Untitled - Asociación Latinoamericana de Filosofía de la Educación

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EJE 2: LAS CONCEPCIONES FILOSÓFICAS DE LA EDUCACIÓN EN
LA HISTORIA
Nietzsche e a suspeita ao projeto de esclarecimento............................................................................. 9
Vicente Zatti ............................................................................................................................................ 9
Marx e Foucault: aportes para pensar a educação contemporânea .................................................... 18
Kelin Valeirão ........................................................................................................................................ 18
Avelino da Rosa Oliveira ........................................................................................................................ 18
Locke e a formação do gentleman ........................................................................................................ 31
Christian Lindberg Lopes do Nascimento .............................................................................................. 31
Interpretação, leitura e Formação Humanista em Nietzsche ............................................................... 40
Antonio Carlos Lopes Petean ................................................................................................................ 40
Doutor em Sociologia pela UNESP/Araraquara ................................................................................... 40
La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método” ....................................................... 44
Eduardo Álvarez Mosquera ................................................................................................................... 44
Hegel: El concepto de formación (Bildung) ante los retos y fines de la educación. ............................ 56
Andrés Felipe Hurtado Blandón ............................................................................................................ 56
Instituto de Filosofía ............................................................................................................................. 56
Universidad de Antioquia...................................................................................................................... 56
Medellín, Colombia............................................................................................................................... 56
La libertad de conciencia en la reforma escolar durante el Siglo XIX en Francia.................................. 65
Louise Ferté, .......................................................................................................................................... 65
Educar para una estética de la existencia ............................................................................................. 72
Prof. Marina Camejo ............................................................................................................................. 72
A importância do conhecimento histórico para compreensão do pensar filosófico ............................ 83
Joana Rios Ribeiro Maia Carbonesi ....................................................................................................... 83
2
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: .................................................................. 96
UM OLHAR NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDIGENA TAPUIO. .................................................................... 96
Silvania Maria Sandoval Borges ............................................................................................................ 96
Pedagogía anarquista y estética de la existencia. Siete ejercicios espirituales para docentes. ......... 110
“Las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques. La conferencia en el Círculo Literario” .... 119
Petrucci, Liliana Cecilia. ....................................................................................................................... 119
A respeito de uma concepção filosófica da educação no advento da modernidade: um estudo sobre o
lugar da filosofia no ensino jesuítico do século XVI ............................................................................ 132
Marcos Roberto de Faria ..................................................................................................................... 132
Platão e o debate educativo sobre as concepções de paideia na Grécia clássica .............................. 146
Lidia Maria Rodrigo ............................................................................................................................. 146
La educación de las mujeres en la obra de Flora Tristán .................................................................... 155
Carolina Clavero White ....................................................................................................................... 155
REVISITANDO O CEJA A PARTIR DE MICHEL FOUCAULT ..................................................................... 165
Luciana Bandeira Barcelos .................................................................................................................. 165
PROBLEMATIZANDO O CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DELEUZIANA .................................................. 177
LIMA NETTA, Ranúzia Moreira ............................................................................................................ 177
HERÁCLITO .......................................................................................................................................... 190
Prof. Dr. Fausto dos Santos Amaral Filho ............................................................................................ 190
HISTÓRIA E MEMÓRIA DO ENSINO DE FILOSOFIA NO CEARÁ-BRASIL ................................................ 198
Profa. Dra. Cristiane Maria Marinho ................................................................................................... 198
Contribuições da imaginação criadora na formação da criança nas fases iniciais de escolarização .. 216
Meire Luci Bernardes Silva Machado .................................................................................................. 216
La construcción del sujeto veraz desde una mirada cínica. ................................................................ 228
Máximo Núñez .................................................................................................................................... 228
Bettina Curbelo ................................................................................................................................... 228
Luciana Bianchi .................................................................................................................................... 228
3
Pasado-Presente en la Educación ....................................................................................................... 239
Héctor Fernando López Acero............................................................................................................. 239
A educação pulsional de Nietzsche ..................................................................................................... 251
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: A ATUALIDADE DO ANTIGO ........................................................................ 277
Filipi Vieira Amorim ............................................................................................................................. 277
Mauro Grün ......................................................................................................................................... 277
A autonomia do educando na paideia grega ...................................................................................... 287
Armando Lourenço Filho ..................................................................................................................... 287
Samuel Mendonça............................................................................................................................... 287
“A formação ética na história da filosofia: entre projetos de educação por modelos e projetos de
educação pela razão.” ......................................................................................................................... 299
Liliane Sanchez. ................................................................................................................................... 299
Natureza, infância e ciência no Brasil escolanovista: a pedagogia moderna na formação de
bioidentidades escolares..................................................................................................................... 309
El ideal moral en Kant vs. el ideal del deseo en sade .......................................................................... 318
Una lectura de "Kant con Sade" de Lacan ........................................................................................... 318
Josefina Magaña Solís ......................................................................................................................... 318
Epistemocracia teocrática y paideia en Platón ................................................................................... 327
Rodolfo Isaac Cisneros Contreras........................................................................................................ 327
Las metas de la educación................................................................................................................... 337
Dr. René Rogelio Smith........................................................................................................................ 337
Universidad Adventista del Plata ........................................................................................................ 338
El debate en torno a la distinción entre educación y adoctrinamiento en la tradición analítica del siglo
XX......................................................................................................................................................... 348
Manuel Amado .................................................................................................................................... 348
Laura Mesa .......................................................................................................................................... 348
Ministro Gustavo Capanema: alterações no programa do ensino de filosofia em função da Reforma
Educacional na Era Vargas .................................................................................................................. 362
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La aporía como razón y violencia en la formación humana ................................................................ 371
María Cristina Rico León ..................................................................................................................... 371
Discursos de Crotona y el ideal de formación pitagórico.................................................................... 381
María Cristina Rico León ..................................................................................................................... 381
A concepção crítica de educação em Álvaro Vieira Pinto ................................................................... 392
Rodrigo Marcos de Jesus ..................................................................................................................... 392
Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre ...................................................................... 405
Luis Miguel Hernández Pérez .............................................................................................................. 405
Educação e liberdade no Mercosul ..................................................................................................... 413
André Gustavo Ferreira da Silva .......................................................................................................... 413
O pensamento marxista-gramsciano .................................................................................................. 428
A Educação e o Ideal Libertário: história das experiências pedagógicas do movimento anarquistas.437
Luiz Renato Dias Gomes Padilha – UNIRIO. ........................................................................................ 437
A educação de platão como antecedente do totalitarismo e do racismo segundo Karl Popper ....... 444
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto .................................................................................................... 444
Hermenêutica filosófica e educação: do estranhamento de si ao diálogo. (ii)................................... 452
Dr. Almir Ferreira da Silva Junior......................................................................................................... 452
Educação, liberdade e interligação na filosofia do diálogo Martin Buber .......................................... 465
Maria Betânia do Nascimento Santiago .............................................................................................. 465
Montaigne: conversação e formação do julgamento ......................................................................... 477
Maria Cristina Theobaldo .................................................................................................................... 477
O jornalismo como uma filosofia radical: uma análise dos enunciados sobre educação nos periódicos
brasileiros do século XIX...................................................................................................................... 490
Gisela Maria do Val ............................................................................................................................. 490
A concepção de hábito na paideia aristotélica................................................................................. 500
Prof. Dr. Giovane do Nascimento........................................................................................................ 500
A paidéia aristotélica e a formação para a polis ................................................................................. 509
5
A balança eu-nós na teoria antropológica de Rousseau: .................................................................... 516
Michelle Larissa Gandolfo Pansarelli................................................................................................... 516
Educação formal e não-formal no pensamento pedagógico de hoje e de outrora: ........................... 530
ecos genealógicos ............................................................................................................................... 530
Elisa Vieira ........................................................................................................................................... 530
Encontros insólitos: ressonâncias filosóficas em experiências mal sucedidas ................................... 540
Lisete Bampi ........................................................................................................................................ 540
Fabricio Tourrucôo .............................................................................................................................. 540
Kant: la filosofía y la educación o de la importancia del arte en el primer movimiento romántico... 553
Luis Miguel Hernández Pérez .............................................................................................................. 553
A Escolástica como Filosofia e Método de Ensino na Universidade Medieval: uma reflexão sobre o
Mestre Tomás de Aquino .................................................................................................................... 563
OLIVEIRA, Terezinha ............................................................................................................................ 563
O hábito das virtudes morais em Ética a Nicômaco: uma possibilidade de refletir sobre a Arte a
Educação ............................................................................................................................................. 575
Nunes, Meire Aparecida Lóde ............................................................................................................. 575
Oliveira, Terezinha .............................................................................................................................. 575
Paidéia platônica: da paidiá à ideia .................................................................................................... 587
Daniel Figueiras Alves.......................................................................................................................... 587
a filosofia agostiniana na educação do cavaleiro medieval presente em o livro da ordem de Cavalaria,
de Ramon Llull ..................................................................................................................................... 595
Paula Carolina Teixeira Marroni .......................................................................................................... 595
Lei e justiça como elementos que ordenam para o bem comum: um olhar da história da educação 604
Sandra Regina Franchi Rubim ............................................................................................................. 604
Terezinha Oliveira ............................................................................................................................... 605
A produção intelectual de Theobaldo Miranda dos santos e suas reflexões no manual de filosofia da
educação: breves apontamentos ........................................................................................................ 617
Jaqueline de Andrade Calixto – UFU ................................................................................................... 617
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Armindo Quillici Neto – UFU ............................................................................................................... 617
Um estudo sobre os manuais de filosofia da educação publicados durante o Século XX .................. 627
Armindo Quillici Neto (UFU)................................................................................................................ 627
Jaqueline de Andrade Calixto (UFU).................................................................................................... 627
Ensino e prática musical nas missões jesuíticas no ............................................................................. 644
Novo Reino de Granada (1604 – 1767) ............................................................................................... 644
Zuley Jhojana Duran Peña ................................................................................................................... 644
Silvio Ancizar Sánchez Gamboa ........................................................................................................... 644
Enseñanza y aprendizaje en Carlos Vaz Ferreira: una mirada desde el presente. .............................. 645
Sofía Ache Tricot, ................................................................................................................................ 645
Nohelia Corbo Quiroga,....................................................................................................................... 645
Andrea Gómez Adrover ....................................................................................................................... 645
Educação, Ética e Diálogo: o papel do Outro na educação ética da alteridade em Martin Buber e
Emmanuel Levinas............................................................................................................................... 655
Willamis Aprígio de Araújo .................................................................................................................. 655
Educação ética: a formação moral na obra “Sobre a Pedagogia” de Immanuel Kant ........................ 672
Luis Lucas Dantas da Silva ................................................................................................................... 672
André Gustavo Ferreira da Silva .......................................................................................................... 672
O imperativo pedagógico de John Dewey:.......................................................................................... 686
a formação do sujeito na sociedade democrática .............................................................................. 686
Christiane Coutheux Trindade............................................................................................................. 686
Jean Maugüe: continuidades e descontinuidas do ensino da filosofia no brasil ................................ 697
Paideia aristotélica, o cómo ser feliz mediante la virtud .................................................................... 709
Irazema Ramirez .................................................................................................................................. 709
Anísio Teixeira: um homem além do seu tempo ................................................................................ 719
Cloves Antonio de Amissis Amorim .................................................................................................... 719
Pura Lucia Oliver Martins .......................................................................... Error! Bookmark not defined.
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Anísio Teixeira e a defesa da escola de tempo integral a partir dos pressupostos de John Dewey ... 732
Marisa Xavier Coutrim Dalri ................................................................................................................ 732
Kant y Foucault:................................................................................................................................... 739
Luis Alejandro Domínguez Gutiérrez................................................................................................... 739
Una revisión de la noción de aprendizaje desde el psicoanálisis ........................................................ 753
Ana Ma. Fernández Caraballo ............................................................................................................. 753
Raíces socráticas en nuevos paradigmas de la filosofía del lenguaje y de la educación ................... 760
Amelia Croce ....................................................................................................................................... 760
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NIETZSCHE E A SUSPEITA AO PROJETO DE ESCLARECIMENTO1
Vicente Zatti2
Resumo: A escola surge na modernidade com a função de promover o esclarecimento,
emancipar o homem por meio de uma educação voltada para o desenvolvimento do sujeito
racional. O projeto moderno centrava a emancipação na ideia de sujeito, que pela razão
chegaria à ação moral e intelectual esclarecidas. Tal concepção tem em Kant seu exemplo
mais típico. Nietzsche, ao desconstruir as concepções metafísicas de razão, sujeito,
moralidade, conhecimento, que fundamentavam o projeto moderno de esclarecimento, coloca
toda essa tradição sob suspeita. O objetivo desse trabalho é demonstrar como a genealogia da
cultura ocidental promovida por Nietzsche põe sob suspeita o projeto pedagógico moderno.
Mas, qual a extensão dessa suspeita? Ela encerra as possibilidades emancipatórias de tal
projeto? Ou abre possibilidades para uma reconstrução mais fecunda? Nosso trabalho
demonstra que a suspeita de Nietzsche se volta aos fundamentos metafísicos do projeto
moderno de esclarecimento, desse modo, há possibilidades de reconstrução a partir de uma
perspectiva pós-metafísica. Para Nietzsche, o sentido da vida, da história, os valores morais,
não se estabelecem por um suprassensível, por um a priori, mas, se estabelecem como
perspectivas humanas. Tanto o conhecimento quanto a moral são tentativas do homem em
impor ordem ao mundo. Desse modo, sua investigação genealógica demonstra que elementos
que sempre foram postos como verdades metafísicas, são produtos de uma história de
interpretação humana. Tal desconstrução muito mais põe em questão a metafísica do que as
possibilidades emancipatórias do projeto de esclarecimento. No entanto, obriga o seu
1
O presente artigo resultou das pesquisas e discussões que integraram o Curso de Extensão “Discussões
Filosóficas: Nietzsche e a suspeita ao projeto de esclarecimento”, por mim desenvolvido em 2012 no Instituto
Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) – Câmpus Canoas.
2
Professor de Filosofia do IFRS – Câmpus Canoas, Brasil. Doutor e Mestre em Educação pela UFRGS,
Graduado em Filosofia pela FAFIMC.
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repensar, sua reconstrução a partir de uma perspectiva pós-metafísica, o que abre espaço para
a pluralidade pedagógica que visualizamos na educação contemporânea.
Palavras-chave: 1. Nietzsche; 2. Esclarecimento; 3. Emancipação
O projeto moderno de esclarecimento tem em Kant seu representante mais típico. Para
ele, a finalidade da educação é a emancipação, é a maioridade, que é atingida através de um
processo de esclarecimento que envolve a libertação das visões dogmáticas e imagens
religiosas do mundo. Liberto dessas e de outras heteronomias, o sujeito racional se torna
responsável pelo seu próprio destino. No texto Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?
Kant (2005, p. 64-65) define o esclarecimento como a saída do homem da menoridade da qual
ele próprio é culpado. É preciso coragem para servir-se do próprio entendimento, ou seja, o
sujeito racional é a possibilidade da maioridade.
Essa compreensão que Kant possui do esclarecimento expressa com muita força o
ideal de homem emancipado que a modernidade funda: o esclarecimento significa mais que
conhecer simplesmente, acima de tudo, significa a realização de sua filosofia prática, que
busca a moralização da ação humana através de um processo racional. O lema Sapere aude
(ouse saber) refere-se à razão em seu sentido mais amplo, não exclusivamente à razão
científica. O esclarecimento implica na superação da menoridade, requer a decisão e a
coragem de servir-se de si mesmo, ou seja, de servir-se de sua própria razão para pensar por
conta própria, e guiar-se sem a direção de outro indivíduo. Segundo Mühl (2005, p. 309), o
princípio fundamental da pedagogia kantiana está relacionado à palavra Aufklärung, o
esclarecimento, dado pelas luzes da razão, “possibilita o indivíduo abandonar a ignorância,
permitindo sua ascensão a um nível superior de cultura, educação e formação” (idem). Kant
alerta que é difícil para um homem desvencilhar-se da menoridade quando ela se tornou para
ele quase uma natureza, mesmo assim, para que tal ocorra, nada mais se exige a não ser
liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões. Kant (2005, p.66) entende como
uso público da razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande
público letrado, todavia, entende como uso privado aquele que qualquer homem pode fazer de
sua razão em um cargo público ou função a ele confiado. A liberdade de fazer uso público da
razão é necessária para que se possa pensar por conta própria, ou seja, segundo a própria
razão.
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Kant com sua concepção de sujeito, maioridade, esclarecimento, é uma das principais
influências ao projeto pedagógico moderno que traz uma proposta educacional como uma
ética aplicada, baseando-se na metafísica aspira à universalidade e pressupõe a ideia de
aperfeiçoamento moral.
Nietzsche com sua desconstrução é o filósofo que põe sob suspeita os fundamentos ahistóricos de qualquer projeto humano, demonstra os fundamentos não racionais da razão
metafísica. Desse modo, os alicerces do projeto de esclarecimento são abalados naquilo que
era posto como seu fundamento. Para Nietzsche, o sentido da vida, da história, os valores
morais, não se estabelecem por um suprassensível, por um a priori. “Não há assim um poder
transcendental que dê sentido à vida, nem a religião, nem a moral legitimada pelo
suprassensível, pelo a priori, pelo princípio causal”.(HERMANN, 2001, p. 71). Como
a
tradição pedagógica moderna está alicerçada em uma metafísica racionalista, a desconstrução
nietzschiana deixa a tradição pedagógica “sem solo”. Tal desconstrução é realizada por meio
do método genealógico que demonstra a origem histórica daquilo ao qual sempre foi atribuído
um princípio, um fundamento com status metafísico. Isso provoca instabilidade, o repensar,
pois o horizonte que era certo, agora desaparece ou torna-se problemático. Tal abertura de
horizontes provocada pela desconstrução de Nietzsche é representada na obra A Gaia Ciência
com o anúncio da morte de Deus:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar
incessantemente: ‘procuro Deus! Procuro Deus?! [...] Nós o matamos
– vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso?
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem deu a esponja
para apagar o horizonte? (NIETZSCHE, 2011, p. 147).
Não havendo uma metafísica que fundamenta e dá sentido à realidade, o destino do
homem é algo indefinido, é algo que cabe a ele definir, ou seja, o mar está novamente aberto e
o horizonte é algo indeterminado, é algo por se fazer. A inexistência de uma origem
metafísica remete às origens históricas do mundo humano. Nesse sentido, Nietzsche
demonstra que tanto o conhecimento quanto a moral são tentativas do homem em impor
ordem ao mundo. A força da qual deriva tanto a capacidade de conhecer quanto a capacidade
de produzir valores é denominada por Nietzsche de vontade de poder.
Nietzsche utiliza a vontade de poder como uma chave geral para entender os processos
da vida. Isso, entre outras obras aparece em Assim falou Zaratustra: “onde encontrei vida, ali
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encontrei vontade de potência, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade
de ser senhor”.(NIETZSCHE, 1996a, p. 222). A vontade de poder está em obra em todo
vivente. Os seres vivos não procuram apenas se manterem vivos, querem dar vazão à sua
força. “Os fisiólogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de autoconservação
como o impulso cardinal de um ser orgânico uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a
sua força – a própria vida é vontade de poder-: a autoconservação é apenas uma das indiretas,
mais frequentes consequências disso”. (NIETZSCHE, 2005, p. 19). Na vontade de poder se
encontra a explicação para a geração, nutrição, para o estabelecimento do bem e do mal. Essa
chave da existência compreende também a atividade racional que se estabelece a partir da
necessidade de autoconservação. “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado
conforme o seu caráter inteligível – seja justamente vontade de poder e nada mais”. (idem,
p.40).
Mas em Nietzsche a vontade de poder não é uma força absoluta que a tudo domina,
não é um princípio universal. Ela é uma força operante em todo o acontecer e é composta por
uma pluralidade de forças.
Segundo Müller-Lauter (1997), a vontade de poder é a
multiplicidade das forças em combate umas com as outras. Nietzsche enxergou que o poder
não é algo substancial, mas relacional. É o jogo e o contrajogo dessa multiplicidade de forças.
As unidades de poder são mutáveis, a unidade é apenas organização, sob a ascendência
transitória de vontades de poder dominantes. Dessa forma: “A unidade de formação de
domínio, nas quais está inserida a multiplicidade de quanta de força, não tem nenhum
ser”.(MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 75). Para Nietzsche a unidade é uma tentativa de nosso
intelecto para compreender e simplificar a realidade, o que leva ao engano e à ilusão. “De
fato, nada até agora teve mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser,...”
(NIETZSCHE, 1996b, p. 375). Por isso, na tentativa de auto-afirmação, de criar, de querer
mais, a vontade de poder cria um número infinito de verdades.
Nietzsche refuta a existência de conhecimentos profundos no sentido metafísico, para
ele o conhecimento é uma força de superfície. Isso porque o conhecer se faz por meio de
conceitos e assim sendo, o pensar é um denominar, o que decorre do arbítrio do homem e não
provém de nenhuma essência. Os conceitos surgem a partir da diferenciação. Comparando os
diferentes, o homem coloca semelhanças e com elas formula os conceitos. Esse processo é
arbitrário, é o ser humano que confere um sentido ao acontecimento, domina-o, coloca-o
numa forma adequada a si próprio. “Portanto, conhecer é um processo de poder no qual estão
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forças criativas, um processo que culmina em figuras e ideias acabadas, poderosas, vitais. O
que afirma dessa maneira então é chamado de verdade. Nesse processo a verdade é um poder
que se torna verdadeira na medida em que se impõe”.(SAFRANSKI, 2002, p. 262-263). A
ordem, a clareza, o caráter sistemático não são necessariamente inerentes às coisas em si. Elas
são colocadas pelo intelecto nas coisas para que elas possam ser compreendidas. Por isso os
acontecimentos têm para o homem um caráter interpretativo. O interpretador agrupa
fenômenos selecionados e reunidos. Então ocorre uma antromorfização, introdução de nossos
modos de avaliar e compreender nos acontecimentos. “Introduzimos os nossos valores dentro
das coisas como interpretação. Todo sentido é vontade de poderio”. (MARQUES, 1989, p.
87).
Se as verdades não são dadas a nós a priori e sim criadas por nós, elas são, portanto,
interpretações que fazemos da realidade, são perspectivas em meio a inúmeras outras. O
critério de verdade deixa de ser universal e passa a ser condicionado ao poder que a
interpretação possui para se estabelecer. “O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de
metáforas, metonímias, antropomorfismos..., após longo uso, aparecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões...”(NIETZSCHE,1996c, p. 57). Verdades
são ficcionais, são ficções úteis a serviço da autoconservação, e servem para a afirmação da
vontade de poder. A lógica é um exemplo de criação feita por abstração e simplificação pelo
homem. “A lógica fornece o modelo de uma ficção completa. Procede-se aqui a invenção de
uma maneira de pensar em que um pensamento é posto como causa de outro
pensamento”.(MARQUES, 1989, p. 79). O pensamento lógico ou qualquer espécie de
conhecimento consiste na introdução de ficções completas como modelos com que pensamos
os processos mentais de uma maneira mais simples do que acontece na realidade. Mas é
devido a essa simplificação que o pensamento se torna captável por sinais, perceptível e
comunicável. Essa simplificação dá a falsa ideia de analogia e identidade. Por isso o
conhecimento é a falsificação do heterogêneo e do imensurável a tal ponto de torná-los
idênticos, análogos, mensuráveis. No entanto, é justamente essa falsificação que torna
possível a vida. “A vida, por conseguinte, só é possível em virtude de um tal aparelho de
falsificação. Pensar é um transformar falsificado, sentir é um transformar falsificado, querer é
um transformar falsificado”.(idem, p. 80). O fato de ser condição da vida não elimina o
caráter fictício. Isso ocorre porque aquilo que para uma perspectiva é insuportável, para outras
é adequado.
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Portanto, conhecer foi uma forma que nossa espécie encontrou para afirmar sua
vontade de poder, já que não possuía chifres ou presas para tal. Dessa forma, a verdade perde
seu status tradicional. Passa a ser resultado de uma designação da realidade como metáfora,
em que o homem na tentativa de afirmar sua vontade de poder produz tais verdades. “A nossa
capacidade de produzir verdades não passa de impulso do intelecto, como uma ramificação da
vontade de potência. O mundo inteligível e suas verdades são produzidas por essa
vontade”.(HERMANN, 2001, p. 78). No entanto, penso que a teoria nietzschiana não suprime
o conceito de verdade. O filósofo, ao desenvolver sua teoria, ao colocar sua perspectiva,
possui a pretensão que ela encerre em si alguma verdade. Por isso, Nietzsche abre espaço para
a aceitação da pluralidade, das diferenças, mas não necessariamente nos leva ao relativismo,
caminho adotado por muitos de seus estudiosos.
Nietzsche exclui a validade incondicional de uma construção que impõe o conhecer e
o agir como fundamento absoluto e vai falar que o único fundamento é o ato de fundar, impor,
valorar, ato criativo que aprecia ou deprecia. Esse ato criativo é uma forma de interpretação
que impõe sua perspectiva, também no campo moral. “A interpretação instituidora de novos
valores,
por
parte
dos
futuros
poderosos
perspectivas”.(MÜLLER-LAUTER, 1997,
só
pode
ser,
do
mesmo
modo,
p. 132). Na Genealogia da Moral, Nietzsche
procura mostrar que os conceitos de bom e mau não são conceitos que se estabelecem de
acordo com uma razão prática universal. Esses conceitos são expressões do modo de ser
daqueles que avaliam. Quem avalia estabelece um valor, portanto, não há fato moral e sim
uma interpretação moral. Para Nietzsche o conceito ‘bom’ inicialmente foi estabelecido pelos
mais fortes: “Foram os bons mesmos, isto é, os nobres poderosos, superiores em posição e
pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira
ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e
plebeu”.(NIETZSCHE, 1998, p. 19). Então os mais fortes que tiveram condições de afirmar
sua vontade de poder fizeram valer sua interpretação e estabeleceram como bons seus
próprios atos e pensamentos. Já os “plebeus” que tinham menos força de afirmação, tiveram
seu modo de vida posto como sinônimo de ruim. A origem do conceito de ruim está próxima
a comum, a baixo. Bom era a afirmação da aristocracia, do mais nobre, do guerreiro mais
forte.
Enquanto os juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos valorizavam a guerra, a
aventura, a caça, a dança, o vigor físico, o modo de valoração nobre-sacerdotal estabelecia
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seus valores a partir de sua impotência. “Na sua impotência, o ódio toma proporções
monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa”.(idem, p. 25). Para
Nietzsche a vingança sacerdotal gerou a inversão dos valores aristocráticos e estabeleceu que
bons seriam os pobres, impotentes, sofredores, necessitados, feios, doentes. Para esses
últimos, caberia toda bem-aventurança e, para os nobres e poderosos, a desventurança, o
castigo eterno. Essa ‘revolta de escravos’, como fala Nietzsche, perpassa o pensamento
judaico-cristão.
“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador
e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e
que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”.(ibidem, p. 28-29). Foram esses
homens ressentidos que estabeleceram o conceito de ‘mau’ para seu inimigo, o homem nobre.
Nota-se que o homem nobre se estabelece como bom e cria o conceito de ruim para aquilo
que é diferente e inferior. Já os ressentidos atribuem a seu inimigo, o conceito de mau. Então,
com a rebelião escrava ocorre uma transvaloração que cria novo sentido aos valores. O ‘bom’
da moral do nobre se torna o ‘mau’ e o ‘ruim’ se torna o ‘bom’. Segundo a teoria de
Nietzsche, a impotência dos fracos em reagir contra o inimigo, fez a vingança tomar
roupagem de virtude que cala, renuncia, espera e remete a vingança a Deus e a um reino
imaginário, o Reino dos Céus. Isso também é fruto do instinto de autoconservação, autoafirmação, é uma tentativa doente de exercício de poder. Com isso, o autor não pretende
justificar qualquer poder aristocrático, mas demonstrar a origem histórica de uma moral que
era dita universal. Assim, Nietzsche mostra os fundamentos não-morais da moral. Eles são
resultado das relações de luta e de força. Não há moral como atributo da natureza humana,
moralidade a priori. “Para os genealogistas da moral, nos moldes de Nietzsche, entretanto, ela
se revela apenas como uma espécie de moral humana entre inúmeras outras possíveis, ou que
deveriam sê-lo”. (GIACOIA-JUNIOR, 2005, p. 38).
Como Nietzsche percebeu as dificuldades de fundamentação metafísica da moral e do
conhecimento, buscou sua origem e a encontrou na vontade de poder. “A capacidade de
conhecer e produzir valores deriva da vontade de potência. Na vida, a vontade de potência, de
autoafirmação se manifesta em todos seus movimentos instintivos. Quando o homem entra
em contato com algo, ele o faz para conservar-se, e disso resulta a pluralidade de forças,
perspectivas que lutam pelo poder”.(HERMANN, 2001, p. 71). Não havendo uma
compreensão de mundo como unidade da forma como pretendia a metafísica, abre-se a
15
possibilidade para várias interpretações, para as perspectivas, para a pluralidade, para as
diferenças.
Com Nietzsche tem início a desconstrução, pela crítica à moralidade e ao
conhecimento, dos nossos profundos hábitos mentais e pressupostos metafísicos. Ele põe em
suspeita a tradição e a educação que pretendam ter universalidade ética e levar ao
aperfeiçoamento moral. Sendo o sujeito constituído por relações de poder e não por normas
objetivas, não havendo um mundo em si, não havendo um absoluto (Deus) que garanta a
universalidade; só o sujeito pode constituir-se e constituir o mundo como forma de
autoconservação e expressão de sua vontade de poder. Nietzsche demonstra a origem histórica
da moral e do conhecimento, demonstra como cada perspectiva se coloca como verdade de
acordo com o poder que possui para se estabelecer como tal, com isso, o autor abala o
conceito de verdade e a visão unitária da metafísica, em favor das questões referentes à
pluralidade.
Por isso autodenomina sua filosofia como filosofia do meio dia, a filosofia dos homens
que são capazes de olhar para trás e perceberem as origens históricas do mundo e, desse
modo, criar a possibilidade de olhar para frente de um modo inaudito, como quem tem todo
um horizonte a ser construído:
Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema
tomada de consciência, um grande meio-dia, em que ela olhe para trás
e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote,
e coloque a questão do por quê?, do para quê? pela primeira vez como
um todo - , essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que
a humanidade não segue por si o caminho reto, sob as suas mais
sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o
instinto de décadence que governou sedutoramente. (NIETZSCHE,
2008, p. 76).
Essa compreensão filosófica que desconstrói as concepções metafísicas e traz de novo
a possibilidade de um futuro em aberto, insere o niilismo como um problema central. Segundo
Müller-Lauter ( 2009, p. 177), com o niilismo ativo, o niilismo atinge seu máximo de força de
destruição. Nietzsche é um niilista ativo na medida em que a sua filosofia, feita à marteladas,
tem como finalidade a edificação da vida. Sua desconstrução se volta contra o racionalismo, o
platonismo, o cristianismo, ou seja, contra sistemas de pensamento que ao fundarem uma
metafísica também selaram o desprezo ao mundo. Nietzsche quer resgatar o amor ao mundo,
16
mas, para isso, é preciso denunciar os mais de dois mil anos de negação à vida incrustada no
pensamento ocidental.
Desse modo, a desconstrução nietzschiana provoca um imenso repensar em toda a
cultura ocidental que desde Sócrates e Platão esteve alicerçada em uma metafísica. A
suspeição à metafísica provoca o repensar da ideia de esclarecimento, põe em suspenso seu
otimismo e crença no progresso humano. Isso gera imensas transformações em educação, pois
a suspeição de tal fundamentação metafísica abre a possibilidade para o advento de múltiplas
formas de compreensão do para quê? educar. Enfim, a suspeita de Nietzsche ao projeto de
esclarecimento possui um valor terapêutico ao desmascarar os pressupostos metafísicos
ocultos em tal projeto. No entanto, a desconstrução de tais bases metafísicas não representa o
esgotamento do projeto de esclarecimento.
BIBLIOGRAFIA:
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sonhos e pesadelos da Razão esclarecida: Nietzsche e a
modernidade. Passo Fundo: Editora UPF, 2005.
HERMANN, Nadja. Pluralidade ética em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MARQUES, António. Sujeito e perspectivismo: seleção de textos de Nietzsche sobre
teoria do conhecimento. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
MÜHL, Eldon. MÜHL, Eldon Henrique. A criança e a educação para a maioridade:
considerações a partir de Walter Benjamin. In: DALBOSCO, Claudio Almir; FLICKINGER,
Hans-Georg (org). Educação e maioridade: dimensões da racionalidade pedagógica. São
Paulo: Cortez; Passo Fundo: Ed. da Universidade de Passo Fundo, 2005.
MÜLLER-LAUTER, Wolfang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.
Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.
_____. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São
Paulo: Ed. UNIFESP, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. In. Os Pensadores.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996a.
17
_____. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo. In. Os Pensadores. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996b.
_____. Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral. In. Os Pensadores. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996c.
_____. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
_____. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2011.
_____. Ecce homo. São Paulo: Companhia das letras 2008.
KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005.
SAFRANSKI, Rüdigger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. 2ª ed. São
Paulo: Geração Editorial, 2002.
Marx e Foucault: aportes para pensar a educação contemporânea
Kelin Valeirão3
Avelino da Rosa Oliveira4
Resumo: O presente trabalho objetiva propor uma reflexão para problematizar a Educação
Contemporânea que se declare, ao mesmo tempo, de Marx e de Foucault. Para Marx a
sociedade capitalista se estabiliza, sendo concebida, na vida cotidiana, como a única
sociedade possível. Como se não bastasse, para legitimar ainda mais a ideia da naturalidade,
de que uns têm os meios de produção e outros sua força de trabalho, há o poder da ideologia
dominante que faz um certo ocultamento da realidade social, permitindo a legitimação e a
dominação. Por isso, Marx afirma que a ideologia dominante numa dada época histórica é a
3
Doutoranda em Filosofia e História da Educação na Universidade Federal de Pelotas – UFPel.
4
Doutor em Educação e Professor Titular na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas –
UFPel.
18
ideologia da classe dominante. Foucault, ao contrário, vê o próprio sistema educacional não
como transformador e reprodutor ao nível das ideologias, mas, antes, aos condicionamentos
que a escola produz nos indivíduos ao nível da postura espaço-temporal. Assim, propondo
uma crítica à ideia de (in)consciência Foucault defende que o poder não contém um
pensamento do mundo, não é uma representação do modelo real. A educação assujeita, sim,
mas não ideologicamente. De modo resumido, parece-nos que Marx e Foucault não são
filósofos para todas as estações. Embora seja sabido que o pensamento de ambos foi e é
utilizado em longa escala, eles não servem para tudo! Na área da Educação, podemos afirmar
que os filósofos trazem contribuições inegáveis. Mesmo sabendo que não propusseram
nenhum tratado educacional, os filósofos apresentam pistas que contribuem na
problematização de questões que, embora atuais, constituiram-se historicamente e trazem
arraigadas um modelo moderno, questionado e discutido incansavelmente sob diferentes
aspectos: econômicos, sociais, culturais e demais possíveis.
Palavras-chave: Marx, Foucault, educação contemporânea
Introdução
A crítica que Foucault faz ao Estado moderno poderia ser vista como algo próximo à
crítica, ao mesmo Estado que recebeu a denominação pejorativa de burguês, executada por
um grupo de intelectuais denominados marxistas. Sob esta lógica argumentativa, Foucault
aparece como um possível marxista destinado a destrinchar o fenômeno do poder, mas a
crítica ao poder é também uma crítica ao conceito de ideologia. Assim, o filósofo francês,
teve grandes impasses com o marxismo e, principalmente, com o pensamento de diferentes
pensadores e militantes, ditos marxistas.
Acerca de Marx, como sabemos, foi o precursor do conjunto de ideias que constituiu o
marxismo, juntamente com Friedrich Engels. Contudo não podemos esquecer que o marxismo
foi desenvolvido por seus seguidores, ou seja, ultrapassou as ideias do próprio Marx. Assim,
podemos dizer que o marxismo acabou se tornando uma corrente político-teórica que abarca
19
uma grande quantidade de marxistas que apresentam diferentes posições teóricas e políticas,
inclusive, às vezes, antagônicas. Neste contexto, talvez o próprio Marx acabaria se assustando
com o leque de possibilidades que o marxismo acabou abrindo, uma vez que o autor não
esteve vivo para ver o que o marxismo do século XX se tornou.
Foucault e a relação com Marx, o marxismo e os marxistas
Com essas poucas palavras, iniciais e necessárias, adentramos propriamente na relação
existente entre Marx e Foucault esse último estava mais próximo do primeiro que muitos
pensadores e militantes marxistas. Isso fica implícito e, inclusive, explícito ao longo dos
escritos do autor:
Acontece com freqüência de eu citar conceitos, frases, textos de Marx, mas sem me
sentir obrigado a ajuntar a pequena peça autenticadora, que consiste em fazer uma
citação de Marx, em colocar cuidadosamente a referência em nota de pé de página,
e em acompanhar a citação de uma reflexão elogiosa, mediante o que se é
considerado como alguém que conhece Marx, que reverencia Marx e que se verá
honrado pelas revistas ditas marxistas. Eu cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas,
e como eles não são capazes de reconher os textos de Marx, eu passo por ser aquele
que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, sente a necessidade de
citar Newton ou Einstein? Ele os utiliza, mas não tem necessidade de aspas, de
notas em pé de página ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao
pensamento do mestre (FOUCAULT, 2006, p. 173).
Nesta citação, muitas questões estão presentes. Entre elas, fica claro que Foucault faz
uso, sim, do pensamento de Marx, com propriedade. Talvez mais visivelmente quando adere
ao Partido Comunista em 1950, por influência de Louis Althusser. No entanto, vinha tentando
se engajar desde 1947, mas não era aceito.
Sobre Foucault é importante apontarmos que leu Marx e, quando estava no Partido
Comunista, considerava a doutrina marxista a mais prudente. Nesta época, os pontos de
referência eram Hegel, Marx, Heidegger, dentre outros. Mais tarde, por volta de 1953, ocorre
o encontro com Nietzsche, sendo uma influência determinante até seus últimos escritos. No
que diz respeito a esta leitura, no fim da vida Foucault confessa conhecer Nietzsche bem
melhor que Heidegger, frisando que se não tivesse lido Heidegger, provavelmente não teria
lido Nietzsche.
20
Ainda, cabe salientar que Foucault não fez questão de que sua obra fosse coerente com
um método único. Não queria ser situado, resumido a uma perspectiva filosófica. E chegou a
declarar infinitas vezes que não pretendia dizer quem era tampouco conservar-se o mesmo.
Foucault remodela seu pensamento: ele muda e evolui constantemente, enveredando por
novos e diferentes caminhos. Assim, quem venha a se aventurar a ler e a pesquisar o
pensamento deste pensador-tipo5 precisa, antes de mais nada, saber lidar com as
inconstâncias, com o pensamento nômade de Foucault, com suas idas e vindas que chega a
causar um certo constrangimento inicial, pois quando pensamos que estamos começando a
entender o que o ele quer dizer viramos a página e nos deparamos com afirmações
consistentes que dizem justamente o contrário do que fora antes dito. O pensamento de
Foucault é assim: uma caixinha de surpresas! Para Rajchman (1987), Foucault não pretendia
deixar como legado uma doutrina, um método ou uma escola de pensamento. E enfatiza:
[...] em discussões norte-americanas, Richard Rorty, o filósofo neo-deweyano, pode
criticar Foucault por um despeito recalcado em relação à classe burguesa, enquanto
que David Rothamn, o historiador social, pode queixar-se de que Foucault omitiu
qualquer menção à classe burguesa em sua análise. Do mesmo modo, na França,
Foucault foi acusado tanto de negligenciar o Estado como de fazer sua interferência
tão profunda e total que não sobrava espaço para a “sociedade”. Pode-se inferir que
a história de Foucault não se harmoniza facilmente com as nossas grandes histórias
sobre capitalismo, burocracia e Estado (RAJCHMAN, 1987, p. 45).
Em 1950 Foucault estava ao centro de um grupo de normaliens comunistas chamado
“o grupo folclórico” ou “o Saint-Germain-des-Prés marxistas”. O grupo era composto por
Paul Veyne, Jean-Claude Passeron, Gérard Genette, Maurice Pinguet, Jean Molino e JeanLouis van Regermoter. Eles eram comunistas embora não seguissem à risca o partido. Ainda
nesta época, Foucault era chamado de le Fouk’s e criou um laboratório de psicologia numa
antiga discoteca desativada. Ao receber os visitantes mostrava uma caixa de sapato com um rato e
exprime com ironia: “esse é o laboratório”. Assim como os demais colegas do “grupo folclórico”,
Foucault adere ao Partido Comunista, ao qual ficará ligado até 1953. Chegou a afirmar em uma
entrevista concedida a Ducio Trombadori, em 1978:
5
Expressão utilizada por Paulo Rouanet no texto A gramática do Homicídio para descrever Foucault que,
segundo Rouanet “mais que qualquer outro escritor, Foucault tem se consagrado à construção de um saber
inteiramente despojado de conotações antropocêntricas” (ROUANET, 1996, p. 91).
21
Para muitos de nós, jovens intelectuais, o interesse por Nietzsche e Bataille não representava
uma forma de se afastar do marxismo ou do comunismo. Ao contrário, era a única via de
comunicação e de passagem para o que acreditávamos dever esperar do comunismo (...). Foi
assim que, sem bem conhecer Marx, recusando o hegelianismo, sentindo-me mal com os
limites do existencialismo, decidi aderir ao Partido Comunista. Estávamos em 1950: nessa
época ser “comunista nietzschiano”! Uma coisa no limite do vivível e, se quiser, talvez um
pouco ridícula; eu sabia disso (In: ERIBON, 1990, p. 65-66).
Aqui uma questão um tanto curiosa, o encontro de Foucault com Nietzsche se deu,
mais tarde, em 1953, justamente no ano em que o filósofo francês sai do Partido Comunista.
Como se não bastasse, posteriormente, em 1983, em conversa com Paul Veyne Foucault
declara ver no marxismo uma doutrina sensata. Talvez Foucault não esteja sendo muito
sincero ao intitular-se um “comunista nietzschiano”, pois ao lermos os seus textos desta época
percebemos que o pensamento de Nietzsche não se faz presente.
Independente da sinceridade ou não de Foucault, o fato é que em 1953 se afasta do
partido por vários motivos: entre eles, sentia-se extremamente constrangido em participar de
um “partido que rejeitava e condenava o homossexualismo como um vício da burguesia e um
sinal de decadência” (ERIBON, 1990, p. 69). Todavia, Foucault acabou acrescentando uma
outra razão: o caso “dos aventais brancos”6 e, por fim, declara ter saído do PCF depois do
famoso complô dos médicos de Stálin, no inverno de 52, e por causa de uma persistente
sensação de mal-estar. Mais tarde, ao ser questionado a saída de Foucault, Althusser reforça
que Foucault saiu mesmo do partido por causa de sua homossexualidade.
No final de 1966, em setembro, Foucault vai para a Tunísia para lecionar Filosofia na
Faculdade de Letras e Ciências Humanas, num antigo Liceu da cidade que se transformou em
Universidade, uma espécie de exílio pessoal, se desliga administrativamente de ClermontFerrand e assume um contrato com previsão de três anos, mas acaba ficando dois.
6
Em 1952 os médicos de Stálin foram acusados de conspirar contra a sua vida, os membros do Partido
Comunista (PC) acreditam na versão soviética oficial, ou seja, os médicos tentaram matar Stálin. Contudo
Foucault relata a Ducio Trombardi que André Wurmser convoca uma reunião para explicar o complô e todos os
membros do PC acreditam na versão embora não estejam realmente convencidos. Três meses após a morte de
Stálin descobrem que a ideia do complô é pura invenção e escrevem ao Wurmser, solicitando um esclarecimento
acerca do ocorrido, mas nunca recebem a resposta. Foucault qualifica a atitude como desastrosa, e confessa que
se sentia mal em estar no PC.
22
Na Tunísia os alunos não gostavam de ouvir Foucault citar Nietzsche sobre qualquer
pretexto e tampouco a sua hostilidade com relação ao marxismo. Em 1967, Foucault é
classificado pelos alunos como “à direita”. Em contrapartida, Foucault, segundo relatos de
Eribon (1990), declara que os alunos reivindicam o marxismo, com uma violência, uma
intensidade, uma paixão extraordinária. O marxismo era não só uma análise melhor das
coisas, como também uma espécie de energia moral, de notável demonstração de existência.
Em um passeio com o diretor de Le Nouvel Observateur, Jean Daniel, chega a declarar ao ver
um grupo de estudantes pela rua que estes seriam a revolução.
Foucault vai para a Tunísia para, de certa forma, se afastar da vida política. Afinal,
estava decepcionado com o PC e o que buscava era justamente uma vida entre os prazeres do
sol e a ascese filosófica. Porém, seus dias estavam contados e a política novamente o agarra.
Não tardou para Foucault se envolver num movimento político juntamente com os alunos na
Tunísia. Chegou, inclusive, a esconder o mimeógrafo do grupo e vários panfletos em seu
jardim, assim como não se conforma com a passividade e dá refúgio a estudantes perseguidos
pela polícia em sua própria casa; e ao voltar das férias de verão de 1968 tenta depor nos
processos a favor dos estudantes, ficando bastante abalado
(...) Devo dizer que esses rapazes e moças que corriam riscos terríveis redigindo um
panfleto, distribuindo-o ou fazendo um apelo à greve... que realmente corriam risco
de ser privados da liberdade! ... me impressionaram muito, muito. Para mim foi uma
experiência política. De minha passagem pelo Partido Comunista, do que pude ver
na Alemanha, da maneira como as coisas se passaram com relação aos problemas
que eu queria colocar a propósito da psiquiatria, quando voltei à França... de tudo
isso guardei uma experiência política um pouco amarga, um pouco de ceticismo
muito especulativo, não escondo... Lá, na Tunísia, fui levado a dar uma ajuda
concreta aos estudantes... De algum modo tive de entrar no debate político (In:
ERIBON, 1990, p. 181).
Em 1968, no outono, Foucault volta à França, e no dia 23 de janeiro de 1969 entra na
gesta esquerdista. Talvez essa atitude seja motivada pela experiência que teve juntamente com
os alunos na Tunísia embora seja considerado pouco engajado pelos esquerdistas, uma vez
que não estava na França no maio de 68. A questão é que a partir de 1969 começa a encarar a
própria figura do intelectual militante, temos um Foucault das manifestações e dos
manifestos, das lutas e das críticas.
23
Após maio de 68 o governo cria, como medida paliativa, a reforma do ensino superior
na França e é constituída uma Comissão de Orientação composta por aproximadamente vinte
pessoas, entre elas Jean-Pierre Vernant, Georges Canguilhem, Emmanuel Le Roy Ladurie,
Roland Barthes, Jacques Derrida. Eles têm a tarefa de recrutar o corpo docente da nova
faculdade. Foucault, por intermédio de Georges Canguilhem, é indicado para dirigir o
Departamento de Filosofia. A notícia causa um mal-estar geral entre os esquerdistas, pois
além de Foucault não ter participado do maio de 68 ele também é considerado um gaullista.
A questão é que Foucault assume o Departamento de Filosofia e durante os dois anos
que fica na Universidade de Vincennes trata de reunir a sua volta o que considera que a
Filosofia tem de melhor na França. Inicialmente solicita Deleuze, mas este teve que recusar
devido ao seu estado de saúde. Após solicita Michel Serres que atende ao chamado
imediatamente. Em seguida, Foucault vai à procura dos alunos de Althusser e Lacan, mas
muitos estão prestando serviço militar. A filha de Lacan, Judith Miller, Alain Badiou, Jacques
Rancière, François Regnault, Henri Weber, Étienne Balibar, François Châtelet são solicitados,
entre outros.
Em dezembro de 1968, a Universidade de Vincennes abre as portas e no dia 23 de
janeiro do ano seguinte o comitê de ação do liceu Saint-Louis resolve projetar filmes sobre
maio de 68 durante uma reunião. A reitoria proíbe e solicita que seja cortada a energia elétrica
para que a reunião não ocorra. Mais de 300 alunos entram com um gerador e o filme é
projetado. Em seguida, saem em passeata e um comício é organizado. Uma palavra de ordem
é feita: “ocupação da reitoria”. Os estudantes e alguns professores invadem também a
faculdade, tudo serve: mesa, cadeira, armários, etc. À noite a polícia intervém e estudantes e
professores são levados ao centro de controle da polícia parisiense – Beaujon. Foucault e
Daniel Defert estão entre os últimos a serem interrogados, os olhos ainda vermelhos por causa
do gás. Como os demais, Foucault é liberado ao amanhecer.
Em janeiro de 1970 o ministro da Educação, Olivier Guichard, denuncia o caráter
marxista-leninista do ensino de Filosofia no ano de 1968-1969 e resolve suprimir a
habilitação nacional dos diplomas concedidos por Vincennes nessa disciplina, ou seja, os
estudantes não poderão se apresentar aos concursos de recrutamento do ensino secundário.
Aqui outra questão curiosa, Foucault está na direção do Departamento de Filosofia que
apresenta um programa de cursos que é considerado de caráter marxista-leninista. Fica a
24
interrogação: como Foucault pode ser considerado contra Marx, contra o marxismo, contra os
marxistas e aprovar um programa de caráter marxista-leninista, a ponto de correr o risco da
habilitação nacional do curso ser suprimida? Colocar Marx e Foucault em pólos antagônicos
parece-nos, no mínimo, um devaneio falacioso!
Foucault, como diretor do Departamento de Filosofia, defende que sendo o objetivo
estudar o mundo contemporâneo, o departamento não poderia deixar de ser uma reflexão
sobre a política. Dias mais tarde, na entrevista intitulada Le piège de Vincennes, publicada no
dia 9 de fevereiro de 1970, no Le Nouvel Observateur, Foucault questiona como dar cursos
desenvolvidos e diversificados com 950 alunos para oito professores e problematiza o que é a
filosofia e em nome de que, de que texto, de que critério, de que verdade rejeitam o que
fizeram até então. E passando à contra-ofensiva, polemiza que o essencial do discurso do
ministro não são as razões que ele apresenta e, sim, a decisão que ele quer tomar. Decisão
clara: os estudantes que tiverem cursado Vincennes não terão o direito de lecionar no
secundário. E Foucault (1970) faz algumas perguntas: por que esse cordão de isolamento? O
que a filosofia (a classe de filosofia) tem de tão perigoso que é preciso tanto cuidado para
protegê-la? E o que há de tão perigoso em Vincennes?
E a essas alturas Foucault já estava enfastiado. O diretor do Departamento de
Filosofia, que age com desembaraço na contestação esquerdista e nas manifestações diárias,
parece estar traumatizado com a experiência em Vincennes. Alguns defendem que Foucault,
ora foi visto com barra de ferro prestes a atacar comunistas, ora foi visto atirando pedras em
policiais. A questão é que ele várias vezes diz, entre amigos, estar farto e lhe agrada a ideia
de sair de Vincennes onde, aliás, sempre soube que teria uma presença transitória. Neste
mesmo ano, cumpre os rituais de ingresso no Collège de France, deixando o Departamento
de Filosofia nas mãos de François Châtelet.
No mesmo ano de 1970, mais exatamente no dia 2 de dezembro Foucault realiza a
aula inaugural7 no Collège de France. Ele tinha 43 anos e, depois de uma carreira8 dividida
7
Aula inaugural significa abertura de um ensinamento, o lugar onde Foucault mostra todos os recursos de seu
saber, trabalho e talento pedagógico diante das multidões sempre numerosas e ardentes que se encontram na sala
8 e nas salas sonorizadas.
8
Ao utilizarmos a palavra “carreira”, reportamo-nos às diferentes instituições educacionais ou atividades
relacionadas ao ensino em que o professor Foucault esteve envolvido profissionalmente até ingressar no Collège
de France. Para saber mais acerca do professor Foucault sugerimos a obra Michel Foucault (1926-1984), de
25
entre cidades e distribuída de um cargo a outro, Foucault liga-se a um glorioso instituto de
saber, no coração de Paris. Pouco tempo depois, publica a aula na íntegra sob o título A
ordem do discurso. O Collège de France é uma instituição de ensino que se utiliza de uma
metodologia própria. Não há uma relação de diálogo entre professor e alunos. Os alunos
comparecem à instituição somente num encontro semanal, atuando como ouvintes. Em uma
entrevista concedida em 1975, uma reportagem sobre os grandes professores das
universidades francesas, Foucault chega a declarar a um jornalista que quando a aula não foi
boa bastaria uma pergunta para consertar tudo, mas essa pergunta nunca vem e diz ter uma
relação de ator ou de acrobata. E quando termina de falar há uma sensação de completa
solidão. A relação teatral que Foucault anuncia advêm da tradição da instituição de ensino a
que estava ligado. Neste sentido, é importante salientar que no Collège de France
O professor deve apresentar na aula uma pesquisa, “a ciência se fazendo”, segundo
a fórmula de Renan. Com a obrigação de inovar todos os anos. Assim, Foucault
expõe o material sobre o qual trabalha, formula as hipóteses sobre as quais reflete.
Isso se tornará Surveiller et punir ou La volonté de savoir, ou ainda a parte final de
sua Historie de la sexualite. De qualquer forma essa atividade magisterial exige um
trabalho de preparação muito grande. E nos últimos anos de sua vida ele muitas
vezes falará de sua vontade de acabar com esse fardo que cada vez lhe pesa mais e
mais (ERIBON, 1990, p. 207).
Embora Foucault demonstre um enorme cansaço pela dura rotina da instituição,
permaneceu nela até sua morte. E justamente no período em que esteve ligado a ela, torna-se
uma figura pública, sendo fartamente mencionado por seus livros, suas crônicas e outras
produções acadêmicas e extra-acadêmicas. Talvez, daqui, nasça a tão conhecida frase:
“Foucault como pãezinhos”9, ramerrão nas capas de revistas e jornais parisienses.
Na década de 70, Foucault faz acreditar que cada um dos seus interlocutores é o único
com quem mantém relação privilegiada, resultando em perspectivas deformadas nas relações
Didier Eribon. Esta constitui-se numa biografia da vida e obras de Foucault, trazendo trechos de livros, fotos,
documentários, dentre outras tantas informações pertinentes. A terceira e última parte da obra intitulada
Militante e professor no Collège de France é bastante sugestiva para aprofundar a questão do Foucault professor.
9
Nome dado ao artigo que o jornal Le Nouvel Observateur dedicou às melhores vendas de 1966. Em agosto e
setembro de 1965 Foucault vem ao Brasil e, em São Paulo, entrega a Gérard Lebrun um manuscrito para revisão.
Este constitui-se na obra publicada em abril de 1966 intitulada Les mots e les choses que por surpresa do próprio
autor e editor é um enorme sucesso.
26
desta época. Isso acaba justificando que, em Foucault, tudo se confunde, se imbrica, se
mistura quando é preciso situar determinado fato no tempo ou numa seqüência que lhe dê
sentido.
Ainda nesta mesma época, o filósofo se divide entre as manifestações (militância) e as
assembléias, aulas e seminários no Collège de France. As escolhas de Foucault parecem
causar uma certa perturbação em alguns colegas professores. Num dia de 1971, uma ligação é
feita a Georges Dumézil na qual um professor declara estar apavorado com as atitudes
espalhafatosas de Foucault. Dumézil sugere ao professor que se acalme e diz que a recepção
de Foucault na instituição de ensino foi uma ação sensata.
Foucault assume uma postura diferenciada da maioria dos demais professores do
Collège de France. Isso causa um certo desconforto. Afinal assim como não há um único
Marx10, não há apenas um Foucault! O filósofo assume máscaras e sempre as muda. Como se
não bastasse, faz de seu próprio pensamento um percurso cheio de idas e vindas, trazendo
uma enorme insegurança. Não há como situar Foucault, não há como resumi-lo a uma posição
política ou ideológica. Seu pensamento é complexo e mutável, quando pensamos que estamos
começando a entender o pensamento do filósofo outro curso é publicado e percebemos,
novamente, que não estamos mais no caminho certo. Se adentrarmos o envolvimento político
do filósofo
Há um conjunto de problemas comuns à história de Foucault e a sua meta-história
que gera um dilema para o seu compromisso intelectual com a esquerda. O dilema
pertence a uma situação mais geral dos intelectuais franceses, atribuída ora a uma
desvalorização do pensamento marxista, a um declínio no espírito oposicionista
simbolizado por 1968, a um “fim da ideologia” ou mesmo à vitória socialista,
resultando daí que já não pode ser admitido como ponto pacífico que um intelectual
é automaticamente de gauche (RAJCHMAN, 1987, p. 40).
Mais tarde, acerca dos socialistas, Foucault se ressente e silencia. A tal ponto que
acaba ironizando entre os amigos que quando quis falar, em dezembro de 1981, disseram para
10
Para Bobbio (2006, p. 304), “existem muitos Marx e de que, à distância de mais de um século, não dá para
salvar a todos eles nem para jogá-los todos fora”, a isso o autor chama de “dissociação” a qual a recuperação se
dá diante à dissociação dos vários Marx: o economista, o historiador, o sociólogo, o filósofo, dentre outras faces
do personagem Marx.
27
calar a boca. E quando ele se cala o silêncio espanta. O que significa, para Foucault, uma
única coisa: só concedem o direito à palavra se concorda com eles. No verão de 1983,
Foucault publica um livrinho intitulado A cabeça dos socialistas, como resposta às críticas a
seu silêncio, defendendo que aos socialistas falta a arte de governar. Isso acaba justificando
não somente alguns dos cursos proferidos no Collège de France acerca da arte de governar,
mas também o recuo na história proposto nos últimos volumes da História da Sexualidade.
Outra questão bastante curiosa depois que Foucault se distancia da fase esquerdista, é
que mantém as amizades feitas naquela época, com exceção de uma, que para Eribon
constituia-se em uma das mais antigas e com certeza das mais verdadeiras: a amizade com
Gilles Deleuze, que nasce em 1962, em Clermont-Ferrand, à sombra de Nietzsche e não
sobrevive à reorganização de suas opções políticas após 1975. Amizade que foi mantida
durante anos e, inclusive, muitas vezes manifestada na troca afetuosa de publicações cruzadas
e elogios de um ao outro.
Pouco antes de morrer, um dos desejos de Foucault era justamente reconciliar-se com
Deleuze. Falava muito com seus amigos, especialmente com Paul Veyne a quem dizia com
frequência que Deleuze era o único espírito filosófico da França. Parece que o desejo de
reconciliação era recíproco Deleuze acaba recitando um trecho 11 do Prefácio da obra O uso
dos prazeres, de Foucault no pátio do hospital Pitié-Salpêtrière, onde Foucault foi internado
no dia 9 de junho de 1984 e falece no dia 25 do mesmo mês, aproximadamente às 13h 15 min.
Na tarde de 29 de junho, horas após a homenagem de despedida de Deleuze, o caixão é
sepultado no modesto cemitério de Vendeuvre.
Algumas considerações
Foucault sempre permaneceu atento a Marx, a sua maneira. Com isso, não defendemos
que ele foi ou deixou de ser um marxista12 tampouco que não o era. A questão que interessa é
11
Foucault (1984, p. 13): “De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?”.
12
Afinal, como rotular um escritor como Foucault que passou a vida tentando não ser capturado por
classificações? Talvez o que estejamos realmente tentando é, de certa forma, trazer à tona alguns detalhes da
vida do autor que ao invés de repelir o pensamento de Marx, conforme nos é dito, começa a questionar se
28
clara: Foucault fez uso do pensamento de Marx e no fim da vida admite que poderia ter
evitado muitos erros através de uma leitura mais precoce da Teoria Crítica, situando seu
próprio pensamento numa tradição voltada para a ontologia do presente, saindo de Kant e
Hegel, via Nietzsche e Weber, até a Escola de Frankfurt.
Por fim, parece-nos que Marx e Foucault não são filósofos para todas as estações.
Embora seja sabido que o pensamento de ambos foi e é utilizado em longa escala, eles não
servem para tudo! Na área da Educação, podemos afirmar que os filósofos trazem
contribuições inegáveis, como, por exemplo, respectivamente, o conceito de “ideologia” e o
neologismo “governamentalidade”. Mesmo sabendo, conforme já anunciado, que não
propusseram nenhum tratado educacional, os filósofos apresentam pistas que contribuem na
problematização de questões que, embora atuais, constituiram-se historicamente e trazem
arraigadas um modelo moderno, questionado e discutido incansavelmente sob diferentes
aspectos: econômicos, sociais, culturais e demais possíveis.
No que tange à relação entre Marx e Foucault, percebemos que este último tem uma
visão clara da diferença existente entre a pessoa Marx e seu pensamento, o marxismo e os
marxistas. Talvez daí venha o espanto, o choque, de Foucault ao perceber que desde o início
foi considerado um inimigo pelos marxistas.
Foucault não estava justamente tentando fazer do marxismo uma ciência, coisa que outros marxistas não fazem
ao dizer “Amém” aos escritos de Marx.
29
Referências:
ALIAGA, L.; AMORIM, H.; MARCELINO, P. Marxismo:Teoria, História e Política. São Paulo:
Alameda, 2011.
BOBBIO, N. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
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Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
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FOUCAULT, M. Ditos & Escritos, vol V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense
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FOUCAULT, M. História da Sexualidade, vol II – O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984.
FOUCAULT, M. Le piège de Vincennes. Paris: Le Nouvel Observateur, 1970.
HARDT, M. O comum no comunismo. IN: Revista Imprópria: política e pensamento crítico. Lisboa:
UNIPOP, n. 1, 1º semestre, p. 10-20, 2012.
MARX, K. Les luttes de classes en France (1848-1850). Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. França:
Ed. Science Marxiste, 2010.
POSTER, M. Foucault, marxism & history: made of production versus made of information. Oxford:
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Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1982, 1992, 1995, 1998.
30
Locke e a formação do gentleman
Christian Lindberg Lopes do Nascimento
31
Doutorando em Educação
FAPESP/PAIDEIA/UNICAMP
E-mail: [email protected]
1 Introdução
O objetivo principal desse texto é analisar o conceito de formação contido na obra de
John Locke. Para o cumprimento deste propósito, será feito a descrição do pensamento
educacional lockeano, em seguida, será considerada a relação existente entre o método
educacional e a formação do indivíduo. Por fim, a argumentação reflete sobre a motivação do
filósofo inglês em formar um sujeito virtuoso, como também há a preocupação de relacionar a
sua teoria do conhecimento com o educativo.
2 A epistemologia lockeana e o impacto no seu pensamento educativo
Ao publicar o Ensaio sobre o entendimento humano, Locke apresenta sua teoria do
conhecimento, que tem como objetivo investigar a origem, certeza e extensão do
conhecimento humano. Ao mesmo tempo, combate as ideias inatas formuladas por René
Descartes (1596-1650), filósofo francês que exerceu forte influência intelectual no início do
XVII. Para este, o conhecimento decorre de uma dúvida metódica, que tem como
consequência, não só a garantia da existência de um ser pensante, mas também um ser
questionador e investigador das coisas que o rodeiam, estabelecendo uma confiança total na
razão para conhecê-las. A partir de uma perspectiva sistemática do saber, Descartes une
ciência e filosofia. Isso se dá porque compreendera que não é suficiente pesquisar e resolver
problemas científicos se não conseguir justificar a própria legitimidade da ciência, produzindo
verdades indubitáveis e universais.
Em contraposição, o filósofo inglês afirma que a maneira pela qual o conhecimento é
adquirido, constitui prova suficiente de que não é inato, porque as ideias não se encontram
naturalmente impressas na mente das crianças, idiotas:
Em resumo: não vejo qualquer razão para pensar que aqueles princípios
especulativos sejam inatos; não dão origem a um consenso universal; a
aceitação que geralmente recebem é a mesma que distingue muitas outras
proposições que não são tidas por inatas, essa aceitação, como demonstrarei
neste Tratado, não provém de uma inscrição natural no espírito mas deve-se
a causa diversa. E se tais ‘primeiros princípios’ do conhecimento e da
ciência não são inatos, por maioria de razão se deverá concluir que
32
nenhumas outras máximas especulativas poderão sê-lo. (LOCKE, 1999,
p.51).
Assim, é equivocado afirmar que qualquer proposição está na mente sem jamais
termos conhecido pela sensações, o que demonstra que as ideias não são inatas ao
entendimento. Em relação aos princípios práticos, constata-se que não existe também nada
inato na mente humana, não assumindo assim, uma acepção universal. Locke exemplifica esta
afirmativa a partir da religião e da justiça, que não são compreendidas por todos os homens
como princípios, porque como regras morais necessitam de prova. No caso da virtude, ela é
geralmente aprovada não pelo seu caráter inatista, mas porque é proveitosa aos homens, e
qualquer que seja a ação humana, ela nos convence que a regra da virtude não consiste em seu
princípio interior, mas sim uma ação exterior. No mesmo sentido, os princípios práticos não
alcançam um significado universal, porque os homens têm princípios práticos opostos, de
acordo com a região que habitam ou a educação que recebem.
Em não sendo inato, qual a proposta do inglês no que se refere à obtenção do
conhecimento? Ele advoga que as ideias são adquiridas pela experiência. Em não sendo inato
na mente humana, Locke compara-a a uma folha em branco, sem nada preenchido,
necessitando que as ideias ocupem os “gabinetes vazios” da nossa mente. Esse preenchimento
ocorre através da sensação ou da reflexão. Do mesmo modo, há no homem, o desafio
constante de obter mais e mais conhecimento, o que lhe permite a possibilidade de por sempre
em movimento e constante transformação o saber adquirido.
No campo educacional, a crítica ao inatismo também teve consequências. A partir da
teoria do conhecimento lockeana, observa-se que a criança está em um estágio mais propício à
aprendizagem. Desse modo, a educação se transforma em um instrumento essencial para a
obtenção do saber. Em Locke é possível à educação desenvolver o entendimento humano
como instrumento capaz de almejar o conhecimento, estabelecendo sua autonomia, sendo o
homem concebido como um ser ativo e a veracidade dos fatos advindo da experiência
individual.
Formar a mente e governar as ações dos menores ainda ignorantes, até que a
razão ocupe seu lugar e os liberte deste incômodo – é disso que os filhos
precisam e disso que os pais estão obrigados a fazer. Pois Deus, ao conferir
ao homem um entendimento para governar suas ações, concedeu-lhe uma
liberdade de vontade e de ação como a estas pertinente [...]. Mas, enquanto
ele estiver numa situação em que não tenha entendimento próprio para
governar sua vontade, não terá nenhuma vontade própria para seguir: aquele
que entende por ele deve também querer por ele; deve prescrever sua
vontade e governar suas ações; mas, quando chegar à situação que fez de seu
pai um homem livre, o filho será um homem livre também. (LOCKE, 2001,
p. 434).
Com a publicação de Alguns pensamentos sobre a educação, o filósofo inglês aborda a
questão da formação das crianças, denominada por gentleman. Enfatiza que o caráter de uma
pessoa se molda a partir do cultivo de bons hábitos, desde a infância, pois como ele próprio
33
afirma: “Poucos anos requerem poucas regras e com o progresso de sua idade, quando praticálas bem, pode adicionar outras regras.” (LOCKE: 1996, p.40, tradução nossa). A formação de
bons hábitos na criança, através da prática constante, é o procedimento mais apropriado para
ensinar ao gentleman, empregando para isso, o exercício de situações que o preceptor queira
instruir no educando.
Esta preocupação com a formação das crianças, especialmente com o esforço de
divulgar o método educacional mais apropriado para formar jovens virtuosos, tem como
resultado primordial constituir neles a máxima: mens sana in corpore sano. No entanto, deve
ser considerado mais o aspecto espiritual, por causa da necessidade de formar homens
virtuosos, capazes de exercer a liberdade e dominar os desejos, deliberando em função do
correto uso da razão.
Dentre os aspectos importantes na proposta lockeana para a educação, destaca-se o
fato de que a dimensão mais admirável na educação não é a instrução ou o saber acumulado,
mas a formação. Ora, existe então uma distinção no pensamento de Locke entre instrução e
formação? Sim, essa diferenciação traz consigo o real objetivo do projeto educativo do
filósofo inglês.
Embora a instrução seja o assunto principal quando se disserta sobre educação, já que
é através dela que se adquire a capacidade da escrita, da leitura, etc., Locke tem a convicção
de que será compreendido como um insano, alguém que não queira constituir um homem
virtuoso e prudente mais do que um estudante pedante.
Por formação Locke compreende como a capacidade de dominar as paixões e de
empregar apropriadamente a razão por parte do gentleman. Assim, a instrução é necessária,
porém deve ser um meio para adquirir qualidades mais nobres. Para tanto, o conteúdo
educacional deve ter uma utilidade prática e cada estudo deve encontrar justificativa na
contribuição que é dada para a vida, não à atual da criança, mas sim ao seu futuro como
homem. Locke compreende que com a utilidade que o currículo exerce para a vida, torna-se
possível a constituição do indivíduo virtuoso.
Isso remete a necessidade dos pais procurarem um preceptor capacitado para formar os
seus filhos. Como requisito, Locke afirma que ele deve saber não apenas o latim ou a lógica,
como era o costume da época, mas que tenha as condições necessárias para ensinar os bons
costumes, garantindo a inocência da criança, corrigindo os defeitos e fortaleça as boas
inclinações, além de fazê-la adquirir bons hábitos.
Mas como educar de modo a assegurar o desenvolvimento completo da personalidade
da criança em formação? Locke sugere a união da educação intelectual com a corporal,
garantindo assim, a formação plena do gentleman. No Alguns pensamentos sobre a educação,
o filósofo inglês tece detalhadas sugestões no que se refere aos conhecimentos a serem
lecionados, como se ensinar, para que se ensinar, além de registrar uma preocupação com a
saúde física da criança.
34
A estreita associação daquela obra com o Ensaio sobre o entendimento humano
possibilita compreender que a educação permite inúmeras oportunidades para que o indivíduo
possa conhecer. No entanto, a mesma relação existente entre essas duas obras, remete a um
método educacional para a obtenção do saber, que denomina-se empirismo educacional.
A constituição desse indivíduo é um fim em si mesmo? Por estar inserido no contexto
político da Inglaterra do século XVII, Locke também associa o seu pensamento educacional à
ação, adotando assim uma defesa nítida do caráter prático que os conteúdos curriculares
devem ter na formação dos indivíduos.
3 Sobre a divisão do trabalho
O trabalho está dividido em três partes, composto por seus respectivos subitens. No
primeiro, estabelece-se o que ficou denominado de as bases do pensamento filosófico e
político de Locke. Para tanto, é demonstrado como o conceito de lei da natureza em Locke é
fundamental para a compreensão de suas obras mais conhecidas. O estudo é iniciado com a
descrição do significado desse termo, frisando que a lei da natureza estabelece uma
moralidade no ser humano, antes da constituição da sociedade política e é a partir desta lei
que o inglês constrói o esboço de seu pensamento, que se manifestara publicamente a partir
do Ensaio sobre o entendimento humano.
O segundo subitem abordado é o conceito de propriedade que é ancorado nos Dois
tratados sobre o governo civil. Locke afirma que os homens possuem dois tipos de
propriedade: as imateriais (vida, liberdade) e as materiais (meios de subsistência) que é
adquirida pelo ser humano a partir do trabalho. Advoga também que a propriedade é ofertada
aos homens por Deus, que lhes deu de forma igualitária. Outra propriedade humana que o
Criador deu foi a razão, no intuito que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência
da vida.
Já a terceira parte, aborda a origem da sociedade política. Esta é formada quando há a
transgressão do direito individual à propriedade, ocorrida no estado definido por Locke como
estado de natureza. Essa infração do estado de natureza tende a conduzir a humanidade a
outro tipo de estado, o de guerra. A diferença básica entre o estado de natureza e o estado de
guerra é que, naquele o homem está numa situação de paz, assistência mútua e preservação,
enquanto no estado de guerra, o ser humano vive sob um estado de inimizade, violência e
destruição mútua. Por isso, evitar o estado de guerra é a grande razão pelo qual os homens se
unem em sociedade e abandonam o estado de natureza. No entanto, ele questiona sobre quem
tem o direito de arbitrar tal infração? Este árbitro exercerá o poder da punição
imparcialmente?
35
Locke propõe como solução a saída do ser humano deste estado de natureza. Para tal
empreendimento, ele sugere a formação de um governo civil, entendido como a solução
adequada para as inconveniências do estado de natureza. Assim, o que conduz os homens à
união e a estabelecerem livremente entre si o contrato social é a realização da passagem do
estado de natureza para a sociedade política. Esta sociedade é formada por um corpo político
único, dotado de legislação e tem como objetivo a preservação da propriedade e a proteção de
seus membros, pelo consentimento de seus integrantes.
A concepção que Locke apresenta para a constituição desta sociedade política foi
expressa também nas Cartas sobre a tolerância, em que ele define sociedade política ou civil,
como sendo aquela em que os homens constituem apenas para a preservação e melhoria dos
bens civis de seus membros. O poder do governo civil diz respeito apenas aos bens civis dos
homens e está confinado para cuidar das coisas deste mundo. Já a Igreja é uma sociedade
espontânea, livre, composta por homens que se reúnem por afinidade ao culto de Deus,
objetivando assim, sua salvação eterna. Locke faz essas definições para fundamentar a
separação entre o Estado e a Religião.
Na segunda parte, inicia-se a análise do pensamento educacional lockeano. No
primeiro subitem é observado como a teoria do conhecimento do filósofo repercute na
educação. Dessa maneira, a forma como adquirimos o conhecimento constitui suficiente
prova de que não é inato, porque podemos adquirir todo o conhecimento que possuímos sem a
ajuda de impressões inatas. Em não sendo inato, qual a proposta do inglês no que se refere à
obtenção do conhecimento por parte dos humanos? Ele advoga que as ideias precisam ser
adquiridas pela experiência, condicionando inicialmente a sua aquisição, à prática. Esse
preenchimento ocorre através da sensação ou da reflexão.
Dos impactos da teoria do conhecimento na educação, faz-se necessário abordar
também a repercussão do projeto político. Desse modo, quando se afirma que a garantia dos
pressupostos da sociedade política passa pelo magistrado, percebe-se que a sua formação deve
ser no sentido de manter os direitos de cada membro que compõe uma determinada sociedade.
Nas Cartas sobre a tolerância, Locke afirma que é dever do magistrado civil preservar e
assegurar, ao povo em geral e para cada um em particular, a propriedade (vida, liberdade e
bens materiais). Compete também ao magistrado a imparcialidade na elaboração das leis e a
fiscalização do livre convívio entre os homens de diversas religiões.
No entanto, qual o método educacional mais apropriado para formar este indivíduo
que irá exercer funções política? Esta é a pergunta que foi respondida no terceiro subitem
deste capítulo, considerando as análises expostas pelo filósofo nos Alguns pensamentos sobre
a educação, como também em outras obras, a exemplo de Sobre a conduta do entendimento e
Do estudo.
Feitas estas exposições, o projeto educacional de Locke visa formar um indivíduo
livre, mas que aja de acordo com os desígnios da própria razão. Por liberdade, o filósofo
compreende ser o poder que o homem tem para fazer ou deixar de fazer qualquer ação
36
particular, segundo determinação ou pensamento da mente, por meio do qual uma coisa é
preferida à outra.
A terceira e última parte é dividida da seguinte forma: a) a definição de criança e a
responsabilidade em educá-la; b) qual o objetivo da educação compreendido pelo filósofo; c)
que cuidados a educação deve ter com a saúde corporal; d) qual a relação entre instrução e
formação do gentleman. Ao término de cada subitem, demonstra-se as principais
contribuições de Locke para o debate educacional, ratificando qual a relevância do conceito
de formação para a sua obra política.
4 Aspectos conclusivos
Conclui-se este trabalho realizando algumas observações. Nos textos educacionais do
filósofo, ele não demonstra nenhuma pretensão de ser inserido na história da educação ou
muito menos na história da filosofia da educação. O que existe é a preocupação de tornar a
educação em peça fundamental, não somente por formar as futuras gerações, mas para
constituir um caminho mais seguro para o cumprimento dos preceitos estabelecidos na teoria
política lockeana.
Qualquer estudo feito sobre o pensamento educativo de Locke deve considerar esse
fator como preponderante, até porque qualquer projeto político necessita de um educacional
que tenha em vista a constituição de um ‘novo ser’. Em Locke, esta concepção se materializa
no conceito de formação. Assim, por formação entende-se ser o somatório dos ensinamentos
transmitidos pelo preceptor que tem em vista dotar a criança de autonomia, no sentido de
permitir-lhe que aja racionalmente. Esta soma de questões é composta pela preocupação com
a saúde física - que permite ao indivíduo resistir às adversidades da vida - mais a preocupação
com o espírito - que agrega a instrução, a sabedoria, a boa educação e a virtude.
No entanto, estes componentes regidos pelo preceptor têm que estar conectados com a
realidade social e política, ou seja, deve ter uma utilidade prática. A criança é dotada de
ensinamentos que lhe possibilite não só conhecimentos, mas também compreender as
circunstâncias antes que delibere suas ações. Por outro lado, a utilidade dos ensinamentos
deve permitir o desenvolvimento cognitivo da criança, para que esta exercite seu
entendimento de forma a promover a reflexão diante dos acontecimentos.
É bom frisar que a formação da criança é fundamental para a materialização do projeto
político do filósofo, já que há a necessidade de formar indivíduos aptos a exercerem as
funções governamentais de forma imparcial, até porque esta formação é reservada aos filhos
da aristocracia inglesa, como afirma Baillon: “Além do simples projeto educacional reservado
para uma elite específica, o modelo do comportamento definido por Locke nos Pensamentos
faz parte de uma ampla transformação da sociedade inglesa em direção ao progresso dos bons
modos.” (BAILLON, 2006, p.101, tradução nossa). De tal modo, o projeto político e social
implica no estabelecimento de indivíduos que se relacionem com base no processo
37
civilizatório em curso, regulamentado pelo uso da razão e tendo a educação o seu componente
formador.
Por outro lado, a formação da criança também é circunstanciada, como também é
exclusivamente destinada ao que se propõe para o bem público, a saber, a felicidade. Este viés
político adotado pelo filósofo é o que condiciona a educação. Consequentemente, o projeto
educativo de Locke está a serviço da reforma moral que ele tanto enfatiza e defende para a
Inglaterra, que vivia em uma grande crise de valores.
É o conceito de formação que permite fechar o “sistema moral” existente na obra de
Locke, que começa a ser elaborado nos Ensaios sobre a lei de natureza, depois no Ensaio
sobre o entendimento humano, perpassa os Dois tratados sobre o governo e as Cartas sobre a
tolerância e é ratificada no Alguns pensamentos sobre educação. Porém, esta compreensão
não descarta outros escritos do filósofo, até porque é possível perceber uma relação direta
entre os primeiros escritos do autor com os principais textos lockeanos.
Locke demonstra a relevância de constituir um indivíduo racional como premissa
fundamental para a materialização de seu projeto político. Esta importância tem no conceito
de formação sua base fundamental, pois só assim se forma a nova geração de governantes que
agirão balizados pela razão, visando garantir os direitos naturais de cada indivíduo. Ora, o
filósofo inglês advoga que a felicidade é o fim supremo de todos os indivíduos neste mundo e
esta é concretizada pela ação moral de cada um.
Por fim, o projeto educacional de Locke tem como objetivo central formar indivíduos
aptos para agirem na sociedade. Para tanto, foi desenvolvido uma análise sobre a teoria do
conhecimento e a filosofia política lockeana, como também outros textos do autor. Este
caminho se fez necessário porque há uma conexão entre os textos do Locke, sendo o conceito
de moral o denominador comum. Nesse sentido, o projeto educacional sugerido pelo filósofo
vai estar alicerçado no desenvolvimento intelectual e corporal da criança, que, sob a tutela dos
pais e/ou preceptor, contribui com a edificação de uma nova sociedade na Inglaterra.
O conceito de formação surge como meio para efetivar os objetivos gerais da
educação, a saber: tornar a criança livre, que tenha garantido o direito de suas propriedades
materiais e que controle as paixões humanas. Mais que isso, é através da formação de uma
nova classe dirigente que a Inglaterra corrigirá seus defeitos, já que Locke propõe que a
formação do gentleman seja reservada aos filhos da burguesia inglesa. É através do conceito
de formação que Locke une sua teoria educacional com a teoria do conhecimento e a política.
38
Referências
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education (1693). Domont-FRA: Dupli-Print, 2006.
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EBY, F. História da educação moderna. Rio de Janeiro: Globo, 1962.
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______. Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. Tradução Eunice Ostrensky. São
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LURBE, P. John Locke, une theologie de l’education. Occasional Paper. Université de
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MICHAUD, Y. Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
SPITZ, J.F. John Locke et les fondements de la liberté moderne. Paris : PUF, 2001.
39
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Press, 1984.
YOLTON, J. Dicionário de Locke. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996.
Interpretação, leitura e Formação Humanista em Nietzsche
Antonio Carlos Lopes Petean
Doutor em Sociologia pela UNESP/Araraquara
Professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia
Brasil
[email protected]
Resumo
Pretende-se, neste trabalho discorrer sobre os problemas da relação entre a interpretação e
a leitura no pensamento de Nietzsche. Relação que o professor e filósofo Nietzsche
analisou como fundamental para a formação humanista. Além desta questão pretende-se
apresentar a crítica de Nietzsche ao sistema educacional da Alemanha durante século
XIX e como esta crítica pode contribuir para refletirmos sobre os problemas e tendências
atuais da educação. Neste estudo, será apresentada a concepção nietzscheana sobre as
tendências que minam a educação e impedem a formação de indivíduos aptos a
desenvolverem suas potencialidades. Nietzsche fez críticas a formação tecnicista da
Alemanha voltada, segundo ele, para os interesses do mercado e do Estado. Uma
educação, que segundo Nietzsche, prestava-se a formar homens aptos a ganharem
dinheiro e servirem aos interesses do Estado. Sendo assim, a prática da leitura não levava
em consideração a heterogeneidade dos leitores. Esta educação tecnicista, rápida e
massificante foi criticada por Nietzsche. Uma educação na qual a prática da leitura não
era trabalhada considerando o sujeito leitor.
40
Palavras-Chave: Estado; Mercado; Formação Humanista.
Nietzsche preocupou-se com a formação cultural e educacional que os jovens
alemães estavam recebendo no ensino secundário e universitário da Alemanha em pleno
século XIX. Suas preocupações diziam respeito ao excesso de formação técnica em
detrimento de uma formação humanista. Nietzsche via no excesso de formação técnica,
uma clara preocupação em formar homens aptos a exercerem atividades que fossem
importantes para o mercado e para o Estado. Para Dias (1991) Nietzsche observou que o
processo de formação que os jovens alemães estavam recebendo nos estabelecimentos de
ensino secundário e universitário estava voltado para atender as necessidades do mercado
e do Estado Alemão, criando homens úteis e rentáveis e não homens de personalidades
amadurecidas. Diante desta formação a leitura e a interpretação dos textos deveriam
seguir a rapidez do mercado. Para Nietzsche, o ato de ler um texto assemelha-se ao ato de
ler a vida, o mundo e, portanto, o próprio homem (Larrosa, 2002).
Acreditamos ser pertinente a recuperação das reflexões de Nietzsche sobre as relações
entre a interpretação e a leitura no atual contexto sócio-econômico.
Os textos traduzidos no Brasil, que abordam as preocupações de Nietzsche sobre a
educação são: “Sobre o Futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” e “Consideração
intempestiva: Schopenhauer educador”. Textos que compõem o livro “Escritos sobre
educação”, traduzido por Noéli Correia de Melo Sobrinho.
Nietzsche denuncia o caráter imediatista, técnico e econômico da educação na Alemanha
durante o século XIX. Segundo Dias (1991) o filósofo Nietzsche condenou os três
preconceitos que pairavam sobre o sistema educacional alemão. Preconceitos que o
filósofo diz serem egoísmos. Eram eles: o egoísmo das classes comerciantes, o egoísmo do
estado e o egoísmo da ciência.
O egoísmo dos comerciantes ficava evidente na preocupação em formar homens para
atenderem as necessidades do mercado, do sistema de manufaturas, e aptos,
fundamentalmente em ganharem dinheiro. Quanto ao egoísmo do Estado ele podia ser
percebido na formação técnica preocupada em formar homens para preencherem os postos
estatais e tornarem-se fiéis servidores do Estado. E, a base destes dois egoísmos esta na
formação científica, que possibilita uma formação tecnicista que interessa apenas ao
41
sistema econômico em gestação na Alemanha no século XIX. Daí o sistema educacional
privilegiar uma formação técnica, rápida e voltada ao progresso material, sem nenhuma
preocupação humanística.
Nietzsche alerta para o perigo deste tipo de formação e seus efeitos. Para ele, esta
formação técnica, ao exigir rapidez não permite aos jovens terem uma personalidade
amadurecida e, muito menos estarem preparados para a atividade crítica, que só a leitura
dos clássicos da literatura nacional e o estudo da língua permitem. Além disso, Nietzsche
afirmou que o ato de ler requer paciência, calma, tranqüilidade e profundidade. Mas os
estabelecimentos de ensino e a própria vida não toleram mais um leitor imaginado por ele.
Para Nietzsche o ato de ler um texto ou uma obra literária é como ler o mundo e o próprio
homem. Ao analisar o pensamento educacional de Niezsche, Larrosa (2002) nos indica que
o filósofo afirmava que ler é interpretar, é dar sentido ao texto, ao mundo e ao próprio
homem. Se entendermos que todo ato de interpretar é criar sentidos novos, então devemos
considerar todo leitor, também, um produtor de textos. A relação que se estabelece é entre
dois produtores de textos e de sentidos. Uma relação entre duas subjetividades: a do autor e
a do leitor-autor. Mas o sistema de ensino castra esta possibilidade de um leitor-autor ao
exigir que o aluno procure e reconheça a verdade escondida nos textos. Que o aluno
encontre a suposta verdade escondida e que será revelada com a ajuda do professor. Um
grave problema gerado por esta perspectiva é a castração da criatividade e da curiosidade.
Segundo Morin (2010) desenvolver a curiosidade e a reflexão investigativa é fundamental
para o desenvolvimento geral da mente e da capacidade para resolver problemas. Mas, se
afinal o sentido já foi revelado, porque ocupar-se com aquilo já descoberto.
Segundo Larrosa (2002) Nietzsche afirma que não existe um sentido único ou uma verdade
no texto, pois o texto, assim como o homem e o mundo ainda estão para serem lidos.
Múltiplos sentidos podem ser produzidos a partir de múltiplas leituras. Exigir dos jovens
que encontrem o suposto “sentido” já dado, definido, é tolher a criatividade e, além disso, é
cumprir as exigências de um sistema educacional que não tolera a criatividade, a critica e a
curiosidade. É transformar o ato de ler em um ato mecânico, objetivo. Um sistema de
ensino pautado nesta lógica obedece as regras do pensamento positivista e mecanicista.
Um pensamento que valoriza a formação tecnicista, voltada a formar homens aptos a
servirem ao mercado e ao Estado.
42
Referencia
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Editora
Scipione, 1991.
LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma,
reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos Sobre Educação. Rio de
Janeiro: Editora PUC Rio e Edições Loyola.
43
La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método”
Eduardo Álvarez Mosquera
Profesor de Filosofía
Educación Secundaria y Educación Técnico-Profesional (UTU)
[email protected]
[email protected]
RESUMEN:
En este informe se incursiona en el “Discurso del método” de Descartes con el objetivo de
mostrar ciertos planteos pedagógicos del filósofo francés y dejar abierta la cuestión de su
actualidad.
Por eso mismo nos remitimos a su parte crítica, la de la educación con base en el
empirismo, que incluye a la educación formal e informal, y también a lo que puede llamarse
el programa educativo de Descartes sostenido desde el racionalismo.
Finalmente se discute la coherencia interna de la posición de Descartes, y si en contra de él
puede pensarse una educación racionalista democrática y no elitista, para terminar
preguntándonos si habría algo de todo eso que pudiéramos aprovechar.
44
PALABRAS CLAVES:
Autoeducación - Educación - Método - Razón - Verdad
La cuestión educativa en el Descartes del “Discurso del método”
I. El tema
Cuando se lee el “Discurso del método” -de ahora en adelante, DM-, lo primero que a uno le
viene a la cabeza es que Descartes postula allí un método que pretende constituirse en la base
del discurso filosófico y del discurso científico.
Esto es bien sabido.
Sin embargo considero que el método va más allá de lo filosófico y lo científico. Creo que
en él hay otra dimensión que ha sido algo descuidada por sus comentaristas: la pedagógica13,
a pesar de los muchos indicios de Descartes acerca de su importancia.
13
Goguel, en un texto ya viejo, expresa de un modo paradigmático esta postura: “la doctrina cartesiana tenia
como preliminar una crítica tan aguda del contenido de la enseñanza tradicional que se hubiera podido esperar
que, en cambio, iba a ofrecer sugestiones nuevas respecto a la manera de enseñar. Pero en el Discurso todos
los golpes apuntan a las materias de enseñanza, sin que Descartes formule
siquiera una objeción al modo cómo se las enseñaba.” (pp. 1816-1817).
45
Vaya como los más relevantes el señalamiento del método como la herramienta en la “que
quería emplear en instruirme”14, la puntillosa crítica que le hace a las diferentes formas de
educación aceptadas y lo que propone en su lugar.
Por eso mismo en este informe se tratará de hacer una breve recorrida por los
cuestionamientos a la educación de su época y por lo que podríase denominar el proyecto
educativo de Descartes.
II. La aspiración inicial
Para entrar en tema, lo que primero hay que señalar es el propósito confeso de Descartes en
el DM, que en sus palabras es el siguiente:
“Me impulsaba un imperioso deseo de aprender a distinguir lo verdadero de lo falso para
juzgar con claridad de mis acciones y caminar rectamente por la senda de la vida”15.
Con esto Descartes no deja dudas, su deseo, muy fuerte por cierto, es aprender. Su asunto es
educarse.
El objetivo es bien preciso. Formar juicios claros y tener una vida recta. En otras palabras de
Descartes: “adquirir un conocimiento claro y seguro de lo que es útil a la vida”16.
Y el medio para alcanzarlo es contar con un método y aprenderlo. Para enjuiciar y vivir
rectamente necesitaba de un saber primero, uno que oficiara de marco para distinguir lo
verdadero de lo falso. Es que si no se dispone de un criterio demarcatorio de la verdad, la
verdad y la vida recta son indefendibles.
Esto no era menor, implicaba que el método constituía un saber a priori17 y que su
educación debía comenzar por ahí18.
14
DM, Sexta Parte, p. 36.
15
DM, Primera Parte, p. 12.
16
DM, Primera Parte, p. 10. Obsérvese que Descartes parece dar a entender aquí que el conocimiento claro y
seguro no es una exigencia filosófica, sino pedagógica que sí recoge la filosofía.
17
Cf. VÁSQUEZ, Miguel. “El método a priori y su relación con la experiencia: una lectura del método cartesiano
desde la propuesta de Desmond Clarke”
46
No obstante, para que no quedase ninguna duda sobre este punto, a Descartes le quedaba un
problema por resolver: demostrar que el saber y el tener una educación de base empirista no
es otra cosa que privarse del poder de distinguir lo verdadero de lo falso, y por lo tanto,
privarse del buen juicio y de la vida recta. Por eso es que no asombra que se haya aplicado a
la crítica de toda educación fundada empíricamente, empezando por la educación formal que
recibió.
III. La educación formal en el banquillo de los acusados
De entrada y con su acostumbrada modalidad autobiográfica de escribir, Descartes señala
que la educación recibida lo desencantó.
Dos eran los motivos que lo habían llevado a ese extremo.
Uno, que la educación formal no cumplió con lo que prometía. Decía haber sido persuadido
que educándose obtendría el conocimiento que necesitaba para la vida, y sin embargo, ya
educado, lejos estaba de contar con tal conocimiento.
Su culpa estuvo en atarse a una idea libresca de educación en la que el libro aparece como
conteniendo el saber que se necesita para vivir bien19, sostendrá Descartes con firmeza.
Descartes nos cuenta su experiencia. Había aprendido lenguas, y éstas solo le habían servido
para poder entender los libros antiguos. Y cuando finalmente pudo entender los libros
antiguos, encontró que lo único que podía saber con ellos era lo que se pensó en el pasado.
Nada había allí que valiera la pena para la vida que estaba viviendo20.
Dos. Descartes descubre que lo único que le había dejado la educación formal no era otra
cosa que la certeza de seguir siendo un ignorante.
18
Trujillo en p. 15 cita a Debesse y a Mialaret para explicar esto mismo: saber y educación convergen, por
cuanto si hay un método para educarse y enseñar es porque hay un método para conocer.”
19
En un primer momento se podría pensar que esta es una forma de desresponsabilizar a sus profesores pero
tengamos en cuenta también que en ello hay una severa crítica hacia ellos. Ver Segunda Parte del DM, pp. 14-15.
20
Con ello, Descartes no estaba diciendo que los libros que se utilizaban en la educación formal no sirviesen
para nada. Al contrario, les reconoce un alto valor. Encontró en ellos belleza, elocuencia, inventiva, etc., todo lo
que puede servir para adornar a una persona. No menos, pero no más que eso.
47
No sin cierta decepción nos revela que a pesar de haber sido un discípulo destacado en una de
las universidades más importantes de Europa, la educación que allí recibió no evitó que
volviese a equivocarse y que sus dudas gozaran de buena salud. Siguió sin poder distinguir lo
verdadero de lo falso, sin saber juzgar sus propias acciones, ni qué hacer para tener una vida
recta21.
Un balance negativo el de Descartes: leyó, escuchó a sus maestros que eran grandes
lectores, y solo le quedaba un saber del pasado que no podía conectar con su presente y un
presente que no sabía manejar.
No obstante había en esto algo positivo. Se había dado cuenta que debía abandonar la
educación formal y tomar otro camino, el de los viajes.
IV. El mundo como educador fallido
Sustituir los libros y la universidad por los viajes, podría pensarse como una extravagancia
de Descartes; sin embargo él no lo veía así.
Primero, porque para Descartes viajar era más de lo mismo. Para él, leer era viajar.
Ya lo había dicho, leyendo viajaba al pasado. Lo nuevo con los viajes por el mundo era poder
estar en lugares diferentes y en un tiempo presente.
En segundo lugar, viajar educa. A título de ejemplo, no parece desacertado sostener que
puede saberse más de las costumbres de un pueblo yendo al pueblo que leyendo un libro sobre
él.
Y tercero, los viajes eran la prueba de fuego de la versión educativa más crudamente
empirista. Ahora se trataba de ver si de la experiencia directa con las cosas y con los hombres
podría extraerse el criterio de verdad que estaba buscando.
¿Y qué descubre Descartes con sus viajes? Que hay ventajas.
Viajando, la sensación de presente y vida es muy fuerte. Por si fuera poco, los viajes terminan
favoreciendo la destrucción de los prejuicios. Descartes cuenta que tuvo ocasión de ver que
hay hombres como él que viven sus costumbres bien distintas de la misma manera que él vive
las suyas y no por eso son menos inteligentes y sus costumbres ridículas22.
Pero también descubre que hay en ello desventajas y que las desventajas son mayores.
21
DM, Primera Parte, p. 12.
22
DM, Primera Parte, p. 12.
48
La tal educación educa des-educando. Quien viaja mucho, dirá Descartes, se vuelve
cosmopolita, y por lo tanto, un extranjero en su tierra23. Los viajes educan para vivir en
cualquier parte y en ninguna, y el viajero acaba des-educado para vivir con sus paisanos.
Lo peor de la educación viajera sin embargo no es esto, lo peor es que patrocina al
relativismo. Si valen lo mismo las costumbres propias y ajenas, lo verdadero y lo falso
desaparece, y no hay forma de hacer creíble cualquier afirmación que pretenda decir cómo es
que hay que actuar para llevar una vida recta24.
El saldo también es negativo, los viajes por el mundo tampoco dan la enseñanza a la que
aspira Descartes.
Era tiempo de volver a casa.
V. La educación como autoeducación
Y Descartes, echándole las culpas al invierno por impedirle reunirse con sus compañeros de
armas, termina encerrado él solo en su propia casa teniendo como única ocupación, pensar25.
V.a. El sujeto como centro
Esto, más allá de si le creemos o no a Descartes que solo era una cuestión de estación, no
tenía nada de inofensivo.
Había renunciado a la universidad, a sus maestros, a sus libros, al mundo, a las cosas del
mundo y a sus habitantes, con la excusa de que no le enseñaron lo que quería aprender. Y
Descartes tenía razón, no se lo enseñaron26.
23
DM, Primera Parte, p. 11.
24
DM, Primera Parte, p. 12.
25
DM, Segunda Parte, p. 13. En este contexto, el vocablo “pensar”, como lo dice Ortega y Gasset en “El tema de
nuestro tiempo”, IV, pp. 45-46, debe ser entendido como pensar lo verdadero, y que en modo alguno incluye la
posibilidad de un pensamiento fracasado, equivocado.
26
En este punto me parece de recibo que pueda plantearse la cuestión de cuán razonable es la demanda de
Descartes cuando le pide a la educación formal y a los viajes que cumplan con sus específicos deseos de
aprender.
49
Pero estaba en un lío. Seguía intacto su deseo de aprender y por decisión propia ya no
contaba con los apoyos educativos tradicionales. ¿Quién lo educaría entonces?
El único que le quedaba, él mismo.
Ahora el punto es éste: ¿puede ser uno un buen candidato para educarse?
La respuesta por sí, que es la de Descartes, le evita admitir que no podría educarse, pero a su
vez lo coloca en una posición incómoda.
Por un lado porque postula algo así como su autosuficiencia educativa. Por otro lado, porque
puestas las cosas así, maestro y discípulo coinciden, son el mismo.
Y todo esto iba en contra de la educación formal y la informal. No hay que olvidar que la
escuela exige que maestro y discípulo sean personas distintas y que la educación informal
necesita de otros y de un mundo que no se conoce, ya que lo que ella enseña es lo que yo no
sé porque nunca lo vi.
¿Y cómo sale de esto Descartes? Sale por el lado del método. Si lo empírico en cualquiera
de sus formas no puede generar conocimiento que esté fuera de toda duda, el sujeto debe
inventar una serie de reglas que le permitan decidir con certeza qué cosa es conocimiento y
qué cosa no lo es. En eso consiste el método.
Dicho en pocas palabras, si quiere aprender estará obligado a postular una educación primera
cuyo lema será aprender para aprender.
V.b. El programa autoeducativo de Descartes: aprender a aprender
Con tal propuesta, y habiendo desactivado a la educación formal y al mundo como
educadores, quedaba desactivada la imaginación y los órganos de los sentidos como
instrumentos de una tal autoeducación27; solo le quedaba a Descartes la inteligencia o razón.
Además de única, ésta parecía ser la mejor opción; en ella no jugaba lo exterior.
Sin embargo, a Descartes, que era un buen observador, no se le escapó que de hecho es muy
frecuente que la razón se extravíe. Era un gran contratiempo y por eso explica esto en el
comienzo mismo del DM.
Allí sostiene que la diversidad de opiniones de los hombres no tiene su origen en
racionalidades distintas. Y agrega, hay una sola razón pero es usada de modos diferentes y en
27
DM, Cuarta Parte, p. 24.
50
cosas diferentes28. Luego, en sentido estricto la razón no se equivoca. Hay que admitir
entonces que cuando hay un error se trata de una ineptitud individual en su manejo o en
aquello dónde quiere aplicársela; se trata de accidentes que no la rozan formalmente.
Y con esto viene al menos un par de problemas en donde lo que está en juego es cómo
educarse y qué lo habilita para considerarse educado.
Por eso el primero tiene que ver con cómo evitar ser ineptos en el manejo de la razón y
llevarla por el buen camino. El otro, con qué es lo que legitima un auténtico uso de la razón.
El primer punto es el del método según vimos, punto crucial en esto de aprender a aprender.
Y lo es por cuanto el método es concebido como una técnica que permite direccionar a la
razón, única para obtener un conocimiento cierto29.
La ventaja de pensar la propia educación en estos términos es evidente y Descartes es el
primero en reconocerlo: seguirlo sería fácil y el único problema es formar el hábito de
seguirlo30.
Sin embargo una cosa es estar convencido de la necesidad de un método para la razón, y otra
cosa es determinar cuál debe de ser ese método.
Descartes había aprendido de estudiante tres métodos: el lógico, el geométrico y el algebraico,
pero no podía aceptarlos tal como venían de la educación formal, a la que le había dado la
espalda, y tenía buenos motivos para ello. El lógico contenía junto a preceptos útiles,
preceptos superfluos. El geométrico y el algebraico se referían a cosas abstractas que no
tenían aplicación.
¿Y qué fue lo que hizo Descartes? Inventó otro método en el cual no faltara lo mejor de los
que ya había aprendido. En apretado resumen y en palabras de Felipe Giménez, este nuevo
método consta de las siguientes cuatro reglas:
1º Evidencia intelectual o certeza como criterio de verdad.
2º Análisis o disección de lo complejo y reducción a sus partes simples.
3º Síntesis según el orden de recomposición de lo analizado inverso al orden de
descomposición de lo complejo.
28
DM, Primera Parte, p. 9. Con este comentario Descartes parece adscribirle a la razón un carácter meramente
instrumental; la razón sería algo así como un martillo, que puede ser usado para clavar un clavo o para golpearle
la cabeza a alguien. No obstante de esto no tiene la culpa la razón y el texto es claro. Como sostiene Ortega y
Gasset en “El tema de nuestro tiempo”, III, p. 36, la razón es un absoluto en Descartes, y “Si no fuera por los
pecados de la voluntad, ya el primer hombre habría descubierto todas las verdades que le son asequibles”.
29
DM, Segunda Parte, p. 17.
30
DM, Segunda Parte, p. 17.
51
4º Regla mnemotécnica, enumeración de todas las partes del análisis y revisión sintética para
la intuición global del conjunto.31
Según puede notarse, tales reglas son de carácter técnico y no hacen más que expresar las
condiciones ideales de cómo aprender. En la primera Descartes nos dice que lo que se aprende
es lo verdadero y cuál es el criterio por el que se distingue lo verdadero. Con la segunda y la
tercera está indicando cómo es que va a hacer trabajar a la razón para que haya aprendizaje.
La razón se encargará de analizar y sintetizar. Y con la cuarta pretende que no haya omisión
alguna, como requisito para que lo verdadero sea efectivamente verdadero.
El segundo punto, aquel que tenía que ver con lo que habilita el considerarse educado, se
divide en tres: la postulación de Descartes como sujeto epistémico, la necesaria existencia de
Dios y los efectos de la aplicación del método.
Si se repasan las cuatro reglas del método podrá observarse que en todas Descartes se coloca
como el centro. Esto ya lo habíamos dicho, pero agreguemos ahora esto otro: la educación es
cosa del sujeto. Él es quien dice qué es verdadero, cómo se razona, qué no hay que olvidar, y
por lo tanto es autónomo en términos epistémicos.
¿Y cómo podría ser eso? Porque como asegura Descartes, “comprendí que yo era una
sustancia, cuya naturaleza o esencia era a su vez en pensamiento”32.
Pero quedaba algo pendiente, ¿quién legitima al sujeto epistémico? Éste podría decir todo lo
que quiere sobre su educación, pero bien podría no estar educado; de ahí que Descartes
recurra a Dios.
Tiene que demostrar la existencia divina porque ésta sería la garantía de que cuando el sujeto
epistémico dice qué es lo verdadero, cómo se razona y qué no hay que olvidar, y que en nada
de eso se equivoca. Si Dios existe y existe tal como lo concebimos, cosa que trata en la Cuarta
Parte, el sujeto epistémico, como sujeto dependiente de Dios, habla con verdad33.
Por otra parte además, Descartes no deja de señalar que el método es pedagógicamente
exitoso. A partir de él, según confesión de Descartes, “no solo resolví cuestiones que en otros
tiempos me parecieron complicadísimas, sino que hasta llegué a poder formar juicio de otras
desconocidas para mí”34. Su aplicación disipa las dificultades y acumula conocimiento35.
31
Cf. “Lecciones sobre René Descartes”.
32
DM. Cuarta Parte, p. 22.
33
Este es un punto muy discutido, incluso situándose en el lugar de Descartes. Su exigencia de un sujeto
epistémico, aunque solidaria con Dios, no implica su obligatoriedad.
34
DM, Segunda Parte, p. 17.
35
Cf. “El problema del conocimiento” de Ernst Cassirer, t. I, que abunda en ejemplos de esto.
52
En términos pedagógicos todo esto equivale a decir que la educación primera, la que
concierne al método, es condición necesaria de una educación segunda, la que versa sobre “la
realidad de las cosas”36, y que teniendo las dos, cualquiera puede considerarse educado y
legítimamente educado.
VI. Un problema pedagógico importante: ¿educación de elite o democrática?
Sentado esto, finalicemos el informe centrándonos en algo que dice Descartes sobre su
educación primera: “Mi propósito no es enseñar el método que cada uno debe adoptar para
conducir su razón; es más modesto; se reduce a explicar el procedimiento que he empleado
para dirigir la mía”37.
Con ello Descartes venía a decir que su educación primera no estaba pensada como proyecto
pedagógico para los demás.
Ahora, y más allá de la modestia que utilizó como excusa, ¿le era legítimo a Descartes
sostener tal cosa? En modo alguno, y hay un poderoso motivo en el mismo inicio de DM: “El
buen sentido es una de las cosas mejor repartidas en el mundo” 38. Y en el párrafo siguiente
agrega: “sentido común o razón, es igual por naturaleza en todos los hombres”.
Estaba reconociendo de esa manera que no hay diferencia alguna entre su razón y la del
resto de los hombres. Entonces, si el método fue bueno para Descartes ¿por qué no habría de
serlo para los demás? Porque después de todo, si todos cuentan con la misma razón, y
conducirla no pasa de memorizar y ejercitarse en aplicar apenas cuatro reglas, una técnica que
para dominarla solo necesita hacerse habitual, no se entiende por qué no podría
universalizársela en el marco de un proyecto educativo.
¿Y por qué lo sostuvo? Diría que en principio por su natural cautela. Aunque todos los
hombres sean racionales, nunca se tendría la seguridad de que todos pudieran aplicar el
método. Era lógicamente posible pensar así.
Pero hay otra cosa más, y que hay que señalarlo. No se trata solo de una cuestión lógica;
Descartes está convencido que el método, la educación primera, en modo alguno es para
todos. Él lo señala en forma explícita, espera que “sea útil a algunos” 39, y con ello viene a
36
DM, Segunda Parte, p. 17.
37
DM, Primera Parte, p. 10.
38
DM, Primera Parte, p. 9.
39
DM, Primera Parte, p. 10.
53
sostener que la educación, y en particular la educación primera, es cosa de una elite, que como
indica Goguel, está formada por autodidactas40.
Por esto mismo, la educación debiera enfocarse a educar a una aristocracia de y en la razón y
declarar como ilusorio cualquier proyecto educativo democrático.
VII. A modo de conclusión
Ya en el final solo nos quedan preguntas. La primera: ¿cuánto de esta concepción de la
educación seríamos hoy capaces de aceptar? Segunda: ¿puede crearse un proyecto pedagógico
universal con lo que lleguemos a aceptar? Y tercera: ¿valdría la pena?
BIBLIOGRAFÍA:
40
“Descartes y la pedagogía”, p. 1822.
54
CASSIRER, Ernst. 1953. “El problema del conocimiento”, tomo I, F.C.E., México-Buenos
Aires
DESCARTES, R. 1965. “Discurso del método” en “Obras escogidas”, Ed. Schapire, Buenos
Aires
GIMENEZ, Felipe. “Lecciones sobre René Descartes”, Cuaderno de Materiales,
www.filosofia.net/materiales/tem/descart.htm
GOGUEL DE LABROUSSE, Eusabeth. 1949. “Descartes y la pedagogía”
Actas del Primer Congreso Nacional de Filosofía, tomo 3, Mendoza
ORTEGA Y GASSET. 1976. “El tema de nuestro tiempo”, Revista de Occidente, Madrid
TRUJILLO GARCÍA, Sergio. 2008. “Pedagogía de la afectividad: La afectividad en la
educación que le apuesta a la formación integral, ir al núcleo del sujeto” en Tesis Psicológica,
Nº 3, Fundación Universitaria Los Libertadores, Colombia. Pp. 12-23
VÁSQUEZ, Miguel. 2008. “El método a priori y su relación con la experiencia: una lectura
del método cartesiano desde la propuesta de Desmond Clarke” incluido en “Apuntes
filosóficos”,
Universidad
Central
de
Venezuela,
pp.
109-128,
www.dialnet.uniroja.es/servlet/articulo?codigo=3132224
55
Hegel: El concepto de formación (Bildung) ante los retos y fines de la educación.
Andrés Felipe Hurtado Blandón
Instituto de Filosofía
Universidad de Antioquia
Medellín, Colombia
Quien no se ha pensado a sí mismo no es libre.
G. W. F. Hegel
La época que vio nacer a los reconocidos movimientos u orientaciones intelectuales
clásicos alemanes y con ellos (pero no necesariamente a causa de ellos)
a las
transformaciones políticas, sociales, culturales y económicas más importantes de la
historia de la Alemania moderna cuenta, también entre sus logros, según Fichte, el
haber perfeccionado la formación (Bildung) en todos sus pasos (Cf. Fichte, 1984, 146).
Independientemente de que resulte cierta o no esta afirmación, lo que sí es claro es que
hasta aquella época, y podría afirmarse incluso que hasta la nuestra, nunca el concepto
de formación y los procesos, experiencias y aspectos más importantes relacionados con
ella, habían logrado un grado de teorización y fundamentación filosófica tan amplios.
Se sabe que entre algunos de los más destacados pensadores alemanes de aquella época
en este asunto se cuenta a Goethe, Herder, Schiller, Wilhelm von Humboldt,
Schleiermacher, Friedrich Schlegel, Kant, Fichte y fundamentalmente a Hegel (Véase
Gadamer, 1993, 40). El tratamiento, sentido y papel que estos autores dieron a la
formación lo hicieron a la luz y sobre la base de sus más importantes teorías o sistemas
de pensamiento. De ahí la riqueza, rigurosidad y amplitud semántica del concepto.
Sobre el concepto alemán Bildung, cuya acuñación fue lograda parcial e
inicialmente por estos pensadores, se puede contar entre sus principales características e
interpretaciones, las siguientes:
 Una formación corporal, así como una evolución y desarrollo en crecimiento,
según un ideal o tipo.
 Unas tendencias culturales que están determinadas en una cultura.
 Un hombre ilustrado que se encuentra en evolución de sus conocimientos según
unas reglas.
 Un momento de completar la madurez individual y con ello adquirir mayor
visión de intereses.
56
 Un cambio en un saber o educación escolar que pudiera facilitar el camino a
una formación posterior.
 Una supervaloración de las formas sociales estimadas.
 Un cuidado de las buenas maneras, así como una propia especialización
(Ipland, 1988: 33).
Además de estos aspectos, solo en apariencia heterogéneos, vale anotar su concepción
filosófica más elaborada, que supone o implica aquellos: Bildung como proceso de
capacitación para la autodeterminación racional del individuo (Klafki, 1990) o como
proceso de desarrollo y ejercicio de una verdadera autonomía moral e intelectual
(Mündigkeit, mayoría de edad kantiana). Bildung como un proceso que, siguiendo a
Vierhaus (2002), no se concibe ni se da al margen de los conceptos y formas fundamentales
de la libertad (Freiheit), la cultura (Kultur) y el espíritu (Geist) de la época, sino que más
bien, se encuentra en una relación esencial con ellos, y en ellos obtiene su mayor
significación y desarrollo.
En pocas palabras, puede decirse que Bildung consiste en el conjunto de procesos
mediante los cuales el individuo (aunque valga anotar que el concepto también aplicó para
formación de la sociedad, el Estado, el espíritu y la humanidad en general) desarrolla
plenamente sus potencialidades internas (Humboldt) o llega ser lo que realmente es (Kant,
Hegel). Se trata, en los términos más amplios y conocidos, de un proceso dialéctico-integral
de ascensión del individuo desde la particularidad o inmediatez de su ser, saber y hacer hasta
aquella universalidad histórico-racional (ciencias, artes, instituciones, libertad, Estado de
derecho, etc.) en la cual puede llegar a realizarse y reconocerse en sociedad como lo que
esencialmente es, esto es, como un ser libre y racional.
Ahora bien, para el caso de Hegel, puede decirse que la matización que hace del
concepto sigue siendo además de rigurosa bastante amplia ―por lo que no se excluyen
muchas de las características anteriormente descritas―. Tal amplitud es debida, 1- a los
diversos enfoques desde los cuales trata el problema de la formación; 2- a la gran influencia
que tuvieron sobre Hegel los demás pensadores; 3- a su gran interés y amplia experiencia en
asuntos pedagógicos y docentes; 4- a la alta presencia que le otorga a la formación en la
totalidad de su obra, y con ello, 5- al muy importante papel que en ésta desempeña. Grosso
modo, esto quiere decir, que el concepto o tema de la Bildung en Hegel no debe ser tratada al
margen de las principales coordenadas de su sistema filosófico; y en sentido inverso, dichas
57
coordenadas tampoco deberían ser consideradas al margen de una significación y desarrollo
esencialmente formativos.
Con una intención más crítica y reflexiva que meramente expositiva, me detendré
entonces en señalar brevemente, de acuerdo con el título sugerido, los aspectos en los cuales
se considera que el planteamiento hegeliano tiene aún una gran vigencia para pensar nuestros
problemas sociales y educativos más determinantes. Para
ello dividiré el texto en dos
momentos. En el primero, esbozaré grosso modo los aspectos fundamentales de la formación
en Hegel; y en el segundo, los aspectos a partir de los cuales puede considerarse su
importancia y vigencia según el carácter dialéctico de la formación y el principio de la
mediación.
I.
En primer lugar, vale decir que Hegel parte de la consideración de que el hombre no es por
naturaleza lo que debe ser, y por ello es que debe formarse. Reconoce en él dos aspectos
esenciales: uno singular y otro universal; el primero refiere a los instintos, inclinaciones,
sentimientos y pasiones: a lo meramente natural e inmediato en el hombre; el segundo
aspecto, a su ser racional o a la capacidad de pensar, querer y actuar conforme a reglas y
principios. Su deber para consigo, y el de sus protectores frente a él, consiste en adecuar su
ser singular a su ser universal por vía de la autodeterminación o, dicho de otro modo, el que él
sea capaz de reconocerse integralmente, y hacerse reconocer y reconocer a otros como sujetos
autónomos (moral e intelectualmente) y de derechos al interior de y conforme a la estructura
racional de una sociedad o Estado. Para Hegel el hombre es además una voluntad libre, por la
cual entiende el modo y la posibilidad de un comportamiento teórico y práctico que se
desarrolla entre la tendencia a la infinitud y la gradual conciencia de la finitud.
La formación del individuo para Hegel tiene como fin último la libertad. Ésta es tanto
presupuesto como meta genuina de toda educación y formación. Presupuesto en tanto
consideración antropológica inicial: el hombre es esencialmente libre, una voluntad libre;
objetivo o meta en el sentido de que tal esencia es apenas un impulso o tendencia, algo
formal, abstracto que necesita ser desarrollado por vía de una acción consciente: mediante
procesos continuos experienciales de negación y superación (Aufhebung) de sí, en sus
diversas relaciones consigo mismo y con los otros. Tales procesos de negación y superación
58
de sí tienen un carácter tanto individual como social, a su vez que teórico y práctico. Es
individual en el sentido en que depende del arbitrio y disposición de cada individuo efectuar y
afrontar todas y cada una de las diversas experiencias que le permitirán alcanzar su libertad y
autonomía; es social, en el sentido en que tanto su ser, como su vida y su libertad solo
devienen reales al interior de una sociedad o comunidad, la cual interviene simultáneamente
sobre su pensar, querer y actuar mediante la disciplina, la instrucción, y su reconocimiento
jurídico y moral; es teórico, en cuanto incluye, por un lado, procesos de relación,
categorización, significación y juicio en su inmersión y relación con el mundo cultural, social
y humano; y por otro lado, una reflexión exhaustiva (filosófica) sobre la naturaleza y
necesidad de los procesos implicados; es un proceso práctico, también en dos sentidos, de una
parte, implica un proceso de limitación de sus propias acciones conforme a las normativas
regentes, y de otra parte, una participación política y social comprometida con las necesidades
de su comunidad, la cuales suponen o implican a su vez las suyas.
Así, el individuo
solo alcanza la libertad mediante una comprensión de y
consecuencia con la implicación y determinación mutua entre todos y cada uno de los
elementos implicados en dichos procesos experienciales y configurativos de sí; tal
comprensión no es en modo alguno espontánea, ni el ceñimiento o plegamiento a sus
principios y leyes un acto voluntario sin más. Por el contrario, exige sacrificios y esfuerzos
en todos y cada uno de tales aspectos. Visto por el lado del individuo en lo que se refiere a su
formación e integridad, implica procesos de determinación en lo moral, cognitivo, estético y
práctico (Klafki, 1990); y por el lado de lo social, procesos de determinación en lo familiar,
social, cultural, estatal e histórico.
Acerca de los principios que han de regir tales procesos individuales y sociales de
determinación podrían señalarse, entre otros, los siguientes:
1. Necesidad de una ruptura con lo inmediato y natural. Superación de todo
interés particular y punto de vista estático o dogmático. Primera condición de
lo espiritual.
2. Elevación a los principios y conocimientos más universales. Por ellos se
entiende los conocimientos científicos y los elementos culturales, políticos y
económicos que, para el momento, dan muestra de una gran racionalidad (no
instrumental) en comparación con otros.
59
3. Necesaria mediación con la diferencia. A partir de ello se devela la relación
intrínseca entre las partes opuestas y se da lugar a una relación de
reconocimiento recíproco y superación de las unilateralidades o falencias de
sus estados actuales.
4. Conciencia de la negatividad y absolutez inherente a las cosas, a partir de lo
cual se comprende su naturaleza y marco de relaciones como en un constante
devenir. Dicha conciencia aplica tanto para los conocimientos científicos como
para los diversos sistemas y principios normativos sociales.
5. Relación intrínseca entre el todo y las partes. Sólo por la comprensión de su
necesidad mutua se puede superar cualquier unilateralidad impositiva y
anulativa bajo la forma, verbi gratia, de un individualismo exacerbado o de un
totalitarismo criminal. Aplica también para este caso la ruptura con lo
inmediato, la mediación con la diferencia y el reconocimiento (Anerkennung)
recíproco entre las partes de la relación.
Dichos principios filosóficos, que habrían de lograr la libertad concreta por medio de la
formación en los diferentes aspectos señalados, constituyen la pauta y la ley bajo las cuales
puede explicitarse y hacerse efectiva la vigencia de una propuesta formativa como la
hegeliana. Veremos.
II.
En cortas palabras podría decirse que, por lo que respecta a su naturaleza, en tanto proceso
constante, integral y necesario de negación y superación de sí, la formación es
fundamentalmente dialéctica ―en esto radica su vigencia―. Ella exige, por un lado, superar
el ser meramente natural o animal del individuo mediante procesos y formas de
disciplinamiento, instrucción y socialización propios de su época y sociedad. Estos le
permitirán al individuo ampliar su horizonte de comprensión de sí mismo y del mundo y
aprender a comportarse, en consecuencia, según principios, puntos de vista, necesidades e
intereses de carácter objetivo. La objetividad es aquello que corresponde con la verdad y la
racionalidad de una sociedad y época: ciencias, leyes, instituciones, costumbres. Por su parte,
el individuo, en tanto voluntad libre, está en la capacidad y el derecho social y humano (el
60
cual debe garantizársele) de apropiarse de ésta y actuar críticamente conforme a ella, esto es,
en palabras de Hegel, hacerse universal: El individuo debe reconocerse como destinatario y a
su vez inspector y agente de la racionalidad de dicho marco de objetividad. Ello implica, para
efectos de reconocimiento (Anerkennung) y verdad, pensar y actuar conforme a los principios
de la mediación con la diferencia y la unidad intrínseca y necesaria entre el todo y sus partes.
Esto quiere decir, que entre ciudadanos y Estado, o entre individuos y sociedad, hay una
determinación y necesidad mutua que debe desarrollarse integralmente
con vistas a su
unificación y no a la imposición arbitraria de uno sobre otro; sobre ellos no hay más autoridad
que la de la razón (Vernunft), aun cuando se sea consciente de la historicidad o finitud
humana de la misma; para Hegel, la razón también es dialéctica y negativa. La dialéctica
constituye por ello, en tanto negatividad racional ―y lo racional es real―, la ley inmanente
del pensar y el principio de todo progreso científico, social y humano.
La dialéctica, cuyo principio motor es la contradicción, cuyo desarrollo implica
necesariamente ruptura con todo estado y relación abstracta o inesencial (unilateral,
dogmática), cuyo alcance trasciende a la existencia misma del individuo, y cuyo plegamiento
y consecuencia con sus leyes y fines intrínsecos le implican necesariamente a éste
experiencias de desgarramiento o negación de sí, constituye por ende el fundamento de toda
formación orientada a la libertad y a la autonomía moral e intelectual del individuo.
La formación en Hegel exige ante todo la experiencia de la mediación; ésta, según la
estructura lógica de su filosofía, implica un continuo salir de sí y retornar a sí más
determinado o enriquecido en comparación con su estado anterior. La mediación tiene dos
sentidos: mediación consigo y con lo otro; y un solo fin: la reconciliación. A su vez exige una
concientización imprescindible: la negatividad intrínseca a las cosas o el hecho de que todo
está en constante devenir. Por ello, la mediación, como quehacer dialéctico, no puede ser en
principio más que negativa, y para el individuo también dolorosa o incómoda: implica una
crítica constante a sí mismo sin contemplaciones, una limitación de nuestros intereses, una
disposición permanente a la crítica de sí mediante el diálogo, una revisión permanente sobre
los principios y fines de nuestras acciones, y una restructuración frecuente de nuestra
identidad conforme a lo que, según el marco amplio de facultades, derechos y libertades de sí
mismo y de los demás, constituye lo que deberíamos ser o lo que podemos llegar a ser.
61
Tanto en un sentido teórico como práctico, la mediación implica un reconocimiento de
la diferencia: ni el saber actual ni los principios de las acciones predominantes son algo
acabado; en términos adornianos, siempre hay algo que escapa a todo proceso de pensamiento
o identificación que debe ser reivindicado en su totalidad y según su derecho. La negatividad
de las cosas radica precisamente en su incompletud al concebirlas. Sólo si lo otro o la
diferencia es reconocido como esencial, lo uno puede reclamar su derecho a tal
reconocimiento: también algo esencial. Para Hegel toda otra acción es abstracta y en tal
sentido limitada: no acorde con el concepto o verdad de las cosas.
En comparación con el presente, es decir, grosso modo, en relación con la extraña
coexistencia de dos extremos lógico-ontológicos instrumentales: de una parte, un
individualismo exacerbado producto de la instauración del consumo desmedido; y de otra, un
sistema ideológico (político, económico y cultural) totalitario que opera bajo el marchamo de
la reificación social y humana que anula toda forma de individualidad auténtica, es que la
propuesta hegeliana de la formación, en el sentido dialéctico y bajo los principios arriba
expuestos, no sólo resulta teóricamente válida sino ante todo prácticamente necesaria para
poder hacer frente a las dificultades que impiden alcanzar lo que, como producto de la
modernidad y específicamente bajo el concepto de Bildung expuesto, sería el fin de toda
educación y formación humana. De manera particular, dichos fines podrían mostrarse también
a la luz de los de la Ley general de educación colombiana (115/1994), en la cual se
encuentran consignados, entre otros, los siguientes:
1.El pleno desarrollo de la personalidad sin más limitaciones que las que le imponen
los derechos de los demás y el orden jurídico , dentro de un proceso de formación
integral, física, psíquica, intelectual, moral, espiritual, social, afectiva, ética, cívica y
demás valores humanos.
2. La formación en el respeto a la vida y a los demás derechos humanos, a la paz, a
los principios democráticos, de convivencia, pluralismo, justicia, solidaridad y
equidad, así como en el ejercicio de la tolerancia y de la libertad.
3. La formación para facilitar la participación de todos en las decisiones que los
afectan en la vida económica, política, administrativa y cultural de la Nación.
Sin entrar en las descripciones que como la Escuela de Frankfurt y las corrientes
pedagógicas revolucionarias latinoamericanas de las décadas anteriores han descrito
62
detalladamente acerca de las consecuencias sociales del capitalismo, las cuales padecemos
hoy en día, resulta claro que al individualismo exacerbado y al totalitarismo de los gobiernos
actuales promovido por dicho modelo económico, de acuerdo con la lógica del consumo, el
criterio de la posesión, el remolino de la moda y el principio del control de la información y
los movimientos de los individuos, es claro que ante ello, debe oponérsele a los individuos en
formación una educación que promueva en ellos una actitud crítica constante frente al mundo
y frente a sí, un diálogo abierto, el respeto por la diferencia o el reconocimiento, y la
comprensión de la necesidad de construir conjuntamente el reino de lo ético o la Eticidad: “la
idea de la libertad como bien viviente que tiene en la autoconciencia su saber, su querer y,
por medio de su actuar, su realidad […]” (Hegel, 1975, 195; énfasis del autor).
Esta concepción de formación, que es dialéctica, entrará entonces a cumplir en el
individuo y la sociedad también una función dialéctica. Implicará procesos de ruptura con las
identificaciones ideológicas actuales y un esfuerzo por la reivindicación de la diferencia o lo
no-idéntico. Implicará, bajo el principio de la mediación, la conciencia de la negatividad, y de
las potencias internas y derechos sociales e inalienables del hombre, procesos de
transformación en todos los niveles: a nivel micro y macro, individual y social, político y
económico, moral y cultural, y fundamentalmente a nivel educativo. Su finalidad, que es la
libertad, en su sentido negativo tomará la forma de la emancipación; posteriormente,
conforme al sentido también positivo o especulativo de la dialéctica hegeliana, la forma de la
acción ética, esto es, de la construcción de la libertad como un ideal viviente, real y social y
no meramente como un bien interno e individual.
Más allá de Hegel, pero de acuerdo con los mismos principios expuestos de su
filosofía, los procesos de construcción de lo ético, como proceso individual y social, tendrán
que dar prioridad a las formas de participación e inclusión política. En ello se perfila una
finalidad y potencial esencialmente democrático. Tanto la formación integral de los
individuos (Bildung) como la de una democracia que garanticen mancomunadamente la
realización efectiva de la libertad civil y humana, constituyen los fines más genuinos del
presente (no sólo latinoamericano) a los que debemos apuntar y, en consecuencia, la
necesidad acuciante de asumir el compromiso serio de cumplir nuestros propios retos: la
superación programática y progresiva de nuestras condiciones adversas, el reino
contradictorio del individualismo y el totalitarismo exacerbados.
63
BIBLIOGRAFÍA
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Varela, Buenos Aires, Orbis, 1984.
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México: Fondo de Cultura Económica, 1993,
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Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1998.
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 VIEWEG, Klaus. “Wer sich nicht gedacht hat, ist nicht frei. Bildung und Freiheit in
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Klaus Vieweg. Bildung zur Freiheit, Zeitdiagnose und Theorie im Anschluss an Hegel.
Wüzburg: Kónigshause & Neumann, 2010, pág. 9-21.
64
La libertad de conciencia en la reforma escolar durante el Siglo XIX en Francia
Louise Ferté,
Doctorada, Universidad de Saint-Etienne (Francia)
Resumen extendido
Mi trabajo, entre filosofía y ciencias políticas, investiga históricamente sobre los escritos de
los pensadores del siglo XIX, para entender sus concepciones de laicidad, y la importancia
que representa para ellos la libertad de conciencia en el proceso de laicización y de
secularización. Los revolucionarios franceses no logran hacer coexistir la libertad religiosa y
la existencia de una religión civil como en los Estados Unidos, porque en Francia, la religión
civil sólo hubiera podido ser la religión católica dominante, que entra en contradicción con la
libertad religiosa. Entonces, inventan la “laicidad” y afirman en el artículo 10 de la
Declaración de los derechos humanos y del ciudadano del 1789 que “Ninguna persona podrá
ser molestada por sus opiniones, incluso religiosas, siempre que su manifestación no perturbe
el orden público establecido por la ley” – lo que corresponde a una afirmación moderada de la
libertad de conciencia. En 1882, al principio de la Tercera República francesa, la laicidad se
vuelve un principio de la escuela republicana, gracias a las leyes de Jules Ferry. Después de
esta victoria en el campo escolar, la laicidad se vuelve un principio de la República en 1905,
con la ley francesa de Separación de la Iglesia y del Estado, que proclama como principio
institucional que “La República asegura la libertad de conciencia” – esa cronología demuestra
la importancia de la reforma escolar para las reformas generales de la sociedad.
65
En efecto, la escuela parece un medio para establecer la laicidad en toda la sociedad. La
institución escolar representa un reto para la futura sociedad, ya que forma los futuros
ciudadanos. Los principios vinculados por la escuela tienen influencia sobre los alumnos y
sobre sus concepciones de la sociedad. Mi estudio se encarga pues de las reformas escolares a
lo largo del siglo XIX, que repiten los principios de la Revolución francesa y que anuncian la
ley de Jules Ferry. Me interesa sobre todo como se usa la expresión de “libertad de
conciencia” por los reformistas escolares – especialmente Hippolyte Carnot, Edgar Quinet,
Victor Duruy, Jules Simon, Charles Renouvier, Jules Ferry y Ferdinand Buisson: esos son
casi todos filósofos e/o teólogos que tienen a veces un cargo político en uno de los numerosos
regímenes del siglo XIX (en el gobierno o en la oposición en la asamblea nacional). Todos
esos pensadores están convencidos que la escuela es una manera de establecer los principios
de la Revolución, incluso la laicidad.
¿Porque elijo el prisma de la “libertad de conciencia”? Ese principio que funda la laicidad está
muy mal definido en Francia, aunque esta presente a lo largo de los debates sobre la laicidad
entre la Iglesia y el Estado a lo largo del siglo XIX. Este principio permite además acercar esa
reflexión a partir de una problemática a la vez política, religiosa y pedagógica. Ese resumen
extendido me permite abordar esas tres caras de mi problemática a partir de la presentación de
tres reflexiones, no exhaustivas.
La libertad de conciencia, de la Reforma protestante a la reforma escolar
Considero la libertad de conciencia como un concepto polisémico, y esa manera de definirla
así pone de relieve mi problemática de trabajo.
Históricamente, la libertad de conciencia es un principio creado durante la Reforma
protestante, durante el siglo XVI. Contra el poder autoritario de la Iglesia romana sobre los
cristianos, Luther rompe con el poder del Papa y crea otra religión cristiana: el protestantismo.
Puesto que la conciencia de los individuos es un lugar sagrado que abriga la relación entre el
hombre y Dios, esa religión protestante pide que nadie intervenga sobre ella. Ninguna
intervención exterior debe forzar esa relación: ni el sacerdote – ni el profesor, como lo dirán
los reformistas del siglo XIX. Esa libertad de conciencia estaba concebida de manera vasta
por algunos teólogos del siglo XVII: para Bayle, los derechos de la conciencia incluyen la
ausencia de creencias religiosas, la tolerancia debe incluir a los ateos; y la intervención sobre
66
la moral y la conciencia de los seres humanos no sirve porque permite solamente un cambio
superficial, solo Dios puede intervenir realmente en lo de la conciencia.
No sólo es un principio que trata de religión, pero ya en el siglo XVI, la libertad de conciencia
es un principio que debe permitir la paz social y civil dentro del estado: la tolerancia que debe
resultar de la aplicación de este principio es primordial para evitar las guerras o la separación
de la nación en diferentes castas religiosas. La libertad de conciencia es un principio cuya
esencia se encuentre en la confluencia de la religión y de la política.
Este principio de libertad de conciencia esta reintroducido por la Revolución francesa como
un principio de laicidad de la República, y del fin de la hegemonía de la Iglesia romana en
Francia. Este principio se vuelve un principio entre lo católico y lo repúblico: es una libertad
pública que la nueva República quiere imponer, contra el poder de la Iglesia católica. La
tolerancia es el único medio para asegurar la aceptación en la sociedad de cada religión, y
abandonar los principios sociales que pertenecen a la Iglesia católica: esos principios no están
en conformidad con los nuevos ideales de libertad de la República, sino con los principios
autoritarios del antiguo régimen. Declarar la libertad de conciencia permite entrar en un
régimen de libertades y dejar el antiguo sistema.
La libertad de conciencia esta aplicada con el principio de laicidad dentro de las escuelas;
aparece en las reformas escolares durante el siglo XIX. En la misma época aparece también
en Francia teorías pedagógicas, inspiradas de Pestalozzi o de Fröbel, que tienen en cuenta la
noción de “conciencia” del alumno. Es decir, me parece que en el contexto de secularización
de la sociedad francesa y de los discursos políticos sobre la laicización de la escuela, ese
principio de “libertad de conciencia” se seculariza también, para volverse, en el contexto
pedagógico, el principio según lo cual se debe respetar la conciencia de los alumnos. Muchos
métodos pedagógicos fundidos en la intuición y en los sentimientos del niño se desarrollan
durante esa época. Ferdinand Buisson, a partir de 1875, preconiza el método intuitivo por
ejemplo, que fue creado por Comenius durante el siglo XVII y desarrollado por Rousseau en
Emile, entre otros. Buisson se refiere particularmente a Pestalozzi, cuyo postulado es: “la
intuición es la fuente de todos conocimientos nuestros”. Entonces se debe encontrar maneras
para ejercitar nuestras facultades, no para cultivarlas artificialmente, pero para facilitar su
desarrollo espontaneo, normal y natural. Es una “pedagogía del descubierto” que se apoye
sobre la naturaleza del infante.
67
Mi primera reflexión consiste entonces en la definición problematizada de la “libertad de
conciencia” en esos tres campos vinculados: religioso, político y pedagógico.
La moral laica : entre libertad de conciencia y valores republicanos
Se debe distinguir la libertad de conciencia de la libertad de religión o de los cultos. Como lo
dijimos justo antes, la libertad de conciencia puede aplicarse a las personas que no creen en
Dios, o que creen en una religión que no esta reconocida por el estado – al contrario, la
libertad de los cultos es una libertad de algunos cultos reconocidos por el estado. La libertad
de conciencia es universal, se dirige a todos. Por eso, la aplicación de este principio dentro de
la institución escolar impide que la escuela quede en las manos de las religiones positivas, que
se dirigen solamente a una parte del pueblo.
En Francia, la Iglesia solía encargarse del campo educativo, y particularmente escolar; pero
ese cargo fue cuestionado a partir de la Revolución francesa. Sólo el estado tiene el poder, los
medios materiales y la pretensión a la universalidad que le permiten remplazar la Iglesia en el
campo educativo, respetando siempre la libertad de conciencia y los principios de la
República en materia religiosa. Pero esa operación de substitución de la Iglesia por el estado
en el campo escolar no fue fácil. Si las escuelas se vuelven públicas al principio del siglo XIX
con profesores laicos, no significa que las escuelas se vuelvan laicas o que respeten la libertad
de conciencia.
En primer lugar, la libertad de la enseñanza se debate a lo largo de las reformas escolares del
siglo XIX. Permite la existencia de escuelas privadas religiosas en las cuales la libertad de
conciencia no es respetada. Se opone entonces la libertad de existir de las religiones positivas,
particularmente de la Iglesia católica, y la libertad de conciencia y de cultos.
En segundo lugar, se plantea la cuestión de la enseñanza de la moral dentro de la escuela
pública. La Iglesia se declara ser la única instancia capaz de intervenir en el campo moral y
hasta la Tercera República, ninguna reforma se atreve a proponer una enseñanza laica de la
moral: el sacerdote de cada religión positiva enseña su propia moral dentro de la escuela, y se
supone que cada alumno sigue una enseñanza con arreglo a su religión – debía elegir una
religión reconocida por el Estado, o sea el catolicismo, el protestantismo y el judaísmo. Ese
funcionamiento no satisface el principio republicano de libertad de conciencia. Entonces, en
la ley “Ferry” de laicización de la escuela en marzo de 1882 se propone una enseñanza de
68
“moral laica”, que impide la religión de entrar en la institución escolar. La religión se puede
enseñar solamente fuera de la escuela pública. La moral laica se substituye por la moral
religiosa, y principalmente católica, con el fin de disminuir el poder de la Iglesia católica. La
enseñanza de la moral laica se inscribe en la voluntad de apartar a la Iglesia toda autoridad
temporal – sólo pueda intervenir como autoridad spiritual, en el campo privado.
Pero esa moral laica no sólo se debe entender en un sentido negativo, como una manera de
impedir la entrada de la religión en la escuela pública. También es un objetivo o un ideal
político que representa la voluntad de establecer la República y los principios proclamados
durante la Revolución francesa. La moral laica es un medio para establecer la libertad, gracias
a la enseñanza de los principios morales de la República. La escuela es la institución que
forma los futuros ciudadanos, y es a través de ella que se perenniza el régimen político y sus
valores. La moral laica permite la constitución de un consenso republicano, en un contexto de
miedo de una vuelta de la autoridad. Pues, la enseñanza de moral laica debe promover la
razón contra los dogmas y desarrollar el espíritu crítico de los niños, dado que la critica es un
valor imprescindible para el régimen democrático: según esa moral, los preceptos morales
pueden estar renovados con arreglo a las circunstancias – no son fijos e inmutables.
La institucionalización de la enseñanza de la moral laica se vuelve la garantía del respeto del
principio de libertad de conciencia – pues que parece difícil, incluso imposible,
institucionalizar un principio. La “moral laica” es una problemática fundamental de mi
trabajo, porque se refiere a la dificultad del pasaje de una educación religiosa a una educación
republicana, en un contexto de lucha entre el estado y la religión con el fin de imponer sus
principios a lo largo del siglo XIX. La moral laica creada por los reformistas laicos presenta
entonces una paradoja: ¿como enseñar una moral laica, entendida a la vez como el respeto de
principios fundamentales para la República, y como una libertad de conciencia cuyo respeto
impone respetar las conciencias diversas de cada uno y sus particularidades? Es quizás posible
superar esa paradoja si consideramos que la moral laica no se refiera a la República, sino a
una religión laica y universal.
Laicidad y religión nueva
Esa tercera reflexión se interesa al aspecto religioso de la “libertad de conciencia” y a las
concepciones religiosas de las reformistas a través del estudio de las reformas: ¿Corresponde
69
la laicidad inscrita en la reforma escolar a una voluntad de borrar toda noción religiosa?
Parece que no. En efecto, en 1882, con la ley de la laicidad de la escuela se establece una
“instrucción moral y cívica”, que aparece en los programas como una clase de instrucción
cívica por un lado, y como una enseñanza de moral laica por otro lado. Esa moral laica debe,
según el programa, enseñar los obligaciones hacia si mismo, hacia los demás y por fin, hacia
Dios. Entonces, Dios es una figura de la enseñanza laica. Me parece que no se debe sólo
entender como una concesión hacia la Iglesia católica y los católicos que están contra la
laicización de la escuela y más generalmente de la sociedad, sino que tradicionalmente, los
defensores de la laicidad en Francia son anticlericales, pero no antireligiosos. La mayoría de
las reformistas escolares a lo largo del siglo XIX se oponen al poder de la Iglesia dentro de la
escuela pública, pero no se oponen a la presencia de Dios y al respeto de las diferentes
creencias religiosas: creen en la existencia de Dios, y según ellos, el respeto de los escritos
sagrados es imprescindible para constituir la moral civil de una sociedad pacifica y tolerante.
En el ministerio de la instrucción pública de Jules Ferry, al principio de la Tercera Republica,
en la época de las reformas de la escuela primaria – sobretodo la afirmación de los tres
principios fundamentales: la obligación, la gratuidad y la laicidad –, se encuentran en los
puestos claves protestantes liberales: Ferdinand Buisson, director de la enseñanza primaria
entre 1876 y 1896, que participa activamente en la elaboración de las leyes y de los
programas; Félix Pécaut y Jules Steeg. La acción de esos tres protestantes, que conocen
perfectamente los Escritos sagrados y la teología católica y protestante, es determinante para
el proceso de laicización de la escuela francesa. La aplicación de la laicidad esta vinculada
con una concepción protestante de la religión.
¿Cuales son las fuentes de esa concepción de la laicidad? A partir de la Revolución francesa,
se critica la hegemonía de la Iglesia católica, y se generaliza la critica protestante según la
cual la Iglesia romana se vuelve una religión autoritaria que ya no respeta más a los principios
del primer cristianismo: ella se preocuparía sobre todo de asuntos políticos y de su poder
sobre los regímenes europeos, sin actuar para los pobres y las libertades, como lo pide la
Biblia según la lectura liberal. Saint-Simon por ejemplo, propone un Nuevo Cristianismo en
1825: esa obra guía la escuela de Saint-Simon, a la cual pertenecían algunos reformistas
escolares estudiados en ese trabajo. Según ese libro, la sociedad necesita reorganizarse
mediante una nueva escala de valores, cuyo principal valor es hacer “el mayor bien para el
70
mayor numero posible”: ese valor es el del primer cristianismo, que olvidaron según SaintSimon la Iglesia católica como el protestantismo.
Así, durante el siglo XIX, la reflexión religiosa está muy presente en los debates, y la laicidad
parece una condición previa – el fin de la hegemonía de la Iglesia católica en la sociedad
francesa y en el funcionamiento de las instituciones –, antes de la aplicación de una nueva
religión que esta fundada en los principios del primer cristianismo. Edgar Quinet es el mentor
de Ferdinand Buisson y es el filosofo republicano que escribe más sobre el vínculo entre la
religión, la escuela y la Republica, analizando históricamente y filósofamente la laicidad y el
proceso revolucionario en Francia desde la Revolución francesa. Según él, “la religión es la
sustancia de los pueblos”, y la organización política pues no puede ignorar esa sustancia
religiosa. Entonces, por una parte, cada revolución política debe estar acompañada por una
revolución religiosa para que el cambio se haga en las almas y que no sea solamente una
ilusión sin cambio de mentalidad; por otra parte, esa revolución religiosa remite al
advenimiento de una nueva fe que se funda sobre los principios liberales de la Republica – o
más bien, la Republica se funda sobre los principios de la nueva religión. El respeto del
principio de libertad de conciencia se acompaña entonces según Quinet en la creación de una
nueva religión, una religión laica que apoya el cambio político y que permite el advenimiento
de los principios repúblicos o democráticos. Dios, así que sus acciones y parábolas relatadas
por la Biblia, debería volverse el fondo legitimado de cada régimen político.
Gracias a ese eje de reflexión, me intereso el vínculo entre la laicidad, la libertad de
conciencia y la voluntad de regresar a ese primer cristianismo, o más bien de crear otra
religión respetuosa de los valores republicanos. En primer lugar, trato de mostrar la
importancia de esa religión nueva para unos reformistas, y como esa perspectiva llevo a una
interpretación de la laicidad completamente diferente de la que resulta de la perspectiva de la
laicidad como borrador de todas referencias religiosas. En segundo lugar, se plantea las
cuestiones siguientes: ¿como concebir esa religión universal, a la vez laica y civil? Y ¿como
pensar la libertad de conciencia dentro de una religión, mientras que la libertad de conciencia
parece un principio exterior a las religiones?
71
Educar para una estética de la existencia
Prof. Marina Camejo
Historia y Filosofía de la Educación
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, UdelaR
República Oriental del Uruguay
[email protected]
Resumen:
La presente ponencia tiene como objetivo principal mostrar la relación desde la
perspectiva de Foucault entre la epimeleia heautou (cuidado de sí) y la estética de la
existencia. Entendemos que es de vital importancia mostrar la conexión entre estos conceptos
en tanto ambos aluden a cómo el sujeto se constituye en cuanto tal. Foucault retorna a y
retoma el estudio de la cultura grecorromana para dar cuenta de cómo la noción de estética de
la existencia supone modos de sujeción, en otras palabras supone formas en las que el sujeto
se encuentra vinculado a un conjunto de reglas y de valores (ética). A través de los conceptos
72
de epimeleia heautou y estética de la existencia mostraremos las formas en que se concebía la
educación del sujeto en la antigüedad desde una lectura foucaultiana.
Este modo de sujeción se caracteriza por el ideal de tener una vida bella, dejando la
memoria de una existencia bella. Desde esta perspectiva, la vida en tanto bíos, es tomada
como el material de una obra de arte. Si la vida ha de ser vivida y ha de ser conformada como
una obra de arte entonces la clave para ello radica en el cuidado de sí.
Este cuidado de sí supone la capacidad desarrollada por cada individuo de gobernarse
a sí mismo por sí mismo en su articulación con las relaciones con los otros. El cuidado de sí
supone una pedagogía, un conjunto de consejos de conducta, un conjunto de ejercicios
espirituales, la prescripción de modelos de vida, etc.
Aprender a cuidar de sí teniendo como horizonte la vida bella implica por parte del
sujeto aceptar ciertas maneras de comportarse y determinados valores porque entiende, decide
y quiere realizar en su vida la belleza que dichas formas de comportarse y dichos valores
proponen.
Pretendemos concluir que educar para una estética de la existencia, educar para una
vida como obra de arte no puede estar desvinculada de una ética, no entendida como conjunto
de preceptos o codificación de los actos sino como una relación del sujeto consigo mismo,
relación que se da a través del cuidado de sí.
Palabras clave: cuidado de sí, parrhesía, estética de la existencia, ética, pedagogía.
Introducción:
Cómo educar y para qué educar son cuestiones centrales para todo educador o todo
profesional de la educación, de ahí que consideremos pertinente preguntarnos si es posible
educar para una estética de la existencia. Para contestar a dicha pregunta partiremos de la
lectura realizada por Michel Foucault respecto al papel que toma el cuidado de sí como
instrumento para educar.
Foucault en “La hermenéutica del sujeto” plantea que el concepto de epimeleia
heautou o cura sui es el principio filosófico que predomina en el modo de pensamiento griego,
helenístico y romano. Tal principio resulta para el autor central en la historia misma de la
subjetividad, o dicho de otra forma en la historia de las prácticas de la subjetividad.41
41
Foucault Michel, “Hermenéutica del sujeto”, Altamira, Argentina, 1996,pág. 37
73
Entender como el sujeto se concebía, se transformaba y se constituía como tal es posible si la
epimeleia heautou (cuidado de sí) se torna un concepto central, pero además la epimeleia
como principio filosófico supone a nuestro entender implicaciones éticas en tanto conlleva
formas de actuar.
La epimeleia heautou o cuidado de sí en primer lugar es una actitud que involucra la
relación con uno mismo, con los otros y con el mundo. En segundo lugar la epimeleia heautou
comporta una forma de mirarse a sí mismo, a través de ella se abandona la mirada depositada
en el mundo y la misma se concentra en el propio sujeto, de manera tal que esa mirada ejerce
una vigilancia respecto a lo uno piensa y sobre lo que acontece en el mundo. En tercer lugar
implica una cierta forma de actuar que supone ejercer sobre uno mismo ciertas prácticas que
llevan a la transformación, a la modificación, a la purificación de uno mismo.42
En ese retornar a y retomar de la cultura grecorromana Foucault se concentra en la
figura de Sócrates, ya que resulta ser quien encarna de mejor manera la inquietud de sí que
lleva a un conocimiento de sí que redunda en un cuidado de sí. Muchas son las lecturas que se
han realizado de la figura de Sócrates entre las que podemos mencionar la de Nietzsche,
Kierkegaard, o Rancière. Frente a dichas lecturas interesa mostrar la que el último Foucault
realiza de Sócrates, lectura que se apoya en las nociones de cuidado de sí e igualdad. Sócrates
es rescatado por Foucault como el hombre de la espiritualidad que funda la filosofía, así
Sócrates atestigua a través de su vida la conexión entre filosofía y espiritualidad, apoyándose
sobre la noción de parrhesía. La noción de parrhesía (decir veraz) en relación al cuidado de sí
es inaugurada por Foucault en “El gobierno de sí y de los otros” obra que recoge las clases
dictadas en 1983, pero continuada en “El coraje de la verdad” que recoge el curso dictado
entre febrero y marzo de 1984. De todas maneras es importante resaltar que en “La
hermenéutica del sujeto” Foucault ya se encontraba interesado por las relaciones entre sujeto
y verdad a partir de la noción de cuidado de sí mismo. Foucault lleva a cabo un rescate de
Sócrates como verdadero parrhesiasta a través de la Apología, del Fedón y del Laques. En
esta oportunidad, en pos de mostrar como el cuidado de sí conduce al desarrollo de una
estética de la existencia nos centraremos en el diálogo Laques.
De qué hablamos cuando hablamos de parrhesía
42
Idem. pág. 36.
74
La noción de parrhesía (el decir veraz, el decir franco) es para Foucault una noción
ante todo y fundamentalmente política que se desplegaba y problematizaba como tal en
democracia, pero que posee derivaciones en la esfera ética y en la constitución del sujeto
moral. Al comprender que la parrhesía tiene una raíz política además de una derivación moral,
entonces es posible plantear, tematizar las relaciones entre sujeto y verdad desde el punto de
vista de la práctica de lo que el autor entiende como gobierno de sí y de los otros.
La parrhesía es la actividad consistente en decirlo todo, de allí que encontremos dos
valores asociados a la misma. El primero de ellos peyorativo, consistente en decirlo todo, en
decir cualquier cosa, decir todo tal cual se presenta a mi mente y que sirva a mis propósitos.
Desde esta perspectiva el parrhesiasta es percibido como un charlatán que no puede ajustarse
a ningún principio de racionalidad ni de verdad. La segunda valoración es positiva y consiste
en decir la verdad sin reservas, sin disimulación sin ningún ornamento teórico que enmascare
el discurso. El decirlo todo es decir la verdad sin ocultar ninguno de sus aspectos.
Para que la parrhesía pueda constituirse como tal es necesario que pueda decirse todo
y que pueda decirse todo con verdad, pero esto es insuficiente si no se dan ciertas condiciones
complementarias. No se trata solo de que quien ejerce la parrhesía diga la verdad sino que la
diga en cuanto es lo que piensa. Junto a esto quien dice la verdad debe correr un riesgo, riesgo
que pone en conflicto la relación misma que él mantiene con su interlocutor. Llevar a cabo la
acción parrhesiasta esconde el riesgo de la violencia pues el decir la verdad puede suponer
irritar, encolerizar, ofender o suscitar en el otro conductas violentas. A consecuencia de esto
ser parrhesiasta implica cierta forma de coraje, ya que el comprometerse en decir la verdad y
la verdad tal cual se piensa supone el riesgo de poner fin a la relación con el otro. Así
podemos ser espectadores del coraje implicado en la verdad, pero también de la verdad del
coraje.
Ser parrhesiasta supone asumir un riesgo, ser capaz de decir la verdad implica que el
sujeto debe poseer coraje para asumir las consecuencias de su veridicción pero también
supone dar cuenta de la verdad implicada en el coraje que supone un juego de por lo menos
dos en tanto el decir la verdad no se puede desplegar si no hay un otro dispuesto a escucharla.
Que el otro acepte escuchar mi verdad con el peligro que esto implica para la propia relación,
como para la propia vida del parrhesiasta es asumir el juego de la parrhesía. Así formar parte
75
del juego parrhesiasta nos enfrenta a un doble coraje, el coraje de quien dice la verdad, y el
coraje de quien escucha, que lleva a que se comporte de forma magnánima.
La parrhesía no es un arte, no es un oficio aunque posee elementos de carácter técnico,
sino que es una actitud emparentada con la virtud, es una manera de hacer. Por lo que la
parrhesía ha de entenderse como una manera del decir veraz. Podemos reconocer cuatro
formas o modalidades del decir veraz: el decir veraz de la profecía, el decir veraz del sabio, el
decir verdad del técnico (docente), y el decir verdad del parrhesiasta.
Cada una de estas modalidades se desarrolla de forma diferente, de tal manera que
podemos oponer el decir veraz del parrhesiasta, al decir veraz del profeta, del sabio y del
técnico. Por ejemplo, el profeta tiene un decir veraz que se constituye como tal en su papel de
intermediario, en este papel el profeta ilumina, devela lo que está oculto a los hombres pero lo
realiza de una forma oscura que exige por parte de los hombres interpretación. Esto no lo
encontramos en la actitud del parrhesiasta que plantea un decir verdad que es propio, que
refiere a sus propias convicciones.
También se opone el decir veraz del parrhesiasta al del sabio. El decir veraz del sabio
es propio, en tanto manifiesta su pensamiento, pero conserva su sabiduría en reserva. Así el
sabio no está obligado a compartir su pensamiento, por lo que para Foucault el sabio es
estructuralmente silencioso. El parrhesiasta no puede mantener su pensamiento en reserva por
el contrario podemos decir que está obligado a expresarlo, su decir veraz es cuestión de deber,
no es un deber respecto al ser de las cosas y de la naturaleza como en el sabio sino que es un
deber que apunta a individuos y situaciones a develar lo que son. El parrhesiasta no revela a
su interlocutor lo que él es, sino que le ayuda en tal develación.
Por último podemos dar cuenta del decir veraz del técnico que se diferencia a la del
parrhesiasta. El técnico posee una techné, la ha aprendido y como tal tiene que transmitirla. El
técnico pertenece a una tradición por lo que su decir veraz y su saber han de ser transmitidos.
Pero este decir veraz no supone riesgo alguno como en el caso del parrhesiasta, quien siempre
que expresa la verdad está poniendo en juego su relación con el otro e incluso su vida. El
parrhesiasta pone en juego el discurso veraz de lo que los griegos llaman ethos. Esto último
no ocurre en el técnico, ya que su decir veraz ha de ser transmitido si lo que se pretende es
que el conocimiento sobreviva.
Foucault resume lo planteado hasta aquí de la siguiente forma: “…el ethos tiene su
veridicción en la palabra del parrhesiasta y el juego de la parrhesía. Profecía, sabiduría,
76
enseñanza, parrhesía: tenemos con ellas, creo, cuatro modos de veridicción que, (en primer
lugar) implican personajes diferentes; en segundo lugar, exigen modos de habla diferentes, y
en tercer lugar, se refieren a ámbitos diferentes (destino, ser, techné, ethos)”.43
Sócrates encarna o combina para Foucault estas formas de decir veraz, donde la
parrhesía, juega un papel preponderante en su relación con los otros.
Para el autor la
parrhesía más que una técnica encarna modos de vida y quien mejor la ejemplifica es
Sócrates. La parrhesía es para Foucault “el nexo de unión entre el cuidado de sí y el cuidado
de los otros, entre el gobierno de sí y el gobierno de los otros, la frontera en la que viene a
coincidir ética y política.”44
Parrhesía, cuidado de sí y estética de la existencia en el Laques
El Laques es uno de los diálogos platónicos elegidos por Foucault para mostrar a
través de él la figura parrhesiasta de Sócrates, y ello por varias razones: aunque el Laques es
un diálogo corto sobre el valor la palabra parrhesía aparece utilizada tres veces (suficiente
como para rastrear en que sentido Sócrates hace uso de la parrhesía), además al principio del
mismo como Foucault señala los personajes Lisímaco y Melesias aparecen caracterizados por
su parrhesía o franqueza en tanto hablaran de todo sin tapujos, concentrándose la
conversación en el tipo de educación que deben darle a sus hijos. Para poder decidir cuándo se
está frente a buen maestro, o dicho de otra forma como distinguir un buen maestro de aquel
que no lo es, acuden a Nicias y Laques para que les ayuden con la decisión. Acuden a Nicias y
Laques porque estos no son ciudadanos comunes sino que como hombres de larga experiencia
militar y política podrán desde esta experiencia contribuir a determinar los rasgos de una
buena educación. Sin embargo no logran hacerlo. Sócrates que ha presenciado toda la
conversación entre Lisímaco, Melesias, Nicias y Laques es requerido por estos últimos en
cuanto a su opinión.
Sócrates entra en escena recordando que la educación se ocupa del cuidado del alma,
así él expresa “Se trata, pues, de saber, cuál de nosotros es lo bastante experto en el
tratamiento que se debe al alma para ser capaz de cuidarla bien, y si ha tenido buenos
43
Foucault, Michel, “El coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II.”, FCE, Argentina, 2010, pág. 41.
44
Gabilondo, Ángel, Fuentes Megías, Fernando en “Michel Foucault. Discurso y Verdad en la antigua Grecia”,
Paidós, Bs. As. 2004, pág. 23.
77
maestros en este arte.”45 Nicias por su parte permite que Sócrates examine su alma porque lo
reconoce como un verdadero parrhesiasta aceptando el juego parrhesiástico, en sus palabras:
“Porque pareces ignorar que si uno pertenece al grupo íntimo y, por así decirlo, a la familia de los
habituales interlocutores de Sócrates, se ve uno forzado, sea cual sea el tema que uno quiera tratar, a
dejarse llevar por el hilo de la conversación a una serie de explicaciones sobre sí mismo, sobre su propio
género de vida y sobre toda su existencia anterior. Una vez uno ha llegado a esto, Sócrates no os deja
aún sin haber pasado antes todo esto por la criba de las bellas maneras. En cuanto a mí, que conozco las
costumbres de Sócrates, sé que uno no puede evitar ser tratado así, y veo con claridad que tampoco yo
escaparé a ello. Pues, siento agrado y placer, Lisímaco, en su compañía, y no siento mal que se me haga
recordar el bien o el mal que he hecho o que hago aún; estimo que, experimentando esta prueba, se hace
uno más prudente para el futuro, si uno está en la disposición, según el precepto de Solón, de aprender
durante toda la vida y de no creer que la vejez por sí sola nos aporta sabiduría. Sufrir el examen de
Sócrates no significa para mí ni una novedad ni una cosa desagradable, desde hace tiempo sé que, con
Sócrates no iban a ser solamente los jóvenes los que debían ser examinados, sino que también íbamos a
pasar por ello. Lo repito, pues: en lo que a mí concierne, no me opongo a que Sócrates converse con
nosotros de la manera que le agrade.”46
Teniendo en cuenta el fragmento anterior Nicias reconoce a Sócrates como parrhesiastes y en
consecuencia puede aceptar su juego parresiástico, este juego como ya hemos indicado
anteriormente supone por parte de los interlocutores estar dispuesto a decir y a escuchar toda
verdad, aún cuando esta duela o provoque conflicto. La parrhesía esconde violencia. Nicias
describe el juego parresiástico de Sócrates, el mismo supone intimidad en el sentido del cara a
cara, además da cuenta de la pasividad del oyente, que consiste en ser conducido por “el logos
socrático a ‘dar explicación’, -didómai logón- de sí mismo, ‘de su modo actual de vida y el
que ha llevado en el pasado.”47
¿Qué es dar explicación de su modo actual de vida y el que ha llevado en el pasado?
No se trata de realizar una introspección donde dé cuenta de faltas, pecados, errores o
aciertos, no debemos entender ese examen con tono confesional. Ese autoexamen al que nos
conmina Sócrates no es otro que una forma de cuidar de sí mismo, dar cuenta del bíos no es
entender la vida como una sucesión cronológica de eventos, dar cuenta del bíos es mostrar la
45
Platón, “Laques o del Valor”, en “Obras Completas”, Aguilar, Madrid, 1972, 185 d.
46
Idem, 187 e.
47
Op. Cit., pág. 132.
78
relación entre el discurso racional, el logos que se es capaz de usar y la vida que se vive. Lo
que se busca es que haya armonía entre ambos niveles del ser, entre lo que se piensa- dice y lo
que se hace.
Más tarde en el mismo diálogo Sócrates en conversación con Laques, le solicita que dé
cuenta de su valor. Aquí Laques asiente a tal solicitud, acepta entrar en el juego parresiástico
de Sócrates porque entiende que más allá del valor que Sócrates haya podido mostrar en la
batalla de Delio, lo que él reconoce en Sócrates es una armonía entre lo que dice y su vida.
Esta armonía es lo que lleva a Laques a aceptar el discurso de Sócrates. Esa armonía
ontológica que encontramos en Sócrates, entre su lógos y su bíos, es una armonía dórica, que
se puso en manifiesto en el valor demostrado en Delio.
De igual forma cuando Sócrates hace tal solicitud, no está buscando que Laques
realice una narración de sus hazañas en la guerra del Peloponeso, sino que lo que pretende es
que Laques realice un relato racional de su valor, que dé cuenta del lógos de su valor. En
definitiva “La trayectoria es: de la armonía entre vida y discurso de Sócrates a la práctica de
un discurso veraz, un discurso libre, un discurso franco. El hablar franco se articula con el
estilo de vida. No es el coraje en la batalla el que autentifica la posibilidad de hablar del
coraje.”48
Sócrates a diferencia de los sofistas puede utilizar la parrhesía y hablar libremente
porque lo que dice concuerda exactamente con lo que piensa, y lo que piensa concuerda
exactamente con lo que hace. De esta forma, Sócrates -que es verdaderamente libre y
valiente- puede, por tanto, funcionar y ser reconocida como figura parrhesiástica.
En el diálogo el papel que está siendo asumido por Sócrates es el de básanos, o piedra
de toque, en tanto básanos Sócrates a través de su interpelación busca determinar en el otro la
naturaleza de la relación entre el lógos y el bíos de aquellos que entran en contacto con él.
Como básanos a través del ejercicio parrhesiástico la tarea de Sócrates consiste en revelar la
verdad de la vida de alguien, en otras palabras su tarea permite y conduce al otro al encuentro
de la relación que tiene con la verdad, lo que está en juego es cómo se constituye el sujeto en
alguien que tiene que conocer la verdad, y cómo esta relación con la verdad es puesta de
manifiesto ontológica y éticamente en su propia vida.
48
Op. Cit. pág. 163.
79
El examen de Sócrates nos conduce a desear cuidar de nosotros mismos, a cuidar de
nuestras vidas, de tal manera que uno cuide de su vida para hacer de la misma la mejor vida
que podamos tener, querer tener la mejor vida que se pueda tener se traduce en un entusiasmo
y deseo por aprender y cuidar de uno mismo sin importar la edad que se tenga.
La parrhesía socrática es una parrhesía filosófica o ética en tanto supone el hablar
franco de manera personal, supone el cara a cara, es una parrhesía que tiene como horizonte el
bíos. El bíos emerge como criterio ético para su misión como básanos.
Lo que intentamos mostrar es que más allá de Sócrates asumir la actividad
parrhesiástica permite vislumbrar la naturaleza de las relaciones entre la verdad y el estilo de
vida de las personas, y entre la verdad y una estética de la existencia.
A través del Laques, entonces, podremos ser testigos de cómo se va modelando la
subjetividad, subjetividad que encuentra anclaje en el propio sujeto, más específicamente en
la vida, en el bíos, es decir encuentra anclaje en la existencia y en la manera en como la
llevamos. En palabras de Foucault “Esa instauración de sí mismo, esa autoinstauración ya no
como psyché sino como bíos, ya no como alma sino como vida y modo de vida, es correlativa
de un modo de conocimiento de sí que, desde luego, de cierta manera y en lo fundamental,
supone sin duda el principio del “conócete a ti mismo”…”49
Este modo de sujeción o de constitución de la subjetividad se va perfilando a través
del conócete a ti mismo que es la base del cuidado de sí, y se caracteriza por el ideal de tener
una vida bella, dejando la memoria de una existencia bella. Mediante la parrhesía el sujeto
debe convencerse de cuidar de sí mismo y de cuidar a los otros; pero para ello debe cambiar
su vida. En esto último es que radica el reto. ¿Cómo educar para ejercer la parrhesía de forma
tal que nos conduzca al deseo de cambiar de vida? ¿Cómo hemos, si es posible educar para
una estética de la existencia?
Desde esta perspectiva, la vida en tanto bíos, es tomada como el material de una obra
de arte. Si la vida ha de ser vivida y ha de ser conformada como una obra de arte entonces la
clave para ello radica en el cuidado de sí. Foucault pretende a través de la figura de Sócrates
mostrarnos y demostrarse a sí mismo que “del surgimiento y la fundación de la parrhesía
49
Foucault, Michel, “El Coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II”, FCE. Argentina, 2010, pág.
172.
80
socrática, la existencia (el bíos) se constituyó en el pensamiento griego como un objeto
estético, objeto de elaboración y percepción estética: el bíos como una obra bella.”50
Este cuidado de sí supone la capacidad desarrollada por cada individuo de gobernarse
a sí mismo por sí mismo en su articulación en las relaciones con los otros. El cuidado de sí
supone una pedagogía, un conjunto de consejos de conducta, un conjunto de ejercicios
espirituales, la prescripción de modelos de vida, etc.
Aprender a cuidar de sí teniendo como horizonte la vida bella implica por parte del
sujeto aceptar ciertas maneras de comportarse y determinados valores porque entiende, decide
y quiere realizar en su vida la belleza que dichas formas de comportarse y dichos valores
proponen. Así esta estética de la existencia tiene a la propia vida como material para una obra
de arte. Para modelar este material, es necesario el uso de técnicas, de artes o habilidades que
consisten en realizar un trabajo sobre mí mismo. De esta manera cada hombre es su propio
escultor, que se cincela a sí mismo a través de prácticas que se forjan en esa actividad
permanente del cuidado de sí. Cincelarse a sí mismo es el resultado de un adecuado dominio
de las propias pasiones, entendido como una libertad activa, no disociada de una relación
estructural, instrumental y ontológica con la verdad. Lo anterior nos lleva a preguntarnos
cómo es posible educar para aprender a cuidar de sí, un cuidado de sí que supone entrar en
contacto con un decir veraz acerca de mi mismo en relación conmigo, con los otros y con el
mundo. Decir veraz que ha de manifestarse en la vida como obra de arte.
Pretendemos concluir que educar para una estética de la existencia, educar para una
vida como obra de arte no puede estar desvinculada de una ética, no entendida como conjunto
de preceptos o codificación de los actos sino como una relación del sujeto consigo mismo,
relación que se da a través del cuidado de sí.
50
Idem, pág. 174.
81
Bibliografía:
Foucault, Michel, “Hermenéutica del sujeto”, Argentina, Altamira, 1996.
Foucault, Michel, “Discurso y verdad en la antigua Grecia”, Barcelona, Paidós, 2004
Foucault, Michel, “El coraje de la verdad. El gobierno de sí y de los otros II”, Argentina,
FCE, 2010.
Kaminsky, Gregorio, “El yo minimalista. Conversaciones con Michel Foucault”, La Marca,
Bs. As, 2003.
Kohan, Walter, “Sócrates: el enigma de enseñar”, Bs. As, Biblos, 2009.
Platón, “Laques”, en Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1972.
82
A importância do conhecimento histórico para compreensão do pensar filosófico
Joana Rios Ribeiro Maia Carbonesi
Universidade de Brasília/UnB
Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história
Brasil
[email protected]
Juliana Rios Ribeiro Maia Carbonesi
Centro Universitário/UDF
Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história
Brasil
[email protected]
Eneida Orbage de Britto Taquary
Centro Universitário/UDF
Eixo Temático: O passado: as concepções filosóficas de educação na história
Brasil
[email protected]
Resumo
O que assistimos cotidianamente na realidade da sala de aula do ensino superior é que existe
muito mais dificuldade compreensiva por parte do educando quanto ao conteúdo
programático contemplado na diretriz curricular das disciplinas: Introdução à Filosofia,
Filosofia Jurídica, Filosofia da Educação e outras aplicadas às diferentes áreas de formação
superior, quando os discentes não possuem domínio do conhecimento histórico, ou seja,
quando o desenvolvimento do conhecimento humano não está historicamente situado. Russell
(2003), ao discorrer sobre o desenvolvimento do pensamento ocidental, busca mostrar o
paralelo que se constrói entre as indagações filosóficas nas diferentes áreas do conhecimento e
a história humana a partir dos seus mais variados questionamentos. Portanto, o presente
trabalho tem como objetivo mostrar a importância do encontro que deve acontecer entre o
saber histórico e o saber filosófico para que ocorra o entendimento das questões que foram
problematizadas por diferentes filósofos nos mais variados contextos do universo social. Para
isso, trabalhamos com uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório e usamos fontes
83
secundárias a partir de pesquisa bibliográfica para coleta de dados. O processo reflexivo
desenvolveu-se no sentido de mostrar a relevância da construção dialógica existente entre o
conhecimento histórico e as estruturas de pensamento filosófico para o entendimento das
diferentes realidades humanas.
Palavras-chave: Pensamento Filosófico. História. Ensino Superior.
INTRODUÇÃO
O mundo humano de pensamentos e realizações nos remete ao que somos, mas,
sobretudo, ao que pretendemos ser como seres que significam e resignificam de forma
reflexiva a realidade política, religiosa, jurídica e econômica construída a partir das mais
variadas relações sociais, que se estruturaram sobre o alargamento do horizonte humano, no
decorrer do seu caminhar como sujeito histórico. Portanto, somos, construímos, indagamos,
buscamos entendimentos e respostas sobre o desconhecido a partir do que vivemos e sentimos
no âmbito do universo das relações sociais, normalmente traduzidos nas mudanças estruturais
causadas por necessidades humanas em tempos históricos distintos.
A busca pela decifração do desenvolvimento e consolidação dos campos do
conhecimento humano a partir das diferentes perspectivas que se construíram e se constroem,
nos mais variados entendimentos da realidade humana por meio do pensamento filosófico,
nos põe de frente com as modificações e alterações de velhas e novas necessidades humanas
provocadas pelo processo de interação eminentemente humano desenvolvido entre
homem/homem, homem/natureza e homem/grupo, resultado da atuação do homem social na
realidade histórico-cultural.
Portanto, ao se buscar refletir sobre a necessidade do entendimento que o aluno de
graduação deve construir sobre as problemáticas humanas e os caminhos propostos pelas
diferentes abordagens filosóficas, como possibilidade de resolução para essas inquietações,
apontadas como uma manifestação interpretativa da realidade, pensa-se que o fluxo de
entendimento precisa estar paralelamente relacionado à dimensão temporal do pensar
filosófico em seu contexto histórico.
84
Assim, este trabalho tem como proposta reflexiva o entendimento de que é necessário
que o aluno esteja ambientado com o conhecimento histórico do desenvolvimento das ações
humanas e o impacto das mesmas, como fruto de interação do indivíduo com o meio social,
para que haja melhor compreensão dos grupos de significados das diferentes estruturas de
pensamento filosófico, que são interpretados e reinterpretados no decorrer dos séculos. A
relação entre ambas as áreas de conhecimento, possibilita pensar o homem, suas ações, seus
significados e os fluxos mentais que foram construídos por diferentes filósofos de forma
historicamente direcionados e relacionados.
1.1 - O pensar filosófico entendido a partir do contexto histórico revisitado
Captar o processo histórico por meio dos acontecimentos sociais, seus conjuntos de
transformações qualitativas e quantitativas, suas rupturas e revoluções, suas influências e seus
significados nas novas maneiras que o homem buscou se relacionar com a natureza e com o
seu igual, pode ser uma ferramenta que possibilita o entendimento do como e do porque
diferentes pensadores convidaram os homens a interpretar o mundo e a existência humana por
meio das mais variadas perspectivas reflexivas do pensar filosófico.
De um modo geral podemos dizer que quando o texto se estrutura e se explica
mentalmente, a partir de um contexto, compreendem-se melhor os preceitos filosóficos que
nasceram das indagações de alguns filósofos. Segundo Van Loon:
Vivemos sob a sombra de um gigantesco ponto de interrogação. Quem
somos, de onde viemos, para onde vamos. Lentamente, mas sem perder a
coragem, temos feito recuar cada vez mais esse ponto de interrogação rumo
aquela linha distante que fica além do horizonte, onde esperamos encontrar
a resposta. (VAN LOON, 2004, p. 3)
Nossos antepassados gregos se preocuparam bastante com essas questões. Desde
então, cada historiador na sua época teve seus olhos e mente voltados para a busca da
compreensão de um cotidiano cultural que possibilitasse a intelegibilidade do itinerário
85
percorrido pelo homem, com suas peculiaridades de questionamentos e respostas. Pode-se
reconhecer aqui, que ao lado dos questionamentos históricos, grandes interrogações
filosóficas foram estruturadas e a partir delas foi erguido o edifício intelectual do homem
ocidental.
Tal concepção de relação possibilita pensar que a cultura filosófica que buscou por
meio da inteligência humana pensar o mundo e seus contornos com certo afastamento das
amarras do circuito fechado da crença aos mitos gregos, se localiza nos processos históricos
vividos na Grécia Antiga, que por sua vez serviram como alicerce do pensamento filosófico
de Sócrates, Platão e Aristóteles.
A oposição de Sócrates à proposta Sofista de venda do saber e a perspectiva
diferenciada de ambos para com o genuíno processo do aprendizado, foi reflexo da postura
política exigida do homem social da Grécia Clássica, frente à necessidade do exercício prático
da eloquência e da sagacidade das exposições orais que deveriam se estruturar no decorrer das
diferentes participações dos cidadãos nas assembléias democráticas que ocorriam na pólis
grega.
As reflexões filosóficas de Platão nas obras: A República (2004) e o Diálogo de Fédon
(2004), são provavelmente reflexos de uma estrutura social e política vivida em um momento
histórico específico. Quando o filósofo pensa a estrutura de um governo ideal, onde cada
grupo do tecido social teria uma forma específica de ser educado e de viver; quando propõe o
entendimento da dualidade entre mundo das ideias e mundo dos sentidos e, a partir disso, a
imortalidade da alma e a soberania da razão, pode-se dizer que o mesmo estava movido pelos
resultados de um contexto histórico marcado pela Guerra do Peloponeso, o Governo dos
Trinta Tiranos, os comportamentos políticos democratas que levam Sócrates a ser condenado
à morte e as matizes tirânicas do governo de Dionísio na cidade grega de Siracusa.
A influência dos aspectos políticos e sociais sobre as obras de Platão, pode ser
claramente percebida pela crítica por ele estruturada para com as vicissitudes da política, o
qual posicionamento crítico parece ser reflexo de uma realidade histórica específica. Bem
entendido se mostra no diálogo que ele desenvolve de forma literária entre Sócrates e
Trasímaco, quando na obra A República (2004) busca discutir o conceito de justiça, os
diferentes tipos de governo, a formação do rei filósofo e as injustiças democráticas vividas em
86
Atenas. Platão deixa explícito que sua estrutura de pensamento filosófico, a partir do mito da
caverna e seu projeto político/filosófico para formação do Estado, são reflexos dos contrastes
que se desenvolveram em sua existência histórica e social no mundo da Grécia Clássica.
O século IV a.C, desenhado pelo domínio macedônio, foi também palco da filosofia
paripatética, desenvolvida por Aristóteles no Liceu. A coexistência entre a estrutura de
pensamento filosófico de Aristóteles e a realidade histórica vivenciada pelo pensador, pode
ser considerada um aspecto relevante para se entender como se construiu a partir das
conquistas de Alexandre da Macedônia uma nova abordagem filosófica da realidade
circundante e consequentemente uma nova interpretação do ser no mundo social antigo. É
interessante ressaltar as considerações feitas por Russel (2003) quando afirma que:
[...] parece seguro afirmar que não houve muita coisa que ambos pudessem
ver sobre o mesmo ângulo. As opiniões políticas de Aristóteles se baseavam
na cidade-estado dos gregos, então em declínio. Impérios centralizados
como o do Grande Rei, pareceriam a Aristóteles, e na verdade a todos os
gregos, uma invenção bárbara. (RUSSEL, 2003, p. 122-123)
Essas afirmações mostram que a concepção aristotélica de sociedade e política, e
consequentemente de existência do ser social, eram divergentes do momento histórico de
governo vivido pelo filósofo. Em sua obra: A Política (2004), Aristóteles pensou criticamente
o fim da autonomia das cidades-estados, a globalização do mundo conhecido e a imposição de
um mesmo tipo de governo para sociedades humanas de naturezas culturais distintas, estas
características expressavam as bem-sucedidas conquistas de Alexandre e a partir delas a sua
perspectiva de mundo social.
Assim como as conquista do Rei da Macedônia serviram como cenário no momento
em que Aristóteles buscava a compreensão do real funcionamento do mundo circundante, o
fim deste reinado como acontecimento histórico direcionou o caminho final do último filósofo
da antiguidade. O mundo, o universo e as relações humanas foram interpretados por
Aristóteles a partir da multiplicidade dos sentidos, da classificação hierarquizada dos seres, do
método investigativo, da noção de ato e potência, de substância e de acidente. As
interpretações aristotélicas construídas neste período histórico perdurou como base do
conhecimento humano por muitos séculos.
87
A permanente sensação de insegurança oriunda das mudanças estruturais vividas no
contexto histórico de expansão e consolidação do Império Romano foi fator determinante no
desenvolvimento da filosofia estóica defendida pelo senador romano Sêneca. Resignado,
buscou conviver da melhor forma com os eventos naturais que deveriam ser inevitavelmente
vividos por ele frente à posição social que ocupava no governo dos Imperadores romanos
Calígula, Cláudio e Nero. As reflexões filosóficas construídas pelo pensador foram
verdadeiras oficinas na busca pela aceitação de situações e fatos que interpretados a partir da
perspectiva do estoicismo, não poderiam ser mudadas e nem controladas.
A organização social e política do período histórico vivido por Sêneca forneceram
subsídios suficientes para que ele desenvolvesse sua estrutura de pensamento embasada nos
princípios norteadores da filosofia estóica. Sêneca por meio do gênero epistolar buscou
refletir em sua obra Aprendendo a viver (2009), sobre o comportamento humano e suas
contradições frente à morte, ao sofrimento, ao poder e à miséria. Na obra: Sobre a brevidade
da vida (2009), nos mostra sua preocupação com o tempo de vida cotidiana que as pessoas
desperdiçam com coisas fúteis e irrelevantes para o crescimento da consciência humana e com
o descaso que estas têm para com o conhecimento filosófico, pensado por ele, como
instrumento que possibilitasse de forma eficaz que o homem controlasse suas paixões, seus
impulsos, e, sobretudo, lhe conduzisse a um caminho de vida feliz e alma tranquila.
Grandes acontecimentos históricos marcaram o período representado pelo pensamento
filosófico medieval. Pode-se dizer que a partir do século III, com a intensificação das invasões
bárbaras e, consequentemente o progressivo declínio do Império Romano, o desenvolvimento
de uma nova estrutura econômica, política e religiosa interferiu de forma decisiva no
desenvolvimento do conjunto de ideias que fundamentaram a estrutura de pensamento
filosófico defendido pelos representantes da filosofia patrística.
O processo de consolidação do cristianismo como religião oficial do mundo medieval
trouxe consigo a necessidade de bases mais sólidas para a defesa dos preceitos e dogmas
defendidos pelo pensamento cristão. Nesse contexto do universo histórico social,
desenvolveu-se os princípios norteadores das argumentações filosóficas defendidas por
Aureliano Agostinho, mais tarde conhecido como Santo Agostinho, o bispo de Hipona. Este
representante da filosofia patrística buscou responder suas inquietações filosóficas pautado
nos preceitos da fé cristã.
88
Defensor dos dogmas do cristianismo, Santo Agostinho a partir de obras como:
Confissões (1984) e A cidade de Deus (1990), busca mostrar a superioridade da alma, sobre o
corpo, entendendo que só o homem pecador, a partir do uso do livre arbítrio faz a inversão
desta supremacia. Segundo ele, o pecador é aquele que permite que o corpo assuma o
comando da alma, que o transitório prevaleça sobre o eterno e que a essência seja substituída
pela aparência. Para Santo Agostinho, a linguagem personificada por meio da educação
religiosa era o instrumento ideal para que o indivíduo se socialize com o conhecimento da
verdade pura, pois, era por meio da oração e da contemplação que o homem podia se libertar
da visão enganosa de mundo fornecida pelos sentidos e pela cultura.
A filosofia agostiniana foi um grande marco do pensamento filosófico da Idade Média,
ao afirmar a vinculação pessoal do indivíduo com a figura de Deus para o alcance da salvação
como graça divina. Este período histórico foi pensado e interpretado filosoficamente por
aqueles que podem ser definidos como: filósofos de Deus.
O mundo ocidental do século XV conviveu simultaneamente com a permanência da
tradição, que cimentou a história humana durante vários séculos sobre o domínio da espada do
cavaleiro e a obediência à Igreja, e às mudanças estruturais que possibilitaram o processo
corrosivo do sistema social até então estabelecido. Historicamente, pode-se dizer que o
período da filosofia medieval se finaliza a partir do século XV quando se inicia as produções
filosóficas que caracterizam o período da Idade Moderna. A transição de um período para o
outro mostra claramente a mudança de mentalidade que possibilitava a formação de um novo
conjunto de valores e consequentemente uma nova concepção de ser, de fazer, de pensar e de
viver.
A desconstrução de um mundo ordenado e previsível, e, o desenvolvimento de uma
nova percepção do homem e seu lugar no mundo social não foi um processo tranquilo.
Diversos acontecimentos históricos como: a formação dos Estados absolutistas, o
mercantilismo, a invenção da imprensa, a reforma protestante e o renascimento propiciaram a
consolidação de uma mentalidade moderna. A filosofia, a partir desta perspectiva de
existência humana e de história social, desenvolve novas bases para o pensar filosófico.
A partir destas transformações, temos compondo o quadro histórico e filosófico do
período renascentista a abordagem teórica de Thomas More. O autor, como Pensador
89
humanista e conhecedor da realidade política e social da Inglaterra governada por Henrique
VIII, em sua obra A Utopia (2010), reflete filosoficamente sobre os rumos do País inglês
frente a nova realidade que se configurava a partir do rompimento com a Espanha e o papado,
a consolidação da Igreja protestante e a coroação de Ana Bolena como rainha da Inglaterra.
Na ilha Utopia, o autor personifica a existência de uma sociedade perfeita, pontuando
aspectos como: a geografia, a política, a religião, a jurisdição, a guerra e o convívio em grupo,
para se remeter à proposta de bem-estar e harmonia coletiva. Ao narrar de forma idealizada
um novo modelo de sociedade, negando a real realidade política vivida na Inglaterra de
Henrique VIII, expõe suas idéias políticas filosóficas, que expressas em suas ações, valores e
princípios, o conduziram ao caminho da condenação à morte.
Participando de uma realidade política diferente da de Thomas More, entretanto,
compartilhando com ele um contexto histórico em curso, Nicolau Maquiavel diante da
circunstância social desfavorável, desequilibrada, fragmentada, conflituosa e extremamente
violenta da Itália de sua época, tem como preocupação central de suas reflexões o
estabelecimento de um governo unificado. A filosofia política maquiavélica esboçada na obra
O Príncipe (2010), deslumbra mostrar os limites definidores existentes entre o governo ideal e
o governo real, e quais seriam estrategicamente os caminhos que deveriam ser percorridos
pelo governante para que a Itália unificada mudasse o curso da sua história. Como pensa o
autor:
Não se deve, portanto, deixar passar essa ocasião para que a Itália,
depois de tanto tempo, veja surgir seu redentor. Não posso exprimir
com que amor ele seria recebido em todas as províncias que sofreram
devido a esses aluviões externos, com que sede de vingança, com que
obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas! (MAQUIAVEL,
2010, p. 131)
A realidade histórica, coração do movimento renascentista, que subsidiou as reflexões
filosóficas da obra O Príncipe, foi desenhada pelo tortuoso e sangrento universo político da
Itália do século XV e XVI, que em particular teve como arquitetos de suas estruturas figuras
históricas como: César Bórgia, os exércitos mercenários, a família Médici, Michelangelo,
90
Leonardo Da Vinci e o próprio Maquiavel. Como pensador político, Maquiavel avidamente
aparece como testemunha histórica da realidade italiana renascentista. A obstinação deste
pensador político em retratar a verdadeira realidade política da Itália, seus múltiplos aspectos
negativos, o cinismo, a corrupção, as traições e as imbecilidades da Igreja, lhe levou a
escrever a obra: A Mandrágora (2008), que de forma memorável e coerente com seus tratados
políticos, retrata de forma cômica sua luta contra a anarquia vivida nos territórios
fragmentados da Itália de sua época histórica.
A construção histórica segue seu curso, esboçada pelas ações humanas, que resultaram
de diferentes transformações, entre elas as causadas pelas revoluções burguesas e o
movimento iluminista do século XVIII. Os acontecimentos históricos deste século
impulsionaram os fundamentos ideológicos de igualdade e liberdade, que mais tarde
representaram os princípios norteadores do caminhar humano rumo à proposta de se
estabelecer um pacto que viesse proporcionar uma ordem justa de convívio social entre os
homens.
A partir dos acontecimentos históricos que caracterizaram esse tempo da existência
social, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, em sua obra: Do contrato social (2000), expressa os
anseios de um pensador que se propôs a refletir sobre as problemáticas vividas no âmbito das
relações sociais em uma determinada época histórica. As premissas dessa concepção teórica
política representaram uma forte inspiração para o movimento revolucionário que culminou
na Revolução Francesa. O pensamento rousseauniano, a partir de uma perspectiva política,
propõe que os pactuantes do contrato constituam um universo social sustentado no interesse
do bem comum, que neguem condutas arbitrárias, que busquem a superação da desigualdade
entre os homens e fortaleçam o predomínio da vontade geral. Como afirma o autor:
[...] Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os
seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre
todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha
como já disse, o nome de soberania. (ROUSSEAU, 2000, p. 95)
As reflexões filosóficas sobre o poder político e suas diferentes roupagens ao longo
das construções históricas, encontram-se também ancoradas no conjunto de ideias que ecoam
91
das argumentações teóricas de Karl Marx no século XIX. A elaboração de suas obras reflete
uma época histórica marcada por uma crise social resultante dos acontecimentos
desencadeados pela Revolução Francesa e Revolução Industrial. A nova estrutura de
dominação econômica e política capitalista, que veio acarretar em todos os âmbitos da
existência social uma situação de miséria e opressão para a classe trabalhadora, forneceu a
visão crítica que subsidiou as argumentações teóricas de Marx na obra: O Capital (2012).
O balanço crítico e efetivamente prático realizado por Marx (2012) por meio do
materialismo dialético histórico sobre a exploração do trabalho humano pela classe
economicamente privilegiada, e consequentemente, dominante, desde a antiguidade até o
desenvolvimento do modelo econômico capitalista, forneceu a ele elementos de análise que
lhe levaram a afirmar que cada época histórica era definida pela dinâmica estabelecida pelos
homens
nas
suas
relações
de
produção,
as
quais
se
corporizam
na
relação
dominador/dominado, explorador/explorado. Para este pensador o funcionamento das
diferentes esferas da vida social estava diretamente relacionado ao modelo econômico e suas
leis operacionais. Em suas concepções teóricas Marx, por meio do materialismo histórico,
entende que as forças produtivas, os modos de produção e as relações de produção são os
motores da história.
Os fluxos das experiências humanas elucidam novas realidades históricas, que
representam os novos caminhos objetivados pelo homem, que agindo no mundo, busca
responder as suas necessidades como ser social. Inseridas nesses novos conjuntos de valores e
normas morais, oriundos das diferentes configurações históricas, estão as concepções de
mundo que corporizaram o século XX. Este século, se por um lado, representou o apogeu dos
avanços técnico-científicos, por outro lado, é ilustrado pelo terror e brutalidade causados por
aquilo que historicamente é nomeado de dominação nazista.
Na busca de respostas para as questões humanas, muitos filósofos do século XX
buscaram refletir em torno dos eventos de violência registrados como resultado dos massacres
sangrentos provocados pelas duas grandes guerras mundiais. Entre esses pensadores,
encontra-se Hannah Harendt (1999). O ponto central de sua crítica está no drama humano
vivido na barbárie dos campos de concentração nazista. Sua preocupação frente à realidade
histórica que foi desenhada pelos ideais de dominação e destruição nazista, conduziu suas
92
reflexões filosóficas para a busca do entendimento da percepção dramática e angustiante da
banalização do mal.
Suas abordagens filosóficas sobre a maldade disfarçada e seus mais cruéis
instrumentos de ação, marcaram e foram marcadas, por uma época, por um tempo histórico. A
partir dessa realidade, esta filósofa do século XX buscou pensar criticamente a condição
humana, refém do governo totalitário de Adolf Hitler. As experiências pessoais vividas por
ela e o registro do extermínio em massa nesse quadro histórico estavam intimamente fundidos
na construção do seu pensamento filosófico. Portanto, entende-se o desenvolvimento das
diferentes concepções filosóficas como ressonância de um tempo religioso, político, militar,
administrativo e econômico. Nessa perspectiva estabelece-se um intercâmbio, uma relação de
cumplicidade entre o curso percorrido pelo pensar filosófico e sua idade histórica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreende-se que cada época histórica, construída e vivida pelos diferentes grupos
sociais, representa uma etapa da história da filosofia. No decorrer dos séculos que sucederam
o período dos antigos gregos, berço do pensamento ocidental, desenvolveu-se diferentes
concepções de mundo e de existência social. No decorrer da reflexão em torno da relação
intrínseca existente entre os contextos históricos e sua ligação com as construções filosóficas,
tem-se um repertório de situações que revelam uma analogia entre a história vivida e as
indagações filosóficas propostas.
A pesquisa bibliográfica mostra que as construções reflexivas, que em diferentes
tempos da vida em grupo buscam pensar as problemáticas humanas, revelam que os pontos de
vistas dos filósofos estão diretamente relacionados com o seu tempo histórico. Portanto, as
perspectivas reflexivas se constroem a partir do complexo sistema relacional existente entre o
homem e seu mundo histórico cultural. O filósofo e sua concepção de mundo e de existência
do homem como ser social estão historicamente localizados, por isso, é importante que se
reconheça a afinidade existente entre o desenvolvimento das reflexões filosóficas e o
momento histórico vivido por cada pensador.
93
Acredita-se que as indagações críticas propostas e as respostas encontradas ao longo
do desenvolvimento do pensamento filosófico, nos permitem construir uma consciência de
que somos seres pensantes e de ação, capazes de refletir sobre as perturbações que
atormentam a humanidade há mais de 2.500 anos, e de construir, por meio dessas reflexões,
conhecimentos sólidos sobre nós mesmos e sobre o mundo histórico do qual somos sujeitos.
Entende-se que o indivíduo ao se propor pensar criticamente o existir humano como
resultado das produções históricas oriundas das ações empreendidas pelo homem, se torna
consciente de que o processo de produção do conhecimento representa o movimento de
interpretação e reinterpretando que o pensamento faz sobre a sucessão de acontecimentos
históricos vividos pelo homem, seus resultados e as propostas de novos caminhos como
trafegar do pensar filosófico.
Observa-se que a história se constrói por meio das ações do homem fundido no seu
espírito de aventura e mudança, e a filosofia pela interpretação crítica dessas ações e suas
consequências no âmbito do convívio humano. Entretanto, não será aqui que se esgotará a
busca pelo entendimento de que existe uma relação estreita entre o pensar filosófico e as
organizações históricas sociais, e que para que haja um melhor entendimento do
desenvolvimento das estruturas do pensar filosófico, se faz necessário que as reflexões críticas
estejam historicamente situadas.
Mas, fica o convite reflexivo quanto à concepção de intercâmbio, de comunicação estabelecida
entre ambas as áreas do conhecimento humano, como definidores dos olhos que buscam entendimento
das questões do homem histórico por meio dos fundamentos do pensar filosófico.
REFERÊNCIA
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 1990.
______. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
94
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. A mandrágora. São Paulo: Martin Claret, 2008.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004.
______. Fédon. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultura, 2000. v. 1.
RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
______. Aprendendo a viver. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
VAN LOON, Hendrik Willem. A história da Humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
95
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL:
UM OLHAR NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDIGENA TAPUIO51.
Silvania Maria Sandoval Borges52
[email protected]
51
O nome ‘Tapuio’ é uma palavra tupi que designa pessoas inimigas ou diferenciada em termos étnicos.
No “Novo Dicionário da Língua Portuguesa” de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, além deste sentido
original, Tapuio é o índio, seja ele bravio ou manso, mestiço e em contato permanente com a cultura e sociedade
nacionais. Para um fazendeiro da região do Carretão: Tapuio é simplesmente um modo sertanejo de chamar o
índio. (ALMEIDA, Rita Heloisa de Almeida (org.). Aldeamento Carretão segundo os seus herdeiros Tapuios:
Conversas gravadas em 1980 e 1983. – Brasília: FUNAI/CGDOC, 2003. 422p.
52
Mestranda em Educação na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, especialista em Indigenismo e
Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.
96
Resumo: O objeto de estudo deste trabalho é a Educação Escolar Indígena do povo Tapuio.
Tem como objetivo apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos
povos indígenas desde a colonização. A educação escolar indígena começou no inicio da
colonização deste país através dos Jesuítas, no século XVI. Tinha o objetivo de implantar
projetos para a dominação e invasão das terras para a exploração das riquezas. O trabalho dos
Jesuítas durou 210 anos e durante esse período realizaram a catequese dos índios, através dos
aldeamentos (as missões). Após a expulsão dos Jesuítas, o processo de educação não foi
substituído de imediato. As ações de educação para os índios só reiniciaram com o a criação
do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, como órgão oficial do governo federal
responsável pelas políticas indigenista no país, entre elas a educação. O trabalho do SPI foi
realizado até 1967 quando foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), que além das diversas atribuições a ela destinadas, era responsável também pela
educação escolar dos índios. A educação promovida aos indígenas era em português. Em
1966 através de Decreto Presidencial é autorizado o ensino da língua materna entre os índios,
mas somente a partir de 1970 é implementado o ensino bilíngue nas escolas indígenas. Porém,
foi com a constituição de 1988 que de fato garantiu-se a utilização da língua indígena, dos
costumes e teve seus princípios educacionais respeitados. Em 1991 passou-se ao Ministério
da Educação (MEC) a competência para coordenar as ações de educação e às secretarias
estaduais e municipais a execução das ações de educação. Os processos e responsabilidades
de execução da educação escolar indígena passaram por várias etapas, desse modo foi
importante apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos povos
indígenas desde a colonização, focando a comunidade indígena Tapuio. Percebemos que a
legislação garante uma educação escolar indígena especifica e diferenciada, entretanto, na
prática ela ainda deixa lacunas e continua a busca pelos índios da garantia da sua execução
dentro da escola.
Palavras chaves: História, Educação, Educação Escolar Indígena, Povo Tapuio.
Introdução
97
A Educação num conceito geral é pensada como meio de transmissão de
conhecimento, independente do conhecimento, pois todos os conhecimentos e saberes de uma
comunidade, de uma sociedade ou de um povo, seja tradicional passado de pai para filho e do
mais velho ao jovem; seja o modo de vida da comunidade, as práticas culturais, as formas de
produção de alimentos, de artefatos necessários ao dia-a-dia, os rituais, são importantes para o
desenvolvimento da sociedade, do povo. Para Brandão “existe a educação de cada categoria
de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe
entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a
mais de sua dominância.” (BRANDÃO, 1986, p. 9-10). Ela é livre e deve ser para todos, ela é
uma forma de as pessoas se tornarem comuns entre si. É através da educação que os
conhecimentos, ideias, crenças, o que é comunitário, os bens, o trabalho, a vida são
socializados.
Cada sociedade tem seu modo próprio de se organizar e de fazer educação,
considerando os repertórios culturais inerentes a cada povo. Os conhecimentos de uma
sociedade, de um povo são impostos socialmente aos indivíduos de modo que não resistem e
aceitam o que é posto pela sociedade. Durkheim define a educação como
a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não estão maduras
para a vida social. Tem por objeto suscitar e desenvolver na criança certo
número de estados físicos, intelectuais e morais dela exigidos tanto pela
sociedade política em seu conjunto quanto pelo meio especial ao qual ela
está particularmente destinada. (DURKHEIM, 2010, p. 36-37)
Para Brandão, entretanto, “a educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia
dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua
missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens
que se tem de uns e outros.” (BRANDÃO, 1986, p. 12).
A educação tem como objetivo a igualdade entre as pessoas, pois na educação os
conhecimentos são compartilhados, as tradições, os costumes, o trabalho, os bens, para a
continuidade da existência do povo e da vida. Além dessa educação comum existente nas
sociedades como modo de se organizarem, de partilharem seus conhecimentos, seus bens, ela
pode existir como instituição. Nesse sentido ela é usada como meio de impor um sistema
98
centralizado de poder, e é essa educação institucionalizada, que controla o saber, o
conhecimento e leva a desigualdade entre os indivíduos em todos os aspectos, seja na divisão
dos bens, direitos e símbolos. Então surge a escola, institucionalizada, com normas, regras,
direitos e deveres. Para Brandão
a educação da comunidade de iguais que reproduzia em um momento
anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças
naturais, começa a reproduzir desigualdades sociais por sobre igualdades
naturais, começa desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas
pedagógicos e as leis do ensino para servir ao poder de uns poucos sobre o
trabalho e a vida de muitos. (BRANDÃO, 1986, p. 34).
Para Bourdieu a educação é reprodutora e legitimadora da desigualdade social. Para
ele até a década de 60 a educação pregava a igualdade de oportunidades, a meritocracia, a
justiça social. “A educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de
instancia transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das
principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais.”
(NOGUEIRA E NOGUEIRA, 2002, P. 17). Nessa perspectiva, a escola era uma instituição
neutra que difundia o conhecimento e os direitos dos indivíduos investidos na escola eram
iguais para todos e competiam em condições de igualdade.
As instituições formais têm profunda influência sobre os processos sociais, à
medida que socialização envolve aspectos abrangentes da condição humana,
e cada sociedade seleciona o que as novas gerações irão aprender de forma
complexa. Qualquer processo de aprendizagem supõe uma seleta esfera de
significados, valores e práticas, de acordo com o que se considera como
necessário aprender na dinâmica das relações de forças de uma sociedade.
(CANEZIN, 2011, P. 145).
Este artigo tem como objeto de estudo a Educação Escolar Indígena do povo Tapuio.
O objetivo é apreender a trajetória da educação escolar indígena brasileira ofertada aos povos
indígenas desde a colonização. Conhecer como foi tratada ao longo da história da colonização
do Brasil a Educação Escolar para os povos indígenas, quais eram os seus objetivos e quais
propostas a educação ofertada trazia em cada momento dessa história.
Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica para conhecer o conceito de
Educação trazido por alguns autores como Durkheim (2010), Brandão (1986), Bourdieu
99
(2010) entre outros autores consultados. Um estudo sobre a educação indígena no Brasil e
sobre a etnohistória do povo Tapuio.
Processo de Escolarização Indígena no Brasil
A educação escolar foi trazida ao Brasil com o objetivo de civilização dos índios. Teve
sua origem com os Jesuítas que chegaram ao Brasil, ainda no século XVI, trazidos com o
objetivo de implantar projetos escolares destinados, inicialmente, as populações indígenas.
Esses projetos de educação tinham o objetivo o controle político do governo, pois a intenção
era dominar os índios, para a invasão de suas terras e a exploração das riquezas naturais.
As escolas foram desenvolvidas de forma planejada e sistematizadas, de modo que os
missionários jesuítas responsáveis pelas escolas se esmeraram para a sua implantação.
Bourdieu define “o 'sistema de educação' como o conjunto dos mecanismos institucionais ou
habituais pelos quais se encontra assegurada a transmissão entre as gerações da cultura
herdada do passado,” (BOURDIEU, 2010, p. 31). Foi com esse objetivo que os Jesuítas
iniciaram os trabalhos entre os indígenas, ou seja, inculcar a cultura europeia nos índios. No
contexto histórico da época a educação não constituía uma prioridade do governo,
considerando que para a agricultura não se exigia formação especial. Os trabalhos
missionários e pedagógicos eram para converter os gentios e impedir os colonos de
desviarem-se da fé católica. A ação dos missionários Jesuítas foi rápida, em quinze dias
colocou em funcionamento na cidade de Salvador, recém-fundada, uma escola de ler e
escrever. Iniciou-se, portanto, no Brasil um processo de criação de escolas elementares,
secundárias, seminários e missões, espalhadas por várias regiões. Durante o trabalho dos
Jesuítas, eles realizaram a catequese dos índios, a educação dos filhos de colonos, a formação
de novos sacerdotes e da elite intelectual, além do controle da fé e da moral entre os
habitantes aos quais tiveram acesso. Ou seja, a ação pedagógica, os métodos usados para cada
contexto social pelos Jesuítas, eram diferentes e tinham objetivos diferentes, nesse sentido, é
legitimado o arbitrário cultural dominante. Como enfatiza Bourdieu “toda ação pedagógica é
100
objetivamente uma violência simbólica53 enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um
arbitrário cultural.” (BOURDIEU, 2010, p. 26).
Para os Jesuítas o trabalho de instalação de um sistema de educação se tornava difícil,
devido à diversidade já existente, ou seja, de um lado os índios com suas línguas e cultura
diferente e de outro os colonizadores portugueses que vieram para cá sozinhos, sem família,
com modos e hábitos54 difíceis na visão da religião.
A educação para os índios constituía-se basicamente em cristianizar e pacificar para
torná-los dóceis facilitando dessa forma o trabalho nas aldeias. Ao mesmo tempo em que os
Jesuítas incluíam os índios no sistema escolar, os excluíam quando a educação dos índios e
dos filhos dos colonos era distinta entre eles. Pois:
a visão etnocêntrica que motivava a educação europeia na colônia fez com
que sempre se desprezasse a cultura popular, influenciada pelos indígenas e
negros e que permaneceu marginal e condenada à expectativa de
homogeneização, uma vez que a cultura erudita e europeizada era o modelo
a ser seguido. (ARANHA, 2006, p. 166).
“Os Jesuítas não só atuavam nas missões, convertendo os indígenas, mas também nas cidades e junto
aos engenhos de açúcar, ocupando-se, portanto, com a educação da elite.” (ARANHA, 2006, p. 144). Por um
período de 210 anos, os Jesuítas fizeram de forma maciça a catequese dos índios, a educação
dos filhos dos colonos, formaram novos sacerdotes e filhos da elite intelectual, além de
53
Violência Simbólica: A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as
animam e sobre a qual se apoia o exercício da autoridade. Bourdieu considera que a transmissão pela escola da
cultura escolar (conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas
lingüísticas), própria à classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes
populares. (VASCONCELLOS, Maria Drosila. PIERRE BOURDIEU: A HERANÇA SOCIOLÓGICA.
Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002, p. 80-81).
54
Assim, o conceito de habitus que ele desenvolverá ao longo da sua obra corresponde a uma matriz,
determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O
habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de
ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. (VASCONCELLOS, Maria Drosila.
PIERRE BOURDIEU: A HERANÇA SOCIOLÓGICA. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002,
p. 79)
101
controlarem a fé e a moral dos habitantes da nova terra. Os Jesuítas permaneceram no país até
1759, à frente da educação, quando foram expulsos por Marquês de Pombal sob várias
alegações entre elas de enriquecimento, intromissões politicas e interesse de formação de
império temporal cristão nas missões.
O Processo de educação construído pelos Jesuítas não foram substituídos de imediato
por outras instituições escolares. O marquês de Pombal introduziu ideias iluministas,
realizando reformas do ensino. A educação passou a ser leiga e de responsabilidade do
Estado. O objetivo de Pombal, portanto, continuava, não diferente das politicas anteriores de
inserir o índio na sociedade envolvente, ou seja, “civilizar” o índio. Assim criou o Diretório
que garantia a criação de escola nos aldeamentos, além disso, estabelecia que os índios
deveriam trazer a partir de então o sobrenome português e fazer uso de roupas entre outras
coisas impostas pelo Diretório. A educação nas escolas dos aldeamentos passou a ser
responsabilidade do Diretor Geral, cargo criado pelo Governador, que acumulava a função
Temporal e espiritual, substituindo os missionários. A função do Diretor era a “de preparar os
indígenas, por meios diretivos, para serem úteis à Coroa.” (OSSAMI DE MOURA, 2008, p.
82).
Com a criação do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, as ações educacionais entre os
índios passaram a ser executada por eles nas aldeias. O SPI foi criado através do Decreto-Lei
nº 8.072 de 20 de junho de 1910, como órgão do governo federal responsável pelas políticas
indigenista no país e garantir a ocupação territorial. O Governo Federal incumbiu-se de evitar
o extermínio dos povos indígenas. O trabalho agora era pacificar os povos indígenas que se
encontravam lutando contra segmentos da sociedade nacional em diversos pontos do território
brasileiro. O coronel Cândido Mariano da Silva Rondon foi convidado para dirigir o novo
órgão. Com ideias positivistas, estabeleceu a política de integração, na qual o índio era
reconhecido como sujeito transitório, ou seja, preparando-se para ingressar na civilização.
Nesse sentido, O SPI desenvolveu suas atividades demarcando as terras dos índios para evitar
que fossem invadidas; protegia os índios da exploração por comerciantes, exploradores de
produtos naturais etc. Prestava atendimento de saúde, ensinava técnicas de cultivo, de
administração dos bens e vários ofícios, além da educação formal que foi implementada nas
terras onde os índios moravam.
Em 1957, o SPI entrou num processo de decadência administrativa e ideológica.
Passou por diversos problemas e irregularidades e, em 5 de dezembro de 1967, após a
102
instalação no Brasil do regime militar, e em sua fase mais agressiva, o SPI foi extinto e
substituído pela Fundação Nacional do Índio – Funai, através do Decreto 5.371 de 05 de
dezembro de 1967. O decreto de criação da Funai diz que o órgão deverá estabelecer as
diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada em alguns princípios entre
eles promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na
sociedade nacional. Desse modo, dos jesuítas ao SPI e Funai, o processo de Educação Escolar
Indígena sempre teve os mesmos objetivos a integração e assimilação dos índios a sociedade
nacional.
A Educação Escolar Indígena até a gestão do Serviço de Proteção ao Índio – SPI e
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, foi promovida em língua portuguesa, seja por
missionários ou por professores desses órgãos. As escolas eram monolíngues, utilizavam
apenas o português. Com o Decreto do Presidente do Brasil, nº 58.824, de 14 de julho de
1966, que promulgou a Convenção 107 sobre a proteção e integração das populações
indígenas e outras populações tribais e semi-tribais de países independentes, é que são
adotadas medidas legais para adotar a língua materna no ensino e em relação a outras questões
sobre a educação para os povos indígenas. A Funai, portanto, até década de 1990 promove a
Educação Escolar Indígena nas aldeias.
Na década de 1970 a língua indígena começa a ser adotada nas escolas indígenas e
assim têm garantida a escolarização dos povos indígenas com a utilização de suas línguas
maternas. Para isso, foi realizado um convenio com o Summer Institut of linguistics – SIL,
com sede nos Estados Unidos da América. Esse convênio atendeu vários povos indigenas e
teve inicio em 1972, realizando a capacitação de indígenas para atuar como monitor bilíngues
nas escolas indígenas.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, nos Artigos 210 e 215 foram
garantidos aos povos indígenas o direito a uma educação especifica e diferenciada. Pois até
então as Constituições Federais do País, viam o índio numa perspectiva de extermínio.
Algumas delas, apesar de ter sido discutido e lembrados nos projetos das Constituições,
algumas delas como a de 1824 e a de 1891 deixaram de constar em seus textos as questões
indígenas. A de 1834, no artigo 11, § 5º, transferia para as Assembleias Provinciais a
catequese e a civilização dos índios, o estabelecimento de colônias, para promover a
instalação de imigrantes europeus nas terras indígenas. As constituições que vieram depois
traziam em seus textos questões sobre os índios, mas sempre com o mesmo objetivo de
103
incorporá-los a sociedade nacional. As últimas constituições, entretanto, traziam textos sobre
as terras que os índios habitavam. A de 1967, porém, integrou as terras indígenas ao
patrimônio da união, restando a eles o usufruto dessas terras. Já a Constituição de 1988 trouxe
em seus textos uma abrangência maior sobre as questões indígenas, inclusive, sobre a
educação. Isso ocorreu devido às organizações dos índios e os movimentos de apoio aos
indígenas. A partir da Constituição de 1988 a Educação Escolar Indígena muda, pois garante
o direito à utilização de suas línguas, seus costumes e seus princípios educacionais
respeitados.
Através do Decreto 26, de 04 de fevereiro de 1991, o governo federal atribui ao
Ministério da Educação e Cultura - MEC, a competência para coordenar as ações relativas à
Educação Indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, sendo ouvida a Funai. O
mesmo Decreto no Artigo 2º estabelece que as ações de educação sejam desenvolvidas pelas
Secretarias Estaduais e Municipais de Educação em consonância com as Secretarias
Nacionais de Educação do MEC. Desse modo, levaram-se alguns anos para que os Estados e
os Municípios assumissem de fato as Escolas Indígenas. Hoje as ações das Escolas Indígenas
são desenvolvidas pelos Estados e Municípios, de acordo com cada situação e região.
O processo de mudança, ou seja, quando o MEC passou a ter competência para
coordenar as ações da Educação Escolar Indígena, causou situações no mínimo confusas no
processo de gerenciamento da assistência educacional, como afirma Grupioni, “criou-se uma
situação de acefalia no processo de gerenciamento global da assistência educacional aos
povos indígenas.” (GRUPIONI, 1.997, p.190). Na maioria das vezes, essas dificuldades foram
causadas pela falta de conhecimento sobre a educação escolar indígena, pois tiveram que
assumir a educação sem preparo algum. As pessoas que estavam inseridas no processo, não
estavam habilitadas a desenvolver as ações de educação indígena.
Mudanças ocorreram na legislação e na prática em relação à educação indígena nas
últimas décadas, entretanto, essas mudanças e as adequações continuam sendo realizadas para
que de fato a educação para os índios atenda o que realmente a legislação prevê e o que os
índios querem. Principalmente, porque para os índios a educação se mistura com a vida com
o cotidiano.
104
Os Tapuio no contexto histórico do país55
Para compreender o processo de educação dos Tapuio é necessário conhecer a etno
história desse povo, a trajetória percorrida até o reconhecimento da identidade.
A colonização no Brasil iniciou-se com a chegada dos portugueses a terra brasileira
com o objetivo de escravizar o índio56. O povo Tapuio originou do contexto histórico do país,
das politicas indigenistas e de ocupação do território brasileiro. Ou seja, nos séculos XVIII a
XIX, entre 1741 a 1872, como política indigenista, o governo ordenou a criação de
aldeamentos, com o objetivo de desocupar as terras ocupadas pelos índios para garantir a
expansão da exploração mineral e atividades agropastoris. Esses aldeamentos, com o apoio do
terceiro governador geral do Brasil - Mem de Sá se desenvolveram rapidamente, com o
objetivo de consolidar o domínio português sobre os índios e assim concluir a colonização do
Brasil. Nesses aldeamentos os Jesuítas tinham o poder espiritual e temporal e sua
administração tinha como modelo de organização administrativa as cidades portuguesas. O
processo de construção de aldeamentos teve quatro fases e foi na segunda fase que com vários
aldeamentos foi criado o de Carretão ou Pedro III, a 22 léguas de Vila Boa, onde hoje situa a
cidade de Goiás/GO. Para esse aldeamento foram trazidos os Akuên Xavante, pois os Xavante
(Akwên) representava ameaças, pois constantemente atacavam os núcleos urbanos de Crixás,
Pilar e Tesouras, também porque os Xavantes levavam negros fugidos das minas para suas
aldeias, afetando de forma desastrosa a economia das minas de Goiás.
Mais tarde, também foram levados para o aldeamento Carretão índios das etnias
Karajá, Javaé, Kaiapó, Xerente. A construção do aldeamento Carretão se deu numa fase de
transição política e econômica, quando a agropecuária já se implantava em Goiás em
substituição ao ciclo da mineração de ouro em decadência. Nesse período foram priorizados
os núcleos populacionais, considerando que vários haviam sido desativados, assim era
necessário capturar os índios para garantir o crescimento desses povoados. Civilizar os índios,
para que fossem a base de novos povoamentos, bem como transformá-los em mão-de-obra
55
Este texto faz parte do meu Projeto de Pesquisa apresentado a Coordenação de Pós Graduação Stricto
Sensu – Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
56
Índio é todo individuo reconhecido como membro por uma comunidade de origem pré-colombiana que
se identifica como etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com que
está em contato. (RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno. São Paulo. Companhia das Letras, 1986, p. 285 .).
105
para trabalharem nas lavouras e em outros trabalhos necessários para garantir a manutenção
dos povoamentos. Segundo Ossami de Moura, “a população do Aldeamento Carretão, como
atestam os depoimentos de diferentes autores, sofreu sérios reveses, como fome, doença,
tratamento ofensivo, e até perseguição por partes dos empregados do aldeamento”. (OSSAMI
DE MOURA, 2008, p. 95). Iniciou-se então um processo de decadência econômica que
acarretou na destituição de vários aldeamentos. Em 1835, já era visível o desinteresse em
manter o Aldeamento Carretão. Com o fim das minas a região deixou de ter uma importância
econômica para o governo e a região do Carretão ficou isolada. Com o fim do aldeamento
alguns índios ali resistiram, pois estavam casados entre indígenas de outras etnias e também
com não índios e haviam perdido os traços culturais. Portanto, os Tapuio originaram-se desse
aldeamento, da mistura, ou seja, da união entre indígenas das etnias Xavante, Karajá, Javaé,
Kaiapó, Xerente e de negros escravos que fugiam de fazendas e buscavam abrigo no antigo
Aldeamento Carretão.
Os Tapuio viveram por muito tempo invisíveis como indígenas. “A invisibilidade dos
Tapuios faz parte de um processo nacional de negação de identidades indígenas especificas,
que teve lugar na segunda metade do século XIX”. (OSSSAMI DE MOURA, 2008, p. 291).
Esse processo de invisibilidade iniciou-se com a política indigenista colonial de integração
dos povos indígenas, que tinha como objetivo a descaracterização ou homogeneização étnica.
Foi na década de 1940, que houve o processo de ressurgimento dos índios no cenário
indígena brasileiro, entre eles estavam os Tapuio. Para os Tapuio esse processo de
ressurgimento se deu por causa de conflitos fundiários. E foi a questão territorial que os
auxiliou a buscar o reconhecimento e reconstruírem a unidade do grupo. Foi através dos
primeiros habitantes do Aldeamento Carretão que os Tapuio sustentaram a “reconstrução” de
sua identidade e o consequente reconhecimento como povo indígena. Os Tapuio acionaram a
memória, buscando nos acontecimentos transmitidos através das gerações, interpretações para
legitimar a identidade étnica do grupo.
No final da década de 1970, os Tapuio foram em busca da Funai – órgão indigenista
oficial para falar dos problemas enfrentados e denunciar as perseguições e invasões de suas
terras. A Funai por sua vez, designa, no inicio de 1980, uma Antropóloga – Rita Heloiza de
Almeida Lazarin, para realizar os levantamentos necessários sobre os Tapuio. Em 1984 a
Funai conclui a demarcação administrativa de duas glebas não continuas, conforme Instrução
Executiva n. 038/DPI, de 9 de outubro de 1984. Essa demarcação se baseou na primeira
106
demarcação feita pelo Governo de Goiás, através da Lei 188 de 1948, que tinha 1.430ha.
ampliada pela demarcação feita pela Funai para 1.666ha. Com a demarcação veio o
reconhecimento e a assistência para a população Tapuio. A Terra Indígena Carretão está
localizada nos municípios de Nova América e Rubiataba em Goiás, entre o ribeirão Carretão e
a Serra Dourada. Fica distante da capital Goiânia/GO cerca de 285 quilômetros. Está dividida
em duas glebas não continuas.
Os Tapuio não se organizam como as aldeias tradicionalmente conhecidas, há uma
divisão espacial entre famílias que respeitam a primeira doação feita pela coroa portuguesa
em 1788 e registrada como terras indígenas no Registro Paroquial de Pilar em 1885 (OSSAMI
DE MOURA, 2008), e, a demarcação feita pelo governo do estado de Goiás em 1948,
atendendo pedido das quatro famílias que permaneceram no território do aldeamento, devido
o assédio de fazendeiros que estavam invadindo suas terras. Hoje a população Tapuio está em
torno de 198 pessoas aldeadas e 218 vivendo fora da Terra Indígena.
Educação Escolar Indígena Tapuio
Os Tapuio tem hoje na aldeia uma Escola Estadual Indígena, gerida pela Secretaria
Estadual de Educação do Estado de Goiás. Essa escola oferece o ensino fundamental que
atende do 1º ano inicial ao 9º ano e o Ensino Médio. Apesar da escola na aldeia trazer o
modelo da cidade como calendário escolar, matriz curricular, merenda escolar, etc., “o direito
a educação escolar diferenciada já começa a ser observado” (AZARIAS, 2008, p. 58). A
escola foi criada pelo Governo de Goiás, oficialmente, em 2004. Pois antes desta escola, a
unidade escolar da aldeia era municipal e oferecia o ensino do 1º ao 4º ano do Ensino
Fundamental, com processos pedagógicos iguais das escolas da região. A escola entre os
Tapuio funciona desde 1972, inicialmente, por falta de espaço físico apropriado, era realizada
na casa de um Tapuio. Tempos depois foi construído com recursos da comunidade um prédio
para acolher a escola. Em 1980 o município constrói outro prédio com dois cômodos, sendo
uma sala de aula e uma cozinha.
Nessa época os Tapuio para continuidade dos anos seguintes de estudo que não era
ofertado na escola da aldeia tinha que ir para outras regiões do município para estudar. O
ensino oferecido na escola Tapuio por muito tempo foi multiseriado, ou seja, várias séries
(ano) em uma única sala. As aulas eram ministradas por duas professoras Tapuio.
107
Como citamos anteriormente, as mudanças ocorridas com a passagem da educação
para o MEC e Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, causaram, inicialmente, uma
situação difícil para ambos, principalmente pelo despreparo das pessoas que foram envolvidas
com a educação indígena nesse período. Com certeza levaram alguns anos para se
acostumarem e se prepararem para lhe dar com a educação indígena, mas hoje se percebe que
isso ficou para trás, o MEC tem buscado novos mecanismos para garantir de fato uma
educação diferenciada para os povos indígenas.
“É verdade que, hoje, a escola está tentando mudar o processo educativo oferecido aos
índios, buscando valorizar sua cultura, seu processo de ensinar e aprender, suas formas de
conhecer e de aprendizagem”. (AZARIAS, 2008, P.110). E para os Tapuio isso é uma
realidade, pois o primeiro passo foi conquistar a autonomia, através da gestão da escola e da
educação na sala de aula, executadas pelos próprios Tapuio. Isso com certeza contribui para a
conquista da educação diferenciada, pois não há uma interferência direta do não-índio no
cotidiano da escola e nem na comunidade. E os professores Tapuio tem inserido em suas aulas
a vida dos Tapuio, a arte, os costumes e o modo de ser. Os professores Tapuio que atuam na
escola tem formação superior, condição exigida na legislação brasileira para atuar como
professor.
A autonomia do povo Tapuia como de tantos outros povos indígenas só
poderá ser conquistada à medida que forem oferecidas condições necessárias
para que os indígenas possam ser ‘eles mesmos’, o que não supõe a
eliminação total da presença do Estado na vida indígena.” (AZARIAS, 2008,
P. 111).
A escola tem, portanto, contribuído para a autonomia dos Tapuio, que hoje tem “o
controle da educação na escola” e, desse modo, dos conhecimentos ofertados as crianças da
aldeia, ou seja, são os responsáveis pela educação de suas crianças e de seus jovens. Não há
interferência direta do não índio na transmissão desses conhecimentos, eliminando assim, o
que por séculos aconteceu com esse povo, uma educação voltada à cristianização, pacificação,
civilização e integração.
BIBLIOGRAFIA
108
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3. ed. – ver e ampl. – São Paulo: Moderna, 2006.
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_____, Pierre, Jean-Claude Passeron. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de
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3. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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109
VASCONCELLOS, Maria Drosila. PIERRE BOURDIEU: A HERANÇA SOCIOLÓGICA.
Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002, p. 79)
Pedagogía anarquista y estética de la existencia. Siete ejercicios espirituales para
docentes.
Tolstoi pedagogo
Un fragmento de un artículo de Tolstoi, “Una revolución sin ejemplo”, da cuenta de
una actitud característica en los seres humanos: la de vaciar las palabras y otorgarle un sentido
tergiversado:
“Hay un procedimiento muy usado por los hombres para justificar sus errores.
Considerando axioma irrefutable el error que profesan, confunden este error y todas
sus consecuencias en una sola idea y un solo vocablo, y luego atribuyen a la una y al
otro una significación vaga y mística. Tales son las ideas y palabras de Iglesia,
Ciencia, Derecho, Estado, Civilización. Así la Iglesia no es lo que es, o sea la reunión
de ciertos hombres caídos en el mismo error, sino la unión de verdaderos creyentes. El
Derecho no es el conjunto de leyes injustas elaboradas por ciertos hombres, sino la
definición de condiciones equitativas en que los hombres pueden vivir. La Ciencia no
es el resultado de azarosas especulaciones que ocupan a los ociosos, sino el único, el
verdadero saber. Asimismo la Civilización no es el resultado de las autoridades y de la
nociva actividad de las naciones occidentales que quieren librarse de la opresión por la
110
opresión, sino la sola vía cierta hacia la felicidad futura de los hombres”, (citado por
Barrett, AM, “Gorki y Tolstoi”, 1912: 69-70).
Todo educador debería tener este fragmento ante sus ojos para ser recordado una y otra
vez en las largas horas de trabajo en su escritorio. La historia ha dado numerosos y
escalofriantes ejemplos de esta tendencia humana y sus consecuencias en el campo político y
pedagógico.
A pesar de juicios sugestivos como éste, el pensamiento de León Tolstoi posee rasgos
propios que al lector contemporáneo, demasiado sujeto por categorías estancas, le resulta
extraño, de un sabor raro e incomprensible. Solo por citar un ejemplo, en la “Historia de las
ideas políticas” de Touchard, cuando se refiere al anarquismo, aclara: “¿Es preciso mencionar
el anarquismo de León Tolstoi? Se trata más bien de un moralismo obsesionado por el pecado
y deseoso de volver, mediante la humildad, a la ley de Cristo. Casi llega, mediante un rodeo, a
condenar la acción voluntaria del hombre, a rechazar las leyes, a abandonarse a un éxtasis
místico”; (Touchard: 2007: 552). No podemos detenernos aquí en esta afirmación, solo tal vez
advertir que no deberíamos desprendernos tan fácilmente de las consecuencias políticas de su
pensamiento. Veremos si en su concepción pedagógica existe tal “éxtasis místico” y ese
“moralismo obsesionado por el pecado”. Esas peculiaridades del pensamiento pedagógico de
Tolstoi se deben a un lento proceso de maduración y desarrollo, -proceso que da cuenta no
solo en sus escritos pedagógicos- en estrecha relación con sus ideas libertarias y religiosas, y
forjada además a través de su experiencia concreta como maestro.
Algunos rasgos de su pensamiento
La convicción profunda de Tolstoi, piedra angular de su pensamiento, diseminada en
toda su obra, es la certeza de que el problema fundamental e inmutable del ser humano, más
allá de las épocas, de los lugares o del estatus económico, es el de la vida: ¿qué justifica, qué
confiere sentido y valor a la existencia? La muerte aparece como el horizonte que empuja de
modo angustiante a responder esa pregunta.
Una primera respuesta, de inspiración roussoneana, consiste en concebir la felicidad
humana, su logro y desarrollo, en estrecho contacto con la naturaleza y como contrapartida,
alejado de la civilización que obstaculiza y desvía su desarrollo espiritual. La religiosidad de
Tolstoi es una religiosidad terrenal de evidentes implicaciones de carácter político-social, es
un cristianismo práctico, en el sentido de que los imperativos morales emanados de la lectura
bíblica, se vinculan estrictamente a la vida cotidiana; (Paradisi, 2007: 13).
Tina Tomassi sintetiza de este modo las implicancias de su pensamiento:
La suprema ley del amor impone el rechazo de cualquier tipo de injusticia y opresión,
incluidas las derivadas de la propiedad privada y de la cultura y de todos los
111
instrumentos que sirven para el dominio de pocos sobre muchos, empezando por el
estado; exige también el rechazo del juramento hecho a cualquier tipo de autoridad por
ser vínculo inadmisible para la conciencia, así como la no aceptación del matrimonio
legal, de las leyes penales y sobre todo del servicio militar”; (Tomassi, 1988: 134).
En la misma línea que Godwin y Proudhon, Tolstoi tiene más confianza en la
persuasión que en la fuerza; predica “la no resistencia al mal”, concepto polémico que le
granjeó muchas críticas, así como algunos seguidores (recordar el concepto de aimsha en
Ghandi). Pero, lejos de abogar por la resignación ante la injusticia, Tolstoi en su diario, en
1898 aclara: “Yo digo que no es necesario resistirse al mal con el mal”, queriendo decir,
aclara Tomassi, que “el ideal de la no violencia no excluye la lucha contra los adversarios,
con tal que sea conducida con otros medios, entre ellos eficacísimo del de la “desobediencia
civil”; (Tomassi, 1988: 135).
Más allá de que el mismo Kropotkin en la voz “Anarquismo” de la Enciclopedia
Británica pusiera a Tolstoi como ejemplo de una vida anarquista y del homenaje que Luigi
Fabbri le brindara ante su desaparición; (Fabbri, 1910), el antiteísmo, de fuerte arraigo en
muchos anarquistas, ha impedido valorar cabalmente su pensamiento. En nuestras tierras,
Rafael Barrett, homenajeando al escritor ruso ante la noticia de su muerte y un mes antes de
que ocurriera su propio deceso, escribía:
“En Tolstoi, el ascetismo estético se confunde con el ascetismo moral, el poeta con
el profeta. Es el anarquista absoluto. La tierra para todos, mediante el amor; no
resistir al mal; abolir la violencia; he aquí un sistema contrario a toda sociedad, a toda
asociación, sindical o no, fines de políticos, porque toda ley, todo reglamento, toda
forma permanente del derecho –derecho del burgués o derecho del proletario, -se
funda en la violencia”, (Barrett, AM, “La muerte de Tolstoi”, 1912: 7; subrayado
nuestro).
Aparece aquí, en esta llamativa referencia, una identificación entre la dimensión
estética y la dimensión ética, tema que posteriormente señalará Michel Foucault, como
veremos.
Ejercicios espirituales
En el ciclo de seminarios que Foucault dictó a propósito del estudio sobre las
relaciones entre sujeto y verdad en la antigüedad a través de la noción de inquietud de si, ha
sostenido que el siglo XIX fue un período en el que se intentó refundar una nueva estética y
112
una nueva concepción del ser humano57. En El coraje de la verdad, Foucault aborda el tema
de la “verdadera vida”, una estética de la existencia que pretende comulgar la búsqueda de
una existencia bella en la forma de la verdad y una práctica, buscar la forma más bella posible
de la existencia en la forma de la verdad y un ejercicio: el decir veraz; (Foucault, 2011). En
este sentido, retoma la tesis de Pierre Hadot, para quien las obras filosóficas de la antigüedad
no fueron concebidas como exposición de un determinado sistema, sino a modo de técnicas
que perseguían fines educativos concretos. Desde esta perspectiva hermenéutica el filósofo se
distancia de aquella imagen que lo presenta como un erudito, investigador del mundo, cuya
pretensión consistía fundamentalmente en informar a sus discípulos. Más bien, la actitud de
este amante de la sabiduría pretendía incidir en el espíritu de sus lectores u oyentes buscando
producir o formar en ellos cierto estado de ánimo. Estas técnicas Hadot las denomina
“ejercicios espirituales”; su ámbito no se reduce a una dimensión particular de nuestra
existencia, sino que su alcance es extraordinariamente amplio, abarca la totalidad de nuestra
vida cotidiana.58
Es interesante destacar, como sugiere el autor, que la idea de ejercicios espirituales
puede funcionar como base interpretativa para releer la historia del pensamiento de manera
que nos permita descubrir ciertas dimensiones filosóficas de algunos pensadores, dimensiones
que habitualmente son orilladas por el estudio tradicional de la historia de la filosofía; (Hadot,
1998: 42).
Foucault asume esta perspectiva, al punto que esta “la elección de vida como
escándalo de la verdad”, vale decir, este despojamiento de la vida como una manera de
constituir, en el cuerpo mismo, el teatro visible de la verdad, cree encontrarla en el cinismo
antiguo, y con él, a través de un movimiento “transhistórico”, también en el cristianismo y en
los anarquistas del siglo XIX; (Foucault, 2011: 195).
57
Las alusiones a lo largo del texto que recoge aquel seminario dictado entre 1981 y 1982 son las siguientes:
“Retomen toda la filosofía del siglo XIX [...] y verán que [...] ya sea descalificado, [...] o, [...] exaltado como
sucede en Hegel, [...] –el acto del conocimiento- sigue ligado a las exigencias de la espiritualidad. En todas estas
filosofías, cierta estructura de espiritualidad intenta vincular el conocimiento, el acto de conocimiento y sus
efectos, a una transformación en el ser mismo del sujeto”; (Foucault, Michel; 2006: 42). ...“Y puede pensarse,
me parece, toda la historia de la filosofía del siglo XIX como una especie de presión por medio de la cual se trató
de repensar las estructuras de la espiritualidad dentro de una filosofía que, desde el cartesianismo o, en todo caso,
la filosofía del siglo XVII, procuraba liberarse de esas mismas estructuras”; (Foucault, Michel; 2006: 42).
“Puede pensarse toda una zona del pensamiento del siglo XIX como [...] una serie de tentativas difíciles para
reconstituir una ética y una estética del yo. Ya tomemos, por ejemplo, a Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, el
dandismo, Baudelaire, la anarquía, el pensamiento anarquista, etcétera, tenemos toda una serie de intentos muy
diferentes unos de otros, claro, pero que, creo, se polarizan más o menos en torno de la cuestión: ¿es posible
constituir, reconstituir una estética y una ética del yo? ¿A qué precio, en qué condiciones? ¿O la ética y la
estética del yo no deben, en definitiva, invertirse para transformarse en el rechazo sistemático del yo?”;
(Foucault, Michel; 2006: 246).
58
Por una parte la palabra “ejercicio” remite a una práctica, una actividad, un trabajo en relación con uno mismo,
una ascesis del yo, forman parte de nuestra experiencia. El término “espiritual” no se limita a concepciones
religiosas o teológicas, abarca la “totalidad psíquica del individuo”, es decir, pensamiento, imaginación,
sensibilidad, voluntad. Constituye un modo de vivir, una forma de vida, una elección vital; “una práctica
destinada a operar un cambio radical del ser”, (Hadot, 1998: 42).
113
La vida de León Tolstoi es un cruce de caminos de estas tradiciones, y por tanto, no
permanece ajena a esta búsqueda incansable que alcanzó hasta sus últimos minutos; en él, la
elección de vida asumió el escándalo de la verdad a través de la excomunión, la
incomprensión de su esposa, el rechazo a la frivolidad de la aristocracia a la que perteneció, el
deseo de una vida purificada a través del contacto con la naturaleza, el desprecio a la
institución militar, el asumir una vida como campesino bajo el entendido de que quien no
comparte en algo la vida de los pobres es imposible que comprenda algo de sus existencias…
En sus propia vida buscó delinear esos trazos indelebles así como en la institución educativa
que creó; Yasnaia Poliana (YP), es un “teatro visible” de esa tarea. Tolstoi quiere hacer de YP
reflejo de una verdad, la de una experiencia educativa con niños concretos, que tienen
nombres y características singulares.
Yasnaia Poliana
En este sentido, la intención de Tolstoi al presentar la revista de Yasnaia Poliana es la
de describir la escuela desde un punto de vista "realista", si por él entendemos también el
movimiento estético-literario que el autor asumió como propio en sus novelas, por ejemplo,
en “Guerra y Paz”, obra de la que se ha dicho que refleja una “filosofía de las masas”, opuesta
a la de los héroes; (Tomassi, 1988: 8-9). La escuela de YP no pretende ser un "modelo útil y
bueno", "no quiero más que mostrarla tal cual es"; (Tolstoi, 1978: 20). Y esta "lisura" con la
que se propone describir la escuela, según la traducción que contamos, significa también
atrevimiento o desparpajo, ausencia de fingimiento. Tres son los propósitos que mueven esta
descripción:
1. dar cuenta de cómo se formó el espíritu actual de la escuela
2. por qué el autor la encuentra "buena".
3. por qué le sería "absolutamente imposible cambiarla, aunque quisiera".
Y sería imposible que una sola persona pueda cambiarla porque YP posee un “espíritu”
propio, este espíritu de la escuela presenta las siguientes características:
 Es algo indefinible
 Escapa a la acción del maestro
 Es algo desconocido por la ciencia pedagógica
 Sin embargo, constituye el buen éxito de la enseñanza
 “está sometido a leyes ciertas y a la influencia negativa del maestro”, “el espíritu de la
escuela se encuentra siempre en razón inversa de la intervención del maestro en la
órbita del pensamiento, en razón directa del número de alumnos, en razón inversa de
la duración de las lecciones, etc. “
114
 Este espíritu de la escuela es algo que se comunica de un alumno a otro… como la
saliva para la digestión.
¿En qué consiste? Principalmente, según la descripción que de ella hace Tolstoi, al
desarrollo libre de sus integrantes59: los estudiantes, por ejemplo, “tienen el derecho de no
frecuentar la escuela, y aún frecuentándola, pueden no escuchar al maestro”; esta práctica,
desconcertante para muchos docentes y observadores recién arribados a la escuela, no
obstante, “no va en detrimento de la autoridad del maestro”; (Tolstoi, 1978: 20). Por el
contrario, este ejercicio de libertad ha ido confirmando desde la fundación de la escuela una
regla: "A medida que adelantan los niños en el estudio, más se extiende la enseñanza y más se
impone la necesidad del orden (…) cuanto más instruidos son los discípulos, más capaces de
orden resultan, más sienten ellos mismos la necesidad de él, y más fácilmente, bajo este
punto de vista, se establece la autoridad del maestro"; (Tolstoi, 1978: 21).
Para salvaguardar este ejercicio de libertad, se busca evitar la certeza de un método
definitivo, el educador debe adaptarse al educando y al momento; este aparente “desorden”,
Tolstoi lo denomina "orden libre", y sostiene que es "útil e indispensable" para una correcta
educación de los niños; (Tolstoi, 1978: 21). Las principales limitaciones para la práctica de
este ejercicio las encuentra Tolstoi fundamentalmente en el mundo adulto: la instrucción que
hemos recibido nos condiciona terriblemente y nos impide comprender la fecundidad de este
ejercicio; por otra parte, la violencia ejercida por nosotros impide el desarrollo natural que
obtendrá un orden más "perfecto y estable" que el impuesto por el adulto; (Tolstoi, 1978: 21).
Supuestos:
a) los escolares son hombres, y todos los hombres tenemos las mismas necesidades, no los
subestima ni los minusvalora, esto atribuye responsabilidad y compromiso por parte de ellos.
b) sólo ceden a las leyes naturales o derivadas de la naturaleza (en consonancia con Bakunin y
Rabelais).
Indisciplinas:
Los dos casos de indisciplina que cita Tolstoi parecen dar cuenta de ello: el primero,
una pelea de niños, Tolstoi aconseja no intervenir, la multitud provocó sentimientos de
justicia: pegarse es desagradable. Generalmente cuando intervenimos, nuestros medios son
arbitrarios e injustos. El otro caso es el robo en el laboratorio de Física, los niños,
59
“J’estime aujourd’hui comme je l’ai fait autrefois que la liberté est une condition indispensable de toute
instruction vraie, aussi bien pour ceux qui apprennent que pour ceux qui enseignent ; cela veut dire que les
menaces, les punitions, tout aussi bien que les promesses de récompenses (privilèges, etc.) pour l’acquisition de
certaines connaissances ne concurrent nullement à la vraie, instruction, mais lui sont au contraire la plus grande
entrave » ; (Tolstoi 1925, 32).
115
reproduciendo la lógica de los adultos, reprodujeron prácticas similares a la de los
trabajadores forzados. Por esto, reflexiona Tolstoi:
“Estoy convencido de que la escuela no debe intervenir en la educación, pura incumbencia de
la familia; no debe castigar ni recompensar lo que ella no tiene derecho, que su mejor policía y
administración consiste en dejar a los alumnos en absoluta libertad de aprender y de arreglarse
entre ellos como mejor les parezca. Convencido estoy de eso, y no obstante las antiguas
costumbres de los establecimientos de educación están tan arraigadas en nosotros, que en la
escuela Yasnaïa Poliana nos apartamos con frecuencia de esta regla”; (Tolstoi, 1978: 25).
Ahora bien, para la consecución de este ideal, no hay que permanecer cruzado de
brazos, implica para el educador una disposición, una actitud espiritual con ejercicios bien
concretos, algunos de los cuales pueden entresacarse de la misma redacción que propone el
pedagogo ruso:
Ejercicios espirituales del educador:
1. Buscar por todos los medios que “nuestra astucia” no termine cercenando la facultad
de elección de los niños, no interferir en el proceso que ellos realizan; el ejemplo de
lectura e interpretación de un pasaje del Wig de Gogol, muestra la obstinación del
maestro en la comprensión de la forma de un pasaje que él mismo juzgó
posteriormente como mala, “había marchitado y pulverizado todas las flores de
inteligencia, poco antes abiertas en todos sentidos”; (Tolstoi, 1978: 60). Por otra parte,
que nuestra intervención como educadores no impida el desarrollo de su capacidad
para protestar, para la rebeldía (capacidad que Bakunin ya había señalado como la más
propiamente humana).
2. El ejemplo del aprendizaje de la lectura mecánica y progresiva echó a luz una actitud
usual en los docentes, que es preciso combatir: “El maestro está siempre impulsado
involuntariamente a escoger el procedimiento de enseñanza más cómodo –cuanto más
cómodo es este procedimiento para el maestro, más incómodo resulta para los
discípulos- sólo es bueno aquel que satisface a los alumnos”; (Tolstoi, 1978: 47-48).
3. Es imperioso –aunque parezca de Perogrullo- que el docente ame el estudio y “para
amar el estudio le es preciso reconocer su falsedad, la insuficiencia de sus
conocimientos acerca de las cosas, y presentir, por la intuición, el horizonte nuevo que
el estudio va a descubrirle”; (Tolstoi, 1978: 87).
116
4. Reflexionar sobre nuestros desaciertos, es preciso reconocer públicamente con
extraordinaria sinceridad cuando nuestro métodos no funcionan.
5. Estar abierto a experimentar constantemente; en el caso de la elección de un método
apropiado de lectura, por ejemplo, Tolstoi experimenta con todos los métodos que
conoce, los niños escogen el más apropiado. El escritor ruso está convencido que
todos los métodos presentan ventajas y desventajas: “Se ha dejado a cada alumno la
facultad de emplear todos los sistemas que le plazcan, y es de notar que cada uno de
ellos usa de todos los sistemas conocidos por mí”; (Tolstoi, 1978: 50). Es necesario
favorecer la diversidad y no un canon fijo, ya que “todas las buenas cualidades, se
tornan en defectos desde que este procedimiento, u otro cualquiera, se extiende a la
escuela entera”; (Tolstoi, 1978: 52). YP posee un “espíritu flexible”; (Tolstoi, 1978:
49), que posibilita esto, que cada alumno encuentre su método apropiado, una variedad
no regida por ningún principio común, uniformizado; (Tolstoi, 1978: 52). “La
dificultad nos parece tal, únicamente porque no logramos desembarazarnos del antiguo
prejuicio que consideraba la escuela como una compañía disciplinadora de soldados,
que hoy manda un subteniente y mañana otro. Para el instructor, familiarizado con la
libertad de la escuela, cada alumno tiene su propia individualidad; cada uno expone
sus gustos particulares, a los cuales sólo permite satisfacer la libertad de elección”;
(Tolstoi, 1978: 52-53).
6. El docente debe asumirse como intelectual, y no como mero funcionario o empleado
de una institución. Ante la posible objeción del benefactor: “¿es necesario enseñarles
tanto?”; “¿por qué perfeccionarlos hasta ese punto?”; (Tolstoi, 1978: 40), -y cuidado
que el Estado también asume, en ocasiones, el ropaje del benefactor- Tolstoi señala
que no es posible sepultar el tesoro que la humanidad nos legó: “Fedka, el hijo del
campesino está deseoso de investigar y se lo queremos impedir?; “Confiad el
campesino a la naturaleza, y veréis cómo él saca de ella lo que la historia os encargó
que le transmitiérais, lo que vuestros propios sufrimientos han elaborado en vosotros”;
(Tolstoi, 1978: 41).
7. Por último, la selección de la información curricular debe estar guiada por la
significación que docentes y alumnos le otorguen a la actualidad, al presente que los
envuelve, y para esto es preciso tener una mirada atenta. Para el estudio de la historia,
por ejemplo, sugiere comenzar no por el principio sino por el fin: “Cualquiera que
117
haya tratado mucho a los niños debe saber que, en el espíritu de todo pequeño ruso, el
universo entero es una Rusia como la habitada por él”; (Tolstoi, 1978: 98). Asimismo,
es preferible comenzar el estudio de la geografía “por la clase de la escuela, por
nuestro lugar”; (Tolstoi, 1978: 109). “Inspirar el deseo de saber cómo vive, ha vivido,
se ha transformado y desenvuelto el género humano en los diferentes reinos, saber las
leyes según las cuales la humanidad evoluciona eternamente, inspirar, de otro lado, el
deseo de comprender las leyes de los fenómenos naturales en el mundo entero y la
distribución del género humano sobre la superficie del globo”; (Tolstoi, 1978: 113).
Un problema actual:
Finalmente quisiera dejar planteado un problema que Tolstoi señala, y que estamos
lejos de haberlo resuelto: la distancia cada vez mayor entre la cultura popular y los mejores
frutos de la tradición cultural de la humanidad, “una cuestión insoluble para nosotros” afirma
Tolstoi; (Tolstoi, 1978: 57):
“Para la instrucción del pueblo es preciso darle la posibilidad y el deseo de leer buenos
libros; pues bien, los buenos libros están escritos en un lenguaje que el pueblo no
entiende. Para llegar a comprender es necesario leer mucho, y para tener afán por leer
es preciso comprender… ¿Cuál es el remedio, y cómo salir de esta situación?”;
(Tolstoi, 1978: 57).
Causas: “nuestro alejamiento del pueblo”; “acaso hoy el pueblo no comprende y no quiere
comprender nuestro lenguaje libertario, porque en él nada hay que comprender para el
pueblo” (…) Es necesario que el pueblo elabore nuevos conocimientos “que convengan a
todos (…) a las gentes de sociedad y a las gentes del pueblo”; (Tolstoi, 1978: 116).
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118
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curso en el Collège de France: 1983-1984, FCE, Buenos Aires.
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 Tomassi, Tina, (1988); Breviario del pensamiento educativo libertario, Ed. Madre
Tierra-Móstenes, Madrid,
 Touchard, Jean, (2007); Historia de las ideas políticas; Tecnos, Madrid.
“Las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques. La conferencia en el
Círculo Literario”
Petrucci, Liliana Cecilia.
119
Objetivo:
Analizar las ideas filosóficas y pedagógicas de Amadeo Jacques que tuvieron una fuerte
influencia en el Río de la Plata .En particular se abordará las contenidas en su conferencia
“Las artes, las ciencias y las letras”, dictada en el “Círculo Literario” de Buenos Aires en
1864.
-Justificación:
Este viajero intelectual se destaca por sus actuaciones pedagógicas y sus concepciones
filosóficas que dejaron una huella importante en el pensamiento filosófico y educacional del
Río de la Plata vinculada al ‘eclecticismo de cátedra’ (Roig 2006:11).Eclecticismo de cátedra,
positivismo, racionalismo espiritualista, son los nombres de las ideas filosófico-pedagógicas
que se vinculan a la contribución de Jacques y que se debaten en la construcción de “una
filosofía riorplatense”.
-Resultados esperados:
Despejar y deslindar la vinculación que realiza cierta re- construcción historiográfica de la
filosofía que ubica como antecedente del positivismo a la obra de Amadeo Jacques y que se
deben tanto al desconocimiento de sus ideas como a la indistinción entre racionalismo y
positivismo.
-Resumen de la presentación:
El presente trabajo forma parte del proyecto de investigación:"Discursos de viajeros europeos
y cultura escrita en la Argentina (1810-1910)" que se encuentra en proceso.
Amadeo Jacques (1813-1865) es precedido por un pasado “liberal republicano” jalonado por
las producciones e intervenciones en Francia que se vinculan a la filosofía y a la defensa de de
su independencia de la religión. (Roig 1997, Vermeren 1998). El exilio obligado por los
sucesos políticos en Francia en 1851 lo llevan a recalar en Montevideo en 1852, destino que
abandona debido a las dificultades y penurias económicas. Inicia así un itinerario por
distintas ciudades de la Confederación Argentina, entre ellas se destacan las actuaciones
realizadas en San Miguel de Tucumán y en Buenos Aires.
El influjo de sus iniciativas y concepciones fueron plasmadas en la dirección del Colegio de
San Miguel de Tucumán y como director del Colegio Nacional de Buenos Aires. Su
intervención en la organización de la instrucción general y universitaria está expresada en la
“Memoria de 1865”.
Se retomará en esta instancia la conferencia que dictó Amadeo Jacques en el Círculo
Literario de Buenos Aires el 30 de setiembre de 1864 sobre “Las artes, las ciencias y las
120
letras”. Dicho texto es considerado como el único propiamente filosófico publicado60 durante
su exilio (Vermeren, 1998). Allí se centra en la crítica a una filosofía abstracta y a las
“ciencias positivas” que en beneficio de la industria vaticinan la muerte del Círculo. Parte de
la consideración de la separación tajante entre las ciencias, las artes, las letras y la filosofía
que implican el desconocimiento de los fundamentos necesarios para el desarrollo fructífero
de las ciencias. Las mismas necesitan del desarrollo de la “inteligencia” y la sensibilidad para
no quedar formulas vacías que llevarían a una aplicación mecánica.
Ponencia:
Los discursos de los viajeros intelectuales se inscriben en una tradición cultural y
científica que, muchas veces, se articula a una significación político- económica -el viaje de
exploración, de conquista y dominio territorial, el científico, el burgués, el letrado…
(Colombi, 2006:13)-.
La circulación de lo impreso y el empuje que supondrá en el siglo XIX su
industrialización, la relevancia de la lectura y la escritura y sus modificaciones, se engarzan
con el proyecto ilustrado que los consideraba como condiciones para el ‘progreso’. En la
Argentina,
Tedesco (1993) destaca su impacto en la disputa por la orientación de la
instrucción –utilitaria o formación del ciudadano-.
Amadeo Jacques( 1813-1865) se destaca de entre los viajeros intelectuales que tuvieron
que emigrar de Francia- específicamente por los acontecimientos políticos ocurridos en 1851y por la huella que dejó en el “pensamiento filosófico y educacional” del Río de la Plata
vinculado al ‘eclecticismo de cátedra’(Roig 2006:11).Por otro lado, según la lectura de
Horacio Sanguinetti (1963) sus actuaciones en nuestras orillas no hubieran perdurado con la
resonancia que aún mantienen si no fuera por las páginas que le dedica Miguel Cané al
magisterio de Jacques en el Colegio Nacional de Buenos Aires en “Juvenilia”61(Sanguinetti,
1963:28)
60
Publicada en La Revista de Buenos Aires, bajo la dirección de Miguel Navarro Viola y Vicente G.
Quesada, Tomo V, 1864 (Mantovani, J. 1954: LXVII )
61
En “Juvenilia” Cané resalta que el estado de los estudios en el colegio era deplorable hasta que tomó su
dirección Jacques, el hombre más sabio que hasta el día haya pisado tierra argentina” (Cané 2007:33).La
filosofía, señala Cané, se renueva con el espíritu liberal que junto al cartesianismo estudia Bacon, Espinosa,
Hobbes, Condillac, Hegel, Kant, Fitche, entre otros. La que se inscribe en el eclecticismo presidido por Cousin,
“un sistema cuya vaguedad misma, cuya falta de doctrina fundamental, respondía maravillosamente a las
vacilaciones intelectuales de la época” (Cané 2007:34).
121
El exilio de Jacques está precedido por su producción filosófica, en especial el Manual de
Filosofía (1845) elaborado junto a Julio Simon y Emilio Saisset orientado a la segunda
enseñanza y con fines didácticos, sus intervenciones como docente de distintos Liceos y
como conferencista en la Escuela Normal Superior y en el debate filosófico –político a través
de la fundación, a fines de 1847, de la revista “La libertad de pensar” -proyecto del que
participa Julio Simon-. Su labor en la difusión y accesibilidad del conocimiento filosófico
mediante la publicación de distintas obras vinculadas a las ideas filosóficas en las que
abrevaba el eclecticismo de cátedra, merecen destacarse. La elección de los autores formaba
“parte de la estrategia de la escuela ecléctica de volver accesible un corpus que sirva de
referencia a la filosofía de la Universidad” (Vermeren, 1998:39).
Se formó en el eclecticismo de cátedra de Víctor Cousin signado por su ortodoxia, según
la lectura de Mantovani, y que en el despliegue de sus estrategias políticas implicará una
impronta conciliadora con la iglesia. Aspecto este último que marcará el distanciamiento de
Amadeo Jacques de su maestro. En el “concurso de 1843 en la Facultad de Letras”, Jacques
recalca que “el estoicismo” fundado en el deber y la razón prioriza la virtud y lo útil por
sobre el placer pero, a diferencia de este, se debe atender a todo lo que es humano en tanto
obra de Dios. Asimismo precisa que el enlace de “elementos aparentemente contradictorios”
no se realiza sin reglas –“elige, restringe y ordena lo que se encuentra en la naturaleza humana
y en la historia”- (citado por Vermeren, 1998: 35). Es así que, esta escuela se distingue por la
independencia del saber ligada al método y la claridad- de impronta cartesiana-.
El avance del “partido clerical” significó la puesta en disponibilidad, por decisión
ministerial, de A. Jacques (octubre de 1850) en las cátedras de filosofía que dictaba en
diferentes liceos. Posteriormente, la publicación en la revista republicana “La liberté de
penser”, en diciembre de 1850, de un artículo de su autoría tildado como contrario al
“cristianismo y a todos los cultos reconocidos en Francia y enseñados en los colegios”62,
conllevará su denuncia ante el Consejo de Instrucción Pública, y más tarde la expulsión y
prohibición de ejercer la enseñanza.
62
Nota del Ministro para la sección permanente del Consejo Superior, 26 de diciembre de 1850. Citado en
Vermeren, P (1998: 26)
122
Jacques abandona Francia y el 30 de julio de 1852 arriba a Montevideo con algunos
aparatos de física y una carta de Alejandro de Humboldt- donde “lo recomienda como un
sabio y un educador capaz de fundar en el Nuevo Mundo un importante establecimiento de
enseñanza”(Mantovani 1945:XXXI). En Montevideo dicta en la Universidad Mayor un curso
de física y química en español, público y gratuito, acompañado de experiencias prácticas
posibilitadas por el instrumental que traía consigo. A pesar de que tuvo muy buena recepción
el curso, no consigue una remuneración por lo que debe vender los instrumentos al Colegio de
Paraná dirigido por Alberto Larroque. A continuación realizaremos una apretada síntesis de
algunos aspectos destacados de su trayectoria.
Un viajero intelectual y pedagogo que en su patria se dedicaba a la filosofía y que en la
adoptiva se dedicará a las ciencias, en respuesta a las necesidades del medio rioplatense,
vinculada a su formación63. Como lo decía en una de sus cartas a Guillemont (1853) durante
su estadía en Montevideo, cuando todavía estaba itinerando en busca de un lugar, más que
juristas se necesitan hombres con conocimientos de agricultura, minería,…La enseñanza
práctica basada en las “ciencias de aplicación directa a la agricultura, al comercio, a la
industria” (Jacques, A. 1954: 59-60) adquieren preeminencia por sobre las especulaciones
metafísicas.
La distinción entre educación e instrucción, su distribución e impulso, se asentó sobre la
diferenciación entre las necesidades del pueblo, del ciudadano, y las de la élite -gobernante,
pensante, con talento y fortuna...-. Para estos últimos, a los que se acopla la distinción de
‘buenos’ alumnos, va dirigida la instrucción literaria equilibrada por los conocimientos
científicos más útiles.
En la carta de 1858 dirigida al redactor de “El Eco del Norte” reseña su propuesta de
educación para la juventud vinculada a su labor como Director del Colegio de San Miguel de
Tucumán (1858-1862), en donde destaca la formación requerida según las condiciones del
‘nuevo país’: “fundar…una escuela profesional, donde no se formarían sabios, sino hombres
útiles, ingenieros prácticos, contramaestres para explotaciones industriales y agrícolas,
presentes o futuras. Se enseñaría en mi escuela, sobre todo las ciencias positivas, y de estas
63
Contaba con el título de Licenciado en Ciencias Naturales y con experiencia práctica. Una formación que en
Francia era común a ciertos títulos en las dos facultades- Letras y Ciencias-.
123
ciencias no sólo el lado teórico, sino el lado práctico, es decir todo lo que tiene una aplicación
directa a las necesidades materiales y a las necesidades de la vida…” (Jacques en Mantovani,
1945: 62).
Esta referencia a las ciencias positivas, a una formación basada en ellas, puede ser el
equívoco que llevan a algunas interpretaciones posteriores a vincularlo con el positivismo,
desconociendo las diferencias de este con la ‘ciencia natural romántica’, además de las otras
aristas de sus ideas filosófico-pedagógicas.
Las intervenciones de Amadeo Jacques están vinculadas a la obra educacional de la
Presidencia de Mitre: a la organización del primer Colegio Nacional y al proyecto de
organización de la instrucción general y universitaria contenido en la “Memoria de 1865”
(Mantovani 1945: LX). Documento que Mantovani (1954), Caruso-Dussel (1997), Vermeren
(1998) signan como la ‘argentinidad de Jacques’, por la articulación que evidencia entre las
concepciones personales, su crítica a la organización de la formación en Francia, el
reconocimiento de las condiciones educativas, culturales, económicas y las necesidades de
‘desarrollo’ de la Argentina
Entre algunas de las cuestiones que singularizan su propuesta para organizar el sistema
de instrucción pública contenida en la Memoria de 1865, enfatiza la orientación de la
enseñanza elemental, los métodos de enseñanza que deberán estar guiadas por: la ‘sencillez’
de la forma, una ciencia vasta y variada y una inteligencia que puede poner el saber a la altura
de los alumnos. En relación a la educación secundaria expone y defiende los méritos de una
formación general por encima de las distintas carreras/oficios que la fragmentarían. Posición
fundada en la consideración de la inteligencia humana, la que está por encima de cualquier
aplicación y es la base para el entendimiento. Además, explicita la necesidad de mantener un
equilibrio entre el peso otorgado a las humanidades y a las ciencias. Liga la formación del
‘espíritu’ y la apertura de perspectivas que supone una formación general con la existencia de
una ‘nación civilizada’ (Mantovani 1945:18). Actuaciones sucintamente mencionadas que,
permitirán la inclusión de Jacques entre los “hombres de la generación de los constituyentes”
(Manganiello: 1980).
En nuestras orillas, el espiritualismo impulsado por la generación de 1837, por la cátedra
de ‘Ideología’ de Diego Alcorta en la Universidad de Buenos Aires y la traducción de la obra
124
de Víctor Cousin por sus alumnos, dará lugar al eclecticismo de cátedra (Roig 2006:11). La
generación del 37 irá apartándose del eclecticismo para adherir a un “racionalismo moderado”
que caracteriza también a Jacques, teniendo en cuenta su postura crítica respecto a la relación
iglesia- estado-educación y la “lucha ideológica” que lo distinguía. Una independencia que
Jacques enfatiza en la definición de la filosofía como el “deseo de saber más alto”, como la
“ciencia de los primeros principios”, de lo más científico, “de una ciencia de las ciencias”,…
(Jacques en Roig, 2006:40). La filosofía es pues, una epistemología y un saber axiológico.
Parte de una psicología de corte espiritualista para la que el hombre es una fuerza conciente
de su poder, el libre albedrío se apoya en la razón que es un reflejo de las ideas divinas,
absolutas y morales -que son a priori.
Un eclecticismo que irá modificándose para mantenerse como método, aunque el uso del
“Manual de Filosofía” perdurará en la enseñanza a través del magisterio de compatriotas,
discípulos y amigos de las ideas en distintos puntos del país hasta comienzos del siglo XX.
La conferencia conocida como
“Las artes, las ciencias y las letras”, denominación
otorgada por Juan Mantovani (1954: 157), fue pronunciada el 30 de setiembre de 1864 en el
Círculo Literario presidido por Juan María Gutiérrez.
Jacques comienza destacando que si bien es una asociación literaria, la literatura y las
artes siempre se han encontrado unidas en el coro de las ‘Musas’. Si bien la filosofía no ha
permanecida ajena, señala que aparece en su peor semblante, como silogismos abstractos o
como sofisticaciones. Pero más temible que esa filosofía le resulta la invasión de las llamadas
“ciencias positivas”, la química y sus ‘hedores’ y la física con la gravedad que provoca
pesadez, son algunos de los ejemplos de los palabreríos sin fundamentos que parecieran
vaticinar junto con “el arte industrial” la muerte del Círculo (Jacques en Mantovani, 1954:
157,158). Llama la atención semejantes diatribas cuando es Jacques el que preconiza un
conocimiento práctico y desplaza del centro de sus intereses a la filosofía en beneficio de la
enseñanza de las ciencias. Pero no nos apresuremos, pues tal vez la disputa no es entre una u
otra opción sino por el modo de articulación y el desplazamiento que implican. Es así que
reivindica al Círculo que ha unido la literatura, las ciencias, las bellas y las feas artes y
propone centrarse en los principios. Para ello parte de Platón, para descubrir la fuente de lo
bello que el filósofo griego denominaba “lo bello en sí y para sí” para posteriormente
determinar si la ciencia puede participar en ello. La referencia a Dios como dador de las
125
facultades principales de inteligencia y sensibilidad, le permite ir desarrollando su articulación
y presencia en la vida cotidiana que es causa de placer y admiración desinteresada. Parte de la
idea de “fuerza” para establecer su simplicidad e imposibilidad de definición y que atraviesa
tanto los fenómenos naturales- como fuerzas inanimadas- como los humanos, en tanto
animadas y conscientes (Jacques en Mantovani, 1954: 159,160). A pesar de las dificultades
para definirla, la misma se enlaza con la noción de fuerza de Leibniz para plantearla como
origen del sentimiento estético. Esa idea de inteligencia y sensación está presente en un
artículo que había publicado en la revista “la Libertad de Pensar”- Tomo I de 1847-, titulado
“De l’imagination en matière philosophique”, que analiza Arturo Andrés Roig (2009).No nos
detendremos en la referencia a la imaginación y al uso de metáforas a las que no escapa la
teoría platónica. Sólo queremos mencionar la vinculación de la inteligencia con “la fuerza
pura” que en tanto no se somete a la realidad física y se trasciende a sí misma. Es “lo que se
llama conciencia o razón desde donde aprovechamos los datos que nos ofrece la sensación”
(Jacques comentado por Roig, 2099: 799). La participación de la imaginación en la razón y el
lenguaje, reconocida desde Aristóteles, no implica negar la capacidad de juzgar de la razón
(Jacques comentado por Roig, 2099: 800).
Retornando a la conferencia presentada en el Círculo, se refiere a partir de distintos
ejemplos, a la ciencia de la fuerza denominada “Mecánica”. Señala los principios abstractos y
racionales que la caracterizan además de sus múltiples aplicaciones. La reivindicación de sus
resultados amerita la vinculación de la literatura con ella. Su estudio permitiría un mejor
entendimiento y no está reñida con la búsqueda de lo bello que peculiariza a la literatura. En
esta relación entre la ciencia y la literatura, tal vez podríamos reconocer la recepción de la
ciencia en clave romántica y racionalista. Una vinculación que se reitera cuando se refiere a la
“fuerza moral, esto es la voluntad libre de los arrebatos de la pasión, luchando contra los
obstáculos y enemigos de afuera…” (Jacques en Mantovani, 1954: 162) En esa distinción
entre un adentro y una afuera nos resuenan los ecos de la concepción cartesiana del sujeto.
Pero, sin embargo se contrapone a la separación abismal entre un “yo” y un “no yo”, que en
Cousin conlleva el secuestro de la psicología en el recurso a la imaginación para salvar ese
abismo.
A partir de la analogía propuesta por Pascal: “El hombre es una pajilla la más débil de la
naturaleza; pero es una pajilla que piensa”, reivindica los valores ilustrados y su relación en la
126
literatura con el Drama y la Novela, y con los que son objeto de estudio en la ciencia
psicológica. Esta última también está llamada a proveer al arte literario de “verdades
científicas” que le otorgan valor y fundan “lo verdaderamente bello”. Una vinculación que se
reitera entre la arquitectura- en tanto belleza de los monumentos- y los rigores y aridez de la
geometría que, participa de lo bello. “…las condiciones científicamente demostradas de la
regularidad, del orden y de la simetría de las figuras hiere penosamente la vista de los
ignorantes así como de los sabios” (Jacques en Mantovani, 1954: 163). Acá vemos como a
pesar de la diferencia que hace la ilustración, tiende un hilo sensible y estético entre sabios e
ignorantes. Una cuestión que nos parece una singularidad que se diferencia de la distancia
planteada por Cousin entre las clases populares y las élites”. Para Cousin, la filosofía en las
clases populares no sólo es ingenua sino que está abocada a la moralización a través de la fe
cristiana y sus principios éticos (Vermeren, 2009:188).
La Música no escapa la articulación que viene proponiendo entre las ciencias y las bellas
artes, en este caso con la física, aunque la matemática tampoco le es ajena. La física provee de
las “razones profundas y las condiciones necesarias de la armonía de los sonidos” (Jacques en
Mantovani, 1954: 163).
Si bien no “todo lo que es bello resulta de un fin alcanzado; ni conseguir su objeto es
siempre una condición suficiente de belleza”, recalca cuando se refiere a los comentarios
sarcásticos de Voltaire, que la locomotora puede ser objeto de admiración por su fuerza, por
la disposición hábil de todos sus ‘órganos’. Y
a pesar de su hollín supone emociones
artísticas, “él es un artista, pues, a su manera: pensabais que esto era pura mecánica, y había
sido casi estética” (Jacques en Mantovani, 1954: 165, 166).
No podía faltar a esta convocatoria que venimos comentando la “Historia Natural”. A
partir de la observación del comportamiento de las abejas, seleccionado de uno de los tomos
de M. de Saussure, y de los experimentos que realizó, le permiten concluir que la sabiduría en
la conducta de los abejas, como en otros tantos estudios de la historia natural ameritan formar
parte de una rama de la Literatura.
No podía faltar a la cita el “Arquitecto Supremo”, el “eterno Geómetra” que, sin menguar
su presencia, la ciencia aporta los conocimientos de cálculo, la geometría y la mecánica que
permiten predecir el movimiento de los planetas. “…el cálculo es la más poderosa de cuantas
127
ha inventado el genio del hombre. Alivia a la mente del peso del pensamiento, permitiéndole
operar mecánicamente sobre el signo, sin ocuparse de la cosa significada… formulas bonitas,
como hay hermosos teoremas y demostraciones elegantes” (Jacques en Mantovani, 1954:169)
Concluye la conferencia reafirmando la vinculación del artista con el sabio, de la literatura
con la ciencia, “puesto que lo bello no existe separado de lo verdadero y no es sino uno de sus
aspectos”. Rechaza a su vez la “retórica escolástica, que enseña a decir agradablemente unas
nadas y a rescatar por lo precioso de la forma, lo insignificante de la materia” (Jacques en
Mantovani, 1954: 169).
Con la frase de Platón “la belleza es el resplandor de la verdad” rescata la necesaria
identificación entre sí de “lo verdadero, lo bello, lo justo y lo útil”. Esta ligazón propuesta
podría ser considerada como la cautela y balance de la imaginación que provee el uso de la
razón, de la inteligencia y de la ciencia para discernir las falsas imágenes de las verdaderas y
fructíferas.
La separación postulada entre la ciencia y la literatura que recorre Jacques para demostrar
su mutuo enriquecimiento, supone una polémica con la institucionalización de su diferencia
en la universidad. La instauración de las fronteras entre la ciencia y ese resto no controlableque es la literatura-, está marcada por la sospecha que recae sobre las pasiones y fantasías que
erosionan la estabilidad de una identidad – preocupación presente en Platón- y por no
ajustarse a los parámetros de cientificidad. Según lo que plantea de Certeau “el divorcio entre
la historia y la literatura” es de larga data y comienza a evidenciarse en el siglo XVII a través
de la ruptura entre “historias” y “memorias” que divide el “campo de la literatura histórica”.
Separación entre las “letras” y las “ciencias” legitimada en el siglo XVIII e “institucionalizada
en el siglo XIX por la organización universitaria” (de Certeau, 1998:97) Un señalamiento que
nos permite situar a Jacques a contrapelo de una tendencia espiritualista y cientificista desde
un racionalismo que apuesta contra del ‘genio maligno’ cartesiano, a la libertad del ser que
puede resistir y desconfiar de la imaginación. En este sentido Roig comenta la crítica que
Jacques realiza a Cousin en el artículo sobre la imaginación, citado precedentemente (“De
l’imagination en matière philosophique”), que ha caído en un “abuso de imaginación y
metáfora” convertido en “sistema” (Roig, 2009: 800).
128
En síntesis, el planteo de Jacques en la conferencia del “Circulo Literario” no coincide con
la atribución positivista que, posteriormente, algunos de los que emprenden la construcción
historiográfica de la filosofía en el Río de la Plata le atribuye. Indudablemente no es la ciencia
la que queda desplazada en provecho de una especulación metafísica, sino que se le asigna a
la filosofía una función epistemológica, una ciencia de la ciencia que junto a las artes y las
letras permiten una comprensión más profunda, armónica y estética. Sin embargo, nos parece
se presenta una oscilación en la consideración de la imaginación, su reivindicación es
modulada y corregida por la filosofía en tanto epistemología y axiología y por la ciencia en
tanto conocimiento de los principios materiales. En este sentido, entendemos que la diferencia
planteada por Jacques con el espiritualismo y el cientificismo se basa en un racionalismo que
apuesta a la libertad y a la imaginación regulada/encaminada por la razón.
Salvo esta Conferencia en el Círculo Literario que se inscribe en la filosofía, las
actuaciones de Jacques durante su exilio estuvieron vinculadas a las intervenciones
pedagógicas y docentes. Condiciones y producciones que suscitan diferentes interpretaciones.
Por un lado, están las que destacan el lugar excepcional del Manual de Filosofía, las tesis de
doctorado y la Memoria sobre el sentido común (Ponce 1958[1927]:154). Por otro, las que
vinculan la interrupción de su proyecto filosófico a: los conflictos políticos sufridos por
Jacques que lo obligaron al exilio, a su apuesta pedagógica y a las demandas del naciente
“Estado moderno Argentino” que lo llevan a priorizar la popularización de los fundamentos
naturales de la ciencia (Vermeren 1998: 107/117). Retornando así, a lo que siempre lo
distinguió la enseñanza, dar clase. La docencia sin “obra filosófica”pero sí, propositiva,
proyectiva y como relación educativa. Aparecen esbozadas dos modos de relación con ‘el
otro’, por un lado la vinculada a la noción de “progreso” – vinculadas fundamentalmente a
las propuestas educativas de Jacques- y por otro, la escritura, su desplazamiento, su modo de
presencia- ausencia. En la definición de “progreso” en el “Dictionnaire Général
de la
Politique par Maurice Block” publicado en 1884, que recorre Weinberg (1995), está presente
como el adelanto hacia la perfección ideal, las conquistas del hombre sobre la naturaleza, el
descubrimiento de una nueva ley, el desenvolvimiento de los principios de la razón,…
(Weinberg, 1995:187). El progreso ligado al bienestar y al desarrollo de las ciencias y la
industria, como lo destaca el eminente historiador argentino, se irá incorporando al lenguaje
cotidiano, un lugar común que trasunta un “estilo de vida” y un “espíritu”. En América
Latina, con sus diferencias, significará la “europeización” en tanto expresión ideológico129
política de la “oligarquía liberal”. La exaltación del cosmopolitismo en detrimento de la
creación cultural, la adhesión a las pautas culturales y educacionales de Europa y de Estados
Unidos, se articulan al denominado “desarrollo nacional” (Weinberg, 1995:216).
Por otro lado, la escritura como el ‘otro’, como el logos encarnado en el cuerpo, haciendo
cuerpo, aparece vinculado a ese otro rasgo que distingue el proyecto ilustrado o
revolucionario (de Certeau, 1996:157), la teoría transformando la historia y la naturaleza en
pos de la ‘civilización ‘ y el ‘progreso’.
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131
A respeito de uma concepção filosófica da educação no advento da modernidade: um
estudo sobre o lugar da filosofia no ensino jesuítico do século XVI
Marcos Roberto de Faria
Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/Brasil
[email protected]
Resumo
O trabalho tem por objetivo investigar o “lugar” ocupado pelas disciplinas filosóficas no ensino
jesuítico do século XVI. Para tanto, faz-se uso de uma documentação muito pouco explorada,
pesquisada no Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma. Os documentos escolhidos para esta
pesquisa são aqueles que se referem, sobretudo, às práticas educacionais dos padres da Companhia de
Jesus na América portuguesa do século XVI. A partir de tal documentação, foi possível fazer alguns
apontamentos a respeito do currículo e das disciplinas ministradas nos colégios jesuíticos, perceber a
importância dada a cada uma destas disciplinas e verificar as exigências feitas para se cursá-las. A fim
de aprofundar essas questões, recorreu-se também ao texto do jesuíta Cipriano Soares, que em 1562
escreveu a Arte de retórica, um manual utilizado nos Colégios dos jesuítas no período. Para Soares, o
132
objetivo deste manual era o de “ajudar os adolescentes a ler os doutíssimos livros de Aristóteles, de
Cícero e de Quintiliano, em que se contêm as fontes da eloquência”. Ao incluir este manual,
objetivou-se situar em seu tempo as temáticas filosóficas e os autores escolhidos como referência para
o ensino no período, em sintonia com as “convenções retóricas” contra-reformistas. Nesse sentido, o
problema de pesquisa aqui levantado pode ser apontado pelas seguintes questões: qual o “lugar”
ocupado pelas disciplinas filosóficas no ensino ministrado pelos padres da Companhia de Jesus no
século XVI? Pela análise da documentação estudada, é possível afirmar que a filosofia permanece
ainda como “serva” da teologia neste período? A partir da análise destas fontes, que contribuições
podem ser oferecidas no sentido de se conhecer melhor a concepção filosófica da educação no
período? A documentação utilizada nesta pesquisa, certamente caminha na direção de avançar no
esclarecimento destas questões. Justifica-se, portanto, o aprofundamento das perguntas levantadas,
sobretudo porque a pesquisa, ao privilegiar o uso de fontes pouco exploradas, oferece algumas
contribuições no sentido de se conhecer um pouco mais a respeito das concepções filosóficas da
educação dispostas pela Contra-Reforma no decorrer do emblemático século XVI.
Palavras-chave: Contra-Reforma, Jesuítas, Século XVI.
Agradeço à CAPES pela bolsa de estudo e à FAPEMIG pelo apoio.
1. Introdução
Certamente é possível afirmar que o século XVI é marcado por uma crise que se instalou na relação
entre religião, poder e relações sociais. Como consequência, pode-se dizer que a Igreja Católica lança
mão de vários instrumentos de “ordenação”, usados para “colocar tudo em ordem” 64. Dentre estes
instrumentos, pode-se afirmar que a organização de uma “campanha pedagógica”, tendo como base
formar para a “virtude” se constituiu, como uma de suas principais expressões. Esta “campanha”, se
fez ainda por meio de um rígido controle sobre as letras e as práticas de instrução neste período. Como
consequência, percebe-se o enrijecimento dos modos de prescrever o que se deveria conhecer, a forma
como deveriam ser repassados os conteúdos e quem deveriam ser os sujeitos considerados “capazes”
de aprender o que era “digno” de conhecimento.
Cabe salientar, ademais, que a chamada Contra-Reforma apropriou-se de grandes tradições filosóficopolíticas para embasar suas práticas. Nesse sentido, o artigo considera essas tradições, que são
fundamentais para a compreensão de aspectos da concepção filosófica da educação disposta pela
64
Para Hansen, “ordem” é um conceito teológico-político que regula virtude e vício (Cf. HANSEN, 2004, p. 26).
É nesse sentido que esse conceito deve ser tomado aqui.
133
Contra-Reforma e sua relação com a atuação de agentes considerados a principal expressão deste
movimento: os jesuítas.
2. Desenvolvimento
2.1. Sobre o lugar da filosofia na prática pedagógica jesuítica: um estudo sobre as
convenções retóricas contra reformistas
Na verdade a eloquência não é mais do que a sabedoria que fala com abundância.
Cipriano Soares
Os padres da Companhia de Jesus estavam ligados às disposições retóricas, sobretudo com o intuito de
serem úteis e eficazes no trabalho missionário. Para eles, era preciso persuadir pela fala e pela escrita.
Em 1562, o jesuíta Cipriano Soares escreveu sua Arte de retórica, um manual usado nos Colégios dos
jesuítas no período. Na saudação que Soares fazia ao “leitor cristão”, logo no início do texto, lia-se:
os nossos superiores desejavam que todas as partes da eloquência explicadas por definições,
ilustradas com exemplos, fossem compendiadas num livro, com método e ordem, baseado no
pensamento de Aristóteles, e não só no pensamento mas também frequentemente nas palavras
de Cícero65 e Quintiliano. Julgavam que havia de ser possível, se isso se fizesse, que os
discípulos, juntamente com os vulgares preceitos de Retórica, percebessem aqueles mais
recônditos acerca dos lugares-comuns dos argumentos, da amplificação, do tipo de discurso e
de número oratório. Esta missão, tendo-a eu tomado por vontade daqueles a quem de bom
grado entreguei os planos da minha vida, reuni nestes três livros os preceitos da arte da
palavra; fi-lo na medida em que as exíguas forças do meu talento o puderam realizar e
conseguir, para ajudar os adolescentes a ler os doutíssimos livros de Aristóteles, de Cícero e de
Quintiliano, em que se contêm as fontes da eloquência (SOARES, 1995, p. VIII – grifos
meus).
65
Em seu instigante estudo, Adverse destaca que no período sobre o qual se ocupa este trabalho, Cícero aparece
como “o grande restaurador da dignidade da retórica, porque ela desempenha em seu pensamento uma função
muito mais importante do que no pensamento aristotélico. Para Cícero ela está longe de se reduzir a uma techné.
Além do mais, não apenas em seus textos mas também em sua vida Cícero realiza a união entre eloquência e
atividade cívica, ou seja, ele encarna a figura do orador. Daí é possível compreender mais uma característica do
vínculo que atrela a retórica à política. A ligação entre uma e outra é, sobretudo, ética. No ideal do vir bonus
vemos fundidas as imagens do orador e do político, o que significa que o problema da eloquência não pode ser
dissociado do problema das virtudes e da excelência. Para sermos mais precisos, moral, política e retórica são
domínios que se sobrepõe, que se complementam tanto no pensamento ciceroniano quanto no humanismo
renascentista” (ADVERSE, 2009, pp. 140-1).
134
Como é possível notar pelo excerto citado, os jesuítas bebiam em fontes antigas e delas retiravam o
fundamento para sua prática.
Para O’Malley, o conteúdo ético dos clássicos e sua necessidade para o cultivo de um estilo agradável
e persuasivo de discurso para o ministério eram a base principal com a qual os jesuítas justificavam os
clássicos para si mesmos66. Argumentavam, ainda, que o estudo dos clássicos era útil para entender a
Bíblia (O’MALLEY, 2004, p. 399).
Hansen destacou que a retórica assumia, assim, papel fundamental na prática dos padres. Nesse
sentido, o Ratio studiorum especificava que a retórica deveria dar conta de três coisas essenciais que
então resumiam e normalizavam toda a educação: os preceitos, o estilo e a erudição. O autor reforça
que, para ensinar estas três coisas em seus Colégios na formação dos futuros pregadores, os jesuítas
recuperaram as autoridades antigas, principalmente Cícero e Quintiliano.
No século XVII, a Retórica ensinada segundo essas fontes fundamenta todas as artes, que
então se associam intimamente à difusão do modelo cultural do cortesão, como apologia do
ideal civilizatório da discrição católica fundamentada na prudência das ações, na agudeza da
dicção e na civilidade das maneiras... (HANSEN, 2001b, p. 26).
Neste contexto, é pertinente destacar que Hansen discute um tema importante para a
discussão deste artigo: o ideal de homem discreto visado pela educação jesuítica. Para tanto, o
autor recorre à obra El discreto, de 1646, do jesuíta espanhol Baltasar Gracián, na qual se
tratou da vida sob o ponto de vista da morte e dos fins últimos, prescrevendo que a educação
era uma arte que preparava o discreto para morrer bem.
66
E o estudo dos clássicos era um meio para se alcançar a sabedoria. Soares, ao escrever sobre “os bens do
espírito e a virtude que se vê pela ciência”, destacava que a sabedoria “é a principal de todas as virtudes, é a
ciência das coisas humanas e divinas. As outras qualidades na verdade são como que servas e companheiras da
sabedoria; uma delas chama-se dialética e indica e avalia as coisas que são verdadeiras e falsas pela discussão; a
outra chama-se oratória. Na verdade a eloquência não é mais do que a sabedoria que fala com abundância. Esta
retirada do mesmo gênero que a que se aplica à discussão é mais abundante, mais extensa e mais apropriada a
incitar as paixões do espírito e a sensibilidade do vulgo. Também o estudo de todos os conhecimentos
intelectuais tem a ver com este tema” (SOARES, 1995, pp. 34-5).
135
Etimologicamente, o substantivo discreto, como em ‘o discreto’, vem do particípio passado do
‘discernir’. O termo significa a qualidade intelectual do juízo capaz de penetrar no mais
intrincado dos assuntos, como perspicuidade ou perspicácia, para distinguir o verdadeiro do
falso e estabelecer o meio-termo justo que é próprio da prudência. A discrição relacionava-se
intimamente ao talento intelectual da invenção, o engenho, definido nesse tempo como um
talento natural onde convergem retórica e dialética, ou seja, capacidade lógico-analítica da
avaliação dos assuntos, como juízo dialético, que se acompanha de formas sintéticas ou agudas
de expressão. Como uma categoria central dos Exercícios espirituais, de Inácio de Loyola, no
mundo católico dos séculos XVI e XVII a discretio significava a capacidade lógica e ética de
discernimento do juízo aconselhado pela luz natural da Graça inata (HANSEN, 2002, pp. 6465 – nota).
Para Hansen, o discreto, “enquanto não morre, aprende a controlar as paixões,
integrando-se virtuosamente no ‘corpo místico’ da monarquia absoluta orientada pela ‘razão
de Estado’. Nela, a liberdade individual é a ‘servidão livre’, doutrinada por Suárez, ou
submissão à hierarquia, na qual a posição se deduz da forma de representação verossímil e
decorosa aplicada às várias ocasiões. É a educação que fornece tal conhecimento e suas
pragmáticas”. Desde menino, o discreto se prepararia para entrar no mundo da Corte,
dedicando-se inicialmente ao estudo de línguas, com as quais se formaria e informaria.
“Aprende ‘duas universais’, o latim e o espanhol, e outras, ‘singulares’, grego, italiano,
francês, inglês e alemão. Depois, dedica-se à história, definida ciceroniamente como magistra
vitae, mestra da vida”. A memória do discreto era definida como uma parte da prudência;
esta, por sua vez, seria virtude própria de príncipes e repartida com muita avareza pela
natureza. “Se a muitos deu grandes engenhos, a poucos conferiu grande prudência. Assim, a
educação jesuítica ordenada pelo Ratio studiorum ensina a adquiri-la no exercício dos atos de
uma educação de letras, artes e teologia a ser complementada pelo exercício das armas”. Tal
educação reedita um mito heróico e faz da vida uma obra de arte (por exemplo, com os
Exercícios espirituais, de Loyola) (HANSEN, 2001a, pp. 36-40).
A meu ver, as questões apontadas acima são fundamentais para o estudo dos ideais educacionais do
movimento contra-reformista. Vejamos, portanto, como se deu esta campanha na América portuguesa.
136
2.2. A respeito do lugar das disciplinas filosóficas na campanha pedagógica jesuítica na América
portuguesa
Quais eram as disciplinas ministradas nos colégios jesuíticos no período? De acordo com Leite, os
Colégios procuraram adaptar-se ao Ratio studiorum gradativamente. No Brasil do início do XVII liase neles:
Retórica: O 6º livro da “Eneida” de Virgílio; o 3º livro das “Odes” de Horácio; Cícero, “De
Lege Agraria”, e “De Oratore”; - em grego, os “Diálogos” de Luciano. Humanidades67: “De
Bello Gallico” de César, o 10º livro da “Eneida”, e a Gramática grega. 1ª Classe de
Gramática68: o 5º livro da “Eneida”, a “Retórica” do P. Cipriano Soares, e o Discurso “Post
Reditum”, de Cícero. 2ª Classe de Gramática: Cícero, “De Officiis”; Ovídio, “De Ponto”
(Pônticas). 3ª Classe de Gramática: Ovídio, “De Tristibus”, “Cartas” de Cícero. 4ª Classe de
Gramática: Cartas Familiares de Cícero e a 2ª Parte de Gramática Latina. 5ª Classe de
Gramática: Rudimentos da Gramática Latina, com uma seleção das Cartas de Cícero (LEITE,
História da Companhia de Jesus no Brasil – (HCJB), VII, pp. 151-2).
O programa acima era o do Colégio de Évora, do ano de 1563. De acordo com Leite, estes estudos
correspondiam aos usados sempre no Brasil. Para o autor, “o Brasil procurou adaptar-se à lei geral,
mas a princípio estava mais próximo do programa do Colégio de Évora de 1563” (LEITE, HCJB, VII,
p. 152).
A partir, contudo, do acesso ao documento que tratava do modus parisiensis, adotado desde o
nascimento da Companhia, vê-se que essa divisão em classes e a determinação específica sobre o que
se ensinaria em cada uma delas era uma prática adotada por toda a Companhia e que não estava,
portanto, restrita ao Colégio de Évora. Observe-se o que diz o documento:
“Modo parisiense” modelo de estudos da Companhia de Jesus – Aqui cabe dizer alguma
coisa sobre o “modo parisiense”. Com efeito é motivo de louvor do Padre Nadal ter aplicado e
posto em prática este modo tão louvado pelos nossos, em Messina, para a finalidade da
Companhia. O Modo Parisiense opõe-se ao Modo Italiano. Neste momento em Paris na vida
universitária prevalece o corpo dos professores, na Itália o corpo dos estudantes; lá as leituras
67
No entender dos jesuítas, o estudo das humanidades ajudava na compreensão da Sagrada Escritura. Era uma
matéria propedêutica tradicional para a filosofia que proporcionava uma introdução sólida para outros assuntos,
habilitava a pessoa a expressar melhor seus pensamentos e desenvolvia os talentos em oratória que os ministérios
jesuítas requeriam. Para O’Malley, os jesuítas adotaram o programa humanístico por determinadas razões, mas
especialmente porque, assim como seus contemporâneos acreditavam, os estudos humanistas formavam o bom
caráter, pietas (O’MALLEY, 2004, pp. 328-31).
68
Entenda-se gramática como aula de latim.
137
são feitas em Colégios agregados à universidade, aqui na própria universidade; lá grande
disciplina, aqui grande liberdade dos estudantes; em Paris um caminho escolástico bem
determinado a ser percorrido pelo professor e pelos estudantes, leituras do professor mais
frequentes, às quais se seguem exercícios escolásticos; são constituídas classes distintas, nas
quais são colocados os discípulos segundo a doutrina; para cada classe é designado um
mestre próprio e a matéria a ser transmitida; os discípulos são promovidos à classe superior
após rigoroso exame; o relacionamento entre o mestre e o discípulo é familiar; e aquele é
solícito para com o aproveitamento deste na doutrina. Estas são algumas propriedades do
modo parisiense, em virtude das quais a Companhia prefere este modo ao italiano; de fato, por
este método o jovem percorre o caminho escolástico mais rápida e frutuosamente (Monumenta
Paedagogica Societatis Iesu – (MPSI), Vol. 5, p. 5 - grifos meus).
De acordo com O’Malley (2004, pp. 337-8), o modus parisiensis era, de fato, o polo oposto de muito
do que encontravam nas escolas italianas. Era baseado num exigente programa de aulas,
complementado por uma ordem de exercícios, repetições e disputas. Os estudantes de todos os níveis
eram divididos em classes de acordo com um plano estabelecido de progressão do domínio de uma
habilidade para o domínio da próxima. Exames determinavam quem estava pronto para passar à nova
classe. Uma “classe” representava uma unidade de trabalho a ser assimilada, não um período de
tempo. Portanto, os alunos mais brilhantes poderiam progredir através do currículo mais rapidamente
do que outros. Para o autor,
Esses princípios e técnicas, embora aplicados às “letras humanas”, desenvolveram-se em Paris
como parte da tradição escolástica, com uma grande tendência à ordem, ao sistema e à
“disputa”. O modus parisiensis abarcava muitas coisas, mas o que mais claramente deu ao
sistema jesuíta foi um plano organizado para o progresso do estudante por meio de matérias
incrivelmente complexas e uma codificação das técnicas pedagógicas designadas a provocar
uma resposta ativa do professor (O’MALLEY, 2004, p. 338).
As aulas e o programa das práticas religiosas formavam a espinha dorsal dos Colégios jesuítas, mas
também eram importantes desde o início as peças de teatro e as celebrações acadêmicas nas quais os
estudantes exibiam seus talentos e habilidades para um público mais amplo. Em Paris e em outros
lugares, os primeiros jesuítas tinham aprendido que tais eventos faziam parte do exercitium requerido
de estudantes e eram, portanto, uma parte integral de sua educação. Os jesuítas levaram a memória
desses “espetáculos” com eles para a Itália e estavam conscientes de onde obtiveram seu modelo,
porque abriram o ano acadêmico em Ferrara em 1552 com poemas latinos e discursos recitados pelos
estudantes num programa “celebrado em estilo parisiense” (O’MALLEY, 2004, pp. 344-5).
138
Os jesuítas produziram uma imensa quantidade de documentação concernente a seu empreendimento
educacional na medida em que se direcionavam para a edição definitiva do Ratio studiorum em 1599.
Porém, de acordo com O’Malley, a grande quantidade de seus escritos referentes à educação torna
difícil o trato de seus conteúdos. “Os documentos tendiam, além disso, a misturar características que
hoje seriam claramente separadas em capítulos, descrições e tarefas, ‘afirmação de missão’, perfis do
graduado ideal, esquemas de aula, currículos, técnicas pedagógicas e cursos” (O’MALLEY, 2004, p.
352).
Bem, se as determinações concernentes ao empreendimento educacional inaciano eram complexas,
penso que, na Província do Brasil, as determinações locais (do provincial, do reitor ou do visitador)
eram o que realmente se praticava como norma no âmbito educacional. Mas essas determinações não
estavam sistematizadas por assunto, como nos documentos oficiais da Companhia. Nesse sentido,
pode-se discutir a questão da adaptação gradativa do Brasil às normas do Ratio, como foi apontado por
Leite, pois os documentos oficiais, em muitos casos, eram inaplicáveis aqui, principalmente nas
aldeias. Por outro lado, na Europa o caminho que se fez foi diferente. Dessa forma, de acordo com
Dainville (1978), na Europa, os anos de 1600-1660 caracterizaram a fidelidade ao Ratio studiorum.
Nada era praticado sem autorização. Nas palavras do autor:
La première moitié du dix-septième siècle se caractérise par sa fidélité aux prescriptions du
Ratio studiorum. Nulle part, semble-t-il, sés règles ne furent plus scrupuleusement observées.
En 1604, le général incitait les jésuites allemands à suivre l’exemple de leurs confrères de
France, “qui exactissime novam studiorum formam servant”. Ceux-ci n’allaient-ils pás jusqu’à
demander au père général la nature de l’obligation attachée à la pratique de ses régles? Ils ne
prennent nulle liberte qu’ils n’en aient obtenu l’autorisation (DAINVILLE, 1978, p. 190).
Na Província do Brasil, no entanto, pareceu-me que as práticas se distanciavam cada vez mais das
determinações de Roma e, assim, o Ratio não foi aplicado imediatamente por aqui. Tal ajustamento e
adaptação, porém, não eram vistos com bons olhos por Roma. Assim,
o latim era a língua obrigatória em todas as atividades; no teatro, permitia-se o uso de
português em diálogos dramáticos, mas não em tragédias e comédias. Por exemplo, em 1596,
o geral advertia o provincial brasileiro de que as representações teatrais não estavam sendo
feitas em latim. Em 1568, a Congregação Provincial da Bahia propôs ao geral a conveniência
de se estudar dialética no Colégio da Bahia. O curso de artes (filosofia e ciências) começou em
1572 [...] a teologia dogmática (ou especulativa) passou a ser ensinada em 1572 para os
membros da Companhia de Jesus e, a partir de 1575, para externos. No Colégio da Bahia
139
havia quatro anos de leitura do De summa theologiae, de São Tomás de Aquino69 (HANSEN,
2001a, p. 17 – nota).
Nesse sentido, certamente é possível dizer que as cartas produzidas no período foram basilares no
processo de organizar a empresa educacional dos inacianos. Através das correspondências enviadas
pelo geral da Ordem no período, padre Aquaviva, para o provincial do Brasil, é possível adentrar nas
regras e na “pedagogia da vigilância” que determinavam a atividade dos padres como educadores.
Assim, as missivas de Aquaviva eram importantes nesse ambiente no qual ele pretendia “colocar tudo
em ordem”: por exemplo, o geral esclarecia, no excerto que se segue, que, dos estudos internos da
Companhia, a teologia especulativa era o mais alto curso, para o qual não eram admitidos todos os
estudantes. Havia uma seleção eliminatória, a começar na lógica (menor e maior), expressa para a
Província do Brasil em carta de 2 de setembro de 1600 ao provincial Pero Rodrigues:
Ano de Lógica: Todos o devem estudar; o seu exame só se fará uma vez, isto é, não se repete;
e só serão admitidos a novo exame os rudes, mas para se convencerem da sua inaptidão para
estudos maiores. Filosofia: Devem fazer este curso todos estudantes de talento mediano
(“medíocre”). Teologia: Os medianos estudam-na só até ao 2º ano (Curso Breve); os de talento
insigne, também o 3º e 4º anos (Curso Longo) (AQUAVIVA, HCJB, VII, p. 175).
O teor e o conteúdo das cartas entre os provinciais do Brasil e o geral em Roma se me afiguram
extremamente interessantes. O fragmento acima mostra que as cartas do geral procuravam deixar bem
clara a posição de Roma: explicitamente rígida e, ao que me parece, contrária à adaptação às
condições locais de ensino. Repare-se que a filosofia ainda figura como “serva” da teologia.
Para Hansen (2001a), a intenção de Aquaviva era estabelecer “uma regra universal”. E isso fica claro
quando se tem contato com o que o geral escreveu ao provincial do Brasil. Assim,
Por meio da comparação de experiências e da adaptação dos métodos de ensino a novas
circunstâncias, considerando as especificidades locais dos Colégios já existentes em várias
partes do mundo, Aquaviva pretendia estabelecer uma regra universal, válida para todos em
todos os lugares (HANSEN, 2001a, p. 15).
Veja-se como aparece essa questão no excerto que se segue, no qual Aquaviva determinava “que
houvesse letras humanas no Colégio”:
Cópia de uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva para o Pe. Visitador Christóvão de Gouveia de
15 de Fevereiro de 84. Acerca da falta de mestres de latinidade V. Rev. [...] será bom que nela
69
Aquaviva impôs o ensino de Tomás de Aquino em 13 de dezembro de 1613 (LEITE, HCJB, VII, p. 178).
140
se hajam como se tem feito nas demas Ccasas da Comp... que haja letras humanas no Colégio
da Baía, havendo alguma academia de exercícios literários desta faculdade dentro de casa...
Parece que tem havido alguma facilidade em fazer os noviços do noviciado para formar nos
Colégios. V. Rev. tenha em mãos que guardem suas regras exatamente... (Archivum Romanum
Societatis Iesu – (ARSI), Brasilia Epistolae – (Bras.) 2, fl. 54 – grifos meus)70.
No fragmento adiante transcrito, o geral se mostrava atento à organização dos estudos e dizia que os
estudantes da Província do Brasil eram “fracos no saber” e por isso os estudos de teologia
“especulativa” deveriam durar quatro anos. Acompanhe-se:
Cópia de uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva para o Visitador Christóvão de Gouveia, de 15
de julho de 85.
É muito necessário para a ajuda dessa Província que os exercícios literários se pratique nas
academias e que se derrubem as dificuldades que ocorram para impedir isso, procurando
fazer mestres para ela, o que ajudará promover alguns dos que agora vivem na graça do
Senhor por mestre da Classe superior, por que como ele tem boa humanidade, fará também
bons discípulos... Foi bem ordenar V. R. ao Pe. N. que em quatro anos acabe a especulação da
teologia, porque segurar os nossos por esse tempo, onde os estudantes são tão fracos no saber
e fazê-los passar a idade (ARSI, Bras. 2, fl. 56 – grifos meus).
O geral também estava preocupado com as atividades realizadas em “língua vulgar”:
Cópia de uma de N. P. Geral Aquaviva para o Pe. Visitador Christóvão de Gouveia em 10 de
agosto de 1585.
Em uma de 6 de setembro de 84 pedia V. R. que nos atos que se fazem os escolásticos como
diálogos, tragédias e comédias se admita alguma coisa em língua vulgar, e me parece pelas
razões que V. R. dá que nos diálogos somente se pode fazê-lo, porém em tragédias e
comédias, não, por serem coisas mais escolásticas e graves (ARSI, Bras. 2, fls. 56-57).
Escrevendo ao geral, Pe. Aquaviva, em 31 de dezembro de 1585, Anchieta ressaltava o número de
alunos que frequentavam as aulas no Colégio da Bahia. Havia estudantes de fora: no caso, os filhos
dos portugueses. Não havia, portanto, índios estudando ali. Veja-se:
70
Na transcrição dos documentos manuscritos pesquisados no ARSI, a grafia foi modernizada para facilitar a
compreensão. Foram respeitadas as abreviaturas e a pontuação, sempre que possível.
141
As ocupações dos nossos com os próximos são: uma lição de teologia que ouvem dois ou três
estudantes de fora, outra de casos de consciência que ouvem outros tantos e uma e outra
alguns de casa, um curso de artes que ouvem dez de fora e alguns de casa, escola de ler,
escrever e contar que tem até 70 rapazes filhos dos portugueses, duas classes de humanidades,
na primeira aprendem 30 e na segunda 15 escolares de fora e alguns de casa (ANCHIETA,
1933, p. 415 – grifos meus).
Logo em seguida, Anchieta depreciava os estudantes do Colégio da Bahia, dizendo que “tudo se leva
em festas” e colocava a culpa na “terra relaxada”. Acompanhe-se:
Os estudantes nesta terra, além de serem poucos, também sabem pouco, por falta dos
engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terra o dá de si por ser relaxada, remissa e
melancólica, e tudo se leva em festas, cantar e folgar (ANCHIETA, 1933, p. 415).
Escrevendo ao provincial Pero Rodrigues, Aquaviva apertava o cerco em relação aos “abusos” nas
festas que se realizavam nos colégios e não queria saber de práticas que causassem “distração e
perturbação”. O geral cuidou que se colocasse em prática, uma vez mais, a “pedagogia da vigilância”
contra-reformista entre os inacianos. Observe-se:
De outra de N. P. de 13 de fevereiro de 96 para o Pe. Provincial Pero Rodrigues.
Encarregamos V. R. da observância... no tocante às comédias e tragédias... o abuso de se
fazerem estas festas... e seguiremos com... devoção... Desta maneira será melhor celebrada a
festa do que com comédias e tragédias em que há tanta distração e perturbação (ARSI, Bras. 2,
fl. 91 – grifos meus).
No ano seguinte, escrevendo novamente a Rodrigues, o geral concedeu licença para se dar grau de
mestre e demonstrou preocupação com a formação dos futuros operários da vinha:
De uma de N. P. Geral Cláudio Aquaviva de 4 de outubro de 97 para o Pe. Provincial Pero
Rodrigues.
Damos licença a V. R. para se dar o grau de mestre em Artes... Rogamos muito que V. R. haja
no 3º ano de probación porque esperamos que com essa boa ajuda cresçam em espírito e se
formem nas sólidas virtudes para serem fiéis operários, como convém (ARSI, Bras. 2, fl. 130).
A intenção do geral era estabelecer uma fórmula de educação que tratasse da doutrina em questões
especulativas e prescrevesse o modo de tratar as letras, as artes e a teologia na prática. Como parte
desse esforço de uniformização nasceu o Ratio studiorum. Nesse sentido, para Dainville (1978), “On
peut dire en général, precise le Ratio studiorum de 1599, qui résume et normalise la pensée du siècle,
qu’elle comprend essentiellement trois choses: les préceptes, le style et l’érudition” (DAINVILLE,
142
1978, p. 186). Hansen concordou com Dainville, especificando que alguns traços que tipificavam a
Companhia de Jesus desde a sua fundação foram mantidos e sistematizados no Ratio studiorum de
1599, caracterizando o ensino ministrado no século XVII (HANSEN, 2001a, p. 17). O autor destacou,
por conseguinte, a “ortodoxia” do Ratio, quando ressaltou
o fato de o Ratio studiorum ser um regulamento que inclui programaticamente os 50 anos
precedentes de experiência pedagógica da Ordem, não rompendo com a tradição do seu
ensino, mas selecionando o que nela era considerado o melhor. A Companhia é uma ordem
eminentemente não contemplativa e também o Ratio studiorum de 1599 orienta o ensino das
letras, artes e teologia no sentido de desenvolver as capacidades de assimilar, transferir e
aplicar conhecimentos como intervenção nas questões do presente. Na situação contrareformista do século XVII, tal intervenção não podia ser dissociada da prática das virtudes
cristãs. Assim, o sentido, por assim dizer, “final”’ das normas e práticas do Ratio studiorum de
1599 é o da ortodoxia, seguindo-se com a máxima fidelidade a tradição e os textos canônicos
autorizados pela Igreja a partir do Concílio de Trento (HANSEN, 2001a, p.18).
O Ratio constituiu-se, pois, em uma estratégia romana de uniformizar as práticas e unir o “corpo
disperso” que crescia cada vez mais. A intenção de Roma era a de constituir uma regra que valesse
para todos, como deixou claro o geral Aquaviva.
É importante frisar, contudo, que, não obstante as determinações “unificadoras” de Roma, a Província
do Brasil não abriu mão de reagir a essas ordens. Na carta que se segue, Rodrigues foi enfático ao
apontar as condições da Província, que em nada se comparam ao que queria Roma. Observe-se que o
provincial salientava a escassez de cursos e de estudantes:
que pode o Pe. Provincial dar grau de doutor. Parece-me coisa escusada e imprópria. Escusado
parece este grau aos nossos, como o seja até agora, não havendo as escolas crescido em
número de vocações. Impróprio parece dar grau em estudos que não são Universidade. Visto
primeiro se convém dar este grau a estudos, aonde não há mais que cinco lições ordinárias e
uma extraordinária, a saber: uma escola de meninos, os de latim, onde [se alega a ser?]
princípios de retórica, uma de casos de consciência, uma de teologia há 15 estudantes, cinco
de casa e dez de fora. A extraordinária é um curso de artes de quatro em quatro anos... (ARSI,
Bras. 15 – II, fl. 407v – grifos meus).
Para Rodrigues, uma das questões que não deviam ser deixadas de lado era a condição da terra, que
para ele era “frouxa”. Atente-se para a solução do problema – uma “gota de vinho”:
143
A terra, como está em zona tórrida, é frouxa e os mantimentos de pouca substância. Até não
se comer pão, senão farinha de raízes e se... não se dar uma gota de vinho a pessoas que
trabalham e têm trabalhado de 50, 60 anos ou mais de idade, com razão o sentem... Da Bahia,
20 de dezembro de 92. Pero Rodriguez (ARSI, Bras. 15 – II, fl. 408 – grifos meus).
O mesmo Rodrigues, porém, escrevendo da Bahia em 1605 – portanto, ocupando o cargo de provincial
– falava sobre os graus acadêmicos que eram conferidos no Colégio daquela cidade. O jesuíta parecia
ter mudado de opinião e agora elogiava os estudantes da Província. Porém, como se trata de uma carta
“editada” por Leite, não é possível afirmar se o historiador “deixou de fora” algumas lamentações do
provincial. Confira-se:
há estudos públicos das faculdades que os padres costumam ensinar que são ler, escrever,
contar, lições de humanidades, curso em que se graduam em mestre em artes, e teologia moral
e especulativa, donde saem muitos bons filósofos, artistas e pregadores (RODRIGUES, HCJB,
I, p. 100).
3. Considerações Finais
Para finalizar, ao que me pareceu, o ensino jesuítico passava por um processo de reorganização e de
adaptação às condições da Colônia nesse período. Como foi possível constatar, alguns religiosos
propuseram que se suspendesse o “curso de artes”, a ser substituído pelo estudo da língua da terra,
interferindo, assim, na formação dos que se destinavam à carreira eclesiástica.
É possível afirmar ainda que a “campanha pedagógica contra-reformista” colocou em cena a
“pedagogia da vigilância”, por meio de um rígido controle sobre as letras e as práticas de instrução
neste período. Creio que, quando se instituiu essa rigidez, o que aconteceu foi um enrijecimento dos
modos de prescrever o que se deveria conhecer, a forma como deveriam ser repassados os conteúdos e
quem deveriam ser os sujeitos considerados “capazes” de aprender o que era “digno” de
conhecimento.
Como foi possível notar, fica clara também a ênfase na formação para a virtude. Formar o homem
virtuoso, que se prepara dignamente para a morte era uma meta fundamental a ser alcançada. Para
tanto, as disciplinas curriculares regulavam os “apetites” e os “vícios”, a fim de estabelecer a “ordem”
e conduzir o “discreto” à formação integral, capaz de produzir “corpos dóceis” para o Estado e para a
Igreja. O meio para se chegar a tanto, era a educação. A intenção deste trabalho foi, pois, aproximar o
leitor desses fundamentos e da ambiência que provocou e tornou possíveis os embates e as bases sobre
as quais se fundavam as práticas educacionais do período.
144
4. Referências bibliográficas
ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
ANCHIETA, José. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Rio
de Janeiro: Biblioteca de Cultura Nacional, 1933. Col. Afrânio Peixoto da Academia
Brasileira de Letras.
DAINVILLE, François de. L’éducation des jésuites (XVI-XVIII siècles). Paris: Les Éditions
de Minuit, 1978.
HANSEN, João Adolfo. “Ratio studiorum e política católica ibérica no século XVII”. In:
VIDAL, Diana G.; HILSDORF, Maria Lúcia S. (Orgs.). Tópicas em história da educação.
São Paulo: Edusp, 2001a.
______. “A civilização pela palavra”. In: LOPES, Eliane M. T.; FARIA FILHO, Luciano M.;
VEIGA, Cynthia G. (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2001b.
______. Educando príncipes no espelho. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN JR.,
Moysés (Orgs.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo, Cortez, 2002.
______. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. rev. São
Paulo/Campinas: Ateliê Editorial/Editora da Unicamp, 2004.
LEITE, Serafim da Silva. História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 v. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1938 – 1949.
O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. Bauru: Edusc, 2004.
SOARES, Cipriano. S. I. Arte de retórica: três livros extraídos sobretudo de Aristóteles,
Cícero e Quintiliano. Trad. Silvério Augusto Benedito (mimeog.). Parte integrante da
dissertação de mestrado em literaturas clássicas – área de literatura latina, apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, 1995.
145
5. Fontes consultadas
Archivum Romanum Societatis Iesu – (ARSI): Brasilia Epistolae – (Bras.).
MONUMENTA PAEDAGOGICA SOCIETATIS IESU – (MPSI). VOLUME V – Ratio
Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (1586, 1591, 1599). Romae: Institutum
Historicum Societatis Iesu, Via dei Penitenzieri, 20.
Platão e o debate educativo sobre as concepções de paideia na Grécia clássica
Lidia Maria Rodrigo71
A noção de educação como paideia na Grécia antiga remete à formação integral do
indivíduo com base em uma concepção ideal de homem, ideal cuja realização histórica, no
período clássico (séculos V e IV a.C.), dependeu, em ampla medida, da relação do homem
com a polis, visando, sobretudo, a formação do cidadão. A polissemia do termo paideia,
continha em si, simultaneamente, todos os sentidos com que usualmente costuma ser
traduzido: educação, cultura, tradição, civilização, etc.
Na época clássica da história grega o termo abarcava concepções divergentes sobre
pontos específicos da formação do homem grego, tanto em relação aos conteúdos quando aos
procedimentos inerentes a esta formação. Ao menos três concepções coexistiram na Grécia
clássica, possuindo entre si algumas afinidades e muitas divergências: a da poesia, a da
sofística e a da filosofia socrático-platônica.
A afirmação da filosofia como paideia deu-se por intermédio do pensamento
socrático-platônico: sem negar seu caráter especulativo, a filosofia passou a ser concebida
também como um saber formador de homens, como guia da educação grega. Na construção
de sua paideia filosófica Platão teve de entrar em discussão com as outras duas outras
concepções que também tinham pretensões educativas: a poesia e a sofística. Assim, a
71
Professora no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP
(Brasil).
146
contestação de Platão às pretensões educativas da paideia tradicional veiculada pela poesia
homérica e da paidéia dos sofistas abriu caminho para a construção da hegemonia da paideia
filosófica.
A paideia inerente à poesia homérica
A poesia dotada de caráter educativo constituiu um traço peculiar à cultura grega, em
cuja história a oralidade foi predominante. As culturas baseadas em formas orais de
comunicação enfrentam uma dificuldade: como preservar a memória social do povo da qual
depende, afinal, sua identidade cultural? A fala ritmada da poesia forneceu aos gregos uma
solução, na medida em que permitia elaboração de um discurso propício à preservação da
memória oral.
No século VIII a. C., ainda no período arcaico, Homero foi responsável pelos
primeiros registros por escrito dessa tradição oral, produzindo as duas primeiras obras da
literatura ocidental: a Ilíada e Odisseia. Esses poemas, juntamente com as narrativas épicas,
continham um conjunto de ensinamentos, desde valores éticos e modelos de comportamento
humano, até conhecimentos técnicos sobre culinária, medicina, confecção de artefatos, etc.
Portanto, mesclada à história épica e associada a ela, uma formação ou educação se fazia
presente.
A poesia é a mais antiga paideia grega; desde a época micênica até o final do período
arcaico os poetas gozaram de grande poder na sociedade. A palavra poética era vista como de
inspiração divina; por isso sua veracidade era estabelecida de imediato, por meio do mero
enunciado, sem necessidade de demonstração nem possibilidade de contestação.
Ao poeta competia dupla tarefa: celebrar os mortais, isto é, as façanhas dos heróis e
dos homens corajosos, e também os imortais, quer dizer, contar a história dos deuses. O
louvor aos atos heróicos tornou possível instituir uma forma humana de imortalidade, fundada
na glória e perpetuação da memória. Graças à palavra do poeta os heróis poderiam gozar do
privilégio de sobrepujar a morte física e o esquecimento, permanecendo vivos na memória da
posteridade. Assim, o poeta acabava tendo o poder de decidir quais os homens que
permaneceriam na memória das gerações futuras e quais os que seriam esquecidos, sendo o
esquecimento a pior forma de censura por atos covardes ou reprováveis.
147
Os ensinamentos, preceitos e prescrições contidos na poesia eram socializados por
meio da recitação oral, feita pelos pais no âmbito doméstico, e por profissionais, aedos e
rapsodos, nos eventos e festividades públicas. A memorização de trechos poéticos funcionava
como instrumento de uma educação pautada pela mimese, na medida em que as ações e
comportamentos exemplares de heróis e deuses eram tomados como paradigmas ou modelos a
serem imitados.
Portanto, a função estética da poesia na antiguidade – despertar prazer, divertindo e
comovendo os homens - estava estreitamente associada à sua função moral e educativa, isto é,
propiciar a formação de valores e orientar comportamentos e procedimentos tanto que
Homero era considerado como o grande educador de toda Grécia.
Durante muitos séculos – quer dizer, do período micênico – sec. XV a XIII a.C.,
passando pelo período arcaico, e chegando até o período clássico - a educação grega esteve a
cargo da poesia exclusivamente. Esse quadro só se modificou com o surgimento dos sofistas.
A paideia sofística
Os sofistas são mais importantes para a história da educação do que para a história da
filosofia; afinal, a sofística foi um movimento essencialmente educativo que teve em
Protágoras e Górgias seus principais expoentes.
A paideia sofística, contemporânea da polis, surgiu no período clássico, centrada no
ensino da retórica. Retórica designa a arte de persuadir pelo discurso, ou seja, convencer
alguém a acreditar em alguma coisa. Os sofistas fizeram da retórica o objeto de uma educação
voltada para a cultura geral e política; o ensino que ministravam, segundo eles próprios, tinha
como objetivo capacitar os homens a bem governar suas casas e suas cidades.
Esta modalidade de ensino adquiriu uma importância fundamental com o surgimento
da polis democrática, uma vez que as decisões sobre a vida da cidade eram tomadas nas
assembléias realizadas em praça pública.
Na democracia grega, a participação política não se fazia por representação, mas de
forma direta. O reconhecimento da excelência dos indivíduos dependia, sobretudo, de suas
qualidades de orador: vencia nas assembléias quem fosse bom orador e soubesse argumentar
de modo convincente para persuadir os cidadãos e obter os seus votos.
148
O exercício competente da fala, a capacidade de convencer, de persuadir, tornou-se
fonte de poder e condição para atuar na política. Quem tivesse ambições políticas tinha de
aprender a fazer um uso hábil da palavra, o que criou uma demanda pelos serviços dos
sofistas que, como mestres de retórica, ofereciam esses ensinamentos para todos aqueles que
estivessem dispostos a pagar por suas lições.
Seu trabalho educativo veio, portanto, suprir uma necessidade social e política, o que
significa dizer que as exigências a que procuravam responder não eram de ordem teórica e
científica, mas de ordem prática. Os sofistas estavam menos preocupados em produzir ciência
do que em exercer influência no mundo em que viviam: a sofística é menos uma doutrina do
que um saber prático, ligado à vida política e à arte de ensinar.
Com a sofística, a possibilidade de adquirir cultura política estava, em princípio,
aberta a todos os cidadãos. Contudo, mesmo ampliando o raio da ação educativa em relação
ao período aristocrático, a paideia sofística não tinha como finalidade a educação do povo,
mas a dos futuros dirigentes políticos. Werner Jaeger (1986; p. 236) chega a afirmar que a
atuação dos sofistas “no fundo não era senão uma nova forma de educação dos nobres”. O
autor quer dizer que, mesmo com as mudanças ocorridas, ainda se mantinha uma postura
aristocrática sobre a educação, na medida em que permanecia restrita a um grupo de
privilegiados.
A crítica de Platão às concepções poéticas e sofísticas
a) Crítica à paideia poética
Embora muitos pensadores da Grécia antiga tenham endereçado críticas à poesia, o
maior ataque à tradição poética foi levado a cabo por Platão, especialmente no diálogo A
República. As censuras do autor à poesia, contudo, não eram endereçadas ao pensamento
mítico propriamente dito, mas ao modo pelo qual os poetas retratavam os deuses, atribuindolhes atos e comportamentos condenáveis como roubo traição, adultério, excessos na comida,
na bebida, no sexo, assim como posturas indignas e inadequadas a seres dessa categoria.
Do ponto de vista educativo, a crítica platônica visava a pedagogia implícita nos
poemas homéricos, baseada nos conceitos de paradigma (modelo) e de mimesis (imitação).
As ações exemplares dos deuses e dos heróis deveriam oferecer um modelo ideal de virtude
149
(arete) a ser seguido ou imitado pelos homens. Nos Livros II e III da República, Platão
argumenta que os retratos poéticos dos deuses e dos heróis ofereciam maus exemplos: as
fraquezas e iniquidades desses seres superiores poderiam ser usadas pelos homens como
desculpa para justificar seus próprios comportamentos condenáveis, atenuando a
responsabilidade pelos seus atos.
Na sociedade grega o poeta era visto como portador de um saber universal. Platão
coloca em questão tal representação, perguntando se Homero e os demais poetas possuíam
efetivamente um verdadeiro conhecimento da virtude política, isto é, da arte de administrar,
legislar, combater, ou eram meros produtores de imagens dessas coisas, simples imitadores.
Pondera que os poetas jamais foram administradores de cidades, nem legisladores, nem
comandaram nenhuma batalha, e que “a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores
da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a
verdade”. (Rep., 600e) Como o imitador não possuía nenhum conhecimento válido sobre
aquilo que imitava, limitava-se a ostentar a falsa aparência de um saber universal por meio de
estratégias que iludiam e enganavam. Em suma, sob a ótica filosófica de Platão, o poeta não
passava de um charlatão.
As críticas contundentes dirigidas à palavra dos poetas deviam-se à hegemonia que estes
exerciam sobre a formação dos cidadãos, uma vez que os poemas funcionavam como veículo
de educação e transmissão de parâmetros culturais. Do ponto de vista de Platão, a poesia não
conduzia ao desenvolvimento das virtudes essenciais à boa formação das diferentes classes de
cidadãos.
Na República, obra em que se desenvolve o pensamento do autor sobre o assunto, o
exame crítico da poesia é feito do ponto de vista de duas classes de cidadãos: os militares, nos
Livros II e III, e os governantes, no Livro X. Nos dois casos, a questão recebe soluções
diferenciadas, pois à medida que se ascende nos níveis de conhecimento e de educação, a
poesia vai perdendo sentido. Na educação dos guerreiros, a poesia ainda é mantida, embora
expurgada de alguns de seus conteúdos e formas; em relação à educação do governante,
entretanto, ela é inteiramente banida.
Com base em parâmetros filosóficos, na República o questionamento à fragilidade
educativa dos discursos poéticos sobre os mitos compreende, essencialmente, três aspectos:
150
- moral: deuses e heróis são retratados com um comportamento imoral e impiedoso,
indigno de ser tomado como paradigma ou modelo de virtude;
- ontológico: os poetas, assim como os pintores, não imitam a realidade, mas apenas
um reflexo sensível dela, permanecendo no nível da mera aparência;
- epistemológico: o mito é mera narrativa, sem nenhuma argumentação, não operando
a transição da doxa para a episteme.
b) Crítica à paideia sofística
A retórica, como arte do discurso ensinada pelos sofistas, foi submetida a um exame
crítico no diálogo Górgias. Segundo Platão, a retórica sofística preocupa-se com a persuasão e
não com a verdade. A oposição entre saber e persuasão tem a intenção de evidenciar que o
discurso sofístico não tem compromisso com o verdadeiro conhecimento; a aparência de saber
é suficiente para persuadir a massa ignorante, com base em artifícios retóricos que apelam
para uma aparência sedutora, em lugar de procurar convencer pela verdade. A retórica
sofística, visando a aprovação e o aplauso popular, é interpretada como um discurso
demagógico.
Do ponto de vista platônico não se pode dizer que a retórica ensinada pelos sofistas
constituía autêntica paideia política, uma vez que não visava tornar os homens melhores, mas
apenas agradá-los. Ao discurso retórico, que visava satisfazer o demo, isto é, o povo
ateniense, dizendo apenas o que ele queria ouvir e evitando contrariá-lo, Platão opõe outra
forma de retórica, praticada pelo filósofo, que buscava, sobretudo, a formulação de um
discurso coerente, ainda que fosse contra a opinião do demo. Haveria, assim, duas formas de
retórica política: a primeira, sendo pura lisonja, é uma retórica demagógica; a segunda,
identificada com a filosofia, é uma retórica nobre, porque consiste “no esforço de tornar as
almas dos cidadãos tão boas quanto possível, e no empenho persistente de declarar o que é o
melhor, independentemente de se mostrar mais ou menos prazeirosa aos ouvintes.” (Górg.,
503a)
Por outro lado, a oposição entre saber e persuasão tem a intenção de evidenciar que o
discurso sofístico não tinha compromisso com o verdadeiro conhecimento; a aparência de
saber era suficiente para persuadir a massa ignorante.
151
Também em relação à virtude (arete) Platão manifesta-se contrário à direção proposta
pelo ensino sofístico, voltado para a prática (techne) e a ação política. Do ponto de vista
socrático, a excelência humana não reside nem na sabedoria técnica nem no êxito social e
político; ela se define, sobretudo, pelo reconhecimento do valor normativo da razão sobre a
conduta humana.
Outro aspecto contestado no pensamento dos sofistas foi o relativismo do
conhecimento, defendido particularmente por Protágoras, com a sua teoria do “homem
medida”, usualmente condensado na afirmação de que o homem é a medida de todas as
coisas; das que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são. Essa teoria converte a
subjetividade humana em critério de verdade. Como conseqüência, não existe uma verdade
universal, válida para todos, mas apenas uma multidão de opiniões particulares segundo o
ponto de vista de cada indivíduo. Esse relativismo é inteiramente contrário à estabilidade do
conhecimento como expressão das essências, que caracteriza a verdade universal sob a ótica
de Platão.
A visão pejorativa sobre os sofistas, que marcou o pensamento ocidental, deveu-se
principalmente à interpretação de Platão. Conforme esta visão, o sofista não se ocupa do
conhecimento do ser, mas da aparência; em lugar de buscar a ciência (episteme), ele se
contenta com a opinião (doxa). Do ponto de vista ético-político, não visa a sabedoria e a
virtude, mas o poder pessoal e o dinheiro. Por isso, a sofística não passa de pseudo-sabedoria,
ou uma sabedoria das aparências.
Há outras interpretações que defendem uma visão positiva dos sofistas como
divulgadores da cultura grega para círculos mais amplos que os tradicionais, fundadores da
pedagogia democrática enquanto educação do cidadão para participar da vida política e
defensores do livre debate de opiniões.
A interpretação platônica da paideia sofística ressalta, sobretudo, seus traços
negativos; a possibilidade de uma retórica do verdadeiro, que não fique submissa ao critério
demagógico da aprovação popular, deve ser buscada em outra instância: na dialética
filosófica.
Afirmação da superioridade da paideia filosófica
152
A paideia socrático-platônica também se desenvolveu no período clássico,
distinguindo-se intencionalmente das duas anteriores. Simultaneamente à contestação feita
por Platão às pretensões educativas da poesia e da sofística, há a emergência do seu próprio
projeto político-pedagógico, fundamentado na filosofia, e reivindicando para esta última a
função de orientadora da educação.
A filosofia ocidental nasceu na Grécia, no período arcaico, entre o final do século VII
a.C. e o início do VI, alcançando o auge de seu desenvolvimento no período clássico - séculos
V e IV a.C. -, com o pensamento socrático-platônico.
O surgimento da filosofia foi responsável pela substituição das soluções mitológicas
por respostas racionais, construindo teorias sobre os fenômenos naturais que trocavam as
explicações baseadas nas divindades pela ação de leis naturais e pela interação entre
elementos primordiais como água, terra, fogo e ar. O discurso filosófico deixou os deuses de
fora, para justificar-se com base na argumentação e coerência lógica.
A filosofia distinguiu-se da poesia por ser uma fala essencialmente humana, que
deveria justificar-se pelo encadeamento das idéias e pela articulação entre premissa e
conclusão. O discurso poético, sendo de inspiração, divina, não era da responsabilidade
pessoal do poeta, que não estava obrigado a apresentar as razões do que dizia, nem
demonstrar sua veracidade. O filósofo, este sim, deve apresentar as razões das afirmações que
faz.
Por outro lado, a filosofia diferenciou-se da retórica, porque o conteúdo desta última
constitui uma fala particularizada, que trata das questões pertinentes ao mundo da política e
diz respeito aos problemas da cidade. A filosofia, por sua vez, aborda questões universais,
sobre os princípios e a significação do real e da existência humana.
Sócrates defendeu que todo comportamento humano, inclusive no âmbito político,
tinha de ser orientado racionalmente e julgado por normas éticas intransigentes. Platão adotou
e desenvolveu estes princípios, procurando levá-los o mais longe possível em sua filosofia da
educação. Para ele, como para todos os gregos do período clássico, a educação era inseparável
da vida do cidadão na polis; contudo ele concebeu essa formação política de modo bem
diferente dos sofistas. Para Platão a educação deveria estar fundamentada na filosofia, o único
153
saber apto a promover a formação de um tipo superior de cidadão, quer dizer, capaz de ter
uma conduta racional e formular juízos morais corretos. Conhecimento fundamentado na
razão aliado à excelência ética, eis o alicerce da formação humana segundo a paideia
socrático-platônica.
Em nome desses ideais educativos, Platão contestou as pretensões educativas da
poesia e da sofística, movido pela intenção de conferir à filosofia um lugar privilegiado entre
as potências educativas do seu tempo. À aparência de saber oferecida pelo ensinamento dos
poetas e dos sofistas, ele contrapôs a verdade superior da filosofia, elaborada segundo
exigências estritamente racionais e éticas, com base nas quais reivindicou para a filosofia a
função de orientadora da educação.
A paideia platônica, enquanto educação da parte racional da alma supõe, então, um
itinerário longo e difícil de ascensão da alma do mundo sensível ao mundo inteligível, degrau
por degrau, até o ponto mais alto do conhecimento – a apreensão das essências inteligíveis - e,
simultaneamente, um percurso em direção ao aprimoramento ético do homem, de modo a
alcançar a instância suprema no mundo das idéias: a idéia do bem. Este processo de educação
da alma encontra-se detalhado no Livro VII da República.
A vocação pedagógica da filosofia platônica, por meio da qual ela se configurou como
saber formador de homens, levou o autor a revestir sua teoria do conhecimento de um sentido
educativo, convertendo-a em alicerce de um processo formativo cujas etapas vão das formas
inferiores e mais simples de conhecimento até as formas superiores.
Em Platão, a crítica à insuficiência educativa da poética e da sofística caminha
paralelamente à construção de uma paideia filosófica que nada mais é do que a afirmação da
sua própria filosofia como paideia. Como digno continuador da perspectiva socrática, ele
reivindicou para a filosofia a função de orientadora suprema na formação de homens.
Bibliografia
- Detienne, Marcel. (s/d). Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro,
Zahar.
- Guthrie, W. K. C. (1995). Os Sofistas. São Paulo: Paulus.
154
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Fontes.
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Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
- _____. (2007a). Diálogos I: Teeteto, Sofista, Protágoras. Bauru, SP: EDIPRO.
- _____. (2007b). Diálogos II: Górgias, Eutidemo, Hípias Maior, Hípias Menor.
Bauru, SP: EDIPRO.
- Reboul, Olivier. (1998). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.
- Rodrigo, Lidia Maria. (2006). Platão contra as pretensões da poesia homérica. In:
Educação & Sociedade. Campinas, vol 27, nº 95, maio/ago.
- Vernant, Jean-Pierre. (1990). Mito e pensamento entre os gregos: estudos de
psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
La educación de las mujeres en la obra de Flora Tristán
Carolina Clavero White72
RESUMEN
Los historiadores señalan el surgimiento del feminismo hacia mediados del siglo XIX en las
sociedades occidentales inmersas en las transformaciones de la revolución industrial y la
organización republicana de gobierno. Si bien durante los siglos XVII y XVIII, ya se
articularon discursos por la igualdad de los sexos, es en el período comprendido entre la
Revolución Francesa (1789) y el fracaso de la revolución liberal de 1848 en Francia donde
emergen importantes ideas revolucionarias y experimentos con nuevas concepciones de la
72
Docente de Filosofía egresada del Instituto de Profesores Artigas de Montevideo. Maestranda en Género,
Sociedad y Políticas Públicas por PRIGEPP-FLACSO, Argentina.
155
sociedad. Es en ese mismo período donde ubicamos la vida y el pensamiento de una de las
primeras feministas- socialista: Flora Tristán (1803- 1844).
La autora llega asombrosamente para su época a realizar un paralelismo novedoso entre la
situación de la mujer y de la clase obrera. Sostiene que ambos han estado oprimidos por unos
mismos explotadores, quienes los han considerado inferiores hasta el punto de que, por las
condiciones en que se les ha sumido, han llegado a serlo realmente. En vías de la
emancipación intentó convencer a los obreros varones de la ventaja que sería para él y sus
hijos que la mujer gozara de los mismos derechos que los hombres. Y para lograr su
emancipación, proclamó estrategias basadas en la educación.
Más allá de que la elaboración teórica de Tristán se enfrenta a problemas y ambigüedades y
no se escapa del utopismo, la lectura de su obra nos permite comprender una de las tantas
posiciones en que fue concebida la identidad social e individual de la mujer, y constatar los
aportes y la novedad que conlleva a las épocas siguientes.
Nuestro trabajo pretende entonces, mostrar la función que Flora Tristán le otorga a la
educación para el logro de la emancipación de la mujer, la igualdad entre varones y mujeres y
la liberación del proletariado europeo. Por otra parte, se busca visibilizar el pensamiento de
las mujeres, aquel que la historia de la filosofía ha ocultado.
Nos basamos en el análisis de cuatro obras: Peregrinaciones de una paria (1838); Paseos en
Londres (1840); La Unión Obrera (1843) y La emancipación de la Mujer o el testamento de
la paria (1843, obra póstuma).
1.
La herida fundadora
La vida de Flora Tristán transcurre entre 1803 y 1844. Nacida en Francia, se crió en Vaugirard hasta
los 4 años, edad en que murió su padre sin haber legalizado el matrimonio. Esta situación obligó a su
madre a trasladarse con sus hijos a un barrio pobre de París.
Frente a la situación de pobreza, ingresó con 15 años a trabajar a un taller de pintura y grabado. A los
17 se casó con el propietario del taller André Chazal, con quien tuvo tres hijos, entre ellos Aline,
futura madre del pintor Paul Gauguin. En 1825 se separó de su esposo, situación que le acarreó
amenazas, agresiones y pleitos judiciales a lo largo de toda su vida.
Lo relatado anteriormente pretende resaltar su condición de “ilegitimidad”, el desgarro inicial o la
falla fundadora que - desde la perspectiva sartreana- será anunciador del programa que desarrollará el
resto de su vida.73 El objeto de reconstrucción es su condición de paria: por ser hija ilegítima y mujer
73
Dosse, François “La apuesta biográfica. Escribir una vida” Valencia, PUV, 2007. 230-231
156
separada y con hijos74 en una sociedad que todavía no aceptaba el divorcio. Tristán comprende que las
mujeres viven en una situación de opresión a cusa de las costumbres sociales que se trasmiten a través
de una educación inapropiada y por las leyes, portadoras de prejuicios.
“Hasta ahora, la mujer no ha contado para nada en las sociedades humanas. ¿Cuál ha sido el
resultado de esto? Que el sacerdote, el legislador, el filósofo, la han tratado como verdadera
paria. La mujer (la mitad de la humanidad) ha sido echada de la Iglesia, de la ley, de la
sociedad”75
Esta argumentación, nunca demostrada, ha dejado a las mujeres sin educación durante miles de años.
Simplemente “…se la ha educado para ser una graciosa muñeca y una esclava destinada a distraer a
su dueño y a servirle” 76
“Basta con quedarse unos meses en Inglaterra, para darse cuenta de la inteligencia de y la sensibilidad
de las mujeres”77 Pero por desgracia, estas cualidades han sido esterilizadas por el sistema de
educación inglés y por el despotismo masculino. “La educación se halla dominada por la preocupación
por las apariencias. Se proscriben ciertas palabras y se las oculta a la memoria de las jóvenes las
escenas de violación, de amor adúltero, de prostitución y orgía” El trasfondo es de “incultura y
aburrimiento”. Una vez casada, la mujer queda confinada a la casa. “Es una cosa, un mueble más. El
marido ordena, va a sus asuntos, mantiene a su mujer alejada de sus decisiones, dilapida la dote sin
que la esposa pueda defender sus intereses”.78
Concluye- realizando un razonamiento por analogía con la condición de los varones en el antiguo
régimen feudal– que todas las mujeres sufren la misma exclusión:
“Obreros, en 1791, vuestros padres proclamaron la mortal declaración de los DERECHOS
DEL HOMBRE, y a esta solemne declaración debéis el ser hoy en día hombres libres e iguales
en derechos frente a la ley. ¡Honor a vuestros padres por esta gran obra! Pero, proletarios, os
queda a vosotros, hombres de 1843, una obra no menor que llevar a cabo. A vuestra vez
liberad a las últimas esclavas que aún quedan en la sociedad francesa; proclamad los
DERECHOS DE LA MUJER (…)”79
74
Según Yolanda Marco “una frase de su tío materno, el comandante Laisney, al enterarse de que ha abandonado
a su marido (“Una esposa que huye del domicilio conyugal y se lleva los frutos del matrimonio, no tiene lugar en
la sociedad: es una paria”), le sugiere el calificativo exacto para sí misma: de ahora en adelante, Flora sabe
exactamente lo que es ser una mujer, una paria”. Yolanda Marco, Introducción en Flora Tristán, Unión Obrera.
España, Ed. Fontamara, 1977. 17.
75
Unión Obrera, p.110
76
Unión Obrera, p.115. La cursiva es de la autora.
77
Paseos en Londres, p. 137- 146.
78
Idem.
79
Unión Obrera, p. 132
157
Tristán demuestra, por la vía de los hechos que con dicha declaración la “plebe” pasó a llamarse
“pueblo”, y “los villanos y los patanes” a llamarse “ciudadanos”. El hombre quedó así “muy
sorprendido al comprender que iba a gozar de derechos civiles, políticos y sociales, y que, finalmente
se convertiría en igual de su antiguo señor y dueño.” 80
De allí que se pueda esperar lo mismo para las mujeres: basta una legislación libre de prejuicios que
las iguale a los varones, acompañada de una “educación racional, sólida, severa”, que le permita
“comprender bien su dignidad de ser y tener conciencia de su valor como miembro de la sociedad”81.
2. El programa y la propuesta
Flora Tristán no tuvo ningún tipo de educación sistemática. La educación le fue vedada por su género
y por su clase. Sus conocimientos los adquirió por sí misma, a través de lecturas sobre literatura
romántica, novela y teatro. En 1825 lee la obra de la irlandesa Mary Wollstonecraft: Vindicación de
los derechos de la mujer. En ella encuentra un modelo femenino e ideas que después desarrollará.
Hacia 1829, año en el que conoce al saint-simoniano Enfantin, toma contacto con las escuelas de
pensadores socialistas y orienta sus lecturas casi exclusivamente hacia la literatura proletaria, obras
escritas por los obreros, que la influyeron decisivamente.82
En la Unión Obrera, Tristán sistematiza y da cuenta del conocimiento que tiene de las obras de los
intelectuales precedentes como Saint- Simón, Fourier y Owen83, e incluso de obras escritas por otros
obreros como Agricol Perdiguier, Pierre Moreau o Gosset. Reconoce que sus autores son “hombres
inteligentes y conscientes, que conocen perfectamente el tema del que hablan”84, pero sus propuestas
apuntan a “pequeñas reformas particulares”85. Nuestra autora cree que todas ellas sufren del mismo
olvido:
“Sí, la MISERIA: porque a causa de la miseria la clase obrera se ve condenada a perpetuidad a
pudrirse en la ignorancia”86
Es una paria consciente de su situación y se siente llamada a asumir ese espacio y poner en práctica lo
vedado a otros o lo que otros todavía no han podido hacer. Para ella esto tiene un carácter de misión87:
“Me he dicho a mi misma que ha llegado la hora de actuar”- y esa misión consiste en: “ir yo misma,
80
Unión Obrera, p. 112-113.
Idem.
82
Marco. Yolanda. “Introducción en Flora Tristán, Unión Obrera. España, Ed. Fontamara, 1977. 17-18.
81
83
“Desde hace veinticinco años, los hombres más inteligentes y más abnegados han consagrado su vida a la
defensa de vuestra sagrada causa; ellos, con sus escritos, discursos, informes, memorias, encuestas, estadísticas,
han señalado, han constatado, han demostrado al Gobierno y a los ricos que la clase obrera, en el actual estado de
cosas, se encuentra material y moralmente, en una situación intolerables de miseria y de dolor” en Unión Obrera,
p. 71. La cursiva es de la autora.
84
Unión Obrera, p. 79
Idem. p, 80
86
Idem. p, 80-81.
87
Se inspira en los Apóstoloes de Cristo.
85
158
con mi proyecto de unión en la mano, de ciudad en ciudad, de un extremo a otro de Francia, a hablar a
los obreros que no saben leer y a los que no tiene tiempo de leer.”88
Tristán considera que la mayoría de las obras han tenido como protagonistas a los grandes actores de
del orden social. A diferencia de ellos, se centra desde su primera trabajo – Peregrinaciones de una
paria89 - en las personas comunes de pueblo90. Lo que escribe de ellos son memorias, reportes,
relatos, convirtiéndose así en una de las primeras reporteras de la miseria91 y por lo tanto en una
cabal conocedora de la realidad social de los sectores más marginados.
La reflexión de Tristán es producto de una praxis. El carácter de la investigación que llevó adelante
fue en la calle, en los talleres, en las fábricas, mirando las cosas objetivamente, examinándola por ella
misma, aprendiendo las técnicas, pidiendo cifras, informándose constantemente92 . Su obra Paseos en
Londres de 1840 – resultado de varias visitas a Inglaterra, en diferentes períodos, y con diferentes
perspectivas de la realidad social93- es una clara manifestación de este método: Tristán camina por las
calles, observa el clima, el carácter de los londinenses, visita teatros, barrios, clubes, y entra a los
lugares más marginales: fábricas, prisiones, asilos. Es tan grande su deseo de conocer que incluso pide
la protección de algún hombre para entrar a los prostíbulos y conocer la realidad de las “mujeres
públicas” y el trato que reciben, o se disfraza de varón para poder conocer lo que acontece en las
Cámaras del Parlamento inglés.
De esta praxis, surge un testimonio crítico , el adverso de una imagen social: la vida del pueblo pobre,
las condiciones lamentables del trabajador, la explotación social, la prostitución, la trata de mujeres, el
inhumano trato hacia las mujeres y los niños, la indiferencia de los poderosos frente a las condiciones
de injusticia.
Entiende que no basta con presentar los hechos. Es necesario haber sufrido para comprenderlos. El
dolor, “rudo maestro”, es quien hace progresar la raza humana. El aprendizaje requiere un receptor que
haya sufrido y experimentado. Esta afirmación, la habilita a escribir y publicar. Ella se siente capaz de
88
Idem. P. 77.
Flora Tristán publica su primera obra Peregrinaciones de una paria en 1838 como resultado de un viaje que
realiza a América entre 1833 y 1834.
89
90
“El carácter moral de un hombre del pueblo no ofrecía ningún interés a los ojos de un gran señor de
entonces. Sin embargo, el valor de un individuo no radica en la importancia de las funciones que desempeña, en
el rango que ocupa o en las riquezas que posee. Su valor, a los ojos de Dios, está proporcionado a su grado de
utilidad en sus relaciones con la especie humana íntegra, y es con esta escala con la que, en adelante, deberá
medirse el elogio o la censura.” En Peregrinaciones de una paria, p.17.
91
Perrot, Michelle. Salir en Historia de las mujeres de occidente. George Duby y Michelle Perrot (directores).
Tomo 8 El siglo XIX Cuerpo, Trabajo y Modernidad. España, Taurus, 1993, 155.
92
Jean Baelen, Feminismo y socialismo en el siglo XIX. Madrid, Taurus, 1973, 133-134
“Cuatro veces he visitado Inglaterra, siempre con el objetivo de estudiar sus costumbres y su espíritu. En 1826,
la encontré sumamente rica. En 1831, lo estaba mucho menos, y además la noté sumamente inquieta. En 1835 el
malestar empezaba a dejarse sentir en la clase media así también como entre los obreros. En 1839, encontré en
Londres una miseria profunda en el pueblo, la irritación era extrema y el desconsuelo general” en Paseos en
Londres, p. 1.
93
159
comprender la situación social de las mujeres porque ella misma la ha sufrido. Especialmente, se
identifica con las mujeres proletarias, quienes están doblemente excluidas: materialmente (por su
condición de clase) y social –culturalmente (por su condición de género, considerado hasta entonces
inferior al varón)
Su conocimiento le permite describir la función insustituible de la mujer en la vida de los hombres de
esta clase:
“(…) la mujer lo es todo en la vida del obrero: como madre, tiene una acción sobre él durante
toda su infancia (…) Como amante, tiene una acción sobre él durante toda su juventud, ¡y qué
poderosa acción podría ejercer una muchacha bella y amada! Como esposa tiene acción sobre
él las tres cuartas partes de su vida. Finalmente, como hija, tiene acción sobre él en su vejez.
Observad que la posición del obrero es completamente distinta a la del ocioso. Si el hijo del
rico tiene una madre incapaz de educarle, se lo pone en pensión o se le procura un aya 94. Si el
muchacho rico no tiene amante, puede ocupar su corazón y su imaginación en el estudio de las
bellas artes o de la ciencia. Si el hombre rico no tiene esposa, no le faltará encontrar
distracciones en el mundo. Si el anciano rico no tiene hija, encuentra algunos viejos amigos o
jóvenes sobrinos que consienten muy gustosamente en venir a jugar su partida de bostón,
mientras que el obrero, al que todos los placeres están prohibidos, tiene por toda alegría, por
todo consuelo, la compañía de las mujeres de su familia, sus compañeras de infortunio.”95
Ante ello propone:
“Sería de la mayor importancia, desde el punto de vista de la mejora intelectual, moral, y material
de la clase obrera, que las mujeres del pueblo reciban desde su infancia una educación racional,
sólida, apta para desarrollar todas las buenas inclinaciones que hay en ellas, con el fin de que
puedan convertirse en obreras hábiles en su oficio, en buenas madres de familia capaces de educar
y guiar a sus hijos y ser para ellos, como dice “La Prensa” , repetidores naturales y gratuitos de
las lecciones de la escuela, y con la finalidad de que puedan servir también de agentes
moralizadores a los hombres sobre los que tienen acción desde su nacimiento hasta su muerte. […]
Reclamo derechos para la mujer porque es el único medio para obtener su rehabilitación frente a la
Iglesia, frente a la ley y frente a la sociedad, y porque hace falta esta rehabilitación previa para que
los mismos obreros sean rehabilitados” 96
Flora Tristán inspirada en los ideales de la Ilustración, enfatiza –como no podía ser de otra
manera- el papel de la educación: “Instruid, pues, al pueblo; es por ahí por donde debéis
94
Persona encargada de educar y criar a un niño.
Unión Obrera, p. 123-124.
96
Unión Obrera, p. 124-126. La cursiva es de la autora
95
160
empezar para entrar a la vía de la prosperidad. Estableced escuelas hasta en las aldeas más
humildes: esto es lo urgente en la actualidad”.97
La garantía para asegurar el progreso es combatiendo los prejuicios, entre ellos el de
considerar que el trabajo es rol exclusivo del esclavo: “desde el mismo momento en que ya no
se suponga deshonor trabajar con las manos, en que ese trabajo sea incluso un hecho
honorable, todos, ricos y pobres trabajarán porque la ociosidad es a la vez una tortura para
el hombre y la causa de sus males”98
Por último, y para resumir:
“Reconocer la urgente necesidad de dar a las mujeres del pueblo una educación moral,
intelectual y profesional para que se conviertan en agentes moralizantes de los hombres del
pueblo. / Reconocer, en principio, la igualdad de derechos del hombre y de la mujer como
único medio de construir la UNIDAD HUMANA.”99
3. Feminismo y la cuestión de lo femenino100
La elaboración teórica de Tristán no deja de enfrentarse a problemas y ambigüedades en la
medida en que funda la superioridad de la mujer en una desigualdad natural con el varón y en
las funciones sociales de unos y otros. Si bien proclama para las mujeres una educación
adecuada que le permita ser soberana e independiente, lo hace porque considera que es el
medio para superar la opresión y la miseria que vive toda la clase obrera. Así, la mujer es un
medio y no un fin en sí mismo.
La justificación que ofrece Tristán, tiene que ver con la concepción antropológica que
subyace en todo su pensamiento: considera que varones y mujeres tienen atributos naturales
diferentes; y su vez, ellos están vinculados con el carácter heredado de la Creación. Para
Tristán, el hombre, que es generación activa, está representado por la fuerza. La mujer, en
cambio, es el amor inteligente que tornándose de pasiva en activa, puede darle vida al hombre
97
Peregrinaciones de una paria, p. 14.
Unión Obrera 163-164. La misma idea la expone en Peregrinaciones de una paria: “hasta que el trabajo cese de
ser considerado como patrimonio del esclavo y de las clases ínfimas de la población, todos harán mérito de él
algún día y la ociosidad, lejos de ser un título a la consideración, no será ya mirada sino como un delito de la
escoria de la sociedad”, p. 14.
99
Unión Obrera, p. 167. La cursiva y la mayúscula son de la autora.
100
Este apartado es parte de un artículo publicado en la Revista Relaciones Nº 338 bajo el título “Flora Tristán:
pensamiento y acción”. Montevideo, julio de 2012. p. 16-19
98
161
que no es más que arcilla. De ahí, que opone a los errores del hombre, la inspiración de la
mujer y quiere para ella la soberanía, la autarquía y la reacción.101
Tristán entiende que de acuerdo a los atributos naturales dados por Dios a las mujeres,
corresponden actividades específicas que son propias del género femenino, como por
ejemplo: la alimentación, el cuidado del cuerpo de los otros y la contención afectiva, aspectos
que hasta el día de hoy, son considerados por muchos sectores como privativos de las
mujeres.
Por otra parte, asume una postura acrítica en relación a la división sexual del trabajo, y esta se
vincula estrechamente con lo anterior:
“Pues, si bien es cierto que es la madre la quien une a la familia, es el padre quien la alimenta.
/ La mujer es la reina de la armonía y por ello debe situársele a la cabeza del movimiento
regenerador del porvenir. / Porque para que viváis como verdaderos hermanos, precisa que la
madre os enseñe a amaros los unos a los otros.” 102
El feminismo es desde sus inicios una protesta contra la exclusión política, social y cultural de
la mujer. Sin embargo, persiguiendo el objetivo de defender a las mujeres en nombre de ellas
mismas, acababa por alimentar la “diferencia sexual” que buscaba eliminar. Esta paradoja que
anota Joan Scott para las feministas francesas del siglo XIX, permeó el pensamiento de
Tristán, así como también, del
feminismo como movimiento político a lo largo de su
historia.103
Más allá de ello, leer a Tristán nos permite comprender una de las tantas posiciones en que
fue concebida la identidad social e individual de la mujer. Y aunque presente paradojas,
señala los avances y retrocesos de un proceso de emancipación propio de quien busca ser
reconocido como sujeto. Nuestro esfuerzo debe ser el de comprender los conceptos que las
feministas usaron, en el marco de su época y su contexto específico de vida. De ese análisis
sobresalen los aportes y la novedad que conllevaron a las épocas subsiguientes.
4. El legado
De lo dicho hasta aquí, podemos resumir que Tristán- como los socialistas de su épocaentendió que la sociedad justa sólo se da como consecuencia de la mejora del ser humano,
101
Nota final de La emancipación de la mujer
La emancipación de la mujer, p. 61
103
Joan W. Scott. A cidada paradoxal. As feministas francesas e os directos do homem. Florianópolis. Mulheres,
2002. 27
102
162
esto es, hombres y mujeres a través de la educación. Pues, si la mujer no está preparada en su
educación, se detiene el progreso y el porvenir de la sociedad.
Por esa razón, asume y resignifica su situación social de exclusión a través de la búsqueda de
un saber. Ese saber proviene por la vía de los hechos, de la práctica, del relacionamiento y
conocimiento del Otro/ Semejante: las mujeres y la clase proletaria.
Desatacamos el autodidactismo como instancia educativa promovida por el propio interés y a
partir del contexto disponible. El interés o el motor es la herida fundadora mencionada al
principio: su condición de paria- una metáfora de exclusión que fue usada por otras mujeres
del siglo XIX104- y que tuvo su contrapartida positiva: la iniciar un programa emancipador
para sí misma y para todas las mujeres. El contexto: la situación de miseria provocada por la
revolución industrial, de la que Tristán supo mostrar la doble carga que eso significaba para
las mujeres más pobres. Las teóricas feministas posteriores que se inscriben dentro del
socialismo, retomarán esa línea de reflexión bajo el nombre del “Doble Sistema”. Se trata de
los dos sistemas de opresión hacia las mujeres que hoy podemos denominar patriarcado y
capitalismo. Por otra parte el autodidactismo conlleva la creatividad.
En Tristán esa
creatividad se ve reflejada en un método de búsqueda, de aproximación a distintos saberes.
Su obra tiene todas las virtudes y fallos de cualquier autodidacta: aúna la carencia de una
instrucción elemental a una cultura universalista, y eso se puede observar en su forma de
escribir; sin embargo es, en cierta forma, precursora en la formación de un lenguaje que
empezaba: el del proletariado consciente, el de los nuevos oprimidos.
“Cuesta concebir hoy la potencia de aquel gran río revolucionario y reformista” del siglo
XIX- escribe Sartre haciendo mención a Marx, Flora Tristán, Michelet, Proudhon y Jorge
Sand105. Sin embargo de estas concepciones del pasado nos quedan preguntas insoslayables y
trayectos poco profundizados que todavía se necesitan para revitalizar la educación actual.
Nos queda también la confianza en que esa educación- lejos de legitimar y reproducir la
exclusión social- permita el tránsito hacia una sociedad más justa entre todos sus miembros.
104
Varikas, Eléni. Paria: una metáfora de la exclusión femenina en Redalyc Política y Cultura, primavera,
número 004. México. Universidad Autónoma Metropolitana- Xochimilco. (81-89), 82.
105
Jean Paul Sartre. “Boudelaire”, Ed. Losada, Bs. As. 1949. p 116.
163
BIBLIOGRAFÍA
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164
REVISITANDO O CEJA A PARTIR DE MICHEL FOUCAULT
Luciana Bandeira Barcelos
ProPEd/UERJ
[email protected]
1-DISCIPLINAR, EXAMINAR, CERTIFICAR. SITUANDO A OFERTA NO CENÁRIO EDUCACIONAL.
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e
retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar
e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las,
procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo [...] A disciplina
fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício [...] Humildes modalidades, procedimentos menores, se os
compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos
do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas
formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos.
(FOUCAULT, 2011, p.164).
Considerando o texto em epígrafe e meu objeto de pesquisa, um Centro de Estudos de
Jovens e Adultos (CEJA), onde se desenvolvem práticas de escolarização de sujeitos jovens e
adultos, posso constatar aquilo que o próprio Foucault por vezes tentou evidenciar, a
existência de relações de poder cotidianas que muitas vezes nos parecem ínfimas ou que
sequer são notadas.
Conforme suas palavras, “humildes modalidades, procedimentos menores”, por vezes
tão óbvios que passam despercebidos e são naturalizados, tidos como necessários à nossa
existência. Pequenos detalhes, que formam a política de controle e utilização dos homens e
que constituem um dos elementos que sustentam a organização escolar. E que “vão pouco a
pouco, invadir as formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus
processos”, criando o homem necessário à sociedade do momento.
165
O poder disciplinar, presente nos espaços escolares, objetiva a formação de corpos
dóceis, adequados à vida na sociedade do momento, pois conforme palavras do próprio
Foucault apud Veyne, “não se pode pensar qualquer coisa em qualquer tempo”. (2011, p. 49),
enquanto sujeitos que vivem em determinada época, estamos de certa maneira, restritos a
pensar conforme possível nessa época, estabelecendo verdades provisórias, ainda que nos
pareçam definitivas.
O poder disciplinar baseia-se em mecanismos que visam conhecer, dominar e utilizar
de forma apropriada os corpos dos indivíduos, relacionando atos, diferenciando-os, medindo e
hierarquizando em termos de valor e capacidades, buscando estabelecer presenças e
ausências, criar formas de encontrá-los, instaurar e interromper comunicações, conforme sua
utilidade ou não, vigiar o comportamento de cada um, criando um campo de saber e traçando
um limite que definirá a diferença em relação aos padrões de conduta estabelecidos, criando
um padrão de conduta a ser seguido, estabelecendo um conceito de normal.
Conforme destaca Foucault,
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente (2011, p. 133).
Não se trata de um momento único e específico, mas sim da combinação de diversos
momentos, nascidos para responder a exigências da sociedade, que culminam no que Foucault
denominou “anatomia política do detalhe”. (ibidem p. 134), em meio a qual nasce o “homem
do humanismo moderno”. Em outras palavras, a disciplina torna-se o elemento estruturador
das relações humanas por meio dos detalhes, das pequenas coisas que tomadas num contexto
maior, direcionam a formação de corpos dóceis, submissos e exercitados, aptos a
desempenhar os papéis que lhe são destinados.
Ainda segundo Foucault,
Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder
está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se
166
determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
dóceis. (ibidem, p.133).
Corpos necessários à vida em sociedade, criados em situações de relações de poder,
entendido não como algo que se detém, mas como algo que se exerce na relação consigo
mesmo e com o outro. Uma prática social, construída historicamente e como tal provisória,
válida em determinado momento, que se dissemina por toda a estrutura social e que “fabrica o
tipo de homem necessário ao funcionamento e à manutenção da sociedade industrial,
capitalista”. (FOUCAULT, 2012, p. 22), a sociedade do momento vivido, cuja “dominação
política do corpo que realiza, responde à necessidade de sua utilização racional, intensa,
máxima, em termos econômicos”. (ibidem, p.22).
É nesse contexto de atendimento a necessidades da sociedade capitalista, no início dos
anos 1970, em plena ditadura militar, quando princípios como “conscientização e
participação” (SOARES, 1996) deixavam de fazer parte do ideário da educação de jovens e
adultos no Brasil, então impregnado pelo tecnicismo educacional, caracterizado pela
excessiva centralização na metodologia, e na finalidade última da educação: servir ao
mercado de trabalho que surgem, os então chamados Centros de Estudos Supletivos (CES),
atuais Centros de Estudos de Jovens e Adultos (CEJAs), criados para atender a uma
necessidade premente da sociedade brasileira da época, então chamada a ingressar no
mercado econômico mundial e para tanto necessitando promover a formação de mão de obra
adequada à promoção do que ficou conhecido como “milagre econômico”, que levaria o país
ao desenvolvimento econômico nos moldes do modelo capitalista que se tentava implementar.
Na origem, organização e objetivos iniciais desse modo de oferta, identifico
características do poder disciplinar descrito por Foucault, assim como o surgimento do que
denomino práticas de resistência a práticas de assujeitamento implícitas nesse modo de oferta,
que embora sob o discurso do atendimento individual, atento a necessidades de cada
indivíduo, desconsiderava trajetórias e singularidades dos sujeitos jovens e adultos que a
integrariam e buscava conformá-los a lógica da sociedade da época.
Os CEJAs são unidades escolares da Secretaria de Estado de Educação do Rio de
Janeiro, que atendem a modalidade de educação de jovens e adultos, nos níveis fundamental e
médio, por meio de ensino semipresencial, preveem avanços sequenciados de módulos, sem
caráter de seriação.
167
Em 1971, conforme destacam Santos e Oliveira (2004), a Lei de ensino n. 5692/71,
dedicava pela primeira vez, um capítulo ao ensino supletivo, definindo suas finalidades,
abrangência e formas de operacionalização, estabelecendo como finalidade, no artigo 24,
“suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou
concluído na idade própria”.
Outro marco importante, o Parecer 699/72, do Conselho Federal de Educação,
elaborado pelo Conselheiro Valnir Chagas, instituiu o que ficou conhecido como “doutrina do
ensino supletivo”, estabelecendo os pressupostos norteadores do então denominado ensino
supletivo, em conformidade com a Lei n. 5692/71, definindo suas funções: suplência, relativa
à reposição de escolaridade; suprimento, relativo ao aperfeiçoamento ou atualização;
aprendizagem e qualificação, referentes à formação para o trabalho e profissionalização. Tais
funções demonstram claramente a preocupação com a preparação para o trabalho.
A referida “doutrina do ensino supletivo” é decorrente de política educacional então
vigente, baseada no que ficou conhecido como Acordos MEC/USAID (Ministério da
Educação e United States Agency for International Development), cujo objetivo era introduzir
no Brasil o modelo americano, de base taylorista, anteriormente implantado nas indústrias do
começo do século como forma de tornar mais ágil a produção em série.
Para implementar tal concepção cria-se no MEC o Departamento de Ensino Supletivo
(DESU), cujo objetivo era coordenar o desenvolvimento de todas as atividades relacionadas à
educação de adultos. Dentro dessa concepção, ainda na década de 1970, o MEC/DESU
propõe a implantação dos então denominados Centros de Estudos Supletivos (CES),
doravante referido como CEJA, atual nome da unidade escolar. Os CEJAs foram
considerados a solução mais viável para sujeitos jovens e adultos, de modo a atender, ao
mesmo tempo, “ao trinômio: tempo (rapidez de instalação), custo (aproveitamento de espaços
ociosos) e efetividade (emprego de metodologias adequadas)” (SANTOS e OLIVEIRA,
2004).
Mais uma vez se faz presente o dispositivo disciplinar, entendido como meio que:
Aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma
capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
168
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição
estrita. (FOUCAULT, 2011, p. 134).
A orientação metodológica do CEJA, segundo Santos e Oliveira (2004, p.9), baseou-se
em módulos instrucionais e no estudo dirigido visando ao atendimento individualizado por
meio da autoinstrução, com o auxílio do que ficou conhecido como orientador de
aprendizagem, que atendia estudantes em horários predeterminados, não havendo frequência
obrigatória, ficando as idas ao CEJA a critério do aluno e dos processos de ensino e
aprendizagem em curso.
Na organização pedagógica do CEJA, é possível identificar várias características do
poder disciplinar, como a organização do espaço, que contempla a distribuição dos corpos em
um espaço individualizado, classificatório, hierarquizado, aqui representado pela organização
de conteúdos em módulos instrucionais, estanques, “opondo à força intrínseca e adversa da
multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante”. (FOUCAULT, 2011, p.
207), assim como pela organização do atendimento de professores em cabines de atendimento
individual, por disciplinas; a instituição do espaço sala de provas, para a realização de
avaliações, sempre elaboradas em forma de múltipla escolha, estritamente a partir dos
conteúdos dos módulos, não permitindo a livre expressão do aluno, enfim um controle do
espaço, feito de tal forma que possibilita assinalar as presenças, as ausências, a circulação dos
indivíduos, controle presente até mesmo na organização do sistema de matrícula, que atribui a
cada aluno um número, demarcando e registrando seu lugar; o controle do tempo, que sujeita
o corpo ao tempo, com o objetivo de produzir mais em menor tempo, determinando-se tempo
máximo para empréstimo e realização de avaliações, assim como para esclarecimento de
dúvidas e a padronização dos processos que precisam ser vencidos um a um; a vigilância, que
transfere para o outro a visão de quem o observa, a lógica do ensino semipresencial, onde não
há aulas e cada um é responsável por si, autodisciplina, organização para o estudo e o registro
contínuo do conhecimento, que ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber,
que se efetiva no CEJA pelo registro minucioso de todas as atividades, ao longo do percurso
do aluno na escola, desde seu ingresso no espaço escolar, por meio das fichas de registro
individual, de acompanhamento dos professores, do registro da sala de provas, e do registro
do consumo da merenda escolar, etc. criando um saber sobre esse aluno passível de utilização
nos processos de disciplinarização desenvolvidos pela própria escola.
169
Em síntese, um processo contínuo de “enquadramento do aluno” em um modelo prédeterminado, dito “normal”, que transforma a escola em um “aparelho de aprender, onde cada
aluno, cada nível e cada momento, se combinado da maneira correta, são permanentemente
utilizados no processo geral de ensino”. (FOUCAULT, 1987, p. 140, apud MOURA, 2010, p.
57) e que coloca o indivíduo num campo de vigilância onde todas as suas atividades são
mapeadas e registradas. Um campo no qual muitos são excluídos por não se enquadrarem no
modelo previsto pelo sistema.
Os mecanismos de poder presentes no dispositivo disciplinar agem de duas formas:
adestrando e submetendo os indivíduos e excluindo de forma punitiva todos aqueles que não
se submetem a seus processos. Especificamente no caso do CEJA, agem por meio de
basicamente três ações: disciplinar, ou seja, adestrar o corpo; examinar, medir o quanto de
sujeição e domesticação já foi assimilado pelo corpo e certificar, atestar a normalidade desse
sujeito e sua condição de integração à sociedade. Dessa maneira efetiva-se o que para muitos
constitui a máxima do CEJA: produzir eficiência com o máximo de eficácia, ou seja, certificar
o maior número de pessoas, no menor tempo e com o menor custo possível, em suma, efetivar
o trinômio, tempo/custo/efetividade.
Criava-se um modelo contraditório, pois ao oportunizar um espaço de atendimento
individual, que permitia ao professor olhar particularmente o aluno, observando deficiências e
necessidades, ao mesmo tempo, exigia que esse professor buscasse inseri-lo em um padrão
previamente determinado, que desconsiderava a trajetória anterior de cada um, sujeitos em
maioria oriundos de formação escolar — parafraseando Souza (2000, p. 3) — “marcada por
problemas de seletividade, descontinuidade e fraturas”.
Essa tentativa de homogeneização, objetivo inicial dos idealizadores do CEJA,
encontra resistência no interior do próprio CEJA, por meio dos elementos que o constituem,
seres humanos, imprevisíveis e inconstantes, inconclusos, sempre em busca de algo mais, pois
o homem é o único ser que não nasce totalmente programado, mas necessita apropriar-se do
conhecimento historicamente construído para tornar-se um ser humano-histórico, construção
que se efetiva em sua relação com o outro.
Tal situação vai ao encontro das palavras de Foucault (1892) apud Revel (2006, p. 60)
ao afirmar que:
O poder só se exerce sobre sujeitos livres, e na medida em que são livres,
entenda-se por isso sujeitos individuais ou coletivos, que têm em sua frente
170
um campo de possibilidades no qual várias condutas, várias reações e
diversos modos de comportamento podem ter lugar.
Essa característica, a possibilidade de vislumbrar diferentes caminhos e condutas,
presente não apenas nos jovens e adultos que buscavam o CEJA, mas também em seus
professores, foi gradativamente provocando inquietações que levaram a questionamentos
internos, na tentativa de compreender o processo de criação dessas verdades e seus efeitos, e a
busca de caminho alternativo para práticas institucionalizadas, para que se alterem seus
efeitos, visto que estas não eram suficientes para abarcar a gama de situações que se
apresentavam.
Os professores começam a se perguntar, ainda que movidos por motivos diversos, se a
educação que ofereciam realmente atendia as necessidades dos alunos; se apenas iniciativas
esparsas de alguns professores eram suficientes para promover educação amparada não
apenas na quantidade, mas, na qualidade do ensino ofertado; que reconhecesse a diversidade
de saberes que esses jovens e adultos haviam construído em seus diferentes percursos de vida;
e que se refletisse no sucesso acadêmico de cada um e, consequentemente, no sucesso pessoal.
Em síntese que auxiliasse jovens e adultos a tornarem-se sujeitos de sua própria ação.
Tais inquietações, aliadas a modificações legais, levam a tentativas de superação do
modelo tradicional do CEJA, instituindo-se práticas diversificadas de atendimento,
reinventando-se políticas públicas legalmente instituídas, na busca da melhoria da qualidade
de ensino ofertado nesse espaço.
2-DE CES
A
CEJA,
CAMINHOS E DESCAMINHOS ENTRE PRÁTICAS INSTITUÍDAS E
INSTITUINTES.
Mudanças na sociedade e tendências pedagógicas do mundo atual forçam mudanças
na educação brasileira, desde a Constituição Federal de 1988, que preconiza a educação como
direito de todos, até a LDBEN, Lei n. 9394/96 e o Parecer 11/2000 que regulamenta a EJA,
possibilitaram
aos
CEJAs,
que
até
então
privilegiavam
somente
atendimentos
individualizados, o início de um caminhar de conquista de novas formas de atendimento ao
aluno, em que se reforçava a necessidade de modos mais coletivos, que oportunizassem um
espaço de discussão e reflexão em torno dos problemas atuais, considerando-se as
modificações por que passa a sociedade, em que a educação tornou-se uma necessidade para a
vida e a concepção de EJA vigente, não mais entendida como suplência, como educação
171
permanente, cujo objetivo é apenas a inserção no mercado de trabalho, mas como formação
humana, que por ser humana é ininterrupta e inacabada e se estende pela vida.
Mais uma vez, evidencia-se o fato de a educação buscar atender as necessidades de
sua época, conforme destaca Veyne (2001, p. 49-50),
Como não podemos pensar qualquer coisa em qualquer momento, pensamos
apenas nas fronteiras do discurso do momento [...] sempre somos
prisioneiros de um aquário do qual nem sequer percebemos as paredes [...]
saímos de nosso aquário sob a pressão de novos acontecimentos do momento
ou ainda porque um homem inventou um novo discurso e obteve sucesso.
Mas se mudamos então de aquário é para nos vermos em um novo aquário.
Esse aquário ou discurso é, em suma, o que poderíamos chamar de a priori
histórico.
Esse a priori histórico, “longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o
pensamento humano, é passível de mudança, e nós mesmos terminamos por mudá-lo”.
(ibidem, p. 50). Essa possibilidade de mudarmos nosso “aquário”, vai ao encontro ao
pensamento freireano, que justifica a necessidade de permanente autoconstrução, por sermos
“seres inconclusos”, inacabados, com possibilidade de transformação. Ainda segundo Freire
(1997, p. 55), “o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde
há vida, há inacabamento”.
Essa característica, a incompletude, define o ser humano e caracteriza sua necessidade
de saber, de aprender, continuamente, por toda a vida. A consciência de seu inacabamento faz
o homem ter esperança de que esse aprender, que se estende pela vida, possa ajudar a
transformá-la. A consciência da incompletude produz no homem a esperança e reafirma a
consciência do sentido e da importância do educar.
Nesse cenário, de inquietações internas e mudanças na legislação e na concepção de
EJA, inicia-se no CEJA em questão, um movimento que tenta superar suas práticas
instituídas, com a implementação de atividades coletivas e diversificadas nesse espaço,
buscando ao reconhecer as necessidades, possibilidades, dificuldades e aspirações dos sujeitos
jovens e adultos, a melhoria da qualidade de ensino por ele ofertado.
Movimento difícil, pois pensar atendimento coletivo em uma unidade escolar cujo
modo de atendimento oficialmente instituído é o individual, implica superar concepções,
172
preconceitos e a resistência de professores, desacostumados a lidar com o burburinho e as
tensões provocadas pelo atendimento a grupos de alunos.
As práticas diversificadas que se buscam instituir no CEJA têm por objetivo não
apenas a superação de um modo de atendimento previamente instituído, mas a superação de
uma concepção vigente no ideário de professores e alunos, que entende a educação como um
processo individualizante, de desvelamento de verdades universais, constituído por etapas que
se vencem individualmente, cujo objetivo final é a conformação de um sujeito necessário a
uma sociedade movida pelo capital e não um processo de formação humana, que considera a
singularidade com que cada indivíduo tece conhecimentos ao atribuir sentido e significado às
informações que recebe, ou seja, como constrói seu caminho, ao caminhar.
As práticas de atendimento escolares, que no dizer de Veiga-Neto constituem os
“processos educacionais”, por meio dos quais, “dizemos as verdades e as espalhamos e
perpetuamos por aí afora”. (ibidem, p.88), direcionam a formação do indivíduo e legitimam os
saberes adequados às estratégias de poder vigente, por meio de práticas de assujeitamento que
ignoram necessidades, potencialidades e aspirações dos sujeitos envolvidos no processo,
constituindo-se em um instrumento ativo e perigoso.
No que tange ao CEJA, em que a relação tempo/custo/efetividade ainda predomina,
cabe indagar se o embate entre práticas instituídas e instituintes evidencia uma melhora na
qualidade do ensino ofertado nesse espaço e se o direciona ao ideal de superação de práticas
de assujeitamento, revelando como práticas de atendimento são compreendidas e apreendidas
por professores e alunos, e como recursos e dispositivos escolares se põem a serviço dessa
forma de atendimento.
As práticas instituintes no CEJA constituem espaços de resistência e reconhecimento
da diversidade de saberes dos jovens e adultos, entendendo que educar não se resume a
acumular conhecimentos, ou constituem apenas mais um mecanismo de assujeitamento, ao
possibilitar a certificação de sujeitos incapazes de se reconhecerem como sujeitos de direito,
ou como diria Foucault, sujeitos de saber-poder?
É nesse sentido que se discute a relação entre práticas instituintes e qualidade de
ensino, pois o que se busca com sua instituição não é apenas o aumento/aligeiramento da
certificação, mas a possibilidade de mudança na vida dos sujeitos que emergem de tais
práticas. Ninguém sai ileso de uma ação sobre o outro. Uma experiência só tem valor e se
173
constitui como experiência se produz mudança, se modifica aqueles que experienciaram e
permite a cada um colocar-se na direção de sua própria vida.
Muitas práticas instituintes no CEJA ainda não procuram atender a esse objetivo, mas
é nas brechas possibilitadas por sua efetivação, que busca instituir-se um novo modo de
pensar a educação de jovens e adultos. Uma modalidade que reconhece os diferentes saberes
que jovens e adultos construíram em suas trajetórias de vida e não apenas “aligeira” sua
certificação. Que reconhece a existência de diferentes trajetos de formação e possibilita a cada
jovem e adulto o reconhecimento e respeito à suas necessidades, possibilidades, dificuldades e
aspirações.
3-CONCLUSÕES PARCIAIS
Pensar o CEJA em uma perspectiva foucaultiana, significa compreendê-lo como
instituição criada no âmbito de uma sociedade disciplinar, atualmente em vias de transformarse em sociedade de controle106, cujo objetivo não seria promover condições de resistência, de
crescimento individual, mas sim disciplinar, coordenar, criar corpos dóceis, aptos a viver na
sociedade do momento, uma sociedade capitalista, que busca a inserção de forma produtiva
no chamado mercado de trabalho. No dizer de Foucault, uma sociedade onde “as Luzes que
descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”. (2011, p. 209).
Um espaço escolar perpassado por relações de poder, que se exercem em práticas
cotidianas, na relação com o outro, seja ele professor, aluno ou qualquer elemento da
instituição. Um poder que configura um dispositivo, “métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade”. (FOUCAULT, 2012, p. 20).
Uma instituição que em suas origens utiliza como meio de coerção dos indivíduos:
Processos de separação e de verticalidade, de introduzirem entre os diversos
elementos de mesmo plano, barreiras tão estanques quanto possível, de
definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca
e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e
individualizante. (FOUCAULT, 2011. p. 207).
106
Fato evidenciado pelas propostas de reformulação do CEJA, advindas do sistema escolar em se insere e que
indicam um encaminhamento para um controle cada vez maior de suas atividades e num plano maior, da
própria população que constitui seu público alvo.
174
Perspectiva que busca a homogeneização, a conformação e fabricação dos sujeitos
necessários à manutenção do sistema capitalista no qual se insere e que ao longo do tempo
mostrou-se insuficiente, face à diversidade oriunda de seu público alvo, sujeitos jovens e
adultos, produto de trajetórias descontínuas e fragmentadas, com uma multiplicidade de
saberes e de modos de pensar, o que produziu grande evasão e exclusão do e no espaço
escolar.
Outra contribuição foucaultiana para se pensar o CEJA é o entendimento do saber
como algo contingencial, político, que existe a partir de “condições políticas que são as
condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber. [...] todo saber é
político [...] porque todo saber tem sua gênese em relações de poder”. (ibidem, p. 28).
Tal assertiva corrobora a ideia de que educar não é uma ação neutra, destituída de
sentido e significado, mas sim um ato intencional, em que reproduzimos concepções
subjacentes a nossa compreensão da ação educativa, sempre condicionada ao discurso de
nossa época. Como destaca Veyne,
Os discursos são as lentes através das quais, a cada época, os homens
perceberam todas as coisas, pensaram e agiram; elas se impõem tanto aos
dominantes quanto aos dominados, não são mentiras inventadas pelos
primeiros para dominar os últimos e justificar sua dominação [...] longe de
serem ideologias mentirosas, os discursos cartografam o que as pessoas
realmente fazem e pensam, e sem o saber. (2011, p.50-51).
Tal constatação, porém não nos impede de ver além de tais lentes, rompendo o aquário
em que nos encontramos, pois afinal a principal característica humana, a inconclusão, tem na
imprevisibilidade uma de suas formas de expressão, que faz com o homem busque sempre ser
mais, ir além do que lhe foi originalmente proposto.
O CEJA, diante dessa característica humana, a inconclusão, presente tanto em seus
professores, quanto em seus alunos, viu-se então diante de um dilema, manter seu modelo
homogeneizante e totalizante, amparado em uma concepção disciplinar, ou buscar caminhos
ao enfrentamento das inconsistências geradas pela efetivação de seu modelo original.
Essa busca de alternativas a seu modelo histórico conduz a embates em seu interior,
que possibilitam o surgimento de práticas instituintes, nascidas no cotidiano escolar, como
formas de enfrentamento a práticas disciplinares, de assujeitamento, então vigentes. Cabe
indagar, partindo do princípio de que toda ação educativa é política, se tais práticas realmente
175
representam uma alternativa a seu modelo original, ou se apenas reproduzem práticas já
existentes mudando apenas o rótulo nelas impresso.
A obra de Foucault contribui grandemente para se pensar o CEJA, suas origens e as
relações que se estabelecem em seu interior, porque permite que sejam evidenciadas relações
de poder cotidianas que nos parecem por vezes ínfimas e que sequer notamos. Foucault
desconstrói noções que nos são caras e nas quais nos apoiamos para dar sentido a nossas
concepções e aspirações e as substitui pela dúvida permanente, pela vontade de saber. Nas
palavras do próprio Foucault apud Veiga-Neto, ao descrever o objetivo de sua obra,
Mostrar às pessoas, que um bom número das coisas que fazem parte de sua
paisagem familiar, que elas consideram universais, são o produto de certas
transformações históricas bem precisas. Todas as minhas análises [...]
acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de que espaço
de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças que podem ainda se
efetuar. (2006, p. 80).
Diante de várias lutas e verdades em jogo, o pensamento foucaultiano pode representar
uma ferramenta na luta pela verdade do nosso tempo, verdade provisória, mas que lutamos
para estabilizar. Afinal,
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição
dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o
descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a
questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e
perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar
ou a refletir. (FOUCAULT, 1998, p. 13).
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2011.
PROBLEMATIZANDO O CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DELEUZIANA
LIMA NETTA, Ranúzia Moreira
(UFPE-CAA)107
107
Graduanda de Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco – [email protected] Bolsista
PIBIC com o subprojeto CATIVEIROS DA TRABALHADORA RURAL - RAÇA/ ETNIA, GERAÇÃO E
SEXUALIDADE: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE AS MULHERES DO MST-PE E AS DO MMTRNE, sob a orientação da Profa. Dra. Allene de Carvalho Lage (UFPE/CAA).
177
Resumo:
Este artigo objetiva discorrer sobre a filosofia de Gilles Deleuze, caracterizada pela criação de
conceitos e a perspectiva rizomática anunciada pelo autor, a qual vem descaracterizar o
currículo que demarca a pedagogia atual que se delineia por fins, e que hierarquiza o saber, o
fazer e o aprender, delimitando a construção do saber como uma árvore que tem raiz, caule e
folhas. E, percorre um caminho aberto, que não supõe hierarquias, diante das construções sem
imposições, tendo liberdade para inventar, para significar, e ainda considera o múltiplo, como
original, as linhas de fuga como possibilidades.
Palavras-chave: Deleuze. Multiplicidade. Plano de Imanência. Rizoma. Currículo.
Introdução
Esse trabalho originou-se na disciplina eletiva Teorias da Educação108, que compõe a
matriz curricular do curso de Pedagogia, e foi apresentado como atividade avaliativa final. A
disciplina teve por objetivos compreender o significado das Teorias Educacionais,
reconhecendo a importância das múltiplas abordagens na interpretação do fenômeno
educativo; estudar as concepções teóricas de pensadores da contemporaneidade – Nietzsche,
Foucault e Deleuze, no que se refere à problemática educacional, refletindo sobre as
condições de uma autoeducação na experiência escolar; analisar as condições da formação
humana na atualidade à luz desses referenciais teóricos; e desenvolver a capacidade de leitura
e análise de textos filosóficos, a partir do estudo de obras dos autores selecionados,
relacionando as contribuições desses pensadores à nossa realidade109.
Tal leitura poderia se constituir a partir do pensamento desses filósofos, mas pelo
percurso livre, pela caracterização de singular – múltiplo inventivo, criativo, que (re)significa
o já existido de forma não delineada em fins, elegemos Gilles Deleuze110 para ser o foco deste
trabalho. Objetivamos apresentar alguns aspectos da filosofia deleuziana relacionados,
especificamente, com os conceitos de multiplicidade, plano de imanência e perspectiva
108
Disciplina cursada no 5º semestre do curso Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco, Centro
Acadêmico do Agreste, regida por: Profa. Dra. Maria Betânia do Nascimento Santiago, ministrada no primeiro
semestre de 2012.
109
Extraído do Programa de Componente Curricular da Disciplina Teorias da Educação no dia 11 de julho de
2012.
110
Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês, vinculado aos denominados movimentos pós-estruturalistas,
categorizações que o próprio Deleuze questionava pelo que trazem, ainda, da visão e luta pelo idêntico extraído
do site: http://www.ricesu.com.br/colabora/n8/homenagem/index.htm. (acessado em 21/05/12, às 00h:26min).
178
rizomática, entendendo que a especificidade dessas três perspectivas apontadas para a criação
de conceitos é, sobretudo, a marca da filosofia de Deleuze que a considerava como “a arte de
formar, de inventar, de fabricar conceitos.” (DELEUZE e GUATTARI, p. 10).
O percurso metodológico contemplou leituras baseadas na análise do discurso, por ser
uma teoria que dá conta de reflexões e interpretações sobre formas de compreendermos
enunciados discursivos que vão para além do que está escrito, uma vez que um texto, um
diálogo, não se esgota em sua formação, em sua apresentação, pois estes sempre nos
apresentam um processo histórico-significativo do dito e do não dito. Trata-se de percepções
construídas a priori e que implicitamente e explicitamente compõem o enunciado
apresentado. Como assinala Fischer (2001, p. 210),
O campo enunciativo acolhe novidades e imitações, blocos homogêneos de
enunciados, bem como conjuntos díspares, mudanças e continuidades. Tudo
nele se cruza, estabelece relações, promove interdependências. O que é
dissonante é também produtivo, o que semeia a dúvida é também
positividade crítica.
Isso significa que as construções discursivas são decorrentes de implicações diversas,
sejam de outros discursos, de conceitos criados, da arte, da música, da literatura, e implicam
sempre uma formação discursiva. Segundo Foucault (Apud FISCHER, 2001, p. 211):
... [não há] enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um
enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando
um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele
se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por
ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que não suponha outros; não
há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências.
Com base no que foi exposto acima, este trabalho aborda algumas concepções que são
pressupostos da filosofia Deleuziana para a teorização curricular, o trabalho encontra-se
estruturado em: 1) a perspectiva de criação de conceitos, sendo esta a marca fundamental e
que desencadeia as demais conceituações; 2) a perspectiva da multiplicidade, sendo esta
permeada pela composição do uno-múltiplo, e, sobretudo, pelas demarcações dos/as outros/as
no nós, sendo este o “sujeito” ou o objeto; 3) a perspectiva de plano de imanência, que é a
imagem do pensamento, estando associado à criação de conceitos, o qual é o uso do
pensamento sendo inerente ao ser; e 4) a perspectiva rizomática, que é a caracterização do
rizoma e como esse se desenvolve e articula-se na filosofia de Gilles Deleuze.
179
Tendo em vista a caracterização e a (re) significação dos conceitos assinalados por
Gilles Deleuze, essas quatro perspectivas traduzem um percurso de (re) significações,
baseados na perspectiva rizomática, na ideia de multiplicidade, levando em conta o plano de
imanência. Essas questões serão ponderadas ao longo desse trabalho, não finalizando aqui as
concepções interpretativas como únicas, e, sobretudo, como as corretas, mas problematizando
as quatro perspectivas diante da proposta curricular atual, pensando-a de forma aberta e
inventiva, oportunizando experimentações através das subjetivações.
1 – Criar Conceitos em Deleuze
Na concepção de Gilles Deleuze criar conceitos é fazer filosofia, pois como Mostafa
(2009, p. 23) afirma: “(...) o conceito como ideia filosófica é o cerne da filosofia. Sempre foi,
desde que a filosofia se instaurou entre os gregos. Então, falar de conceitos é falar de
filosofia”. E, fazer filosofia através da criação de conceitos, é transformar o mundo, é
desenvolver possibilidades variadas de comunicação. Criar conceitos, é criar o uno-múltiplo,
é refletir, é (re) significar, é transformar, é mudar, é reaprender. Para Gallo (2008, p. 43):
O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado,
produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas
condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de
novo, pensar. O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta
uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o
conceito é justamente aquilo que nos pões a pensar. Se o conceito é produto,
ele é também produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos
conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é o
conceito que recorta o acontecimento, que torna possível.
O conceito apresenta-se em suas peculiaridades, permitindo o pensar sem
delimitações, sendo parte principal da filosofia Deleuziana, pois é a partir da criação de
conceitos que as outras conceituações decorrem tendo uma nova significação. Definindo-se de
acordo com as maneiras diversas de existência, não se estabelecendo como uma verdade, a
criação de conceitos permite, através de acontecimentos, a liberdade do pensamento,
destacando-se vários componentes, pois segundo Deleuze (apud MOSTAFA, 2009, p. 24),
“Todo o conceito tem componentes, e se define por eles”.
Percorrer caminhos segundo o viés Deleuziano é abrir mão de padrões estabelecidos, é
convidar através de perguntas o pensar caracterizado pela multiplicidade, denominando assim
180
não o sujeito, pois a especificidade, o eu, não tem uma demarcação nessa filosofia, pois não
há o eu, mas há composições de outros na formação da peculiaridade e da alteridade do
múltiplo. Destarte, Gilles Deleuze e Felix Guattari (2011, p. 17) dizem que: “Não somos mais
nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados”. Além
disso, na composição do sujeito que não é sujeito111, mas “ao contrário do sujeito, a
hecceidade é o efeito da experimentação do mundo, cujo movimento produz lugares de
reinvenção como singularização do mundo que se singulariza” (GELANO, 2007, p. 306).
É nessa perspectiva que Deleuze (apud Mostafa, 2009, p. 31) afirma: “eu não desejo
nada que não seja visto, pensado ou possuído por um outrem possível.” Então, subentende-se
que a criação de um conceito ou de algo materializado, deve ser permeada por visibilidade.
Possibilitando a um – muitos o contato com esse instrumento, com esse pensamento etc..
Desse modo, o pensamento é livre para criar problemas, para criar conceitos, tendo como
pressuposto o esquecimento, para que os conceitos, os valores não se enraízem, não delimitem
o pensar, não sufoque o inventar, não fixem poder, saber. Como afirma Schérer (2005, p.
1187): “não se pode aprender sem começar a se desprender. A se desprender, é claro, dos
preconceitos anteriores, mas, antes de tudo, e sempre, a se desprender de si”.
2 – Delineando alguns Conceitos da Filosofia Deleuziana
Este estudo aborda alguns conceitos desenvolvidos pelo filósofo Francês e que
caracteriza sua filosofia, de sua criação de conceito e (re) significação dos conceitos de outros
filósofos. Trata-se da ideia de multiplicidade, plano de imanência e a perspectiva rizomática.
2.1 A Ideia de Multiplicidade
Pensar a multiplicidade em Deleuze é recorrer a uma questão fundamental de sua
filosofia que é a criação de conceito. Nessa sentindo, é importante considerar que para o autor
não existe conceito puro, único, acabado.
111
“Deleuze não usou mais a noção de sujeito como sendo relativa a um “Eu” qualquer ou ao “Eu” do cogito
cartesiano. Todas as vezes que encontramos a palavra sujeito em sua obra, ela está relacionada a uma hecceidade
que, na linguagem deleuziana, quer dizer uma subjetivação sem sujeito, um processo de experimentação, seja de
pensar, seja de sentir, mas que não esteja centrado na razão abstrata representacionista. Assim, uma hecceidade
experimenta e expressa o mundo, não pensa por representações mentais. É pela experimentação do mundo que se
cria condições para conhecer diferentemente aquilo que se experimentou, em vez de simplesmente representar,
pela razão, as sensações ou pensamentos, de adequar a experiência ao pensamento”. (GELAMO, 2007, p. 305).
181
Todo o conceito é uma multiplicidade, não há conceito simples. O conceito é
formado por componentes e defini-se por eles; claro que totaliza seus
componentes ao constituir-se, mas é sempre um todo fragmentado, como um
caleidoscópio, em que a multiplicidade gera novas totalidades provisórias a
cada golpe de mão (GALLO, 2008, p. 40).
Nesse contexto a multiplicidade são as diversas formas de existir, de caminhar, pois
não há mais o uno, ou seja, para Deleuze e Guattari (2011): “Uma multiplicidade não tem
nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem
crescer sem que mude de natureza” (p.23). Determinações essas que são composição de
múltiplos, criações de múltiplos.
2.2 Plano de Imanência
Segundo Mostafa (2011), o “plano de imanência permite orientar-se no pensar, é como
a imagem do pensamento, apesar de não representar um conceito pensável, nem pensado.
Uma imagem do que significa pensar” (p.43). O plano de imanência é algo inerente, que age
com os conceitos criados, que o norteiam, são as linhas do rizoma. Como assinala Escobar
(1991, p. 21):
são as multiplicidades que povoam o campo da imanência, um pouco como
as tribos povoam o deserto sem que ele deixe de ser um deserto. E o plano de
imanência deve ser construído, a imanência é um construtivismo, cada
multiplicidade assinalável é como uma região do plano.
Diante disso, percebemos que a multiplicidade está intimamente ligada ao conceito de
plano de imanência pelo fato da construção do pensamento, pelas formas de existir, pois o
múltiplo compõe a realidade do individuo, sem descaracterizá-lo, permitindo-o (re) significar
e criar conceitos.
Esse plano é uno-múltiplo - são as ações do pensamento, são as direções do
pensamento, são as realidades, não com uma sequência como apresentado no Método
Cartesiano ou não como o transcendente Kantiano, mas são deslocamentos, são formações,
criações.
2.3 Perspectiva rizomática
182
O conceito de rizoma pode ser considerado um dos mais significativos da filosofia de
Gilles Deleuze. Pois este é Segundo Machado (2009) a “imagem do pensamento”, sendo esta
permeada não por algo uno, mas por multiplicidades. Sendo ainda caracterizado como: “O
rizoma é horizontalidade que multiplica as relações e os intercâmbios que dele se originam. A
vida assim compreendida é um contínuo fluxo e refluxo, potência de interação e produção de
sentidos” (LINS, 2005, p. 1232).
Esta perspectiva rizomática, é desenvolvida e/ou rompida apenas no meio através de
rizomas abertos, livres, e que se conectam embora não estejam ligados. Sobre essa questão
Gallo (2008, p. 17) afirma: “Nunca há um rizoma, mas rizomas, na mesma medida em que o
paradigma, fechado, paralisa o pensamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar
pensamentos”.
O rizoma tem seis princípios, os quais são peculiaridade múltiplas apresentadas na
obra Mil Platôs (2011): 1º e 2º Princípios de conexão e de heterogeneidade, que assinala o
fato de que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.”
3º princípio de multiplicidade, ainda no mesmo texto, “as multiplicidades se definem pelo
fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização.” E, é importante elencar que
são essas que segundo Escobar (1991) “povoam o campo de imanência”. 4º princípio de
ruptura assignificante, “um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e
também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas” 5º e 6º
princípio de cartografia e de decalcomania, “um rizoma não pode ser justificado por nenhum
modelo estrutural ou gerativo’. (...) A arvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques
são como folhas da arvore. Diferente é o rizoma, mapa e não decalque”. Essa analogia posta
como princípios fazem parte do plano de imanência, que de fato será uma composição de
muitos, sem cair na heterogeneidade através da multiplicidade.
A perspectiva rizomática é inventiva pelo fato de romper com a ideia hierárquica da
árvore, a qual não abarca e não compreende a multiplicidade. Tem uma segmentação e gira
em torno de algo fixo. É nesse sentindo que o rizoma inova, descaracteriza, cria, pois ele
assume formas diversas, sendo essas ramificadas em sentidos distintos. Tal perspectiva é
assim caracterizada por Deleuze e Guattari (2011, p. 22):
Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo. [...] Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente
a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas
a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas,
183
econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos
diferentes, mas também estatutos de estados de coisas.
O rizoma é apresentado em linhas, destarte, linhas que se conectam e que independe
da forma que estão posicionadas. São linhas que se houverem rompimentos, ainda
continuarão conectadas, pois, não são delineadas em inicio, meio e fim, como a arborescente,
que tem raiz, caule e folhas. Este é segundo MP (apud ZOURABICHVILI, 2004, p.52): “Um
antimétodo que parece tudo autorizar – e de fato o autoriza, pois este é seu rigor, do qual seus
autores, sob o termo “sobriedade”, enfatizam de bom grado, pensando nos alunos apressados,
o caráter ascético”.
Diante da perspectiva rizomática, estabelecemos uma relação ao cenário educacional,
o qual se apresenta de forma enclausurada, estando a escola, o currículo e as práticas
pedagógicas limitadas, sendo desenvolvidas como paradigmas fechados que delimita o
pensar. Diante disso, observamos a dinâmica do rizoma, que descaracteriza as ações
pedagógicas atuais, segundo Lins (2005, p. 1230):
Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinâmica do
rizoma: resistir, infectar e vitalizar o instituído, no aqui e no agora da
pedagogia “real”, isto é, no molar em ruptura com o molecular, no molar não
mais acoplado ao molecular como diferença, mas asfixiado pelo ideal
identitário, para o qual o retorno é redundância vazia e não diferença.
Dessa forma, a escola que tem uma dinâmica rizomática, estabelece caminhos
contrários aos paradigmas fechados, resistindo-os, infectandos-os e vitalizandos-os. Seguindo
uma proposta baseada na liberdade do pensamento. Permitindo o/a aluno/a extrair
significados e transformá-lo de acordo com a sua formação múltipla.
3 – Pensando o currículo a partir de Gilles Deleuze
A escola tem sido um lugar de objetivo, de sequência, de avaliação hierárquica,
saberes fragmentados, dessa forma é percebido que as práticas pedagógicas - curriculares
estão pautadas em perspectivas diferenciadas, mas que delimitam a autonomia do/a aluno/ao,
através de hierarquias e objetivações, limitando a constituição de um pensar livre, o qual
segue um percurso como uma arborescente. Nesse âmbito, é ressaltada a perspectiva
rizomática de Gilles Deleuze, pois as conexões do rizoma é a expressão do fazer o múltiplo.
É nessa perspectiva que poderemos pensar a escola de forma inventiva e
problematizadora, que favoreça a vivência da verdadeira autonomia. Não aquela apenas
184
cogitada ou problematizada, e destacada nas teorias, mas uma autonomia de fato, que
possibilite ao aluno/aluna, criar seus problemas, independente de ter respostas, e a partir daí
criar conceitos, que contribuam para uma compreensão além do que é sistematizado e
requerido pela escola, com isso, o currículo também necessita de transformações,
proporcionando uma aprendizagem inventiva, e composta por novidades, novidades estas no
aprender, no ensinar, no criar Segundo Kastrup (2005, p. 1277):
A noção de aprendizagem inventiva inclui então a invenção de problemas e
revela-se também como invenção de mundo. Trata-se de dotar a
aprendizagem da potencia de invenção de mundo. Trata-se de dotar a
aprendizagem da potência de invenção e de novidade.
Uma aprendizagem engenhosa, rompendo paradigmas, podando as árvores,
arrancando suas raízes, (re) significando seus frutos, e permitindo ser uma planta inovada na
perspectiva rizomática, descobrindo, sobretudo o prazer de criar, de pensar e de saber o
sentido de uma reconfiguração enquanto múltiplos, para que outros que terão os nossos nós,
sejam múltiplos nossos com uma desenvoltura do pensar para além do que conseguimos
imaginar e como nos diz Daniel Lins, que a pedagogia escolar seja “uma pedagogia
rizomática, seja a da desconstrução e da diferença, do individuo como singularidade. Uma
pedagogia que não trabalha com formas, mas com encontros nômades, desejos, encruzilhadas
e bifurcações.” (LINS, 2005, p.1252).
O aprendizado é um sentimento livre, uma construção sem imposições, é transitar por
muitas verdades ou por não verdades, é construir problemas, é construir caminhos, é também
se perder nesses caminhos, é desprender-se, desapegar-se. Para René Schérer (2005, p.1191):
A aprendizagem segue a via dos encontros e dos amores e não os métodos de
uma pedagogia sempre impotente, ultrapassada pelas paixões. “Não existe
método para encontrar os tesouros e muito menos para aprender”.
É no âmbito do debate curricular que essa leitura vem revelando seu potencial
elucidativo para a educação, e mesmo descaracterizando visões já consolidadas, acerca da
teoria do currículo. Observamos esse fato ao compararmos com o que é dito por Silva (1999,
p. 14): “a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de
saber qual conhecimento deve ser ensinado”.
A crítica em relação ao que deve ser ensinado são as limitações que são postas
juntamente com essa deliberação, com esse saber que se propõe a colocar em prática. Trata-se
propriamente da problemática da organização curricular, como afirma Gallo (2008, p. 70-1):
185
A organização curricular das disciplinas as coloca como realidades estanques, sem
interconexão alguma, dificultando para os alunos a compreensão do conhecimento
como um todo integrado, a construção de uma cosmovisão abrangente que lhes
permita uma percepção totalizante da realidade.
A educação contemporânea, seguindo a proposta curricular de ensinar isso ou aquilo,
constituído um binarismo, delimita o aprender do/a aluno/a, dessa forma impossibilitando-o/a
de perceber as composições múltiplas da realidade, ficando focado/a em apenas um caminho,
uma realização, uma atividade, ou seja, são caminhos que se cruzam em alguns momentos,
mas que logo se deslocam, separam-se.
Considerar a perspectiva rizomática na organização do currículo significa assumir o
que é próprio aos rizomas, no qual suas linhas se cruzam, permitindo assim, está conectado
por um rizoma a vários rizomas, e assim proporcionando a autoformação. Nessa perspectiva,
é preciso reconhecer a exigência que se coloca a essa experiência formativa: o desejo de ser.
Como assinala Daniel Lins (2005, p. 1235):
O ser não é dado, mas querido, almejado, conquistado; nesse sentido, o ser
autoprodução. Não se nasce ser, torna-se, ou não, ser. O ser não é uma
questão de substancia ou de transcendência, o ser é uma produção desejante:
pura invenção do desejo.
É tornar-se quem deseja, é correr, quebrar-se, mudar-se, criar, sem sair do meio. É o
currículo múltiplo, que descaracteriza, liberta o pensar, que permite caminhar por linhas de
fugas buscando novas direções: “os campos de saberes são tomados como absolutamente
abertos; com horizontes, mas sem fronteiras, permitindo trânsitos inusitados e insuspeitados”
(GALLO, 2008, p.81).
Pensar na proposta rizomática é pensar em uma pedagogia
diferenciada, uma pedagogia inovada, que deixa o/a aluno/a e o/a professor/a permitindo
aprender e ensinar / ensinar e aprender através da criação de conceitos, da liberdade do pensar
e do transitar por caminhos não delimitados.
Tal compreensão oferece uma possibilidade, um olhar que nos permite problematizar a
educação atual, e a forma que o currículo é vivenciado pela escola, pois como dito acima, o
currículo tem sido hierárquico, com problemas e soluções. Não permitindo o recriar,
reconfigurar, (re) significar, mas desenvolvendo uma falsa criticidade. Tal realidade nos
permite afirmar que apesar de todos os avanços educativos para o ensino e aprendizagem
acontecer, ainda temos uma educação que se aproxima do modelo tecnicista, tradicional, e,
sobretudo competitiva.
186
Considerar uma proposta curricular rizomática, significa reconhecer os novos papéis
do/a professor/a, como também do/a aluno/a; reconhecer a importância do aprender de formas
mútuas. Um aprendizado decorrente da realidade e do pensamento, como afirma Lins (2005,
p. 1248):
Um aprendizado imanente, de um “método” rizomático que acolhe o ser zero
da pedagogia que é, ao mesmo tempo, causa e dom, é o que não é ainda. O
participado (suposto professor) torna-se o principio ativo ao passo que o
participante (suposto aluno) é o efeito. Sem hierarquia nem lugares,
inauguram-se encontros e não apenas quadros relacionais. Professor e aluno,
ambos intercessores, tornam possível aquilo que parecia impossível:
transmitir sem dominar, transmitir sem ofuscar os devires, receber sem
dever, sem morrer às criatividades nem se deixar engolfar por uma alteridade
moral que esvazia, mediante a dívida e a erosão dos desejos, a vontade
positiva de potencia, vontade superior de desejar.
A proposta curricular Deleuziana vai além da horizontalidade, da verticalidade, fala-se
em uma transversalidade, permitindo circular por vários campos dos saberes. Como afirma
Gallo (2008, p. 79):
A transversalidade rizomática, por sua vez, aponta para o reconhecimento da
pulverização, da multiplicação, para a atenção às diferenças e à
diferenciação, construindo possíveis trânsitos, pela multiplicidade dos
saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo
policompreensões.
Uma visão transversal rompe com os “verticalismos e horizontalismos” que segundo
Gallo (2008) são insuficientes para uma abrangência de visão de todo o “horizonte de
eventos”, superando as diferentes partes impostas, ou vistas, com um processo educativo
heterogêneo, singular, não delineada em unidades. Mesmo com essa perspectiva, acreditamos
que nem esse transversal proposto por Deleuze seja suficiente para abarcar as múltiplas
diferenças existentes, uma vez que um currículo triangular, circular, horizontal, vertical,
transversal, essas formas de organizar o currículo ainda serão formas de delimitar o que é
querido e como este será finalizado.
Por isso, propõe-se a liberdade do pensamento e do aprender, sem sequências, sem
possibilidades limitadas. Isso significa a defesa de um currículo múltiplo em todas as
segmentações, em todas as facetas existentes, possibilitando o criar, mas um criar além do que
é conhecido atualmente, um criar sem objetivos pré-estabelecidos, criar valores e (re) criá-los,
(re) significá-los. O pensamento sendo concebido em movimentos infinitamente aberto e
infinitamente em evolução, para além dos fechamentos existentes.
187
Considerações Finais
Assumimos a afirmação de Schérer (2005, p. 1193): “Aprender com Deleuze é
também aprender Deleuze. O que não quer dizer sabê-lo” (p. 1193). Ou seja, discorrer sobre o
fazer filosofia através das criações conceituais, ver a multiplicidade na formação do ser,
apresentando uno-multiplo, além do plano de imanência, a imagem do pensamento, que estão
associados nas criações dos conceitos, é saber e não saber. Pois há lacunas, há perguntas sem
respostas, que se procura em seus textos, e de seus seguidores ou críticos, e não consegue
compreender algumas questões. Talvez porque este seja o ponto crucial de sua filosofia: não
ter tudo pronto e acabado, mas construído, para ser refletido e (re) significado, reconhecendo
a multiplicidade que caracteriza a realidade.
Talvez a filosofia de Deleuze se apresente para nós, ainda hoje, como uma pedagogia
muito diferenciada. E, que a proposta curricular na perspectiva rizomática não se efetive na
prática. No entanto, essas conceituações, desestruturam qualquer base “sólida”, estabelecida
em verdades ditas como absolutas, em poderes políticos, sociais, econômicos, fazendo cair às
vendas que tapam os olhos dos múltiplos que se consideram uno. Desestabiliza os teóricos
que discorrem sobre práticas curriculares, e seus objetivos pedagógicos, desestabiliza o ensino
aprendizagem, desestabiliza a hecceidade que existe em cada multiplicidade.
Certamente ela pode suscitar muitos embates, sobretudo entre aqueles que não querem
se desprender de conceitos pré-estabelecidos, dos aprendizados e implicações de outras
filosofias, de outros conceitos. Com efeito, negar ou não reconhecer a multiplicidade existente
é negar a si mesmo, é negar as gerações, é negar os aprendizados, é, sobretudo, negar o que se
é. Por isso, a escola é convidada a (re) significar suas práticas, superando hierarquias, e a
tentação de determinar o que deve ser seguido. Cada escola, cada professor/a é convidado/a
para assumir uma prática que favoreça a liberdade do aprender, a significação de algo no
aprender. É permitir inventar.
188
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189
HERÁCLITO
Prof. Dr. Fausto dos Santos Amaral Filho
Heráclito de Éfeso certamente é um dos pensadores gregos que mais contribuiu para a
constituição da filosofia, sendo, portanto, um dos alicerces originários do pensamento
ocidental. Estando assim, instalado em nossas origens, permanece sempre adstrito à
contemporaneidade, dando-nos ainda e sempre muito que pensar. Levando em conta a
classificação historiográfica que costumamos seguir, é um filósofo pré-socrático; o que, dito
dessa maneira, pouco nos diz a respeito daquilo que pensou, revelando-nos, antes, um aspecto
da sua cronologia. Tendo isso em vista, melhor seria, talvez, fazermos como Aristóteles,
chamando-o de physikós, ou seja, um filósofo da phýsis: aquilo que se manifesta enquanto
abertura para um despertar. Como sabemos, a filosofia surge como uma tentativa de ruptura
com a concepção exclusivamente mítica da realidade, até então vigente. Para os filósofos,
pode-se dizer até hoje, não basta mais saber auscultar, repetindo, a linguagem dos deuses, o
mythos, mas sim, estar aberto para as possibilidades do lógos: a fala que advém, sustentando,
a ordenação (kósmos) daquilo que se mostra a partir do movimento de si mesmo (phýsis). É
tendo isso em vista que podemos reafirmar que Heráclito é um filósofo exemplar.
Conheçamos, pois, um pouco a respeito da sua vida.
Ainda que não exclusivamente, a maior parte do que sabemos sobre a vida de
Heráclito encontra-se em Diógenes Laércio, na obra intitulada Vida, opiniões e sentenças dos
filósofos mais ilustres. No entanto, não esperemos de Laércio algo assim como uma biografia
objetivamente constituída, aos moldes das exigências da historiografia moderna, o que ao seu
tempo, evidentemente, ainda não era o caso. Provavelmente escrita por volta do terceiro
século d. C., a obra de Laércio é uma espécie de compilação daquilo que as gerações
anteriores haviam dito sobre os filósofos da antiguidade, em tom não raras vezes jocoso e
fabulosamente mitificado. O que, é claro, antes de ser puramente um prejuízo historiográfico,
190
adentrando na seara da produção de sentido, ajuda-nos a compreender sobremaneira o
impacto causado por Heráclito aos seus póstumos.
Com alguma certeza podemos dizer que nosso filósofo nasceu em Éfeso, cidade
situada na costa ocidental da Ásia Menor. Não podendo precisar a data do seu nascimento,
nem da sua morte, sabemos, contudo, que sua vida transcorreu entre o final do século VI e o
início do século V a. C., sendo que, o auge de sua existência - a faixa dos 40 anos – teria se
dado em meio a sexagésima nona Olimpíada (entre 504 – 501 a. C.). Ainda segundo Diógenes
Laércio, Heráclito teria sido uma pessoa admirável desde a sua infância. Filho da Aristocracia
local, contudo, ao contrário do que comumente se esperava dos bem nascidos, recusou-se a
participar do governo da cidade, tendo, inclusive, renunciado ao título de Rei em favor do seu
irmão; ao que tudo indica, decepcionado com os rumos da política local, o que equivale dizer,
de uma maneira geral, com a vida que então se levava em sua cidade. Deixando-nos antever a
vocação político-pedagógica do filósofo, preocupado com a paidéia (educação) do cidadão,
ao invés de imiscuir-se diretamente na política já corrompida da pólis, onde pouco ou quase
nada de bom poderia ser feito, Heráclito retirou-se para o templo de Artemis, local apropriado
para a constituição do saber, onde passava os seus dias entretido com as crianças, certamente
preocupado com a formação (paidéia) dos futuros cidadãos. E, quando os seus conterrâneos o
questionavam por essa sua atitude, sem papas na língua, repreendia-os: “Imbecis, o que isso
tem de assombroso? Não será melhor passar o tempo assim, em vez de administrar o Estado
em vossa companhia?”(LAÉRCIO, IX, 2).
Por essas e outras ficou conhecido pelo seu caráter “excepcionalmente altivo e
arrogante”(LAÉRCIO, IX, 1).
Outro exemplo das ações político-pedagógicas de Heráclito – e da sua altivez – pode
ser percebida pela seguinte história: estando a cidade de Éfeso cercada pelos Persas, os seus
moradores não deixaram de levar a vida opulenta com a qual estavam habituados. Porém,
quando se deram conta de que o cerco ao qual foram submetidos poderia durar algum tempo,
comprometendo, assim, o abastecimento da cidade, os cidadãos reuniram-se para deliberar
sobre o que poderia ser feito. Contudo, ninguém chegou a sugerir que deveriam precaver-se,
refreando os seus impulsos, adotando um modo de vida menos faustoso, mais modesto. Foi
então que Heráclito, em silêncio, juntando um pouco de farinha de cevada com água, sentouse no chão e comeu a mistura, “foi um lição para todos”(TEMÍSTIOS, DK 22 A 3b). Mas,
além das suas ações silenciosas, nosso filósofo também sabia dirigir a palavra aos seus
191
concidadãos quando necessário: “Que a riqueza não vos venha a faltar, Efésios, a fim de vossa
miséria desvendar-se toda”(Fr. 125).
Ainda que uma parcela da tradição aponte para o fato de que Heráclito teria tomado
aulas com Xenófanes e com o pitagórico Hipase (Cf. LAÉRCIO, IX, 5; SUDA, DK 22 A 1a),
isto parece ser bem improvável112; reforçando, assim, a ideia de que “ele não foi aluno de
ninguém”(LAÉRCIO, IX, 5), tendo sido “educado pela natureza e pelo seu próprio
zelo”(SUDA, DK, 22 A 1a). Ideia essa propagada pelo próprio filósofo, “pois dizia que é
necessário estudar a si mesmo e tudo aprender por si mesmo”(LAÉRCIO, IX, 5). Contudo, o
que não significa dizer que Heráclito não conhecia, evidentemente, tanto a tradição míticopoética do seu tempo, quanto o pensamento dos filósofos de então, sendo-lhes, antes pelo
contrário, por conhecê-los, um crítico ferrenho; como atesta o Fragmento 40: “Muito saber
não ensina sabedoria, pois teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu”.
Dessa maneira, sendo de fato um filósofo, como normalmente acontece quando efetivamente
filosofamos, Heráclito não retirou o seu pensamento de uma cartola, como se o fizesse ex
nihilo, por um passe de mágica, mas sim, adentrou em um diálogo crítico com a tradição
filosófica do seu tempo através da sua historicidade própria.
Sabemos que Heráclito escreveu um livro, embora não saibamos muito bem como a
dita obra teria sido estruturada; assim como ocorre com todos os pré-socráticos, dos seus
escritos restaram apenas fragmentos, recolhidos através de vários ensaios doxográficos,
citações e testemunhos, cuja compilação mais famosa em nossos dias é aquela realizada por
Hermann Diels, editada pela primeira vez em 1903 e revisada posteriormente por Walther
Kranz em 1934 e em 1952. Como de resto acontece com praticamente todos os livros dos
filósofos daquela época, consta que a obra de Heráclito também se chamava Sobre a Natureza
(Perì Phýseos), e, a julgar pelo testemunho de Diógenes Laércio, escrita em prosa, ela estaria
dividida em três seções: Do Universo, Da Política e Da Teologia (LAÉRCIO, IX, 5). Embora
também saibamos da existência daqueles que defendem que a obra do filósofo teria sido
escrita em versos, havendo ainda os que pensam que o livro de Heráclito seria uma espécie de
compilação de sentenças e aforismos (Cf. COSTA, 2002). O fato é que, atentando para o
estilo do que nos restou dos seus escritos, podemos notar um tom, além de apotegmático e
críptico, um tanto quanto oracular. Estilo esse que, impondo sérias dificuldades para a
112
Para a confirmação de tal improbabilidade ver: SPINELLI, 1998.
192
compreensão do pensamento do filósofo, desde a antiguidade lhe valeu o epíteto de o
obscuro.
Por conta principalmente de Platão, influenciado sobremaneira por Crátilo, discípulo
de Heráclito, nosso filósofo de Éfeso passou para a história como o pensador do constante
devir, do fluxo contínuo de todas as coisas, pensamento este sedimentado na fórmula pánta
rheî (tudo flui). Cujo fragmento mais representativo é aquele que nos diz que “não se pode
entrar duas vezes no mesmo rio”(Fr. 91). Aristóteles, seguindo o Mestre da Academia
reforçou ainda mais esta interpretação, ressaltando os problemas que tal concepção impõe a
filosofia113. Na modernidade é Hegel quem dá continuidade a esta interpretação, ao conceber
a filosofia de Platão como a síntese dialética entre pensamentos opostos, o movimento em
Heráclito (pánta rheî) e o repouso em Parmênides (hén kaì pán). E assim, no mais das vezes,
é como continuamos a conceber até hoje o pensamento de Heráclito114.
Contudo, ainda que reconheçamos a importância de tal interpretação para a
constituição histórica da filosofia, se esquecermos um pouco esta tradição interpretativa e nos
voltarmos diretamente para os fragmentos de sua obra, veremos que “a filosofia de Heráclito
está longe de se reduzir à mera proclamação do fluxo universal das coisas”(REALE, 1993, p.
65). Pois, de fato, se tudo fluísse incessantemente, sem que nada pudéssemos apreender a não
ser a mudança escorredoura, nenhum projeto pedagógico seria possível. O que,
evidentemente, não é o caso do nosso filósofo, pois tanto quanto a filosofia de Platão educador por excelência -, a filosofia de Heráclito “tem, em geral, uma clara orientação
educadora”(SPINELLI, 1998, p. 252).
Assim, se de fato encontramos entre os quase cento e trinta fragmentos que temos de
Heráclito, três que, através da metáfora do rio, ressaltam o fluxo constante das coisas115, lendo
113
“Como vissem que todo este mundo sensível está em movimento, e a respeito do que muda nenhuma
declaração verdadeira se pode fazer, disseram que no tocante àquilo que por toda parte e a todos os respeitos está
mudando, evidentemente nada se podia afirmar com segurança. Foi essa opinião que floresceu na mais extrema
das doutrinas acima mencionadas, a dos que se dizem discípulos de Heráclito, qual a defendida por
Crátilo”(ARISTÓTELES, Met. 4, 1010 a).
114
“É entre Parmênides e Heráclito que se abre o espaço em que, desde então, se faz Filosofia. Parmênides
dizendo que Tudo é Uno, fornece o elemento do Logos universal que abrange tudo; Heráclito, dizendo que Tudo
flui, que tudo é movimento de pólos opostos, fornece o elemento da Dialética. Hen kai Pan e Panta Rei, “O todo
e o Uno” e “tudo Flui” são desde então lemas de toda e qualquer Filosofia”(CIRNE-LIMA, 1996, p. 23).
115
“Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os
vapores”(Fr. 12). “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”(Fr. 49a). “Não se pode entrar
duas vezes no mesmo rio”(Fr. 91).
193
os restantes podemos perceber claramente que, para o nosso filósofo, “o que tinha importância
vital era a ideia complementar de medida inerente à mudança, a estabilidade que persiste
através dela e a governa”(KIRK; RAVEN, SCHOFIELD, 1994, p. 192). Ideia essa presente,
sobretudo, nos diversos usos que a palavra lógos comporta.
Muito se fala sobre “a indigência da nossa língua ante a riqueza dos recursos verbais
do povo”(SCHÜLER, 2007, p. 21) grego e, com isso, aponta-se para a dificuldade particular
que a palavra lógos impõe aos seus tradutores, ainda mais nos usos que dela faz Heráclito.
Assim como o nosso pensador, a palavra lógos empregada por ele “e aquilo que ela designa
são obscuros”(HEIDEGGER, 2002, p. 251). Afinal, se Heráclito foi chamado de o obscuro é
porque, ao fim e ao cabo, “ele pensa o ser enquanto o que se vela e tem que pronunciar a
palavra de acordo com o que assim se pensa”(HEIDEGGER, 2002, p. 47). Como diz o
Fragmento 123: “surgimento já tende ao encobrimento”. O lógos é justamente o que favorece
este acontecer, na medida em que constitui o próprio acontecido; por isso é preciso saber
escutá-lo: “Auscultando não a mim, mas o lógos, é sábio concordar que tudo é um”(Fr. 50).
Dessa maneira, para tentarmos compreender melhor o que Heráclito nos faz pensar
através do lógos, talvez o melhor seja pensarmos com ele; até mesmo porque, é bem provável
que este seja um dos seus maiores ensinamentos pedagógicos, diga-se de passagem, muito
propício para ser lembrado em nosso tempo, onde confundimos informação com
conhecimento: acumular informações transmitidas não é exatamente compreender o mundo,
devemos, antes, saber pensá-lo. Como diz o Fragmento 40 já citado anteriormente, só que
agora em outra tradução: “A polimatia, ou o aprender muita coisa, não aperfeiçoa a
inteligência”. Para Heráclito, a verdadeira paidéia, capaz de constituir a sabedoria, “consiste
em uma simples coisa: conhecer o pensamento, que ordena tudo em toda parte”(Fr. 41), e não
acumular uma infinidade de informações desconectadas da totalidade. Pois, desconectado do
todo, imerso apenas e tão somente na acumulação, é o próprio homem que acaba perdendo as
possibilidades de compreensão de si mesmo e do mundo, fragmentado na particularidade da
percepção de cada um.
Portanto, se a Educação tem a capacidade de desenvolver a totalidade das
potencialidades humanas, e visto que “é dado a todos os homens conhecer-se a si mesmo e
pensar”(Fr. 116), ela não pode se restringir ao acúmulo de informações, mas antes, deve “dar
um rumo, um sentido básico a estas informações, na medida em que se estabelece um
relacionamento adequado com o todo da realidade, de tal modo que a pessoa possa situar
194
qualquer realidade num todo coerente de sentido”(OLIVEIRA, 1997, p. 242). Esta é a tarefa
própria do lógos pensante, da sabedoria, que conjuga informações, pois “pensar reúne
tudo”(Fr. 113). Consequentemente, é “necessário serem os homens amantes da sabedoria para
investigar muitas coisas”(Fr. 35). Se assim não for, ficamos como aqueles homens do
Fragmento 34 do nosso filósofo: “Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes
atesta: presentes estão ausentes”; para os quais “lhes fica encoberto tanto o que fazem
acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono”(Fr. 1). Logo, isto é o
próprio da Educação: desencobrir o mundo revelando-o para além do meramente aparente.
Fazendo-nos perceber o extra-ordinário em meio à cotidianidade fenomênica que, no mais das
vezes, imergindo-nos na azáfama das ocupações do dia-a-dia, oblitera tal possibilidade. Pois
“o fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário”(KOSIK,
p. 15, 1976), em conjunção com o lógos. Mas, para percebê-lo, é preciso saber auscultá-lo em
meio à fragmentação da cotidianidade, para então perceber a unidade da totalidade, “pois tudo
é uno, e o uno é tudo”(Fr.10).
Pois bem, se Saviani tem razão, e “o clássico não se confunde com o tradicional e
também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual” (SAVIANI,
2008, p. 14), pelo que pudemos ver, com certeza, Heráclito é um clássico tanto para a
Filosofia quanto para a Educação. Pois, recorrendo ao pensamento do Filósofo de Éfeso
podemos pensar uma das questões mais urgentes para a Pedagogia na contemporaneidade: a
fragmentação do mundo, que acaba por fragmentar o próprio homem, cerceando-lhe a
possibilidade de viver a sua humanidade integralmente. Pois, afinal, como Oliveira não nos
deixa esquecer:
No sentido mais originário da palavra, é precisamente isto
que o ocidente chamou de Educação, ou seja, o processo
através do qual o homem singular e empírico adquire um
relacionamento adequado com a totalidade, de tal modo que
se abre o espaço para a efetivação de sua liberdade nas
estruturas fundamentais de seu ser pessoal e social
(OLIVEIRA, 1996, p. 240).
195
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Editorial Gredos, 1982.
CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
DIELS,
Hermann;
KRANZ,
Walther.
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fragmente
der
vorsokratiker.
Weidmannsche Verlagsbuchandlung, 1960.
DIOGENES LAERTIUS. Life of eminent philosophers. Vol. I, II. England: Havard
University Press, 1995.
HEIDEGGER, Martin. Heráclito: lógica: a doutrina heraclítica do logos. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002.
HERÁCLITO. Fragmentos. Edição bilíngüe com tradução, introdução e notas de
Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980.
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, Apresentação e Comentários
de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
196
KIRK, G, S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores,
1987.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Tópicos sobre dialética. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1996.
PLATÓN. Diálogos. Madrid: Editorial Gredos, 1997.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Edições Loyola,
1993.
SAVIANI,
Dermeval.
Pedagogia
Histórico-Crítica:
primeiras
aproximações.
Campinas: Autores Associados, 2008.
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2007.
SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-socráticos. Primeiros mestres da Filosofia e da
Ciência grega. Porto Alegre: Edipucrs, 1998.
197
HISTÓRIA E MEMÓRIA DO ENSINO DE FILOSOFIA NO CEARÁ-BRASIL
Profa. Dra. Cristiane Maria Marinho
UECE
Introdução
O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma investigação que tem por
objetivo situar o estudo e o ensino da Filosofia no Estado do Ceará, Brasil. Este estudo busca
mostrar a repetição, em terras cearenses, das mesmas matrizes filosóficas dos estudos e ensino
filosóficos que vigoraram no Brasil que, por sua vez, reverberaram os caminhos da filosofia
percorridos na Europa.
A principal fonte de pesquisa bibliográfica da pesquisa ora em desenvolvimento é o
livro intitulado Ensino da Filosofia no Ceará, organizado por Adísia de Sá, 1972, composto
por vários artigos de diversos autores. A partir dele foram se desdobrando os assuntos afins e
sendo utilizados outros autores e outras obras. O fato desse livro compor a coluna vertebral
dessa pesquisa constitui, também, uma homenagem a Adísia Sá, tanto pelo seu trabalho no
198
âmbito do ensino da Filosofia no Ceará quanto por sua iniciativa pioneira do registro desse
ensino.
O desenvolvimento do texto resultante da pesquisa vem sendo desenvolvido
com o traçado de um quadro cronológico do ensino cearense de Filosofia, relativo ao período
que vai de 1726 ao final do século XX e, dentre outras questões, apresenta: principais
instituições e nomes representativos dessa história; existência de grupos não institucionais que
contribuíram para a divulgação da Filosofia no Ceará; documentos que testemunham esse
percurso de construção do ensino filosófico; e, finalmente, entrevistas com nomes que
marcaram esse percurso.
A seguir, serão apresentados aspectos sumariados dessa pesquisa visando compor uma
sinopse cronológica desse ensino com os principais fatos que marcaram o estudo e o ensino da
Filosofia no Ceará.
A Colônia (1500-1822) e os primórdios do ensino cearense de Filosofia
Para situar o estudo da Filosofia no Ceará é preciso remeter ao estudo da Filosofia no
Brasil. A história do ensino da Filosofia no Brasil começa com o ato de D. João III
determinando a vinda dos Jesuítas. Os primeiros chegaram ao Brasil em 1549, tendo como
superior o padre Manuel da Nóbrega que, logo em 1553, fundou a escola primária Colégio
dos Meninos de Jesus. Mas em virtude do projeto pedagógico da Companhia de Jesus
priorizar o ensino secundário, essa escola, três anos após a sua fundação, foi transformada em
nível secundário denominado Colégio de Jesus da Bahia.
Essa mesma transformação foi acompanhada por todos os colégios jesuítas da Colônia.
Dessa forma, assevera Lima (1972, p. 27):
O Colégio de Jesus de Salvador é considerado o gérmen do ensino
secundário no Brasil. Ali, na sua 6ª classe, nasceu também o ensino de
Filosofia no Brasil. O Colégio Jesuíta de Olinda, de onde partiram os
primeiros mestres para o Ceará, já incluía também no seu programa do 1º
ciclo o ensino de Filosofia.
Outro local de ensino de Filosofia no Brasil Colônia foram os seminários póstridentinos. O primeiro seminário deste tipo no Brasil foi instituído também na Bahia e teve a
direção dos Jesuítas. Os estudos superiores aí presentes eram, prioritariamente, destinados à
formação dos futuros membros da Ordem e, basicamente, ministrados pelos próprios Jesuítas
(Wals, 1972). Muitos alunos ilustres da época frequentaram esses seminários que tinham a
199
preocupação de formar as elites espirituais dirigentes da nova terra. Essas escolas, juntamente
com o seu modelo, foram se multiplicando conforme a colonização avançava no novo
território.
Com a fundação dos núcleos colonizadores, em 1607 aconteceu também a tentativa
dos jesuítas para aldear os índios e desenvolver uma educação a partir das ideias inacianas.
No Ceará, depois de percorrer os sertões cearenses, uma missão colonizadora missionária
vinda do Maranhão e liderada pelos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira foi dizimada pelos
índios Tabajaras na Serra da Ibiapaba (Cf. Lima, 1972, p. 25).
Os documentos de 1720, cartas régias, representações, ordens régias, datas de
sesmarias etc. (Cf. Lima, 1972, p. 29) constatam o aumento do aldeamento dos índios do
Ceará, sob a direção dos missionários, com os padres Antônio Ribeiro e Pedro Pedroso. Nessa
época, o aldeamento de Ibiapaba havia progredido bastante sob a jurisdição de Pernambuco.
Em 1721, chegam mais padres da Companhia de Jesus para ajudar no aldeamento e na
catequese dos índios. É quando surgem os primeiros ensinamentos de leitura e escrita,
provavelmente em Viçosa e Aquiraz, sendo que o funcionamento dessas escolas cearenses
aconteciam “nos moldes das outras escolas jesuítas, como o Colégio de Jesus em Salvador,
fundado em 1553, e o Colégio Jesuíta de Olinda, fundado em 1570” (Lima, 1972, p. 27).
Lima relata, ainda, que em 1721, D. João recomendou aos vereadores e oficiais de
Aquirás que ajudassem o padre Antonio de Sousa Leal, que voltava às capitanias do Ceará e
Piauí, para “continuar o ministério de missionário que nelas exercitou por espaço de 18 anos”
(Studart apud lima, 1972, p. 29).
Apesar de serem muito raros os dados dessas origens, há a informação segura de que
em 1726 teria sido criada na capital da Província uma cadeira de Filosofia, apesar de nunca ter
sido ministrada 116 (Cf. Alcântara, 1972, p. 13).
Segundo Rodrigues (1972, p. 45) e Lima (1972, p. 27), devemos buscar as origens do
ensino da Filosofia no Ceará no início do século XVIII e meados do século XIX nas
iniciativas pedagógicas dos colégios secundários jesuítas, fundados em Viçosa e Aquiraz,
116
Em 1826, foi criada outra cadeira de Filosofia, que também não foi provida. Em 1830, foram instituídas as
cadeiras de Geometria, de Português, de Francês e de Filosofia. Em 1831, foram criadas as cadeiras de Filosofia
Racional e Moral, Retórica, Geometria e Francês, localizadas em Fortaleza. Todas elas, posteriormente, foram
incorporadas ao Liceu do Ceará, fundado em 1844.
200
posteriormente fechados com a expulsão pombalina. Os programas adotados nos colégios
jesuítas do Ceará deveriam ser os mesmos utilizados na Bahia e em Pernambuco, pois os
padres que ensinavam aqui obtinham sua formação naquelas províncias. O Colégio de Olinda,
por exemplo, ensinava no primeiro ciclo, além das primeiras letras, letras humanas, teologia
moral e Filosofia (Cf. Rodrigues, 1972). Sendo que:
Do colégio de Olinda é que vieram, mais tarde, os primeiros mestres do
Ceará. Os primeiros colégios do Ceará foram fundados sob os auspícios dos
mestres vindos de Olinda. Não há porque, pois, não admitir que nos colégios
jesuítas dos inícios do século XVIII é que nasceu o ensino da Filosofia no
Ceará. No colégio de Viçosa e no colégio de Aquirás (Rodrigues, 1972, pp.
45- 46).
A expulsão dos Jesuítas, decretada por Pombal em 1759, praticamente paralisou o
ensino de Filosofia no Brasil. Uma retomada mais dinâmica desse ensino só vai acontecer no
período imperial.
Nos séculos XVII e XVIII, o cearense só podia estudar Filosofia nos centros de
estudos superiores fundados pelos Jesuítas ou em algum Seminário Maior. Como essas
escolas não existiam no Ceará, era necessário o deslocamento até os centros de estudos
superiores como, por exemplo, à Bahia onde existiam uma escola dos Jesuítas e o primeiro
seminário pós-tridentino do Brasil.
Praticamente não há registro sobre as obras e os filósofos estudados naquela época,
mas é sabido que a maior parte dos jesuítas ensinava a Filosofia Escolástica, de cunho
apologético. Essa filosofia que era ensinada nos centros de estudos superiores acabou
influenciando fortemente o ensino de Filosofia no Ceará, pois os cearenses tiveram a sua
formação filosófica nesses centros.
Em 1800, na Província do Ceará havia apenas 5 escolas públicas de nível primário,
para igual número de nível secundário (aulas de latim). Os que tinham maiores recursos iam
para o Seminário de Olinda e os de menores recursos frequentavam essas escolas onde
aprendiam somente a ler, escrever, calcular e rezar. Portanto, o povo não tinha acesso à
instrução secundária, privilégio de uma elite econômica (Cf. Lima, 1972).
Nesse período, final da Colônia e primórdios da Independência, um fato determinante
para o ensino da Filosofia no Ceará foi a fundação do Seminário de Olinda, em Recife, no fim
do século XVIII, mais especificamente entre os anos de 1798 e 1800. A elite intelectual que
surgiu na Província cearense educada no Seminário teve relevante papel nas lutas
republicanas de 1817, na Revolução do Equador de 1824 e no ciclo de movimentos liberais do
201
Nordeste. O currículo desse Seminário se orientava pelo enciclopedismo e pela Filosofia
Iluminista que influenciaram a Revolução Francesa e incluía, além das matérias tradicionais,
o estudo das línguas, desenho e ciências naturais.
O Império (1822-1889) e a consolidação do ensino de Filosofia no Ceará
Em 1826 foi criada em Fortaleza uma cadeira de Filosofia, no entanto, essa iniciativa
caiu no vazio, pois com a expulsão dos jesuítas não havia ninguém que ensinasse essa
matéria.
A lei imperial de 1827 em muito beneficiou a educação brasileira. Foram inaugurados,
por exemplo, os cursos jurídicos de Olinda, nos quais se formaram 42 cearenses até o ano de
1845. Eram nesses cursos que ocorriam o ensino da Filosofia, pois não existia nenhum
magistério autônomo dessa matéria. Wals (1972, p. 85) assevera que “no começo do século
XIX, o cearense ainda não encontrava na sua terra onde estudar a Filosofia”. Recife e Olinda
representavam o centro eclesiástico e científico, incluindo medicina e engenharia, para onde
os cearenses se dirigiam. E nesse âmbito é que se desenrolava o ensino da Filosofia, sempre
agregado a alguma outra área.
Aquela lei também decretava a criação de escolas primárias, chamada de primeiras
letras, em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Dessa forma, foram
criadas no Ceará mais de 20 escolas primárias e cinco aulas de latim, nas localidades de
Fortaleza, Aquiraz, Icó, Sobral e Viçosa (Cf. Lima, 1972, p. 31).
O ensino da Filosofia também é comtemplado nessa esteira de reformas educacionais
promovidas no período imperial. Assim, na época da Regência Trina, em 1831, foram criadas
em Fortaleza as cadeiras de Filosofia Racional e Moral, Retórica, Geometria e Francês.
Infelizmente a cadeira de Filosofia não foi provida, por absoluta inexistência de quadros.
Três instituições de ensino – Liceu do Ceará, Seminário da Prainha, Escola Normal – e
um movimento cultural – Academia Francesa do Ceará – são significativos no ensino da
Filosofia em terras cearenses no período imperial.
O Liceu do Ceará foi fundado em 1844 e uma fase nova se abre para a educação
cearense. Um enorme contingente de jovens alunos procura estudar no Liceu, pois era o
estabelecimento de ensino secundário que respondia às exigências da época. Entre os alunos
da primeira geração do Liceu do Ceará encontramos Farias Brito e Clóvis Beviláqua (Cf.
Rodrigues 1972, p. 47).
202
Lima (1972, p. 32) relata que as cadeiras que compunham o currículo da nova
instituição de ensino secundário eram: Filosofia Racional e Moral, Retórica, Poética,
Aritmética, Geografia, Trigonometria, Geografia e História, Inglês e Francês. E alerta para
dois fatos interessantes: o fortalecimento do ensino secundário da Filosofia no Ceará e a
presença simultânea do inglês e do francês, demonstração da forte influência econômica e
cultural da Inglaterra na nossa Província.
Ao Liceu foi incorporada a cadeira de Filosofia criada em 1831 que nunca havia sido
provida. Foi nessa instituição cearense que, de fato, pela primeira vez ocorreu um ensino
mais sistemático do saber filosófico, bem como uma educação que possibilitasse aos
cearenses uma formação a altura das outras Províncias. Rodrigues é enfático ao afirmar esse
início: “O Liceu foi propriamente o primeiro centro cearense de expansão do ensino da
filosofia. [...] a partir daqui, podemos dizer, nasce efetivamente o ensino da Filosofia no
Ceará” (1972, p. 47).
Apesar do estudo da Filosofia ter tomado um grande impulso a partir dessa época, no
entanto, em 1845, sob a direção do Padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil, a Filosofia
ensinada no Liceu era ainda muito ligada aos cursos jurídicos, o próprio Tomás Pompeu era
formado em Faculdade de Direito de Recife. Wals (1972, p. 86) chega a afirmar que a
Filosofia ensinada nessa época e nessa instituição era uma “Filosofia ‘pro forma’ dos cursos
jurídicos, embora sustentasse o ensino da Filosofia, não cultivou a Filosofia pura”. Contudo, o
Liceu por aproximadamente duas décadas permaneceu sendo o grande centro irradiador do
pensamento cearense, incluindo aí o ensino de Filosofia.
O Seminário Diocesano da Prainha foi fundado em 1864 e foi fundamental para o
ensino da Filosofia no Ceará. Inicialmente o seu principal objetivo era proporcionar uma
formação mais adequada dos candidatos ao sacerdócio no Ceará. O seu fundador, Dom Luiz
Antônio dos Santos, instalou o Curso de Teologia, com duração de quatro anos, e o Curso de
Preparatórios, com duração de seis anos, que incluía no seu sexto ano o estudo da Filosofia.
Somente a partir do ano de 1913, é que o ensino da filosofia foi incorporado ao programa do
Curso Superior do Seminário.
A partir de 1964, o Seminário Provincial de Fortaleza foi entregue à direção dos
padres diocesanos e no ano de 1966, uma parte dos seminaristas do curso Superior foi
transferida para os seminários Regionais de Recife, Belo Horizonte e São Paulo. Antes desse
203
período, muitos dos seus alunos fizeram curso na Pontifícia Universidade Gregoriana de
Roma, e depois voltaram para ensinar Filosofia no Ceará. Entre outros nomes ilustres,
lecionaram no Seminário da Prainha, nos últimos anos acima referidos, os professores:
Manfredo Tomás Ramos (Introdução à Filosofia e Lógica, Teoria do conhecimento,
Metafísica, Teodiceia e Ética) e Paulo Melo Jorge, carinhosamente conhecido como Paulo
Petrola (História da Filosofia).
A Academia Francesa do Ceará foi fundada, em 1872, por um grupo liderado por
Raimundo Antônio da Rocha Lima, inspirado na Escola do Recife117 que conheceu ao viajar
para Pernambuco no ano anterior. O grupo da Academia era composto, dentre outros, por
João Capistrano de Abreu, Tomás Pompeu de Souza Filho, João Lopes Ferreira Filho,
Xilderico Araripe de Faria e Araripe Júnior, Clóvis Beviláqua, Joaquim Catunda, Farias
Brito118.
A Academia Francesa, tida como a primeira entidade de cunho filosófico do Ceará,
teve um período de curta duração, 1872 a 1875, e uma existência não convencional, sem
formação de diretoria, regulamento ou livro de ata. Da mesma forma, também, não deixou um
legado bibliográfico expressivo:
A Academia foi um grupo que [...] ‘utilizava as ideias livres, arremessandoas contra o romantismo acomodado, pondo em espanto e inquietação o
tradicionalismo provinciano, que ainda ignorava ou fingia ignorar o tumulto
que, do recife, saía aos quatro ventos [...]. [...]. As reuniões da Academia
eram na casa de Rocha Lima e as discussões versavam sobre os mais
palpitantes temas filosóficos da época, desde o comtismo puro, ao
racionalismo, da revolução francesa, à Filosofia alemã e sobre a Índia (Sá,
1972, p. 127-128).
A Academia Francesa do Ceará teve dois grandes desdobramentos de suas atividades,
o Jornal Fraternidade, fundado a 4 de novembro de 1873, e a Escola Popular, criada a 31 de
maio de 1874. O jornal se caracterizava por uma postura nitidamente contrária ao Clero, e de
inspiração fortemente maçônica. A escola, por sua vez, era frequentada por “pobres e
operários” e também pela sociedade fortalezense em geral. (Cf. Sá, 1972, p. 128).
117
Importante movimento filosófico, político e cultural, encabeçada por Tobias Barreto e Silvio Romero,
surgido em Pernambuco em 1870.
118
Outra instituição importante no ensino da Filosofia no Ceará nessa época da Academia Francesa foi o
Seminário do Crato, fundado em 1875, que funcionava de modo suplementar ao Seminário da Prainha. Em
ambos funcionavam o Curso de Preparatórios.
204
O outro estabelecimento importante no ensino da filosofia no Ceará foi a Escola
Normal, inaugurada em 1884, depois de um longo processo que se arrastou desde 1837,
quando foi instalada uma Escola Normal temporária de primeiras letras sob a presidência da
Província de Martiniano de Alencar. A lei que instituiu inicialmente a implantação da Escola
Normal foi suspensa sob a alegação do tesouro provincial não suportar os gastos necessários à
sua criação e funcionamento, bem como, devido ao fato de seu mentor ter deixado o governo.
Depois de suspensa a implantação da Escola Normal, o seu projeto é retomado em
1881 funcionando em um anexo ao Liceu do Ceará, mas somente em 1884 é finalmente
inaugurada a Escola Normal, com a finalidade de preparar professores para erradicar o
analfabetismo dos jovens que predominava na Província. (Silveira, 1990, p. 21). O ensino de
Filosofia ministrado na Escola Normal foi estreitamente ligado à Filosofia e História da
Educação, com caráter predominantemente pedagógico (Cf. Sá, 1972, p. 57 e Silveira 1990, p.
91 e ss.).
Silveira (1990, p. 21) ressalta que o ensino normal no Ceará e no Brasil tem início
efetivo na época da influência do pensamento liberal e sua defesa da liberdade, igualdade,
democracia e do direito à escola pública, bem como da campanha abolicionista e das ideias
republicanas.
A República (1889 – 1990) e a expansão do ensino de Filosofia no Ceará
No início do século XX a instituição marcante no ensino de Filosofia no Ceará foi a
Faculdade de Direito, que teve inicialmente a denominação “Academia Livre de Direito do
Ceará”, instalada no dia 1º de março de 1903. O Curso de Direito inicia neste mesmo ano sob
a tutela do Estado e somente em 1938 tem seu reconhecimento oficial pelo Governo Federal.
Vários estudiosos chamam a atenção para o fato importante da predominância da
Filosofia no cerne do ensino do Curso de Direito do Ceará. No quadro das disciplinas, por
exemplo, desde o começo a Filosofia do Direito fazia parte das disciplinas da Faculdade (Cf.
Kelly, 1972, p. 120).
Outro elemento importante a ser considerado no que diz respeito à Faculdade de
Direito ser uma instituição representativa no ensino da Filosofia no Ceará, é a presença, desde
o início, em seu corpo docente, de uma das figuras mais representativas no ensino e pesquisa
nessa área, o Professor Alcântara Nogueira; estudioso que posteriormente ocupou diversas
205
disciplinas filosóficas em várias instituições de ensino, bem como produziu uma vasta obra de
estudos filosóficos.
A Escola Militar do Ceará, por sua vez, foi fundada em 1889 e funcionou até 1897
com a missão de formar oficiais de carreira do Exército. Em seu lugar foi criado o Colégio
Militar do Ceará que funcionou de 1919 a 1938, sendo substituído pela Escola Preparatória de
Cadetes de Fortaleza em 1942 que teve duração até 1961 quando foi criado em seu lugar o
Colégio Militar de Fortaleza, funcionando até hoje (Cf. Marques, 2009, p. 10).
É nesse contexto do ensino militar que permanece o ensino da Filosofia no início do
século XX em terras cearenses. Rodrigues (1972) informa que além do Liceu do Ceará e do
Seminário da Prainha, somente o Colégio Militar do Ceará dava continuidade ao estudo da
Filosofia.
Sá (1972, p. 55) informa também que no Colégio Militar o ensino de Filosofia a partir
de 1968 era ministrado somente em uma série, o 2º científico, tendo esta matéria a duração de
dois anos, tinha o caráter reprovativo e sua carga horária era composta de três aulas semanais.
O conteúdo do programa era: Introdução à Filosofia; Psicologia; Lógica; Filosofia da Arte;
Moral.
Atualmente a disciplina de Filosofia é ensinada no Colégio Militar de Fortaleza
(CMF), seguindo as orientações do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) e as
determinações da lei que estipula a volta obrigatória dessa matéria no ensino médio (Silva,
2009, p. 46-47).
No Ceará, a presença dos capuchinhos no ensino de Filosofia tem maior expressividade a
partir da década de 40 do século XX. Em Sobral, Dom José é responsável pela vinda de vários
frades e pela ordenação desses religiosos, que foram extremamente importantes no
desenvolvimento cultural daquela cidade. Há indício da criação de um curso de Filosofia em
Sobral nesse período, mas o que teve maior repercussão foi o da Serra de Guaramiranga, no
qual tinha no currículo as seguintes disciplinas: Introdução à Filosofia; Lógica; Cosmologia e
Psicologia Racional; Metafísica; Teoria do Conhecimento; Teodiceia; Ética e História da
Filosofia (Kelly, 1972, p. 106).
O Centro de Ciências e Filosofia do Ceará, criado a 04 de agosto de 1945,
“instituiu-se para servir à cultura científica e filosófica do Ceará”, segundo os seus
fundadores. Em sua curta existência, nunca chegou a ter sede própria, realizando suas sessões
em salas cedidas pelo Palácio do Comércio, Rotary Clube e Instituto do Ceará. Moradores de
206
Fortaleza, seus fundadores e outros sócios eram estudiosos reconhecidos daquela época, que
acabavam por se reconhecerem e se agregarem, principalmente pelo objetivo comum de
valorizar a ciência e a Filosofia mediante a hegemonia da literatura nos círculos intelectuais
da cidade (Cf. Sá, 1972, p. 129).
No dia 4 de maio de 1946, Aluísio Pinheiro lança uma declaração em meio a uma crise
de desânimo vivida pelo grupo, com o título oficial de Proclamação ao Centro de Ciências e
Filosofia, no qual convoca para a retomada do ânimo inicial do grupo expondo os motivos
maiores da luta pela sobrevivência do Centro e de sua importância histórica, ou seja, a
pesquisa científico-filosófica em meio à predominância literária e seu espírito vanguardista.
Assim, o Centro seria:
A única instituição científica do Ceará, todas as demais sendo literárias ou
paraliterárias; a única em que a liberdade de pensamento é um fato; a única
que é formada pela mocidade estudiosa de nossa capital e ainda, finalmente,
a única que não há velhos, a cousa mais perigosa nestes tempos de
transformação político-sociais, pois todo velho, em tese, é um empecilho à
evolução (Pinheiro apud Sá, 1972, p.263).
Em seu discurso, Pinheiro apresenta diversos fatores que comprovavam o baixo nível
de cultura científica e filosófica em nossa terra, que chegava mesmo a ser um “menosprezo
pela Ciência”: a ausência de obras de ciência pura nas livrarias; nos colégios, a existência de
grêmio de cultura literária e nenhum de estudos científicos; excesso de professores de línguas,
escassez de professores de Matemática, Física, Química e Biologia; o não reconhecimento
social das pessoas que estudavam ciência. No Ceará, enquanto os homens de ciência eram
esquecidos, havia quase um enaltecimento místico dos seus homens de letras.
No Centro de Ciências e Filosofia do Ceará havia uma discussão constante entre seus
membros sobre a necessidade de se criar uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em
Fortaleza. E assim, foi a partir do Centro que se conseguiu fundar a Faculdade Católica de
Filosofia. Talvez o fruto mais importante daquele grupo de jovens professores.
Aluísio Pinheiro, além de membro do Centro, era professor do Colégio Cearense
Marista, onde mantinha excelentes relações com a ordem mantenedora daquela instituição.
Precisamente por esses fatos, é que ele foi encarregado de expor aos maristas a importância de
se ter na capital cearense uma Faculdade de Filosofia que viesse a cumprir os objetivos
ansiados pelo Centro, relativamente à uma formação mais científica e filosófica da juventude
fortalezense. O fato é que a ideia obteve um êxito rápido e em 11 de abril de 1947 a
Faculdade foi criada (Cf. Sá, 1972, p. 133).
207
Dessa forma, a criação da Faculdade significou a extinção do Centro, que a partir daí
teve todos os seus membros voltados para a nova Faculdade: “algumas reuniões do grupo
aconteceram na própria Faculdade, mas já sem o grande estímulo inicial, transferido
completamente para a Católica” (Sá, 1972, p. 134).
Outro grupo de estudos filosóficos é fundado em maio de 1960 em Fortaleza, o
Instituto Cearense de Filosofia. Seus fundadores eram tais como: Moacir Teixeira de
Aguiar, Paulo Bonavides, José Teixeira de Freitas, José Parsifal Barroso, Luís Gonzaga
Coelho de Albuquerque, Afonso Banhos, Álvaro Menezes Craveiro e pe. Francisco Luz.
Paulo Bonavides foi o presidente na primeira diretoria do Instituto (Sá (1972, p. 135).
Em outubro de 1960, o Instituto Cearense de Filosofia, que nasceu autônomo, foi
absorvido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia que estava em plena expansão nacional,
capitaneada pelo seu presidente Miguel Reale.
Assim, houve a reinstalação solene da
sociedade, agora sob o nome de Instituto Brasileiro de Filosofia, Secção Ceará. Ou seja,
ocorreu a absorção do grupo cearense I.C.F. pelo IBF. Miguel Reale estava presente nessa
solenidade e proferiu uma oração, transcrita posteriormente em um número da revista do
Instituto, sob o título: A Filosofia como auto-consciência de um povo (Sá, 1972, p. 138). A
sede do Instituto, instalado em 1960 na Faculdade Católica, ali permaneceu até o ano seguinte
(Cf. Sá, 1972, pp. 141-142).
O Instituto Brasileiro de Filosofia, Secção do Ceará, publicou seus estatutos em
novembro e lançou mais um número da Revista Filosófica do Nordeste, que teve o seu
primeiro número em setembro de 1960 com edição da Imprensa Oficial do Ceará. (Cf. Sá,
1972, p. 137). O diretor da Revista Filosófica do Nordeste era Paulo Bonavides. O segundo
número da Revista foi apresentado na Livraria Renascença e trouxe trabalhos de Miguel Reale
e Paulo Bonavides, bem como uma entrevista com Jean Paul Sartre concedida ao Instituto
Brasileiro de Filosofia – Secção do Ceará (Cf. Sá, 1972, p. 139). Em 1963 saiu o terceiro
número da revista, para a qual Miguel Reale colaborou com um artigo. E “em 1967, sai o 4 º
número da revista, sob os auspícios, desta vez, da Secretaria Estadual de Cultura,
(desmembrada da Secretaria de Educação) composto e impresso no departamento de Imprensa
Oficial” (Sá, 1972, p. 140).
O Regimento Interno do I. B. F. Secção Ceará, assinado pelo presidente Paulo
Bonavides e publicado no Diário Oficial, em novembro de 1961, indica que seus objetivos e a
suas atividades eram, dentre outros: congregar no Ceará os estudiosos da Filosofia; promover
208
a Filosofia através de cursos, conferências, simpósios, seminários, congressos regionais,
nacionais ou internacionais; publicar semestralmente a Revista Filosófica do Nordeste; manter
intercâmbio filosófico com outros países; patrocinar a publicação de obras filosóficas;
conceder bolsas de estudo aos seus associados no País e no estrangeiro; colaborar com a
Universidade do Ceará e Faculdades de Filosofia nas pesquisas, estudos e divulgação de obras
filosóficas; manter biblioteca especializada; (Cf. Sá, 1972, pp. 268-269).
O IBF, Secção Ceará, realizou dois grandes eventos filosóficos em Fortaleza. Em
1961, o Instituto promoveu, juntamente com a Faculdade Católica de Filosofia, a Semana da
Antropologia Filosófica. Em 1962, organizou o IV Congresso Nacional de Filosofia (Sá,
1972, p. 142).
Em 1966, a Faculdade Católica de Filosofia do Ceará foi encampada pelo Estado e
passa a se chamar Faculdade de Filosofia do Ceará - FAFICE através de Decreto estadual
do Governador Virgílio Távora. Assim, o Decreto estadual determinou também a encampação
ao patrimônio estadual do acervo do material da antiga Faculdade, bem como de
equipamentos, instalações, direitos e obrigações. Da mesma forma, o pessoal docente e
administrativo foi aproveitado no Serviço Público da nova Faculdade na qual continuaram
funcionando os cursos de Letras, Geografia, História, Pedagogia, Filosofia e Matemática.
Assim, a FAFICE, criada em 1966 como resultado da encampação da antiga
Faculdade Católica de Filosofia do Ceará fundada pelos Maristas em 1947, que, por sua
vez, foi inspiração do Centro de Ciências e Filosofia do Ceará, fundado em 1945, somente
fez seu primeiro concurso de provas e títulos para os cargos de professor adjunto em 1968. A
parte do Edital relativa ao Departamento de Filosofia abrangia duas áreas: uma vaga para a
área de Metafísica, compreendendo Ontologia, Gnosiologia, Cosmologia e Teodiceia; uma
vaga para a área de Antropologia Filosófica, abrangendo Antropologia, Ética, Axiologia. Na
área de metafísica foi aprovada em primeiro lugar Maria de Adísia Barros de Sá e na área de
antropologia Filosófica foram aprovados dois candidatos, Expedito Teles e Mirtes Mirian
Amorim Maciel, ambos contratados pelo Departamento de Filosofia. (Cf. Kelly, 1972, pp.
113-112).
Contudo, foi somente na III Semana Pedagógica de 1970, que a Filosofia, pela
primeira vez, constou do quadro das disciplinas para análise dos programas. Até então, o
programa ou roteiro da Filosofia no ensino médio, seguido pelos professores dos colégios
209
oficiais do estado, datava de 1968, e foi elaborado pela Comissão Técnica do Departamento
de Ensino do Segundo Grau, com a presença de professores da matéria.
Nessa época de Ditadura Militar, encontros semelhantes à Semana Pedagógica eram
escassos, o que transformava o pequeno número de professores de Filosofia em um grupo
disperso, forçados a serem meros espectadores da exclusão da Filosofia dos currículos dos
estabelecimentos do Estado. Assim,
O programa de Filosofia nos colégios oficiais do Estado ficou praticamente,
durante este período, a critério de professores. Sabe-se, e convém que se
diga, que os poucos professores de Filosofia continuaram ministrando a
disciplina segundo o programa traçado pelo MEC, isto é, os constantes da
portaria nº 966, de 2 de outubro de 1951, inclusive depois de retirada a
disciplina do chamado científico. Isto é, ficou sendo lecionada a parte
referente ao antigo clássico, sob critério do professor, evidentemente, até
1968 [...] (Sá, 1972, p. 58).
O resultado da participação de professores e alunos da faculdade de Filosofia do Ceará
junto à III Semana Pedagógica, em 1970, foi a elaboração da proposta de um currículo para o
Conselho Estadual de Educação. Sá (1972, p. 67) informa que esse currículo “não levou em
consideração conveniências de grupos ou pessoas; foi um currículo elaborado dentro de uma
Filosofia educacional realista”, voltado para a nossa realidade.
Os proponentes desse currículo foram Mirtes Miriam Maciel, Francisco Auto Filho,
Wilson Noca, Francisco de Assis Santos Oliveira e Adísia Sá, professores e alunos da
Faculdade de Filosofia do Ceará e levado ao C.E.E. em nome do Departamento de Filosofia
da Faculdade de Filosofia do Ceará (Cf. Sá, 1972, p. 68).
No Ceará, em 1971, ainda em função do Preparatório para o Vestibular, o ensino da
Filosofia estava presente nos cursos de preparação para o vestibular voltado para as
Graduações na área de Humanidades (Grupo B), o chamado Clássico. Nos cursos
preparatórios para o vestibular para as Graduações na área das Ciências (Grupo A) não havia
aulas de Filosofia. Em função da maior procura para as escolas da área A, os colégios foram
eliminando as turmas B (ou clássico), resultando que em 1971 apenas dois estabelecimentos
de ensino secundário oficial do Estado (Justiniano de Serpa e Liceu) que ministravam
Filosofia e somente nas duas últimas séries (Cf. Sá, 1972, p. 55).
A situação era a mesma nos colégios particulares. No Colégio Batista, por exemplo,
Filosofia era ensinada nas três séries do Clássico. Em 1970 a cadeira ficou restrita ao 2º
210
clássico, numa turma de 33 alunos, fechando definitivamente em 1971, e, consequentemente,
deixou de existir a cadeira de Filosofia (Sá, 1972, p. 55).
Pouco resultado teve a luta por um novo currículo de Filosofia, pois essa disciplina foi
retirada do Vestibular da Faculdade de Filosofia do Ceará, inclusive do vestibular do curso de
Filosofia. Essas alterações foram instruídas pelo próprio Ministério de Educação e Cultura,
da mesma forma que no dia 11 de agosto de 1971 foi assinada a Lei nº 5692, que fixava as
diretrizes e bases para o ensino do 1º e do 2º graus, bem como as Normas do Conselho
Federal de Educação fixavam as disciplinas a serem ministradas nos 1º e 2º graus. E entre elas
não constava a Filosofia (Sá, 1972, pp. 77-78).
Ainda no final da década de 1960, surge outro centro de estudo de Filosofia, Centro
de Estudos, Pesquisas e Debates (CEPEDE) ligado ao Departamento de Filosofia e Direito
da Faculdade de Direito da Universidade Federal e tinha como principal objetivo “divulgar a
necessidade do estudo da Filosofia e da reflexão, notadamente no meio universitário, e ainda
o de despertar estudantes do ensino médio para o Curso de Filosofia” (Sá, 1972, p. 155).
Através do artigo 3º dos Estatutos do Cepede, que trata de suas finalidades, Sá (1972)
oferece uma noção geral desse Centro de Estudos, Pesquisa e Debates.
a) promover estudos, debates, seminários, cursos, conferências e pesquisas
relacionadas à Educação e à Cultura, principalmente nas áreas do direito,
Filosofia, Cultura, Medicina e Pedagogia, para o que utilizará a experiência e
a capacidade de pessoas e técnicos devidamente habilitados;
b) realizar por si só ou com entidades governamentais e privadas Cursos de
Divulgação Cultural em nível médio e superior, nos campos a que se refere o
item anterior;
c) publicar, segundo as conveniências e as possibilidades financeiras,
revistas e informes de cunho cultural e educacional e o resultado de suas
atividades, preferentemente em edições próprias;
d) manter relações com entidades congêneres, nacionais e estrangeiras, no
País, visando à divulgação e ao interesse das atividades do cepede;
e) organizar e promover, quando possível, certames úteis à integração social
dos jovens; Exposições artísticas; exibições de filmes e festivais que
contribuam para o levantamento dos padrões culturais da comunidade e para
a afirmação da cultura brasileira (Sá, 1972, p. 156).
Em novembro de 1969, para cumprir essa finalidade de difundir o conhecimento
filosófico, o Centro promoveu o 1º Seminário de Estudos Filosóficos. Assim, o 1º Seminário
de Estudos Filosóficos do CEPEDE foi promovido pelo Departamento de Filosofia e Direito
do Cepede, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia do Ceará e Pró-Reitoria de
Extensão da Universidade Federal do Ceará. A pretensão inicial era a de que ele fosse o
primeiro de uma série de outros cursos sobre Filosofia, mas infelizmente ele foi o único.
211
No dia 2 de fevereiro de 1971, a Arquidiocese de Fortaleza publicou o Decreto nº 15,
do Governo da Arquidiocese de Fortaleza, formando o Instituto de Ciências Religiosas
juntamente com a criação de um curso de Filosofia na denominada Faculdade de Filosofia
da Fortaleza – FAFIFOR. O Curso funcionava atrelado ao Departamento de Antropologia.
A Coordenadoria Pastoral, após estudos realizados em 1966-1967, relativamente ao
Plano de Pastoral de Conjunto da Arquidiocese, conclui que havia necessidade de reformas
estruturais de base para se adequar aos problemas levantados pela Pastoral do Concílio
Vaticano II.
Uma iniciativa urgente a ser tomada era a criação e organização do Instituto Superior
de Cultura Religiosa, que seria também o Seminário Maior da Província de Fortaleza. Para o
decreto de criação, o Instituto teria importante papel na “formação de todo o Povo de Deus”,
bem como economizaria os altos custos com pessoal e prédios relativos à multiplicidade de
órgãos religiosos então existentes. Da mesma forma, o Instituto teria um papel de aglutinar e
fortalecer as vocações religiosas para a vida pastoral, fortalecendo as tradições espirituais do
presente e das futuras gerações em um projeto coletivo (Cf. Kelly, 1972, p. 103).
Quanto ao funcionamento e objetivos do Instituto Superior de Cultura Religiosa,
podem-se realçar os seguintes aspectos: não tinha o objetivo imediato de formar sacerdotes;
funcionaria com o Departamento de Teologia, com cursos menores, e com o Departamento de
Pastoral, ministrando cursos de Missiologia, Catequese, Liturgia, Ecumenismo etc.; teria um
Departamento de Antropologia visando suplementar a formação de universitários das
Faculdades leigas; poderia desenvolver trabalhos de pesquisas por meio do departamento
especializado no assunto (Cf. Kelly, 1972, p. 105).
A Faculdade de Filosofia de Fortaleza foi criada em dezembro de 1971 e aprovada
pelo Conselho Federal de Educação (CFE) e, no ano seguinte, por decreto presidencial. Sua
implantação e funcionamento tiveram o suporte das instalações e da biblioteca do antigo
Seminário da Prainha. Foi organizada em quatro departamentos: Filosofia, Ciências Sociais,
Pedagogia e Teologia, oferecendo o curso de Filosofia e Teologia. Teve uma duração de
aproximadamente quinze anos, quando começa a ser extinta em 1987, com a transferência de
seus alunos para a UECE, e fechando suas portas em 1989 (Cf. VIEIRA, 2002, p. 295).
Em 1977, foi criada a Universidade Estadual do Ceará (UECE), que integrou ao
Patrimônio Público Estadual diversas faculdades, dentre elas a FAFICE, bem como o Curso
de Filosofia, dentre outros. Em 1984 a UECE acolheu os alunos da extinta Faculdade de
212
Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR), oriunda da Arquidiocese de Fortaleza. A tradição do
Curso de Filosofia na UECE é a Licenciatura, que funciona conjuntamente com o
Bacharelado. Até a década de 70 funcionava somente a Licenciatura em Filosofia. Já na
década seguinte foi criado o Bacharelado. Em 1998 foi fundado o Curso de Mestrado
Acadêmico em Filosofia da UECE, tendo como linhas de pesquisa: Ética Fundamental, ética e
Filosofia Social e Política.
A UFC criou a Graduação em Filosofia em 2000, e o ensino de Filosofia em nível de
pós-graduação com o Mestrado em Filosofia, em 1999, e o Doutorado em Filosofia em 2011,
ambos com duas linhas de pesquisa: Filosofia da Linguagem e do Conhecimento; Ética e
Filosofia Política.
Conclusão
Este trabalho investigativo já vem sendo desenvolvido há alguns anos e com certa
dificuldade, pois os materiais relativos ao ensino da Filosofia no Estado do Ceará são quase
inexistentes. Esse fato demonstra o descaso da nossa cultura com a própria preservação da
memória histórica e é justificativa expressiva para a presente pesquisa.
As entrevistas com algumas figuras representativas dessa trajetória não poderam ser
apresentadas aqui em virtude do espaço, mas constarão no livro a ser publicado quando do
término dessa pesquisa em andamento.
Apesar dessa primeira etapa da pesquisa ser predominantemente de exposição
cronológica, há o objetivo de desenvolver a investigação para rumos mais analíticos,
buscando uma problematização social do desenvolvimento do ensino da Filosofia no Ceará.
213
REFERÊNCIAS
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Ceará. Fortaleza, CE. 1972. (Biblioteca de Cultura série B Estudos e Pesquisas).
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Educação no Brasil. Relatório de pós-doutorado UNICAMP. Campinas, SP, 2012. Disponível
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VIEIRA, Sofia Lerche. História da educação no Ceará: sobre promessas, fatos e feitos.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
215
CONTRIBUIÇÕES DA IMAGINAÇÃO CRIADORA NA FORMAÇÃO DA CRIANÇA NAS
FASES INICIAIS DE ESCOLARIZAÇÃO
Meire Luci Bernardes Silva Machado
UNIUBE/Brasil
[email protected]
Adriana Paula Martins – UNIUBE/Brasil
[email protected]
Sueli Terezinha de Abreu Bernardes (Orientadora)
REDECENTRO/UNIUBE/BRASIL
[email protected]
Resumo
Este texto tem como tema as contribuições da imaginação criadora na formação da criança
nas fases iniciais de escolarização, na perspectiva teórica de Gaston Bachelard. O estudo tem
como objetivo compreender como a imaginação criadora despertada pelo contato com a arte
contribui para a formação da criança nas fases iniciais de escolarização. Entre as teorias que
discutem a relação de complementaridade entre o imaginário e o real está a fenomenologia
216
bachelardiana. A importância dessa teoria para o campo da educação emerge da afirmação de
que o contato com a arte viabiliza a experiência de transformação, de metamorfose do sujeito.
Assim, torna-se necessário analisar as implicações a as relações da imaginação criadora com o
processo formativo do aluno em sua escolarização inicial. O estímulo ao imaginário nessa
construção do saber nos períodos iniciais possibilita momentos de constantes descobertas.
Nessa fase, a criança está à procura do novo, do desconhecido. Tudo se torna ações
dinâmicas, um constante desafio para ela explorar, inventar, recriar seus caminhos de
aprendizagens. Este tempo de "aprender a fazer", de "construir" é um caminho à ser guiado
pela imaginação criadora. O devaneio poético que o contato com a criação artística
proporciona leva o aluno a querer realizar o que imagina, o que sonha. Discussões como essa
podem contribuir para reflexões sobre a complementaridade entre a ciência e a imaginação
criadora no campo da filosofia da educação. Parte-se da questão: como a imaginação criadora
contribui para a formação da criança nas primeiras fases de escolarização? Nos momentos em
que ela se encontra em ações de construção e descobertas como a brincadeira, o brinquedo, as
artes plásticas, as artes cênicas e a construção e a manipulação de diferentes objetos, ela
viverá uma experiência que lhe possibilitará uma relação do real com o imaginário. Essa
vivência dos anos iniciais de aprendizagem escolar proporciona um diálogo transformador na
busca do conhecer, do aprender e do criar, tendo o fazer, o experimentar, o brincar e o
imaginar como fontes de aprendizagem.
Palavras-chave – Fenomenologia bachelardiana. Imaginação criadora. Arte. Formação da
criança.
Introdução
É com interesse em ressaltar os diversos caminhos que a educação concede na
formação da criança, e as relações com a imaginação criadora, que se aproxima neste texto
das reflexões e contribuições sobre um modo de compreensão da imaginação como fonte
primeira para o processo ensino-aprendizagem. O que se pretende apresentar é como a
imaginação criadora contribui para a formação do ser, em fases iniciais de seu período
escolar.
Para fundamentar esta questão relacionada ao desenvolvimento total do ser humano e
seu mundo, nessa fase de desenvolvimento da criança, busca-se por meio de uma pesquisa
bibliográfica, enfatizar, sobretudo, nesse artigo autores como Gaston Bachelard (1996) e sua
217
comentadora brasileira a Sandra Richter (2006, 2009), cujas pesquisas e estudos
proporcionam maior entendimento e compreensão sobre o tema. O filósofo francês
desenvolve a fenomenologia da imaginação em sua obra filosófica, na qual se inspira nas
imagens criadas pelos devaneios dos poetas. A comentadora em questão apoia-se na
fenomenologia bachelardiana em suas pesquisas sobre a educação infantil.
As fases iniciais da criança nos oportunizam identificar que é por meio das
experiências vividas com o fazer, o experimentar, o brincar, o imaginar que se concebe a
verdadeira fonte de aprendizagem por diferentes vias de leitura das linguagens plásticas,
poética, corporal e lúdica.
Portanto, entre os veículos para essa viagem do imaginário no real, estão os
procedimentos utilizados pelos docentes, que poderão permitir grandes e inovados momentos
para essa aprendizagem.
A formação implica essencialmente uma desconstrução e reforma do sujeito. Os
obstáculos no percurso para a construção do conhecimento devam ser destruídos na tentativa
de acertos e erros, pois o erro se impõe como mola propulsora para o desenvolvimento do
saber.
Segundo Bachelard, é nas atividades intersubjetivas empreendidas em sala de aula
entre mestre e aluno (docente – discente) que o racionalismo se espelha, é fundamental para o
ser. Essa razão pedagógica é variável e seus princípios, assim como os próprios conteúdos
pedagógicos, se transformam ao longo de sua trajetória de processo.
A imaginação criadora
Por meio deste estudo busca-se uma aproximação com tema da imaginação criadora
e a infância em suas fases iniciais de escolarização, considerando que essa seja uma etapa de
grandes descobertas. O interesse em pensar a relação entre imaginação criadora e as ações
educativas com crianças, é o da promoção da aprendizagem vivenciada em uma linguagem de
formação humana completa, seja plástica, poética e corporal. Uma construção do saber
entrelaçada às realizações da infância.
Nessa dimensão da imaginação criadora explicita-se o poder do lúdico, que
transforma os diferentes momentos de convivência da criança, seja ela coletiva ou individual.
É um período da vida da criança em que ela pode ser estimulada em busca de uma
projeção de descoberta, como diz Bachelard (apud BARBOSA e BULCÃO, 2004 p. 41), “um
218
voo ascensional, é um dos aspectos primordiais da imaginação criadora que impulsiona o ser
num movimento vertical, uma ponte entre a terra e o céu, o finito e o infinito”.
Pela imaginação se constitui autonomia, é a própria mola da produção e aceleração
do psíquico, ela provoca um fluxo de imagens novas. Nessa vertente fica claro que a
imaginação liberta e impulsionam o homem para uma busca de si mesmo, imagens que
ultrapassam a realidade.
Para Sandra Richter (2006, p. 24), a criança impõe “atividades” modeladoras de uma
realidade prenomeada. Ela considera importante problematizar as concepções de imaginação
criadora que orientam o ato de “educar a visão” infantil. A experiência problematizada na
infância decorre diretamente da intencionalidade das ações pedagógicas propostas. É
importante que a imaginação é que faz fluir a inesgotável “criatividade”.
São muitas ações e dinâmicas empregadas para a promoção da aprendizagem, dentre
elas destacam-se a linguagem plástica, a linguagem poética, a linguagem corporal, o lúdico,
tudo para favorecer e garantir o ato criador na escola.
Já dizia Bachelard (1996, p. 14), que a imaginação poética nos faz “criar aquilo que
vemos”: a imagem vai ao real e não parte dele. A imaginação é capaz de fazer engendrar
aquilo que se pode ver, porque faz crer no que vê e inventa uma visão, uma previsão.
(RICHTER, 2006, p. 2).
O filósofo da imaginação permite o mergulho em devaneios poéticos para
compreender a dimensão da imaginação criadora como fonte inesgotável na educação do
homem, em sua existência no mundo.
Sandra Richter (2006, p.243) deixa claro o papel da imaginação na fenomenologia
barchelardiana ao afirmar que “é aquela que adere corpo-alma e mundo, é inverter ou
substituir, diante do mundo, a percepção pela admiração, não é o abandono às fantasias”. A
imaginação criadora, defende-se aqui, é uma ação alimentada pelo próprio corpo da criança,
em uma dimensão do mundo em que se vive e descobre.
As fases iniciais de uma educação em constante descoberta são onde acontecem
grandes possibilidades e encontros transformadores de concepção de mundo do aprendiz. A
educação é considerada como um lugar de especiais encontros na formação do homem.
Os fazeres proporcionados na educação oferecem o privilégio de se estar em
constante construção, pois é projetando ações, realizando experiências laboriosas de aprender
que se encontra com o ato lúdico de operar diferentes linguagens.
219
Barbosa e Bulcão acreditam que educação para Bachelard implica fundamentalmente
na formação do sujeito (2004, p.50). A noção de formação, segundo o filósofo, é muito mais
completa e abrangente. O ato de conhecer não se reduz a repetição monótona, e sim um
conhecer, de si aventurar no reino do novo, é estabelecer novas verdades, são experiências de
coisas opostas que se integram no novo, é um dialogo com a experiência em uma construção
constante no desenvolvimento e formação do sujeito.
Bachelard nos diz que o conhecimento não parte de uma certeza primeira. Ele
começa sempre por um dialogo, pela troca de argumentos e pela negação e retificação do
saber anterior, para em seguida alcançar novas verdades. O que percebe que o conhecimento é
essencialmente uma atividade dinâmica de recomeço e de reorganização constante ideias.
Para Sandra Richter (2006, p. 243) “abordar a experiência poética em sua dimensão
educativa, desde o pensamento de Bachelard, exige colher a imaginação criadora como um
ato alimentado pelo corpo, não se encerra na ‘mente’, mas se espalha pelos gestos, exigindo
nossas forças”. As experiências vividas a respeito do próprio corpo, nos gestos humanos,
significam agir em direção à transformação do corpo e do mundo. Para Bachelard (1996, p.
152), o cogito do devaneio enuncia-se: “eu sonho o mundo, logo o mundo existe tal como eu
o sonho”.
O dom de sonhar e abstrair, que se carrega desde o início da vida, orienta a criança
para a criança e a invenção, o objeto, o desenho, a pintura, o viver o corpo; conduz a um plano
da sensibilidade, o que faz dá imaginação um ato de importância vital na formação,
indispensável à produção do conhecimento. A imaginação criadora atua com um forte
impacto de realidade, uma fonte da invenção e da originalidade é de impressões armazenadas
pela experiência.
Bachelard, em seu livro ‘A poética do devaneio’, chama atenção para as imagens da
infância que se leva para o resto da vida. Um período que sempre fica esquecido nos
pensamentos dos adultos. Devem-se ativar os próprios sonhos, propulsar o imaginário,
iluminar as lembranças em sua existência poética, deve-se ter coragem de revitalizar e sonhar
com o ser criança.
Um pensamento enquanto reinvenção de si mesmo lembra um trecho da obra “A
poética do devaneio”:
220
Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos
nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas
possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no
limite da história e da lenda, [...]. Essa infância, que aliás, permanece como
uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as
crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira
(BACHELARD, 1996, p. 85).
Em uma abordagem reflexiva quanto a iniciativa de dar às coisas outro curso, outra
autora diz:
Considerar a primeira aprendizagem realizada pelas crianças em suas fases
iniciais de escolarização torna-se indispensável ressaltar suas experiências e
esforços de aprender a compartilhar estratégicas- sempre lúdicas -, [...] de
colocar em movimento o corpo, imagens e palavras em seus jogos e
brincadeiras (RICHTER, 2009, p.4).
Em uma dimensão de concepções e linguagem, considera-se insubstituível a
contribuição da cultura, da experiência vivida através do corpo, sendo essa condição corpórea
que se desdobra em decisões teóricas e práticas da vida e do conhecimento.
Através dessas experiências com o corpo é que se pode imaginar, sonhar, desejar,
pensar, narrar, conhecer e escolher. Para Sandra Richter (2006, p.7), “as imagens desenhadas
ou pintadas, modeladas ou construídas, modificam nossa relação com as coisas, com o
mundo, com o corpo.
O sentido que se dá as escolhas, as construções e desconstruções na promoção do
conhecimento do ser, promove um vaivém, opondo um progresso e um crescimento espiritual
como meio de realização pessoal. Nessa busca a imaginação material desperta na criança
sentido, sensações e vontades de aderir à um corpo a corpo com a materialidade do mundo,
tornando-se uma escolha dinâmica e transformando em suas experiências.
O mundo da criança
O mundo da criança é representado por meio de suas expressões, vivenciadas por ela
por meio do jogo, da imitação, do desenho, da modelagem. Esse é um processo significativo
para a educação.
221
Trata-se da ideia de que a imaginação conduz à liberdade, a descoberta, pois permite
o surgimento do novo, do surpreendente, do inesperado, de uma forma imprevista em nosso
caminho.
Grande parte desse mundo vivido pela criança se dá nos espaços escolares. Para
Bachelard a escola como lugar de cultura deve, pois, ser um lugar de formação, mas
principalmente de deformação e de reforma no qual a criança, em construção permanente,
renasce a cada instante a se desenvolver e a crescer espiritualmente. Essa constituição de si
mesmo conta com sentido positivo do erro que para ele deixa de ser uma falta, impondo-se
como mola propulsora que impulsiona o individuo para a invenção de novas ideias.
Tem-se que ressaltar outras contribuições que são essenciais no processo de
construção do conhecimento das crianças e significativos para o processo de sua formação. A
criança é um ser em sua individualização, e é fundamental compreender sua história de vida e
sua família, valorizá-la como um ser em formação; como um ser completo, considerando o
imaginário como um fenômeno primordial ao processo de conhecimento. O domínio corporal,
suas possibilidades e potencialidades são condições de aprendizagem; a valorização da
comunicação, da fala, da expressão corporal da criança, considerando uma pedagogia
autônoma e com abertura às reflexões pedagógica para as experiências vivenciadas pelas
crianças, são fatos consideravelmente importantes para sua formação.
É através de diferentes experimentações, fazendo imagens, interagindo com diversas
situações que a criança vai construindo repertórios gestuais e interpretando sentidos culturais
diferentes, e configurando novos sentidos e imagens. Um ato que implica conceber sua
formação nas fases iniciais de escolarização, como tempo e lugar de aprender e encantar-se
com o ato lúdico de operar diferentes linguagens. É assim que se destacam as implicações
educacionais, como um modo de aprender a realidade.
Sandra Richter comenta (2006, p.245) “a imaginação é geradora, não apenas de
formas, mas de valores e qualidades que apelam para a sensibilidade, uma sensibilidade que
diz respeito ao nosso poder de escuta ao sermos olhados pensados e imaginando pelo mundo”.
Esse momento introspectivo faz produzir as lembranças , os sonhos, formando um
único caminho na superação e descobertas de novas aprendizagens. O poder poético na
222
criança deve ser sempre estimulado através da imaginação criadora, proporcionando descobrir
um ser transformador de suas próprias experiências.
A criança deve ser regada de estímulos, que a levem a gerar e produzir sonhos, de
onde abrirá caminhos para o dinamismo criador da imaginação, o que irá gerar uma
linguagem, uma leitura desses sonhos. Por meio dessas experiências de devaneios, novos
pensamentos serão construídos. No ideário bachelardiano afirma-se que para aprender seja
preciso “desaprender”. É recomeçar sempre, é desafiar o novo a todo o momento.
Essa concepção de formação da criança faz um alerta sobre o tempo e ritmo em que
cada uma delas se encontrará no seu interior e na questão da maturação para as diferentes
linguagens. Para o pensamento bachelardiano, ritmo, hábito, retificação e conversão
constituem-se fenômenos temporais elementares, um tempo do pensamento (ciência e poesia),
onde está sempre em recomeço repetição em formação lenta e contínua.
Vale considerar nessa fase inicial de formação da criança, uma fase que se
transforma e que derruba obstáculos, que produz e cria novos fenômenos. Uma construção e
reconstrução do conhecimento em um processo de transformação incessante do pensamento e
dos sonhos.
Para os infames, há necessidade de transpor suas imagens, sonhos para a realidade do
dia-a-dia se tornam significativos, legítimos, para que ultrapassem seus medos e inseguranças
de viver o jogo da vida.
Os momentos de a educação abordar a experiência fabulador adora na infância, o
poder produtivo das ações educativas, o modo escolar de aprender, as concepções sobre o ato
de criar e imaginar, voltadas para as realizações das crianças através das atividades lúdicas do
desenho, da pintura, da modelagem, das brincadeiras e aproximar aprendizagem e domínio
das diferentes linguagens na infância.
O que as concepções pedagógicas minimizam na educação é o poder de as crianças
aprenderem aquilo que não compreendem ainda através da experiência. O que atrapalha
muitas vezes são as expectativas criadas pelos adultos, tornando-as sufocantes.
A espontaneidade infantil, imaginativa, criativa da valoração da fantasia e dos jogos
de faz de conta, permite naturalizar uma concepção educativa, enraizada na imaginação, ao
223
poder produtivo das linguagens, ampliando novas visões das coisas.
O que é fascinante na infância é o quanto a criança demonstra coragem para suas
descobertas. Enquanto o adulto está sempre na retaguarda, a criança não se intimida de
avançar a um estímulo, ela quer e acredita que algo poderá acontecer. Seus sentimentos, suas
descobertas podem ser observados por suas ações corporais. Seu corpo fala, logo, ele percebe
e reproduz. As informações adquiridas e vivenciadas por ela são acolhidas e aprendidas
através da memória corporal. É ele, o corpo, o instrumento para a compreensão e o
discernimento das várias linguagens.
Para Bachelard (1994, p.134), “a infância é fonte de nossos ritmos. É na infância que
os ritmos são criadores e formadores”. O filósofo de Bar-sur-Aube afirma que a imaginação
se vincula à experiência poética, de tudo que pode ser considerado distante do sentido
habitual. Quanto mais a criança devanear o seu mundo, mais intenso será o poder de realidade
poética. Ela irá transpor os seus sentimentos, sua criatividade através da sensibilidade
alimentada pela imaginação produtora e não produtora. O filósofo do devaneio reflete que se
imagina primeiro, se percebe em seguida e se lembra quando a circunstância acontece
(RICHTER, 2006, p. 251).
Uma forma de expandir a imaginação é por meio do jogo lúdico – a dramatização
espontânea vivida pela criança em seu espaço de aula – proporciona oportunidades, um
despertar da criatividade. Por esse caminho do imaginar – perceber-agir, a criança abstrai e
multiplica oportunidades de alcançar aprendizagem que parte do corpo e que marcam
profundamente a vida adulta.
Uma criança que tem oportunidade de produzir, criar, manipular diferentes
experiências, manipulando diferentes materiais, irá construir e interpretar sentidos e
percepções que a levará a operar diferentes linguagens. A autora de “A marca da infância:
quando o fazer é fingir” afirma:
Abordar a experiência de instaurar, transformar e transfigurar imagens na
infância é predispor-se a abarcar os modos como as crianças plasmam
experiências com a materialidade do e no mundo para configurar e
transformar sentidos com outros através de suas narrativas icônicas. Não é
ainda criação ou produção artística, antes é experiência de si por ser
inseparável de uma historia corporal, do modo como o corpo aprende a
estabelecer relações com outros corpos a partir dos ritmos singulares de cada
224
gesto que deixa marcas no mundo: é pensamento em ato (RICHTER, 2006,
p.. 12).
A infância é marcada pelas ações e experiências que implicam a formação do ser
humano. Nessa fase deve-se garantir o tempo e lugar para a criança aprender e encantar-se
com o ato lúdico de formar linguagens, aprender e transformar imagens e palavras para a
leitura de mundo. Como diz Sandra Richter (2006,p.13) “não se trata de afirmar o que
“devem” aprender, mas destacar as implicações educacionais das repercussões dessas
primeiras aprendizagens no corpo infantil”.
Os instrumentos pedagógicos que os educadores irão lançar mão serão sem dúvida os
instrumentos mais valiosos para desenrolá-lo da fase em que se encontra em formação. As
fases iniciais da criança em sua escolarização são destacadas como o marco inicial de uma
vida que poderá ter um destaque brilhante ou um marcos de frustrações e desestímulos
ofuscantes.
Tudo que é apresentado à criança como estimulo e motivação de descoberta, ela ira
tornar vivo e manterá sempre um projeto de desejo para sua vida.
As artes plásticas, a poesia no corpo e na imaginação, o jogo lúdico, o brinquedo, as
brincadeiras, as cantigas de roda são instrumentos que darão aos aprendizes e educadores o
canal para despertar a imaginação criadora. É tarefa do educador ciente de sua
responsabilidade formadora, buscar meios para transformá-la. A imaginação criadora é o
espaço destinado a oportunizar e tornar significativo e legitimo as experiências novas e
diferenciadas.
É importante ressaltar que a criança tem o desejo e a necessidade de experimentar e
viver vários caminhos que proporcionam uma viagem lançada à descoberta de saberes. Afinal,
ninguém sabe as mesmas coisas, do mesmo jeito. Cada criança é uma caixinha de surpresas,
que se expande a todo o momento em que é estimulada. Para Bachelard (19996, p.21) “a
relação professor-aluno não é uma relação de poder. O educador deve dialetizar a
experiência”.
A autora bachelardiana vem destacar em suas pesquisas um dos momentos de luz do
ser humano:
Quando uma criança chega ao mundo, algo se lança no movimento
insaciável do aprender: invenção e existência se aderem o imprevisível
acontece, se faz, se forma, se torna... Assim, mesmo quando a viagem do
espirito conduz a muito longe e muito alto, o que leva consigo é encarnado,
225
ritmado, experimentado, suportado pelo corpo. As especulações mais
abstratas supõem vigílias, expansões e contrações, mobilizam nervos e
músculos, tonalizam emoções, despendem energias vitais que vitalizam o ato
de compartilhar a existência (RICHTER, 2006, p.14).
As oportunidades que são lançadas para o mundo infantil, o jogo de palavras,
atividades lúdicas e plásticas, são também atividades que permitem à criança expressar suas
vontades e desejos, suas faltas e medos, os delírios e os dissabores do seu estar no mundo.
Tudo que lhe é proporcionado já faz parte direta ou indiretamente dessa fase inicial do ser
humano. A infância é um marco esplendoroso para aquele que a descobre e não queima
nenhuma etapa.
As atividades pedagógicas são levadas para o resto da vida dos adultos, são marcos
que se carregam na memoria e na imaginação, fios condutores para viver e descobrir
caminhos que levem ao conhecimento. O espaço escolar passa a ser o espaço mais
enriquecedor, que anima e proporciona ricas experiências para a criança. Um espaço que
proporciona e transforma sua cultura, destruindo todos os obstáculos encontrados em sua
vida.
O despertar da imaginação criadora faz com que alunos e professores deem asas para
imaginar, criar, metamorfosear seu mundo, sua vida. O mundo que se cria e se descobre com
a criança é sem dúvida um tempo que se está aprendendo, onde sempre se irá renovar
aprendizagens e leituras de uma vida em construção.
Considerações finais
Ao buscar conhecimentos e esclarecimentos sobre o tema imaginação criadora na
formação da criança, já se podia antever um tema rico e com uma abrangência e discussões de
grandes estudiosos com Gaston Bachelard e, entre outra pesquisadora do sul do nosso país,
Sandra Richter.
Este estudo é apenas o inicio de uma busca de conhecimento sobre o assunto. Pensar
na criança-infância é pensar em um capitulo especial de uma vida em busca do novo.
Abstve-se aqui de simplesmente focar a imaginação criadora como imaginação
reprodutora, que oportuniza a utilização dos sentidos, das emoções, do fazer, imaginar e criar.
Trata-se da ideia de que a imaginação criadora conduz à liberdade, pois permite o surgimento
do novo e do inesperado, de forma imprevista em nosso caminho. Tanto na epistomologia
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como na poética está presente a ideia de imaginação como fonte de produção de conceitos e
geradora de imagens que brotam no âmago da consciência.
Nesse sentido, alunos e professores podem querer dar início a uma nova buscar da
própria vida em diferentes mundos da imaginação.
Na tentativa de conhecer e entender mais sobre as contribuições e concepções da
imaginação criadora nas fases de escolarização, acrescente-se aqui, mesmo que
superficialmente, o lúdico como procedimento para o processo ensino-aprendizagem. Nos
estudos apresentados o lúdico é considerado uma ação transformadora, no sentido de
desencadear atividades que valorizam o prazer de aprender por meio das concepções e das
imagens criadas livremente pela fomentação da fantasia e imaginação do ser.
Para que o processo de construção das diferentes linguagens ocorra, é de
fundamental importância a presença de docentes preparados em desafiar os seus próprios
medos. Uma característica que ira ressaltar esse profissional é a coragem. Coragem de criar,
inventar o novo. Como já dizia Bachelard, do educador exige coragem de reinventar a si
mesmo, reinvenção que passa pela experiência de imaginar-se e fazer-se.
O período que se partilha com as crianças é o período mais rico em novos desafios. A
imaginação criadora pode ser um caminho para a aprendizagem significativa e
transformadora. Nesse sentido, a diversidade das aprendizagens envolvidas no ato de
imaginar, viver e criar será o grande desafio para o processo de formação.
Este estudo pode ser uma oportuna sugestão para a descoberta de uma aprendizagem
significativa com o uso das diferentes linguagens. Mas o que importa, sem duvida, é encontrar
um caminho que seja mais claro e oportunize momentos ricos de desenvolvimento global nas
fases iniciais da criança.
Referências
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ANPED: Educação, Cultura e Conhecimento na Contemporaneidade: desafios e
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Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
La construcción del sujeto veraz desde una mirada cínica.
Máximo Núñez
Bettina Curbelo
Luciana Bianchi
228
Resumen
Detenernos a observar al sujeto, su construcción y la relación de la verdad en este
sentido, es el fundamento de nuestro estudio. La pregunta por el hombre, es aquella que
intenta acercarlo a una reflexión desde la crítica, apelando a una búsqueda y descubrimiento
de la verdadera vida y la felicidad, como respuesta a una inquietud de sí.
Palabras claves:
Cínicos- Verdad- Verdadera vida- Educación- Inquietud de sí.
“Diógenes decía: Los
hombres se procuran los medios
para vivir, pero no se procuran los
medios para vivir bien”. (Estobeo
en Martín García. J. 2008: 305)
Esta cita impulsa nuestra ponencia para este Congreso. Estamos en un congreso de
Filosofía de la Educación, entonces estaremos pensando en el sujeto, en su construcción y la
relación de la verdad en este sentido. Lo ilustraremos con los Cínicos, pues de ellos hemos
encontrando una fuente de riqueza que permite que nos detengamos en observar a la
Educación y sus funcionalidades. Nuestra clave de pensamiento está puesta en la mirada sobre
esta escuela filosófica y cómo podemos hacer un aporte, al menos desde las interrogantes, al
sistema educativo actual.
Un pequeño recorrido histórico – ilustrativo
Los filósofos cínicos conforman una de las escuelas filosóficas de la antigüedad, se
ubican dentro del período llamado helenístico romano. Según los autores consultados como
Hadot, es un período muy extenso en el tiempo, marcando su comienzo las expediciones y
conquistas territoriales de Alejandro Magno, y la aparición del mundo llamado helénico, o
mejor dicho, la renovada forma que toma la civilización griega a partir de la expansión de su
cultura a través del mundo llamado “bárbaro”, desde Egipto hasta las fronteras de la India;
este hecho permite el contacto con civilizaciones con características diversas.
229
El cinismo es una de estas escuelas a las cuales se las consideró como marginales y en
pugna con el platonismo. A los cínicos se los llamó “pequeños socráticos” o “socráticos
menores”, lo que marca de por sí el lugar que ocupó el platonismo en la antigüedad y
posteriormente a lo largo de la historia de la filosofía en occidente.
Los retratos realizados de los cínicos, por sus contemporáneos y ulteriores, los
caricaturizan, satirizan y descalifican por no considerarlos como verdaderos filósofos, por el
contrario el estatus que le otorgan es del vagabundo, el errante, el loco, el que está por fuera
de la sociedad y de los valores establecidos. Un ejemplo de ello es que a Diógenes el cínico se
lo llamó “Sócrates loco” por sus coetáneos. Epicteto119 nos los presenta como los que carecen
de refugio, de patria, de recursos, de esclavos. Que duermen en el suelo, que no tienen ni
mujer, ni hijos, ni palacio de gobernador, sino la tierra sola y el cielo, y apenas un viejo
manto.
Pero, ¿por qué esta censura tan despiadada? Esto responde a las contradicciones que
el cinismo tenía con las convenciones y las normas vigentes por considerarlas alejadas de su
ideal ético. A través de la razón buscan aproximar al hombre a la naturaleza misma, ligarlo a
sus orígenes primarios, a una animalidad perdida. Su doctrina ética se sostenía en un ideal de
virtud basada en la naturaleza en su estado más puro en contraposición a los que ellos
consideraban valores antinaturales y falsos, admitidos por la sociedad de su época. Sostenían
que era necesario reevaluar aquellos valores que aprecian lo superfluo como el dinero, la
codicia, la fama, el placer por sobre lo que realmente es esencial. Y una de las características
que más nos llama la atención, es la que a través de su modo de actuar expresan públicamente
lo que sostienen en el discurso. Sus actos más íntimos no están excluidos de exposición,
porque los consideraban como parte de su naturaleza, lo cual no debía producir ni vergüenza
ni rechazo, sostenían que si los animales lo podían hacer, ¿por qué los hombres, que también
son animales, no podrían? A su vez, sus actitudes desafiantes y denunciantes utilizaban la
burla para censurar o ridiculizar otras actitudes llevadas a cabo por los “hombres comunes”
que no coincidían con su moral y ética.
Y lo que más nos interesa, es que el cinismo hacía un ejercicio particular del decir
franco, de la parrhesía, porque afirmaba a través de ella la libertad de expresión en todas sus
119
” (Epicteto en Foucault 2010:311)
230
formas: decir, actuar y pensar. Su objetivo era la independencia, la autarquía, la liberación de
los condicionamientos sociales para buscar en la naturaleza todo lo esencialmente necesario,
es así que afirmaban su autosuficiencia pues todo lo que necesitan lo tiene a su alrededor.
Martín García en Los filosóficos cínicos y la literatura moral serioburlesca dice:
“…Fueron llamados cínicos por cuatro razones: …ellos practicaban, como los
perros, la indiferencia de comer y hacer el amor en público, pasear descalzos, dormir
en toneles o en los cruces de caminos. Hacían esto por aspirar al bien por naturaleza,
porque decían que si algo es bueno, se debe realizar en público y en privado, mientras
que si algo no es bueno, no se debe realizar ni en público ni en privado… lo válido
para ellos era habla abiertamente, porque a nadie temo en absoluto. Esta es la primera
razón. La segunda razón es porque el perro es un animal desvergonzado y ellos
mismos practican la desvergüenza…practicaban esa desvergüenza que es superior al
pudor, como ladrar a los ajenos a su filosofía. La tercera razón es que el perro es un
animal guardián, y ellos también velaban por los principios de su filosofía mediante
demostraciones de hecho y se sentían muy orgullosos de ello…La cuarta es que el
perro es un animal discernidor, que en razón de su conocimiento y su desconocimiento
distingue al amigo y al extraño…aceptan benévolamente a los aptos para la filosofía,
mientras que rechazaban a los ineptos, ladrándoles al modo de los perros. Y distinguir
la verdad de la mentira es propio sólo del filósofo. Éste es, pues, el quinto modo.”
(Martín García, J: 2008:140)
Veamos que en la presente cita se encuentra uno de los aspectos tradicionales relacionados
con el concepto de verdadera vida; aquella, no disimulada que refiere a no ocultar nada a los ojos de
los demás. La comparación con el perro también puede interpretarse por el lado del instinto ya que los
cínicos cumpliendo la función de Katáskopos, de explorador tienen el olfato de poder distinguir los
amigos de los enemigos. Tenían una visión cosmopolita, se consideraban ciudadanos del mundo como
decía Diógenes el cínico, y como tales se sentían guardianes y vigilantes de todos los hombres, una
especie de rol social altruista por el cual se sentían encargados de guiar a la humanidad a través del
ejemplo de su propia vida, de su propio cuerpo, de sus actitudes, un testimonio viviente de verdad,
revelando de esta manera lo que ellos consideraban la “verdadera vida”.
Quien mejor nos ilustra en este punto es Foucault, pues dentro de este contexto y del cuidado
de sí, es que vemos un estudio sobre la verdad, donde se destaca la vida de los cínicos y la manera que
estos con-vivían con esa libertad de palabra. En ellos había un coraje por la verdad que lograba
definirlos, diferenciarlos, en fin, hacía de ellos un modelo de vida.
231
Resulta interesante ver cómo se manifiesta el ser cínico mediante la verdad, esto es para
Foucault, alguien que, puede autentificar sus hechos y es reconocido como un ser que “practica” la
verdad. Esto, que resulta fundamental en este estudio, posee característica de denominación, pues
cuando hablamos de los Cínicos, necesariamente los identificamos con la verdad, podemos decir
entonces, que el sujeto es reconocido y se reconoce a sí mismo como un “emisor de la verdad”. He
aquí pues, un coraje de demostrar al mundo lo que se es y cómo se es, con un contexto que conlleva
un inquietarse a vivir la verdad, que deriva en un conocimiento de sí.
Foucault nos presenta a los Cínicos como aquellos que están “en las esquinas de las calles, en
las plazas públicas, a la puerta de los templos, interpelando a la gente para cantarle cuatro
verdades”120.
Esta referencia de Foucault nos cuestiona el hecho de que el hombre no pueda apreciar en su
vida la verdad como una posibilidad de crecimiento, como un eslabón más en ese proceso que confiere
libertad. Y en este punto enfatizamos la época antigua tanto como la actual. Pues claro está que lo
ideal, tal vez, sería que cada uno descubriera la verdad sin necesidad de que se las canten.
Se ha de tener en cuenta que el cínico es quien hace de la verdad una práctica de vida,
reconociendo que esto es posible para vivir la libertad plenamente, aportando un conocimiento a su
vida que es el reflejo de la inquietud de sí.
Lo importante no era el adoctrinamiento meramente intelectual, sino uno que estuviera
cargado de transmisión para la vida, de ahí su elección por la mendicidad. Esto, indudablemente se
acompaña con una visión de la educación, de la forma de enseñar, pues, según nos presenta Foucault,
en los cínicos encontramos una filosofía de la autosuficiencia: “(...) los cínicos habían despojado del
dominio de la filosofía la lógica y la física. Sólo consideraban como principio verdaderamente
filosófico la moral.”121
Dentro de la concepción de verdad que venimos manejando, es importante tener claro que
hablamos de una realización de verdad en la praxis misma de las cotidianeidades. Un cínico vive,
manifiesta, produce y se compromete con la verdad desde lo que es. Por lo tanto, la verdad se
acompaña desde la realización y no desde los ideales. Y dentro de este contexto, se maneja como
verdadero en la filosofía previa y posterior al cinismo, aquello que “(…) no está oculto, disimulado
(...), que no engaña, no embauca (...), es lo completamente visible (...), lo que no se somete a ninguna
mezcla con otra cosa (...), tampoco está alterado (...), es lo recto (...), se deduce (...), lo que existe y se
120
121
Foucault: 2009: 207.
Foucault: 2009: 221.
232
mantiene más allá de todo cambio, lo que existe en la identidad, la inmutabilidad y la
incorruptibilidad”122, dirá Foucault en “El gobierno de sí y de los otros”.
En fin, al Cínico nada se le puede pedir, excepto que viva plenamente sus convicciones,
cargado de virtudes que lo posicionan en un punto central. Ignorante, vagabundo, de mala apariencia y
con pocas comodidades; siendo parte del mundo, pero alejado de sus características, viviendo
lamentaciones por aquello que dista de la felicidad y aparentemente miserable.
Podemos sintetizar este punto diciendo que la experiencia cínica, el requerimiento de una
forma de vida con reglas bien definidas se encuentra en estrecha relación con el principio del decir
veraz sin vergüenza, sin temor. Es un hablar franco ilimitado que lleva, según Foucault, el coraje y la
intrepidez hasta llegar a ser irritante. El vínculo entre el decir veraz y el modo de vida es esencial en el
cinismo.
Un paso más:
Epicteto habla del cínico como un explorador, un espía, empleando el término
katáskopos123
El cínico como katáskopos es el explorador de la humanidad, es quien
determina qué cosas pueden o no ser buenas para el hombre; es un explorador pero también
un guía de la humanidad, porque es a través de sus observaciones, de sus experiencias que
determina lo que es favorable o perjudicial. Es el hombre que galopa por delante de la
humanidad; pero es imprescindible que luego de su partida y su misión, retorne para anunciar
la verdad sin temor; hable francamente a los demás sin paralizarse por el miedo, es necesario
que exprese aquello que ha aprendido, que ha descubierto en su misión de katáskopos.
Surge de acuerdo a lo explicitado hasta el momento la problemática del “decir franco”
con la vida misma de quien es portador de dicha franqueza. Esta relación entre el decir veraz
y la manera de vivir es muy compleja en el cinismo porque va más allá de la vida que muestra
ciertas virtudes, caracterizándose la vida de los cínicos por formas muy precisas de
comportamiento.
Dirá Foucault. “El cínico es el hombre del bastón, el hombre del zurrón, el hombre del
manto, el hombre de las sandalias o los pies descalzos, el hombre de la barba hirsuta, el
hombre sucio. Es también el hombre que vagabundea, el hombre que carece de toda inserción;
122
Foucault: 2009: 232.
123
Dicha palabra tiene un sentido en el ámbito militar, que hace referencia a las personas que se enviaban antes
que el ejército para observar al enemigo.
233
no tiene ni casa, ni familia, ni hogar, ni patria, y es así mismo el hombre de la mendicidad”
(Foucault: 2010: 182)
La descripción realizada por Foucault sobre el hombre cínico muestra aquello en lo
que consiste la práctica filosófica del cinismo. Las condiciones de vida necesarias para ser el
espía de la humanidad. Para cumplir con dicha función es necesario estar totalmente
desapegado a lo material, no tener ataduras de ningún tipo, a tal punto de no poder formar una
familia propia porque la familia del cínico es la humanidad. Este modo de vida es condición
necesaria para ejercer la parrhesía, existiendo en esta forma de ser y actuar una función
reductora que es destacada por Foucault, en cuanto a que los filósofos cínicos reducen todas
aquellas obligaciones, convenciones y dogmas que consideran inútiles y que los demás
hombres aceptan. Además este estilo de vida llevado por los cínicos permite poner en relieve
las únicas cosas esenciales e imprescindibles para la vida. Tal modo de vida manifiesta en su
libertad lo que es y debe ser la vida.
En el cinismo la práctica de la vedad no tiene como única finalidad la de decir y
mostrar qué es el mundo en su verdad, sino que también pretende revelar que el mundo no
podrá establecer su propia verdad, no podrá transformarse y convertirse en otro, si no es al
precio de un cambio en la relación que uno tiene consigo mismo. La verdadera vida es
también otra vida que permite el acceso a un mundo otro. El cínico demuestra que la vida que
aplica el principio de la verdadera vida es una vida otra respecto a aquella que llevan
generalmente los hombres.124 El cinismo es una especie de mueca de la verdadera vida
tradicional y es también su paradoja.
Pero ¿hacia dónde vamos con esto? Vamos, junto con Diógenes, hacia la búsqueda
del hombre. Con esto se nos está dando a entender que buscaba al hombre que vive de
acuerdo con su esencia, que sin importar las apariencias ni las convenciones sociales, sabe
encontrar su legítima naturaleza, vive conforme a ella y sabe ser feliz. La idea de felicidad en
los cínicos se encuentra directamente relacionada con la concepción que éstos tienen acerca
de los placeres.
124
En el Cristianismo no se da una relación con el mundo otro sino con el otro mundo. La verdadera vida del
asceta cristiano es de alguna manera otra vida en este mundo que le permite el acceso al otro mundo y su verdad.
234
La educación cínica busca que el verdadero filósofo, es decir aquel que lleva una
verdadera vida pueda poseer control sobre las emociones y la capacidad de discernir, los
placeres negativos que alienan al hombre de los placeres positivos que lo liberan. En la
concepción cínica de felicidad aquel hombre que llega a ser verdaderamente feliz es el sabio,
es decir el sujeto que se basta a sí mismo.
La enseñanza, para esta escuela filosófica, debía basarse en un conjunto de
conocimientos, no en gran cantidad, a los cuales se los consideraba útiles para la vida, para
aquellos acontecimientos a los cuales la persona podría enfrentarse en lo cotidiano y en
cualquier momento. La utilidad, la aplicabilidad práctica en la vida es lo que le dará el valor a
un conocimiento sobre otro. Por lo tanto, existiría un primacía del saber práctico (episteme
praktike) por sobre un saber teórico (episteme theoretike). Foucault, en relación al saber
práctico, hace mención al verbo gymnazesthai “hacer gimnasia”125 lo cual se vincula con el
esfuerzo, el sufrimiento y el entrenamiento. No se pretendía realizar una transmisión de
conocimientos teóricos sino ofrecer una instrucción moral guiada por la razón.
Conclusiones:
“Preguntándosele al
mismo (Diógenes): ¿Qué es
lo más pesado que sostiene
la tierra?, respondió: Un
hombre sin formación.”126
Esta cita impulsa nuestra reflexión final:
Consideramos importante rescatar la figura del cínico, es decir, dichos filósofos
enseñaban a través del ejemplo, no se guiaban por un programa o currículo atiborrado de
contenidos como sucede en la actualidad. Su educación era más bien enfocada a la ética, al
cómo vivir y para ello la actitud de éstos, la forma de conducirse en la vida era vital como
forma de transmitir sus enseñanzas, predicaban con el ejemplo, no bastaba la palabra, más allá
de que se caracterizaban por tener el coraje de gritar las verdades ante cualquier persona por
125
M. Foucault profundiza sobre el tema en la Hermenéutica del sujeto.
126
(Estobeo II, en Martín García, José A. 2008: 305)
235
más poder que pudiera tener, ellos eran el ejemplo vivo de cómo vivir bien, de cómo ser libres
y felices.
En una sociedad como la actual, consumista, donde la felicidad parece estar unida al
confort, al tener, al comprar… la filosofía cínica parece estar obsoleta o al menos no ser
compatible con nuestro tiempo.
Si tomamos en cuenta la conocida imagen de Diógenes y el farol, arriesgándonos a
hacer una interpretación del simbolismo de la misma; podría estimarse posible que el farol
representa al cinismo, que con su luz hace visible las verdades que los demás no ven.
Pensando en nuestro sistema educativo, en los programas escolares atestados de
contenidos, en la figura del maestro surgen algunos cuestionamientos; los cínicos enseñaban a
través del ejemplo, de su actuar, ¿somos los maestros un ejemplo para nuestros alumnos? ¿La
sociedad ve a los maestros como un ejemplo a seguir? Los cínicos no tenían doctrina o más
bien ésta era muy rudimentaria por lo cual puede cuestionarse ¿son necesarios programas tan
densos en contenidos?
Entre otras interrogantes que pueden surgir en nuestro reflexionar.
Otro aspecto que se ha considerado importante es la idea de felicidad para los cínicos,
estos filósofos entendían que era feliz aquel hombre que se basta a sí mismo, consideraban
que los bienes materiales iban en contra de la felicidad; cuanto más desapegado a lo material
y más dominio de las emociones tuviera el hombre, más feliz sería. A. Camus señaló que la
gente en estos tiempos sufre por no poseer el mundo completamente, por tanto, siguiendo el
pensamiento del mencionado autor, entendemos que las personas debido a ese deseo de
poseer inagotable no logran ser felices, de acuerdo con ello, los cínicos no estaban tan
equivocados en pensar que cuanto más desapegados podamos estar de aquello material, más
felices seríamos.
Para los filósofos cínicos alcanzar la felicidad era posible, su idea de felicidad estaba
estrechamente unida al concepto de libertad que manejaban, necesariamente para ser feliz se
debía ser libre, libre de aquello material que nos limita, que nos ata… además de buscar vivir
siempre de acuerdo a nuestra esencia sin importar las apariencias y convenciones sociales.
La felicidad en la modernidad y posmodernidad parece estar en el progreso personal
como afirma A. Germain, en tiempos modernos la felicidad parece residir en todo lo que
puede sacar al hombre del anonimato, de la multitud, de lo cotidiano. Entonces: ¿Qué nos
hace felices? ¿En qué medida educamos para la felicidad, para la libertad?
236
En este sentido, la educación puede ser un factor decisivo en la toma de decisiones
existenciales, éticas y filosóficas. El objetivo educativo en la filosofía cínica, como ya lo
hemos mencionado, era preparar a los hombres para estar en el mundo y tener una actitud
activa sobre él. El fin último de su enseñanza era la transfiguración del mundo a partir de las
transformaciones individuales. Una especie de recorrido que se inicia en un intimismo, una
espiritualidad, una inquietud de sí para culminar en un tipo de altruismo que persigue um
objetivo común a toda la humanidad: un mundo transformado en “otro” a través de un
profundo conocimiento y dominio de sí.
La educación cínica motiva la revolución, la transgresión, la transformación. Primero,
de uno mismo frente a lo establecido, institucionalizado, normalizado social y culturalmente.
Para luego de vencer esa primera barrera personal se llegaría a poseer una visión social
conformándose en un ciudadano del mundo, ser consciente de la existencia de uno mismo y
de los otros no como obstáculos sino como partes de la naturaleza, partes de un mundo en el
cual somos una unidad mínima.
Si nos detenemos un momento en este punto, en la actualidad nos encontramos muy
alejados de nuestra animalidad y de la naturaleza. Preguntémonos entonces: ¿Dónde quedó el
lugar del sujeto, de sus inquietudes, del conocimiento de sí en la educación actual? Las
preocupaciones educativas muchas veces orientadas al mundo laboral, al enciclopedimismo,
al fraccionamiento de conocimientos especializados han contribuido a perder de vista a los
protagonistas del proceso educativo (educadores y alumnos) y el conocimiento que tienen de
sí, del valor que le dan a la vida, a su propia vida.
¿La educación hoy en día prepara para la vida? La vida, la verdadera vida a la que
Foucault hace referencia, no parece tener lugar en el sistema educativo actual. Deberíamos
pensar una educación que propicie instancias de reflexión racional sobre conceptos como
verdad y felicidad.
Deberíamos pensar en aquello que sentimos, creemos, en fin, de lo que somos,
aprendiendo a vivir, a dialogar y a confrontar las verdades que coexisten en un mundo
relativista. La educación intenta hacer grande los procesos que se articulan en función de los
medios, pero el hombre permanece inmóvil, paralizado, desacreditado ante variados intentos.
Seamos realistas en nuestras reflexiones y preguntémonos: ¿cuánto de nuestra
educación promueve el escándalo de la verdad?, ¿cuánto de nuestra educación privilegia la
237
verdad (con lo que ella significa) como punto de partida?, ¿cuánto de nuestros impulsos por la
educación se pueden visualizar como promoción de la verdad dentro del proceso? (y
entendamos promoción aquí, como el ejercicio libre y completo de lo que se realiza). Pues
bien, la educación ha de ser, en términos de Foucault, un “decir veraz”, un “hablar franco”,
un “dar razón de sí mismo”, “la posibilidad de autocontemplarse”, un “modo de existencia” y
todo, bajo una interpretación adecuada de la realidad en sí mismo. La educación ha de tender
a ubicar implícitamente en sus “acciones-manifestaciones” a la verdad como escándalo desde
su razón de ser.
Como afirmaba Diógenes el cínico... la esperanza es la educación.
Bibliografía utilizada y consultada:
Abbagnano, N. (1996) Diccionario de filosofía. Fondo de Cultura Económico. México.
Arriano. (1963). Epitecto. Pláticas. Libro III. Texto revisado y traducido por Pablo Jordán De
Urríes y Azara. Ediciones Alma Mater S.A. Barcelona.
Foucault, M. (2009). El gobierno de sí y de los otros.: Curso en el Collège de France: 1982 – 1983.
1ª ed. Fondo de Cultura Económica. Bs. As.
___________ (2010). El coraje de la verdad: el gobierno de sí y de los otros II. Curso en el Collége
de France (1983 – 1984). Fondo de Cultura Económica. Bs. As.
___________ (2000). La hermenéutica del sujeto: Curso en el Collège de France. (1981 – 1982).
Fondo de Cultura Económica. Bs. As.
Hadot, P. (2006). Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Siruela. Madrid.
Laercio, D. (1991). Vidas de los filósofos más ilustres. Porrúas, S.A. México.
Lorenzini, D. “El cinismo de la vida hace una aleturgie” Apuntes para una relectura del recorrido
filosófico del último Michel Foucault. En www.academia.edu
Martín García, J. (2008). Los filosóficos cínicos y la literatura moral serioburlesca. Akal, S.A.
Madrid.
Onfray, M. (2007). Las sabidurías de la antigüedad. Anagrama. Barcelona.
Páginas de Internet consultadas:
www.laeducacionprohibida.com
238
www.academia.edu
Pasado-Presente en la Educación
Héctor Fernando López Acero.
Resumen:
El texto tiene como propósito mostrar las diferencias entre la paideia griega y la educación
contemporánea. Si la paideia griega fue concebida por primera vez por Platón como un saber
autónomo que tenía lugar al margen del poder, la interpretación contemporánea ve en el poder
el fundamento de la educación. La educación de occidente ha oscilado desde la autonomía del
pensar por sí mismo en la academia hacia la des-espitualización y funcionalización de los
modernos centros de enseñanza.
Palabras clave:
Paideia, educación, desregulación, funcionalidad.
1. La educación griega
Desde Platón se institucionalizó la diferencia entre saber académico e inteligencia popular.
El pensar académico no actúa en un escenario sino en aquel espacio reservado que ni se
exhibe y prefiere el silencio del pensador solitario. El pensar académico no se propuso tener la
audaz fuerza como Esquilo de abrirse paso mediante la genialidad de los actores dramáticos.
239
La escuela platónica protagoniza la primera ruptura de la cultura occidental de la academia
con el teatro. Ninguno de los grandes pensadores ha sido un pensador de escenario y se
enorgullecían de no serlo pues el emerger de la verdad tiene lugar en el silencio de una larga
meditación y no en las fantasiosas escenas del teatro. Los filósofos se concibieron como
pensadores en un no escenario desde Platón y Aristóteles pasando por los pensadores grecoromanos hasta Heidegger. La fundación de la academia entre los años 387 y 386 antes de
nuestra era que se interpretó a sí misma como una comunidad de pensadores se opuso a la
decisión de los coregos127 de permitir la repetición de las piezas teatrales que gozaban de
particular éxito en las fiestas dionisiacas.
La poesía dramática de la Europa antigua no había comenzado entonces bajo la influencia
del arte y la creación literaria autónoma sino bajo la influencia política de culto y ocupación
religiosa de la comunidad. Este acontecimiento histórico habría de introducir la ambivalencia
en la cultura al transformar las prácticas religiosas en un acontecimiento estético. Sustituir la
religión por el teatro significa parodiarla, esto es, despojarla de su seriedad y su
insustituibilidad. Peter Sloterdijk interpreta este fenómeno como una revolución en lo que
hoy se entiende como los medios en la medida en que era en la religión antigua y no en otra
parte donde residía el poder de educar a los hombres para que pudieran hacer parte de una
comunidad culturalmente elevada. Era a través de la religión que las sociedades europeas
antiguas ejercían un control social y una formación mítico-moral. El primero que percibió el
significado de estos cambios trascendentales para el devenir de la cultura occidental fue
Platón. Su obra La Politeia constituye el primer rechazo del pensar occidental a la práctica
política de una educación no fundada en sí misma. La filosofía platónica puede ser entendida
como una ofensiva contra la educación fundada en principios diferentes a los del propio
pensar. Supone, por tanto, una oposición a la educación política que gira alrededor del teatro
sin restricciones.
Platón fue el primero en pensar la gravedad de una educación político-pedagógica y
señalar sus consecuencias a todas luces negativas en la construcción de un Estado que nos
alertan a nosotros los hombres contemporáneos de los efectos contraproducentes de una
127
En la Grecia antigua se llamó “coregos” a los ciudadanos ricos encargados de costear los “cantos del macho
cabrío” y las fiestas trágicas en honor del dios, esto es, los patrocinadores del teatro ateniense. Véase Peter
Sloterdijk, Has de cambiar tu vida, Valencia, Editorial Pre-Textos, 2012, pp. 222-228.
240
educación que realiza alianzas con la política y el mercado. La idea de educación platónica es
reveladora toda vez que la formación de las generaciones jóvenes no debe dejarse en manos
de sectas sino de escuelas. Ello proyectado a la educación contemporánea significa que la
educación contemporánea no debe dejarse en manos de sectas político-criminales y de
empresas económico-depredadoras sino en manos de la academia. El medio de la educación
platónica fue, por consiguiente, el no-teatro que proyectado a la actualidad significa un tomar
distancia de las esferas del poder político, económico y religioso.
La paideia, término utilizado por los griegos para referirse a lo que hoy se entiende por
educación, giro en torno al ser y quizás en lo que menos se reparaba era que acusase un
carácter de utilidad. Ser significa para los griegos el estar en sí erguido, en cuanto es lo que
está surgiendo, pero como tal, el ser es perdurar “constante”. No ser significa salir de la
constancia, que también se designa como caída, inclinación: un apartarse de la constancia de
lo estante y, por eso mismo, un desviarse de él. En el fragmento 53 Heráclito dice: “La guerra
es el padre y el rey de todas las cosas. A algunas ha convertido en dioses, a otras en hombre; a
algunas ha esclavizado y a otras ha liberado”128. La ontología heideggeriana interpreta el
término “guerra” como el conflicto que impera con anterioridad a lo divino y lo humano y no
la guerra según el modo de los hombres. La guerra pensada por Heráclito hace separar en
opuestos lo que es, hombres y dioses, esclavos y libres, y constituye lo único que permite
relacionar en la presencia la posición, condición y jerarquía. El mundo llega a ser por la
separación, que no se debe entender como disociación, sino como unidad: la reunión de los
opuestos. La guerra hace surgir lo hasta entonces no dicho ni pensado. La fuerza imperante de
la guerra llega a ser estante en lo que está presente y sólo así el ente llega a ser ente. La guerra
tiene una doble consecuencia: hace estar fuera o nacer el conflicto y conserva al ente en su
constancia.
El temple de ánimo que se debatía en un combate entre el des-ocultamiento y el
ocultamiento definía un carácter de nobleza que conformaba los perfiles de la cultura. De ahí
que Werner Jaeger hable de la educación griega como de una forma aristocrática
progresivamente espiritualizada. La virtud está unida a una actitud de heroísmo guerrero129.
128
Heráclito, Fragmentos, Buenos Aires, Editorial Aguilar, 1968, p. 141.
129
“En el concepto de areté se concentra el ideal educador de este período en su forma más pura”. Werner
Jaeger, Paideia, Bogotá D.C., Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 21.
241
La paideia no consiente ninguna traducción y significa, según la esencia del pensar platónico,
el acompañamiento para la reversión de todo hombre en su esencia: es un tránsito del estado
de ceguera hacia la luz. Su esencia no consiste en verter meros conocimientos en el alma
desprevenida como en un recipiente vacío, sino en transformar al espíritu en su totalidad al
hacer retroceder al hombre desde la banalidad de su vida cotidiana hacia el lugar esencial y
acostumbrarlo a esta morada. La areté, que designa la excelencia humana pero también la
superioridad de los dioses, es un atributo propio de la nobleza. Lo que decide es el conflicto
entre lo que es y no es, lo oculto y lo des-oculto, la verdad y la no-verdad y, por eso, el temple
de ánimo fundado en la lucha y en la victoria es la verdadera prueba de fuego de la virtud
humana. La poesía griega muestra un doble carácter del espíritu humano capaz de reunir en
un solo hombre la virtud: su destreza en la guerra que involucra al honor y su nobleza de
espíritu. El aspirar a ser dioses que en la cultura griega equivale a convertir lo imposible en
una posibilidad realizable habría de ser caracterizado por el cristianismo como vanidad
pecaminosa.
Desde Platón sabemos que la escuela es un nuevo medio que toma distancia de los poderes
establecidos, trátese de poderes místico-religiosos y político-económicos, toda vez que aspira
a determinarse desde sí misma fundada en un solo principio: pensar. Y pensar se ha revelado
como una actividad que desde sus más remotos orígenes toma distancia de las esferas del
poder que aspiran siempre a sacar alguna ventaja. Desde la fundación de la academia, o
también podríamos decir de la escuela platónica, que es el escenario por excelencia del lugar
de la verdad, el pensar ha superado en rango a las esferas místico-político-religiosas y
político-económicas como medio de manifestación de lo que es. Ha sido la escuela y no las
esferas de influencia del poder la que en la tradición de occidente ha mantenido el espacio
abierto del proceso civilizatorio.
2. Educación moderna y contemporánea
Los modernos acuñaron el término formación para designar aquella dimensión del ser
superior y más interior que procede del conocimiento y del sentimiento de toda la vida
espiritual y ética y que se extiende armoniosamente sobre la sensibilidad y el carácter130. En
esta concepción se percibe claramente la determinación del espíritu histórico: la
130
Véase Hans-Georg Gadamer, Verdad y método, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1993, pp. 38-48.
242
reconciliación con uno mismo, el reconocimiento de sí mismo en el ser de otro. En la
“Universidad alemana”, que es el título de una de las dos conferencias que Heidegger
impartió el 15 y 16 de agosto de 1934 en un curso para extranjeros, señala cómo en la
educación de Alemania a principios del siglo XIX tres potencias tuvieron su influjo: la nueva
poesía alemana (Herder, Goethe, Schiller y el romanticismo), la nueva filosofía alemana
(Kant, Fichte, Schleiermacher, Schelling, Hegel) y la nueva voluntad política alemana en los
que se destacan entre otros el nombre de Humboldt. En este proceso sobresale la esencia
natural e histórica del pueblo alemán y no unas simples reglas de un nuevo entendimiento que
se reflejaron en cuatro hechos significativos: 1. Se trataba de una universidad nueva que no
tenía el lastre de los viejo, 2. El peso principal no fue de origen externo –una orientación
globalizada de la educación la llamamos hoy- sino en la vocación de creativos pensadores y
profesores ejemplares, 3. La universidad giró en torno a la facultad de filosofía: la filosofía
estuvo en conexión interna con todas esenciales del saber y 4. la universidad obtuvo libertad
de enseñanza y de aprendizaje sobre la base de su gran determinación. En este marco, la
ciencia tenía todavía el significado de un saber que se dirige necesariamente al todo, es decir,
que es en sí mismo filosófico.
En sus orígenes modernos la filosofía estuvo en conexión interna con todas las ramas
esenciales del saber y la universidad obtuvo libertad de enseñanza y de aprendizaje sobre la
base de una gran determinación. No obstante, con el desarrollo del saber y su inevitable
especialización se rompió el nexo con los otros campos de saberes y se hizo a un lado la
pregunta por el todo: la ciencia se convirtió en ciencia propiamente dicha en la medida en que
se apartaba de su raíz filosófica. Este desarraigo se vio favorecido por la aparición de la
técnica cuya dinámica siempre ha fomentado la industrialización. La cosmovisión, que en sus
orígenes fue un asunto filosófico, se convirtió entonces en un punto de vista relativo a los
individuos, los grupos y los partidos y, correlativamente, el Estado comenzó a ver en la
universidad al establecimiento educador práctico-técnico que hoy conocemos. La
investigación cada vez más especializada se convirtió en un valor cultural en sí mismo sin que
se pensara en sus consecuencias. Las facultades se mantuvieron juntas en un campo
universitario solo gracias a una administración central y a una idea muy curiosa: colaborar por
sí mismas en el fomento de la cultura. La ciencia no es valorada como el fundamento de la
existencia en un sentido griego sino que aparece ahora como un “bien cultural” que se
divorcia definitivamente de la autonomía de la escuela en el sentido platónico y comienza a
243
ser regulada por la política y la economía.
Los criterios de perfeccionamiento y de
potenciación productiva así concebidos reciben el nombre de valores131.
En la filosofía de Nietzsche se muestra que lo que la valoración moderna valora es al
hombre mediocre. Si el nacimiento de los hombres grandes dependiese de estas valoraciones,
es decir, del consentimiento multitudinario, jamás se hubiera logrado conseguir un hombre de
valor. Merced a que la marcha de las cosas tiene lugar sin el consentimiento de las mayorías,
en la tierra pueden producirse sucesos sorprendentes. En donde abundan las cualidades
medias de las cuales depende la persistencia de una medida estándar que es el modelo
entitativo de la universidad en la era industrial, ser persona resulta ser un lujo pues lo que
abunda son más bien portadores e instrumentos de transmisión. Comparado con la
importancia de lo mediano, la persona resulta algo casi antinatural. Ser en la sociedad
industrial es ser productivo y no resulta extraño, por eso, que la virtud de la educación
consista en hacer a un hombre lo más útil posible hasta convertirlo en máquina. La educación
promueve, por tanto, aquellos estados de ánimo que hacen trabajar al individuo de una
manera maquinal y rechaza todo lo demás. La actividad maquinal trae consigo la uniformidad
y el aburrimiento y, no por otra razón, aprender a soportar tales efectos es el objetivo de toda
educación fundada en los valores de competitividad, eficiencia y productividad. La educación
maquinal trasforma lo aburrido, desagradable y fastidioso en algo agradable honrando la
obediencia ante la fuerza del poder: hacer voluntariamente las cosas desagradables es la
intención del gran ideal. La educación asume entonces el carácter de domesticación132.
La ciencia en su devenir especializado se convierte en investigación merced al proyecto y
al aseguramiento en el rigor del proceder anticipador. Proyecto y rigor se despliegan y
convierten en el método. Así, el método determina el segundo carácter esencial para la
investigación. La regla está referida a la fijación de los hechos y la constancia de su variación
como tal. La ley está a su vez referida a lo constante de la transformación en la necesidad de
su transcurso. Regla y ley determinan la claridad de los hechos de la naturaleza como los
131
“Los valores de la cultura sólo se aseguran significación, dentro del todo de una cultura, al limitarse a su
propia validez: la poesía, en virtud de la poesía; el arte, en virtud del arte; la ciencia, en virtud de la ciencia”.
Martin Heidegger, Introducción a la metafísica, Buenos Aires, Editorial Nova, 1969, p. 85.
132
“La educación es, esencialmente, el medio para arruinar la excepción a favor de la regla. La instrucción es,
esencialmente también, el medio de enderezar el gusto contra la excepción a favor de la mediocridad”. Friedrich
Nietzsche, La voluntad de poderío, Madrid, Editorial Edaf, 1981, p. 500.
244
hechos que son. Así, la investigación de los hechos es la exposición y preservación tanto de
las reglas como de las leyes por medio de las cuales una cosa es clara. Dicha aclaración tiene
un doble significado: fundamenta algo desconocido por medio de algo conocido y, a su vez,
garantiza eso conocido por medio de lo desconocido. La aclaración
se realiza en la
exploración o el examen. En las ciencias de la naturaleza esto tiene lugar por medio del
experimento.
Las ciencias de la naturaleza no se convierten en investigación gracias al experimento sino
al contrario: donde el conocimiento de la naturaleza adopta la forma de investigación.
Disponer de un experimento significa representar una condición en la cual un determinado
conjunto de movimientos puede tornarse apto a ser manipulable por medio del cálculo. El
objeto, un determinado rango de lo ente, ofrece la medida y vincula a la condición el
representar anticipador. Las hipótesis no son arbitrarias pues se desarrollan a partir del rasgo
fundamental de la naturaleza inscritas en él. El experimento refleja aquel procedimiento
dirigido por la ley que se establece como hipótesis con el propósito de producir los hechos
que confirmen o nieguen la ley. En las ciencias históricas el equivalente del experimento es
representado por la búsqueda, selección, confirmación, valoración y presentación de las
fuentes. Tanto en las ciencias naturales como en las ciencias del espíritu el método tiene un
solo objetivo: representar aquello que es constante. La historia se convierte de este modo en
objeto y su objetividad depende del pasado: lo constante del pasado. Lo comparable permite,
a su vez, que la explicación reúna lo único y lo múltiple.
En la permanente comparación del todo con el todo se realiza el cálculo de lo comprensible
y se confirma como el rasgo fundamental de la explicación histórica. Aquí lo grande se mide
con el rasero de lo habitual y lo estándar.
Mientras
explicar signifique reducir a lo
comprensible y mientras la ciencia histórica siga siendo una investigación no podrá haber
otra explicación de la historia. Y es precisamente este rasgo de proyectar y objetivar el
pasado en el sentido de un conjunto de efectos explicable y visible el que exige fundamentarse
en la crítica de fuentes. Toda ciencia es particular pues en tanto investigación está fundada
sobre el proyecto de un sector de objetos delimitado.
El desarrollo de la ciencia en tanto investigación exige de una especialización. En la edad
moderna la ciencia se desarrolla bajo el carácter de empresa. Los propios resultados de la
ciencia rigen como camino y medio del método progresivo. Este carácter explica, a su vez, la
245
necesidad del desarrollo de la ciencia como institución. Su carácter de institución permite el
aseguramiento de la primacía del método sobre el ente –naturaleza e historia- el cual se
convierte en algo objetivo dentro de la investigación. El carácter de empresa de la ciencia
acuña ahora otro tipo de hombres: el sabio de antaño da paso al investigador moderno que ya
no necesita de una biblioteca sino de bancos de información. La información está vinculada, a
su vez, a las instituciones. El trabajo pierde igualmente su carácter de erudición y se convierte
en una actividad esencialmente técnica capaz de garantizar la eficacia y objetividad de los
resultados. La educación deja de fundamentarse en lo espiritual para hacerlo en lo real. Dicho
fenómeno se manifiesta en la especialización de la ciencia y en la particular unidad de las
empresas.
El proyecto y el rigor así como el método y la empresa, al plantearse constantes exigencias
recíprocas, conforman la esencia de la ciencia moderna y la convierten en investigación. El
conocimiento bajo la forma de investigación pide cuentas a lo ente de cómo y hasta qué punto
está a disposición de la representación: la investigación dispone de lo ente al calcularlo por
adelantado (naturaleza) o a posteriori como pasado (historia). Solo aquello que así se
convierte en objeto es: existe. La ciencia se convierte en investigación en el momento en que
busca al ser de lo ente en la objetividad. La objetividad de lo ente tiene lugar en la representación cuyo objetivo es colocar a todo lo ente ante sí de forma que el hombre que
calcula pueda tener certeza de lo real. La verdad se transforma en certeza de la representación.
Lo ente se determina ahora como objetividad de la representación y la verdad como certeza133.
La existencia europea de deslizó entonces hacia un mundo vacío, breve, efímero
caracterizado por una ausencia total de profundidad en el pensamiento. Tal proceso registró
una homogenización de todas las cosas en el mismo plano semejante a un espejo ciego que es
incapaz de reflejar y de devolver nada. La dimensión que se impuso fue la de la extensión y el
número y no por otra razón en la educación contemporánea la argumentación metafísica y
fenomenológica es sustituida progresivamente por la cifra que adquiere el estatus de prueba.
En muchos casos el problema de la investigación no se reduce a una cuestión política centrada
en el Estado sino a complejos industriales-militares e interestatales donde lo teórico y práctico
se entrecruzas y se mezclan y termina por perder sus diferencias toda vez que se programa el
133
Véase Martín Heidegger, “La época de la imagen del mundo (1938)”, Caminos de bosque, Madrid, Alianza
Editorial, 1998, pp. 63-90.
246
saber de manera autoritaria y se orienta y organiza de acuerdo a la utilidad. En la educación
contemporánea, por consiguiente, el límite establecido por la filosofía kantiana entre el
esquema técnico y el esquema arquitectónico en la organización sistémica del saber ha dejado
de existir. Las diferencias entre razón pura y razón práctica son cada vez más difíciles de
encontrar y se confunden entre sí. El pensar profundo y sereno es sustituido por unos
conocimientos de carácter técnico, susceptibles de ser aprendidos por todos y siempre
vinculados al carácter productivo del mundo del trabajo, llegando al extremo de trasformar lo
cuantitativo en una peculiar cualidad. Jaques Derrida ha mostrado que el conocimiento teórico
en disciplinas que antes actuaban al margen de poder como el psicoanálisis, la semiótica, la
literatura y hasta la misma filosofía han sido utilizadas por las potencias industriales para
fines bélicos en el marco de la guerra psicológica y se han combinado con la tortura. 134
El debilitamiento del espíritu se expresa en varios fenómenos: el espíritu se transforma en
inteligencia que es interpretada como mera capacidad de entender mediante el cálculo. La
degradación del espíritu y su conversión en inteligencia se desarrolla hasta desempeñar el
papel de instrumento al servicio de determinados fines que son valorados como lo real
propiamente dicho. La interpretación instrumentalista del espíritu hace retroceder los poderes
del acontecer espiritual, trátese de la poesía, la música, la pintura o los poderes del estado y la
religión, a una posible asistencia de planificación dirigida135. El mundo espiritual asume, de
este modo, el carácter de cultura por medio de la cual el hombre individual intenta
perfeccionarse.136 La educación contemporánea busca producir un carácter productivo que se
adapte sin mayores traumatismos a las exigencias del rendimiento máximo. La definición del
profesional queda circunscrita, en consecuencia, a la visión científica y técnica ligada a la
lógica del poder para quien el ente solo representa una cualidad: ser un recurso productivo.
Desde entonces alcanzar la máxima productividad en el menor tiempo posible se convirtió en
134
Véase Jaques Derrida, “Las pupilas de la universidad. El principio de razón y la idea de universidad”,
Hermenéutica y racionalidad, Gianni Vattimo (compilador), Madrid, Editorial Norma, 1994.
135
“…la razón es la instancia del pensamiento calculador que organiza el mundo para los fines de la
autoconservación y no conoce otra función que no sea la de convertir el objeto, de mero material sensible, en
material de dominio…El ser es contemplado bajo el aspecto de la elaboración y la administración”. (Max
horkheimer y Theodor W. Adorno, Dialéctica de la ilustración. Fragmentos filosóficos, Madrid, Editorial Trotta,
1994, p. 131).
136
Véase Martin Heidegger, La autoafirmación de la universidad alemana, Madrid, Editorial Técnos, 1996.
247
la nueva religión de los hombres.
La educación contemporánea fundada en la sobre-especialización profesional quedó
circunscrita a la productividad: el hombre dejó de entregar su alma a Dios para dársela al
poder. Ser profesional significa entonces alcanzar el valor supremo: ser productivo. Toda
acción que intente ir más allá de la productividad carece de sentido: es improductiva. Aquí
se abre un interrogante: ¿Qué pasa con lo improductivo? Lo improductivo es lo que carece de
sentido precisamente por no derivarse de allí ninguna utilidad. Lo improductivo es la nada de
la productividad y no se deja someter al dominio de lo productivo. Y al ser declarado un antivalor el poder pasa factura a la osadía de quien pretenda sobrepasar su límite. La estructura de
la conciencia moderna establece una clara distinción entre productivo e improductivo, útil e
inútil, eficaz e ineficaz, e impone una camisa de fuerza al individuo mucho más represiva
incluso que la de la santa inquisición, solo que la dominación se ejerce ahora desde una
dimensión inconsciente. El hombre de hoy no diferencia entre libertad y obediencia y toda su
psicología ha quedado reducida a participar en el juego.137 Más allá de la cultura de los juegos
del poder, la vida, la historia, la conciencia, el sentimiento, pierden todo significado. ¿Qué
pasa entonces con lo no productivo? Solo existe lo objetivo-rentable y más allá no hay nada.
La sociedad ha venido transformándose, por consiguiente, desde aquella imagen que tenían
los hombres de sí mismos de estar cerca de los dioses, y que tuvo como fruto la creación de la
filosofía, la tragedia y la ciencia antigua, hasta aquella otra con la que sueñan millones de
seres en el mundo: ser las tuercas de un complejo engranaje. Cuanto más se aleja el hombre
de la esencia de sus facultades intelectuales y transforma esa energía en disposición técnica
tanto mejor profesional es. Tanto más degradante y estúpida es la actividad que desarrolla,
piénsese en los modelos publicitarios, las comentaristas y narradores deportivos, los
animadores de televisión, etc., solo para citar algunos ejemplos, tanto más remunerado es el
profesional. Allí donde los valores de la sociedad industrial suprimen la diferencia entre ser
y éxito desaparece la necesidad del preguntar. La figura de más prestigio en una empresa, el
ejecutivo, no piensa, ejecuta. La educación deja de fundarse en atribuirle sentido a las cosas
y se convierte en una actividad funcional. El conocimiento no se experimenta como búsqueda
de sí mismo y del mundo, y adopta la forma de una prostituta: se vende al mejor postor. Solo
reducido a ser una pieza bien aceitada del monstruoso organismo se es. Solo empequeñecido a
137
Véase Ernst Junger, El trabajador. Dominios y figura, Barcelona, Editorial Trotta, 2003.
248
su imagen de disposición técnica alcanza su más sentido objetivo: ser profesional. Cuando
Oscar Wilde138 dijo que “el medio más seguro de no saber nada de la vida es intentar hacerse
útil” no lo decía en broma.
Quien no tiene autonomía carece de entendimiento y se convierte en garantía de eficacia.
Independiente y autónomo es únicamente aquel ser que se tiene así mismo y no puede ser ni
medio ni objeto de otro. Ser profesional es ser el medio a través del cual el poder realiza su
orgía rentística y persigue sus propios fines. La existencia profesional es una existencia para
otro y esta negación de la esencia se experimenta como éxito. Los predicados que definen al
poder son los mismos que definen al ser profesional: el olvido del ser trasmigra al mundo de
la vida como ideal supremo. La acotación de lo profesional referido a la utilidad borra las
diferencias de la singularidad humana y las transforma en una única cualidad: ser un recurso
viviente. En la medida en que la educación transforme su energía vital en energía productiva,
borre progresivamente aquellas singularidades que definen su condición de mortal y se
asemeje cada vez más a una máquina, tendrá mayores posibilidades de éxito. La educación
asume en este contexto un carácter eminentemente auto-referencial que ya no es capaz de
formar ciudadanos y cada vez actúa por fuera de la excelencia humanística al fundar toda su
acción en rutinas didácticas des-espiritualizadas. La des-humanización de la educación se
transforma de esta manera en un valor o, como los economistas sueles decir, en una ventaja
comparativa.
El concepto de libertad implícito en una educación auténtica sufre, de esta manera, una
transformación radical: deja de ser la medida en que se expresa la existencia individual y solo
cobra sentido allí donde la persona singular se transforma en una simple pieza de un complejo
engranaje y se integra a la totalidad de los fenómenos. El estudiante es sometido a las virtudes
del orden y ya nadie es indispensable: todos son sustituibles. El rendimiento es potenciado por
una educación funcional y se hace patente tanto en los exámenes de Estado que presentan los
estudiantes para promocionarse socialmente como en las pruebas psicotécnicas de una
empresa encaminadas a seleccionar personal. Las diferencias entre libertad y obediencia
desaparecen y las vivencias no se experimentan como únicas sino como unívocas. No existen
diferencias tampoco entre el espacio educativo y el mundo del trabajo y lo que decide las
138
Véase Oscar Wilde, Ensayos y artículos, Barcelona, Ediciones Orbis S.A., 1986, pp. 66-67.
249
diferencias en ese espacio es el rendimiento encarnado en unos símbolos fácticos. El éxito de
la educación se mide entonces por la capacidad de reconocer esos símbolos y hacerlos suyos.
¿Cuál es el destino de la libertad y de la autonomía de la educación? Su destino es funesto
pues ambos términos, libertad y autonomía, representan sólo una caricatura de lo que
significaron en sus orígenes: la incondicionalidad del pensar. Ambos han sido inoculados por
el poder del dinero y vaciados de todo contenido ontológico. Como en la fábula kafkiana, la
libertad y la autonomía universitaria se han metamorfoseado en un enorme insecto que susurra
en el oído de estudiantes, profesores y directivas: ¡no piensen, obedezcan! Lo que se impone
es una razón totalitaria, cínica y ciega que corresponde a la voluntad de poder del ente que ha
sido abandonado así mismo y que se manifiesta en la preeminencia de lo programable de lo
real previamente calculado. El desprecio de la libertad, de la autonomía y del pensar aparecen
con nombre propio: abstracción total. El estudiante deja de identificarse con un ser, una
persona, un ciudadano, un sujeto, para hacerlo con un código productivo. Cuanto más grande
se hace la brecha entre el pensar y la voluntad de dominio más fascinación adquiere la
abstracción del código que niega y exorciza la complejidad del objeto: todo lo reduce a la
formalización matemática. La pregunta que interroga por el sentido de la educación ha caído
en el olvido con la misma celeridad en que las escuelas crecen en el negocio de ofertar
diplomados, especializaciones y maestrías fundamentadas en un solo principio: la rentabilidad
Lo esencialmente mediocre hay que buscarlo, por tanto, en aquellas ideas y valores con
pretensiones de validez universal que orientan a la educación pero que mutilan al Dasein y lo
trasforman en un recurso humano productivo. Se trata de una educación funcional, impersonal
y abstracta que se deslinda de los problemas ontológicos fundamentales y cuyo carácter
existencial se hace patente como medianía: lo originario se torna de repente banal, lo
laboriosamente conquistado por una larga tradición se vuelve trivial, todo misterio pierde su
fuerza. El estudiante es valorado como un ente y no como un ser: la esencia incondicionada de
la subjetividad se despliega entonces como brutalitas de las bestialitas. Una concepción que
contrasta con la idea de paideia griega.
250
A educação pulsional de Nietzsche
1. Introdução
Estudos e pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche tem se tornado cada vez
maiores, e, consequentemente, tem sido maior também a quantidade de pesquisas e trabalhos
sobre a relação do pensamento de Nietzsche com a educação. Diversas delas têm mostrado
um Nietzsche cada vez mais afinado com os problemas e as necessidades do campo
educacional.
A maior parte destes trabalhos concentra-se em análises feitas de obras do primeiro
período de produção filosófica de Nietzsche, que podemos chamar de o jovem Nietzsche. Têm
importância ressaltada nestes trabalhos os textos: Terceira consideração extemporânea:
Schopenhauer como educador e um conjunto de conferências realizadas pelo então professor
Friedrich Nietzsche, da universidade da Basileia, Sobre o futuro de nossas instituições
educacionais.
É claro que estes textos são de grande importância para o pensamento de Nietzsche,
porém refletem ainda grande imaturidade conceitual, são textos de um período em que o
filósofo ainda estava profundamente vinculado ao pensamento de Schopenhauer e ao
ambiente artístico instaurado em torno de Wagner, e também intentava desenvolver uma
metafísica de artista. Isso quer dizer que circunscrever o pensamento educacional de
Nietzsche aos textos de sua juventude, e utilizar os textos do período intermediário, ou
maduro, como auxiliares cria uma insuficiência interpretativa, graças à qual Nietzsche é
pensado tão somente como um crítico da expansão e universalização do ensino, ou um
idealista da escola formadora do gênio, todavia as possibilidades são muito maiores do que
isso.
A proposta deste trabalho então é expandir o horizonte interpretativo do papel da
educação no pensamento de Nietzsche, expandindo, consequentemente, o universo
bibliográfico de análise, tomando como referências principais para a compreensão do
pensamento educacional do autor, as obras do seu período intermediário, e ainda mais as
obras do período maduro, podendo deste modo compreender como a educação no pensamento
de Nietzsche passa por uma reinterpretação da própria subjetividade humana, na qual a
251
educação, só se dá efetivamente, quando a estrutura pulsional que uma pessoa é ao nascer é
radicalmente transformada pelas suas vivências.
Temos então o que se poderia chamar de uma hipótese: só há educação, aos moldes
nietzscheanos, quando a estrutura da subjetividade de uma pessoa é alterada pelas suas
vivências, isso não ocorrendo, não se pode falar em educação.
2. Subjetividade Pulsional
Comumente, nos trabalhos sobre Nietzsche, a sua teoria pulsional aparece como um
subitem da análise da vontade de poder, dando-se maior importância a esta do que àquela.
Neste trabalho, optou-se por uma inversão dessa abordagem, ou seja, partir-se-á da teoria
pulsional para versar sobre a vontade de poder. Nesse sentido, é importante analisar um
fragmento póstumo de Nietzsche, que parece mostrar a tentativa aqui proposta como
desnecessária ou infundada:
Nosso intelecto, nossa vontade, bem como nossos sentimentos, descendem de
nossas estimativas de valor: estas correspondem às nossas pulsões e suas
condições de existência. Nossas pulsões são redutíveis à vontade de poder. A
vontade de poder é o último Factum ao qual podemos descer. (NIETZSCHE,
KSA XI, 40[61], p. 661).
O fato de Nietzsche afirmar que a vontade de poder é o último fato ao qual se pode
descer, o elemento final ao qual se pode chegar na análise de qualquer acontecimento que
envolva o humano, e que as pulsões são redutíveis a ela, apenas afirma o movimento ou
modus operandi das pulsões: elas agem em direção ao poder. A vontade de poder não é a
substância formada pelas pulsões nem seu substrato, a vontade de poder é a indicação do
modo de ser das pulsões.
Foi a partir de Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais que Nietzsche
constatou que as valorações e crenças morais não derivam de fontes metafísicas ou extrahumanas, pelo contrário, elas são bastante humanas, pois nascem de algo em nós, uma força
não deliberada, uma força irracional e que se volta para a vida em face de qualquer
circunstância, mesmo do rebaixamento da vida. Mas como nomear tal descoberta?
O léxico com o qual Nietzsche nomeou esse conjunto de forças é bastante variado, em
especial no período anterior a Além do bem e do mal. Algumas das palavras mais utilizadas
são: pulsão (Trieb), instinto (Instinkt), afeto (Affekt) e paixão (Leidenschaft). Embora o uso
252
indiferenciado de termos tão distintos tenha causado problemas de interpretação, seria difícil e
até infrutífero tentar diferenciá-los no modo como o filósofo os utilizou. Em apenas um caso
essas palavras possuem ressonância em alemão. É o caso da palavra Instinkt, cuja definição
no dicionário Duden da língua alemã é: “1. impulso natural para certos comportamentos. 2.
direito, correto, sentimento inconfundível” (DROSDOWSKI, 1988. Grifo meu).
Também o dicionário de sinônimos da editora alemã Directmedia (Berlin, 2003)
apresenta a palavra Trieb como sinônima da palavra Instinkt. A relação contrária também se
verifica, sendo Instinkt apresentado como sinônimo de Trieb. Quanto às palavras afeto
(Affekt) e paixão (Leidesnchaft), elas não possuem relação uma com a outra nem com as
demais palavras utilizadas por Nietzsche. Todavia, se se analisam as principais definições de
todas elas, descobre-se um elemento comum que pode servir de pista para melhor
compreender a utilização dessas palavras pelo filósofo.
Pulsão: 1. forte [natural] desejo de certos atos.
Instinto: 1. impulso natural para certos comportamentos.
Afeto: agitação violenta: desencadear, causar emoções.
Paixão: desejo ou solicitação forte; forte sentimento de emoção.
(As quatro citações: DROSDOWSKI, 1988).
Nos quatro casos há acontecimentos volitivos que indicam um forte arrastamento ou
inclinação não racional em direção a alguma coisa, como se uma pessoa “tomada” por um
desses “sentimentos” ou “sensações” não pudesse reagir racionalmente, podendo apenas
obedecer a essa ordem não racional e aceder aos seus caprichos. Usou-se a palavra
“volitivos”, entretanto, ela também não dá conta, no pensamento nietzscheano, da amplitude
do problema: as pulsões não são atos volitivos; pelo contrário, os atos volitivos são
consequências das relações pulsionais no interior de um indivíduo.
Analisando os textos de Nietzsche, percebe-se que esses termos são facilmente
cambiáveis, como no caso a seguir:
Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de
autoconservação (Selbsterhaltungstrieb) como o impulso (Trieb) cardinal de
um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força –
a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das
indiretas, mais frequentes consequências disso. – em suma: nisso, como em
tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos! – um dos quais é o
impulso de conservação (Selbsterhaltungstrieb) (nós o devemos à
inconsequência de Spinoza). Assim pede o método, que deve ser
253
essencialmente economia de princípios. (NIETZSCHE, ABM, p. 13. Grifos
meus).
É bastante claro que nas partes destacadas do texto poder-se-ia substituir pulsão
(Trieb) por instinto (Instinkt) ou correlatos e não haveria perda de sentido, tendo-se então:
“instinto de autoconservação” em vez de “impulso de autoconservação”. Nesse caso, o
impulso é mostrado como uma força primitiva, anterior à conservação, base da vontade de
poder. Lê-se na mesma obra:
(...) na época moral da humanidade, sacrificava-se ao deus os instintos
(Instinkte) mais fortes que se possuía, a própria “natureza”: é esta alegria
festiva que reluz no olhar cruel do asceta, do entusiasta “antinatural”. (Idem,
p. 58).
Nesse caso, substituindo a palavra “instintos” por “pulsões” tem-se a mesma
compreensão do trecho citado, ou seja, que na época moral da humanidade sacrificava-se o
que havia de mais forte e não racional no homem, o que nele era natural. As outras duas
palavras, paixão (Leidenschaft) e afeto (Affekt), têm incidência bem menor na obra de
Nietzsche como significação das pulsões. Mesmo assim, é possível ler abaixo um exemplo
claro em que a palavra paixão poderia ser substituída por instinto, sem perdas:
A desrazão ou razão oblíqua da paixão (Leidenschaft) é aquilo que o vulgar
despreza no nobre, mais ainda quando esta se volta para objetos cujo valor lhe
parece fantástico e arbitrário. Ele se aborrece com quem sucumbe à paixão
(Leidenschaft) do estômago, mas entende a atração que há por trás dessa
tirania; não entende, porém, como se pode colocar em jogo a saúde e a honra
pela paixão (Leidenschaft) do conhecimento, por exemplo. (NIETZSCHE,
GC, p. 56. Grifo meu).
No trecho que antecede essa citação, Nietzsche explica como é difícil para o homem
vulgar, não nobre, compreender alguns rompantes dos senhores, por exemplo, ao cometer
uma loucura quando deu sua palavra, ao invés de quebrar a palavra. Nietzsche, então, afirma
que os servos são mais astutos e inteligentes, justamente porque não se deixam arrastar por
essas forças, e continua com o trecho citado acima. Nele pode-se perfeitamente substituir a
palavra paixão pela palavra instinto, resultando em: “a desrazão ou razão oblíqua do instinto é
aquilo que o vulgar despreza no nobre”. A paixão nesse caso não é um ato de volição de um
ser dotado de vontade e consciente de suas escolhas, pelo contrário, é um arrastamento ao
254
qual “o intelecto tem de silenciar ou servir” (Idem). A paixão não é um sentimento, mas, sim,
uma pulsão, que tem a mesma característica não racional e não volitiva, anterior a tudo isso.
Na seção de número 109 de Aurora há uma perfeita correlação entre afeto e pulsão;
Nietzsche utiliza-os como sinônimos. É uma seção mais longa que o comum para o período e
a obra e tem o intrigante título Autodomínio e moderação, e seu motivo último. Nietzsche
oferece seis métodos para o controle das pulsões e explica o funcionamento de cada um. O
quarto método constitui-se em um estratagema intelectual: associa-se ao impulso que se quer
combater uma imagem dolorosa e penosa, e com o tempo, a sensação de prazer ou a
manifestação desse impulso trará para a mente, automaticamente, a imagem dolorosa e sua
correlata sensação; então, o filósofo afirma:
Isso também ocorre quando o orgulho de um homem se rebela, como lorde
Byron e Napoleão, por exemplo, e se sente como uma afronta o predomínio de
um determinado afeto (Affectes) sobre a atitude geral e a ordem da razão; daí
surge o hábito e a vontade de tiranizar o impulso (Trieb) e fazê-lo como que
gemer. (NIETZSCHE, AU, p. 80. Grifo meu).
Esse é, sem dúvida, o mais claro dos exemplos, pois nele Nietzsche tomou ambas as
palavras (afeto e pulsão) como sinônimas. Apesar de, na obra de Nietzsche, essas palavras
muitas vezes serem usadas como sinônimos, em muitas outras elas têm um sentido totalmente
distinto, em especial paixão e afeto, as quais o filósofo também utilizou com um sentido
bastante comum, sem dar a elas a mesma carga semântica que atribui à palavra pulsão.
Mesmo a palavra pulsão às vezes é utilizada, principalmente nas obras iniciais, em um sentido
distinto do que se viu na citação anterior. Em vez de usá-la como a força irracional que
constitui mais intimamente o humano, Nietzsche utiliza-a como um sinônimo de vontade, um
elemento associado ao processo de realização de algo que surge com a volição e que se
materializa por meio da vontade.
O que, então, são as pulsões? Independentemente da palavra que Nietzsche tenha
usado para significar o conceito de pulsões, esse conceito possui um conjunto de ideias que o
especifica, porém uma afirmação presente em um fragmento não publicado oferece uma ótima
compreensão do que sejam:
Não resta coisa (Ding) alguma, apenas quanta dinâmicos, em uma relação de
tensão com todos os outros quanta dinâmicos: sua essência está na sua relação
255
com todos os outros quanta, em seu ‘efeito’ sobre eles. (NIETZSCHE, KSA
XIII, 14[79], p. 259).
Pensar as pulsões como quanta dinâmicos de energia é a melhor saída para o perigo
representado por interpretações substancialistas e classificatórias das pulsões, ambas fazendo
a teoria das pulsões de Nietzsche redundar em uma ontologia na qual as pulsões ganham a
característica de ser. Entretanto, chamar as pulsões de quanta de energia ou quanta dinâmicos
de energia não seria apenas mudar o nome das pulsões e repetir o processo pelo qual elas são
vistas como ser, ou seja, atribuir-lhes identidade, permanência e igualdade? O risco persiste e
é real, mas quando se pensa que esses quanta de energia não existem como seres reais, mas
apenas enquanto estão em conflito uns com os outros, e que a partir do momento em que tal
conflito cessa, cessa também seu existir, então, foge-se à possibilidade de repetir a
ontologização do pensamento de Nietzsche quanto às pulsões. Elas sempre devem ser
pensadas como conflito ou relação entre pulsões, como ação de umas sobre as outras, nunca
apenas como pulsões: para Nietzsche não é concebível uma energia que não seja atuante.
Essa visão das pulsões como quanta de poder é reforçada por Casa Nova, quando
afirma que:
Em todo acontecimento nos defrontamos com o estabelecimento de uma
relação entre elementos perspectivísticos de ordenação da pluralidade de
forças em jogo. Cada um destes elementos perspectivísticos encerra em si
mesmo uma determinada ascensão sobre esta pluralidade de forças e uma
determinada capacidade de resistir aos elementos contrários à sua vigência. O
mundo caracteriza-se então por um embate entre princípios de composição e
estes princípios não estão senão inseridos em uma relação necessária de poder
uns em relação aos outros. De acordo com uma certa formulação recorrente
nos cadernos nietzscheanos de 1887/88, eles são quanta de poder e se
instauram em sua identidade própria a partir “do efeito que exercem e ao qual
resistem”. Porque o mundo é marcado originariamente por uma luta entre
quanta de poder e porque se mostra em sua dimensão mais primordial
enquanto uma guerra entre perspectivas detentoras de uma capacidade de
domínio, temos a cada instante o despontar de uma conjuntura de poder. Esta
conjuntura de poder precisa incessantemente transmutar-se em função de
sempre novas composições, visto que a sua instauração não encerra de uma
vez por todas a guerra (...). (CASA NOVA, 2001, p. 43).
Desse modo, vê-se que a teoria pulsional de Nietzsche toma o ser humano como um
conjunto caótico de pulsões em constante luta e que só momentaneamente conseguem
arranjos de poder que dão à existência a aparência de permanência. As pulsões são quanta de
poder em constante conflito e não são pensáveis fora do conflito: as pulsões só existem
256
enquanto se encontram em luta. Não apenas o corpo humano é fruto dessas pulsões, mas tudo
que envolve o corpo humano, inclusive a sua personalidade. Nietzsche radicalizou essa ideia
quando afirmou que mesmo o sujeito nada mais é do que a consequência de toda essa luta
constante, apenas uma pelinha de maçã sobre um caos constante.
3. Vontade de poder e condição de vida
A vontade de poder é um dos assuntos mais estudados no pensamento de Nietzsche.
Suas interpretações são as mais diversas, indo desde a leitura ontologizante de Heidegger até a
interpretação política de Pearson. Obviamente, tal profusão de estudos não é sem motivo: a
vontade de poder é sem dúvida um conceito inovador na história da filosofia e ponto
privilegiado para a compreensão do pensamento de Nietzsche. Neste trabalho, como foi dito,
optou-se por abordá-la dentro da teoria pulsional, sabendo, todavia, que há outras maneiras de
interpretá-la. Até agora não foi abordada diretamente, somente tangenciando sua realidade e
mencionando-a, porque tentar-se-á realizar um novo exercício hermenêutico da vontade de
poder, associando-a aos conceitos de condição de nascimento, condição de vida e condição de
morte. Para apresentar esses conceitos é importante verificar o modo como a vontade de poder
aparece no pensamento de Nietzsche.
Tendo sido profundamente influenciado por Schopenhauer em sua juventude, era
quase inevitável que Nietzsche trouxesse em seu pensamento as marcas de seu primeiro
mestre. Embora a vontade de poder não reflita mais o pensamento schopenhauriano, a palavra
vontade persistiu no vocabulário de Nietzsche. Encontram-se nas obras de seu período
intermediário os primeiros rudimentos do que seria a sua teoria da vontade de poder. Para
referir-se às intuições que já tinha de que o mundo é intrinsecamente vontade de poder, o
filósofo usou diversas expressões, como sentimento de poder (AU, p. 108) e desejo de poder
(GC, p. 64). Contudo, a primeira utilização da expressão vontade de poder (Wille zur Macht)
apareceu em um texto dos fragmentos póstumos, do final de 1876 ao verão de 1877, em que
Nietzsche afirmou que o medo e a vontade de poder são suficientes para explicarem nossa
consideração pelas opiniões alheias, sendo o medo um princípio negativo e a vontade de
poder um princípio positivo (NIETZSCHE, KSA VIII, 23[63], p. 425). Esse foi o período em
que Nietzsche escreveu suas Considerações extemporâneas, período anterior a Humano,
demasiado humano; por isso, a vontade de poder tem ainda um sentido utilitário, juntamente
com o medo.
257
A primeira vez em que o conceito apareceu de modo definitivo, como hoje é
entendido, foi em A gaia ciência, no quinto livro, introduzido na obra em sua segunda edição,
em 1887, período de A genealogia da moral. Antes disso, o conceito apareceu de maneira
relativamente próxima ao uso maduro que Nietzsche lhe deu em um fragmento não publicado
do verão de 1880 (NIETZSCHE, KSA IX, 4[239], p. 159).
Como se vê, a elaboração do conceito é relativamente tardia, mas a ideia de que o
poder associado à vontade formaria um novo conceito já aparecia desde a juventude de
Nietzsche. Na teoria nietzscheana das pulsões, tudo o que se refere às pulsões, refere-se direta
ou indiretamente à sua constante luta por mais poder. Manter-se vivo é apenas uma précondição em um organismo para que busque mais poder; manter-se vivo, porém, não basta.
Deste modo se pode dizer que a vontade de poder é o modo único do caos pulsional. Só há
conflito entre as pulsões porque cada uma delas busca impor-se sobre as demais, absorvê-las,
subjugá-las, transformá-las em suas subalternas. Assim, a vontade de poder descreve o que
para Nietzsche é o movimento da vida: crescimento e expansão incessantes em busca de mais
poder.
Poder aqui é entendido das mais diversas maneiras; nele estão incluídos poder físico e
político, mas não apenas. Querer reduzir a vontade de poder a uma busca por força físicomuscular ou poder político seria reduzi-la a apenas duas de suas muitas interpretações.
Mesmo quando uma pulsão, ou indivíduo como si, conjunto de pulsões, submete-se a outro,
essa submissão é uma estratégia da vontade de poder atuando nesse indivíduo: submete-se
para no futuro submeter.
Spinks afirma que a teoria da vontade de poder está dividida em três concepções
básicas: a primeira é a de que a vida é um campo de luta constante entre as pulsões, que
criam, assim, a vontade de poder, de onde deriva também a consciência humana e seus
efeitos; a segunda é a de que o objetivo da vida não é nem autopreservação nem iluminação
moral ou espiritual, mas o aumento do poder, e que o impulso-guia da vida (life-drive) é a
acumulação de força e a superação de resistências; o terceiro elemento é o de que a vontade
de poder interpreta o mundo hierarquizando as diferentes forças e conjuntos de forças que
constituem o humano (SPINKS, 2003, p. 137).
Spinks nos oferece um ótimo caminho para seguir, na busca de uma melhor
compreensão da vontade de poder, a saber: a) apresentação da vida como vontade de poder; b)
o movimento pulsional dá-se em direção ao poder, não em direção à conservação; c) a
258
vontade de poder não é um princípio utilitário, ou seja, não trabalha em uma relação
prazer/desprazer, mas age sempre em busca de novos conflitos que, superados, aumentam a
sensação da força.
A caracterização da vida como vontade de poder produz, muitas vezes, tonalidades
dramáticas no pensamento de Nietzsche. Se a vontade de poder é resultante do caos pulsional
e tem como modo de funcionamento o crescimento e a expansão, é de se supor que também
na vida isso esteja presente. Quando Nietzsche criticou a moral, em especial a moral cristã,
ele o fez em vista do que chama de falseamento da vida e também de contranatureza: impor a
si e ao mundo uma moral, e tomá-la como fundamento da vida, é contrário à natureza humana
(caos pulsional), principalmente uma moral do perdão e do amor ao próximo acima do amor
de si. Porém, o filósofo não perde de vista que se essa moral prega isso, o modo como se
impôs às demais não foi esse: as morais sempre se impõem umas às outras como as pulsões
no interior de um organismo: por meio de disputas de força nas quais acontecem submissões e
surgem comandantes e comandados.
Desse modo, enxergar na vida o constante movimento da vontade de poder não é
tornar a vida mais terrível do que ela é. Apenas a moral cristã nos fez acreditar em outro
mundo em que isso não aconteceria, mas essa moral também se impôs às outras e tratou seus
dissidentes da mesma maneira. Por isso, Nietzsche afirmou:
(...) a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é
estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias,
incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...). A “exploração”
não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz
parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma
consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de
vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o
fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse
ponto. (NIETZSCHE, ABM, p. 171).
Os contemporâneos defensores da democracia e dos direitos humanos espantariam-se
com as palavras de Nietzsche, acusando-o de defensor da barbárie. Contudo, Nietzsche não
está, de maneira alguma, fazendo apologia de tal comportamento, está apenas assumindo que
historicamente esse foi, até o momento em que ele viveu, e infelizmente até o momento em
que vivemos, a maneira pela qual os seres humanos interagiram uns com os outros. Embora
politicamente tal assunção seja dolorosa, como diz o filósofo, há de ser honesto até esse
259
ponto. Mesmo as teorias que mais pregaram a igualdade ou a liberdade desandaram em
autoritarismos individualistas e tirânicos.
Um dos mais importantes episódios da história moderna, que Nietzsche conheceu e
não se cansou de criticar, foi a Revolução Francesa: as loucuras que Robespierre cometeu em
nome da igualdade e da liberdade dão prova das afirmações de Nietzsche. Houve outras
experiências que Nietzsche não conheceu, como o totalitarismo nazista, que matou, trucidou e
explorou em nome de uma suspeita beleza, a tirania socialista de Stálin e outros tiranos
espalhados pelo mundo que, em nome da igualdade, também perseguiram, mataram e
exploraram. Mesmo a atual expansão da democracia, com a ofensiva dos Estados Unidos da
América e de seus aliados no Oriente Médio, é feita por meio da guerra, da violência e da
exploração, em uma contraditória, porém verdadeira, democracia absolutista, por mais
paradoxal que isso possa ser.
Essa é a característica básica da vida, embora Nietzsche aposte que a vontade de poder
possa manifestar-se de formas menos drásticas e dolorosas, como a arte, a conversão e o
convencimento. Desse modo, para Nietzsche, a vontade de poder seria uma teoria unificadora
capaz de explicar tudo o que está envolvido e pressuposto no fenômeno vida, como afirmou
em Além do bem e do mal:
(...) – Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida
instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade –
a vontade de poder, como é minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir
todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se encontrasse
também a solução para o problema da geração e nutrição – é um só problema
–, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente,
como vontade de poder. O mundo visto de dentro, o mundo definido e
designado conforme o seu “caráter inteligível” – seria justamente “vontade de
poder”, e nada mais. (Idem, p. 43).
Retomando a segunda proposição de Spinks, tem-se a ideia de que a vida se move em
direção a um aumento de poder, e não em direção à conservação. Nesse ponto, Müller-Lauter
está de acordo com Spinks quando afirma que a
vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de
poder. Alargamento de poder se perfaz em processos de dominação. Por isso
querer-poder (Macht-wollen) não é apenas “desejar, aspirar, exigir”. A ele
pertence o “afeto do comando”. Comando e execução pertencem ao um da
vontade de poder. Assim, “um quantum de poder (...) é designado por meio do
efeito que ele exerce e a que resiste.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 54-5).
260
Nietzsche opôs-se ao darwinismo, pois para o filósofo alemão apenas uma vida
decadente e enfraquecida busca a conservação. Ele afirmou, reiteradas vezes, que onde
encontrou exuberância na vida encontrou a busca pelo poder, por um quantum a mais de
poder. No entanto, mesmo essa vida decadente busca poder, sendo a conservação uma fase
transitória e às vezes aparente. Isso pode parecer contraditório, porém, não o é. Se a
conservação é uma etapa na busca pelo poder – conserva-se aquilo que está vivo –, é
fundamental que um organismo enfraquecido primeiro se conserve para, em seguida, buscar o
poder. Desse modo, a vontade de poder não é uma característica das pulsões fortes e
dominantes ou dos homens fortes e dominantes: ela é uma característica geral de tudo que
vive.
Mais uma vez a crítica da moral aponta para isso. Em um comportamento classificado
por Nietzsche como vermiforme, o autor afirma que o verme, quando é pisado, encolhe-se
para não ser pisado novamente. Enquanto os moralistas classificariam isso como humildade,
ele via como vontade de poder; o verme busca preservar-se, mas única e tão somente para
poder, em alguma ocasião, exercer poder e buscar mais poder. Trazendo a ideia para o campo
das relações humanas, o filósofo afirma: “Onde eu vi vida, eu encontrei vontade de poder: e
mesmo na vontade dos serviçais eu encontrei vontade de poder. O homem submete-se aos
grandes, para ser senhor dos pequenos: esse princípio nos convence à submissão.”
(NIETZSCHE, KSA X, 13[10], p. 459).
Outro exemplo mais claro de que a vontade de poder não é uma exclusividade dos
fortes – e que os fracos, inclusive, podem submeter os fortes – aparece na primeira dissertação
de A genealogia da moral. Lá Nietzsche mostra como, por meio de uma série de artifícios do
espírito, ou seja, da inteligência, os fracos dominaram os fortes por meio da moral dos
escravos.
Spinks faz outra observação importante sobre a vontade de poder: ela não possui um
caráter utilitarista, ou seja, a vontade de poder não atua buscando prazer e evitando desprazer.
Prazer e desprazer são meras consequências daquilo que a vontade de poder busca: mais
poder. Nietzsche ressaltou que por vezes uma pessoa se arrisca, arrisca a própria vida e ferese, movida pela vontade de poder. O desprazer muitas vezes é um obstáculo importante para a
vontade de poder, e o prazer não está em se obter algo, mas em poder continuar o conflito:
261
quando a vontade de poder assimila algo, não há prazer, mas apenas o aumento do desejo por
uma nova tensão, por uma nova contraposição.
Nietzsche ironizou esse eudemonismo, que faz toda a vida circular em torno da busca
pela felicidade e que reduz a felicidade ao prazer. Em Crepúsculo dos ídolos, essa ironia se
intensificou com a afirmação de que esse é o ideal “(...) com o qual sonham o comerciante, o
cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas (...)” (NIETZSCHE, CI, p. 95). Para
Nietzsche, o que está em questão nesse utilitarismo é um rebaixamento do ser humano,
tornando-o preguiçoso e desabituado à luta. Segundo Giacoia, tal rebaixamento é
indissociável da “redução utilitarista do ideal de felicidade e conforto, segurança e bem-estar,
da hipócrita autocompreensão do europeu civilizado como sendo o sentido do progresso e o
‘final da história’” (GIACOIA apud NIETZSCHE, GP, p. 12).
Seguindo as indicações de Spinks, chega-se a uma boa compreensão da vontade de
poder, porém, é preciso compreender como essa vontade de poder se expande e domina. Mais
uma vez não se pode tirar da teoria da vontade de poder seu caráter dramático e doloroso,
expresso pela exploração e, muitas vezes, subjugação violenta. Mas essas não são as únicas
maneiras pelas quais as pulsões dominam umas às outras em seu movimento direcionado ao
poder.
Nietzsche referiu-se com grande frequência à disputa pulsional como fundação e
interpretação de mundo, ou seja, uma das maneiras de um grupo pulsional ou uma pulsão
dominar as demais é apresentar-lhes interpretações diversificadas e variadas do mundo nas
quais cada uma delas tenha importância e exerça algum poder. Aqui se depara com uma
linguagem estratégica, inevitável quando se trata da relação pulsões/vontade de poder, mas,
independentemente do léxico usado e de sua matriz, o que importa é não perder de vista o
significado do conflito pulsional em sua vontade de poder.
Essa interpretação de mundo não tem, porém, um intérprete. Mais uma vez é
necessária cautela para não se resvalar para o subjetivismo, que precisa inserir um intérprete
por trás da interpretação. A interpretação de mundo das pulsões não tem um sujeito; as
pulsões ou a vontade de poder não são sujeitos, pois sua existência só é presumida no
processo da luta, faltando-lhes duração e permanência, características fundamentais ao sujeito.
Partindo da interpretação de mundo resultante da vontade de poder, Nietzsche chega a uma
incrível análise da fisiologia do corpo sem, no entanto, tornar-se finalista. Uma mão não é
algo desenvolvido pelo corpo para segurar. A mão surgiu aleatoriamente e um determinado
262
grupo pulsional a tomou para si e a integrou em seu domínio, passando, então, a usá-la para
segurar.
O filósofo afirmaria que, provavelmente, ao longo da história humana, houve outras
maneiras de se utilizar as mãos, dependendo do arranjo pulsional interno de cada indivíduo.
Então, por que hoje, em sua maioria, há apenas uma maneira de utilizar cada órgão do corpo,
por exemplo? Para Nietzsche, a resposta é simples: vive-se a hegemonia de uma determinada
interpretação de mundo fundada no domínio de determinados grupos pulsionais. Se houvesse
uma reviravolta nesse arranjo, tudo poderia se modificar. Todavia, os incríveis acasos que
asseguraram o atual arranjo pulsional que se vê, de um modo mais ou menos parecido na
maior parte dos seres humanos, deve ser duradouro, pois foi capaz de desenvolver um “órgão”
que assegura sua preservação ao criar uma ilusão de unidade externa que se autoengana,
pensando-se também como unidade interna: a consciência.
O filósofo alemão mostra a importância da constituição da consciência e do Eu e sua
manutenção em cada sujeito, pelos diversos arranjos pulsionais que formam a vontade de
poder:
A vontade de poder interpreta: na formação de um órgão há uma interpretação,
que delimita, determina graus, diferencia poderes. Meras diferenças de poder
não poderiam perceber a si mesmas como tal: deve haver um algo que quer
crescer e que interpreta qualquer outra coisa que queira crescer de
acordo com seu próprio valor (...). Na verdade a interpretação é, ela mesma,
uma maneira de se vir a ser senhor sobre alguma outra coisa. (NIETZSCHE,
KSA XII, 2[148], p. 139-40).
Se até no surgimento e utilização de um órgão Nietzsche via a vontade de poder
agindo de modo a assegurar o domínio de determinado conjunto de pulsões, o que será esse
algo mais, que deve crescer e que interpreta qualquer outra coisa que também quer crescer,
segundo seus próprios critérios? Não resta dúvida de que Nietzsche se refere à consciência e,
indiretamente, ao que a ela está ligado: sujeito, lógica etc., pois é por meio da lógica que o Eu
sujeito pode passar da aparência à igualdade, operação fundamental da lógica. Essa
consciência interpreta a si mesma e se, dentro de si, detectar outro supostamente igual que
também quer crescer, deve interpretá-lo segundo suas regras, ou seja, segundo algo que
ameaça internamente seu domínio de poder. Um exemplo disso é o modo como nossa
consciência “vigia” os “impulsos passionais” que tantas vezes querem nos fazer perder a
consciência.
263
A respeito dos atos volitivos da consciência, enquanto máscara das pulsões sobre
outras pulsões que ameaçam a hegemonia do grupo que domina a consciência, Giacoia faz
uma importante observação: nesse processo volitivo há, ao mesmo tempo, em cada indivíduo,
algo que manda e algo que obedece.
De acordo com a reconstituição nietzscheana do ato volitivo, o querer consiste
também, sobretudo, numa disposição de ânimo: ao fazê-lo, somos tocados,
tomados e movidos pelo afeto do comandar, pelo sentimento de dispor de
algo, que obedece. Existe, pois, internamente – mesmo que não movamos um
músculo –, uma divisão entre um eu que comanda e um ele, uma curiosa
espécie de alteridade, um algo que obedece – que, justamente em razão de sua
inserção naquela complexa correlação de forças que constitui todo querer, tem
de obedecer. (GIACOIA, 2001, p. 68).
Essa observação nos permite concluir que o Eu vive o incrível prazer da tensão no
momento do comando sobre si mesmo ao sentir que, enquanto comanda, há algo que obedece,
mesmo internamente. Percebe-se uma forte identificação entre o si (conjunto pulsional que
cada humano é e que Nietzsche chamou de Selbst) e o Eu, pois o si que uma pessoa é, e que
ignora ser, geralmente se identifica e se alegra com as conquistas do Eu que ele forjou e que
essa pessoa acredita ser. Enquanto essa pessoa se ilude imaginando que as conquistas de sua
consciência fortalecem seu caráter, o que elas fazem é fortalecer o si que essa pessoa é.
Quanto mais forte é o Eu, mais ignora o si e mais fiel e intensamente exerce seu papel de
escudo protetor do si, ao mesmo tempo sua ponte com o mundo exterior e principal canal de
comunicação e domínio desse mesmo mundo.
Desde o momento em que um novo ser humano nasce, aqueles que o recebem
esforçam-se, de alguma forma, por moldar nele uma personalidade e caráter, por conseguinte,
uma consciência e, desse modo, possibilitam que a configuração da vontade de poder das
pulsões existente neles se reproduza na criança e que o processo se expanda, assegurando
cada vez mais domínios de poder para esse conjunto pulsional.
4 – As condições da existência: ascensão e decadência pulsional
Falar do estado original das pulsões no momento em que um ser humano nasce é
sempre muito difícil sem recorrer ao vocabulário tradicional da filosofia metafísica, pois este
se especializou justamente em tentar mostrar o que as pessoas são. Todavia, tal vocabulário
264
foi descartado pelo filósofo aqui em estudo. Também não se pode recorrer ao vocabulário da
filosofia moderna, pois, a despeito de Nietzsche usar com frequência palavras como natureza
e outras mais, retiradas ao léxico da filosofia moderna, ele também nos advertiu de que “a
verdadeira natureza humana – [é uma – VS] frase proibida” (NIETZSCHE, KSA IX, 6[150],
p. 235). Mas por que é tão importante a condição na qual nasce o ser humano? Quando se fala
em educação e se tem como pressuposto o pensamento de Nietzsche, refere-se a um processo
radical de transformação. Para saber o quanto esse processo é realmente radical, é
fundamental saber o que um ser humano é ao nascer e saber o que esse processo educacional
pode fazer com ele.
Para melhor compreender o alcance da educação no pensamento de Nietzsche é
fundamental que se conheça os arranjos pulsionais que cada indivíduo é ao nascer, somente
assim será possível avaliar até que ponto realmente a educação ocorreu em relação a uma
pessoa, pois, para Nietzsche, só há educação quando as experiências pelas quais uma pessoa
passa a levarem a se tornar um ser humano diferente, se estas experiências forem capazes de
fazer com que um indivíduo passe por uma modificação tipológica, ou seja, se seus arranjos
pulsionais o tornam um tipo superior, sua educação consistirá na variação do tipo; se seus
arranjos pulsionais o constituem em um tipo inferior, também aí a educação ocorrerá com a
variação do tipo. Deste modo em Nietzsche há educação tanto na ascensão tipológica, quanto
na decadência dos tipos.
Aqui, porém, se depara com cum problema: como falar da organização pulsional que
um humano é, aquilo que mais intimamente o constitui, sem recorrer ao jargão tradicional da
filosofia, em especial à natureza humana ou essência, conceitos que o próprio Nietzsche
interditou?
Para evitar esses problemas, será usada a expressão condição de nascimento para
significar o estado do arranjo pulsional em um ser humano no momento de seu nascimento. A
condição de nascimento refere-se ao modo como as pulsões atuam umas sobre as outras em
um indivíduo da espécie humana quando nasce e passa a receber sobre si a pressão de outras
organizações pulsionais de poder para moldá-lo à imagem e semelhança delas.139 Não nos
139
Para Nietzsche, os homens mais fortes são múltiplos e não precisam se impor aos outros. Eles suportam a
diferença em si sem enlouquecerem. O filósofo afirma que o grande homem é medido pela liberdade que dá a
esses animais (as pulsões), sem, no entanto, ser controlado por elas. Na Genealogia da moral, Nietzsche mostra
como esse homem é forte, porém, pela sua abertura para a diferença, é presa fácil do homem fraco, centrado em
torno de uma única pulsão e totalmente fechado à multiplicidade pulsional. Vem daí uma ideia constante em
Nietzsche, desde as obras da juventude: é preciso defender o forte do fraco.
265
importa saber qual é o exato conteúdo da condição de nascimento, quais são as pulsões
superiores, quais são as pulsões subalternas, ou que tipo de Eu e consciência essas pulsões
desenvolverão em seu favor, nem sequer se elas o farão. Tampouco nos interessa que tipo de
moral essas pulsões tomarão como interpretação do mundo. O que importa é apenas saber se
isto que se é quando se nasce pode ser alterado. Será possível que os vários acontecimentos
que tomam lugar na vida de um ser humano podem alterar sua condição de nascimento?
Serão utilizados outros dois conceitos correlatos à condição de nascimento: condição
de morte, expressão que significará o estado do arranjo pulsional em um ser humano no
momento em que morre, e condição de vida, significando os diversos arranjos pulsionais que
tomam lugar em um mesmo corpo formando personalidades diversas, Eus diversos,
consciências diversas que adotam morais diversas, tudo isso ao longo de uma única vida.
Assim, é possível atualizar a tese anteriormente apresentada para este trabalho: só há
educação, nos moldes nietzscheanos, quando as várias condições de vida permitem que a
condição de morte seja distinta da condição de nascimento.
Quando Nietzsche afirmou que nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas
almas (ABM, p. 25), ele quis dizer que ao longo de uma vida é possível que se viva tantas
condições de existência que a condição de morte é radicalmente distinta da condição de
nascimento. O agente que opera essa diferenciação é, inegavelmente, a vontade de poder; e a
alteração dá-se em função dos constantes embates pulsionais.
No vocabulário nietzscheano, só é possível chamar de educação o processo que faça
brotar, da aparente unicidade do Eu, a multiplicidade (consciente ou inconsciente) do si, sem
que, no entanto, esse si sucumba à louca tensão das pulsões em conflito140.
A educação, para Nietzsche, é um dos mais duros e raros processos humanos; e que
não haja ilusões, não é prazerosa, mas é uma tentativa irreversível da vontade de poder, que
muitas vezes falha. Muitas pessoas, em face da atual sociedade burguesa dos homensengrenagens-de-máquinas, terão como condição de morte a mesma condição de nascimento,
sem nunca conhecerem uma condição de vida que fosse diferente, para Nietzsche, destes,
jamais se poderá dizer que conheceram a educação.
140
Tal sucumbência seria, para o filósofo, um retrocesso nas organizações pulsionais a períodos anteriores à
civilização e nele se perderia o esforço de milênios.
266
Para melhor compreendermos o problema da educação no pensamento de Nietzsche é
fundamental então que compreendamos como se dá a ascensão e a decadência tipológicas,
acontecimentos que são, para o filósofo de Zaratustra, os índices da educação.
No que se refere à tipologia nietzscheana, uma das mais importantes perguntas que se
deve fazer é aquela da mutabilidade dos tipos: é possível haver transição entre os tipos? Ou,
ainda, um tipo superior pode tornar-se inferior e vice-versa? Essas perguntas têm sua
importância aumentada quando se trata do pensamento educacional de Nietzsche,
principalmente neste trabalho, que toma como pressuposto a ideia de que para ele só há
educação quando a condição de morte é distinta da condição de nascimento, o que indica,
claramente, alteração nos arranjos pulsionais, que, em nível máximo, é a própria mudança do
tipo. Esses problemas ficaram caracterizados no pensamento de Nietzsche sob a rubrica da
decadência e seu contramovimento, a ascendência.
A aproximação de Nietzsche do tema da decadência, tema já bastante conhecido na
história ocidental, se deu pela aproximação com o professor de história da Universidade da
Basileia, Jacob Buckhardt, que profetizou a decadência cultural da Europa, diagnóstico com o
qual Nietzsche concordava.
Burckhardt exerceu grande influência sobre o jovem Nietzsche quando este buscava
progressivamente afastar-se do pensamento de Schopenhauer e da arte wagneriana, ao ponto
de Nietzsche denominá-lo como “o maior mestre” (LARGE, 2000, p. 38-39). A ideia de
cultura de Burckhardt, em especial, influenciou profundamente o jovem professor Nietzsche,
e foi justamente por meio da cultura que Nietzsche chegou à decadência, ou melhor, ao
diagnóstico da decadência da Europa, isso em sua obra juvenil.
A passagem da decadência cultural para a decadência tipológica deu-se por meio de
uma associação operada por Nietzsche entre decadência, doença e saúde, que permitiu ao
filósofo, tardiamente, tornar a decadência um problema tipicamente fisiológico. Mas, claro,
tratar-se-ia então de outra fisiologia, uma fisiologia pulsional.
Em Humano, demasiado humano I, encontra-se o aforismo (§ 214) que demonstra essa
aproximação: decadência cultural, saúde e doença, nele Nietzsche explica que os homens
antigos viam no impulso afrodisíaco uma divindade e que, por senti-la em si, acabavam
tratando-a com gratidão. A partir daí Nietzsche faz o jogo de valoração dos senhores: aquilo
que está no tipo superior é digno de admiração, mesmo a doença, o que levou os gregos a
tratarem suas doenças como algo digno de admiração, rendendo-lhe culto.
267
Nesse breve parágrafo encontra-se toda a complexidade que se tornaria, no futuro, o
problema da ascensão/decadência dos tipos: decadência e ascensão aproximadas de saúde e
doença, ou seja, tornadas problemas fisiológicos; ao mesmo tempo a cultura é colocada em
uma relação que não é nem inversa, nem direta, porém paralela com a doença: não é a cultura
que adoece, mas é o homem adoecido que gera a cultura adoecida. Esse homem, quando
superior, admirará nele até a doença, e, quando inferior, buscará extirpá-la, o que aumenta o
problema, pois é possível pensar que a doença (decadência) é útil e rica em possibilidades
criativas, desde que seja a doença dos tipos superiores, desde que não tenha dominado
totalmente esse tipo superior.
No segundo livro de Humano, demasiado humano, há outro aforismo fundamental
para a compreensão do problema da decadência fora da esfera da decadência cultural, ideia
recorrente no jovem Nietzsche e mais próxima da perspectiva do Nietzsche maduro: a
decadência como um problema fisiológico-pulsional. Na citação anterior, saúde e doença são
tomadas como saúde e doença de alguém, como saúde e doença dos gregos, que as tornaram
objetos de veneração. Todavia, saúde e doença para Nietzsche não são estados pertencentes ao
sujeito, mas estados constituintes e/ou desagregadores do sujeito:
Utilidade da saúde frágil. – Quem frequentemente está doente tem não só um
prazer muito maior em estar são, devido à sua frequente reconquista da saúde,
mas também um aguçado sentido para o que é são ou doente nas obras e
ações: de modo que, por exemplo, justamente os escritores doentios – entre os
quais estão quase todos os grandes, infelizmente – costumam ter, em suas
obras, um tom de saúde bem mais seguro e constante, pois entendem mais que
os fisicamente robustos da filosofia da saúde e convalescença psíquica e de
seus mestres: manhã, sol, floresta e fontes. (NIETZSCHE, HDH II, p. 146).
Esse aforismo é uma antecipação do que Nietzsche, em 1866, escreveria no prefácio
de A gaia ciência sobre a saúde, mais precisamente em três pontos: perda e recuperação da
saúde; saúde e doença nas obras e nas ações; e uma filosofia que é a voz da saúde, da doença
e da convalescença. Esses são três pontos que tornam resplandecente, para estudos da ideia de
decadência e convalescença em Nietzsche, o prólogo de A gaia ciência. Ali, é fundamental
estar atento ao que se passa: o livro foi escrito após uma das piores e mais longas crises de
saúde do filósofo. A maior parte do livro não foi propriamente escrita por Nietzsche, mas
ditada por ele ao seu amigo Peter Gast, que tomava os apontamentos do filósofo adoecido.
268
Nesse prólogo, Nietzsche oferece a ideia-mestra para se entender a ideia de decadência
como um problema prioritariamente fisiológico-pulsional e não mais, ou não apenas, como
um problema cultural: lá Nietzsche explica como a doença filosofou nele e conta que foi o
contato íntimo e próximo com a doença, a decadência, que lhe permitiu recuperar a saúde. O
que se depreende das afirmações do filósofo é que a doença não era o seu mal, ou sua
decadência propriamente dita; na verdade, a doença foi o sintoma que permitiu ao filósofo
recuperar a si mesmo, como futuramente escreveria, o filósofo nele defendeu-o da decadência.
Porém, se a doença não é a decadência em si, o que é a decadência?
A decadência, como Nietzsche a pensou, é o processo pelo qual os tipos superiores se
enfraquecem, transitando entre os diversos tipos da mesma tipologia (espíritos livres, homens
superiores, bestas louras etc.), podendo até mesmo se tornar tipos inferiores.
Se a principal caracterização dos tipos superiores é encontrada na multiplicidade e
coesão de sua constituição pulsional, pois, como lembrou o filósofo, estes são “as formas
mais ricas e complexas – pois a expressão “tipo superior” não significa nada mais que isso”
(NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 317), a coesão que não dispensa os conflitos internos,
pelo contrário, permite a expressão das múltiplas pulsões, tornando o querer manifestar-se das
outras pulsões em “vozes” de sua própria consciência. Se é esta complexa “sociedade”
pulsional que constitui os tipos superiores, a decadência, então, consiste na desagregação
dessa sociedade, na instauração, mesmo que em parte, do caos pulsional. Com essa ideia
concorda Onate ao afirmar que:
Décadence significa sobretudo retração na intensidade vital ou, na refinada
terminologia do filósofo, impotência à potência (Ohnmacht zur Macht),
determinando que, “onde, sob qualquer forma, a vontade de potência declina,
há também, toda vez, uma regressão fisiológica, uma décadence” (AC/AC §
17). No décadent predomina a contradição dos instintos, fruto da deficiência
no centro de gravidade responsável pela força organizadora; fica obstruído o
canal hierarquizador natural, impedindo assim que os instintos fundamentais
desfrutem da supremacia e tornando-os gradativamente voláteis, vazios,
ideais. O universo instintivo básico estreita-se, cedendo terreno para um
cabedal ilusório de noções e princípios, que se apresenta como instrumento
disciplinador do fluxo instintual, mas que, no fundo, é mero corolário do
decréscimo de potência, sua mais astuta cartada dissimulatória. (ONATE,
1996, p. 25).
269
Onate oferece alguns elementos a mais para a compreensão da decadência: a) a
desorganização da hierarquia pulsional; b) a diminuição da vontade de poder; c) a alteração na
estrutura valorativa; d) e aqui o mais relevante, a regressão fisiológica.
Pode-se afirmar que nos três primeiros itens há uma relação causal: a desorganização
da hierarquia pulsional (a) é o processo interno no qual as pulsões mais fortalecidas e com
força diretiva e organizadora são subjugadas por conjuntos numéricos maiores, todavia
individualmente mais fracos e, consequentemente, sem a capacidade organizadora e a
“vocação” para o domínio. Que não se espante quanto a isso, a subjugação do número maior
de pulsões enfraquecidas sobre aquelas fortalecidas, pois, como Nietzsche asseverou em
fragmento não publicado: “Nós desaprendemos, agora, a falar do saudável e do doente como
oposições: [a diferença VS] é de graus.” (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[119], p. 29).
Sendo a saúde e a doença uma questão de graus, esse grau é o da força das pulsões em
comando, logo, é plausível e aceitável que um número maior de pulsões enfraquecidas
subjuguem pulsões fortalecidas, mas que estão em menor número. Tais acontecimentos
gerariam uma queda na vontade de poder (b), pois sendo a vontade de poder a resultante do
conflito pulsional, e as pulsões enfraquecidas dominando, e sendo a castração e destruição da
diferença seu modo de domínio, é de se esperar que a vontade de poder também diminua, e,
por fim, a mudança nas estruturas valorativas (c) se constitua como novo modus operandi das
pulsões agora em comando.
Essa mudança valorativa assegura seu domínio sobre as demais pulsões, em constante
diminuição, e sobre o mundo externo das mais diversas formas. Mas em todas elas as pulsões,
agora em comando, deixam transparecer para o Eu e para a consciência uma nova tábua de
valores. Onate traz ainda outra importante informação na citação acima: a decadência gera, ou
está associada, a um tipo de regressão fisiológica, com o que concorda Müller-Lauter ao
afirmar que: “Nietzsche evidencia a falta de unidade orgânica, que deve remeter por fim à
décadence fisiológica” (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 18).
Müller-Lauter tratou, em linguagem um pouco mais cifrada, o mesmo problema: falar
que a falta de unidade orgânica gera decadência fisiológica pode parecer, à primeira vista,
redundante, pois o orgânico e o fisiológico assemelham-se, Nietzsche tomou ambos como
simultâneos e contíguos. Então, o que se tem é que um desarranjo orgânico, ou seja, pulsional,
remete, por fim, à decadência fisiológica, sendo o fisiológico duplamente significante, pois é
corporal/somático, mas também psíquico/psicológico.
270
Decadência, como Nietzsche a concebe, envolve uma carência de integração.
Decadência psicológica envolve uma falta de integração das pulsões ou
instintos que compõem o si. Enquanto Nietzsche claramente associa
decadência com fraqueza, ele também a acha [a decadência – VS]
instrumentalmente valiosa. Ele escreve em Ecce Homo que ele pode reavaliar
os valores só porque ele experimentou ambas: decadência e saúde. (MULLIN,
2000, p. 400).
A contribuição de Mullin é significativa ao clarear a ideia de que a decadência
psicológica concerne à integração das pulsões que constituem o si, si que representa a
totalidade daquilo que se é: a soma das pulsões e daquilo que é orgânico e possui relação de
simultaneidade com as pulsões. Mullin oferece outra contribuição que permitirá adentrar mais
profundamente no problema da educação no pensamento de Nietzsche e sua relação com a
decadência e ascendência.
Evocando citação da autobiografia de Nietzsche, a autora afirma que o filósofo
experimentou a decadência e a saúde, ou seja, viveu tanto o processo de decadência como
desagregação pulsional, como a ascendência, ou seja, retomada da saúde pulsional e de sua
organização hierárquica. Seria bastante simples admitir tal hipótese se não se esbarrasse com
um trecho de fragmento póstumo no qual o filósofo afirmou que: “O tipo permanece
constante: não se pode ‘desnaturar a natureza’.” (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p. 315).
Se o tipo não pode ser modificado, aparentemente todo o esforço educativo se perde; porém,
essa seria uma conclusão ligeira demais. É necessário antes compreender toda a discussão que
envolve o trecho citado.
Trata-se de um texto póstumo da primavera de 1888, um dos que Nietzsche intitulou
de “Anti-Darwin”, e não sem motivos, pois todo o texto se constitui em uma crítica ao
pensamento darwinista, baseada em dois pontos centrais: (1) a seleção natural e seu corolário;
(2) a preponderância do melhor adaptado, que na interpretação nietzscheana significava o
mais forte, promovendo por fim a evolução. É este o ponto central da objeção nietzscheana: a
evolução.
O filósofo de Zaratustra admitia modificações e mudanças nos seres humanos e nos
demais animais, já que Nietzsche não distinguia entre humanos e outras espécies. Todavia,
para Nietzsche, a ideia de evolução como Darwin havia proposto estava eivada de ideias
morais, principalmente a finalidade e a melhoria em um sentido que, para Nietzsche,
aproximava-se muito do melhoramento do homem tentado pela Igreja, tanto que no início do
271
texto o filósofo refere-se à possibilidade de domesticar o homem, ou seja, amansá-lo, torná-lo
pequeno, “melhoramento” bastante criticado por Nietzsche.
Para Nietzsche, as transformações em uma espécie não tendem a um fim específico,
mas acontecem por acaso, e o acaso age de forma semelhante tanto para os tipos superiores
quanto para os tipos inferiores: “Nós, ao contrário, nos certificamos que, na luta pela vida, o
acaso favorece tanto aos fracos quanto aos fortes”. (NIETZSCHE, KSA XIII, 14[133], p.
315). Se o acaso, então, favorece aos fortes e aos fracos da mesma maneira, a seleção natural
não altera os tipos, por isso, Nietzsche pôde afirmar que o tipo permanece, e mais, não se
pode perder de vista que a distinção dos tipos era quantitativa e não qualitativa.
Verifica-se, então, claramente, que para Nietzsche a mudança tipológica é uma
realidade e que está na conta do acúmulo e perda de força no domínio pulsional, e tudo o mais
decorre daí. Todavia, se a decadência é claramente possível, assim como as mudanças
tipológicas que a envolvem, resta saber se o inverso também é possível e como ele acontece.
Em sua obra, Nietzsche dá alguns exemplos de pessoas que degeneraram, é o caso de
Napoleão e também de Pascal, mas há poucos exemplos, ou talvez nenhum caso, de
ascendência tipológica; o que se tem bem documentado na obra do filósofo é apenas o próprio
caso, ao qual o filósofo se referiu nos seguintes termos no prefácio de O caso Wagner: “Tanto
quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu compreendi
isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.” (NIETZSCHE, CW, p. 9).
Confrontadas essas informações com aquelas da introdução de A gaia ciência, onde o
filósofo fala da recuperação de sua saúde, é possível perceber que Nietzsche, após um período
de decadência, restabeleceu-se, teve uma convalescença e ascendeu novamente ao tipo ao
qual ele achava que pertencia, o tipo superior. Quando Nietzsche afirmou que o filósofo nele
se defendeu, estava claramente se referindo às pulsões que falam eu, ou seja, em sua
decadência, uma pulsão ou conjunto de pulsões fortalecidas assumiu o controle do todo,
impedindo que a decadência fosse maior.
Essas pulsões fortalecidas são as que organizam e que conseguem suportar sobre si, e
sua consciência, o peso das demais. A ideia de curar-se a si mesmo foi retomada no Ecce
Homo, porém, com um agravante: “Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a
condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio.” (NIETZSCHE, EH,
p. 25).
272
O que quer dizer ser sadio no fundo? Esse é um problema fundamental para a
compreensão do outro movimento, o movimento contrário ao da decadência, a ascendência, e
também os seus limites. A esse trecho da autobiografia de Nietzsche faz eco outro texto, mais
intenso na agudeza do problema da transformação humana, mais intenso no problema da
mudança tipológica e, consequentemente, na possibilidade da educação como diferenciação
entre condição de nascimento e condição de morte.
Hoje, onde qualquer “o homem deve ser assim e assim” já nos põe uma
pequena ironia na boca, onde nós absolutamente asseguramos que alguém,
apesar de tudo, apenas vem a ser aquilo que é (apesar de tudo: quer dizer
educação, instrução, meio, acidentes e acasos). (NIETZSCHE, KSA XIII,
14[113], p. 290).
Ao contrário da decadência, que é uma possibilidade constante, ilimitada e sempre à
espreita, a ascendência tem um limite: o limite no qual a multiplicidade pulsional não foi
totalmente destruída, ou seja, é possível convalescer e ascender a um tipo superior desde que
as demais pulsões não tenham sido totalmente destruídas, acontecimento que, enquanto
possibilidade, pareceu plausível a Nietzsche, sem que tal depauperamento final das pulsões
representasse a morte. Todavia, embora a especulação racional mostre essa possibilidade, em
uma espécie de niilismo ascético, o filósofo não deu exemplos disso; pelo contrário, na
terceira dissertação de A genealogia da moral, quando falou do sacerdote como o tipo ideal
do ascetismo, o que Nietzsche tentou mostrar foi justamente o esforço desse condutor de
rebanho (o sacerdote ascético) para impedir o total aniquilamento pulsional no interior de um
indivíduo.
Desse modo, enquanto houver multiplicidade pulsional, mesmo que em “latência”, é
possível haver convalescença e ascendência, por meio de um atiçamento das lutas internas,
momento no qual as pulsões enfraquecidas, que no início estavam em maior número, mas
foram se destruindo, perdem seu lugar para as pulsões fortalecidas e com o poder para
organizar o todo. É o que se pode depreender de outro fragmento não publicado: |Nós não
acreditamos que um ser humano se torne outro, se ele já não o é: ou seja, se ele não é, como
muitas vezes acontece, uma pluralidade de pessoas, ou ao menos de bases para pessoas.|
(NIETZSCHE, KSA XIII, 14[151], p. 332).
273
Ou seja, a ascendência depende da multiplicidade pulsional ou, ao menos, como diz o
filósofo, de pulsões que possam simular vestígios de personalidade141. Se o duplo movimento
de ascensão e decadência pulsional é possível, notar-se-á que ambos criam ou ensejam
vertentes de educação e de formações culturais distintas: uma cultura superior e uma cultura
inferior. Se o problema da organização pulsional de cada pessoa se sobressai como um
problema de constituição interna, não é possível ignorar as influências externas que se abatem
sobre cada pessoa no que diz respeito à sua organização pulsional. O sistema educacional para
Nietzsche era acima de tudo um esforço coletivo e social de modelagem pulsional. Resta
saber que tipo de modelo pulsional se busca estabelecer com esses sistemas educacionais e os
limites deles na realização daquilo que para Nietzsche realmente era educação: diferenciação
entre condição de nascimento e condição de morte.
Conclusão
É certo que Nietzsche pode ser pensado como um filósofo da educação, para isso
porém é fundamental que se encare sua obra como um todo e se esteja disposto a pensar que o
pensamento educacional do filósofo extrapola suas obras da juventude, enraizando-se, em
especial nas obras da maturidade e do período intermediário.
Só assim se poderá compreender a teoria nietzscheana da constituição da subjetividade
humana, para, a partir dela perceber a educação como um processo radical e total de
transformação da intimidade humana.
141
Aqui se usa a palavra personalidade na tentativa de significar o conjunto de hábitos e características que
fazem com que um membro da espécie humana pareça único aos demais membros dessa espécie. De resto, em
outros momentos do texto são usadas palavras como pessoa, indivíduo, gente etc., com o intuito de significar o si
que um membro da espécie humana é, e como os outros membros dessa espécie o reconhecem e distinguem, e
como ele mesmo, ou melhor, o Eu de seu si apresenta-se para si mesmo.
274
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276
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: A ATUALIDADE DO ANTIGO
Filipi Vieira Amorim
Mauro Grün
INTRODUÇÃO
O ideal de formação/educação que os gregos desenvolveram em seu tempo (Idade
Antiga) perpassa o contexto social da época e se mostra atual em suas propostas e objetivos à
luz da Paideia. Destarte, em tempos conflituosos entre pensar e agir, entre prática pedagógica
e teoria educacional, entre adesões pragmáticas por parte de profissionais da educação e pela
mercantilização da própria educação em nome dos ideais capitalistas, é relevante a proposta
de uma reflexão histórica para a retomada da perspectiva indissociável entre Filosofia e
Pedagogia, entre aplicação técnica-científica e ética.
O objetivo deste artigo é descrever os pontos de aplicabilidade – em relação ao modelo
de educação contemporâneo – desse ideal antigo, mas de abrangência e alcance tão atuais
quanto necessários. É com os gregos que nasce o logos, a razão, e a partir disso seria legada à
cultura ocidental toda uma tradição capaz de se manter influente por milênios.
A justificativa para este ensaio se dá no que corresponde à filosofia e à educação
enquanto resgate de uma proposta firmada por ideais que não perderam a validade, mas que
foram ignorados pelo surgimento da modernidade na incansável busca pelo novum. O pensar
e o agir dos gregos estão associados a uma opção, um modo de ser e estar no mundo. O logos
grego, enquanto caminho para a sabedoria, se mantém distante de estar relacionado a
propostas abstratas, ou, então, ao fato de transmitir e adquirir conhecimento, simples e
unicamente. Mais do que tudo, para os gregos o autoconhecimento individual e a
universalidade do bem e da justiça são os rumos da sociedade. Além disso, por conceberem a
polis como uma extensão da família, a formação ética e política eram vistas como a efetivação
dessa aspiração.
A discussão teórico-metodológica de nossa abordagem está fundamentada a partir da
Hermenêutica Filosófica e embasada na Paideia grega. A hermenêutica filosófica será a base
para a elevação do real (do atual) ao conceito; sendo assim, o esforço fenomenológico vai ao
encontro da compreensão sobre a realidade e permite elaborar uma orientação para a prática
educacional contemporânea. Com isso, apresentamos neste ensaio uma constatação feita
277
através da conceitualização da realidade, deixada surgir em sua integralidade, e de um retorno
aos clássicos gregos e seus ideais de universalidade fundados no belo, no justo e no
verdadeiro.
O entrelaçamento de história e educação, filosofia e pedagogia, hermenêutica e
fenomenologia aponta rumos no longo caminho da compreensão de nós mesmos e do mundo.
Os resultados e a discussão final, apresentados como conclusões provisórias, vão ao encontro
de uma proposta de educação enquanto formação ética e política que considera o pensar e agir
indissociáveis para um caminho salutar à filosofia da educação na contemporaneidade.
PAIDEIA: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
Existe uma clara ambigüidade estabelecida no ato de falar sobre Educação. Por um
lado é simples, se considerarmos a presença da Educação em todos os nossos atos e interrelações sociais cotidianas. Porém, sua complexidade se apresenta à medida que precisamos
elevar o real, nossas vivências e experiências, ao conceito, como um exercício
fenomenológico que busca a essência. Tal exercício não se preocupa com o produto, mas com
o processo de formação/Educação historicamente construído.
Goergen (2009, p. 25), ao contextualizar historicamente a Educação a apresenta como
“uma necessidade comum a todos os seres humanos atendida segundo as crenças, os valores,
os ideais e as condições materiais de cada circunstância”. Por isso, esse processo ao qual
denominamos formação não é linear, não é padrão e “não conhece verbos regulares”
(MENDES, 1998).
Aqui, abordaremos a questão da aplicabilidade dos ideais gregos na Educação
Contemporânea, por isso, mesmo correndo o risco de elaborarmos uma abordagem
reducionista e fragmentada, efetuaremos um recorte histórico. Seria uma falha fechar a
história da Paideia às contribuições feitas por Jaeger (2001), bem como encerrá-las na
filosofia de Platão e Aristóteles, como nos alerta Paviani (2009). Assim, com o intuito de
evitar esse “fechamento”, fixaremos um olhar hermenêutico nessa tarefa e isso proporcionará
o reconhecimento do que está perdido, daquilo que é estranho, estrangeiro à nossa
experiência, para torná-lo conhecido, compreensível e, talvez, aplicável. Desse modo, como
uma espécie de nota de esclarecimento ao leitor, não temos a pretensão de escrever um tratado
278
revolucionário à Filosofia da Educação. Este ensaio se estabiliza e tem como cerne um
diálogo aporético – como em O Laques142 (PLATÃO, 1966).
A palavra Paideia não se permite elevar a um único sentido, a uma determinação
fechada, pois é resistente às formulações conceituais abstratas. Jaeger (2001) assemelha o
conceito de Paideia a outros conceitos difíceis de definir, como filosofia e cultura. Mas,
assegura que o termo Paideia é o que define exatamente o que significa a história, os ideais e
o percurso da educação grega.
O surgimento da Paideia se dá com base na universalidade do bem, do justo, do belo,
e é assim que se desenvolvem os ideais de formação do homem grego. Salientamos o fato de
que a priori o surgimento da Paideia reflete unicamente a preocupação com a formação dos
meninos, mas, a posteriori, com o desenvolvimento de seus princípios, a Paideia adquiriu
particularidade histórica e singularidade ímpar, as quais junto à influência da cultura grega se
disseminaram pelo ocidente.
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), um dos mais importantes filósofos do século XX,
assegura que um retorno aos gregos é para todos nós, ocidentais, uma espécie de encontro
com nós mesmos (GADAMER, 2000a; GADAMER, 2001). Gadamer se refere ao legado
grego no modo como elaboraram a Filosofia, diferente do modo como a empregamos na
atualidade, mas de forma mais ampla. A amplitude da Filosofia Grega diz respeito às
preocupações compreendidas pela totalidade teórica, e com isso podemos incluir também a
totalidade científica, a qual, sem dúvidas, foi responsável pelo impulso da civilização
moderna (GADAMER, 2000a). Assim se justifica esse encontro entre nós modernos, e ao
mesmo tempo gregos, quando nos consideramos processo que resulta da cultura de formação
grega antiga.
Como sinalizamos anteriormente sobre a necessidade de um recorte histórico neste
ensaio, apontaremos os ideais propostos por Sócrates143 (469-399 a.C.) e narrados por
142
“O Laques” é um diálogo entre Sócrates, Nícias e Laques que, convidados por Lisímaco e Melésios a assistir
uma aula de esgrima, são indagados por Sócrates a emitirem um parecer sobre a importância da prática da
esgrima na educação dos jovens. No decorrer da conversa os interlocutores de Sócrates são convidados a discutir
sobre o conceito de “coragem”. Mesmo redefinindo alguns conceitos e discutindo sobre questões de alcances
atuais, o diálogo termina sem que se chegue a uma conclusão definitiva, mas, antes disso, temporária.
143
Sócrates é considerado o filósofo mais influente da história e da cultura ocidental. O que temos e sabemos
sobre Sócrates é graças a algumas obras escritas que nos foram deixadas por seus discípulos, as quais chegaram
até nosso tempo. Entre os discípulos de Sócrates destacam-se Platão, Antístenes, Euclides de Megara, Aristipo
de Cirene, Isócrates (HADOT, 1999). Cabe registrar que Sócrates não nos deixou nada escrito.
279
Platão144 (427-347 a.C.), seu discípulo. Dono de uma espécie de “não-saber”, Sócrates era
visto pelos seus concidadãos como ser sábio e irônico ao mesmo tempo. Hadot (1999),
quando trata da filosofia antiga, narra esse “não-saber” socrático e aborda as estratégias de
Educação, ou ainda, de formação, propostas por Sócrates. De maneira “desinteressada”,
Sócrates se aproximava de seus interlocutores nas ruas, nas praças, em suas casas e, entre
outros lugares, os indagava sobre seus ofícios, especialidades, profissões e opiniões gerais. A
estratégia de Sócrates sempre fora o diálogo e no decorrer desse diálogo fazia com que seus
interlocutores fossem se auto-descobrindo, desconstruindo certezas e verdades e
(re)construindo outras. Sócrates, ao questionar seus interlocutores, fazia com que algumas
compreensões e entendimentos, embasados num conhecimento secular, fossem fragilizados e
reformulados ao mesmo tempo.
A prioridade em Sócrates é fazer com que o interlocutor encontre em si suas próprias
verdades145. Podemos acrescentar à figura de Sócrates a colocação feita por Jaeger (2001).
Para o autor, Sócrates concebe o diálogo como apresentação primordial do pensar filosófico e
percurso único capaz de nos levar ao entendimento e compreensão das nossas relações com os
outros. Sem se apresentar como “dono da verdade”, Sócrates também é um aprendiz, ao passo
em que seu interlocutor vai elaborando suas próprias verdades. Neste ponto, comungamos
com a crença de Gadamer (2000b, p. 10): “creio que só se pode aprender através da
conversação”. O autor, no mesmo ensaio referenciado, também indica que “educação é
educar-se”, e “formação é formar-se”.
A Paideia socrática se apresenta como pesquisa e problematização, pois Sócrates se
mantém em busca da libertação individual e do amadurecimento intelectual de seus
interlocutores que, por sua vez, acolhem interiormente a voz do mestre e se fazem mestres de
si mesmo (CAMBI, 1999). Os alcances pedagógicos dessa prática da dialética socrática estão
sempre voltados ao coletivo, ou seja, mesmo efetuada individualmente é a universalidade que
se apresenta como essência.
Hadot (1999) faz menção à obra O Banquete, de Platão, dizendo que a postura de
144
Platão foi quem nos deixou, no formato de textos, uma das maiores riquezas da cultura grega. Seus textos
imortalizaram a figura de Sócrates e os ideais propostos pelo filósofo.
145
Apenas como registro, em O mundo de Sofia encontramos o seguinte: “Dizem que a mãe de Sócrates era
parteira, e o próprio Sócrates costumava comparar a atividade que exercia como a de uma parteira. Não é a
parteira que dá à luz ao bebê. Ela só fica por perto para ajudar durante o parto. Sócrates achava, portanto, que sua
tarefa era ajudar as pessoas a ‘parir’ uma opinião própria, mais acertada, pois o verdadeiro conhecimento tem de
vir de dentro e não pode ser obtido ‘espremendo-se’ os outros. Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de
revelar o verdadeiro discernimento” (GAARDER, 1995, p. 80).
280
Sócrates, seu modo de ser e estar no mundo, mostra-nos que ele (Sócrates) é o homem que
procura aproximar-se dos outros e fazer os outros se aproximarem dele, usando como
elemento mediador a busca pela sabedoria. Os ideais e as atitudes de Sócrates nos servem,
aqui, como exemplo de ser ético e político, que apresenta ideais salutares à sua época e dignos
de uma validação contemporânea.
Em Sócrates, onde pensar e agir estão unidos, visualizamos como princípio, ou ainda,
como justificativa para a (re)ligação entre filosofia e educação, esse exercício de elevar
crítica, incansável e inesgotavelmente o real, nossas vivências, nosso cotidiano, ao conceito.
A partir do momento em que adquirimos, ou então, (re)tomamos essa perspectiva da qual
somos herdeiros, estaremos materializando a articulação do diálogo ético; o que Flickinger
(2010, p. 92) chama de uma recuperação da “ética dialética de Platão, articulada no diálogo
socrático”.
Ser e estar no mundo de maneira “ética dialética” articulada ao modo do “diálogo
socrático” permite que outros rumos se mostrem possíveis na formação contemporânea. O
pensar e agir insolúveis e a dialética, na perspectiva em que elaboramos essa abordagem, não
permitiria a manutenção e a busca por verdades e certezas absolutas. O diálogo por essa via
não se sustenta enquanto condição definida para se afirmar um “saber verdadeiro” ou alcançar
a “verdade única”. Não há um sujeito que detém a verdade e outro(s) que a(s) desconhece(m).
O que acontece de fato é que as verdades não estariam de antemão presentes, ou disponíveis a
um ou outro locutor, as verdades são construídas com o fim último de fundamentar os
discursos, sem que sejam consideradas constantes e imutáveis.
A MODERNIDADE146 NEGLIGENCIA A PAIDEIA
Na contramão dessa exposição que nos remete aos gregos, sobretudo, mas não
somente, a Sócrates e a Paideia, a Idade Moderna em sua ascensão, por volta dos anos 1600,
passa a questionar a busca pela “verdade” onde o sujeito carrega consigo seus preconceitos,
suas vivências e experiências, materializadas nas socializações do “diálogo vivo”. Esse
“diálogo vivo” é colocado em xeque porque o pressuposto elaborado pela racionalidade
146
Não temos o objetivo de discutir se vivemos em um período chamado “Moderno” ou “Pós-Moderno”.
Destarte, afirmamos nossa crença de que a modernidade é um “período”, ainda, inacabado, mas não
desconsideramos – como disse Carvalho (2006, p. 308) – “as opções epistemológicas que subjazem às categorias
de pós-modernidade e alta modernidade”.
281
“unicamente” científica de alguns autores147 – Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei
(1564-1642), René Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727), entre outros – que
integram o movimento que se soma a legitimação da modernidade, é de que seria possível
chegar a uma verdade última, inquestionável, universal e imutável.
Como fizemos na contextualização do título anterior – PAIDEIA: FILOSOFIA E
EDUCAÇÃO – aqui também anunciamos a necessidade de um recorte. Para tanto, vamos nos
ater a algumas considerações a respeito da proposta elaborada por René Descartes em seus
ensaios Discurso do Método e Meditações.
Descartes estudou em La Fleche, Paris, em um dos melhores colégios da Europa a sua
época. Em sua formação inicial estudou poesia, retórica, lógica e literatura, mas afirmou ter
recebido nesse período várias informações falsas tidas por verdadeiras (DESCARTES, 1983).
Após um contato com a geometria e a matemática, Descartes passou a considerar “uma
enorme perda de tempo” sua formação inicial (GRÜN, 2005, p. 148); à medida que o
conhecimento das áreas de estudo anteriores (retórica, lógica, poesia e literatura) fazia com
que seu saber e pensar continuassem atracados em dúvidas. Concluindo, assim, que na
matemática e na geometria era impossível a manutenção de questionamentos incertos.
Em Meditações, Descartes (1983, p. 85) descreve a necessidade de formular novos
fundamentos para que fosse possível “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”,
ou seja, verdades incontestáveis, imutáveis e universais. Esses novos fundamentos seriam a
base para que a filosofia fosse reconhecida como uma teoria da ciência, isto é, reconhecida
como ciência. Como destaca Rorty (2001, p. 43) essa influência da Ciência Moderna divide o
pensamento filosófico do século XIX em duas “correntes”: os techies e os fuzzies. Os techies
são filósofos amigos da técnica, objetivos, mestres da filosofia analítica herdeira de Descartes
que afirmam a filosofia como ciência, pautada na lógica e na matemática. Já os fuzzies
carecem de objetividade e, como se diz segundo o autor na Califórnia, são uns “especuladores
alucinados”. Com isso podemos ver que a Ciência Moderna, ainda hoje, impera nas
discussões teóricas e influencia com rigor o pensamento filosófico, a filosofia, a formação e
as teorias da Educação, tratando com demérito o que não se compatibiliza ao método rigoroso
do racionalismo moderno.
A visão de que as verdades eram provisórias e que cada sujeito as descobria de
147
Cambi denomina os anos 1600 como o tempo da nova ciência e cita os autores “entre travessões” como
personagens marcantes e fortemente influentes nesse período. Ver: CAMBI, Franco. História da pedagogia.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999, p. 300-304.
282
maneira particular passa a ser considerada ilusão. Descartes (1998), no Discurso do Método,
elabora um modelo, um “método infalível” para a obtenção da verdade. Diante de suas
contribuições, o diálogo vivo é reprimido e abandonado, agora o que vale é o cogito, idéias
claras e objetivas organizadas em um modelo analítico.
O questionamento socrático, que considerava o ser como um todo, carregado de
paixões, perturbações, preconceitos e paixões, em seu logos dialógico na busca incansável
pela sabedoria, dá lugar ao racionalismo cartesiano. Ao encontro da colocação de Prestes
(1996, p. 18), o ideal cartesiano nada mais é que a busca pela comprovação, demonstrada pela
matemática “através de unidades intelectualmente previsíveis, claras, impossíveis de serem
recusadas”.
Todo esse movimento, essa síntese cartesiana, serve-nos como marco da
“objetificação” das ciências, dos sujeitos e da coletividade na busca pela legitimação do
conhecimento humano. Essa ruptura sinaliza também o fim da “influência da postura humana
na configuração do saber” (ALMEIDA; FLICKINGER; ROHDEN; 2000, p. 07). Também
outras formas de saber humano que não se enquadram ao conceito de verdade alcançado por
um método, testado e comprovado, são desconsideradas no mercado do valor científico e nada
valem. Ainda que essas formas de saber humano sejam necessárias àquela ou a esta
comunidade, que sejam salutares nos programas educacionais, necessárias à vida, à formação
dos sujeitos, de nada valem, continuam sendo consideradas suspeitas e desprovidas de valor
científico.
CONCLUSÕES PROVISÓRIAS
Nossas conclusões se apresentam aqui de maneira provisória porque compartilhamos
da busca pela sabedoria presente na aporia socrática. E justificamos amparados pelas
considerações de Chauí (2002), onde a autora revela que a aporia socrática representa a
filosofia, philosophis, que nada mais é do que a amizade pela sabedoria, a qual está longe da
posse e do domínio, como nos apresenta metodicamente Descartes.
Apresentamos aos leitores dois períodos distintos e com ideais incongruentes
referentes à Educação. De um lado situamos os gregos, a Idade Antiga, e de outro os
modernos, a Idade Moderna. Consideramos os dois períodos como influentes até os dias de
283
hoje em todos os setores da sociedade. O retorno aos gregos foi fundamentado com as
citações de Gadamer (GADAMER, 2000a; GADAMER, 2001), que julga ser esse retorno um
encontro com nós mesmos. A modernidade se mostra influente nos nossos atos cotidianos,
seja na economia, na política, na cultura, na educação, no convívio com os outros, etc.,
mesmo que existam algumas correntes filosóficas e epistemológicas que defendem estarmos
vivendo em uma sociedade “pós-moderna”.
A investigação científica e filosófica dos gregos se difere do modelo proposto pela
Idade Moderna com Descartes. Quando Descartes desenvolve e se apropria de um método,
impreterivelmente, esse mesmo método determina o rumo da investigação e a postura do
sujeito para com os objetos. Com Sócrates e os gregos os próprios objetos é que dão rumo e
sentido à investigação. Podemos nos apropriar do que diz Grün (2005), fazendo essa
comparação entre Sócrates e Descartes, para reforçar nosso entendimento e explicação do
comparativo. Para Grün, na filosofia e ciência grega o percurso da investigação é dado pelo
objeto, e na ciência moderna o objeto é determinado pelo método.
Talvez a pergunta que o leitor está fazendo agora seja: a Paideia e o retorno aos
gregos são um caminho salutar para pensarmos a Filosofia da Educação na
contemporaneidade? Se acontecer este questionamento, consideramo-nos satisfeitos, pois
Gadamer (2002) acredita que no emergir da pergunta a experiência a acompanha. Se
começamos a nos questionar isso significa que estamos abertos a novas vivências e essa
“abertura” é a essência da pergunta. Assim como o fez Sócrates a valorização do ato de
perguntar, de questionar, aponta novos rumos para a Filosofia da Educação.
Ora, se existir a pergunta o caminho para o “diálogo vivo” estará mais próximo,
fortalecendo a idéia de que a “linguagem é (...) um dos mais convincentes fenômenos da nãoobjetividade” (GADAMER, 2000, p. 58). Se a linguagem não caracteriza a “objetificação”
parece ser esse o caminho salutar, atual e necessário, tanto à Filosofia da Educação quanto à
sociedade como um todo.
284
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2001.
A autonomia dO EDUCANDO NA PAIDEIA GREGA
Armando Lourenço Filho
Samuel Mendonça
(Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Brasil
Resumo
Procuramos, neste trabalho, compreender como era tratada a questão da autonomia dos
educandos na Grécia Clássica e, com isso, ressaltar a importância da retomada das concepções
clássicas da história do pensamento educacional para a formação docente. Para isso, partimos
do estudo das três principais referências educacionais do período: a Paideia poética, a Paideia
287
sofística e a Paideia socrático-platônica, procurando descobrir como era pensada a questão da
autonomia discente. Assim, do ponto de vista formal, desenvolvemos nossa investigação
partindo da seguinte pergunta: como a questão da autonomia do educando foi discutida na
Paideia grega do período clássico? Consideramos a autonomia discente como a necessidade
de sua emancipação intelectual, relacionada ao desenvolvimento de um pensamento crítico e
ao exercício prático decorrente dessa racionalidade, ou seja, a vida cotidiana. Nesse sentido,
pensamos esta característica como fundamental para o desenvolvimento integral do indivíduo,
tanto no que se refere aos aspectos educacionais, enquanto elemento que favorece a
aprendizagem e potencializa o seu aproveitamento escolar, quanto aos aspectos relacionados
às atitudes e práticas sociais, na direção da sua formação para a cidadania. Como resultados,
percebemos a dificuldade do desenvolvimento da autonomia do educando na Paideia poética,
devido ao aprisionamento desencadeado pela força do pensamento mítico daquele contexto,
entretanto, em contraposição, observamos a crítica platônica àquela noção de verdade
absoluta, estimulando o seu interlocutor ao questionamento e à racionalidade. Percebemos,
com isso, na concepção platônica, a importância da educação como condição para mudança
na vida do homem. A educação grega, nos moldes platônicos, não diz respeito a uma
educação instrumental e utilitarista, como no modelo sofista; antes, significa a formação do
caráter do homem, com isso, o desenvolvimento da autonomia é a condição para o
aperfeiçoamento desta disposição humana na busca da verdade e da virtude. Percebemos
também que os diálogos de Sócrates demonstram a sua atitude como educador, jamais
oferecendo respostas prontas aos seus educandos, mas estimulando-os a pensar, permitindo
que encontrem por si mesmos as melhores soluções, tornando-os cada vez mais conscientes.
Com isso nos questionamos sobre como a ação pedagógica de um professor poderia interferir
na formação de seus alunos, tornando-os conscientes e críticos.
Palavras-chave: Autonomia; Paideia; Poética; Sofística; Platão.
Introdução
A autonomia é uma palavra de origem grega e significa uma norma ou uma lei
pessoal, ou seja, o governo de si mesmo. Etimologicamente, é definida a partir dos termos
autós - αὐτος (próprio, de si mesmo) e nomos - νόμος (lei, regra, norma), e situa-se em
oposição à palavra heteronomia: héteros - ἕτερος (outro) e nomos - νόμος (lei, regra); ou seja,
288
ser governado pelas regras do outro. A acepção comum do termo autonomia, segundo Ferreira
(2010), é autogoverno, ou, o ato de governar-se a si mesmo de acordo com as próprias leis, o
que, para o caso específico da educação, pode se remeter diretamente ao ato de aprender a
pensar e a agir por conta própria, ou seja, à autonomia intelectual dos educandos.
O presente texto propõe como tema central a discussão acerca da autonomia dos
educandos, estabelecendo como contexto histórico a Grécia do período clássico, na esfera de
algumas das principais concepções educacionais ali desenvolvidas. Compreendemos o
conceito de autonomia discente pela necessidade de sua emancipação intelectual, relacionada
ainda ao desenvolvimento de um pensamento crítico e ao exercício prático decorrente dessa
racionalidade, ou seja, a vida cotidiana. Independentemente da época ou período histórico, o
desenvolvimento desta característica é, em nossa perspectiva, fundamental para o
desenvolvimento integral do indivíduo, tanto no que se refere aos aspectos educacionais,
enquanto elemento que favorece a aprendizagem e potencializa o seu aproveitamento escolar,
quanto aos aspectos relacionados às atitudes e práticas sociais, na direção da sua formação
para a cidadania.
Nesse sentido, destacamos que a discussão sobre a questão da autonomia discente é
frequentemente pauta das discussões educacionais, justamente porque é compreendida como
elemento fundamental para o desenvolvimento acadêmico e social do educando,
influenciando, assim, tanto as situações de ensino e aprendizagem como a sua vida pessoal,
como cidadão. Para exemplificar, destacamos que o inciso III, do Artigo 35, da Seção IV, do
Capítulo 2 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, define como
finalidade do Ensino Médio: “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo
a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”
(BRASIL, 2010, p. 29).
Acreditamos que, quando o educando se envolve de forma espontânea e consciente na
sua própria formação, os resultados de sua aprendizagem são efetivos, permitindo também o
exercício e o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. Assim, pensamos que os efeitos
desse processo venham a repercutir tanto no nível acadêmico quanto social, não
permanecendo circunscrito às salas de aula, mas, alargando-se e influenciando também todas
as outras áreas de suas vidas, contribuindo, portanto, para sua formação como cidadão.
Assumimos ainda como pressuposto inicial o fato de que as diferentes abordagens
educacionais teórico-metodológicas, com suas características específicas relacionadas a um
289
dado contexto histórico, social e cultural, possam contribuir para favorecer ou inibir o
desenvolvimento da autonomia dos educandos. Desta forma, afirmamos que alguns tipos de
abordagens pedagógicas teriam características que, ao menos aparentemente, incentivariam e
favoreceriam o desenvolvimento da autonomia dos educandos, enquanto outras apresentariam
uma tendência à inibição do caráter autônomo e criativo, por conta, talvez, de uma postura,
em geral, reprodutivista e acrítica, demonstrando, por exemplo, uma concepção mais
tradicional e fechada, centrada na forma, no conteúdo e no professor, sendo por isso, menos
disposta às intervenções ou participações dos educandos.
Entretanto, acreditamos também existir a possibilidade de que este último paradigma
educacional, mais tradicional, possa contribuir, mesmo que indiretamente, para o surgimento
dessa autonomia, não por meio do método, mas em contraposição a ele. Não por sua postura
filosófica ou política, mas numa espécie de reação individual e particular contra elas, em que
o sujeito não vê outra saída, senão romper com o sistema ou, em alusão à alegoria de Platão, a
“sair da caverna”, ou seja, emancipar-se intelectualmente e procurar desenvolver como forma
de resistência e de reação um comportamento crítico e autônomo.
Procuramos, desta maneira, por meio deste trabalho compreender como era tratada a
questão da autonomia dos educandos na Grécia Clássica e, com isso, ressaltar a importância
da retomada das concepções clássicas da história do pensamento educacional para a formação
docente, sobretudo daqueles que se preocupam com o desenvolvimento de seus educandos e,
por consequência, com o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. Para isso, partimos
do estudo das concepções pedagógicas de dois dos três principais referenciais educacionais do
período Clássico da Grécia: a Paideia poética, a Paideia sofística148 e a Paideia socráticoplatônica, procurando encontrar pistas sobre como era pensada a questão da autonomia
discente naquele momento da história educacional da sociedade grega. Assim, do ponto de
vista formal, desenvolvemos nossa investigação a partir da seguinte pergunta: como a questão
da autonomia do educando foi discutida na Paideia grega do período clássico?
1. A educação na Grécia Clássica: Paideia
Cronologicamente, a história da Grécia pode ser organizada em cinco períodos
distintos: Período Micênico, que vai do século XV ao século XIII a.C., a Idade das Trevas,
148
Por uma questão de limite deste texto, em decorrência das regras do Congresso, suprimimos a discussão da
Paideia sofística versus Paideia socrático-platônica.
290
entre os séculos XIII e IX a.C., o Período Arcaico, entre os séculos VIII e VI a.C., Período
Clássico, compreendido entre os séculos V e IV a.C. e, por fim o Período Helenístico, que vai
do ano de 338 a.C. com a conquista da Grécia por Filipe II da Macedônia até o ano de 146
a.C. quando o império Macedônico foi definitivamente anexado por Roma. (JAEGER, 1994,
HAVELOCK,1996, RODRIGO, 2006).
No período da Grécia Clássica foi elaborado o projeto educacional mais avançado e
audacioso da Antiguidade (JAEGER, 1994). Este projeto visava a construir um tipo de
homem, segundo o qual seria possível pensar em uma configuração social diferenciada,
desenvolvido exclusivamente em função da polis. O surgimento das cidades-estados deu-se
entre o final do período Arcaico e o início do período Clássico, configurando-se como fator
essencial para o desenvolvimento dessa nova concepção de indivíduo e, por conseguinte de
sociedade. Segundo Rodrigo (2006, p. 527), “o quadro social e político que se instaura
posteriormente no período clássico, inclusive com o advento da polis, produz modificações
substanciais em relação à situação anterior”. Nesse sentido, Jaeger (1994, p. 106) afirma que
“é na estrutura social da vida na polis que a cultura grega atinge pela primeira vez a forma
clássica”, a polis é assim, considerada um marco para a história da formação grega, pois,
somente esse tipo de estrutura social e política possibilita o desenvolvimento de todos os
aspectos espirituais e humanos abarcados pela Paideia.
O conceito de Paideia, de acordo com Gadotti (2002, p. 30), é o de “uma educação
integral, que consistia na integração entre a cultura da sociedade (...) uma pedagogia da
eficiência individual e, concomitantemente, da liberdade e da convivência social e política”,
nesse sentido, destaca que, de forma integral, essa educação cuidava do desenvolvimento do
corpo, da mente e da moral do homem grego, associando-os, contudo, aos diversos aspectos
da vida social da comunidade, sendo, portanto, indispensável para a composição da estrutura
global da sociedade grega. Percebemos, com isso, a grande importância que é conferida à
coletividade nesse modelo educacional, de maneira que a formação humana assumia
notadamente, como elemento norteador, o aspecto social do indivíduo, buscando prepará-lo
para assumir o seu papel de cidadão, constituído no interior da polis.
Jaeger (1994) distingue em seu estudo as três concepções de Paideia que coexistiram
no Período Clássico: a poética, a sofística e a socrático-platônica. A Paideia poética é a forma
mais antiga de educação do povo grego, século VII a.C., narrando acontecimentos épicos da
história grega ainda mais remotos, supostamente ocorridos por volta do século XII a.C. A
291
Paideia sofística, por sua vez é o resultado da demanda provocada pela nova configuração
social e política instituída com o advento das cidades-estados, a partir do final do período
Arcaico, século VI a.C. e, a Paideia socrático-platônica, teve seu ápice no século IV a.C. e,
refere-se ao pensamento filosófico educacional de Platão, desenvolvido sobretudo a partir da
interlocução com as outras duas concepções; ora em contraposição a elas, ora como forma de
complementação ou aperfeiçoamento dos modelos anteriores.
2. A Paideia poética e a crítica de Platão a essa concepção
A primeira conformação da Paideia grega originou-se a partir das narrações poéticas,
em que se destacam principalmente os textos da Ilíada e da Odisséia, de autoria atribuída a
Homero. Homero, personificando, dessa forma, os poetas educadores gregos, utilizando-se
das propriedades artísticas e peculiares da poesia, atrai a atenção das pessoas e faz reviver, por
meio de suas narrativas os momentos gloriosos da história da civilização grega, contando as
façanhas dos seus deuses e heróis, de maneira a despertar em seus ouvintes tanto um
sentimento de unidade nacional quanto o desejo de querer seguir seus exemplos, imitando-os,
configurando dessa forma um princípio formativo baseado em figuras épicas de grande
destaque entre toda a nação. Essa modalidade da formação educacional grega baseava-se,
inicialmente, no princípio da “ginástica para o corpo e música para a alma” (PLATÃO, 1993,
p. 86, 376e), sendo essa “música” pensada no sentido de “arte das musas”, composta pela
poesia, pelas artes e pela música propriamente dita.
Embora os textos da Ilíada e da Odisséia não tivessem sido escritos originalmente
com a finalidade específica de educar o povo (RODRIGO, 2006, p. 526), cumpriam muito
bem esse papel, e, nesse contexto, a tradição oral era a grande responsável por manter e
transmitir às futuras gerações a identidade sociocultural da nação grega, por meio das poesias,
carregadas de elementos que serviam de base para as práticas do cotidiano, abordando desde
procedimentos ritualísticos até atos de valentia e nobreza dignos de serem admirados e
imitados. Nesse sentido, Havelock (1996, p. 137) explica que a poesia foi o meio encontrado
para que “todo um modo de vida, e não simplesmente as façanhas de heróis, devia ser reunido
e tornado, dessa forma, transmissível de geração a geração”.
A construção poética permitiu, pelo caminho da estética, que se realizassem
composições rítmicas nas narrativas, muito bem elaboradas gramaticamente, o que por sua
vez, favorecia para que fossem memorizadas e recitadas tanto em casa como em eventos
292
públicos. Quanto a isso, Rodrigo (2006, p. 525) explica que “a fala ritmada da poesia se presta
muito melhor do que a prosa para garantir a conservação e fixidez na transmissão oral”.
Vale destacar que, embora essa concepção de Paideia baseada na poesia tenha surgido
no período Arcaico, onde a escrita ainda era pouco utilizada, sendo ofício exclusivo dos
escribas, ainda era frequente no período Clássico, mesmo com maior difusão da linguagem
escrita. De acordo com Rodrigo (2006, p. 525), “embora na primeira metade do século IV a.C.
a alfabetização já estivesse razoavelmente disseminada entre a população, as formas orais
continuavam predominando na comunicação de modo geral”.
Destacamos também que uma das mais importantes características da poesia épica é o
fato de que o elemento específico (peculiar, exclusivo de cada personagem) se transforma em
típico (que se repete na vida cotidiana), formulando um paradigma atemporal, incentivando
uma série de comportamentos sociais pré-determinados. Configurava assim, um modelo de
educação baseado na mimese, na imitação dos arquétipos, como força formativa inspirada nos
grandes personagens das histórias poéticas.
Outra importante característica da Paideia poética, e que, por sua vez, relaciona-se
diretamente ao objeto de nosso trabalho, a autonomia dos educandos, é que sua fonte de
inspiração são as Musas149, conferindo-lhe assim, um aspecto divino e sobrenatural, não
humano. Com isso, a palavra dos poetas era tida como inquestionável não admitindo qualquer
espécie de contestação, mesmo porque, os poetas não eram considerados os inventores, mas
os narradores dos fatos históricos de um passado glorioso que marca o início da civilização
grega, assim, eram tidos como divinamente inspirados e, consequentemente, como portadores
de uma “verdade” indiscutível (JAEGER, 1994).
Por isso, Platão afirma que embora muitos considerem Homero como o “educador da
Grécia” (PLATÃO, 1993, p. 475, 607a), ele apenas o considera como um grande poeta e
“nada mais”. Embora o próprio Platão reconheça a poesia como uma arte especial, que seduz
e encanta os homens, inclusive a ele mesmo (PLATÃO, 1993, p. 476, 607d), acha que melhor
seria se ela fosse excluída de sua cidade ideal, priorizando assim que o homem cultive o
conhecimento e a razão ao invés da emoção, alertando para que não se preocupem com a
poesia “como detentora da verdade, e como coisa séria, mas o ouvinte deve estar prevenido,
149
As Musas, na mitologia grega, cantavam o presente, o passado e o futuro, eram consideradas também
responsáveis por inspirar a produção artística da humanidade. São as nove filhas da deusa Memória e de Zeus,
conferindo-lhe status de divindades mitológicas gregas (JAEGER, 1994).
293
receando pelo seu governo interior, e acreditar nas nossas afirmações acerca da poesia”
(PLATÃO, 1993, p. 477, 608b).
Platão, em seu livro A República, critica, assim como outros filósofos predecessores, a
supremacia do mito na formatação do pensamento grego, dizendo que a maioria dessas
“fábulas” deveria ser rejeitada (PLATÃO, 1993, p. 87, 377c), pois, segundo seu argumento,
tais histórias constituem-se de “fábulas falsas” (PLATÃO, 1993, p. 88, 377e). O filósofo
também alerta que alguns trechos desse tipo de poesia não deveriam ser administrados a
qualquer pessoa: “não deviam contar-se assim descuidadamente a gente nova, ainda
desprovida de raciocínio” (PLATÃO, 1993, p. 89, 378a), pois, segundo ele, “quem é novo
não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não o é” (PLATÃO, 1993, p. 90, 378d).
Notemos ainda, que essas citações apresentam dois elementos a serem observados. Por um
lado Platão está falando sobre um tipo de ouvinte: “gente nova”, mas, por outro lado, ele
especifica ainda mais esse ouvinte, afirmando que são “desprovidos de raciocínio” ou,
“incapazes de distinguir”, demonstrando o perigo de uma mente despreparada, que ainda não
é autônoma e que não consegue governar-se a si mesmo.
A partir disso pensamos essa questão, procurando compreender qual era o
comportamento dos ouvintes frente a esse modelo educacional e formativo da sociedade
grega. Como será que eles recebiam essas informações carregadas de elementos históricos e
culturais? Ao que nos parece, esse tipo de construção pedagógica em torno da poesia grega,
configurava-se em um modelo que estimulava a apreensão dos conteúdos nela inseridos bem
como a imitação de seus paradigmas, no entanto, segundo o nosso entendimento, isto parece
ocorrer de forma acrítica, pois, como vimos anteriormente, a voz dos poetas era tida como
divina e livre de contestação. Como, pois, poderia se desenvolver nos educandos um
comportamento crítico e investigativo, característicos de um indivíduo autônomo, sendo que a
educação grega, segundo essa concepção, mostrava-se fechada e inquestionável? Nessa
perspectiva, toda atitude de dúvida ou indagação, ao que nos parece, já estaria fadada ao
fracasso antes mesmo de nascer, pois, este tipo de pensamento demonstra limitações a toda
posição contrária à estabelecida, assim a sua possível contestação remeteria à heresia.
Dessa forma, compreendendo a autonomia intelectual como o autogoverno, que se dá,
entre outras formas, a partir do julgamento pessoal e do exercício crítico da razão, não seria
possível imaginar, nesse caso, outra forma de governo que não a heterônoma, pois, se as leis
são, nesse sentido, divinas, como poderiam ser questionadas? Por outro lado, se isso de fato
294
ocorresse, o pensamento autônomo poderia ser, então, considerado herético, a não ser que
assumisse espontaneamente, como suas regras pessoais de conduta o cumprimento das
orientações “canônicas” contidas nas poesias, mas, sem se permitir questioná-las. Entretanto,
seria isso autonomia?
O que percebemos é que a intenção de Platão (1993) nesse texto, não é a de desabonar
as divindades, mas alertar as pessoas para o fato de que, embora os “deuses não mintam”
(PLATÃO, 1993, p, 98, 382e), os poetas podem mentir. A poesia não se constitui em verdade
absoluta. Com isso, procura esclarecer seu interlocutor para que aprenda a julgar corretamente
as coisas que ouve, não aceitando prontamente todas as informações que recebe como se
fossem de fato divinas, mas, concebendo-as como sujeitas a outros tipos de intervenções.
Segundo Jaeger (1994) a passagem do pensamento mítico para o pensamento
filosófico, investigativo e cientificista, foi o ponto fundamental para o desenvolvimento e
avanço do ideal educacional grego, pois, até então “a função de guia da educação nacional
estava indiscutivelmente reservada aos poetas, a quem se associavam o legislador e o homem
de Estado” (JAEGER, 1994, p. 190).
Assim, quando Platão (1993) versa sobre a nocividade de poesia mimética, explica que
obras dessa espécie podem gerar a “destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não
tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza” (PLATÃO, 1993, p. 451,
595b), retomando mais uma vez a importância sobre o esclarecimento sobre a essência do
conhecimento, das suas reais intenções, dos conteúdos e da forma da poesia enquanto
elemento educacional.
É importante destacar que a idealização de uma concepção de Paideia nos moldes de
Platão não se desenvolve por acaso, antes, fundamenta-se em contraposição às concepções
educacionais vigentes em sua época, ou seja, o filósofo posiciona-se criticamente em relação a
alguns aspectos da concepção poética e da concepção sofística de Paideia, assim, para uma
maior compreensão dos ideais educacionais socrático-platônicos, é necessário analisar
também a abordagem dos sofistas, pois, foi também em contraposição a ela que Platão
desenvolve seu ideal formativo, assumindo-os, algumas vezes como interlocutores e outras
como adversários em seus diálogos.
Considerações finais
295
Neste trabalho, procuramos apontar algumas características sobre a discussão do tema
da autonomia do educando na Grécia Clássica. Lembramos que a intenção de nosso trabalho
não é a de apresentar uma perspectiva reducionista, nem empobrecer os debates acerca da
temática destacada, mas fornecer elementos para uma possível análise acerca da visão de cada
modelo de Paideia sobre a questão da autonomia do educando.
Assim, se em um primeiro momento destacamos a dificuldade do desenvolvimento da
autonomia do educando na Paideia poética, devido ao aprisionamento desencadeado pela
força do pensamento mítico, presente naquele contexto, em seguida observamos a crítica
platônica àquela noção de verdade absoluta, estimulando o seu interlocutor ao questionamento
e à racionalidade. Se ainda, nós apontamos que a essência do conhecimento sofista está na
techné do como fazer, destacamos também a crítica de Platão que considera que o mais
importante do que saber como fazer, é saber o que fazer e por que. É o conhecimento da
essência das coisas.
Com isso, a primeira consideração que tecemos em relação à autonomia na Paideia
grega diz respeito à necessidade de se inserir a educação como condição para mudança de
percepção da vida do homem. A educação grega, nos moldes platônicos, não diz respeito a
uma educação instrumental e utilitarista; antes, significa, sobretudo, a formação do caráter do
homem, logo, o desenvolvimento da autonomia é a condição para o aperfeiçoamento desta
disposição humana na busca da verdade e da virtude. Para Platão (1993) a educação deve
contribuir para uma conversão, uma mudança de olhares, e dessa forma, “serviria para atrair a
alma para a verdade e produzir o pensamento filosófico, que leva a começar a voltar o espírito
pra a as alturas e não cá para baixo” (PLATÃO, 1993, p. 339, 527c).
Outro importante ponto é que a concepção educacional platônica tinha como objetivo
a formação do indivíduo para a sua participação social, ou seja, o desempenho de uma
atividade prática e colaborativa junto à sociedade; isso pressupõe a necessidade do
desenvolvimento da sua autonomia intelectual. A autonomia do educando é, portanto, o
elemento que faz a ligação entre o mundo da teoria, presente nas atividades educativas e a
vida prática do seu cotidiano, em que se situa como cidadão crítico, participativo, enfim,
emancipado. Por conta disso, talvez possamos dizer, como Sócrates150, que a autonomia “dá à
150
Segundo März (1987), Sócrates, inspirado pela profissão da sua mãe, uma parteira, acreditava que da mesma
forma poderia trazer à luz o conhecimento de seus discípulos, auxiliando-os a externá-lo, embora não se
considerasse capaz de gerar neles o saber: “nunca aprenderam nada de mim, embora fazem progressos
admiráveis, o conhecimento já estava neles”, dizia.
296
luz”, ou seja, oferece as condições para a prática educacional, na medida em que lhe confere
sentido e razão de ser, e sua necessidade e importância, independe do momento histórico ou
condição social em que vive o sujeito, pois deve estar presente em todos.
Nesse sentido, percebemos que os diálogos de Sócrates demonstram a sua atitude
como educador, jamais oferecendo respostas prontas aos seus educandos, mas permitindo que
eles consigam encontrar em si mesmos as soluções mais adequadas. Sócrates os procurava
guiar, interrogando-os e estimulando-os a pensar e a reconhecer as causas e as consequências
de seus atos, tornando-os cada vez mais conscientes. Nisso pensamos sobre como a ação
pedagógica de um professor pode interferir na formação de seus alunos, seja tornando-os
conscientes e críticos, direcionando-os para uma postura que favoreça e evidencie o
desenvolvimento de sua autonomia ou apenas reproduzindo um sistema político e pedagógico
que engessa a capacidade intelectual dos educandos subordinando-os aos seus caprichos,
aprisionando-os na passividade e inibindo sua espontaneidade, delegando sua tarefa
reprodutivista daquilo que lhes foi exigido.
März (1987), discorrendo também sobre o antigo filósofo grego, pode complementar
esse pensamento:
Sócrates está consciente do seu não-saber e quer ajudar os outros a chegarem a essa
idéia. Para ele, esse autoconhecimento é o início do caminho para o verdadeiro
saber. E o aprender a andar nesse caminho não se faz como a aprendizagem de
competências intelectuais, não se realiza como recebimento passivo de conteúdos
oferecidos de fora, mas como busca ativa e trabalhosa, como redescoberta de um
saber inato que cada qual tem que descobrir novamente por si. (MÄRZ, 1987, p. 2).
Por derradeiro, argumentamos, acompanhando a perspectiva socrática, considerando a
leitura de Jaeger (1994, p. 546), que a educação deve ser política. Esta acepção explicita a
dimensão social a que Sócrates reivindicava, no sentido de que a educação tem a função de
preparar o indivíduo para respeitar as leis da cidade, para governar e, principalmente, para o
autogoverno. O que tácito nesta vertente educacional é a dimensão da autonomia; afinal, não é
possível pensar uma educação política que não tenha, de saída, o desenvolvimento dela.
Referências
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Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
297
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RODRIGO, Lidia Maria. Platão contra as pretensões da poesia homérica. In: Educação e
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298
“A formação ética na história da filosofia: entre projetos de educação por modelos e
projetos de educação pela razão.”
Liliane Sanchez.
Na história das concepções socialmente instituídas de formação ética, chamamos de
“educação pelos modelos” um conjunto de propostas que se caracterizam pela exigência de
fixação de personagens que dão carne e consistência prática aos valores sociais que se
pretende difundir. Em todas as circunstâncias, a educação pelos modelos representa uma
concepção de formação ética em que, antes de qualquer outra coisa, a afetividade é
valorizada. Isso significa que ela se assenta sobre a capacidade humana de identificação com
os heróis, mitos e santos, processo pelo qual se dá não somente uma transmissão dos valores
sociais que esses personagens exemplares representam, mas um investimento afetivo que
implica e justifica a projeção de que são objeto esses tipos extraordinários, que se tornam a
figura pública dos desejos, das aspirações, dos projetos, enfim, das finalidades que
privadamente os sujeitos constroem para si e para sua existência. Os personagens históricos
ou ideais constituem-se em modelos para uma construção afetiva que, em seguida, deve
encontrar apoio em um mínimo de elaboração racional.
No extremo oposto, para uma educação da razão convergem as propostas que têm como
ponto de partida a fixação de valores inteiramente abstratos e por isso mesmo dados por
universais, devendo estar rigorosamente baseados em raciocínios e operações lógicas que,
corretamente aplicados, são fiadores da validade das verdades colocadas em ação. Espera-se,
evidentemente, que essas abstrações racionais venham eventualmente a modelar a afetividade
dos indivíduos racionais, para que, além de identificar o Bem, eles passem também a desejálo.
Boa parte de nosso trabalho foi aqui dedicado a identificar, nas diversas elaborações
filosóficas que cruzam as diferentes construções culturais, concepções de formação ética que,
distintas, guardam em comum o pertencimento a um dos dois conjuntos de características
acima descritas.
Ao abordar nossa temática, pretendemos situar o ser humano como projeto duplamente
significado: determinado social e politicamente, ele é também agente de sua própria formação
– é sujeito criador. Sendo instituído pela sociedade, o humano (em seu coletivo) é também
agente instituinte da sociedade em que vive e de suas próprias possibilidades de instituição.
299
Não queremos com isso ignorar os limites em que se pode dar esse tipo de criação, ou
mais especificamente, os limites que se apresentam para o projeto de formação humana.
Queremos deixar claro que tal projeto se relaciona sempre com o projeto da formação da
própria sociedade, da qual a educação (formal ou informal) é parte inerente. Sociedade e
indivíduo, elementos interdependentes, se criam e se auto-criam ao mesmo tempo, sendo um
para o outro, a cada vez, condição e limite.
Se falamos do humano como espécie, pressupomos que há uma unidade, um elo entre
cada indivíduo, que, para além das diferenças que caracterizam e singularizam cada membro
do grupo, permite a recriação contínua dessa coletividade. Dessa forma, cada homem é único
em sua especificidade, mas é também indivíduo social, membro de uma coletividade. È ao
mesmo tempo, igual aos outros homens, em muitos aspectos (o que caracteriza a espécie
humana) e diferente (o que caracteriza a subjetividade). Sendo assim, o projeto de formação
humana lida sempre com esses dois aspectos: a individuação, que dá origem tantos modos
únicos de ser para uma subjetividade coletivamente instituída quantos são os indivíduos, e a
socialização, que fornece a todos eles características comuns.
De um lado, concebemos o humano como um ser “moldável”, capaz de se adaptar às
características e exigências da sociedade em que se insere. De outro lado, consideramos que o
homem é muito mais do que a história do Gênesis nos conta. Se existe uma dimensão sua que
se presta a um tipo de modelagem, tal qual a argila na composição da cerâmica – ou, em
imagem ainda mais tosca, tal qual a fabricação industrial de produtos em série, existe outra,
indissociável da primeira, que escapa ao controle da forma. Essa segunda, relacionada
também aos desvios patológicos da produção da loucura, é também o lugar da criação.
O que nos torna agentes instituintes é, afirma Cornelius Castoriadis, o poder
disfuncionalizado de criação que somente ele caracteriza o humano entre todos os viventes
(CASTORIADIS, 1992, p. 233). É ela quem permite que criemos o mundo em que vivemos,
numa dinâmica de movimento, num fluxo que não é mensurável. É pela criação e auto-criação
que se institui a sociedade e que cada sujeito se faz existir. Por isso, todo projeto de formação
humana que não considera a questão da criação e da auto-criação é um projeto estéril,
elaborado com bases numa visão reduzida e redutora do humano. Um projeto de formação
humana que se pretende todo pronto e acabado, inteiramente derivado dos modelos
exemplares ou das abstrações racionais e lógicas instituídos socialmente não visa outra coisa
que não seja a heteronomia – e, portanto, a negação do que, ao menos formalmente, cada
300
concepção ética precisa reivindicar, para dar sentido e legitimidade a sua própria atividade: a
liberdade humana.
…a autonomia não só não tem nada a ver com uma “adaptação” qualquer ao
estado das coisas existentes, mas é o contrário disso, uma vez que ela significa
precisamente a capacidade de questionar essa ordem…(CASTORIADIS,
1992, p. 233)
No entanto, em ambos os conjuntos de propostas aqui mencionados, o que se acaba por
operar é a tentativa de adequação ao instituído – herói ou idéia transformado em dogma.
No período arcaico, o modelo de virtude do herói (Aquiles, apresentado por Homero),
centrada na figura de um indivíduo guerreiro capaz de se sacrificar pela sua pátria, não se
presta a qualquer tipo de contestação. Apesar de caracterizar uma educação ética voltada para
uma idealidade, o modelo elaborado vai ao encontro das necessidades estabelecidas por
aquela sociedade, enaltecendo como valores aqueles que representam as qualidades do
guerreiro. No modelo do herói, esses valores estão estampados de forma mais nítida, mais
ampliada, mais forte, por isso o homem virtuoso se destaca, se diferencia dos demais. O
modelo de virtude é “personalizado”, porém direcionado para os interesses da coletividade,
pois o herói é alguém que serve ao seu povo e que inspira, justifica e enobrece as ações
guerreiras.
Com Hesíodo, existe uma tentativa de aproximar o ideal de virtude do homem real, do
trabalhador, do camponês, pois se valorizam as qualidades relacionadas à honestidade, à
integridade e aos esforços de uma vida dedicada ao trabalho, à disciplina, à persistência.
Características que ainda dependem do aperfeiçoamento de cada indivíduo, apesar de também
dizerem respeito às relações que ele estabelece com seus semelhantes e com a sociedade.
Hesíodo, mais do que uma alternativa ao modelo do guerreiro nobre, é o contraponto
necessário, que permite que a idealidade do aner grego se mantenha.
Porém, em ambos os períodos da Grécia Arcaica não há espaço para o questionamento
desses modelos, pois não se discute publicamente o conceito de virtude. Será no ambiente
democrático, pelas características específicas de tal contexto, que essa discussão se fará
presente, fazendo da educação ética um projeto coletivo nos diferentes aspectos de sua
institucionalização: elaboração, finalidade, permanente questionamento. Esses aspectos,
estarão interligados e terão como causa e conseqüência a questão da autonomia.
301
Com os sofistas, existe uma relativização do conceito de virtude: o cidadão virtuoso é
aquele que no cotidiano da pólis encarna mais perfeitamente o ideal de justiça e de perfeição
humanos; contudo, não há, como Platão faz questão de ressaltar, qualquer clareza formal
sobre o que é a virtude e como ela deve ser ensinada (VALLE, 2002, p. 236). O espaço de
“indeterminação” é o que permite os acirrados debates a que se entregam os mestres sofistas –
que, no entanto, acabam quase todos por convergir na fabricação de um modelo de homem
que se capacita para o bem falar e agir na sociedade, para a plena participação no poder.
Assim, a formação ética é elaboração coletiva – projeto de uma sociedade democrática – mas
depende também de critérios pessoais, relativos a cada um, a cada interpretação e a forma de
lidar com o tema, ainda que se pretenda formar um modelo de cidadão virtuoso para agir na
comunidade.
Com Sócrates, o questionamento dos projetos de formação ética instituídos pela
democracia tem por base uma concepção que se afasta da atividade prática política – atuação
e intervenção na vida publica – para uma atividade de reflexão, um exame interior. Observase uma espécie de torção no foco da atividade virtuosa, que não perde de todo a sua dimensão
política, pelas próprias características da época, a exigir uma participação ativa do cidadão na
vida publica, mas instaura uma dinâmica cada vez mais direcionada para dentro do homem,
uma ética que começa a se construir no interior de cada um, pelo exame de si. A formação
ética deve, a partir de então, originar-se na privacidade do indivíduo, de sua interioridade,
para voltar-se à exterioridade, para o exercício da virtude na vida cívica.
No entanto, sob a influência platônica essa interioridade aumenta as suas proporções, pois
instaura-se um modelo de virtude que relaciona o exame de si a uma idealidade de um Bem
supremo, uma espécie de sabedoria a ser encontrada, mas que é um tipo de instância
metafísica, ao alcance de poucos. O modelo do filósofo como cidadão mais virtuoso e
governante dos outros limita o alcance pleno do ideal de virtude para todos, instaurando uma
desigualdade que também reforça a questão da individualidade na formação ética. A virtude
volta a ser idealidade (o bem supremo), desencarnada, tornando-se distante dos fatos da vida
real, da vida concreta dos seres humanos, e por isso também difícil de ser alcançada. Existe a
idealização de um modelo de homem virtuoso que se oferece como figura de
comparação/inspiração (o filósofo).
Ainda que todos os modelos de virtude da Grécia sejam elaboração coletiva, eles se
prestam à composição de um tipo humano que irá se relacionar com seus semelhantes nos
302
diferentes contextos sociais nos quais se inserem. Na democracia, com a vida cívica como
atividade política (da pólis), a diferença se estabelece pelo questionamento sobre as certezas
instituídas e a deliberação coletiva, que se realiza na paidéia como meio e fim da formação
ética. É essa interrogação a respeito dos valores instituídos, o exame das causas e
conseqüências, dos meios e dos fins, a chamada “deliberação coletiva e pública” sobre a vida
cívica no contexto democrático que assegura uma dimensão aberta e plural da formação ética.
Com Aristóteles, essa questão se torna mais intensa, pois o conceito de virtude, que em
Platão estava direcionado para um ideal, volta a se conjugar claramente com as ações práticas.
Aristóteles compõe o retrato de um ser humano mais real, mais encarnado, dotado de psique
(racional e irracional) e de soma. A atividade política realça o caráter prático da ética e a
formação se dá com base também no hábito, no exercício da própria atividade virtuosa, não
mais restrita à idealidade pura, não mais distanciada da vida real e das possibilidades
concretas do indivíduo. A lei, a elaboração das leis é também garantia para uma vida virtuosa,
pois institui os valores que foram deliberados e que pautarão a conduta de todos na mesma
sociedade, sendo também princípio de igualdade. Com Aristóteles, o projeto de formação
ética parece se “humanizar”, tornar-se mais próximo do humano ordinário, pois ele já
representa o elo entre conceito (idealidade) e prática (vida concreta do homem). É um projeto
que, de fato, leva em conta a dimensão coletiva, tanto no que diz respeito à elaboração das
leis, como em sua finalidade (aplicação prática), considerando em ambas a questão da
autonomia.
Porém, na Idade Média, o modelo de interioridade platônico se intensifica e se sobrepõe
ao aristotélico, por melhor se identificar com as necessidades do projeto de controle político
da Igreja. Desaparece a filosofia como interrogação e a ética como prática dessa interrogação.
Fechadas as possibilidades de deliberação coletiva a respeito dos valores e das leis da
sociedade, a formação ética nada mais é do que doutrinação moral, imposição do que se
institui como certo e necessário, como válido e inquestionável como definição acabada de
virtude. O ideal de homem e de sociedade é fornecido, agora, pelo dogma, que institui os
comportamentos corretos. A formação ética passa a estar centrada na relação individual que
cada homem estabelece com Deus, bem supremo.
Na figura de Cristo, Deus é homem, característica de identificação de um modelo que se
aproxima do humano. Mas, através dos próprios mistérios insondáveis e inquestionáveis da
religião, Cristo também é Deus, mantendo com isso o necessário afastamento do homem, para
303
que se possa instituir o elemento da fé como fonte de poder e controle da Igreja e como
argumento que impede a interrogação, a construção da autonomia subjetiva e coletiva. O
único exame que se pode fazer é o exame de si, em relação aos princípios morais instituídos
pela Igreja – ou seja, o homem questiona se está sendo ou não virtuoso, se está seguindo ou
não o modelo de virtude imposto pelo dogma religioso. A ética torna-se uma questão de
comportamento, de prêmio e punição.
O individualismo se acentua nesse exercício ético que é só exame interior, que perde a
dimensão da vida coletiva. É a ética numa relação estritamente privada e comportamental
(moral). A exterioridade se dá apenas através dos comportamentos individuais que devem ser
pautados pelos valores morais já definidos de antemão pela Igreja, que também definem as
relações sociais com base num julgamento constante do outro, com vias de se atingir o céu (a
salvação) ou o inferno (a condenação).
O modelo de Cristo morto, sacrificado por amor a cada um dos mortais, institui a carga do
sofrimento, da dor e da culpa que cada cristão carrega consigo por nunca, jamais conseguir
atingir tal ideal, marcando aí também, através desses sentimentos, mais uma forma de
controle da Igreja sobre os fiéis. É necessário confessar os pecados a figura muito particular,
um homem, representante desse poder divino na terra, único capaz de absolver ou condenar o
comportamento do crente. Julga-se assim o caráter de cada um, oferece-se a necessária
penitência para se obter o perdão, sempre numa dimensão de relação privada.
Agostinho intensifica o modelo de exame interior proposto por Platão e a identificação
com o Bem supremo, imortalizado na figura de um Deus Todo poderoso. Esse exame de si é
terreno para um exercício de uma busca de racionalidade que se intensifica cada vez mais com
os outros autores posteriores do período. Agostinho e todos os medievais tentarão encontrar
argumentos racionais capazes de justificar a fé cristã. Em Agostinho, a união amor-razão
como característica da relação entre o homem e Deus ainda concede ao aspecto afetivo do
humano um lugar de privilégio. Porém, essa forma de conceber o humano vai sendo objeto de
diferentes operações de redução por parte dos outros autores, que buscam numa “fé racional”
o argumento de autoridade do poder da Igreja.
Entre Boécio e Tomás o racionalismo vai tomar a forma de valorização da lógica,
entendida como ciência da definição de condições e critérios de validação da verdade, da
construção adequada das explicações e justificativas, de produção da prova racional. A
formação ética é toda fundada no argumento de autoridade. Por meio dos teólogos, é o poder
304
da Igreja que busca se justificar pela razão e pela lógica, deixando cada vez mais de lado a
questão do foro íntimo, do sentimento interior, que Santo Agostinho enfatizava. É claro que,
nesse contexto, não existe espaço para um projeto de formação ética voltado para o
desenvolvimento da autonomia, nem para as interrogações acerca do melhor projeto de
formação para o cidadão virtuoso e autônomo. Forma-se agora o devoto, o crente. Aquilo que
se considera educação ética, é de fato, educação religiosa.
Porém, com as transformações ocorridas no contexto de transição entre esse período
histórico e o próximo, vimos surgir no Renascimento um outro tipo antropológico e um outro
projeto de formação ética, que tenta se fundar novamente numa aproximação com a prática,
com a atividade política. No entanto, esse caráter “prático” se apresenta, como em Maquiavel,
como um “pragmatismo”, um utilitarismo, onde a finalidade da ação humana, a busca pela
felicidade, culmina numa busca pelo exercício do poder. Decerto a figura do príncipe rompe
com o modelo dogmático dos princípios morais impostos pelo cristianismo, mas continua
mantendo o foco da formação ética na questão do indivíduo. O príncipe deve estar capacitado
para agir da melhor maneira que considerar, ainda que em benefício de seu povo, mas
afirmando uma “ética dos resultados”, que não tem como se fundar numa elaboração coletiva,
nem no questionamento dessas ações, desses resultados ou dessa própria ética. A autonomia
de ação do príncipe-governante pressupõe a submissão e a ausência de autonomia dos súditos
– seus governados.
Ainda no Renascimento, surge uma proposta de autonomia na filosofia de Montaigne, que
se reflete nas interrogações sobre os próprios princípios éticos que pautam a vida na
sociedade. Porém, seu movimento de questionamento do instituído tem por base o ceticismo
que instaura um certo tipo de relativismo. Funda-se, então, uma espécie de “ética do dia-adia”, que, ao mesmo tempo em que interroga os seus próprios fundamentos, se revela
descrente das possibilidades de sua elaboração coletiva. Trata-se da afirmação da primazia de
uma autonomia individual como projeto de formação ética.
Essa questão da formação ética com foco na individualidade se prolonga da Idade Média
até o período da modernidade. Em todo esse percurso histórico, o homem é confrontado
apenas com ele mesmo na relação que estabelece com aqueles que pretendem ser os
fundamentos da ética de cada época. O isolamento do sujeito em sua dimensão interior, cada
vez mais focada no desenvolvimento de sua racionalidade, o seu afastamento da dimensão
pública, que concebia a formação ética como atividade política e coletiva, faz da construção
305
da autonomia uma questão cada vez mais privada. Substitui-se o dogma metafísico da Idade
Média pelo dogma da razão e da ciência. Através da pretensão de controle e de dominação da
ciência, o foco da formação humana se desloca de uma dimensão de interrogação filosófica
sobre os fundamentos da existência para o estabelecimento de verdades acerca do homem e de
seu potencial de conhecer.
Na atualidade, em meio ao que chamamos de “crise ética”, vimos surgir algumas
propostas de resgate do ensino da filosofia aliada à formação humana, indicando uma
preocupação com a questão da formação ética, em especial, da formação para a cidadania, que
particularmente nos interessa investigar, pois nos parece urgente a necessidade de libertar a
educação das grandes teorias que se pretendem regras, técnicas, modelos, receitas, capazes de
predizer, diagnosticar e moldar o homem. Tais teorias não cessam de surgir no contexto
contemporâneo e, em nossa opinião, impedem a educação de assumir sua dimensão
enigmática, indeterminada, de criação de sentidos singulares e temporais.
Ora, não é nenhuma novidade propor o ensino da filosofia como um instrumento de
formação ética, de formação para a cidadania, seja de maneira explícita ou implícita, dentro
de projetos pedagógicos formais, relacionados aos currículos escolares, como em projetos
pedagógicos informais, relacionados aos movimentos culturais e sociais instituintes. Para
muitos profissionais da área, a educação para a cidadania é vista mesmo como a grande
finalidade do ensino da filosofia. Os argumentos que costumam justificar essa proposta
partem do princípio de que uma sociedade democrática necessita da participação e da atuação
de seus cidadãos e, que para isso, faz-se necessário que eles desenvolvam suas capacidades
críticas e reflexivas, para estarem aptos para exercer sua participação. Nesse sentido, as
iniciativas oficiais atualmente voltadas para a educação para a cidadania têm como foco a
consciência dos direitos e deveres de cada um na sociedade, a formação de um espírito de
“solidariedade” individual e de grupo, capaz de conduzir as atitudes de todos para o bem
comum.
Em conformidade a essa proposta, especificamente no contexto brasileiro, o
argumento que sustenta o ensino da filosofia no currículo do ensino médio atualmente se
apresenta como contraponto aos rígidos anos da ditadura militar, que impunham a ordem do
silêncio, a perda da liberdade de expressão, da reflexão crítica e dos questionamentos acerca
da sociedade e do mundo, diretamentes ligados às questões dos “direitos humanos” e da
“cidadania”. O movimento de retorno da filosofia como disciplina obrigatória nos currículos
306
escolares também vem ao encontro de uma super valorização da filosofia na sociedade em
geral, correspondente a um novo modismo: multiplicam-se as tentativas de popularização
dessa disciplina, sob forma de cursos livres oferecidos em instituições privadas, de re-edições
mais baratas e simplificadas de obras clássicas, de propostas de eventos abertos ao público em
geral em cafés-filosóficos…
No entanto, cabe questionar: o que ensinar e como ensinar? O que propor como
conteúdo dessa disciplina? Sobre isto, os profissionais da área comumente se dividem em dois
grupos: aqueles que propõe o estudo de diversos autores e conceitos, o chamado patrimônio
ou história da filosofia e aqueles que valorizam mais a importância de se estimular uma
atitude reflexiva nos alunos, com base em questionamentos críticos e criativos. Ora, se o que
se pretende é uma formação ética, em nossa opinião, uma proposta não necessariamente
exclui a outra, ao contrário, elas podem e devem ser complementares. Porém, o mais
importante ainda é a contextualização desses conteúdos, a relação que se pode e deve
estabelecer com o mundo presente, despertando o interesse dos alunos para as temáticas a
serem abordadas. Trata-se, assim, de conceber a educação, numa perspectiva democrática,
como podendo estar, de fato, aliada a um projeto de autonomia individual e coletiva.
Ao termos observado no decorrer da história a predominância de duas grandes concepções
de formação ética - a educação pelos modelos e a educação da razão - somos inclinados a
afirmar que a perspectiva democrática se oferece como alternativa para ambas as vias: como
possibilidade de questionamento, a razão amplia os limites da lógica ao se fazer criação de
novas possibilidades e como deliberação que permanece infundada; mas amplia, igualmente,
os limites da afetividade instituída, ao submetê-la à possibilidade de alteração. A democracia
se faz assim projeto de uma formação ética em que o homem possa ser pensado como ser para
quem razão e afeto se dispõem em um nexo temporal em que o que separa o passado, o
presente e o futuro não é um sentido predeterminado, mas a livre atuação da subjetividade
reflexiva e deliberante, ainda que marcada por limites, mas, sem negar em absoluto suas
diversas possibilidades - o poder poder ser.
O que importa salientar é a necessidade cada vez mais urgente de se instituir espaços
coletivos de discussão e deliberação sobre as temáticas éticas. Se já não se pode mais pautar o
comportamento do sujeito contemporâneo por valores do passado e se, por outro lado,
existem determinações que afetam os indivíduos e as coletividades de forma globalizada,
307
torna-se, de fato, urgente, refletir acerca do mundo e da sociedade que queremos instituir,
lembrando ainda da responsabilidade que temos com o futuro do planeta e de suas espécies.
Não há como negar que assuntos que antes poderiam ser considerados apenas da
esfera econômica se relacionam plenamente com questões políticas, ambientais, sociais,
culturais… Nesse sentido, afirmar que a discussão ética é de fato parte fundamental de nossa
existência é propor o resgate de uma autonomia e da afirmação de uma liberdade que nos
pertence, tanto quanto a própria vida concreta de nossos corpos. É propor uma tentativa de
compreensão do que está posto e, quiçá, as possibilidades de transformações na direção de um
mundo que desejamos. Mas, para tanto, é preciso se ter clareza sobre o que se deseja.
Castoriadis (1987, p. 31-32.) afirma que, se vivemos hoje em dia num estado de
decomposição e crise da sociedade contemporânea, tal situação envolve ainda uma crise da
democracia, pois, de fato, os valores que imperam e pautam as condutas dos seres humanos na
contemporaneidade dizem respeito, grosso modo, ao que nos é imposto e não a uma
elaboração coletiva e consciente.
Sendo assim, um dos grandes desafios da atualidade é a elaboração de um projeto
educativo que possibilite a formação de sujeitos capazes, por sua vez, de instituir sentidos
mais duráveis, mais estáveis, mais generosos para a existência humana, de lutar pela
reconstrução dos laços sociais e da vida coletiva que só se afirmam na experiência de
participação em uma obra comum. Um projeto educativo que questione não apenas em
palavras, mas em sua prática cotidiana o que está posto: a lógica mercantil exagerada, pautada
pelo consumo. Um projeto educativo capaz de fornecer as possibilidades de reflexões críticas
a respeito do desenvolvimento técnico-científico alcançado, bem como o estímulo à
criatividade necessária para a busca de soluções. Um projeto educativo que invista na autoconstrução humana e na construção de uma sociedade mais justa, incluindo dentro dele as
possibilidades de questionamentos dos conceitos de justiça, de prazer, de benefício e de
felicidade.
Referências Bibliográficas:
CASTORIADIS, Cornelius. “A indústria do vazio” in: As encruzilhadas do labirinto II: os
domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
308
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VALLE, Lílian do. Os enigmas da educação – A paidéia democrática entre Platão e
Castoriadis. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Natureza, infância e ciência no Brasil escolanovista: a pedagogia moderna na
formação de bioidentidades escolares
O tema geral desta investigação assenta-se em dizeres concernentes à pedagogia e à
psicologia no campo discursivo formado pela Escola Nova no Brasil. Esta denominação
alcança uma grande variedade de autores que, durante a década de 1920 e 1930, debateram-se
com intuito de reformar a educação brasileira. Da abundante discursividade desse período,
nos atraiu um objeto particularmente profícuo quando se pensa os atuais vínculos entre
filosofia, psicologia e pedagogia. Trata-se dos argumentos científicos que balizavam as
definições de natureza e infância apresentadas aos professores, pais e aprendizes a que se
dirigiram os enunciados pedagógicos, filosóficos e psicológicos.
Em conformidade com o campo teórico por nós eleito, consideramos que a composição
de práticas discursivas pode instigar à formulação de modos de subjetivação para os entes
abarcados por tais práticas. Destarte, inspirados em Michel Foucault (1995), aventamos a
existência de uma estreita conexão entre práticas de saber e de poder no campo da pedagogia
escolanovista cujo norte operaria com as noções de infância e natureza por meio da conexão
309
entre normalização, individualidade, autonomia, cidadania, trabalho, evolução, capacidades
inatas, vontade, moral, liberdade, interesse, identidade, dentre outros.
A relevância desse estudo se localiza na nossa suspeita de que ditas vinculações
instigariam determinadas relações entre sujeito e verdade fundamentais para a compreensão
dos contemporâneos estilos de vida que estão em constituição desde os alvores do século XX.
Na esteira de Foucault (2011), dirigiremos nossos olhares investigativos para as formas
aletúrgicas (p.4) estabelecidas pelo pensamento pedagógico moderno no Brasil. A partir
dessas aleturgias – que, na visão do autor, permitiriam vislumbrar os modos de veridicção
utilizados pelos sistemas de pensamento que lastreiam tais ou quais discursos – pretendemos
aventar que a escola psicologicamente lastreada do século XX compõe algumas das matrizes
para a forja de bioidentidades contemporâneas.
No que tange à conceituação das bioidentidades, acompanham-nos autores como
Nikolas Rose, Paul Rabinow, Lucien Sfez e Jurandir Freire Costa que, no seio do pensamento
pós-estruturalista, pesquisaram acerca do caráter performativo dos enunciados científicos
coetâneos, fossem produzidos pela biomedicina (Rose, 2003), pela genética (Rabinow, 2002),
pela ecologia (Sfez, 1996) ou pela psiquiatria (Costa, 1980) que dariam guarida a processos
identitários expressos por narrativas de si sustentadas pelo vocabulário fisiológico, estatístico,
sociológico e médico. Em outras palavras: trata-se de auscultar as alocuções que ofereceram
processos de subjetivação dirigidos à composição do infante com o aluno-neuroquímico, o
aluno-amostra, o aluno-humano e o aluno-paciente.
Conforme supracitado, a psicopedagogia seria, em nosso campo de observação, aquilo
que produz e nutre essas composições.
Analisando os discursos psicopedagógicos modernos sob essa ótica, Jorge Ramos do Ó
(2009) assevera que
a pedagogia foi também ela construída sob as categorias e divisões definidas
pela ciência e absorvidas pelos sistemas de ensino estatais. Toda a relação
educativa moderna tem uma raiz psi, o que significa que passou a estar
dependente dos diagnósticos, orientações teóricas, divisões e formas de
explicação que a Psicologia concebeu para indexar e reelaborar os
imperativos éticos (p. 25).
Ao lado do autor português, consideramos que estudar a Escola Nova brasileira e seus
enunciados psicopedagogicamente constituídos é também perscrutar a linguagem com a qual
nós, sujeitos contemporâneos, circunstanciamos nossas próprias existências.
Para viabilizar essa empreitada, usamos como referência os enunciados postos em
circulação por um eminente promotor do reformismo brasileiro. Trata-se de Lourenço Filho,
310
um personagem atuante em diferentes arenas da política educacional nas décadas de 1920,
1930 e 1940; particularmente em ações dirigidas ao aperfeiçoamento dos métodos de
investigação psicológica. Considerando os estudos de Cecília Hanna Matte (2002) – para
quem o Estado brasileiro, desde o início do século XX, tomara para si a tarefa de
“regulamentar, legislar e unificar práticas escolares” (p. 39) –, utilizaremos Lourenço Filho
como plataforma para nos aproximarmos dos discursos mobilizados por esse Estado em busca
da efetivação do governo sobre cada qual e todos os cidadãos nos alvores da modernidade
brasileira.
Burocrata e político, Lourenço Filho realizou intensa produção intelectual, política e
educativa. De todas as suas obras, compilamos a edição da coleção Bibliotheca de Educação
que reuniu 29 volumes, entre os anos de 1927 e 1941, abrigando nela uma fatia substancial da
intelectualidade brasileira e internacional. Embora a coleção tenha existido até 1979, o
período compreendido entre 1927 e 1930 pode ser definido como sua “fase áurea” (Monarcha,
1997) em função da intensa circulação que a coleção alcançou tanto no campo da formação de
professores quanto entre os meios familiares. O objetivo geral do editor, explicitamente, era
“conhecer de um modo claro e conciso, as bases scientificas da educação e seus processos
racionaes” (Lourenço Filho, 1927, p.5).
A obra Introdução ao Estudo da Escola Nova assinada por Lourenço Filho no décimo
primeiro volume da Bibliotheca de Educação mostrou-se particularmente fértil para
analisarmos o pensamento escolanovista, uma vez que o autor pretendeu reunir nela os
métodos tidos por ele como científicos e as respectivas concepções de aprendizado até então
em voga. Assim, além da obra de Lourenço Filho, transitaremos pelas contribuições dos
filósofos Henri Piéron, Jacques Binet, Édouard Claparède, Émile Durkheim, Adolphe Ferrière
e John Dewey para lucubrar acerca da lógica discursiva em que se apoiou essa fração do
pensamento escolanovista.
No supracitado volume, Lourenço Filho (1930) defende que a Escola Nova, antes de
tudo, deveria afirmar seu caráter científico, afastando-se do que ele nomeia como escola
tradicional. Ou seja, a escola renovada deveria alijar-se da antiga pedagogia que fazia da
empiria e, portanto, da aventura o princípio norteador dos procedimentos escolares. Para se
tornar científica, a escola propalada por Lourenço Filho deveria partir de métodos objetivos
que garantissem avaliações constantes e apuradas dos comportamentos dos pupilos. Para
tanto, o recurso mais simples e preciso seria a submissão de todos e cada um dos estudantes a
testes psicológicos que, com base em critérios precisos, garantiriam a meta de “homogeneizar
primeiro e differenciar depois” (LOURENÇO FILHO, 1930, p. 12). A homogeneidade
pretendida pelo autor implicava no confronto dos resultados de cada indivíduo com a
tabulação aferida nos testes aplicados a educandos em idades semelhantes. Assim, definindo o
posicionamento de cada qual com relação à média esperada para a sua idade, poder-se-ia
preparar o avaliado para direcionar suas idiossincrasias no sentido da normalidade, e, a seguir,
potencializar suas capacidades por meio de um ensino sob medida baseado na adequação e no
respeito à individualidade.
Segundo essa concepção de ensino, a meta da educação renovada seria alcançada
quando os alunos conseguissem atingir um viver autônomo; ou seja, por meio da
311
autoaprendizagem, alcançariam a condição de “cidadãos do mundo” (LOURENÇO FILHO,
1930, p. 11).
Diferentemente da pedagogia tradicional – que, segundo Lourenço Filho (1930), ainda
estava por demais apegada à sobrecarga de conteúdos transmitidos pelos professores por via
expositiva –, a Escola Nova se ateria ao homo faber no lugar do homo sapiens alvejado pelos
tradicionalistas. Uma escola do trabalho contra uma escola de conhecimentos inativos. Uma
educação que fosse a “própria vida” (p. 75) contra uma educação que preparasse para a vida.
Um ensino centrado na criança contra um ensino centralizado pelo professor. Uma escola
única contra uma escola que apartasse aristocratas de populares. Um mestre que coordenasse
e estimulasse os interesses dos alunos contra um mero mestre de estudos.
Esse conjunto de modificações proposto para a escola, segundo Lourenço Filho, deverse-ia apoiar nas bases absolutamente sólidas da ciência psicológica e da genética.
A compreensão genética da natureza humana, para o autor, permitiria compreender os
processos de desenvolvimento dos educandos. Assim – considerando que os seres
desenvolvem-se dos espécimes mais simples em direção aos mais complexos –, seria possível
descrever o comportamento adulto observando o comportamento infantil e, por conseguinte, o
comportamento infantil analisando o comportamento animal. Dessa maneira, o humano seria
incorporado à natureza como ponto máximo e final de sua evolução. Essa concepção
naturalista do conhecimento opunha-se à pregressa visão antropocêntrica que entendia a
criança como um homúnculo suscetível apenas à instrução.
Portanto, atualizando as mais avançadas pesquisas científicas de seu tempo, Lourenço
Filho (1930) condensou suas pretensões pedagógicas na máxima: “educar é a arte suprema de
modelar os homens para uma vida melhor” (p. 75). É perceptível que a escolha dos filósofos
supracitados para comporem a Bibliotheca de Educação obedece ao itinerário científico
apresentado nessa obra Introdução ao estudo da Escola Nova.
Nesse itinerário, fica evidente o motivo da opção por Piéron e Binet, uma vez que esses
autores escoraram a cientificidade de suas teorias nos testes psicológicos, considerados por
ambos a ferramenta mais confiável para verificação objetiva das potencialidades dos
educandos.
A obra Psychologia experimental de Henri Pièron contém uma concepção segundo a
qual os processos psíquicos deveriam ser apreciados de forma similar aos processos
biológicos, ou seja, em termos dos mecanismos de excitação, percepção e reação. Em torno
dessa terna, todos os testes deveriam ser elaborados, todos os resultados aferidos e todas as
suposições apresentadas.
Para analisar o aprendizado, Piéron propõe um longo caminho investigativo que parte
do desmembramento dos mecanismos que levam à percepção, passando pelas relações entre a
atenção, o esforço mental até chegar aos mecanismos referentes à memória e ao
esquecimento. O ponto culminante desse esquadrinhamento deveria ser, segundo o autor,
deslindar a formação dos pensamentos.
Ao apresentar os tests, o autor elenca aquilo que, em seu julgamento, seriam as
capacidades essenciais para o aprendizado; dentre elas estariam a motricidade, a adaptação, a
atenção, a imaginação, a compreensão, a crítica e a invenção lógica. Para cada uma dessas
312
capacidades, Piéron compila provas criadas especificamente para apreciar o grau em que elas
se encontram no indivíduo analisado. Destarte, mover-se, adaptar-se, atentar, imaginar,
compreender, criticar e inventar, dentre outras, seriam, segundo o psicólogo, ações humanas
guindadas à condição de mecanismos cerebrais capitais para uma intervenção racional e
produtiva no processo de aprendizagem.
De todas as capacidades verificáveis pelos tests descritos por Piéron, aqueles
relacionados à inteligência ocupam destaque. Tal como Binet pretendeu estabelecer, a medida
da inteligência poderia fornecer critérios seguros para inserção de indivíduos em diversos
campos de atuação, fosse no ambiente escolar, profissional, militar etc.
A escala Binet-Simon, segundo Simon (1929) – coautor da obra Testes para a medida
do desenvolvimento da inteligência nas crianças – seria o corolário e, ao mesmo tempo, o
ponto de partida para uma psicologia verdadeiramente científica, pois se baseava em
experimentações racionalmente coletadas e criteriosamente apuradas.
Para Simon, dita escala foi o “primeiro exemplo de medida direta do valor psicológico
dos indivíduos” (1929, p. 28). Seus criadores pretenderam condensar nas provas a totalidade
dos processos mentais envolvidos nas funções de memória, juízo, raciocínio etc. Inicialmente
criada para distinguir alunos normais dos anormais no contexto educativo de Paris no início
do século XX, o teste passou por numerosas atualizações, todas elas no sentido de adaptar as
sondagens aos padrões culturais dos avaliados e, consequentemente, garantir a efetividade das
apurações.
Destarte, por meio dos testes psicológicos, puderam os psicólogos experimentalistas
conjecturar sobre os mecanismos envolvidos no aprendizado. Essas conjecturas levaram os
estudiosos a discriminar os capazes dos incapazes, mas também a sugerir métodos educativos
que se pretendiam eficazes, pois dirigidos a uma natureza humana cientificamente observável.
Além das características psicofísicas envolvidas no processo de aprendizagem, os
autores escolanovistas recrutados por Lourenço Filho preocuparam-se com outros aspectos
considerados capitais na caracterização do comportamento discente. Dentre eles, apresentouse o interesse. Claparède (1928), autor do segundo volume da Bibliotheca de Educação
analisou esse aspecto relacionando-o aos componentes psíquicos tradicionalmente
evidenciados pela psicologia experimental.
Dessa forma, segundo o autor, além de excitar a percepção, a compreensão a
memorização e a atenção, o educador deveria priorizar o exercício da vontade. Mobilizando o
desejo do educando, Claparède esperava criar uma escola funcional na qual o empenho
discente seria dirigido a tarefas estimulantes por meio das quais a fadiga seria evitada e as
individualidades ficariam preservadas.
Para tanto, uma faculdade, considerada inata, deveria ser relevada: a disposição ao jogo,
pois, “ao colocar o amor do jogo, ou a tendencia do jogo na alma da criança, a natureza a
armou admiravelmente contra sua propria incapacidade de interessar-se pelas realidades da
vida”(p.19).
O experimentalismo de Claparède levou-o a sugerir ações didáticas cujo centro deveria
ser a criança. Esta, entendida como “pae do homem”(p. 58), deveria ser apreciada
cientificamente para que seus instrutores reconhecessem suas limitações e potencialidades, e,
313
por conseguinte, escorados em saberes cientificamente chancelados, os professores poderiam
propor atividades cuidadosamente elaboradas para que os fins projetados por eles alcançassem
efetividade. Em outras palavras: por meio da condução científica do desejo, realizar-se-ia um
ensino adequado à vida projetada pelos psicólogos para ser vivida pelos entes a que se
dirigiam suas práticas educativas. É a isso que os escolanovistas chamavam de escola sob
medida.
Escola sob medida, uma instituição que instigasse à autonomia e valorizasse a
individualidade do educando. Contudo, ao inserir a obra de Durkheim (1929) no quinto
volume da coleção, Lourenço Filho chama a atenção para os limites dessa individuação.
Segundo Émile Durkheim, há duas dimensões presentes em cada qual dos humanos: um
ser individual e outro social. O primeiro é tangível pelas leis biológicas, hereditárias e
psicológicas. O segundo é constituído pela educação.
Tal como seus colegas da Bibliotheca de Educação, Durkheim (1929) insere o processo
educativo no âmago da senda humanizadora. Ao recorrer à história, o autor apercebe-se que
“a sociedade não poderia existir sem que houvesse entre seus membros uma suficiente
homogeneidade: a educação perpetua e reforça essa homogeneidade, fixando de antemão na
alma da criança, estas similitudes essenciaes reclamadas pela vida collectiva” (p. 44).
Segundo Durkheim, a homogeneidade necessária para que a vida social se efetivasse
seria garantida pela moral. Esta teria o condão de constituir – na interioridade, denominada de
alma pelos especialistas – as condições necessárias para ações individuais adequadas à vida
em sociedade.
Adolphe Ferrière, autor do nono volume da coleção em questão, também discorreu
acerca da educação moral, analisando-a sob o prisma escolanovista. Para Ferrière (1929), a
Escola Nova “offerece em si mesma, o que o trabalho ensina, o que surge espontaneamente da
observação da vida humana (...) postos a serviço sublime da obra do progresso, constituem a
melhor, a mais profunda e a única educação moral verdadeira” (p. 52).
Ferrière propõe uma pedagogia centrada nas leis biogenéticas cujo núcleo se encontraria
na crença do humano como um ser em desenvolvimento. Tal como seus companheiros de
Bibliotheca de Educação, o autor propõe que a escola deveria reconhecer a natureza
incompleta da criança. Dessa maneira, os psicopedagogos – na condição de especialistas da
alma humana –, observando criteriosamente as potencialidades e as incapacidades dos
pupilos, poderiam estabelecer os princípios que norteariam toda a sua vida. Por conseguinte, o
ambiente escolar se tornaria uma espécie de campo de provas no qual as suposições sobre os
limites dos infantes poderiam ser verificadas e cientificamente codificadas.
O ensino científico, para Ferrière, desenvolveria uma educação ativa, organizada por
uma ciência evolucionista em uma escola que estimulasse o apego ao trabalho. Dessa forma,
instigando os educandos à atividade produtiva, os educadores poderiam reconhecer as
diferentes capacidades com fito de propor tarefas adaptáveis às reais potencialidades dos
infantes.
Ferrière, portanto propõe uma pedagogia cujo método consistia em colocar as crianças
em movimento, ao ar livre, em permanente intercâmbio com seus colegas para estabelecer,
por meio da observação do convívio franco e aberto, as normas que deveriam orientar as
314
condutas em cada fase etária de desenvolvimento. Assim, definidos os pressupostos dos
comportamentos, os docentes interfeririam cientificamente nas concepções morais de seus
aprendizes. Realiza-se, dessa maneira, uma educação moral e científica tal como pretendia
Durkheim.
A interferência científica proposta por Ferrière aprofunda-se ainda mais quando
acrescida pelas proposições de Dewey acerca das relações entre escola e vida, registradas no
décimo segundo volume da Bibliotheca de Educação.
Na obra Vida e educação, Dewey (1930) analisa o processo educativo retomando a
noção de interesse. Na sua concepção, o interesse “verdadeiro, em suma, significa, pois, que
uma pessoa se identificou consigo mesma, ou que se encontrou a si mesma no curso de uma
ação” (p. 64).
Dessa maneira, a partir da visualização do interesse despertado, o professor poderia
estabelecer um programa didático adequado e produtivo. Uma ação educativa orientada para a
identidade dos educando. Portanto, nessa concepção, a educação se tornaria uma atividade
que seria dirigida ao interior do aluno, ou seja, uma ação fundamentalmente psicológica –
“uma forma de atividade própria do organismo; isto é, uma forma de sua evolução ou
crescimento que se realiza através da atividade de tendências nascentes” (p. 55).
Destarte, o professor orientado pela pedagogia de Dewey deveria formular seus
procedimentos a partir daquilo que os resultados dos tests apontavam. A seguir, considerando
a natureza evolutiva dos pupilos, os mestres os instigariam a desejar atitudes coerentes com as
capacidades aferidas. Finalmente, respeitando os grupos etários e convocando os indivíduos à
constante busca por sua própria identidade, poderiam os pedagogos instalar métodos racionais
para construir nos educandos valores adequados à vida em suas sociedades.
Consideramos que a partir dos binômios normal/anormal, moral/amoral, capaz/incapaz,
desejoso/inerte, inteligente/atrasado, sociável/antissocial foram se constituindo, ao longo do
século XX, as definições de normalidade, moralidade, capacidade, desejo, inteligência,
sociabilidade etc. como elementos intrínsecos à natureza humana. Em toda essa produção, a
Escola Nova atuou decisivamente.
Por meio dos cânones do escolanovismo, foi possível se estabelecerem práticas
discursivas que, além de nunca deixarem o ambiente escolar, alcançaram vastos campos do
viver social.
Tal como Nikolas Rose (2007), aventamos que, quando as presunções acerca da
natureza humana foram encampadas pela biologia, entraram em cena descrições acerca das
composições anatômicas, velocidades das reações, consistências das respostas, controle das
emoções, clareza das expressões, consequência nas escolhas, enfim, um infinito arsenal de
operações utilizadas pelos especialistas para confinar as ações individuais em grupos de risco.
Hoje, essas práticas se mantiveram, se sofisticaram e estão à disposição daqueles que desejam
aprimorar o funcionamento de seus corpos (via dietas, fitness, reposições hormonais etc.),
prever anomalias (via exame pré-natal, medicina genômica etc.) ou resgatar a normalidade
(próteses, psicofármacos etc.).
Tais descrições, ao longo do século XX, foram aprofundadas. Hoje, o imageamento
cerebral é corriqueiro. A determinação dos loci encefálicos onde se processariam as
315
percepções utiliza técnicas avançadíssimas. A pesquisa sobre as determinações hereditárias
para tais ou quais características alcança o nível molecular. Os fármacos, muito além da cura,
são alardeados como modificadores de humor, potencializadores do ato sexual, dinamizadores
da vida profissional, condutores da motricidade, promotores de longevidade etc.
Tudo isso requer, para funcionar, a crença em uma noção de natureza forjada
intercâmbio entre as ciências da vida e da alma, formuladas nas clínicas, nos laboratórios e
nos centros de pesquisa, mas também nas salas de aula e nos enunciados psicopedagógicos,
desde os alvores da modernidade, ou seja, na periodização foucaultiana, desde o século XIX.
Supomos, ainda com Nikolas Rose que, quando os homens passaram a ser percebidos
como entes biológicos, suas vidas estiveram à mercê dos especialistas. Estes criaram os
discursos sobre saúde, comprovaram experimentalmente a veracidade deles, anunciaram
estatisticamente as conclusões, chancelaram intervenções corretivas, curativas ou saneadoras
e insinuaram-se na qualidade dos herdeiros.
Sempre por meio de medições, testes, contagens, comparações, imposições e
permissões foram instituídos métodos científicos para conduzir pessoas. A escola, desde o
século XX, sempre foi lugar para sondar e avaliar, dirigir e aperfeiçoar.
Consideramos, por fim, que não há uma linha de causalidade direta entre os métodos
discursivos instalados pela psicopedagogia escolanovista no Brasil e os atuais procedimentos
científicos dirigidos à vida, porém, supomos que algumas significações sobre criança e
natureza humana, estabelecidas pelos filósofos da Escola Nova, até hoje vigoram sobre o
alunado.
Tais significações teriam se tornado apriorísticas, intensificando a força de verdade
presente nos enunciados que chancelam intervenções nos comportamentos, ora por meio da
decomposição do comportamento em seus fundamentos psicofísicos, da crença no
desenvolvimento cognitivo, da fé na presença de capacidades hereditárias, da confiança na
possibilidade de se conduzir desejos, e, antes de tudo, do consenso pela educação científica.
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317
EL IDEAL MORAL EN KANT VS. EL IDEAL DEL DESEO EN SADE
Una lectura de "Kant con Sade" de Lacan*
Josefina Magaña Solís*
RESUMEN
La oportunidad que otorga Lacan a la reflexión educativa confrontando a Kant y a Sade,
resulta interesante desde los puntos de vista filosófico, ético y psicológico, como ingredientes
esenciales de la formación humana. Kant como Sade, se encuentra en un juego de extremos en
lo que concierne al ideal de hombre.
Por su parte, Sade pretende el dominio absoluto del principio del placer, dándole
rienda suelta a los requerimientos de la naturaleza, pensada como una forma de sujeción sobre
la voluntad del otro como objeto de placer y satisfacción en el cumplimiento de su deseo
egoísta.
Kant, pretende la dominación absoluta del principio del placer mediante acciones que
expresen una excesiva dominación del super-yo sobre el yo. La tensión que provoca
encontrarse entre el deber y el goce, es una constante que habita la reflexión ética de todos los
tiempos.
Sade se encuentra en un extremo de esta tensión, por lo que se considera necesario
conocer el contexto que le dio marco a su educación para tratar de comprender su importancia
pedagógica. La pregunta es, ¿qué papel tiene la educación en esta aparente confrontación
entre Kant y Sade desde Jacques Lacan? Desde un punto de vista personal, asumo que en la
formación humana se encuentra de manera constante, una pedagogía del deber y una
pedagogía del deseo que dan la oportunidad de formarse un ideal de comportamiento ético.
La pedagogía del deber, centra su atención en excluir la pulsión o el sentimiento y
todo aquello que el sujeto pueda padecer, en aras del interés por cumplir la ley moral. Y que
por su parte la pedagogía del deseo, ejerce la libertad en el placer como motivación de gozar
como sujeto y no como objeto en el cumplimiento de dicha ley.
Mi manera de pensar, decís, no puede ser aprobada. ¡Pues, qué me importa!
¡Bastante loco es quien adopta una manera de pensar como la de los demás! Mi
*
Lic. En Pedagogía, estudiante de la Mtría.,en Pedagogía de la FFyL-UNAM. Profesora de las asignaturas: Ética
profesional del magisterio, Educación y economía y Planeación educativa, en la misma institución.
318
manera de pensar es el fruto de mis reflexiones; está implicada en mi existencia,
en mi organización. No soy dueño de cambiarla; y aunque pudiera no lo haría.
Esa manera de pensar que vos censuráis es el único consuelo de mi vida; alivia
mis penas en prisión, constituye todos mis placeres en el mundo y la quiero más
que a mi vida. No es en absoluto mi manera de pensar la que ha hecho mi
desgracia; es la de los otros.
Sade, carta a Mme.de Sade, principios de noviembre de 1783
1. Introducción
Para iniciar, es necesario compartir ciertas líneas de acción en las que asumo estaremos de
acuerdo: primero, retomar que educar, es formar seres humanos dentro de un marco social e
histórico con la intención de cubrir necesidades comunes; segundo, que la educación busca
formar seres humanos integrales de acuerdo a un ideal humano, social, político y económico.
Y por último, que la filosofía de la educación lleva a cabo la reflexión sobre ese ideal humano
en contra partida con la realidad en la que es educado, sin perder de vista que en lo humano
coexisten la moral, el deber, lo ético, el deseo, el placer, el egoísmo, y tantos otros aspectos
que se forman en nuestra alma, mente, psique o como prefiera llamarse.
Para esto, la reflexión sobre la formación humana no puede, no debe sólo mantenerse
al margen de la educación con una intención positiva del ideal humano, sino también, de
reflexionar sobre aquello que educa y que se muestra como una transgresión, como una
amenaza a la conservación de lo humano. Para esto último, he decidido tomar la figura del
marqués de Sade, pero no solamente desde su visión de libertino y perverso, sino también
desde su perspectiva educativa en la que: "El sistema del marqués de Sade, […], representa
tanto la realización como la crítica de un método que lleva al nacimiento del individuo
integral por encima de la masa fascinada".151Así también retomar el interés que motivó a
Jacques Lacan para escribir "Kant con Sade”, al vincular la filosofía con los temas referentes
a la ley, el goce, la perversión y el deseo, a partir de la figura del libertino por excelencia y el
discurso del imperativo categórico de Kant.152
2. El Marqués de Sade
Donatien Alphose François, Marqués de Sade, nacido en 1740, se cría dentro del ambiente
cortesano del fin del Antiguo Régimen francés. Perteneciente a una de las familias más
antiguas y nobles de Francia, su educación temprana se desenvuelve
151
Bataille, George, El erotismo, p. 172.
152
Cfr. Suárez, Marcela, “El Marqués de Sade en Jacques Lacan”, en Razón y palabra.
entre amantes y
319
adulterios, cargada de excesos sexuales escenificados por su padre, el gran príncipe de Condé
y por la influencia de su tío el abad Jean François de Sade, clérigo notablemente libertino, con
quién Sade pasó parte de su infancia, y por el colegio Louis- le- Grand de París, donde se
educó al cuidado de los jesuitas, de conductas sexuales fuera de toda ortodoxia religiosa.153
La personalidad de Sade, según sus estudiosos, fue contradictoria y su vida y obra paradójica:
Para entender este carácter tremendo del personaje hay que recordar que Sade es al fin y al
cabo el hombre del orgullo feudal. Sade, miembro de la nobleza militar, que hará en caballería
la guerra de los siete años con notable alarde de valor – en un acta de servicio de su capitán de
caballería se le describirá de manera expresiva como “muy alocado y bravo”-, es el vástago de
una nobleza guerrera. Y en ello Sade recuerda a los personajes protagonistas del antiguo
derecho de los héroes, personajes anteriores a la organización social y al monopolio estatal del
uso de la fuerza. Son hombres guiados simplemente por sus instintos, no sometidos al
esquema moderno del pacto social de obediencia a cambio de protección que establece el
derecho. Son protagonistas que actúan al dictado de una lectura primitiva de la naturaleza; que
lo quiere todo, todo lo que pueden conseguir gracias a su habilidad y a su fuerza, pero que a
cambio, y justo es reconocerlo, lo arriesga todo, pues su misma vida será lo que pongan en
juego a la hora de elegir ese ethos.154
Basado en esta y muchas otras características que nutren la vida del Marqués de Sade,
éste articula su ideal de hombre soberano integral como el individuo que sobresale de las
masas. Proponiendo una nueva ley moral cuya obligación sea la de gozar porque la naturaleza
lo ordena, sosteniendo así un ateísmo llamado "naturalista" que critica las leyes que impiden a
los hombres situar la particularidad del goce. En este sentido Lacan desde el psicoanálisis
reconoce en el deseo la verdad del sujeto. Por lo que llega al personaje de Sade, el libertino
que plantea la libertad sin límites, para acercarse a la idea del imperativo del goce en el que el
Marqués reúne los requisitos del imperativo categórico de Kant.
Hay que recordar que para Kant, la naturaleza humana debe ser educada, disciplinada,
guiada hacia una serie de principios que por medio de la razón, cada facultad que nos
proporcione la naturaleza, de origen a una voluntad buena en sí misma mediante el
cumplimiento del imperativo categórico “obra sólo según la máxima a través de la cual
puedas querer a la vez que se convierta en una ley universal” 155 y no como medio para
satisfacer nuestros deseos o inclinaciones.
153
Cfr. Pelayo González-Torre, Ángel, La sombra de la ilustración. Tres variaciones sobre Sade, p. 38.
154
Pelayo González-Torre, Ángel, Op. Cit., p. 41.
155
Kant, Immanuel, Fundamentación de la metafísica de las costumbres, (421, 6-13).
320
3. El pensamiento en Sade
La voluptuosidad sadiana como exacerbación de los sentidos, se libera dentro del paradigma
ilustrado, y el deseo del libertino extiende su explicación racional a las demandas voluptuosas
como leyes imperativas de la naturaleza hasta sus últimas consecuencias. Esto penetra en lo
natural como flujos, intensidades y exaltaciones libidinales desde la visión del psicoanálisis.
En esta perspectiva, la manera de pensar de Sade, se denomina como una perversión,
un pensar sádico, que erotiza, que trasgrede y cuya acción violenta afirma el poder sobre la
otra persona tomándola como objeto156. Sade mediante su narrativa aparentemente
repugnante, logra atrapar a quien lo lee, e incluso fascinarlo a pesar de los constructos sociales
que se tienen sobre el amor ideal de consentimiento y felicidad en la relación íntima y el
deseo sexual, "Sade está en los deseos de algunos, en los sueños de muchos, en las pesadillas
de todos, en las prácticas inexplicables de los perversos…". 157
Lo enigmático en Sade es su postura libertina, donde el placer se encuentra en la
crueldad, en el goce por la destrucción sin lamentar nada y donde lo incondicionalmente
bueno, como si fuese un imperativo categórico, es la obtención del placer por el placer
mismo.
La lectura que Sade ofrece, en específico la de Justina o los infortunios de la virtud , la cual
entre otras situaciones, hace referencia explicita del poder que se ejerce, ya sea éste físico o
mental sobre el ser más débil, bello, frágil y virtuoso, transgrediéndolo a pesar de cualquier
norma u orden moral o social, con el propósito de que el perverso158 logre el placer, el
sentirse bien, satisfecho o feliz, si es que lo puede lograr, mediante su regocijo en la "felicidad
en el mal"159.
Esto
quiere decir que puede haber satisfacción en el mal. Como afirma Lacan:
"Durante el siglo XIX se fue gestando una subida insinuante de la idea de que hay –felicidad
156
Cfr. Freud, Sigmund, “Pulsiones y destinos de pulsión”, en Obras completas. Volumen XIV, p. 123.
157
Pelayo González-Torre, Ángel, Op. Cit., p. 20.
158
Desde una lectura del psicoanálisis me atrevo a resumir que la perversión se origina a partir de una neurosis
obsesiva cuya característica es el sadismo/masoquismo. Cfr. Freud, Sigmund, "Pegan a un niño". Contribución
de la genésis de las perversiones sexuales, p. 175-200.
159
Lacan, J., Kant con Sade (1963), en Ecrits,II, p.1
321
en el mal- que prepara las tesis de Freud. En Kant y en Sade se produce un giro con respecto a
la ética tradicional, la ética aristotélica".160 Esta última, se refiere entre otras cosas a una ética
basada en el télos. Esta ética de corte finalista, sostiene que el fin último en la vida es la
felicidad.
Sin embargo, y a pesar de lo que se pudiera pensar de manera superficial sobre la
personalidad y obra de Sade:
De un análisis total de sus libros descubriríamos en sus pensamientos huellas de todos los
sistemas filosóficos. La obra de Sade no es, como muchos creen, un interminable desfile de
obscenidades, aunque sus escasos lectores lean solamente esas obscenidades y pasen de largo
ante las disquisiciones filosóficas. Sade es, fundamentalmente, un filósofo. Su increíble
cultura abarca todas las culturas. En muchos de sus libros es posible hallar virtuales tratados
de antropología. Y en todos ellos, la preocupación de la ética. Esa es la gran preocupación de
Sade. La ética. No hay un solo personaje del "divino marqués" que no intente convencer al
lector de que su actitud vital es la más lógica y adecuada. Todos sus protagonistas, libertinos o
virtuosos, sienten la necesidad de justificar dialécticamente sus actos, sus tendencias, sus
fantasías, sus vicios o sus virtudes.161
4. Kant, Sade y el psicoanálisis
Para la construcción freudiana del sujeto desde su formación psíquica, se necesitó un
replanteamiento sobre el bien y el mal a partir de lo que se puede llamar la ruptura kantiana y
lo que se elabora en la obra de Sade. "Aquí Sade es el paso inaugural de una subversión de la
cual, por picante que la cosa parezca ante la consideración de la frialdad del hombre, Kant es
el punto de viraje, y nunca detectado, que sepamos, como tal".162 Para ubicarnos en el
entendimiento moral de Kant, "en alemán hay dos términos que aluden al bien –Wohl y Gutte, el bien como Wohl, la acepción es la de sentirse bien, la de bienestar, la del bien como
Gutte, es entendido como un valor, como cuando se dice “hacer el bien".163
160
Gerber, Daniel, De Sade a Freud: el mal como un deber kantiano, p.2.
161
Sánchez Paredes, Pedro, El marqués de Sade (Un profeta del infierno), p. 34.
162
Lacan, J., Op. Cit. p.1.
163
Gerber, Daniel, Op. Cit. p.3.
322
Al ser el Wohl la ley del bienestar. Se entendería, en términos freudianos, que
dependería del principio del placer. Esto principio nos dice que nuestra actividad psíquica
busca evitar el dolor, el malestar y el desagrado.164 Mientras que para Kant la ley moral no
puede basarse en él: la auténtica moralidad debe depender de un juicio que rebase el plano del
bienestar propio o del otro, de tal modo que el bienestar (Wohl) no puede ser un signo del
Bien (Gutte). La ley de la razón práctica debe imponerse a la conciencia en todos los casos,
independientemente de las fluctuaciones de lo sentido. Se trata de que la acción no puede
tener otro móvil que la ley en su enunciación. Y en este sentido Kant nos dice:
El respeto por la ley moral es pues el único y al mismo tiempo indudable móvil moral, así
como este sentimiento no se dirige a un objeto de otro modo que solamente por este motivo.
En primer lugar, la ley moral determina objetivar directamente la voluntad en el juicio de la
razón; pero la libertad, cuya causalidad sólo es determinable por la ley, consiste precisamente
en que limita todas las inclinaciones, y en consecuencia la apreciación de la persona misma, a
la condición de la observancia de su ley pura. Esta limitación produce entonces un efecto en el
sentimiento y provoca una sensación de desagrado, que puede conocerse a priori a base de la
moral.165
Por tanto, los afectos como el amor, el odio, la ternura o la piedad y todo lo
sentimental no puede ser el criterio para el comportamiento moral, el Gutte. Lo sentimental o
patológico es rechazado por la apatía que, para Kant, es la condición indispensable de la
virtud. “Más el reconocimiento de la ley moral es la conciencia de una actividad de la razón
práctica a base de motivos objetivos, que si no traduce su afecto en acciones, es simplemente
porque causas subjetivas (patológicas) se lo impiden".166
La apatía propia del
comportamiento moral no bebe entenderse como una condición para la felicidad, sino como lo
incondicional mismo de la ley en tanto pura, despojada de todo interés por uno mismo y por el
semejante. Esto llevó a Freud a advertir la relación entre el imperativo categórico y el nombre
que toma este mandato incondicional, a lo que él denominó super-yo. Este concepto designa a
la instancia psíquica caracterizada no sólo como el censor interno, sino como una instancia
feroz que se impone al sujeto sin admitir ningún tipo de pretextos para no ser cumplida: "el
super-yo, la conciencia moral eficaz dentro de él, puede volverse duro, cruel, despiadado,
164
165
166
Cfr., Sigmund, Freud, Introducción al psicoanálisis, p.305.
Kant, Immanuel, Crítica de la razón práctica, p. 118.
Ibidem, p. 119.
323
hacia el yo a quien tutela. De ese modo, el imperativo categórico de Kant es la herencia
directa del complejo de Edipo".167 En este sentido, "el complejo de Edipo demuestra ser la
fuente de nuestra eticidad individual (moral)".168
5. El goce y el deber
La ley moral, exige un rebasamiento del placer y la comodidad del sujeto, que no
puede concebirse sin una violencia ejercida sobre él, para mayor goce del otro y, finalmente,
del sujeto. Esta ley no es la del principio del placer. Sin embargo, "Sade propone como regla
de la sociedad absolutamente republicana, que la abolición de la propiedad del hombre sobre
el hombre vaya hasta la de cada uno sobre uno mismo y que el derecho al goce sea reconocido
sin límites".169 Para esto todos los sujetos tendrían que ser libertinos, por lo que, es preciso
entender lo que el término libertino significa en Sade.
De una manera general, se llama [libertino], al final del siglo XVIII a quien
aparentemente procura no sujetarse al discurso dominante, a las creencias de la
religión y a las reglas de las costumbres que se derivan de ella. Sade, si bien se califica
a sí mismo como libertino, no cabe enteramente en esta definición: es más que un
libertino en la medida que sus escritos revelan la cara reprimida del libertinaje. Lo que
la obra de Sade expone es la denuncia de la falsa libertad moral que exaltan los
libertinos, pues desconocen su sujeción a una instancia que los gobierna y propone una
moral nueva, de estricta obediencia.170
Entonces parafraseando a Lacan171, si el goce fuera reconocido como derecho, la
tensión entre el principio del placer y el principio de la realidad que "soporta determinados
dolores y renuncia en general a ciertas fuentes de placer"172, caducaría. Es así como podemos
ver que Sade rememora a su modo el ideal antiguo de la ética (aristotélica), que no es otra
cosa que el egoísmo de la felicidad.
Por su parte Kant replantea una forma nueva para la ética, haciendo uso de la razón,
que todo lo puede y que es universal. La universalidad de la ley de Kant, es pura, formal. Es el
167
Sigmund, Freud, El problema económico del masoquismo, p. 173.
168
Idem
169
Gerber, Daniel, Op. Cit., p.5.
Idem
171
Cfr., Lacan, J., Op. Cit.
172
Sigmund, Freud, Op. Cit., p.305.
170
324
imperativo categórico que demanda que la máxima de la acción del querer subjetivo del
individuo, es elevado a lo universal, y no produce contradicción.
El ideal de formación del hombre en Kant, no se encuentra inscrito en el goce, sino en
la acción virtuosa que confiere al individuo la condición de ser digno de ser feliz. El bien es
ceñirse a una normatividad racional y coactiva. "La razón determina la voluntad en una ley
práctica directamente, no por intermedio de un sentimiento interpuesto de agrado o desagrado,
ni siquiera en esta ley, y sólo el hecho de que pueda ser práctica como razón pura es lo que le
permita ser legislativa".173
6. Conclusiones
Por todo lo anterior se puede advertir que tanto Sade como Kant, se encuentran en un juego de
extremos en lo que concierne al ideal de hombre. Por su parte Sade, pretende el dominio
absoluto del principio del placer, dándole rienda suelta a los requerimientos de la naturaleza,
pensada como una forma de sujeción sobre la voluntad del otro como objeto de placer y
satisfacción en el cumplimiento de su deseo egoísta. Otorgándole la supremacía a la
naturaleza como modelo superior de virtud. Esta forma de pensar esta fuera de cualquier
forma educativa de formación humana donde no puede haber ningún tipo de ideal más que el
de la destrucción mutua.
Por otro lado Kant, pretende la dominación absoluta del principio del placer mediante
acciones que expresen una excesiva dominación del super-yo sobre el yo. De esta forma el yo
se convierte en el objeto de la acción coercitiva del super-yo, de la ley que se tiene que
cumplir aún a costa del sufrimiento que causa el desagrado del cumplimiento del deber. El
ideal de hombre requiere de una formación que objetivice su sentir, que anule su percepción,
con la pretensión de universalizar las repuestas que requiere para sobrevivir, formulando
imperativos cargados de excesos racionales, que en última instancia, representan una
exagerada e idealista pretensión moralista del papel que tiene el super-yo.
Hasta aquí habría que preguntarse, qué papel tiene la educación en esta aparente
confrontación entre Kant y Sade desde Jacques Lacan. Desde un punto de vista personal,
queda claro que en la formación humana se encuentra de manera constante, una pedagogía del
deber y una pedagogía del deseo que dan la oportunidad de formarse un ideal de
173
Kant, Immanuel, Crítica de la razón práctica, p. 38.
325
comportamiento ético. En la pedagogía del deber, se puede decir entonces, que su atención se
centra en excluir la pulsión o el sentimiento y todo aquello que el sujeto pueda padecer, en
aras del interés por cumplir la ley moral. Y que por su parte la pedagogía del deseo, ejerce la
libertad en el placer como motivación de gozar como sujeto y no como objeto en el
cumplimiento de dicha ley.
FUENTES DE CONSULTA
Bataille, Georges, El erotismo, Trad. de Antoni Vicens y Marie Paule Sarazin, México:
Tusquests, 2011, 289 p.
Gerber, Daniel, De Sade a Freud: el mal como un deber kantiano, http://www.cartap
si.org/spip.php?article153, consultado 20 de abril, 2012.
Lacan, J., Kant con Sade, en Encrits II,
htpp:www.psi.uba.ar/academica/…/sitios…/lacan_kant_con_con sade.pdf, 22p.,
consultado 20 de abril, 2012.
Kant, Immanuel, Fundamentación de la metafísica de las costumbres, Trad., de José
Mardomingo, Barcelona: Ariel Filosofía, 1999, 280 p.
_____________, Crítica de la razón práctica, Trad., de J. Rivora Armengol, Buenos
Aires: Losada, 2007, 248 p. (Grandes obras del pensamiento)
Marqués de Sade, Justina o los infortunios de la virtud, Trad. de Isabel Brouard,
Madrid: Cátedra, 2001, 369 p.
Pelayo Gozález-Torre, Ángel, La sombra de la ilustración. Tres variaciones sobre
Sade, Santander: Universidad de Cantabria, 2006, 121 p.
Sánchez Paredes, Pedro, El marqués de Sade (Un profeta del infierno), Madrid:
Guadarrama, 1974, 138 p.
Sigmund Freud, “Pegan a un niño” Contribución al conocimiento de la génesis de las
326
perversiones sexuales, en Obras Completas, Tomo XVII, Buenos Aires:
Amorrortu, 1979, p. 175-200.
____________, “Pulsiones y destinos de pulsión”, en Obras Completas, Tomo XIV,
Buenos Aires: Amorrortu, 1979, pp. 105-134.
____________, “El problema económico del masoquismo”, en Obras Completas, Tomo
XIX, Buenos Aires: Amorrortu, 1979, pp. 158-176.
Silva Rojas, Alonso, “Maldad radical y cultura: psicoanálisis y filosofía política de Kant
y Rousseau”, en Reflexión Política, diciembre, Vol., 6 número 12, Universidad
Autónoma de Bucaramanga, 2004, Colombia, pp. 6-14.
Suárez, Marcela, "El Marqués de Sade en Jacques Lacan", en Razón y palabra,
http:www.razonypalabra.org.mx/fcys/2006/noviembre.html, Consultado 30 julio,
2012.
EPISTEMOCRACIA TEOCRÁTICA Y PAIDEIA EN PLATÓN174
Rodolfo Isaac Cisneros Contreras.
UNIVERSIDAD NACIONAL AUTÓNOMA DE MÉXICO
FACULTAD DE FILOSOFÍA Y LETRAS
COLEGIO DE PEDAGOGÍA
El fin último y supremo de
la vida humana es la asimilación a
Dios, esta semejanza consiste en
hacerse uno justo y santo en la
claridad del espíritu.175
INTRODUCCIÓN
174
Rodolfo Isaac Cisneros Contreras. Licenciado en pedagogía y Estudiante de la maestría en Pedagogía en la
Facultad de Filosofía y letras. Universidad Nacional Autónoma de México. [email protected]
175
Platón. Teeteto. 176b.
327
Dentro de toda la obra platónica hay diálogos que se enfocan en su mayoría a tratar el
tema de la justicia (dikaiosyne), tales como La República176, Leyes,177 El Político,178
Alcibíades, Critón, etc., e incluso en aquellos que pasan por apócrifos como los diálogos
Minos o sobre la ley y el diálogo Sobre lo justo.179 Todos ellos con divergencias y
convergencias que sin duda amplían la visión del tema y su importancia para Platón. Uno de
los supuestos para la formación del phylax, es decir, el filósofo-rey, que no es otro sino el
guardián de la pólis, es que la paideia que éste reciba será en, por y para la justicia, así, es
necesario plantear primero la importancia de fundar una nueva pólis en la dikaiosyne y
sustentar la episteme propia al phylax.
Platón guardó una relación estrecha y cercana con el pitagorismo. El ejemplo que
clarifica dicha relación e influencia en la paideia platónica es su amistad con el pitagórico
Arquitas de Tarento.
Platón llegó, probablemente en el año 390, a Italia, donde entró en contacto con los círculos
pitagóricos y sobre todo entabló con Arquitas, el principal representante de la escuela,
aquella amistad que continuó siendo afectuosa durante el resto de sus vidas. Arquitas,
estratega de Tarento y líder de la Liga italiota de las ciudades de la Magna Grecia que
conservaba en la práctica los ideales pitagóricos, debía de representar para él, sin lugar a
dudas, la encarnación del rey-filósofo que ya por aquél entonces estaba en el centro de sus
ideas políticas, ya sea porque encontraba una confirmación de sus ideas en la creencia
pitagórica en el derecho divino de la ciencia a gobernar el Estado, ya sea también porque
tenía ahora ante sus ojos una realización, aunque parcial, de sus principios. 180
176
Especialmente el libro I, el cual se considera que pudo haber consistido en un diálogo autónomo por las
características estilísticas propias de los diálogos de Platón y que se habría llamado Trasímaco. No obstante,
existen especialistas que consideran lo contrario, es decir, que deliberadamente es la primera parte de todo el
diálogo educativo y que se habría escrito en un periodo de 20 años. Sobre esa discusión véase Guthrie, W. K. C.
Historia de la Filosofía griega IV. Platón. El hombre y sus diálogos: primera época. Biblioteca Clásica Gredos.
1998. pp. 419-420.
177
En el caso de las Leyes, Véase. Vanhoutte, Maurice. La philosophie politique de Platon dans les “lois”.
Université Catholique de Louvain. Institute Supérieur de Philosophie. Louvain. 1953.
178
Resulta muy ilustrativo el seminario que impartió Cornelius Castoriadis sobre este diálogo. Castoriadis,
Cornelius. Sobre el Político de Platón. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2002.
179
Para los fines de este trabajo no es relevante el problema de la autenticidad del diálogo Sobre lo Justo. En
todo caso, habría que resaltar la presencia de la pregunta socrática por la naturaleza de la Justicia ¿ti esti
dikaiosyne? Sobre lo Justo 372 a. En lo que respecta a los diálogos que pasan por ser auténticos y su relación con
la Justicia, consideramos un excelente trabajo el de W.K.C, Guthrie. Op. Cit.
180
Colli, Giorgio. Platón Político. p. 44. Sobre Arquitas de Tarento Véase Kirk. Raven y Schofield. Los
Filósofos Presocráticos. Historia crítica con selección de textos. Gredos. Madrid. 2008. Otra gran influencia del
filósofo-rey en Platón viene del pitagórico y rey de Samos; Meliso de Samos. Véase al respecto. Méndez
Aguirre, Víctor Hugo. Los Guardianes fuera de Calípolis. En Filosofía y Política en La República. Instituto de
investigaciones Filológicas. UNAM. México. 2006.
328
Platón reconoce en las Cartas la influencia pitagórica en su planteamiento del filósoforey lo mismo que testimonia su amistad con Arquitas, en la misma medida en que sabe la
influencia que tiene tanto la paideia espartana como la persa.181
¿De qué manera se relaciona un régimen de vida sumamente disciplinado, con una
episteme en específico, con el ejercicio del poder público, es decir, el gobernar a los otros y
llevar a cabo ciertos ejercicios espirituales?182 ¿Es verdaderamente original en el pensamiento
platónico la Idea de un filósofo-Rey, es decir, del guardián de la pólis; del phylax? ¿Qué
relación guarda la fundación de una pólis en la dikaiosyne con una propuesta epistémica y
religiosa?
La República platónica podría definirse como una epistemocracia natural en su origen.
El término epistemocracia bien puede caracterizar a Calípolis (compuesta de las voces kalós:
bello y pólis: ciudad-estado), aunque lo cierto es que se trata de una epistemocracia
teocrática.
De esta manera, si hacemos un binomio de la episteme, de los conocimientos y saberes
que posee el phylax gracias a su paideia, con el régimen de vida que lleva, con la manera en
que se ha gobernado a sí mismo desde que se prepara para ejercer el poder (cratos), se obtiene
lo que bien se puede denominar una epistemocracia, es decir; el phylax ejerce un poder sobre
sí mismo lo mismo que sobre los demás, pero no de manera arbitraria, sino gracias a sus
propios conocimientos y formación, gracias a su paideia. De esto se desprende una cuestión
importante. Y es que el ejercicio del poder sobre uno y los otros es brindado por la paideia, es
decir, para que se dé la politeia, es indispensable que ésta sea precedida por una paideia.183
Ahora bien, Platón expone dicha episteme principalmente en el libro VII de La
República; Geometría, Música, Astronomía, Dialéctica, etc., aunado a la formación
gimnástica, musical y dietética expuesta principalmente en el libro IV. Sólo se puede llegar a
ser phylax si se demuestra a lo largo de la formación de los futuros gobernadores cierta
181
Especialmente en las Leyes y Alcibíades I.
Véase al respecto a Foucault, Michel. La Hermenéutica del sujeto. Clase del 13 de enero de 1982 segunda
hora. También Hadot, Pierre. Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Quizá uno de los mayores helenistas,
Jean-Pierre Vernant, Entre Mito y Política. Fondo de Cultura Económica. México. 2002., pone en una relación
muy cercana el desempeñar un cargo sacerdotal y paralelamente un cargo público.
183
Cfr. Platón. La República. Libro VII. Passim.
182
329
prestancia; inclinación a un régimen de vida que el resto de la pólis puede calificar de
exagerado, duro, etc.
DIVISIÓN TRIPARTITA DEL ALMA Y DEL ESTADO
Dicho lo anterior, Platón está persuadido de que el régimen político por él delineado es
el mejor, y siendo así, todos los demás tendrán que ser inferiores o defectuosos.184 En La
República Platón propone una epistemocracia teocrática cuya finalidad es una comunidad de
phylax. En las Leyes, propondrá el Consejo nocturno. En cualquier caso, los filósofos-reyes
llevan un régimen de vida muy parecido en las dos ciudades utópicas; Calípolis para La
República, y Magnesia para las Leyes.
Tanto en las Leyes, El Político y La República, además de las condiciones favorables y
de su arte (techné), el phylax necesita del apoyo de la divinidad. Es decir, el phylax mantiene
una actividad contemplativa y espiritual y paralelamente una función social; primero es la
paideia y en seguida la politeia. Ahora bien, el tipo de gobierno que se ejerce sobre los otros
es una epistemocracia teocrática por el carácter divino que es intrínseco e inmanente a la
episteme del phylax. En la Grecia del siglo V y IV a.C. el ejercer un cargo político, cualquiera
que sea, va acompañado del ejercicio de un cargo sacerdotal.
En la Esparta y en la Atenas arcaicas, la obra de los legisladores está apoyada y reforzada,
por la intervención de personajes que utilizan toda una gama de procedimientos poéticos y
religiosos que movilizan la fuerza del canto, encantaciones, rituales de purificación,
instauración de cultos y erección de altares para obtener el mismo efecto al que apuntan,
por su lado, los estadistas.185
De esta manera, si el filósofo-rey puede ser llamado de esta manera por el carácter
sagrado propio de su episteme y su actividad contemplativa, bien sea en La República, bien en
las Leyes, su actuar propio debe diferenciarse del de los demás de manera explícita. ¿Cómo
diferenciarse de los demás? En realidad Platón un diferenciarse de los demás para asemejarse
al Uno –como lo llamará Plotino-.
184
Gómez Robledo, Antonio. Estudio introductorio a La República. UNAM. p. CVII. Los libros VIII y IX de La
República son descripciones de constituciones políticas de otras póleis como la Constitución de los atenienses de
Aristóteles y La Constitución de los Atenienses de Jenofonte.
185
Vernant, Jean-Pierre. Entre Mito y Política. p. 98. Véase también al respecto Detienne, Marcel. Los maestros
de verdad en la Grecia arcaica. Sexto piso. México. 2004.
330
Con esto quiero decir que hay un modo de ser intrínseco a cada estamento que
compone a Calípolis y Magnesia.
Este modo de actuar y, por tanto de ser, guarda una estrecha relación con la
dikaiosyne. Ya que es un acto mismo de justicia el que cada integrante de la pólis actúe
conforme a su lugar dentro de la escala social.
Así, Dikaiosyne se refiere primordialmente a las realizaciones (actos) entre los
hombres (pólis). De aquí que sea razonable buscarla primero en la comunidad y en seguida
determinar quién merece el título de Hombre justo.
“-Sócrates: sería una suerte, a lo que pienso, el poder leer primero las letras grandes, y fijarse
luego en las pequeñas, para ver si resultan ser las mismas. Si existe, según afirmamos, la
justicia del hombre como individuo, ¿no habrá también la justicia de toda la ciudad?”186
La Calípolis es virtuosa sí y sólo sí cada uno de los grupos sociales que la integran
cumplen con las expectativas cifradas en ella. Para esto, Platón hace una división tripartita a
lo largo de toda La República, la división estamentaria que permea el orden establecido en su
pólis es la siguiente. La areté propia del filósofo-rey y la filósofa-reina será la prudencia. La
valentía corresponderá a los guerreros y guerreras de la pólis y, finalmente, la templanza de
los artesanos y artesanas. No obstante y, siguiendo de cerca La República, está la virtud que,
de poseerla, se poseen todas las demás. Platón lo expone como sigue:
Lo que queda en la ciudad, fuera de las tres virtudes que hemos considerado: templanza,
valor y prudencia las virtudes que se corresponden con la división tripartita del alma y de la
ciudad, es aquello que a todas ellas les da la fuerza de nacer, y que una vez nacidas, las
conserva mientras subsiste en ellas. Ahora bien, lo que dijimos es que la justicia sería la
virtud que quedara, después de aquellas tres. 187
La justicia radica en el hecho mismo de ser consecuente entre mis actos y mi naturaleza, es
decir, que exista una afinidad entre el lugar que ocupo en la organización y administración de
la pólis y mi areté propia.
Dicha división la encontramos en la función de cada individuo en relación a su physis.
La naturaleza propia de cada individuo determina los actos y las funciones dentro de la
organización interna de dicha pólis. Así, es justo que cada uno actúe y se desenvuelva de
acuerdo a sus propias capacidades. Las virtudes que se presentan en La República se
186
187
Platón. La República. 368 e.
Ibídem. 433 c.
331
corresponden con cada clase social. Aquí asistimos a la división tripartita del alma que se
corresponde con la división tripartita de Calípolis tomando como partida la definición de
dikaiosyne.
La ley (nomos) es el imperio de la razón y reflejo del actual gobierno divino. Tienen
que existir “hombres divinos” para la guía del resto de los demás.188 La idea de un filósoforey que ejerza paralelamente una actividad sacerdotal-religiosa, es porque establece que quien
ha contemplado las ideas en sí, posibilita el ejercer un poder que, si bien está permeado por
una episteme, sin duda es para gobernar sobre el resto de los estamentos establecidos en La
República; división que se mantiene idéntica en las Leyes (eso como muestra de la constante
de pensamiento referente a la justicia y formación, a la dikaiosyne y a la paideia).
Básicamente, por cada división de hombres habrá una virtud que le corresponde, y que
solamente en la obediencia y ejecución plena de dicha virtud, el estado funcionará
perfectamente.
Cuando asentábamos los fundamentos de la ciudad, establecimos como un deber de
uniforme observancia, que la justicia (dikaiosyne) es, en todo caso, una forma de deber. Y
acuérdate que también establecimos, que cada uno debe ocuparse sólo en una de las cosas
de la ciudad: aquella para la que su naturaleza (physis) tiene mayor aptitud nativa […] la
justicia consiste en hacer cada uno lo suyo y no entrometerse en lo de los demás. 189
Dicho lo anterior, en el libro I de las Leyes, el ateniense muestra que la salud del Estado no
puede fundarse únicamente en la valentía (como sucedió con Esparta), que es la virtud
inferior, sino en el cuidado y fomento de las cuatro virtudes cardinales: prudencia (phylax),
justicia (de la que deben participar todos), valentía; guerreros (as), y templanza (artesanos).190
Es la misma propuesta de virtudes que en La República. Es importante señalar que, por lo
menos, en la división de las virtudes propuesta en La República y Leyes no hay un cambio,
por eso la relevancia de resaltar dicha continuidad entre los dos diálogos político-educativos.
188
Platón. Leyes 713 a-714 a. La República VII 508 a-c. Máximo de Tiro. Disertaciones Filosóficas. III, VIII,
IX, XXXVIII. Este último pensador que pertenece a la segunda sofística, propone en dichas disertaciones el
carácter divino de Pitágoras, Sócrates y Platón, serían estos tres filósofos los que pusieron en contacto la
sabiduría divina con el saber de los mortales.
189
Platón. La República. 433 a-b.
190
Estas cuatro virtudes cardinales que Platón expone ampliamente en La República, habían sido expuesto en el
Alcibíades 121e-122a, como las virtudes que se enseñan a los príncipes en Persia. Tal vez asistimos aquí a una
influencia ya no sólo de la paideia espartana, sino también de los persas. Véase al respecto para obtener una
mejor visión sobre el tema de la paideia persa Jenofonte. La Ciropedia.
332
Las virtudes específicas que constituyen la base de toda acción política son: la valentía (Leyes
625 c-635 e) y la templanza (Leyes 635 e- 650 b). Es decir, que para la realización de una
politeia ateniense la base debe estar en la valentía y la templanza (Leyes), que constituyen las
virtudes correspondientes de La República, la valentía pertenece a los guerreros y la
templanza pertenece a los agricultores-artesanos.191 Platón llama concupiscencia (epithimía)
al apetito inferior, y al superior, en cambio, lo designa con el nombre de thymos: cólera o
coraje, uno y otro subordinados, naturalmente, al imperio de la razón: del lógos.
En suma, la pacífica coexistencia de las tres clases propuestas en La República y las
Leyes es plausible con la contribución de cada una a la justicia del conjunto, ejecutando su
función propia y no otra.
EL RÉGIMEN DE VIDA DEL PHYLAX
Ahora bien, ¿qué justifica una jerarquización de virtudes? ¿Cuál es el motivo que
subyace a someterse a un estamento superior? Básicamente, el régimen de vida de quien será
el phylax. “Uno de los males más grandes de la vida política, según Platón, es la ambición
material de los políticos. Para Platón, la finalidad que perseguía era el divorcio completo de
los poderes político y económico, esperaba obtener una clase de estadistas cuya única
ambición fuese gobernar bien.”192 Con esto introduzco un análisis doble, ya que el phylax
persigue una doble finalidad cuyo objetivo inicial es asimilarse a Dios y de manera inmediata
un desprendimiento de lo material.193
El filósofo-rey, no sólo debe abandonarse a sí mismo para consagrarse al bien común,
sino que debe convertirse en un ejemplo de areté para los demás. Sólo en esa medida logrará
191
El Laques constituye un complemente de dicha visión sobre la valentía y la templanza como virtudes para
actuar en una politeia ateniense.
192
Guthrie. C. K, William. Los Filósofos Griegos: de Tales a Aristóteles. pp. 126-127.
La idea de asimilarse a Dios no solo está expuesta en el Teeteto, en el parágrafo que sirvió de epígrafe a este
trabajo, sino casi literalmente en Leyes 716 b-d. En La República vuelve a exponerlo Sócrates en el libro X “De
los dioses por lo menos no será olvidado jamás todo aquél cuyo empeño ha sido el de hacerse justo y asemejarse
a Dios, mediante la práctica de la virtud, hasta donde es posible a un hombre”. 613 b.
193
333
que sea viable dicha Calípolis. Aquí Platón expone un régimen de vida ascético, en el que el
phylax no siente aprecio por la multiplicidad, en el que debe haber una añoranza por el UnoBien.
“El filósofo no siente gran aprecio ni por la vida ni por los bienes exteriores. Hay en él
un completo olvido de sí mismo, de sus comodidades y placeres para no tener en mira sino el
bien público […] los hombres de bien no quieren gobernar ni por riquezas ni por honores”.194
Tenemos así que Platón propone un tipo de vida genuino y unos conocimientos
propios del guardián de la pólis. La palabra episteme designa conocimientos verdaderos y
válidos, conocimientos que no sean susceptibles de cambio, ni contingentes ni azarosos. Que
en conjunción con un régimen de vida exclusivo del phylax, se logra que entren en armonía la
sabiduría y el poder, como Platón lo dejó en la carta II “La sabiduría y el poder grande tienden
a estar unidos por naturaleza y constantemente se persiguen”.195
EPISTEMOCRACIA Y PAIDEIA
Platón, heredero de la ilustración ateniense, estima que sin educación resulta imposible
perfeccionar la naturaleza, que sin la paideia correspondiente no se puede exigir areté. De
esta manera, lo primero que habría de definir, es, ¿cuáles son las disciplinas que pondrán en
camino a la contemplación de las ideas al que será el phylax? La paideia de dicho personaje
no sólo es estudio en sentido teórico, sino que irá acompañado de un estilo de vida
disciplinado e insobornable como antes se mencionó.
Por cierto, mi excelente Adimanto, proseguí, que aunque alguien pudiera tener por
importantes los numerosos reglamentos que estamos haciendo, en verdad son todos ellos de
poco momento, con tal que se observe aquel solo y grande (méga) mandamiento, o mejor
aún, en lugar de grande, suficiente.
-¿Cuál es?
-La educación (paideia) y la crianza; porque con una buena educación se hacen los
hombres discretos, y así penetrarán fácilmente todas estas cosas y otras que por ahora
dejamos de lado, como la posesión de las mujeres, el matrimonio y la procreación de los
hijos […] La República, una vez ha comenzado con buen impulso, va extendiéndose como
194
195
Platón. La República. 347 b.
Platón. Carta II. 310 e.
334
un círculo.196 La buena crianza y educación (paideia), si se mantienen así, producen buenas
naturalezas, y éstas a su vez, apegándose a tal educación, tórnanse mejores que las que les
han precedido, en todos los aspectos y en el de la procreación.
[…] es preciso que aquellos que tienen a su cuidado la ciudad, se apliquen a que no se
corrompa la educación sin darse ellos cuenta; antes bien han de velar en todo porque no se
innove nada, ni en la gimnástica ni en la música, contra el orden establecido. 197
No obstante y en la misma medida en que el phylax debe ser celoso en que no se incluya
ninguna innovación en la paideia, vemos que en lo que respecta a la influencia de la paideia
espartana en la propuesta político-educativa y filosófica de Platón en La República, es notorio
que existe un alto nivel de exclusión y de mentira que deben manejar los magistrados, a fin de
que el phylax pueda administrar de mejor manera la función propia a su naturaleza y
finalmente, para desempeñar la paideia como corresponde dentro de la politeia platónica.
Los mejores (oí aristói) han de acoplarse con las mejores (tés aristés) tan frecuentemente
como se pueda, y los peores, al contrario, con las peores; y si ha de mantenerse la calidad
superior de la grey, habrá que educar la prole de los primeros, pero no la de los segundos.
[…] Además, y en cuanto a los jóvenes que acrediten su buena calidad en la guerra o en
alguna otra cosa, habrá que darles, con otros honores y recompensas, una licencia más
liberal de holgar con las mujeres; lo cual será a la vez un pretexto para que nazcan hijos, en
la mayor cantidad posible, de la simiente de tales hombres. 198
EPISTEMOCRACIA TEOCRÁTICA
El alma buena actúa según una dirección suprema. El hombre poseedor de dicha “alma
buena” es el filósofo-rey. De ahí la tesis tan conocida como ignorada de Platón; los filósofos
deben gobernar las ciudades, o los reyes y soberanos hacerse filósofos. En el mismo sujeto
deben estar reunidos la sabiduría y el poder, es decir, una episteme y un cratos, no obstante,
hay que tener presente que son conocimientos divinos, de ahí que sea nombrada una
epistemocracia teocrática. Antes de Platón, ya habían existido varios arcontes, varios
gobernadores y oligarcas que reunían bien el binomio sabiduría y poder, por ejemplo; “…los
italiotas a Pitágoras; y los lampsaquenos sepultaron a Anaxágoras, siendo extranjero, y
196
Cfr. Vernant, Jean-Pierre. Mito y Pensamiento en la Grecia Antigua. Paidós. En este texto, Vernant propone
hacer una interpretación en la que la filosofía presocrática estaría determinando la organización de la pólis. En
este caso, que la paideia se extienda desde el centro como un círculo.
197
Platón. La República. 423 c- 424 b.
198 Ibídem. 459 e. 460 b.
335
todavía lo honran hoy en día; y los atenienses, utilizando las leyes de Solón fueron dichosos;
y los lacedemonios, las de Licurgo; y en Tebas, una vez que los jefes se hicieron filósofos,
también la ciudad fue dichosa.”199 Para Platón, los siete sabios,200que fueron apreciados como
gobernantes, legisladores y consejeros políticos, fueron todos formados en una sabiduría
lacónica principalmente, una sabiduría filosófica lacónica.
Así, los legisladores, gobernantes y el phylax mismo tendrán que ocuparse, por un
lado, de los conflictos bélicos con los que necesariamente se encontrarán.201 Es decir, deben
recibir una paideia en la que sepa que tendrá que enfrentarse a los enemigos personales
internos y externos a la pólis misma. Paralelamente, el phylax debe preocuparse y gobernarse
a sí mismo para poder gobernar a los demás.202
A MANERA DE CONCLUSIONES
El ejercer el poder sobre los otros como resultado de un modo de vida auténtico y regio,
acompañado paralelamente de una episteme que legitima dicho ejercicio del poder, es lo que
posibilita que el filósofo se haga rey, o bien que los reyes se hagan filósofos.
Es una propuesta platónica en la que paideia, cratos y una episteme se unen formando
una triada que llevada a cabo de la manera en que sugirió Platón, se vuelven indisolubles y,
principalmente, se vuelve posible vivir en una ciudad bella, en una Calípolis.
BIBLIOGRAFÍA
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UNAM. México. 2010. pp. 287.
*.- Castoriadis, Cornelius. Sobre el político de Platón. Fondo de Cultura Económica. Buenos
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199 Aristóteles. Retórica. 1398b. 18-20.
200 Platón. Protágoras. 343 d-e. Los siete sabios: Tales de Mileto, Pítaco de Mitilene, Bías de Priene, Solón de
Atenas. Cleobulo de Lindos, Misón de Quenea y como séptimo al espartano Quilón.
201
Tal es el caso de la segunda parte del diálogo Alcibíades. Véase. Foucault, Michel. La Hermenéutica del
Sujeto. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2009.
202
Cfr. Foucault, Michel. El coraje de la verdad. Fondo de Cultura Económica. Buenos Aires. 2010.
336
*.- Colli, Giorgio. Platón Político. Sexto Piso. México. 2011. pp. 124.
*.- Foucault, Michel. La Hermenéutica del Sujeto. Fondo de Cultura Económica. Buenos
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*.- Vernant, Jean-Pierre. Entre Mito y Política. Fondo de Cultura Económica. México. 2002.
287pp.
LAS METAS DE LA EDUCACION
EN LAS RAÍCES DE LA CULTURA OCCIDENTAL
Dr. René Rogelio Smith
337
([email protected])
Universidad Adventista del Plata
3103 Libertador San Martín, Entre Ríos, Argentina
RESUMEN
Las metas de la educación, de las cuales la pedagogía tradicional se ocupaba
profusamente, se fueron disipando desde hace unas cuantas décadas. La incertidumbre
teleológica y el malestar de la educación son concomitantes. Pero la pedagogía se sustenta en la
cosmovisión desde la cual se construye. Esta cosmovisión también ampara una concepción de
tiempo, componente imprescindible dentro del cual se inscriben las metas de la educación,
porque no hay fines que se realicen fuera de un trayecto temporal. A esto se adscriben los
proyectos pedagógicos que pretenden logros. La cultura occidental estableció un patrón, muchas
veces contradictorio, que condicionó la ausencia y también la presencia de los fines de la
educación, según en qué cosmovisión se sitúa. En la presente reflexión, luego de exponer las
concepciones de tiempo que provienen de las vertientes ancestrales más destacadas en
Occidente, la griega y la hebrea, se considera que el concepto griego prevaleció en las bases de la
formación del sistema educativo de Occidente, diluyendo los fines de la educación, en razón de
la atemporalidad defendida en sus sistemas filosóficos. La perspectiva hebrea, también
constituyente de la cultura occidental, brindó un ángulo propio, en defensa de un tiempo que
transcurre, un tiempo de eventos. El concepto de tiempo de raíz hebrea y el concepto de tiempo
de fundamento griego, hicieron un proyecto pedagógico incompatible, y ponen, junto a otros
factores, a la educación bajo sospecha.
Palabras clave: teleología de la educación – educación occidental – historia de la educación
– concepto de tiempo en educación
I. INTRODUCCION
Las cavilaciones que el hombre hace sobre sí mismo y sobre la educación, siempre
recorrieron un espectro amplio. El optimismo y el pesimismo son sus límites. Y, mientras que el
primero es apto para la imaginación, el segundo procura sustento en la observación.
338
Los estudios en el área varían sus acentos. Por una parte la euforia por la cultura
planetaria parece anticipar una sociedad mundial confiada. Por la otra, el malestar de la cultura,
el desfase social, los cuestionamientos de valores y la crisis de los sistemas, originan
dimensiones inquietantes.
La educación del hombre y su proyección no puede quedar ajena a los fenómenos
mundiales. De hecho forman parte de la discusión internacional. Y mientras se admiten
problemas profundos, aumenta el esfuerzo en la búsqueda de nuevos paradigmas pedagógicos
que hagan creíble la posibilidad de educar a las personas.
Este fenómeno de la crisis de la educación tuvo su espacio de discusión oficial desde la
realización de la Conferencia Internacional sobre la Crisis de la Educación, realizada en
Williamsburg, Virginia, Estados Unidos, en 1967. Las investigaciones, publicaciones, congresos
y jornadas pedagógicas que se sucedieron, rubricaron las vicisitudes en el campo de la educación
y todavía justifican su análisis.203
Corresponde decir que nuestra pedagogía siempre atendió el tema de la esperanza como
uno de sus capítulos. Lo hizo en nombre de los fines que direccionan la educación del hombre.
Un inexplicable y cauteloso silencio caracterizó, sin embargo a la teleología de las últimas
décadas; como si se hubiesen apagado los proyectos, o como si se acabaran los espacios hacia los
cuales apuntar.
El objetivo de esta comunicación se centra en la búsqueda y exposición de lo que en este
trabajo se considera como el meollo del malestar en la educación, pero delineado desde las bases
de la cultura occidental. Entendiendo que las dos grandes y más destacadas vertientes del
pensamiento ponentino nos llegaron a través de los griegos y de los hebreos, los siguientes
planteos se han de apoyar en estos para el análisis. Delimitando el espectro de categorías
posibles, esta reflexión abordará la concepción de tiempo sobre la cual se construyó la pedagogía
occidental.
El ámbito de la temporalidad y sus consecuencias no es neutral. Su percepción organiza
la teleología de la educación. Hablar de los escollos de la educación, implica, pues, la obligatoria
tematización del tiempo. La importancia de esta consideración no es menor porque sus
203
Las publicaciones de Philip H. Coombs son ya clásicas al respecto. La primera se publicó en 1968 por Oxford
University Press, bajo el título The World Educational Crisis: A Systems Analysis.
339
repercusiones están vigentes hoy, y se agudizan junto a otros problemas sociales y culturales,
cuyas raíces también se dispusieron en la historia lejana, en la cuna de la civilización occidental.
Aunque esta reflexión queda acotada, no se descartan otras vetas particulares que, entre
aciertos y falencias, también configuraron nuestra cultura en general y a la educación en
particular.
II. PROYECTO Y CRISIS
Hablar de crisis implica, al menos en forma subyacente, la percepción de un estado
exento de crisis. Supone un estado de realización posible que satisfaga las expectativas, sean
éstas construcciones racionales creadas, o sean necesidades profundas propias del ámbito
emocional. Estas expectativas organizadas de algún modo se constituyen en proyectos.
Concebir un proyecto implica la esperanza de que las propuestas y esfuerzos puedan
concluir en coincidencia con las aspiraciones. Las expectativas suponen tiempo: un lapso de
realizaciones durante el cual se concretarían las ambiciones. Un proyecto es esperanza. También
es tiempo. No hay esperanza sin tiempo. Luego es reconocido como historia, definida como éxito
o como fracaso con respecto a lo proyectado. Por eso, el abordaje de la crisis involucra un tiempo
que muestra lo ocurrido con respecto a lo esperado. Este aspecto es de especial importancia para
la educación. Pero las metas hoy cuentan con trayectos difusos.
Desde que John Dewey,204 anunció la ausencia de fines de la educación, hoy la práctica
educacional sigue, pero como bajo inercia de la fuerza que resta. Los cánones teleológicos se
fueron desgastando. Sólo quedaría activar la imaginación para construir otra esperanza, otros
proyectos, sin saber si por ventura éstos provocarían nuevos desconciertos. Bien advierte
Adriana Puiggrós que no han aparecido nuevos sujetos sociales o políticos en condiciones de
ofrecer una propuesta pedagógica. Y advierte que ante la crisis
la única forma de interpretarla y comprenderla reside en colocarse en la perspectiva del
fin de nuestra cultura, es decir, vivir los sentimientos apocalípticos que nos abarcan
204
John Dewey. Democracia y educación. Buenos Aires: Losada, 1971.
340
cuando reconocemos la imposibilidad de cerrar las explicaciones en torno a algunas de
las teorías que nos constituyen.205
El planteo principal del problema, sin embargo, yace en canales mucho más profundos. ¿Es
posible construir el proyecto educativo en la concepción de tiempo que la cultura de Occidente
asumió?
El diseño general de la Modernidad se construyó en un amplio margen de racionalidad
rigurosa de aquello que llevaría a la humanidad a su mejor realización por el sendero del
progreso indefinido. Daba por sentado que los conflictos menores, serían instancias intermedias
provisorias o dislocaciones parciales que quedarían superadas en el transcurso de los procesos.
Así lo afirmó más tarde, Durkheim, por ejemplo.206 La crisis como desmembramiento y
desintegración no tuvo lugar en el pensamiento de la Modernidad. Sus
presuposiciones
se
nutrieron principalmente del entramado filosófico de la antigua Grecia, pero contó también con
recursos entregado por los antiguos hebreos, especialmente en la percepción de la esperanza.
Al respecto, Beriain (2000) afirma: “Hebraísmo y helenismo: entre estos dos puntos de
influencia se mueve nuestro mundo. Unas veces siente más poderosamente la atracción de
uno de ellos, otras veces la del otro; el equilibrio entre ellos raramente existe”207.
La cosmovisión griega partió de unos presupuestos con los cuales procuraría
interpretar lo existente pero sin éste. Su particular estilo de creencias los involucró en una
búsqueda racional, metafísica, evasiva. Buscaron las esencias. Por su parte, los hebreos
también disponían de una cosmovisión desde la cual desarrollaron una filosofía. La
perspectiva hebrea orientó la reflexión sobre la existencia.208
Siendo que la concepción de tiempo puede ser determinante en la lectura de la
problemática filosófica de la educación, vamos a detenernos en ésta desde estas dos
cosmovisiones. Pasemos a considerar el problema del tiempo, en tanto constituyente
205
Adriana Puiggrós. Imaginación y crisis en la educación latinoamericana. México: Alianza Editorial Mejicana,
1990, 51.
206
E. Durkheim. Educación y sociología. París: Alcan, 1926.
207
J. Beriain. La lucha de los dioses en la modernidad. Barcelona: Anthropos 2000, 143.
208
René Smith. El proceso pedagógico. Montemorelos: Universidad de Montemorelos, 2005, caps. 1 y 2.
341
fundamental de la teleología que, a su vez, es tiempo. Dos presuposiciones básicas se han
ensayado para aprehender significativamente las cosas:209
a) la temporalidad, propia del pensamiento hebreo, y
b) la atemporalidad, presuposición básica del griego.
III. LA PEDAGOGÍA ATEMPORAL
La fuerza de las categorías griegas, y luego greco-romanas, afianzadas posteriormente
desde la religión medieval europea, configuró el pensamiento ponentino con una fuerza
inusitada. Viene al caso como ilustración, una expresión de Whitehead, quien, al comentar el
pensamiento platónico aseguró que la filosofía de Occidente no es sino una serie de notas de pie
de página a los escritos de Platón.210
Desde los anticipos de Parménides y pasando por Platón y Aristóteles, la Verdad, es decir
la realidad última, es inmutable indestructible, completa, no deviene, es inmóvil, es atemporal.
Esta posición les permitió eliminar la tan temible contingencia. Los hechos no serían otra cosa
que imitación de la realidad. La realidad nunca quedaría afectada por lo contingente: por el
contrario quedaría condicionada indefectiblemente por la realidad última que sería atemporal. En
esta postura el tiempo es una adversidad que se corresponde con la materia.
Reuniendo distintas expresiones de la filosofía griega, se puede afirmar que ese tiempo
de los griegos está fijado al destino, teñido de pesimismo, ahistórico, como un presente eterno.211
Desde el plano ontológico, el pasado y el futuro pierden todo sentido. El hombre sintió el terror
por la historia; por esta razón la abolía periódicamente para regenerarla en el eterno retorno.212
Pero al mismo tiempo manifestaba el pánico por el futuro y la fobia por el movimiento, cayendo
irremediablemente en la impotencia total para crear e innovar.
209
F. Canale. A Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presupposition. Berrien
Springs, Michigan: Andrews University Press, 1983.
210
Citado por R. Smith. El acceso a la educación primaria inicial en el marco de la regulación pedagógica.
Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba (tesis doctoral), 1994, 49.
211
Mario Pereyra. La esperanza-desesperanza como variable diagnóstica y predictiva del proceso saludenfermedad. Córdoba: Universidad Católica de Córdoba (tesis doctoral), 1995.
212
M. Eliade. El mito del eterno retorno. Buenos Aires: Planeta, 1985.
342
Desde que los actores del Renacimiento tímidamente redimensionaron el significado de
la existencia, y se vieran un poco más libres de la férula eclesiástica, el hombre comenzó a
construir su propio proyecto en el marco de un secularismo creciente. El hombre se hizo cargo
de su situación. Esta actitud no lo eximió de las categorías del pensamiento heredado. Estas
permanecieron subyacentes. Luego permearon inconscientemente sus reflexiones y sus actos. Y
así pasó a la Modernidad.
Pero todavía es necesario mencionar un absurdo más. Y se sitúa en el campo de la
antropología. Dados los límites de este trabajo, bastará con esbozarlo. El dualismo antropológico
griego fue una ingeniosa explicación para colocar al hombre fuera del tiempo. Le otorgó alma
atemporal. Construido, así, se pretendió liberar a las personas de las trabas de lo corpóreo. De
esta manera se resolvía la dolorosa pluralidad que imponía la contingencia. De este modo el
cuerpo, la materia, fueron particularmente despreciados. Así el hombre quedó libre del tiempo,
inscripto en la atemporalidad. Esta percepción fuertemente afianzada en el Medioevo, negó el
cuerpo y concluyó negando al hombre del tiempo.
Esta manera de concebir el tiempo (concepto definiente, luego, de la teleología de la
educación) provocó en nuestra civilización lo que algunos han caracterizado como
"cortocircuitos":213 La atemporalidad fue incompatible con el tiempo de la vida. Sin tiempo no
hay proyecto posible. En la atemporalidad no se construyen esperanzas. Y caducan los fines de la
educación. En esta cosmovisión el hombre imaginado no coincidió con el que vive en el tiempo.
Cabe señalar que la problemática heredada no se ha extinguido. En razón de
injustificados desvaríos de las corrientes del pensamiento contemporáneo, el problema vuelve a
aparecer, a veces reeditado en ámbitos místicos y esotéricos, en la búsqueda sincera de
respuestas coherentes.214
Pasando este problema al telón de trasfondo que motiva estas reflexiones, es necesario
destacar que un proyecto no se construye al margen de la cosmovisión imperante. En toda nueva
propuesta se infiltran presuposiciones históricamente afianzadas que involuntaria e
insensiblemente se hacen presentes. Estos elementos ancestrales permean a la educación
sostenida y condenada al mismo tiempo. Todo proyecto es una opción que se enmarca en el
213
Enrique Espinosa. La concepción de tiempo en el pensamiento hebreo. Chillán: Universidad Adventista de
Chile, s.f.
214
J. Metz. "The End of Time?" Univeritas. Vol. 1, pp. 52-57, 1994.
343
tiempo. Luego se espera algún resultado. El proyecto cargado de expectativas genera un campo
teleológico. Pero el tiempo ausente amarra los fines y anula las metas, definiendo estructuras que
subyacen, tamizan y eligen los contenidos. Así la concepción de tiempo condiciona o anula las
metas. La acusación más dura que afecta al sistema educativo en los finales de la Modernidad
está vinculada con la incapacidad de fijar planteos teleológicos coherentes para la educación.
La alternativa que queda es la repetición eterna de los desfases (al estilo del eterno
retorno del tiempo griego) en un afán por borrar las incongruencias y los desajustes. Un sistema
teleológico incompatible se afianzó para un tiempo que transcurre, para un educando temporal
que exige tiempo y materia.
La particular concepción de materia que Occidente heredó de la cultura griega no
favoreció el trazado de la teleología educativa. Por eso pretendió desarrollar sus actos educativos
fuera del tiempo. La educación concreta fue hasta aquí un conflicto entre la temporalidad y una
evasión de la realidad. Construida como superestructura atemporal, siempre apareció como
neutra, aséptica, descomprometida con lo material y con el mundo. Esta pretensión ya implicó la
abolición de la neutralidad. Y aunque la pedagogía contemporánea procuró su corrección,
demasiado a menudo la educación continuó siendo el templo al cual sólo concurrieron las almas
descarnadas (en tanto partícipes del mundo inteligible). Luego se sobredimensionó el intelecto.
Los cuerpos fueron negados en tanto considerados sede material y concreta del mal.
Esta cosmovisión del mundo griego fuertemente protegida por la cristiandad helenizada,
superó las fronteras de la Edad Media. Esta proyección que penetró nuestros tiempos está
adecuadamente presentada a partir del análisis de los planes de estudios habidos a lo largo de la
historia occidental.215
El alma incorpórea, atemporal, pura esencia, condición impuesta por la religión de la
cristiandad (creída como la única "parte" compatible con la imagen de Dios), fue la parte
privilegiada de la educación. Este invento que separa al hombre en dos naturalezas distintas,
fuertemente defendida también por Descartes, pilar de la Modernidad, coronó el proyecto
educativo de Occidente fuera del tiempo, deteriorando sustancialmente el diseño teleológico de
215
Véase J. Dolch. Lehrplan des Abendlandes. Zweieinhalb Jahrtausende seiner Geschichte. (El plan de estudios
de occidente. Dos milenios y medio de su historia). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1982.
Véase también J. Wächter. Wom Zweck der Erziehung. (De la finalidad de la educación). Hildesheim,
Olms Verlag, 1991
344
la educación.216 Al diseñar la pedagogía en un tiempo fuera del tiempo, debilita toda motivación
educadora.
Los proyectos sin tiempo posible, con un hombre atemporal, constituyen la raíz de la
crisis en la cual se debate la educación. Luego la desintegración del proyecto es el impuesto que
queda por cobrar.
IV. APERTURA DE LA BUSQUEDA
Antes que irrumpieran los planteos de la Posmodernidad, Eduard Spranger (1882-1963),
influyente pedagogo de varias generaciones de educadores occidentales, evaluó con fuerza
positiva las peculiaridades de la herencia griega para nuestros tiempos. Afirmó que la
educación en general “puede considerarse siempre como una institución emplazada fuera del
trajín mundano…”217 y luego explica:
El hecho de haber adjudicado a la cultura greco-romana semejante posición dentro de
la escolaridad europea hasta mucho después de la Edad Media [destaca el rol del
colegio humanista clásico], se debe esencialmente a tres razones: se trata de una
cultura indiscutiblemente fecunda y elevada; en muchos aspectos decisivos constituye
la base histórica de nuestra cultura cristiano-europea; la cultura antigua representa una
cultura acabada en el sentido de que sus luchas ya no son actuales sino pueden
considerarse como terminadas. Luego la cultura greco-romana se ha convertido, para
nuestros tiempos, en un enorme depósito de bienes culturales que, siendo
profundamente asimilados por nosotros, sin dejar de ser modelos, por decirlo así, de
una cultura ajena, ofrecen un abundante material de ejercitación para aquellos que
alguna vez habrán de desempeñar, en nuestro presente, un papel de guías
espirituales.218
Acerca de la simbiosis helenístico-cristiana se
han hecho prolijas descripciones
relacionadas con el trasvasamiento que transformó la cosmovisión hebrea bíblica del
cristianismo original hacia la plataforma de base griega durante la Edad Media. Las
216
Véase G. Sepúlveda. "El paradigma de la educación actual". La educación. OEA, Nº 104, 1989.
Eduard Spranger. Espíritu de la educación europea. Buenos Aires: Kapelusz, 1961, 111; la cursiva
pertenece al original.
217
218
Ibid.
345
investigaciones hechas al respecto eximen de mayores comentarios aquí.219 A pesar de la fuerza
del pensamiento griego, históricamente queda demostrada la incidencia del hebraísmo en nuestra
civilización. Occidente c aptó las formas de monoteísmo, los conceptos de bien, los principios de
la moral, los conceptos de revelación, los principios de la parousía, etc., todos ellos provenientes
principalmente de la cosmovisión hebrea, y por lo tanto inscriptas en formas de tiempo vivencial,
que transcurre. Pero también es necesario recordar que mientras avanzaban las formas
helenizadas, la calidad del aporte del pensamiento hebreo antiguo quedó relegado a la espera de
su turno. Sin embargo un reconocimiento tardío vuelve a poner a la educación en el marco de la
mirada hebrea. Mèlich comenta al respecto:
¿Qué originalidad presenta el pensamiento hebreo que pueda ser rescatado para la
construcción de una teleología en crisis? “Occidente ha olvidado la importancia de lo
religioso. La cultura europea se ha quedado solamente con una cara de la moneda,
extirpando todo elemento religioso y sagrado, como clave hermenéutica que haga
posible su comprensión, y la educación occidental ha sucumbido a esta enorme falacia.
La Biblia es absolutamente necesaria para comprender la pedagogía occidental,
nuestros mundos de la vida. Sin ella el hombre contemporáneo queda huérfano,
bastardo.”220
Los hebreos de la antigüedad entendieron al tiempo como experiencia y al futuro como
meta, con la conciencia de avanzar hacia un fin, en una concepción de tiempo lineal, nunca
cíclico. Su cosmovisión estuvo cargada de las ideas de continuidad y progreso, de improvisación
y de "inseguridad radical", siempre abiertos al campo de lo posible, pero con un referente
exterior: Dios.
221
También la divinidad está comprometida con la historia. De allí que el
fenómeno del profetismo no sea una opción sino la línea de seguridad y de orientación que el
pueblo asumió para abordar el futuro y resignificar el pasado histórico.
Para los hebreos el tiempo es más una cuestión de ritmos que de ciclos. La existencia es
fundamentalmente temporal. Mientras que los griegos se sienten atraídos por la peculiaridad y la
esencia de las cosas, a los hebreos les fascinan los eventos. Mientras que para los griegos el
tiempo es una abstracción para los hebreos es una sucesión de hechos. Hasta Dios es temporal
219
220
221
Véase E. Dussel. El dualismo en la antropología de la cristiandad. Buenos Aires: Guadalupe, 1974.
Mélich. Ob. cit., 174; la cursiva corresponde al original.
M. Pereyra. Ob. cit.
346
en tanto que no actúa fuera del tiempo. Lo que está fuera del tiempo no existe.222 No hay
dualismos posibles.
Para el hebreo el cambio y la contingencia son fenómenos que responden a una legalidad
global con explicación coherente, compatible con el tiempo que no es ajeno a la eternidad. Esto
pone a la educación en un marco teleológico destacado. No hay vacíos porque el tiempo
secuenciado proféticamente toma coherencia y orienta un proceso que lleva a algo: son los fines.
V. CONCLUSION
Mientras que la educación sistemática avanzó por los carriles de la cosmovisión griega
condicionada por la fuerza expansiva de un cristianismo fuertemente helenizado, la cosmovisión
hebrea, también incidente en la cultura ponentina, había quedado parcialmente replegada.
De los griegos hemos heredado un concepto de tiempo ahistórico, y un hombre sin
tiempo, sin proyección y sin futuro, determinando la crisis de la educación. Ésta, sin parámetros,
y con metas truncadas por el "no tiempo" de los griegos la empuja a los bordes de la crisis.
La teleología de la educación, como estructura de sentido pedagógico para la educación
contemporánea pareciera haber agotado los recursos y acabado el imaginario.
Ante esta conjunción se hace válida la revisión de la cosmovisión hebrea, desde la cual es
posible reconceptualizar el problema del tiempo, categoría obligatoria de la educación como
proyecto. Seguramente los pedagogos, y los responsables de la educación hemos de usar este
tiempo de gracia para efectuar los replanteos pertinentes, cuyas líneas quedan aquí esbozadas.
222
J. Metz. Ob. cit.
347
El debate en torno a la distinción entre educación y adoctrinamiento en la tradición
analítica del siglo XX.
Manuel Amado
Laura Mesa
Universidad Nacional de Colombia
RESUMEN: A mediados del siglo XX, gracias a las publicaciones inaugurales de filósofos
como Charles Hardie, Richard Peters, Paul Hirts y John Wilson, emerge el movimiento de la
filosofía analítica de la educación. Éste se caracterizó por enfocar la discusión en el análisis
del uso en el lenguaje corriente de la palabra “educación” y la utilidad de este análisis para
decidir cuestiones fundamentales como determinar si una persona está bien o mal educada,
evaluar la legitimidad de prácticas presuntamente educativas y justificar la elección de un
currículo (el problema de lo que debe o no ser enseñado).
Los objetivos de este trabajo son: primero, presentar una de las propuestas más influenciales
y discutidas en la tradición analítica; a saber, la concepción de educación como iniciación a
una forma de vida, defendida por Peters (1965, 1973a, 1973b) y la distinción entre educación
y adoctrinamiento implicada en esta propuesta. Segundo, proponer una solución a los
problemas que, según los críticos, la concepción de Peters enfrenta. Estos problemas,
principalmente, son: I) el concepto de “educación”, como muchos conceptos, es dependiente
del contexto social, de modo que cualquier concepción de educación, como la de Peters, será
348
o bien incorrecta, o sólo aplicable a un contexto reducido. Consecuentemente, cualquier
concepción de educación será incapaz de responder a las cuestiones fundamentales arriba
mencionadas. II) La idea de la educación como iniciación implica formas de adoctrinamiento
(en sentido peyorativo) y, en consecuencia, el concepto de educación no puede ser un
concepto normativo positivo, contrario a lo que se esperaría que fuera. El resultado principal
esperado es una revisión del análisis de Peters que no sea susceptible a las críticas sobre su
aplicabilidad a diversos contextos sociales y sobre su utilidad para sugerir respuestas a
cuestiones fundamentales de la práctica educativa. Adicionalmente, se pretende cuestionar la
idea de que la educación como iniciación implique adoctrinamiento (en sentido peyorativo).
PALABRAS CLAVE: Educación, Filosofía Analítica, Adoctrinamiento, Iniciación.
1. FILOSOFÍA ANALÍTICA DE LA EDUCACIÓN
La filosofía analítica no es tanto una escuela de pensamiento como un método o estilo de
hacer filosofía. De acuerdo con este método, la aclaración de conceptos es fundamental para
la actividad filosófica. Si bien la aclaración de conceptos se práctica desde Sócrates, para el
filósofo analítico es necesario un riguroso análisis en el que se aplique las herramientas de la
lógica formal en la evaluación crítica de argumentos y premisas tanto explícitas como
implícitas en un discurso. Aunque los autores clásicos analíticos como Frege, Russell y
Moore tratan temas específicos como la referencia lingüística y el contenido mental, la
filosofía analítica se ha aplicado a una gran diversidad de temas de interés filosófico,
incluyendo el tema de la educación.
Es relativamente reciente la entrada de la filosofía analítica en el campo de la educación.
Uno de los trabajos que marca los inicios del movimiento analítico de la educación es Truth
and Fallacy in Educational Theory, escrito por C.D. Hardie y publicado en 1941. Hardie pone
de manifiesto que es necesario partir del análisis del lenguaje ordinario para desarrollar una
teoría educativa. Después de Hardie, a mediados del siglo XX, gracias a las publicaciones
inaugurales de filósofos como Richard Peters, Paul Hirts y John Wilson, se consolida el
movimiento de la filosofía analítica de la educación. Éste se caracterizó por enfocar la
discusión en dos frentes: el primero es el análisis del uso en el lenguaje corriente de la palabra
“educación” y la utilidad de este análisis para decidir cuestiones fundamentales como
determinar si una persona está bien o mal educada, evaluar la legitimidad de prácticas
presuntamente educativas y justificar la elección de un currículo (el problema de lo que debe
349
o no ser enseñado). El segundo frente es la posibilidad de una justificación no-instrumental de
la educación, es decir, la posibilidad de mostrar que la educación es valiosa en sí misma.
Preeminente en el contexto anglosajón es el trabajo de Richard Peters, quien desarrolló el
análisis del concepto de educación más influyente y controversial en la tradición analítica. La
importancia del trabajo de Peters radica tanto en el detalle y rigor de su análisis como en su
insistencia en la idea de que muchas cuestiones acerca de la práctica educativa pueden ser
resueltas una vez se resuelvan cuestiones puramente conceptuales.
Los objetivos de este trabajo son: primero, presentar la concepción de educación como
iniciación a una forma de vida defendida por Peters (1965, 1973a, 1973b) y la distinción
entre educación y adoctrinamiento (en sentido peyorativo) implicada en esta concepción.
Segundo, proponer una solución a los problemas que, según los críticos, la concepción de
Peters enfrenta. Estos problemas, principalmente, son: I) el concepto de “educación”, como
muchos conceptos, es dependiente del contexto social, de modo que cualquier concepción de
educación, como la de Peters, será o bien incorrecta, o sólo aplicable a un contexto reducido.
Consecuentemente, cualquier concepción de educación será incapaz de responder a las
cuestiones fundamentales arriba mencionadas. II) La idea de la educación como iniciación
implica formas de adoctrinamiento (en sentido peyorativo) y, en consecuencia, el concepto de
educación no puede ser un concepto normativo positivo, contrario a lo que se esperaría que
fuera.
2. SENTIDOS DE EDUCACIÓN, INICIACIÓN Y ADOCTRINAMIENTO
Como muchos términos del español, y de cualquier otro lenguaje natural, el término
“educación” es semánticamente ambiguo y vago. El término es ambiguo porque al figurar en
distintas oraciones puede expresar sentidos distintos y es vago porque aun cuando su sentido
fuera único, los límites entre lo que es y no es educación tienden a ser difusos (lo cual no
implica, al menos no inmediatamente, que no existan casos claros en los que el término se
aplique sin mayor discusión).
Se pueden distinguir al menos tres sentidos diferentes en el uso cotidiano del término
“educación” (y sus afines: “educar”, “educador”, “persona educada”). El primer sentido, y
probablemente el más amplio, es un sentido sociológico que comprende todas aquellas
prácticas implicadas en la crianza de las personas en una sociedad. Estas prácticas pueden
desarrollarse en instituciones educativas, pero pueden también ejercerse, y se ejercen, en
350
sociedades en las que no existen escuelas formales: sociedades en las que la familia o la
comunidad juegan un rol central en la aculturación de los niños. En este sentido de
“educación” es irrelevante que los contenidos (creencias, doctrinas) adquiridos sean falsos o
injustificados, y que las prácticas adquiridas (rituales, costumbres, hábitos, influencias) sean
moralmente cuestionables desde un punto de vista externo o no contribuyan al mejoramiento
del carácter o la mente de un individuo. Así, “educación” en este sentido es similar a, y
seguramente intercambiable con, términos como “crianza”, “culturización” y “socialización”.
Una oración como “Fue educado como un nazi”, que parece a primera vista chocante, puede
ser más naturalmente parafraseada mediante la oración “Fue criado como un nazi”, sugiriendo
que una práctica (o serie de prácticas) de socialización se han llevado a cabo en, o han sido
inspiradas por, un entorno permeado por la ideología nazi.
El segundo sentido de “educación”, que puede solaparse en algunos aspectos con el sentido
anterior, es un sentido institucional. En este sentido se agrupan los procesos en los que
participa una persona vinculada a la escuela o a una similar institución formal. A menudo es
éste el sentido que se invoca en frases que se usan para cuantificar o cualificar la educación
como “Está en el nivel medio de educación”, “Lleva más de diez años de educación”. Este
sentido es sugerido también en frases despectivas como “Todos esos años de educación no
han servido para nada”, en las que hay una referencia implícita a la escolaridad (colegio,
universidad, etc.).
Hay aún otro sentido de “educación” que, sin ser tan amplio como el sentido sociológico,
hace inteligible oraciones como “Asistí a la escuela, pero no tuve educación” y “Obtuve
buena educación aunque no asistí a la escuela”, oraciones que resultarían contradictorias de
ser interpretadas bajo el sentido institucional. Este tercer sentido de la educación involucra un
refinamiento o ilustración general que puede no ser desarrollado en la escuela ni ser infundido
en la crianza o, al menos, no exclusivamente. Es justamente bajo este sentido que se valora si
una institución es o no una buena institución ‘educativa’, y es éste el sentido de “educación”
que ha sido protagonista en la tradición analítica de la filosofía de la educación y,
particularmente, en el controversial análisis de Richard Peters (1965, 1973a, 1973b).
Según Peters, este tercer sentido de “educación” lo debemos entender en términos de una
iniciación a formas de pensamiento públicas y deseables articuladas en el lenguaje. Esta
iniciación, aunque puede implicar socialización, se diferencia de otras formas de socialización
al pretender, deliberadamente y de manera consciente y voluntaria por parte del educado, el
351
desarrollo de estados mentales caracterizados por conocimiento y entendimiento amplios, así
como de actitudes emocionales apropiadas. Para lograr una mayor comprensión del análisis de
Peters es conveniente caracterizar su propuesta mediante los criterios puntuales que incorpora.
Esquemáticamente, Peters fundamenta su análisis de la educación como iniciación en una
distinción terminológica hecha famosa por el filósofo Gilbert Ryle (1949), y provee tres
criterios que, presuntamente, toda práctica ‘educativa’ merecedora de ese título debe cumplir.
En lo que resta de esta sección explicaremos la distinción Ryleana y los mencionados criterios
de Peters.
De acuerdo con Ryle (1949: 113-114), entre los verbos de acción pueden encontrarse dos
tipos de términos: los términos de logro y los términos de tarea. Mientras que los términos de
tarea designan prácticas específicas cuya realización no implica éxito o fracaso, los términos
de logro no seleccionan un conjunto específico de prácticas o actividades, sino un resultado o
logro que puede ser obtenido por la realización de alguna actividad. Los términos de logro,
por oposición a los de tarea, al ser aplicados correctamente implican el éxito de la actividad.
Por ejemplo, el término “convencer” es un término de logro. Por un lado, “convencer” no
designa una actividad específica que constituya su satisfacción: se puede convencer de varias
maneras, como rogando o argumentando. El término “convencer”, más bien, designa un logro
obtenido gracias a la práctica apropiada de una actividad. Así, cuando decimos
“Argumentamos el punto y convencimos” no estamos haciendo dos cosas, argumentar y
convencer, sino sólo una, argumentar de una manera apropiada. Por otro lado, “convencer
exitosamente” resulta redundante, pues convencer a alguien de algo implica el éxito de la
tarea que se llevó a cabo para este propósito. No sucede lo mismo con el verbo “argumentar”,
verbo que designa una tarea específica pero que no implica éxito: es perfectamente inteligible
argumentar mal y no es nada redundante decir que se ha “argumentado exitosamente”. El
verbo “argumentar”, a diferencia del verbo “convencer”, es un término de tarea, mas no de
logro.
¿Es el verbo “educar” un término de logro o sólo un término de tarea? La respuesta de
Peters es que “educar”, en el sentido en consideración, es un término de éxito. Si Peters tiene
razón, son dos las consecuencias que se siguen de esto. En primer lugar, “educar” no designa
una o varias prácticas específicas y, en consecuencia, educar no está ligado necesariamente a
ninguna de ellas: educar no implica necesariamente entrenar, instruir, o alguna otra práctica o
transacción específica entre estudiantes y profesores; más bien, la educación es un logro que
352
se obtiene por la aplicación apropiada de alguna o algunas de estas prácticas. Se puede, así,
educar de muchas maneras. Por esta razón, Peters escoge el término “iniciación”, pues es lo
suficientemente general para englobar las muy diferentes prácticas que pueden conducir a la
educación de una persona. En segundo lugar, no es posible que alguien se eduque y falle, así
como no es posible ganar una carrera y fallar en hacerlo (aunque se puede, claro, correr la
carrera y fallar). Si alguien pasa por los procesos apropiados para ser educado, no puede haber
fallado en educarse. En síntesis, “educar”, aunque no designa una actividad específica, sí
denota un tipo de logro específico que la aplicación apropiada de alguna u otra actividad
puede alcanzar.
Siguiendo a Peters, el sentido mismo de “educar” provee una serie de criterios generales que
determinan, al menos en parte, lo que significa una aplicación apropiada de una práctica
educativa y, por tanto, criterios que debe satisfacer toda actividad o práctica que se emplee
para obtener el logro que el término “educar” designa. Estos criterios son, básicamente, tres:
el criterio del valor, el criterio del conocimiento y el criterio procedimental.
El criterio del valor subraya que la educación es un logro positivo; en otras palabras, lo que
obtiene una persona al ser educada es una serie de estados mentales y habilidades deseables.
No es posible que alguien reciba educación en el sentido en consideración y esto no implique
algo valioso o bueno. En este respecto, educar es similar a reformar: una persona reformada es
una persona que sufre un cambio hacia un estado mejor. De acuerdo con Peters, lo que
determina lo que es valioso o deseable depende tanto de la sociedad como del educador. Así,
al menos en nuestro contexto social, no tiene sentido decir que a alguien se le eduque para
robar o contrabandear. Conforme con el criterio del valor, toda práctica educativa debe ser
una práctica deseable o valiosa, lo cual no significa que toda práctica valiosa sea educativa:
aprender a escalar es valioso, pero esto no significa de inmediato que escalar sea una práctica
educativa. Se deben considerar los otros dos criterios para empezar a decidir la calidad
educativa de una práctica.
El criterio del conocimiento es complejo ya que tiene varias dimensiones: cantidad, calidad,
variedad y perspectiva cognitiva. Según Peters, para la educación no sólo es importante tener
una gran cantidad de conocimiento proposicional (‘saber que’) acerca de una materia; por
ejemplo, física teórica. Una persona puede estar muy bien informada en el sentido de tener un
vasto conocimiento proposicional sobre física, pero esto no la hace educada si la persona no
entiende los principios que subyacen a este conocimiento o no tiene idea de cómo se justifica
353
o se evalúa. Almacenar información no es una práctica educativa en sí misma si no existe la
habilidad de justificar o evaluar esta información; si existe esta habilidad, hablamos de un
conocimiento con calidad. Por otro lado, incluso si una persona tiene conocimiento y
entendimiento de un tema, no podemos calificarlo como educado si carece de otro tipo de
conocimientos proposicionales (matemática, historia, biología, etc.) y conocimientos prácticos
(‘saber cómo’) académicos (como el pensamiento crítico) y emocionales. Una persona cuyo
conocimiento se enfoca estrechamente es, a lo más, una persona entrenada, no educada. Esto
significa que la variedad en los tipos de conocimiento adquirido es al menos tan importante
para la educación como lo son la cantidad y la calidad de un solo tipo de conocimiento. Dado
que la cantidad y variedad de conocimiento probablemente sea ilimitada, la noción de persona
educada es un ideal al que de una forma probablemente asintótica podemos acercarnos.
Además de las dimensiones de cantidad, calidad y variedad, el criterio del conocimiento
tiene una dimensión a la que Peters bautiza con el nombre de “Perspectiva Cognitiva”. La
perspectiva cognitiva es la capacidad de establecer vínculos entre los diversos tipos de
conocimiento (saberes que y saberes como) que se poseen y de aplicar estos mismos a nuevas
circunstancias y aspectos más amplios de la vida; por ejemplo, apreciar la perspectiva
histórica, la significación social, estética y económica de diversos modos de pensamiento y
conformar, así, una visión de mundo que integre estos aspectos. De acuerdo con Peters, esta
dimensión del criterio del conocimiento captura la idea de que en el sentido de educación en
discusión no hablamos de “educación como filósofo”, “educación como biólogo” o
“educación como ingeniero”; estas expresiones corresponden más propiamente al sentido
institucional de educación o pueden ser más precisamente interpretadas si se reducen a un
discurso sobre entrenamiento: “Está entrenado como ingeniero” es, según esto, más preciso
que “Está educado como ingeniero” pues “entrenar”, a diferencia de “educar”, sugiere un
enfoque especializado. Cuando empleamos el sentido central de “educación”, hablamos de
una persona como siendo educada sin más o de la educación de la persona en su totalidad.
Finalmente, el tercer criterio del análisis de Peters, el criterio procedimental, permite junto
con los otros dos criterios capturar la idea de que la educación (al menos toda instancia clara
de educación) es completamente opuesta al adoctrinamiento, entendido en un sentido
peyorativo. Adoctrinar en este sentido involucra hacer que un individuo llegue a aceptar una
creencia sin ninguna evidencia y sin ningún tipo de reparo o posibilidad de cuestionamiento,
ya sea porque se falla en dar bases evidenciales y evaluativas o porque se falsifica
354
deliberadamente la evidencia, haciéndola pasar por irrefutable. Hay dos puntos importantes
que cabe resaltar de esta noción de adoctrinamiento que son frecuentemente señalados en la
literatura analítica223. En primer lugar, el adoctrinamiento es compatible con que el individuo
adoctrinado sea consciente
y acepte voluntariamente participar del proceso de
adoctrinamiento; pero también es compatible con que el individuo sea sometido a dicho
proceso en un estado de inconsciencia o en contra de su voluntad (como podría ocurrir si el
individuo es sometido a hipnosis o ‘lavado de cerebro’). En segundo lugar, el adoctrinamiento
es compatible con que las creencias insertadas sean verdaderas. El adoctrinamiento es, así,
neutral con respecto al contenido de las creencias, mas no con el modo en que llegan a ser
adquiridas.
El criterio del conocimiento permite desterrar del terreno educativo a toda práctica que
permita la adquisición consciente y voluntaria, pero ciega de creencias: creencias que un
individuo adquiere, pero de las que no entiende su justificación ni es capaz de cuestionar o
considerar como falibles. El criterio procedimental, por su parte, descarta cualquier práctica
educativa que violente la voluntad o consciencia de un individuo, pues de acuerdo con este
criterio un proceso educativo debe cumplir con dos condiciones: primero, el proceso debe ser
tal que el educador no sólo logre transmitir a su pupilo algo valioso, sino que logre transmitir
la idea misma de que lo que enseña es valioso. Segundo, la manera de hacer lo primero no
debe transgredir la voluntad y la consciencia del pupilo. Nótese que aunque el criterio
procedimental proscribe formas de condicionamiento y lavado de cerebro, no proscribe
ciertos métodos coercitivos (órdenes, por ejemplo), si hay buenas razones para la aplicación
de los mismos, pues el pupilo puede ser consciente de la aplicación de estos métodos,
resistirse y no aceptar la coerción.
El análisis de Peters ha causado gran controversia dentro y fuera de la tradición analítica. En
lo que sigue, examinaremos críticamente dos de las principales objeciones a este análisis y
propondremos sendas maneras de resistirlas.
3.
CONTEXTO
DEPENDENCIA
DÉBIL
Y
ADOCTRINAMIENTO
METODOLÓGICO
223
Véase Snook(1972) para un compendio de los distintos sentidos de adoctrinamiento (indoctrination)
empleados en el debate al interior de la tradición analítica, y las discusiones de White(1967), Thieessen(1985) y
Hamm (1989) sobre el concepto de adoctrinamiento.
355
Una de las objeciones al análisis de Peters realmente tiene como objetivo socavar cualquier
tipo de análisis general del término “educación” y términos similares224. De acuerdo con esta
objeción una gran cantidad de conceptos sociales, si no todos, son tales que no podemos
esperar un acuerdo general acerca de su precisa definición. La razón de esto es que cada
cultura o sociedad ‘fabrica’ su propia definición de los conceptos sociales de modo que una
sociedad, cultura o incluso un pequeño grupo de interés puede tener un concepto propio de,
por ejemplo, educación, incompatible con el concepto de educación de otra sociedad, cultura
o grupo de interés. Este desacuerdo entre culturas es tan radical que no hay ningún esquema
conceptual inter-cultural, ni ningún hecho, que nos permita decidir si el concepto de
educación de una cultura es correcto o incorrecto. La consecuencia de esto es que lo que
consideremos una práctica educativa correcta, puede ser considerada como una práctica
educativa incorrecta en otra cultura y no hay ningún método racional intercultural para decidir
cuál de las dos prácticas es más apropiada que la otra, esta pregunta simplemente no aplica. El
concepto de educación, como cualquier otro concepto social, que, según la objeción en
consideración, se comporta de este modo es un concepto radicalmente dependiente del
contexto.
Si esta objeción es correcta, el análisis de Peters no puede pretender un alcance amplio en el
sentido de cobijar un concepto de educación intercultural, tal vez sólo nos dice lo que
entiende una cierta cultura occidental por educación. O lo que es peor, dado que el análisis de
Peters, según la objeción, no puede asegurar que cobije algo más que el concepto de un
pequeño grupo de interés o élite, los criterios que conforman su análisis no podrán ser usados
para recomendar o proscribir prácticas presuntamente educativas incluso dentro de una cultura
occidental.
Aunque es cierto, como lo muestran muy bien los interminables debates al respecto, que no
hay un consenso general acerca del concepto de educación incluso en nuestra cultura, creemos
que inferir de este hecho que el concepto de educación es radicalmente dependiente del
contexto es falaz. La razón de esto es que los críticos confunden la ambigüedad
o la
vaguedad del concepto de educación con la dependencia radical del contexto. Las razones
aducidas a favor de esta dependencia muestran, a lo más, lo que llamaremos una dependencia
del contexto débil.
224
Véase Carr (2003) para una versión reciente de esta crítica aplicada al análisis de Peters. En Gallie (1955) y
MacIntyre (1973) puede encontrarse la versión general de la crítica aplicada a los conceptos sociales.
356
En primer lugar, hay que subrayar que del hecho de que no haya un acuerdo general sobre lo
que significa “educación” no implica que el concepto de educación sea radicalmente
dependiente del contexto. La falta de acuerdo puede explicarse debido a que el concepto
mismo de educación, interculturalmente compartido, es vago de modo que los límites de su
aplicación son difusos. El hecho de que existan casos fronterizos de prácticas educativas
(casos de los que no sabemos, y tal vez no podamos saber, si son o no prácticas educativas
legítimas), explicaría el desacuerdo sin suponer que el concepto de educación no es
intercultural. Una analogía puede ser útil para ver este punto: el término “calvo” es un
término vago debido a que no sabemos con precisión cuáles son los límites de la aplicación
del concepto; no sabemos, por ejemplo, cuántos cabellos debe tener alguien para que lo
dejemos de considerar calvo o cuántos cabellos debe perder alguien para que lo consideremos
calvo. Discutir al respecto nos tomaría una eternidad. No obstante, el hecho de que haya una
imprecisión esencial en el concepto calvo, no muestra que no exista una noción central de
calvo, como alguien con poco cabello, que sea interculturalmente compartida.
A menudo se insiste en que la dependencia radical del concepto de educación no surge sólo
de la falta de acuerdo general, sino del hecho de que en varios grupos lo que se considera
valioso es muy distinto. Esto por sí mismo tampoco excluye la existencia de un concepto
intercultural de educación y, mucho menos, atenta contra la generalidad del análisis de Peters,
pues éste análisis no dictamina exactamente qué específicamente es lo valioso. Si en una
cultura es educativamente valioso jugar Póker, el hecho de que en la nuestra no lo sea, no
muestra que el concepto de educación no sea compartido. Esto, por una parte, porque aún
podemos interpretar a la cultura ajena como empleando, en este caso, el concepto de
entrenamiento más bien que como empleando el concepto de educación. Por otra parte, es al
menos concebible que en la cultura ajena la enseñanza del Póker se encuentre inmersa en una
serie de procesos que cumplan con los tres requisitos de Peters (valor, conocimiento y
procedimiento). El análisis de Peters, como se indicó arriba, admite que se puede educar de
muchas formas.
De manera similar se puede responder a los argumentos que aducen la dependencia radical
de diferencias en lo que se consideran métodos educativos en otras culturas: una cultura puede
no valorar el empleo de libros u otras prácticas catedráticas occidentales, incluso entre los
contenidos específicos de su currículo pueden no figurar la física o la geografía. Esto no
indica dependencia radical, sólo diferencias en métodos y contenido, diferencias que aún son
357
compatibles con que el análisis de Peters sea (interculturalmente) correcto. En una cultura se
puede privilegiar ciertos conocimientos sobre otros, pero la jerarquización del conocimiento
es compatible con que se aprecie la cantidad y variedad del conocimiento.
Tal vez pueda pensarse que existe, o puede existir, una sociedad en la que lo que se
considera valioso sea impartido violando el criterio del conocimiento y la segunda condición
del criterio procedimental de Peters (el que atañe a la conciencia y voluntad del pupilo). Ésta
sería una sociedad similar a la descrita por George Orwell en su famosa obra 1984. No
obstante, señalar ejemplos reales o imaginarios de este tipo de sociedades no es todavía
mostrar una dependencia radical. Aún se debe mostrar que no es adecuado describir a estas
sociedades como empleando un concepto incorrecto de educación o como sociedades en las
que no hay una comprensión de este concepto. Algo que, hasta el momento, jamás se ha
mostrado.
Es un hecho que el término “educación” puede variar de contenido dependiendo de las
oraciones en las que aparezca. Estas variaciones, sin embargo, no se explican necesariamente
apelando a la dependencia radical, pues también pueden ser explicadas en términos de
ambigüedad, como se explicaron algunas diferencias al principio de este texto, o en términos
de dependencia del contexto débil: un término como “cortar” cambia de contenido
dependiendo del contexto oracional en el que aparece, pues la palabra no significa
exactamente lo mismo cuando ocurre en “cortar el césped” que cuando ocurre en “cortar un
pastel”. Aunque esta variación de contenido no parece un caso de ambigüedad, sino de
dependencia contextual, esto no significa que “cortar” no pueda expresar un concepto que sea
común a todas estas variaciones contextuales y que se complemente de maneras distintas toda
vez que aparezca en contextos distintos. Esto es lo que significa que “cortar” es un término
que tiene una dependencia del contexto débil. Lo mismo podría ser dicho del término
“educar”: no hay razones para suponer que la dependencia del contexto de este término no sea
una dependencia débil más bien que una dependencia radical.
Otra objeción, dirigida específicamente contra el análisis de Peters, mantiene que es
inevitable en la noción de iniciación admitir prácticas de adoctrinamiento en sentido
peyorativo. De este modo, el análisis de Peters o bien es incorrecto o el concepto mismo de
educación es compatible con la ‘enseñanza’ por adoctrinamiento, algo que en principio resulta
inaceptable225. Según los críticos, la enseñanza de la mayor parte de conocimientos
225
Esta objeción puede encontrarse explícitamente en Thiessen (1985).
358
proposicionales como las ciencias físicas, biológicas, la aritmética y la lógica inevitablemente
implica la adquisición ciega de creencias: dado que estos conocimientos se construyen a partir
de principios que no se justifican ni se cuestionan, dichos principios se adquirirían de forma
ciega. Aunque la adquisición ciega de creencias atenta contra la dimensión de la calidad del
conocimiento, proscribir la enseñanza de conocimientos proposicionales atenta contra la
dimensión de la cantidad
y variedad
del conocimiento. Así, el análisis de Peters es
incorrecto o admite el adoctrinamiento en un sentido peyorativo.
La idea de que la educación es opuesta al adoctrinamiento ha sido empleada para proscribir
la ‘enseñanza’ de ciertos contenidos. Por ejemplo, de acuerdo con un argumento clásico, la
‘enseñanza’ de la religión no es una práctica educativa genuina, pues implica la adquisición
ciega de creencias (como la creencia en la existencia de una divinidad). Si los críticos de
Peters están en lo cierto, el argumento clásico en contra de la religión pierde su fuerza debido
a la inevitabilidad del adoctrinamiento en los procesos educativos. Creemos, no obstante, que
el análisis de Peters puede ser modificado para encarar la crítica de la inevitabilidad del
adoctrinamiento y fortalecer el argumento clásico en contra de la ‘enseñanza’ de la religión.
En términos generales, nuestra propuesta consiste en hacer una distinción entre
adoctrinamiento puro y adoctrinamiento metodológico. El adoctrinamiento puro consiste en
hacer que un individuo acepte una o varias proposiciones sin ninguna evidencia y sin proveer
herramientas para cuestionar o evaluar esas proposiciones. El adoctrinamiento metodológico,
aunque inicialmente procura que un individuo adquiera ciertos principios sin ninguna
evidencia, se diferencia del adoctrinamiento puro en dos aspectos: primero, la adquisición de
los principios es un medio, mas no un fin, para construir una teoría, explicar o predecir
fenómenos y, segundo, la fase inicial de adoctrinamiento provee herramientas para que,
eventualmente, los principios inicialmente adquiridos puedan ser puestos en duda o, incluso,
abandonados por consideraciones racionales (evidencia empírica o argumentación a priori).
La evaluación de los principios inicialmente introducidos ciegamente es central en el
adoctrinamiento metodológico, como opuesto al adoctrinamiento puro.
Así, por ejemplo, la ‘enseñanza’ de la lógica puede incorporar un elemento de
adoctrinamiento metodológico al presentar, inicialmente y sin mayor evidencia, ciertos
principios básicos o axiomas (como los del cálculo proposicional clásico) con la intención de
construir una teoría de la inferencia válida y brindar elementos para, eventualmente, evaluar
críticamente los mismos axiomas que se introdujeron inicialmente y, consecuentemente,
359
considerar principios alternativos (como los de las lógicas no-clásicas). Similarmente, la
enseñanza de las demás ciencias puede ser impartida en procesos que impliquen
adoctrinamiento metodológico.
Para responder a la crítica de la inevitabilidad del adoctrinamiento, basta con aumentar los
criterios de Peters de tal forma que se rechace el adoctrinamiento puro y se admita el
adoctrinamiento metodológico, pues este último no incluye, al menos no a largo plazo, los
aspectos negativos del adoctrinamiento puro al mismo tiempo que no proscribe la ‘enseñanza’
de una gran cantidad de conocimientos proposicionales. De esta forma, el análisis de Peters
modificado se mantiene alejado del adoctrinamiento en un sentido peyorativo sin violar el
criterio del conocimiento.
A partir de la distinción en consideración también se puede bloquear la crítica al argumento
clásico en contra de la ‘enseñanza’ de la religión: dado que la instrucción religiosa usualmente
no contempla la eventual evaluación o rechazo de los principios que introduce ciegamente, la
religión no puede ser impartida en un proceso que incorpore adoctrinamiento metodológico,
sino sólo en uno que suponga adoctrinamiento puro. Esto hace que la ‘enseñanza’ de la
religión, como es usualmente impartida, no sea una práctica educativa genuina, si el análisis
de Peters modificado es correcto.
360
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Ministro Gustavo Capanema: alterações no programa do ensino de filosofia em
função da Reforma Educacional na Era Vargas
Introdução
A investigação proposta nesta pesquisa tem como tema principal a atuação de Gustavo
Capanema Filho (1900-1985) frente ao Ministério da Educação e Saúde entre os anos de 1934
e 1945. Historicamente, o período caracteriza-se como um espaço de rearticulação social,
econômica e política, no qual Capanema figura como o ministro que mais tempo se mantém
alinhado a Getúlio Vargas226, no Governo Constitucional (1934-1937) e no Estado Novo
(1937-1945), assumindo a responsabilidade de reorganizar o sistema educacional brasileiro. A
atuação de Capanema reflete a centralização do regime instituído pelo Estado Novo,
promovendo ações mediante o uso de uma postura rígida e pormenorizada frente ao
Ministério da Educação e Saúde.
A pergunta que norteia o desenvolvimento desde artigo questiona a atuação de
Gustavo Capanema para a organização do ensino Filosofia no período em que foi Ministro da
Educação e Saúde. Dessa maneira, busca-se aqui, como objetivo geral, compreender as ações
de Gustavo Capanema realizadas no âmbito do Ministério da Educação e Saúde,
particularmente no que se refere às reformas promovidas por Capanema no ensino de
Filosofia, considerando como foram projetadas e articuladas as orientações pedagógicas para
formação do cidadão brasileiro naquele contexto.
Coloca-se o desafio nesta investigação Histórica da Educação de não relatar os fatos
apenas cronologicamente, mas enfatizar as peculiaridades dos principais fatos ocorridos, bem
como nas tendências do pensamento pedagógico, de modo a indicar a relação existente entre a
226
Getúlio Vargas nasceu em 19 de abril de 1882 em São Borja, cidade do Rio Grande do Sul situada na
fronteira com a Argentina. Quando adolescente, provavelmente por algum interesse escolar, declarou ter nascido
em 1883, e durante um século acreditou-se ser esse o ano de seu nascimento. Seus pais, Cândida Dornelles
Vargas e Manoel do Nascimento Vargas, pertenciam a famílias de estancieiros com prestígio na política local.
Aos 16 anos alistou-se no batalhão de São Borja e aos 18 foi admitido na Escola Tática e de Tiro de Rio Pardo.
Em dezembro de 1903, após dar baixa do Exército, entrou para a Faculdade de Direito de Porto Alegre. Na
faculdade, Getúlio estreitou laços com o castilhismo e com a juventude republicana. Em março de 1911, casouse com Darcy Lima Sarmanho, filha do estancieiro e comerciante Antônio Sarmanho. Nos anos seguintes, o
casal teria cinco filhos: Lutero, Jandira, Alzira, Manoel e Getúlio. (D’ARAUJO, 2011).
362
educação e a sociedade no período histórico estudado, tendo em vista o espaço e as condições
que permitiram sua organização naquele período. Neste sentido, compreende-se que a história
é feita por atores sociais, os quais atuam e são condicionados pelo desenvolvimento das forças
produtivas à que estão inseridos.
A metodologia adotada, desse modo, pressupõe que a consciência dos homens é
determinada pela materialidade histórica. Dessa forma, é nas práticas sociais que o homem se
produz, de acordo com o que esta em constante contato, e a educação, como qualquer outra
produção, é resultante da produção social. Essa compreensão exige um reportar constante às
transformações econômicas, políticas e sociais que marcaram o século XX. Para tanto, as
reflexões apontadas ao longo deste ensaio destacam registros documentais como fontes
históricas que apresentam evidências da atuação fundamental de Gustavo Capanema na
organização do ensino de filosofia no Brasil no período sob análise, sobretudo
compreendendo a implicação política e social deste movimento para o campo da educação.
O Intelectual Gustavo Capanema
Gustavo Capanema Filho nasceu no município de Pitangui, Estado de Minas Gerais,
em 10 de agosto de 1900, filho de Gustavo Xavier da Silva Capanema e Marcelina Júlia de
Freitas Capanema, pertencentes ambos a tradicionais famílias mineiras, vivendo até 10 de
março de 1985. Foi casado com Maria de Alencastro Massot Capanema e teve dois filhos,
Gustavo Afonso e Maria da Glória.
Em 1920 matriculou-se na Faculdade de Direito da capital Mineira, alcançando o
prêmio Rio Branco, destinado ao aluno que obtenha notas distintas em todas as matérias do
curso. Ao terminar a faculdade regressou a Pitangui, abrindo um escritório de advocacia ao
mesmo tempo em que exercia o magistério, como professor de Psicologia, Higiene Escolar e
Ciências Naturais na Escola Normal local. Foi vereador na Câmara de Vereadores de seu
município, onde tomou interesse e dedicou-se ao estudo dos assuntos de administração
municipal.
Capanema desenvolveu sua atividade profissional voltada à política, tornou-se
setembro de 1929, oficial de gabinete do governo mineiro de Olegário Maciel e em novembro
do mesmo ano assumiu a Secretaria do Interior. Dessa forma, iniciou seu envolvimento com
363
cargos na esfera pública e, a partir de então, intensificou sua relação e seu posicionamento
político em acordo aos ideais nacionalistas.
Com a morte de Olegário Maciel, a 6 de setembro de 1933, Capanema é nomeado por
ato do Governo Provisório interventor interino em Minas Gerais, permanecendo três meses no
cargo. Após esse momento voltou a seu posto na área da advocacia e às suas ocupações de
intelectuais.
Em janeiro de 1934, já próximo de Getúlio Vargas politicamente, Capanema é
convidado a assumir o cargo de representante no Departamento Nacional do Café. Capanema
recusara a oferta, e em carta enviada ao então Presidente da República declarou que: “[...]
para que se exerça, conscienciosamente, com real proveito para o serviço público, aquele
cargo, cumpre ao seu detentor morar no Rio de Janeiro. Capanema agradece o convite e se
coloca ao seu dispor para trabalhar na defesa do seu governo [...]” (HORTA, 2010, p.17).
Em momento posterior, ainda no ano de 1934, Gustavo Capanema foi convidado por
Getúlio Vargas a assumir o Ministério da Educação e Saúde, cargo que aceita e desempenha
por onze anos, até o final do Estado Novo, em 1945. Como atribuições importantes associadas
ao papel político de Capanema a partir de então é relevante destacar que “[...] Durante sua
permanência no Ministério, Capanema empreendeu a reorganização administrativa do mesmo,
iniciou a elaboração das leis orgânicas do ensino e tomou diversas iniciativas no campo
cultural [...].” (HORTA, 2010, p. 19).
Capanema teve como assessor-chefe em seu gabinete o poeta Carlos Drummond de
Andrade, cercou-se de uma equipe diversificada, integrada, entre outros, por Mário de
Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio
Costa, Vinícius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo Melo Franco de
Andrade (BOMENY, 2001).
Após sua passagem pelo governo Vargas, Capanema continuou sua vida pública na
carreira política em várias esferas. Conforme pontua Horta (2010), Capanema foi eleito no dia
2 de dezembro de 1945 deputado por Minas Gerais, na legenda Partido Social Democrático
(PSD). Em sua trajetória política “[...] Foi membro da Comissão constitucional, encarregada
de redigir o anteprojeto da nova Carta. Durante os trabalhos constituintes, participou
ativamente dos debates relativos ao capítulo sobre educação, tendo apresentado substitutivo
que veio a constituir a base do texto [...]” (HORTA, 2001, p.20). Em outubro de 1950
Capanema se reelegeu deputado federal, em 1954 ele foi reeleito para o mesmo cargo.
364
Foi membro da delegação à 50ª reunião da União Interparlamentar, em Bruxelas, no
ano de 1961. Chefiou a delegação à IX conferência Geral da UNESCO, em Nova Delhi, na
Índia, na condição de Embaixador extraordinário. Em 1966 foi reeleito para a Câmara
Federal, em 1970 elegeu-se senador por Minas Gerais. Em janeiro de 1979, ao término de seu
último mandato no Senado, encerrou sua carreira política, fixando residência no Rio de
Janeiro.
Toma-se como pressuposto, para esse estudo, que as reformas empreendidas por
Capanema no sistema educacional brasileiro devem ser compreendidas como uma análise
crítica do papel que a educação assume em cada momento histórico. Para tanto, considera-se
que a existência de diferentes características e funções que são atribuídas à educação em
função do momento histórico vivenciado pelos sujeitos. Destacam-se as reformas
educacionais como resultante de um amplo movimento, fazendo referência ao contexto
político, a dinâmica social em que surgiu, as leis que orientaram as mudanças e aos
personagens que atuaram para afirmação deste momento de profundas transformações na
educação brasileira.
A disciplina de Filosofia no Ensino Secundário
Ao assumir o cargo como novo ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo
Capanema fez estudos sobre a situação das áreas pertinentes ao ministério e os planejamentos
traçados sobre o setor da Educação e Saúde. Em 30 de julho de 1934, em conversa com
Getúlio Vargas, o ministro da Educação e Saúde Pública, destacou “[...] justificou e fez a
apologia das reformas do ministério propostas pelo seu antecessor, ampliou essas reformas
com novas perspectivas [...]” (VARGAS, 1995a, p. 311). Como reflexo dessa reunião com
Vargas houve uma redefinição dos planos para o ministério. Afirma Capanema que “[...] O
Ministério da Educação e Saúde Pública, quanto ao ensino não se tornou apenas um
departamento burocrático para administração de repartições e serviços educacionais, mas
passou a constituir um centro nacional de estudos e pesquisas [...]”. (RELATÓRIO...,1946). O
intelectual passa, gradativamente, a incorporar sua concepção de educação e busca apoio no
governo para consolidar mudanças efetivas neste campo.
365
Por meio de decretos, tornou-se “[...] evidente a orientação do novo governo de tratar a
educação como questão nacional, convertendo-se, portanto, em objeto de regulamentação, nos
seus diversos níveis e modalidades, por parte do governo central [...]”. (SAVIANI, 2010, p.
196). No entanto, ao analisarmos a relação dos decretos elaborados nessa conjuntura, observase que o currículo do ensino secundário era de difícil acesso ao povo, sendo o ensino primário
deixado de lado sem uma ação mais intensa, bem como o ensino profissional e normal não
fizeram parte do plano da educação. Em face disso a sociedade daquele período histórico
[...] oscilava entre a necessidade de inovar e organizar a vida social, em novas
bases, e a velha ordem, com a qual ainda se encontrava seriamente
comprometida. As classes que iam gradativamente assumindo o poder
contavam entre si com a presença, de um lado, dos jovens oficiais
progressistas e da nova burguesia industrial, que exigiam inovações a toda a
ordem, mas, de outro lado, contavam também com a presença de parte da
velha aristocracia liberal, ainda apegada às velhas concepções. A expansão do
ensino e sua renovação ficaram, portanto, subordinadas ao jogo de forças que
essas camadas manipulavam na estrutura do poder (ROMANELLI, 2010, p.
145).
Diante da nova configuração, o sistema educacional refletia dois aspectos, por um
lado, o impulso da revolução, o qual buscava uma transformação na sociedade com a inserção
dos indivíduos para o seu desenvolvimento e, por outro, a constante busca do poder
centralizador do governo. A educação como um dos pontos chave do novo governo teve como
objetivo formar um novo homem para atuar em uma nova proposta de sociedade, o que o
governo getulista a via como aspecto importante para o desenvolvimento do país. Buscava-se
desenvolver o sentimento patriótico de uma forma ordenada e constante, vinculando estes
valores as propostas reformistas no campo da educação. Neste sentido, destaca-se que
[...] educação nacional era definida como tendo por objetivo “formar o homem
completo, útil à vida social. Pelo preparo e aperfeiçoamento de suas
faculdades morais e intelectuais e atividades físicas” sendo tarefa precípua da
família e dos públicos. A transmissão de conhecimento seria sua tarefa
imediata, mas nem de longe a mais importante. Fazia ainda parte dos
princípios gerais à definição do que se devia entender por “espírito brasileiro”
(“orientação baseada nas tradições cristãs e históricas da pátria”) e
“consciência da solidariedade humana” (“prática da justiça e da fraternidade
entre pessoas e classes sociais, bem como nas relações internacionais”),
termos que a Constituição utilizava para caracterizar os objetivos gerais da
educação nacional [...]. (SCHWARTZMAN, 1984, p.182-183).
366
Com o intuito de transformação, mudança do cenário brasileiro Capanema organiza
uma reforma educacional as quais foram chamadas de Leis Orgânicas que se desenvolveram
em todos os níveis da educação escolar, ou seja, educação primária, educação secundária,
ensino profissional, ensino normal e ensino universitário. Para o Ensino Secundário, conforme
o Decreto-Lei nº 4.244 de 1942 que trata sobre a organização deste nível de ensino, o
primeiro ciclo, o curso ginasial, ficou distribuído em quatro anos. No segundo ciclo do ensino
secundário, o qual foi divido em dois cursos o Clássico com duração de três anos e o Curso
Científico, também com duração de três anos, neste nível foram desenvolvidas a disciplinas
de Filosofia ambos no terceiro ano.
Dessa forma, o curso clássico e o curso científico, tiveram por objetivo consolidar uma
educação ministrada no curso ginasial e bem assim desenvolvê-la e aprofundá-la. Enquanto
que no curso clássico, terá por objetivo a formação intelectual, além de um maior
conhecimento de filosofia, um acentuado estudo das letras antigas, o grego e o latim, no curso
científico, essa formação será marcada por um estudo maior de ciências. (BRASIL, 4.244 1942b).
No ensino secundário, Capanema traçou objetivos para a formação do aluno deste grau
de ensino, tendo em vista o objetivo principal forma a personalidade integral dos adolescentes
e “[...] acentuar a elevar, na formação espiritual dos adolescentes, a consciência patriótica e a
consciência humanística; e da preparação intelectual geral que possa servir de base a estudos
mais elevados de formação especial [...]”. (BRASIL, 1942b). Havia uma organização central
do ensino secundário e deveria ser seguida como modelo. Este grau de ensino foi um dos
aspectos mais importantes para a organização Nacional de Educação, considerando seu
caráter formador da força produtiva que viria a se inserir no mercado de trabalho. A inserção
da educação moral e cívica tinha objetivos claros neste grau de ensino buscando com essa
formação base para desenvolver “[...] a compreensão do valor e do destino do homem, e,
como base do patriotismo, a compreensão da continuidade histórica do povo brasileiro, de
seus problemas e desígnios, e de sua missão em meio aos outros povos [...]” (BRASIL,
1942b).
O estabelecimento da educação moral e cívica tem um papel de destaque no
currículo do ensino secundário apresenta como elemento essencial que suponha desenvolver
nos adolescentes a moralidade a partir do “[...] espírito de disciplina, a dedicação aos ideais e
a consciência da responsabilidade”, (BRASIL, 1942b), sendo assim responsabilidade de quem
ministrava essa disciplina difundir a ideologia de “[...] que é finalidade do ensino secundário
367
formar às individualidades condutoras, pelo que força é desenvolver nos alunos a capacidade
de iniciativa e de decisão e todos os atributos fortes da vontade [...]”. (BRASIL, 1942b).
Na idealização do projeto do ensino de Filosofia, o curso secundário deveria “[...]
coroar a formação cultural do aluno, procurando apresentar-lhe unificadamente, em
conclusões harmoniosas, o conteúdo do conhecimento humano [...]” (DOCUMENTOS...,
1942). Neste sentido, portanto a contribuição da disciplina seria do conhecimento teórico
objetivando uma conclusão linear sem discussões e conflitos teóricos.
Dessa forma, a disciplina de Filosofia, foi organizada com duas horas semanais e
segundo o planejamento do projeto foi idealizado para 3ª séria do curso Clássico. O qual foi
constituído pelo Decreto-Lei N. 4.244 – de 9 de abril de 1942 no Art. 14, as disciplinas
constitutivas do curso clássico tiveram a seguinte seriação: Primeira série : 1) Português. 2)
Latim. 3) Grego. 4) Francês ou inglês 5) Espanhol. 6) Matemática. 7) História geral. 8)
Geografia geral. Segunda série: 1) Português, 2) Latim. 3) Grego, 4) Francês ou inglês 5)
Espanhol, 6) Matemática, 7) Física, 8) Química, 9) História geral, 10) Geografia geral.
Terceira série: 1) Português, 2) Latim, 3) Grego, 4) Matemática, 5) Física, 6) Química, 7)
Biologia, 8) História do Brasil, 9) Geografia do Brasil, 10) Filosofia. Para o curso científico,
foi organizado da seguinte forma, conforme o Art. 15. As disciplinas constitutivas do curso
científico tiveram a seguinte seriação: Primeira série: 1) Português, 2) Francês, 3) Inglês, 4)
Espanhol, 5) Matemática, 6) Física, 7) Química, 8) História geral, 9) Geografia geral.
Segunda série: 1) Português, 2) Francês, 3) Inglês, 4) Matemática, 5) Física, 6) Química, 7)
Biologia, 8) História geral, 9) Geografia geral, 10) Desenho. Terceira série: 1) Português, 2)
Matemática, 3) Física, 4) Química, 5) Biologia, 6) História do Brasil, 7) Geografia do Brasil,
8) Filosofia, 9) Desenho.
A organização da Filosofia ficou organizada da seguinte forma:
I - Filosofia Grega: filósofos e sistemas: - Sócrates – Platão- Aristóteles –
Epicurismo –Estoicismo – Neoplatonismo de Plotino.
II - Idade Média: ainda filósofos e sistemas: Santo Agostinho – Santo
Anselmo – Santo Alberto Magno – Santo Tomaz de Aquino – A escolática –
Duns Scoto – Os dissidentes.
III - Renascença – Novo platonismo; Aristótelismo; ceticismo, socialistmo
de Morus, Machiavelli, Campanella etc.
IV - A filosofia moderna – Seus grandes representantes – Empirismo –
racionalismo – fenomenismo – cristicismo – positivismo – evolucionismo
ecletismo.
368
V - A filosofia contemporânea – Sistemas e doutrinadores – Materialismo –
Sociologismo – Determinismo econômico – Cientificismo – Idealismo –
Intucionismo - Existencialismo – Neoescolática.
VI - A filosofia no Brasil – Os nossos pensadores e a filosofia.
(DOCUMENTOS..., 1942)
O ensino de Filosofia mostrava-se como campo de imparcialidade, indicava-se aos
professores da disciplina de filosofia a apresentação das análises dos conteúdos por uma via
da neutralidade tanto para os argumentos como para as soluções apresentadas para os sistemas
e escolas, neste sentido os estudos se davam em um:
[...] campo de movimentos nas lições, demarcando objetivamente os
principais caminhos da cultura intelectual do homem através das idades,
recomenda-se, neste curso, que se parta sempre da notação histórica dos
problemas, nas análises inteligentes e estudo imparcial dos argumentos e
soluções que os vários sistemas e escolas tem apresentado e discutido [...]
(DOCUMENTOS..., 1942).
Torna-se possível elucidar que o momento histórico de atuação desse político foi
marcado pelo cunho nacionalista e centralizador do Estado Novo, o que favoreceu a ação
direta de Capanema no campo educação, dada a forte influência e apoio político de Getúlio
Vargas a suas ações frente ao ministério. Contata-se que o projeto educacional para o Brasil
neste período foi elaborado para a permanência da organização social, no que se refere ao
quadro de disciplinas e aos objetivos, não havia o intuito de modificar esse cenário, mas de
uma conservação. Entende-se por esse viés a busca na disciplina de filosofia assim como
outras, a imparcialidade que refere-se ao questionamento do sujeito, pois a prática filosófica
neste sentido tem de se desenvolver ao ponto de convencer e ‘sequestrar’ o sujeito, atraindo
sua atenção e respeito a ordem social a ele apresentada e o não questionamento mais profundo
da análise social.
Considerações Finais
Como reflexão, pode-se associar a ação de Capanema frente ao Ministério da
Educação e da Saúde por dois ângulos: por um lado, mostra-se uma posição centralizadora, a
qual refletia o regime instituído pelo Estado Novo, promovendo ações mediante o uso de
369
palavra forte frente ao ministério; como segundo aspecto, a atuação de Capanema demonstra
ser expansionista, levando em conta seu estilo e sua marca na nova organização do campo
educacional, o qual deu uma identidade à educação brasileira que serviu de exemplo para as
demais reformas educacionais.
No período do governo de Getúlio Vargas, tendo como Ministro da Educação e Saúde
Gustavo Capanema, procurou-se com o planejamento da organização do ensino da disciplina
da Filosofia no curso Secundário introduzir uma formação da filosofia aos alunos de uma
forma suave, ou seja, sem conflitos, mostrando sempre a imparcialidade nos argumentos dos
professores na apresentação do conhecimento científico.
Capanema desempenhou seu papel em um campo em que se desenvolveram grandes
expectativas enquanto promoção do regime e formação do futuro cidadão brasileiro. Como
apresenta Bomeny (2001), de forma esclarecedora, “[...] A área da educação nos expõe a uma
realidade muito distinta. E talvez possamos compreender tal distinção por ser essa a área que
define a orientação de mentalidades e interfere na eleição de valores [...]”. Dada às
perspectivas que orientavam o período histórico da República, os quais apostavam no
desenvolvimento no país “[...] esperava-se que a educação inspirasse o que deveria ser ‘o
homem novo’ para um ‘Estado Novo’[...]”. (BOMENY, 2001, p. 31). As reformas no campo
da educação como forma de promover a formação do cidadão em acordo com o projeto de um
novo país demonstrava ser de muita importância, o que confere a Capanema um papel de
destaque frente às propostas de readequação na formação educacional.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.244 de 09/04/1942b. Lei orgânica do ensino secundário. Rio de
Janeiro, 1942. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1940-1949/decretolei-4244-9-abril-1942-414155-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 17 de ago. 2012.
BOMENY, Helena Maria Bousquet. “Infedelidades Eletivas: Intelectuais e Política”. In:
BOMENY, Helena Maria Bousquet (org.) Constelação Capanema: intelectuais políticas. Rio
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Câmara,
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Disponível
em:
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DOCUMENTOS, sobre alterações no programa de filosofia em função da Reforma
Capanema do ensino secundário. Gustavo Capanema. GC g 1942.12.29 (29 pgs.). Geral.
Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1942.
HORTA, José Silvério Baia. Gustavo Capanema. Recife: Editora Massangana, 2010.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 36. Ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2010.
SAVIANI, Dermeval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores
Associados, 2010.
SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA, Vanda Maria
Ribeiro. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1984.
La aporía como razón y violencia en la formación humana
María Cristina Rico León227
FFyL, UNAM
[email protected]
Introducción
Tal vez uno de los temas más destacados dentro de la filosofía platónica, y que se relaciona
inmediatamente con la formación humana, sea la posible enseñabilidad de la virtud. Platón mismo
realizó una insuperable tarea pedagógica durante su época; se puede decir que Sócrates también lo
hizo al despertar en sus discípulos la búsqueda de la verdad, mediante el diálogo y el reconocimiento
de la propia ignorancia. Pero Platón no sólo siguió desarrollando las ideas de su maestro, sino que las
llevó a otro nivel: continuó con sus propios conceptos y abarcó una gran cantidad de temas filosóficos,
227
Licenciada en Pedagogía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de
México; miembro del Seminario de Filosofía de la Educación (PIFFyL 2010 014).
371
que conocemos gracias a sus escritos, a la par que condujo una escuela, la Academia, y concibió un
ideal de Estado.
El tema que compete a esta ponencia se relaciona con un aspecto de la filosofía de Sócrates y Platón
que, como se verá, guarda relación con la formación humana: la aporía. Mi propósito con el presente
trabajo es acercarme al significado de este término, por un lado, para destacar su importancia dentro
del método formativo socrático y la violencia que conlleva, y por el otro, para resaltar su posibilidad
formativa. Para acercarme a las nociones sobre la aporía como razón y violencia, he retomado algunos
fragmentos del diálogo Menón que, a mi parecer, ilustran de forma clara el término en estos dos
sentidos. Por otro lado, y para tratar la posibilidad formativa de la aporía, he retomado el artículo “El
sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío”.228
El camino sin salida
El concepto central de esta reflexión, la aporía, en la literatura platónica, se distingue por ser un
camino sin salida, en el que Sócrates pone en aprietos a sus interlocutores a través de un método de
razonamiento que puede apreciarse en varios diálogos. Este término, utilizado también por filósofos
presocráticos, se usaba para referirse a una situación de gran dificultad o a la imposibilidad de salida,
tanto literal como metafóricamente.
El término aporía se construye a partir del sustantivo póros, que significa «paso», y del prefijo a,
«sin» o «falto de»; el significado etimológico es, por consiguiente, «sin camino», «sin paso», y
también «sin recurso».229 Se usa de forma general para referirse a un recurso o medio, y de forma
particular para referirse a algo concreto como un camino, un puente, un canal, un poro, etc.
En su obra La aporía en Aristóteles, Javier Aguirre menciona tres campos semánticos a los que puede
aplicarse la aporía: el físico o espacial, la vida humana y el gnoseológico.230 El primero se utilizaba
para referirse a la presencia de un obstáculo en un lugar, aunque también se podía adaptar a «la
metáfora frecuente del filósofo en el camino o de la filosofía representada como un viaje».231 Por otra
parte, un individuo podía encontrarse ante un obstáculo de forma literal o metafórica, cuando este
228
Texto elaborado para el seminario “Platón. Menón”, coordinado por la doctora Ute Schmidt del
Departamento de Posgrado de la Facultad de Filosofía y Letras como parte del doctorado en Pedagogía que
cursó la autora de dicho artículo, Valentina Cantón.
229
Cfr. Aguirre Santos, Javier. La aporía en Aristóteles. Madrid, Dykinson, 2007, p. 109. Este autor, aunque
centra su análisis en la aporía desde Aristóteles, ofrece referencias de la etimología y el uso del término en los
filósofos presocráticos y también en Platón.
230
Cfr. Ibid., pp. 112 y 113.
231
Cfr. Ibid., p. 112.
372
obstáculo le ocasionaba perplejidad o confusión, tal como les ocurría a los interlocutores de Sócrates
en los diálogos. El segundo campo se aplicaba a situaciones de la vida práctica para referirse a la
carencia de recursos, es decir, a encontrarse en una situación de apuro por esta carencia. Y por último,
en el campo gnoseológico se refiere a la situación de dificultad que experimenta un individuo y que
afecta directamente la reflexión o discusión que lleva a cabo sobre un tema. En ocasiones, como en
algunos diálogos platónicos, esta situación de duda o dificultad se manifestaba como una
imposibilidad para hablar, para responder a una pregunta o para encontrar las palabras exactas para
ello.
Por el interés en la aporía como obstáculo, parálisis y confusión, situaciones todas que afectan el
razonamiento de los individuos, la manera de acercarse al conocimiento y su formación, los campos
físico y gnoseológico son los que se representan mejor en la obra de Platón, al referirse a la forma en
que Sócrates interrogaba a sus interlocutores.
En los diálogos platónicos se aprecia la tendencia de Sócrates hacia la búsqueda de definiciones, como
en el Menón, en el que pasa de la enseñabilidad de la virtud a la cuestión de qué es la virtud. En este
diálogo en particular es muy claro el resultado que Sócrates llegaba a obtener a través del
cuestionamiento a sus interlocutores. En su búsqueda por las definiciones, el diálogo y la pregunta
constituían elementos esenciales de su método de conocimiento, en el que intervenían la mayéutica y
la ironía. La aporía, en este contexto, representa el momento en que las preguntas han conducido al
interlocutor a un punto sin salida, situación que lo lleva a dudar de su propio conocimiento.
Con esta forma de razonamiento lograba poner de manifiesto los prejuicios y las creencias carentes de
base sólida de sus interlocutores, gracias a su insistencia en delimitar los conceptos. Esto se debe a que
los primeros diálogos platónicos están construidos según el estilo erístico, un método de enseñanza
con el que pretendían aguzarse los sentidos del estudiante a base de preguntas. La raíz de esta palabra
es eris, sustantivo que se define como disputa, discordia, riña, altercado, cuestión, etc. y que, por otro
lado, se relaciona con Eris, diosa de la Discordia. El adjetivo erístico denota, entonces, a alguien
aficionado a la discusión.232
Pues bien, la modalidad más habitual de los juegos erísticos consistía en obligar al interrogado a
limitarse a respuestas muy sencillas mientras el interrogador se esforzaba por conducir a su adversario
a un callejón sin salida o a una contradicción, a la aporía. Este método fue, sin duda, el preferido de
Sócrates. Es probable, entonces, que algunos diálogos estuvieran inspirados en sesiones auténticas de
las que Platón extrajo el material para reconstruir, en forma escrita y dramática, esos ejercicios
232
Vid. Diccionario Manual VOX Griego-Español. Por José M. Pabón S. de Urbina, 18ª edición, España, 1998,
pp. 253 y 254.
373
erísticos, ampliando las respuestas que usualmente serían breves, con la finalidad de darle un carácter
de diálogo.233
En muchos de estos diálogos Sócrates es la figura principal y el que interroga y, aunque no se puede
saber a ciencia cierta dónde terminan las ideas de Sócrates y comienzan las de Platón, es muy probable
que este último introdujera muchas de sus propias experiencias y concepciones, y que en ocasiones la
figura de Sócrates fuera más bien un recurso. Como haya sido, en cuanto a lo que se refiere a la
aporía, es creíble pensar que Sócrates le hubiera otorgado un lugar privilegiado, dado que en este
estado de confusión y perplejidad se podría destruir la falsa presunción por la posesión del
conocimiento (riqueza intelectual) que tanto había criticado de los sofistas.
Esta forma de razonamiento en la que hacía entrar a sus interlocutores, esta situación sin salida,
resultaba ser lo suficientemente incisiva y útil para que cuestionaran sus conocimientos y abandonaran
actitudes soberbias, al menos así nos lo da a entender Platón. Este último, utiliza la falta de salida
como una provocación para seguir indagando y resolver la aporía, no como una forma de encontrar
todas las respuestas, sino como un incentivo para seguir aprendiendo, que implica una toma de
conciencia en cuanto a que la formación es un proceso constante y permanente, que no siempre viene
acompañado de logros y experiencias placenteras: reconocer la propia ignorancia y sentirse sin salida
puede no ser agradable.
Aporía como razón y violencia
Sócrates lograba que su interlocutor experimentara un estado de aporía mediante preguntas reiteradas
y el análisis de los términos, que lo metía en aprietos y lo dejaba perplejo, sin palabras. Este estado
podía provocarle una profunda “sacudida”, llevándolo a dudar de los conocimientos que creía poseer.
El método no tenía la intención de ser complaciente ni de llevar al interrogado de la mano hasta la
respuesta, por el contrario. Los siguientes fragmentos del Teeteto ilustran la dificultad que el mismo
Sócrates reconocía en su forma de razonamiento:
lo más grande que hay en mi arte es la capacidad que tiene de poner a prueba
por todos los medios si lo que engendra el pensamiento del joven es algo
imaginario y falso o fecundo y verdadero. Eso es así porque tengo, igualmente,
en común con las parteras esta característica: que soy estéril en sabiduría.
Muchos, en efecto, me reprochan que siempre pregunto a otros y yo mismo
233
Cfr. Bowen, James. Historia de la educación occidental. Tomo primero. Herder, 3ª edición, Barcelona, 1990,
p. 151-152.
374
nunca doy ninguna respuesta acerca de nada por mi falta de sabiduría, y es,
efectivamente, un justo reproche.
Sin embargo, los que tienen trato conmigo, aunque parecen algunos ignorantes
al principio, en cuanto avanza nuestra relación, todos hacen admirables
progresos (…) Y es evidente que no aprenden nunca nada de mí, pues son ellos
mismos y por sí mismos los que descubren y engendran muchos bellos
pensamientos.234
Y un poco más adelante dice:
los que tienen relación conmigo experimentan lo mismo que les pasa a las que
dan a luz, pues sufren los dolores del parto y se llenan de perplejidades de día y
de noche, con lo cual lo pasan mucho tiempo peor que ellas. Pero mi arte puede
suscitar este dolor o hacer que llegue a su fin.235
Puede notarse aquí que no sólo reconoce el lado, digamos, difícil y doloroso de su método, sino
también el lado provechoso, que se hace patente cuando los discípulos han alcanzado cierto grado de
progreso y son capaces de descubrir cosas por ellos mismos.
Menón, a pesar de no ser su discípulo, explica en el diálogo de una forma muy elocuente el estado de
aporía en que se encuentra y que le obliga a reconocer de inmediato “que sabe que no sabe”.236 La
capacidad de reconocer la propia ignorancia, teniendo en cuenta la actitud que había mostrado antes en
el diálogo (actuando vanidoso y respondiendo demasiado rápido), deja ver que ya ha logrado un
avance importantísimo y lo expresa fascinado:
–Sócrates, yo oí antes de encontrarte que tú mismo no estás sino en apuros, y
que también pones así a los otros. Y ahora, como me parece, me fascinas, y me
envenenas y sencillamente me encantas, así que he llegado a estar pleno de
confusión. Y si se puede bromear un poco, se me hace que tanto en la figura
como en lo demás te pareces perfectamente a ese ancho pez torpedo del mar.
Porque éste hace que se entumezca el que siempre se le acerca y lo toca, y tú
pareces haberme hecho algo así ahora [habiéndome entumecido]. Pues, en
verdad, yo estoy entumecido de alma y boca y no encuentro qué contestarte.
Aunque diez mil veces he realizado toda clase de discursos sobre la virtud y
delante de mucha gente, y además bien –como al menos a mí mismo me
parecía–, ahora no puedo en absoluto decir qué es.237
234
Platón, Teeteto. Diálogos, Tomo V. Introducción, traducción y notas de Álvaro Vallejo Campos. Madrid,
Gredos, 2000, 150c-d.
235
Ibid., 151a.
236
Cantón Arjona, Valentina. “El sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío.” Revista La Vasija, núm.
2, abril-julio 98, México, p. 35.
237
Platón, Menón. Introducción, versión y notas de Ute Schmidt Osmanczik. México, UNAM, Coordinación de
Humanidades, 1975. 80a-b.
375
En esta ocasión para Menón, haber atravesado el estado de aporía le ha dejado una sensación
aparentemente agradable, sin embargo, es difícil imaginar que eso sucediera siempre con los
interlocutores reales de Sócrates. Por lo general, reconocer la propia ignorancia no es tarea fácil,
descubrir que el camino que ha tomado la razón ha llegado a un punto sin salida, encontrarse
paralizado, sin palabras e imposibilitado para responder es doloroso; pero también puede constituir
una gran oportunidad de aprendizaje.
Sin embargo, no debe olvidarse que la imagen que sugiere Menón para hacer la analogía y explicar ese
estado de «entumecimiento» que es la aporía, es el pez torpedo, que paraliza la palabra y el
pensamiento, que llega como un golpe, violento e inesperado. A este respecto, Valentina Cantón hace
una aportación interesante, pues cuestiona lo que hubiera sucedido si este estado de confusión y
fascinación fuera mutuo:
vale la pena preguntarse, ¿qué ocurriría si tal seducción ocurriera y si Sócrates
creyera las palabras de fascinación que Menón le ha dirigido presa de su
invalidez? Sería la muerte del diálogo. Fascinados el uno con el otro no
tendríamos más que un mismo discurso a dos voces. Voces inútiles por
dirigirse a oídos entumecidos por encantamiento mutuo.238
Es así que, a pesar de los halagos, Sócrates no se deja envolver por las palabras de Menón y le
responde:
Eres astuto Menón, y por poco me hubieras engañado. (…)Yo me parezco al
pez torpedo, si este mismo está tan entumecido como entumece a los demás, si
no es así, no me parezco a él (…) estando yo completamente confuso, confundo
también a los otros. Es cierto que yo ahora no sé lo que es la virtud, pero quizá
tú lo sabías antes de juntarte conmigo; mas en este momento te pareces a uno
que no lo sabe. Sin embargo, quiero investigar contigo y buscar qué es la virtud
siempre.239
Se deja entrever que Sócrates, en su papel de formador, toma una cierta distancia, en parte porque él
mismo no cree que sólo por su medio se llegué al conocimiento de lo que se busca saber. No trata de
quitar el obstáculo que supone la aporía, pero le ofrece una posibilidad de salida, que consiste en
acompañarle en su búsqueda de conocimiento. Podría decirse que asume un papel de guía. Sin
embargo, esta ayuda no había sido ofrecida antes, sino hasta ahora que la búsqueda de Menón le
parece auténtica y ha logrado ponerlo en disposición de aprender, para ello, fue necesario haber
declarado su propia ignorancia; ahora, su astucia para demostrar lo que sabía se ha transformado en
confusión.
238
239
Cantón Arjona, Valentina. Op. cit., p. 36.
Platón, Menón. 80c-d.
376
Así, este camino hacia la búsqueda del conocimiento, mediante el sólo uso de la razón, no lleva al
individuo por una ruta fácil, por el contrario, lo violenta, lo sacude, lo deja, al menos de momento,
indefenso, doliente y herido; le provoca el entumecimiento de los sentidos, la palabra y el
pensamiento.240
Reconocer que algo que se creía saber en realidad se ignora no es agradable, ni tampoco que nos lo
hagan notar. Sin embargo, la formación humana necesita, si lo que se quiere realmente es aprender,
identificar esos puntos sin salida, ya que serían una guía y provocación para avanzar en la búsqueda
del conocimiento y encontrar motivación en seguir aprendiendo y formándose.
Aporía en la formación humana
Hasta ahora me he referido al término formación en sentido general, ya que utilizar la palabra
“educación” en el contexto griego no me habría permitido abordar todas las posibilidades que
supondría, por ejemplo, el término paideia. Una idea cercana podría ser la “formación integral”, que
incluyera, por un lado, la adquisición de conocimientos y, por el otro, el sentido llano de “tomar
forma” en todos los sentidos.241
Para Sócrates, la formación no es adquirir conocimientos innecesarios. Una de sus críticas más fuertes
hacia los sofistas era la presunción (o más bien pretensión) de saber de todo y pretender enseñarlo
todo. Con los sofistas, se buscaba la adquisición de una cultura general necesaria para lucirse en los
eventos públicos de la polis. Se puede decir que Sócrates, en cambio, más que la adquisición de
conocimientos por parte de sus discípulos, buscaba un cambio en la actitud hacia el conocimiento y el
estilo de vida, es decir, la formación del individuo.
Considero que desde esta perspectiva, la aporía supone una posibilidad de formación, ya que hace al
individuo consciente de sus propias carencias a la vez que le permite vislumbrar el camino que debe
tomar en la búsqueda del conocimiento y el autoconocimiento: el punto sin salida, el obstáculo, da la
pauta para reconocer el camino que falta recorrer. Los momentos de aporía garantizarían que el
proceso de formación de un individuo fuera permanente y una búsqueda constante.
En este sentido Sócrates puede considerarse como un importante formador, no sólo por su método del
diálogo como forma de enseñanza y para tratar con los jóvenes sino, sobre todo, por su arte de
provocar y entumecer la razón de sus interlocutores, al conducirlos a la aporía. Esto no podría
240
Cfr. Cantón Arjona, Valentina. Op. cit., p. 37.
Este es un tema que se presta a gran discusión, sin embargo, he prescindido de él debido a que su
interpretación no representa el objetivo de este trabajo.
241
377
enseñarse desde afuera, pues no se puede transmitir únicamente con palabras y, además, requiere del
diálogo para articularse; no se puede recorrer el camino de alguien más ni resolver sus momentos de
aporía cada vez que se presenten, esto de poco serviría a su formación y dejaría de lado la posibilidad
de autoconocimiento.
Formación, tanto para Sócrates como para Platón, implicaría asumir el compromiso de formarse, no
depositarlo en alguien más; esta tarea necesitaría de valor para arriesgarse, aceptar y asumir la
ignorancia, el dolor de llegar al punto sin salida. El camino hacia el conocimiento es el camino del
autoconocimiento y sólo se puede recorrer personalmente, aunque el formador esté cerca para servir de
guía y ayudar a encontrar las aporías que dictarán el rumbo. Valentina Cantón resume la utilidad
formativa del término en varios sentidos:
Así, la aporía ha mostrado su eficacia curativa (en el sentido prístino: cuidado
de sí y de los otros, épiméleia política) en la medida en que permite al sujeto
reconocer lo que no sabe, lo que le hace falta, lo que es respecto de su historia,
lo que requiera para pasar de la estulticia a la sapiencia. (…) Ha mostrado
también su eficacia pedagógica, entendida aquí como abrir la disposición, la
necesidad, el deseo de realizar un aprendizaje y, finalmente, su eficacia
didáctica al establecer el mecanismo de transmisión que –más allá de la
instrucción útil para enseñar la techné– conduzca por el camino de la
construcción de saberes acerca del sujeto y de su relación con los otros y con lo
que desea conocer.242
En última instancia, la aporía muestra que, a través del conocimiento de sí mismo, de la propia
ignorancia, se pueden producir cambios en el modo de ser de un individuo. Paradójicamente, “enseñar
a no saber y crear a partir del vacío”243 que supone la aporía, supone también la tarea de formar.
A manera de conclusión puedo decir que la aporía me ha dado pauta para entender mejor la filosofía
de Sócrates y Platón, sobre todo en lo que se refiere a la formación humana. La búsqueda permanente
del conocimiento de sí y el reconocimiento de la propia ignorancia, hacen de la aporía, como
experiencia, un elemento de gran valor para la formación humana. Aunque provoque malestar, destaca
su utilidad para romper los prejuicios y encontrar la disposición para aprender.
Cuando aprendemos, un conocimiento nuevo es objeto de juicios con base en pre-juicios provenientes
de aquello que se sabe o se cree saber. Pero en lo que respecta a Sócrates y lo que sabemos de él
gracias a la filosofía platónica, podemos ver que las preguntas, y la sensación de incertidumbre e
inseguridad que provocan, son el medio en la búsqueda del conocimiento, el punto de partida para
242
243
Ibid., p. 37.
Cfr. Ibid., p. 38.
378
construir el conocimiento mediante la razón, precisamente, a partir del punto sin salida que representa
la aporía.
379
Referencias bibliográficas
Aguirre Santos, Javier. La aporía en Aristóteles. Madrid, Dykinson, 2007.
Bowen, James. Historia de la educación occidental. Tomo primero. Barcelona, Herder, 3ª
edición, 1990.
Cantón Arjona, Valentina. “El sujeto y la aporía o cómo construir a partir del vacío.” En:
Revista La Vasija, núm. 2, abril-julio 98, México, pp. 32-38.
Diccionario Manual VOX. Griego-Español. Por José M. Pabón S. de Urbina, 18ª edición,
España, 1998.
Platón, Teeteto. Diálogos, Tomo V. Introducción, traducción y notas de Álvaro Vallejo Campos.
Madrid, Gredos, 2000. pp. 167-311. (Biblioteca Clásica No. 117)
______, Menón. Introducción, versión y notas de Ute Schmidt Osmanczik. México, UNAM,
Coordinación de Humanidades, 1975.
380
Discursos de Crotona y el ideal de formación pitagórico
María Cristina Rico León244
FFyL, UNAM
[email protected]
Introducción
Entre los filósofos griegos, sobre todo aquellos que dejaron escritos, es fácil identificar
aquellas aportaciones hechas a la educación, y delimitar el sentido del ideal de formación
humana por ellos propuesta; sin embargo, aún hay temas y filósofos poco conocidos para los
profesionales de la educación que constituyen líneas de estudio escasamente exploradas pero
que aportan elementos de reflexión sobre temas pedagógicos.
Es preciso comenzar diciendo que la educación para esos filósofos, condensada en el vocablo
paideia, hacía referencia a una concepción de la formación humana en un sentido muy
amplio, similar a lo que hoy en día podríamos llamar “formación integral”. En ese sentido, la
labor de Pitágoras como educador fue notable durante su época, ya que fundó una escuela
filosófica que tuvo gran influencia en la sociedad y gobierno de Crotona (ciudad de la Magna
Grecia, localizada en el sur de Italia), y cuyos discípulos se destacaron por llevar un modo de
vida singular, llamado “pitagórico”. Fue así como el legado de Pitágoras alcanzó a filósofos
como Platón y Aristóteles, quienes incluso hacen mención de él, o de sus discípulos, en sus
escritos.
El tema que compete a esta ponencia se relaciona con dos aspectos del legado de Pitágoras
que, a mi parecer, resultan importantes para la Filosofía de la educación: los discursos
pronunciados a su llegada a la ciudad de Crotona y, por otro lado, el ideal de formación que
concibió para la escuela que fundó en esa ciudad. Mi propósito es exponer una muestra de la
filosofía de Pitágoras y destacar la importancia de este filósofo para la Filosofía de la
educación; para ello, he retomado el texto de Conrado Eggers Lan Los filósofos presocráticos,
en el que compila los discursos de Crotona (con referencias de Diógenes Laercio, Porfirio y
244
Licenciada en Pedagogía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de
México; miembro del Seminario de Filosofía de la Educación (PIFFyL 2010 014).
381
Jámblico), y el libro Pitágoras (El Maestro de la Armonía), de Josefina Maynadé, para tratar
lo concerniente a la formación en la escuela pitagórica.
La figura de Pitágoras
A diferencia de otros filósofos, cuyo legado está más o menos documentado, lo que se sabe en
torno a Pitágoras está permeado por la leyenda y el misticismo propio de su escuela de
pensamiento y sus discípulos, aunado a la falta de escritos que pueden atribuírsele con
certeza. Sin embargo, los textos consultados de historiadores de la filosofía no han dejado de
lado estas especulaciones, por lo que, a pesar de las dudas y discusiones en torno a la figura
de este filósofo, podemos confiar en que las aseveraciones hechas por ellos están debidamente
documentadas.
Pitágoras “Nació tal vez al comienzo del siglo VI a. C. en Samos, isla del mediterráneo
oriental”,245 al suroeste de la costa de la actual Turquía. Al parecer, se trataba de una isla de
gran intercambio comercial y cultural.
Fundó una sociedad de carácter místico hacia la segunda mitad del siglo VI, en la que se
enseñaban conocimientos científicos y filosóficos. Se sabe, incluso, que esta sociedad llegó a
consolidarse como fuerza política y que estuvo conformada por más de trescientas personas.
Hay escritos que aseguran que antes de llegar a esta ciudad, Pitágoras recorrió varios lugares
y aprendió de distintas culturas, por ejemplo, Egipto y Babilonia, donde, según Eggers Lan, se
dice que pasó tiempo con los sacerdotes y fue iniciado en los ritos bárbaros,
respectivamente;246 en este contexto, el término “bárbaro” se usaba para referirse a todo
aquello que no provenía de los griegos.
Existe discusión sobre si este filósofo dejó o no escritos; incluso se ha llegado a cuestionar su
existencia.247 La incertidumbre se debe, en gran medida, a que sus biógrafos (neopitagóricos y
neoplatónicos) escribieron varios siglos después de la muerte del filósofo; por estas
limitaciones, resulta difícil hacer una distinción entre la historia y la leyenda que rodean a este
personaje.
245
Llanos, Alfredo. Los presocráticos y sus fragmentos. Juárez Editor, Buenos Aires, 1968, pp. 82-83.
A este respecto, Cfr. Eggers Lan, Conrado. Los filósofos presocráticos. Tomo I. Biblioteca Clásica Gredos, 3ª
reimpresión, Madrid, 1978. pp. 164-165 y 189.
247
Cfr. Ibidem. p. 149.
246
382
En cuanto a los escritos que se le atribuyen, uno de los más difundidos son los Versos Áureos,
que tal vez fueron recopilaciones de sus preceptos hechas por sus discípulos. Alfredo Llanos,
en su obra Los presocráticos y sus fragmentos, condena la noción de que Pitágoras no realizó
escritos (tal vez apoyado en el testimonio de Diógenes Laercio (VIII, 6-7) y asegura que dejó
tres: Sobre la educación, Sobre la política y Sobre la naturaleza.248 Sin embargo, lo que se
sabe de Pitágoras, tal vez habría que adjudicárselo a su escuela y discípulos.
Por otro lado, se encuentran los cuatro discursos que debió dar Pitágoras a su llegada a
Crotona, mencionados por Jámblico en su Vita Pitagorae (VIII 37-45).249 A pesar del
testimonio, hay otras opiniones al respecto de la llegada de este filósofo a la Magna Grecia,
que cuestionan, incluso, los sucesos narrados en los discursos argumentando que, al ser la
escuela pitagórica una comunidad de culto, es muy probable que se atribuyeran muchas
anécdotas a su fundador, en un afán por consolidar y legitimar su legado, tal como ocurrió con
la figura de Orfeo para la religión de los misterios.
Mensaje a los ciudadanos de Crotona
Como haya ocurrido, lo cierto es que la escuela de Crotona constituye el legado más
importante de este filósofo al desarrollo del pensamiento en la Magna Grecia. Al respecto de
su llegada a esta ciudad un testimonio de Porfirio menciona que:
[…] apareció como un hombre que había viajado por muchos lugares, […] de
aspecto noble y muy agradable […]. Produjo en el Estado de Crotona tal efecto
que, después de conmover las almas de los ancianos gobernantes con largos y
bellos discursos, éstos lo invitaron a pronunciar exhortaciones adecuadas a la edad
de los jóvenes y a los niños congregados en los colegios, y luego a las mujeres
[…] Al suceder estas cosas, creció grandemente su fama, y ganó muchos
discípulos de esa ciudad, no sólo hombres sino también mujeres […] así como
muchos reyes y gobernantes de países bárbaros vecinos.250
Pues bien, los discursos pronunciados en Crotona, contenidos en la obra de Jámblico sobre la
vida de Pitágoras, resultan de gran importancia debido al contenido educativo que de ellos se
puede extraer, dado que brindan pautas para entender la concepción del ideal de formación
248
Cfr. Llanos. Op. cit. pp. 82-83.
Citado en Eggers Lan. Op. cit. pp. 169-180.
250
Porfirio. Vida de Pitágoras, 18-19. Citado en Ibidem. p. 167. El empleo del término “colegio”, más que
referirse a una institución, en este contexto se usa para denotar que los niños pertenecían a familias nobles y
que se encontraban en edad escolar (para distinguirlos de los jóvenes).
249
383
humana de este filósofo. Desde su llegada a la ciudad, la forma en que fue acogido por sus
habitantes, la manera en como habló a los sectores más importantes de la población, los
consejos que les dio y, en general, la forma de conducirse de este filósofo, revelan a un
hombre sabio y dotado de un sentido especial para buscar y encontrar la armonía. En ese
sentido, el testimonio de Jámblico resulta muy ilustrativo, pues menciona que:
Pocos días después de su llegada a Crotona […] visitó la escuela. [A] los jóvenes
[…] les dirigió unas palabras, por medio de las cuales los exhortó a estimar más a
los más ancianos. Mostró que, tanto en el universo como en la vida, en los Estados
y en la naturaleza, es más venerado lo que precede en el tiempo que lo que le sigue
[…] Dijo estas palabras con el propósito de inducirlos a que valoraran más a sus
progenitores que a sí mismos […] Y declaró que, en el trato mutuo, obrarían más
afortunadamente si jamás se erigían en enemigos de sus amigos, y si se hacían lo
más rápidamente posible amigos de sus enemigos […] A continuación habló sobre
la moderación, afirmando que la edad de los adolescentes pone a prueba su
naturaleza en la época en que sus deseos alcanzan mayor fuerza. […] Sólo esa
virtud, les reveló, abarcaba tanto los bienes del cuerpo como los del alma,
preservando la salud y el deseo para las mejores realizaciones vitales. […]
También exhortó a los jóvenes respecto de su formación integral [que incluye el
ejercicio del raciocinio y del cuerpo]. [Pitágoras] sobresalía entre todos por su
amor a la sabiduría. En efecto, se dio a sí mismo este nombre <el de filósofo>, en
lugar del de sabio.251
De lo anterior pueden extraerse varias ideas, entre ellas, que la formación integral y la forma
de vida moderada (con ejercicio de actividades propias para el cuerpo y el alma) proveen al
individuo los mayores bienes. Pitágoras consideró, incluso, que esto hace diferentes a unos de
otros, es decir, a los hombres de los animales, a los filósofos de los hombres comunes y, en
fin, a los más aventajados en cada género de actividades. El testimonio sobre el siguiente
discurso asevera que, después de pronunciar aquellas palabras a los jóvenes, éstos narraron a
sus padres lo que el filósofo les había dicho:
[…] el Consejo de los Mil invitó a Pitágoras y, tras elogiarlo […] le preguntaron si
tenía algo de provecho que decir a los crotoniatas, para hacérselo saber a los que
presidían el gobierno. En primer lugar, les aconsejó erigir un templo a las Musas, a
fin de preservar la armonía existente. Todas estas diosas, en efecto, llevan el
mismo nombre y tradicionalmente han sido consideradas juntas […] en conjunto el
coro de las Musas es uno y el mismo y abarca concordia, armonía, ritmo y todo lo
que produce consenso. Y les indicó que el poder de ellas alcanza no sólo a las
cosas más bellas que se pueda contemplar, sino también a la concordia y armonía
251
Jámblico, Vita Pitagorae, VIII 37-45. Citado en Ibidem. pp. 169-172. Este autor asevera más adelante que la
palabra griega correspondiente a “formación integral” es, justamente, paideia (p. 177).
384
de los seres. [Después habló sobre la forma en que debían comportarse los
miembros del Consejo, éstos, dijo] Debían administrar sus propias casas de modo
que se pudieran comparar sus decisiones políticas con las privadas. […] En cuanto
a orden y templanza debían convertirse en paradigma para los de su casa y para los
conciudadanos.252
Se dice que después de escuchar a Pitágoras, los miembros del Consejo erigieron un templo a
las Musas y le pidieron que hablara también a los niños y a las mujeres. Llegado a este punto,
resalta la importancia que daba a las musas como portadoras de la armonía, misma que hizo
extensiva a la forma de vida, por lo que exhortó a los integrantes del Consejo a llevar en
“armonía” los asuntos de su casa y de su ciudad, pues eran ejemplo para los demás y debía
relucir la nobleza de su carácter. De este tema habló también a los niños en los siguientes
términos:
Debían poner atención en la formación integral [paideia] la cual llevaba ese
nombre por la edad de ellos [pais-niño]. Para el niño que obrara bien sería fácil
conservar la nobleza de carácter toda la vida; […] deberían ser merecedores del
amor de éstos [los dioses, quienes los cuidan durante esta edad] y ejercitarse en el
escuchar a fin de capacitarse para el hablar; además, para disponerse a marchar
hacia la vejez, debían ponerse en movimiento y seguir a los que ya habían andado
ese camino y no contradecir en nada a los mayores.253
En este pasaje destaca el hecho de que los más amados por los dioses son precisamente los
niños, porque son los más puros y por esta causa los dioses Apolo y Eros eran representados
como niños. A pesar de la importancia que tiene la educación en esta edad, Eggers Lan
destaca que el discurso no abunda más allá de la importancia de obrar bien, saber escuchar y
obedecer a los mayores, sino que se limita a asignar a los dioses, en especial a Apolo, un
papel importante ante los niños.
A pesar de ello, me parece necesario destacar un aspecto del discurso que, como se verá, tuvo
un papel importantísimo en la escuela pitagórica: el silencio como ejercicio para escuchar,
pero no como un mero acto de obediencia de los más jóvenes hacia sus mayores sino como
un auténtico ejercicio de moderación y formación del carácter, quizá, el aspecto más
distintivo de los que fueran sus discípulos.
252
253
Ibidem. pp. 173-176.
Jámblico, Vita Pitagorae, X 51-53. Citado en Ibidem. pp. 176-178.
385
Del último discurso se cuenta que, al dirigirse a las mujeres, habló en el sentido de la
devoción y el ofrecimiento de sacrificios. Las exhortó a valorar la conducta virtuosa y a
procurar “hablar bien a lo largo de toda su vida y a ver que los demás pudieran hablar bien de
ellas”.254 Es necesario señalar que, desde tiempos homéricos, se consideraba que la areté
(virtud) propia de la mujer era la belleza, aunque en su posición social y jurídica de señora de
la casa también se le atribuían otras como el sentido de modestia y destreza en el gobierno de
la casa.255
Como puede verse, a lo largo de los discursos Pitágoras habló a los distintos sectores de la
sociedad de Crotona (jóvenes, gobernantes, niños y mujeres), en los términos que
correspondía a cada uno, resaltando las responsabilidades individuales que, en conjunto,
procurarían bienes para la comunidad. Se podría decir que, en su concepción, una ciudad
armoniosa sólo llegaría a consolidarse si los individuos que la conforman se dedicaban a la
consecución de esta armonía y a cultivar la conducta virtuosa.
Educación y forma de vida en la escuela pitagórica
Ahora bien, para hablar propiamente de la escuela que fundó en Crotona, es preciso resaltar el
hecho de que para los griegos de las primeras escuelas filosóficas los conceptos y
conocimientos científicos no estaban separados de sus concepciones éticas, metafísicas y
religiosas. Por el contrario, todo el conocimiento se reflejaba en el estilo de vida que
adoptaban. Para ellos, el individuo no estaba visto como algo fragmentado sino que era
concebido como una unidad reflejo del orden universal (cosmos).
El ideal de formación, por tanto, no era ajeno a esta concepción, pues buscaba precisamente
que el individuo reflejara, tanto en su cuerpo como en su alma, cualidades relacionadas con
valor y belleza. Es posible que los griegos tuvieran contacto con culturas de oriente, como
Egipto, Fenicia, Babilonia y, tal vez, la India, para las cuales la relación del individuo con su
entorno (la comprensión y cuidado de éste), le procuraba un estado de equilibrio físico y
espiritual.
254
Jámblico, Vita Pitagorae, XI 54-57. Citado en Ibidem. p. 179.
A este respecto Vid. Jaerger, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Fondo de Cultura Económica,
1ª reimpresión, México, 1967, p. 36.
255
386
Antes de continuar, haré un paréntesis para destacar otro aspecto de Pitágoras, tal vez el más
difundido: que fue él quien introdujo los estudios (mathémata) que incluían los números, la
música, los astros y, al parecer, que fue el primero en destacar las habilidades educadoras de
la armonía y la belleza. Por el legado que se conoce de la escuela que fundó y por situar a los
números como centro de su filosofía, se puede entender en gran medida la importancia que
tuvo este filósofo en la historia del pensamiento griego.
Pues bien, Mathémata256, plural de Mathema [vocablo derivado del verbo mathein, que
significa conocer o aprender] significaba en griego lo que se ha aprendido o entendido, o
conocimiento adquirido; pero bien entendido que mathema no se refiere a un tipo
determinado o específico de conocimiento sino a todas las formas de conocimiento, antes de
que el término derivado —matemáticas— adquiera el sentido más especializado que nosotros
le damos en la actualidad. Para los pitagóricos, los mathémata fueron, incluso, parte de su
religión, porque creyeron que al revelar la armonía del mundo, expresada en la armonía de los
números y sus relaciones, encontrarían un camino hacia la unión con lo divino.
En la escuela, además, se llevaba un modo de vida específico, llamado pitagórico, en el marco
de una sociedad religiosa. Alfredo Llanos, asevera que la escuela de pensamiento fundada por
Pitágoras “inspiró un poderoso movimiento en el que se mezcló lo científico, lo místico, lo
religioso y lo político”.257 A pesar de que la aseveración de este autor resulta muy ilustrativa,
no debe perderse de vista que en realidad todos estos aspectos no eran considerados por
separado para los griegos de la época de Pitágoras (no estaban, como en la actualidad,
diferenciados como disciplinas), sino que tenían un origen común y, además, implicaciones
recíprocas.
Ha habido discusiones en cuanto a las enseñanzas que ahí se daban, pues “lo que [Pitágoras]
decía a sus discípulos no hay nadie que lo sepa con certeza, y guardaban entre ellos un
silencio nada común”;258 o al menos eso sabemos gracias al testimonio de Porfirio. A pesar
de esto, más adelante menciona que las cosas más importantes sí llegaron a ser conocidas por
256
Referencias al vocablo mathe entendido como that wich is learnt, lesson, en distintos autores griegos pueden
encontrarse en Liddell, Henry George and Robert Scott. Greek-English Lexicon. Oxford, University Press,
1983, p. 1072.
257
Llanos. Op. cit. pp. 82-83.
258
Porfirio. Vida de Pitágoras, 19. Citado en Eggers Lan. Op. cit. pp. 203-204.
387
todos, y hay testimonios de que practicaban un modo de vida que los diferenciaba del resto de
los hombres.
En palabras de Josefina Maynadé, el “ideal [de la escuela pitagórica] era forjar una nueva
juventud helena, [mediante una] enseñanza que abarcara el aspecto físico, mental y espiritual
del individuo. Una pedagogía […] basada en la belleza y en la armonía”. 259 Esta autora
asevera que Pitágoras concedía a la belleza el papel de maestra tácita de su escuela, por lo
que acuña el término de Pedagogía de la belleza. Menciona que esta forma integral de
pedagogía lograba un incremento de belleza, elegancia y salud; además de ejercer un influjo
benéfico en las emociones y pensamientos de los discípulos, porque el ideal del pitagórico era
la elegancia, pero en su forma más completa, del cuerpo y el espíritu.
Hay testimonios de que el tipo de educación que ofrecía fue muy apreciado en su época y que
los aspirantes debían aprobar un proceso de selección.260 Porfirio (54-55) menciona una
ocasión en que Pitágoras examinó la fisonomía de un hombre llamado Cilón y que, al darse
cuenta de cómo era su carácter a través de sus rasgos corporales le ordenó que se fuera. Este
ejemplo ilustra la creencia de que los aspirantes debían pasar un examen fisiognómico y, por
otro lado, que los años de silencio en el primer grado también constituían un examen de
admisión o especie de noviciado.
Pues bien, se dice que en esta escuela convivían jóvenes de ambos sexos y que el modo de
vida implicaba la colaboración entre sus miembros. Los recién llegados entraban a un primer
grado que era el de los acusmáticoi261 o “silenciosos”. Akoúsmata (plural de akoúsma)
proviene del verbo akoúō “escuchar” o también “ser alumno de”, periodo durante el cual
debían guardar el más absoluto silencio (dos o tres años, aunque algunos autores afirman que
eran hasta cinco años) con el fin de que aprendieran a obedecer, escuchar, observar y
recordar, ejerciendo dominio sobre sus impulsos. Al parecer, seguían sentencias orales o
instrucciones pero sin una descripción rigurosa;262 según Diógenes Laercio, “escuchaban los
259
Maynadé, Josefina. Pitágoras (El Maestro de la Armonía). Ed. Orion, México, 1975. p. 52.
Cfr. Eggers Lan. Op. cit. pp. 196, 226-227.
261
A este respecto Cfr. Ibidem. p. 223. Eggers Lan traduce el término como sentencias orales, en las que
consistía la filosofía de estos nuevos pitagóricos.
262
Cfr. Porfirio. Vida de Pitágoras, 37. Citado en Ibidem. p. 225.
260
388
discursos, y nunca veían Pitágoras hasta que aprobaban el examen; desde entonces se volvían
<miembros> de su casa y participaban del mirarlo”.263
El segundo grado lo conformaban los matematicoi o “matemáticos”.264 Eggers afirma que la
división de los pitagóricos entre acusmáticos y matemáticos no debe datar del tiempo de
Pitágoras, aunque es probable que sí hubiera una diferenciación entre los más avanzados, que
ya habían aprendido más, y los novatos. Durante este periodo los discípulos se concentraban
en el estudio de las artes basadas en los principios matemáticos y las ciencias. Aprendían la
importancia de los números como sustentadores de las leyes armónicas y rítmicas del universo
y sus relaciones con las ideas y los símbolos. En palabras de Josefina Maynadé “El primer día
del segundo grado era de fiesta porque en él un pitagórico nacía a la palabra. […] [Ya había
aprendido que] sólo se debía hablar cuando la palabra es más valiosa que el silencio”.265
En el tercer grado, llamado teofánico, se estudiaba el
ier s-Logós266 o la “Palabra sagrada”.
En la obra de Guthrie Orfeo y la religión griega, menciona que se atribuían ciertos poemas
con el título principal de hier s logós a Orfeo y que, por ejemplo, se hayan citados en la obra
de Heródoto en conexión con el ritual órfico. En este grado, se acercaban al estudio de las
civilizaciones pasadas y antiguas sabidurías, sus lenguas y libros sagrados. Por último, el
cuarto grado, de los politicoi o “políticos”, lo conformaban aquellos discípulos consagrados al
servicio de la comunidad.267 En él aprendían a fondo la historia y tradiciones nobles y las
leyes, todo a la luz de la filosofía y la moral pitagóricas.
Las lecciones se encaminaban a que los discípulos más adelantados se situaran, según sus
aptitudes, en cargos públicos sirviendo como pedagogos, oradores, diputados, artistas,
juristas, legisladores o gobernantes.268 Servían de este modo a la comunidad como individuos
bien formados, completos y armónicos. Se dice, incluso, que en esa época de esplendor era
motivo de orgullo poseer como legisladores, oradores, pedagogos, artistas, etc., a los
pitagóricos. Es en este punto donde la relación entre lo que planteó inicialmente a los
263
Diógenes Laercio, VIII 10. Citado en Ibidem. p. 214.
Cfr. Ibidem. p. 225.
265
Maynadé. Op. cit. pp. 97-98.
266
Cfr. Guthrie, W. K. C. Orfeo y la religión griega. Estudio sobre el movimiento «órfico». Madrid, Siruela,
2003, p. 66.
267
Cfr. Maynadé. Op. cit. pp. 100-102.
268
Cfr. Ibidem. pp. 94 y 102-103.
264
389
ciudadanos de Crotona con los discursos, encontró su cauce en la formación de los pitagóricos
quienes, como seres armoniosos y moderados, servirían a su comunidad en la misma medida.
Haciendo un recuento de lo expuesto hasta ahora, se puede destacar que el ejercicio filosófico
de la escuela pitagórica tenía un fin definido, a saber, formar seres armoniosos en todos los
sentidos. El modo de vida que llevaban era acorde con este fin y se dedicaban a los
mathémata como parte de su religión, pues todo el conocimiento era visto en conjunto. Creían
que si podían penetrar en el secreto de la armonía de los números podrían comprender
también al universo, ya que los números se inscriben en una realidad perfecta del cual nuestro
mundo es un reflejo. A este respecto, es notable la semejanza que guarda con la concepción
platónica de la realidad o teoría platónica de las ideas.
Por otro lado, en lo que posteriormente se conoció en educación como “artes liberales”, los
mathémata de Pitágoras guardaron gran correspondencia con el quadrivium: la aritmética, la
geometría, la música y la astronomía. De hecho, se atribuye al pitagórico Arquitas de Tarento
la clasificación de estas cuatro ramas del quadrivium.269
A manera de conclusión, puedo decir que el acercarme a los discursos pronunciados en
Crotona, la escuela pitagórica y su ideal de formación, me han dado pauta para entender mejor
la filosofía de Pitágoras como educador, y valorar sus aportaciones en cuanto a la formación
humana. ¿Qué tiene para decirnos con respecto a la educación? En primer lugar, nos ayudaría
a recordar que este fenómeno de la cultura puede verse desde una perspectiva mucho más
amplia a la que estamos acostumbrados, una concepción de formación del ser humano (en el
sentido amplio de “tomar forma”) más allá de la instrucción y los procesos de enseñanza y
aprendizaje.
¿Por qué es importante el conocimiento de las aportaciones de este filósofo para los
profesionales de la Pedagogía y para la Filosofía de la educación? Pues bien, en una época en
que los discursos de las instituciones educativas apuntan hacia la importancia de una
formación integral para los individuos con el fin de que sean ciudadanos provechosos para su
comunidad (y su nación), lo expuesto sobre Pitágoras y los pitagóricos nos ayuda a reconocer
269
González Urbajena, Pedro Miguel. Pitágoras. El filósofo del número. Colección La matemática en sus
personajes. Ediciones Nivola, 2ª edición, España, 2007, p. 82.
390
de inmediato que todo este discurso se basa en una idea nada nueva para el campo de la
educación.
El legado de los pitagóricos es importante porque influyó en la educación de siglos
posteriores y, en este sentido, resulta relevante dentro de la Filosofía de la educación. La
Pedagogía, por tanto, no puede restar importancia y mucho menos ser ajena a la producción
filosófica de autores clásicos y contemporáneos, en este caso de Pitágoras, ya que brindan
pautas para la reflexión y la investigación en torno a temas educativos.
Referencias bibliográficas
Eggers Lan, Conrado. Los filósofos presocráticos. Tomo I. Biblioteca Clásica Gredos, 3ª
reimpresión, Madrid, 1978, Pp.518.
González Urbajena, Pedro Miguel. Pitágoras. El filósofo del número. Colección La
matemática en sus personajes. Ediciones Nivola, 2ª edición, España, 2007,
Pp. 252.
Guthrie, W. K. C. Orfeo y la religión griega. Estudio sobre el movimiento «órfico». Madrid,
Siruela, 2003, Pp. 398.
Jaeger, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Fondo de Cultura Económica, 1ª
reimpresión, México, 1967, Pp. 1151.
Liddell, Henry George and Robert Scott. Greek-English Lexicon. Oxford University Press,
Ninth edition, Great Britain, 1983, Pp. 2042.
Llanos, Alfredo. Los presocráticos y sus fragmentos. Juárez Editor, Buenos Aires, 1968, Pp.
359.
Maynadé, Josefina. Pitágoras (El Maestro de la Armonía). Ed. Orion, México, 1975, Pp. 143.
391
A CONCEPÇÃO CRÍTICA DE EDUCAÇÃO EM ÁLVARO VIEIRA PINTO
Rodrigo Marcos de Jesus
Resumo:
Este trabalho inscreve-se numa pesquisa mais ampla sobre as relações entre democracia e
educação em três das principais tendências da filosofia da educação brasileira no século XX, a
saber: o escolanovismo de Anísio Teixeira, a pedagogia da libertação de Paulo Freire e a
pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Tal pesquisa pretende apontar as bases
filosóficas e pedagógicas dos autores supracitados e suas implicações políticas e sociais,
destacando-se influências, convergências e diferenças. Neste sentido, o estudo em questão
apresenta a concepção crítica da educação em Álvaro Vieira Pinto, autor de fundamental
importância para a compreensão da pedagogia freireana. Com efeito, categorias centrais da
pedagogia da libertação se ancoram em conceitos elaborados por Vieira Pinto em três livros
principais que serviram de base para nossa investigação, são eles: Ideologia e
Desenvolvimento Nacional, Consciência e Realidade Nacional e Sete Lições sobre Educação
de Adultos. Procederemos, assim, a uma sistematização da concepção crítica de educação em
Álvaro Vieira Pinto enfatizando os seguintes aspectos: conceito geral de educação;
392
características das consciências ingênua e crítica e suas implicações para a concepção de
educação; relação entre educação, desenvolvimento nacional e democracia; formação do
educador; papel do filósofo no país subdesenvolvido. Ao final indicaremos algumas
correlações conceituais entre o pensamento de Vieira Pinto e a pedagogia de Freire, sobretudo
no período dos anos 1950-60. Dessa forma, pretendemos contribuir para o resgate de um
ponto importante da filosofia da educação no Brasil que tem sido pouco abordado nas análises
históricas.
Palavras-chave: Educação; concepção ingênua; concepção crítica.
Introdução
Álvaro Vieira Pinto é um ilustre filósofo desconhecido. Autor de uma obra vasta (e em
grande parte ainda inédita270) foi figura intelectual importante do ISEB271 nos anos anteriores
ao Golpe Militar brasileiro. Com o novo regime sofreu o exílio e o posterior ostracismo.
Contudo, curiosamente, uma pequena obra sua – composta dos roteiros de um curso sobre
educação de adultos em 1966 – recebeu mais de dez edições. Nesta obra, Sete Lições sobre
educação de adultos, encontramos uma síntese das ideias de Vieira Pinto sobre educação. Aí
notamos como o autor faz uma aplicação de suas investigações sobre a consciência crítica e
ingênua, elaboradas no livro Consciência e Realidade Nacional (1960), à análise do conceito
de educação. Além disso, vislumbramos muitas afinidades entre o pensamento de Álvaro e o
de Paulo Freire. Com efeito, este último fora fortemente influenciado pela interpretação
isebiana da realidade brasileira em suas primeiras obras (Educação e Atualidade Brasileira,
1959; Educação como prática da liberdade, 1965) e desenvolve alguns de seus principais
270
Em entrevista a Saviani o autor menciona as seguintes obras: um livro sobre tecnologia (publicado em 2005
com o título O Conceito de tecnologia); outro sobre Filosofia Primeira; A educação para um país oprimido;
Considerações éticas para um povo oprimido; A sociologia do país subdesenvolvido (publicado em 2008); A
crítica da existência e a obra em questão Sete lições sobre educação de adultos. Cf. VIEIRA PINTO, 2010, p.
21.
271
Instituto Superior de Estudos Brasileiros: órgão do Ministério da Educação e Cultura criado em 1955 e
extinto em 1964. Tinha como objetivo o estudo, ensino e divulgação das ciências sociais, cujos dados e
categorias seriam aplicados à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira e deveriam permitir o
incentivo e promoção do desenvolvimento nacional.
393
conceitos a partir de categorias de Vieira Pinto. Daí não ser difícil perceber similaridades
entre os pensamentos dos dois filósofos como fica evidente ao leitor que conhece a obra de
Freire e se depara com as lições de Álvaro. Lições que, atente-se, foram proferidas no Chile a
convite de Paulo Freire.
Neste trabalho procederemos a uma sistematização da concepção crítica de educação
em Álvaro Vieira Pinto – autor de fundamental importância para compreensão da pedagogia
freireana – enfatizando os seguintes aspectos: conceito geral de educação; características das
consciências ingênua e crítica e suas implicações para a concepção de educação; relação entre
educação, desenvolvimento nacional e democracia; formação do educador; papel do filósofo
no país subdesenvolvido. Nossa intenção é contribuir para o resgate desse relevante pensador
da filosofia da educação no Brasil que tem sido pouco abordado nas análises históricas.
Ressalte-se que essa investigação inscreve-se numa pesquisa mais ampla sobre as relações
entre democracia e educação em três das principais tendências da filosofia da educação
brasileira no século XX, a saber: o escolanovismo de Anísio Teixeira, a pedagogia da
libertação de Paulo Freire e a pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Tal pesquisa
pretende apontar as bases filosóficas e pedagógicas dos autores supracitados e suas
implicações políticas e sociais, destacando-se influências, convergências e diferenças.
Conceito geral de Educação
Álvaro Vieira Pinto apresenta um conceito amplo de educação relacionado à
existência humana em todos os seus aspectos e em toda sua duração. Indaga sobre o
fundamento da educação para além de suas especificidades: educação infantil, de jovens ou de
adultos. Define assim a educação como formação, no sentido da Bildung alemã ou da Paideia
grega. A educação, portanto, é a formação do homem pela sociedade. Nas palavras do autor:
“A educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua imagem e em
função de seus interesses” (2010, p. 31).
Colocada a definição geral o filósofo explicita os caracteres histórico-antropológicos
da educação. Sintetizemo-los.
A dimensão histórica pertence à essência da educação que, enquanto processo, se
desenvolve em plano duplo e articulado: individual (a formação de cada ser humano) e
coletivo (relativo à fase de desenvolvimento vivida por uma determinada comunidade). Sendo
394
assim, a educação mostra-se como um fato existencial, processo constitutivo do ser do
homem. Em outros termos: através da educação se produz a humanidade no homem. E é
também um fato social. “É o procedimento pelo qual a sociedade se reproduz a si mesma ao
longo de sua duração temporal” (2010, p. 32). Entretanto, a autorreprodução da sociedade
contém uma contradição. Por mais que a sociedade deseje manter-se a mesma o próprio
processo educativo engendra uma dinâmica diferente ao apontar para o progresso social, isto
é, para a diferenciação do futuro em relação ao passado. A incorporação de novos membros à
sociedade leva-a a integrar esses membros à estrutura vigente sem contudo barrar a criação do
novo, uma vez que o homem, ser livre e criador de cultura, não só assimila o saber
transmitido pela sociedade como resultado da própria educação mas o recria.
Como fenômeno cultural “a educação é a transmissão integrada da cultura em todos os
seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita”
(2010, p. 33). Daí ser ao mesmo tempo a transmissão ao indivíduo dos conteúdos (crenças,
valores, conhecimentos, etc) e das formas ou métodos utilizados por uma sociedade em
determinado grau de desenvolvimento. A transmissão, no entanto, não se resume a um
aspecto passivo. À educação transmissiva (a aprendizagem da cultura existente) sucede a
educação inventiva (fase criadora da cultura). E nesse sentido a educação mostra-se como um
processo exponencial que se multiplica com sua própria realização: quanto mais educado,
mais o homem necessita de educação. “Por consequência a educação é a cultura
simultaneamente como feita (porém não como acabada) no educador que a transmite, e como
fazendo-se no educando, que a recebe (refazendo-a), por conseguinte, capacitando-se a se
tornar o agente de ampliação dela” (2010, p. 39).
Construção social, a educação naturalmente reflete as estruturas e os interesses dos
grupos dirigentes de uma sociedade. Isso indica duas coisas. A primeira, que a educação se
desenvolve sobre o fundamento do processo econômico da sociedade, pois este “determina as
possibilidades e as condições de cada fase cultural”, “a distribuição das probabilidades
educacionais na sociedade”, “proporciona os meios materiais para a execução do trabalho
educacional” e
“dita os fins gerais da educação” (cf. 2010, p. 34). A segunda, que a
educação é parte do trabalho social uma vez que forma os indivíduos para o desempenho de
uma função de trabalho no campo de atividade total da comunidade, o educador é também um
trabalhador e a educação de adultos dirige-se a outro trabalhador a fim de elevar sua condição
de trabalho. Ao destacar o fundamento social e econômico da educação, Álvaro não procede a
395
uma redução de tipo economicista ou crítico-reprodutivista272. Ainda que reconheça a divisão
de classe no processo educacional de sociedades desenvolvidas economicamente, o filósofo
não deixa de apontar a natureza contraditória de toda educação. Isso implica reconhecê-la
como simultaneamente conservadora e criadora. “Somente desta maneira é [a educação]
profícua, pois do contrário seria a repetição eterna do saber considerado definitivo e a
anulação de toda possibilidade de criação do novo e do progresso da cultura” (2010, p. 36).
Outra característica apontada por Álvaro e de importância capital é a dependência do
conceito de homem. Ora a educação do indivíduo visa a um fim, ou seja, é sempre uma
atividade teleológica. Como afirma o autor:
Não se pode pretender formar um homem sem um prévio conceito ideal de
homem. Este modelo, contudo, é um dado de consciência e, portanto
pertence à consciência de alguém; concretamente, de alguém que está num
dado tempo, num espaço, em definida posição social. De acordo com a
natureza (posição, interesse, fins) da consciência que comanda o processo
educacional, tal será o tipo social de educação (2010, p. 37).
Desse modo, todo projeto de educação se dirige para a formação de um “tipo” de homem que
corresponderá ao “tipo” de sociedade que se deseja perpetuar ou construir. Daí a necessária
clareza que deverá ter o educador dos objetivos políticos e sociais implícitos ou explícitos nos
conteúdos e meios do processo educativo, pois não há educação que não seja intencional.
Portanto, a educação é essencialmente concreta. Pode até ser pensada a priori, mas o
que a define é a sua realização objetiva. Realização condicionada histórica e materialmente,
envolta em interesses sociais conflitivos. Por isso, Álvaro considera toda discussão
meramente abstrata em educação prejudicial e inútil, revelando-se na verdade em uma
estratégia da consciência dominante para justificar sua dominação e deixar de cumprir seus
deveres culturais para com o povo.
Noção de Consciência: Ingênua e Crítica
Como a educação é um fato de ordem consciente, determinada pelo grau de
compreensão da realidade objetiva e dirigida a um fim cabe então indagar o que é essa
consciência e quais suas modalidades possíveis. Nesse sentido, Álvaro desenvolve uma
272
Cf. a crítica de Saviani às chamadas teorias crítico-reprodutivistas em Escola e Democracia.
396
categorização das formas de consciência com o intuito de indicar como tais modos
configuram concepções distintas de educação.
Inicialmente definamos consciência. Afirma o filósofo, a consciência é “representação
mental da realidade exterior, do objeto, do mundo, e representação mental de si, do sujeito,
autoconsciência” (2010, p. 61). Contudo a representação da realidade do mundo e de si pode
se configurar, em linhas gerais, de duas maneiras: ingênua e crítica. Quer dizer, se por um
lado a realidade antecede a consciência, por outro o modo de intelecção dessa realidade assim
como a ação que se projeta a partir dessa compreensão são distintos. E isso repercutirá nas
formas de se entender e atuar em educação.
Sendo assim, a consciência ingênua é definida como “aquela que não inclui em sua
representação da realidade exterior e de si mesma a compreensão das condições e
determinantes que a fazem pensar tal como pensa” (2010, p. 61). Ao não incluir o mundo
objetivo como seu determinante, a consciência ingênua coloca-se como absoluta, produtora da
realidade, como se as ideias se originassem de si mesmas e configurassem o mundo. Isso
resulta em uma falta de percepção histórica.
A consciência crítica, ao contrário, “é a representação mental do mundo exterior e de
si, acompanhada da clara percepção dos condicionamentos objetivos que a fazem ter tal
representação” (2010, p. 62). Disso decorre suas características de objetividade (o mundo
como origem das ideias), totalidade (percepção do todo), historicidade (refere-se a si mesma
situada no espaço e no tempo) e de processo (vê-se a si e ao mundo em constante mudança).
A consciência crítica sabe-se também pertencente a uma nação, pois, ao ser objeto para si se
compreende como pertencente a um tempo e espaço que é histórico, material, social e
nacional. Afinal, em nosso momento histórico a nação marca nossa origem e forma de pensar.
Perceber-se num país central, desenvolvido ou num país periférico, subdesenvolvido (ou em
desenvolvimento como se diz atualmente) implica maneiras diferentes de ação, exige tarefas
sociais e políticas distintas.
Conceito Crítico de Educação
Modos diferentes de consciência implicam concepções divergentes de educação.
Álvaro contraporá concepção ingênua da educação e concepção crítica. Começaremos por
aquela.
397
A concepção ingênua promove uma dicotomia entre conteúdo e forma da educação.
Não percebe que conteúdo e forma distinguem-se apenas analiticamente. Considera o
conteúdo como “totalidade dos conhecimentos que se transmitem do professor ao aluno”, isto
é, as disciplinas, o currículo, as lições, tomando-os como um volume estático, a-histórico, de
valor em si mesmo. E a forma seria os métodos e procedimentos, a maneira de se transmitir o
conteúdo. Tal modo de pensar absolutiza o conteúdo e sobrevaloriza a forma. Não
compreende (ou mesmo mascara) que conteúdo e forma são aspectos distintos mas unidos de
uma mesma realidade: o ato educacional. Além de ambos relacionarem-se aos fins sociais da
educação.
Álvaro aponta ainda outras características da concepção ingênua. Ela julga o educando
como “ignorante” em sentido absoluto, alguém sem conhecimentos prévios resultantes de sua
prática social. O educando é então “objeto” da educação. Supõe que cabe ao educador
formar o educando, plasmar o aluno, como se este fosse uma massa amorfa. Consequência:
não reconhece o educando como sujeito, consciência autônoma, impondo-lhe assim ideias,
não dialogando. Afirma o filósofo: “Para a consciência ingênua, a criança e o adulto a educar
são absolutamente ‘ignorantes’. Porém a noção de ignorância é tomada aqui em sentido
abstrato, isto é, não é concebida como ‘ignorância de algo’, de algum conhecimento (sempre
concreto)” (2010, p. 64). Absolutiza-se o conceito de ignorância sobretudo para as camadas
populares e o relativiza para as elites, uma estratégia de dominação. A educação, portanto, é
concebida como transferência de um conhecimento finito.
Supõe que o professor é apenas o transmissor de uma mensagem
definitivamente escrita, de um conjunto de noções, de acordo com
determinado método, e que essa mensagem não se modifica com as
condições de tempo e lugar, com os interesses do educador e com o mesmo
ato de ser transmitida (2010, p. 64).
Dessa maneira a educação passa a ser concebida como um dever moral da fração adulta,
educada e dirigente da sociedade. O ato educativo torna-se caritativo, uma doação. Transferese para a esfera ética o significado eminentemente social e político da educação.
A concepção ingênua contribui para a alienação cultural típica dos países em
desenvolvimento ao transplantar acriticamente ideias e soluções educacionais exógenas sem
recriá-las. E por compreender a finalidade da educação como simples transmissão de
conhecimentos, a noção ingênua não intenta mudar a condição humana do indivíduo que se
educa, sendo comprometida com a manutenção do status quo.
398
A concepção crítica da educação é a antítese da ingênua. Nessa, conteúdo e forma são
tomados em sua unidade concreta no ato educacional. O conceito crítico de conteúdo envolve
a totalidade do ato pedagógico, “são parte do conteúdo da educação: o professor, o aluno,
ambos com todas as suas condições sociais e pessoais, as instalações da escola, os livros e
materiais didáticos, as condições da escola etc.” (2010, p. 45). A “matéria” não é, pois, o
único componente do conteúdo da educação. Forma e conteúdo não se desligam. Como
afirma o filósofo: “Não está constituído [o conteúdo] somente por ‘aquilo que’ se ensina, mas
igualmente por aquilo ‘que’ ensina, ‘aquilo que’ é ensinado, com todo o complexo de suas
condições pessoais, pelas circunstâncias reais dentro das quais se desenvolve o processo
educacional” (2010, p. 46). Conteúdo e forma possuem assim caráter eminentemente social e
histórico e correspondem à fase de desenvolvimento de cada comunidade. Nesse sentido, a
forma
e
conteúdo
estão
em
função
de
fins
sociais,
discuti-los
abstrata
e
descontextualizadamente é cair numa visão ingênua.
Álvaro então afirma que conteúdo e forma relacionam-se aos fins estabelecidos pela
sociedade que, na perspectiva do autor, são os interesses das massas populares, de sua
elevação material e cultural e, por conseguinte, da transformação da realidade do país
subdesenvolvido. Assevera:
O conteúdo da educação é “popular” por excelência. Só deixa de sê-lo de
fato em condições de alienação cultural (praticamente dominantes nas
sociedades subdesenvolvidas). [...]. A forma da educação tem que ser aquela
que permita a grandes camadas da população passarem à etapa
imediatamente seguinte em seu processo de desenvolvimento (2010, p. 478).
Há outros aspectos importantes da concepção crítica. Nela o educando é sabedor e
desconhecedor, ao contrário da concepção ingênua que absolutiza a ignorância do educando.
Se por um lado o educando não sabe ler e escrever, por exemplo, nem por isso ele é um
“ignorante absoluto”. Para Álvaro, aquilo que este educando desconhece é o que não teve
necessidade de aprender. “Se tem podido viver até agora como analfabeto é porque as
condições de sua sociedade não exigiam dele o conhecimento da leitura e da escrita” (2010, p.
66). Neste caso a analfabetismo não seria uma chaga social, um desvio, mas uma produção da
própria sociedade que estabelece a necessidade da instrução de apenas uma parte dela, seja
porque condiz com a forma de produção econômica instituída, seja para o exercício da
dominação de uma elite.
399
O educando, nesta concepção, é “sujeito” da educação, nunca o objeto dela. A
educação não é um amoldamento do educando pelo educador, mas um diálogo amistoso entre
dois sujeitos que se educam reciprocamente273. A educação teria, portanto, um objetivo, não
um objeto, qual seja: a mudança da condição humana do indivíduo que se educa, a alteração
do ser do homem, de maneira que este homem se torne um elemento transformador de seu
mundo. Na relação entre educador e educando aquele “é o componente indispensável de um
processo comum, aquele pelo qual a sociedade como um todo se desenvolve, se educa, se
constrói, pela interação de todos os indivíduos” (2010, p. 66).
A educação promove uma nova proporção entre conhecimento e desenvolvimento.
Nunca é um processo que parta do vazio, da ausência de conhecimento por parte do educando.
Ela é a aquisição de novos conhecimentos que irão se somar ou substituir os anteriores,
ratificando-os, retificando-os a fim de elevar ao um grau maior o conhecimento de uma
sociedade que passa a exigir mais do indivíduo. É um novo balanço do saber em um plano
mais alto do processo cultural.
Último ponto a destacar na concepção crítica é sua noção de saber. Radicalmente
diferente da concepção ingênua que apresenta o saber como algo acabado, abstrato e ahistórico, para a concepção crítica “o saber é o produto de existência real, objetiva, concreta,
material do homem em seu mundo” (2010, p. 68). O saber é, desse modo, relativo (o que é
considerado saber em uma fase de desenvolvimento de uma cultura pode ser desconsiderado
em outra fase), concreto (é aquilo que uma sociedade ou indivíduo pode criar em função de
seu etapa de desenvolvimento), existencial (constitutivo da realidade de um grupo ou
indivíduo), empírico (deriva direta ou indiretamente da experiência), racional (produto da
capacidade intelectual do homem de criar ideias e entrelaçá-las por procedimentos lógicos),
histórico, não-dogmático (em constante superação), fecundo (é sempre gerador de novo
conhecimento).
Por tudo isso a concepção crítica de educação visa fundamentalmente à transformação
do mundo. E para Álvaro essa transformação (num contexto de subdesenvolvimento)
tem que ser nacional em sua plena significação. [...]. A educação tem que ser
popular, por sua origem, por seu fim e por seu conteúdo. [Pois] O país é
atrasado em virtude do modo de vida de suas massas (não de suas elites). Por
273
“O importante é deixar claramente estabelecida essa tese fundamental da teoria pedagógica crítica: no
processo de educação não há uma desigualdade essencial entre dois seres, mas um encontro amistoso pelo qual
um e outro se educam reciprocamente”. (2010, p. 120).
400
isso, a transformação da existência do povo é o que constitui a substância da
mudança na realidade da nação (2010, p. 52).
Educação, Desenvolvimento Nacional e Democracia
Álvaro Vieira Pinto concebe uma relação entre educação, desenvolvimento nacional e
democracia. Com efeito, a educação crítica seria ao mesmo tempo resultado do processo de
desenvolvimento e um contributo à continuidade de tal processo. Como afirma o filósofo em
Consciência e Realidade Nacional:
A educação não precede o processo de desenvolvimento, acompanha-o
contemporaneamente. Entre ambos existe uma tensão dialética que os
condiciona mutuamente. [...]. A educação é justamente a consciência destas
tarefas e a mobilização dos meios e recursos adequados a executá-las. [...]. A
substância efetiva da educação exigida pela fase em que se encontra o
processo nacional é que define a cultura. [...]. De fato, não há
desenvolvimento sem consciência correspondente, ao menos implícita, e esta
não se forma sem alguma espécie de educação (1960, vol. I, p. 120).
Atrelada ao processo de desenvolvimento como a consciência desse processo, a
educação crítica, por todas as suas características, é elemento indispensável ao progresso da
nação que, na perspectiva de Álvaro, significa a elevação das condições materiais e culturais
de vida do povo274. Como salientado acima, o objetivo último da educação é a transformação
da realidade do país subdesenvolvido, das condições objetivas de vida da massa, o que só
pode ser alcançado através de uma percepção precisa da realidade em mutação e de seu
sentido orientador, do esforço coletivo de alteração do atraso da nação e do diálogo com todos
os sujeitos envolvidos nessa dinâmica. Sendo assim, a educação crítica está comprometida
com a democracia, forma de organização social e política que implica tomar todo indivíduo
como sujeito de decisão sobre o seu mundo e não simples objeto de decisões alheias.
A educação cumpre então um papel desalienador. Mas, segundo Álvaro: “Para isso é
imprescindível que o educador se converta à sua realidade, seja antes de tudo do seu próprio
povo, ou melhor, das camadas populares de sua nação” (2010, p. 58). Isso significa
274
“Educar para o desenvolvimento não é tanto transmitir conteúdos particulares de conhecimento, reduzir o
ensino a determinadas matérias, nem restringir o saber exclusivamente a assuntos de natureza técnica; é, muito
mais que isto, despertar no educando novo modo de pensar e de sentir a existência, em face das condições
nacionais com que se defronta; é dar-lhe a consciência de sua constante relação a um país que precisa do seu
trabalho pessoal para modificar o estado de atraso; é fazê-lo receber tudo quanto lhe é ensinado por um novo
ângulo de percepção, o de que todo o seu saber deve contribuir para o empenho coletivo de transformação da
realidade” (1960, vol. I, p. 121).
401
reconhecer e aceitar sua própria realidade para assim compreendê-la e poder atuar sobre ela.
Desse modo, toda produção cultural estrangeira deve ser recebida, estudada e assimilada de
maneira crítica preservando e adaptando tudo aquilo que se mostrar útil à tarefa nacional. A
implantação de ideias derivada do simples fato de terem sido produzidas nos países centrais se
mostra nociva aos interesses do povo porque não foram elaboradas para atender aos desafios
colocados pela nossa realidade, mas respondem a desafios postos por uma realidade externa.
Apenas uma educação desalienada, isto é, crítica, pode servir aos objetivos da
sociedade em desenvolvimento, à transformação da vida do homem e à construção da
democracia. Ao fundar-se nas próprias condições de subdesenvolvimento de seu país esta
educação não rechaça tais condições, porém as aceita como um dado histórico-antropológico
a ser modificado.
O Educador e o Filósofo no país subdesenvolvido
Para Álvaro, o educador e o filósofo (e ainda o sociólogo275) devem ser portadores da
consciência mais avançada de seu meio. Possuindo a concepção crítica de seu papel no
mundo em desenvolvimento, ou seja, a compreensão das circunstâncias que condicionam sua
atuação e a finalidade de seu trabalho educativo e intelectual.
Se a finalidade, pois, da educação é a mudança da condição de vida do homem ao
educador não cabe apenas transmitir os conhecimentos adquiridos em sua preparação. Ao
considerar a educação em sentido crítico, vê seu papel modificado. O ato educativo, como
vimos acima, é tomado como encontro de consciências livres, dos educadores entre si e destes
com os educandos. “A relação educacional é essencialmente recíproca, é uma troca de
experiências, um diálogo” (2010, p. 118-9). Com isso, o filósofo brasileiro não retira a
diferença entre educador e educando. Evidentemente, o educador possui uma gama de
conhecimentos que o educando não possui, porém isso não implica necessariamente maior
consciência da realidade. Essa é uma conquista social, afinal quem educa o educador é, em
última instância, a própria sociedade, que delega a um grupo especializado a formação de seus
membros, fornecendo aos educadores seus fundamentos materiais e suas concepções, isto é,
“a consciência, em geral, com o meio natural e humano no qual se encontra o homem e do
275
Cf. 2010, p. 51.
402
qual recebe os estímulos, os desafios, os problemas que o educam em sua consciência de
educador” (2010, p. 111-12). E finaliza Álvaro:
O educador crítico deverá dar a compreender ao aluno que se está educando
da mesma maneira que ele (o educador) se educou. [...]. Deste modo, o
educando se reconhece como um educador potencial, ou melhor,
compreende que está sendo educado não como ignorante, como permanente
educando, mas como possível educador, e de fato já em ação, a iniciar por
sua [própria] mudança (2010, p. 120).
Já o filósofo, ao partir da condição do mundo subdesenvolvimento, não goza da
disponibilidade de interpretar o mundo como quiser. Sua reflexão está comprometida com
este mundo, com a transformação das condições objetivas do povo. Sua contribuição está na
elaboração/organização das ideias orientadoras do processo de desenvolvimento, utilizandose para isso dos dados fornecidos pelas ciências sociais e de todo aparato lógico e conceitual
próprios da filosofia, adaptando as categorias oriundas das correntes filosóficas estrangeiras e
criando outras. Assevera Álvaro: “Assim, não tem o filósofo do país subdesenvolvido tarefa
mais importante do que cooperar com o trabalho racional para a formulação de uma ideologia,
como instrumento de emancipação de seu país” (1960, p. 65).
Saliente-se, entretanto, duas coisas: a) a elaboração/organização dessas ideias não é
uma criação arbitrária do filósofo, mas provém das massas que efetivamente comandam o
processo de desenvolvimento, pois executam as tarefas materiais do desenvolvimento; b)
“ideologia” são as ideias orientadoras presentes em um fenômeno (explícitas ou não), esse
conjunto apresenta um sentido e cabe ao filósofo sistematizar tais ideias e colocá-las em um
horizonte de totalidade. E ao refletir sobre a educação numa perspectiva crítica, o filósofo
deve apontar o caráter ideológico de toda educação, quer dizer, explicitar a ideia da
educação que dirige um determinado processo educacional, aduzindo seus fundamentos
histórico-antropológicos e extraindo suas consequências sociais e políticas.
Observações finais
Aludimos algumas das principais ideias de Álvaro Vieira Pinto sobre educação. Outros
aspectos mereceriam enfoque como suas considerações sobre a educação infantil ou o
problema da alfabetização. Trabalhos posteriores deverão explorar tais tópicos assim como
403
elaborar uma comparação entre as concepções do autor e as noções de Paulo Freire. A título
de exemplo, a concepção de educação crítica em Álvaro pode ser relacionada à educação
problematizadora em Freire e a noção de educação ingênua à de educação bancária. Muitos
pontos de convergência são percebidos aí. Enfim, esperamos que essa pequena amostra das
ideias de Álvaro seja um estímulo ao resgate de sua filosofia da educação.
Referências bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Educação e Atualidade Brasileira. 2 ed. São Paulo: Cortez/IPF, 2002.
_____. Educação como prática da liberdade. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 2008.
VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: MEC/ISEB,
1960 (vols. I e II)
_____. Ideologia e Desenvolvimento Nacional. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1959.
_____. Sete lições sobre educação de adultos. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2010.
404
Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre
Luis Miguel Hernández Pérez
Resumen:
Friedrich Schiller en plena época de la Ilustración y a diferencia de otros pensadores, p.e.,
Kant, sostiene dos puntos:
1) El hombre es un ser sensible y, a su vez, que
2) El arte puede transformar al hombre, a la humanidad.
El primer punto permitirá desarrollar que: en tanto que el hombre es un ser sensible, puede
sublimar sus impulsos o bien de manera violenta, o bien de manera lúdica, siendo ésta última
el fundamento de la idea del juego en Schiller.
Por otra parte, en la Alemania de finales del siglo XVIII, que atraviesa por grandes cambios
sociales, políticos, tal es el caso, p.e., de la invasión napoleónica y las revoluciones del siglo,
Schiller se pregunta: ¿qué importancia tiene el arte en tiempos de revolución?
Así, el objetivo de la presente ponencia será intentar plantear una postura filosófica de la
educación, según la cual, el juego y el arte son dos elementos que no sólo pueden educar la
sensibilidad del hombre, de la humanidad, sino que también tienen un papel propedéutico en
la conformación de una cultura moral, es decir, a partir de la educación estética se puede
formar al hombre moral en el que no existe tensión entre su querer y su deber.
Palabras clave: Schiller, juego, arte y formación.
Schiller, el juego y el arte en la formación del hombre
Friedrich Schiller (1759-1805) para muchos hoy todavía inadvertido, tuvo un papel
importante tanto para el pensamiento ilustrado como para el primer movimiento romántico.
Pese a que fue duramente criticado por Fichte, ello no opaca ni la importancia que tiene el arte
en la educación de la humanidad, ni la eventual influencia que tuvieron sus postulados sobre
el juego y su teoría estética en la literatura y las artes. De hecho, si él no tuviera un papel
importante en la historia de la filosofía y del pensamiento humano en general, sería difícil
405
entender por qué Rüdiger Safranski, filósofo alemán contemporáneo y excelente biógrafo, lo
considera como “el retrato de uno de los movimientos más prodigiosos de la cultura
occidental: el idealismo alemán”.276
Schiller, nacido en Marbach, de padre alférez o capitán del duque, podemos decir que
originalmente pretendió ser teólogo. Sin embargo, a los 14 años de edad y por un decreto del
duque Karl Eugen, ingresó en la Karlsschule (en principio una casa de huérfanos militares y
posteriormente, una academia militar) para recibir formación militar. Una vez allí,
comenzaron sus estudios en derecho. Mismos que abandonaría debido a que en aquella
academia, en Stuttgart, se construyó una facultad de medicina; por la que se inclinaría. Ahí,
aunque no de manera formal, comenzaron sus estudios en filosofía, principalmente para
profundizar en Shakespeare, aunque también estudió a Rousseau y un par de años después, a
Garve.277 Gracias a sus posteriores estudios en historia y filosofía, Schiller, aunque pertenece
a un país en vías de Ilustración, se volverá un crítico del movimiento ilustrado tanto por lo
que pretende como por lo que comienza a olvidar, el arte y la subjetividad. De esta forma,
Schiller apelará a resignificar la poesía y a los griegos, no para imitar su modelo político y
cultural de humanidad sino para recuperar nuestra unidad con el todo y reconciliarnos con
nosotros mismos, con la naturaleza.
Su biografía nos dice que fue en su segundo año como estudiante de medicina, en octubre de
1776, cuando apareció el primer poema impreso de Schiller, “La tarde” y un año después, la
oda “El conquistador”. Posiblemente, ello lo ponía ya frente a su verdadera vocación: la
poesía y destacar como dramaturgo con obras como Los bandidos, Intriga y amor, Don
Carlos, El visionario, Guillermo Tell, Oda a la alegría, etc.
En efecto, sería como poeta y gran adaptador escénico que en 1788 llegaría a conocer a quien
entonces se le consideraba “genio”: Goethe. Su amistad iniciará 6 años después en Jena. Tal
vez porque no pertenecían a las mismas clases sociales. Posiblemente Goethe tendría que
vincularse socialmente hacia abajo y Schiller mirando hacia arriba. No obstante, tanto se
vincularon que mientras que Goethe enriqueció sus obras gracias a sus viajes y sus estudios
Cfr. Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán.
Este dato es importante, ya que eventualmente, Christian Garve criticó la filosofía moral kantiana y
sería en 1793, año en que también apareció el ensayo Sobre la gracia y la dignidad de Schiller, cuando Kant
respondería a tales acusaciones en el escrito Teoría y práctica. En torno al tópico: tal vez eso sea correcto en
teoría, pero no sirve para la práctica.
276
277
406
sobre la naturaleza, Schiller lo haría por la fuerza de su propio espíritu. Incluso su grave
enfermedad pulmonar pudo haberlo influenciado a exaltar la libertad y la vida humana.
Por lo anterior, Safranski sostiene que en su amistad:
Schiller, ese genio de la reflexión [...] su materia vivencial no consumía completamente
su potencia espiritual. Podía ponerla a disposición del amigo, para servir a éste de espejo
y enriquecerse él mismo con algo de mundo. En Goethe se le ofrecía un continente
completamente distinto, si no para tomar posesión de él, por lo menos para explorarlo.
Además, Goethe, genio de la intuición, le hizo adquirir confianza en las fuerzas del
inconsciente. Sólo gracias a la amistad con Goethe aprendió Schiller que los impulsos
creadores radican en un ámbito que <<por su naturaleza>> no puede ser comprendido.
Ambos se complementaban de manera prodigiosa: uno cuidaba de la claridad y de la
conciencia, y el otro del vínculo creador con lo oscuro e inconsciente. Su ideal común era
lograr unir las dos regiones: la idea y la experiencia, la libertad y la naturaleza, el
concepto y lo ambiguo.278
Años más tarde, pese a ser una figura pública y contar con el reconocimiento en las artes y la
amistad de Goethe, y ya con los efectos de su incurable enfermedad, Schiller conseguiría su
doctorado en la Universidad de Jena. En donde profundizaría, de manera individual y también
bajo la tutela de Reinhold, en la filosofía estética kantiana. Tal vez aquí, como estudiante y
posterior profesor, están los momentos más fuertes de encuentro con la filosofía kantiana, con
la crítica a la Ilustración y también su vínculo con el círculo de Jena o el primer movimiento
romántico.
Ahora bien, para Schiller, la filosofía ilustrada, y en especial la apuesta por la técnica que
devino tanto en la división del trabajo y la especialización, fragmentó al hombre para
racionalizarlo y con ello provocó una separación entre el hombre y la naturaleza y consigo
mismo. En esta fractura, o falta de unidad, podemos leer lo que cita Safranski: “El hombre,
eternamente atado a un pequeño fragmento particular del todo, se forma sólo como
fragmento; eternamente con el ruido monótono en el oído de la rueda que él mueve, nunca
desarrolla la armonía de su esencia, y, en lugar de expresar la humanidad en su naturaleza, se
convierte en una mera copia de su trabajo”.279
Aquí cobra sentido la frase de uno de los diálogos de sus múltiples obras: “El hombre es más
de lo que vos creéis”280; ya que el hombre ni es un mero fragmento o una copia de lo que
278
279
280
Rüdiger Safranski. Goethe y Schiller. Historia de una amistad. p.15
Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. pp.44-45
Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. p.247
407
hace, así como tampoco es sólo razón, también sentimientos y emoción. Schiller, por ello,
apelará tanto por el homo ludens como por la importancia de la fuerza creadora y la libertad
que se encuentran en el arte y que hacen plausible la formación estética del hombre. Razón
por la cual:
El juego del arte ha de compensar, ya que no puede superar, esta llaga de una sociedad
basada en la división del trabajo, que convierte a los hombres en un <<fragmento>>, en
mera <<copia de su trabajo>>. El juego del arte anima al hombre a jugar con todas sus
fuerzas, con la razón, el sentimiento, la imaginación, el recuerdo y la esperanza. Este
juego libre redime de las limitaciones basadas en la división del trabajo. Permite al
individuo, que sufre por su astillamiento, convertirse en un todo, en una totalidad en
pequeño, aunque sólo sea en el instante y el ámbito limitados del arte. En el disfrute de lo
bello el hombre experimenta el gusto anticipado de una plenitud que todavía está por
llegar en la vida práctica y en el mundo histórico.281
Si bien es cierto que las Cartas sobre la educación estética del hombre abren con un lúcido e
inédito análisis antropológico del hombre y la sociedad, ello es porque Schiller sostendrá y
defenderá, a diferencia del pensamiento ilustrado, la sensibilidad del hombre y que, en efecto,
sus deseos o impulsos tienen que realizarse. Por lo anterior, él contempla dos posibilidades
para sublimar o anular tales deseos en el hombre: o bien de manera violenta, o bien de manera
lúdica. Ésta última la provoca el arte y específicamente, el juego. De esta manera, Schiller
sostiene que a través de este mundo lúdico, como lo llama Safranski, el hombre puede llegar a
ser auténtica y plenamente hombre. Es por ello que, la tesis sobre el juego estriba en que: “el
hombre sólo debe jugar con la belleza, y debe jugar sólo con la belleza. Para decirlo de una
vez por todas, el hombre sólo juega cuando es hombre en el pleno sentido de la palabra, y sólo
es enteramente hombre cuando juega”.282
Schiller, en este sentido, piensa que la naturaleza no nos ha provisto de sensibilidad por una
mala jugada del destino. Lo ha hecho también para que hagamos bella nuestra forma.
Ciertamente, la tesis schilleriana es: el hombre sólo alcanzará su estado más perfecto a través
de la belleza. Por lo tanto, ella es el origen y la meta de la educación estética, ya que
únicamente el arte podrá unir armoniosamente lo que hay de contradictorio en el hombre, a
saber, sus deseos, las inclinaciones, es decir, su querer con el deber moral. En este sentido, el
281
Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. p.45
282
Friedrich Schiller. Cartas sobre la educación estética del hombre. p.241
408
hombre estético es un hombre libre. Ello se debe a que, según Schiller, belleza no es otra cosa
que libertad. En efecto, el arte representa libertad y autodeterminación, es decir, autonomía.283
Así, para que la humanidad cambie, se necesita transformar la sensibilidad de los individuos y
en ello radica la importancia del arte en la educación. De hecho, Schiller, frente al contexto
sociopolítico, alemán y francés, de finales del siglo XVIII, se plantea la siguiente pregunta:
¿para qué ocuparnos del arte en tiempos de revolución? Yo agregaría, ¿actualmente
requerimos de una revolución política o de una revolución estética, cultural? Por lo anterior,
para Schiller, el arte es fundamental para la construcción de la cultura, ya que:
el arte despierta al hombre a un mundo que de lo contrario no experimentaría. Ese mundo
es el estado estético (…) aquel donde se siente por primera vez la posibilidad de una
actuación conjunta de la sensibilidad y la razón [No obstante] el arte no conduce a actuar
de ninguna manera, a lo sumo puede aspirar a producir en los espectadores un placer
estético de tales características que prepare el ánimo, que lo despierte y le presente la
posibilidad de una experiencia del mundo distinta.284
Schiller espera es que quien haya pasado por la experiencia estética no vuelva jamás a ser el
mismo. Poco a poco, el hombre irá ennobleciendo su espíritu y esto se reflejará en sus
acciones. Así, el estado estético, según Schiller, no sólo comprende al hombre, sino a la
humanidad, a la educación, para construir una auténtica Bildung estética. Entonces Safranski,
dice: “en primer lugar el arte es un juego serio, en segundo lugar es un fin en sí mismo y, en
tercer lugar ofrece una compensación ante lo que Schiller describe como deformación
especifica de la sociedad burguesa: el sistema desarrollado de la división de trabajo”. 285 Es así
como Schiller piensa que el juego y el arte, de manera seria y por sí mismos, articulan, sin
tensión, la naturaleza con la cultura que exalta la libertad y el gusto por lo bello.
Empero, ¿hacia donde apunta la formación del hombre schilleriano? Para tal propuesta,
quisiera evocar la argumentación del ensayo Sobre la gracia y la dignidad. No obstante, que
es un ensayo anterior a las Cartas, me parece que en él, Schiller expresa que ciertamente sólo
Es posible que esta idea permita ver la influencia de Schiller para el romanticismo. En tanto que dicha
autonomía del arte, o como escribe Safranski en su libro Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán: “el
arte (…) es autónomo. Tiene reglas, pero se las otorga a sí mismo (…) el arte es fin en sí mismo”, permite
anticipar el termino francés, atribuido a Théophile Gautier: “l’art pour l’art”.
283
María del Rosario Acosta López, “La ampliación de la estética: la educación estética de Schiller como
configuradora de un espacio compartido”, en Rivera García, Antonio. Schiller, arte y
política. p.62
284
285
Rüdiger Safranski. Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. p.44
409
un alma bella (“donde armonizan la sensibilidad y la razón, la inclinación y el deber”286) con
carácter sublime, es decir, con gracia y dignidad, es capaz de que sus actos no sean sólo
buenos, también bellos, pues su espíritu está en armonía.
La gracia es, según Schiller, un mérito personal, que embellece nuestra alma y nuestra forma.
La dignidad la hace sublime. En la forma humana, podemos verlos en tanto que: “la gracia
reside, pues, en la libertad de los movimientos voluntarios; [mientras que] la dignidad [lo
hace] en el dominio de los involuntarios. [Pues] Allí donde la naturaleza ejecuta las órdenes
del espíritu, la gracia le concede una apariencia de libre albedrío; allí donde quiere dominar, la
dignidad la somete al espíritu”.287 Esto sucede, p.e., cuando un actor pasa largas horas frente
al espejo preparando el personaje a representar. Para Schiller, debido a sus estudios teatrales,
la belleza de la actuación no estriba en una técnica sobretrabajada, sino en su espíritu, que
hace que tal actor tenga una expresión de gracia al hacer las cosas de manera natural. Lo
mismo sostiene en la moral. Una persona que es obligada hacer lo que no quiere, aún cuando
tenga un mérito saber que sí ha cumplido, sus ojos, sus gestos, nos revelarán la ausencia de
armonía interior al actuar. Allí estriba la dignidad.
En este sentido, Schiller hablará de una belleza arquitectónica, es decir, de la forma que
puede ser bella o poco menos bella. Sin embargo, aunque sea poco bella, sigue participando
en la belleza, pero en menor grado. El alma humana que es libre, requiere una forma que la
permita representarse en todo su esplendor y sólo la gracia puede lograrlo. No es suficiente un
cuerpo bien trabajado si está hueco por dentro, así como tampoco lo bello podría expresarse
en un cuerpo defectuoso. La gracia da armonía a estos dos. Es por ello que, la gracia se
expresa libremente en una voluntad moral, aquella en donde el deber no la limita sino que la
provoca. En otras palabras, la gracia aparece en el ser que al actuar por deber no niega o
limita sus inclinaciones, sino que por la armonía que hay en su espíritu, se inclina a actuar por
deber.
Así, la gracia se expresa en el carácter -que para Schiller es la armonía moral de los
sentimientos- como una fuerza adquirida del espíritu. Pues lo cierto es que, no basta con que
la belleza sea libertad: para lograr el ennoblecimiento ético de la voluntad, que es en exclusiva
286
287
Friedrich Schiller. Sobre la gracia y la dignidad. p.45
Ibidem, p.55
410
obra del hombre, hacemos uso de nuestra libertad para superar nuestros propios impulsos
naturales y en esa medida en el alma bella se confía en el hombre, a pesar de sus propios
intereses, para dar lugar a un todo coherente.288 En efecto, el hombre moral schilleriano, hay
que decirlo con toda la fuerza de las palabras, sólo es lo que el llega a hacer de sí mismo, ya
que:
los simples seres orgánicos no son respetables como criaturas; pero el hombre sólo puede
serlo como creador (es decir como propio causante de su estado). No ha de limitarse a
reflejar, como los demás seres sensibles, los rayos de una razón ajena, aunque fuera la
divina; sino que ha de brillar como un sol con su propia luz. Se exige, pues, del hombre,
en cuanto se adquiere conciencia de su destino moral, una forma expresiva; pero, a la vez,
debe ser una forma que hable a su favor, es decir, que exprese una manera de sentir
adecuada a su destino, una aptitud moral.289
Al respecto, Safranski, citando a Schiller, agrega que:
Decimos que un alma es bella cuando el sentimiento moral se ha asegurado finalmente de
todas las sensaciones del hombre, hasta el grado de que puede sin rubor confiar al afecto
la dirección de la voluntad, y nunca corre el peligro de entrar en contradicción con las
decisiones de la misma (…). Con gran facilidad, como si desde ella actuara sólo el
instinto, practica los deberes más penosos de la humanidad, y el sacrificio más heroico
que arranca a las tendencias naturales, se presenta ante nuestros ojos como la acción
voluntaria de esa tendencia.290
Schiller, como se dijo antes, no niega que dada la sensibilidad o el componente apetitivo que
se encuentra en la naturaleza del hombre, en donde residen las inclinaciones, el hombre sienta
las veces dolor o satisfacción en su actuar. Dolor cuando no ha logrado satisfacer sus
necesidades; satisfacción al verlas cumplidas. Sin embargo, en esta lucha continua entre la
sensibilidad y la razón, la inclinación y el deber, la dignidad sólo puede entenderse cuando en
el interior del hombre, existe armonía en el espíritu y actúa moralmente; esto es, que
libremente gobierna sobre sus sentimientos, ya que su voluntad libremente se somete a las
leyes de la razón.
La voluntad, según Schiller, no está atada ni al mundo de la sensibilidad (o naturaleza) ni al
de la razón, ella está unida a la ley de la razón. Dado que ni la naturaleza al actuar espera estar
en concordancia con la razón pura, ni tampoco la razón, para legislar moralmente, espera el
consentimiento de los sentidos. De allí que, para enfatizar la fuerza moral, el hombre ha de
288
Cfr. Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. pp.360-364
289
Friedrich Schiller. Sobre la gracia y la dignidad. p.34
Rüdiger Safranski. Schiller o la invención del idealismo alemán. p.361
290
411
querer que en su espíritu, armoniosamente, se una la voluntad con la razón, a pesar de la
sensibilidad. En ello estriba la autonomía: en poner límites al instinto natural. Y la dignidad,
en que el espíritu se conduzca sobre el cuerpo como soberano cuyos actos ya no serán sólo
moralmente bellos sino moralmente grandes.
Así podemos concluir el presente escrito. Sosteniendo que la propuesta de formación a la que
apunta el alma bella schilleriana, reside en que: por una parte, el juego propicie espacios para
la libertad, y que, por otra parte, sea a través del arte donde cultivemos nuestro querer, de tal
manera que la gracia pueda lograr expresar el equilibrio entre nuestros deseos y nuestro deber.
El estado estético, es así, condición necesaria para la libertad y la moral.
Bibliografía:
Rivera García, Antonio (ed.). Schiller, arte y política. Murcia: Edit.um. 2010
Safranski, Rüdiger. Goethe y Schiller. Historia de una amistad. España:
Tusquets. 2011
__________ Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán. México: Tusquets. 2009
__________ Schiller o la invención del idealismo alemán. España: Tusquets. 2006
Schiller, Friedrich. Kallias. Cartas sobre la educación estética del hombre. Barcelona:
Anthropos. 1999
__________ Sobre la gracia y la dignidad. Sobre poesía ingenua y poesía sentimental.
Barcelona: Icaria. 1985
412
EDUCAÇÃO E LIBERDADE NO MERCOSUL
André Gustavo Ferreira da Silva
O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) foi instituído pelo de tratado de
Asunción (1991), constituído inicialmente por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O
MERCOSUL representa o empenho em consolidar a soberania da região via a integração
econômica entre os países que o compõem. Este trabalho estabelece o corte nos anos de 1980
devido ao valor desse período na história contemporânea dos países do MERCOSUL. O
período é marcado pelo processo de abertura política.
O objeto de nosso trabalho ao se ater ao pensamento pedagógico da Argentina,
Uruguai e Paraguai, amplia nosso objeto de pesquisa no doutorado (SILVA, 2007 [A])
defendida pelo PPG de educação na UFPE, em 2007.
O trabalho se valeu, em especial, de periódicos de ampla circulação em seus
respectivos países. Devido à grande importância para o debate pedagógico no MERCOSUL.,
pesquisamos os seguintes periódicos: da Argentina, Revista Novedades Educativas, Boletim
Informativo da província de Santa Fé, Comunidad Escolar Democratica, Educación y Cultura,
Educación Permanente, EDUCOO, Revista latinoamericana de Innovaciones Educativas; do
Uruguai, Educación y Derechos Humanos, Cuadernos de Marcha, Revista de la Educación del
Pueblo, Educación y Cultura LatinoAmericana; Paraguaios, Atas da Assembleias da
Federación de Educadores del Paraguay (FEP). O foco em periódicos se justifica pelo fato de
413
que muitos deles, em particular Cuadernos de Marcha, circularem pelos países do Cone-Sul,
notadamente entre Argentina e Uruguai, fazendo que essas revistas desempenhassem um
importante papel na integração da produção acadêmica da região.
A justificativa de uma investigação sobre o conceito de liberdade nas ideias
pedagógicas do MERCOSUL esta fiada no contexto de integração da América Latina como
um todo. A pesquisa foi realizada em bibliotecas e arquivos nos referidos países, possibilitada
pelo fomento do CNPq.
Estamos cientes de que esses textos não esgotam a produção pedagógica do MERCOSUL na
década de oitenta. No entanto, eles se constituem como a porta de entrada para o vasto universo do pensamento
pedagógico sul-americano. Consolidando a base para futuros trabalhos sobre o tema.
Objetivamos compor um quadro que contribua para uma melhor compreensão das
identidades conceituais do pensamento pedagógico do MERCOSUL nos anos oitenta.
Apontado que o discurso pedagógico manifestos nos periódicos estudados ramificava-se em
quatro correntes: a liberal-conservadora, a pragmática-deweyniana, a marxista-gramsciana, a
marxista-freireana. Evitou-se o chamado “pensamento classificatório” (Ghiraldelli, 200 A., p.
40), aquele que escrutina um conjunto de tendências e correntes conforme aquela que o
pesquisador classifica como a correta, a que representasse o “avanço histórico”. Assim, nosso
olhar não se pautou por uma perspectiva linear, não se estipulou uma linha evolutiva que
classificasse as correntes trabalhadas.
Diante do exposto, o fundamento de nossa metodologia não poderia ser outro se
não a Hermenêutica. O campo da Hermenêutica é bastante vasto. Pois, mesmo
desconsiderando os períodos talmúdicos, patrístico e escolástico, sua extensão contemporânea
vai de Schleiermacher à Gadamer. A despeito de ter nascido em berço eclesiástico, constituise, contemporaneamente, como uma importante ferramenta da pesquisa filosófica,
possibilitando também a aproximação com investigações de caráter mais historiográfico,
notadamente nos âmbitos da história das ideias e história cultural. Neste sentido, é importante
destacar que não desenvolveremos uma “analítica” do conceito de liberdade presente nos
textos. Intencionamos “tão somente” identificar os sentidos do conceito e suas possíveis
presenças no debate sobre democratização da educação, especificamente a universitária. Deste
modo, investigar o contexto histórico foi um momento necessário na pesquisa.
414
A pesquisa filosófica segundo uma perspectiva analítica teria por universo a
dinâmica do conceito ou termo analisado – no caso o conceito de liberdade – em relação aos
seus significados num dado conjunto de pensamento que se materializa num texto, numa obra
de um autor como um todo ou num conjunto de textos e obras.
A distinção em referência a uma pesquisa hermenêutica é que esta investiga a
dinâmica do conceito em relação ao “mundo” que o produziu e em relação às legitimações
que seu uso implica. Contudo, esta distinção não significa um absoluto corte entre a tarefa de
investigar o contexto - e as consequências do anúncio de um conceito - da análise dos
significados desse conceito em meio ao “texto” pelo qual ele é anunciado. Porém, voltamos a
afirmar que, no âmbito deste trabalho, nosso procedimento visou prioritariamente investigar
dinâmica do conceito de liberdade em função do contexto histórico de seu anúncio. Daí a
natureza de sua metodologia ser hermenêutica e não, necessariamente, analítica.
Seguimos, portanto, Emerich Coreth (1973) quando sugere que a compreensão
que se tem de um texto vai além da explicação ilustradora. Defendendo que o compreender
pressupõe uma interpretação, partindo do nosso ponto de vista e movida por nossa intenção,
do contexto do texto. Neste sentido, a problemática da hermenêutica esta no campo da
compreensão, isto é, no âmbito da apreensão dos sentidos de um texto mediada tanto pelo
contexto do texto quanto pelo contexto do intérprete. Assim, escudos em Coreth, entendemos
que os eventos históricos, os valores e as culturas, distintos que são dos fenômenos da
natureza, não devem ser “explicados”, porém, devem ser compreendidos. Desta formas, a
compreensão, nos moldes que aqui definimos é o resultado e o meio pelo qual se dá o
processo hermenêutico de investigação. Sua amplitude se relaciona com o esforço de
compreender homens em meio a suas ações, obras e decisões em seu tempo. Lembrando,
contudo, que neste esforço apreendem-se sentidos diversos na compreensão, pois, um mesmo
objeto pode ser compreendido e apreendido em sentidos diversos. Salientando também que
nunca poderemos esgotar os sentidos possíveis de compreensão, haja visto, que este também
está a mercê do “lugar e tempo” de quem se dá ao trabalho de “compreender”. Visto que tais
tempos e lugares se movimentam e se transformam, a “compreensão” tem em-si a
possibilidade da transmutação. O exercício da compreensão hermenêutica é, então, a prática
do “diálogo” entre o pesquisador com o texto investigado sob uma dupla mediatização: o
contexto do texto e o lugar-tempo do investigador.
415
O trabalho hermenêutico pesquisa o conceito em relação ao mundo que o produz, onde a
amplitude da compreensão produzida por ela é resultado da prática do diálogo entre o pesquisador e o texto,
mediatizados pelo contexto do texto e pelo lugar-tempo do investigador. Resgatando ainda o que também se
afirmou na metodologia, ampliamos para quatro (04) as correntes de pensamento identificadas, que agora são: a
liberal-conservadora, a pragmática-deweyniana, a marxista-gramsciana, a marxista-freireana.
Naturalmente, as correntes aqui assinaladas apresentam características próprias
devidas às especificidades da cultura e da realidade político-econômica de suas respectivas
sociedades. Assim sendo, o pensamento liberal-conservador no Paraguai, cuja expressão
prática pode ser anotada pela Federación de Educadores del Paraguay (FEP), tem traços
específicos distintos, por exemplo, da Fundação Victor Civita, uma das mais significativas
expressões do pensamento liberal na educação brasileira. O próprio pensamento pedagógico
brasileiro, país de dimensões continentais, também apresenta variações particulares em um
mesmo tronco de ideias, desta forma, o marxismo de Saviani não é o mesmo de Freire.
O investigador defende – conforme o já anunciado em outro texto (2007) - que a Educação é o
lugar da possibilidade, portanto não está condenada à efetivar determinações necessárias.
Entende que a
Educação transcende às determinações factíveis e históricas que pesem sobre indivíduos e coletividades. Sendo a
educação o lugar que torna possível a realidade de alternativas às ordens necessárias impostas a um povo ou
período histórico. Dito isto, não está comungando do credo segundo o qual a educação tem o poder de
transformar a sociedade. Defende-se a possibilidade dos indivíduos e sociedades de projetarem para si um devir
alternativo àqueles determinados por uma histórica reprodução de dominação. O pesquisador entende que
“liberdade” é um conceito com inúmeros sentidos, por vezes até antagônicos entre si. Contudo, a circulação
desse conceito, mesmo numa diversidade conflitante, é imprescindível no espaço latino-americano, haja vista a
ainda efetiva necessidade do debate acerca da real emancipação de seus povos.
A pesquisa foi projeta e realizada ainda com o MERCOSUL sob sua primeira
configuração: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Na época, o bloco junto com toda a
América Latina consolidava soberanamente sua integração. A formação da UNILA (janeiro
de 2008) no plano educacional e da UNA-SUL (maio de 2008) no plano geopolítico, que
rivaliza com a OEA (longeva hegemonia Norte-americana), atestam os passos soberanos no
caminho da integração. Sendo o país de menor tradição democrática do bloco, até mesmo o
Paraguai vivenciava um raro momento de efervescência democrático-nacionalista tendo na
presidência Fernando Lugo, cuja reivindicação de um novo contrato referente à produção
energética de Itaipu - principal bandeira na política externa – fora atendida na 40ª Reunião de
Cúpula do Bloco. Feito que teve significativo impacto na emancipação econômica daquele
416
país. Enfim, nosso “tempo” é o momento de valorização de uma maior integração entre os
países da região, que se manifestava concretamente na exitosa realização da 10ª Cúpula Social
(dezembro de 2010) do MERCOSUL, cujo documento final da Comissão de Cultura
evidenciava, “a importância de adoção de processos integrados de formação e pesquisa
cultural entre os países do Mercosul”291.
O PENSAMENTO LIBERAL-CONSERVADOR
Possuidora de uma história mais fecunda que a brasileira quanto à realidade educacional, as
questões educacionais na Argentina ocuparam algum destaque mesmo nos anos finais da ditadura. O jornal de
grande circulação El Clarin - pertencente a família Noble e veiculo favorável à ditadura militar - atesta essa o
valor dessa preocupação ao manter ao longo de toda década de oitenta o suplemento Panorama Educativo:
caderno especial sobre a temática da educação, de periodicidade semanal, publicado às quartas-feiras (miércules)
ou, raramente, às quintas-feiras (jueves). Em meados dos anos 1980, o país vivencia o debate acerca das
diretrizes nacionais para a educação através do chamado Congreso Pedagógico: amplo debate travado no
Congreso Nacional sobre as leis e diretrizes básicas para a educação. Fato que muito contribuiu para a
emergência da discussão acerca dos problemas da educação naquele país.
Registrando a sintonia com o governo militar e a preocupação com a educação nacional, em 21 de
maio de 1980, semana de grande significado na cultura política argentina por ser o período comemorativo de sua
independência, o Clarin noticia que: “o ministro do Interior, general Harguindeguy, recebeu os cinco reitores das
universidade particulares com quem analisou a situação educacional no país e adentrou na análise de suas bases
políticas” (CLARIN, 21/05/1980, pg 10). Fato que exemplifica o engajamento do diário em dois dos objetivos do
governo conservador para com a educação: o controle do Estado e a participação do capital privado.
A valorização de uma das teses fundamentais do pensamento liberal – a liberdade como exercício
singular e privado da autonomia - é recorrentemente salientada no referido periódico. Tese diretamente
relacionada à ideia de que o ambiente para tal exercício de liberdade é uma sociedade regulada por um Estado de
Direito. Como exemplo, temos a noticia (CLARIN 04/06/1980, pg34) que a “Academia Nacional de História”
cujos principais expoentes são Edmundo Correas, José M. M. Urquijo, Carlo S. A. Segretti, Andrés R. Allende,
defende a continuidade do legado histórico educacional argentino, pois:
“exaltam a individualidade do homem, postulam a necessidade de educá-los
inculcando-lhes sentimento de responsabilidade e solidariedade social.
Defendem que a educação deve propor-se a dar a cada sujeito a capacidade
de 'saber ser' e (…) aceitam que os deveres do Estado em matéria
educacional devem ser feitos de acordo com a ação privada” (Idem).
291
http://www.cultura.gov.br/cnpc/wpcontent/uploads/2010/12/reuniyyo_da_x_cyypula_do_mercosul_15-12-2010.pdf
417
Continuando na valorização da liberdade enquanto a autonomia relativa à condução das escolhas
individuais, o periódico informa (CLARIN 23/07/1987, pg 47) que a VI Jornada Latino-americana de Educação,
promovida Federação de Associações Educativas Privadas Latino-americanas (FAEPLA) e o Sindicato de
Estabelecimentos Privados de Ensino do Estado de São Paulo (Brasil), defende que o “ensino é livre para a
iniciativa privada e governamental, e se administrará sem a ingerência do poder público” e que “é dever do
Estado e da comunidade democratizar o acesso à escola e o exercício da livre escolha” (Idem). Aqui, referida à
autonomia de escolher entre a escola pública e a privada...
O ideário filosófico subjacente à política educacional oficial nos últimos anos da ditadura
argentina é expresso no programa de Formación Moral y Cívica do Ministério de Cultura e Educação, proposto
pelo educador Juan Rafael Llerena Amadeo. Programa lançado em março de 1980. O Clarin (04/03/1980, pgs
22-23) destaca a iniciativa em suas páginas referentes à educação, salientando a ideia segundo a qual a “pessoa
humana” é composta – dentre outras - pela dimensão da individualidade, racionalidade e liberdade. Informa
ainda o diário que constará como conteúdo do programa de formação moral assuntos como filosofia e arte
gregas, direito e vida política romana, além de conteúdos como “a tradição bíblica” e “o cristianismo: o amor a
Deus e o amor ao próximo, a igualdade entre os homens” (Idem).
Alfredo Stroessner (1912-2006) protagonizou a mais longa ditadura pessoal do
Cone sul (MORAES, 2000 & CHIAVENATO, 1980), que perdurou de1954 a 1989, sob os
auspícios da Asociación Nacional Republicana e do Partido Colorado (fundado em 1887). O
discurso circulante neste período enaltecia: o senso de patriotismo e nacionalismo, a defesa
da cultura e da língua guarani, o anticomunismo, e a defesa da civilização ocidental e cristã
contra o avanço do socialismo internacional. Ainda enquanto discurso, o governo Strossner
anunciava a significativa preocupação com a “Defesa da Soberania Nacional”.
A análise dos boletins e memoriais da Federación de Educadores del Paraguay
(FEP) indicam que a federação docente paraguaia se filia ao ideário governista, cumprindo
um significativo papel no controle político da categoria.
Ao longo de boa parte do período ditatorial, a FEP exerceu com exclusividade a
representação sindical docente, sendo confrontada por outra agremiação – a Organización de
los Trabajadores de la Educación en Paraguay (OTEP) – apenas nos anos finais da década de
oitenta, pouco antes do fim da ditadura Strossner. A FEP é constituída de um conjunto de
Associações de semelhante perfil assistencialista, que não problematizam os mecanismos de
exploração e cerceamento da liberdade docente e nem o atrelamento da educação aos
mecanismos de controle direto governamental. Neste sentido, o memorial da comissão
diretora da associação docente de Arroyos (cidade do sudoeste paraguaio) defende, conforme
o artigo 2º de sua Carta Orgânica, que “segue sempre prestando sua assistência econômica aos
418
associados que a solicitam através de uma Caixa de Ajuda” (Memoria de la Comisión
Directora de la Assciación de Educadores Arroyenses , pg 01) Anexo 2276.
A FEP, distinguindo-se de outras instituições sindicais do bloco, notadamente as
Argentina e Brasil, não edita boletins regulares e nem encaminha alguma ação de editoração
de caderno de formação ou debate. Suas diretrizes e seu ideário é propagado em meios às
assembléias e disseminadas ao longo de todo país através dos representantes das províncias.
Por conseguinte, a pesquisa foi realizada com Atas das assembleias, memoriais de diretoria e
boletins informativos datilografados, fato que empobrece uma melhor aproximação aos
conceitos subjacentes. Contudo, constituem-se como valiosos registros da efetiva sintonia
entre a FEP e o governo ditatorial. Na “memoria” escrita por seu presidente, Oscar Vera,
atesta-se tal relação pelo fato do documento defender que a federação:
“tem encontrado no Senhor Ministro [da Educação] Ortíz Ramírez um
interlocutor consciente para com nossas inquietações, suas respostas se
caracterizam por sua sinceridade e suas posições coincidem com nossas
aspirações” (Memoria de la Comisión Directiva de la FEP, exercício 19841985, pg 02)
Ainda o presidente da FEP, no discurso
pronunciado na cerimônia de abertura do evento
comemorativo dos cinquenta anos da entidade (1986), atesta que:
“Em relação à luta pela proteção dos docentes, até esta data se tem logrado
conquistas de relevância, tais como, o pagamento regular dos salários, a
promulgação da lei que estabelece a progressão por mérito (escalafon), a
assistência médica através do Instituto de Previdência Social (…)
ressaltamos em grau superlativo a majestosa obra do Governo Nacional, que
com uma dinâmica sem precedentes em nossa história, transformou a
infraestrutura física e programática do sistema educativo do país, dotando a
nação de modernos estabelecimentos educacionais, disseminados como
verdadeiros monumentos à paz, por todo o país, permitindo ao educador
exercer sua profissão com comodidade e decoro.” (Reflexiones de la
Presidencia de la FEP – apertura XXV Convencion Anual, 1986).
Então, a “luta” de emancipação e conquista da soberania dos docentes paraguaios encaminhada
por sua federação nacional não avança em nada as linhas determinadas pelo próprio governo ditatorial.
O PENSAMENTO PRAGMÁTICO-DEWEYNIANO
A contribuição do pensamento de John Dewey à educação está notoriamente
relacionada ao Movimento Escola Nova, movimento plural composto por correntes
419
pedagógicas que nem sempre coincidiam em suas propostas. Esta pluralidade faz com que
possamos filiar a suas bandeiras educadores de matizes ideológicas distintas, por exemplo, o
próprio Dewey (EUA), Maria Montessori (Itália) e Makarenko (URSS).
Assim, em termos de uma identidade filosófica particular, o movimento é
desprovido de um cerne conceitual comum. A possível convergência entre suas diversas
matizes se dá em torno da crítica à escola tradicional (verbalista e livresca) e da valorização da
autonomia do aluno, em meio a um espaço social estruturado segundo a autonomia
democrática.
Este novo olhar sobre o educando também se pode debitar a uma maior
presença das contribuições da psicologia cognitiva nas reflexões sobre as práticas relacionadas
ao ensino-aprendizagem, particularmente aos estudos de Jean Piaget.
Quanto a Dewey, suas ideias influenciaram um bom número de experiências
pedagógicas em vários países. O educador inicia sua reflexão a partir das experiências
realizadas na Escola Universitária Elementar de Chicago, que funcionava como uma espécie
de “colégio de aplicação” em relação aos debates acerca da educação promovidos pela
referida Universidade, no qual se efetiva na realidade prática as concepções de experiência e
conhecimento características do pragmatismo deweyniano. Suas práticas e ideias
influenciaram a constituição de um ideário que se apresentava como a resposta às
necessidades de una escola nova para os novos tempos (CASTRO, 2007, 127). Como
exemplos dessa influência podem ser citados a Park School em Buffalo; a experiência da
educação orgânica no Alabama (Fairhope); em Dalton, as experiências que originaram a
proposta conhecida como “Dalton Plan”, que junto com o sistema Winnetka, criado por C.W.
Washburne (Illinois), representam as mais notórias experiências pedagógicas centradas no
trabalho auto-dirigido (CASTRO, 2007, 129).
Vários elementos podem justificar a grande influencia que o pensamento de John
Dewey exerceu na América Latina, principalmente na primeira metade do século XX: a
circulação de estudantes e professores universitários latino-americanos, na maioria das vezes
oriundos dos estratos mais beneficiados da sociedade, nos centros de ensino superior
estadunidenses e, principalmente, à força de contestação com a qual se volta o ideário
deweyniano contra a pedagogia tradicional, que em nosso continente tinha a Igreja Católica
como ferrenha representante e defensora. A sintonia entre o ideário pedagógico tradicional
com o projeto de poder da oligarquia agrária faz com que a contestação à pedagogia
tradicional, em toda a América Latina e em particular nos países do Cone sul, assuma um
420
iminente caráter político, provavelmente, de uma natureza contestadora ao status quo bem
mais acentuada que nos EUA. Pois, se lá o discurso de valorização da democracia coincidia
em vários aspectos com o projeto liberal progressista, entre nós, em meio à hegemonia da
oligarquia latifundiária (herdeira do colonizador escravocrata), até o projeto democrático
liberal era profundamente transformador.
É então se confrontando com o projeto oligárquico que os escolanovistas
desenvolvem suas ações e reflexões pedagógicas. Nomes como Anísio Texeira, Miguel Soler,
Yolanda Vallarino, Reyna Reyes e Julio Castro, representam tanto a influencia do pensamento
de Dewey quanto o caráter contestador do escolanovismo. Sendo esta corrente de pensamento
pedagógico a mais presente no universo dos periódicos investigados na pesquisa.
Definimos aqui por pensamento pragmático-deweyniano o conjunto de ideias e
práticas inspiradas diretamente na contribuição de John Dewey e que tem como categorias
principais os conceitos de democracia e liberdade.
Na década de oitenta, via as reflexões de Julio Castro, uma filosofia educacional
de inspiração deweyniana ainda desempenhava um grande papel no pensamento pedagógico
do Cone sul.
Assim como Teixeira no Brasil, Julio Castro é o grande nome do escolanovismo
de influencia deweyniana, não apenas no Uruguai, mas nos píses vizinhos, notadamente a
Argentina. Salientando que suas ideias não ficaram restrita às décadas de 40 e 50 do século
passado devido principalmente ao esforço editorial dos periódicos Revista de Educación del
Pueblo (2ª Época, N: 37, 1987) e Cuadernos de Marcha (3ª Época, A I, N: 07, 1985) em
reafirmar sua presença e reeditar seus textos.
Julio Castro nasceu em Estación La Cruz (Uruguai), em 1908. Fez os estudos
básicos em escola rural. Transferindo-se para Montevidéu, forma-se em magistério; aos
dezenove anos (1927) já exercia o magistério de primeiro grau. Desempenhou também as
funções diretor de escola, subinspetor de ensino primário, inspetor departamental de
Montevidéu e professor de filosofia da educação nos Institutos Normais. Foi sindicalista da
Unión Nacional del Magisterio, en la Federación de Asociaciones Magisteriales del
Uruguay. Foi autor de obras de referência para a educação no seu país e para a América
Latina, tais como “El Analfabetismo” (1940); “Los programas escolares vigentes;
421
modificaciones que podrían introducirse en ellos” (1941); “El banco fijo y la mesa colectiva;
vieja y nueva educación” (1942); “La escuela rural en el Uruguay” (1944). Em 1964,
colaborou com a organização da “Asamblea Mundial de Educación, preparada pela
“Academia Mexicana de la Educación” e pela “Liga Internacional de la Enseñanza, la
Educación y la Cultura Popular”, tendo sido delegado regional para Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai, presidindo a comissão que se ocupou da temática ”problemas de la
educación en América Latina”. Entre 1967 e 1970 a UNESCO designa Julio Castro como
Conselheiro Técnico Principal do Projeto Piloto de Alfabetização de Adultos do Equador.
Junto com Carlos Quijano coordenou o semanário “Marcha”, periódico de grande circulação
no Cone-Sul cuja linha editorial crítica e emancipatória se opunha aos regimes ditatoriais que
se formavam na região. Em 1974, é detido por dois meses devido a suas posições políticas.
Em 1975, sofre um segundo acidente vascular cerebral. É detido pelo regime militar uruguaio
em agosto de 1977, dias depois, é dado como desaparecido.
O educador uruguaio aponta Herbart como o representante mais emblemático da
pedagogia tradicional, confrontando-o com John Dewey que, assim como o pedagogo
germânico, aliou em suas idéias a consistência filosófica e teórica à pertinência pedagógica e
didática. Para Castro (CASTRO, 2007, 128), “en Dewey está condensada, más que en ningún
otro, la esencia pedagógica y filosófica del movimiento educacional del presente siglo”.
Segundo Castro, a pedagogia de Dewey se baseia na atividade do educando,
propondo que o aprendizado se dá na ação de problematização e investigação, ou seja, no
fazer mesmo do conhecimento. Retira-o da condição passiva de mero ouvinte e o coloca como
sujeito ativo no processo de aprendizagem. Tais características fazem da pedagogia
deweyniana uma das principais referências para a ideia de Escola Ativa. A perspectiva
compartilhada pelo educador norte-americano e os demais educadores escolanovistas é a
centralidade da atividade escolar no educando. Sendo este o ponto comum de oposição ao que
se identifica como pedagogia tradicional, cuja centralidade está no docente. No
escolanovismo, o ambiente vital no qual se desenvolve a vida escolar é constituído pela
atividade, colaboração e interdependência social estabelecida entre os alunos (CASTRO,
2007, 128). Exige-se agora do docente sensibilidade e uma grande capacidade de
interpretação das ações desenvolvidas pelos alunos, além de um aguçado sentido orientador.
422
Esta reviravolta proposta para a vida escolar é identificada por Dewey como que uma
verdadeira Revolução Copernicana na educação (CASTRO, 2007, 103).
O pedagogo latino-americano reconhece na pedagogia deweyniana um forte
sentido social. Não apenas constituindo-se a dimensão social enquanto ambiente e projetandose enquanto finalidade, mas também colocando-se no âmbito da perspectiva histórica,
entendida como processo humano (CASTRO, 2007, 128). Comunga com Dewey a crítica à
escola tradicional apontando como emblema de sua natureza coercitiva a fileira fixa de
bancos. Em contrapartida, valoriza a mesa coletiva como símbolo dessa nova escola: “si el
banco fijo representa como lo dice Dewey, el elemento símbolo de la pedagogía tradicional,
la mesa colectiva puede representar, del mismo modo, las tendencias generales de la nueva
educación” (CASTRO, 2007, 32).
Tomando como referência Luzuriaga, Castro (2007, 105) identifica a liberdade
enquanto um dos cinco princípios gerais que caracterizam o movimento pedagógico moderno,
que seriam a vitalidade, atividade, infância, comunidade e liberdade. Salienta que a condição
para o respeito à infância é a consideração à liberdade infantil, pois, “solamente en un clima
de libertad personal y colectiva el niño se manifiesta tal cual es” (CASTRO, 2007, 116). A
liberdade não é a tolerância à indisciplina, é o reconhecimento de que a criança e o jovem são
naturalmente ativos e que, portanto, as práticas que favoreçam a vitalidade e atividade
desempenhadas comunitariamente só podem proliferar num ambiente de autonomia. Em
contrapartida, é por não favorecer tal liberdade que a pedagogia tradicional estabelece “el
orden estático como principio general de la vida escolar” (CASTRO, 2007, 116).
Todavia, o educador, já no início da década de 1940, acusa que práticas
pedagógicas que se desenvolviam na época já não correspondiam plenamente ao ideário
original do escolanovismo, em particular, já não correspondiam aos sentidos lançados pelo
ideário deweyniano. Os novos ordenamentos políticos surgidos após a I Guerra Mundial, cujo
modelo, à direita, era o nazi-facismo e à esquerda, o stalinismo, impactaram diretamente no
ambiente político-pedagógico de suas respectivas sociedades. Ambiente que colocava,
segundo Castro (2007, 131), o escolanovismo em “fuego cruzado”. Haja vista que, à
esquerda, era considerado uma criação burguesa, cujo modelo de escola e ensino estavam
baseados em ativismos artificiais e passatempos; e, à direita, consideravam-no um “vivero de
producción anárquica”, que deveria ser sufocado a bem da formação de uma sociedade
423
organizada, hierarquizada e estatizada. As observações do educador nos fazem intuir que a
forma de organização cogitada para a sociedade é a própria hierarquia, de tal maneira que
qualquer espaço de formação para a diversidade lhe seria uma afronta. Daí, a finalidade da
escola nesse projeto de sociedade é o domínio, que tem a força como meio de se instaurar. Por
sinal, o descompasso entre o ideário escolanovista e a estatização da sociedade se dá à direita
e também à esquerda. Segundo Castro (2007, 132) os pedagogos de ascendência marxista
defendem a tese de que a escola devia estar a serviço exclusivo da comunidade e, para alguns,
sob o controle do Estado, nesta perspectiva se aponta que o educando deve ser pensado
enquanto “militante en formación de su clase o de su partido. (...). La escuela es, pues, el
gran campo de formación de las juventudes, con una orientación político social
determinada”.
A análise do educador uruguaio nos esclarece que se esvazia do projeto
pedagógico escolanovista-deweyniano sua proposta de sociedade aberta e em construção
democrática: a difusa idéia de democracia social como finalidade é substituída por um projeto
determinado de Estado, que se confunde com o próprio modelo de sociedade projetado. Tal
substituição coincide com a idéia de se construir a sociedade futura seguindo a precisão de
quem constrói um sistema mecânico qualquer a base de fins claros e métodos precisos.
Segundo Castro (2007, 132), esta concepção possibilitou “grandes aciertos, algunas veces”,
porém, “grandes errores” em outras. Neste ambiente de fogo cruzado o escolanovismo,
enquanto uma proposta pedagógica sintonizada com um projeto de sociedade democrática,
não pode proliferar. Todavia, suas inovações quanto aos processos de ensino são largamente
difundidos (CASTRO, 2007, 131). Desta forma, nas sociedades não democráticas, suprime-se
das inovações no campo da educação sua dimensão libertadora, mas se busca manter sua
eficiência didática. E assim, conclui Castro (2007, 131) “se debilita peligrosamente, el
espíritu de libertad y cooperación que animó sus realizaciones”.
Apesar de sua defesa do caráter libertador do escolanovismo, o pedagogo mantém
um olhar crítico sobre o mesmo. Reconhecia que:
“la pedagogía de la escuela moderna no era un dogma infalible y mucho
menos una panacea que resolviera todas las situaciones. Bien pronto la
agudeza crítica demostró que los métodos tenían fallos fundamentales, tal vez
por ser muchos de ellos ideados más desde un plano intelectual, que como
fruto de la experiencia directa” (CASTRO, 2007, 149).
424
A exemplo disso, aponta a defesa da liberdade da criança preconizada por
Montessori, que apesar de ser um dos conceitos mais recorrentes em sua proposta pedagógica,
não se encontra ali devidamente sistematizado, fazendo com que na prática mesma da sala de
aula, o docente tenha que desempenhar uma “verdadera calistenia”, dado ao próprio esforço
em acompanhar a infatigável dinâmica das crianças em sala de aula, sem que se tenha uma
metodologia que norteie tal acompanhamento. A preconização da liberdade infantil, que
remete ao acatamento ao ritmo determinado pela própria criança no processo de
aprendizagem, sem as devidas sistematizações metodológicas, acarreta também no retardo em
aquisição da capacidade de leitura ao qual são vitimadas as crianças submetidas ao modelo
Decroly de alfabetização. Castro denuncia que tal modelo de ensino da leitura e da escrita “es
un proceso trabajoso y largo y los niños llegan a 3º o 4º año sin saber aún leer com
corrección” (CASTRO, 2007,149).
O olhar crítico do educador uruguaio se volta ainda para as aproximações de
tendências do escolanovismo à ideologia liberal-taylorista, muito em voga nos EUA na
primeira metade do passado. Castro (2007, 130) salienta as experiências do “Dalton Plan”
como exemplo dessa aproximação, cuja prática pedagógica corresponde a uma certa
estandardização do trabalho. O taylorismo de sua prática está expresso na aferição
racionalizada do trabalho e pelo valor que se dá ao rendimento quantitativo, cuja finalidade
acaba sendo a de formar cidadãos produtivos para a uma sociedade que se constitui
traduzindo modernização por industrialização.
No entanto, sem perder de vista os elementos a serem aperfeiçoados no
escolanovismo, as reflexões do educador sugerem que não se deve deixar de apostar em seu
potencial emancipatório. Pois, mesmo que muito do espírito original tenha se perdido e
mesmo diante dos limites do próprio ideário escolanovista, que jamais deve ser visto como
panacéia, sua proposta contribuiu inegavelmente para uma necessária valorização do
educando, enquanto sujeito autônomo. Perspectiva que por si só já aponta um mundo de
novos caminhos a serem trilhados pela educação. Neste sentido, o educador afirma que o
escolanovismo demarcou definitivamente seu lugar na cultura educacional do Uruguai, pois
“aunque sus métodos cayeran en el olvido quedó asimilado, definitivamente, mucho de lo
425
esencial de su espíritu. Y no podrá hacerse ya una historia de la escuela uruguaya y de las
ideas que la han orientado, prescindiendo de ese período” (CASTRO, 2007,149).
O reconhecimento do potencial emancipador do escolanovismo conduz o educador
uruguaio a optar conscientemente por tal tendência, engajando-se naquela pedagogia que sem
dúvida é uma das que tem na liberdade e democracia suas principais bandeiras.
Testemunhando
seu
engajamento
ao
projeto
emancipador
do
escolanovismo,
emblematicamente representado pela “mesa coletiva”, Julio Castro (2007 157-158) afirma:
Nos colocamos en posición de militancia (...) porque entendemos que la mesa
representa un espíritu de la educación que triunfa a pesar de todo; una
concepción que se abre paso; una esperanza que apunta al porvenir,
aspirando alcanzar soluciones de libertad.
O escolanovismo de influência deweyniana tem então em Júlio Castro um de seus
mais significativos representantes. É bem verdade que seu esforço em defesa da democracia e
da liberdade pode ser incorporado pelo discurso liberal. Todavia, não se deve esquecer que
mesmo em perspectiva de um projeto socialista de sociedade, a democracia e a liberdade não
devem ser prescindidas. Pois a histórica já nos deu trágicas lições do despotismo que se
instaura com suas ausências. Sendo a tarefa de a educação somar empenho para que a
democracia e a liberdade se constituam efetivamente como valor e prática para o conjunto da
sociedade. È neste sentido então que reside a importância de Castro no panorama pedagógico
do MERCOSUL, pois, suas propostas e reflexões pedagógicas são inegavelmente um
importante agente dessa constituição. Influenciado pelas ideias de Castro, o escolanovismo no
Uruguai e na Argentina se manifestará segundo um caráter mais social, voltando-se a um
papel emancipador da educação, em especial, produzindo importantes experiências no campo
da educação rural. Tendo em Júlio Castro um de seus principais entusiastas, no país
cisplatino, o debate democrático, próprio do ideário escolanovista, se fará acompanhar de uma
salutar crítica social, contestadora das estruturas oligárquicas, aspecto que não demarcará
tanto quanto sua manifestação no Brasil.
O ideário democrático de ascendência pragmática-deweyniana está subjacente no
perfil editorial do periódico Revista de la Educación del Pueblo, impressa em Montevidéu
426
(Uruguai). Em linhas gerais, o periódico expressa os anseios de uma categoria docente que,
saindo de uma ditadura, almeja uma sociedade democrática e uma educação verdadeiramente
a serviço da população. A edição de número 29 (junho de 1985) demarca este espírito por ser
a retomada da circulação do periódico interrompida em 1976, devido ao avanço da repressão
no Uruguai. Em seu editorial , a ideia de liberdade está associada ao desejo de progresso e
desenvolvimento social, defendendo que “progresso e liberdade não são outra coisa senão
uma expressão do desenvolvimento humano” (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 29, 1985,
pg05). Este anseio de liberdade embala as reivindicações de mudanças na realidade
educacional do país, particularmente quanto às propostas curriculares herdadas do arbítrio.
Contudo, o papel do educador não se reduz apenas a suas tarefas didáticas;
segundo Victor Brindisi (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 29, 1985, pg45), é nossa
obrigação “integrarmo-nos como trabalhadores, como democratas, à luta geral de nossos
povos”. Perspectiva a qual se soma Francisco Sanguiñedo (EDUCACION DEL PUEBLO, N:
30, 1985, pg21) para quem os professores são educadores da democracia e liberdade e não
educadores do autoritarismo. Dessa forma, Marta Dermachi (EDUCACION DEL PUEBLO,
N: 30, 1985, p. 07) afirma que a “escola deve se voltar para a verdadeira tradição
democrática, aquela que instaura critérios de liberdade, de justiça e igualdade”. Pois, segundo
a própria Dermachi (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 35, 1987, pg09), o domínio
institucional escolar sobre o indivíduo tolhe sua espontaneidade e criatividade: os elementos
motores de uma subjetividade autônoma.
A instauração de um ambiente democrático corresponde ao fomento de uma
cultura de liberdade, na qual o educando tenha autonomia critica e, junto com todos, possa
fortalecer o diálogo. A democracia na escola corresponde à liberdade de ação, de práticas e de
pensamento. Elementos não contemplados nos tradicionais planos e programas da educação
uruguaia (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 32, 1985, pg11-13)
A defesa das bandeiras democráticas se chocam com uma cultura pedagógica
fortemente influenciada pela presença do ideário e interesses da Igreja. Neste sentido, a escola
pública deve ser uma instituição laica. Sob esta ótica, Manuel Claps defende que:
“o laicismo que deve ser militante e manter viva a liberdade de pensamento,
esta que ensina a pensar, a conhecer a realidade e a ter criticidade e também
427
como fiadora do desenvolvimento da liberdade de convivência entre os
homens e da democracia. (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 31, 1985, pg12)
A defesa da laicidade vai além da questão religiosa, se refere também a
dimensão ética da educação no que diz respeito a não supremacia de uma visão de mundo ou
ideologia específica que venha a ferir a liberdade de expressão e pensamento do cidadão e do
educando no âmbito da escola. Por conseguinte, a escola, enquanto ambiente democrático, é
um espaço laico. Pois segundo Jaime Monestier “a laicidade exerce um papel decisivo no
terreno do ensino e na elaboração do conceito de liberdade de consciência” (EDUCACION
DEL PUEBLO, N: 36, 1987p. 38).
A democracia e a liberdade são então o fundamento que possibilita à escola
formar cidadãos críticos, solidários e comprometidos com o desenvolvimento de sua
sociedade. Capazes de perceber e interpretar a realidade, entender o funcionamento da
sociedade em que vivem e comprometer-se com opções livremente assumidas. Exercendo
livremente seu poder de decisão e de autonomia para formular e sustentar suas escolhas.
Nessa situação de democrática interação social, a educação pode se dar em sua plenitude pois,
“não é possível a educação sem a liberdade e sem a paz” (EDUCACION DEL PUEBLO, N:
34, 1986, p.g03).
Segundo Norma Morales e Mabel Moreni (EDUCACION DEL PUEBLO, N: 38,
1987, pg14-17), encaminhar a escola no sentido da formação cidadão implica na reorientação
do currículo escolar, de forma que em sua estrutura valorize e possibilite a vivência de
experiências democráticas e do exercício da autonomia. Entendendo que a formação para a
democracia não é tarefa exclusiva da escola: a família tem também o dever de se engajar nesta
tarefa.
O PENSAMENTO MARXISTA-GRAMSCIANO
Os regimes ditatoriais na América Latina dentre as várias ações de repressão dispensaram à
organização sindical de suas respectivas sociedades medidas de grande controle e coerção. Centrais de
428
Trabalhadores assistiam a prisão e o desaparecimento de um número “impressionante de militantes, dirigentes e
figuras públicas” (NAVARRO & PALERMO, 2007, pg.29). Todavia, a segunda metade da década de oitenta
assiste os conflitos que demarcam o fim das ditaduras militares nos países que comporão o MERCOSUL.
Tencionando com o regimes autoritários, a organização sindical desenvolve-se e reagrupa-se já no início da
década, particularmente a organização sindical docente.
O debate sobre a realidade educacional se colocava como um tema sensível à
classe média, o próprio diário El Clarin, apoiador do regime ditatorial argentino, abria espaço
semanal para este debate. Contudo, em devido às organizações sindicais, a discussão era
levada para além da simpatia por parte da opinião pública e da mídia. O discurso sindical
problematizava não apenas a melhoria das condições de ensino e do fortalecimento da escola
pública mas também as formas de contestação ao regime e à sociedade capitalista. Registra-se
já nessa época a interação entre as representações sindicais dos países, inclusive oriundas do
Paraguai, no caso a Organización de los Trabajadores de la Educación em Paraguay –
OTEP.
No Paraguai, a constituição da OTEP conflitou diretamente com a FEP, que ainda
nos dias atuais conta com o apoio dos governos conservadores. As tensões entre entre as duas
representações e o engajamento da OTEP em ações de confronto direto com a política
educacional do final do governo Strossner resultam (Educación y Cultura Latino Americana,
A: 2, N: 4, 1988, pg01) na perseguição à instituição e na prisão de seu Secretário Geral,
Gabriel Spíndola .
O pensamento Antonio Gramsci tem nesse período grande penetração no meio intelectual latinoamericano, pois suas reflexões também têm como pano de fundo uma sociedade de traços latinos (forte presença
católica e paternalismo sociopolítico). Grosso modo, o pensador apresenta uma outra forma de conceber a
relação infra-estrutura sobre a supra-estrutura, sugerindo que a luta no plano ideológico (educação e cultura)
pode iniciar o processo de transformação que se alastre até a revolução da base estrutural. Pois, a relação infraestrutura-superestrutura não é de determinação, mas sim de reciprocidade (GRAMSCI, 1981, p. 53).
Assim sendo, a educação, enquanto atividade social, e a escola pública, como um instrumento
popular, são percebidos como o espaço por excelência para a desconstrução do discurso hegemônico dominante
e a disseminação do ideário verdadeiramente libertador.
O periódico Educación y Cultura Latino Americana (Montevidéu - Uruguai) se
constitui como o veículo de integração e formação da ação sindical docente no Cone-sul. No
Editorial de maio-junho de 1988, intitulado “Educadores latinoamericanos por la unidad”,
429
enaltece a que seria a constituição da primeira “comissão internacional – verdadeiramente
pluralista e representativa – em solidariedade com os educadores argentinos em conflito”
(Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg01), em referência a importante
greve encaminhada pela Confederación de Trabajadores de la Educación de la República
Argentina (CTERA). Registrando que tal comissão foi composta por representações mundiais
e latino-americanas (CSME, CMOPE, SPIE, FLATEC) e por sindicatos nacionais (SUTEP –
Peru, FVM – Venezuela, FUM-TEP – Uruguai, OTEP – Paraguai, CPB – Brasil, CP - Chile)
e um sindicato regional (APROESP – São Paulo [Brasil]). O compromisso do periódico com
a causa da educação libertadora e a unidade dos trabalhadores da educação fica explicito ao
atestar que:
“Hoje, deste editorial queremos simplesmente ratificar (…) nosso
compromisso irredutível na causa de construir entre todos e com todos
a unidade dos trabalhadores em educação e sua identificação com o
Movimento dos Trabalhadores em geral” (Educación y Cultura Latino
Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg03)
A defesa da ideia de que o docente é um “trabalhador” em educação e cultura está lastreada na
própria concepção marxista-gramsciana de unidade da classe trabalhadora. Pela qual, a ação revolucionária do
educador está em lutar por uma escola e uma educação revolucionária, isto é, contra-hegemônica. Neste sentido,
a escola pública é um significativo instrumento de ruptura dos mecanismo de dominação. Para tanto, se faz
necessária um tomada de consciência acerca dos sutis mecanismos de dominação, pois o processo de libertação
passa, necessariamente, pela “educação” crítica da consciência do homem. Nesta perspectiva, Jorge Conde,
Claúdia G. Constanzo e Gustavo Conde propõem “investigar nas escolas a existência de emergentes modelos
alternativos ao autoritário e promovê-los” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg13). A
reflexão dos referidos educadores leva em conta que o consenso legitimador da dominação tem um componente
de medo, construído no período de maior repressão. Neste sentido, Novaro e Palermo (2007, pg 183) comentam,
em relação à Argentina, mas que acreditamos não ser uma realidade diferente nos outros países, que:
“a educação foi sujeita a um controle minucioso, que Juan C. Tedesco
denomina de 'currículo oculto': ações dirigidas a vigiar e castigar operando
sobre as relações entre docentes e alunos, entre os próprios alunos, e entre
estes e suas famílias”.
Sob o contexto do medo como herança, os educadores defendem que um dos principais objetivos
para a escola pública, e que também deve ser a meta da relação educador-educando, é “contribuir para uma
tomada de consciência da situação vivida até o presente (1986), que possibilitará a diminuição das ansiedades
provocadas pelo medo, particularmente o medo à transformação” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2,
N: 3, 1988, pg13).
430
O processo de transformação da escola pressupõe um momento de tensão entre a antiga estrutura
institucional e a nova que surge. Sob esta ótica, os autores salientam a necessidade de se constituir a formação de
uma “contra-instituição”: coletivo de trabalho, democraticamente constituída e amplamente representativa dos
segmentos que compõem a escola, voltado para a construção de uma realidade curricular e pedagógicas
alternativas (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 3, 1988, pg16).
Contudo, a constituição de uma educação libertadora advém necessariamente da mobilização da
própria classe trabalhadora. Desta forma, a greve é não apenas um instrumento de denúncia acerca da realidade
educacional deixada pelos anos de ditadura mas é também um dos principais instrumentos de mobilização a
favor de um projeto libertador para toda a América Latina. A revista Educación y Cultura reforça esse
compromisso ao anunciar no Editorial do quarto número de 1988, intitulado “Solidaried, unidad e lucha” que:
“Importantes greves como as do sul do Brasil, Argentina ou Peru, todas
relativamente recentes, são pontos altos na combatividade dos sindicatos da
Educação. E junto a elas, tem crescido a solidariedade de todos os sindicatos
da América e das organizações supranacionais de trabalhadores da educação.
Solidariedade, unidade e luta para construir entre todos uma educação a
serviço da libertação do povo” (Educación y Cultura Latino Americana, A: 2,
N: 4, 1988, pg02)
O PENSAMENTO MARXISTA-FREIREANO
A cultura pedagógica brasileira acompanha ao longo da década de oitenta a consolidação do
pensamento de Paulo Freire como uma das mais salutares corrente pedagógica no Brasil. Contudo, esta
penetração e presença, em relação aos demais países do Cone sul, ao longo dos anos oitenta, é ainda pontual.
No Brasil, os setores progressistas da Igreja Católica - ligados à Teologia da
Libertação - desempenharam um papel fundamental na incorporação do ideário freireano na
vida prática da educação. Especificamente, o principal veículo dessa inserção foi a Revista de
Educação da Associação de Educação Católica do Brasil, Revista AEC. Apoiado pela própria
CNBB, o periódico tinha um grande poder de circulação e, consequentemente, de formação
de ideias entre importantes segmentos da sociedade civil organizada. Deste modo, o
pensamento de Freire circulou em Comunidades Eclesiais de Base (CEB), Círculos Operários,
Associações Comunitárias e demais organizações populares promovidas pela Igreja
progressista. Também, as escolas das ordens católicas se constituíam enquanto espaço para a
inserção da pedagogia freireana. Assim, gestores, coordenadores, docentes e educadores das
mais diversas funções na vida escolar se depararam com a tarefa de pensar suas respectivas
práticas sobre um outro olhar, que não aquele da escola tradicional ou da pedagogia tecnicista.
431
Todavia, naturalmente, estas circunstâncias não se deram na história dos demais
países do MERCOSUL. Vamos encontrar uma presença mais regular do ideário freireano a
partir da metade da década de oitenta, salientando que no Paraguai esta circulação mais
efetiva só ocorre nos anos 1990. Mesmo assim, não se constituindo, como no Brasil, uma
corrente pedagógica propriamente dita. Por conseguinte, o pensamento freireano é circulado
nesses países como uma variação mais libertária do legado fundado pelo chamado marxismo
ocidental. A forte dimensão personalista-fenomenológica da obra de Freire não é notada nesta
circulação. Salientando que no Uruguai, provavelmente devido a presença do escolanovismo
na cultura pedagógica desta nação, debitada certamente à influência de Júlio de Castro no
pensamento pedagógico uruguaio, o pensamento de Freire circula também como um defensor
da democracia, liberdade e autonomia do educando, além das tensas questões relacionadas à
problemática do oprimido.
A revista EDUCOO foi o periódico que mais se aproximou do papel exercido pelo periódico
brasileiro “Revista AEC” quanto à difusão do ideário freireano. Valorizando e incentivando a cooperação no
universo das práticas pedagógicas, o periódico, em cujos articulistas se encontram Frei Beto e o próprio Paulo
Freire, se constitui como um espaço de experiências alternativas caracterizadas pelo partilhamento coletivo,
sintonizado com a noção freireana de comunhão. Segundo a qual “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52).
O periódico em seu subtítulo manifesta aquela que seria sua principal missão: “por una educación
alternativa”. Editada em Buenos Aires, expressa as reflexões da “Cooperativa de trabalhos em educação”,
sediada na referida cidade (EDUCOO, N: 06, Novembro de 1987). Atesta que persegue dois grandes objetivos,
coerentes com a valorização do partilhamento coletivo em relação à problemática educacional:
“Comunicación y difusión: tem por finalidade estabelecer e manter contato
com e entre os docentes a nível nacional, dar a conhecer todo material útil
para o esclarecimento de nossa realidade, e oferecer perspectivas
pedagógicas inovadoras. Talleres de investigación y capacitación: refletir as
dificuldades da nossa problemática e buscar com todos uma solução.”
(EDUCOO, N: 06, 1987)
Conforme afirmou-se acima, o ideário freireano é recepcionado segundo um viés marxista,
provavelmente, mais intenso até do que a própria filiação de Freire a essa corrente. Sob esta perspectiva,
encontramos na revista uruguaia “Educación y Cultura Latino Americana”, de tendencia marxista-gramsciana,
referência direta ao educador pernambucano. O já referido Editorial do quarto número, escuda-se no conceito de
“educação bancária” para denunciar que mesmo já tendo passado o período mais terrível da repressão, as forças
432
reacionárias ainda exercem seu poder na educação via a impetração de normas e decretos para a política
educacional que desviam a escola de seu papel emancipador. Neste Editorial, o periódico denuncia que:
“resulta evidente o interesse dos grupos mais reacionárias da sociedade em
domesticar a educação e os educadores; em impor um ensino bancário
segundo o principio formulado por Paulo Freire, notavelmente centralizado e
dependente do poder político em todos seus níveis de cisão, profundamente
acrítico e impositivo no que concerne à práxis cotidiana da aula”. (Educación
y Cultura Latino Americana, A: 2, N: 4, 1988, pg01).
Assim, junto com Fanon, Martí e Dussel, Freire se insere no panteon composto pelos pensadores
latino americanos que refletiram nosso continente numa perspectiva atualmente identificada como pós-colonial.
Servindo de aporte teórico para um olhar que “olhe” nossa realidade e o lugar político de nossa educação a partir
de nossos próprios olhos.
O registro do reconhecimento da contribuição das ideias freireanas para a educação no Paraguai,
infelizmente, encontrou-se apenas em material posterior à década estudada. Em 12 de setembro de 1992, o jornal
“Correo Semanal” noticia sua visita a Asunción, onde, segundo o jornal, Freire afirmara: “me fazia falta
conhecer o Paraguai. Por razões políticas não me havia sido possível concretizar esse desejo” (Correo Semanal,
12/09/1992, pg13). Sendo importante frisar que a recíproca é verdadeira: por razões políticas, a cultura
pedagógica paraguaia ao longo dos anos oitenta pouco conheceu do pensamento de Paulo Freire. Mesmo, no
início dos anos 1990, finda a ditadura de Strossner, o pedagogo é veiculado pelos setores mais conservadores
como um “indiscutível 'guru' da educação libertária” (Idem), preocupado com a “transformação radical do
medíocre modelo educativo imposto a nossos povos” (Idem). Assim, mesmo depois do período mais arbitrário
do regime paraguaio, Freire ainda é associado à pacífica defesa de “modelo” educativo mais eficiente, menos
medíocre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa reforçou a tese que defendemos desde o trabalho doutoral segunda a
qual uma das melhores contribuições que a filosofia pode dar ao debate pedagógico é fornecer
elementos para um olhar amplo e profundo acerca das bases que sustentam as ideias e
propostas defendidas, bem como sobre as implicações dessas ideias no plano da cultura
pedagógica. Confirma também a importância das investigações acerca da produção
pedagógica dos anos 1980, devido ao fato de ser a época na qual a presente realidade da
educação, seja do Brasil, do Cone sul ou de toda a América Latina, tem suas raízes mais
perceptíveis, passiveis de serem extirpadas no que haja de daninho ou alimentadas, no que
haja de frutífero.
433
A pesquisa possibilitou-nos uma efetiva interação com outros pesquisadores do
Cone sul, em particular da Argentina, abrindo a possibilidade de intercâmbio para ambas as
partes e para pesquisadores de outros países latinos.
Devido a baixa incidência de trabalhos sobre a temática “educação no
MERCOSUL” e a ausência de trabalhos sobre a circulação do pensamento pedagógico na
região, a pesquisa inova ao trazer elementos para a discussão sobre o movimento do ideário
pedagógico na região. No âmbito da “Educação” como grande área do conhecimento, o
projeto contribuiu para que se lance mais luz sobre as macrodimensões políticas da educação,
sugerindo que as proximidades – notadamente entre Argentina e Uruguai – perpassam
também pelas efetividades no plano educacional.
No âmbito da Filosofia da Educação, o impacto positivo da pesquisa se dá por ter
ampliado os estudos acerca das concepções filosóficas da educação na historia da América
Latina, por consolidar a metodologia hermenêutica como uma importante ferramenta para os
estudos em filosofia da educação, por ter, via a análise dos usos do conceito de liberdade no
contexto histórico da redemocratização, levantado a reflexão sobre os conceitos subjacentes
aos discursos emancipatórios proferidos, a partir do lugar Latino-americano, se somado aos
esforços de um pensar pós-colonial.
A inovação proposta foi também a fonte das maiores dificuldades encontradas ao
longo do trabalho. Notadamente, a ausência de literatura sobre a temática sobre a história ou
as identidades da Filosofia da Educação no MERCOSUL e na América Latina e a dificuldade
de se encontrar acervos de periódicos preservados, aproximando-se da quase inexistência no
caso Paraguaio.
Enfim, reafirmamos a circulação do conceito de liberdade - tão caro à nossa
América - nos debates e ideias é o fator que o constitui como um significativo operador a
pontuar nosso olhar crítico sobre a realidade e a apontar o sentido de nossas proposta para a
educação latino americana.
434
REFERÊNCIAS
1. AZEVEDO, Cecília & RAMINELLI, Ronaldo (Org). História das Américas: novas
perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
2. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e
integração na América do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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Montevideo: MEC. 4ª ed. 2007. 158p. ISBN: 978-9974-36-112-6
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Paraguai
Correo Semanal: 12/09/1992
ARQUIVO
Federación de Educadores del Paraguay (FEP)
A Educação e o Ideal Libertário: história das experiências pedagógicas do movimento
anarquistas.
Luiz Renato Dias Gomes Padilha – UNIRIO.
[email protected]
Introdução
No final do século XIX até as primeiras décadas do século XX havia entre os
anarquistas no Brasil, diversas criticas ao ensino oficial principalmente no que tange o seu
caráter conservador na qual somente a elite tinha acesso á educação enquanto os filhos dos
operários não tinham espaço na educação formal, ficando clara a utilização da educação como
instrumento para a segregação social, tratando a escola como artigo de luxo.
O movimento anarquista acreditava que nos espaços formais de educação oferecida
pelo Estado tanto como na clerical oferecida pela Igreja, haviam-se diversas práticas
autoritárias deixando claro seu intuito de servir a imposição de ideais as crianças, para que
estas não tivessem a oportunidade de potencializar todas as suas habilidades, e se
desenvolvessem enquanto seres apáticos e sem a possibilidade de fomentar qualquer tipo de
mudança nas estruturas sociais quando se tornassem adultos. Tais críticas foram um dos
motivos principais para que os anarquistas começassem a discutir cada vez mais a questão
educacional, já que não confiavam seus filhos ao sistema educacional vigente.
A crítica a educação oficial foi um dos pontos principais nas discussões ocorridas no
Primeiro Congresso Operário Brasileiro (COB) em 1906, na fala do militante português Edgar
Rodrigues:
437
O ensino oficial tem por fim incutir nos educandos idéias e sentimentos tendentes a fortificar as
instituições burguesas e, por conseguinte, contrárias á emancipação operária, e que ninguém mais do
que o próprio operário tem interesse em formar livremente a consciência dos seus filhos
(RODRIGUES apud MORAES, 2006)
Esse congresso foi de extrema importância, pois a sua preocupação com a temática da
educação proporcionou diversas iniciativas para atividades que visavam a construções de
escolas. Com fortes influencias da experiência do Orfanato de Cempuis (1880 á 1894)
realizado por Paul Robin (1837 – 1912) e do racionalismo combatente proposto por Ferrer Y
Guardia em sua experiência com a Escola Moderna de Barcelona e em meio a diversos
protestos contra o fuzilamento do mesmo Ferrer em 1909, foi criado a Comissão pró-Escola
Moderna a qual foi composta por pensadores anarquistas importantes para a área educacional
do movimento como João Penteado, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho entre outros.
Ainda em 1909 viria a surgir o Comitê Organizador, que tinha como foco a construção da
Escola Moderna N° 1, este Comitê tratou de providenciar os recursos econômicos para o
funcionamento da escola, buscou também a instalação da escola em um prédio adequado,
conseguiu os equipamentos necessários, assim como material adequado e ainda garantiu que a
escola não sofreria com a perturbação das constantes investidas policiais. Obteve inclusive a
licença do Diretor Geral da Instrução Pública do Estado para a instalação e funcionamento da
escola.
Experiências Educacionais no Brasil nas primeiras décadas do Século XX:
Em meio ao movimento pró-educação anarquista efervescente principalmente nas
primeiras duas décadas do século XX no Brasil, houve diversas modalidades educacionais e
propostas para a construção e implementação da pedagogia libertária no Brasil, com ajuda dos
sindicatos, dos pais, dos militantes anarquistas e dos simpatizantes.
Foram pensadas modalidades de ensino diferenciadas para suprir a demanda
educacional da classe operaria da época, na qual a grande maioria eram de analfabetos. Foram
criados os Centros de estudos sociais, para dar acesso aos estudos para os operários
anarquistas, a criação desses Centros era mais simples, pois só necessitavam do espaço físico
e de assinaturas de diversas revistas e jornais para a instalação de uma biblioteca social, a
educação do trabalhador adulto se dava por intermédio dos Centros de Cultura Social, das
conferencias, das bibliotecas, dos jornais, salas de leitura e etc, eram espaços onde os
438
militantes tentavam também mostrar aos demais operários a importância da revolução para se
alcançar uma organização social mais igualitária e justa trazendo leituras e discussões sobre
temas libertários.
A criação desses centros era feita de forma mais versátil, pois, por ter uma finalidade
diferenciada, os mesmos foram construídos sem os formalismos (por mais que reduzidos)
existentes na escola anarquista destinada ao ensino elementar.
A Universidade Popular foi uma tentativa ousada, porém, breve (com duração apenas
de março a outubro de 1904) de se tentar complementar o quadro do ensino libertário, sua
proposta era de:
“Fundar um ensino metódico para o povo, organizar conferências periódicas sobre todos os
assuntos suscetíveis de interessar aos trabalhadores, fundar um museu nacional e uma
biblioteca, realizar representações de arte social, saraus musicais, festas literárias e
excursões científicas, artísticas e expansivas, publicar um boletim que seja órgão da
associação, estabelecer, enfim, um centro popular tendo por fim ás vezes o prazer e a
instrução – e a união moral entre os cooperadores”. (KASSICK, Neiva B.,1996)
A educação básica formal para as crianças foi à luta principal, pois a necessidade de
uma educação livre do dogmatismo religioso e estatal era gritante para os anarquistas. Foram
fundadas diversas escolas, porém a manutenção das mesmas eram questões difíceis de
administrar, pois as dificuldades financeiras e a perseguição cresciam cada vez mais.
De acordo com o Programa Educacional divulgado em 1882, criado com a
participação de diversos nomes de respeito dentro do movimento anarquista como os de
Kropotkin, Élisée Reclus, Louise Michel entre outros muitos, as escolas brasileiras
anarquistas trabalhavam com uma perspectiva educacional que seguiam quatro preceitos
básicos como descrito no documento já mencionado:
18. Integral, isto é, favorecer ao desenvolvimento harmonioso de todo o individuo e fornecer um
conjunto completo, coerente, sintético e paralelamente progressivo em todos os domínios do
conhecimento intelectual, físico, manual e profissional, sendo as crianças exercitadas nesse
sentido desde os primeiros anos;
19. Raciona,l isto é, Fundamentado na razão e conforme os princípios da ciência atual, e não na
fé;no desenvolvimento da dignidade e da independência pessoal, e não na piedade e na
obediência; na abolição da ficção divina, causa de eterna e absoluta servidão;
439
20. Misto, isto é, favorecer a co-educação sexual numa comunhão constante, fraterna entre
meninos e meninas. Essa co-educação, ao invés de constituir um perigo, afasta do
pensamento da criança as curiosidades malsãs, e torna-se uma ocasião para sábias condições
que preservam e asseguram uma alta moralidade;
21. Libertário, isto é, numa palavra, consagrar em proveito da liberdade o sacrifício progressivo
da autoridade, uma vez que o objetivo final da educação é formar homens livres que
respeitem e amem a liberdade alheia. (KROPOTKIN apud LUIZETTO,1986)
Ainda de acordo com o citado documento, os interessados a se envolver nos assuntos
educacionais, deveriam estar dispostos a abdicar de três práticas comuns dentro do espaço
escolar, essas são a disciplina, por fragmentar o conhecimento gerando assim a dispersão e a
mentira; os programas, por limitar o trabalho, anulando a iniciativa, a responsabilidade e a
originalidade dos educadores e as classificações, por trazer comparações gerando inveja,
rivalidade e mal-estar entre os estudantes.
A co-educação não se limitava apenas a questão de gênero, abrangia também questões
sócio-econômicas, nas escolas anarquistas tinham crianças das diversas classes sociais, e as
mesmas como necessitavam da ajuda dos pais para sua manutenção haveria de ser financiada
também pelos pais, sendo que devido aos baixos salários do operariado, nem sempre todos
podiam arcar com as despesas, com consciência disso, alguns pais chegavam a ser isentos do
pagamento.
Uma pratica muito comum nas escolas libertárias era a confecção de periódicos onde
os alunos escreviam sobre diversos temas, e os quais eram usados também para a
disseminação dos ideais anarquistas, inclusive a propaganda desses ideais utilizando-se de
meio de comunicação era bastante utilizado pelos sindicatos e militantes anarquistas.
Uma das primeiras experiências de escola libertária no Brasil foi a construção da
Escola Libertária Germinal, em São Paulo, porém sofreu diversos problemas, desde os
financeiros até os de falta de qualificação técnica dos envolvidos, percebia-se essa falta de
preparo pedagógico e de embasamento teórico nos panfletos e documentos os quais
apresentavam os objetivos da escola. Em 1904 não se tem mais noticias dessa experiência.
Mais ao final da primeira década do século XX pode-se identificar novamente um
grande empenho dos militantes em busca da construção de mais uma experiência pedagógica,
dessa vez com maior organização e conteúdo teórico e ideológico, foi criado assim um
Comitê Organizador da Escola Moderna de São Paulo, o qual programou a Escola Moderna
440
N° 1, que durou de 1912 á 1919 servindo de base para as futuras atividades educacionais do
movimento em São Paulo e foi dirigida por João Penteado292 em quase toda sua existência
(menos no ano de 1917 no qual se ausentou da cidade, dando lugar ao militante anarquista
Florentino de Carvalho) no ano de 1919 diversas escolas libertárias foram fechadas por ordem
do Diretor Geral da Instrução Publica do Estado de São Paulo, Oscar Thompson , com a
justificativa de que as mesmas descumpriam o artigo 30 da lei 1.579 o qual falava sobre as
normas gerais para a concessão de funcionamento de estabelecimentos de ensino particulares,
porém Oscar Thompson ignorou os artigos 31 e 32 da mesma lei os quais definiam a
aplicações de penas mais brandas antes da proibição definitiva do funcionamento escolar.
O movimento anarquista foi fortemente perseguido e reprimido tanto por parte do
Estado (fazendo uso das forças de repressão, prendendo e assassinando os militantes
anarquistas), quanto por parte da Igreja e pela pressão social que eram estimuladas por essas
instituições que propagandeavam informações distorcidas sobre o referido movimento. Como
exemplo trago um escrito publicado no jornal A Gazeta do Povo no ano de 1910, retirado do
livro A Pedagogia Libertária na Historia da Educação Brasileira de Neiva Beron Kassick e
Clovis Nicanor Kassik, publicado no ano de 2004:
...todo o mundo já sabe que em São Paulo trata-se de fundar uns institutos para a corrupção do
operário, nos moldes da Escola Moderna de Barcelona, o ninho do anarquismo de onde saíram os
piores bandidos prontos a impor suas idéias, custasse embora o que custou. Ora uma tal casa de
perversão do povo vai constituir um perigo máximo para São Paulo. E é preciso acrescentar que não
somos só nós, os católicos, que ficaremos expostos á sanha dos irresponsáveis que saíssem da Escola
Moderna. Brasileiros e patriotas, havemos todos de sentir o desgosto uma vez realizados os intuitos
da impiedade avançada, de ver insultada a pátria, achincalhadas as nossas autoridades,
menosprezadas as nossas tradições de povo livre, por estrangeiros ingratos que abusam do nosso
excesso de hospitalidade e tolerância. (...) A escola Moderna vai pregar a anarquia, estabelecer
cursos de filosofia transcendental, discutir a existência de Deus e semear a discórdia... Depois, será a
dinamite em ação
292
João de Camargo Penteado nascido em Jaú no estado de São Paulo no ano de 1877, falecido no ano
de 1965 na capital do referido estado. Associou-se ao Centro Operário na cidade de Jaú, no qual se firmou
como redator de O Operário, após se mudar para capital e estabelecer contatos com os anarquistas ajudando
na luta pela educação libertária.
441
Segue uma listagem de algumas experiências educacionais libertárias existentes no
B

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