois ele já representa o elo entre conceito (idealidade) e prática (vida concreta do homem). É um projeto que, de fato, leva em conta a dimensão coletiva, tanto no que diz respeito à elaboração das leis, como em sua finalidade (aplicação prática), considerando em ambas a questão da autonomia. Porém, na Idade Média, o modelo de interioridade platônico se intensifica e se sobrepõe ao aristotélico, por melhor se identificar com as necessidades do projeto de controle político da Igreja. Desaparece a filosofia como interrogação e a ética como prática dessa interrogação. Fechadas as possibilidades de deliberação coletiva a respeito dos valores e das leis da sociedade, a formação ética nada mais é do que doutrinação moral, imposição do que se institui como certo e necessário, como válido e inquestionável como definição acabada de virtude. O ideal de homem e de sociedade é fornecido, agora, pelo dogma, que institui os comportamentos corretos. A formação ética passa a estar centrada na relação individual que cada homem estabelece com Deus, bem supremo. Na figura de Cristo, Deus é homem, característica de identificação de um modelo que se aproxima do humano. Mas, através dos próprios mistérios insondáveis e inquestionáveis da religião, Cristo também é Deus, mantendo com isso o necessário afastamento do homem, para 303 que se possa instituir o elemento da fé como fonte de poder e controle da Igreja e como argumento que impede a interrogação, a construção da autonomia subjetiva e coletiva. O único exame que se pode fazer é o exame de si, em relação aos princípios morais instituídos pela Igreja – ou seja, o homem questiona se está sendo ou não virtuoso, se está seguindo ou não o modelo de virtude imposto pelo dogma religioso. A ética torna-se uma questão de comportamento, de prêmio e punição. O individualismo se acentua nesse exercício ético que é só exame interior, que perde a dimensão da vida coletiva. É a ética numa relação estritamente privada e comportamental (moral). A exterioridade se dá apenas através dos comportamentos individuais que devem ser pautados pelos valores morais já definidos de antemão pela Igreja, que também definem as relações sociais com base num julgamento constante do outro, com vias de se atingir o céu (a salvação) ou o inferno (a condenação). O modelo de Cristo morto, sacrificado por amor a cada um dos mortais, institui a carga do sofrimento, da dor e da culpa que cada cristão carrega consigo por nunca, jamais conseguir atingir tal ideal, marcando aí também, através desses sentimentos, mais uma forma de controle da Igreja sobre os fiéis. É necessário confessar os pecados a figura muito particular, um homem, representante desse poder divino na terra, único capaz de absolver ou condenar o comportamento do crente. Julga-se assim o caráter de cada um, oferece-se a necessária penitência para se obter o perdão, sempre numa dimensão de relação privada. Agostinho intensifica o modelo de exame interior proposto por Platão e a identificação com o Bem supremo, imortalizado na figura de um Deus Todo poderoso. Esse exame de si é terreno para um exercício de uma busca de racionalidade que se intensifica cada vez mais com os outros autores posteriores do período. Agostinho e todos os medievais tentarão encontrar argumentos racionais capazes de justificar a fé cristã. Em Agostinho, a união amor-razão como característica da relação entre o homem e Deus ainda concede ao aspecto afetivo do humano um lugar de privilégio. Porém, essa forma de conceber o humano vai sendo objeto de diferentes operações de redução por parte dos outros autores, que buscam numa “fé racional” o argumento de autoridade do poder da Igreja. Entre Boécio e Tomás o racionalismo vai tomar a forma de valorização da lógica, entendida como ciência da definição de condições e critérios de validação da verdade, da construção adequada das explicações e justificativas, de produção da prova racional. A formação ética é toda fundada no argumento de autoridade. Por meio dos teólogos, é o poder 304 da Igreja que busca se justificar pela razão e pela lógica, deixando cada vez mais de lado a questão do foro íntimo, do sentimento interior, que Santo Agostinho enfatizava. É claro que, nesse contexto, não existe espaço para um projeto de formação ética voltado para o desenvolvimento da autonomia, nem para as interrogações acerca do melhor projeto de formação para o cidadão virtuoso e autônomo. Forma-se agora o devoto, o crente. Aquilo que se considera educação ética, é de fato, educação religiosa. Porém, com as transformações ocorridas no contexto de transição entre esse período histórico e o próximo, vimos surgir no Renascimento um outro tipo antropológico e um outro projeto de formação ética, que tenta se fundar novamente numa aproximação com a prática, com a atividade política. No entanto, esse caráter “prático” se apresenta, como em Maquiavel, como um “pragmatismo”, um utilitarismo, onde a finalidade da ação humana, a busca pela felicidade, culmina numa busca pelo exercício do poder. Decerto a figura do príncipe rompe com o modelo dogmático dos princípios morais impostos pelo cristianismo, mas continua mantendo o foco da formação ética na questão do indivíduo. O príncipe deve estar capacitado para agir da melhor maneira que considerar, ainda que em benefício de seu povo, mas afirmando uma “ética dos resultados”, que não tem como se fundar numa elaboração coletiva, nem no questionamento dessas ações, desses resultados ou dessa própria ética. A autonomia de ação do príncipe-governante pressupõe a submissão e a ausência de autonomia dos súditos – seus governados. Ainda no Renascimento, surge uma proposta de autonomia na filosofia de Montaigne, que se reflete nas interrogações sobre os próprios princípios éticos que pautam a vida na sociedade. Porém, seu movimento de questionamento do instituído tem por base o ceticismo que instaura um certo tipo de relativismo. Funda-se, então, uma espécie de “ética do dia-adia”, que, ao mesmo tempo em que interroga os seus próprios fundamentos, se revela descrente das possibilidades de sua elaboração coletiva. Trata-se da afirmação da primazia de uma autonomia individual como projeto de formação ética. Essa questão da formação ética com foco na individualidade se prolonga da Idade Média até o período da modernidade. Em todo esse percurso histórico, o homem é confrontado apenas com ele mesmo na relação que estabelece com aqueles que pretendem ser os fundamentos da ética de cada época. O isolamento do sujeito em sua dimensão interior, cada vez mais focada no desenvolvimento de sua racionalidade, o seu afastamento da dimensão pública, que concebia a formação ética como atividade política e coletiva, faz da construção 305 da autonomia uma questão cada vez mais privada. Substitui-se o dogma metafísico da Idade Média pelo dogma da razão e da ciência. Através da pretensão de controle e de dominação da ciência, o foco da formação humana se desloca de uma dimensão de interrogação filosófica sobre os fundamentos da existência para o estabelecimento de verdades acerca do homem e de seu potencial de conhecer. Na atualidade, em meio ao que chamamos de “crise ética”, vimos surgir algumas propostas de resgate do ensino da filosofia aliada à formação humana, indicando uma preocupação com a questão da formação ética, em especial, da formação para a cidadania, que particularmente nos interessa investigar, pois nos parece urgente a necessidade de libertar a educação das grandes teorias que se pretendem regras, técnicas, modelos, receitas, capazes de predizer, diagnosticar e moldar o homem. Tais teorias não cessam de surgir no contexto contemporâneo e, em nossa opinião, impedem a educação de assumir sua dimensão enigmática, indeterminada, de criação de sentidos singulares e temporais. Ora, não é nenhuma novidade propor o ensino da filosofia como um instrumento de formação ética, de formação para a cidadania, seja de maneira explícita ou implícita, dentro de projetos pedagógicos formais, relacionados aos currículos escolares, como em projetos pedagógicos informais, relacionados aos movimentos culturais e sociais instituintes. Para muitos profissionais da área, a educação para a cidadania é vista mesmo como a grande finalidade do ensino da filosofia. Os argumentos que costumam justificar essa proposta partem do princípio de que uma sociedade democrática necessita da participação e da atuação de seus cidadãos e, que para isso, faz-se necessário que eles desenvolvam suas capacidades críticas e reflexivas, para estarem aptos para exercer sua participação. Nesse sentido, as iniciativas oficiais atualmente voltadas para a educação para a cidadania têm como foco a consciência dos direitos e deveres de cada um na sociedade, a formação de um espírito de “solidariedade” individual e de grupo, capaz de conduzir as atitudes de todos para o bem comum. Em conformidade a essa proposta, especificamente no contexto brasileiro, o argumento que sustenta o ensino da filosofia no currículo do ensino médio atualmente se apresenta como contraponto aos rígidos anos da ditadura militar, que impunham a ordem do silêncio, a perda da liberdade de expressão, da reflexão crítica e dos questionamentos acerca da sociedade e do mundo, diretamentes ligados às questões dos “direitos humanos” e da “cidadania”. O movimento de retorno da filosofia como disciplina obrigatória nos currículos 306 escolares também vem ao encontro de uma super valorização da filosofia na sociedade em geral, correspondente a um novo modismo: multiplicam-se as tentativas de popularização dessa disciplina, sob forma de cursos livres oferecidos em instituições privadas, de re-edições mais baratas e simplificadas de obras clássicas, de propostas de eventos abertos ao público em geral em cafés-filosóficos… No entanto, cabe questionar: o que ensinar e como ensinar? O que propor como conteúdo dessa disciplina? Sobre isto, os profissionais da área comumente se dividem em dois grupos: aqueles que propõe o estudo de diversos autores e conceitos, o chamado patrimônio ou história da filosofia e aqueles que valorizam mais a importância de se estimular uma atitude reflexiva nos alunos, com base em questionamentos críticos e criativos. Ora, se o que se pretende é uma formação ética, em nossa opinião, uma proposta não necessariamente exclui a outra, ao contrário, elas podem e devem ser complementares. Porém, o mais importante ainda é a contextualização desses conteúdos, a relação que se pode e deve estabelecer com o mundo presente, despertando o interesse dos alunos para as temáticas a serem abordadas. Trata-se, assim, de conceber a educação, numa perspectiva democrática, como podendo estar, de fato, aliada a um projeto de autonomia individual e coletiva. Ao termos observado no decorrer da história a predominância de duas grandes concepções de formação ética - a educação pelos modelos e a educação da razão - somos inclinados a afirmar que a perspectiva democrática se oferece como alternativa para ambas as vias: como possibilidade de questionamento, a razão amplia os limites da lógica ao se fazer criação de novas possibilidades e como deliberação que permanece infundada; mas amplia, igualmente, os limites da afetividade instituída, ao submetê-la à possibilidade de alteração. A democracia se faz assim projeto de uma formação ética em que o homem possa ser pensado como ser para quem razão e afeto se dispõem em um nexo temporal em que o que separa o passado, o presente e o futuro não é um sentido predeterminado, mas a livre atuação da subjetividade reflexiva e deliberante, ainda que marcada por limites, mas, sem negar em absoluto suas diversas possibilidades - o poder poder ser. O que importa salientar é a necessidade cada vez mais urgente de se instituir espaços coletivos de discussão e deliberação sobre as temáticas éticas. Se já não se pode mais pautar o comportamento do sujeito contemporâneo por valores do passado e se, por outro lado, existem determinações que afetam os indivíduos e as coletividades de forma globalizada, 307 torna-se, de fato, urgente, refletir acerca do mundo e da sociedade que queremos instituir, lembrando ainda da responsabilidade que temos com o futuro do planeta e de suas espécies. Não há como negar que assuntos que antes poderiam ser considerados apenas da esfera econômica se relacionam plenamente com questões políticas, ambientais, sociais, culturais… Nesse sentido, afirmar que a discussão ética é de fato parte fundamental de nossa existência é propor o resgate de uma autonomia e da afirmação de uma liberdade que nos pertence, tanto quanto a própria vida concreta de nossos corpos. É propor uma tentativa de compreensão do que está posto e, quiçá, as possibilidades de transformações na direção de um mundo que desejamos. Mas, para tanto, é preciso se ter clareza sobre o que se deseja. Castoriadis (1987, p. 31-32.) afirma que, se vivemos hoje em dia num estado de decomposição e crise da sociedade contemporânea, tal situação envolve ainda uma crise da democracia, pois, de fato, os valores que imperam e pautam as condutas dos seres humanos na contemporaneidade dizem respeito, grosso modo, ao que nos é imposto e não a uma elaboração coletiva e consciente. Sendo assim, um dos grandes desafios da atualidade é a elaboração de um projeto educativo que possibilite a formação de sujeitos capazes, por sua vez, de instituir sentidos mais duráveis, mais estáveis, mais generosos para a existência humana, de lutar pela reconstrução dos laços sociais e da vida coletiva que só se afirmam na experiência de participação em uma obra comum. Um projeto educativo que questione não apenas em palavras, mas em sua prática cotidiana o que está posto: a lógica mercantil exagerada, pautada pelo consumo. Um projeto educativo capaz de fornecer as possibilidades de reflexões críticas a respeito do desenvolvimento técnico-científico alcançado, bem como o estímulo à criatividade necessária para a busca de soluções. Um projeto educativo que invista na autoconstrução humana e na construção de uma sociedade mais justa, incluindo dentro dele as possibilidades de questionamentos dos conceitos de justiça, de prazer, de benefício e de felicidade. Referências Bibliográficas: CASTORIADIS, Cornelius. “A indústria do vazio” in: As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 308 ______________________. “O estado do sujeito hoje” in: As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. VALLE, Lílian do. Os enigmas da educação – A paidéia democrática entre Platão e Castoriadis. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. Natureza, infância e ciência no Brasil escolanovista: a pedagogia moderna na formação de bioidentidades escolares O tema geral desta investigação assenta-se em dizeres concernentes à pedagogia e à psicologia no campo discursivo formado pela Escola Nova no Brasil. Esta denominação alcança uma grande variedade de autores que, durante a década de 1920 e 1930, debateram-se com intuito de reformar a educação brasileira. Da abundante discursividade desse período, nos atraiu um objeto particularmente profícuo quando se pensa os atuais vínculos entre filosofia, psicologia e pedagogia. Trata-se dos argumentos científicos que balizavam as definições de natureza e infância apresentadas aos professores, pais e aprendizes a que se dirigiram os enunciados pedagógicos, filosóficos e psicológicos. Em conformidade com o campo teórico por nós eleito, consideramos que a composição de práticas discursivas pode instigar à formulação de modos de subjetivação para os entes abarcados por tais práticas. Destarte, inspirados em Michel Foucault (1995), aventamos a existência de uma estreita conexão entre práticas de saber e de poder no campo da pedagogia escolanovista cujo norte operaria com as noções de infância e natureza por meio da conexão 309 entre normalização, individualidade, autonomia, cidadania, trabalho, evolução, capacidades inatas, vontade, moral, liberdade, interesse, identidade, dentre outros. A relevância desse estudo se localiza na nossa suspeita de que ditas vinculações instigariam determinadas relações entre sujeito e verdade fundamentais para a compreensão dos contemporâneos estilos de vida que estão em constituição desde os alvores do século XX. Na esteira de Foucault (2011), dirigiremos nossos olhares investigativos para as formas aletúrgicas (p.4) estabelecidas pelo pensamento pedagógico moderno no Brasil. A partir dessas aleturgias – que, na visão do autor, permitiriam vislumbrar os modos de veridicção utilizados pelos sistemas de pensamento que lastreiam tais ou quais discursos – pretendemos aventar que a escola psicologicamente lastreada do século XX compõe algumas das matrizes para a forja de bioidentidades contemporâneas. No que tange à conceituação das bioidentidades, acompanham-nos autores como Nikolas Rose, Paul Rabinow, Lucien Sfez e Jurandir Freire Costa que, no seio do pensamento pós-estruturalista, pesquisaram acerca do caráter performativo dos enunciados científicos coetâneos, fossem produzidos pela biomedicina (Rose, 2003), pela genética (Rabinow, 2002), pela ecologia (Sfez, 1996) ou pela psiquiatria (Costa, 1980) que dariam guarida a processos identitários expressos por narrativas de si sustentadas pelo vocabulário fisiológico, estatístico, sociológico e médico. Em outras palavras: trata-se de auscultar as alocuções que ofereceram processos de subjetivação dirigidos à composição do infante com o aluno-neuroquímico, o aluno-amostra, o aluno-humano e o aluno-paciente. Conforme supracitado, a psicopedagogia seria, em nosso campo de observação, aquilo que produz e nutre essas composições. Analisando os discursos psicopedagógicos modernos sob essa ótica, Jorge Ramos do Ó (2009) assevera que a pedagogia foi também ela construída sob as categorias e divisões definidas pela ciência e absorvidas pelos sistemas de ensino estatais. Toda a relação educativa moderna tem uma raiz psi, o que significa que passou a estar dependente dos diagnósticos, orientações teóricas, divisões e formas de explicação que a Psicologia concebeu para indexar e reelaborar os imperativos éticos (p. 25). Ao lado do autor português, consideramos que estudar a Escola Nova brasileira e seus enunciados psicopedagogicamente constituídos é também perscrutar a linguagem com a qual nós, sujeitos contemporâneos, circunstanciamos nossas próprias existências. Para viabilizar essa empreitada, usamos como referência os enunciados postos em circulação por um eminente promotor do reformismo brasileiro. Trata-se de Lourenço Filho, 310 um personagem atuante em diferentes arenas da política educacional nas décadas de 1920, 1930 e 1940; particularmente em ações dirigidas ao aperfeiçoamento dos métodos de investigação psicológica. Considerando os estudos de Cecília Hanna Matte (2002) – para quem o Estado brasileiro, desde o início do século XX, tomara para si a tarefa de “regulamentar, legislar e unificar práticas escolares” (p. 39) –, utilizaremos Lourenço Filho como plataforma para nos aproximarmos dos discursos mobilizados por esse Estado em busca da efetivação do governo sobre cada qual e todos os cidadãos nos alvores da modernidade brasileira. Burocrata e político, Lourenço Filho realizou intensa produção intelectual, política e educativa. De todas as suas obras, compilamos a edição da coleção Bibliotheca de Educação que reuniu 29 volumes, entre os anos de 1927 e 1941, abrigando nela uma fatia substancial da intelectualidade brasileira e internacional. Embora a coleção tenha existido até 1979, o período compreendido entre 1927 e 1930 pode ser definido como sua “fase áurea” (Monarcha, 1997) em função da intensa circulação que a coleção alcançou tanto no campo da formação de professores quanto entre os meios familiares. O objetivo geral do editor, explicitamente, era “conhecer de um modo claro e conciso, as bases scientificas da educação e seus processos racionaes” (Lourenço Filho, 1927, p.5). A obra Introdução ao Estudo da Escola Nova assinada por Lourenço Filho no décimo primeiro volume da Bibliotheca de Educação mostrou-se particularmente fértil para analisarmos o pensamento escolanovista, uma vez que o autor pretendeu reunir nela os métodos tidos por ele como científicos e as respectivas concepções de aprendizado até então em voga. Assim, além da obra de Lourenço Filho, transitaremos pelas contribuições dos filósofos Henri Piéron, Jacques Binet, Édouard Claparède, Émile Durkheim, Adolphe Ferrière e John Dewey para lucubrar acerca da lógica discursiva em que se apoiou essa fração do pensamento escolanovista. No supracitado volume, Lourenço Filho (1930) defende que a Escola Nova, antes de tudo, deveria afirmar seu caráter científico, afastando-se do que ele nomeia como escola tradicional. Ou seja, a escola renovada deveria alijar-se da antiga pedagogia que fazia da empiria e, portanto, da aventura o princípio norteador dos procedimentos escolares. Para se tornar científica, a escola propalada por Lourenço Filho deveria partir de métodos objetivos que garantissem avaliações constantes e apuradas dos comportamentos dos pupilos. Para tanto, o recurso mais simples e preciso seria a submissão de todos e cada um dos estudantes a testes psicológicos que, com base em critérios precisos, garantiriam a meta de “homogeneizar primeiro e differenciar depois” (LOURENÇO FILHO, 1930, p. 12). A homogeneidade pretendida pelo autor implicava no confronto dos resultados de cada indivíduo com a tabulação aferida nos testes aplicados a educandos em idades semelhantes. Assim, definindo o posicionamento de cada qual com relação à média esperada para a sua idade, poder-se-ia preparar o avaliado para direcionar suas idiossincrasias no sentido da normalidade, e, a seguir, potencializar suas capacidades por meio de um ensino sob medida baseado na adequação e no respeito à individualidade. Segundo essa concepção de ensino, a meta da educação renovada seria alcançada quando os alunos conseguissem atingir um viver autônomo; ou seja, por meio da 311 autoaprendizagem, alcançariam a condição de “cidadãos do mundo” (LOURENÇO FILHO, 1930, p. 11). Diferentemente da pedagogia tradicional – que, segundo Lourenço Filho (1930), ainda estava por demais apegada à sobrecarga de conteúdos transmitidos pelos professores por via expositiva –, a Escola Nova se ateria ao homo faber no lugar do homo sapiens alvejado pelos tradicionalistas. Uma escola do trabalho contra uma escola de conhecimentos inativos. Uma educação que fosse a “própria vida” (p. 75) contra uma educação que preparasse para a vida. Um ensino centrado na criança contra um ensino centralizado pelo professor. Uma escola única contra uma escola que apartasse aristocratas de populares. Um mestre que coordenasse e estimulasse os interesses dos alunos contra um mero mestre de estudos. Esse conjunto de modificações proposto para a escola, segundo Lourenço Filho, deverse-ia apoiar nas bases absolutamente sólidas da ciência psicológica e da genética. A compreensão genética da natureza humana, para o autor, permitiria compreender os processos de desenvolvimento dos educandos. Assim – considerando que os seres desenvolvem-se dos espécimes mais simples em direção aos mais complexos –, seria possível descrever o comportamento adulto observando o comportamento infantil e, por conseguinte, o comportamento infantil analisando o comportamento animal. Dessa maneira, o humano seria incorporado à natureza como ponto máximo e final de sua evolução. Essa concepção naturalista do conhecimento opunha-se à pregressa visão antropocêntrica que entendia a criança como um homúnculo suscetível apenas à instrução. Portanto, atualizando as mais avançadas pesquisas científicas de seu tempo, Lourenço Filho (1930) condensou suas pretensões pedagógicas na máxima: “educar é a arte suprema de modelar os homens para uma vida melhor” (p. 75). É perceptível que a escolha dos filósofos supracitados para comporem a Bibliotheca de Educação obedece ao itinerário científico apresentado nessa obra Introdução ao estudo da Escola Nova. Nesse itinerário, fica evidente o motivo da opção por Piéron e Binet, uma vez que esses autores escoraram a cientificidade de suas teorias nos testes psicológicos, considerados por ambos a ferramenta mais confiável para verificação objetiva das potencialidades dos educandos. A obra Psychologia experimental de Henri Pièron contém uma concepção segundo a qual os processos psíquicos deveriam ser apreciados de forma similar aos processos biológicos, ou seja, em termos dos mecanismos de excitação, percepção e reação. Em torno dessa terna, todos os testes deveriam ser elaborados, todos os resultados aferidos e todas as suposições apresentadas. Para analisar o aprendizado, Piéron propõe um longo caminho investigativo que parte do desmembramento dos mecanismos que levam à percepção, passando pelas relações entre a atenção, o esforço mental até chegar aos mecanismos referentes à memória e ao esquecimento. O ponto culminante desse esquadrinhamento deveria ser, segundo o autor, deslindar a formação dos pensamentos. Ao apresentar os tests, o autor elenca aquilo que, em seu julgamento, seriam as capacidades essenciais para o aprendizado; dentre elas estariam a motricidade, a adaptação, a atenção, a imaginação, a compreensão, a crítica e a invenção lógica. Para cada uma dessas 312 capacidades, Piéron compila provas criadas especificamente para apreciar o grau em que elas se encontram no indivíduo analisado. Destarte, mover-se, adaptar-se, atentar, imaginar, compreender, criticar e inventar, dentre outras, seriam, segundo o psicólogo, ações humanas guindadas à condição de mecanismos cerebrais capitais para uma intervenção racional e produtiva no processo de aprendizagem. De todas as capacidades verificáveis pelos tests descritos por Piéron, aqueles relacionados à inteligência ocupam destaque. Tal como Binet pretendeu estabelecer, a medida da inteligência poderia fornecer critérios seguros para inserção de indivíduos em diversos campos de atuação, fosse no ambiente escolar, profissional, militar etc. A escala Binet-Simon, segundo Simon (1929) – coautor da obra Testes para a medida do desenvolvimento da inteligência nas crianças – seria o corolário e, ao mesmo tempo, o ponto de partida para uma psicologia verdadeiramente científica, pois se baseava em experimentações racionalmente coletadas e criteriosamente apuradas. Para Simon, dita escala foi o “primeiro exemplo de medida direta do valor psicológico dos indivíduos” (1929, p. 28). Seus criadores pretenderam condensar nas provas a totalidade dos processos mentais envolvidos nas funções de memória, juízo, raciocínio etc. Inicialmente criada para distinguir alunos normais dos anormais no contexto educativo de Paris no início do século XX, o teste passou por numerosas atualizações, todas elas no sentido de adaptar as sondagens aos padrões culturais dos avaliados e, consequentemente, garantir a efetividade das apurações. Destarte, por meio dos testes psicológicos, puderam os psicólogos experimentalistas conjecturar sobre os mecanismos envolvidos no aprendizado. Essas conjecturas levaram os estudiosos a discriminar os capazes dos incapazes, mas também a sugerir métodos educativos que se pretendiam eficazes, pois dirigidos a uma natureza humana cientificamente observável. Além das características psicofísicas envolvidas no processo de aprendizagem, os autores escolanovistas recrutados por Lourenço Filho preocuparam-se com outros aspectos considerados capitais na caracterização do comportamento discente. Dentre eles, apresentouse o interesse. Claparède (1928), autor do segundo volume da Bibliotheca de Educação analisou esse aspecto relacionando-o aos componentes psíquicos tradicionalmente evidenciados pela psicologia experimental. Dessa forma, segundo o autor, além de excitar a percepção, a compreensão a memorização e a atenção, o educador deveria priorizar o exercício da vontade. Mobilizando o desejo do educando, Claparède esperava criar uma escola funcional na qual o empenho discente seria dirigido a tarefas estimulantes por meio das quais a fadiga seria evitada e as individualidades ficariam preservadas. Para tanto, uma faculdade, considerada inata, deveria ser relevada: a disposição ao jogo, pois, “ao colocar o amor do jogo, ou a tendencia do jogo na alma da criança, a natureza a armou admiravelmente contra sua propria incapacidade de interessar-se pelas realidades da vida”(p.19). O experimentalismo de Claparède levou-o a sugerir ações didáticas cujo centro deveria ser a criança. Esta, entendida como “pae do homem”(p. 58), deveria ser apreciada cientificamente para que seus instrutores reconhecessem suas limitações e potencialidades, e, 313 por conseguinte, escorados em saberes cientificamente chancelados, os professores poderiam propor atividades cuidadosamente elaboradas para que os fins projetados por eles alcançassem efetividade. Em outras palavras: por meio da condução científica do desejo, realizar-se-ia um ensino adequado à vida projetada pelos psicólogos para ser vivida pelos entes a que se dirigiam suas práticas educativas. É a isso que os escolanovistas chamavam de escola sob medida. Escola sob medida, uma instituição que instigasse à autonomia e valorizasse a individualidade do educando. Contudo, ao inserir a obra de Durkheim (1929) no quinto volume da coleção, Lourenço Filho chama a atenção para os limites dessa individuação. Segundo Émile Durkheim, há duas dimensões presentes em cada qual dos humanos: um ser individual e outro social. O primeiro é tangível pelas leis biológicas, hereditárias e psicológicas. O segundo é constituído pela educação. Tal como seus colegas da Bibliotheca de Educação, Durkheim (1929) insere o processo educativo no âmago da senda humanizadora. Ao recorrer à história, o autor apercebe-se que “a sociedade não poderia existir sem que houvesse entre seus membros uma suficiente homogeneidade: a educação perpetua e reforça essa homogeneidade, fixando de antemão na alma da criança, estas similitudes essenciaes reclamadas pela vida collectiva” (p. 44). Segundo Durkheim, a homogeneidade necessária para que a vida social se efetivasse seria garantida pela moral. Esta teria o condão de constituir – na interioridade, denominada de alma pelos especialistas – as condições necessárias para ações individuais adequadas à vida em sociedade. Adolphe Ferrière, autor do nono volume da coleção em questão, também discorreu acerca da educação moral, analisando-a sob o prisma escolanovista. Para Ferrière (1929), a Escola Nova “offerece em si mesma, o que o trabalho ensina, o que surge espontaneamente da observação da vida humana (...) postos a serviço sublime da obra do progresso, constituem a melhor, a mais profunda e a única educação moral verdadeira” (p. 52). Ferrière propõe uma pedagogia centrada nas leis biogenéticas cujo núcleo se encontraria na crença do humano como um ser em desenvolvimento. Tal como seus companheiros de Bibliotheca de Educação, o autor propõe que a escola deveria reconhecer a natureza incompleta da criança. Dessa maneira, os psicopedagogos – na condição de especialistas da alma humana –, observando criteriosamente as potencialidades e as incapacidades dos pupilos, poderiam estabelecer os princípios que norteariam toda a sua vida. Por conseguinte, o ambiente escolar se tornaria uma espécie de campo de provas no qual as suposições sobre os limites dos infantes poderiam ser verificadas e cientificamente codificadas. O ensino científico, para Ferrière, desenvolveria uma educação ativa, organizada por uma ciência evolucionista em uma escola que estimulasse o apego ao trabalho. Dessa forma, instigando os educandos à atividade produtiva, os educadores poderiam reconhecer as diferentes capacidades com fito de propor tarefas adaptáveis às reais potencialidades dos infantes. Ferrière, portanto propõe uma pedagogia cujo método consistia em colocar as crianças em movimento, ao ar livre, em permanente intercâmbio com seus colegas para estabelecer, por meio da observação do convívio franco e aberto, as normas que deveriam orientar as 314 condutas em cada fase etária de desenvolvimento. Assim, definidos os pressupostos dos comportamentos, os docentes interfeririam cientificamente nas concepções morais de seus aprendizes. Realiza-se, dessa maneira, uma educação moral e científica tal como pretendia Durkheim. A interferência científica proposta por Ferrière aprofunda-se ainda mais quando acrescida pelas proposições de Dewey acerca das relações entre escola e vida, registradas no décimo segundo volume da Bibliotheca de Educação. Na obra Vida e educação, Dewey (1930) analisa o processo educativo retomando a noção de interesse. Na sua concepção, o interesse “verdadeiro, em suma, significa, pois, que uma pessoa se identificou consigo mesma, ou que se encontrou a si mesma no curso de uma ação” (p. 64). Dessa maneira, a partir da visualização do interesse despertado, o professor poderia estabelecer um programa didático adequado e produtivo. Uma ação educativa orientada para a identidade dos educando. Portanto, nessa concepção, a educação se tornaria uma atividade que seria dirigida ao interior do aluno, ou seja, uma ação fundamentalmente psicológica – “uma forma de atividade própria do organismo; isto é, uma forma de sua evolução ou crescimento que se realiza através da atividade de tendências nascentes” (p. 55). Destarte, o professor orientado pela pedagogia de Dewey deveria formular seus procedimentos a partir daquilo que os resultados dos tests apontavam. A seguir, considerando a natureza evolutiva dos pupilos, os mestres os instigariam a desejar atitudes coerentes com as capacidades aferidas. Finalmente, respeitando os grupos etários e convocando os indivíduos à constante busca por sua própria identidade, poderiam os pedagogos instalar métodos racionais para construir nos educandos valores adequados à vida em suas sociedades. Consideramos que a partir dos binômios normal/anormal, moral/amoral, capaz/incapaz, desejoso/inerte, inteligente/atrasado, sociável/antissocial foram se constituindo, ao longo do século XX, as definições de normalidade, moralidade, capacidade, desejo, inteligência, sociabilidade etc. como elementos intrínsecos à natureza humana. Em toda essa produção, a Escola Nova atuou decisivamente. Por meio dos cânones do escolanovismo, foi possível se estabelecerem práticas discursivas que, além de nunca deixarem o ambiente escolar, alcançaram vastos campos do viver social. Tal como Nikolas Rose (2007), aventamos que, quando as presunções acerca da natureza humana foram encampadas pela biologia, entraram em cena descrições acerca das composições anatômicas, velocidades das reações, consistências das respostas, controle das emoções, clareza das expressões, consequência nas escolhas, enfim, um infinito arsenal de operações utilizadas pelos especialistas para confinar as ações individuais em grupos de risco. Hoje, essas práticas se mantiveram, se sofisticaram e estão à disposição daqueles que desejam aprimorar o funcionamento de seus corpos (via dietas, fitness, reposições hormonais etc.), prever anomalias (via exame pré-natal, medicina genômica etc.) ou resgatar a normalidade (próteses, psicofármacos etc.). Tais descrições, ao longo do século XX, foram aprofundadas. Hoje, o imageamento cerebral é corriqueiro. A determinação dos loci encefálicos onde se processariam as 315 percepções utiliza técnicas avançadíssimas. A pesquisa sobre as determinações hereditárias para tais ou quais características alcança o nível molecular. Os fármacos, muito além da cura, são alardeados como modificadores de humor, potencializadores do ato sexual, dinamizadores da vida profissional, condutores da motricidade, promotores de longevidade etc. Tudo isso requer, para funcionar, a crença em uma noção de natureza forjada intercâmbio entre as ciências da vida e da alma, formuladas nas clínicas, nos laboratórios e nos centros de pesquisa, mas também nas salas de aula e nos enunciados psicopedagógicos, desde os alvores da modernidade, ou seja, na periodização foucaultiana, desde o século XIX. Supomos, ainda com Nikolas Rose que, quando os homens passaram a ser percebidos como entes biológicos, suas vidas estiveram à mercê dos especialistas. Estes criaram os discursos sobre saúde, comprovaram experimentalmente a veracidade deles, anunciaram estatisticamente as conclusões, chancelaram intervenções corretivas, curativas ou saneadoras e insinuaram-se na qualidade dos herdeiros. Sempre por meio de medições, testes, contagens, comparações, imposições e permissões foram instituídos métodos científicos para conduzir pessoas. A escola, desde o século XX, sempre foi lugar para sondar e avaliar, dirigir e aperfeiçoar. Consideramos, por fim, que não há uma linha de causalidade direta entre os métodos discursivos instalados pela psicopedagogia escolanovista no Brasil e os atuais procedimentos científicos dirigidos à vida, porém, supomos que algumas significações sobre criança e natureza humana, estabelecidas pelos filósofos da Escola Nova, até hoje vigoram sobre o alunado. Tais significações teriam se tornado apriorísticas, intensificando a força de verdade presente nos enunciados que chancelam intervenções nos comportamentos, ora por meio da decomposição do comportamento em seus fundamentos psicofísicos, da crença no desenvolvimento cognitivo, da fé na presença de capacidades hereditárias, da confiança na possibilidade de se conduzir desejos, e, antes de tudo, do consenso pela educação científica. Referências bibliográficas BINET, Alfred; SIMON, Theodore. Testes para a medida do desenvolvimento da inteligência. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1929 (coleção Bibliotheca de Educação, volume X). COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Campus, 1980. CLAPARÈDE, Édouard. A escola e a psychologia experimental. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1928 (coleção Bibliotheca de Educação, volume II). 316 DEWEY, John. Vida e educação. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. 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EL IDEAL DEL DESEO EN SADE Una lectura de "Kant con Sade" de Lacan* Josefina Magaña Solís* RESUMEN La oportunidad que otorga Lacan a la reflexión educativa confrontando a Kant y a Sade, resulta interesante desde los puntos de vista filosófico, ético y psicológico, como ingredientes esenciales de la formación humana. Kant como Sade, se encuentra en un juego de extremos en lo que concierne al ideal de hombre. Por su parte, Sade pretende el dominio absoluto del principio del placer, dándole rienda suelta a los requerimientos de la naturaleza, pensada como una forma de sujeción sobre la voluntad del otro como objeto de placer y satisfacción en el cumplimiento de su deseo egoísta. Kant, pretende la dominación absoluta del principio del placer mediante acciones que expresen una excesiva dominación del super-yo sobre el yo. La tensión que provoca encontrarse entre el deber y el goce, es una constante que habita la reflexión ética de todos los tiempos. Sade se encuentra en un extremo de esta tensión, por lo que se considera necesario conocer el contexto que le dio marco a su educación para tratar de comprender su importancia pedagógica. La pregunta es, ¿qué papel tiene la educación en esta aparente confrontación entre Kant y Sade desde Jacques Lacan? Desde un punto de vista personal, asumo que en la formación humana se encuentra de manera constante, una pedagogía del deber y una pedagogía del deseo que dan la oportunidad de formarse un ideal de comportamiento ético. La pedagogía del deber, centra su atención en excluir la pulsión o el sentimiento y todo aquello que el sujeto pueda padecer, en aras del interés por cumplir la ley moral. Y que por su parte la pedagogía del deseo, ejerce la libertad en el placer como motivación de gozar como sujeto y no como objeto en el cumplimiento de dicha ley. Mi manera de pensar, decís, no puede ser aprobada. ¡Pues, qué me importa! ¡Bastante loco es quien adopta una manera de pensar como la de los demás! Mi * Lic. En Pedagogía, estudiante de la Mtría.,en Pedagogía de la FFyL-UNAM. Profesora de las asignaturas: Ética profesional del magisterio, Educación y economía y Planeación educativa, en la misma institución. 318 manera de pensar es el fruto de mis reflexiones; está implicada en mi existencia, en mi organización. No soy dueño de cambiarla; y aunque pudiera no lo haría. Esa manera de pensar que vos censuráis es el único consuelo de mi vida; alivia mis penas en prisión, constituye todos mis placeres en el mundo y la quiero más que a mi vida. No es en absoluto mi manera de pensar la que ha hecho mi desgracia; es la de los otros. Sade, carta a Mme.de Sade, principios de noviembre de 1783 1. Introducción Para iniciar, es necesario compartir ciertas líneas de acción en las que asumo estaremos de acuerdo: primero, retomar que educar, es formar seres humanos dentro de un marco social e histórico con la intención de cubrir necesidades comunes; segundo, que la educación busca formar seres humanos integrales de acuerdo a un ideal humano, social, político y económico. Y por último, que la filosofía de la educación lleva a cabo la reflexión sobre ese ideal humano en contra partida con la realidad en la que es educado, sin perder de vista que en lo humano coexisten la moral, el deber, lo ético, el deseo, el placer, el egoísmo, y tantos otros aspectos que se forman en nuestra alma, mente, psique o como prefiera llamarse. Para esto, la reflexión sobre la formación humana no puede, no debe sólo mantenerse al margen de la educación con una intención positiva del ideal humano, sino también, de reflexionar sobre aquello que educa y que se muestra como una transgresión, como una amenaza a la conservación de lo humano. Para esto último, he decidido tomar la figura del marqués de Sade, pero no solamente desde su visión de libertino y perverso, sino también desde su perspectiva educativa en la que: "El sistema del marqués de Sade, […], representa tanto la realización como la crítica de un método que lleva al nacimiento del individuo integral por encima de la masa fascinada".151Así también retomar el interés que motivó a Jacques Lacan para escribir "Kant con Sade”, al vincular la filosofía con los temas referentes a la ley, el goce, la perversión y el deseo, a partir de la figura del libertino por excelencia y el discurso del imperativo categórico de Kant.152 2. El Marqués de Sade Donatien Alphose François, Marqués de Sade, nacido en 1740, se cría dentro del ambiente cortesano del fin del Antiguo Régimen francés. Perteneciente a una de las familias más antiguas y nobles de Francia, su educación temprana se desenvuelve 151 Bataille, George, El erotismo, p. 172. 152 Cfr. Suárez, Marcela, “El Marqués de Sade en Jacques Lacan”, en Razón y palabra. entre amantes y 319 adulterios, cargada de excesos sexuales escenificados por su padre, el gran príncipe de Condé y por la influencia de su tío el abad Jean François de Sade, clérigo notablemente libertino, con quién Sade pasó parte de su infancia, y por el colegio Louis- le- Grand de París, donde se educó al cuidado de los jesuitas, de conductas sexuales fuera de toda ortodoxia religiosa.153 La personalidad de Sade, según sus estudiosos, fue contradictoria y su vida y obra paradójica: Para entender este carácter tremendo del personaje hay que recordar que Sade es al fin y al cabo el hombre del orgullo feudal. Sade, miembro de la nobleza militar, que hará en caballería la guerra de los siete años con notable alarde de valor – en un acta de servicio de su capitán de caballería se le describirá de manera expresiva como “muy alocado y bravo”-, es el vástago de una nobleza guerrera. Y en ello Sade recuerda a los personajes protagonistas del antiguo derecho de los héroes, personajes anteriores a la organización social y al monopolio estatal del uso de la fuerza. Son hombres guiados simplemente por sus instintos, no sometidos al esquema moderno del pacto social de obediencia a cambio de protección que establece el derecho. Son protagonistas que actúan al dictado de una lectura primitiva de la naturaleza; que lo quiere todo, todo lo que pueden conseguir gracias a su habilidad y a su fuerza, pero que a cambio, y justo es reconocerlo, lo arriesga todo, pues su misma vida será lo que pongan en juego a la hora de elegir ese ethos.154 Basado en esta y muchas otras características que nutren la vida del Marqués de Sade, éste articula su ideal de hombre soberano integral como el individuo que sobresale de las masas. Proponiendo una nueva ley moral cuya obligación sea la de gozar porque la naturaleza lo ordena, sosteniendo así un ateísmo llamado "naturalista" que critica las leyes que impiden a los hombres situar la particularidad del goce. En este sentido Lacan desde el psicoanálisis reconoce en el deseo la verdad del sujeto. Por lo que llega al personaje de Sade, el libertino que plantea la libertad sin límites, para acercarse a la idea del imperativo del goce en el que el Marqués reúne los requisitos del imperativo categórico de Kant. Hay que recordar que para Kant, la naturaleza humana debe ser educada, disciplinada, guiada hacia una serie de principios que por medio de la razón, cada facultad que nos proporcione la naturaleza, de origen a una voluntad buena en sí misma mediante el cumplimiento del imperativo categórico “obra sólo según la máxima a través de la cual puedas querer a la vez que se convierta en una ley universal” 155 y no como medio para satisfacer nuestros deseos o inclinaciones. 153 Cfr. Pelayo González-Torre, Ángel, La sombra de la ilustración. Tres variaciones sobre Sade, p. 38. 154 Pelayo González-Torre, Ángel, Op. Cit., p. 41. 155 Kant, Immanuel, Fundamentación de la metafísica de las costumbres, (421, 6-13). 320 3. El pensamiento en Sade La voluptuosidad sadiana como exacerbación de los sentidos, se libera dentro del paradigma ilustrado, y el deseo del libertino extiende su explicación racional a las demandas voluptuosas como leyes imperativas de la naturaleza hasta sus últimas consecuencias. Esto penetra en lo natural como flujos, intensidades y exaltaciones libidinales desde la visión del psicoanálisis. En esta perspectiva, la manera de pensar de Sade, se denomina como una perversión, un pensar sádico, que erotiza, que trasgrede y cuya acción violenta afirma el poder sobre la otra persona tomándola como objeto156. Sade mediante su narrativa aparentemente repugnante, logra atrapar a quien lo lee, e incluso fascinarlo a pesar de los constructos sociales que se tienen sobre el amor ideal de consentimiento y felicidad en la relación íntima y el deseo sexual, "Sade está en los deseos de algunos, en los sueños de muchos, en las pesadillas de todos, en las prácticas inexplicables de los perversos…". 157 Lo enigmático en Sade es su postura libertina, donde el placer se encuentra en la crueldad, en el goce por la destrucción sin lamentar nada y donde lo incondicionalmente bueno, como si fuese un imperativo categórico, es la obtención del placer por el placer mismo. La lectura que Sade ofrece, en específico la de Justina o los infortunios de la virtud , la cual entre otras situaciones, hace referencia explicita del poder que se ejerce, ya sea éste físico o mental sobre el ser más débil, bello, frágil y virtuoso, transgrediéndolo a pesar de cualquier norma u orden moral o social, con el propósito de que el perverso158 logre el placer, el sentirse bien, satisfecho o feliz, si es que lo puede lograr, mediante su regocijo en la "felicidad en el mal"159. Esto quiere decir que puede haber satisfacción en el mal. Como afirma Lacan: "Durante el siglo XIX se fue gestando una subida insinuante de la idea de que hay –felicidad 156 Cfr. Freud, Sigmund, “Pulsiones y destinos de pulsión”, en Obras completas. Volumen XIV, p. 123. 157 Pelayo González-Torre, Ángel, Op. Cit., p. 20. 158 Desde una lectura del psicoanálisis me atrevo a resumir que la perversión se origina a partir de una neurosis obsesiva cuya característica es el sadismo/masoquismo. Cfr. Freud, Sigmund, "Pegan a un niño". Contribución de la genésis de las perversiones sexuales, p. 175-200. 159 Lacan, J., Kant con Sade (1963), en Ecrits,II, p.1 321 en el mal- que prepara las tesis de Freud. En Kant y en Sade se produce un giro con respecto a la ética tradicional, la ética aristotélica".160 Esta última, se refiere entre otras cosas a una ética basada en el télos. Esta ética de corte finalista, sostiene que el fin último en la vida es la felicidad. Sin embargo, y a pesar de lo que se pudiera pensar de manera superficial sobre la personalidad y obra de Sade: De un análisis total de sus libros descubriríamos en sus pensamientos huellas de todos los sistemas filosóficos. La obra de Sade no es, como muchos creen, un interminable desfile de obscenidades, aunque sus escasos lectores lean solamente esas obscenidades y pasen de largo ante las disquisiciones filosóficas. Sade es, fundamentalmente, un filósofo. Su increíble cultura abarca todas las culturas. En muchos de sus libros es posible hallar virtuales tratados de antropología. Y en todos ellos, la preocupación de la ética. Esa es la gran preocupación de Sade. La ética. No hay un solo personaje del "divino marqués" que no intente convencer al lector de que su actitud vital es la más lógica y adecuada. Todos sus protagonistas, libertinos o virtuosos, sienten la necesidad de justificar dialécticamente sus actos, sus tendencias, sus fantasías, sus vicios o sus virtudes.161 4. Kant, Sade y el psicoanálisis Para la construcción freudiana del sujeto desde su formación psíquica, se necesitó un replanteamiento sobre el bien y el mal a partir de lo que se puede llamar la ruptura kantiana y lo que se elabora en la obra de Sade. "Aquí Sade es el paso inaugural de una subversión de la cual, por picante que la cosa parezca ante la consideración de la frialdad del hombre, Kant es el punto de viraje, y nunca detectado, que sepamos, como tal".162 Para ubicarnos en el entendimiento moral de Kant, "en alemán hay dos términos que aluden al bien –Wohl y Gutte, el bien como Wohl, la acepción es la de sentirse bien, la de bienestar, la del bien como Gutte, es entendido como un valor, como cuando se dice “hacer el bien".163 160 Gerber, Daniel, De Sade a Freud: el mal como un deber kantiano, p.2. 161 Sánchez Paredes, Pedro, El marqués de Sade (Un profeta del infierno), p. 34. 162 Lacan, J., Op. Cit. p.1. 163 Gerber, Daniel, Op. Cit. p.3. 322 Al ser el Wohl la ley del bienestar. Se entendería, en términos freudianos, que dependería del principio del placer. Esto principio nos dice que nuestra actividad psíquica busca evitar el dolor, el malestar y el desagrado.164 Mientras que para Kant la ley moral no puede basarse en él: la auténtica moralidad debe depender de un juicio que rebase el plano del bienestar propio o del otro, de tal modo que el bienestar (Wohl) no puede ser un signo del Bien (Gutte). La ley de la razón práctica debe imponerse a la conciencia en todos los casos, independientemente de las fluctuaciones de lo sentido. Se trata de que la acción no puede tener otro móvil que la ley en su enunciación. Y en este sentido Kant nos dice: El respeto por la ley moral es pues el único y al mismo tiempo indudable móvil moral, así como este sentimiento no se dirige a un objeto de otro modo que solamente por este motivo. En primer lugar, la ley moral determina objetivar directamente la voluntad en el juicio de la razón; pero la libertad, cuya causalidad sólo es determinable por la ley, consiste precisamente en que limita todas las inclinaciones, y en consecuencia la apreciación de la persona misma, a la condición de la observancia de su ley pura. Esta limitación produce entonces un efecto en el sentimiento y provoca una sensación de desagrado, que puede conocerse a priori a base de la moral.165 Por tanto, los afectos como el amor, el odio, la ternura o la piedad y todo lo sentimental no puede ser el criterio para el comportamiento moral, el Gutte. Lo sentimental o patológico es rechazado por la apatía que, para Kant, es la condición indispensable de la virtud. “Más el reconocimiento de la ley moral es la conciencia de una actividad de la razón práctica a base de motivos objetivos, que si no traduce su afecto en acciones, es simplemente porque causas subjetivas (patológicas) se lo impiden".166 La apatía propia del comportamiento moral no bebe entenderse como una condición para la felicidad, sino como lo incondicional mismo de la ley en tanto pura, despojada de todo interés por uno mismo y por el semejante. Esto llevó a Freud a advertir la relación entre el imperativo categórico y el nombre que toma este mandato incondicional, a lo que él denominó super-yo. Este concepto designa a la instancia psíquica caracterizada no sólo como el censor interno, sino como una instancia feroz que se impone al sujeto sin admitir ningún tipo de pretextos para no ser cumplida: "el super-yo, la conciencia moral eficaz dentro de él, puede volverse duro, cruel, despiadado, 164 165 166 Cfr., Sigmund, Freud, Introducción al psicoanálisis, p.305. Kant, Immanuel, Crítica de la razón práctica, p. 118. Ibidem, p. 119. 323 hacia el yo a quien tutela. De ese modo, el imperativo categórico de Kant es la herencia directa del complejo de Edipo".167 En este sentido, "el complejo de Edipo demuestra ser la fuente de nuestra eticidad individual (moral)".168 5. El goce y el deber La ley moral, exige un rebasamiento del placer y la comodidad del sujeto, que no puede concebirse sin una violencia ejercida sobre él, para mayor goce del otro y, finalmente, del sujeto. Esta ley no es la del principio del placer. Sin embargo, "Sade propone como regla de la sociedad absolutamente republicana, que la abolición de la propiedad del hombre sobre el hombre vaya hasta la de cada uno sobre uno mismo y que el derecho al goce sea reconocido sin límites".169 Para esto todos los sujetos tendrían que ser libertinos, por lo que, es preciso entender lo que el término libertino significa en Sade. De una manera general, se llama [libertino], al final del siglo XVIII a quien aparentemente procura no sujetarse al discurso dominante, a las creencias de la religión y a las reglas de las costumbres que se derivan de ella. Sade, si bien se califica a sí mismo como libertino, no cabe enteramente en esta definición: es más que un libertino en la medida que sus escritos revelan la cara reprimida del libertinaje. Lo que la obra de Sade expone es la denuncia de la falsa libertad moral que exaltan los libertinos, pues desconocen su sujeción a una instancia que los gobierna y propone una moral nueva, de estricta obediencia.170 Entonces parafraseando a Lacan171, si el goce fuera reconocido como derecho, la tensión entre el principio del placer y el principio de la realidad que "soporta determinados dolores y renuncia en general a ciertas fuentes de placer"172, caducaría. Es así como podemos ver que Sade rememora a su modo el ideal antiguo de la ética (aristotélica), que no es otra cosa que el egoísmo de la felicidad. Por su parte Kant replantea una forma nueva para la ética, haciendo uso de la razón, que todo lo puede y que es universal. La universalidad de la ley de Kant, es pura, formal. Es el 167 Sigmund, Freud, El problema económico del masoquismo, p. 173. 168 Idem 169 Gerber, Daniel, Op. Cit., p.5. Idem 171 Cfr., Lacan, J., Op. Cit. 172 Sigmund, Freud, Op. Cit., p.305. 170 324 imperativo categórico que demanda que la máxima de la acción del querer subjetivo del individuo, es elevado a lo universal, y no produce contradicción. El ideal de formación del hombre en Kant, no se encuentra inscrito en el goce, sino en la acción virtuosa que confiere al individuo la condición de ser digno de ser feliz. El bien es ceñirse a una normatividad racional y coactiva. "La razón determina la voluntad en una ley práctica directamente, no por intermedio de un sentimiento interpuesto de agrado o desagrado, ni siquiera en esta ley, y sólo el hecho de que pueda ser práctica como razón pura es lo que le permita ser legislativa".173 6. Conclusiones Por todo lo anterior se puede advertir que tanto Sade como Kant, se encuentran en un juego de extremos en lo que concierne al ideal de hombre. Por su parte Sade, pretende el dominio absoluto del principio del placer, dándole rienda suelta a los requerimientos de la naturaleza, pensada como una forma de sujeción sobre la voluntad del otro como objeto de placer y satisfacción en el cumplimiento de su deseo egoísta. Otorgándole la supremacía a la naturaleza como modelo superior de virtud. Esta forma de pensar esta fuera de cualquier forma educativa de formación humana donde no puede haber ningún tipo de ideal más que el de la destrucción mutua. Por otro lado Kant, pretende la dominación absoluta del principio del placer mediante acciones que expresen una excesiva dominación del super-yo sobre el yo. De esta forma el yo se convierte en el objeto de la acción coercitiva del super-yo, de la ley que se tiene que cumplir aún a costa del sufrimiento que causa el desagrado del cumplimiento del deber. El ideal de hombre requiere de una formación que objetivice su sentir, que anule su percepción, con la pretensión de universalizar las repuestas que requiere para sobrevivir, formulando imperativos cargados de excesos racionales, que en última instancia, representan una exagerada e idealista pretensión moralista del papel que tiene el super-yo. Hasta aquí habría que preguntarse, qué papel tiene la educación en esta aparente confrontación entre Kant y Sade desde Jacques Lacan. Desde un punto de vista personal, queda claro que en la formación humana se encuentra de manera constante, una pedagogía del deber y una pedagogía del deseo que dan la oportunidad de formarse un ideal de 173 Kant, Immanuel, Crítica de la razón práctica, p. 38. 325 comportamiento ético. En la pedagogía del deber, se puede decir entonces, que su atención se centra en excluir la pulsión o el sentimiento y todo aquello que el sujeto pueda padecer, en aras del interés por cumplir la ley moral. Y que por su parte la pedagogía del deseo, ejerce la libertad en el placer como motivación de gozar como sujeto y no como objeto en el cumplimiento de dicha ley. FUENTES DE CONSULTA Bataille, Georges, El erotismo, Trad. de Antoni Vicens y Marie Paule Sarazin, México: Tusquests, 2011, 289 p. Gerber, Daniel, De Sade a Freud: el mal como un deber kantiano, http://www.cartap si.org/spip.php?article153, consultado 20 de abril, 2012. Lacan, J., Kant con Sade, en Encrits II, htpp:www.psi.uba.ar/academica/…/sitios…/lacan_kant_con_con sade.pdf, 22p., consultado 20 de abril, 2012. Kant, Immanuel, Fundamentación de la metafísica de las costumbres, Trad., de José Mardomingo, Barcelona: Ariel Filosofía, 1999, 280 p. _____________, Crítica de la razón práctica, Trad., de J. Rivora Armengol, Buenos Aires: Losada, 2007, 248 p. (Grandes obras del pensamiento) Marqués de Sade, Justina o los infortunios de la virtud, Trad. de Isabel Brouard, Madrid: Cátedra, 2001, 369 p. 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Teeteto. 176b. 327 Dentro de toda la obra platónica hay diálogos que se enfocan en su mayoría a tratar el tema de la justicia (dikaiosyne), tales como La República176, Leyes,177 El Político,178 Alcibíades, Critón, etc., e incluso en aquellos que pasan por apócrifos como los diálogos Minos o sobre la ley y el diálogo Sobre lo justo.179 Todos ellos con divergencias y convergencias que sin duda amplían la visión del tema y su importancia para Platón. Uno de los supuestos para la formación del phylax, es decir, el filósofo-rey, que no es otro sino el guardián de la pólis, es que la paideia que éste reciba será en, por y para la justicia, así, es necesario plantear primero la importancia de fundar una nueva pólis en la dikaiosyne y sustentar la episteme propia al phylax. Platón guardó una relación estrecha y cercana con el pitagorismo. El ejemplo que clarifica dicha relación e influencia en la paideia platónica es su amistad con el pitagórico Arquitas de Tarento. Platón llegó, probablemente en el año 390, a Italia, donde entró en contacto con los círculos pitagóricos y sobre todo entabló con Arquitas, el principal representante de la escuela, aquella amistad que continuó siendo afectuosa durante el resto de sus vidas. Arquitas, estratega de Tarento y líder de la Liga italiota de las ciudades de la Magna Grecia que conservaba en la práctica los ideales pitagóricos, debía de representar para él, sin lugar a dudas, la encarnación del rey-filósofo que ya por aquél entonces estaba en el centro de sus ideas políticas, ya sea porque encontraba una confirmación de sus ideas en la creencia pitagórica en el derecho divino de la ciencia a gobernar el Estado, ya sea también porque tenía ahora ante sus ojos una realización, aunque parcial, de sus principios. 180 176 Especialmente el libro I, el cual se considera que pudo haber consistido en un diálogo autónomo por las características estilísticas propias de los diálogos de Platón y que se habría llamado Trasímaco. No obstante, existen especialistas que consideran lo contrario, es decir, que deliberadamente es la primera parte de todo el diálogo educativo y que se habría escrito en un periodo de 20 años. Sobre esa discusión véase Guthrie, W. K. C. Historia de la Filosofía griega IV. Platón. El hombre y sus diálogos: primera época. Biblioteca Clásica Gredos. 1998. pp. 419-420. 177 En el caso de las Leyes, Véase. Vanhoutte, Maurice. La philosophie politique de Platon dans les “lois”. Université Catholique de Louvain. Institute Supérieur de Philosophie. Louvain. 1953. 178 Resulta muy ilustrativo el seminario que impartió Cornelius Castoriadis sobre este diálogo. Castoriadis, Cornelius. Sobre el Político de Platón. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2002. 179 Para los fines de este trabajo no es relevante el problema de la autenticidad del diálogo Sobre lo Justo. En todo caso, habría que resaltar la presencia de la pregunta socrática por la naturaleza de la Justicia ¿ti esti dikaiosyne? Sobre lo Justo 372 a. En lo que respecta a los diálogos que pasan por ser auténticos y su relación con la Justicia, consideramos un excelente trabajo el de W.K.C, Guthrie. Op. Cit. 180 Colli, Giorgio. Platón Político. p. 44. Sobre Arquitas de Tarento Véase Kirk. Raven y Schofield. Los Filósofos Presocráticos. Historia crítica con selección de textos. Gredos. Madrid. 2008. Otra gran influencia del filósofo-rey en Platón viene del pitagórico y rey de Samos; Meliso de Samos. Véase al respecto. Méndez Aguirre, Víctor Hugo. Los Guardianes fuera de Calípolis. En Filosofía y Política en La República. Instituto de investigaciones Filológicas. UNAM. México. 2006. 328 Platón reconoce en las Cartas la influencia pitagórica en su planteamiento del filósoforey lo mismo que testimonia su amistad con Arquitas, en la misma medida en que sabe la influencia que tiene tanto la paideia espartana como la persa.181 ¿De qué manera se relaciona un régimen de vida sumamente disciplinado, con una episteme en específico, con el ejercicio del poder público, es decir, el gobernar a los otros y llevar a cabo ciertos ejercicios espirituales?182 ¿Es verdaderamente original en el pensamiento platónico la Idea de un filósofo-Rey, es decir, del guardián de la pólis; del phylax? ¿Qué relación guarda la fundación de una pólis en la dikaiosyne con una propuesta epistémica y religiosa? La República platónica podría definirse como una epistemocracia natural en su origen. El término epistemocracia bien puede caracterizar a Calípolis (compuesta de las voces kalós: bello y pólis: ciudad-estado), aunque lo cierto es que se trata de una epistemocracia teocrática. De esta manera, si hacemos un binomio de la episteme, de los conocimientos y saberes que posee el phylax gracias a su paideia, con el régimen de vida que lleva, con la manera en que se ha gobernado a sí mismo desde que se prepara para ejercer el poder (cratos), se obtiene lo que bien se puede denominar una epistemocracia, es decir; el phylax ejerce un poder sobre sí mismo lo mismo que sobre los demás, pero no de manera arbitraria, sino gracias a sus propios conocimientos y formación, gracias a su paideia. De esto se desprende una cuestión importante. Y es que el ejercicio del poder sobre uno y los otros es brindado por la paideia, es decir, para que se dé la politeia, es indispensable que ésta sea precedida por una paideia.183 Ahora bien, Platón expone dicha episteme principalmente en el libro VII de La República; Geometría, Música, Astronomía, Dialéctica, etc., aunado a la formación gimnástica, musical y dietética expuesta principalmente en el libro IV. Sólo se puede llegar a ser phylax si se demuestra a lo largo de la formación de los futuros gobernadores cierta 181 Especialmente en las Leyes y Alcibíades I. Véase al respecto a Foucault, Michel. La Hermenéutica del sujeto. Clase del 13 de enero de 1982 segunda hora. También Hadot, Pierre. Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Quizá uno de los mayores helenistas, Jean-Pierre Vernant, Entre Mito y Política. Fondo de Cultura Económica. México. 2002., pone en una relación muy cercana el desempeñar un cargo sacerdotal y paralelamente un cargo público. 183 Cfr. Platón. La República. Libro VII. Passim. 182 329 prestancia; inclinación a un régimen de vida que el resto de la pólis puede calificar de exagerado, duro, etc. DIVISIÓN TRIPARTITA DEL ALMA Y DEL ESTADO Dicho lo anterior, Platón está persuadido de que el régimen político por él delineado es el mejor, y siendo así, todos los demás tendrán que ser inferiores o defectuosos.184 En La República Platón propone una epistemocracia teocrática cuya finalidad es una comunidad de phylax. En las Leyes, propondrá el Consejo nocturno. En cualquier caso, los filósofos-reyes llevan un régimen de vida muy parecido en las dos ciudades utópicas; Calípolis para La República, y Magnesia para las Leyes. Tanto en las Leyes, El Político y La República, además de las condiciones favorables y de su arte (techné), el phylax necesita del apoyo de la divinidad. Es decir, el phylax mantiene una actividad contemplativa y espiritual y paralelamente una función social; primero es la paideia y en seguida la politeia. Ahora bien, el tipo de gobierno que se ejerce sobre los otros es una epistemocracia teocrática por el carácter divino que es intrínseco e inmanente a la episteme del phylax. En la Grecia del siglo V y IV a.C. el ejercer un cargo político, cualquiera que sea, va acompañado del ejercicio de un cargo sacerdotal. En la Esparta y en la Atenas arcaicas, la obra de los legisladores está apoyada y reforzada, por la intervención de personajes que utilizan toda una gama de procedimientos poéticos y religiosos que movilizan la fuerza del canto, encantaciones, rituales de purificación, instauración de cultos y erección de altares para obtener el mismo efecto al que apuntan, por su lado, los estadistas.185 De esta manera, si el filósofo-rey puede ser llamado de esta manera por el carácter sagrado propio de su episteme y su actividad contemplativa, bien sea en La República, bien en las Leyes, su actuar propio debe diferenciarse del de los demás de manera explícita. ¿Cómo diferenciarse de los demás? En realidad Platón un diferenciarse de los demás para asemejarse al Uno –como lo llamará Plotino-. 184 Gómez Robledo, Antonio. Estudio introductorio a La República. UNAM. p. CVII. Los libros VIII y IX de La República son descripciones de constituciones políticas de otras póleis como la Constitución de los atenienses de Aristóteles y La Constitución de los Atenienses de Jenofonte. 185 Vernant, Jean-Pierre. Entre Mito y Política. p. 98. Véase también al respecto Detienne, Marcel. Los maestros de verdad en la Grecia arcaica. Sexto piso. México. 2004. 330 Con esto quiero decir que hay un modo de ser intrínseco a cada estamento que compone a Calípolis y Magnesia. Este modo de actuar y, por tanto de ser, guarda una estrecha relación con la dikaiosyne. Ya que es un acto mismo de justicia el que cada integrante de la pólis actúe conforme a su lugar dentro de la escala social. Así, Dikaiosyne se refiere primordialmente a las realizaciones (actos) entre los hombres (pólis). De aquí que sea razonable buscarla primero en la comunidad y en seguida determinar quién merece el título de Hombre justo. “-Sócrates: sería una suerte, a lo que pienso, el poder leer primero las letras grandes, y fijarse luego en las pequeñas, para ver si resultan ser las mismas. Si existe, según afirmamos, la justicia del hombre como individuo, ¿no habrá también la justicia de toda la ciudad?”186 La Calípolis es virtuosa sí y sólo sí cada uno de los grupos sociales que la integran cumplen con las expectativas cifradas en ella. Para esto, Platón hace una división tripartita a lo largo de toda La República, la división estamentaria que permea el orden establecido en su pólis es la siguiente. La areté propia del filósofo-rey y la filósofa-reina será la prudencia. La valentía corresponderá a los guerreros y guerreras de la pólis y, finalmente, la templanza de los artesanos y artesanas. No obstante y, siguiendo de cerca La República, está la virtud que, de poseerla, se poseen todas las demás. Platón lo expone como sigue: Lo que queda en la ciudad, fuera de las tres virtudes que hemos considerado: templanza, valor y prudencia las virtudes que se corresponden con la división tripartita del alma y de la ciudad, es aquello que a todas ellas les da la fuerza de nacer, y que una vez nacidas, las conserva mientras subsiste en ellas. Ahora bien, lo que dijimos es que la justicia sería la virtud que quedara, después de aquellas tres. 187 La justicia radica en el hecho mismo de ser consecuente entre mis actos y mi naturaleza, es decir, que exista una afinidad entre el lugar que ocupo en la organización y administración de la pólis y mi areté propia. Dicha división la encontramos en la función de cada individuo en relación a su physis. La naturaleza propia de cada individuo determina los actos y las funciones dentro de la organización interna de dicha pólis. Así, es justo que cada uno actúe y se desenvuelva de acuerdo a sus propias capacidades. Las virtudes que se presentan en La República se 186 187 Platón. La República. 368 e. Ibídem. 433 c. 331 corresponden con cada clase social. Aquí asistimos a la división tripartita del alma que se corresponde con la división tripartita de Calípolis tomando como partida la definición de dikaiosyne. La ley (nomos) es el imperio de la razón y reflejo del actual gobierno divino. Tienen que existir “hombres divinos” para la guía del resto de los demás.188 La idea de un filósoforey que ejerza paralelamente una actividad sacerdotal-religiosa, es porque establece que quien ha contemplado las ideas en sí, posibilita el ejercer un poder que, si bien está permeado por una episteme, sin duda es para gobernar sobre el resto de los estamentos establecidos en La República; división que se mantiene idéntica en las Leyes (eso como muestra de la constante de pensamiento referente a la justicia y formación, a la dikaiosyne y a la paideia). Básicamente, por cada división de hombres habrá una virtud que le corresponde, y que solamente en la obediencia y ejecución plena de dicha virtud, el estado funcionará perfectamente. Cuando asentábamos los fundamentos de la ciudad, establecimos como un deber de uniforme observancia, que la justicia (dikaiosyne) es, en todo caso, una forma de deber. Y acuérdate que también establecimos, que cada uno debe ocuparse sólo en una de las cosas de la ciudad: aquella para la que su naturaleza (physis) tiene mayor aptitud nativa […] la justicia consiste en hacer cada uno lo suyo y no entrometerse en lo de los demás. 189 Dicho lo anterior, en el libro I de las Leyes, el ateniense muestra que la salud del Estado no puede fundarse únicamente en la valentía (como sucedió con Esparta), que es la virtud inferior, sino en el cuidado y fomento de las cuatro virtudes cardinales: prudencia (phylax), justicia (de la que deben participar todos), valentía; guerreros (as), y templanza (artesanos).190 Es la misma propuesta de virtudes que en La República. Es importante señalar que, por lo menos, en la división de las virtudes propuesta en La República y Leyes no hay un cambio, por eso la relevancia de resaltar dicha continuidad entre los dos diálogos político-educativos. 188 Platón. Leyes 713 a-714 a. La República VII 508 a-c. Máximo de Tiro. Disertaciones Filosóficas. III, VIII, IX, XXXVIII. Este último pensador que pertenece a la segunda sofística, propone en dichas disertaciones el carácter divino de Pitágoras, Sócrates y Platón, serían estos tres filósofos los que pusieron en contacto la sabiduría divina con el saber de los mortales. 189 Platón. La República. 433 a-b. 190 Estas cuatro virtudes cardinales que Platón expone ampliamente en La República, habían sido expuesto en el Alcibíades 121e-122a, como las virtudes que se enseñan a los príncipes en Persia. Tal vez asistimos aquí a una influencia ya no sólo de la paideia espartana, sino también de los persas. Véase al respecto para obtener una mejor visión sobre el tema de la paideia persa Jenofonte. La Ciropedia. 332 Las virtudes específicas que constituyen la base de toda acción política son: la valentía (Leyes 625 c-635 e) y la templanza (Leyes 635 e- 650 b). Es decir, que para la realización de una politeia ateniense la base debe estar en la valentía y la templanza (Leyes), que constituyen las virtudes correspondientes de La República, la valentía pertenece a los guerreros y la templanza pertenece a los agricultores-artesanos.191 Platón llama concupiscencia (epithimía) al apetito inferior, y al superior, en cambio, lo designa con el nombre de thymos: cólera o coraje, uno y otro subordinados, naturalmente, al imperio de la razón: del lógos. En suma, la pacífica coexistencia de las tres clases propuestas en La República y las Leyes es plausible con la contribución de cada una a la justicia del conjunto, ejecutando su función propia y no otra. EL RÉGIMEN DE VIDA DEL PHYLAX Ahora bien, ¿qué justifica una jerarquización de virtudes? ¿Cuál es el motivo que subyace a someterse a un estamento superior? Básicamente, el régimen de vida de quien será el phylax. “Uno de los males más grandes de la vida política, según Platón, es la ambición material de los políticos. Para Platón, la finalidad que perseguía era el divorcio completo de los poderes político y económico, esperaba obtener una clase de estadistas cuya única ambición fuese gobernar bien.”192 Con esto introduzco un análisis doble, ya que el phylax persigue una doble finalidad cuyo objetivo inicial es asimilarse a Dios y de manera inmediata un desprendimiento de lo material.193 El filósofo-rey, no sólo debe abandonarse a sí mismo para consagrarse al bien común, sino que debe convertirse en un ejemplo de areté para los demás. Sólo en esa medida logrará 191 El Laques constituye un complemente de dicha visión sobre la valentía y la templanza como virtudes para actuar en una politeia ateniense. 192 Guthrie. C. K, William. Los Filósofos Griegos: de Tales a Aristóteles. pp. 126-127. La idea de asimilarse a Dios no solo está expuesta en el Teeteto, en el parágrafo que sirvió de epígrafe a este trabajo, sino casi literalmente en Leyes 716 b-d. En La República vuelve a exponerlo Sócrates en el libro X “De los dioses por lo menos no será olvidado jamás todo aquél cuyo empeño ha sido el de hacerse justo y asemejarse a Dios, mediante la práctica de la virtud, hasta donde es posible a un hombre”. 613 b. 193 333 que sea viable dicha Calípolis. Aquí Platón expone un régimen de vida ascético, en el que el phylax no siente aprecio por la multiplicidad, en el que debe haber una añoranza por el UnoBien. “El filósofo no siente gran aprecio ni por la vida ni por los bienes exteriores. Hay en él un completo olvido de sí mismo, de sus comodidades y placeres para no tener en mira sino el bien público […] los hombres de bien no quieren gobernar ni por riquezas ni por honores”.194 Tenemos así que Platón propone un tipo de vida genuino y unos conocimientos propios del guardián de la pólis. La palabra episteme designa conocimientos verdaderos y válidos, conocimientos que no sean susceptibles de cambio, ni contingentes ni azarosos. Que en conjunción con un régimen de vida exclusivo del phylax, se logra que entren en armonía la sabiduría y el poder, como Platón lo dejó en la carta II “La sabiduría y el poder grande tienden a estar unidos por naturaleza y constantemente se persiguen”.195 EPISTEMOCRACIA Y PAIDEIA Platón, heredero de la ilustración ateniense, estima que sin educación resulta imposible perfeccionar la naturaleza, que sin la paideia correspondiente no se puede exigir areté. De esta manera, lo primero que habría de definir, es, ¿cuáles son las disciplinas que pondrán en camino a la contemplación de las ideas al que será el phylax? La paideia de dicho personaje no sólo es estudio en sentido teórico, sino que irá acompañado de un estilo de vida disciplinado e insobornable como antes se mencionó. Por cierto, mi excelente Adimanto, proseguí, que aunque alguien pudiera tener por importantes los numerosos reglamentos que estamos haciendo, en verdad son todos ellos de poco momento, con tal que se observe aquel solo y grande (méga) mandamiento, o mejor aún, en lugar de grande, suficiente. -¿Cuál es? -La educación (paideia) y la crianza; porque con una buena educación se hacen los hombres discretos, y así penetrarán fácilmente todas estas cosas y otras que por ahora dejamos de lado, como la posesión de las mujeres, el matrimonio y la procreación de los hijos […] La República, una vez ha comenzado con buen impulso, va extendiéndose como 194 195 Platón. La República. 347 b. Platón. Carta II. 310 e. 334 un círculo.196 La buena crianza y educación (paideia), si se mantienen así, producen buenas naturalezas, y éstas a su vez, apegándose a tal educación, tórnanse mejores que las que les han precedido, en todos los aspectos y en el de la procreación. […] es preciso que aquellos que tienen a su cuidado la ciudad, se apliquen a que no se corrompa la educación sin darse ellos cuenta; antes bien han de velar en todo porque no se innove nada, ni en la gimnástica ni en la música, contra el orden establecido. 197 No obstante y en la misma medida en que el phylax debe ser celoso en que no se incluya ninguna innovación en la paideia, vemos que en lo que respecta a la influencia de la paideia espartana en la propuesta político-educativa y filosófica de Platón en La República, es notorio que existe un alto nivel de exclusión y de mentira que deben manejar los magistrados, a fin de que el phylax pueda administrar de mejor manera la función propia a su naturaleza y finalmente, para desempeñar la paideia como corresponde dentro de la politeia platónica. Los mejores (oí aristói) han de acoplarse con las mejores (tés aristés) tan frecuentemente como se pueda, y los peores, al contrario, con las peores; y si ha de mantenerse la calidad superior de la grey, habrá que educar la prole de los primeros, pero no la de los segundos. […] Además, y en cuanto a los jóvenes que acrediten su buena calidad en la guerra o en alguna otra cosa, habrá que darles, con otros honores y recompensas, una licencia más liberal de holgar con las mujeres; lo cual será a la vez un pretexto para que nazcan hijos, en la mayor cantidad posible, de la simiente de tales hombres. 198 EPISTEMOCRACIA TEOCRÁTICA El alma buena actúa según una dirección suprema. El hombre poseedor de dicha “alma buena” es el filósofo-rey. De ahí la tesis tan conocida como ignorada de Platón; los filósofos deben gobernar las ciudades, o los reyes y soberanos hacerse filósofos. En el mismo sujeto deben estar reunidos la sabiduría y el poder, es decir, una episteme y un cratos, no obstante, hay que tener presente que son conocimientos divinos, de ahí que sea nombrada una epistemocracia teocrática. Antes de Platón, ya habían existido varios arcontes, varios gobernadores y oligarcas que reunían bien el binomio sabiduría y poder, por ejemplo; “…los italiotas a Pitágoras; y los lampsaquenos sepultaron a Anaxágoras, siendo extranjero, y 196 Cfr. Vernant, Jean-Pierre. Mito y Pensamiento en la Grecia Antigua. Paidós. En este texto, Vernant propone hacer una interpretación en la que la filosofía presocrática estaría determinando la organización de la pólis. En este caso, que la paideia se extienda desde el centro como un círculo. 197 Platón. La República. 423 c- 424 b. 198 Ibídem. 459 e. 460 b. 335 todavía lo honran hoy en día; y los atenienses, utilizando las leyes de Solón fueron dichosos; y los lacedemonios, las de Licurgo; y en Tebas, una vez que los jefes se hicieron filósofos, también la ciudad fue dichosa.”199 Para Platón, los siete sabios,200que fueron apreciados como gobernantes, legisladores y consejeros políticos, fueron todos formados en una sabiduría lacónica principalmente, una sabiduría filosófica lacónica. Así, los legisladores, gobernantes y el phylax mismo tendrán que ocuparse, por un lado, de los conflictos bélicos con los que necesariamente se encontrarán.201 Es decir, deben recibir una paideia en la que sepa que tendrá que enfrentarse a los enemigos personales internos y externos a la pólis misma. Paralelamente, el phylax debe preocuparse y gobernarse a sí mismo para poder gobernar a los demás.202 A MANERA DE CONCLUSIONES El ejercer el poder sobre los otros como resultado de un modo de vida auténtico y regio, acompañado paralelamente de una episteme que legitima dicho ejercicio del poder, es lo que posibilita que el filósofo se haga rey, o bien que los reyes se hagan filósofos. Es una propuesta platónica en la que paideia, cratos y una episteme se unen formando una triada que llevada a cabo de la manera en que sugirió Platón, se vuelven indisolubles y, principalmente, se vuelve posible vivir en una ciudad bella, en una Calípolis. BIBLIOGRAFÍA *.- Aristóteles. Retórica. 2ª ed. Biblioteca Scriptorum Graecorum et Romanorum Mexicana. UNAM. México. 2010. pp. 287. *.- Castoriadis, Cornelius. Sobre el político de Platón. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2002. 187pp. 199 Aristóteles. Retórica. 1398b. 18-20. 200 Platón. Protágoras. 343 d-e. Los siete sabios: Tales de Mileto, Pítaco de Mitilene, Bías de Priene, Solón de Atenas. Cleobulo de Lindos, Misón de Quenea y como séptimo al espartano Quilón. 201 Tal es el caso de la segunda parte del diálogo Alcibíades. Véase. Foucault, Michel. La Hermenéutica del Sujeto. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2009. 202 Cfr. Foucault, Michel. El coraje de la verdad. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2010. 336 *.- Colli, Giorgio. Platón Político. Sexto Piso. México. 2011. pp. 124. *.- Foucault, Michel. La Hermenéutica del Sujeto. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2009. pp. 539. -El Coraje de la Verdad. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2010. pp. 401. *.- Guthrie, W. K. C. Historia de la filosofía griega IV. Platón, el hombre y sus diálogos: primera época. Editorial Gredos. Madrid. 1990. pp. 595. -Los filósofos griegos: De Tales a Aristóteles. Fondo de Cultura Económica. México. 1994. pp. 189 *.- Platón. Diálogos I. Apología. Critón. Eutifrón. Ión. Lisis. Cármides. Hipias menor. Hipias mayor. Laques. Protágoras. Biblioteca Clásica Gredos. Madrid. 1993. 592pp. -Diálogos VII. Dudosos. Apócrifos. Cartas. Biblioteca Clásica Gredos. Madrid. 2008. 567pp. - Diálogos VIII. Leyes (Libros I-VI). Biblioteca Clásica Gredos. Madrid. 2008. 502pp. -Diálogos IX. Leyes (Libros VII-XII). Biblioteca Clásica Gredos. Madrid. 1999. 362pp. -La República. 2aed. Biblioteca Scriptorum Graecorum et Romanorum Mexicana. UNAM. México. 2007. 347pp. -Teeteto. 1ª ed. Biblioteca Scriptorum Graecorum et Romanorum Mexicana. UNAM. México. 2007. 136pp. *.- Vanhoutte, Maurice. La philosophie politique de Platon dans les “lois”. Université Catholique de Louvain. Institute Supérieur de Philosophie. Louvain. 1953. 466pp. *.- Vernant, Jean-Pierre. Entre Mito y Política. Fondo de Cultura Económica. México. 2002. 287pp. LAS METAS DE LA EDUCACION EN LAS RAÍCES DE LA CULTURA OCCIDENTAL Dr. René Rogelio Smith 337 ([email protected]) Universidad Adventista del Plata 3103 Libertador San Martín, Entre Ríos, Argentina RESUMEN Las metas de la educación, de las cuales la pedagogía tradicional se ocupaba profusamente, se fueron disipando desde hace unas cuantas décadas. La incertidumbre teleológica y el malestar de la educación son concomitantes. Pero la pedagogía se sustenta en la cosmovisión desde la cual se construye. Esta cosmovisión también ampara una concepción de tiempo, componente imprescindible dentro del cual se inscriben las metas de la educación, porque no hay fines que se realicen fuera de un trayecto temporal. A esto se adscriben los proyectos pedagógicos que pretenden logros. La cultura occidental estableció un patrón, muchas veces contradictorio, que condicionó la ausencia y también la presencia de los fines de la educación, según en qué cosmovisión se sitúa. En la presente reflexión, luego de exponer las concepciones de tiempo que provienen de las vertientes ancestrales más destacadas en Occidente, la griega y la hebrea, se considera que el concepto griego prevaleció en las bases de la formación del sistema educativo de Occidente, diluyendo los fines de la educación, en razón de la atemporalidad defendida en sus sistemas filosóficos. La perspectiva hebrea, también constituyente de la cultura occidental, brindó un ángulo propio, en defensa de un tiempo que transcurre, un tiempo de eventos. El concepto de tiempo de raíz hebrea y el concepto de tiempo de fundamento griego, hicieron un proyecto pedagógico incompatible, y ponen, junto a otros factores, a la educación bajo sospecha. Palabras clave: teleología de la educación – educación occidental – historia de la educación – concepto de tiempo en educación I. INTRODUCCION Las cavilaciones que el hombre hace sobre sí mismo y sobre la educación, siempre recorrieron un espectro amplio. El optimismo y el pesimismo son sus límites. Y, mientras que el primero es apto para la imaginación, el segundo procura sustento en la observación. 338 Los estudios en el área varían sus acentos. Por una parte la euforia por la cultura planetaria parece anticipar una sociedad mundial confiada. Por la otra, el malestar de la cultura, el desfase social, los cuestionamientos de valores y la crisis de los sistemas, originan dimensiones inquietantes. La educación del hombre y su proyección no puede quedar ajena a los fenómenos mundiales. De hecho forman parte de la discusión internacional. Y mientras se admiten problemas profundos, aumenta el esfuerzo en la búsqueda de nuevos paradigmas pedagógicos que hagan creíble la posibilidad de educar a las personas. Este fenómeno de la crisis de la educación tuvo su espacio de discusión oficial desde la realización de la Conferencia Internacional sobre la Crisis de la Educación, realizada en Williamsburg, Virginia, Estados Unidos, en 1967. Las investigaciones, publicaciones, congresos y jornadas pedagógicas que se sucedieron, rubricaron las vicisitudes en el campo de la educación y todavía justifican su análisis.203 Corresponde decir que nuestra pedagogía siempre atendió el tema de la esperanza como uno de sus capítulos. Lo hizo en nombre de los fines que direccionan la educación del hombre. Un inexplicable y cauteloso silencio caracterizó, sin embargo a la teleología de las últimas décadas; como si se hubiesen apagado los proyectos, o como si se acabaran los espacios hacia los cuales apuntar. El objetivo de esta comunicación se centra en la búsqueda y exposición de lo que en este trabajo se considera como el meollo del malestar en la educación, pero delineado desde las bases de la cultura occidental. Entendiendo que las dos grandes y más destacadas vertientes del pensamiento ponentino nos llegaron a través de los griegos y de los hebreos, los siguientes planteos se han de apoyar en estos para el análisis. Delimitando el espectro de categorías posibles, esta reflexión abordará la concepción de tiempo sobre la cual se construyó la pedagogía occidental. El ámbito de la temporalidad y sus consecuencias no es neutral. Su percepción organiza la teleología de la educación. Hablar de los escollos de la educación, implica, pues, la obligatoria tematización del tiempo. La importancia de esta consideración no es menor porque sus 203 Las publicaciones de Philip H. Coombs son ya clásicas al respecto. La primera se publicó en 1968 por Oxford University Press, bajo el título The World Educational Crisis: A Systems Analysis. 339 repercusiones están vigentes hoy, y se agudizan junto a otros problemas sociales y culturales, cuyas raíces también se dispusieron en la historia lejana, en la cuna de la civilización occidental. Aunque esta reflexión queda acotada, no se descartan otras vetas particulares que, entre aciertos y falencias, también configuraron nuestra cultura en general y a la educación en particular. II. PROYECTO Y CRISIS Hablar de crisis implica, al menos en forma subyacente, la percepción de un estado exento de crisis. Supone un estado de realización posible que satisfaga las expectativas, sean éstas construcciones racionales creadas, o sean necesidades profundas propias del ámbito emocional. Estas expectativas organizadas de algún modo se constituyen en proyectos. Concebir un proyecto implica la esperanza de que las propuestas y esfuerzos puedan concluir en coincidencia con las aspiraciones. Las expectativas suponen tiempo: un lapso de realizaciones durante el cual se concretarían las ambiciones. Un proyecto es esperanza. También es tiempo. No hay esperanza sin tiempo. Luego es reconocido como historia, definida como éxito o como fracaso con respecto a lo proyectado. Por eso, el abordaje de la crisis involucra un tiempo que muestra lo ocurrido con respecto a lo esperado. Este aspecto es de especial importancia para la educación. Pero las metas hoy cuentan con trayectos difusos. Desde que John Dewey,204 anunció la ausencia de fines de la educación, hoy la práctica educacional sigue, pero como bajo inercia de la fuerza que resta. Los cánones teleológicos se fueron desgastando. Sólo quedaría activar la imaginación para construir otra esperanza, otros proyectos, sin saber si por ventura éstos provocarían nuevos desconciertos. Bien advierte Adriana Puiggrós que no han aparecido nuevos sujetos sociales o políticos en condiciones de ofrecer una propuesta pedagógica. Y advierte que ante la crisis la única forma de interpretarla y comprenderla reside en colocarse en la perspectiva del fin de nuestra cultura, es decir, vivir los sentimientos apocalípticos que nos abarcan 204 John Dewey. Democracia y educación. Buenos Aires: Losada, 1971. 340 cuando reconocemos la imposibilidad de cerrar las explicaciones en torno a algunas de las teorías que nos constituyen.205 El planteo principal del problema, sin embargo, yace en canales mucho más profundos. ¿Es posible construir el proyecto educativo en la concepción de tiempo que la cultura de Occidente asumió? El diseño general de la Modernidad se construyó en un amplio margen de racionalidad rigurosa de aquello que llevaría a la humanidad a su mejor realización por el sendero del progreso indefinido. Daba por sentado que los conflictos menores, serían instancias intermedias provisorias o dislocaciones parciales que quedarían superadas en el transcurso de los procesos. Así lo afirmó más tarde, Durkheim, por ejemplo.206 La crisis como desmembramiento y desintegración no tuvo lugar en el pensamiento de la Modernidad. Sus presuposiciones se nutrieron principalmente del entramado filosófico de la antigua Grecia, pero contó también con recursos entregado por los antiguos hebreos, especialmente en la percepción de la esperanza. Al respecto, Beriain (2000) afirma: “Hebraísmo y helenismo: entre estos dos puntos de influencia se mueve nuestro mundo. Unas veces siente más poderosamente la atracción de uno de ellos, otras veces la del otro; el equilibrio entre ellos raramente existe”207. La cosmovisión griega partió de unos presupuestos con los cuales procuraría interpretar lo existente pero sin éste. Su particular estilo de creencias los involucró en una búsqueda racional, metafísica, evasiva. Buscaron las esencias. Por su parte, los hebreos también disponían de una cosmovisión desde la cual desarrollaron una filosofía. La perspectiva hebrea orientó la reflexión sobre la existencia.208 Siendo que la concepción de tiempo puede ser determinante en la lectura de la problemática filosófica de la educación, vamos a detenernos en ésta desde estas dos cosmovisiones. Pasemos a considerar el problema del tiempo, en tanto constituyente 205 Adriana Puiggrós. Imaginación y crisis en la educación latinoamericana. México: Alianza Editorial Mejicana, 1990, 51. 206 E. Durkheim. Educación y sociología. París: Alcan, 1926. 207 J. Beriain. La lucha de los dioses en la modernidad. Barcelona: Anthropos 2000, 143. 208 René Smith. El proceso pedagógico. Montemorelos: Universidad de Montemorelos, 2005, caps. 1 y 2. 341 fundamental de la teleología que, a su vez, es tiempo. Dos presuposiciones básicas se han ensayado para aprehender significativamente las cosas:209 a) la temporalidad, propia del pensamiento hebreo, y b) la atemporalidad, presuposición básica del griego. III. LA PEDAGOGÍA ATEMPORAL La fuerza de las categorías griegas, y luego greco-romanas, afianzadas posteriormente desde la religión medieval europea, configuró el pensamiento ponentino con una fuerza inusitada. Viene al caso como ilustración, una expresión de Whitehead, quien, al comentar el pensamiento platónico aseguró que la filosofía de Occidente no es sino una serie de notas de pie de página a los escritos de Platón.210 Desde los anticipos de Parménides y pasando por Platón y Aristóteles, la Verdad, es decir la realidad última, es inmutable indestructible, completa, no deviene, es inmóvil, es atemporal. Esta posición les permitió eliminar la tan temible contingencia. Los hechos no serían otra cosa que imitación de la realidad. La realidad nunca quedaría afectada por lo contingente: por el contrario quedaría condicionada indefectiblemente por la realidad última que sería atemporal. En esta postura el tiempo es una adversidad que se corresponde con la materia. Reuniendo distintas expresiones de la filosofía griega, se puede afirmar que ese tiempo de los griegos está fijado al destino, teñido de pesimismo, ahistórico, como un presente eterno.211 Desde el plano ontológico, el pasado y el futuro pierden todo sentido. El hombre sintió el terror por la historia; por esta razón la abolía periódicamente para regenerarla en el eterno retorno.212 Pero al mismo tiempo manifestaba el pánico por el futuro y la fobia por el movimiento, cayendo irremediablemente en la impotencia total para crear e innovar. 209 F. Canale. A Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presupposition. Berrien Springs, Michigan: Andrews University Press, 1983. 210 Citado por R. Smith. El acceso a la educación primaria inicial en el marco de la regulación pedagógica. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba (tesis doctoral), 1994, 49. 211 Mario Pereyra. La esperanza-desesperanza como variable diagnóstica y predictiva del proceso saludenfermedad. Córdoba: Universidad Católica de Córdoba (tesis doctoral), 1995. 212 M. Eliade. El mito del eterno retorno. Buenos Aires: Planeta, 1985. 342 Desde que los actores del Renacimiento tímidamente redimensionaron el significado de la existencia, y se vieran un poco más libres de la férula eclesiástica, el hombre comenzó a construir su propio proyecto en el marco de un secularismo creciente. El hombre se hizo cargo de su situación. Esta actitud no lo eximió de las categorías del pensamiento heredado. Estas permanecieron subyacentes. Luego permearon inconscientemente sus reflexiones y sus actos. Y así pasó a la Modernidad. Pero todavía es necesario mencionar un absurdo más. Y se sitúa en el campo de la antropología. Dados los límites de este trabajo, bastará con esbozarlo. El dualismo antropológico griego fue una ingeniosa explicación para colocar al hombre fuera del tiempo. Le otorgó alma atemporal. Construido, así, se pretendió liberar a las personas de las trabas de lo corpóreo. De esta manera se resolvía la dolorosa pluralidad que imponía la contingencia. De este modo el cuerpo, la materia, fueron particularmente despreciados. Así el hombre quedó libre del tiempo, inscripto en la atemporalidad. Esta percepción fuertemente afianzada en el Medioevo, negó el cuerpo y concluyó negando al hombre del tiempo. Esta manera de concebir el tiempo (concepto definiente, luego, de la teleología de la educación) provocó en nuestra civilización lo que algunos han caracterizado como "cortocircuitos":213 La atemporalidad fue incompatible con el tiempo de la vida. Sin tiempo no hay proyecto posible. En la atemporalidad no se construyen esperanzas. Y caducan los fines de la educación. En esta cosmovisión el hombre imaginado no coincidió con el que vive en el tiempo. Cabe señalar que la problemática heredada no se ha extinguido. En razón de injustificados desvaríos de las corrientes del pensamiento contemporáneo, el problema vuelve a aparecer, a veces reeditado en ámbitos místicos y esotéricos, en la búsqueda sincera de respuestas coherentes.214 Pasando este problema al telón de trasfondo que motiva estas reflexiones, es necesario destacar que un proyecto no se construye al margen de la cosmovisión imperante. En toda nueva propuesta se infiltran presuposiciones históricamente afianzadas que involuntaria e insensiblemente se hacen presentes. Estos elementos ancestrales permean a la educación sostenida y condenada al mismo tiempo. Todo proyecto es una opción que se enmarca en el 213 Enrique Espinosa. La concepción de tiempo en el pensamiento hebreo. Chillán: Universidad Adventista de Chile, s.f. 214 J. Metz. "The End of Time?" Univeritas. Vol. 1, pp. 52-57, 1994. 343 tiempo. Luego se espera algún resultado. El proyecto cargado de expectativas genera un campo teleológico. Pero el tiempo ausente amarra los fines y anula las metas, definiendo estructuras que subyacen, tamizan y eligen los contenidos. Así la concepción de tiempo condiciona o anula las metas. La acusación más dura que afecta al sistema educativo en los finales de la Modernidad está vinculada con la incapacidad de fijar planteos teleológicos coherentes para la educación. La alternativa que queda es la repetición eterna de los desfases (al estilo del eterno retorno del tiempo griego) en un afán por borrar las incongruencias y los desajustes. Un sistema teleológico incompatible se afianzó para un tiempo que transcurre, para un educando temporal que exige tiempo y materia. La particular concepción de materia que Occidente heredó de la cultura griega no favoreció el trazado de la teleología educativa. Por eso pretendió desarrollar sus actos educativos fuera del tiempo. La educación concreta fue hasta aquí un conflicto entre la temporalidad y una evasión de la realidad. Construida como superestructura atemporal, siempre apareció como neutra, aséptica, descomprometida con lo material y con el mundo. Esta pretensión ya implicó la abolición de la neutralidad. Y aunque la pedagogía contemporánea procuró su corrección, demasiado a menudo la educación continuó siendo el templo al cual sólo concurrieron las almas descarnadas (en tanto partícipes del mundo inteligible). Luego se sobredimensionó el intelecto. Los cuerpos fueron negados en tanto considerados sede material y concreta del mal. Esta cosmovisión del mundo griego fuertemente protegida por la cristiandad helenizada, superó las fronteras de la Edad Media. Esta proyección que penetró nuestros tiempos está adecuadamente presentada a partir del análisis de los planes de estudios habidos a lo largo de la historia occidental.215 El alma incorpórea, atemporal, pura esencia, condición impuesta por la religión de la cristiandad (creída como la única "parte" compatible con la imagen de Dios), fue la parte privilegiada de la educación. Este invento que separa al hombre en dos naturalezas distintas, fuertemente defendida también por Descartes, pilar de la Modernidad, coronó el proyecto educativo de Occidente fuera del tiempo, deteriorando sustancialmente el diseño teleológico de 215 Véase J. Dolch. Lehrplan des Abendlandes. Zweieinhalb Jahrtausende seiner Geschichte. (El plan de estudios de occidente. Dos milenios y medio de su historia). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1982. Véase también J. Wächter. Wom Zweck der Erziehung. (De la finalidad de la educación). Hildesheim, Olms Verlag, 1991 344 la educación.216 Al diseñar la pedagogía en un tiempo fuera del tiempo, debilita toda motivación educadora. Los proyectos sin tiempo posible, con un hombre atemporal, constituyen la raíz de la crisis en la cual se debate la educación. Luego la desintegración del proyecto es el impuesto que queda por cobrar. IV. APERTURA DE LA BUSQUEDA Antes que irrumpieran los planteos de la Posmodernidad, Eduard Spranger (1882-1963), influyente pedagogo de varias generaciones de educadores occidentales, evaluó con fuerza positiva las peculiaridades de la herencia griega para nuestros tiempos. Afirmó que la educación en general “puede considerarse siempre como una institución emplazada fuera del trajín mundano…”217 y luego explica: El hecho de haber adjudicado a la cultura greco-romana semejante posición dentro de la escolaridad europea hasta mucho después de la Edad Media [destaca el rol del colegio humanista clásico], se debe esencialmente a tres razones: se trata de una cultura indiscutiblemente fecunda y elevada; en muchos aspectos decisivos constituye la base histórica de nuestra cultura cristiano-europea; la cultura antigua representa una cultura acabada en el sentido de que sus luchas ya no son actuales sino pueden considerarse como terminadas. Luego la cultura greco-romana se ha convertido, para nuestros tiempos, en un enorme depósito de bienes culturales que, siendo profundamente asimilados por nosotros, sin dejar de ser modelos, por decirlo así, de una cultura ajena, ofrecen un abundante material de ejercitación para aquellos que alguna vez habrán de desempeñar, en nuestro presente, un papel de guías espirituales.218 Acerca de la simbiosis helenístico-cristiana se han hecho prolijas descripciones relacionadas con el trasvasamiento que transformó la cosmovisión hebrea bíblica del cristianismo original hacia la plataforma de base griega durante la Edad Media. Las 216 Véase G. Sepúlveda. "El paradigma de la educación actual". La educación. OEA, Nº 104, 1989. Eduard Spranger. Espíritu de la educación europea. Buenos Aires: Kapelusz, 1961, 111; la cursiva pertenece al original. 217 218 Ibid. 345 investigaciones hechas al respecto eximen de mayores comentarios aquí.219 A pesar de la fuerza del pensamiento griego, históricamente queda demostrada la incidencia del hebraísmo en nuestra civilización. Occidente c aptó las formas de monoteísmo, los conceptos de bien, los principios de la moral, los conceptos de revelación, los principios de la parousía, etc., todos ellos provenientes principalmente de la cosmovisión hebrea, y por lo tanto inscriptas en formas de tiempo vivencial, que transcurre. Pero también es necesario recordar que mientras avanzaban las formas helenizadas, la calidad del aporte del pensamiento hebreo antiguo quedó relegado a la espera de su turno. Sin embargo un reconocimiento tardío vuelve a poner a la educación en el marco de la mirada hebrea. Mèlich comenta al respecto: ¿Qué originalidad presenta el pensamiento hebreo que pueda ser rescatado para la construcción de una teleología en crisis? “Occidente ha olvidado la importancia de lo religioso. La cultura europea se ha quedado solamente con una cara de la moneda, extirpando todo elemento religioso y sagrado, como clave hermenéutica que haga posible su comprensión, y la educación occidental ha sucumbido a esta enorme falacia. La Biblia es absolutamente necesaria para comprender la pedagogía occidental, nuestros mundos de la vida. Sin ella el hombre contemporáneo queda huérfano, bastardo.”220 Los hebreos de la antigüedad entendieron al tiempo como experiencia y al futuro como meta, con la conciencia de avanzar hacia un fin, en una concepción de tiempo lineal, nunca cíclico. Su cosmovisión estuvo cargada de las ideas de continuidad y progreso, de improvisación y de "inseguridad radical", siempre abiertos al campo de lo posible, pero con un referente exterior: Dios. 221 También la divinidad está comprometida con la historia. De allí que el fenómeno del profetismo no sea una opción sino la línea de seguridad y de orientación que el pueblo asumió para abordar el futuro y resignificar el pasado histórico. Para los hebreos el tiempo es más una cuestión de ritmos que de ciclos. La existencia es fundamentalmente temporal. Mientras que los griegos se sienten atraídos por la peculiaridad y la esencia de las cosas, a los hebreos les fascinan los eventos. Mientras que para los griegos el tiempo es una abstracción para los hebreos es una sucesión de hechos. Hasta Dios es temporal 219 220 221 Véase E. Dussel. El dualismo en la antropología de la cristiandad. Buenos Aires: Guadalupe, 1974. Mélich. Ob. cit., 174; la cursiva corresponde al original. M. Pereyra. Ob. cit. 346 en tanto que no actúa fuera del tiempo. Lo que está fuera del tiempo no existe.222 No hay dualismos posibles. Para el hebreo el cambio y la contingencia son fenómenos que responden a una legalidad global con explicación coherente, compatible con el tiempo que no es ajeno a la eternidad. Esto pone a la educación en un marco teleológico destacado. No hay vacíos porque el tiempo secuenciado proféticamente toma coherencia y orienta un proceso que lleva a algo: son los fines. V. CONCLUSION Mientras que la educación sistemática avanzó por los carriles de la cosmovisión griega condicionada por la fuerza expansiva de un cristianismo fuertemente helenizado, la cosmovisión hebrea, también incidente en la cultura ponentina, había quedado parcialmente replegada. De los griegos hemos heredado un concepto de tiempo ahistórico, y un hombre sin tiempo, sin proyección y sin futuro, determinando la crisis de la educación. Ésta, sin parámetros, y con metas truncadas por el "no tiempo" de los griegos la empuja a los bordes de la crisis. La teleología de la educación, como estructura de sentido pedagógico para la educación contemporánea pareciera haber agotado los recursos y acabado el imaginario. Ante esta conjunción se hace válida la revisión de la cosmovisión hebrea, desde la cual es posible reconceptualizar el problema del tiempo, categoría obligatoria de la educación como proyecto. Seguramente los pedagogos, y los responsables de la educación hemos de usar este tiempo de gracia para efectuar los replanteos pertinentes, cuyas líneas quedan aquí esbozadas. 222 J. Metz. Ob. cit. 347 El debate en torno a la distinción entre educación y adoctrinamiento en la tradición analítica del siglo XX. Manuel Amado Laura Mesa Universidad Nacional de Colombia RESUMEN: A mediados del siglo XX, gracias a las publicaciones inaugurales de filósofos como Charles Hardie, Richard Peters, Paul Hirts y John Wilson, emerge el movimiento de la filosofía analítica de la educación. Éste se caracterizó por enfocar la discusión en el análisis del uso en el lenguaje corriente de la palabra “educación” y la utilidad de este análisis para decidir cuestiones fundamentales como determinar si una persona está bien o mal educada, evaluar la legitimidad de prácticas presuntamente educativas y justificar la elección de un currículo (el problema de lo que debe o no ser enseñado). Los objetivos de este trabajo son: primero, presentar una de las propuestas más influenciales y discutidas en la tradición analítica; a saber, la concepción de educación como iniciación a una forma de vida, defendida por Peters (1965, 1973a, 1973b) y la distinción entre educación y adoctrinamiento implicada en esta propuesta. Segundo, proponer una solución a los problemas que, según los críticos, la concepción de Peters enfrenta. Estos problemas, principalmente, son: I) el concepto de “educación”, como muchos conceptos, es dependiente del contexto social, de modo que cualquier concepción de educación, como la de Peters, será 348 o bien incorrecta, o sólo aplicable a un contexto reducido. Consecuentemente, cualquier concepción de educación será incapaz de responder a las cuestiones fundamentales arriba mencionadas. II) La idea de la educación como iniciación implica formas de adoctrinamiento (en sentido peyorativo) y, en consecuencia, el concepto de educación no puede ser un concepto normativo positivo, contrario a lo que se esperaría que fuera. El resultado principal esperado es una revisión del análisis de Peters que no sea susceptible a las críticas sobre su aplicabilidad a diversos contextos sociales y sobre su utilidad para sugerir respuestas a cuestiones fundamentales de la práctica educativa. Adicionalmente, se pretende cuestionar la idea de que la educación como iniciación implique adoctrinamiento (en sentido peyorativo). PALABRAS CLAVE: Educación, Filosofía Analítica, Adoctrinamiento, Iniciación. 1. FILOSOFÍA ANALÍTICA DE LA EDUCACIÓN La filosofía analítica no es tanto una escuela de pensamiento como un método o estilo de hacer filosofía. De acuerdo con este método, la aclaración de conceptos es fundamental para la actividad filosófica. Si bien la aclaración de conceptos se práctica desde Sócrates, para el filósofo analítico es necesario un riguroso análisis en el que se aplique las herramientas de la lógica formal en la evaluación crítica de argumentos y premisas tanto explícitas como implícitas en un discurso. Aunque los autores clásicos analíticos como Frege, Russell y Moore tratan temas específicos como la referencia lingüística y el contenido mental, la filosofía analítica se ha aplicado a una gran diversidad de temas de interés filosófico, incluyendo el tema de la educación. Es relativamente reciente la entrada de la filosofía analítica en el campo de la educación. Uno de los trabajos que marca los inicios del movimiento analítico de la educación es Truth and Fallacy in Educational Theory, escrito por C.D. Hardie y publicado en 1941. Hardie pone de manifiesto que es necesario partir del análisis del lenguaje ordinario para desarrollar una teoría educativa. Después de Hardie, a mediados del siglo XX, gracias a las publicaciones inaugurales de filósofos como Richard Peters, Paul Hirts y John Wilson, se consolida el movimiento de la filosofía analítica de la educación. Éste se caracterizó por enfocar la discusión en dos frentes: el primero es el análisis del uso en el lenguaje corriente de la palabra “educación” y la utilidad de este análisis para decidir cuestiones fundamentales como determinar si una persona está bien o mal educada, evaluar la legitimidad de prácticas presuntamente educativas y justificar la elección de un currículo (el problema de lo que debe 349 o no ser enseñado). El segundo frente es la posibilidad de una justificación no-instrumental de la educación, es decir, la posibilidad de mostrar que la educación es valiosa en sí misma. Preeminente en el contexto anglosajón es el trabajo de Richard Peters, quien desarrolló el análisis del concepto de educación más influyente y controversial en la tradición analítica. La importancia del trabajo de Peters radica tanto en el detalle y rigor de su análisis como en su insistencia en la idea de que muchas cuestiones acerca de la práctica educativa pueden ser resueltas una vez se resuelvan cuestiones puramente conceptuales. Los objetivos de este trabajo son: primero, presentar la concepción de educación como iniciación a una forma de vida defendida por Peters (1965, 1973a, 1973b) y la distinción entre educación y adoctrinamiento (en sentido peyorativo) implicada en esta concepción. Segundo, proponer una solución a los problemas que, según los críticos, la concepción de Peters enfrenta. Estos problemas, principalmente, son: I) el concepto de “educación”, como muchos conceptos, es dependiente del contexto social, de modo que cualquier concepción de educación, como la de Peters, será o bien incorrecta, o sólo aplicable a un contexto reducido. Consecuentemente, cualquier concepción de educación será incapaz de responder a las cuestiones fundamentales arriba mencionadas. II) La idea de la educación como iniciación implica formas de adoctrinamiento (en sentido peyorativo) y, en consecuencia, el concepto de educación no puede ser un concepto normativo positivo, contrario a lo que se esperaría que fuera. 2. SENTIDOS DE EDUCACIÓN, INICIACIÓN Y ADOCTRINAMIENTO Como muchos términos del español, y de cualquier otro lenguaje natural, el término “educación” es semánticamente ambiguo y vago. El término es ambiguo porque al figurar en distintas oraciones puede expresar sentidos distintos y es vago porque aun cuando su sentido fuera único, los límites entre lo que es y no es educación tienden a ser difusos (lo cual no implica, al menos no inmediatamente, que no existan casos claros en los que el término se aplique sin mayor discusión). Se pueden distinguir al menos tres sentidos diferentes en el uso cotidiano del término “educación” (y sus afines: “educar”, “educador”, “persona educada”). El primer sentido, y probablemente el más amplio, es un sentido sociológico que comprende todas aquellas prácticas implicadas en la crianza de las personas en una sociedad. Estas prácticas pueden desarrollarse en instituciones educativas, pero pueden también ejercerse, y se ejercen, en 350 sociedades en las que no existen escuelas formales: sociedades en las que la familia o la comunidad juegan un rol central en la aculturación de los niños. En este sentido de “educación” es irrelevante que los contenidos (creencias, doctrinas) adquiridos sean falsos o injustificados, y que las prácticas adquiridas (rituales, costumbres, hábitos, influencias) sean moralmente cuestionables desde un punto de vista externo o no contribuyan al mejoramiento del carácter o la mente de un individuo. Así, “educación” en este sentido es similar a, y seguramente intercambiable con, términos como “crianza”, “culturización” y “socialización”. Una oración como “Fue educado como un nazi”, que parece a primera vista chocante, puede ser más naturalmente parafraseada mediante la oración “Fue criado como un nazi”, sugiriendo que una práctica (o serie de prácticas) de socialización se han llevado a cabo en, o han sido inspiradas por, un entorno permeado por la ideología nazi. El segundo sentido de “educación”, que puede solaparse en algunos aspectos con el sentido anterior, es un sentido institucional. En este sentido se agrupan los procesos en los que participa una persona vinculada a la escuela o a una similar institución formal. A menudo es éste el sentido que se invoca en frases que se usan para cuantificar o cualificar la educación como “Está en el nivel medio de educación”, “Lleva más de diez años de educación”. Este sentido es sugerido también en frases despectivas como “Todos esos años de educación no han servido para nada”, en las que hay una referencia implícita a la escolaridad (colegio, universidad, etc.). Hay aún otro sentido de “educación” que, sin ser tan amplio como el sentido sociológico, hace inteligible oraciones como “Asistí a la escuela, pero no tuve educación” y “Obtuve buena educación aunque no asistí a la escuela”, oraciones que resultarían contradictorias de ser interpretadas bajo el sentido institucional. Este tercer sentido de la educación involucra un refinamiento o ilustración general que puede no ser desarrollado en la escuela ni ser infundido en la crianza o, al menos, no exclusivamente. Es justamente bajo este sentido que se valora si una institución es o no una buena institución ‘educativa’, y es éste el sentido de “educación” que ha sido protagonista en la tradición analítica de la filosofía de la educación y, particularmente, en el controversial análisis de Richard Peters (1965, 1973a, 1973b). Según Peters, este tercer sentido de “educación” lo debemos entender en términos de una iniciación a formas de pensamiento públicas y deseables articuladas en el lenguaje. Esta iniciación, aunque puede implicar socialización, se diferencia de otras formas de socialización al pretender, deliberadamente y de manera consciente y voluntaria por parte del educado, el 351 desarrollo de estados mentales caracterizados por conocimiento y entendimiento amplios, así como de actitudes emocionales apropiadas. Para lograr una mayor comprensión del análisis de Peters es conveniente caracterizar su propuesta mediante los criterios puntuales que incorpora. Esquemáticamente, Peters fundamenta su análisis de la educación como iniciación en una distinción terminológica hecha famosa por el filósofo Gilbert Ryle (1949), y provee tres criterios que, presuntamente, toda práctica ‘educativa’ merecedora de ese título debe cumplir. En lo que resta de esta sección explicaremos la distinción Ryleana y los mencionados criterios de Peters. De acuerdo con Ryle (1949: 113-114), entre los verbos de acción pueden encontrarse dos tipos de términos: los términos de logro y los términos de tarea. Mientras que los términos de tarea designan prácticas específicas cuya realización no implica éxito o fracaso, los términos de logro no seleccionan un conjunto específico de prácticas o actividades, sino un resultado o logro que puede ser obtenido por la realización de alguna actividad. Los términos de logro, por oposición a los de tarea, al ser aplicados correctamente implican el éxito de la actividad. Por ejemplo, el término “convencer” es un término de logro. Por un lado, “convencer” no designa una actividad específica que constituya su satisfacción: se puede convencer de varias maneras, como rogando o argumentando. El término “convencer”, más bien, designa un logro obtenido gracias a la práctica apropiada de una actividad. Así, cuando decimos “Argumentamos el punto y convencimos” no estamos haciendo dos cosas, argumentar y convencer, sino sólo una, argumentar de una manera apropiada. Por otro lado, “convencer exitosamente” resulta redundante, pues convencer a alguien de algo implica el éxito de la tarea que se llevó a cabo para este propósito. No sucede lo mismo con el verbo “argumentar”, verbo que designa una tarea específica pero que no implica éxito: es perfectamente inteligible argumentar mal y no es nada redundante decir que se ha “argumentado exitosamente”. El verbo “argumentar”, a diferencia del verbo “convencer”, es un término de tarea, mas no de logro. ¿Es el verbo “educar” un término de logro o sólo un término de tarea? La respuesta de Peters es que “educar”, en el sentido en consideración, es un término de éxito. Si Peters tiene razón, son dos las consecuencias que se siguen de esto. En primer lugar, “educar” no designa una o varias prácticas específicas y, en consecuencia, educar no está ligado necesariamente a ninguna de ellas: educar no implica necesariamente entrenar, instruir, o alguna otra práctica o transacción específica entre estudiantes y profesores; más bien, la educación es un logro que 352 se obtiene por la aplicación apropiada de alguna o algunas de estas prácticas. Se puede, así, educar de muchas maneras. Por esta razón, Peters escoge el término “iniciación”, pues es lo suficientemente general para englobar las muy diferentes prácticas que pueden conducir a la educación de una persona. En segundo lugar, no es posible que alguien se eduque y falle, así como no es posible ganar una carrera y fallar en hacerlo (aunque se puede, claro, correr la carrera y fallar). Si alguien pasa por los procesos apropiados para ser educado, no puede haber fallado en educarse. En síntesis, “educar”, aunque no designa una actividad específica, sí denota un tipo de logro específico que la aplicación apropiada de alguna u otra actividad puede alcanzar. Siguiendo a Peters, el sentido mismo de “educar” provee una serie de criterios generales que determinan, al menos en parte, lo que significa una aplicación apropiada de una práctica educativa y, por tanto, criterios que debe satisfacer toda actividad o práctica que se emplee para obtener el logro que el término “educar” designa. Estos criterios son, básicamente, tres: el criterio del valor, el criterio del conocimiento y el criterio procedimental. El criterio del valor subraya que la educación es un logro positivo; en otras palabras, lo que obtiene una persona al ser educada es una serie de estados mentales y habilidades deseables. No es posible que alguien reciba educación en el sentido en consideración y esto no implique algo valioso o bueno. En este respecto, educar es similar a reformar: una persona reformada es una persona que sufre un cambio hacia un estado mejor. De acuerdo con Peters, lo que determina lo que es valioso o deseable depende tanto de la sociedad como del educador. Así, al menos en nuestro contexto social, no tiene sentido decir que a alguien se le eduque para robar o contrabandear. Conforme con el criterio del valor, toda práctica educativa debe ser una práctica deseable o valiosa, lo cual no significa que toda práctica valiosa sea educativa: aprender a escalar es valioso, pero esto no significa de inmediato que escalar sea una práctica educativa. Se deben considerar los otros dos criterios para empezar a decidir la calidad educativa de una práctica. El criterio del conocimiento es complejo ya que tiene varias dimensiones: cantidad, calidad, variedad y perspectiva cognitiva. Según Peters, para la educación no sólo es importante tener una gran cantidad de conocimiento proposicional (‘saber que’) acerca de una materia; por ejemplo, física teórica. Una persona puede estar muy bien informada en el sentido de tener un vasto conocimiento proposicional sobre física, pero esto no la hace educada si la persona no entiende los principios que subyacen a este conocimiento o no tiene idea de cómo se justifica 353 o se evalúa. Almacenar información no es una práctica educativa en sí misma si no existe la habilidad de justificar o evaluar esta información; si existe esta habilidad, hablamos de un conocimiento con calidad. Por otro lado, incluso si una persona tiene conocimiento y entendimiento de un tema, no podemos calificarlo como educado si carece de otro tipo de conocimientos proposicionales (matemática, historia, biología, etc.) y conocimientos prácticos (‘saber cómo’) académicos (como el pensamiento crítico) y emocionales. Una persona cuyo conocimiento se enfoca estrechamente es, a lo más, una persona entrenada, no educada. Esto significa que la variedad en los tipos de conocimiento adquirido es al menos tan importante para la educación como lo son la cantidad y la calidad de un solo tipo de conocimiento. Dado que la cantidad y variedad de conocimiento probablemente sea ilimitada, la noción de persona educada es un ideal al que de una forma probablemente asintótica podemos acercarnos. Además de las dimensiones de cantidad, calidad y variedad, el criterio del conocimiento tiene una dimensión a la que Peters bautiza con el nombre de “Perspectiva Cognitiva”. La perspectiva cognitiva es la capacidad de establecer vínculos entre los diversos tipos de conocimiento (saberes que y saberes como) que se poseen y de aplicar estos mismos a nuevas circunstancias y aspectos más amplios de la vida; por ejemplo, apreciar la perspectiva histórica, la significación social, estética y económica de diversos modos de pensamiento y conformar, así, una visión de mundo que integre estos aspectos. De acuerdo con Peters, esta dimensión del criterio del conocimiento captura la idea de que en el sentido de educación en discusión no hablamos de “educación como filósofo”, “educación como biólogo” o “educación como ingeniero”; estas expresiones corresponden más propiamente al sentido institucional de educación o pueden ser más precisamente interpretadas si se reducen a un discurso sobre entrenamiento: “Está entrenado como ingeniero” es, según esto, más preciso que “Está educado como ingeniero” pues “entrenar”, a diferencia de “educar”, sugiere un enfoque especializado. Cuando empleamos el sentido central de “educación”, hablamos de una persona como siendo educada sin más o de la educación de la persona en su totalidad. Finalmente, el tercer criterio del análisis de Peters, el criterio procedimental, permite junto con los otros dos criterios capturar la idea de que la educación (al menos toda instancia clara de educación) es completamente opuesta al adoctrinamiento, entendido en un sentido peyorativo. Adoctrinar en este sentido involucra hacer que un individuo llegue a aceptar una creencia sin ninguna evidencia y sin ningún tipo de reparo o posibilidad de cuestionamiento, ya sea porque se falla en dar bases evidenciales y evaluativas o porque se falsifica 354 deliberadamente la evidencia, haciéndola pasar por irrefutable. Hay dos puntos importantes que cabe resaltar de esta noción de adoctrinamiento que son frecuentemente señalados en la literatura analítica223. En primer lugar, el adoctrinamiento es compatible con que el individuo adoctrinado sea consciente y acepte voluntariamente participar del proceso de adoctrinamiento; pero también es compatible con que el individuo sea sometido a dicho proceso en un estado de inconsciencia o en contra de su voluntad (como podría ocurrir si el individuo es sometido a hipnosis o ‘lavado de cerebro’). En segundo lugar, el adoctrinamiento es compatible con que las creencias insertadas sean verdaderas. El adoctrinamiento es, así, neutral con respecto al contenido de las creencias, mas no con el modo en que llegan a ser adquiridas. El criterio del conocimiento permite desterrar del terreno educativo a toda práctica que permita la adquisición consciente y voluntaria, pero ciega de creencias: creencias que un individuo adquiere, pero de las que no entiende su justificación ni es capaz de cuestionar o considerar como falibles. El criterio procedimental, por su parte, descarta cualquier práctica educativa que violente la voluntad o consciencia de un individuo, pues de acuerdo con este criterio un proceso educativo debe cumplir con dos condiciones: primero, el proceso debe ser tal que el educador no sólo logre transmitir a su pupilo algo valioso, sino que logre transmitir la idea misma de que lo que enseña es valioso. Segundo, la manera de hacer lo primero no debe transgredir la voluntad y la consciencia del pupilo. Nótese que aunque el criterio procedimental proscribe formas de condicionamiento y lavado de cerebro, no proscribe ciertos métodos coercitivos (órdenes, por ejemplo), si hay buenas razones para la aplicación de los mismos, pues el pupilo puede ser consciente de la aplicación de estos métodos, resistirse y no aceptar la coerción. El análisis de Peters ha causado gran controversia dentro y fuera de la tradición analítica. En lo que sigue, examinaremos críticamente dos de las principales objeciones a este análisis y propondremos sendas maneras de resistirlas. 3. CONTEXTO DEPENDENCIA DÉBIL Y ADOCTRINAMIENTO METODOLÓGICO 223 Véase Snook(1972) para un compendio de los distintos sentidos de adoctrinamiento (indoctrination) empleados en el debate al interior de la tradición analítica, y las discusiones de White(1967), Thieessen(1985) y Hamm (1989) sobre el concepto de adoctrinamiento. 355 Una de las objeciones al análisis de Peters realmente tiene como objetivo socavar cualquier tipo de análisis general del término “educación” y términos similares224. De acuerdo con esta objeción una gran cantidad de conceptos sociales, si no todos, son tales que no podemos esperar un acuerdo general acerca de su precisa definición. La razón de esto es que cada cultura o sociedad ‘fabrica’ su propia definición de los conceptos sociales de modo que una sociedad, cultura o incluso un pequeño grupo de interés puede tener un concepto propio de, por ejemplo, educación, incompatible con el concepto de educación de otra sociedad, cultura o grupo de interés. Este desacuerdo entre culturas es tan radical que no hay ningún esquema conceptual inter-cultural, ni ningún hecho, que nos permita decidir si el concepto de educación de una cultura es correcto o incorrecto. La consecuencia de esto es que lo que consideremos una práctica educativa correcta, puede ser considerada como una práctica educativa incorrecta en otra cultura y no hay ningún método racional intercultural para decidir cuál de las dos prácticas es más apropiada que la otra, esta pregunta simplemente no aplica. El concepto de educación, como cualquier otro concepto social, que, según la objeción en consideración, se comporta de este modo es un concepto radicalmente dependiente del contexto. Si esta objeción es correcta, el análisis de Peters no puede pretender un alcance amplio en el sentido de cobijar un concepto de educación intercultural, tal vez sólo nos dice lo que entiende una cierta cultura occidental por educación. O lo que es peor, dado que el análisis de Peters, según la objeción, no puede asegurar que cobije algo más que el concepto de un pequeño grupo de interés o élite, los criterios que conforman su análisis no podrán ser usados para recomendar o proscribir prácticas presuntamente educativas incluso dentro de una cultura occidental. Aunque es cierto, como lo muestran muy bien los interminables debates al respecto, que no hay un consenso general acerca del concepto de educación incluso en nuestra cultura, creemos que inferir de este hecho que el concepto de educación es radicalmente dependiente del contexto es falaz. La razón de esto es que los críticos confunden la ambigüedad o la vaguedad del concepto de educación con la dependencia radical del contexto. Las razones aducidas a favor de esta dependencia muestran, a lo más, lo que llamaremos una dependencia del contexto débil. 224 Véase Carr (2003) para una versión reciente de esta crítica aplicada al análisis de Peters. En Gallie (1955) y MacIntyre (1973) puede encontrarse la versión general de la crítica aplicada a los conceptos sociales. 356 En primer lugar, hay que subrayar que del hecho de que no haya un acuerdo general sobre lo que significa “educación” no implica que el concepto de educación sea radicalmente dependiente del contexto. La falta de acuerdo puede explicarse debido a que el concepto mismo de educación, interculturalmente compartido, es vago de modo que los límites de su aplicación son difusos. El hecho de que existan casos fronterizos de prácticas educativas (casos de los que no sabemos, y tal vez no podamos saber, si son o no prácticas educativas legítimas), explicaría el desacuerdo sin suponer que el concepto de educación no es intercultural. Una analogía puede ser útil para ver este punto: el término “calvo” es un término vago debido a que no sabemos con precisión cuáles son los límites de la aplicación del concepto; no sabemos, por ejemplo, cuántos cabellos debe tener alguien para que lo dejemos de considerar calvo o cuántos cabellos debe perder alguien para que lo consideremos calvo. Discutir al respecto nos tomaría una eternidad. No obstante, el hecho de que haya una imprecisión esencial en el concepto calvo, no muestra que no exista una noción central de calvo, como alguien con poco cabello, que sea interculturalmente compartida. A menudo se insiste en que la dependencia radical del concepto de educación no surge sólo de la falta de acuerdo general, sino del hecho de que en varios grupos lo que se considera valioso es muy distinto. Esto por sí mismo tampoco excluye la existencia de un concepto intercultural de educación y, mucho menos, atenta contra la generalidad del análisis de Peters, pues éste análisis no dictamina exactamente qué específicamente es lo valioso. Si en una cultura es educativamente valioso jugar Póker, el hecho de que en la nuestra no lo sea, no muestra que el concepto de educación no sea compartido. Esto, por una parte, porque aún podemos interpretar a la cultura ajena como empleando, en este caso, el concepto de entrenamiento más bien que como empleando el concepto de educación. Por otra parte, es al menos concebible que en la cultura ajena la enseñanza del Póker se encuentre inmersa en una serie de procesos que cumplan con los tres requisitos de Peters (valor, conocimiento y procedimiento). El análisis de Peters, como se indicó arriba, admite que se puede educar de muchas formas. De manera similar se puede responder a los argumentos que aducen la dependencia radical de diferencias en lo que se consideran métodos educativos en otras culturas: una cultura puede no valorar el empleo de libros u otras prácticas catedráticas occidentales, incluso entre los contenidos específicos de su currículo pueden no figurar la física o la geografía. Esto no indica dependencia radical, sólo diferencias en métodos y contenido, diferencias que aún son 357 compatibles con que el análisis de Peters sea (interculturalmente) correcto. En una cultura se puede privilegiar ciertos conocimientos sobre otros, pero la jerarquización del conocimiento es compatible con que se aprecie la cantidad y variedad del conocimiento. Tal vez pueda pensarse que existe, o puede existir, una sociedad en la que lo que se considera valioso sea impartido violando el criterio del conocimiento y la segunda condición del criterio procedimental de Peters (el que atañe a la conciencia y voluntad del pupilo). Ésta sería una sociedad similar a la descrita por George Orwell en su famosa obra 1984. No obstante, señalar ejemplos reales o imaginarios de este tipo de sociedades no es todavía mostrar una dependencia radical. Aún se debe mostrar que no es adecuado describir a estas sociedades como empleando un concepto incorrecto de educación o como sociedades en las que no hay una comprensión de este concepto. Algo que, hasta el momento, jamás se ha mostrado. Es un hecho que el término “educación” puede variar de contenido dependiendo de las oraciones en las que aparezca. Estas variaciones, sin embargo, no se explican necesariamente apelando a la dependencia radical, pues también pueden ser explicadas en términos de ambigüedad, como se explicaron algunas diferencias al principio de este texto, o en términos de dependencia del contexto débil: un término como “cortar” cambia de contenido dependiendo del contexto oracional en el que aparece, pues la palabra no significa exactamente lo mismo cuando ocurre en “cortar el césped” que cuando ocurre en “cortar un pastel”. Aunque esta variación de contenido no parece un caso de ambigüedad, sino de dependencia contextual, esto no significa que “cortar” no pueda expresar un concepto que sea común a todas estas variaciones contextuales y que se complemente de maneras distintas toda vez que aparezca en contextos distintos. Esto es lo que significa que “cortar” es un término que tiene una dependencia del contexto débil. Lo mismo podría ser dicho del término “educar”: no hay razones para suponer que la dependencia del contexto de este término no sea una dependencia débil más bien que una dependencia radical. Otra objeción, dirigida específicamente contra el análisis de Peters, mantiene que es inevitable en la noción de iniciación admitir prácticas de adoctrinamiento en sentido peyorativo. De este modo, el análisis de Peters o bien es incorrecto o el concepto mismo de educación es compatible con la ‘enseñanza’ por adoctrinamiento, algo que en principio resulta inaceptable225. Según los críticos, la enseñanza de la mayor parte de conocimientos 225 Esta objeción puede encontrarse explícitamente en Thiessen (1985). 358 proposicionales como las ciencias físicas, biológicas, la aritmética y la lógica inevitablemente implica la adquisición ciega de creencias: dado que estos conocimientos se construyen a partir de principios que no se justifican ni se cuestionan, dichos principios se adquirirían de forma ciega. Aunque la adquisición ciega de creencias atenta contra la dimensión de la calidad del conocimiento, proscribir la enseñanza de conocimientos proposicionales atenta contra la dimensión de la cantidad y variedad del conocimiento. Así, el análisis de Peters es incorrecto o admite el adoctrinamiento en un sentido peyorativo. La idea de que la educación es opuesta al adoctrinamiento ha sido empleada para proscribir la ‘enseñanza’ de ciertos contenidos. Por ejemplo, de acuerdo con un argumento clásico, la ‘enseñanza’ de la religión no es una práctica educativa genuina, pues implica la adquisición ciega de creencias (como la creencia en la existencia de una divinidad). Si los críticos de Peters están en lo cierto, el argumento clásico en contra de la religión pierde su fuerza debido a la inevitabilidad del adoctrinamiento en los procesos educativos. Creemos, no obstante, que el análisis de Peters puede ser modificado para encarar la crítica de la inevitabilidad del adoctrinamiento y fortalecer el argumento clásico en contra de la ‘enseñanza’ de la religión. En términos generales, nuestra propuesta consiste en hacer una distinción entre adoctrinamiento puro y adoctrinamiento metodológico. El adoctrinamiento puro consiste en hacer que un individuo acepte una o varias proposiciones sin ninguna evidencia y sin proveer herramientas para cuestionar o evaluar esas proposiciones. El adoctrinamiento metodológico, aunque inicialmente procura que un individuo adquiera ciertos principios sin ninguna evidencia, se diferencia del adoctrinamiento puro en dos aspectos: primero, la adquisición de los principios es un medio, mas no un fin, para construir una teoría, explicar o predecir fenómenos y, segundo, la fase inicial de adoctrinamiento provee herramientas para que, eventualmente, los principios inicialmente adquiridos puedan ser puestos en duda o, incluso, abandonados por consideraciones racionales (evidencia empírica o argumentación a priori). La evaluación de los principios inicialmente introducidos ciegamente es central en el adoctrinamiento metodológico, como opuesto al adoctrinamiento puro. Así, por ejemplo, la ‘enseñanza’ de la lógica puede incorporar un elemento de adoctrinamiento metodológico al presentar, inicialmente y sin mayor evidencia, ciertos principios básicos o axiomas (como los del cálculo proposicional clásico) con la intención de construir una teoría de la inferencia válida y brindar elementos para, eventualmente, evaluar críticamente los mismos axiomas que se introdujeron inicialmente y, consecuentemente, 359 considerar principios alternativos (como los de las lógicas no-clásicas). Similarmente, la enseñanza de las demás ciencias puede ser impartida en procesos que impliquen adoctrinamiento metodológico. Para responder a la crítica de la inevitabilidad del adoctrinamiento, basta con aumentar los criterios de Peters de tal forma que se rechace el adoctrinamiento puro y se admita el adoctrinamiento metodológico, pues este último no incluye, al menos no a largo plazo, los aspectos negativos del adoctrinamiento puro al mismo tiempo que no proscribe la ‘enseñanza’ de una gran cantidad de conocimientos proposicionales. De esta forma, el análisis de Peters modificado se mantiene alejado del adoctrinamiento en un sentido peyorativo sin violar el criterio del conocimiento. A partir de la distinción en consideración también se puede bloquear la crítica al argumento clásico en contra de la ‘enseñanza’ de la religión: dado que la instrucción religiosa usualmente no contempla la eventual evaluación o rechazo de los principios que introduce ciegamente, la religión no puede ser impartida en un proceso que incorpore adoctrinamiento metodológico, sino sólo en uno que suponga adoctrinamiento puro. Esto hace que la ‘enseñanza’ de la religión, como es usualmente impartida, no sea una práctica educativa genuina, si el análisis de Peters modificado es correcto. 360 BIBLIOGRAFÍA Archambault, R., (ed.), 1965, Philosophical Analysis and Education, London: Routledge. Carr, D., 2003, Making Sense of Education: An Introduction to the Philosophy and Theory of Education and Teaching, London: RoutledgeFalmer. Curren, R., (ed.), 2003, A Companion to the Philosophy of Education, Oxford: Blackwell. Carson, S. & Wilson, J., 1984, ‘Education and Schooling’. En: International Review of Education, Vol. 30, No. 1: 41-55. Cuypers, S., 2012, R.S. Peters’ ‘The justification of education’ revisited, En: Ethics and Education, 7:1, 3-17 Dewey, J., 1916, Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, New York: Macmillan. Gallie, W., 1955, ‘Essentially Contested Concepts’. Proceedings of The Aristotelian Society, vol. 56: 167-98. Hamm, C.M., 1989. 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Historicamente, o período caracteriza-se como um espaço de rearticulação social, econômica e política, no qual Capanema figura como o ministro que mais tempo se mantém alinhado a Getúlio Vargas226, no Governo Constitucional (1934-1937) e no Estado Novo (1937-1945), assumindo a responsabilidade de reorganizar o sistema educacional brasileiro. A atuação de Capanema reflete a centralização do regime instituído pelo Estado Novo, promovendo ações mediante o uso de uma postura rígida e pormenorizada frente ao Ministério da Educação e Saúde. A pergunta que norteia o desenvolvimento desde artigo questiona a atuação de Gustavo Capanema para a organização do ensino Filosofia no período em que foi Ministro da Educação e Saúde. Dessa maneira, busca-se aqui, como objetivo geral, compreender as ações de Gustavo Capanema realizadas no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, particularmente no que se refere às reformas promovidas por Capanema no ensino de Filosofia, considerando como foram projetadas e articuladas as orientações pedagógicas para formação do cidadão brasileiro naquele contexto. Coloca-se o desafio nesta investigação Histórica da Educação de não relatar os fatos apenas cronologicamente, mas enfatizar as peculiaridades dos principais fatos ocorridos, bem como nas tendências do pensamento pedagógico, de modo a indicar a relação existente entre a 226 Getúlio Vargas nasceu em 19 de abril de 1882 em São Borja, cidade do Rio Grande do Sul situada na fronteira com a Argentina. Quando adolescente, provavelmente por algum interesse escolar, declarou ter nascido em 1883, e durante um século acreditou-se ser esse o ano de seu nascimento. Seus pais, Cândida Dornelles Vargas e Manoel do Nascimento Vargas, pertenciam a famílias de estancieiros com prestígio na política local. Aos 16 anos alistou-se no batalhão de São Borja e aos 18 foi admitido na Escola Tática e de Tiro de Rio Pardo. Em dezembro de 1903, após dar baixa do Exército, entrou para a Faculdade de Direito de Porto Alegre. Na faculdade, Getúlio estreitou laços com o castilhismo e com a juventude republicana. Em março de 1911, casouse com Darcy Lima Sarmanho, filha do estancieiro e comerciante Antônio Sarmanho. Nos anos seguintes, o casal teria cinco filhos: Lutero, Jandira, Alzira, Manoel e Getúlio. (D’ARAUJO, 2011). 362 educação e a sociedade no período histórico estudado, tendo em vista o espaço e as condições que permitiram sua organização naquele período. Neste sentido, compreende-se que a história é feita por atores sociais, os quais atuam e são condicionados pelo desenvolvimento das forças produtivas à que estão inseridos. A metodologia adotada, desse modo, pressupõe que a consciência dos homens é determinada pela materialidade histórica. Dessa forma, é nas práticas sociais que o homem se produz, de acordo com o que esta em constante contato, e a educação, como qualquer outra produção, é resultante da produção social. Essa compreensão exige um reportar constante às transformações econômicas, políticas e sociais que marcaram o século XX. Para tanto, as reflexões apontadas ao longo deste ensaio destacam registros documentais como fontes históricas que apresentam evidências da atuação fundamental de Gustavo Capanema na organização do ensino de filosofia no Brasil no período sob análise, sobretudo compreendendo a implicação política e social deste movimento para o campo da educação. O Intelectual Gustavo Capanema Gustavo Capanema Filho nasceu no município de Pitangui, Estado de Minas Gerais, em 10 de agosto de 1900, filho de Gustavo Xavier da Silva Capanema e Marcelina Júlia de Freitas Capanema, pertencentes ambos a tradicionais famílias mineiras, vivendo até 10 de março de 1985. Foi casado com Maria de Alencastro Massot Capanema e teve dois filhos, Gustavo Afonso e Maria da Glória. Em 1920 matriculou-se na Faculdade de Direito da capital Mineira, alcançando o prêmio Rio Branco, destinado ao aluno que obtenha notas distintas em todas as matérias do curso. Ao terminar a faculdade regressou a Pitangui, abrindo um escritório de advocacia ao mesmo tempo em que exercia o magistério, como professor de Psicologia, Higiene Escolar e Ciências Naturais na Escola Normal local. Foi vereador na Câmara de Vereadores de seu município, onde tomou interesse e dedicou-se ao estudo dos assuntos de administração municipal. Capanema desenvolveu sua atividade profissional voltada à política, tornou-se setembro de 1929, oficial de gabinete do governo mineiro de Olegário Maciel e em novembro do mesmo ano assumiu a Secretaria do Interior. Dessa forma, iniciou seu envolvimento com 363 cargos na esfera pública e, a partir de então, intensificou sua relação e seu posicionamento político em acordo aos ideais nacionalistas. Com a morte de Olegário Maciel, a 6 de setembro de 1933, Capanema é nomeado por ato do Governo Provisório interventor interino em Minas Gerais, permanecendo três meses no cargo. Após esse momento voltou a seu posto na área da advocacia e às suas ocupações de intelectuais. Em janeiro de 1934, já próximo de Getúlio Vargas politicamente, Capanema é convidado a assumir o cargo de representante no Departamento Nacional do Café. Capanema recusara a oferta, e em carta enviada ao então Presidente da República declarou que: “[...] para que se exerça, conscienciosamente, com real proveito para o serviço público, aquele cargo, cumpre ao seu detentor morar no Rio de Janeiro. Capanema agradece o convite e se coloca ao seu dispor para trabalhar na defesa do seu governo [...]” (HORTA, 2010, p.17). Em momento posterior, ainda no ano de 1934, Gustavo Capanema foi convidado por Getúlio Vargas a assumir o Ministério da Educação e Saúde, cargo que aceita e desempenha por onze anos, até o final do Estado Novo, em 1945. Como atribuições importantes associadas ao papel político de Capanema a partir de então é relevante destacar que “[...] Durante sua permanência no Ministério, Capanema empreendeu a reorganização administrativa do mesmo, iniciou a elaboração das leis orgânicas do ensino e tomou diversas iniciativas no campo cultural [...].” (HORTA, 2010, p. 19). Capanema teve como assessor-chefe em seu gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade, cercou-se de uma equipe diversificada, integrada, entre outros, por Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinícius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo Melo Franco de Andrade (BOMENY, 2001). Após sua passagem pelo governo Vargas, Capanema continuou sua vida pública na carreira política em várias esferas. Conforme pontua Horta (2010), Capanema foi eleito no dia 2 de dezembro de 1945 deputado por Minas Gerais, na legenda Partido Social Democrático (PSD). Em sua trajetória política “[...] Foi membro da Comissão constitucional, encarregada de redigir o anteprojeto da nova Carta. Durante os trabalhos constituintes, participou ativamente dos debates relativos ao capítulo sobre educação, tendo apresentado substitutivo que veio a constituir a base do texto [...]” (HORTA, 2001, p.20). Em outubro de 1950 Capanema se reelegeu deputado federal, em 1954 ele foi reeleito para o mesmo cargo. 364 Foi membro da delegação à 50ª reunião da União Interparlamentar, em Bruxelas, no ano de 1961. Chefiou a delegação à IX conferência Geral da UNESCO, em Nova Delhi, na Índia, na condição de Embaixador extraordinário. Em 1966 foi reeleito para a Câmara Federal, em 1970 elegeu-se senador por Minas Gerais. Em janeiro de 1979, ao término de seu último mandato no Senado, encerrou sua carreira política, fixando residência no Rio de Janeiro. Toma-se como pressuposto, para esse estudo, que as reformas empreendidas por Capanema no sistema educacional brasileiro devem ser compreendidas como uma análise crítica do papel que a educação assume em cada momento histórico. Para tanto, considera-se que a existência de diferentes características e funções que são atribuídas à educação em função do momento histórico vivenciado pelos sujeitos. Destacam-se as reformas educacionais como resultante de um amplo movimento, fazendo referência ao contexto político, a dinâmica social em que surgiu, as leis que orientaram as mudanças e aos personagens que atuaram para afirmação deste momento de profundas transformações na educação brasileira. A disciplina de Filosofia no Ensino Secundário Ao assumir o cargo como novo ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema fez estudos sobre a situação das áreas pertinentes ao ministério e os planejamentos traçados sobre o setor da Educação e Saúde. Em 30 de julho de 1934, em conversa com Getúlio Vargas, o ministro da Educação e Saúde Pública, destacou “[...] justificou e fez a apologia das reformas do ministério propostas pelo seu antecessor, ampliou essas reformas com novas perspectivas [...]” (VARGAS, 1995a, p. 311). Como reflexo dessa reunião com Vargas houve uma redefinição dos planos para o ministério. Afirma Capanema que “[...] O Ministério da Educação e Saúde Pública, quanto ao ensino não se tornou apenas um departamento burocrático para administração de repartições e serviços educacionais, mas passou a constituir um centro nacional de estudos e pesquisas [...]”. (RELATÓRIO...,1946). O intelectual passa, gradativamente, a incorporar sua concepção de educação e busca apoio no governo para consolidar mudanças efetivas neste campo. 365 Por meio de decretos, tornou-se “[...] evidente a orientação do novo governo de tratar a educação como questão nacional, convertendo-se, portanto, em objeto de regulamentação, nos seus diversos níveis e modalidades, por parte do governo central [...]”. (SAVIANI, 2010, p. 196). No entanto, ao analisarmos a relação dos decretos elaborados nessa conjuntura, observase que o currículo do ensino secundário era de difícil acesso ao povo, sendo o ensino primário deixado de lado sem uma ação mais intensa, bem como o ensino profissional e normal não fizeram parte do plano da educação. Em face disso a sociedade daquele período histórico [...] oscilava entre a necessidade de inovar e organizar a vida social, em novas bases, e a velha ordem, com a qual ainda se encontrava seriamente comprometida. As classes que iam gradativamente assumindo o poder contavam entre si com a presença, de um lado, dos jovens oficiais progressistas e da nova burguesia industrial, que exigiam inovações a toda a ordem, mas, de outro lado, contavam também com a presença de parte da velha aristocracia liberal, ainda apegada às velhas concepções. A expansão do ensino e sua renovação ficaram, portanto, subordinadas ao jogo de forças que essas camadas manipulavam na estrutura do poder (ROMANELLI, 2010, p. 145). Diante da nova configuração, o sistema educacional refletia dois aspectos, por um lado, o impulso da revolução, o qual buscava uma transformação na sociedade com a inserção dos indivíduos para o seu desenvolvimento e, por outro, a constante busca do poder centralizador do governo. A educação como um dos pontos chave do novo governo teve como objetivo formar um novo homem para atuar em uma nova proposta de sociedade, o que o governo getulista a via como aspecto importante para o desenvolvimento do país. Buscava-se desenvolver o sentimento patriótico de uma forma ordenada e constante, vinculando estes valores as propostas reformistas no campo da educação. Neste sentido, destaca-se que [...] educação nacional era definida como tendo por objetivo “formar o homem completo, útil à vida social. Pelo preparo e aperfeiçoamento de suas faculdades morais e intelectuais e atividades físicas” sendo tarefa precípua da família e dos públicos. A transmissão de conhecimento seria sua tarefa imediata, mas nem de longe a mais importante. Fazia ainda parte dos princípios gerais à definição do que se devia entender por “espírito brasileiro” (“orientação baseada nas tradições cristãs e históricas da pátria”) e “consciência da solidariedade humana” (“prática da justiça e da fraternidade entre pessoas e classes sociais, bem como nas relações internacionais”), termos que a Constituição utilizava para caracterizar os objetivos gerais da educação nacional [...]. (SCHWARTZMAN, 1984, p.182-183). 366 Com o intuito de transformação, mudança do cenário brasileiro Capanema organiza uma reforma educacional as quais foram chamadas de Leis Orgânicas que se desenvolveram em todos os níveis da educação escolar, ou seja, educação primária, educação secundária, ensino profissional, ensino normal e ensino universitário. Para o Ensino Secundário, conforme o Decreto-Lei nº 4.244 de 1942 que trata sobre a organização deste nível de ensino, o primeiro ciclo, o curso ginasial, ficou distribuído em quatro anos. No segundo ciclo do ensino secundário, o qual foi divido em dois cursos o Clássico com duração de três anos e o Curso Científico, também com duração de três anos, neste nível foram desenvolvidas a disciplinas de Filosofia ambos no terceiro ano. Dessa forma, o curso clássico e o curso científico, tiveram por objetivo consolidar uma educação ministrada no curso ginasial e bem assim desenvolvê-la e aprofundá-la. Enquanto que no curso clássico, terá por objetivo a formação intelectual, além de um maior conhecimento de filosofia, um acentuado estudo das letras antigas, o grego e o latim, no curso científico, essa formação será marcada por um estudo maior de ciências. (BRASIL, 4.244 1942b). No ensino secundário, Capanema traçou objetivos para a formação do aluno deste grau de ensino, tendo em vista o objetivo principal forma a personalidade integral dos adolescentes e “[...] acentuar a elevar, na formação espiritual dos adolescentes, a consciência patriótica e a consciência humanística; e da preparação intelectual geral que possa servir de base a estudos mais elevados de formação especial [...]”. (BRASIL, 1942b). Havia uma organização central do ensino secundário e deveria ser seguida como modelo. Este grau de ensino foi um dos aspectos mais importantes para a organização Nacional de Educação, considerando seu caráter formador da força produtiva que viria a se inserir no mercado de trabalho. A inserção da educação moral e cívica tinha objetivos claros neste grau de ensino buscando com essa formação base para desenvolver “[...] a compreensão do valor e do destino do homem, e, como base do patriotismo, a compreensão da continuidade histórica do povo brasileiro, de seus problemas e desígnios, e de sua missão em meio aos outros povos [...]” (BRASIL, 1942b). O estabelecimento da educação moral e cívica tem um papel de destaque no currículo do ensino secundário apresenta como elemento essencial que suponha desenvolver nos adolescentes a moralidade a partir do “[...] espírito de disciplina, a dedicação aos ideais e a consciência da responsabilidade”, (BRASIL, 1942b), sendo assim responsabilidade de quem ministrava essa disciplina difundir a ideologia de “[...] que é finalidade do ensino secundário 367 formar às individualidades condutoras, pelo que força é desenvolver nos alunos a capacidade de iniciativa e de decisão e todos os atributos fortes da vontade [...]”. (BRASIL, 1942b). Na idealização do projeto do ensino de Filosofia, o curso secundário deveria “[...] coroar a formação cultural do aluno, procurando apresentar-lhe unificadamente, em conclusões harmoniosas, o conteúdo do conhecimento humano [...]” (DOCUMENTOS..., 1942). Neste sentido, portanto a contribuição da disciplina seria do conhecimento teórico objetivando uma conclusão linear sem discussões e conflitos teóricos. Dessa forma, a disciplina de Filosofia, foi organizada com duas horas semanais e segundo o planejamento do projeto foi idealizado para 3ª séria do curso Clássico. O qual foi constituído pelo Decreto-Lei N. 4.244 – de 9 de abril de 1942 no Art. 14, as disciplinas constitutivas do curso clássico tiveram a seguinte seriação: Primeira série : 1) Português. 2) Latim. 3) Grego. 4) Francês ou inglês 5) Espanhol. 6) Matemática. 7) História geral. 8) Geografia geral. Segunda série: 1) Português, 2) Latim. 3) Grego, 4) Francês ou inglês 5) Espanhol, 6) Matemática, 7) Física, 8) Química, 9) História geral, 10) Geografia geral. Terceira série: 1) Português, 2) Latim, 3) Grego, 4) Matemática, 5) Física, 6) Química, 7) Biologia, 8) História do Brasil, 9) Geografia do Brasil, 10) Filosofia. Para o curso científico, foi organizado da seguinte forma, conforme o Art. 15. As disciplinas constitutivas do curso científico tiveram a seguinte seriação: Primeira série: 1) Português, 2) Francês, 3) Inglês, 4) Espanhol, 5) Matemática, 6) Física, 7) Química, 8) História geral, 9) Geografia geral. Segunda série: 1) Português, 2) Francês, 3) Inglês, 4) Matemática, 5) Física, 6) Química, 7) Biologia, 8) História geral, 9) Geografia geral, 10) Desenho. Terceira série: 1) Português, 2) Matemática, 3) Física, 4) Química, 5) Biologia, 6) História do Brasil, 7) Geografia do Brasil, 8) Filosofia, 9) Desenho. A organização da Filosofia ficou organizada da seguinte forma: I - Filosofia Grega: filósofos e sistemas: - Sócrates – Platão- Aristóteles – Epicurismo –Estoicismo – Neoplatonismo de Plotino. II - Idade Média: ainda filósofos e sistemas: Santo Agostinho – Santo Anselmo – Santo Alberto Magno – Santo Tomaz de Aquino – A escolática – Duns Scoto – Os dissidentes. III - Renascença – Novo platonismo; Aristótelismo; ceticismo, socialistmo de Morus, Machiavelli, Campanella etc. IV - A filosofia moderna – Seus grandes representantes – Empirismo – racionalismo – fenomenismo – cristicismo – positivismo – evolucionismo ecletismo. 368 V - A filosofia contemporânea – Sistemas e doutrinadores – Materialismo – Sociologismo – Determinismo econômico – Cientificismo – Idealismo – Intucionismo - Existencialismo – Neoescolática. VI - A filosofia no Brasil – Os nossos pensadores e a filosofia. (DOCUMENTOS..., 1942) O ensino de Filosofia mostrava-se como campo de imparcialidade, indicava-se aos professores da disciplina de filosofia a apresentação das análises dos conteúdos por uma via da neutralidade tanto para os argumentos como para as soluções apresentadas para os sistemas e escolas, neste sentido os estudos se davam em um: [...] campo de movimentos nas lições, demarcando objetivamente os principais caminhos da cultura intelectual do homem através das idades, recomenda-se, neste curso, que se parta sempre da notação histórica dos problemas, nas análises inteligentes e estudo imparcial dos argumentos e soluções que os vários sistemas e escolas tem apresentado e discutido [...] (DOCUMENTOS..., 1942). Torna-se possível elucidar que o momento histórico de atuação desse político foi marcado pelo cunho nacionalista e centralizador do Estado Novo, o que favoreceu a ação direta de Capanema no campo educação, dada a forte influência e apoio político de Getúlio Vargas a suas ações frente ao ministério. Contata-se que o projeto educacional para o Brasil neste período foi elaborado para a permanência da organização social, no que se refere ao quadro de disciplinas e aos objetivos, não havia o intuito de modificar esse cenário, mas de uma conservação. Entende-se por esse viés a busca na disciplina de filosofia assim como outras, a imparcialidade que refere-se ao questionamento do sujeito, pois a prática filosófica neste sentido tem de se desenvolver ao ponto de convencer e ‘sequestrar’ o sujeito, atraindo sua atenção e respeito a ordem social a ele apresentada e o não questionamento mais profundo da análise social. Considerações Finais Como reflexão, pode-se associar a ação de Capanema frente ao Ministério da Educação e da Saúde por dois ângulos: por um lado, mostra-se uma posição centralizadora, a qual refletia o regime instituído pelo Estado Novo, promovendo ações mediante o uso de 369 palavra forte frente ao ministério; como segundo aspecto, a atuação de Capanema demonstra ser expansionista, levando em conta seu estilo e sua marca na nova organização do campo educacional, o qual deu uma identidade à educação brasileira que serviu de exemplo para as demais reformas educacionais. No período do governo de Getúlio Vargas, tendo como Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, procurou-se com o planejamento da organização do ensino da disciplina da Filosofia no curso Secundário introduzir uma formação da filosofia aos alunos de uma forma suave, ou seja, sem conflitos, mostrando sempre a imparcialidade nos argumentos dos professores na apresentação do conhecimento científico. Capanema desempenhou seu papel em um campo em que se desenvolveram grandes expectativas enquanto promoção do regime e formação do futuro cidadão brasileiro. Como apresenta Bomeny (2001), de forma esclarecedora, “[...] A área da educação nos expõe a uma realidade muito distinta. E talvez possamos compreender tal distinção por ser essa a área que define a orientação de mentalidades e interfere na eleição de valores [...]”. Dada às perspectivas que orientavam o período histórico da República, os quais apostavam no desenvolvimento no país “[...] esperava-se que a educação inspirasse o que deveria ser ‘o homem novo’ para um ‘Estado Novo’[...]”. (BOMENY, 2001, p. 31). As reformas no campo da educação como forma de promover a formação do cidadão em acordo com o projeto de um novo país demonstrava ser de muita importância, o que confere a Capanema um papel de destaque frente às propostas de readequação na formação educacional. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto-Lei nº 4.244 de 09/04/1942b. 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Pero Platón no sólo siguió desarrollando las ideas de su maestro, sino que las llevó a otro nivel: continuó con sus propios conceptos y abarcó una gran cantidad de temas filosóficos, 227 Licenciada en Pedagogía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México; miembro del Seminario de Filosofía de la Educación (PIFFyL 2010 014). 371 que conocemos gracias a sus escritos, a la par que condujo una escuela, la Academia, y concibió un ideal de Estado. El tema que compete a esta ponencia se relaciona con un aspecto de la filosofía de Sócrates y Platón que, como se verá, guarda relación con la formación humana: la aporía. Mi propósito con el presente trabajo es acercarme al significado de este término, por un lado, para destacar su importancia dentro del método formativo socrático y la violencia que conlleva, y por el otro, para resaltar su posibilidad formativa. Para acercarme a las nociones sobre la aporía como razón y violencia, he retomado algunos fragmentos del diálogo Menón que, a mi parecer, ilustran de forma clara el término en estos dos sentidos. Por otro lado, y para tratar la posibilidad formativa de la aporía, he retomado el artículo “El sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío”.228 El camino sin salida El concepto central de esta reflexión, la aporía, en la literatura platónica, se distingue por ser un camino sin salida, en el que Sócrates pone en aprietos a sus interlocutores a través de un método de razonamiento que puede apreciarse en varios diálogos. Este término, utilizado también por filósofos presocráticos, se usaba para referirse a una situación de gran dificultad o a la imposibilidad de salida, tanto literal como metafóricamente. El término aporía se construye a partir del sustantivo póros, que significa «paso», y del prefijo a, «sin» o «falto de»; el significado etimológico es, por consiguiente, «sin camino», «sin paso», y también «sin recurso».229 Se usa de forma general para referirse a un recurso o medio, y de forma particular para referirse a algo concreto como un camino, un puente, un canal, un poro, etc. En su obra La aporía en Aristóteles, Javier Aguirre menciona tres campos semánticos a los que puede aplicarse la aporía: el físico o espacial, la vida humana y el gnoseológico.230 El primero se utilizaba para referirse a la presencia de un obstáculo en un lugar, aunque también se podía adaptar a «la metáfora frecuente del filósofo en el camino o de la filosofía representada como un viaje».231 Por otra parte, un individuo podía encontrarse ante un obstáculo de forma literal o metafórica, cuando este 228 Texto elaborado para el seminario “Platón. Menón”, coordinado por la doctora Ute Schmidt del Departamento de Posgrado de la Facultad de Filosofía y Letras como parte del doctorado en Pedagogía que cursó la autora de dicho artículo, Valentina Cantón. 229 Cfr. Aguirre Santos, Javier. La aporía en Aristóteles. Madrid, Dykinson, 2007, p. 109. Este autor, aunque centra su análisis en la aporía desde Aristóteles, ofrece referencias de la etimología y el uso del término en los filósofos presocráticos y también en Platón. 230 Cfr. Ibid., pp. 112 y 113. 231 Cfr. Ibid., p. 112. 372 obstáculo le ocasionaba perplejidad o confusión, tal como les ocurría a los interlocutores de Sócrates en los diálogos. El segundo campo se aplicaba a situaciones de la vida práctica para referirse a la carencia de recursos, es decir, a encontrarse en una situación de apuro por esta carencia. Y por último, en el campo gnoseológico se refiere a la situación de dificultad que experimenta un individuo y que afecta directamente la reflexión o discusión que lleva a cabo sobre un tema. En ocasiones, como en algunos diálogos platónicos, esta situación de duda o dificultad se manifestaba como una imposibilidad para hablar, para responder a una pregunta o para encontrar las palabras exactas para ello. Por el interés en la aporía como obstáculo, parálisis y confusión, situaciones todas que afectan el razonamiento de los individuos, la manera de acercarse al conocimiento y su formación, los campos físico y gnoseológico son los que se representan mejor en la obra de Platón, al referirse a la forma en que Sócrates interrogaba a sus interlocutores. En los diálogos platónicos se aprecia la tendencia de Sócrates hacia la búsqueda de definiciones, como en el Menón, en el que pasa de la enseñabilidad de la virtud a la cuestión de qué es la virtud. En este diálogo en particular es muy claro el resultado que Sócrates llegaba a obtener a través del cuestionamiento a sus interlocutores. En su búsqueda por las definiciones, el diálogo y la pregunta constituían elementos esenciales de su método de conocimiento, en el que intervenían la mayéutica y la ironía. La aporía, en este contexto, representa el momento en que las preguntas han conducido al interlocutor a un punto sin salida, situación que lo lleva a dudar de su propio conocimiento. Con esta forma de razonamiento lograba poner de manifiesto los prejuicios y las creencias carentes de base sólida de sus interlocutores, gracias a su insistencia en delimitar los conceptos. Esto se debe a que los primeros diálogos platónicos están construidos según el estilo erístico, un método de enseñanza con el que pretendían aguzarse los sentidos del estudiante a base de preguntas. La raíz de esta palabra es eris, sustantivo que se define como disputa, discordia, riña, altercado, cuestión, etc. y que, por otro lado, se relaciona con Eris, diosa de la Discordia. El adjetivo erístico denota, entonces, a alguien aficionado a la discusión.232 Pues bien, la modalidad más habitual de los juegos erísticos consistía en obligar al interrogado a limitarse a respuestas muy sencillas mientras el interrogador se esforzaba por conducir a su adversario a un callejón sin salida o a una contradicción, a la aporía. Este método fue, sin duda, el preferido de Sócrates. Es probable, entonces, que algunos diálogos estuvieran inspirados en sesiones auténticas de las que Platón extrajo el material para reconstruir, en forma escrita y dramática, esos ejercicios 232 Vid. Diccionario Manual VOX Griego-Español. Por José M. Pabón S. de Urbina, 18ª edición, España, 1998, pp. 253 y 254. 373 erísticos, ampliando las respuestas que usualmente serían breves, con la finalidad de darle un carácter de diálogo.233 En muchos de estos diálogos Sócrates es la figura principal y el que interroga y, aunque no se puede saber a ciencia cierta dónde terminan las ideas de Sócrates y comienzan las de Platón, es muy probable que este último introdujera muchas de sus propias experiencias y concepciones, y que en ocasiones la figura de Sócrates fuera más bien un recurso. Como haya sido, en cuanto a lo que se refiere a la aporía, es creíble pensar que Sócrates le hubiera otorgado un lugar privilegiado, dado que en este estado de confusión y perplejidad se podría destruir la falsa presunción por la posesión del conocimiento (riqueza intelectual) que tanto había criticado de los sofistas. Esta forma de razonamiento en la que hacía entrar a sus interlocutores, esta situación sin salida, resultaba ser lo suficientemente incisiva y útil para que cuestionaran sus conocimientos y abandonaran actitudes soberbias, al menos así nos lo da a entender Platón. Este último, utiliza la falta de salida como una provocación para seguir indagando y resolver la aporía, no como una forma de encontrar todas las respuestas, sino como un incentivo para seguir aprendiendo, que implica una toma de conciencia en cuanto a que la formación es un proceso constante y permanente, que no siempre viene acompañado de logros y experiencias placenteras: reconocer la propia ignorancia y sentirse sin salida puede no ser agradable. Aporía como razón y violencia Sócrates lograba que su interlocutor experimentara un estado de aporía mediante preguntas reiteradas y el análisis de los términos, que lo metía en aprietos y lo dejaba perplejo, sin palabras. Este estado podía provocarle una profunda “sacudida”, llevándolo a dudar de los conocimientos que creía poseer. El método no tenía la intención de ser complaciente ni de llevar al interrogado de la mano hasta la respuesta, por el contrario. Los siguientes fragmentos del Teeteto ilustran la dificultad que el mismo Sócrates reconocía en su forma de razonamiento: lo más grande que hay en mi arte es la capacidad que tiene de poner a prueba por todos los medios si lo que engendra el pensamiento del joven es algo imaginario y falso o fecundo y verdadero. Eso es así porque tengo, igualmente, en común con las parteras esta característica: que soy estéril en sabiduría. Muchos, en efecto, me reprochan que siempre pregunto a otros y yo mismo 233 Cfr. Bowen, James. Historia de la educación occidental. Tomo primero. Herder, 3ª edición, Barcelona, 1990, p. 151-152. 374 nunca doy ninguna respuesta acerca de nada por mi falta de sabiduría, y es, efectivamente, un justo reproche. Sin embargo, los que tienen trato conmigo, aunque parecen algunos ignorantes al principio, en cuanto avanza nuestra relación, todos hacen admirables progresos (…) Y es evidente que no aprenden nunca nada de mí, pues son ellos mismos y por sí mismos los que descubren y engendran muchos bellos pensamientos.234 Y un poco más adelante dice: los que tienen relación conmigo experimentan lo mismo que les pasa a las que dan a luz, pues sufren los dolores del parto y se llenan de perplejidades de día y de noche, con lo cual lo pasan mucho tiempo peor que ellas. Pero mi arte puede suscitar este dolor o hacer que llegue a su fin.235 Puede notarse aquí que no sólo reconoce el lado, digamos, difícil y doloroso de su método, sino también el lado provechoso, que se hace patente cuando los discípulos han alcanzado cierto grado de progreso y son capaces de descubrir cosas por ellos mismos. Menón, a pesar de no ser su discípulo, explica en el diálogo de una forma muy elocuente el estado de aporía en que se encuentra y que le obliga a reconocer de inmediato “que sabe que no sabe”.236 La capacidad de reconocer la propia ignorancia, teniendo en cuenta la actitud que había mostrado antes en el diálogo (actuando vanidoso y respondiendo demasiado rápido), deja ver que ya ha logrado un avance importantísimo y lo expresa fascinado: –Sócrates, yo oí antes de encontrarte que tú mismo no estás sino en apuros, y que también pones así a los otros. Y ahora, como me parece, me fascinas, y me envenenas y sencillamente me encantas, así que he llegado a estar pleno de confusión. Y si se puede bromear un poco, se me hace que tanto en la figura como en lo demás te pareces perfectamente a ese ancho pez torpedo del mar. Porque éste hace que se entumezca el que siempre se le acerca y lo toca, y tú pareces haberme hecho algo así ahora [habiéndome entumecido]. Pues, en verdad, yo estoy entumecido de alma y boca y no encuentro qué contestarte. Aunque diez mil veces he realizado toda clase de discursos sobre la virtud y delante de mucha gente, y además bien –como al menos a mí mismo me parecía–, ahora no puedo en absoluto decir qué es.237 234 Platón, Teeteto. Diálogos, Tomo V. Introducción, traducción y notas de Álvaro Vallejo Campos. Madrid, Gredos, 2000, 150c-d. 235 Ibid., 151a. 236 Cantón Arjona, Valentina. “El sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío.” Revista La Vasija, núm. 2, abril-julio 98, México, p. 35. 237 Platón, Menón. Introducción, versión y notas de Ute Schmidt Osmanczik. México, UNAM, Coordinación de Humanidades, 1975. 80a-b. 375 En esta ocasión para Menón, haber atravesado el estado de aporía le ha dejado una sensación aparentemente agradable, sin embargo, es difícil imaginar que eso sucediera siempre con los interlocutores reales de Sócrates. Por lo general, reconocer la propia ignorancia no es tarea fácil, descubrir que el camino que ha tomado la razón ha llegado a un punto sin salida, encontrarse paralizado, sin palabras e imposibilitado para responder es doloroso; pero también puede constituir una gran oportunidad de aprendizaje. Sin embargo, no debe olvidarse que la imagen que sugiere Menón para hacer la analogía y explicar ese estado de «entumecimiento» que es la aporía, es el pez torpedo, que paraliza la palabra y el pensamiento, que llega como un golpe, violento e inesperado. A este respecto, Valentina Cantón hace una aportación interesante, pues cuestiona lo que hubiera sucedido si este estado de confusión y fascinación fuera mutuo: vale la pena preguntarse, ¿qué ocurriría si tal seducción ocurriera y si Sócrates creyera las palabras de fascinación que Menón le ha dirigido presa de su invalidez? Sería la muerte del diálogo. Fascinados el uno con el otro no tendríamos más que un mismo discurso a dos voces. Voces inútiles por dirigirse a oídos entumecidos por encantamiento mutuo.238 Es así que, a pesar de los halagos, Sócrates no se deja envolver por las palabras de Menón y le responde: Eres astuto Menón, y por poco me hubieras engañado. (…)Yo me parezco al pez torpedo, si este mismo está tan entumecido como entumece a los demás, si no es así, no me parezco a él (…) estando yo completamente confuso, confundo también a los otros. Es cierto que yo ahora no sé lo que es la virtud, pero quizá tú lo sabías antes de juntarte conmigo; mas en este momento te pareces a uno que no lo sabe. Sin embargo, quiero investigar contigo y buscar qué es la virtud siempre.239 Se deja entrever que Sócrates, en su papel de formador, toma una cierta distancia, en parte porque él mismo no cree que sólo por su medio se llegué al conocimiento de lo que se busca saber. No trata de quitar el obstáculo que supone la aporía, pero le ofrece una posibilidad de salida, que consiste en acompañarle en su búsqueda de conocimiento. Podría decirse que asume un papel de guía. Sin embargo, esta ayuda no había sido ofrecida antes, sino hasta ahora que la búsqueda de Menón le parece auténtica y ha logrado ponerlo en disposición de aprender, para ello, fue necesario haber declarado su propia ignorancia; ahora, su astucia para demostrar lo que sabía se ha transformado en confusión. 238 239 Cantón Arjona, Valentina. Op. cit., p. 36. Platón, Menón. 80c-d. 376 Así, este camino hacia la búsqueda del conocimiento, mediante el sólo uso de la razón, no lleva al individuo por una ruta fácil, por el contrario, lo violenta, lo sacude, lo deja, al menos de momento, indefenso, doliente y herido; le provoca el entumecimiento de los sentidos, la palabra y el pensamiento.240 Reconocer que algo que se creía saber en realidad se ignora no es agradable, ni tampoco que nos lo hagan notar. Sin embargo, la formación humana necesita, si lo que se quiere realmente es aprender, identificar esos puntos sin salida, ya que serían una guía y provocación para avanzar en la búsqueda del conocimiento y encontrar motivación en seguir aprendiendo y formándose. Aporía en la formación humana Hasta ahora me he referido al término formación en sentido general, ya que utilizar la palabra “educación” en el contexto griego no me habría permitido abordar todas las posibilidades que supondría, por ejemplo, el término paideia. Una idea cercana podría ser la “formación integral”, que incluyera, por un lado, la adquisición de conocimientos y, por el otro, el sentido llano de “tomar forma” en todos los sentidos.241 Para Sócrates, la formación no es adquirir conocimientos innecesarios. Una de sus críticas más fuertes hacia los sofistas era la presunción (o más bien pretensión) de saber de todo y pretender enseñarlo todo. Con los sofistas, se buscaba la adquisición de una cultura general necesaria para lucirse en los eventos públicos de la polis. Se puede decir que Sócrates, en cambio, más que la adquisición de conocimientos por parte de sus discípulos, buscaba un cambio en la actitud hacia el conocimiento y el estilo de vida, es decir, la formación del individuo. Considero que desde esta perspectiva, la aporía supone una posibilidad de formación, ya que hace al individuo consciente de sus propias carencias a la vez que le permite vislumbrar el camino que debe tomar en la búsqueda del conocimiento y el autoconocimiento: el punto sin salida, el obstáculo, da la pauta para reconocer el camino que falta recorrer. Los momentos de aporía garantizarían que el proceso de formación de un individuo fuera permanente y una búsqueda constante. En este sentido Sócrates puede considerarse como un importante formador, no sólo por su método del diálogo como forma de enseñanza y para tratar con los jóvenes sino, sobre todo, por su arte de provocar y entumecer la razón de sus interlocutores, al conducirlos a la aporía. Esto no podría 240 Cfr. Cantón Arjona, Valentina. Op. cit., p. 37. Este es un tema que se presta a gran discusión, sin embargo, he prescindido de él debido a que su interpretación no representa el objetivo de este trabajo. 241 377 enseñarse desde afuera, pues no se puede transmitir únicamente con palabras y, además, requiere del diálogo para articularse; no se puede recorrer el camino de alguien más ni resolver sus momentos de aporía cada vez que se presenten, esto de poco serviría a su formación y dejaría de lado la posibilidad de autoconocimiento. Formación, tanto para Sócrates como para Platón, implicaría asumir el compromiso de formarse, no depositarlo en alguien más; esta tarea necesitaría de valor para arriesgarse, aceptar y asumir la ignorancia, el dolor de llegar al punto sin salida. El camino hacia el conocimiento es el camino del autoconocimiento y sólo se puede recorrer personalmente, aunque el formador esté cerca para servir de guía y ayudar a encontrar las aporías que dictarán el rumbo. Valentina Cantón resume la utilidad formativa del término en varios sentidos: Así, la aporía ha mostrado su eficacia curativa (en el sentido prístino: cuidado de sí y de los otros, épiméleia política) en la medida en que permite al sujeto reconocer lo que no sabe, lo que le hace falta, lo que es respecto de su historia, lo que requiera para pasar de la estulticia a la sapiencia. (…) Ha mostrado también su eficacia pedagógica, entendida aquí como abrir la disposición, la necesidad, el deseo de realizar un aprendizaje y, finalmente, su eficacia didáctica al establecer el mecanismo de transmisión que –más allá de la instrucción útil para enseñar la techné– conduzca por el camino de la construcción de saberes acerca del sujeto y de su relación con los otros y con lo que desea conocer.242 En última instancia, la aporía muestra que, a través del conocimiento de sí mismo, de la propia ignorancia, se pueden producir cambios en el modo de ser de un individuo. Paradójicamente, “enseñar a no saber y crear a partir del vacío”243 que supone la aporía, supone también la tarea de formar. A manera de conclusión puedo decir que la aporía me ha dado pauta para entender mejor la filosofía de Sócrates y Platón, sobre todo en lo que se refiere a la formación humana. La búsqueda permanente del conocimiento de sí y el reconocimiento de la propia ignorancia, hacen de la aporía, como experiencia, un elemento de gran valor para la formación humana. Aunque provoque malestar, destaca su utilidad para romper los prejuicios y encontrar la disposición para aprender. Cuando aprendemos, un conocimiento nuevo es objeto de juicios con base en pre-juicios provenientes de aquello que se sabe o se cree saber. Pero en lo que respecta a Sócrates y lo que sabemos de él gracias a la filosofía platónica, podemos ver que las preguntas, y la sensación de incertidumbre e inseguridad que provocan, son el medio en la búsqueda del conocimiento, el punto de partida para 242 243 Ibid., p. 37. Cfr. Ibid., p. 38. 378 construir el conocimiento mediante la razón, precisamente, a partir del punto sin salida que representa la aporía. 379 Referencias bibliográficas Aguirre Santos, Javier. La aporía en Aristóteles. Madrid, Dykinson, 2007. Bowen, James. Historia de la educación occidental. Tomo primero. Barcelona, Herder, 3ª edición, 1990. Cantón Arjona, Valentina. “El sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío.” En: Revista La Vasija, núm. 2, abril-julio 98, México, pp. 32-38. Diccionario Manual VOX. Griego-Español. Por José M. Pabón S. de Urbina, 18ª edición, España, 1998. Platón, Teeteto. Diálogos, Tomo V. Introducción, traducción y notas de Álvaro Vallejo Campos. Madrid, Gredos, 2000. pp. 167-311. (Biblioteca Clásica No. 117) ______, Menón. Introducción, versión y notas de Ute Schmidt Osmanczik. México, UNAM, Coordinación de Humanidades, 1975. 380 Discursos de Crotona y el ideal de formación pitagórico María Cristina Rico León244 FFyL, UNAM [email protected] Introducción Entre los filósofos griegos, sobre todo aquellos que dejaron escritos, es fácil identificar aquellas aportaciones hechas a la educación, y delimitar el sentido del ideal de formación humana por ellos propuesta; sin embargo, aún hay temas y filósofos poco conocidos para los profesionales de la educación que constituyen líneas de estudio escasamente exploradas pero que aportan elementos de reflexión sobre temas pedagógicos. Es preciso comenzar diciendo que la educación para esos filósofos, condensada en el vocablo paideia, hacía referencia a una concepción de la formación humana en un sentido muy amplio, similar a lo que hoy en día podríamos llamar “formación integral”. En ese sentido, la labor de Pitágoras como educador fue notable durante su época, ya que fundó una escuela filosófica que tuvo gran influencia en la sociedad y gobierno de Crotona (ciudad de la Magna Grecia, localizada en el sur de Italia), y cuyos discípulos se destacaron por llevar un modo de vida singular, llamado “pitagórico”. Fue así como el legado de Pitágoras alcanzó a filósofos como Platón y Aristóteles, quienes incluso hacen mención de él, o de sus discípulos, en sus escritos. El tema que compete a esta ponencia se relaciona con dos aspectos del legado de Pitágoras que, a mi parecer, resultan importantes para la Filosofía de la educación: los discursos pronunciados a su llegada a la ciudad de Crotona y, por otro lado, el ideal de formación que concibió para la escuela que fundó en esa ciudad. Mi propósito es exponer una muestra de la filosofía de Pitágoras y destacar la importancia de este filósofo para la Filosofía de la educación; para ello, he retomado el texto de Conrado Eggers Lan Los filósofos presocráticos, en el que compila los discursos de Crotona (con referencias de Diógenes Laercio, Porfirio y 244 Licenciada en Pedagogía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México; miembro del Seminario de Filosofía de la Educación (PIFFyL 2010 014). 381 Jámblico), y el libro Pitágoras (El Maestro de la Armonía), de Josefina Maynadé, para tratar lo concerniente a la formación en la escuela pitagórica. La figura de Pitágoras A diferencia de otros filósofos, cuyo legado está más o menos documentado, lo que se sabe en torno a Pitágoras está permeado por la leyenda y el misticismo propio de su escuela de pensamiento y sus discípulos, aunado a la falta de escritos que pueden atribuírsele con certeza. Sin embargo, los textos consultados de historiadores de la filosofía no han dejado de lado estas especulaciones, por lo que, a pesar de las dudas y discusiones en torno a la figura de este filósofo, podemos confiar en que las aseveraciones hechas por ellos están debidamente documentadas. Pitágoras “Nació tal vez al comienzo del siglo VI a. C. en Samos, isla del mediterráneo oriental”,245 al suroeste de la costa de la actual Turquía. Al parecer, se trataba de una isla de gran intercambio comercial y cultural. Fundó una sociedad de carácter místico hacia la segunda mitad del siglo VI, en la que se enseñaban conocimientos científicos y filosóficos. Se sabe, incluso, que esta sociedad llegó a consolidarse como fuerza política y que estuvo conformada por más de trescientas personas. Hay escritos que aseguran que antes de llegar a esta ciudad, Pitágoras recorrió varios lugares y aprendió de distintas culturas, por ejemplo, Egipto y Babilonia, donde, según Eggers Lan, se dice que pasó tiempo con los sacerdotes y fue iniciado en los ritos bárbaros, respectivamente;246 en este contexto, el término “bárbaro” se usaba para referirse a todo aquello que no provenía de los griegos. Existe discusión sobre si este filósofo dejó o no escritos; incluso se ha llegado a cuestionar su existencia.247 La incertidumbre se debe, en gran medida, a que sus biógrafos (neopitagóricos y neoplatónicos) escribieron varios siglos después de la muerte del filósofo; por estas limitaciones, resulta difícil hacer una distinción entre la historia y la leyenda que rodean a este personaje. 245 Llanos, Alfredo. Los presocráticos y sus fragmentos. Juárez Editor, Buenos Aires, 1968, pp. 82-83. A este respecto, Cfr. Eggers Lan, Conrado. Los filósofos presocráticos. Tomo I. Biblioteca Clásica Gredos, 3ª reimpresión, Madrid, 1978. pp. 164-165 y 189. 247 Cfr. Ibidem. p. 149. 246 382 En cuanto a los escritos que se le atribuyen, uno de los más difundidos son los Versos Áureos, que tal vez fueron recopilaciones de sus preceptos hechas por sus discípulos. Alfredo Llanos, en su obra Los presocráticos y sus fragmentos, condena la noción de que Pitágoras no realizó escritos (tal vez apoyado en el testimonio de Diógenes Laercio (VIII, 6-7) y asegura que dejó tres: Sobre la educación, Sobre la política y Sobre la naturaleza.248 Sin embargo, lo que se sabe de Pitágoras, tal vez habría que adjudicárselo a su escuela y discípulos. Por otro lado, se encuentran los cuatro discursos que debió dar Pitágoras a su llegada a Crotona, mencionados por Jámblico en su Vita Pitagorae (VIII 37-45).249 A pesar del testimonio, hay otras opiniones al respecto de la llegada de este filósofo a la Magna Grecia, que cuestionan, incluso, los sucesos narrados en los discursos argumentando que, al ser la escuela pitagórica una comunidad de culto, es muy probable que se atribuyeran muchas anécdotas a su fundador, en un afán por consolidar y legitimar su legado, tal como ocurrió con la figura de Orfeo para la religión de los misterios. Mensaje a los ciudadanos de Crotona Como haya ocurrido, lo cierto es que la escuela de Crotona constituye el legado más importante de este filósofo al desarrollo del pensamiento en la Magna Grecia. Al respecto de su llegada a esta ciudad un testimonio de Porfirio menciona que: […] apareció como un hombre que había viajado por muchos lugares, […] de aspecto noble y muy agradable […]. Produjo en el Estado de Crotona tal efecto que, después de conmover las almas de los ancianos gobernantes con largos y bellos discursos, éstos lo invitaron a pronunciar exhortaciones adecuadas a la edad de los jóvenes y a los niños congregados en los colegios, y luego a las mujeres […] Al suceder estas cosas, creció grandemente su fama, y ganó muchos discípulos de esa ciudad, no sólo hombres sino también mujeres […] así como muchos reyes y gobernantes de países bárbaros vecinos.250 Pues bien, los discursos pronunciados en Crotona, contenidos en la obra de Jámblico sobre la vida de Pitágoras, resultan de gran importancia debido al contenido educativo que de ellos se puede extraer, dado que brindan pautas para entender la concepción del ideal de formación 248 Cfr. Llanos. Op. cit. pp. 82-83. Citado en Eggers Lan. Op. cit. pp. 169-180. 250 Porfirio. Vida de Pitágoras, 18-19. Citado en Ibidem. p. 167. El empleo del término “colegio”, más que referirse a una institución, en este contexto se usa para denotar que los niños pertenecían a familias nobles y que se encontraban en edad escolar (para distinguirlos de los jóvenes). 249 383 humana de este filósofo. Desde su llegada a la ciudad, la forma en que fue acogido por sus habitantes, la manera en como habló a los sectores más importantes de la población, los consejos que les dio y, en general, la forma de conducirse de este filósofo, revelan a un hombre sabio y dotado de un sentido especial para buscar y encontrar la armonía. En ese sentido, el testimonio de Jámblico resulta muy ilustrativo, pues menciona que: Pocos días después de su llegada a Crotona […] visitó la escuela. [A] los jóvenes […] les dirigió unas palabras, por medio de las cuales los exhortó a estimar más a los más ancianos. Mostró que, tanto en el universo como en la vida, en los Estados y en la naturaleza, es más venerado lo que precede en el tiempo que lo que le sigue […] Dijo estas palabras con el propósito de inducirlos a que valoraran más a sus progenitores que a sí mismos […] Y declaró que, en el trato mutuo, obrarían más afortunadamente si jamás se erigían en enemigos de sus amigos, y si se hacían lo más rápidamente posible amigos de sus enemigos […] A continuación habló sobre la moderación, afirmando que la edad de los adolescentes pone a prueba su naturaleza en la época en que sus deseos alcanzan mayor fuerza. […] Sólo esa virtud, les reveló, abarcaba tanto los bienes del cuerpo como los del alma, preservando la salud y el deseo para las mejores realizaciones vitales. […] También exhortó a los jóvenes respecto de su formación integral [que incluye el ejercicio del raciocinio y del cuerpo]. [Pitágoras] sobresalía entre todos por su amor a la sabiduría. En efecto, se dio a sí mismo este nombre <el de filósofo>, en lugar del de sabio.251 De lo anterior pueden extraerse varias ideas, entre ellas, que la formación integral y la forma de vida moderada (con ejercicio de actividades propias para el cuerpo y el alma) proveen al individuo los mayores bienes. Pitágoras consideró, incluso, que esto hace diferentes a unos de otros, es decir, a los hombres de los animales, a los filósofos de los hombres comunes y, en fin, a los más aventajados en cada género de actividades. El testimonio sobre el siguiente discurso asevera que, después de pronunciar aquellas palabras a los jóvenes, éstos narraron a sus padres lo que el filósofo les había dicho: […] el Consejo de los Mil invitó a Pitágoras y, tras elogiarlo […] le preguntaron si tenía algo de provecho que decir a los crotoniatas, para hacérselo saber a los que presidían el gobierno. En primer lugar, les aconsejó erigir un templo a las Musas, a fin de preservar la armonía existente. Todas estas diosas, en efecto, llevan el mismo nombre y tradicionalmente han sido consideradas juntas […] en conjunto el coro de las Musas es uno y el mismo y abarca concordia, armonía, ritmo y todo lo que produce consenso. Y les indicó que el poder de ellas alcanza no sólo a las cosas más bellas que se pueda contemplar, sino también a la concordia y armonía 251 Jámblico, Vita Pitagorae, VIII 37-45. Citado en Ibidem. pp. 169-172. Este autor asevera más adelante que la palabra griega correspondiente a “formación integral” es, justamente, paideia (p. 177). 384 de los seres. [Después habló sobre la forma en que debían comportarse los miembros del Consejo, éstos, dijo] Debían administrar sus propias casas de modo que se pudieran comparar sus decisiones políticas con las privadas. […] En cuanto a orden y templanza debían convertirse en paradigma para los de su casa y para los conciudadanos.252 Se dice que después de escuchar a Pitágoras, los miembros del Consejo erigieron un templo a las Musas y le pidieron que hablara también a los niños y a las mujeres. Llegado a este punto, resalta la importancia que daba a las musas como portadoras de la armonía, misma que hizo extensiva a la forma de vida, por lo que exhortó a los integrantes del Consejo a llevar en “armonía” los asuntos de su casa y de su ciudad, pues eran ejemplo para los demás y debía relucir la nobleza de su carácter. De este tema habló también a los niños en los siguientes términos: Debían poner atención en la formación integral [paideia] la cual llevaba ese nombre por la edad de ellos [pais-niño]. Para el niño que obrara bien sería fácil conservar la nobleza de carácter toda la vida; […] deberían ser merecedores del amor de éstos [los dioses, quienes los cuidan durante esta edad] y ejercitarse en el escuchar a fin de capacitarse para el hablar; además, para disponerse a marchar hacia la vejez, debían ponerse en movimiento y seguir a los que ya habían andado ese camino y no contradecir en nada a los mayores.253 En este pasaje destaca el hecho de que los más amados por los dioses son precisamente los niños, porque son los más puros y por esta causa los dioses Apolo y Eros eran representados como niños. A pesar de la importancia que tiene la educación en esta edad, Eggers Lan destaca que el discurso no abunda más allá de la importancia de obrar bien, saber escuchar y obedecer a los mayores, sino que se limita a asignar a los dioses, en especial a Apolo, un papel importante ante los niños. A pesar de ello, me parece necesario destacar un aspecto del discurso que, como se verá, tuvo un papel importantísimo en la escuela pitagórica: el silencio como ejercicio para escuchar, pero no como un mero acto de obediencia de los más jóvenes hacia sus mayores sino como un auténtico ejercicio de moderación y formación del carácter, quizá, el aspecto más distintivo de los que fueran sus discípulos. 252 253 Ibidem. pp. 173-176. Jámblico, Vita Pitagorae, X 51-53. Citado en Ibidem. pp. 176-178. 385 Del último discurso se cuenta que, al dirigirse a las mujeres, habló en el sentido de la devoción y el ofrecimiento de sacrificios. Las exhortó a valorar la conducta virtuosa y a procurar “hablar bien a lo largo de toda su vida y a ver que los demás pudieran hablar bien de ellas”.254 Es necesario señalar que, desde tiempos homéricos, se consideraba que la areté (virtud) propia de la mujer era la belleza, aunque en su posición social y jurídica de señora de la casa también se le atribuían otras como el sentido de modestia y destreza en el gobierno de la casa.255 Como puede verse, a lo largo de los discursos Pitágoras habló a los distintos sectores de la sociedad de Crotona (jóvenes, gobernantes, niños y mujeres), en los términos que correspondía a cada uno, resaltando las responsabilidades individuales que, en conjunto, procurarían bienes para la comunidad. Se podría decir que, en su concepción, una ciudad armoniosa sólo llegaría a consolidarse si los individuos que la conforman se dedicaban a la consecución de esta armonía y a cultivar la conducta virtuosa. Educación y forma de vida en la escuela pitagórica Ahora bien, para hablar propiamente de la escuela que fundó en Crotona, es preciso resaltar el hecho de que para los griegos de las primeras escuelas filosóficas los conceptos y conocimientos científicos no estaban separados de sus concepciones éticas, metafísicas y religiosas. Por el contrario, todo el conocimiento se reflejaba en el estilo de vida que adoptaban. Para ellos, el individuo no estaba visto como algo fragmentado sino que era concebido como una unidad reflejo del orden universal (cosmos). El ideal de formación, por tanto, no era ajeno a esta concepción, pues buscaba precisamente que el individuo reflejara, tanto en su cuerpo como en su alma, cualidades relacionadas con valor y belleza. Es posible que los griegos tuvieran contacto con culturas de oriente, como Egipto, Fenicia, Babilonia y, tal vez, la India, para las cuales la relación del individuo con su entorno (la comprensión y cuidado de éste), le procuraba un estado de equilibrio físico y espiritual. 254 Jámblico, Vita Pitagorae, XI 54-57. Citado en Ibidem. p. 179. A este respecto Vid. Jaerger, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Fondo de Cultura Económica, 1ª reimpresión, México, 1967, p. 36. 255 386 Antes de continuar, haré un paréntesis para destacar otro aspecto de Pitágoras, tal vez el más difundido: que fue él quien introdujo los estudios (mathémata) que incluían los números, la música, los astros y, al parecer, que fue el primero en destacar las habilidades educadoras de la armonía y la belleza. Por el legado que se conoce de la escuela que fundó y por situar a los números como centro de su filosofía, se puede entender en gran medida la importancia que tuvo este filósofo en la historia del pensamiento griego. Pues bien, Mathémata256, plural de Mathema [vocablo derivado del verbo mathein, que significa conocer o aprender] significaba en griego lo que se ha aprendido o entendido, o conocimiento adquirido; pero bien entendido que mathema no se refiere a un tipo determinado o específico de conocimiento sino a todas las formas de conocimiento, antes de que el término derivado —matemáticas— adquiera el sentido más especializado que nosotros le damos en la actualidad. Para los pitagóricos, los mathémata fueron, incluso, parte de su religión, porque creyeron que al revelar la armonía del mundo, expresada en la armonía de los números y sus relaciones, encontrarían un camino hacia la unión con lo divino. En la escuela, además, se llevaba un modo de vida específico, llamado pitagórico, en el marco de una sociedad religiosa. Alfredo Llanos, asevera que la escuela de pensamiento fundada por Pitágoras “inspiró un poderoso movimiento en el que se mezcló lo científico, lo místico, lo religioso y lo político”.257 A pesar de que la aseveración de este autor resulta muy ilustrativa, no debe perderse de vista que en realidad todos estos aspectos no eran considerados por separado para los griegos de la época de Pitágoras (no estaban, como en la actualidad, diferenciados como disciplinas), sino que tenían un origen común y, además, implicaciones recíprocas. Ha habido discusiones en cuanto a las enseñanzas que ahí se daban, pues “lo que [Pitágoras] decía a sus discípulos no hay nadie que lo sepa con certeza, y guardaban entre ellos un silencio nada común”;258 o al menos eso sabemos gracias al testimonio de Porfirio. A pesar de esto, más adelante menciona que las cosas más importantes sí llegaron a ser conocidas por 256 Referencias al vocablo mathe entendido como that wich is learnt, lesson, en distintos autores griegos pueden encontrarse en Liddell, Henry George and Robert Scott. Greek-English Lexicon. Oxford, University Press, 1983, p. 1072. 257 Llanos. Op. cit. pp. 82-83. 258 Porfirio. Vida de Pitágoras, 19. Citado en Eggers Lan. Op. cit. pp. 203-204. 387 todos, y hay testimonios de que practicaban un modo de vida que los diferenciaba del resto de los hombres. En palabras de Josefina Maynadé, el “ideal [de la escuela pitagórica] era forjar una nueva juventud helena, [mediante una] enseñanza que abarcara el aspecto físico, mental y espiritual del individuo. Una pedagogía […] basada en la belleza y en la armonía”. 259 Esta autora asevera que Pitágoras concedía a la belleza el papel de maestra tácita de su escuela, por lo que acuña el término de Pedagogía de la belleza. Menciona que esta forma integral de pedagogía lograba un incremento de belleza, elegancia y salud; además de ejercer un influjo benéfico en las emociones y pensamientos de los discípulos, porque el ideal del pitagórico era la elegancia, pero en su forma más completa, del cuerpo y el espíritu. Hay testimonios de que el tipo de educación que ofrecía fue muy apreciado en su época y que los aspirantes debían aprobar un proceso de selección.260 Porfirio (54-55) menciona una ocasión en que Pitágoras examinó la fisonomía de un hombre llamado Cilón y que, al darse cuenta de cómo era su carácter a través de sus rasgos corporales le ordenó que se fuera. Este ejemplo ilustra la creencia de que los aspirantes debían pasar un examen fisiognómico y, por otro lado, que los años de silencio en el primer grado también constituían un examen de admisión o especie de noviciado. Pues bien, se dice que en esta escuela convivían jóvenes de ambos sexos y que el modo de vida implicaba la colaboración entre sus miembros. Los recién llegados entraban a un primer grado que era el de los acusmáticoi261 o “silenciosos”. Akoúsmata (plural de akoúsma) proviene del verbo akoúō “escuchar” o también “ser alumno de”, periodo durante el cual debían guardar el más absoluto silencio (dos o tres años, aunque algunos autores afirman que eran hasta cinco años) con el fin de que aprendieran a obedecer, escuchar, observar y recordar, ejerciendo dominio sobre sus impulsos. Al parecer, seguían sentencias orales o instrucciones pero sin una descripción rigurosa;262 según Diógenes Laercio, “escuchaban los 259 Maynadé, Josefina. Pitágoras (El Maestro de la Armonía). Ed. Orion, México, 1975. p. 52. Cfr. Eggers Lan. Op. cit. pp. 196, 226-227. 261 A este respecto Cfr. Ibidem. p. 223. Eggers Lan traduce el término como sentencias orales, en las que consistía la filosofía de estos nuevos pitagóricos. 262 Cfr. Porfirio. Vida de Pitágoras, 37. Citado en Ibidem. p. 225. 260 388 discursos, y nunca veían Pitágoras hasta que aprobaban el examen; desde entonces se volvían <miembros> de su casa y participaban del mirarlo”.263 El segundo grado lo conformaban los matematicoi o “matemáticos”.264 Eggers afirma que la división de los pitagóricos entre acusmáticos y matemáticos no debe datar del tiempo de Pitágoras, aunque es probable que sí hubiera una diferenciación entre los más avanzados, que ya habían aprendido más, y los novatos. Durante este periodo los discípulos se concentraban en el estudio de las artes basadas en los principios matemáticos y las ciencias. Aprendían la importancia de los números como sustentadores de las leyes armónicas y rítmicas del universo y sus relaciones con las ideas y los símbolos. En palabras de Josefina Maynadé “El primer día del segundo grado era de fiesta porque en él un pitagórico nacía a la palabra. […] [Ya había aprendido que] sólo se debía hablar cuando la palabra es más valiosa que el silencio”.265 En el tercer grado, llamado teofánico, se estudiaba el ier s-Logós266 o la “Palabra sagrada”. En la obra de Guthrie Orfeo y la religión griega, menciona que se atribuían ciertos poemas con el título principal de hier s logós a Orfeo y que, por ejemplo, se hayan citados en la obra de Heródoto en conexión con el ritual órfico. En este grado, se acercaban al estudio de las civilizaciones pasadas y antiguas sabidurías, sus lenguas y libros sagrados. Por último, el cuarto grado, de los politicoi o “políticos”, lo conformaban aquellos discípulos consagrados al servicio de la comunidad.267 En él aprendían a fondo la historia y tradiciones nobles y las leyes, todo a la luz de la filosofía y la moral pitagóricas. Las lecciones se encaminaban a que los discípulos más adelantados se situaran, según sus aptitudes, en cargos públicos sirviendo como pedagogos, oradores, diputados, artistas, juristas, legisladores o gobernantes.268 Servían de este modo a la comunidad como individuos bien formados, completos y armónicos. Se dice, incluso, que en esa época de esplendor era motivo de orgullo poseer como legisladores, oradores, pedagogos, artistas, etc., a los pitagóricos. Es en este punto donde la relación entre lo que planteó inicialmente a los 263 Diógenes Laercio, VIII 10. Citado en Ibidem. p. 214. Cfr. Ibidem. p. 225. 265 Maynadé. Op. cit. pp. 97-98. 266 Cfr. Guthrie, W. K. C. Orfeo y la religión griega. Estudio sobre el movimiento «órfico». Madrid, Siruela, 2003, p. 66. 267 Cfr. Maynadé. Op. cit. pp. 100-102. 268 Cfr. Ibidem. pp. 94 y 102-103. 264 389 ciudadanos de Crotona con los discursos, encontró su cauce en la formación de los pitagóricos quienes, como seres armoniosos y moderados, servirían a su comunidad en la misma medida. Haciendo un recuento de lo expuesto hasta ahora, se puede destacar que el ejercicio filosófico de la escuela pitagórica tenía un fin definido, a saber, formar seres armoniosos en todos los sentidos. El modo de vida que llevaban era acorde con este fin y se dedicaban a los mathémata como parte de su religión, pues todo el conocimiento era visto en conjunto. Creían que si podían penetrar en el secreto de la armonía de los números podrían comprender también al universo, ya que los números se inscriben en una realidad perfecta del cual nuestro mundo es un reflejo. A este respecto, es notable la semejanza que guarda con la concepción platónica de la realidad o teoría platónica de las ideas. Por otro lado, en lo que posteriormente se conoció en educación como “artes liberales”, los mathémata de Pitágoras guardaron gran correspondencia con el quadrivium: la aritmética, la geometría, la música y la astronomía. De hecho, se atribuye al pitagórico Arquitas de Tarento la clasificación de estas cuatro ramas del quadrivium.269 A manera de conclusión, puedo decir que el acercarme a los discursos pronunciados en Crotona, la escuela pitagórica y su ideal de formación, me han dado pauta para entender mejor la filosofía de Pitágoras como educador, y valorar sus aportaciones en cuanto a la formación humana. ¿Qué tiene para decirnos con respecto a la educación? En primer lugar, nos ayudaría a recordar que este fenómeno de la cultura puede verse desde una perspectiva mucho más amplia a la que estamos acostumbrados, una concepción de formación del ser humano (en el sentido amplio de “tomar forma”) más allá de la instrucción y los procesos de enseñanza y aprendizaje. ¿Por qué es importante el conocimiento de las aportaciones de este filósofo para los profesionales de la Pedagogía y para la Filosofía de la educación? Pues bien, en una época en que los discursos de las instituciones educativas apuntan hacia la importancia de una formación integral para los individuos con el fin de que sean ciudadanos provechosos para su comunidad (y su nación), lo expuesto sobre Pitágoras y los pitagóricos nos ayuda a reconocer 269 González Urbajena, Pedro Miguel. Pitágoras. El filósofo del número. Colección La matemática en sus personajes. Ediciones Nivola, 2ª edición, España, 2007, p. 82. 390 de inmediato que todo este discurso se basa en una idea nada nueva para el campo de la educación. El legado de los pitagóricos es importante porque influyó en la educación de siglos posteriores y, en este sentido, resulta relevante dentro de la Filosofía de la educación. La Pedagogía, por tanto, no puede restar importancia y mucho menos ser ajena a la producción filosófica de autores clásicos y contemporáneos, en este caso de Pitágoras, ya que brindan pautas para la reflexión y la investigación en torno a temas educativos. Referencias bibliográficas Eggers Lan, Conrado. Los filósofos presocráticos. Tomo I. Biblioteca Clásica Gredos, 3ª reimpresión, Madrid, 1978, Pp.518. González Urbajena, Pedro Miguel. Pitágoras. El filósofo del número. Colección La matemática en sus personajes. Ediciones Nivola, 2ª edición, España, 2007, Pp. 252. Guthrie, W. K. C. Orfeo y la religión griega. Estudio sobre el movimiento «órfico». Madrid, Siruela, 2003, Pp. 398. Jaeger, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Fondo de Cultura Económica, 1ª reimpresión, México, 1967, Pp. 1151. Liddell, Henry George and Robert Scott. Greek-English Lexicon. Oxford University Press, Ninth edition, Great Britain, 1983, Pp. 2042. Llanos, Alfredo. Los presocráticos y sus fragmentos. Juárez Editor, Buenos Aires, 1968, Pp. 359. Maynadé, Josefina. Pitágoras (El Maestro de la Armonía). Ed. Orion, México, 1975, Pp. 143. 391 A CONCEPÇÃO CRÍTICA DE EDUCAÇÃO EM ÁLVARO VIEIRA PINTO Rodrigo Marcos de Jesus Resumo: Este trabalho inscreve-se numa pesquisa mais ampla sobre as relações entre democracia e educação em três das principais tendências da filosofia da educação brasileira no século XX, a saber: o escolanovismo de Anísio Teixeira, a pedagogia da libertação de Paulo Freire e a pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Tal pesquisa pretende apontar as bases filosóficas e pedagógicas dos autores supracitados e suas implicações políticas e sociais, destacando-se influências, convergências e diferenças. Neste sentido, o estudo em questão apresenta a concepção crítica da educação em Álvaro Vieira Pinto, autor de fundamental importância para a compreensão da pedagogia freireana. Com efeito, categorias centrais da pedagogia da libertação se ancoram em conceitos elaborados por Vieira Pinto em três livros principais que serviram de base para nossa investigação, são eles: Ideologia e Desenvolvimento Nacional, Consciência e Realidade Nacional e Sete Lições sobre Educação de Adultos. Procederemos, assim, a uma sistematização da concepção crítica de educação em Álvaro Vieira Pinto enfatizando os seguintes aspectos: conceito geral de educação; 392 características das consciências ingênua e crítica e suas implicações para a concepção de educação; relação entre educação, desenvolvimento nacional e democracia; formação do educador; papel do filósofo no país subdesenvolvido. Ao final indicaremos algumas correlações conceituais entre o pensamento de Vieira Pinto e a pedagogia de Freire, sobretudo no período dos anos 1950-60. Dessa forma, pretendemos contribuir para o resgate de um ponto importante da filosofia da educação no Brasil que tem sido pouco abordado nas análises históricas. Palavras-chave: Educação; concepção ingênua; concepção crítica. Introdução Álvaro Vieira Pinto é um ilustre filósofo desconhecido. Autor de uma obra vasta (e em grande parte ainda inédita270) foi figura intelectual importante do ISEB271 nos anos anteriores ao Golpe Militar brasileiro. Com o novo regime sofreu o exílio e o posterior ostracismo. Contudo, curiosamente, uma pequena obra sua – composta dos roteiros de um curso sobre educação de adultos em 1966 – recebeu mais de dez edições. Nesta obra, Sete Lições sobre educação de adultos, encontramos uma síntese das ideias de Vieira Pinto sobre educação. Aí notamos como o autor faz uma aplicação de suas investigações sobre a consciência crítica e ingênua, elaboradas no livro Consciência e Realidade Nacional (1960), à análise do conceito de educação. Além disso, vislumbramos muitas afinidades entre o pensamento de Álvaro e o de Paulo Freire. Com efeito, este último fora fortemente influenciado pela interpretação isebiana da realidade brasileira em suas primeiras obras (Educação e Atualidade Brasileira, 1959; Educação como prática da liberdade, 1965) e desenvolve alguns de seus principais 270 Em entrevista a Saviani o autor menciona as seguintes obras: um livro sobre tecnologia (publicado em 2005 com o título O Conceito de tecnologia); outro sobre Filosofia Primeira; A educação para um país oprimido; Considerações éticas para um povo oprimido; A sociologia do país subdesenvolvido (publicado em 2008); A crítica da existência e a obra em questão Sete lições sobre educação de adultos. Cf. VIEIRA PINTO, 2010, p. 21. 271 Instituto Superior de Estudos Brasileiros: órgão do Ministério da Educação e Cultura criado em 1955 e extinto em 1964. Tinha como objetivo o estudo, ensino e divulgação das ciências sociais, cujos dados e categorias seriam aplicados à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira e deveriam permitir o incentivo e promoção do desenvolvimento nacional. 393 conceitos a partir de categorias de Vieira Pinto. Daí não ser difícil perceber similaridades entre os pensamentos dos dois filósofos como fica evidente ao leitor que conhece a obra de Freire e se depara com as lições de Álvaro. Lições que, atente-se, foram proferidas no Chile a convite de Paulo Freire. Neste trabalho procederemos a uma sistematização da concepção crítica de educação em Álvaro Vieira Pinto – autor de fundamental importância para compreensão da pedagogia freireana – enfatizando os seguintes aspectos: conceito geral de educação; características das consciências ingênua e crítica e suas implicações para a concepção de educação; relação entre educação, desenvolvimento nacional e democracia; formação do educador; papel do filósofo no país subdesenvolvido. Nossa intenção é contribuir para o resgate desse relevante pensador da filosofia da educação no Brasil que tem sido pouco abordado nas análises históricas. Ressalte-se que essa investigação inscreve-se numa pesquisa mais ampla sobre as relações entre democracia e educação em três das principais tendências da filosofia da educação brasileira no século XX, a saber: o escolanovismo de Anísio Teixeira, a pedagogia da libertação de Paulo Freire e a pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Tal pesquisa pretende apontar as bases filosóficas e pedagógicas dos autores supracitados e suas implicações políticas e sociais, destacando-se influências, convergências e diferenças. Conceito geral de Educação Álvaro Vieira Pinto apresenta um conceito amplo de educação relacionado à existência humana em todos os seus aspectos e em toda sua duração. Indaga sobre o fundamento da educação para além de suas especificidades: educação infantil, de jovens ou de adultos. Define assim a educação como formação, no sentido da Bildung alemã ou da Paideia grega. A educação, portanto, é a formação do homem pela sociedade. Nas palavras do autor: “A educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua imagem e em função de seus interesses” (2010, p. 31). Colocada a definição geral o filósofo explicita os caracteres histórico-antropológicos da educação. Sintetizemo-los. A dimensão histórica pertence à essência da educação que, enquanto processo, se desenvolve em plano duplo e articulado: individual (a formação de cada ser humano) e coletivo (relativo à fase de desenvolvimento vivida por uma determinada comunidade). Sendo 394 assim, a educação mostra-se como um fato existencial, processo constitutivo do ser do homem. Em outros termos: através da educação se produz a humanidade no homem. E é também um fato social. “É o procedimento pelo qual a sociedade se reproduz a si mesma ao longo de sua duração temporal” (2010, p. 32). Entretanto, a autorreprodução da sociedade contém uma contradição. Por mais que a sociedade deseje manter-se a mesma o próprio processo educativo engendra uma dinâmica diferente ao apontar para o progresso social, isto é, para a diferenciação do futuro em relação ao passado. A incorporação de novos membros à sociedade leva-a a integrar esses membros à estrutura vigente sem contudo barrar a criação do novo, uma vez que o homem, ser livre e criador de cultura, não só assimila o saber transmitido pela sociedade como resultado da própria educação mas o recria. Como fenômeno cultural “a educação é a transmissão integrada da cultura em todos os seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita” (2010, p. 33). Daí ser ao mesmo tempo a transmissão ao indivíduo dos conteúdos (crenças, valores, conhecimentos, etc) e das formas ou métodos utilizados por uma sociedade em determinado grau de desenvolvimento. A transmissão, no entanto, não se resume a um aspecto passivo. À educação transmissiva (a aprendizagem da cultura existente) sucede a educação inventiva (fase criadora da cultura). E nesse sentido a educação mostra-se como um processo exponencial que se multiplica com sua própria realização: quanto mais educado, mais o homem necessita de educação. “Por consequência a educação é a cultura simultaneamente como feita (porém não como acabada) no educador que a transmite, e como fazendo-se no educando, que a recebe (refazendo-a), por conseguinte, capacitando-se a se tornar o agente de ampliação dela” (2010, p. 39). Construção social, a educação naturalmente reflete as estruturas e os interesses dos grupos dirigentes de uma sociedade. Isso indica duas coisas. A primeira, que a educação se desenvolve sobre o fundamento do processo econômico da sociedade, pois este “determina as possibilidades e as condições de cada fase cultural”, “a distribuição das probabilidades educacionais na sociedade”, “proporciona os meios materiais para a execução do trabalho educacional” e “dita os fins gerais da educação” (cf. 2010, p. 34). A segunda, que a educação é parte do trabalho social uma vez que forma os indivíduos para o desempenho de uma função de trabalho no campo de atividade total da comunidade, o educador é também um trabalhador e a educação de adultos dirige-se a outro trabalhador a fim de elevar sua condição de trabalho. Ao destacar o fundamento social e econômico da educação, Álvaro não procede a 395 uma redução de tipo economicista ou crítico-reprodutivista272. Ainda que reconheça a divisão de classe no processo educacional de sociedades desenvolvidas economicamente, o filósofo não deixa de apontar a natureza contraditória de toda educação. Isso implica reconhecê-la como simultaneamente conservadora e criadora. “Somente desta maneira é [a educação] profícua, pois do contrário seria a repetição eterna do saber considerado definitivo e a anulação de toda possibilidade de criação do novo e do progresso da cultura” (2010, p. 36). Outra característica apontada por Álvaro e de importância capital é a dependência do conceito de homem. Ora a educação do indivíduo visa a um fim, ou seja, é sempre uma atividade teleológica. Como afirma o autor: Não se pode pretender formar um homem sem um prévio conceito ideal de homem. Este modelo, contudo, é um dado de consciência e, portanto pertence à consciência de alguém; concretamente, de alguém que está num dado tempo, num espaço, em definida posição social. De acordo com a natureza (posição, interesse, fins) da consciência que comanda o processo educacional, tal será o tipo social de educação (2010, p. 37). Desse modo, todo projeto de educação se dirige para a formação de um “tipo” de homem que corresponderá ao “tipo” de sociedade que se deseja perpetuar ou construir. Daí a necessária clareza que deverá ter o educador dos objetivos políticos e sociais implícitos ou explícitos nos conteúdos e meios do processo educativo, pois não há educação que não seja intencional. Portanto, a educação é essencialmente concreta. Pode até ser pensada a priori, mas o que a define é a sua realização objetiva. Realização condicionada histórica e materialmente, envolta em interesses sociais conflitivos. Por isso, Álvaro considera toda discussão meramente abstrata em educação prejudicial e inútil, revelando-se na verdade em uma estratégia da consciência dominante para justificar sua dominação e deixar de cumprir seus deveres culturais para com o povo. Noção de Consciência: Ingênua e Crítica Como a educação é um fato de ordem consciente, determinada pelo grau de compreensão da realidade objetiva e dirigida a um fim cabe então indagar o que é essa consciência e quais suas modalidades possíveis. Nesse sentido, Álvaro desenvolve uma 272 Cf. a crítica de Saviani às chamadas teorias crítico-reprodutivistas em Escola e Democracia. 396 categorização das formas de consciência com o intuito de indicar como tais modos configuram concepções distintas de educação. Inicialmente definamos consciência. Afirma o filósofo, a consciência é “representação mental da realidade exterior, do objeto, do mundo, e representação mental de si, do sujeito, autoconsciência” (2010, p. 61). Contudo a representação da realidade do mundo e de si pode se configurar, em linhas gerais, de duas maneiras: ingênua e crítica. Quer dizer, se por um lado a realidade antecede a consciência, por outro o modo de intelecção dessa realidade assim como a ação que se projeta a partir dessa compreensão são distintos. E isso repercutirá nas formas de se entender e atuar em educação. Sendo assim, a consciência ingênua é definida como “aquela que não inclui em sua representação da realidade exterior e de si mesma a compreensão das condições e determinantes que a fazem pensar tal como pensa” (2010, p. 61). Ao não incluir o mundo objetivo como seu determinante, a consciência ingênua coloca-se como absoluta, produtora da realidade, como se as ideias se originassem de si mesmas e configurassem o mundo. Isso resulta em uma falta de percepção histórica. A consciência crítica, ao contrário, “é a representação mental do mundo exterior e de si, acompanhada da clara percepção dos condicionamentos objetivos que a fazem ter tal representação” (2010, p. 62). Disso decorre suas características de objetividade (o mundo como origem das ideias), totalidade (percepção do todo), historicidade (refere-se a si mesma situada no espaço e no tempo) e de processo (vê-se a si e ao mundo em constante mudança). A consciência crítica sabe-se também pertencente a uma nação, pois, ao ser objeto para si se compreende como pertencente a um tempo e espaço que é histórico, material, social e nacional. Afinal, em nosso momento histórico a nação marca nossa origem e forma de pensar. Perceber-se num país central, desenvolvido ou num país periférico, subdesenvolvido (ou em desenvolvimento como se diz atualmente) implica maneiras diferentes de ação, exige tarefas sociais e políticas distintas. Conceito Crítico de Educação Modos diferentes de consciência implicam concepções divergentes de educação. Álvaro contraporá concepção ingênua da educação e concepção crítica. Começaremos por aquela. 397 A concepção ingênua promove uma dicotomia entre conteúdo e forma da educação. Não percebe que conteúdo e forma distinguem-se apenas analiticamente. Considera o conteúdo como “totalidade dos conhecimentos que se transmitem do professor ao aluno”, isto é, as disciplinas, o currículo, as lições, tomando-os como um volume estático, a-histórico, de valor em si mesmo. E a forma seria os métodos e procedimentos, a maneira de se transmitir o conteúdo. Tal modo de pensar absolutiza o conteúdo e sobrevaloriza a forma. Não compreende (ou mesmo mascara) que conteúdo e forma são aspectos distintos mas unidos de uma mesma realidade: o ato educacional. Além de ambos relacionarem-se aos fins sociais da educação. Álvaro aponta ainda outras características da concepção ingênua. Ela julga o educando como “ignorante” em sentido absoluto, alguém sem conhecimentos prévios resultantes de sua prática social. O educando é então “objeto” da educação. Supõe que cabe ao educador formar o educando, plasmar o aluno, como se este fosse uma massa amorfa. Consequência: não reconhece o educando como sujeito, consciência autônoma, impondo-lhe assim ideias, não dialogando. Afirma o filósofo: “Para a consciência ingênua, a criança e o adulto a educar são absolutamente ‘ignorantes’. Porém a noção de ignorância é tomada aqui em sentido abstrato, isto é, não é concebida como ‘ignorância de algo’, de algum conhecimento (sempre concreto)” (2010, p. 64). Absolutiza-se o conceito de ignorância sobretudo para as camadas populares e o relativiza para as elites, uma estratégia de dominação. A educação, portanto, é concebida como transferência de um conhecimento finito. Supõe que o professor é apenas o transmissor de uma mensagem definitivamente escrita, de um conjunto de noções, de acordo com determinado método, e que essa mensagem não se modifica com as condições de tempo e lugar, com os interesses do educador e com o mesmo ato de ser transmitida (2010, p. 64). Dessa maneira a educação passa a ser concebida como um dever moral da fração adulta, educada e dirigente da sociedade. O ato educativo torna-se caritativo, uma doação. Transferese para a esfera ética o significado eminentemente social e político da educação. A concepção ingênua contribui para a alienação cultural típica dos países em desenvolvimento ao transplantar acriticamente ideias e soluções educacionais exógenas sem recriá-las. E por compreender a finalidade da educação como simples transmissão de conhecimentos, a noção ingênua não intenta mudar a condição humana do indivíduo que se educa, sendo comprometida com a manutenção do status quo. 398 A concepção crítica da educação é a antítese da ingênua. Nessa, conteúdo e forma são tomados em sua unidade concreta no ato educacional. O conceito crítico de conteúdo envolve a totalidade do ato pedagógico, “são parte do conteúdo da educação: o professor, o aluno, ambos com todas as suas condições sociais e pessoais, as instalações da escola, os livros e materiais didáticos, as condições da escola etc.” (2010, p. 45). A “matéria” não é, pois, o único componente do conteúdo da educação. Forma e conteúdo não se desligam. Como afirma o filósofo: “Não está constituído [o conteúdo] somente por ‘aquilo que’ se ensina, mas igualmente por aquilo ‘que’ ensina, ‘aquilo que’ é ensinado, com todo o complexo de suas condições pessoais, pelas circunstâncias reais dentro das quais se desenvolve o processo educacional” (2010, p. 46). Conteúdo e forma possuem assim caráter eminentemente social e histórico e correspondem à fase de desenvolvimento de cada comunidade. Nesse sentido, a forma e conteúdo estão em função de fins sociais, discuti-los abstrata e descontextualizadamente é cair numa visão ingênua. Álvaro então afirma que conteúdo e forma relacionam-se aos fins estabelecidos pela sociedade que, na perspectiva do autor, são os interesses das massas populares, de sua elevação material e cultural e, por conseguinte, da transformação da realidade do país subdesenvolvido. Assevera: O conteúdo da educação é “popular” por excelência. Só deixa de sê-lo de fato em condições de alienação cultural (praticamente dominantes nas sociedades subdesenvolvidas). [...]. A forma da educação tem que ser aquela que permita a grandes camadas da população passarem à etapa imediatamente seguinte em seu processo de desenvolvimento (2010, p. 478). Há outros aspectos importantes da concepção crítica. Nela o educando é sabedor e desconhecedor, ao contrário da concepção ingênua que absolutiza a ignorância do educando. Se por um lado o educando não sabe ler e escrever, por exemplo, nem por isso ele é um “ignorante absoluto”. Para Álvaro, aquilo que este educando desconhece é o que não teve necessidade de aprender. “Se tem podido viver até agora como analfabeto é porque as condições de sua sociedade não exigiam dele o conhecimento da leitura e da escrita” (2010, p. 66). Neste caso a analfabetismo não seria uma chaga social, um desvio, mas uma produção da própria sociedade que estabelece a necessidade da instrução de apenas uma parte dela, seja porque condiz com a forma de produção econômica instituída, seja para o exercício da dominação de uma elite. 399 O educando, nesta concepção, é “sujeito” da educação, nunca o objeto dela. A educação não é um amoldamento do educando pelo educador, mas um diálogo amistoso entre dois sujeitos que se educam reciprocamente273. A educação teria, portanto, um objetivo, não um objeto, qual seja: a mudança da condição humana do indivíduo que se educa, a alteração do ser do homem, de maneira que este homem se torne um elemento transformador de seu mundo. Na relação entre educador e educando aquele “é o componente indispensável de um processo comum, aquele pelo qual a sociedade como um todo se desenvolve, se educa, se constrói, pela interação de todos os indivíduos” (2010, p. 66). A educação promove uma nova proporção entre conhecimento e desenvolvimento. Nunca é um processo que parta do vazio, da ausência de conhecimento por parte do educando. Ela é a aquisição de novos conhecimentos que irão se somar ou substituir os anteriores, ratificando-os, retificando-os a fim de elevar ao um grau maior o conhecimento de uma sociedade que passa a exigir mais do indivíduo. É um novo balanço do saber em um plano mais alto do processo cultural. Último ponto a destacar na concepção crítica é sua noção de saber. Radicalmente diferente da concepção ingênua que apresenta o saber como algo acabado, abstrato e ahistórico, para a concepção crítica “o saber é o produto de existência real, objetiva, concreta, material do homem em seu mundo” (2010, p. 68). O saber é, desse modo, relativo (o que é considerado saber em uma fase de desenvolvimento de uma cultura pode ser desconsiderado em outra fase), concreto (é aquilo que uma sociedade ou indivíduo pode criar em função de seu etapa de desenvolvimento), existencial (constitutivo da realidade de um grupo ou indivíduo), empírico (deriva direta ou indiretamente da experiência), racional (produto da capacidade intelectual do homem de criar ideias e entrelaçá-las por procedimentos lógicos), histórico, não-dogmático (em constante superação), fecundo (é sempre gerador de novo conhecimento). Por tudo isso a concepção crítica de educação visa fundamentalmente à transformação do mundo. E para Álvaro essa transformação (num contexto de subdesenvolvimento) tem que ser nacional em sua plena significação. [...]. A educação tem que ser popular, por sua origem, por seu fim e por seu conteúdo. [Pois] O país é atrasado em virtude do modo de vida de suas massas (não de suas elites). Por 273 “O importante é deixar claramente estabelecida essa tese fundamental da teoria pedagógica crítica: no processo de educação não há uma desigualdade essencial entre dois seres, mas um encontro amistoso pelo qual um e outro se educam reciprocamente”. (2010, p. 120). 400 isso, a transformação da existência do povo é o que constitui a substância da mudança na realidade da nação (2010, p. 52). Educação, Desenvolvimento Nacional e Democracia Álvaro Vieira Pinto concebe uma relação entre educação, desenvolvimento nacional e democracia. Com efeito, a educação crítica seria ao mesmo tempo resultado do processo de desenvolvimento e um contributo à continuidade de tal processo. Como afirma o filósofo em Consciência e Realidade Nacional: A educação não precede o processo de desenvolvimento, acompanha-o contemporaneamente. Entre ambos existe uma tensão dialética que os condiciona mutuamente. [...]. A educação é justamente a consciência destas tarefas e a mobilização dos meios e recursos adequados a executá-las. [...]. A substância efetiva da educação exigida pela fase em que se encontra o processo nacional é que define a cultura. [...]. De fato, não há desenvolvimento sem consciência correspondente, ao menos implícita, e esta não se forma sem alguma espécie de educação (1960, vol. I, p. 120). Atrelada ao processo de desenvolvimento como a consciência desse processo, a educação crítica, por todas as suas características, é elemento indispensável ao progresso da nação que, na perspectiva de Álvaro, significa a elevação das condições materiais e culturais de vida do povo274. Como salientado acima, o objetivo último da educação é a transformação da realidade do país subdesenvolvido, das condições objetivas de vida da massa, o que só pode ser alcançado através de uma percepção precisa da realidade em mutação e de seu sentido orientador, do esforço coletivo de alteração do atraso da nação e do diálogo com todos os sujeitos envolvidos nessa dinâmica. Sendo assim, a educação crítica está comprometida com a democracia, forma de organização social e política que implica tomar todo indivíduo como sujeito de decisão sobre o seu mundo e não simples objeto de decisões alheias. A educação cumpre então um papel desalienador. Mas, segundo Álvaro: “Para isso é imprescindível que o educador se converta à sua realidade, seja antes de tudo do seu próprio povo, ou melhor, das camadas populares de sua nação” (2010, p. 58). Isso significa 274 “Educar para o desenvolvimento não é tanto transmitir conteúdos particulares de conhecimento, reduzir o ensino a determinadas matérias, nem restringir o saber exclusivamente a assuntos de natureza técnica; é, muito mais que isto, despertar no educando novo modo de pensar e de sentir a existência, em face das condições nacionais com que se defronta; é dar-lhe a consciência de sua constante relação a um país que precisa do seu trabalho pessoal para modificar o estado de atraso; é fazê-lo receber tudo quanto lhe é ensinado por um novo ângulo de percepção, o de que todo o seu saber deve contribuir para o empenho coletivo de transformação da realidade” (1960, vol. I, p. 121). 401 reconhecer e aceitar sua própria realidade para assim compreendê-la e poder atuar sobre ela. Desse modo, toda produção cultural estrangeira deve ser recebida, estudada e assimilada de maneira crítica preservando e adaptando tudo aquilo que se mostrar útil à tarefa nacional. A implantação de ideias derivada do simples fato de terem sido produzidas nos países centrais se mostra nociva aos interesses do povo porque não foram elaboradas para atender aos desafios colocados pela nossa realidade, mas respondem a desafios postos por uma realidade externa. Apenas uma educação desalienada, isto é, crítica, pode servir aos objetivos da sociedade em desenvolvimento, à transformação da vida do homem e à construção da democracia. Ao fundar-se nas próprias condições de subdesenvolvimento de seu país esta educação não rechaça tais condições, porém as aceita como um dado histórico-antropológico a ser modificado. O Educador e o Filósofo no país subdesenvolvido Para Álvaro, o educador e o filósofo (e ainda o sociólogo275) devem ser portadores da consciência mais avançada de seu meio. Possuindo a concepção crítica de seu papel no mundo em desenvolvimento, ou seja, a compreensão das circunstâncias que condicionam sua atuação e a finalidade de seu trabalho educativo e intelectual. Se a finalidade, pois, da educação é a mudança da condição de vida do homem ao educador não cabe apenas transmitir os conhecimentos adquiridos em sua preparação. Ao considerar a educação em sentido crítico, vê seu papel modificado. O ato educativo, como vimos acima, é tomado como encontro de consciências livres, dos educadores entre si e destes com os educandos. “A relação educacional é essencialmente recíproca, é uma troca de experiências, um diálogo” (2010, p. 118-9). Com isso, o filósofo brasileiro não retira a diferença entre educador e educando. Evidentemente, o educador possui uma gama de conhecimentos que o educando não possui, porém isso não implica necessariamente maior consciência da realidade. Essa é uma conquista social, afinal quem educa o educador é, em última instância, a própria sociedade, que delega a um grupo especializado a formação de seus membros, fornecendo aos educadores seus fundamentos materiais e suas concepções, isto é, “a consciência, em geral, com o meio natural e humano no qual se encontra o homem e do 275 Cf. 2010, p. 51. 402 qual recebe os estímulos, os desafios, os problemas que o educam em sua consciência de educador” (2010, p. 111-12). E finaliza Álvaro: O educador crítico deverá dar a compreender ao aluno que se está educando da mesma maneira que ele (o educador) se educou. [...]. Deste modo, o educando se reconhece como um educador potencial, ou melhor, compreende que está sendo educado não como ignorante, como permanente educando, mas como possível educador, e de fato já em ação, a iniciar por sua [própria] mudança (2010, p. 120). Já o filósofo, ao partir da condição do mundo subdesenvolvimento, não goza da disponibilidade de interpretar o mundo como quiser. Sua reflexão está comprometida com este mundo, com a transformação das condições objetivas do povo. Sua contribuição está na elaboração/organização das ideias orientadoras do processo de desenvolvimento, utilizandose para isso dos dados fornecidos pelas ciências sociais e de todo aparato lógico e conceitual próprios da filosofia, adaptando as categorias oriundas das correntes filosóficas estrangeiras e criando outras. Assevera Álvaro: “Assim, não tem o filósofo do país subdesenvolvido tarefa mais importante do que cooperar com o trabalho racional para a formulação de uma ideologia, como instrumento de emancipação de seu país” (1960, p. 65). Saliente-se, entretanto, duas coisas: a) a elaboração/organização dessas ideias não é uma criação arbitrária do filósofo, mas provém das massas que efetivamente comandam o processo de desenvolvimento, pois executam as tarefas materiais do desenvolvimento; b) “ideologia” são as ideias orientadoras presentes em um fenômeno (explícitas ou não), esse conjunto apresenta um sentido e cabe ao filósofo sistematizar tais ideias e colocá-las em um horizonte de totalidade. E ao refletir sobre a educação numa perspectiva crítica, o filósofo deve apontar o caráter ideológico de toda educação, quer dizer, explicitar a ideia da educação que dirige um determinado processo educacional, aduzindo seus fundamentos histórico-antropológicos e extraindo suas consequências sociais e políticas. Observações finais Aludimos algumas das principais ideias de Álvaro Vieira Pinto sobre educação. Outros aspectos mereceriam enfoque como suas considerações sobre a educação infantil ou o problema da alfabetização. Trabalhos posteriores deverão explorar tais tópicos assim como 403 elaborar uma comparação entre as concepções do autor e as noções de Paulo Freire. A título de exemplo, a concepção de educação crítica em Álvaro pode ser relacionada à educação problematizadora em Freire e a noção de educação ingênua à de educação bancária. Muitos pontos de convergência são percebidos aí. Enfim, esperamos que essa pequena amostra das ideias de Álvaro seja um estímulo ao resgate de sua filosofia da educação. Referências bibliográficas: FREIRE, Paulo. Educação e Atualidade Brasileira. 2 ed. São Paulo: Cortez/IPF, 2002. _____. Educação como prática da liberdade. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 2008. VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1960 (vols. I e II) _____. Ideologia e Desenvolvimento Nacional. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1959. _____. Sete lições sobre educação de adultos. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2010. 404 Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre Luis Miguel Hernández Pérez Resumen: Friedrich Schiller en plena época de la Ilustración y a diferencia de otros pensadores, p.e., Kant, sostiene dos puntos: 1) El hombre es un ser sensible y, a su vez, que 2) El arte puede transformar al hombre, a la humanidad. El primer punto permitirá desarrollar que: en tanto que el hombre es un ser sensible, puede sublimar sus impulsos o bien de manera violenta, o bien de manera lúdica, siendo ésta última el fundamento de la idea del juego en Schiller. Por otra parte, en la Alemania de finales del siglo XVIII, que atraviesa por grandes cambios sociales, políticos, tal es el caso, p.e., de la invasión napoleónica y las revoluciones del siglo, Schiller se pregunta: ¿qué importancia tiene el arte en tiempos de revolución? Así, el objetivo de la presente ponencia será intentar plantear una postura filosófica de la educación, según la cual, el juego y el arte son dos elementos que no sólo pueden educar la sensibilidad del hombre, de la humanidad, sino que también tienen un papel propedéutico en la conformación de una cultura moral, es decir, a partir de la educación estética se puede formar al hombre moral en el que no existe tensión entre su querer y su deber. Palabras clave: Schiller, juego, arte y formación. Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre Friedrich Schiller (1759-1805) para muchos hoy todavía inadvertido, tuvo un papel importante tanto para el pensamiento ilustrado como para el primer movimiento romántico. Pese a que fue duramente criticado por Fichte, ello no opaca ni la importancia que tiene el arte en la educación de la humanidad, ni la eventual influencia que tuvieron sus postulados sobre el juego y su teoría estética en la literatura y las artes. De hecho, si él no tuviera un papel importante en la historia de la filosofía y del pensamiento humano en general, sería difícil 405 entender por qué Rüdiger Safranski, filósofo alemán contemporáneo y excelente biógrafo, lo considera como “el retrato de uno de los movimientos más prodigiosos de la cultura occidental: el idealismo alemán”.276 Schiller, nacido en Marbach, de padre alférez o capitán del duque, podemos decir que originalmente pretendió ser teólogo. Sin embargo, a los 14 años de edad y por un decreto del duque Karl Eugen, ingresó en la Karlsschule (en principio una casa de huérfanos militares y posteriormente, una academia militar) para recibir formación militar. Una vez allí, comenzaron sus estudios en derecho. Mismos que abandonaría debido a que en aquella academia, en Stuttgart, se construyó una facultad de medicina; por la que se inclinaría. Ahí, aunque no de manera formal, comenzaron sus estudios en filosofía, principalmente para profundizar en Shakespeare, aunque también estudió a Rousseau y un par de años después, a Garve.277 Gracias a sus posteriores estudios en historia y filosofía, Schiller, aunque pertenece a un país en vías de Ilustración, se volverá un crítico del movimiento ilustrado tanto por lo que pretende como por lo que comienza a olvidar, el arte y la subjetividad. De esta forma, Schiller apelará a resignificar la poesía y a los griegos, no para imitar su modelo político y cultural de humanidad sino para recuperar nuestra unidad con el todo y reconciliarnos con nosotros mismos, con la naturaleza. Su biografía nos dice que fue en su segundo año como estudiante de medicina, en octubre de 1776, cuando apareció el primer poema impreso de Schiller, “La tarde” y un año después, la oda “El conquistador”. Posiblemente, ello lo ponía ya frente a su verdadera vocación: la poesía y destacar como dramaturgo con obras como Los bandidos, Intriga y amor, Don Carlos, El visionario, Guillermo Tell, Oda a la alegría, etc. En efecto, sería como poeta y gran adaptador escénico que en 1788 llegaría a conocer a quien entonces se le consideraba “genio”: Goethe. Su amistad iniciará 6 años después en Jena. Tal vez porque no pertenecían a las mismas clases sociales. Posiblemente Goethe tendría que vincularse socialmente hacia abajo y Schiller mirando hacia arriba. No obstante, tanto se vincularon que mientras que Goethe enriqueció sus obras gracias a sus viajes y sus estudios Cfr. Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. Este dato es importante, ya que eventualmente, Christian Garve criticó la filosofía moral kantiana y sería en 1793, año en que también apareció el ensayo Sobre la gracia y la dignidad de Schiller, cuando Kant respondería a tales acusaciones en el escrito Teoría y práctica. En torno al tópico: tal vez eso sea correcto en teoría, pero no sirve para la práctica. 276 277 406 sobre la naturaleza, Schiller lo haría por la fuerza de su propio espíritu. Incluso su grave enfermedad pulmonar pudo haberlo influenciado a exaltar la libertad y la vida humana. Por lo anterior, Safranski sostiene que en su amistad: Schiller, ese genio de la reflexión [...] su materia vivencial no consumía completamente su potencia espiritual. Podía ponerla a disposición del amigo, para servir a éste de espejo y enriquecerse él mismo con algo de mundo. En Goethe se le ofrecía un continente completamente distinto, si no para tomar posesión de él, por lo menos para explorarlo. Además, Goethe, genio de la intuición, le hizo adquirir confianza en las fuerzas del inconsciente. Sólo gracias a la amistad con Goethe aprendió Schiller que los impulsos creadores radican en un ámbito que <<por su naturaleza>> no puede ser comprendido. Ambos se complementaban de manera prodigiosa: uno cuidaba de la claridad y de la conciencia, y el otro del vínculo creador con lo oscuro e inconsciente. Su ideal común era lograr unir las dos regiones: la idea y la experiencia, la libertad y la naturaleza, el concepto y lo ambiguo.278 Años más tarde, pese a ser una figura pública y contar con el reconocimiento en las artes y la amistad de Goethe, y ya con los efectos de su incurable enfermedad, Schiller conseguiría su doctorado en la Universidad de Jena. En donde profundizaría, de manera individual y también bajo la tutela de Reinhold, en la filosofía estética kantiana. Tal vez aquí, como estudiante y posterior profesor, están los momentos más fuertes de encuentro con la filosofía kantiana, con la crítica a la Ilustración y también su vínculo con el círculo de Jena o el primer movimiento romántico. Ahora bien, para Schiller, la filosofía ilustrada, y en especial la apuesta por la técnica que devino tanto en la división del trabajo y la especialización, fragmentó al hombre para racionalizarlo y con ello provocó una separación entre el hombre y la naturaleza y consigo mismo. En esta fractura, o falta de unidad, podemos leer lo que cita Safranski: “El hombre, eternamente atado a un pequeño fragmento particular del todo, se forma sólo como fragmento; eternamente con el ruido monótono en el oído de la rueda que él mueve, nunca desarrolla la armonía de su esencia, y, en lugar de expresar la humanidad en su naturaleza, se convierte en una mera copia de su trabajo”.279 Aquí cobra sentido la frase de uno de los diálogos de sus múltiples obras: “El hombre es más de lo que vos creéis”280; ya que el hombre ni es un mero fragmento o una copia de lo que 278 279 280 Rüdiger Safranski. Goethe y Schiller. Historia de una amistad. p.15 Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. pp.44-45 Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. p.247 407 hace, así como tampoco es sólo razón, también sentimientos y emoción. Schiller, por ello, apelará tanto por el homo ludens como por la importancia de la fuerza creadora y la libertad que se encuentran en el arte y que hacen plausible la formación estética del hombre. Razón por la cual: El juego del arte ha de compensar, ya que no puede superar, esta llaga de una sociedad basada en la división del trabajo, que convierte a los hombres en un <<fragmento>>, en mera <<copia de su trabajo>>. El juego del arte anima al hombre a jugar con todas sus fuerzas, con la razón, el sentimiento, la imaginación, el recuerdo y la esperanza. Este juego libre redime de las limitaciones basadas en la división del trabajo. Permite al individuo, que sufre por su astillamiento, convertirse en un todo, en una totalidad en pequeño, aunque sólo sea en el instante y el ámbito limitados del arte. En el disfrute de lo bello el hombre experimenta el gusto anticipado de una plenitud que todavía está por llegar en la vida práctica y en el mundo histórico.281 Si bien es cierto que las Cartas sobre la educación estética del hombre abren con un lúcido e inédito análisis antropológico del hombre y la sociedad, ello es porque Schiller sostendrá y defenderá, a diferencia del pensamiento ilustrado, la sensibilidad del hombre y que, en efecto, sus deseos o impulsos tienen que realizarse. Por lo anterior, él contempla dos posibilidades para sublimar o anular tales deseos en el hombre: o bien de manera violenta, o bien de manera lúdica. Ésta última la provoca el arte y específicamente, el juego. De esta manera, Schiller sostiene que a través de este mundo lúdico, como lo llama Safranski, el hombre puede llegar a ser auténtica y plenamente hombre. Es por ello que, la tesis sobre el juego estriba en que: “el hombre sólo debe jugar con la belleza, y debe jugar sólo con la belleza. Para decirlo de una vez por todas, el hombre sólo juega cuando es hombre en el pleno sentido de la palabra, y sólo es enteramente hombre cuando juega”.282 Schiller, en este sentido, piensa que la naturaleza no nos ha provisto de sensibilidad por una mala jugada del destino. Lo ha hecho también para que hagamos bella nuestra forma. Ciertamente, la tesis schilleriana es: el hombre sólo alcanzará su estado más perfecto a través de la belleza. Por lo tanto, ella es el origen y la meta de la educación estética, ya que únicamente el arte podrá unir armoniosamente lo que hay de contradictorio en el hombre, a saber, sus deseos, las inclinaciones, es decir, su querer con el deber moral. En este sentido, el 281 Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. p.45 282 Friedrich Schiller. Cartas sobre la educación estética del hombre. p.241 408 hombre estético es un hombre libre. Ello se debe a que, según Schiller, belleza no es otra cosa que libertad. En efecto, el arte representa libertad y autodeterminación, es decir, autonomía.283 Así, para que la humanidad cambie, se necesita transformar la sensibilidad de los individuos y en ello radica la importancia del arte en la educación. De hecho, Schiller, frente al contexto sociopolítico, alemán y francés, de finales del siglo XVIII, se plantea la siguiente pregunta: ¿para qué ocuparnos del arte en tiempos de revolución? Yo agregaría, ¿actualmente requerimos de una revolución política o de una revolución estética, cultural? Por lo anterior, para Schiller, el arte es fundamental para la construcción de la cultura, ya que: el arte despierta al hombre a un mundo que de lo contrario no experimentaría. Ese mundo es el estado estético (…) aquel donde se siente por primera vez la posibilidad de una actuación conjunta de la sensibilidad y la razón [No obstante] el arte no conduce a actuar de ninguna manera, a lo sumo puede aspirar a producir en los espectadores un placer estético de tales características que prepare el ánimo, que lo despierte y le presente la posibilidad de una experiencia del mundo distinta.284 Schiller espera es que quien haya pasado por la experiencia estética no vuelva jamás a ser el mismo. Poco a poco, el hombre irá ennobleciendo su espíritu y esto se reflejará en sus acciones. Así, el estado estético, según Schiller, no sólo comprende al hombre, sino a la humanidad, a la educación, para construir una auténtica Bildung estética. Entonces Safranski, dice: “en primer lugar el arte es un juego serio, en segundo lugar es un fin en sí mismo y, en tercer lugar ofrece una compensación ante lo que Schiller describe como deformación especifica de la sociedad burguesa: el sistema desarrollado de la división de trabajo”. 285 Es así como Schiller piensa que el juego y el arte, de manera seria y por sí mismos, articulan, sin tensión, la naturaleza con la cultura que exalta la libertad y el gusto por lo bello. Empero, ¿hacia donde apunta la formación del hombre schilleriano? Para tal propuesta, quisiera evocar la argumentación del ensayo Sobre la gracia y la dignidad. No obstante, que es un ensayo anterior a las Cartas, me parece que en él, Schiller expresa que ciertamente sólo Es posible que esta idea permita ver la influencia de Schiller para el romanticismo. En tanto que dicha autonomía del arte, o como escribe Safranski en su libro Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán: “el arte (…) es autónomo. Tiene reglas, pero se las otorga a sí mismo (…) el arte es fin en sí mismo”, permite anticipar el termino francés, atribuido a Théophile Gautier: “l’art pour l’art”. 283 María del Rosario Acosta López, “La ampliación de la estética: la educación estética de Schiller como configuradora de un espacio compartido”, en Rivera García, Antonio. Schiller, arte y política. p.62 284 285 Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. p.44 409 un alma bella (“donde armonizan la sensibilidad y la razón, la inclinación y el deber”286) con carácter sublime, es decir, con gracia y dignidad, es capaz de que sus actos no sean sólo buenos, también bellos, pues su espíritu está en armonía. La gracia es, según Schiller, un mérito personal, que embellece nuestra alma y nuestra forma. La dignidad la hace sublime. En la forma humana, podemos verlos en tanto que: “la gracia reside, pues, en la libertad de los movimientos voluntarios; [mientras que] la dignidad [lo hace] en el dominio de los involuntarios. [Pues] Allí donde la naturaleza ejecuta las órdenes del espíritu, la gracia le concede una apariencia de libre albedrío; allí donde quiere dominar, la dignidad la somete al espíritu”.287 Esto sucede, p.e., cuando un actor pasa largas horas frente al espejo preparando el personaje a representar. Para Schiller, debido a sus estudios teatrales, la belleza de la actuación no estriba en una técnica sobretrabajada, sino en su espíritu, que hace que tal actor tenga una expresión de gracia al hacer las cosas de manera natural. Lo mismo sostiene en la moral. Una persona que es obligada hacer lo que no quiere, aún cuando tenga un mérito saber que sí ha cumplido, sus ojos, sus gestos, nos revelarán la ausencia de armonía interior al actuar. Allí estriba la dignidad. En este sentido, Schiller hablará de una belleza arquitectónica, es decir, de la forma que puede ser bella o poco menos bella. Sin embargo, aunque sea poco bella, sigue participando en la belleza, pero en menor grado. El alma humana que es libre, requiere una forma que la permita representarse en todo su esplendor y sólo la gracia puede lograrlo. No es suficiente un cuerpo bien trabajado si está hueco por dentro, así como tampoco lo bello podría expresarse en un cuerpo defectuoso. La gracia da armonía a estos dos. Es por ello que, la gracia se expresa libremente en una voluntad moral, aquella en donde el deber no la limita sino que la provoca. En otras palabras, la gracia aparece en el ser que al actuar por deber no niega o limita sus inclinaciones, sino que por la armonía que hay en su espíritu, se inclina a actuar por deber. Así, la gracia se expresa en el carácter -que para Schiller es la armonía moral de los sentimientos- como una fuerza adquirida del espíritu. Pues lo cierto es que, no basta con que la belleza sea libertad: para lograr el ennoblecimiento ético de la voluntad, que es en exclusiva 286 287 Friedrich Schiller. Sobre la gracia y la dignidad. p.45 Ibidem, p.55 410 obra del hombre, hacemos uso de nuestra libertad para superar nuestros propios impulsos naturales y en esa medida en el alma bella se confía en el hombre, a pesar de sus propios intereses, para dar lugar a un todo coherente.288 En efecto, el hombre moral schilleriano, hay que decirlo con toda la fuerza de las palabras, sólo es lo que el llega a hacer de sí mismo, ya que: los simples seres orgánicos no son respetables como criaturas; pero el hombre sólo puede serlo como creador (es decir como propio causante de su estado). No ha de limitarse a reflejar, como los demás seres sensibles, los rayos de una razón ajena, aunque fuera la divina; sino que ha de brillar como un sol con su propia luz. Se exige, pues, del hombre, en cuanto se adquiere conciencia de su destino moral, una forma expresiva; pero, a la vez, debe ser una forma que hable a su favor, es decir, que exprese una manera de sentir adecuada a su destino, una aptitud moral.289 Al respecto, Safranski, citando a Schiller, agrega que: Decimos que un alma es bella cuando el sentimiento moral se ha asegurado finalmente de todas las sensaciones del hombre, hasta el grado de que puede sin rubor confiar al afecto la dirección de la voluntad, y nunca corre el peligro de entrar en contradicción con las decisiones de la misma (…). Con gran facilidad, como si desde ella actuara sólo el instinto, practica los deberes más penosos de la humanidad, y el sacrificio más heroico que arranca a las tendencias naturales, se presenta ante nuestros ojos como la acción voluntaria de esa tendencia.290 Schiller, como se dijo antes, no niega que dada la sensibilidad o el componente apetitivo que se encuentra en la naturaleza del hombre, en donde residen las inclinaciones, el hombre sienta las veces dolor o satisfacción en su actuar. Dolor cuando no ha logrado satisfacer sus necesidades; satisfacción al verlas cumplidas. Sin embargo, en esta lucha continua entre la sensibilidad y la razón, la inclinación y el deber, la dignidad sólo puede entenderse cuando en el interior del hombre, existe armonía en el espíritu y actúa moralmente; esto es, que libremente gobierna sobre sus sentimientos, ya que su voluntad libremente se somete a las leyes de la razón. La voluntad, según Schiller, no está atada ni al mundo de la sensibilidad (o naturaleza) ni al de la razón, ella está unida a la ley de la razón. Dado que ni la naturaleza al actuar espera estar en concordancia con la razón pura, ni tampoco la razón, para legislar moralmente, espera el consentimiento de los sentidos. De allí que, para enfatizar la fuerza moral, el hombre ha de 288 Cfr. Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. pp.360-364 289 Friedrich Schiller. Sobre la gracia y la dignidad. p.34 Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. p.361 290 411 querer que en su espíritu, armoniosamente, se una la voluntad con la razón, a pesar de la sensibilidad. En ello estriba la autonomía: en poner límites al instinto natural. Y la dignidad, en que el espíritu se conduzca sobre el cuerpo como soberano cuyos actos ya no serán sólo moralmente bellos sino moralmente grandes. Así podemos concluir el presente escrito. Sosteniendo que la propuesta de formación a la que apunta el alma bella schilleriana, reside en que: por una parte, el juego propicie espacios para la libertad, y que, por otra parte, sea a través del arte donde cultivemos nuestro querer, de tal manera que la gracia pueda lograr expresar el equilibrio entre nuestros deseos y nuestro deber. El estado estético, es así, condición necesaria para la libertad y la moral. Bibliografía: Rivera García, Antonio (ed.). Schiller, arte y política. Murcia: Edit.um. 2010 Safranski, Rüdiger. Goethe y Schiller. Historia de una amistad. España: Tusquets. 2011 __________ Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. México: Tusquets. 2009 __________ Schiller o la invención del idealismo alemán. España: Tusquets. 2006 Schiller, Friedrich. Kallias. Cartas sobre la educación estética del hombre. Barcelona: Anthropos. 1999 __________ Sobre la gracia y la dignidad. Sobre poesía ingenua y poesía sentimental. Barcelona: Icaria. 1985 412 EDUCAÇÃO E LIBERDADE NO MERCOSUL André Gustavo Ferreira da Silva O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) foi instituído pelo de tratado de Asunción (1991), constituído inicialmente por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O MERCOSUL representa o empenho em consolidar a soberania da região via a integração econômica entre os países que o compõem. Este trabalho estabelece o corte nos anos de 1980 devido ao valor desse período na história contemporânea dos países do MERCOSUL. O período é marcado pelo processo de abertura política. O objeto de nosso trabalho ao se ater ao pensamento pedagógico da Argentina, Uruguai e Paraguai, amplia nosso objeto de pesquisa no doutorado (SILVA, 2007 [A]) defendida pelo PPG de educação na UFPE, em 2007. O trabalho se valeu, em especial, de periódicos de ampla circulação em seus respectivos países. Devido à grande importância para o debate pedagógico no MERCOSUL., pesquisamos os seguintes periódicos: da Argentina, Revista Novedades Educativas, Boletim Informativo da província de Santa Fé, Comunidad Escolar Democratica, Educación y Cultura, Educación Permanente, EDUCOO, Revista latinoamericana de Innovaciones Educativas; do Uruguai, Educación y Derechos Humanos, Cuadernos de Marcha, Revista de la Educación del Pueblo, Educación y Cultura LatinoAmericana; Paraguaios, Atas da Assembleias da Federación de Educadores del Paraguay (FEP). O foco em periódicos se justifica pelo fato de 413 que muitos deles, em particular Cuadernos de Marcha, circularem pelos países do Cone-Sul, notadamente entre Argentina e Uruguai, fazendo que essas revistas desempenhassem um importante papel na integração da produção acadêmica da região. A justificativa de uma investigação sobre o conceito de liberdade nas ideias pedagógicas do MERCOSUL esta fiada no contexto de integração da América Latina como um todo. A pesquisa foi realizada em bibliotecas e arquivos nos referidos países, possibilitada pelo fomento do CNPq. Estamos cientes de que esses textos não esgotam a produção pedagógica do MERCOSUL na década de oitenta. No entanto, eles se constituem como a porta de entrada para o vasto universo do pensamento pedagógico sul-americano. Consolidando a base para futuros trabalhos sobre o tema. Objetivamos compor um quadro que contribua para uma melhor compreensão das identidades conceituais do pensamento pedagógico do MERCOSUL nos anos oitenta. Apontado que o discurso pedagógico manifestos nos periódicos estudados ramificava-se em quatro correntes: a liberal-conservadora, a pragmática-deweyniana, a marxista-gramsciana, a marxista-freireana. Evitou-se o chamado “pensamento classificatório” (Ghiraldelli, 200 A., p. 40), aquele que escrutina um conjunto de tendências e correntes conforme aquela que o pesquisador classifica como a correta, a que representasse o “avanço histórico”. Assim, nosso olhar não se pautou por uma perspectiva linear, não se estipulou uma linha evolutiva que classificasse as correntes trabalhadas. Diante do exposto, o fundamento de nossa metodologia não poderia ser outro se não a Hermenêutica. O campo da Hermenêutica é bastante vasto. Pois, mesmo desconsiderando os períodos talmúdicos, patrístico e escolástico, sua extensão contemporânea vai de Schleiermacher à Gadamer. A despeito de ter nascido em berço eclesiástico, constituise, contemporaneamente, como uma importante ferramenta da pesquisa filosófica, possibilitando também a aproximação com investigações de caráter mais historiográfico, notadamente nos âmbitos da história das ideias e história cultural. Neste sentido, é importante destacar que não desenvolveremos uma “analítica” do conceito de liberdade presente nos textos. Intencionamos “tão somente” identificar os sentidos do conceito e suas possíveis presenças no debate sobre democratização da educação, especificamente a universitária. Deste modo, investigar o contexto histórico foi um momento necessário na pesquisa. 414 A pesquisa filosófica segundo uma perspectiva analítica teria por universo a dinâmica do conceito ou termo analisado – no caso o conceito de liberdade – em relação aos seus significados num dado conjunto de pensamento que se materializa num texto, numa obra de um autor como um todo ou num conjunto de textos e obras. A distinção em referência a uma pesquisa hermenêutica é que esta investiga a dinâmica do conceito em relação ao “mundo” que o produziu e em relação às legitimações que seu uso implica. Contudo, esta distinção não significa um absoluto corte entre a tarefa de investigar o contexto - e as consequências do anúncio de um conceito - da análise dos significados desse conceito em meio ao “texto” pelo qual ele é anunciado. Porém, voltamos a afirmar que, no âmbito deste trabalho, nosso procedimento visou prioritariamente investigar dinâmica do conceito de liberdade em função do contexto histórico de seu anúncio. Daí a natureza de sua metodologia ser hermenêutica e não, necessariamente, analítica. Seguimos, portanto, Emerich Coreth (1973) quando sugere que a compreensão que se tem de um texto vai além da explicação ilustradora. Defendendo que o compreender pressupõe uma interpretação, partindo do nosso ponto de vista e movida por nossa intenção, do contexto do texto. Neste sentido, a problemática da hermenêutica esta no campo da compreensão, isto é, no âmbito da apreensão dos sentidos de um texto mediada tanto pelo contexto do texto quanto pelo contexto do intérprete. Assim, escudos em Coreth, entendemos que os eventos históricos, os valores e as culturas, distintos que são dos fenômenos da natureza, não devem ser “explicados”, porém, devem ser compreendidos. Desta formas, a compreensão, nos moldes que aqui definimos é o resultado e o meio pelo qual se dá o processo hermenêutico de investigação. Sua amplitude se relaciona com o esforço de compreender homens em meio a suas ações, obras e decisões em seu tempo. Lembrando, contudo, que neste esforço apreendem-se sentidos diversos na compreensão, pois, um mesmo objeto pode ser compreendido e apreendido em sentidos diversos. Salientando também que nunca poderemos esgotar os sentidos possíveis de compreensão, haja visto, que este também está a mercê do “lugar e tempo” de quem se dá ao trabalho de “compreender”. Visto que tais tempos e lugares se movimentam e se transformam, a “compreensão” tem em-si a possibilidade da transmutação. O exercício da compreensão hermenêutica é, então, a prática do “diálogo” entre o pesquisador com o texto investigado sob uma dupla mediatização: o contexto do texto e o lugar-tempo do investigador. 415 O trabalho hermenêutico pesquisa o conceito em relação ao mundo que o produz, onde a amplitude da compreensão produzida por ela é resultado da prática do diálogo entre o pesquisador e o texto, mediatizados pelo contexto do texto e pelo lugar-tempo do investigador. Resgatando ainda o que também se afirmou na metodologia, ampliamos para quatro (04) as correntes de pensamento identificadas, que agora são: a liberal-conservadora, a pragmática-deweyniana, a marxista-gramsciana, a marxista-freireana. Naturalmente, as correntes aqui assinaladas apresentam características próprias devidas às especificidades da cultura e da realidade político-econômica de suas respectivas sociedades. Assim sendo, o pensamento liberal-conservador no Paraguai, cuja expressão prática pode ser anotada pela Federación de Educadores del Paraguay (FEP), tem traços específicos distintos, por exemplo, da Fundação Victor Civita, uma das mais significativas expressões do pensamento liberal na educação brasileira. O próprio pensamento pedagógico brasileiro, país de dimensões continentais, também apresenta variações particulares em um mesmo tronco de ideias, desta forma, o marxismo de Saviani não é o mesmo de Freire. O investigador defende – conforme o já anunciado em outro texto (2007) - que a Educação é o lugar da possibilidade, portanto não está condenada à efetivar determinações necessárias. Entende que a Educação transcende às determinações factíveis e históricas que pesem sobre indivíduos e coletividades. Sendo a educação o lugar que torna possível a realidade de alternativas às ordens necessárias impostas a um povo ou período histórico. Dito isto, não está comungando do credo segundo o qual a educação tem o poder de transformar a sociedade. Defende-se a possibilidade dos indivíduos e sociedades de projetarem para si um devir alternativo àqueles determinados por uma histórica reprodução de dominação. O pesquisador entende que “liberdade” é um conceito com inúmeros sentidos, por vezes até antagônicos entre si. Contudo, a circulação desse conceito, mesmo numa diversidade conflitante, é imprescindível no espaço latino-americano, haja vista a ainda efetiva necessidade do debate acerca da real emancipação de seus povos. A pesquisa foi projeta e realizada ainda com o MERCOSUL sob sua primeira configuração: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Na época, o bloco junto com toda a América Latina consolidava soberanamente sua integração. A formação da UNILA (janeiro de 2008) no plano educacional e da UNA-SUL (maio de 2008) no plano geopolítico, que rivaliza com a OEA (longeva hegemonia Norte-americana), atestam os passos soberanos no caminho da integração. Sendo o país de menor tradição democrática do bloco, até mesmo o Paraguai vivenciava um raro momento de efervescência democrático-nacionalista tendo na presidência Fernando Lugo, cuja reivindicação de um novo contrato referente à produção energética de Itaipu - principal bandeira na política externa – fora atendida na 40ª Reunião de Cúpula do Bloco. Feito que teve significativo impacto na emancipação econômica daquele 416 país. Enfim, nosso “tempo” é o momento de valorização de uma maior integração entre os países da região, que se manifestava concretamente na exitosa realização da 10ª Cúpula Social (dezembro de 2010) do MERCOSUL, cujo documento final da Comissão de Cultura evidenciava, “a importância de adoção de processos integrados de formação e pesquisa cultural entre os países do Mercosul”291. O PENSAMENTO LIBERAL-CONSERVADOR Possuidora de uma história mais fecunda que a brasileira quanto à realidade educacional, as questões educacionais na Argentina ocuparam algum destaque mesmo nos anos finais da ditadura. O jornal de grande circulação El Clarin - pertencente a família Noble e veiculo favorável à ditadura militar - atesta essa o valor dessa preocupação ao manter ao longo de toda década de oitenta o suplemento Panorama Educativo: caderno especial sobre a temática da educação, de periodicidade semanal, publicado às quartas-feiras (miércules) ou, raramente, às quintas-feiras (jueves). Em meados dos anos 1980, o país vivencia o debate acerca das diretrizes nacionais para a educação através do chamado Congreso Pedagógico: amplo debate travado no Congreso Nacional sobre as leis e diretrizes básicas para a educação. Fato que muito contribuiu para a emergência da discussão acerca dos problemas da educação naquele país. Registrando a sintonia com o governo militar e a preocupação com a educação nacional, em 21 de maio de 1980, semana de grande significado na cultura política argentina por ser o período comemorativo de sua independência, o Clarin noticia que: “o ministro do Interior, general Harguindeguy, recebeu os cinco reitores das universidade particulares com quem analisou a situação educacional no país e adentrou na análise de suas bases políticas” (CLARIN, 21/05/1980, pg 10). Fato que exemplifica o engajamento do diário em dois dos objetivos do governo conservador para com a educação: o controle do Estado e a participação do capital privado. A valorização de uma das teses fundamentais do pensamento liberal – a liberdade como exercício singular e privado da autonomia - é recorrentemente salientada no referido periódico. Tese diretamente relacionada à ideia de que o ambiente para tal exercício de liberdade é uma sociedade regulada por um Estado de Direito. Como exemplo, temos a noticia (CLARIN 04/06/1980, pg34) que a “Academia Nacional de História” cujos principais expoentes são Edmundo Correas, José M. M. Urquijo, Carlo S. A. Segretti, Andrés R. Allende, defende a continuidade do legado histórico educacional argentino, pois: “exaltam a individualidade do homem, postulam a necessidade de educá-los inculcando-lhes sentimento de responsabilidade e solidariedade social. Defendem que a educação deve propor-se a dar a cada sujeito a capacidade de 'saber ser' e (…) aceitam que os deveres do Estado em matéria educacional devem ser feitos de acordo com a ação privada” (Idem). 291 http://www.cultura.gov.br/cnpc/wpcontent/uploads/2010/12/reuniyyo_da_x_cyypula_do_mercosul_15-12-2010.pdf 417 Continuando na valorização da liberdade enquanto a autonomia relativa à condução das escolhas individuais, o periódico informa (CLARIN 23/07/1987, pg 47) que a VI Jornada Latino-americana de Educação, promovida Federação de Associações Educativas Privadas Latino-americanas (FAEPLA) e o Sindicato de Estabelecimentos Privados de Ensino do Estado de São Paulo (Brasil), defende que o “ensino é livre para a iniciativa privada e governamental, e se administrará sem a ingerência do poder público” e que “é dever do Estado e da comunidade democratizar o acesso à escola e o exercício da livre escolha” (Idem). Aqui, referida à autonomia de escolher entre a escola pública e a privada... O ideário filosófico subjacente à política educacional oficial nos últimos anos da ditadura argentina é expresso no programa de Formación Moral y Cívica do Ministério de Cultura e Educação, proposto pelo educador Juan Rafael Llerena Amadeo. Programa lançado em março de 1980. O Clarin (04/03/1980, pgs 22-23) destaca a iniciativa em suas páginas referentes à educação, salientando a ideia segundo a qual a “pessoa humana” é composta – dentre outras - pela dimensão da individualidade, racionalidade e liberdade. Informa ainda o diário que constará como conteúdo do programa de formação moral assuntos como filosofia e arte gregas, direito e vida política romana, além de conteúdos como “a tradição bíblica” e “o cristianismo: o amor a Deus e o amor ao próximo, a igualdade entre os homens” (Idem). Alfredo Stroessner (1912-2006) protagonizou a mais longa ditadura pessoal do Cone sul (MORAES, 2000 & CHIAVENATO, 1980), que perdurou de1954 a 1989, sob os auspícios da Asociación Nacional Republicana e do Partido Colorado (fundado em 1887). O discurso circulante neste período enaltecia: o senso de patriotismo e nacionalismo, a defesa da cultura e da língua guarani, o anticomunismo, e a defesa da civilização ocidental e cristã contra o avanço do socialismo internacional. Ainda enquanto discurso, o governo Strossner anunciava a significativa preocupação com a “Defesa da Soberania Nacional”. A análise dos boletins e memoriais da Federación de Educadores del Paraguay (FEP) indicam que a federação docente paraguaia se filia ao ideário governista, cumprindo um significativo papel no controle político da categoria. Ao longo de boa parte do período ditatorial, a FEP exerceu com exclusividade a representação sindical docente, sendo confrontada por outra agremiação – a Organización de los Trabajadores de la Educación en Paraguay (OTEP) – apenas nos anos finais da década de oitenta, pouco antes do fim da ditadura Strossner. A FEP é constituída de um conjunto de Associações de semelhante perfil assistencialista, que não problematizam os mecanismos de exploração e cerceamento da liberdade docente e nem o atrelamento da educação aos mecanismos de controle direto governamental. Neste sentido, o memorial da comissão diretora da associação docente de Arroyos (cidade do sudoeste paraguaio) defende, conforme o artigo 2º de sua Carta Orgânica, que “segue sempre prestando sua assistência econômica aos 418 associados que a solicitam através de uma Caixa de Ajuda” (Memoria de la Comisión Directora de la Assciación de Educadores Arroyenses , pg 01) Anexo 2276. A FEP, distinguindo-se de outras instituições sindicais do bloco, notadamente as Argentina e Brasil, não edita boletins regulares e nem encaminha alguma ação de editoração de caderno de formação ou debate. Suas diretrizes e seu ideário é propagado em meios às assembléias e disseminadas ao longo de todo país através dos representantes das províncias. Por conseguinte, a pesquisa foi realizada com Atas das assembleias, memoriais de diretoria e boletins informativos datilografados, fato que empobrece uma melhor aproximação aos conceitos subjacentes. Contudo, constituem-se como valiosos registros da efetiva sintonia entre a FEP e o governo ditatorial. Na “memoria” escrita por seu presidente, Oscar Vera, atesta-se tal relação pelo fato do documento defender que a federação: “tem encontrado no Senhor Ministro [da Educação] Ortíz Ramírez um interlocutor consciente para com nossas inquietações, suas respostas se caracterizam por sua sinceridade e suas posições coincidem com nossas aspirações” (Memoria de la Comisión Directiva de la FEP, exercício 19841985, pg 02) Ainda o presidente da FEP, no discurso pronunciado na cerimônia de abertura do evento comemorativo dos cinquenta anos da entidade (1986), atesta que: “Em relação à luta pela proteção dos docentes, até esta data se tem logrado conquistas de relevância, tais como, o pagamento regular dos salários, a promulgação da lei que estabelece a progressão por mérito (escalafon), a assistência médica através do Instituto de Previdência Social (…) ressaltamos em grau superlativo a majestosa obra do Governo Nacional, que com uma dinâmica sem precedentes em nossa história, transformou a infraestrutura física e programática do sistema educativo do país, dotando a nação de modernos estabelecimentos educacionais, disseminados como verdadeiros monumentos à paz, por todo o país, permitindo ao educador exercer sua profissão com comodidade e decoro.” (Reflexiones de la Presidencia de la FEP – apertura XXV Convencion Anual, 1986). Então, a “luta” de emancipação e conquista da soberania dos docentes paraguaios encaminhada por sua federação nacional não avança em nada as linhas determinadas pelo próprio governo ditatorial. O PENSAMENTO PRAGMÁTICO-DEWEYNIANO A contribuição do pensamento de John Dewey à educação está notoriamente relacionada ao Movimento Escola Nova, movimento plural composto por correntes 419 pedagógicas que nem sempre coincidiam em suas propostas. Esta pluralidade faz com que possamos filiar a suas bandeiras educadores de matizes ideológicas distintas, por exemplo, o próprio Dewey (EUA), Maria Montessori (Itália) e Makarenko (URSS). Assim, em termos de uma identidade filosófica particular, o movimento é desprovido de um cerne conceitual comum. A possível convergência entre suas diversas matizes se dá em torno da crítica à escola tradicional (verbalista e livresca) e da valorização da autonomia do aluno, em meio a um espaço social estruturado segundo a autonomia democrática. Este novo olhar sobre o educando também se pode debitar a uma maior presença das contribuições da psicologia cognitiva nas reflexões sobre as práticas relacionadas ao ensino-aprendizagem, particularmente aos estudos de Jean Piaget. Quanto a Dewey, suas ideias influenciaram um bom número de experiências pedagógicas em vários países. O educador inicia sua reflexão a partir das experiências realizadas na Escola Universitária Elementar de Chicago, que funcionava como uma espécie de “colégio de aplicação” em relação aos debates acerca da educação promovidos pela referida Universidade, no qual se efetiva na realidade prática as concepções de experiência e conhecimento características do pragmatismo deweyniano. Suas práticas e ideias influenciaram a constituição de um ideário que se apresentava como a resposta às necessidades de una escola nova para os novos tempos (CASTRO, 2007, 127). Como exemplos dessa influência podem ser citados a Park School em Buffalo; a experiência da educação orgânica no Alabama (Fairhope); em Dalton, as experiências que originaram a proposta conhecida como “Dalton Plan”, que junto com o sistema Winnetka, criado por C.W. Washburne (Illinois), representam as mais notórias experiências pedagógicas centradas no trabalho auto-dirigido (CASTRO, 2007, 129). Vários elementos podem justificar a grande influencia que o pensamento de John Dewey exerceu na América Latina, principalmente na primeira metade do século XX: a circulação de estudantes e professores universitários latino-americanos, na maioria das vezes oriundos dos estratos mais beneficiados da sociedade, nos centros de ensino superior estadunidenses e, principalmente, à força de contestação com a qual se volta o ideário deweyniano contra a pedagogia tradicional, que em nosso continente tinha a Igreja Católica como ferrenha representante e defensora. A sintonia entre o ideário pedagógico tradicional com o projeto de poder da oligarquia agrária faz com que a contestação à pedagogia tradicional, em toda a América Latina e em particular nos países do Cone sul, assuma um 420 iminente caráter político, provavelmente, de uma natureza contestadora ao status quo bem mais acentuada que nos EUA. Pois, se lá o discurso de valorização da democracia coincidia em vários aspectos com o projeto liberal progressista, entre nós, em meio à hegemonia da oligarquia latifundiária (herdeira do colonizador escravocrata), até o projeto democrático liberal era profundamente transformador. É então se confrontando com o projeto oligárquico que os escolanovistas desenvolvem suas ações e reflexões pedagógicas. Nomes como Anísio Texeira, Miguel Soler, Yolanda Vallarino, Reyna Reyes e Julio Castro, representam tanto a influencia do pensamento de Dewey quanto o caráter contestador do escolanovismo. Sendo esta corrente de pensamento pedagógico a mais presente no universo dos periódicos investigados na pesquisa. Definimos aqui por pensamento pragmático-deweyniano o conjunto de ideias e práticas inspiradas diretamente na contribuição de John Dewey e que tem como categorias principais os conceitos de democracia e liberdade. Na década de oitenta, via as reflexões de Julio Castro, uma filosofia educacional de inspiração deweyniana ainda desempenhava um grande papel no pensamento pedagógico do Cone sul. Assim como Teixeira no Brasil, Julio Castro é o grande nome do escolanovismo de influencia deweyniana, não apenas no Uruguai, mas nos píses vizinhos, notadamente a Argentina. Salientando que suas ideias não ficaram restrita às décadas de 40 e 50 do século passado devido principalmente ao esforço editorial dos periódicos Revista de Educación del Pueblo (2ª Época, N: 37, 1987) e Cuadernos de Marcha (3ª Época, A I, N: 07, 1985) em reafirmar sua presença e reeditar seus textos. Julio Castro nasceu em Estación La Cruz (Uruguai), em 1908. Fez os estudos básicos em escola rural. Transferindo-se para Montevidéu, forma-se em magistério; aos dezenove anos (1927) já exercia o magistério de primeiro grau. Desempenhou também as funções diretor de escola, subinspetor de ensino primário, inspetor departamental de Montevidéu e professor de filosofia da educação nos Institutos Normais. Foi sindicalista da Unión Nacional del Magisterio, en la Federación de Asociaciones Magisteriales del Uruguay. Foi autor de obras de referência para a educação no seu país e para a América Latina, tais como “El Analfabetismo” (1940); “Los programas escolares vigentes; 421 modificaciones que podrían introducirse en ellos” (1941); “El banco fijo y la mesa colectiva; vieja y nueva educación” (1942); “La escuela rural en el Uruguay” (1944). Em 1964, colaborou com a organização da “Asamblea Mundial de Educación, preparada pela “Academia Mexicana de la Educación” e pela “Liga Internacional de la Enseñanza, la Educación y la Cultura Popular”, tendo sido delegado regional para Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, presidindo a comissão que se ocupou da temática ”problemas de la educación en América Latina”. Entre 1967 e 1970 a UNESCO designa Julio Castro como Conselheiro Técnico Principal do Projeto Piloto de Alfabetização de Adultos do Equador. Junto com Carlos Quijano coordenou o semanário “Marcha”, periódico de grande circulação no Cone-Sul cuja linha editorial crítica e emancipatória se opunha aos regimes ditatoriais que se formavam na região. Em 1974, é detido por dois meses devido a suas posições políticas. Em 1975, sofre um segundo acidente vascular cerebral. É detido pelo regime militar uruguaio em agosto de 1977, dias depois, é dado como desaparecido. O educador uruguaio aponta Herbart como o representante mais emblemático da pedagogia tradicional, confrontando-o com John Dewey que, assim como o pedagogo germânico, aliou em suas idéias a consistência filosófica e teórica à pertinência pedagógica e didática. Para Castro (CASTRO, 2007, 128), “en Dewey está condensada, más que en ningún otro, la esencia pedagógica y filosófica del movimiento educacional del presente siglo”. Segundo Castro, a pedagogia de Dewey se baseia na atividade do educando, propondo que o aprendizado se dá na ação de problematização e investigação, ou seja, no fazer mesmo do conhecimento. Retira-o da condição passiva de mero ouvinte e o coloca como sujeito ativo no processo de aprendizagem. Tais características fazem da pedagogia deweyniana uma das principais referências para a ideia de Escola Ativa. A perspectiva compartilhada pelo educador norte-americano e os demais educadores escolanovistas é a centralidade da atividade escolar no educando. Sendo este o ponto comum de oposição ao que se identifica como pedagogia tradicional, cuja centralidade está no docente. No escolanovismo, o ambiente vital no qual se desenvolve a vida escolar é constituído pela atividade, colaboração e interdependência social estabelecida entre os alunos (CASTRO, 2007, 128). Exige-se agora do docente sensibilidade e uma grande capacidade de interpretação das ações desenvolvidas pelos alunos, além de um aguçado sentido orientador. 422 Esta reviravolta proposta para a vida escolar é identificada por Dewey como que uma verdadeira Revolução Copernicana na educação (CASTRO, 2007, 103). O pedagogo latino-americano reconhece na pedagogia deweyniana um forte sentido social. Não apenas constituindo-se a dimensão social enquanto ambiente e projetandose enquanto finalidade, mas também colocando-se no âmbito da perspectiva histórica, entendida como processo humano (CASTRO, 2007, 128). Comunga com Dewey a crítica à escola tradicional apontando como emblema de sua natureza coercitiva a fileira fixa de bancos. Em contrapartida, valoriza a mesa coletiva como símbolo dessa nova escola: “si el banco fijo representa como lo dice Dewey, el elemento símbolo de la pedagogía tradicional, la mesa colectiva puede representar, del mismo modo, las tendencias generales de la nueva educación” (CASTRO, 2007, 32). Tomando como referência Luzuriaga, Castro (2007, 105) identifica a liberdade enquanto um dos cinco princípios gerais que caracterizam o movimento pedagógico moderno, que seriam a vitalidade, atividade, infância, comunidade e liberdade. Salienta que a condição para o respeito à infância é a consideração à liberdade infantil, pois, “solamente en un clima de libertad personal y colectiva el niño se manifiesta tal cual es” (CASTRO, 2007, 116). A liberdade não é a tolerância à indisciplina, é o reconhecimento de que a criança e o jovem são naturalmente ativos e que, portanto, as práticas que favoreçam a vitalidade e atividade desempenhadas comunitariamente só podem proliferar num ambiente de autonomia. Em contrapartida, é por não favorecer tal liberdade que a pedagogia tradicional estabelece “el orden estático como principio general de la vida escolar” (CASTRO, 2007, 116). Todavia, o educador, já no início da década de 1940, acusa que práticas pedagógicas que se desenvolviam na época já não correspondiam plenamente ao ideário original do escolanovismo, em particular, já não correspondiam aos sentidos lançados pelo ideário deweyniano. Os novos ordenamentos políticos surgidos após a I Guerra Mundial, cujo modelo, à direita, era o nazi-facismo e à esquerda, o stalinismo, impactaram diretamente no ambiente político-pedagógico de suas respectivas sociedades. Ambiente que colocava, segundo Castro (2007, 131), o escolanovismo em “fuego cruzado”. Haja vista que, à esquerda, era considerado uma criação burguesa, cujo modelo de escola e ensino estavam baseados em ativismos artificiais e passatempos; e, à direita, consideravam-no um “vivero de producción anárquica”, que deveria ser sufocado a bem da formação de uma sociedade 423 organizada, hierarquizada e estatizada. As observações do educador nos fazem intuir que a forma de organização cogitada para a sociedade é a própria hierarquia, de tal maneira que qualquer espaço de formação para a diversidade lhe seria uma afronta. Daí, a finalidade da escola nesse projeto de sociedade é o domínio, que tem a força como meio de se instaurar. Por sinal, o descompasso entre o ideário escolanovista e a estatização da sociedade se dá à direita e também à esquerda. Segundo Castro (2007, 132) os pedagogos de ascendência marxista defendem a tese de que a escola devia estar a serviço exclusivo da comunidade e, para alguns, sob o controle do Estado, nesta perspectiva se aponta que o educando deve ser pensado enquanto “militante en formación de su clase o de su partido. (...). La escuela es, pues, el gran campo de formación de las juventudes, con una orientación político social determinada”. A análise do educador uruguaio nos esclarece que se esvazia do projeto pedagógico escolanovista-deweyniano sua proposta de sociedade aberta e em construção democrática: a difusa idéia de democracia social como finalidade é substituída por um projeto determinado de Estado, que se confunde com o próprio modelo de sociedade projetado. Tal substituição coincide com a idéia de se construir a sociedade futura seguindo a precisão de quem constrói um sistema mecânico qualquer a base de fins claros e métodos precisos. Segundo Castro (2007, 132), esta concepção possibilitou “grandes aciertos, algunas veces”, porém, “grandes errores” em outras. Neste ambiente de fogo cruzado o escolanovismo, enquanto uma proposta pedagógica sintonizada com um projeto de sociedade democrática, não pode proliferar. Todavia, suas inovações quanto aos processos de ensino são largamente difundidos (CASTRO, 2007, 131). Desta forma, nas sociedades não democráticas, suprime-se das inovações no campo da educação sua dimensão libertadora, mas se busca manter sua eficiência didática. E assim, conclui Castro (2007, 131) “se debilita peligrosamente, el espíritu de libertad y cooperación que animó sus realizaciones”. Apesar de sua defesa do caráter libertador do escolanovismo, o pedagogo mantém um olhar crítico sobre o mesmo. Reconhecia que: “la pedagogía de la escuela moderna no era un dogma infalible y mucho menos una panacea que resolviera todas las situaciones. Bien pronto la agudeza crítica demostró que los métodos tenían fallos fundamentales, tal vez por ser muchos de ellos ideados más desde un plano intelectual, que como fruto de la experiencia directa” (CASTRO, 2007, 149). 424 A exemplo disso, aponta a defesa da liberdade da criança preconizada por Montessori, que apesar de ser um dos conceitos mais recorrentes em sua proposta pedagógica, não se encontra ali devidamente sistematizado, fazendo com que na prática mesma da sala de aula, o docente tenha que desempenhar uma “verdadera calistenia”, dado ao próprio esforço em acompanhar a infatigável dinâmica das crianças em sala de aula, sem que se tenha uma metodologia que norteie tal acompanhamento. A preconização da liberdade infantil, que remete ao acatamento ao ritmo determinado pela própria criança no processo de aprendizagem, sem as devidas sistematizações metodológicas, acarreta também no retardo em aquisição da capacidade de leitura ao qual são vitimadas as crianças submetidas ao modelo Decroly de alfabetização. Castro denuncia que tal modelo de ensino da leitura e da escrita “es un proceso trabajoso y largo y los niños llegan a 3º o 4º año sin saber aún leer com corrección” (CASTRO, 2007,149). O olhar crítico do educador uruguaio se volta ainda para as aproximações de tendências do escolanovismo à ideologia liberal-taylorista, muito em voga nos EUA na primeira metade do passado. Castro (2007, 130) salienta as experiências do “Dalton Plan” como exemplo dessa aproximação, cuja prática pedagógica corresponde a uma certa estandardização do trabalho. O taylorismo de sua prática está expresso na aferição racionalizada do trabalho e pelo valor que se dá ao rendimento quantitativo, cuja finalidade acaba sendo a de formar cidadãos produtivos para a uma sociedade que se constitui traduzindo modernização por industrialização. No entanto, sem perder de vista os elementos a serem aperfeiçoados no escolanovismo, as reflexões do educador sugerem que não se deve deixar de apostar em seu potencial emancipatório. Pois, mesmo que muito do espírito original tenha se perdido e mesmo diante dos limites do próprio ideário escolanovista, que jamais deve ser visto como panacéia, sua proposta contribuiu inegavelmente para uma necessária valorização do educando, enquanto sujeito autônomo. Perspectiva que por si só já aponta um mundo de novos caminhos a serem trilhados pela educação. Neste sentido, o educador afirma que o escolanovismo demarcou definitivamente seu lugar na cultura educacional do Uruguai, pois “aunque sus métodos cayeran en el olvido quedó asimilado, definitivamente, mucho de lo 425 esencial de su espíritu. Y no podrá hacerse ya una historia de la escuela uruguaya y de las ideas que la han orientado, prescindiendo de ese período” (CASTRO, 2007,149). O reconhecimento do potencial emancipador do escolanovismo conduz o educador uruguaio a optar conscientemente por tal tendência, engajando-se naquela pedagogia que sem dúvida é uma das que tem na liberdade e democracia suas principais bandeiras. Testemunhando seu engajamento ao projeto emancipador do escolanovismo, emblematicamente representado pela “mesa coletiva”, Julio Castro (2007 157-158) afirma: Nos colocamos en posición de militancia (...) porque entendemos que la mesa representa un espíritu de la educación que triunfa a pesar de todo; una concepción que se abre paso; una esperanza que apunta al porvenir, aspirando alcanzar soluciones de libertad. O escolanovismo de influência deweyniana tem então em Júlio Castro um de seus mais significativos representantes. É bem verdade que seu esforço em defesa da democracia e da liberdade pode ser incorporado pelo discurso liberal. Todavia, não se deve esquecer que mesmo em perspectiva de um projeto socialista de sociedade, a democracia e a liberdade não devem ser prescindidas. Pois a histórica já nos deu trágicas lições do despotismo que se instaura com suas ausências. Sendo a tarefa de a educação somar empenho para que a democracia e a liberdade se constituam efetivamente como valor e prática para o conjunto da sociedade. È neste sentido então que reside a importância de Castro no panorama pedagógico do MERCOSUL, pois, suas propostas e reflexões pedagógicas são inegavelmente um importante agente dessa constituição. Influenciado pelas ideias de Castro, o escolanovismo no Uruguai e na Argentina se manifestará segundo um caráter mais social, voltando-se a um papel emancipador da educação, em especial, produzindo importantes experiências no campo da educação rural. Tendo em Júlio Castro um de seus principais entusiastas, no país cisplatino, o debate democrático, próprio do ideário escolanovista, se fará acompanhar de uma salutar crítica social, contestadora das estruturas oligárquicas, aspecto que não demarcará tanto quanto sua manifestação no Brasil. O ideário democrático de ascendência pragmática-deweyniana está subjacente no perfil editorial do periódico Revista de la Educación del Pueblo, impressa em Montevidéu 426 (Uruguai). Em linhas gerais, o periódico expressa os anseios de uma categoria docente que, saindo de uma ditadura, almeja uma sociedade democrática e uma educação verdadeiramente a serviço da população. A edição de número 29 (junho de 1985) demarca este espírito por ser a retomada da circulação do periódico interrompida em 1976, devido ao avanço da repressão no Uruguai. Em seu editorial , a ideia de liberdade está associada ao desejo de progresso e desenvolvimento social, defendendo que “progresso e liberdade não são outra coisa senão uma expressão do desenvolvimento humano” (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 29, 1985, pg05). Este anseio de liberdade embala as reivindicações de mudanças na realidade educacional do país, particularmente quanto às propostas curriculares herdadas do arbítrio. Contudo, o papel do educador não se reduz apenas a suas tarefas didáticas; segundo Victor Brindisi (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 29, 1985, pg45), é nossa obrigação “integrarmo-nos como trabalhadores, como democratas, à luta geral de nossos povos”. Perspectiva a qual se soma Francisco Sanguiñedo (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 30, 1985, pg21) para quem os professores são educadores da democracia e liberdade e não educadores do autoritarismo. Dessa forma, Marta Dermachi (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 30, 1985, p. 07) afirma que a “escola deve se voltar para a verdadeira tradição democrática, aquela que instaura critérios de liberdade, de justiça e igualdade”. Pois, segundo a própria Dermachi (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 35, 1987, pg09), o domínio institucional escolar sobre o indivíduo tolhe sua espontaneidade e criatividade: os elementos motores de uma subjetividade autônoma. A instauração de um ambiente democrático corresponde ao fomento de uma cultura de liberdade, na qual o educando tenha autonomia critica e, junto com todos, possa fortalecer o diálogo. A democracia na escola corresponde à liberdade de ação, de práticas e de pensamento. Elementos não contemplados nos tradicionais planos e programas da educação uruguaia (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 32, 1985, pg11-13) A defesa das bandeiras democráticas se chocam com uma cultura pedagógica fortemente influenciada pela presença do ideário e interesses da Igreja. Neste sentido, a escola pública deve ser uma instituição laica. Sob esta ótica, Manuel Claps defende que: “o laicismo que deve ser militante e manter viva a liberdade de pensamento, esta que ensina a pensar, a conhecer a realidade e a ter criticidade e também 427 como fiadora do desenvolvimento da liberdade de convivência entre os homens e da democracia. (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 31, 1985, pg12) A defesa da laicidade vai além da questão religiosa, se refere também a dimensão ética da educação no que diz respeito a não supremacia de uma visão de mundo ou ideologia específica que venha a ferir a liberdade de expressão e pensamento do cidadão e do educando no âmbito da escola. Por conseguinte, a escola, enquanto ambiente democrático, é um espaço laico. Pois segundo Jaime Monestier “a laicidade exerce um papel decisivo no terreno do ensino e na elaboração do conceito de liberdade de consciência” (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 36, 1987p. 38). A democracia e a liberdade são então o fundamento que possibilita à escola formar cidadãos críticos, solidários e comprometidos com o desenvolvimento de sua sociedade. Capazes de perceber e interpretar a realidade, entender o funcionamento da sociedade em que vivem e comprometer-se com opções livremente assumidas. Exercendo livremente seu poder de decisão e de autonomia para formular e sustentar suas escolhas. Nessa situação de democrática interação social, a educação pode se dar em sua plenitude pois, “não é possível a educação sem a liberdade e sem a paz” (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 34, 1986, p.g03). Segundo Norma Morales e Mabel Moreni (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 38, 1987, pg14-17), encaminhar a escola no sentido da formação cidadão implica na reorientação do currículo escolar, de forma que em sua estrutura valorize e possibilite a vivência de experiências democráticas e do exercício da autonomia. Entendendo que a formação para a democracia não é tarefa exclusiva da escola: a família tem também o dever de se engajar nesta tarefa. O PENSAMENTO MARXISTA-GRAMSCIANO Os regimes ditatoriais na América Latina dentre as várias ações de repressão dispensaram à organização sindical de suas respectivas sociedades medidas de grande controle e coerção. Centrais de 428 Trabalhadores assistiam a prisão e o desaparecimento de um número “impressionante de militantes, dirigentes e figuras públicas” (NAVARRO & PALERMO, 2007, pg.29). Todavia, a segunda metade da década de oitenta assiste os conflitos que demarcam o fim das ditaduras militares nos países que comporão o MERCOSUL. Tencionando com o regimes autoritários, a organização sindical desenvolve-se e reagrupa-se já no início da década, particularmente a organização sindical docente. O debate sobre a realidade educacional se colocava como um tema sensível à classe média, o próprio diário El Clarin, apoiador do regime ditatorial argentino, abria espaço semanal para este debate. Contudo, em devido às organizações sindicais, a discussão era levada para além da simpatia por parte da opinião pública e da mídia. O discurso sindical problematizava não apenas a melhoria das condições de ensino e do fortalecimento da escola pública mas também as formas de contestação ao regime e à sociedade capitalista. Registra-se já nessa época a interação entre as representações sindicais dos países, inclusive oriundas do Paraguai, no caso a Organización de los Trabajadores de la Educación em Paraguay – OTEP. No Paraguai, a constituição da OTEP conflitou diretamente com a FEP, que ainda nos dias atuais conta com o apoio dos governos conservadores. As tensões entre entre as duas representações e o engajamento da OTEP em ações de confronto direto com a política educacional do final do governo Strossner resultam (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 4, 1988, pg01) na perseguição à instituição e na prisão de seu Secretário Geral, Gabriel Spíndola . O pensamento Antonio Gramsci tem nesse período grande penetração no meio intelectual latinoamericano, pois suas reflexões também têm como pano de fundo uma sociedade de traços latinos (forte presença católica e paternalismo sociopolítico). Grosso modo, o pensador apresenta uma outra forma de conceber a relação infra-estrutura sobre a supra-estrutura, sugerindo que a luta no plano ideológico (educação e cultura) pode iniciar o processo de transformação que se alastre até a revolução da base estrutural. Pois, a relação infraestrutura-superestrutura não é de determinação, mas sim de reciprocidade (GRAMSCI, 1981, p. 53). Assim sendo, a educação, enquanto atividade social, e a escola pública, como um instrumento popular, são percebidos como o espaço por excelência para a desconstrução do discurso hegemônico dominante e a disseminação do ideário verdadeiramente libertador. O periódico Educación y Cultura Latino Americana (Montevidéu - Uruguai) se constitui como o veículo de integração e formação da ação sindical docente no Cone-sul. No Editorial de maio-junho de 1988, intitulado “Educadores latinoamericanos por la unidad”, 429 enaltece a que seria a constituição da primeira “comissão internacional – verdadeiramente pluralista e representativa – em solidariedade com os educadores argentinos em conflito” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg01), em referência a importante greve encaminhada pela Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina (CTERA). Registrando que tal comissão foi composta por representações mundiais e latino-americanas (CSME, CMOPE, SPIE, FLATEC) e por sindicatos nacionais (SUTEP – Peru, FVM – Venezuela, FUM-TEP – Uruguai, OTEP – Paraguai, CPB – Brasil, CP - Chile) e um sindicato regional (APROESP – São Paulo [Brasil]). O compromisso do periódico com a causa da educação libertadora e a unidade dos trabalhadores da educação fica explicito ao atestar que: “Hoje, deste editorial queremos simplesmente ratificar (…) nosso compromisso irredutível na causa de construir entre todos e com todos a unidade dos trabalhadores em educação e sua identificação com o Movimento dos Trabalhadores em geral” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg03) A defesa da ideia de que o docente é um “trabalhador” em educação e cultura está lastreada na própria concepção marxista-gramsciana de unidade da classe trabalhadora. Pela qual, a ação revolucionária do educador está em lutar por uma escola e uma educação revolucionária, isto é, contra-hegemônica. Neste sentido, a escola pública é um significativo instrumento de ruptura dos mecanismo de dominação. Para tanto, se faz necessária um tomada de consciência acerca dos sutis mecanismos de dominação, pois o processo de libertação passa, necessariamente, pela “educação” crítica da consciência do homem. Nesta perspectiva, Jorge Conde, Claúdia G. Constanzo e Gustavo Conde propõem “investigar nas escolas a existência de emergentes modelos alternativos ao autoritário e promovê-los” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg13). A reflexão dos referidos educadores leva em conta que o consenso legitimador da dominação tem um componente de medo, construído no período de maior repressão. Neste sentido, Novaro e Palermo (2007, pg 183) comentam, em relação à Argentina, mas que acreditamos não ser uma realidade diferente nos outros países, que: “a educação foi sujeita a um controle minucioso, que Juan C. Tedesco denomina de 'currículo oculto': ações dirigidas a vigiar e castigar operando sobre as relações entre docentes e alunos, entre os próprios alunos, e entre estes e suas famílias”. Sob o contexto do medo como herança, os educadores defendem que um dos principais objetivos para a escola pública, e que também deve ser a meta da relação educador-educando, é “contribuir para uma tomada de consciência da situação vivida até o presente (1986), que possibilitará a diminuição das ansiedades provocadas pelo medo, particularmente o medo à transformação” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg13). 430 O processo de transformação da escola pressupõe um momento de tensão entre a antiga estrutura institucional e a nova que surge. Sob esta ótica, os autores salientam a necessidade de se constituir a formação de uma “contra-instituição”: coletivo de trabalho, democraticamente constituída e amplamente representativa dos segmentos que compõem a escola, voltado para a construção de uma realidade curricular e pedagógicas alternativas (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg16). Contudo, a constituição de uma educação libertadora advém necessariamente da mobilização da própria classe trabalhadora. Desta forma, a greve é não apenas um instrumento de denúncia acerca da realidade educacional deixada pelos anos de ditadura mas é também um dos principais instrumentos de mobilização a favor de um projeto libertador para toda a América Latina. A revista Educación y Cultura reforça esse compromisso ao anunciar no Editorial do quarto número de 1988, intitulado “Solidaried, unidad e lucha” que: “Importantes greves como as do sul do Brasil, Argentina ou Peru, todas relativamente recentes, são pontos altos na combatividade dos sindicatos da Educação. E junto a elas, tem crescido a solidariedade de todos os sindicatos da América e das organizações supranacionais de trabalhadores da educação. Solidariedade, unidade e luta para construir entre todos uma educação a serviço da libertação do povo” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 4, 1988, pg02) O PENSAMENTO MARXISTA-FREIREANO A cultura pedagógica brasileira acompanha ao longo da década de oitenta a consolidação do pensamento de Paulo Freire como uma das mais salutares corrente pedagógica no Brasil. Contudo, esta penetração e presença, em relação aos demais países do Cone sul, ao longo dos anos oitenta, é ainda pontual. No Brasil, os setores progressistas da Igreja Católica - ligados à Teologia da Libertação - desempenharam um papel fundamental na incorporação do ideário freireano na vida prática da educação. Especificamente, o principal veículo dessa inserção foi a Revista de Educação da Associação de Educação Católica do Brasil, Revista AEC. Apoiado pela própria CNBB, o periódico tinha um grande poder de circulação e, consequentemente, de formação de ideias entre importantes segmentos da sociedade civil organizada. Deste modo, o pensamento de Freire circulou em Comunidades Eclesiais de Base (CEB), Círculos Operários, Associações Comunitárias e demais organizações populares promovidas pela Igreja progressista. Também, as escolas das ordens católicas se constituíam enquanto espaço para a inserção da pedagogia freireana. Assim, gestores, coordenadores, docentes e educadores das mais diversas funções na vida escolar se depararam com a tarefa de pensar suas respectivas práticas sobre um outro olhar, que não aquele da escola tradicional ou da pedagogia tecnicista. 431 Todavia, naturalmente, estas circunstâncias não se deram na história dos demais países do MERCOSUL. Vamos encontrar uma presença mais regular do ideário freireano a partir da metade da década de oitenta, salientando que no Paraguai esta circulação mais efetiva só ocorre nos anos 1990. Mesmo assim, não se constituindo, como no Brasil, uma corrente pedagógica propriamente dita. Por conseguinte, o pensamento freireano é circulado nesses países como uma variação mais libertária do legado fundado pelo chamado marxismo ocidental. A forte dimensão personalista-fenomenológica da obra de Freire não é notada nesta circulação. Salientando que no Uruguai, provavelmente devido a presença do escolanovismo na cultura pedagógica desta nação, debitada certamente à influência de Júlio de Castro no pensamento pedagógico uruguaio, o pensamento de Freire circula também como um defensor da democracia, liberdade e autonomia do educando, além das tensas questões relacionadas à problemática do oprimido. A revista EDUCOO foi o periódico que mais se aproximou do papel exercido pelo periódico brasileiro “Revista AEC” quanto à difusão do ideário freireano. Valorizando e incentivando a cooperação no universo das práticas pedagógicas, o periódico, em cujos articulistas se encontram Frei Beto e o próprio Paulo Freire, se constitui como um espaço de experiências alternativas caracterizadas pelo partilhamento coletivo, sintonizado com a noção freireana de comunhão. Segundo a qual “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52). O periódico em seu subtítulo manifesta aquela que seria sua principal missão: “por una educación alternativa”. Editada em Buenos Aires, expressa as reflexões da “Cooperativa de trabalhos em educação”, sediada na referida cidade (EDUCOO, N: 06, Novembro de 1987). Atesta que persegue dois grandes objetivos, coerentes com a valorização do partilhamento coletivo em relação à problemática educacional: “Comunicación y difusión: tem por finalidade estabelecer e manter contato com e entre os docentes a nível nacional, dar a conhecer todo material útil para o esclarecimento de nossa realidade, e oferecer perspectivas pedagógicas inovadoras. Talleres de investigación y capacitación: refletir as dificuldades da nossa problemática e buscar com todos uma solução.” (EDUCOO, N: 06, 1987) Conforme afirmou-se acima, o ideário freireano é recepcionado segundo um viés marxista, provavelmente, mais intenso até do que a própria filiação de Freire a essa corrente. Sob esta perspectiva, encontramos na revista uruguaia “Educación y Cultura Latino Americana”, de tendencia marxista-gramsciana, referência direta ao educador pernambucano. O já referido Editorial do quarto número, escuda-se no conceito de “educação bancária” para denunciar que mesmo já tendo passado o período mais terrível da repressão, as forças 432 reacionárias ainda exercem seu poder na educação via a impetração de normas e decretos para a política educacional que desviam a escola de seu papel emancipador. Neste Editorial, o periódico denuncia que: “resulta evidente o interesse dos grupos mais reacionárias da sociedade em domesticar a educação e os educadores; em impor um ensino bancário segundo o principio formulado por Paulo Freire, notavelmente centralizado e dependente do poder político em todos seus níveis de cisão, profundamente acrítico e impositivo no que concerne à práxis cotidiana da aula”. (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 4, 1988, pg01). Assim, junto com Fanon, Martí e Dussel, Freire se insere no panteon composto pelos pensadores latino americanos que refletiram nosso continente numa perspectiva atualmente identificada como pós-colonial. Servindo de aporte teórico para um olhar que “olhe” nossa realidade e o lugar político de nossa educação a partir de nossos próprios olhos. O registro do reconhecimento da contribuição das ideias freireanas para a educação no Paraguai, infelizmente, encontrou-se apenas em material posterior à década estudada. Em 12 de setembro de 1992, o jornal “Correo Semanal” noticia sua visita a Asunción, onde, segundo o jornal, Freire afirmara: “me fazia falta conhecer o Paraguai. Por razões políticas não me havia sido possível concretizar esse desejo” (Correo Semanal, 12/09/1992, pg13). Sendo importante frisar que a recíproca é verdadeira: por razões políticas, a cultura pedagógica paraguaia ao longo dos anos oitenta pouco conheceu do pensamento de Paulo Freire. Mesmo, no início dos anos 1990, finda a ditadura de Strossner, o pedagogo é veiculado pelos setores mais conservadores como um “indiscutível 'guru' da educação libertária” (Idem), preocupado com a “transformação radical do medíocre modelo educativo imposto a nossos povos” (Idem). Assim, mesmo depois do período mais arbitrário do regime paraguaio, Freire ainda é associado à pacífica defesa de “modelo” educativo mais eficiente, menos medíocre. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa reforçou a tese que defendemos desde o trabalho doutoral segunda a qual uma das melhores contribuições que a filosofia pode dar ao debate pedagógico é fornecer elementos para um olhar amplo e profundo acerca das bases que sustentam as ideias e propostas defendidas, bem como sobre as implicações dessas ideias no plano da cultura pedagógica. Confirma também a importância das investigações acerca da produção pedagógica dos anos 1980, devido ao fato de ser a época na qual a presente realidade da educação, seja do Brasil, do Cone sul ou de toda a América Latina, tem suas raízes mais perceptíveis, passiveis de serem extirpadas no que haja de daninho ou alimentadas, no que haja de frutífero. 433 A pesquisa possibilitou-nos uma efetiva interação com outros pesquisadores do Cone sul, em particular da Argentina, abrindo a possibilidade de intercâmbio para ambas as partes e para pesquisadores de outros países latinos. Devido a baixa incidência de trabalhos sobre a temática “educação no MERCOSUL” e a ausência de trabalhos sobre a circulação do pensamento pedagógico na região, a pesquisa inova ao trazer elementos para a discussão sobre o movimento do ideário pedagógico na região. No âmbito da “Educação” como grande área do conhecimento, o projeto contribuiu para que se lance mais luz sobre as macrodimensões políticas da educação, sugerindo que as proximidades – notadamente entre Argentina e Uruguai – perpassam também pelas efetividades no plano educacional. No âmbito da Filosofia da Educação, o impacto positivo da pesquisa se dá por ter ampliado os estudos acerca das concepções filosóficas da educação na historia da América Latina, por consolidar a metodologia hermenêutica como uma importante ferramenta para os estudos em filosofia da educação, por ter, via a análise dos usos do conceito de liberdade no contexto histórico da redemocratização, levantado a reflexão sobre os conceitos subjacentes aos discursos emancipatórios proferidos, a partir do lugar Latino-americano, se somado aos esforços de um pensar pós-colonial. A inovação proposta foi também a fonte das maiores dificuldades encontradas ao longo do trabalho. Notadamente, a ausência de literatura sobre a temática sobre a história ou as identidades da Filosofia da Educação no MERCOSUL e na América Latina e a dificuldade de se encontrar acervos de periódicos preservados, aproximando-se da quase inexistência no caso Paraguaio. Enfim, reafirmamos a circulação do conceito de liberdade - tão caro à nossa América - nos debates e ideias é o fator que o constitui como um significativo operador a pontuar nosso olhar crítico sobre a realidade e a apontar o sentido de nossas proposta para a educação latino americana. 434 REFERÊNCIAS 1. AZEVEDO, Cecília & RAMINELLI, Ronaldo (Org). História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2011. 2. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3. CASTRO, Julio. El banco fijo y la mesa colectiva: vieja y nueva educación. Montevideo: MEC. 4ª ed. 2007. 158p. ISBN: 978-9974-36-112-6 4. 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[email protected] Introdução No final do século XIX até as primeiras décadas do século XX havia entre os anarquistas no Brasil, diversas criticas ao ensino oficial principalmente no que tange o seu caráter conservador na qual somente a elite tinha acesso á educação enquanto os filhos dos operários não tinham espaço na educação formal, ficando clara a utilização da educação como instrumento para a segregação social, tratando a escola como artigo de luxo. O movimento anarquista acreditava que nos espaços formais de educação oferecida pelo Estado tanto como na clerical oferecida pela Igreja, haviam-se diversas práticas autoritárias deixando claro seu intuito de servir a imposição de ideais as crianças, para que estas não tivessem a oportunidade de potencializar todas as suas habilidades, e se desenvolvessem enquanto seres apáticos e sem a possibilidade de fomentar qualquer tipo de mudança nas estruturas sociais quando se tornassem adultos. Tais críticas foram um dos motivos principais para que os anarquistas começassem a discutir cada vez mais a questão educacional, já que não confiavam seus filhos ao sistema educacional vigente. A crítica a educação oficial foi um dos pontos principais nas discussões ocorridas no Primeiro Congresso Operário Brasileiro (COB) em 1906, na fala do militante português Edgar Rodrigues: 437 O ensino oficial tem por fim incutir nos educandos idéias e sentimentos tendentes a fortificar as instituições burguesas e, por conseguinte, contrárias á emancipação operária, e que ninguém mais do que o próprio operário tem interesse em formar livremente a consciência dos seus filhos (RODRIGUES apud MORAES, 2006) Esse congresso foi de extrema importância, pois a sua preocupação com a temática da educação proporcionou diversas iniciativas para atividades que visavam a construções de escolas. Com fortes influencias da experiência do Orfanato de Cempuis (1880 á 1894) realizado por Paul Robin (1837 – 1912) e do racionalismo combatente proposto por Ferrer Y Guardia em sua experiência com a Escola Moderna de Barcelona e em meio a diversos protestos contra o fuzilamento do mesmo Ferrer em 1909, foi criado a Comissão pró-Escola Moderna a qual foi composta por pensadores anarquistas importantes para a área educacional do movimento como João Penteado, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho entre outros. Ainda em 1909 viria a surgir o Comitê Organizador, que tinha como foco a construção da Escola Moderna N° 1, este Comitê tratou de providenciar os recursos econômicos para o funcionamento da escola, buscou também a instalação da escola em um prédio adequado, conseguiu os equipamentos necessários, assim como material adequado e ainda garantiu que a escola não sofreria com a perturbação das constantes investidas policiais. Obteve inclusive a licença do Diretor Geral da Instrução Pública do Estado para a instalação e funcionamento da escola. Experiências Educacionais no Brasil nas primeiras décadas do Século XX: Em meio ao movimento pró-educação anarquista efervescente principalmente nas primeiras duas décadas do século XX no Brasil, houve diversas modalidades educacionais e propostas para a construção e implementação da pedagogia libertária no Brasil, com ajuda dos sindicatos, dos pais, dos militantes anarquistas e dos simpatizantes. Foram pensadas modalidades de ensino diferenciadas para suprir a demanda educacional da classe operaria da época, na qual a grande maioria eram de analfabetos. Foram criados os Centros de estudos sociais, para dar acesso aos estudos para os operários anarquistas, a criação desses Centros era mais simples, pois só necessitavam do espaço físico e de assinaturas de diversas revistas e jornais para a instalação de uma biblioteca social, a educação do trabalhador adulto se dava por intermédio dos Centros de Cultura Social, das conferencias, das bibliotecas, dos jornais, salas de leitura e etc, eram espaços onde os 438 militantes tentavam também mostrar aos demais operários a importância da revolução para se alcançar uma organização social mais igualitária e justa trazendo leituras e discussões sobre temas libertários. A criação desses centros era feita de forma mais versátil, pois, por ter uma finalidade diferenciada, os mesmos foram construídos sem os formalismos (por mais que reduzidos) existentes na escola anarquista destinada ao ensino elementar. A Universidade Popular foi uma tentativa ousada, porém, breve (com duração apenas de março a outubro de 1904) de se tentar complementar o quadro do ensino libertário, sua proposta era de: “Fundar um ensino metódico para o povo, organizar conferências periódicas sobre todos os assuntos suscetíveis de interessar aos trabalhadores, fundar um museu nacional e uma biblioteca, realizar representações de arte social, saraus musicais, festas literárias e excursões científicas, artísticas e expansivas, publicar um boletim que seja órgão da associação, estabelecer, enfim, um centro popular tendo por fim ás vezes o prazer e a instrução – e a união moral entre os cooperadores”. (KASSICK, Neiva B.,1996) A educação básica formal para as crianças foi à luta principal, pois a necessidade de uma educação livre do dogmatismo religioso e estatal era gritante para os anarquistas. Foram fundadas diversas escolas, porém a manutenção das mesmas eram questões difíceis de administrar, pois as dificuldades financeiras e a perseguição cresciam cada vez mais. De acordo com o Programa Educacional divulgado em 1882, criado com a participação de diversos nomes de respeito dentro do movimento anarquista como os de Kropotkin, Élisée Reclus, Louise Michel entre outros muitos, as escolas brasileiras anarquistas trabalhavam com uma perspectiva educacional que seguiam quatro preceitos básicos como descrito no documento já mencionado: 18. Integral, isto é, favorecer ao desenvolvimento harmonioso de todo o individuo e fornecer um conjunto completo, coerente, sintético e paralelamente progressivo em todos os domínios do conhecimento intelectual, físico, manual e profissional, sendo as crianças exercitadas nesse sentido desde os primeiros anos; 19. Raciona,l isto é, Fundamentado na razão e conforme os princípios da ciência atual, e não na fé;no desenvolvimento da dignidade e da independência pessoal, e não na piedade e na obediência; na abolição da ficção divina, causa de eterna e absoluta servidão; 439 20. Misto, isto é, favorecer a co-educação sexual numa comunhão constante, fraterna entre meninos e meninas. Essa co-educação, ao invés de constituir um perigo, afasta do pensamento da criança as curiosidades malsãs, e torna-se uma ocasião para sábias condições que preservam e asseguram uma alta moralidade; 21. Libertário, isto é, numa palavra, consagrar em proveito da liberdade o sacrifício progressivo da autoridade, uma vez que o objetivo final da educação é formar homens livres que respeitem e amem a liberdade alheia. (KROPOTKIN apud LUIZETTO,1986) Ainda de acordo com o citado documento, os interessados a se envolver nos assuntos educacionais, deveriam estar dispostos a abdicar de três práticas comuns dentro do espaço escolar, essas são a disciplina, por fragmentar o conhecimento gerando assim a dispersão e a mentira; os programas, por limitar o trabalho, anulando a iniciativa, a responsabilidade e a originalidade dos educadores e as classificações, por trazer comparações gerando inveja, rivalidade e mal-estar entre os estudantes. A co-educação não se limitava apenas a questão de gênero, abrangia também questões sócio-econômicas, nas escolas anarquistas tinham crianças das diversas classes sociais, e as mesmas como necessitavam da ajuda dos pais para sua manutenção haveria de ser financiada também pelos pais, sendo que devido aos baixos salários do operariado, nem sempre todos podiam arcar com as despesas, com consciência disso, alguns pais chegavam a ser isentos do pagamento. Uma pratica muito comum nas escolas libertárias era a confecção de periódicos onde os alunos escreviam sobre diversos temas, e os quais eram usados também para a disseminação dos ideais anarquistas, inclusive a propaganda desses ideais utilizando-se de meio de comunicação era bastante utilizado pelos sindicatos e militantes anarquistas. Uma das primeiras experiências de escola libertária no Brasil foi a construção da Escola Libertária Germinal, em São Paulo, porém sofreu diversos problemas, desde os financeiros até os de falta de qualificação técnica dos envolvidos, percebia-se essa falta de preparo pedagógico e de embasamento teórico nos panfletos e documentos os quais apresentavam os objetivos da escola. Em 1904 não se tem mais noticias dessa experiência. Mais ao final da primeira década do século XX pode-se identificar novamente um grande empenho dos militantes em busca da construção de mais uma experiência pedagógica, dessa vez com maior organização e conteúdo teórico e ideológico, foi criado assim um Comitê Organizador da Escola Moderna de São Paulo, o qual programou a Escola Moderna 440 N° 1, que durou de 1912 á 1919 servindo de base para as futuras atividades educacionais do movimento em São Paulo e foi dirigida por João Penteado292 em quase toda sua existência (menos no ano de 1917 no qual se ausentou da cidade, dando lugar ao militante anarquista Florentino de Carvalho) no ano de 1919 diversas escolas libertárias foram fechadas por ordem do Diretor Geral da Instrução Publica do Estado de São Paulo, Oscar Thompson , com a justificativa de que as mesmas descumpriam o artigo 30 da lei 1.579 o qual falava sobre as normas gerais para a concessão de funcionamento de estabelecimentos de ensino particulares, porém Oscar Thompson ignorou os artigos 31 e 32 da mesma lei os quais definiam a aplicações de penas mais brandas antes da proibição definitiva do funcionamento escolar. O movimento anarquista foi fortemente perseguido e reprimido tanto por parte do Estado (fazendo uso das forças de repressão, prendendo e assassinando os militantes anarquistas), quanto por parte da Igreja e pela pressão social que eram estimuladas por essas instituições que propagandeavam informações distorcidas sobre o referido movimento. Como exemplo trago um escrito publicado no jornal A Gazeta do Povo no ano de 1910, retirado do livro A Pedagogia Libertária na Historia da Educação Brasileira de Neiva Beron Kassick e Clovis Nicanor Kassik, publicado no ano de 2004: ...todo o mundo já sabe que em São Paulo trata-se de fundar uns institutos para a corrupção do operário, nos moldes da Escola Moderna de Barcelona, o ninho do anarquismo de onde saíram os piores bandidos prontos a impor suas idéias, custasse embora o que custou. Ora uma tal casa de perversão do povo vai constituir um perigo máximo para São Paulo. E é preciso acrescentar que não somos só nós, os católicos, que ficaremos expostos á sanha dos irresponsáveis que saíssem da Escola Moderna. Brasileiros e patriotas, havemos todos de sentir o desgosto uma vez realizados os intuitos da impiedade avançada, de ver insultada a pátria, achincalhadas as nossas autoridades, menosprezadas as nossas tradições de povo livre, por estrangeiros ingratos que abusam do nosso excesso de hospitalidade e tolerância. (...) A escola Moderna vai pregar a anarquia, estabelecer cursos de filosofia transcendental, discutir a existência de Deus e semear a discórdia... Depois, será a dinamite em ação 292 João de Camargo Penteado nascido em Jaú no estado de São Paulo no ano de 1877, falecido no ano de 1965 na capital do referido estado. Associou-se ao Centro Operário na cidade de Jaú, no qual se firmou como redator de O Operário, após se mudar para capital e estabelecer contatos com os anarquistas ajudando na luta pela educação libertária. 441 Segue uma listagem de algumas experiências educacionais libertárias existentes no B