PALAVRA DO REITOR
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PALAVRA DO REITOR
PALAVRA DO REITOR “A maior parte da ciência e da tecnologia praticada é destrutiva.” Esta é uma constatação amarga de Fritsof Capra, citado por Jacques Marcovitch, em “A Universidade Possível”. Muitos dos modernosos artefatos eletrônicos, ostentados nas vitrines de nossas lojas, serão sucata dentro de dois anos. Uma rua de Tókio ostenta 200 lojas de alta tecnologia cujos produtos, provavelmente, serão sucata dentro de cinco anos. A tecnologia é normalmente predatória, consumista e não sustentável. A ciência e a arte, ao contrário, conseguem firmar conceitos que resistem ao tempo. Isto tudo me vem à mente, ao repassar os artigos apresentados neste número da Revista Univap. Cada professor se esforça por apresentar, em seu artigo, conhecimentos que não se tornem rapidamente anacrônicos. Obras como Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Dom Quixote, de Cervantes ou Macbeth, de Shakespeare, continuam atuais e são objeto de reapresentações, com diferentes interpretações e adaptadas a diferentes épocas: seu valor não depende do tempo. Todos buscam avidamente realizar, no que escrevem ou no que realizam, no mundo das ciências, das letras ou das artes, algo de valor permanente, não volátil, independente das escolas, das épocas, dos gostos ou das tecnologias. Apesar de tudo, a ciência procura estabelecer valores permanentes, mas paradoxalmente dá origem a tecnologias que se sucedem e se aperfeiçoam e viram sucata. O que os nossos autores buscam – e muitos conseguem – é a permanência dos valores do que escrevem, de modo que, lidos seus artigos no próximo milênio, neles será encontrado algo ainda válido. A leitura dos artigos oferecerá ao leitor a possibilidade de aferir o seu grau de transcendência no tempo. Se algo de bom for acrescido à sua memória, é sinal de que o artigo já conseguiu sobreviver. As universidades são instituições extremamente resistentes à ação do tempo. Algumas já têm mais de mil anos. É difícil encontrar algo semelhante. Até mesmo os países não resistem incólumes, via de regra, ao passar dos anos. Quantos países surgiram no século 20 e quantos desapareceram ou se transformaram, fragmentando-se, perdendo ou ganhando espaço? - E por que as universidades resistem à ação do tempo? - Porque elas se dedicam à produção de valores permanentes, pode ser uma boa resposta. Este é o desafio para as instituições e cabe a cada um de nós ajudar a encontrar estes valores. E é isto que os nossos autores pretendem obter e espero que consigam. 5 Baptista Gargione Filho, Prof. Dr. Reitor da UNIVAP Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 6 EDITORIAL Cabe à universidade a responsabilidade de formar a criatura humana e esta é a tarefa que se entende como objetivo maior da educação. Isto é mais profundo e abrangente do que a missão de unicamente formar a mão-de-obra necessária para o crescimento econômico. A universidade, como toda a instituição que se preza, necessita acumular os três capitais: Físico, Humano e Social. O Capital Físico é visível: prédios, equipamentos, bibliotecas, laboratórios, estacionamentos, campos esportivos e tudo o mais que o simples ato de olhar permite rapidamente avaliar. O Capital Humano, embora não visível, é bastante sensível, pelos resultados que a universidade consegue obter, no ensino, na pesquisa e na extensão. É inclusive mensurável, e os economistas da educação sabem calcular o capital humano, mediante o produto do salário anual pela esperança de vida de cada um. E, pela soma destes produtos, chega-se ao capital humano de uma empresa, de uma universidade, de uma cidade ou de um país. Até do nosso Planeta: Qual o capital humano da Terra? A crítica que se faz a esta avaliação econômica é que ela é só financeira. Só que esta é uma maneira concreta de poder estabelecer um padrão de avaliação, embora a pessoa seja mais do que um punhado de dólares. Mas quem tiver competência poderá apresentar outra definição do capital humano, por exemplo, pela “felicidade irradiada” ou algo próximo, desde que indique como medi-la. O Capital Social é a capacidade de dialogar, de evitar conflitos, que os políticos e diplomatas sabem ou deveriam saber muito bem e que os transformam, quando bem praticados, em estadistas. E nós todos, pobres mortais, se não dialogarmos dia a dia com nossos companheiros de jornada, estaremos rapidamente sem condições de progredir. Este número da Revista Univap é componente visível do nosso Capital Físico. Mas, é relevante notar que o Capital Social, pelos temas apresentados, é uma preocupação de grande parte dos articulistas, que são, por sua vez, importantes componentes do nosso Capital Humano, que enfocam assuntos relevantes para o fortalecimento do convívio, do diálogo e da solidariedade, que constituem o objetivo maior da educação. 7 Antonio de Souza Teixeira Júnior, Prof. Dr. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 8 A FUNDAÇÃO VALEPARAIBANA DE ENSINO (FVE) E A UNIVERSIDADE DO VALE DO PARAÍBA (UNIVAP) A Fundação Valeparaibana de Ensino (FVE), com sede à Praça Cândido Dias Castejón, 116, Centro, na cidade de São José dos Campos, Estado de São Paulo, inscrita no Ministério da Fazenda sob o nº 60.191.244/0001-20, Inscrição Estadual 645.070.494-112, é uma instituição filantrópica e comunitária, que não possui sócios de qualquer natureza, com seus recursos destinados integralmente à educação, instituída por escritura pública de 24 de agosto de 1963, lavrada nas Notas do Cartório do 1º Ofício da Comarca de São José dos Campos, às folhas 93 vº/96 vº, do livro 275. A Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), mantida pela FVE, tem como área de atuação prioritária o Distrito Geoeducacional, DGE-31. Sua missão é a promoção da educação para o desenvolvimento da Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte (DGE-31). Até o presente, a UNIVAP possui os seguintes Campi: a) Campus Centro, em São José dos Campos, situado à Praça Cândido Dias Castejón, 116, e à Rua Paraibuna, 75. b) Campus Urbanova, situado à Av. Shishima Hifumi, 2911, que abrange os territórios dos municípios de São José dos Campos e Jacareí. c) Unidade Aquarius, em São José dos Campos, situado à Rua Dr. Tertuliano Delphim Júnior, 181 d) Unidade Villa Branca, localizado em Jacareí, na Estrada Municipal do Limoeiro, 250. A Educação Superior, objetivo da UNIVAP, abrange os cursos e programas a seguir descritos: 1) Graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e que tenham sido classificados em processo seletivo. 2) Pós-graduação, compreendendo programas de Mestrado, Especialização e outros, abertos a candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam aos requisitos da UNIVAP. 3) Extensão, abertos a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pela UNIVAP. 4) Educação a distância, com uso de novas tecnologias de comunicação. 5) Formação tecnológica, com formação de tecnólogos em nível de 3º grau. 6) Cursos seqüenciais, por campo de saber, de diferentes níveis de abrangência, a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pela UNIVAP. 9 A FVE é também mantenedora, tendo em vista a educação integral dos futuros alunos da UNIVAP, de cursos de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e ainda de Formação Profissional e Técnica. A UNIVAP, em seu Projeto Institucional, centra-se: 1) numa função política, capaz de colocar a educação como fator de inovação e mudanças na Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte - o DGE-31; 2) numa função ética, de forma que, ao desenvolver a sua missão, observe e dissemine os valores positivos que dignificam o homem e a sua vida em sociedade; 3) numa proposta de transformação social, voltada para a Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte; 4) no comprometimento da comunidade acadêmica com o desenvolvimento sustentável do País e, em especial, com a Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte, sua principal área de atuação. A UNIVAP está em permanente interação com agentes sociais e culturais que com ela se identificam. Como decorrência da demanda de seus cursos ou dos serviços que presta, estabelece convênios com instituições públicas e privadas, no Brasil e no Exterior. Estes convênios resultam na cooperação técnica e científica, na qualificação de seus recursos humanos e tecnológicos, na viabilização de estágios acadêmicos e na prestação de serviços. A história da UNIVAP, enraizada na trajetória da Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte, traz consigo a marca da participação comunitária, a partir do compromisso que tem com a sociedade regional, alicerçado na tradição, na busca da excelência acadêmica, na qualidade de seu ensino, no diálogo com a comunidade e no exercício da tríplice função constitucional de assegurar a indissociabilidade da pesquisa institucional, ensino e extensão. Como atividades de extensão, destacam-se, na UNIVAP, aquelas relativas à Comunidade Solidária, que têm por objetivo mobilizar ações que contribuam para a alfabetização e melhoria da qualidade de vida de populações carentes. Dentro deste Programa, foram realizadas atividades nas áreas de Saúde, Higiene, Cidadania, Educação e Lazer, em Santa Bárbara (BA), Beruri (AM), Teotônio Vilela (AL), Nova Olinda (CE), Coreaú (CE), Carnaubal (CE), São Benedito (CE), Groaíras (CE), Atalaia do Norte (AM), Pão de Açúcar (AL) e, no Vale do Paraíba, nas cidades de Monteiro Lobato, São Bento do Sapucaí, Paraibuna, São Francisco Xavier e São José dos Campos. Todas as pesquisas institucionais da Universidade estão centradas em seu Instituto de Pesquisa e Desenvolvi- Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 mento (IP&D), o qual executa programas e projetos e congrega pesquisadores de todas as áreas da UNIVAP, envolvidos em atividades de pesquisa, desenvolvimento e extensão. Em seus oito núcleos de pesquisa, nas áreas sócio-econômica, genômica, instrumentação biomédica, espectroscopia biomolecular, estudos e desenvolvimentos educacionais, ciências ambientais e tecnologias espaciais, computação avançada, biomédicas, atrai e dá condições de trabalho a pesquisadores de grande experiência, do País e do exterior. Os alunos têm condições de participar, com os professores, de pesquisas, executando tarefas criativas, motivadoras, que propiciam a formulação de modelos e de simulações, trabalhando com equipamentos de primeira linha, e isto faz a diferença entre a memorização e a compreensão. Bolsas de estudo vêm sendo oferecidas a alunos e pesquisadores, quer pela UNIVAP, quer por instituições como CAPES, CNPq, - - - - - - - - Administração de Empresas e Negócios Arquitetura e Urbanismo Ciência da Computação Ciências Ciências Biológicas Ciências Contábeis Ciências Econômicas Ciências Sociais: História, Geografia e Artes - Comunicação Social: Jornalismo - Comunicação Social: Publicidade e Propaganda - Direito - Educação Física - Enfermagem Engenharia Aeroespacial Engenharia Ambiental Engenharia Biomédica - Engenharia Civil - Engenharia da Computação - Engenharia de Materiais - Engenharia Elétrica - Fisioterapia - Letras (Português/Inglês e Português/Espanhol) - Matemática - Normal Superior - Odontologia - Secretariado Executivo - Serviço Social - Terapia Ocupacional - Turismo. FINEP e FAPESP. O esforço da UNIVAP em construir, no Campus Urbanova, uma Universidade com instalações especiais para cada área de atuação, com atenção especial aos laboratórios, tem por objetivo um ensino de qualidade, compatível com as exigências da sociedade atual. A UNIVAP, para o ano letivo de 2002, fiel ao lema de que “o saber amplia a visão do homem e torna o seu caminhar mais seguro”, oferece à comunidade da Região do Vale do Paraíba e Litoral Norte o seguinte Programa, de seus diversos cursos, que vão desde a Educação Infantil à Pós-Graduação, passando inclusive pelo Colégio Técnico Industrial e pela Faculdade da Terceira Idade. CURSOS DE GRADUAÇÃO - Mestrado - - - - - Bioengenharia Ciências Biológicas Engenharia Biomédica Planejamento Urbano e Regional Engenharia de Produção (ensino a distância). - Especialização - Lato-Sensu - - - - - - Biomateriais Engenharia Aeroespacial Fisiologia do Exercício Metodologias de Treinamento Produtos Naturais, Farmacologia e Toxicologia Odontopediatria. São José dos Campos CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 10 Com cerca de 500.000 habitantes, São José dos Campos é o município com maior população na sua região, sendo que seu grande desenvolvimento começou realmente com a construção da Rodovia Presidente Dutra e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA). Além disso, a localização estratégica e privilegiada entre São Paulo e Rio de Janeiro e a topografia apropriada para a construção de grandes indústrias possibilitaram que a cidade crescesse vertiginosamente na década de 70, passando a ser uma das áreas mais dinâmicas do Estado e a terceira maior taxa de crescimento da década de 80. De 1993 para cá, a cidade passou por grandes transformações, alcançando avanços na área da saúde, desenvolvimento econômico, educação, criança e adolescente, saneamento básico e obras. O comércio de São José dos Campos é bastante desenvolvido e vive um período de extensão, com vários centros de compras e grandes supermercados e Shopping Centers. Com mais de 1.000 indústrias, 4.000 estabelecimentos comerciais e superando 7.000 prestadores de serviço, o perfil industrial de São José dos Campos tem dois lados distintos: o centralizado nas áreas aeroespacial e aeronáutica, como a Embraer, e outro diversificado, com indústrias, como a General Motors, Johnson & Johnson, Petrobras, Rhodia, Monsanto, Kodak, Panasonic, Hitachi, Bundy, Ericsson, Eaton e outras. É o quarto município do Estado de São Paulo em arrecadação e ICMS, atrás apenas da capital, Santo André e Campinas. São José dos Campos possui, como resultado da atuação de suas indústrias, dos estabelecimentos comerciais e dos organismos que desenvolvem tecnologias de ponta, mão-de-obra de altíssimo nível. Entre esses órgãos 11 destacam-se o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), com seus Institutos: ITA - Instituto Tecnológico de Aeronáutica, IAE - Instituto de Atividades Espaciais, IFI - Instituto de Fomento e Coordenação Industrial e o IEAv - Instituto de Estudos Avançados. Com uma vida cultural bastante intensa, o município conta com uma Fundação Cultural e vários espaços culturais, como o Museu Municipal, galerias de arte, centros de exposição, casas de cultura, Teatro municipal, Cine-Teatro Benedito Alves da Silva, Cine-Teatro Santana e o recém-inaugurado Teatro Univap Prof. Moacyr Benedicto de Souza, cinemas, emissoras de rádio FM e AM, Central Regional da TV Globo, jornais diários com circulação regional, além dos da capital, e várias Bibliotecas Escolares, Universitárias e de Pesquisa, como a da UNIVAP, a do INPE e a do ITA. A UNIVAP constitui, além do CTA e do INPE, o maior centro de ensino e pesquisa do município. Da Pré-Escola à Universidade, além de Cursos de Pós-Graduação e da Terceira Idade, a UNIVAP mantém o IP&D - Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, que garante a incorporação da pesquisa na comunidade acadêmica da UNIVAP, permitindo a indissociabilidade entre o ensino e a pesquisa. A UNIVAP tem estado aberta à interação com empresas e instituições do município, notadamente as de ensino e pesquisa, entre elas o INPE e o CTA-ITA, de onde são provenientes o reitor, pró-reitores e vários professores. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Mudanças Qualitativas no Ensino da Graduação, no Enfoque Didático-pedagógico Elizabeth M. Liberato * Resumo. A missão principal da Universidade deve estar dirigida para a criação de competências e para a formação de agentes de mudanças sociais, capacitados para o estabelecimento de relações profícuas na sociedade; deve buscar, ainda, que seus alunos desenvolvam habilidades ético-profissionais para a capacitação no mundo do trabalho. O professor e o aluno são os atores principais do processo de ensino-aprendizagem. É importante analisar os aspectos presentes nas práticas educativas, o projeto pedagógico, os procedimentos didático-pedagógicos, avaliá-los e renová-los, para que orientem novas estratégias e ações para o alcance dos objetivos institucionais. Dentro dessa visão, o Projeto: “Mudança de Foco no Ensino do Curso de Serviço Social” apresenta-se como possível contribuição ao aperfeiçoamento da instituição. Palavras-chave: Ensino-aprendizagem, mundo do trabalho, objetivos institucionais. Abstract. The main mission of the University should be devoted to create competent agents to make social changes, capable of establishing proficient relationships in society; also, the University must develop in its students ethic and professional capabilities in order to prepare them for the work place. Teachers and students are the main players in the learning process. It is important to analyze aspects that are present in educational practices, course programs, and pedagogical procedures, to evaluate and renovate them, in order to build new strategies and actions to reach the institutional objectives. From that point of view, the project “The Change in the Teaching Focal Point of the Social Services Course”, intends to give a meaningful contribution to the institutional improvement. Key words: Learning process, work place, institutional objectives. Missão e valores fundamentais da Educação Superior: “Educar e formar pessoas altamente qualificadas, cidadãs e cidadãos responsáveis, capazes de atender às necessidades de todos os aspectos da atividade humana, oferecendo-lhes qualificações relevantes, incluindo capacitações profissionais nas quais sejam combinados conhecimentos teóricos e práticos de alto nível mediante cursos e programas que se adaptem constantemente às necessidades presentes e futuras da sociedade.” (UNESCO, 1998). O ENSINO SUPERIOR E A UNIVERSIDADE A realidade do ensino superior aponta, nas últimas décadas, para uma significativa expansão, decorrente das demandas da sociedade. O mercado de trabalho, onde a * Professora e Pró-reitora de Avaliação da UNIVAP. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 competividade profissional está cada vez mais presente, pressiona a procura por vagas no ensino de graduação, levando à expansão do sistema e colocando-lhe importantes desafios. À Universidade cabe assegurar a formação acadêmica, o desenvolvimento de habilidades éticoprofissionais para o desempenho no mundo do trabalho, para a capacitação instrumental e prática. Acima de tudo, a Universidade, como centro cultivador de valores humanos, não deve preocupar-se somente com a certificação; inserida na dinâmica social, cujos níveis de qualidade são cada vez mais exigentes, deve cumprir sua missão precípua de criação de competências e de formação de agentes de mudanças sociais, a serviço da coletividade. Posta esta condição, a formação universitária volta-se para o desenvolvimento de aptidões, entendidas como habilidades, garantindo a qualificação técnica, científica, ética, política e social; ainda dentro do proces12 so educativo, capacita para o estabelecimento de novas relações na sociedade e para o exercício qualificado da cidadania. A FORMAÇÃO PROFISSIONAL Em face do mercado de trabalho visualizado como campo de atuação, que estabelece as possibilidades de emprego em função das necessidades sociais, ao identificá-las e caracterizá-las, é preciso analisar seus fatores determinantes e suas potencialidades. É importante que a formação universitária capacite para a obtenção do emprego, assim como para a geração de emprego, formando o profissional empreendedor capaz de produzir conhecimentos, voltado ao permanente aprendizado. A formação profissional não se esgota com o término do curso superior; exige continuidade, diversificação, atualização. É preciso valorizar a formação integral nos aspectos científicos, tecnológicos, humanísticos, éticos, culturais. A qualificação profissional corresponde à condição de projetar, desenvolver e avaliar o projeto próprio de vida, no sentido da realização responsável e do estabelecimento de relações significativas na sociedade. O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM No sentido comum, ensinar significa produzir aprendizagem em alguém; é uma ação que se desenvolve no âmbito familiar e social. Ensinar e aprender são processos interdependentes. Ensinar é uma arte; exige conhecimentos, constante atualização, capacidade de comunicação. Na escola, a sala de aula é o espaço, não o único, onde se dá o aprendizado individual e coletivo, onde a prática pedagógica alcança efetivação, se realizada com compromisso social, voltada às experimentações e inovações. A Universidade, instituição social e educadora por excelência, é um ambiente privilegiado para a prática pedagógica. Com a evolução das tecnologias de ensino e dos meios de comunicação, as estratégias e materiais didáticos foram e estão sendo inovados atendendo às novas realidades e necessidades da aprendizagem; são indispensáveis os laboratórios, os equipamentos de informática, a comunicação ágil em rede, a educação à distância, interagindo com o usuário, biblioteca, instituição, salas de conferências etc. A criatividade tem de estar presente ao serem implementadas iniciativas que explorem as potencialidades 13 dos alunos. Novas práticas de ensino-aprendizagem exigem mudanças, vontade de implementá-las e preparo de docentes e discentes para a formação de agentes capazes de ação multiplicadora. É um trabalho de construção e reconstrução constantes; analisar e rever o projeto pedagógico é imprescindível para o alcance dos objetivos educacionais, assim como implementar programas de melhoria e inovação do ensino universitário. O ALUNO O aluno, no decorrer do curso universitário, passa por mudanças internas e externas, inserido na realidade mais próxima e na dinâmica da sociedade. Sua preocupação é, com certeza, com o futuro profissional, onde se defrontará com o mercado competitivo, numa realidade de vagas a serem disputadas, de ameaça de desemprego ou de realização de atividades não condizentes com sua formação escolar, atendendo ou não às suas expectativas salariais. O aluno traz consigo estas expectativas de realização e reconhecimento social, sua concepção de mundo e suas necessidades. É crescente o nível de exigência do mercado empregador, em termos de capacitação e especialização, razão pela qual cresce a demanda pelos cursos de graduação e pós-graduação. Nesse mundo cada vez mais globalizado, a escola se obriga a constantemente repensar e elaborar melhor o que ensinar e como ensinar. O aluno não é objeto, mas sujeito da ação educativa e formativa. Na Universidade tomará contato com problemas e possíveis soluções, no processo que representa a qualificação humana para a vida. O ensino não pode se dar em direção única; é preciso que o aluno aprenda a pensar, utilizar e produzir conceitos, avaliá-los e relacioná-los, que ele mesmo desempenhe um papel ativo na relação sócio-educativa. O aluno, participante do processo ensino-apendizagem, entenderá que o ensino não é só atividade do professor, mas que ele, aluno, também é responsável pela aprendizagem a que se propõe e consegue alcançar. O PROFESSOR O papel do professor é ensinar a pensar, de forma que a apreensão dos conteúdos e informações seja uma constante relação de troca, de compromisso e represente o estabelecimento de desafios mútuos. A relação professor/aluno pode alcançar um limite de despersonalização, de ações rotineiras e sem sentido, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 por falta de integração e entrosamento intra e extraclasse, entre as matérias e temas que são apresentados no decorrer do curso. A Universidade deve ter como escopo o desenvolvimento do potencial humano, estimular, capacitar, qualificar o corpo docente para o atendimento dos objetivos educacionais. A competência do professor, seu envolvimento e aperfeiçoamento são fundamentais para que o trabalho da instituição se revista de qualidade. Os procedimentos e recursos didático-pedagógicos devem ser continuamente avaliados e voltados para desenvolver as aptidões dos alunos, redefinindo critérios e criando novas práticas, estabelecendo a ponte entre o teórico-conceitual e as experiências do professor e do aluno. O ensino representa produção de aprendizagem; a aprendizagem define a tarefa e a ação do professor, com ênfase não só à apropriação dos conteúdos pelos alunos, mas ainda na auto-construção de uma consciência crítica para tomada de decisões relevantes em relação ao próprio aprendizado e à vida. O PROJETO PEDAGÓGICO O projeto pedagógico traduz os princípios e diretrizes estabelecidos pela Instituição, de forma participativa; espelha o compromisso da Universidade com a efetivação das propostas, apresenta a planificação de procedimentos; indica ou orienta os caminhos necessários e estabelece os critérios de avaliação. Mais do que um documento estático, deve representar toda a dinâmica da Instituição, resultando em ações conseqüentes que busquem o desenvolvimento dos alunos, da comunidade e da sociedade na qual se insere. O projeto pedagógico deve explicitar as áreas prioritárias do ensino, da pesquisa e da extensão, a filosofia de funcionamento das diferentes unidades, as estratégias para o alcance dos objetivos institucionais. O projeto pedagógico explicita as condições para a troca de conhecimentos e abrange os aspectos mais significativos de desenvolvimento de aptidões, iniciativas, lideranças, capacidade de trabalho em equipe; é verdadeiramente um projeto de transferência de conhecimentos, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 mas voltado às necessidades e demandas sociais. É preciso aliar a sala de aula aos projetos de pesquisa e extensão, às interações classe e extra-classe; articular com as instituições externas, para uma prática mutuamente enriquecedora, contando com a participação ativa dos alunos. Os resultados devem ser medidos pela qualidade do desempenho, pelos resultados alcançados, pela capacidade de atuar. Através do projeto pedagógico, a relação Universidade/aluno pode se constituir num meio de transformação da realidade. PROPOSTA: Mudança de Foco no Ensino do Curso de Serviço Social, UNIVAP Visando: nível; a) ao estímulo à formação acadêmica de excelente b) à melhoria do ensino através de novas práticas e experiências pedagógicas; c) ao domínio dos processos, métodos e técnicas de investigação, análise e atuação na área do conhecimento acadêmico-profissional; d) à integração dos conhecimentos e interação interdisciplinar. Propõe-se a implementação do Projeto: Mudança de Foco no Ensino do Curso de Serviço Social - Univap, entendendo seu caráter renovador, essencial para a discussão e alcance de mudanças no ensino universitário. Tal proposta deverá compreender um amplo debate multidisciplinar, envolvendo corpo docente e discente, de forma a possibilitar sua operacionalização e avaliação constante. 14 MUDANÇA DE FOCO NO ENSINO DO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL - UNIVAP APRENDIZAGEM FOCALIZADA EM TEMÁTICAS/PROBLEMAS Focos: Aprendizado centrado no aluno. Temáticas/Problemas: Eixo motivador e integrador da busca e concretização do conhecimento e dos elementos constituintes/ construtores da formação profissional. Conjunto de temas correlatos, desenvolvidos através de problemas mais específicos. Formação básica e profissional. Interdisciplinaridade. Ética. PRINCÍPIOS BÁSICOS Aluno como agente do aprendizado centrado no seu desempenho e no processo de grupo. Programas temáticos. Integração dos conhecimentos de diferentes disciplinas. Interação interdisciplinar – Grupo Tutorial – e composição com outras disciplinas e programas do curso. 15 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Aluno/Grupo – centro do aprendizado, das diversas séries do Curso de Serviço Social. Grupo Tutorial Professores das disciplinas integrativas Metodologia do Serviço Social, Processo de Trabalho e Serviço Social, Política Social, Teoria do Serviço Social, Pesquisa em Serviço Social. Grupos Interativos Interação interdisciplinar com outras disciplinas da área de Serviço Social Planejamento, Fundamentos Histórico-Metodológicos do Serviço Social, Serviço Social em Órgão Públicos e Privados, História do Serviço Social, Desenvolvimento de Comunidade, Projeto Integração Teoria-Prática. Interação Interdisciplinar com disciplinas básicas Antropologia, Filosofia, Sociologia, Sociologia do Desenvolvimento e Trabalho, Formação Sócio-Histórica do Brasil, Direito e Legislação Social, Psicologia, Psicologia Social, Introdução à Administração, Medicina Social e Higiene. Especialistas – Profissionais com notório conhecimento, de diferentes áreas. Profissionais experientes – Profissionais com vivência, experiência profissional, de diferentes áreas. Instituições/Organizações – Parceiros, para observação de áreas profissionais/experiências e campo de estágio de Serviço Social. FUNDAMENTAÇÃO DO APRENDIZADO Embasamento teórico no campo das ciências humanas e sociais. Exposição/discussão de áreas de prática profissional. Laboratório de vivências/experiências. Desenvolvimento da comunicação e de habilidades. Atividades integradas. DESENVOLVIMENTO/OPERACIONALIZAÇÃO Discussão de temáticas/problemas relativos às questões teórico-metodológicas do Serviço Social, em situações relacionadas à prática profissional. Estímulo e orientação à composição de pequenos grupos, com ênfase à cooperação e desempenho do trabalho conjunto, para capacitação quanto aos aspectos de liderança, organização e respeito mútuo. Desenvolvimento de projetos/atividades integrando aspectos teórico-práticos do Serviço Social. Avaliação formativa. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 16 ESTRATÉGIAS DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS Trabalhos em pequenos grupos e individual. Trabalhos baseados em temáticas/problemas, orientados para a comunidade (realidade social/organização comunitária/trabalho), instituições (públicas, privadas, ONGs, Empresas) e políticas sociais (saúde, habitação, educação, lazer, segurança). Professor: facilitador, orientador do processo de aprendizagem. Grupo Tutorial: Grupo de professores responsáveis pelas disciplinas integrativas e pela interação com outras disciplinas. TÉCNICAS Facilitadoras – integradas e de domínio do corpo docente, para permitir a trans missão dos conhecimentos e experiências necessários e essenciais para a formação e exercício profissional. Dinâmicas – variadas e relacionadas aos conteúdos e práticas, para permitir o desenvolvimento de atitudes e habilidades. ESTRUTURAÇÃO DOS PROGRAMAS Articulação das disciplinas. Programas: Ementa, Objetivos gerais e específicos, Conteúdo programático, Temáticas/problemas, Práticas profissionais, Procedimentos didático-pedagógicos, Avaliação, Bibliografia. OPERACIONALIZAÇÃO DOS PROGRAMAS 17 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 AVALIAÇÃO Do: Curso, currículo, programa. Do: Processo ensino-aprendizagem: - coerente com objetivos - contínua, sistematizada. Elementos: desempenho do aluno (perfil e competências) - aspecto cognitivo, conhecimentos/aprendizado crítico, - atitudes, habilidades, superação de dificuldades, solução de problemas, criatividade, espírito de grupo, compromisso. - aspecto ético, desempenho do professor (educador, articulador, orientador, facilitador) - conhecimentos, - atitudes, habilidades. Tópicos: Identificar dificuldades de aprendizagem. - Apresentar propostas para o aperfeiçoamento do processo de ensino-aprendizagem. - Verificar o alcance dos objetivos. - Determinar e medir níveis de rendimento dos alunos/programas. - Apresentar avaliação final dos alunos/programas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta ora apresentada foi concebida dentro da realidade do curso de Serviço Social – UniVap, mas dado sua generalidade às questões que se referem ao processo ensino-aprendizagem, entendemos que poderá ser estendido, adaptado ou reformulado para outros cursos da Instituição. O intuito maior é envidar esforços para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, pesquisa e extensão, otimizando os recursos existentes ou criando novos, de forma a concretizar a interface Instituição/ aluno/sociedade. BIBLIOGRAFIA UTILIZADA Brasil – Forum de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras. Plano Nacional de Graduação: um projeto em construção. Brasília, 1999. Chaui, M. Escritos sobre a universidade. São Paulo: UNESP, 2001. MARTINS, R. C. R.; Martins, C. B. Programas de inovação no ensino de graduação: uma avaliação preliminar. Estudos e Debates, n. 20. Brasília, CRUB, março 1999. MEC – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, 1996. MEC – Enfrentar e vencer desafios. 2000. MEC – Uma nova política para educação superior. Comissão Nacional para a reformulação da educação superior. Relatório Final. Brasília, nov. 1985. PUC – Diretrizes para o ensino de graduação. Projeto Pedagógico. Curitiba, PUC, 2000. UNESCO. Declaração mundial sobre educação superior. Paris. 1998. Trad. Amós Nascimento. Piracicaba, UNIMEP, 1998. UNISC. Plano de Desenvolvimento Institucional – 2001 –2005. Santa Cruz do Sul, RS: Universidade de Santa Cruz do Sul, 2001. Marcovitch, J. A universidade impossível. São Paulo, Futura, 1998. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 18 Avaliação do Exame Nacional do Curso de Administração: um Estudo sobre a Opinião do Alunado, FCSA/UNIVAP, 2001 Vera Lúcia Ignácio Molina * Resumo. Este artigo pretende incentivar uma discussão sobre um dos instrumentos do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior, o Exame Nacional de Cursos (ENC), mais conhecido como Provão, a partir das percepções e opiniões dos 40 alunos do curso de Administração de Empresas, da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, UNIVAP – São José dos Campos, sobre o provão realizado em julho de 2001, obtidas por meio do questionário e da análise de discurso. Os resultados mais significativos são: a formação profissional é generalista-tecnicista, a qualificação profissional é humanista e para o trabalho; o interesse pelo provão é regular para 47,5% dos sujeitos questionados e o conceito “A” obtido pela turma de 2000 significa 100% de aproveitamento; a preocupação com o provão e a influência do desempenho pessoal são relativas; o curso de graduação contribuiu com o provão por meio de revisões e simulados; e 37,5% dos homens e 37.5% das mulheres se percebem satisfatoriamente preparados para o provão. Conclui-se: (1) Os alunos não têm certeza quanto à sua responsabilidade social com o provão. (2) O provão é uma obrigação que o aluno do ensino superior deve cumprir. (3) Não percebem que os resultados do provão ultrapassam o cenário universitário, nem manifestam qualquer sentimento em relação a estes resultados estarem sendo utilizados na seleção dos futuros profissionais. Palavras-chave: Educação, qualidade do ensino-aprendizagem, Exame Nacional de Cursos. Abstract. This article intends to stimulate a discussion about one of the instruments of the National System of Evaluation of Higher Education, the National Courses Examination (ENC) , through the perceptions and opinions of the 40 pupils of the Business Administration Course, of the College of Applied Social Sciences, at UNIVAP - São José dos Campos, on the ENC taken in July of 2001. Their opinion was collected through a questionnaire and through speech analysis. The most significant results are: the professional formation is general-technical, the professional qualification is humanist and suitable for the work; the preoccupation with the ENC is regular for 47,5% of the interviewed citizens and the concept “A” got by the class of 2000 means 100% of progress; the preoccupation with ENC and the influence of the personal performance are relative; the graduation course contributed with ENC with reviews and simulated tests; and 37,5% of the men and 37,5% of the women seem to be satisfactorily prepared for ENC. Conclusion: (1) the pupils are not totally certain about their social responsibility concerning ENC. (2) ENC is an obligation that the pupils of higher education must fulfill. (3) They do not perceive that the ENC results exceed the university scenario, and they don’t show any feeling about the use of these results in the selection process of future professional jobs. Key words: Education, teaching-learning quality, National Courses Examination. 1. APRESENTAÇÃO Este artigo tem caráter exploratório e pretende incentivar uma discussão sobre um dos instrumentos do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior, o Exame Nacional de Cursos (ENC), mais conhecido * Professora da UNIVAP. 19 como Provão (Lei 9131/1995). Os resultados do Provão, juntamente com os demais procedimentos e critérios, determinarão a qualidade e eficiência do ensino, pesquisa e extensão, capazes de contribuir com a melhoria da qualidade do ensino superior. A chegada do Exame Nacional de Cursos (Lei 9131/1995 e Decreto 2026/1996) em 1996 – PROVÃO – impactou o ensino superior brasileiro. O cenário universitário não foi mais o mesmo desde então. De um lado, o provão provoca apreensão e Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 desconfiança dos administradores e o boicote por parte dos universitários. De outro, estimula o debate, a crítica e quebra a letargia do sistema. As instituições de ensino são levadas a investirem nos recursos humanos, dobrando o número de professores titulados nestes seis anos, e nas estruturas físicas (Revista do Provão, N. 6, 2001, p. 12). A idéia central deste artigo é tentar contribuir para um debate que se torna premente na gestão universitária, o Provão, a partir das percepções dos 40 alunos do 5.º ano do curso de Administração de Empresas da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas / UNIVAP: Quais são os limites e possibilidades de trabalhar com os resultados do provão para além do cenário universitário? É válido utilizar o resultado do provão para selecionar futuros profissionais? Estas questões tomam a ordem do dia no momento em que uma das principais funções do provão é justamente a de se efetivar como um instrumento de avaliação legitimado pela opinião pública, administradores escolares e empresariais. Segundo a Lei 9131/95, o Exame Nacional de Cursos faz parte de uma proposta política que pretende “assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional (...)” “realizando avaliações periódicas das instituições e cursos de nível superior, usando procedimentos e critérios abrangentes que determinam a qualidade e eficiência do ensino, pesquisa e extensão” (www.mec.gov.br/enc/ provao2000/sintese). O provão, parece-nos estar consolidado como um dos indicadores e um importante agente de transformação do ensino superior. A partir dele, a rede física foi melhorada, cresceu o número de docentes titulados, iniciamse diferentes investigações à luz de novas propostas pedagógicas, investe-se num novo jeito de administrar o ensino superior, avalia-se o desempenho dos cursos, dos professores e dos alunos. As primeiras resistências ao provão foram superadas, principalmente junto à opinião pública, que vem legitimando os resultados e considerando-o como o processo de avaliação mais conhecido e transparente, segundo a presidente do INEP, Dr.ª Maria Helena Guimarães de Castro (Revista do Provão, N. 6, 2001, p. 12). O Exame Nacional de Cursos – PROVÃO – parece chegar de forma definitiva numa sociedade que carece de uma cultura de avaliação, talvez esta seja a razão de sua chegada ter causado tanta resistência, nos mais diversos segmentos da realidade brasileira. Muitos dos programas de avaliação anteriores persistiram na definição de procedimentos que acabaram induzindo uma decisão e intimidaram tanto os profissionais como os gestores das unidades de ensino superior, subestimando Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 o caráter essencial dos programas que é o de enfatizar a discussão entre os agentes sociais, já que é, a discussão, a função essencial da avaliação (Braskamp & Orly, 1997, pp. 70-71). Saul (1988), Braskamp et al (1997), Miller (1998) são alguns dos autores que tratam de discutir a avaliação. Miller apresenta os objetivos que devem orientar a escolha do instrumental: a forma de coleta de dados, a análise e a divulgação. Qualquer programa de avaliação deve assentar-se tanto sobre o objetivo de melhorar o desempenho (função formativa), como auxiliar na tomada de decisões eqüitativas e eficientes (função somativa). Neste momento histórico, a avaliação deve centrar-se em discutir prioritariamente alguns aspectos que merecem destaque: a importância do aluno no processo, mesmo que os objetivos da avaliação sejam, ainda, o centro da discussão, em sua função formativa, o processo de avaliação deve contar com múltiplas fontes de informação e se o clima organizacional universitário vai favorecer ou não a instalação de uma cultura de avaliação. Neste sentido, o Provão tem o mérito de reiniciar o processo de discussão. Seus resultados, ainda, destacam exatamente aqueles cursos cujos desempenhos ficam a desejar. Em outros termos, o resultado acaba intimidando os cursos e as universidades, muito mais do que criando um ambiente favorável à discussão e à tomada de novas decisões. Não se pode pensar que o resultado alcançado pelo aluno que não se responsabiliza com o provão possa ser utilizado como indicador de qualidade de ensino. Os demais instrumentos e as demais fontes de informação que, em tese, devem auxiliar na avaliação do curso parecem não merecer da opinião pública o mesmo destaque pela mídia. Os resultados que permitem afirmar que os cursos superiores estão melhorando, que a estrutura física melhorou, que as bibliotecas e os periódicos se encontram mais atualizados, os laboratórios mais bem equipados e o perfil de qualificação do corpo docente melhor, são de exclusiva responsabilidade do INEP. Ainda, não se dispõe de estudos sistemáticos sobre a eficiência e eficácia do provão por outras entidades de pesquisa. À nossa disposição temos os relatórios do INEP apresentados em discussões científicas, em seminários, e as opiniões dos administradores de alguns cursos superiores. Na Revista do Provão (2001, N.6, p. 13), podemos encontrar a Reitora do UEFS, o Vice-Reitor da UFBA, como também a opinião dos primeiros colocados no último provão. No processo de aperfeiçoamento do provão e dos demais instrumentos de avaliação do Sistema Nacional de Avaliação do ensino superior brasileiro, a Diretoria de Avaliação e Acesso ao Ensino Superior do INEP iniciou uma série de seminários envolvendo dife20 rentes parceiros. Os resultados alcançados nas contínuas discussões vêm apontando na direção de que o Exame Nacional de Cursos tem alcançado o objetivo de melhorar a qualidade do ensino superior brasileiro. Segundo o documento “ Cinco anos do Exame Nacional de Cursos” (MEC/INEP, 2001, p.2), o provão enquanto um mecanismo de avaliação externa “propõe-se a verificar o processo de ensino e aprendizagem no que se refere à aquisição e aplicação de conhecimentos e habilidades básicas dos concluintes dos cursos de graduação. O Exame não se limita, porém, a ser um diagnóstico: é, na verdade, uma ferramenta para conhecer a realidade dos cursos, com o objetivo de estimular a reflexão sobre o presente e constituição de um modelo desejado e necessário para as mudanças que se quer empreender, na consolidação de aspectos relacionados às prioridades sociais em termos de conhecimento e tecnologia” (www. mec.gov.br/enc/ provao2000/síntese). Faz parte do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior e enquanto instrumento o provão pretende “ verificar se, ao final do curso, aquele grupo de alunos demonstra conhecimentos atualizados na sua área, além de competências e habilidades que lhe permitam enfrentar os desafios de uma sociedade em transformação constante” www.mec.gov. br/enc/provao2000/sintese) . 2. PROPOSTA As universidades, em geral, têm ficado satisfeitas com as análises realizadas pelo INEP e muito preocupadas quando os resultados não são satisfatórios. Raras têm sido as análises mais sistemáticas. As faculdades e universidades não têm se preocupado em analisar os resultados do provão, junto aos seus professores e alunos, e, muito menos, têm se preocupado em procurar avaliar junto aos alunos dos diferentes cursos suas opiniões e percepções quanto ao provão, sua preparação e a participação do curso na preparação do seu desempenho. Este artigo se coloca na proposta de realizar um estudo exploratório sobre as opiniões e percepções dos 40 alunos do curso de Administração de Empresas / FCSA /UNIVAP. Nossa esperança é que esta análise contribua de fato com o debate sobre o provão e sobre o uso de seus resultados para além do cenário universitário. Entre os cursos que vêm conquistando excelência no provão encontra-se o curso de Administração de Empresas. Estes cursos, mesmo cumprindo o Parecer 776/97, têm na opinião de 63,8% dos alunos que fizeram o provão em 2000, um nível de exigência “insatisfatório” (MEC/INEP, 2000). Isto pode significar que as sólidas competências que devem preparar o graduado para os desafios das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho e das condições do exercício profissional, não estão sendo construídas. Se os alunos não se 21 vêem com capacidade de identificar as dificuldades e as oportunidades, de lidar e propor soluções em processos de mudança, de desenvolver raciocínio lógico, crítico e analítico e nem se vêem capazes de coordenar equipes de trabalho e liderar, a coordenação destes cursos precisa, com urgência, elaborar uma agenda para discussão com seus professores. O aluno precisa se sentir capaz de enfrentar o provão, graças à sua própria preparação e à preparação feita pelo curso, e se tornar responsável socialmente pelo provão. O curso de Administração de Empresas da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas / UNIVAP participa do Exame Nacional de Cursos, desde 1997. Neste primeiro ano, alcançou o conceito “B”, nos anos de 98 e 99, o conceito “C”, e no ano 2000, o conceito “A”. Este estudo, embora exploratório, é o primeiro realizado pelo curso de Administração de Empresas da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – UNIVAP. A expectativa é que volte a ser realizado nas próximas turmas, para que se tenha, no final de algum tempo, resultados acumulativos, representatividade estatística que permitam a generalização dos dados e permitam avaliar o provão segundo a opinião dos graduandos em Administração de Empresas e orientem a organização de uma agenda de discussão sobre o curso. Procura-se identificar as opiniões destes sujeitos quanto à sua formação profissional e o tipo de qualificação profissional desenvolvida durante o curso; as opiniões e percepções quanto ao provão e sua importância. Concomitantemente, procurou-se delinear a preparação e o desempenho pessoal para o provão. 3. METODOLOGIA O estudo, como já afirmamos anteriormente, é exploratório, portanto não conclusivo, impedindo qualquer nível de generalização; partiu de um levantamento por meio de um questionário (anexo 1), composto por 19 itens, considerando o tipo de formação e qualificação profissional oferecidos pelo curso, expectativas quanto à especialização profissional e opiniões sobre o resultado, sobre a preparação e interesse pelo provão. O questionário é uma adaptação do instrumento elaborado por Nicodemo (2001) e aplicado aos alunos do curso integral da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos/ UNESP. Para a análise dos dados será utilizada a estatística descritiva. Para garantir o entendimento das opiniões e percepções dos alunos sobre o provão faz-se uso da análise de discurso. A análise de discurso é uma metodologia que vem sendo usada para os estudos centrados tanto no processo de construção das representações sociais, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 como nos estudos que visam entender as representações sociais de um dado grupo (Spink, 1993a,1993b, 1999; Agner, 1999). Seguimos os seguintes passos para a análise: leitura flutuante para aflorar os temas, a prática e o investimento afetivo e, em seguida, definição do objeto da representação, considerando os objetivos do presente estudo. 4. RESULTADOS Dos 40 alunos questionados para o presente estudo, 55 % pertencem ao sexo masculino (tabela1 e gráfico 1) e 52,5% se encontram na faixa etária de 22 a 25 anos (tabela 2 e gráfico 2). Quando questionados sobre as disciplinas do curso que desenvolveram as habilidades técnicas, pessoais e sociais, encontramos a seguinte situação (ver quadros 1.1; 1.2;1.3;1.4; 1.5; 1.6): A) Administração Financeira (15%), Administração de Produção (15%), Teoria Geral da Administração (15%) e Organização e Métodos (12,5%) são apontadas como as disciplinas que mais colaboraram no desenvolvimento das habilidades técnicas. Em segunda opção, as disciplinas selecionadas são: Contabilidade (12,5%), Organização e Métodos (12,5%), Teoria Geral da Administração (10%) e Análise Financeira (7,5%). B) Recursos Humanos (50%), Psicologia (17,5%) e Marketing (12,5%) foram as disciplinas escolhidas como aquelas que mais auxiliaram no desenvolvimento das habilidades pessoais, como tolerância, paciência, identificação com a profissão, realização e satisfação. Em segunda opção, as escolhas recaíram sobre Recursos Humanos (22,5%), Projetos (12,5%) e Psicologia e Sociologia (7,5 cada). O que nos chama a atenção é a escolha das disciplinas “Relações Humanas” e “Projetos”. Muitas podem ser as variáveis e as circunstâncias sociais que levam 50% dos alunos a selecionarem Recursos Humanos e 12,5% Projetos. Entender as relações humanas não significa que se tenha qualidades pessoais para a atuação profissional. O isolamento ou a distância de situações conflitantes experimentadas pelo profissional durante suas atividades de trabalho (criação e elaboração de projetos) podem estar sendo vistas como valorização social, mas, com certeza, não colabora com o desenvolvimento de habilidades pessoais, como se espera da Psicologia, indicada por apenas 7,5% dos alunos questionados. C) Recursos Humanos (22,5%), Sociologia (22,5%) e Psicologia (5%) são as disciplinas apontadas como favoráveis ao desenvolvimento das habilidades sociais, como o respeito pelo outro, comunicação, clareza da hierarquia social e da localização no espaço social. Em 2.ª opção, a Sociologia (17%), Recursos Humanos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 (12,5%) e Filosofia (5%) foram as escolhidas. D) O percentual da categoria “sem resposta” chama atenção. Entre 10 a 15% dos alunos preferiram não identificar qualquer disciplina do curso que tivesse contribuído com o desenvolvimento de habilidades técnicas, pessoais e sociais. Quando questionados sobre como avaliam a formação profissional oferecida pelo curso de Administração de Empresas (ver gráficos e tabelas 3 e 4), 47,5% dos alunos consideram ser “bom” o fato de ela ser generalista, embora 72,5% não pretendam continuar sendo um administrador generalista (gráfico e tabela 7). Destes, 92,5% pretendem se especializar (gráfico e tabela 8) e de preferência no próximo ano (67,6%) (ver gráfico e tabela 9), quando pensam estar trabalhando em empresas locais (82,5%) (ver gráfico e tabela 6). Dos alunos questionados, 32% consideram ser “bom” ela ser tecnicista. Para 62% dos alunos, a formação profissional obtida no curso de Administração de Empresas é tida como com qualificação tanto para o trabalho como para a área humana (gráfico e tabela 5). Ao pretenderem se especializar, selecionam as seguintes áreas (quadro 2): Marketing (13,5%), Administração de Materiais (10,8%) e Logística (10,8%). As razões que justificam a escolha destas áreas são principalmente a atualização na área (35,1%) e identificação com ela (43,2%), e, em 2.ª opção, o gosto pela pesquisa (13,5%), facilidade, utilidade e habilidade na área (16,2%) e a possibilidade de crescimento na área (13,5%) (quadros 3A e 3B). O resultado do provão (ver gráfico e tabela 10) é considerado importante muito mais para a UNIVAP e para os alunos (37,5%) do que para o curso e alunos (25%). A contribuição da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e do curso de Administração de Empresas somada ao aproveitamento pessoal foram significativos para a preparação individual para 53,3% dos questionados (gráfico e tabela 12). Mesmo recebendo esta preparação, 55% se acham preparados de maneira “satisfatória”, e 25% não se consideraram preparados (gráfico e tabela 11). A preparação dada pelo curso constou, segundo os alunos, de simulados (55%), revisão geral e revisão em Recursos Humanos (12,5% respectivamente) (ver gráfico e tabela 15). O interesse pelo provão é “regular” para 47,5% (ver gráfico e tabela 13), e o conceito “A” (quadro 4), tirado pelo curso em 2000, significa 100% de aproveitamento no curso (15%), esforço, dedicação e sucesso (15%), empenho do aluno e reconhecimento da instituição (10% respectivamente). Dos alunos questionados, 10% são da opinião de que o conceito “não significa 22 nada” e “a avaliação é enganosa” e 12,5% preferiram não responder. Quando questionados sobre as relações entre a interferência do desempenho pessoal e a preocupação com a realização do provão, temos os seguintes resultados: 1. Há preocupação com o provão e a interferência do desempenho pessoal é “muita” para 17,5% dos alunos, “relativa” para 25% e “pouca” para 2,5% (tabela e gráfico 14). 2. Não há preocupação com o provão e a interferência do desempenho pessoal é “muita” para 10% dos alunos, “relativa” para 25% e “pouca” para 10% (tabela e gráfico 14). 3. Sem resposta = 10%. Os alunos parecem não perceber que o provão: 1. pode garantir o aperfeiçoamento por meio de bolsas da CAPES, como prêmio por receberem altas notas no provão; 2. levam-o a assumir a responsabilidade com a manutenção da qualidade do curso, juntamente com o corpo docente e o corpo administrativo-pedagógico da universidade – faculdade; 3. passou a ser um certificado adicional que ele tem e um aliado, já que, descoberto pelas empresas, algumas estão adotando o conceito do provão como critério na hora de selecionar os candidatos a futuros profissionais ou estágios: “as empresas catarinenses já estão usando os resultados do provão como critério de contratação pessoal. Até na hora de contratar estagiários, elas vão aos cursos que obtiveram melhores resultados no exame” (Revista do Provão, N. 6/2001, p. 33). “Vários alunos têm relatado que a primeira pergunta dos empresários é sobre o conceito do curso no provão” (Revista do Provão, N. 6/2001, p. 33). Lebarbenchon (Revista do Provão, N. 6/2001, p. 34), responsável pela central de estágios da UFSC, vê uma nítida relação entre conceitos no provão e emprego. Para 53,3% dos questionados houve tanto contribuição do curso de Administração de Empresas da FCSA (gráfico e tabela 12), por meio de simulados (55%) e revisão (25%) (gráfico e tabela 15), como por empenho do aluno. O interesse pelo exame foi “regular” para 47,5% (ver tabelas 12 e 13). Dos alunos questionados, 15% (tabela 15) são da opinião de que a faculdade e o curso “não colaboraram” com o provão (tabela 15), a interferência do desempenho pessoal é “relativa” e a preocupação com o exame “não existe” (10%, ver tabela 14). 23 Quanto à preparação do aluno questionado para o provão (tabela e gráfico 11), não há diferenças de gênero, pois tanto os homens (37,5%) como as mulheres (37,5%) se acham “sim”, preparados “plenamente” e “satisfatoriamente” respectivamente, para o exame. Quanto às mulheres, 15% delas “não” se sentem preparadas para o exame. Não existem diferenças significativas entre a distribuição por sexo e o tipo de qualificação recebida durante a formação profissional, pois 25% dos homens como 35% das mulheres acreditam terem obtido tanto uma qualificação para o trabalho como uma qualificação humana (tabela 16). Dos questionados, 12,5% dos alunos e 25% das alunas (tabela 17) definem que a importância do provão é tanto para a UNIVAP como para eles. Entre os alunos, 22,5% dos homens e 32,5% das mulheres (tabela 18) se consideram “satisfatoriamente” preparados para o provão. Como o estudo foi realizado para conhecer e descrever as opiniões de um determinado grupo de alunos, 5.º ano do curso de Administração de Empresas /FCSA – UNIVAP, turma 2001, a generalização dos resultados obtidos não cabe. Mesmo assim, aplicamos o teste x2, relacionando a distribuição por sexo e o tipo de qualificação profissional (tabela 16A), a importância do provão (17A) e a preparação do aluno para o provão (18A) para explicitar a proporção entre as variáveis. Os resultados dos testes nos levam a concluir que as proporções “não diferem” e estes resultados nos levam a inferir que as opiniões se mantêm independentemente da categoria sexo. O tamanho da população-alvo (N=40) pode não ter sido significativa, o que reforça a nossa impossibilidade de generalizar os resultados acima descritos. 5. DISCUSSÃO As evidências empíricas indicam que os atores sociais elaboram seus conceitos sobre os fatos e fenômenos do mundo histórico – social. Em geral, estes conceitos organizados pelo senso comum são denominados pelo mundo científico de representação social. Entende-se por representação social, o sistema de interpretação, com valores, noções e práticas, da realidade que acaba; de um lado, por organizar as relações dos indivíduos com o mundo histórico – social e orientar suas condutas e seus comportamentos; e de outro, possibilitar a comunicação com os demais membros da comunidade. Para Jodelet, As representações sociais são formas de Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 pensamento utilizadas na comunicação, na compreensão e no ensino do meio social, material e ideativo, que surgem das obras dos atores sociais e de seus relatos de fatos e fenômenos sociais. A construção das representações sociais inclui, também, as estruturas imaginárias e simbólicas dos atores sociais (1989, p. 100). Toda representação social é representação de algo e de alguém. Assim, não é a duplicação do real, nem é a duplicação do ideal, nem a parte subjetiva do objeto. Sendo que constitui o processo pelo qual se estabelece sua relação (1984, p. 175). Os grupos e as categorias sociais têm impressões sensoriais e experiências pessoais distintas e percebem diferentemente o mundo histórico – social, organizando suas representações sociais na vida cotidiana. Já que as representações sociais são elaboradas no cotidiano dos grupos ou categorias sociais, elas tendem a se distanciarem dos conceitos elaborados no mundo científico, pois é o saber que preenche nossa vida diária e que se possui sem haver procurado ou estudado, sem aplicação de um método e sem haver refletido sobre algo (Babini, 1957, p. 21). Como se trata da análise de discurso sobre as representações sociais de alunos do 5.º curso de Administração de Empresas/FCSA/UNIVAP sobre o provão, utilizamos como dimensões analíticas: a teoria sobre o provão e sobre o aluno, candidato ao provão, ofertada pelo INEP; a prática do provão no que diz respeito ao tratamento do provão, assim como os encaminhamentos específicos no cotidiano do curso; e os investimentos afetivos. Em seguida, construímos dois mapas (p.129) que transcrevem a fala dos alunos nos questionários, respeitando a ordem do discurso para as dimensões criadas e que possibilitam a associação de idéias entre estas dimensões. Da leitura flutuante, elaboramos os mapas 1 e 2. O primeiro sintetiza as construções sobre provão e candidato ao provão; o segundo sintetiza o discurso do aluno sobre o provão. De um lado, está a obrigatoriedade de realizá-lo e, de outro, o curso não os prepara como devia. Concomitantemente identificam-se as práticas dos candidatos, a adoção pelo aluno de uma conduta considerada adequada no sentido de seu desempenho pessoal favorecer a aprovação no exame ou a adoção de uma retórica sobre os efeitos dos resultados. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 No mapa das associações de idéias sobre o provão, mapeamos o discurso dos alunos a partir dos temas emergentes definidos pela leitura flutuante. Utilizamos três temas: a função do provão, a preparação para o provão, o interesse nos resultados do provão, de modo a entendermos a construção que os alunos questionados fazem do provão . Associadas as idéias dos alunos sobre o provão, transportamos estas associações para o mapa 2, pontuando as relações entre os elementos cognitivos, as práticas e os investimentos afetivos, tal como orientados por Spink (1995, pp.129-140). Pensamos ter captado as divergências e aspectos comuns e compartilhados pelo grupo questionado, concomitantemente procuramos acessar os investimentos afetivos a partir das contradições presentes no discurso. O mapa de associação de idéias e o da representação social do provão (p.129) nos levam a entender que, embora o Exame Nacional de Cursos - Administração de Empresas - seja um mecanismo de avaliação externa para verificar o processo de ensino-aprendizagem, legitimado pela opinião pública, os alunos questionados não o consideram como sendo sempre de seu interesse particular e que os resultados alcançados tanto pelo aluno como pelo curso podem ser “enganosos”, “não significarem nada”. Tampouco estão “muito preocupados” com esta obrigatoriedade, embora se acreditem estar satisfatoriamente preparados devido às contribuições do curso por meio de revisões e simulados e ao próprio empenho durante o processo de formação. Independentemente dos resultados que possam vir a ter, a maioria tem a expectativa de estar atuando como administradores em empresas locais e de se especializarem nos próximos dois anos. 24 Mapa 1 - Das associações de idéias sobre o provão, presentes no discurso dos alunos questionados Mapa 2 - Representação Social do Provão OBS.: Dos sujeitos questionados, 37,5% dos homens e 37,5% das mulheres, se percebem “plenamente” e “satisfatoriamente” respectivamente, preparados para o provão. Entre as mulheres, 15% “não se percebem preparadas” para o provão, enquanto entre os homens, 10%. 25 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 6. CONCLUSÕES Conhecer e compreender como o aluno, o protagonista, se relaciona com o Exame Nacional de Cursos, com a própria formação profissional e com o seu desempenho pessoal no provão e com os demais fenômenos sociais da sociedade brasileira podem levar os gestores e professores do ensino superior a dialogarem com mais clareza durante o ato educativo e acompanhá-lo por meio de uma pedagogia personalizadora, fundamentada no estudo atento de seus limites e possibilidades. Os relatos sobre o Exame Nacional de Cursos demonstram as formas como estabelecem suas relações com a universidade, com o curso, com o provão e com o futuro mercado de trabalho. A partir dos resultados alcançados e acima apresentados, nos mapas 1 e 2, foi-nos permitido concluir que: 1. Não há clareza quanto à responsabilidade social por parte do aluno com o provão realizado em julho/2001. Não se vêem como sujeitos de sua própria formação. O provão é uma obrigação que o aluno do ensino superior deve cumprir. 2. Os alunos acreditam estar satisfatoriamente preparados para o provão, embora seu interesse seja regular e a interferência de seu desempenho pessoal, relativa. 3. De um lado, acreditam-se preparados para o provão, respeitam o conceito “A” obtido em 2000 pelo curso de Administração de Empresas / FCSA / UNIVAP. Acreditam que este resultado indica esforço, dedicação, sucesso, 100% de aproveitamento; de outro, não manifestam responsabilidade em repetir o conceito, nem “grande” interesse pelo provão. Estão pouco comprometidos e preocupados se há ou não desempenho pessoal com o provão. 4. Na prática, a participação compulsória no provão gera resistências pessoais, mas o torna importante para classificar o curso e a universidade, o que acaba legitimando o provão como exclusivamente um instrumento de avaliação externa da qualidade do ensino, do aluno e da formação profissional. A participação de 100% dos alunos no provão legitima o processo de avaliação, mas nem sempre com a responsabilidade pessoal do aluno. 5. O aluno recebeu uma formação generalista - tecnicista e uma qualificação tanto humana como para o trabalho, o que na maioria das opiniões dos alunos lhes permite atuar em empresas locais e se especializarem nas áreas de marketing, administração de materiais e logística. Embora persistam que o curso deve, no futuro, melhorar sua contribuição para o provão. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 6. Os alunos não percebem que os resultados do provão ultrapassam o cenário universitário. Nenhum deles manifestou qualquer sentimento em relação ao uso do provão para a seleção de futuros profissionais, para facilitar o acesso à pós-graduação. O INEP deve melhorar a disseminação destas informações junto aos alunos, assim como as próprias universidades. Os alunos desconhecem os demais mecanismos do Sistema Nacional de Avaliação. O Exame Nacional de Cursos legitimou-se como o único instrumento de avaliação do ensino superior junto à mídia; a nota da prova passa a ser um certificado das condições de enfrentamento dos desafios de uma sociedade em transformação. Pensamos ter inferido que o sentido que dão ao Provão/2001 venha, num futuro próximo, facilitar o processo de compreensão de que ele passa a ser mais que um instrumento que avalia os cursos, mas um indicador a ser utilizado na disputa pelo acesso ao mercado de trabalho. Que os alunos passem a se comprometerem com o provão, entendendo que sua participação deve ser de responsabilidade social, auxiliando a diagnosticar as deficiências e assim contribuir para melhorar a qualidade da educação e atender, assim, às necessidades de crescimento e desenvolvimento da sociedade brasileira. 7. BIBLIOGRAFIA AGNER, W. Descrição, explicação e método na pesquisa das representações sociais. IN: Textos em representações sociais. 5.ª ed., Petrópolis: Vozes, 1999, p.146-186. 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Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Gráfico 1 - Distribuição por sexo Gráfico 2 - Distribuição por faixa etária Gráfico 3 - A formação profissional, por sexo, na visão generalista é: Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 28 Gráfico 4 - A formação profissional tecnicista, por sexo, é: Gráfico 5 - Formação profissional: qualificação para o trabalho ou qualificação humana Gráfico 6 - Onde irá exercer a profissão? 29 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Gráfico 7 - A pretensão de continuar sendo um profissional generalista Gráfico 8 - Você pretende se especializar? Gráfico 9 - Quando pretende iniciar a especialização? Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 30 Gráfico 10 - O resultado do provão é importante para: Gráfico 11 - Você se acha preparado para o provão? Gráfico 12 - A melhor opinião sobre a minha preparação para o provão é: 31 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Gráfico 13 - O interesse pelo Provão é: Gráfico 14 - Relações entre a interferência do desempenho pessoal no provão com a preocupação a respei- Gráfico 15 - Colaboração da FCSA ao Provão Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 32 Gráfico 16 - Distribuição por sexo e formação profissional: qualificação para o trabalho ou qualificação Gráfico 17 - Distribuição por sexo e a importância dos resultados do Provão Gráfico 18 - Distribuição por sexo e a opinião sobre a preparação para o Provão 33 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Tabela 1 - Distribuição por sexo Tabela 2 - Distribuição por idade Tabela 3 - A Formação profissional na visão generalista é: Tabela 4 - A formação profissional tecnicista é: Tabela 5 - Qualificação para o trabalho ou qualificação humana? Tabela 6 - Onde pensa exercer a profissão no ano que vem? Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 34 Tabela 7 - Pretensão de continuar sendo um administrador generalista Tabela 8 - Você pretende se especializar? Tabela 9 - Quando pretende se especializar? (N=37) Tabela 10 - O resultado do Provão é importante para: Tabela 11 - Você se acha preparado para o Provão? Tabela 12 - Você se acha preparado para o Provão? 35 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Tabela 13 - O seu interesse pelo Provão é: Tabela 14 - Interferência do desempenho pessoal no resultado do Provão com a preocupação a respeito Tabela 15 - A colaboração dada ao Provão pela FCSA/Curso Tabela 16 - Distribuição por sexo e formação profissional com qualificação para o trabalho ou humana (questões 1 e 5) Legenda: 1.Com qualificação para o trabalho; 2. com qualificação humana; 3. com qualificação p/ o trabalho e humana; 4. mais com qualificação para o trabalho; 5. mais com qualificação humana; 6. nenhuma das alternativas acima. Tabela 16A - Distribuição por sexo e formação profissional com qualificação para o trabalho ou humana (questões 1 e 5) – TESTE x2 (x2 =0,269; gl=1; p=0,604) Conclusão: as proporções (10/18 x 14/22) não diferem. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 36 Tabela 17 - Distribuição por sexo e a importância dos resultados do Provão para o aluno (questões 1 e 12) Legenda: 1.importante para a UNIVAP/FCSA; 2. Para a FCSA e o curso de Administração; 3. Para os alunos do curso de Administração; 4. Para a UNIVAP e para os alunos; 5. Para o curso e para os alunos. Tabela 17A - Distribuição por sexo e a importância dos resultados do Provão para o aluno (questões 1 e 12) – TESTE x2 (x2=0,825; gl=1; p=0,364) Conclusão: as proporções 5/17 x 10/23) não diferem Tabela 18 - Distribuição por sexo e a opinião do aluno sobre sua preparação para o Provão (questões 1 e Legenda: 1. Sim, plenamente preparado; 2. Sim, satisfatoriamente; 3. Não. Tabela 18A - Distribuição por sexo e a opinião do aluno sobre sua preparação para o provão (questões 1 e 14) – TESTE x2 (x2=0,853; gl=1; 0,356) Conclusão: as proporções (14/17 x 16/23) não diferem. 37 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Quadro 1.1A - (questão 3) - Disciplinas e qualidades técnicas (1.ª opção) Quadro 1.2A - (questão 3) - Disciplinas e qualidades técnicas (2.ª opção) Quadro 1.3B - (questão 3) - Disciplinas e qualidades pessoais (1.ª opção) Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 38 Quadro 1.4B - (questão 3) - Disciplinas e qualidades pessoais (2.ª opção) Quadro 1.5C - (questão 3) - Disciplinas e qualidades sociais (1.ª opção) Quadro 1.6C - (questão 3) - Disciplinas e qualidades sociais (2.ª opção) 39 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Quadro 2 - (questão 8) - Áreas de especialização Outros: mercado de capitais, administração de mercado, negociação, gestão de qualidade, engenharia de produção, administração geral, economia, sistema de informação. Quadro 3A - (questão 11) - Razões para a escolha das áreas de especialização (1.ª opção) Quadro 3B - (questão 11) - Razões para a escolha das áreas de especialização (2.ª opção) Quadro 4 - (questão 13) - O significado da “nota A” obtido pela turma de 2000 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 40 41 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 42 43 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Avaliação da Qualidade Ambiental de Três Áreas de Lazer Públicas em São José dos Campos-SP: do Projeto à Pós-ocupação Rubens Antônio Reisig Moreira * Mário Valério Filho ** Emmanuel Antonio dos Santos ** Resumo. A avaliação da qualidade ambiental de áreas de lazer públicas surgiu por considerar-se que este tipo de espaço apresenta um significado muito singular e importante para a cidade. Baseou-se nos estudos de Lynch e de Kohlsdorf para estabelecer técnicas capazes de identificar e classificar os elementos de cognição ambiental das três áreas estudadas, fazendo do desenho ambiental uma ferramenta de planejamento urbano. Os objetivos deste estudo foram, primeiro, o de verificar qual era a compreensão que os usuários tinham destes espaços urbanos; segundo, se as suas necessidades eram as mesmas nas diferentes classes de renda; terceiro, se a qualidade, quantidade e uso dos equipamentos eram os mesmos, e, por último, identificar quais eram as semelhanças e diferenças entre o projeto e a pós-ocupação. Palavras-chave: Desenho Urbano, qualidade ambiental, área de lazer pública, cognição ambiental. Abstract. The evaluation of the environmental qualities of public leisure spaces emerged because those spaces have a unique and important meaning for the city. This study was based on Lynch and Kohlsdorf´s studies to establish ways to identify and classify the environment-behavior studies of these three areas, turning Environmental Design into a tool for Urbanism. The plans were, first, to verify how users perceived the place. Second, to verify if the users needs were the same in the different social classes. Third, to verify if the facilities were similar in quality, quantity and usage. Finally, to identify differences and similarities between the original plans and the actual use of the places. Key words: Urban design, environmental quality, public leisure spaces, environment behavior. 1. INTRODUÇÃO Por considerar que as paisagens podem influenciar comportamentos específicos, individuais e de grupo, inconscientes ou conscientes, através de processos psicológicos ligados a fatores afetivos e de preferências ambientais, este trabalho avaliou a qualidade ambiental dos projetos e dos espaços construídos de três áreas de lazer públicas com base nos estudos de Lynch e de Kohlsdorf. Tinha o objetivo de determinar o grau de identificação dos aspectos topoceptivos, ou aspectos chaves de localização e de identificação do espaço. Para tanto, escolheram-se três bairros que melhor representassem as diferentes classes de renda e a história do município. * Mestre em Planejamento Urbano e Regional - UNIVAP 2001. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Estes refletiram, principalmente, a intensa expansão urbana do município, por ser a responsável pela contínua reconfiguração dos arcabouços culturais determinantes da paisagem e da fragmentação da identidade espacial. O histórico destes bairros teve a finalidade de determinar sob quais circunstâncias surgiram e foram aprovados os projetos criadores destes e de suas respectivas áreas de lazer. Ou seja, sob qual Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, sob qual Lei de Uso do Solo e em que fase de desenvolvimento da cidade estes bairros surgiram legalmente. Já o questionário aos usuários das áreas de lazer determinou o quanto a população percebe a forma do bairro, seus limites físicos, seus elementos históricos, seus marcos visuais, além de seu vínculo com os bairros. Para KOHLSDORF (1996) o espaço urbano é apreensível a partir de suas manifestações externas, em etapas de sucessão cognitiva, onde se desenvolve um 44 movimento de objetivação de informações. Os lugares apresentar-se-iam no espaço urbano real como uma totalidade complexa formada por atividades, formas, significados e práticas sociais sensivelmente captáveis. 2. OBJETIVO O objetivo deste trabalho era avaliar a qualidade ambiental de três áreas de lazer públicas no município de São José dos Campos com o intuito verificar qual a possível contribuição do Desenho Urbano para o progresso do Planejamento Urbano em São José dos Campos e qual o papel dos instrumentos de política pública. Para tanto, tornou-se necessário: ⇒ Verificar a compreensão que os usuários tinham dos espaços, através da análise de desempenho topoceptivo. ⇒ Verificar se as necessidades da população eram as mesmas nas diferentes classes de renda, e se a qualidade, quantidade e uso dos equipamentos eram os mesmos. ⇒ Verificar as semelhanças e diferenças entre o projeto e a pós-ocupação pela análise do desempenho topoceptivo. ⇒ Verificar a maneira de aproximar o planejamento urbano às aspirações da comunidade local. 3. METODOLOGIA A definição da pesquisa e seus métodos ocorreu ao verificar mudanças morfológicas na execução de áreas de lazer, a não execução de alguns projetos aprovados e a não consolidação de algumas áreas de lazer. Essa pesquisa consistiu em analisar topoceptivamente os projetos e as áreas implantadas. As técnicas escolhidas foram mapas topoceptivos e questões abertas e questões fechadas por diferenciação de semântica aplicada aos usuários. Os mapas topoceptivos foram ferramentas para analisar os elementos estruturadores do espaço destas áreas. Estes mapas foram realizados in loco pelo pesquisador, o qual marcava os pontos de forte estruturação cognitiva, que induziam à formação de uma imagem mental, conforme os preceitos de Lynch - malha, vias, limites, partes, pontos focais ou nós e marcos. As questões abertas e fechadas determinadas para o estudo foram organizadas com o intuito de verificar o valor afetivo do usuário pelo bairro e pela área em questão, se os elementos de estruturação cognitiva identificados pelo pesquisador correspondem aos mesmos elementos percebidos pelos usuários e como seria a apropriação espacial da população. 45 Os métodos de qualidades semânticas originamse, conforme KOHLSDORF (1996), da abordagem da forma dos lugares como um sistema de signos, onde as diversas composições plásticas constroem qualidades que representam a relação objeto, signo e sujeito. Tem como técnicas a avaliação das qualidades: legibilidade, pregnância, individualidade, continuidade, clareza, dominância, originalidade, associatividade, complexidade e variabilidade. 4. OBJETO Segundo CHUSTER (1999), a consolidação do parque industrial aeronáutico iniciado na década de 50 e intensificado nos anos 70 trouxe consigo um acentuado crescimento demográfico, a imigração de trabalhadores não capacitados tecnicamente, a saturação da estrutura pública de prestação de serviços (saneamento, saúde, educação), as interposições e interrupções de tecidos urbanos, além da carência imobiliária. Constatou-se que: ⇒ Todos os bairros estudados eram urbanizados e possuidores de boa infra-estrutura. ⇒ Possuíam vias carroçáveis interrompidas em sua malha e áreas de lazer centrais como marcos dos bairros. ⇒ A falta de manutenção degradou as áreas de lazer, diminuindo o uso e a apropriação espacial. ⇒ A identificação da vegetação, seu agrupamento, sua dimensão, assim como a posição dos mobiliários urbanos interferiram na percepção dos espaços, no seu uso e na escolha dos lugares preferidos pelos usuários. ⇒ A diferença do tipo de usuários fez com que o espaço fosse apropriado de forma diferenciada. Os usuários transeuntes identificaram a função de circulação do espaço, utilizando-se dele apenas como passeio, fixando-se pouco no ambiente, diminuindo seu tempo de permanência e sua interação com o meio. Os usuários moradores perceberam melhor o ambiente, determinando várias funções diferenciadas, interagindo mais ricamente com o ambiente e estabelecendo com o espaço uma certa cumplicidade. Proporcionou, assim, a criação de associações imaginativas com suas infâncias, com outros lugares ou com outras situações prazerosas. 4.1 Jardim Petrópolis Sobre um terreno plano e central, a Praça Giordano Bruno, de área de 7.278,50 m², foi contemplada com um projeto de paisagismo de influência neoclássica Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 com ortogonalidade marcante e estruturadora do espaço (Ver Fig. 1). Esse privilegiou a existência de uma malha quadricular de vias de tamanhos exagerados (8 metros de largura), com o objetivo de interligar as vias carroçáveis do bairro e conduzir as pessoas ao ponto focal, o centro da área de lazer. O centro configurar-se-ia em um lugar de convivência da população, devido à ampliação das vias e pela existência de um marco neste ponto. A vegetação arbustiva densa proporcionaria o efeito enclausurador necessário para que a relação de cheios e vazios fosse responsável pela hierarquização espacial da paisagem. As partes seriam configuradas pelo traçado das vias e distribuídas simetricamente no ambiente. A hierarquização seria determinada pela polarização do ponto focal. A área central configurar-se-ia na principal parte da paisagem, e as áreas perimetrais, nas secundárias. Após a execução deste projeto paisagístico, constatou-se a rápida degradação espacial da área de lazer. Isto ocorreu devido à infra-estrutura do bairro ainda não ter sido implantada na época da execução da área de lazer, à criação de vias muito largas, ao plantio de mudas em número e porte insuficientes, à falta de manutenção e à instalação de mobiliários urbanos próximos aos cruzamentos (Ver Fig. 2). Assim, apesar de a malha da área de lazer manterse em uma quadrícula e a demarcação das vias de pedestre ser ainda perceptível, surgiram traçados espontâneos de interligação entre as ruas carroçáveis. Isto fez com que se alterassem as funções de lazer e de convívio social para a de circulação. Constatou-se que: ⇒ Os limites da área de lazer delimitavam bem a área, servindo como enclausuradores da paisagem e determinadores das partes. ⇒ O espaço vazio da área, espaço central, era possuidor do menor valor perceptório e responsável pela baixa definição dos pontos focais, pela valorização das árvores próximas à calçada como elementos marcantes, pelo fraco desempenho estruturador dos mobiliários urbanos, e pelas baixas qualidades semânticas da praça - pouca legibilidade, individualidade, clareza, originalidade, complexidade e variabilidade. ⇒ A relação todo versus parte, entre bairro e praça, limitava-se à centralidade da área de lazer e à estruturação de sua morfologia pelas edificações limítrofes. ⇒ A relação da praça com as suas partes fez dela uma área pouco utilizada, excetuando suas partes Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 periféricas, junto à calçada. ⇒ Os moradores identificaram a praça do bairro como algo memorável. Para eles, esta área significava a prática de atividades recreativas e esportivas, e a convivência com os amigos. De acordo com LYNCH (1960) o ambiente identificado, conhecido de todos, fornece material para lembranças comuns, unindo o grupo e permitindo a comunicação dentro dele. O lugar mais interessante era a área sombreada à margem da calçada, considerado atrativo, útil, colorido, agradável e arejado. 4.2 Bosque dos Eucaliptos Segundo CURY (1975), o projeto do bairro estava baseado em módulos urbanos, com características semelhantes às superquadras de Brasília. A quadra-padrão teria 219.868m² de área total, 40.720 m² de áreas verdes, 53.148 m² de circulação e 126 mil m² de área útil. Estas quadras-padrão seriam delimitadas pelas avenidas, nos lados, e por duas ruas transversais secundárias. Estas ruas internas não se cruzariam, terminando em cul-de-sacs junto às áreas verdes. Três áreas verdes destacavam-se por estarem dispostas linearmente umas às outras, e pela preservação de parte dos eucaliptos que deram o nome ao bairro. Configurariam-se nos pontos focais deste, apesar de não serem destinadas ao uso público. Posteriormente à implantação do bairro, a faixa central destas três áreas verdes tornou-se um parque de lazer. O projeto dispunha de uma malha cartesiana de vias, privilegiando os eixos longitudinais (Ver Fig. 3). As principais vias seriam as perimetrais para reforçarem a demarcação do parque junto aos lotes circunvizinhos. Assim, as partes seriam determinadas pelas funções que exerceriam e geradoras de um ritmo seqüencial valorizador da percepção espacial do ambiente pelos seus usuários. A primeira seria constituída de um bosque e de edificações. O bosque direcionaria a circulação do usuário às laterais do projeto e envolveria a administração e o salão de jogos. A segunda seria formada por quadras poliesportivas intercaladas por vegetação e pela circulação. Com isso, a relação entre os cheios e os vazios geraria espaços fortemente estruturados, delimitaria áreas permeáveis e ressaltaria os eixos viários e o ritmo da malha. Portanto, o projeto possuía fácil legibilidade dada pelo ritmo da malha, pelo contraste de cheios e vazios, e pela clareza da configuração espacial. Seus ambientes seriam portadores de individualidade perceptória. Constatou-se in loco que: 46 ⇒ Apesar de ter sido parcialmente configurado conforme o projeto, o parque foi consolidado e aceito pela população circunvizinha, sendo intensamente utilizado para atividades físicas e de contemplação pelos usuários de todas as faixas etárias, constituindo-se no ponto focal do bairro (Ver Fig. 4). Assim, eles, além de ressaltarem a necessidade de segurança e de manutenção do local, ao pedirem a restruturação dos brinquedos para as crianças, ressaltaram a continuidade espacial, a boa infra-estrutura, a atratividade, a utilidade, a agradabilidade, a beleza, a segurança, a fácil memorização dos espaços e a dinâmica do local. ⇒ O parque possuía clareza de função devido à boa conexão de suas partes e a elementos visualmente fortes. 4.3 Jardim Apolo I ⇒ Sua malha cartesiana não apresentava a mesma marcação rítmica do projeto, sendo constituída por um eixo longitudinal dominante e por transversais secundárias. ⇒ Α via perimetral cumpria sua função, tornandose fortalecida visualmente devido às construções limítrofes ao parque e à vegetação arbustiva contígua mais densa e mais próxima ao olhar dos usuários. ⇒ A via central tinha a função de interligar as quadras poliesportivas e se estruturar pela forte verticalidade dos eucaliptos em formação linear, tornando-se um foco visual ressaltador das quadras e do eixo central. ⇒ Os pontos focais do parque eram as quadras poliesportivas, que, ao contrário do projeto, não eram demarcadas pela vegetação circundante, e, sim, por elementos construídos - muros e muretas, devido à existência de vegetação esparsa, incapaz de assumir a função determinada pelo projeto no passado. ⇒ Os marcos do parque eram perceptoriamente frágeis. ⇒ Não eram visivelmente definidas as partes, faltando-lhes contraste de elementos para que obtivessem tal fim. Os elementos cheios eram esparsos e não conseguiam proporcionar o necessário enclausuramento dos ambientes. Os eucaliptos, por serem elementos muito verticais, tornavam-se elementos pontuais na altura do observador e não elementos coesos. ⇒ Para os usuários, um bosque significava qualidade de vida, sossego e os remetiam à infância. Consideravam o bairro grande e plano, não conseguindo delimitá-lo fisicamente, nem informar seu surgimento e o que existia de importante nele. Apesar disto, ressaltavam que o bairro tinha melhorado sua infra-estrutura. ⇒ O Parque de Lazer Prof. Luiz A. Ribeiro era utilizado para as funções de passear, de fazer exercícios, de contemplar a paisagem e de perceber o aroma dos eucaliptos; trazendo aos usuários aspecto de tranqüilidade. 47 Surgido da necessidade de densificar a região, o projeto do bairro possuía uma malha na forma de espinha de peixe, cujas ruas eram paralelas umas as outras, dispostas num eixo perpendicular de forma alternada. Este eixo perpendicular foi configurado pela área de lazer ritmicamente marcada pelos cul-de-sacs que avançavam sobre ela, fazendo com que a malha interna à área se configurasse diagonalmente à malha do bairro (Ver Fig. 5). As vias de pedestres tornar-se-iam em fortes elementos definidores da morfologia dos outros espaços e, conseqüentemente, da legibilidade espacial desta área. A valorização do pedestre em detrimento ao veículo faria com que o bairro se tornasse bucólico, e os cul-de-sacs associados fossem os determinadores das partes homogêneas da área de lazer, criando uma unidade espacial entre a área de lazer e o bairro. Os limites da área de lazer seriam configurados pelas laterais dos lotes e se tornariam marcantes e de fácil percepção, devido à possível proximidade com os espaços edificados. Constatou-se que a área de lazer possuía uma situação interessante (Ver Fig. 6): ⇒ Era bem estruturada e bem conservada. Sua centralidade fazia com que ela fosse muito utilizada como percurso e como “respiro” para as agitadas avenidas limitantes do bairro. Fez-se dela um obstáculo à interligação das vias limítrofes, gerando redução da velocidade do motorista, proporcionando, assim, tranqüilidade aos moradores. ⇒ Possuía uma malha quadricular, disposta na diagonal em relação à malha do bairro. ⇒ Os limites eram definidos pelas edificações residenciais de dois pavimentos e pela existência de muros altos. Estas edificações associadas aos seus muros estabeleciam claramente a demarcação da área. O conjunto resultava em um envoltório conformador de espaço, não chegando a contrastar com a área de lazer, devido à vegetação consolidada e de grande porte. ⇒ A existência de arborização no lote e nas ruas fez com que existisse uma continuidade espacial entre Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 área de lazer e bairro. ⇒ Os pontos focais estavam associados aos cul-de-sacs. Os localizados nas extremidades da área tornaram-se ambientes aprazíveis por serem enclausurados por vegetação de grande porte. ⇒ Criou-se traçado espontâneo, devido à falta de um obstáculo físico capaz de restringir a circulação de pedestres em vias calçadas, tais como arbustos densos dispostos próximo as vias. ⇒ Os usuários perceberam morfologicamente o bairro como um quadrado com circulação de veículos interrompida e com área de lazer central. ⇒ O termo área de lazer significava espaço livre público, propício a jogar bola e a namorar. Consideravam a praça do bairro uma boa área destinada a este fim, sobretudo, as áreas sombreadas, por trazer-lhes sentimentos de paz e tranqüilidade. ⇒ A área de lazer não possuía elementos de informação e seus marcos eram fracos. ⇒ A relação entre cheios e vazios estava praticamente equilibrada no ambiente, excetuando as extremidades da área, as quais tinham o predomínio do cheio. ⇒ A relação entre área de lazer e suas partes era equilibrada, havendo a existência de alguns nichos proporcionadores de contemplação. ⇒ O lazer passivo era predominante, apesar da existência de uma quadra poliesportiva no local. Fig. 1 - Croqui do projeto. Ortogonalidade, centralidade e eixos bem definidos. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 48 Fig. 2 - Princípios do projeto mantidos, porém, visualmente, não são de fácil percepção. Fig. 3 - O projeto ressalta a ortogonalidade através das vias e da relação cheio/vazio. Fig. 4 - Alteração em alguns elementos edificantes e no adensamento da vegetação, em relação ao projeto. 49 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 5 - Malha da área de lazer na diagonal em relação à malha do bairro. Partes homogêneas. Fig. 6 - Estruturação espacial parecida com a do projeto. Predominância perceptória das extremidades. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluiu-se que este trabalho configurou-se em um dos elementos capazes de possibilitar a reflexão sobre as necessidades físicas destas áreas de lazer, de maneira a saciar as expectativas sociais, físicas e mentais de cada comunidade circunvizinha. Essa reflexão deveria definir os elementos estéticos facilitadores da acessibilidade, garantindo segurança e adequada apropriação espacial. Para tanto, dever-se-ia analisar individualmente as áreas de lazer, por possuírem, cada qual, necessidades diferenciadas. Um bom plano urbano contemplar-se-ia de um sistema de áreas de lazer capaz de aproximar a macroescala urbana à realidade de cada bairro, de cada classe de renda; ao invés de determinar a existência de equipaRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 mentos urbanos conforme a distância e o tamanho das áreas de lazer. Portanto, um sistema de áreas de lazer deveria, em primeiro lugar, atuar em áreas que já são aceitas pelas comunidades circunvizinhas, melhorando-as através da manutenção, da segurança e da remodelação dos pontos fracos de cada área. Em segundo lugar, atuar em áreas não aceitas pela população e que estão abandonadas, verificando, através de pesquisa, quais os elementos que inviabilizaram a utilização destas. Em terceiro lugar, atuar em áreas ainda não urbanizadas, em futuros parcelamentos. E, por fim, juntar-se às associações de bairros e às comunidades organizadas com o intuito de instigar a parceria da população à administração e manutenção das áreas. 50 Assim, um bom planejamento deveria estar associado a um bom projeto urbanístico, que possuísse ambientes multifuncionais de fácil alteração, capazes de atender as necessidades imediatas e futuras dos usuários. Para tanto, esses espaços deveriam possuir fácil legibilidade e um certo caráter lúdico. As vias deveriam formar seqüências espaciais progressivas e diversas, constituindo-se de ambientes ora fechados, ora abertos, ora sombreados, ora ensolarados, ora com vegetações densas, ora com vegetações pontuais, proporcionando perspectivas diferenciadas de um ponto marcante. Portanto, um sistema de área de lazer será de grande valia para a cidade, quando ele conseguir integrar os elementos básicos de área de lazer aos anseios de cada comunidade, proporcionando sua devida existência e cumprimento de sua função social. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 51 CHUSTER, V. O zoneamento de São José dos Campos: 1971 a 1997. 1999. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos. CURY, F. J. Urbanização. A Construção. São Paulo, n. 1432, jul.1975. p. 12-13. KOHLSDORF, M. E. A apreensão da forma da cidade. Brasília: UnB, 1996. LYNCH, K. A imagem da cidade. Tradução de Maria Cristina Tavares Afonso. Lisboa: Setenta, 1960. SANTOS, E. A. dos. Indústria e paisagem: A evolução urbano-industrial e a transformação da paisagem. O caso de São José dos Campos. 1993. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Localização das Áreas de Inundação em São José dos Campos-SP como Subsídio ao Planejamento Urbano Ana Catarina Farah Perrella * Marlene Elias Ferreira ** Resumo. São José dos Campos-SP, situada no Vale do Paraíba, tem experimentado uma urbanização intensa desde os anos 70, devido, principalmente, à industrialização. Como resultado, vem sendo registrado um aumento contínuo de eventos calamitosos, como inundações e deslizamentos, sobretudo nos setores onde predomina a ocupação desordenada; isto estimulando um interesse crescente em estudos de Planejamento Urbano e Regional e de Hidrologia Urbana. O principal objetivo desta pesquisa foi estudar, identificar e mapear as áreas urbanas de São José dos Campos sujeitas a inundações e, também, realizar um estudo espacial e temporal da precipitação pluviométrica no Vale do Paraíba e regiões vizinhas. Para este propósito, foram empregados, em especial: (a) um banco de dados criado a partir de um histórico de ocorrências de alagamentos atendidas pela Defesa Civil do município ao longo de 9 anos (1991 a 1999); (b) dados horários coletados na estação meteorológica do Aeroporto de São José dos Campos (1974-1999), que é operada pela Ministério da Aeronáutica do Brasil; e, (c) dados de precipitação obtidos em 111 estações hidrometeorológicas de superfície, operadas pela Companhia de Água e Energia do Estado de São Paulo (DAEE) no Vale do Paraíba e região. Além disso, foram feitas visitas técnicas e entrevistas com os habitantes mais afetados pelos eventos. Foi então elaborado o mapeamento das áreas sujeitas a inundações e o delineamento dos setores mais críticos, de acordo com uma escala de risco. Destaca-se que, durante o período estudado (1991-1999), houve um aumento significativo de atendimentos pela Defesa Civil por questões de inundação e alagamento, tendo sido registrados diversos episódios calamitosos. Palavras-chave: Urbanização, inundações, planejamento urbano, Defesa Civil. Abstract. São José dos Campos-SP, Brazil, located at the South Paraíba River Valley (Vale do Paraíba – Rio Paraíba do Sul), has been subject to an intense urban growth since around 1970, mainly due to industrialization. As a result, a continuous increase of hazardous events, such as floods and landslides, has been registered, mainly in the disorderly occupied sectors, thus stimulating a growing interest in Urban and Regional Planning and in Urban Hydrology studies. The main objective of this research was to identify and to map areas prone to floods in this town, as well as to make a spatial and temporal precipitation analysis for the Paraiba Valley and surroundings. For this purpose, several data sets were used, mainly: (a) a nine-year (1991-1999) local Civil Defense occurrence calls data bank; (b) hourly rainfall (1974-1998), measured at the São José dos Campos Airport meteorological station, which is operated by the Brazilian Aeronautics Ministry; and, (c) rainfall data obtained at 111 hydrometeorological surface stations, operated by the São Paulo state water and energy company (DAEE) in the Paraíba Valley and surroundings. Besides, several technical visits, and interviews with the inhabitants mostly affected by the hazardous events, were made. All that provided the basis for mapping the flood prone areas in São José dos Campos, and for delineating the most critical flooding sectors. It is to be noticed that there was a significant increase in the Civil Defense calls for flooding reasons along the studied period (1991-1999), during which several calamitous occurrences were registered. Key words: Urbanization, Intense urban floods, Urban and Regional Planning, Civil Defense. * Professora da UNIVAP. ** Pesquisadora do INPE. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 52 1. INTRODUÇÃO As inundações decorrem de inúmeros fatores, entre os quais um solo altamente impermeabilizado e incapaz de absorver rapidamente uma grande quantidade de chuvas de caráter torrencial. Segundo Pompêo (2000), “as enchentes são fenômenos naturais que ocorrem periodicamente nos cursos d’água devido a chuvas de magnitude elevada. As enchentes em áreas urbanas podem ser decorrentes destas chuvas intensas de largo período de retorno, ou devidas a transbordamentos de cursos d’água provocados por mudanças no equilíbrio no ciclo hidrológico em regiões a montante das áreas urbanas, ou, ainda, devidas à própria urbanização”. Atualmente, a concentração urbana faz sentir seus reflexos negativos em diferentes níveis. Os principais estão relacionados, sobretudo, ao impacto ambiental e às condições da qualidade de vida da população. Entre as questões relacionadas ao impacto ambiental, a decorrente de chuvas intensas tem sido motivo de grande preocupação para técnicos e administradores ligados ao planejamento urbano e ao uso racional do solo (Mello et al., 1994; Pedrosa, 1997; Rosa & Lacerda, 1997; Ostrowsky, 2000). As inundações e enchentes em áreas urbanas são problemas com os quais o homem tem convivido ao longo dos anos, sofrendo suas conseqüências e prejuízos. São um sério problema para grande parte dos municípios brasileiros, principalmente quando atingem áreas densamente ocupadas, em cujas ocasiões geram prejuízos consideráveis e muitas vezes irreparáveis, com perda de vidas humanas (Conti, 1975; Soares & Dias, 1986; Gonçalves, 1992; Xavier et al., 1994; Cabral & Jesus, 1994; Brandão, 1997; Silveira, 1997, Perrella, 1999). Estratégias urbanas, no sentido de reagir a tais inconvenientes, pressupõem ações em dois campos. De um lado, pela racionalização do uso do solo, num sentido diretamente ligado ao escoamento aureolar; de outro, por meio do aperfeiçoamento da infra-estrutura urbana (canalização de águas pluviais e regularização dos cursos d’água), não só dentro dos espaços urbanos como no ambiente imediato em caso de convergência para o sítio (Monteiro, 1976; Tucci, 1995; Tucci, 1997). As causas das inundações são muito variadas e abrangem o assoreamento do leito dos rios, a impermeabilização das áreas de infiltração na bacia de drenagem e fatores climáticos. O homem, por seu lado, procura combater os efeitos de uma cheia nos rios construindo represas, diques, desviando o curso natural dos rios etc. 53 Mesmo com todo esse esforço, as inundações continuam acontecendo, causando prejuízos de vários tipos (Tucci, 1997; Ferraz et al., 1998). No caso específico de São José dos Campos, entre os poucos estudos sobre o regime da precipitação e sobre o impacto hidrológico da urbanização em bacias urbanas e loteamentos, citam-se os de Conti (1975), Ferreira et al. (1996), Ferreira et al. (1997), Fracote et al. (1998), Brandão & Ferreira (2000) e Ferreira & Brandão (2000) Waltz & Ferreira (2001 a) e Waltz & Ferreira (2001 b). O presente artigo apresenta uma síntese das pesquisas realizadas por Perrella (1999) sobre o fenômeno das inundações em São José dos Campos, em conexão com episódios de chuvas máximas, como subsídio ao Planejamento Urbano e Regional e à Hidrologia Urbana. Uma das principais finalidades foi o mapeamento das áreas do município sujeitas à inundação, na expectativa de minorar os danos e prejuízos decorrentes dos impactos hidrológicos da urbanização. Para fazer este mapeamento, foi concebida uma metodologia em bases originais a qual, por sua simplicidade, pode ser de emprego imediato por prefeituras e órgãos de Defesa Civil. 2. MATERIAIS E MÉTODOS 2.1 A área de estudo Localizado na região sudeste do Brasil, no leste do Estado de São Paulo, o Vale do Paraíba é ladeado pelas Serras do Mar e da Mantiqueira, e abrange o principal eixo de ligação rodoviária entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. São José dos Campos situa-se às margens da Rodovia Presidente Eurico Gaspar Dutra, a qual liga os dois maiores centros urbano-industriais do País - São Paulo e Rio de Janeiro (Figura 1). A cidade também está próxima de dois portos importantes, o de Santos e o de São Sebastião, ambos no Estado de São Paulo (PMSJC, 1995). São José dos Campos passou a se destacar, entre os demais municípios da região, pelo grande crescimento demográfico nas últimas décadas e pela acentuada expansão urbana, ambos impelidos pela ampliação industrial e tecnológica. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 1 - Localização do município de São José dos Campos. 2.1.1 Expansão demográfica e urbana de São José dos Campos Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1991) e o Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE, 1994), em 1960, a população do município era de 77.553 habitantes, já havendo predominância do urbano sobre o rural. Depois disso, as taxas de crescimento populacional tornaram-se tão expressivas que levaram a projeções superestimadas. Para 1996, a projeção era de 538.076 habitantes, a qual não se confirmou. Como pode ser observada na Tabela 1, em 1996 a população atingiu, efetivamente, 485.684 habitantes. Com base na Tabela 1, entre 1950 e 1996 a população de São José dos Campos multiplicou-se em cerca de dez vezes. As maiores taxas de crescimento ocorreram nas décadas de 50 (73%) e 60 (95%). São José dos Campos sofreu as conseqüências do desenvolvimento industrial periférico. Independentemente do planejamento em âmbito municipal, fatores exógenos levaram à implantação de grandes estruturas, que definiram e alteraram marcadamente a sua configuração urbana. Tabela 1 - Crescimento populacional de São José dos Campos de 1940 a 1996 FONTE: IBGE, (1991) e SEADE (1994). Serafim (1998) quantificou os percentuais do crescimento da mancha urbana do município entre 1985 e 1996, indicando os vetores preferenciais da urbanização e analisando o crescimento temporal (em km2) com base em informações de 1985, 1991 e 1996. Segundo este autor, até 1985, a ocupação urbana Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 aumentou muito devido à industrialização nesta época (ver também: PMSJC, 1995). Entre 1985 e 1991 também houve uma taxa de crescimento muito alta (61,44%) em relação ao período 1991-1996, que teve uma taxa de urbanização de 18,14% (Tabela 2). Quanto ao crescimento temporal, a mancha urbana abrangeu com maior intensidade as regiões sul e leste do município (Figura 2). Isto 54 confirmou o que já havia sido constatado pela PMSJC (1995), ou seja, que na última década estudada a mancha urbana possuía uma configuração esparsa, descontínua e bastante extensa, com o vetor de crescimento apontan- do mais para sudeste, onde surgiram loteamentos com características de chácaras, fora do perímetro urbano. Tabela 2 - Área urbanizada e taxa de urbanização do Município de São José dos Campos. FONTE: Serafim (1998). Este crescimento altera espacialmente, de um lado, as características geoecológicas (cobertura vegetal, rede hidrográfica etc.) e, de outro, os componentes antrópicos (uso do solo, densidade demográfica, assentamentos de baixa renda etc.), ou seja, as áreas mais sujeitas a episódios de inundações. O crescimento desordenado do tecido urbano, efetivado pelo processo de “pauperização/periferização” e pela ocupação clandestina de áreas de alto risco geoambiental, leva à necessidade da elaboração de estudos que dêem suporte às decisões voltadas para o desenvolvimento da urbanização com qualidade. 2.2 Dados Para retraçar a evolução dos eventos de alagamentos e inundações em São José dos Campos nos últimos anos, fez-se um levantamento, junto à Defesa Civil do município, do número de ocorrências atendidas em função dos episódios de chuva, no período de janeiro de 1991 a março de 1999. A aquisição de dados de precipitação referiu-se aos registros passados e recentes da estação meteorológica do Aeroporto de São José dos Campos e das estações pluviométricas do Departamento de Água e Energia Elétrica - SP (DAEE). Os dados de precipitação da estação meteorológica do Aeroporto de São José dos Campos foram utilizados para o período de janeiro de 1974 a março de 1999 e os das 111 estações pluviométricas do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Litoral Sul do DAEE, para um período de 30 anos (1966 -1997) Foi elaborado um questionário estruturado com a finalidade de levantar, junto à população local, os problemas mais graves, gerados pelos episódios das chuvas, e de avaliar as providências tomadas pela Prefeitura para melhorar as condições desses bairros. 2.3 Metodologia A operacionalidade desta pesquisa, tendo em vista os objetivos propostos, envolveu as seguintes etapas de trabalho: análise temporal, análise específica dos episódios pluviais críticos, bem como suas repercussões, e análise espacial. 2.3.1 Análise Temporal Fig. 2 - Mancha urbana do município de São José dos Campos: (a) 1985; (b) 1991; e (c) 1996. FONTE: Serafim (1998). 55 As ocorrências atendidas pela Defesa Civil foram relacionadas aos eventos de chuva para determinar os locais mais afetados nas áreas inundáveis. Não foram contabilizados os problemas causados por outros fatores, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 tais como: ventania, queda de taludes, desmoronamento, erosão etc., fatores estes que em geral também tiveram como causa principal a chuva, que é resultante, sobretudo, de atividades frontais, atividades convectivas e de efeitos locais. seqüência dos registros, fato este justificado pelo pequeno número de funcionários e pela atuação ainda recente deste órgão em São José dos Campos (começou a atuar no fim da década de 1980). Os dados mais antigos deste acervo em muito deixam a desejar por falta de padronização. Os episódios críticos selecionados, após o procedimento de classificação, foram analisados em função de sua magnitude e de seu impacto na área urbana. Analisouse a intensidade das chuvas diárias (máximas de 24 horas) e horárias, relacionando-as com os eventos, em termos de danos à população e ao Poder Público. Tais deficiências foram constatadas ao analisar todo o acervo e verificar que não constavam alguns episódios significativos dele, apesar de serem notícias de jornais (Perrella, 1999). Um exemplo foi o ano de 1992 que, segundo registros da Defesa Civil, totalizou apenas 7 atendimentos por precipitação (Figura 3), embora os jornais da cidade tenham noticiado ocorrências que não foram registradas nos mesmos dias daqueles relatados no acervo da Defesa Civil. Isto se repetiu em outros anos. Voltando a analisar a Figura 3, é interessante observar um aumento significativo nas ocorrências ao longo do período estudado, principalmente no ano de 1999. 2.3.2 Análise Espacial Na abordagem espacial foi utilizado o AUTOCAD14 (Computer Assistant Design), para a elaboração do mapa das áreas de inundação, e o Analisador de Grade e Sistema de Exibição – GrADS (Doty, 1995), para a análise da precipitação . 3. RESULTADOS 3.1 Análise dos Dados de Ocorrência Atendida pela Defesa Civil do Município Todas as ocorrências caracterizadas como alagamento, inundações e enchentes foram classificadas segundo o glossário usado pelas coordenadorias regionais de Defesa Civil (REDEC), administradas pela Coordenadoria Estadual de Defesa Civil - CEDEC (Castro, 1998). Visitas aos locais atingidos permitiram constatar que todos os córregos nas imediações dos bairros contribuíram fortemente para as inundações. Isto reforça a consideração de que fatores conjugados, como as chuvas e a intervenção antrópica, associados à falta de infraestrutura, decisivamente colaboram para a ocorrência destes fenômenos (Perrella, 1999). Durante o período de estudo (1991 a 1999), contabilizou-se um total de 398 atendimentos pela Defesa Civil por inundações decorrentes de episódios de chuvas. A situação dos inventários da Defesa Civil foi uma das dificuldades encontradas, por ocasião da realização da presente pesquisa. Na maioria dos casos, havia falhas na Fig. 3 - Total anual de ocorrências atendidas pela Defesa Civil em São José dos Campos no período de estudo (1991-1999). Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 56 A Figura 4 mostra a porcentagem destes atendimentos por região no município. Os setores mais afetados da cidade são os da Zona Leste, com 42%, seguidos pelos da Zona Sul, com 39% dos casos de alagamentos. Fig. 4 - Porcentagem das ocorrências registradas pela Defesa Civil nas regiões Norte, Sul, Leste e Central de São José dos Campos (1991-1999). O fato de as Zonas Sul e Leste terem sido as mais afetadas por alagamentos e inundações, segundo o acervo da Defesa Civil, direcionou os trabalhos de aplicação dos questionários para estas regiões. Para melhor compreender a problemática dessas regiões, foi realizado um total de 107 entrevistas com os moradores de alguns bairros da Zona Sul (54 entrevistas) e Zona Leste (53 entrevistas). Como mencionado, isto teve por finalidade conhecer as causas, os problemas, as reivindicações e as providências que foram tomadas pela Prefeitura, segundo a ótica dos moradores. Na Figura 5 encontram-se os principais problemas registrados em dias chuvosos nas regiões mais críticas do município. Observa-se que é grande o predomínio de episódios de alagamento, sendo este o principal fator para o desencadeamento dos outros problemas, por comprometer as propriedades físicas do local. É relevante o fato de haver a relação entre a ocorrência de alagamentos e a de desmoronamentos associados, certamente devidos às alterações no meio físico decorrentes de intervenções antrópicas inadequadas. Quando chove, qual é o problema que a região mais sofre? Fig. 5 - Principais problemas causados pelas chuvas nas Zonas Sul e Leste de São José dos Campos, com base nos questionários aplicados em 1998/1999. 57 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 A Figura 6 fornece um diagnóstico dos problemas que levam as ruas a serem afetadas. Para a maioria dos entrevistados, as deficiências básicas de infra-estrutura referem-se principalmente às obras de canalização de córregos, drenagem e tratamento de esgoto. Comparando os diagnósticos dos problemas feitos pelos moradores da Zona Sul com os da Zona Leste, observa-se que as causas principais identificadas pelos moradores são as enchentes de córregos, seguidas pelo retorno de esgoto. Isto nos leva a constatar que o crescimento desordenado da mancha urbana desencadeou o processo de degradação de várias bacias hidrográficas do município, provocando constantes inundações. Os problemas causados pela chuva na opinião dos moradores são decorrentes de: Fig. 6 - Principais problemas que contribuem para as inundações na Zona Sul e Leste de São José dos Campos, com base nos questionários aplicados em 1998/1999. 3.2 Análise Quantitativa 3.2.1 Estudo temporal da pluviosidade Em áreas urbanas, o conhecimento da sazonalidade da precipitação é de fundamental importância, principalmente para auxiliar na elaboração de projetos preventivos (drenagem urbana, previsão de alagamentos, entre outros), no monitoramento e no atendimento pela Defesa Civil, e assim contribui para minimizar danos sócio-econômicos relacionados às inundações e aos efeitos erosivos. A análise temporal da pluviosidade total anual em São José dos Campos (Figura 7) foi feita com dados de 26 anos a partir dos dados diários (1974 - 1999), portanto totalizando quase uma normal climatológica para a precipitação (30 anos). Observa-se na Figura 7 que, no período estudado, ocorreram anos extremamente chuvosos, como foram os de 1976, 1983 e 1996, e anos mais secos, como os de Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 1981, 1984 e 1990. Em ambos os casos houve a concorrência de fenômenos de larga escala, em especial do El Niño e La Niña. Conhecida a evolução temporal da precipitação, foi calculado o desvio normalizado com o objetivo de identificar as variações em torno da média do período (normal), evidenciando-se assim os anos secos e chuvosos. A Figura 8 mostra os anos que apresentaram anomalias positivas e negativas de precipitação para o período. Mesmo nos anos com desvios negativos (déficit), foram constatadas algumas ocorrências de chuvas que causaram impacto significativos na cidade, como, por exemplo, o ano de 1994 (ver Figura 3). Na Figura 9 encontra-se a média mensal da precipitação ao longo do período estudado (1974-1999). Os máximos ocorrem de outubro a março, caracterizando o período chuvoso do município. 58 Fig. 7 - Precipitação acumulada anual para o período de 1974 a 1999, para São José dos Campos. Fig. 8 - Desvio normalizado da precipitação, para São José dos Campos (1974-1999). Fig. 9 - Precipitação acumulada média mensal de 1974 a 1999, para São José dos Campos. 59 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3.2.2 Análise Conjunta da Precipitação Diária e dos Eventos Atendidos pela Defesa Civil Nas figuras a seguir encontram-se alguns exemplos da relação entre a precipitação e o número de atendimentos pela Defesa Civil para o período de estudo, em base diária. Nestes gráficos, foram contabilizados os totais das ocorrências, portanto, sem que houvesse distinção quanto à magnitude dos eventos de inundações. Deve ser ressaltado que o período de outubro de 1995 a março de 1996 e também outubro de 1998 a março 1999 (totais pluviométricos acima da normal) foram anos de grande impacto, pois neles ocorreram inundações marcantes (Figuras 10b, 10c). Por outro lado, alguns anos que foram marcados por eventos significativos tiveram totais pluviométricos abaixo ou pouco acima da normal como, por exemplo, outubro de1993 a março de 1994 (Figura 10a). Neste período houve, inclusive, episódio com vítima fatal. Isto sugere que, não só a magnitude pluviométrica interfere nestes processos, mas também sua distribuição temporal, por modular a capacidade de infiltração dos solos em função de seqüência de chuvas antecedentes, e de sua heterogeneidade espacial, por afetar pequenas áreas. Como já mencionado, em alguns casos analisados, não houve correlação entre eventos significativos de chuva e registros de atendimento pela Defesa Civil. Em outras palavras, em vários casos houve precipitação significativa, mas a Defesa Civil não registrou atendimento, embora possa tê-lo feito. Tais situações ficaram evidentes no decorrer da pesquisa, o que levou a investigar outras fontes de informação, em especial as matérias veiculadas pela imprensa local. Foi então feito um levantamento nos arquivos jornalísticos organizados e colocados à disposição pela própria Defesa Civil. Este conjunto de matérias, mesmo sendo restrito, evidenciou que os registros da Defesa Civil são às vezes incompletos, como discutido anteriormente. Além disto, nas planilhas da Defesa Civil constam, em certas circunstâncias mais graves, registros genéricos que apenas refletem impactos gerais no município, o que dificultou identificar os bairros mais atingidos em tais ocasiões. Perdas materiais graves e morte muitas vezes só os jornais registraram (Perrella, 1999). Fig. 10a - Binômio “chuva diária e atendimento pela Defesa Civil”: outubro de 1993 a março de 1994, em São José dos Campos. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 60 Fig. 10b - Binômio “chuva diária e atendimento pela Defesa Civil”: outubro de 1995 a março de 1996, em São José dos Campos. Fig. 10c - Binômio “chuva diária e atendimento pela Defesa Civil”: outubro de 1998 a março de 1999, em São José dos Campos. 61 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3.2.3 Análise Espacial e Temporal 3.2.3.1 Precipitação Por ser a precipitação pluviométrica um dos principais fatores que desencadeiam situações de calamidade em regiões com uso inadequado do solo, um conhecimento detalhado do seu comportamento torna-se necessário e muitas vezes imprescindível, no que tange a Planejamento Urbano e Regional e Hidrologia Urbana. Os trabalhos sobre as características espaço-temporais da pluviosidade no Estado de São Paulo, como os realizados por Nunes (1997) e por Nery et al. (1999), são de relevância neste contexto e, de modo geral, corroboram os resultados encontrados na presente pesquisa. Primeiramente foram analisados os dados dos postos pluviométricos coletados do banco de dados do DAEE (1998) em diversos postos situados no município e vizinhanças com o objetivo de avaliar o comportamento temporal da precipitação para um período de 30 anos (1966-1997). Estes postos foram selecionados de acordo com as suas posições geográficas, ou seja: na parte norte do município, São Francisco Xavier, Guirra, Água Soca e Represa; na parte sul, o posto de São José dos Campos; e, na parte leste, Cajuru e Pararangaba. Observa-se (Figura 11) que os postos localizados mais a nordeste do município mostraram uma precipitação média anual mais elevada do que os demais. Isto confirmou a alta correlação entre os episódios de chuvas e as ocorrências registradas pela Defesa Civil e também mostra a efetiva atuação de sistemas meteorológicos de escalas diferenciadas, especialmente os de caráter convectivo e orográfico. Fig. 11 - Precipitação média anual (normal) para as estações do DAEE localizadas no município e vizinhanças de São José dos Campos. Baseado nas alturas médias de precipitação foi traçado o mapa das isoietas utilizando 111 postos (DAEE), cobrindo á área do Vale do Paraíba, Litoral Norte e o Litoral Sul do Estado de São Paulo para um período de 30 anos (1966-1997). Esta análise representa a distribuição espacial da chuva (Figura 12). Nota-se no mapa que os máximos são encontrados na serra e no litoral, destacando-se o litoral sul. No Vale do Paraíba, propriamente dito, também existem gradientes espaciais significativos: de São José dos Campos (1240 mm) indo para nordeste estes valores em geral aumentam. Isto comprova o papel fundamental da orografia e da proximidade do oceano nos mecanismos formadores de precipitação na região e a necessidade de levar em conta as escalas espaciais menores (mesoescala e escala local) quando se deseja conhecer com detalhe a climatologia desta região. Informações desta natureza, de cunho quantiRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 tativo, podem ser de grande importância para diversas áreas que incluem o Planejamento Urbano e Regional e a Defesa Civil (que não atendem só São José dos Campos, mas também toda a Região) e a pesquisa sobre modelos hidrometeorológicos locais e regionais. 3.2.3.2 Mapa das Áreas de Inundação Segundo a Defesa Civil, alguns bairros foram agrupados em sub-bairros, em vista das dimensões reduzidas que possuem (em alguns casos chegam a ser de duas ruas), de acordo com o estabelecido pela Prefeitura Municipal de São José dos Campos. A partir da organização e das características dos eventos, foi criada uma escala de intensidade, estabelecida com base na freqüência e no grau de repercussão das 62 mesmas, que tem por objetivo facilitar a visualização da extensão destas áreas (Perrella, 1999). Feita esta classificação, foram espacializadas as áreas sujeitas à inundação na cidade de São José dos Campos (Figura 13). Observa-se, nesta figura, que a Zona Sul apresenta dois setores com grau de intensidade crítica e um muito forte, e que a Zona Leste apresenta três setores com grau muito forte. Fig. 12 - Normal da precipitação para o Vale do Paraíba e litoral sobre topografia com resolução de 1 km x 63 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 13 - Localização das áreas sujeitas a inundações na cidade de São José dos Campos, com risco associa- 4. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES Os resultados desta pesquisa contribuem para o conhecimento sobre a variabilidade temporal e espacial da precipitação em São José dos Campos e região, bem como sobre as áreas de risco de inundação nesta cidade, subsídios considerados de relevância para o Planejamento Urbano e Regional e para a Hidrologia Urbana. O processo de urbanização em São José dos Campos trouxe modificações no uso do solo e, conseqüentemente, interferiu nos processos de infiltração e na drenagem, causando, de modo geral, o aumento na freqüência e na magnitude do escoamento superficial. Este foi o fator fundamental para a elevação do número de áreas sujeitas a inundações nos últimos anos, fenômeno este cuja intensidade também depende da variabilidade sazonal do clima e das providências tomadas pelo poder público. Como conseqüência, as inundações já vêm causando grandes transtornos no município, com episódios que inclusive resultaram em mortes. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 A distribuição sazonal das chuvas em São José dos Campos apresenta dois períodos bem definidos, sendo que as maiores magnitudes estão compreendidas entre os meses de outubro e março. Os valores críticos, ou seja, os valores máximos de precipitação, ocorrem em janeiro, março e novembro. Esta constatação é importante para a tomada de ações preventivas e para preparar o sistema de alerta no que tange às inundações. Já que é impossível impedir que os temporais aconteçam, pode-se pelo menos traçar previamente uma estratégia para as áreas mais críticas. A análise espacial da precipitação evidenciou a grande variabilidade do total anual em função da localização. Os máximos foram encontrados na serra e no litoral, destacando-se o litoral sul. No Vale do Paraíba propriamente dito, também foram verificados gradientes espaciais significativos (em São José dos Campos (1240 64 mm) na direção nordeste o total anual da precipitação em geral aumenta). Isto comprova o papel fundamental da orografia e da proximidade do oceano nos mecanismos formadores da chuva na região e a necessidade de levar em conta as escalas espaciais menores (mesoescala e escala local) quando se deseja conhecer com detalhe a climatologia desta região. Uma outra constatação importante foi a identificação das chuvas antecedentes (chuvas ocorridas nos dias anteriores ao crítico) como fatores que contribuem para a ocorrência das inundações. Em alguns dos episódios estudados, a chuva do dia não foi suficiente para justificar a ocorrência de inundação, mas as antecedentes o foram. Com base no estudo das ocorrências de inundação, verificou-se que as áreas mais críticas, ou seja, aquelas que têm mostrado vulnerabilidade perante os fatores pluviométricos, estão situadas em locais onde há falta de planejamento e de infra-estrutura especialmente no que diz respeito a aspectos de Hidrologia Urbana. De modo geral, as áreas preferenciais de inundações e/ou alagamentos correspondem às avenidas de fundo de vales, às áreas submetidas a aterros, aos loteamentos, cuja infra-estrutura de drenagem é mal dimensionada e/ou mal preservada, às áreas de ocupação sem sistemas de drenagem, às planícies aluviais e às áreas localizadas próximas das ribeirinhas, estas geralmente obstruídas por lançamentos de detritos, o que evidencia má conservação. O sistema de drenagem natural de algumas bacias hidrográficas de São José dos Campos encontra-se em estado crítico. Sua manutenção é precária. Os córregos estão assoreados pela grande carga de lixo e sedimentos carreados a cada chuva, o que causa estrangulação em seus leitos. Algumas das soluções para esse tipo de problema implicam o controle da drenagem, a manutenção das galerias pluviais e as medidas estruturais e não-estruturais. As medidas não-estruturais, em particular, devem ser tratadas no Plano Diretor, com embasamento em insumos tecnológicos, sempre que possível, como por exemplo, os gerados nesta pesquisa e no trabalho de autoria de Serafim (1998). Entretanto, o poder público municipal em geral carece de instrumentos que ampliem sua atuação, tanto em termos de prevenção quanto em termos de ação durante as inundações (Carta de Recife – ABRH, 1995; Scofield & Margottini, 1999) No caso de São José dos Campos, em particular, esta pesquisa evidenciou a necessidade de elaborar um Plano Diretor de Drenagem Urbana para o Município. 65 O mapa das áreas de inundações refere-se à parte urbana do município. Por delimitar os setores críticos, deverá auxiliar o trabalho da Defesa Civil e servir de subsídio técnico para que o poder público estabeleça um zoneamento do solo urbano mais criterioso, particularmente nas áreas ribeirinhas, a ser incorporado na lei orgânica do município. Vale salientar que a região mais afetada do município é a Zona Leste, embora o bairro mais crítico encontre-se na Zona Sul (Campo dos Alemães). Pelo fato de a Zona Leste ter tido menor intervenção de ações para melhoria das condições da região, sugere-se que o poder público municipal a considere como prioritária ao estabelecer ações efetivas no processo de planejamento para corrigir os problemas existentes. A presente pesquisa culminou com o primeiro mapa de risco de inundações para São José dos Campos. Portanto, é importante que ele seja submetido a uma investigação continuada com o propósito de promover a sua validação e a sua atualização, por meio do monitoramento da evolução espacial das áreas de risco. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRH “Carta de Recife”. Boletim ABRH, n.54, p.6, out./dez. 1995. BRANDÃO, A .M. P. M. As chuvas e a ação humana: uma infeliz coincidência. In: ROSA, L.P, LACERDA, W.A (Coord.). Tormentas cariocas. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 162p.1997. p.21-38. 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Esta metodologia foi inicialmente desenvolvida para atender às necessidades de processamento dos diagramas pluviográficos da estação meteorológica do aeroporto de São José dos Campos-SP. Além de critérios de análise visual para a seleção preliminar dos diagramas, tendo em vista o estado de conservação deles, foram desenvolvidos módulos computacionais de crítica e consistência, para serem empregados após o processo de digitalização. A metodologia descrita agiliza o resgate das informações contidas nos pluviogramas e permite a geração de um acervo de dados pluviográficos (arquivos em séries anuais, mensais e diárias, todas em intervalos de 10 minutos), consistente e confiável, que contém todos os eventos de chuva que ocorreram no período processado. Ela pode ser também empregada para a digitalização de outros tipos de diagramas como, por exemplo, os gerados por linígrafos. A metodologia é de implementação fácil e barata, e os códigos-fonte dos programas estão disponíveis para qualquer interessado. Palavras-chave: Metodologia para digitalização, técnicas computacionais, consistência dos dados digitalizados. Abstract. This paper describes with detail a methodology for the classification, digitalization and generation of a rainfall data base, using a digitizer tablet and computational techniques. This methodology was initially developed for the processing of rainfall data recorded in pluviograms, at the airport weather station in São José dos Campos-SP (Brazil). In addition to the visual criteria applied for the preliminary selection of the diagrams, in view of their maintenance status, computational modules, aiming to verify the consistency of the digitized data and to submit them to criticism, were developed. The methodology here described speeds up the pluviogram readings and allows for the generation of a reliable and consistent pluviographic data set (archives in annual, monthly, and daily series, all of them with 10-minute intervals), containing all the rainfall events which occurred in the processed period. It may also be employed for digitizing other kinds of graphics as, for instance, the ones generated by water level recording gauges. The methodology is of easy and cheap implementation, and the authors provide the computer codes to anyone interested. Key words: Methodology for the digitalization, computational techniques, consistency of the digitized data. 1. INTRODUÇÃO A necessidade de desenvolver uma metodologia de digitalização de pluviogramas e de criação de um banco informatizado de dados pluviográficos surgiu quando os autores do presente artigo se viram diante do desafio de processar um grande conjunto de dados de chuva. Na ocasião, a acelerada e descontrolada urbani* Professor da UNIVAP. ** Pesquisadora do INPE. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 zação de São José dos Campos já mostrava seus efeitos no plano hidrológico em vários pontos do município, evidenciando a urgência de realizar estudos centrados nas questões de Hidrologia Urbana que contribuíssem para uma melhor compreensão dos impactos hidrológicos decorrentes da ocupação desordenada (Ferreira et al., 1997; Brandão, 1999; Brandão & Ferreira, 2000; Ferrreira & Brandão, 2000) e que servissem de subsídio para o Planejamento Urbano e Regional do município. Neste contexto, foram realizadas pesquisas sobre as inundações em São José dos Campos e sobre a pluvio68 metria regional no Vale do Paraíba e adjacências, cujo principal subproduto foi o primeiro mapeamento de áreas de inundações para o município (Perrella, 1999; Perrela & Ferreira, 2000). Como constatado por Perrella (1999), os Planos Diretores de São José dos Campos praticamente não tratam da problemática da Hidrologia Urbana. Além disto, a inexistência de um Plano Diretor de Drenagem Urbana, bem como o interesse pelas questões de cunho ambiental (deslizamento de encostas, erosão etc.), climatológico e de engenharia (obras de drenagem, em geral), apontou para a necessidade de se ampliar o conhecimento sobre o regime de chuvas em intervalos de tempo inferiores a 24 horas e de se obter uma equação de chuvas intensas para São José dos Campos, o que motivou as pesquisas feitas por Santos (1999), Santos & Waltz (1999) e Waltz (2000, também relatadas em Waltz & Ferreira (2001a; 2001b). Como é bem sabido, para que os estudos hidrológicos e climatológicos de bacias urbanas alcancem sucesso é necessário que as variáveis de interesse sejam monitoradas continuamente, em intervalos de tempo pequenos, numa malha densa (daí a importância do sensoriamento remoto por radares e satélites), tal que haja compatibilidade com as escalas espacial e temporal dos fenômenos que atuam nessas bacias hidrográficas, como apontado, por exemplo, por Ferreira (1987) e por Ferreira & Calheiros (1995). Por outro lado, inúmeros textos de Hidrologia (e.g., Tucci et al.,1995; Tucci, 1997) destacam que, em geral, é muito mais comum dispor de dados de chuva do que de vazão fluviométrica líquida, situação que motivou o desenvolvimento de modelos chuva-vazão ao longo dos tempos, o mais tradicional sendo o Método Racional, largamente aplicado em projetos de Drenagem Urbana. Esses são alguns fatos que corroboram a importância das observações feitas por meio de pluviógrafos e a necessidade de empregar metodologias que confiram qualidade aos dados de chuva, qualidade esta que é caracterizada pelo grau de confiabilidade e de consistência das séries temporais obtidas. No Brasil, a maioria das estações meteorológicas e hidrológicas são operadas convencionalmente, ou seja, os valores registrados pelos instrumentos são lidos por observadores e anotados em cadernetas ou planilhas. Em algumas estações meteorológicas, como as do Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa, já são utilizados sistemas informatizados dotados de programas computacionais configurados para incorporar as observações, que são digitadas em tempo real pelo observador de plantão e então armazenadas pelos programas, segundo padrões preestabelecidos. Em ambos os casos as leituras são feitas 69 poucas vezes por dia. Em algumas estações meteorológicas convencionais também são operados instrumentos dotados de registradores. Habitualmente, os observadores fazem a leitura da informação indicada no gráfico, nos horários estabelecidos pela rotina de observação, cuja sistemática raramente contempla intervalos inferiores a 1 (uma) hora. Invariavelmente, estudos que se baseiam em dados hidrometeorológicos exigem a manipulação de grandes quantidades de dados, com vistas no estabelecimento de parâmetros estatísticos (média, desvio padrão etc.) representativos da variável em estudo. Quando as observações são feitas convencionalmente (isto é, sob a forma de registros escritos, derivados da leitura dos instrumentos e aparelhos), é necessário convertê-las para a forma digital, para que possam ser, em seguida, submetidas a testes informatizados de consistência e de validação. No caso específico da preparação de uma base de dados pluviográficos, as informações encontram-se originalmente na forma de gráficos que são desenhados por uma pena em diagramas, como ilustra a Figura 1, a qual apresenta um exemplo de diagrama pluviométrico, com registros de precipitação. De imediato, a leitura das observações é do tipo visual, o que dificulta, limita e compromete o processamento dos dados e os estudos que exijam o emprego de um grande número de pluviogramas. Por ocasião da realização deste estudo contemplou-se, inicialmente, a leitura visual, que parece ter sido a abordagem adotada por inúmeros autores que publicaram artigos sobre equações de chuvas intensas. Entretanto, como mencionado, além da pesquisa para a obtenção da equação de chuvas intensas, havia interesse em investigar o regime das chuvas com durações inferiores a 24 horas, no município de São José dos Campos, fossem elas intensas ou não. Havia também a necessidade de estabelecer uma metodologia computadorizada que fosse útil para o processamento de pluviogramas obtidos em outros locais e que pudesse ser também empregada com outros tipos de diagramas. Foi então feita uma busca na literatura especializada e constatou-se que em apenas poucos trabalhos sobre chuvas intensas os autores mencionavam o emprego de metodologias de digitalização de pluviogramas e, quando o faziam, não apresentavam o detalhamento necessário para sua implementação por terceiros e muito menos tornavam disponíveis os programas (Brandão & Hipólito, 1995; Martinez Júnior, 1999; Bemfica et al., 2000). Assim, para tornar possível a utilização prática, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 ágil e confiável dos dados que compõem o acervo pluviométrico da estação meteorológica do aeroporto de São José dos Campos, no âmbito das pesquisas sobre chuvas intensas, realizadas por Waltz (2000), foi desenvolvida uma metodologia para a classificação e a digitalização de pluviogramas, bem como para a geração de uma base de dados de precipitação, obtidos em intervalos de 10 minutos, com uso de mesa digitalizadora e de técnicas computacionais. Esta metodologia é descrita a seguir, com razoável grau de detalhe. Fig. 1 - Exemplo de pluviograma da estação meteorológica do Aeroporto de São José dos Campos–SP, operada pelo Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa. 2. DADOS Para o desenvolvimento da metodologia de digiRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 talização, foram empregados os registros pluviográficos de São José dos Campos (1973 a 1984 e 1993 a 1998), fornecidos pela Divisão de Ciências Atmosféricas (ACA) 70 do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), depositário do acervo de dados meteorológicos do Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa. A estação do aeroporto de São José dos Campos-SP, tem número sinótico 83829, está localizada em 23o 14’ S de latitude e em 45o 51’ W de longitude, numa altitude de 640 m acima do nível médio do mar, e é equipada com um pluviógrafo Fuess, do tipo sifão, com área de captação de 200 cm2. 2.1 Procedimentos iniciais: classificação dos pluviogramas e estabelecimento dos períodos com dados Para que fosse possível estabelecer os períodos com dados, bem como as eventuais falhas, foi necessário fazer, inicialmente, um levantamento preliminar, já que os diagramas da estação do Aeroporto de São José dos Campos encontravam-se apenas parcialmente classificados. Dessa forma, o primeiro procedimento para a preparação do acervo, visando sua futura manipulação, foi a separação dos diagramas, por ano e mês, seguida de uma ordenação pelos dias, para cada mês. Neste proce- dimento, caracterizado integralmente pela manipulação individual dos diagramas, procedeu-se à retirada de grampos, clipes e demais objetos que haviam sido colocados numa primeira tentativa de classificação, realizada, na maioria das vezes, na estação de origem dos dados. Nesta fase, foi gerada uma tabela descritiva onde estão relacionados todos os registros de precipitação para cada mês e ano existentes no acervo, bem como as faltas de dados verificadas durante a reclassificação realizada. Como exemplo, na Figura 2 é apresentada parte dessa tabela descritiva. Por meio de contatos oficiais, mantidos entre ACA-IAE-CTA e o Laboratório de Meteorologia (LabMet) da UniVap, foi estabelecida uma sistemática que buscou minimizar o tempo entre a retirada dos diagramas (para digitalização no LabMet) e a sua devolução, já que a preocupação da ACA-IAE-CTA com a segurança do acervo é bastante acentuada em vista da condição ímpar de cada um destes registros. Fig. 2 - Exemplo da tabela descritiva gerada na fase de reclassificação dos pluviogramas. 71 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3. EQUIPAMENTOS A mesa digitalizadora utilizada foi conseguida por empréstimo junto ao ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica)/CTA, equipamento este adquirido por meio de um projeto custeado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Trata-se de uma mesa digitalizadora Hitachi, modelo HDG 1515D, no tamanho A3. Todos os programas computacionais foram desenvolvidos em microcomputadores do tipo PC. 4. PROGRAMA COMPUTACIONAL DE DIGITALIZAÇÃO A digitalização dos valores de chuva a partir dos gráficos existentes nos diagramas exigiu o desenvolvimento de programas computacionais que fazem a leitura dos sinais captados pela porta serial do microcomputador, sinais estes vindos da mesa digitalizadora. Este programa realiza a conversão dos valores registrados (ordenada do diagrama) para valores relativos de altura de precipitação e, assim, permite a criação de arquivos que contêm o total da chuva ocorrida durante todo o período coberto por um diagrama, em intervalos de 10 minutos, conforme a escala gráfica (abcissa) utilizada no pluviograma (ver Figura 1). O programa de digitalização foi desenvolvido no LabMet da UniVap, utilizando-se o ambiente de programação QuickBasic®, da Microsoft® já que ele oferece meios para a obtenção de dados através de uma porta serial do microcomputador PC, à qual estava conectada a mesa digitalizadora. Além disso, este ambiente de programação facilita a transferência do programa para outras instituições, pelo fato de ser o QuickBasic® um programa comumente disponível. Os principais critérios adotados para o desenvolvimento do programa foram: a) os diagramas seriam digitalizados no período entre a colocação e a retirada deles, obedecendo-se o padrão empregado nas estações de observação meteorológica, ou seja, colocação e retirada de diagramas às sete horas da manhã de cada dia; b) a digitalização deveria levar em conta o intervalo mínimo de tempo de dez minutos entre os registros de precipitação, já que esta é a menor fração de tempo registrada graficamente no diagrama, na busca de maior precisão no processo; c) para ajustar a escala dos eixos do gráfico à escala utilizada na mesa digitalizadora, antes do início da digitalização da curva de precipitação, seriam lidos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 pelos programas dois pontos de referência digitalizados a partir do gráfico, os quais corresponderiam aos limites mínimo e máximo de precipitação, quais sejam, 0,0 e 10,0 mm, no horário em que teve início o primeiro evento de precipitação registrado no diagrama. O horário de início seria fornecido ao programa através do teclado do microcomputador e, a ele, o programa acrescentaria intervalos de tempo de 10 minutos para cada registro digitalizado; d) o início da digitalização dar-se-ia pela informação ao programa da data de retirada do diagrama, o que definiria o intervalo de tempo, ao qual ele se referia, e informaria sobre a existência de registro de precipitação para esta data de retirada. Este procedimento se fez necessário, pois, em alguns casos, quando não havia precipitação no período de 24 horas, o diagrama não era retirado, e ocorria sobreposição de um novo período de 24 horas de observação. Isto acontece por vários motivos, em especial para economizar diagramas. Nota-se que, quando não há ocorrência de precipitação, fica registrada uma linha contínua na base do diagrama, normalmente próxima ao eixo de 0,0 (zero) milímetro; e) para os casos em que a pena do registrador tivesse desenhando um risco muito grosso, causado pelo vazamento de tinta da pena ou por manipulação incorreta, a digitalização seria efetuada no ponto médio da espessura da linha de registro, visando minimizar os efeitos deste problema de registro; f)todos os registros seriam digitalizados, independentemente da quantidade de precipitação registrada, limitada naturalmente à precisão mínima do equipamento e do diagrama, equivalente a 0,1 milímetro; g) seriam gerados arquivos individuais em disco para cada diagrama, reproduzindo-se a seqüência histórica de forma similar à dos diagramas; e, h) os arquivos gerados obedeceriam ao seguinte critério de nomenclatura: PDDMMAA.DAT, onde: P – para identificar dados de precipitação; DD – o dia a que se refere o diagrama digitalizado (dia de retirada do diagrama); lizado; MM – o mês a que se refere o diagrama digita- AA – o ano a que se refere o diagrama digitalizado; e, DAT – extensão escolhida para o arquivo que, corriqueiramente, é utilizada nos meios computacionais para indicar um conjunto de dados. 72 5. PROCEDIMENTO DE DIGITALIZAÇÃO A digitalização propriamente dita obedeceu à ordem histórica de obtenção de dados, tendo sido iniciada pelos registros do ano de 1973. O procedimento de digitalização, conforme determinado pelo programa, mostrou-se operacionalmente eficiente e conferiu grande rapidez ao processo. Também conferiu precisão significativa aos dados, já que, concomitantemente à digitalização dos diagramas, os valores obtidos iam sendo apresentados na tela, o que permitiu verificar, logo de início, a consistência entre a leitura visual da quantidade de chuva registrada nos diagramas e os valores totalizados pelo programa de digitalização. Em alguns diagramas, os observadores haviam anotado o total da chuva no período, o que facilitou ainda mais a comparação entre os registros do diagrama e a totalização feita pelo programa. 6. INTEGRAÇÃO DOS DADOS Todos os arquivos resultantes do processo de digitalização dos pluviogramas foram integrados, isto é, foram reunidos e organizados, com a finalidade de facilitar sua manipulação em cálculos e utilizações futuras. Para tanto, foram desenvolvidos programas em linguagem Fortran, empregando-se o compilador Power Station® da Microsoft®, que atendem três finalidades básicas: (1) arquivos para aplicações anuais; (2) arquivos para aplicações mensais; e (3) arquivos para aplicações diárias. Esses programas de integração, em vista dos critérios de organização adotados, permitem a um futuro usuário conhecer a estrutura do acervo (dias com e sem registro, falta de dados etc.) e as características da massa de dados disponível, bem como obter outras informações com os dados de seu interesse. Ainda, deve ser notado que em todos os casos foram preservadas as alturas pluviométricas de 10 minutos, ou seja, não foram feitas totalizações. 6.1 Arquivos para aplicações anuais Na primeira integração foram montados os diretórios para cada ano do conjunto de dados. Nestes diretórios os arquivos de dados foram organizados pela ordenação natural que o sistema operacional MS–Windows 95 provê, e que tem por base o nome dos arquivos. Isto viabiliza a manutenção de uma estrutura perfeitamente inteligível, já que o nome dos arquivos é de fácil entendimento e possibilita a imediata identificação do período de dados a que se referem. 6.2 Arquivos para aplicações mensais Visando facilitar a manipulação do conjunto de dados por programas de computador para cálculos estatísticos, procedeu-se à integração deles em meses, para cada ano do acervo. Assim sendo, foi desenvolvido um programa que realiza a leitura de cada um dos arquivos de dados diários e compõe, em um único arquivo, todos os meses de cada ano, separando-se os meses pelos dígitos 99, o que caracteriza o final dos dados de um certo mês e conseqüente início do mês seguinte. Desta forma, foi criado um novo diretório onde se encontram dezoito arquivos correspondentes a cada ano de dados digitalizados. Na Figura 3 encontra-se uma ilustração de arquivo para aplicações anuais e mensais, referente ao ano de 1974. Fig. 3 - Ilustração de arquivo digital de chuva para aplicações anuais e mensais. 73 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 6.3 Arquivos para aplicações diárias ele não estivesse atento. Como já mencionado, a data de identificação dos arquivos diários corresponde à data de retirada do diagrama. De acordo com o procedimento padrão de observação, a troca de diagramas realiza-se às sete horas da manhã de cada dia. Portanto, os dados referentes a um mesmo dia podem ser encontrados em dois diferentes arquivos. Isto poderia constituir uma dificuldade adicional, durante a manipulação dos dados, para um usuário que não conhecesse esse procedimento ou mesmo que para Para facilitar a manipulação do acervo, bem como para evitar a geração de dados incorretos devido aos motivos expostos, foram transferidos dos arquivos mensais de dados os valores correspondentes ao período compreendido entre as 00 horas e as 23h50 min, obtendose desta forma o registro digitalizado da precipitação no período das 24 horas de um dia. Na Figura 4 encontra-se uma ilustração de arquivo para aplicações diárias. Fig. 4 - Ilustração de arquivo digital de chuva para aplicações diárias. 7. CRITÉRIOS EMPREGADOS NA CONSISTÊNCIA DOS ARQUIVOS E DOS DADOS Considerada a grande quantidade de dados manipulados e a perspectiva de que a metodologia possa vir a ser utilizada para outras séries de dados ainda maiores, tornou-se necessário desenvolver programas de computador que permitissem ampliar a segurança na base de dados. Tal iniciativa visou garantir que os arquivos expressem o mais fielmente possível os dados registrados originalmente e que os dados sejam compatíveis com as normais climatológicas esperadas para a região de abrangência da estação meteorológica empregada. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 7.1 Consistência dos arquivos No que se refere à consistência dos arquivos, foram desenvolvidas rotinas de teste, implementadas por meio de programas computacionais, que permitiram identificar possíveis inconsistências, entre elas as que se referem às datas e à repetição e segmentação de horários. Tais inconsistências puderam ser listadas ainda no processo de digitalização, enquanto os diagramas iam sendo manipulados individualmente. Isto permitiu evidenciar os problemas decorrentes de eventuais manuseios indevidos 74 da informação, os quais podem prejudicar a obtenção de resultados consistentes por ocasião da utilização dos dados em processos computacionais. Neste ponto, merece destaque uma problemática que ocorreu com alguma freqüência durante a manipulação dos diagramas originais, no decorrer do processo de digitalização. Embora o diagrama devesse ser retirado regularmente às 7 horas da manhã, diariamente, em alguns casos o registro de precipitação se estendia até mais tarde, por exemplo, até por volta das 7h40 min ou mesmo das 8 horas. Nestes casos, ao se observar o diagrama subseqüente, esperava-se que o registro começasse no instante do intervalo de tempo seguinte ao registrado no diagrama anterior, ou seja, às 07h50 min e às 08h10 min, respectivamente. Ainda, havia a possibilidade de que o diagrama subseqüente tivesse início exatamente no mesmo horário de término do anterior, como resultado de uma troca rápida e eficiente de diagramas. Tais situações claramente caracterizavam um erro de operação que, num primeiro momento, comprometia o registro horário das chuvas no período compreendido pelo diagrama subseqüente, pois ficava evidente que havia um atraso no horário registrado no diagrama em relação ao horário em que efetivamente o fenômeno meteorológico estava ocorrendo. Nestas circunstâncias, foi necessário aventar algumas alternativas decisórias, já que a precipitação ocorrida entre o horário correto e o horário efetivo de retirada do diagrama não tinha, segundo a prática da observação meteorológica, como ser registrada no diagrama subseqüente, já que ele deveria ser instalado com a pena registradora posicionada no horário imediatamente seguinte à última observação anterior. Caso o registro de precipitação indicasse 0,0 mm, tal problemática não surtia nenhum efeito prático quanto à consistência dos arquivos. No entanto, isso dava um trabalho de interpretação significativo quando havia registro de precipitação superior a 0,0 mm, tanto no final do diagrama quanto no início do diagrama subseqüente. 75 Isto poderia ocorrer quando o diagrama subseqüente era iniciado às 7 horas, caracterizando uma sobreposição de dados, e era preciso decidir entre duas chuvas registradas para um mesmo período do dia. A decisão ficava a cargo do digitalizador, que se valia das informações contidas no MET-R para decidir entre as duas chuvas. Se esta estratégia se mostrasse insuficiente, o critério adotado era o de optar pela chuva registrada no último horário do pluviograma anterior. Ainda, poderia ocorrer, que o diagrama subseqüente fosse iniciado depois das 7h10min, e o atraso caracterizasse uma interrupção no registro do evento. Nesta situação, mesmo quando parecia se tratar de um único evento, considerouse que houve duas chuvas: uma que terminou no horário de retirada do diagrama anterior, e outra, que começou no início do diagrama subseqüente, ou seja, não foram feitos preenchimentos de falhas. 7.2 Consistência dos dados Após adquirir confiança suficiente nos arquivos gerados com os dados digitalizados, partiu-se para a etapa de análise de consistência dos dados, por meio de programas de computador desenvolvidos para este fim em linguagem Fortran. A análise de consistência dos dados foi dividida em duas fases. A primeira foi de confrontação dos dados digitalizados com os dados registrados no formulário MET-R, gerado na mesma estação meteorológica que originou os pluviogramas. No formulário MET-R são registrados os valores máximos de precipitação e o total acumulado em períodos de 24 horas, como ilustra a Figura 5. Desta forma, a simples confrontação com estes valores já indicaria, com boa margem de segurança, que os dados digitalizados estariam de acordo com os verificados na estação e registrados pelos observadores, que se encarregam de realizar o registro no formulário MET-R. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 5 - Exemplo de formulário MET-R. Como resultado dos testes de consistência realizados na primeira fase, foram identificados alguns dias em que a digitalização não era compatível com as informações registradas no MET-R. Após serem listados todos estes dias, buscou-se, por meio de verificação no pluviograma original, identificar motivos que levaram à discrepância entre os dois registros. Entre os fatores determinantes para as diferenças encontradas destacaram-se: a) diagramas que foram utilizados em mais de um período de 24 horas, tendo havido precipitação em mais de um destes intervalos. Este fato impediu que, durante a digitalização, fosse identificado o dia exato de ocorrência da chuva. Numa primeira etapa, diagramas com esta problemática foram excluídos do processo. Quando se trata do MET-R isto não acarreta dúvidas, já que o formulário é preenchido a cada hora, sendo possível ao observador registrar a chuva no momento de sua ocorrência. Portanto, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 com o auxílio do MET-R, pôde-se identificar o dia exato de ocorrência e reincorporar os diagramas inicialmente rejeitados ao processo de digitalização; b) alguns diagramas apresentavam descontinuidades na linha de registro da precipitação, por falta de tinta na pena ou por outro fator mecânico que impedia o registro durante um determinado intervalo de tempo. Assim sendo, a precipitação digitalizada referia-se exclusivamente ao traçado efetivamente existente no pluviograma. Entretanto, no formulário MET-R, o intervalo, que no diagrama não constava registro, apresentava valores acumulados para o total horário que envolvia a falha. Porém, neste caso, o diagrama não foi redigitalizado, já que a variação em intervalos de 10 minutos não era conhecida (como mencionado, o MET-R só registra totais horários) e optou-se por não fazer preenchimento de falhas; c) em diagramas que apresentavam chuvas inten76 sas, com o registro alcançando o limite de 10,0 mm de precipitação em pequenos intervalos de tempo, foram encontrados alguns poucos casos em que havia uma diferença de contagem do número de “picos” entre o registrado no MET-R e o digitalizado. Para estes casos, a solução foi uma minuciosa leitura visual, sendo realizada a correção do arquivo digitalizado em apenas um dos casos. A segunda fase do procedimento de consistência envolveu a geração de diversos gráficos, representativos dos valores médios de precipitação para os diferentes períodos permitidos pelo conjunto de dados, que possibilitaram a comparação dos comportamentos dos dados pluviográficos com a normal climatológica conhecida para a região de abrangência da estação. A despeito de seu caráter qualitativo, este procedimento foi útil, pois indicou que o conjunto de dados processados era consistente. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste trabalho foi satisfatoriamente alcançado, ou seja, a metodologia de classificação e digitalização de pluviogramas, e de geração de uma base de dados pluviográficos, estruturada em arquivos anuais, mensais e diários, e submetido a critérios de crítica e de consistência, foi desenvolvida e implementada com sucesso. Por meio dela, os dados de chuva contidos nos pluviogramas da estação meteorológica do aeroporto de São José dos Campos puderam ser resgatados em um quarto do tempo que seria gasto se fosse empregada a inspeção visual para este fim. O grau de confiabilidade alcançado permitiu que os dados de chuva fossem manipulados com segurança por ocasião da realização das pesquisas que levaram à obtenção de uma equação de chuvas intensas para São José dos Campos (Waltz, 2000; Waltz & Ferreira, 2001a). As informações contidas nesta base de dados são de imediata utilização e podem ser ampliadas e/ou reanalisadas a qualquer momento. A partir desta base de dados, foi gerada uma outra base, que segue os formatos empregados pelo DAEE/ Fundação CTH (1999), visando inclusão em próximas edições deste CD-ROM que contém o Banco de Dados Pluviográficos do Estado de São Paulo. Por exigir baixo investimento em equipamentos e em recursos computacionais e ser de fácil implementação, a metodologia desenvolvida poderá contribuir para que os dados contidos em pluviogramas passem a ser digitalizados sistematicamente, de modo a ampliar a disponibilidade de informações pluviográficas (alta resolução temporal) confiáveis e a permitir a realização de pesquisas que visem um conhecimento climatológico 77 mais detalhado para as regiões onde este registro é efetuado, conhecimento este que tem aplicação em diversas áreas, como a Hidrologia e a Climatologia Urbana, o Planejamento Urbano e Regional, a Previsão Numérica de Tempo e a estimativa de precipitação por satélites e radares. Deve ser ressaltado que esta metodologia pode ser empregada para a digitalização de diversos tipos de diagramas como, por exemplo, os de termógrafos e linígrafos. Os códigos-fonte dos programas computacionais desenvolvidos não foram explicitados neste artigo, mas estão disponíveis para qualquer interessado. Para obtêlos, basta entrar em contato com o primeiro autor deste artigo. 9. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem: à Divisão de Ciências Atmosféricas (IAE/CTA), depositária do acervo de dados meteorológicos do Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa, o fornecimento dos registros pluviográficos da estação meteorológica do aeroporto de São José dos Campos; ao ITA/CTA, o empréstimo da mesa digitalizadora; e, ao Prof. Jojhy Sakuragi, chefe do LabMet/UniVap, a colaboração no desenvolvimento dos programas computacionais de digitalização. 10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEMFICA, D. C.; GOLDENFUM, J. A.; SILVEIRA, A. L. L. Análise da aplicabilidade de padrões de chuva de projeto a Porto Alegre. Revista Brasileira de Recursos Hídricos, v. 5, n. 4, out./dez., 2000, p. 5-16. BRANDÃO, C.; HIPÓLITO, J. N. A. R. Análise de precipitações intensas. 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DAEE - DEPARTAMENTO DE ÁGUAS E ENERGIA ELÉTRICA (São Paulo-SP)/Fundação CTH. Banco de dados pluviográficos do Estado de São Paulo. 1999. Convênio DAEE-USP, 1999. 1 CD-ROM. PERRELLA, A. C. F.; FERREIRA, M. E. Localização das áreas de inundação em São José dos Campos-SP e espacialização da precipitação no Vale do Paraíba e áreas do litoral paulista, como subsídio ao Planejamento Urbano. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE CLIMATOLOGIA GEOGRÁFICA, 4., Rio de Janeiro, 2000. Anais… Rio de Janeiro: UFRJ/CLIMAGEO, 2001. CD-ROM (no prelo). FERREIRA, M. E. Possíveis aplicações de satélites meteorológicos na área de recursos hídricos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 7./e/ SIMPÓSIO LUSO-BRASILEIRO DE HIDRÁULICA E RECURSOS HÍDRICOS, 3., 1987, Salvador-BA. Anais... São Paulo: ABRH, 1987. 4v., v.2, p.206-212. FERREIRA, M. E. et al. Cálculo de um reservatório de detenção destinado a mitigar o impacto da urbanização em um bairro de São José dos Campos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 12. Vitória-ES, 1997. Anais... Vitória: ABRH, 1997. 4v., v.3, p.655-660. FERREIRA, M. E.; BRANDÃO, I. N. Bacia do Rio Pararangaba (São José dos Campos – SP): novos critérios de amostragem temporal para medições de chuva e vazão. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE METEOROLOGIA, 11., 2000, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: SBMET, 2000. 1 CD-ROM. HI00008. 6p. p.1422-1427. FERREIRA, M. E.; CALHEIROS, R. V. Hidrologia e satélites ambientais: aspectos operacionais no Brasil. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 11./e/SIMPÓSIO DE HIDRÁULICA E RECURSOS HÍDRICOS DOS PAÍSES DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA, ABRH, Recife/PE, 1995. Anais... Recife: ABRH, 1995. 4v., v.1, p.367-372. GUGELMIN, J. A.; PORTELLA, P. E. Digitalização de dados meteorológicos horários. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE METEOROLOGIA, 8./e/CONGRESSO LATINO-AMERICANO E IBÉRICO DE METEOROLOGIA, 2., 1994, Belo Horizonte-MG. Anais... Belo Horizonte: SBMET, 1994. 3v., v.2, p.357-360. MARTINEZ JÚNIOR, F. Análise das precipitações intensas no Estado de São Paulo. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 13., Belo Horizonte/ MG, ABRH, 1999. Anais… 2.ed. São Paulo: ABRH, 2000. 1 CD-ROM. Trabalho 4, 23 p. PERRELLA, A. C. F. Estudo e localização das áreas de inundação em São José dos Campos-SP, com base em dados da Defesa Civil e na pluviometria regional, como subsídio ao Planejamento Urbano. 1999. 90 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 SANTOS, G. R. Preparação da base de dados digitalizados de precipitação para São José dos CamposSP. 1999. 91 f. Trabalho Final de Curso (Técnico em Meteorologia) – Colégio Técnico “Antônio Teixeira Fernandes”, FVE/UniVap, São José dos Campos. SANTOS, G. R.; WALTZ, R. C. Preparação da base de dados necessária à análise de freqüência de chuvas intensas. In: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 3., São José dos Campos-SP, 1999. Anais... São José dos Campos: UniVap, 1999. p. 45. TUCCI, C. E. M. (Org.). Hidrologia: ciência e aplicação. 2. ed., Porto Alegre: Editora da Universidade: ABRH, 1997. 943 p. TUCCI, C. E. M.; PORTO, R. L. L.; BARROS, M. T. (Orgs.). Drenagem urbana. Porto Alegre: ABRH/Editora da Universidade/UFRGS, 1995. 428 p. (Coleção ABRH de Recursos Hídricos; v. 5). WALTZ, R. C. Estudo climatográfico de chuvas máximas e obtenção da primeira equação de chuvas intensas para São José dos Campos. 2000. 112 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos. WALTZ, R. C.; FERREIRA, M. E. Obtenção de uma equação de chuvas intensas para São José dos Campos-SP com base em estudos pluviográficos. Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, 14° /e/ Simpósio de Hidráulica e Recursos Hídricos dos Países de Língua Oficial Portuguesa, 5°, Aracaju-SE, 25 a 29 de novembro, 2001. Anais... São Paulo: ABRH, 2001a , 1 CD-ROM, 19p. WALTZ, R. C.; FERREIRA, M. E. Metodologia para digitalização de pluviogramas e geração de uma base de dados pluviográficos. Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, 14° /e/ Simpósio de Hidráulica e Recursos Hídricos dos Países de Língua Oficial Portuguesa, 5°, Aracaju-SE, 25 a 29 de novembro, 2001. Anais... São Paulo: ABRH, 2001b, 1 CD-ROM, 17p. 78 Levantamento Preliminar da Mirmecofauna da Fazenda Santana do Poço - Campus Urbanova Marcelo de Castro Pazos * Graziela Sousa ** Nádia Maria Rodrigues de Campos Velho *** Resumo. Este trabalho tem como objetivo apresentar um levantamento preliminar dos gêneros de formigas (Insecta, Hymenoptera) presentes na região da Mata 2 da Fazenda Santana do Poço a 23°11S e 45°53W, no município de Jacareí – SP, situada no Campus Urbanova da Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP. Entre os meses de março a agosto de 1998, foram identificados 13 gêneros (Azteca, Labidus, Neivamyrmex, Camponotus, Crematogaster, Procryptocerus, Solenopsis, Zacryptocerus, Atta, Pheidole, Ectatomma, Pachycondyla, Pseudomyrmex), e uma subespécie (Atta sexdens rubropilosa) distribuídos em 6 subfamílias (Dolichoderinae, Dorylinae, Formicinae, Myrmicinae, Ponerinae e Pseudomyrmecinae). Dois métodos de coleta foram utilizados: 1) iscas de sardinha, chocolate e açúcar e; 2) Coleta manual com pinça. Os resultados parecem demonstrar que a mirmecofauna da região estudada é bastante variada em número de gêneros e subfamílias. Palavras-chave: Levantamento, mirmecofauna, Formicidae, Himenoptera. Abstract. The purpose of this work is to present an initial survey on the ant genera (Insecta, Himenoptera) that inhabit the Mata 2 area located at Fazenda Santana do Poço (23°11’S and 45°53’W), at the Universidade do Vale do Paraíba, Campus Urbanova, in the municipal district of Jacareí – SP. From March 1998 up to August 1998, the survey had identified thirteen genera (Atta, Azteca, Camponotus, Crematogaster, Ectatoma, Labidus, Neivamyrmex, Pachycondyla, Pheidole, Procryptocerus, Pseudomyrmex, Solenopsis and Zacryptocerus) and one subspecies (Atta sexdens rubropilosa), distributed in six subfamilies (Dolichoderinae, Dorylinae, Formicinae, Myrmicinae, Ponerinae and Pseudomyrmecinae). Two collection methods were used: 1) sardine bait, chocolate and sugar and; 2) hand collect with tongs. These results seem to show that the ant fauna is very diversified in terms of members in genera and subfamilies. Key words: Survey, mirmecofauna, Formicidae, Himenoptera. INTRODUÇÃO O Campus Urbanova, situado no Vale do Paraíba, apresenta uma grande variedade entomológica. A família Formicidae é predominantemente tropical, com aproximadamente 8.800 espécies distribuídas em 10 subfamílias: Aneuretinae, Dolichoderinae (incluindo Aenectini e Ecitonini), Formicinae, Dorylinae, Leptanilinae, Myrmicinae, Myrmeciinae, Nothomyrmeciinae, Ponerinae (incluindo Cerapachyni) e Pseudomyrmecinae (GOULET & HUBER, 1993). O corpo apresenta cabeça, tórax, abdome e um * Biólogo. ** Graduanda do Curso de Ciências Biológicas da UNIVAP. *** Professora da UNIVAP. 79 pecíolo que une o abdome ao tórax, podendo ser formado por um ou dois segmentos, havendo sempre sobre eles um ou dois nódulos muito nítidos (CARRERA, 1980), revestido por um exoesqueleto de quitina. As formigas vivem em sociedade, onde se encontram fêmeas fecundas (rainhas), machos e operárias (GOTWALD JR., 1995). As operárias nunca apresentam asas e o seu tamanho varia, em algumas espécies. Nas colônias maiores, as operárias podem ser divididas em soldados, enfermeiras, construtoras e coletoras de alimento. Este trabalho teve como objetivo o levantamento preliminar da mirmecofauna do Campus Urbanova. MATERIAL E MÉTODOS Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 As coletas foram realizadas no período de março a agosto de 1998 na área de 64,70m x 37,30m, denominada Mata 2 da Fazenda Santana do Poço, localizada no Município de Jacareí (SP) (23°11’S e 45°53’W), distante aproximadamente 80Km da cidade de São Paulo, em uma altitude de 600m acima do nível do mar, no Campus Urbanova da Universidade do Vale do Paraíba - São José dos Campos. As visitas foram realizadas durante três vezes, semanalmente, em cada um dos pontos de coleta, no período diurno, com uma duração de duas horas cada observação. Três foram os locais de captura dos exemplares: a margem do lago da mata, a mata fechada e a área desmatada. Os exemplares foram identificados como pertencentes à casta das operárias. identificação (BORROR & DeLONG - 1969 e GOULET & HUBER - 1993). Para a identificação do gênero Atta, utilizou-se a chave de BOLTON (1994). Isso foi feito a partir da morfologia externa Os exemplares identificados foram fixados, com cola em triângulos de papel cartão, sempre voltados para o mesmo lado, transpassados com alfinete entomológico n° 2, em sua região mais larga (base) e, abaixo deste, um rótulo com as informações necessárias. Para conserválos, utilizou-se uma caixa com naftalina e sílica. RESULTADOS E DISCUSSÃO As subfamílias e os gêneros constatados nos três locais investigados são listados a seguir. Como metodologia de coleta utilizaram-se iscas de chocolate, açúcar com algumas gotas de água e pedaços de sardinha dentro de recipientes de vidro, posicionados em diversos locais, onde era anotada a temperatura ambiental do início e final da coleta. 1. Subfamília Dolichoderinae Forel, 1878 As formigas foram acondicionadas em pequenos tubos de vidro com álcool 70% para conservação e posterior identificação em laboratório. Caracterizam-se por apresentar o pecíolo do abdome com um único segmento e não existe constrição entre o 1° e o 2° segmento do gáster. São formigas onívoras, com preferência por substâncias açucaradas (CARRERA, 1907).Segregam um fluido de odor nauseabundo pelas glândulas anais. A identificação do material foi realizada utilizando-se um estereomicroscópio, baseada em chaves de Fig. 1 - Gênero Azteca Forel, 1878. 1.a Gênero Azteca Forel, 1878 Área de Ocorrência: Região Neotropical. Características Gerais: As formigas deste gênero são arborícolas e se aninham geralmente em embaúvas Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 (Cecrópia), árvore bastante comum na área de estudo, sendo que cada espécie mostrou decidida predileção por determinada espécie da planta. São as mais temidas formigas que ferroam (SANTOS, 1985). Forma de Captura: Isca de açúcar. 80 2. Subfamília Dorylinae Leach, 1815 São formigas carnívoras que surgem em bandos enormes para depredar, formando grandes colunas e enxames, causando destruição por onde passam, razão pela qual são nômades. Fig. 2 - Gênero Labidus Jurine, 1807. 2. a Gênero Labidus Jurine, 1807 Área de Ocorrência: Desde a Argentina até os EUA, em Oklahoma (GOTWALD JR., 1995). Características Gerais: Nidificam o solo, especialmente em cavidades pré-formadas como ninhos abandonados de formigas cortadeiras, muito comuns na área de estudo. GOTWALD JR. (1995) cita também que este gênero forrageia tanto de dia como de noite, alimentando-se de uma grande variedade de artrópodos (insetos e aranhas) e carcassas de animais, e, às vezes, se alimenta de açúcar. Forma de Captura: Isca de chocolate. Fig. 3 - Gênero Neivamyrmex Borgmeier, 1940. 2.b Gênero Neivamyrmex Borgmeier, 1940 Área de Ocorrência: Estende-se à latitude de 40° em ambos os lados do Equador (GOTWALD JR.,1995). Características Gerais: Nidificam no solo e depredam formigas (estágios imaturos de Pheidole, Solenopsis, 81 Crematogaster e Atta), sendo estes gêneros encontrados na Mata 2 juntamente com besouros e aranhas (GOTWALD JR., 1995). pinça. Forma de Captura: Coletados no carreiro com Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3. Subfamília Formicinae Latreille, 1809 Comum em regiões temperadas, com aproximadamente 1400 espécies distribuídas em 50 gêneros. pecíolo unissegmentado, ferrão curto ou orifício anal terminal e circular. Caracteriza-se por apresentar indivíduos com Fig. 4 - Gênero Camponotus Mayr, 1861. 3.a Gênero Camponotus Mayr, 1861 Área de Ocorrência: Desde os trópicos às frias áreas temperadas de globo (TERAYAMA et al, 1995-98). Características Gerais: São formigas campestres e silvestres. A coloração varia entre preta, amarela e marrom. Estas se alimentam de madeira, sendo agentes importantes na aceleração da queda de árvores e troncos ao solo, pois fazem galerias dentro delas, as quais servem de avenidas de entrada para fungos e outros organismos que causam a decomposição e aceleram a desintegração da madeira (BORROR & DeLONG, 1969). Forma de Captura: Com pinças e iscas de chocolate e sardinha. Fig. 5 - Gênero Crematogaster Lund, 1831 a. Fig. 6 - Gênero Crematogaster Lund, 1831 a. 3.b Gênero Crematogaster Lund, 1831 Área de Ocorrência: Cosmopolita. Características Gerais: Trata-se de um dos maiores gêneros da família Formicidae, com aproximadamenRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 te 300 espécies descritas. Nidificam o solo, mas, também, podem nidificar embaixo de pedras, madeira podre e entre raízes de plantas (OGATA & YAMANE, 1995-98). Forma de Captura: Iscas de açúcar. 82 4. Subfamília Myrmicinae Lepeletier de SaintFargeau, 1835 Com aproximadamente 2000 espécies em 140 gêneros, é a maior e mais comum dentro das formigas. A maioria é terrícola com dieta extremamente variada. Os adultos variam de tamanho e as operárias não ferroam. Os ninhos são permanentes e algumas espécies são parasitas sociais. 4.a Gênero Procryptocerus Erney, 1887 b Área de Ocorrência: Região neotropical. Características Gerais: Na Mata 2, os indivíduos desse gênero foram sempre observados sozinhos ou com outro companheiro de ninho. Forma de Captura: Com pinça. 4.b Gênero Solenopsis Westwood, 1840 b Área de Ocorrência: Europa e regiões quentes do Novo Mundo. Características Gerais: São conhecidas pelo nome de “formigas-de-fogo” ou “formigas-lava-pés”. O ninho é feito na terra, localizado nas raízes das árvores (SANTOS, 1985), ou no capim observado nas margens do lago da Mata 2. Forma de Captura: Iscas de açúcar. Fig. 7 - Gênero Zacryptocerus Wheeler, 1911 f. 4.c Gênero Zacryptocerus Wheeler, 1911 f Área de Ocorrência: Região neotropical. Características Gerais: Na Mata 2, este gênero foi observado geralmente sozinho, ou então dois ou três 83 indivíduos juntos. Não se notaram grandes aglomerados e geralmente estão presentes em madeiras podres ou árvores, e, quando molestadas, são lentas em sua fuga. Forma de Captura: Com pinça. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 8 - Gênero Atta Fabricius, 1804. 4.d Gênero Atta Fabricius, 1804 terra depositada ao seu redor. Área de Ocorrência: Todo o continente americano. Características Gerais: As operárias são opacas e de coloração pardo-avermelhadas; quanto menor o seu tamanho, mais intensa é sua coloração vermelha. Seu ninho é constituído no solo e é subterrâneo, possuindo vários olheiros (buracos) facilmente reconhecidos pela As saúvas sobem nas árvores para atingirem as folhas, que são cortadas, levadas ao ninho, onde os pedaços são misturados com líquido fecal para servir de substrato aos fungos dos quais elas se alimentam. Forma de Captura: Com pinça. Fig. 9 - Gênero Pheidole Westwood, 1839. 4.e Gênero Pheidole Westwood, 1839 Área de Ocorrência: Cosmopolita. Características Gerais: Com aproximadamente 300 espécies descritas e provavelmente mais de 1000 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 espécies, trata-se de um dos maiores gêneros da família Formicidae. Nidificam no solo, mas também podem nidificar embaixo de pedras, madeira podre e entre raízes de plantas ( OGATA & YAMANE, 1995-98). Forma de Captura: Iscas de açúcar. 84 5. Subfamília Ponerinae Lepeletier de Saint-Fargeau, 1835 As operárias apresentam ferrão bem desenvol- vido. Algumas espécies podem apresentar depredação em grupo e nomadismo (WILSON, 1978 a) citado por GOTWALD JR. (1995). Geralmente os ninhos são permanentes. Fig. 10 - Gênero Ectatomma Smith, F., 1858 b 5.a Gênero Ectatomma Smith, F., 1858 b Área de Ocorrência: América Central e do Sul, Índias Ocidentais e México tropical. Características Gerais: Também conhecida como “formiga-aguilhoada”, é facilmente identificada pelo seu tipo de escultura do esqueleto. Sua dieta é quase que exclusivamente carnívora (SANTOS, 1985). Forma de Captura: Iscas de sardinha. Fig. 11 - Gênero Pachycondyla Smith,F., 1858 b. 5.b Gênero Pachycondyla Smith,F., 1858 b Área de Ocorrência: Em todas as partes, desde a orla litorânea até a mata (SANTOS, 1985). Características Gerais: Também conhecidas como “formigas-sem-ferrão”, são terrícolas e contêm várias espécies de formigas grandes. São de evidente comba85 tividade, andam sempre em lutas até mesmo com suas irmãs, possivelmente de ninhos diferentes. Têm hábito alimentar carnívoro (SANTOS, 1985) e, na Mata 2, foram observadas forrageando solitariamente sobre o solo e na vegetação baixa dentro da mata. Forma de Captura: Iscas de chocolate. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 6 - Subfamília Pseudomyrmecinae Smith,M.R., 1952 a. São formigas arborícolas com predadores de tamanho pequeno a moderado em relação às outras Fig. 12 - Gênero Pseudomyrmex Lund, 1831 b. 6.a Gênero Pseudomyrmex Lund, 1831 b Área de Ocorrência: Região neotropical. Características: Os olhos são bastante desenvolvidos, alongados em forma de rim. Forma de Captura: Com pinça. CONSIDERAÇÕES FINAIS ⇒ Foram identificados treze gêneros (Azteca, Labidus, Neivamyrmex, Camponotus, Crematogaster, Procryptocerus, Solenopsis, Zacryptocerus, Atta, Pheidole, Ectatomma, Pachycondyla e Pseudomyrmex), pertencentes à mirmecofauna da Mata 2 da Fazenda Santana do Poço – Jacareí – S.P. ⇒ Estes gêneros encontram-se distribuídos em seis subfamílias (Dolichoderinae, Dorylinae, Formicinae, Myrmicinae, Ponerinae e Pseudomyrmecinae). ⇒ As iscas de sardinha parecem atrair rapidamente as formigas carnívoras, por exalar bastante odor. Já para as espécies que se alimentam de substâncias açucaradas, a isca de chocolate foi mais eficiente que a isca de açúcar. ⇒ O éter, apesar de ser um método eficiente para anestesiar e matar as formigas, não é aconselhável, pois os insetos retraem as patas após a morte, dificultando sua posterior montagem. ⇒ A mirmecofauna observada na área apresenta alta diversidade e variações tanto no aspecto morfológico, quanto nos sítios de nidificação e forrageamento. Ao Prof. Dr. J. C. Brandão, do Museu de Zoologia da USP, pelo auxílio na identificação e na confirmação dos gêneros estudados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOLTON, B. Identification Guide to the Ant Genera of the World. Cambridge: Harvard University Press, 1994. 222 pp. BORROR, D. J.; De LONG, D. M. Introdução ao Estudo dos Insetos, São Paulo:EDUSP,1969. 653 p. CARRERA, M. Entomologia para Você. 7ed. São Paulo: Nobel: 1980. 182 p. GOTWALD Jr, W. H. Army Ants – The Biology of Social Predation. [s.l.] Cornell University Press, 1995. 302 p. GOULET, H.; HUBER, J. T. Himenoptera of the World – An Identification Guide to Families. Research Branch Agriculture Canada, 1993. 668 p. (Publication 1894/E) OGATA, K.; YAMANE, S. Japanese Ant Color Image Database, 1995-1998. Disponível em: http://ant.edb. miyakyo-u.ac.jp/INDEXE.HTM SANTOS, E. Os Insetos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. v.2. 243 p. (Coleção Zoologia Brasílica). TERAYAMA, M. et al. 1995 - 1998. Japanese Ant Color Image Database. Disponível em: http://ant.edb. miyakyo-u.ac.jp/INDEXE.HTM AGRADECIMENTOS Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 86 Etnia, Nação e Globalização André Augusto Brandão * Resumo. Este artigo pretende discutir a relação entre o ressurgimento do nacionalismo europeu e a intensificação dos processos de globalização ocorrida na ultima década do século XX. Verificamos que neste processo de reafirmação de nacionalidades, os aspectos vinculados à construção de identidades étnicas têm sido de fundamental importância, apesar da imprecisão na definição de conceitos como etnia e grupo étnico. Para a construção deste artigo tomamos como pano de fundo a chamada crise do Kosovo ocorrida em 1999 na região dos Bálcãs. Palavras-chave: Etnia, globalização, nacionalismo. Abstract. This article discusses the relationship between the new rise of European nationalism and the growing globalization in the late twentieth century. Our findings show that, despite the need for more precision in the definition of the concepts of ethnicity and ethnic group, building of ethnic identities has been fundamental to the process of reaffirming specific nationalities. In order to discuss this hypothesis in this article we examine the so-called Kosovo crises that took place in 1999. Key words: Ethnicity, globalization, nationalism. Que país, com que fundamentação, pode-se afirmar com o direito – reconhecido com quase unanimidade internacional – de atacar o território de outro país soberano? Esta pergunta foi lançada no panorama do planeta desde 24 de março de 1999, dia em que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) iniciou os bombardeios à Iugoslávia no âmbito da chamada crise do Kosovo. Refletir sobre este ponto nos coloca ante à discussão de um tema bastante complexo que invadiu o cenário acadêmico e político no fim do século XX: nação e nacionalismo1. 1. NAÇÃO COMO CONCEITO No primeiro capítulo de seu clássico livro Imagined Communities2 , ANDERSON (1989) pergunta o que possibilitou que, nos últimos 200 anos, milhões de pessoas tenham matado e morrido, voluntariamente, movidos pelo sentido de nação ? Na verdade, o fim do século XX é palco de um retorno do nacionalismo, seja no seio das “velhas nações” consolidadas desde o século XIX, seja naqueles que tive* Professor da ESS-UFF e pesquisador do PENESB-UFF. 87 ram suas fronteiras alternadas ou inicialmente definidas ainda no século XX. De qualquer forma, as noções de matriz liberal ou de matriz marxista, que colocavam o nacionalismo no campo do irracional, e que portanto decretaram sua morte, baseadas no dado inexorável do desenvolvimento, não acertaram em suas previsões. Por quê? É a pergunta que ANDERSON (1989) tenta responder. Para tanto, trabalhou com o pressuposto básico de que a nacionalidade e o nacionalismo são “artefatos culturais” peculiares. Estes artefatos, criados na sociedade ocidental em fins do século XVIII, como produtos de processos históricos, adquiriram uma forma “modular”, ou seja, foram a partir daí transplantados para locais diferentes, adaptados a sociedades diferentes e mesmo a diferentes formações políticas e princípios ideológicos. A nação, por sua vez, é conceituada por ANDERSON (1989) – no âmbito do que chama “espírito antropológico” – como “comunidade imaginada”. Para além da idéia sociológica clássica de “comunidade” como um tipo de organização social onde os indivíduos se conhecem reciprocamente e interagem face a face no cotidiano, as nações são comunidades de sentido e pertencimento ainda que os indivíduos que a compõem possam até mesmo nunca se encontrarem casualmente. Assim, trata-se de uma imaginação acerca de uma fraternidade comunitária que une um grupo, sem considerar as desigualdades entre os indivíduos e as rotas de exploração e dominação que Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 são estabelecidas entre estes. Tais imaginações engendram símbolos e sentidos com os quais os indivíduos podem construir identidades. Assim, se tomarmos esta perspectiva de ANDERSON (1989), não faz sentido perguntar se a nacionalidade Kosovar (por exemplo) é falsa ou verdadeira, pois esta pergunta tem um pressuposto essencialista: a suposição de que pode existir uma essência nacional. Fugindo deste essencialismo, ANDERSON (1989) vai defender a idéia de que as diferenças entre os vários caracteres nacionais estão alocadas na forma como as nações são imaginadas. Os elementos teóricos que ANDERSON (1989) desenvolve por entre um exemplar apanhado de situações históricas são fundamentais para pensarmos o problema aqui proposto, a saber: a interligação entre nação, globalização e etnia na atual ordem internacional, e como esta discussão se expressa no caso da recente guerra do Kosovo. Tomando como referência a Europa Ocidental, ANDERSON (1989) afirma que o início do nacionalismo no século XVIII é paralelo à perda de importância das formas religiosas de pensamento. Isto não significa que o nacionalismo foi um produto da “erosão das certezas religiosas” (ANDERSON, 1989: 20), ou que suplantou historicamente estas, mas sim que o nacionalismo do século XVIII ocidental deve ser compreendido no mesmo patamar dos sistemas culturais que lhe foram anteriores e que eram tomados como quadros de referência para as identidades. ANDERSON (1989) está se referindo às grandes comunidades religiosas que se estenderam por enormes territórios na idade antiga e na idade média (o islã, o budismo e principalmente o cristianismo na Europa Ocidental). Estas “grandes culturas sagradas” se pensavam como o centro do cosmos e se ancoravam no poder da língua sagrada (ou seja, na língua como elemento que carrega a verdade e portanto se encontra situada numa esfera intraduzível e mágica).3 Apesar de todo o seu poder, estas “comunidades imaginadas religiosamente” (ANDERSON, 1989: 24), nos fins da idade moderna, entram numa crise, condicionada por dois elementos: o alargamento cultural e geográfico que a descoberta do novo mundo representa (ampliando as concepções acerca das formas possíveis de vida humana) e o surgimento do “capitalismo editorial” (segundo o autor, uma das primeiras “empresas” capitalistas com bases sólidas de produção na Europa Ocidental). Esta última questão é de grande importância. As grandes “massas monoglotas”, não leitoras do latim, são os alvos do capitalismo editorial a partir do século Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 XVI. No entanto, dada à existência na Europa de uma diversidade gigantesca de dialetos locais, o capitalismo editorial – aproveitando-se da “arbitrariedade do signo” nas línguas vulgares – promoveu a unificação de várias línguas orais em poucas línguas impressas (obviamente dentro dos limites gramaticais e sintáticos das primeiras).4 No nacionalismo europeu, portanto, a noção de que todo povo possui uma formação nacional e uma língua própria é fundamental, pois, segundo ANDERSON (1989), as novas elites letradas precisavam convidar por escrito as massas a aderir aos projetos nacionais e têm de escrever numa língua que as massas entendam.5 A questão da língua é paradigmática para a construção de nacionalismos importantes no século XIX. Como ANDERSON (1989) demonstra, o processo de “russificação” posto em prática em fins do século XIX (após o surgimento dos nacionalismos da Ucrânia e Finlândia) teve como coluna mestra a compulsoriedade da língua russa para o ensino em todos os níveis no âmbito do império.6 O nacionalismo japonês, que também data de fins do século XIX, utiliza uma rota semelhante e trabalha para a alfabetização em massa dos adultos homens. O caminho mais fácil para a construção do nacionalismo japonês deve-se, segundo ANDERSON (1989), à homogeneidade étnica, antigüidade da casa imperial e uma história acumulada de invasões estrangeiras que produziram uma maior propensão à coesão interna. Na “última onda” de nacionalismo apontada por ANDERSON (1989) – que hoje podemos chamar de “penúltima onda” – estão os movimentos de libertação nacional africanos e asiáticos no século XX. Como fator explicativo para estes, ANDERSON (1989) atribui grande importância às elites bilíngües locais, ou seja, aos indivíduos nativos que tiveram acesso, via educação formal, à cultura ocidental e conseqüentemente aos próprios modelos de nacionalismo produzidos no século XIX europeu. Estas “inteligências” terceiro-mundistas portavam, não somente o bilinguísmo, mas também uma cultura híbrida que podia retraduzir os nacionalismos da metrópole para a colônia. É importante lembrar que os movimentos de libertação nacional do século XX foram feitos principalmente nas línguas metropolitanas, como afirma: “Se o radical moçambique fala português, o que isto significa é que o português é o meio pelo qual Moçambique é imaginado.” (ANDERSON, 1989: 146). Enfim, ANDERSON (1989) conclui que o “anjo da história” está solto e portanto o nacionalismo pode ter a qualquer momento seu revival (fazendo uma alusão a Weber, podemos nos arriscar a afirmar que o espírito 88 do nacionalismo fugiu da gaiola da racionalidade modernizante). Embora clássico, ANDERSON (1989) não é o único a fazer uma discussão de peso sobre a conceituação e a história da nação. BHABHA (1990 e 1998) afirma a nação como “narração”. Numa interessante alegoria BHABHA afirma: “Nations, like narratives, lose their origins in the myths of time and only fully realize their horizons in the mind’s eye.” (BHABHA, 1990 : 1). BHABHA (1998) faz uma longa discussão acerca da nacionalidade como “construção cultural” e, mais do que isto, como um formato possível para a pertença social e também textual. Isto pressupõe estratégias discursivas de “identidade cultural”. Em última instância os indivíduos, transformados em “povo”, tornam-se os objetos das narrativas de caráter literário ou de caráter social e cotidiano. Assim, a nação é somente parte da metáfora da coesão social moderna (“muitos como um”) que, em alguns momentos teóricos, também vão tomar o gênero, a classe e a raça, como “... totalidades sociais que expressam experiências coletivas” (BHABHA, 1998 : 203). A idéia de nação como narração propõe uma destruição radical de qualquer perspectiva essencialista, quando afirma que o processo de construção significante da identidade cultural nacional é performativo. Esta mesma discussão aparece em HALL (1999). Este autor afirma que as culturas nacionais, objetos tomados para se pensar a existência das nações, são, de um lado, produto de instituições culturais, e, de outro, produto de símbolos e representações que constroem identidades. O cenário performático da cultura nacional é descrito por HALL (1999) como os momentos onde a “narrativa da nação” é contada e sistematicamente repetida na história, na literatura, na mídia em geral e na cultura popular. “Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação.” (HALL, 1999: 52). HALL (1999) chama a atenção para o caráter essencialista do nacionalismo que representa a identidade nacional como um dado primordial, não modificável historicamente; algo que pode ressurgir a qualquer momento. A essência da nação estaria presente desde sua origem que teria se dado em um passado distante, o tempo do mito “fundacional”. Trata-se aqui do que HALL (1999: 89 62) chama de “um dispositivo que representa a diferença como unidade ou identidade”, que procura, via a idéia de identidade nacional, uma unificação impossível, não somente das diferenças, mas também das divisões e contradições internas e dos jogos de poder cotidianos. Mais recentemente CASTELS (1999)7 empreendeu uma interessante crítica à ANDERSON (1989) sem, em nossa opinião, sair dos quadros teóricos abertos por este. Haveria, segundo CASTELS (1999), um caráter “óbvio” na idéia de “comunidade imaginada” quando esta propõe que os sentimentos nacionais são construções da esfera da cultura. Para além disto não haveria uma homologia entre Nação e Estado; o que pode ser verificado historicamente no fato de que existem movimentos nacionalistas que perduram por intervalos de tempo maiores ou menores, conservando identidades culturais e territoriais rígidas, apesar de não terem viabilizado a construção de Estados (por exemplo, a Palestina e o Curdistão). Uma crítica importante feita por CASTELS (1999) diz respeito à idéia defendida por ANDERSON (1989) do nacionalismo enquanto plágio. Ou seja, afirmar que os movimentos nacionalistas de descolonização da Ásia e da África, ocorridos no século XX, copiaram o modelo de nacionalismo e de projeto de Estado-Nação ocidental cujo ponto culminante foi o século XIX, implica o uso de um eurocentrismo exacerbado, que pretende interpretar as realidades coloniais, através dos quadros de pensamento das sociedades ocidentais. A importância desta crítica se encontra, segundo nossa avaliação, em dois elementos básicos. Por um lado, a enorme gama de atuais países pós-coloniais que emergiu neste século não pode ser homogeneizada como portadora de movimentos de independência ligados ao mesmo “modelo original”; por outro lado, esta afirmação esquece as necessárias traduções que se impõem a partir da constatação muito simples da existência de histórias absolutamente díspares entre as sociedades de terceiro-mundo e as sociedades dos países de capitalismo avançado. Outro ponto de discordância com ANDERSON (1898) aparece quando CASTELS (1999) explicita que os movimentos nacionalistas não são a priori movimentos das elites. Ou seja, o nacionalismo, por ser da esfera da cultura, pode ter uma utilização política. A rigor, porém, “constituem trincheiras defensivas de identidade e não plataformas de lançamento de soberania política” (CASTELS, 1999: 47). Se tomarmos, porém, a proposta para o conceito de nação feita por CASTELS (1999), veremos que esta não se afasta do caminho aberto em Imagined communities: Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 “... definirei nações, ..., como comunidades culturais construídas nas mentes e memória coletiva das pessoas por meio de uma história e de projetos políticos compartilhados.” (CASTELS, 1999: 69). Tais “comunidades culturais”, como já afirmamos, podem ou não constituir Estados. Assim, há casos de Nações sem Estado (já exemplificado acima), Estados sem Nação (África do Sul, por exemplo), Estados plurinacionais (como a Espanha e o Reino Unido), Estados uninacionais (como o Japão), Estados que compartilham uma só Nação (o exemplo clássico é o da Coréia do Norte e da Coréia do Sul e as extintas Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental), e, por último, Nações que compartilham um mesmo Estado (o que está acontecendo na Bósnia-Herzegovina, ou seja, a configuração de um Estado contendo três nações: a dos sérvios, a dos croatas e a dos bósnios). Neste sentido, longe de uma inequívoca relação entre nacionalismo e Estado-Nação, ou da noção de nacionalidade como construção maquiavélica das elites, CASTELS (1999) lança mão do exemplo histórico da dissolução da URSS para demonstrar que a grande potência do movimento contra o Estado soviético veio dos movimentos nacionalistas e principalmente do nacionalismo russo (portanto de uma República absolutamente dominante no jogo de poder soviético).8 A destruição da URSS, e logo depois da Comunidade dos Estados Independentes, seria assim um exemplo claro da longa duração das nacionalidades à medida que estas repousam sobre uma história que não pára de emitir significados culturais. E após a derrocada do monólito soviético, o vácuo de poder e de ideologias foi com ênfase ainda maior tomado “pela única fonte de identidade mantida na memória coletiva: a identidade nacional” (CASTELS, 1999: 58). Se as elites locais utilizaram o sentimento nacional para construir nichos de poder próprios, o fizeram porque estes sentimentos tinham, naquele momento histórico, um potencial de mobilização e referência muito maior que as propostas de mercado e democracia. A idéia da nação soviética (ou a forma com esta foi “imaginada”) compreendia duas identidades nacionais paralelas; primeiro, as identidades das etnias existentes nas repúblicas soviéticas e na Federação Russa e, em segundo lugar, a identidade soviética ancorada em princípios político-ideológicos sobre os quais se erguia um Estado forte e aparentemente sólido. Após mais de sete décadas de operação, a segunda identidade nacional se esfacelou num breve pneuma da história, e as primeiras estavam prontas para afirmar o que CASTELS (1999: 58) definiu como a “... capacidade de as nações perduRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 rarem em relação ao Estado, e de se manterem apesar da existência deste.” Feita esta introdutória discussão acerca de alguns quadros teóricos que problematizam o ambíguo “conceito” de nação, vamos retornar ao caso paradigmático do separatismo nos Bálcãs. 2. O NACIONALISMO NO FIM DE SÉCULO XX Comecemos com um breve histórico que pode nos ajudar a compreender a Iugoslávia, como, por um lado, um Estado plurinacional, e, por outro lado, como um Estado que vem sendo palco de crises violentas exatamente por não reconhecer esta pluralidade. O reino dos sérvios, croatas e eslovenos, formado com o fim da Primeira Guerra Mundial, já reúne línguas e etnias diferentes. O que hoje constitui o problemático Kosovo já pertencia a este reino. A longa duração neste caso histórico remete ao século VII, quando os primeiros sérvios chegam ao Kosovo. É no Kosovo que os sérvios fundam seu primeiro Estado Nacional, em 1170, e a Igreja Cristã Sérvia se autonomiza do catolicismo e se faz “ortodoxa” no ano de 1219. É ainda no Kosovo que se desenrolam as sangrentas batalhas entre os sérvios com seu cristianismo de um lado e os turcos muçulmanos do outro. A batalha perdida pelos sérvios em 1389, no Kosovo, dá início a mais de quatro séculos de uma dominação turca que procura esfacelar um Estado Nacional que ainda não havia completado 300 anos. Em 1929 o reino dos sérvios, croatas e eslovenos ganha o status de país. Forma-se, então, a Iugoslávia, precariamente dividida em regiões, sem que houvesse qualquer problematização maior das questões étnicas. Invadida pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia é palco de cisões internas. Grupos nazistas croatas participam ativamente da matança de judeus, muçulmanos e sérvios. Desta história tensa emerge a Iugoslávia do pós-45 como uma República Federativa composta pela Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia Herzegovina, Montenegro e Macedônia. A direção política era socialista, centralizadora e de partido único, de 1945 até o colapso de fins dos anos 1980. Na República Federativa convivem cristãos católicos, cristãos ortodoxos e muçulmanos. São faladas várias línguas: o albanês, o servo-croata, o esloveno e o macedônio, o húngaro (oriundo de uma significativa minoria situada na Voivodina) e mesmo a língua italiana, falada por uma minoria menos significativa numericamente que habita regiões na Ístria e Dalmácia. 90 Neste palco complexo e belicoso de ódios cruzados explode uma seqüência de conflitos. RENAN (1990)9 , nos quadros de uma postura antiessencialista que recusa qualquer critério de pertencimento nacional objetivo, toma a nação como sendo formada por uma seqüência histórica de fatos em maior ou menor medida aleatórios, de conquistas bélicas e de divisões territoriais casuístas. Segundo RENAN (1990), neste processo de construção da nação, os indivíduos, não somente devem ter algo em comum, mas, fundamentalmente, devem esquecer o passado. Isto significa esquecer as lutas, os massacres, os genocídios e a supressão forçada das diferenças culturais, que representam o domínio final de um grupo (que para Renan seria étnico) que terá o poder de nomear a nação. As várias etnias que habitavam o território da Iugoslávia até o colapso dos regimes comunistas no Leste Europeu parecem não ter esquecido este passado, apesar de mais de 40 anos de “unificação” conduzida por um regime ditatorial forte. A imagem de Slobodan Milosevic, em 1989, discursando para milhares de sérvios no local pretensamente exato onde, 600 anos antes, foi travada a batalha do Kosovo, numa comemoração que significou de fato a campanha pela reconstrução da chamada “Grande Sérvia”, é um marco deste não-esquecimento. Em pequeno artigo contemporâneo do conflito na Bósnia, FUKUYAMA (1994) afirma que os sérvios, croatas e bósnios se parecem entre si (seja no que tange a costumes, cultura política e memória histórica) mais do que com qualquer outro grupo no mundo. Concordemos ou não com esta afirmação – que de resto soa muito pouco profunda ao nível das possibilidades analíticas que podem fornecer – o fato é que os conflitos nos Bálcãs, iniciados em 1991, foram logo tratados pela mídia internacional como disputas étnicas que motivavam movimentos separatistas. Etnia, porém, é um conceito com várias faces e possibilidades de uso. Escrevendo sobre a Bósnia, MALCON (1995), numa interessante simplificação, afirma que os bósnios sempre foram somente eslavos que habitavam a região da Bósnia. À medida que a definição de “eslavos” é absolutamente ambígua, MALCON (1995) conclui que os bósnios sob hipótese alguma poderiam ser considerados um grupo étnico. Na pequena história narrada pelo autor, os sérvios e croatas, falantes da mesma língua, desde a antigüidade se representavam de forma distinta, porém viviam interligados principalmente nos momentos de migração. No início da idade média chegam à região que hoje constitui a Bósnia e encontram uma ampla população eslava já estabelecida, resultado de miscigenações variadas entre povos diferenciados que viveram em partes dispersas do Império Romano e 91 foram expulsos pelas invasões dos chamados “bárbaros”. Se os bósnios não constituem um grupo étnico, os sérvios constituem ? Mas o que é um grupo étnico ? Vamos começar com um clássico do pensamento sociológico. WEBER (1997), em seu Economia y sociedad, caracteriza o grupo étnico como formado por uma matriz subjetiva de crença em uma origem comum. Esta origem pode ser representada pelo grupo em seus costumes, nas semelhanças físicas, ou mesmo em lembranças coletivas de migrações e processos de colonização. Por sua vez, a raça, para WEBER (1997), somente tem peso do ponto de vista sociológico quando é tomada como explicação para o comportamento dos indivíduos, ou seja, quando ela é sentida de forma subjetiva e passa a gerar sentidos para ações do grupo social. Como podemos perceber, a perspectiva weberiana não aceita o absolutismo étnico. Assim, diferenças nos costumes de um grupo em relação aos outros pode ser mais eficaz na produção de sentimentos de etnia do que diferenças físicas. Mais importante do que isto, é o fato de WEBER (1997) já afirmar que a etnia nada mais é do que uma crença subjetiva dos indivíduos acerca do fato de formarem uma comunidade. Esta crença pode fabricar “memórias” inexistentes e tomar como homogêneos costumes diferenciados. Não é a propriedade de traços físicos, a história comum ou a cultura que estão na base da etnicidade, mas sim as ações de produção e manutenção destas diferenças que proporcionam as separações entre os grupos e que formam a comunidade política. Em interessante trabalho que se propõe a fazer um balanço do conceito de etnia na literatura acadêmica produzida pelas ciências sociais anglo-americanas, POUTIGNAT & STREIFF-FENART (1997) afirmam que o primeiro uso aparece nos anos 1940. Nestas produções iniciais, o conceito de etnia é utilizado para fazer referência a outras sociedades que não a anglo-americana e para, assim, demarcar efeitos sobre padrões comportamentais destes outros. Os autores afirmam que este uso inicial tem relação com a etimologia do termo, pois “ethnikos” era a forma usada pelos gregos para se referir aos povos não-organizados sobre o princípio da cidade-estado. O conceito sofre enormes modificações no âmbito da história das ciências sociais desde então. No entanto, os autores se dedicam com maior ênfase às propostas de Fredrik Barth10 . Para este, a etnicidade diz respeito a um permanente processo de diferenciação entre insiders e outsiders, que obtêm validade através das interações sociais. A existência e a reprodução do grupo étnico passariam necessariamente pela manutenção de suas fronRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 teiras, ou seja, passariam pela produção e manutenção das distinções como articuladas a diferenças culturais dos grupos. Como afirmam os autores: “É precisamente na identificação de determinados traços culturais como marca de sentido de um grupo que reside o trabalho de manutenção das fronteiras sobre o qual repousa a organização social dos grupos étnicos.” (POUTIGNAT & STREIFFFENART, 1997: 132). A perspectiva proposta por Barth, portanto, afirma que os valores culturais são usados para justificar ou recusar o caráter de pertencimento de um “outro”. Neste caminho, as diferenças culturais não têm sentido para além do quadro de relações sociais onde estão organizadas de forma dicotômica. A etnicidade como um formato específico de organização social é então o ponto a que chega Barth. Aqui também vemos expurgado todo o essencialismo, pois a classificação que tem por base a etnicidade é feita a partir de elementos supostos, que, de fato, somente existem nas interações, quando estas promovem a “ativação de signos culturais socialmente diferenciadores” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1997: 141). Ou seja, não haveria uma definição essencial dos grupos étnicos, à medida que estes surgem da diferenciação cultural feita por grupos em interação. Neste sentido, o conceito de etnia se torna suficientemente amplo para possibilitar a leitura de fenômenos históricos tão distintos quanto o conflito pela língua oficial nas regiões canadenses, o conflito entre palestinos e judeus e as lutas entre sérvios e bósnios ou entre sérvios e kosovares. Segundo POUTIGNAT & STREIFF-FENART (1997), encontraríamos este essencialismo em Geertz11 , manifesto na afirmação de “ligações primordiais” que produzem um “sentimento de afinidade”, prévio às interações sociais dos indivíduos organizados em grupos, e que são tomados como “naturais”. Tais afinidades podem ter várias origens: religião, local, língua comum, costume, fenótipo e outros. Sobre estes dados primordiais é que se constrói, portanto, o dado cultural, que propicia a afinidade. O ponto interessante, que coloca esta abordagem de Geertz no pólo oposto a Barth, está em que a “... qualidade primordial da etnicidade torna-se uma propriedade essencial transmitida no e pelo grupo, independentemente das relações com os out-groups. A implicação do caráter fundamental e a priori atribuído aos vínculos étnicos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 é que tanto as relações intra como as interétnicas só podem ser entendidas em referência a alguma coisa que se deu antes da interação.” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1997: 90-91). No caso dos Bálcãs haveria este conjunto de dados primordiais ? Ou mais especificamente, ainda que estes estejam presentes, continuam portando o sentido que explica as identidades ? CASTELS (1999) se refere a este campo de discussões. Para este, a etnia nas sociedades contemporâneas constitui tanto uma “estrutura primária” de identificação quanto de discriminação. No entanto, apesar de sua importância, tem sido tomada como uma base de identidades integradas com outros princípios mais abrangentes, tais como religião e nação. O argumento básico de CASTELS (1999) consiste em que, na sociedade do fim do século XX, uma sociedade definida pelo autor como marcada pelos fluxos e redes sócio-econômicas, os vínculos primários que são o campo da etnia perdem o sentido. Disto resulta que a etnia fica como um elemento acessório, “processada pela religião, pela nação e pelo território, cuja especificidade tende a reforçar” (CASTELS, 1999). Acreditamos que a problematização feita por este autor aponta para a forma diferenciada de manifestação do fenômeno étnico na modernidade tardia, se comparada às formas anteriores pensadas pelos demais autores citados; além disto, a afirmação de uma redutibilidade atual da etnia às demais identidades se insere numa aproximação teórica que, ao levantar a questão da política de identidade e das identidades híbridas que emanam desta, nos ajuda em muito a entender as crises violentas ocorridas nos Bálcãs nesta década. Retomando ao problema dos Bálcãs, em 1991, primeiro a Eslovênia, a Croácia e, logo em seguida, a Macedônia se proclamam independentes da Iugoslávia e buscam tornar-se países independentes. Em 1992 a Bósnia Herzegovina também proclama independência após a realização de um plebiscito. Apesar da reação inicial da Sérvia no sentido de atacar as duas primeiras em nome da manutenção da Iugoslávia, a Eslovênia, que possui uma população muito homogênea do ponto de vista étnico, consegue rechaçar os sérvios com rapidez e evitar um conflito mais duradouro. A Croácia, com uma população formada por aproximadamente 12% de sérvios, tem maiores problemas, mas acaba por conseguir sua independência. A Macedônia repete o caso esloveno (sem maiores conflitos após a decretação da independência – devido também a uma homogeneidade étnica).12 92 Na Bósnia, porém, a situação é mais complexa, pois uma população de apenas 3,2 milhões de habitantes possui 44% de muçulmanos, 31% de sérvios e 17% de croatas. Esta divisão, que confunde religião e etnia (corroborando as perspectivas apontadas por CASTELS – 1999), será o motor de um conflito de grandes proporções. A Bósnia é, portanto, o palco para o ressurgimento de rancores históricos que remontam a um passado recente: a Segunda Guerra Mundial. Durante esta, os croatas apoiaram os nazistas e cometeram atrocidades contra sérvios e muçulmanos. Os sérvios, por sua vez, formaram uma guerrilha que lutou contra os croatas, braço local do exército alemão. No movimento de relembrar os traumas do passado (mais uma vez podemos afirmar que o requisito de esquecimento, proposto por RENAN – 1990, não se tornou realidade na Iugoslávia) os nacionalismos se acirram. A Sérvia, que já vivera momentos de potência européia e que possui uma proximidade cultural com a Rússia, reedita o projeto da “Grande Sérvia”, que englobaria quase toda a Bósnia e parte da Croácia.13 Os croatas, culturalmente mais próximos da Europa Ocidental, também reivindicam parte da Bósnia. Na guerra civil deflagrada, as minorias sérvias e croatas contam com apoio substantivo de seus respectivos países. Em face do nacionalismo mais exacerbado dos sérvios, que põem em prática a noção de chacina étnica (destruição civil da população inimiga, para consecução de uma maioria étnica), os croatas e muçulmanos alternam períodos de aliança militar contra os sérvios com períodos de combates entre si até que finalmente se unem em 1994. Em 1996 é implementado um plano de paz promovido pelos EUA. A Bósnia é dividida em áreas autônomas sob um governo colegiado entre as três partes. Ainda neste ano a Bósnia elegeu o primeiro presidente deste colegiado, um muçulmano. Da República Federativa fundada em 1945 sobram Sérvia, Montenegro e Kosovo. A crise do Kosovo não é recente, se inicia na mesma época dos conflitos que resultaram nos processos de independência de 1991 e 1995. Prevendo as motivações separacionistas que poderiam resultar de uma população majoritariamente muçulmana de etnia albanesa, estimulada pelos acontecimentos em curso, o governo da Sérvia, em 1989, cancela a autonomia administrativa e cultural do Kosovo (que datava de 1974), chegando ao requinte de proibir a utilização da língua albanesa. Este último ponto tem importância especial, pois a questão da língua ocupa lugar de destaque na explica93 ção das identidades nacionais. CASTELS (1999) afirma enfaticamente que esta “... constitui um atributo fundamental de auto-reconhecimento, bem como de estabelecimento de uma fronteira nacional invisível em moldes menos arbitrários que os da territorialidade, e menos exclusivos que os da etnia.” (CASTELL, 1999: 70). ANDERSON (1989) também discute em sua obra a questão da língua. Afirma que uma das noções chaves para o nacionalismo é a associação entre “povo” e língua. Neste sentido, nos processos de imposição do “nacionalismo oficial”, a repressão a línguas ou dialetos locais e a imposição de uma “língua nacional” (exatamente como no caso do Kosovo) é um modelo recorrentemente utilizado (o que o autor chama de processo de “russificação”). Por outro lado, ANDERSON (1989) destrói qualquer idéia essencialista de vinculação entre nação e língua ao lembrar (como já afirmamos acima) os movimentos nacionalistas do século XX, que, em meio a processos de descolonização pela via dos movimentos de libertação, na maioria dos casos utilizaram a língua do colonizador. Retomando à tensão resultante do cerceamento político-cultural, podemos constatar que este se traduziu em dois movimentos: a) no desejo de separação da Iugoslávia que foi manifestado em plebiscito realizado em 1991, no qual a ampla maioria votou a favor da independência, e b) na criação do “Exército de Libertação do Kosovo” (ELK), em 1987, que significou uma radicalização com uso da violência física das intenções nacionalistas locais. Os combates entre o exército de libertação do Kosovo e o exército iugoslavo aumentam de freqüência e intensidade em 1998. O Kosovo não apresentava a mesma capacidade econômica que a Eslovênia e a Croácia possuíam para manter por determinado período um conflito aberto com a Sérvia (que herdou a quase totalidade das forças militares da antiga Iugoslávia). No entanto, Slobodan Milosevic tentou dizimar militarmente o exército de libertação do Kosovo antes que o conflito ganhasse maiores repercussões internacionais. Nesta tentativa, o exército sérvio iniciou uma campanha de terror dirigida às aldeias dos Kosovares de origem albanesas, com expulsão em massa de população. Estas ações são justificadas pela Sérvia como forma de erradicar as resistências das bases guerrilheiras. A comunidade internacional intervém no conflito através de meios diplomáticos e propõe o Tratado de Rambouilet que prevê a “autonomia administrativa e cultural do Kosovo”, juntamente com a alocação de tropas da OTAN para garantir a paz. O governo de Milosevic Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 não aceita os termos do Tratado, alegando que o termo desrespeita a soberania iugoslava e abre o caminho para a independência irrestrita do Kosovo. O impasse criado é o prelúdio da guerra aérea iniciada em março de 1999. Com o objetivo de esvaziar o movimento separatista e as próprias bases do ELK, o governo iugoslavo inicia um processo já utilizado na guerra da Bósnia, a chamada “limpeza étnica”, ou seja, a expulsão em massa dos kosovares de origem albanesa (cerca de 90% da população local) para tornar os sérvios a maioria étnica no Kosovo. Aqui a OTAN entra em cena. Contrapondo-se às práticas do exército iugoslavo e à política de Milosevic para o Kosovo, a OTAN impõe condições e ameaça atacar. As exigências da OTAN são objetivas: fim da violência contra os kosovares de etnia albanesa, saída das tropas iugoslavas do Kosovo, possibilidade de retorno dos refugiados de guerra, assinatura do já rejeitado Tratado de Rambouilet e entrada de uma força internacional de paz. Como é bastante visível, a OTAN não propugna em nenhum momento a independência do Kosovo, à medida que este fato incentivaria outros movimentos de independência na Europa (inclusive entre os países membros da organização). Milosevic não cede; a guerra tem início. Em texto publicado pelo jornal Folha de São Paulo em 25/4/1999, o próprio presidente norte-americano, Bill Clinton, explica porque a OTAN atacou. Nesta versão norte-americana, a OTAN está bombardeando a Iugoslávia para: “Fortalecer as bases de uma Europa que seja cada vez mais integrada, democrática, próspera e pacífica. (...) Não podíamos ficar de lado, deixando a história relegar os kosovares de origem albanesa ao esquecimento.” (CLINTON, Folha de São Paulo, 25/4/1999). Ao lado da alegação humanitária, Clinton não esconde o interesse geopolítico ao afirmar que a OTAN precisou intervir antes que o conflito pudesse se aprofundar e difundir discórdias étnicas que seriam ameaças à estabilidade da Europa. Um novo desenho das fronteiras da Iugoslávia não é objetivo da OTAN segundo o artigo de Clinton; a maioria étnica do Kosovo deve se contentar com a autonomia, sem abandonar a federação.14 Enfim, a OTAN teria agido para: Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 “... dar suporte ao aprofundamento da democracia e da tolerância e à integração étnica e religiosa entre as nações ...” (CLINTON, Folha de São Paulo, 25/4/1999). Razões humanitárias e estratégicas são também as justificativas para a intervenção da OTAN nas palavras de T. Pickering, Subsecretário de Estado para Assuntos de Política dos EUA, em texto transcrito pelo jornal Folha de São Paulo de 9/5/1999. Segundo este, à medida que o sudeste da Europa consiste num problema estratégico não resolvido, a ação militar da OTAN estaria protegendo os kosovares e ao mesmo tempo protegendo as “democracias européias”. Mais precisamente, a segurança da Europa, nos dias atuais, somente será completa quando o sudeste do continente estiver estável e pacificado. Derivam desta necessidade as exigências tão pontuais e incisivas feitas pelos países que compõem a OTAN: “forças sérvias fora, força de segurança internacional dentro, refugiados de volta, autogoverno sem independência.” Parece emanar das afirmações de Clinton e Pickering que a OTAN representa a reserva ética e racional do mundo globalizado. Esta normatização internacional pode, portanto, ser conduzida pelos meios que forem necessários, inclusive, como vimos, através da força. A idéia weberiana de monopólio legítimo do uso da violência passa, assim, da esfera do Estado Nacional para uma entidade internacional que se auto-intitula veladamente de polícia do mundo; uma polícia que agiria na defesa dos homens, da democracia, da ética e da razão. Esta perspectiva foi reforçada nas discussões realizadas na Cúpula da OTAN que comemorou, no mês de abril de 1999, os cinqüenta anos da organização. Tratava-se nesta reunião de fazer definições que viabilizassem a incorporação da crise do Kosovo no rol de possibilidades legítimas de ação da organização. Assim, ficou acertado que além do objetivo principal da OTAN (que foi inclusive o determinante de sua fundação em meio à Guerra Fria), que consiste na defesa de qualquer país filiado que vier a ser atacado por um país não filiado, a organização deve também atuar fora das fronteiras dos países membros, no sentido de debelar crises de caráter geográfico, regional ou global. Mas quem arbitra as questões? Quem julga a necessidade da ação militar? Quem autoriza a polícia do mundo a usar a força? Para estas questões a Cúpula não ofereceu respostas à medida que não ficou definida a função do Conselho de Segurança da ONU como anterior às ações da OTAN. É bastante óbvio que a autorização para o ataque 94 a Iugoslávia não foi solicitada ao Conselho de Segurança porque seria vetada pela Rússia e pela China. Assim, numa atitude claramente casuísta, o ataque prescindiu de qualquer julgamento internacional. A OTAN passou a ser polícia e juiz ao mesmo tempo: julga e pune. Tudo isto nos leva a perceber uma fragilização da ONU15 . Como lembra Noam Chomski, em interessante artigo (publicado na Folha de São Paulo, edição de 25/4/1999), os cânones da Legislação Internacional, amplamente conhecidos e definidos em Resoluções da ONU e nas decisões da Corte Internacional de Justiça, afirmam que a utilização ou mesmo as ameaças de utilização do uso de força militar, por qualquer país ou organização internacional de países, somente pode ser feita com autorização do Conselho de Segurança, após este constatar a falência dos meios diplomáticos para resolução da crise em questão. Resta perguntar quem pode punir a OTAN pelo desrespeito às regras internacionais? A resposta é simples. Na verdade, os EUA comandam sem muitos problemas as ações da OTAN desde sua criação no âmbito da Guerra Fria. Na ordem mundial “unipolar” que se estabelece com a crise das economias socialistas, este país ganha o lugar de agente hegemônico do sistema global, aquele “cujos interesses prevalecem na competição pelos recursos globais” (SKLAIR, 1995 : 19). A hegemonia econômica e militar da superpotência norte-americana se traduz em arbitrariedade internacional sempre revestida pelos mais nobres valores humanos e políticos. Como lembra Noam Chomski no artigo citado acima: O Ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Robin Cook, explica com retórica literária a motivação humanitária no caso Kosovo: “A Europa moderna foi fundada sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Nós estudamos o que restava de nosso continente. Vimos os campos de extermínio, os corpos empilhados, a massa patética de sobreviventes. E prometemos nunca mais repetir essas atrocidades. Nas últimas semanas, porém, voltamos a testemunhar deportações em trens, milhares de refugiados morrendo de fome em abrigos esquálidos, centenas de milhares de pessoas expulsas de seus lares, desprovidas de seus documentos por nenhum outro motivo que não sua identidade étnica. O que se fez a eles é um golpe contra o coração da Europa. Não podíamos ignorá-lo.” (COOK, Folha de São Paulo, 9/5/1999). “Agora que os pretextos da Guerra Fria perderam sua eficácia, é provável que o direito de ‘intervenção humanitária’ seja evocado com freqüência cada vez maior nos próximos anos.” (CHOMSKI, Folha de São Paulo, 25/4/1999). O povo curdo espera da OTAN a mesma compreensão humanitária, pelo fato de vir sendo historicamente massacrado pela Turquia (país membro da OTAN), pelo Irã e pelo Iraque. Na Turquia, inclusive, já foram mortas no conflito cerca de 29.000 pessoas e são freqüentes os fluxos de refugiados. Na chamada perspectiva “étnica”, os curdos constituem a quarta maior nacionalidade do Oriente Médio (com aproximadamente 25 milhões de pessoas), reivindicam uma área de 530.000 km2, por eles denominada Curdistão, que se espalha pela Turquia, Iraque, Irã, Síria, Azerbaijão e Armênia. A repressão maior aos curdos parte dos três primeiros países, e se faz pelas vias militares mais cruéis do ponto de vista ético e humano, a exemplo das práticas do exército iugoslavo no caso Kosovo. Onde está a OTAN? Assistimos, portanto, a uma interessante modificação política e estratégica à medida que o ponto central da ordem internacional deixa de ser a ONU, e passa a ser reivindicado pela OTAN. Ou seja, assistimos o predomínio universal da superpotência americana que não se permite mais qualquer tipo de regulação, controle ou critério internacional, mesmo no que tange ao uso da força militar.16 O caso da Tchetchênia é mais um exemplo do “humanitarismo” seletivo da OTAN. Em setembro de 1999 a Rússia iniciou uma sistemática atuação militar no sentido de destruir os chamados “grupos rebeldes muçulmanos” que foram os elementos de mobilização na guerra que se verificou entre 1994 e 1996, e ao final da qual a Tchetchênia não se tornou independente, mas ganhou o status de República autônoma da Federação Russa. Acreditamos que o alegado precedente humanitário deve sempre ser discutido e avaliado, sendo inclusive passível de legitimidade. No entanto, é preciso relativizar este “humanitarismo” da OTAN, quando sabemos que a organização não atuou em inúmeros casos de massacre e repressão de minorias étnicas e movimentos separatistas ao redor do mundo. Como o Kosovo, a Tchetchênia é parte do território russo; como no Kosovo a população tchetchena é predominantemente muçulmana; como no Kosovo, onde a etnia albanesa era predominante em relação a uma pequena população sérvia, na Tchetchênia a “etnia tchetchena” predomina sobre pequena população de “etnia russa” e de “etnia igutchétia”. 95 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 A Rússia ataca alegando que a Tchetchênia dá abrigo e apoio aos separatistas muçulmanos do vizinho Daguestão (outra República da Federação) que realizaram atentados terroristas na República Russa no mês de agosto de 1999. A ofensiva pretende, portanto, destruir os grupos separatistas islâmicos das duas repúblicas, que possuem uma mesma liderança militar.17 Como resultado desta ofensiva, entre setembro e novembro de 1999, já existiam cerca de 200.000 refugiados tchetchenos, que se dirigiram para a Igutchétia. O exército russo vem destruindo à distância, através de bombardeios de artilharia pesada, vilarejos e bairros das principais cidades da República, pondo em fuga a população que não está envolvida nos movimentos separatistas. Além dos refugiados, há um grande número de mortes entre a população civil. Onde está a OTAN? O “humanitarismo” é portanto seletivo e “casuísta”. Em verdade, a OTAN atua onde os EUA e os países dominantes na Europa possuem interesses estratégicos e onde tal atuação, após um cálculo custo-benefício preciso, se faz rentável (política ou economicamente). Temos aqui, também, colocada a noção popularizada pela política externa norte-americana pós-Reagan, acerca da separação entre “governos responsáveis” - de “sociedades abertas e governos democráticos” - e “governos não-responsáveis” - “de sociedades fechadas e governos autoritários” - (GEIGER, 1997). Se levarmos esta perspectiva às últimas conseqüências, o massacre étnico dos kosovares de origem albanesa promovido pela Iugoslávia seria não-responsável, enquanto o massacre étnico dos curdos promovido pela Turquia seria responsável. Por outro lado, uma intervenção militar em território russo nem entra em questão (seja a Rússia “aberta” ou “fechada”, “responsável” ou não). Outra questão importante pode ser localizada na forma através da qual a OTAN conduziu a guerra contra a Iugoslávia. Ante as razões humanitárias, que são expressas nos textos citados acima, devemos acreditar que os kosovares de etnia albanesa representavam, em meio à crise, a própria segurança da humanidade. Proteger os kosovares significava proteger a humanidade, ali representada, de discriminações e atrocidades; significava em última instância proteger a vida humana. No entanto, a OTAN, através de sua potência preponderante, definiu os termos desta guerra: ataque aéreo, a partir de grandes altitudes, para não pôr em risco a vida dos militares norte-americanos e europeus do ocidente. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Curiosa defesa da humanidade! Por um lado, a proteção aos kosovares não foi obtida durante a realização dos bombardeios e, neste período, os “representantes da humanidade” continuaram à disposição de seus algozes no devir da “limpeza étnica”. O que pode ser confirmado a partir de informações do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ANCUR). Antes do início dos bombardeios da OTAN, contabilizava-se um total de 70.000 refugiados Kosovares. Em meados de abril de 1999, o número de refugiados já chegava a 710.000, divididos entre Albânia, Macedônia e Montenegro (Folha de São Paulo, 25/4/1999). Por outro lado, a definição pela OTAN do modus operandi do ataque a Iugoslávia é ela mesma exemplo claro do preconceito e da discriminação mais arraigados no mundo globalizado. O militar da OTAN escolhe seu alvo sobrevoando a Iugoslávia, de grandes altitudes, está sujeito a cometer erros (e estes efetivamente foram muitos na breve história desta guerra), que podem significar a morte de vários indivíduos não militares, cidadãos sérvios e mesmo (com relativa freqüência) kosovares de etnia albanesa.18 Parece óbvio que do ponto de vista da OTAN, a vida de um único e individualizado militar que lança a bomba tem muito maior valor que a vida dos muitos civis, de etnia sérvia ou albanesa que podem ser o alvo do “erro tecnológico”. Temos aqui a afirmação de duas humanidades: a do indivíduo do primeiro mundo, ungido pelo capitalismo global, e a outra, das massas humanas do terceiro-mundo, seres enredados no capitalismo pobre dos dominados da ordem internacional. “... do céu dos indivíduos ocidentais, confundem-se as massas de soldados de Milosevic, os civis sérvios e as colônias de refugiados.” (RANCIÈRE, Folha de São Paulo, 16/5/1999). Temos aqui a “Paz Americana”, que reina no mundo globalizado, definida a partir de critérios próprios alicerçados nos interesses políticos e econômicos da própria valorização ininterrupta do capital transnacional. Trata-se da supremacia militar, econômica e cultural, que impõem variados níveis de constrangimento e coação, sem controle, sem temor e sem possibilidade de punição. 3. CONCLUSÃO Os conflitos nos Bálcãs e na antiga URSS se expressam no campo da política de identidades. As discussões acerca do “descentramento do sujeito” e da identidade fragmentada ou pluralizada (HALL, 96 1999) na modernidade tardia, explícita ou implicitamente se referem às mudanças que são em geral associadas à globalização. Neste sentido, cabe perguntar se haveria um movimento de condicionamento desta última por sobre os jogos identitários da nação, cultura nacional e etnia. CASTELS (1999) trabalha com a hipótese de que o nacionalismo atual se explica como “reação” a três ameaças que a modernidade tardia representa: a) a globalização que retira a autonomia das instituições culturais; b) as redes de produção e consumo e a flexibilidade do capital que suplantam as fronteiras nacionais produzindo uma estrutura de instabilidade no mundo do trabalho; e c) a “crise da família patriarcal”, que reinscreve as questões de sexualidade, socialização etc. Em resposta a estes desafios, as sociedades se agrupam em “comunidades culturais” que articulam resistências. Assim, se formam fontes possíveis de identidade. Neste sentido, em face do poder globalizador da mídia internacional sobre as identidades, os nacionalismos renascem no fim de século XX. Em HALL (1999) esta discussão ganha maiores contornos. Este autor afirma que existiriam três conseqüências possíveis da globalização sobre as identidades: a) a desintegração total destas; b) o surgimento de novas identidades, de caráter híbrido, que ocupam o lugar das identidades nacionais; e c) o reforço das identidades locais como resistência. Com relação à primeira possibilidade, a interdependência econômica e cultural entre as nações promoveria uma “fragmentação de códigos culturais” e “multiplicidade de estilos” (HALL, 1999: 73). Fluxos culturais internacionais criariam mercados globais para os mesmos bens culturais, com o conseqüente enfraquecimento da cultura nacional em face das redes de “infiltração cultural”. O pressuposto é que: “Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações ‘globais’ começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais.” (HALL, 1999: 73) Na segunda possibilidade, a base da argumentação encontra-se na afirmação de uma “fascinação com a diferença”, que traz uma força do “local” e possibilita a valorização – inclusive de mercado – das performances étnicas. Não podemos esquecer, entretanto, que há uma inequívoca desigualdade nos ritmos da globalização entre os países (e dentro dos países), o que nos leva a pensar nos impactos diferenciados desta ao redor do mundo. O que HALL (1999: 79) chama de “padrões de troca cultural desigual”. Ainda assim, não é possível rejeitar 97 a idéia de que “culturas híbridas” são o produto de uma globalização que é desigual, mas que impõe mudanças concretas no cotidiano mesmo de um país de terceiromundo como o Brasil. Além disto, estas formas culturais têm proliferado na modernidade tardia, como afirma PIERUCCI (1999: 171): “... a globalização não apenas coloca o centro na periferia, o colonizador se deslocando até o território do colonizado, como também termina por levar a periferia para dentro do centro.” Na terceira argumentação, podem ser colocadas as reedições do tradicionalismo cultural, das religiões ortodoxas e do separatismo nacionalista que são comuns na contemporaneidade. Este movimento possui duas vias, como demonstra HALL (1999). De um lado, as próprias nações com forte tradição cultural (ainda que “imaginadas”), que procuram impedir a permeabilidade de suas culturas às etnias do terceiro-mundo (o que se faz principalmente através dos movimentos migratórios também típicos da globalização). De outro lado, há no terceiro-mundo o reforço da idéia de nação como espaço da pureza étnico-cultural-religiosa, como recusa da diversidade e da permeabilidade cultural. No caso dos Bálcãs podemos ver este fenômeno com clareza: sérvios, croatas, bósnios e kosovares buscam o mesmo objetivo: a formação respectiva de uma nação “verdadeira” porque homogênea, e na qual o tom desta homogeneidade é dado pela tradição. O único problema é que disputam o mesmo espaço geográfico. O renascimento deste tradicionalismo que se expressa na perspectiva da nação (mas que articula outros elementos simbólicos) pode ser uma resposta às características da globalização; seja ao “caráter ‘forçado’” desta, seja ao fato de que várias nações do terceiro-mundo “ficaram de fora” de seus ganhos (e, portanto, usam a tradição como “contra-identificação”). Finalizando, vale lembrar o argumento de PIERUCCI (1999): “... é impossível deixar de tratar a globalização como um processo de produção e reprodução de desigualdade em escala mundial. A globalização é impensável se o olhar antropológico e a teoria sociológica elidirem, ..., a questão sócio-política da desigualdade de poder (material e discursivo), da relação de exploração dominante/dominado, do confronto de sujeição colonizador/colonizado.” (PIERUCCI, 1999: 166). Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 O “processo civilizatório” do capitalismo globalizado expandiu as forças produtivas e relações de produção para todos os recantos, transformando o mundo numa procura utópica pela “aldeia global”. Neste mundo de regras internacionais tão fluidas quanto os fluxos do capital financeiro, estamos próximos da luta de todos contra todos, onde o mais forte prevalece e o humanitarismo é meramente retórico. 4. REFERÊNCIAS (1) A questão do nacionalismo centro europeu nos anos 1990 implica diretamente a discussão da etnia e dos grupos étnicos, o que também será abordado no âmbito deste artigo. (2) Obra de 1983, publicada no Brasil com o título Nação e consciência nacional, em 1989. (3) ANDERSON (1989) não esquece que, pelo menos no caso europeu, os leitores eram poucos, em face da massa de analfabetos e falantes de línguas vulgares; porém, isto não constitui um problema na análise deste autor por dois motivos: 1) o clero é sempre, no mínimo, bilíngüe, e assim domina a língua vulgar da localidade onde atua; 2) o fato de existir uma não-arbitrariedade do signo, o que não permite a tradução e instaura a língua sagrada como dado ontológico da verdade religiosa. Este último ponto nos indica a extrema importância de Lutero que traduz a Bíblia cristã para a língua vulgar e, com isto, refaz as ligações entre linguagem, indivíduo e sociedade. (4) ANDERSON (1989) também usa este modelo que é baseado na força do capitalismo editorial para teorizar acerca da emergência dos movimentos de independência na América-Latina nos séculos XVIII e XIX. Acreditamos, no entanto, que na América Lusoespanhola esta forma de empresa capitalista não era suficientemente desenvolvida para constituir uma fonte de explicação plausível para uma “comunidade imaginada.” (5) É interessante lembrar que, durante a crise do Kosovo, a imprensa brasileira ora se referia aos kosovares de “etnia albanesa”, ora aos kosovares de “língua albanesa”. (6) ANDERSON (1989) cita Seton-Watson que afirma ter sido a Revolução Russa de 1905 “ ‘tanto uma revolução de não-russos contra a russificação, quanto uma revolução de operários, camponeses e intelectuais radicais contra a autocracia’ ”. (7) Esta obra é publicada originalmente em 1996. (8) É importante, segundo Castels (1999), verificar que os movimentos nacionalistas anti-soviéticos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 foram mais fortes nas repúblicas com maior homogeneidade étnica, e substancialmente pequenos nas repúblicas cuja população é dividida em várias fatias étnicas. (9) Autor do século XIX, Ernest Renan tem sido apropriado com relativa constância nas discussões contemporâneas sobre nação e nacionalismo. Seu texto clássico “What is a nation?” foi publicado em uma coletânea organizada por BHABHA (1990). (10) Antropólogo que em 1969 publica o livro “Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference.” (11) POUTIGNAT & STREIFF-FENART (1997) estão se referindo a um artigo de Geertz intitulado “The integrative revolution. Primordial sentiments and civil politics in the new states”, publicado na coletânea Old societies, new states, organizada pelo próprio Geertz, em 1963. (12) Com a onda de independências dos anos 90, a Sérvia propugna, através de seu nacionalismo oficial, que as minorias sérvias nas demais repúblicas seriam perseguidas como ocorreu quando sérvios, judeus e ciganos foram trucidados na Croácia pelo governo nazista local, durante a Segunda Guerra Mundial. Movidos por este risco potencial, os sérvios da Bósnia e da Croácia se rebelaram com apoio financeiro e bélico da Sérvia. (13) Devemos lembrar que, com a formação da Iugoslávia em 1945, os sérvios, que compunham (e ainda compõem) a maioria da população, passaram a controlar os principais órgãos do Estado, o comando do partido comunista e as Forças Armadas. (14) Seguindo o mesmo caminho que a Espanha proporcionou ao País Basco. (15) Ricardo Seintenfus, especialista em Direito Internacional, corrobora esta afirmação, lembrando que foram efetuadas, “nos últimos cinqüenta anos, mais de 200 guerras que provocaram 25 milhões de mortes e outro tanto de refugiados. A ausência de uma guerra mundial não pode ser confundida com a paz” (Folha de São Paulo, 9/5/1999). O papel da ONU na amenização ou controle destes conflitos foi mínimo ou nenhum. (16) A crise do Kosovo e a guerra travada pela OTAN contra a Iugoslávia colocam novas questões de política internacional até então inexistentes. Uma delas diz respeito aos “alvos legítimos”. Isto porque, além do ataque aéreo generalizado aos objetivos militares iugoslavos, foram incluídos nos “bombardeios cirúrgicos” também alvos não militares, como centrais elétricas e ainda alvos simbólicos, como a residência do Presidente Slobodan Milosevic e a estação de televisão estatal (o 98 que redundou na morte de 25 civis, entre jornalistas e técnicos). (17) O líder militar tchetcheno, Shamil Bassaiev, também comanda grupos rebeldes do Daguestão. (18) Por um erro de informação, até mesmo a Embaixada da China foi bombardeada, causando a morte de cidadãos chineses, e além disto o mundo acompanhou estarrecido o “bombardeio cirúrgico” equivocado de um comboio de refugiados kosovares; ambas ações militares assumidas sem delongas e com desculpas pela OTAN. 5. BIBLIOGRAFIA York University Press, 1995. PIERUCCI, A. F. Teorias da diferença. São Paulo; Editora 34, 1999. POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. 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Procura-se, num primeiro momento, caracterizar a sociedade de consumo contemporânea, salientando a construção e veiculação de consensos sociais necessários a sua própria reprodução. Em segundo lugar, através da análise dos filmes Matrix e Show de Truman, procura-se identificar o consenso social mais importante que ali é veiculado e que contribui para a reprodução desta sociedade de consumo globalizada. Identifica-se que um dos consensos sociais mais importantes atualmente, veiculado por estes filmes, é o modelo de um novo homem: o indivíduo socialmente autônomo, re-humanizado pelo uso e domínio da técnica e sua inerente velocidade. Ao chamar a atenção para este modelo de novo homem, que reproduz uma sociedade de consumo globalizada e amplamente excludente, o artigo pretende contribuir para uma crítica do mundo contemporâneo, descrevendo alguns dos mecanismos que precisam ser compreendidos para a superação de uma sociedade cada vez mais desigual. Palavras-chave: Sociedade de consumo, consenso social, cinema e globalização. Abstract. The general content of the present article is the reproduction of the present consumer society through its mechanisms to broadcast social consensus by the cultural industry. At first, the intention is to identify the characteristics of the contemporary consumer, pointing out the construction and broadcasting of social consensus that are necessary for their own reproduction. Secondly, by means of the analysis of motion-pictures such as Matrix and The Truman Show, the authors search for the identification of the important social consensus that is broadcast there and which contributes to the reproduction of that globalized consumer society. The authors point out that one of the most important present social consensus, praised by those movies, is the model of a new man: the socially autonomous individual, an individual that has been re-humanized by the use and domain of the technique and its inherent speed. Calling the attention to that model of a new man, which reproduces a globalized and widely excluding consumer society, the article intends to contribute to a critique of the contemporary world, describing some of the mechanisms that must be understood for the improvement of a society that is becoming more and more unequal. Key words: Consumer society, social consensus, motion-pictures and globalization. 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem por tema geral o processo de reprodução da sociedade de consumo atual através dos seus mecanismos de veiculação de consensos sociais pela indústria cultural. A publicidade e propaganda, ao manipular ideologicamente a sociedade de consumo através da influência ao mundo do inconsciente das pessoas, provocam suas fantasias e seus desejos secretos, descobrindo como chegar mais rápido até eles. Como se sabe, a indústria do cinema tem uma força especial sobre as pessoas, principalmente porque através dela pode-se chegar às mais variadas culturas. * Professor da UNIVAP. ** Graduada da UNIVAP. É nessa imbricada e fascinante relação entre consumo, publicidade, sociedade pós–moderna e glo- Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 100 balizada, indústria cultural e realidade que se propõe apresentar uma reflexão. O objetivo deste artigo, mais claramente, é apresentar uma reflexão sobre o processo de reprodução da sociedade de consumo contemporânea através de seus mecanismos de construção de consensos sociais, isto através da análise de dois filmes da indústria cinematográfica norte-americana: Matrix (1999) e Show de Truman (1998). Duas questões sintetizam o objetivo da reflexão: 1. Quais são as principais características da sociedade de consumo contemporânea que permitem compreender a produção e veiculação de consensos sociais necessários a sua própria reprodução ? 2. Qual é o consenso social mais importante, veiculado nesses filmes, que contribui para a reprodução da sociedade de consumo atual ? Um argumento central - na verdade um pressuposto para a análise - foi retirado das reflexões do sociólogo francês Jean Baudrillard1, pela sua importante contribuição para a compreensão das questões que este trabalho procura refletir. Este autor destaca dois aspectos dos meios de comunicação de massa: um é o de que difundem uma idéia de igualdade, retribalizam o mundo, falam a todos impondo um consenso, obscurecendo as separações sociais de classe. Outro argumento é o de que os meios de comunicação, em geral, não falam a partir do real, mas a partir de um pseudo-real, ou seja, de eventos, de histórias, de cultura e de idéias produzidas, não a partir da experiência móvel, contraditória e real, mas produzidas como artefatos a partir dos elementos do código e da manipulação técnica do meio de comunicação. 2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS Ao apresentar, resumidamente, uma discussão sobre os conceitos de consenso social, indústria cultural, pós-modernidade, globalização e sociedade de consumo, embora não se pretenda dar conta das diversas abordagens existentes sobre estes fenômenos, procura-se, aqui, destacar apenas os elementos mais importantes para evidenciar o processo de construção de consensos sociais característicos das sociedades atuais. A análise proposta dos filmes, guiando-se pelas questões apresentadas a seguir, deve indicar e caracterizar algumas idéias e valores que são produzidos e reproduzidos neste universo cultural da indústria cinematográfica. Embora se tenha optado por subdividir a apresentação desses fenômenos, é importante frisar que estes devem ser compreendidos em suas estreitas relações, o que se pretende deixar evidente na breve exposição a seguir. 101 2.1 O Consenso Social: Uma Breve Discussão O conceito de consenso social utilizado neste artigo precisa ser esclarecido e precisamente situado2 . Antes de tudo, este conceito é um dos mais fundamentais das Ciências Sociais, ao lado do conceito de conflito social, relações sociais, classes e ações sociais (não discutidos aqui). Como se sabe, toda sociedade relativamente organizada, ainda que sempre apresente conflitos entre indivíduos e grupos no seu interior, necessita de um certo grau de consenso, ou seja, de um certo acordo sobre idéias, regras, princípios, objetivos e valores que devem ser compartilhados por todos, ou, pelo menos, pela maioria de seus integrantes, visando uma relativa estabilidade social. Nesse sentido, o consenso social é importante para garantir a continuidade de uma organização social e uma certa estabilização das relações entre os seus diferentes grupos sociais. O consenso social, importante elemento de organização social, pode apresentar um maior ou menor grau, conforme haja uma maior ou menor homogeneidade da sociedade sob o aspecto cultural, o aspecto político e, muito influente no mundo de hoje, o aspecto econômico, isto devido a sua estreita relação com a sociedade atual de consumo. Nas sociedades atuais, por exemplo, predomina um consenso relativamente alto quanto à organização política, presente na quase universalização dos sistemas democráticos de organização dos Estados. A organização econômica da maioria das sociedades atuais funda-se no sistema capitalista de produção, um capitalismo que hoje se estrutura de forma globalizada, produzindo um verdadeiro sistema de consumo que, como se evidenciará em outro momento, já é a característica fundante das sociedades contemporâneas. Pode-se afirmar que esta realidade vem se impondo aos membros da sociedade pela criação de consensos sociais fortíssimos sobre elas. É importante ressaltar aqui a diferença entre consenso e coerção. Para Bottomore (1991): “[a coerção]... é a imposição pela força de normas de comportamento sobre a população em geral por parte dos senhores políticos e dos que tomam as decisões... [o consenso]... implica um processo através do qual se promove o acordo entre agentes participantes” (pp. 131-132). Com isto, pretende-se enfatizar o consenso como um processo que procura fornecer uma legitimação para idéias, valores, normas e objetivos de uma sociedade como as melhores para a organização social. Ora, sabe-se que muitas vezes estas idéias, valores, normas e objetivos dizem respeito aos grupos dominantes de uma sociedade que, a rigor, representa a menor parcela desta sociedade. Dito de outra forma, as idéias de grupos dominantes da Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 sociedade tendem a se impor como idéias que todos devem compartilhar. Aqui se está no campo da ideologia enquanto um conjunto de idéias, de um grupo social por exemplo, que se impõe como idéias de todos dentro da sociedade3 e, portanto, ocultando a realidade social que, na verdade, apresenta conjuntos diferenciados de idéias. Mas o que interessa salientar aqui é a importância do consenso para a reprodução das idéias dominantes numa sociedade. Conforme descreve Bobbio (1991): “...quando essas ideologias se tornam dominantes, as forças delas derivadas tentam forjar o Consenso sobre as regras do jogo, mais com a imposição e doutrinamento que com o acordo” [grifo nosso] (p. 241). É no sentido de doutrinamento, ainda que de modo subliminar, que se pode perceber a indústria cultural contemporânea reproduzindo consensos sociais. O processo de construção de consensos sociais, processo este que perpassa o sistema cultural, econômico e político de uma sociedade, em geral se manifesta pela opinião pública e seus formadores de opinião, pelas elites econômicas, políticas e intelectualizadas, pela educação formal e informal dos membros de uma sociedade e, sobretudo no mundo contemporâneo, pelos meios de comunicação de massa. No entanto, muitas vezes a ênfase no consenso acaba por ocultar os aspectos conflituosos existentes na sociedade, levando a uma distorção na compreensão da realidade social que é, a rigor, contraditória, como evidenciam as relações entre as diferentes classes sociais existentes nas sociedades industriais, capitalistas e globalizadas nos dias atuais, ou, como será evidenciado posteriormente, sociedades estruturadas pelo sistema social de consumo. Embora a busca por um consenso social seja absolutamente necessária para caracterizar uma sociedade organizada, isto não revela nada sobre qual consenso é alcançado, isto é, sobre quais normas, valores, princípios e objetivos é preciso para se estruturar um consenso para que tenhamos uma sociedade política, econômica e socialmente mais justa, por exemplo. Como será ressaltado, o fenômeno da indústria cultural, do pós-modernismo, da globalização e da sociedade de consumo (todos relacionados entre si), fizeram dos principais meios de comunicação – por exemplo, a TV com a publicidade e propaganda por um lado, e o cinema, sobretudo norteamericano, por outro – uma das principais fontes de produção e reprodução de consensos sociais baseados nos princípios, valores, normas e objetivos dos grupos políticos e econômicos dominantes das sociedades. Ao se propor uma reflexão sobre a produção de consensos sociais através de filmes de entretenimento da Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 indústria cultural norte-americana, este artigo pretende evidenciar os valores, princípios e idéias veiculados por este meio como consensos que ora superficializam a realidade social, ora ocultam esta realidade ou mesmo contribuem para a sua fragmentação, tudo isto ao reforçarem determinadas idéias e valores. Mas é preciso, ainda, discutir alguns aspectos que caracterizam as sociedades contemporâneas e muito contribuem para a compreensão das formas pelas quais hoje se dá a produção e reprodução de consensos sociais. 2.2 A Indústria Cultural De acordo com os autores da Escola de Frankfurt4 , a indústria cultural representa a consolidação da mercadoria, onde predomina o valor de troca e impera o capitalismo monopolista. A indústria cultural promove um molde dos gostos e das preferências das massas, manipulando suas consciências ao introduzir o desejo da necessidade supérflua. As necessidades concretas geralmente são excluídas, as atitudes e posições políticas de oposição, e seus atos de manipulação, são tão perfeitos que as pessoas não percebem o que ocorre . Conforme Thompson (1995), Horkheimer e Adorno deram atenção particular à indústria cultural, resultante da crescente mercantilização das formas culturais. Como teóricos da Escola de Frankfurt, estes autores mostraram a importância do desenvolvimento da comunicação de massa e repensaram a natureza do papel da ideologia em relação a esse desenvolvimento. Como Thompson (1995) ressalta: “Crenças míticas e animísticas foram progressivamente sendo eliminadas a favor de uma razão científica, instrumental, que reifica o mundo do ponto de vista do controle técnico. Os próprios seres humanos se tornaram parte desse mundo reificado, e a sua subordinação à lógica da dominação é realçada pela mercantilização da força de trabalho dentro do capitalismo. Mas a natureza humana resiste a subordinação total, ela se rebela contra os processos de reificação, racionalização e pulverização característicos do mundo moderno” (p. 131). O termo indústria cultural foi usado por Horkheimer e Adorno ao se referirem à mercantilização das formas culturais, ocorrida pelo surgimento das indústrias de entretenimento da Europa e dos EUA no final do século XIX e início do século XX. O surgimento destas indústrias como empresas capitalistas resultou na padronização e na racionalização das formas culturais, e esse processo, por sua vez, fez com que o indivíduo parasse 102 de pensar e agir de uma maneira crítica e autônoma. Assim, quanto mais os produtos culturais são verdadeiramente padronizados, mais parecem individualizados (Thompson, 1995). Estes bens culturais são manejados e manufaturados de acordo com o objetivo da acumulação capitalista e da busca de lucro. Ainda segundo Thompson (1995): Essa nova ideologia da indústria cultural reside na própria ausência dessa independência. Os produtos da indústria cultural são criados com a finalidade de refletirem a realidade social, não precisando de uma justificativa ou defesa explícita, pois o próprio processo de consumir os produtos da indústria cultural induz as pessoas a se identificarem com as normas sociais existentes e a continuarem a ser o que já são. “A Indústria Cultural integra, intencionalmente, seus consumidores a partir de cima... as massas não são o objetivo primeiro, mas secundário, elas são um objeto de cálculo, um apêndice dessa maquinação, os bens produzidos pela Indústria Cultural não são determinados pelas suas características intrínsecas como uma forma artística, mas pela lógica coorporativa da produção de mercadorias e pela troca. Por isso os bens são padronizados e estereotipados, mera permuta de gênero básico ou tipo - o Western” (p. 132). A ideologia é corruptora e manipuladora, justificando o domínio do mercado. É igualmente conformista e entorpece a mente, impondo a aceitação geral da ordem capitalista. Conforme destaca Strinati (1999), para Adorno: Os produtos da indústria cultural não têm interesse de serem obras de arte. Geralmente são moldados de acordo com certas fórmulas preestabelecidas. Os produtos da indústria cultural se apresentam como um espelho da realidade empírica e, devido a esse pseudo-realismo, normalizam o status quo e suprimem a reflexão crítica sobre a ordem social e política. A análise apresentada neste trabalho procura demonstrar que os filmes aqui abordados não apresentam uma reflexão sobre a ordem política e social mais profunda, pois os argumentos utilizados estão numa ordem mais individualizada e superficial de questões. Neste sentido, pode-se também destacar a interpretação das idéias de Adorno feita por Thompson (1995). Para este autor, na visão de Adorno: O que se ouve, vê e lê é algo familiar e banal, e essa esfera simbólica de familiaridade repetitiva é inserida por vários slogans aparentemente inocentes - por exemplo: “todos os estrangeiros são suspeitos”, “uma garota linda não pode fazer coisas erradas” - que se apresentam como verdades evidentes e eternas. Nos filmes Matrix e Show de Truman, como se verá, são outros os exemplos. Conforme Strinati (1999), a indústria cultural lida com falsidades e não com verdades, com necessidades supérfluas e falsas soluções, e não com necessidades concretas e verdadeiras soluções. Os problemas são resolvidos somente na aparência, e não como deveriam ser resolvidos, isto é, oferecendo a imagem ao invés da solução dos problemas, a satisfação falsa das necessidades supérfluas como substituto da solução real dos problemas concretos. Ao fazer isso, a indústria cultural assume o encargo de consciência das massas. 103 “Os conceitos de ordem que a indústria cultural insere nos seres humanos são sempre aqueles do status quo. Seus efeitos são profundos e de longo alcance: o poder ideológico da indústria cultural é tal que o conformismo substitui a consciência” (p. 72). “...o desenvolvimento da indústria cultural é uma parte intrínseca do processo de crescimento da racionalização e reificação nas sociedades modernas, um processo que torna os indivíduos cada vez menos capazes de pensamento independente e sempre mais dependentes dos processos sociais sobre os quais eles possuem pouco ou nenhum controle. Aqui, o impacto de Max Weder é evidente: a ‘gaiola de ferro’ da ação racionalizada, burocratizada, é substituída pelo ‘sistema de ferro’ da indústria cultural, onde os indivíduos estão cercados por um universo de objetos que são essencialmente idênticos e totalmente mercantilizados. Em vez de fornecer um espaço simbólico dentro do qual os indivíduos pudessem cultivar sua imaginação e reflexão crítica, pudessem desenvolver sua individualidade e autonomia, esse universo mercantilizado canaliza a energia dos indivíduos para um consumo coletivo de bens padronizados” (p. 134). A compreensão das questões acima descritas é importante para ampliar a visão sobre a sociedade de consumo. No entanto, para caracterizar o atual universo social do consumo, é imprescindível uma breve apresentação dos novos traços culturais que caracterizam a sociedade contemporânea. Assim, e para uma posterior Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 caracterização da sociedade de consumo, apresenta-se uma breve discussão crítica sobre a cultura pós-moderna e o atual processo de globalização social. algum papel na construção do nosso senso de realidade social e a consciência de que somos parte dessa realidade” (p. 218). 2.3 O Mundo Atual: Uma Abordagem Crítica da Globalização Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulação (1991), descreve uma das características mais marcantes da sociedade atual: a questão da simulação e do simulacro6 , ou seja, dessa precessão de modelos que existem antes mesmo de sua circulação. Como sugere este autor, esses modelos se impõem como verdades, formando um ciclo generalizado que caracteriza o próprio sistema de consumo, um sistema que utiliza um conjunto de signos de conteúdo ou fins próprios, mas indefinidamente refletidos uns pelos outros. Essa precessão de modelos (simulações e simulacros) utiliza como estratégia o real distorcido, ou seja, um real sem origem nem realidade, o hiper-real. Inicia-se, assim, a liquidação de todos os referenciais, passando para a era da ressurreição artificial nos sistemas de signos. Esta questão será ressaltada na análise do filme Matrix. O mundo contemporâneo pode ser compreendido, segundo vários autores, pela análise de dois fenômenos muito interligados e que, muitas vezes, até se confundem: o pós-modernismo e a globalização. Dominic Strinati (1999) considera que o pós-modernismo descreve o nascimento de uma ordem social na qual os meios de comunicação de massa e a cultura popular governam e moldam todas as outras formas de relacionamentos sociais, daí sua importância e poder. Como este autor destaca: “A idéia é que os signos5 da cultura popular e as imagens veiculadas pelos meios de comunicação dominam crescentemente nosso senso de realidade e a maneira como nos definimos e vemos o mundo ao nosso redor. O pós-modernismo tenta chegar a um acordo com a sociedade saturada pelos meios de comunicação e procura entendê-la. Os meios de comunicação de massa eram considerados antes um espelho da realidade social mais ampla. Atualmente, a realidade só pode ser definida pelos reflexos aparentes desse espelho” (Strinati, 1999, p. 217). A sociedade tornou-se subordinada aos meios de comunicação de massa. Não é mais, nem mesmo, uma questão de distorção, já que o termo implica a existência de uma realidade externa às simulações aparentes dos meios de comunicação que pode ser distorcida. Isso é exatamente o que está em questão de acordo com a teoria pós-moderna. Sendo assim, para Curran (apud Strinati, 1999): “Essa idéia, em parte, parece emergir de um aspecto da teoria dos meios de comunicação e da teoria cultural. De modo simplificado: a visão liberal argumentou que os meios de comunicação eram um espelho que refletia de maneira razoavelmente exata a exata realidade social mais ampla. A visão radical respondeu, sustentando que esse espelho distorcia a realidade em vez de refleti-la. Subseqüentemente, uma teoria dos meios de comunicação e uma teoria cultural mais abstratas e conceituais sugeriram que os meios de comunicação desempenhavam Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Para entender melhor esta questão dos simulacros presentes na sociedade, Baudrillard (1991) cita o exemplo da Disneylândia, que nada mais é do que um modelo perfeito de todos os tipos de simulacros confundidos: “A Disneylândia existe para esconder que é o país ‘real’, toda a América ‘real’ que é a Disneylândia (de certo modo como as prisões existem para esconder que o todo social na sua onipresença banal, que é carceral). A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real quando toda a Los Angeles e a América que nos rodeia já não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação. Já não se trata de uma representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real já não é o real e portanto de salvaguardar o princípio de realidade” (p. 21). Como ainda explica este autor: “O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste imaginário a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, num mundo <real> e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real. [...] a Disneylândia não é caso único. Enchanted Village, Ma104 gic Mountain, Marine World: Los Angeles está cercada desta espécie de centrais imaginárias que alimentam com o real, em energia do real, uma cidade cujo mistério consiste justamente em não ser mais que uma rede de circulação incessante, irreal cidade de uma extensão fabulosa, mas sem espaço, sem dimensões” (p. 21). Um exemplo recente de simulacro pode ser dado a partir da manifestação do governo norte-americano ao definir a nova realidade surgida com os atentados terroristas em seu território em 11 de setembro de 2001. Conforme expressou o Presidente americano, acompanhado por boa parte da mídia ocidental naquele momento, o mundo estaria entrando numa “guerra do bem contra o mal”. O maniqueísmo, naquele momento assim expresso, apresentou uma realidade que esconde, por exemplo, todo um contexto de conflitos econômicos, políticos e culturais religiosos entre o mundo ocidental e o mundo oriental mulçumano, mesmo sendo o uso de práticas terroristas intoleráveis sob qualquer hipótese. Nesse sentido, o bem e o mal seriam exemplos de signos que se auto-referenciam. Para Baudrillard (1991): “Hoje o próprio chefe de Estado - um qualquer - não é mais que o simulacro de si próprio e que só isso lhe dá o poder e a qualidade para governar. Ninguém daria o menor apoio, nem teria a menor devoção por uma pessoa real” (p. 35). Ainda conforme Baudrillard (1991), uma outra característica do nosso tempo é a histeria da produção e reprodução do real, pois a outra produção, a dos valores e das mercadorias, a dos bons e velhos tempos da economia política, desde há muito tempo não tem sentido próprio. Conforme descreve este autor: “A ideologia não corresponde senão a uma malversação da realidade pelos signos, a simulação corresponde a um curtocircuito da realidade e à sua reduplicação pelos signos. A finalidade da análise ideológica continua a se restituir o processo objetivo, é sempre um falso problema querer reinserir a verdade sobre o simulacro. É por isso que o poder, no fundo, está tão de acordo com os discursos ideológicos e com os discursos sobre a ideologia; é que são discursos de verdade - sempre bons, mesmo e sobre tudo se forem revolucionários, para opor aos golpes mortais da simulação” (Baudrillard, 1991, pp. 39-40). Para Strinati (1999), outro autor utilizado nesta 105 descrição, no mundo pós–moderno a aparência e o estilo são mais importantes e evocam um tipo de ideologia de designer. Aqui o argumento é que se consome cada vez mais imagens e signos em conseqüência do interesse por si mesmo, e não por sua utilidade, ou pelos valores mais fundamentais que simbolizam. Consomem-se imagens e desconsideram-se questões de utilidades e de valor, e isso é evidente na própria cultura popular. Conseqüentemente, qualidades como o mérito artístico, a integridade, a seriedade, a autenticidade, o realismo, a profundidade intelectual e as narrativas vigorosas, são rejeitadas. Além disso, a realidade virtual fabricada pela computação gráfica permite às pessoas experimentar várias formas de realidade “de segunda mão”. Essas simulações podem, portanto, substituir potencialmente seus concorrentes reais (Strinati, 1999). Uma passagem do livro deste autor é significativa: “A arte se integra de modo crescente à economia, tanto por incentivar as pessoas a consumir através do papel ampliado que desempenha na propaganda, como por ser tornar um bem comercial em si mesmo. Um outro aspecto é que a cultura popular pós-moderna recusa-se a considerar as pretensões e as distinções da arte. Portanto, o colapso da distinção entre a arte e a cultura popular, assim como a interseção entre elas, torna-se predominante” (Strinati, 1999, p. 220). Em sua análise, Strinati deixa claro que os argumentos pós-modernos preocupam-se com o aspecto visual, e os filmes mais óbvios em que se observam os signos da pós-modernidade são aqueles que enfatizam o estilo, o espetáculo, os efeitos especiais e as imagens à custa do conteúdo. Como se perceberá, no filme Show de Truman existem estes elementos, mas e sobretudo no filme Matrix eles aparecem com muito mais evidência. Mas esta caracterização da época atual precisa incorporar uma abordagem do processo de globalização, muito intensificado nos últimos dez anos. Aqui, o objetivo não é descrever o desenvolvimento deste complexo processo de internacionalização econômica, política, cultural e social. A intenção é apresentar uma abordagem crítica da globalização enquanto um processo de cunho, sobretudo, econômico e político, provocador de desigualdades e reprodutor de valores e visões de mundo muito ligadas às parcelas privilegiadas das sociedades ou, no mesmo sentido, reprodutor de determinadas idéias e valores necessários à manutenção de um sistema social baseado no consumo, na informação e no dinheiro. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Um dos grandes críticos do processo de globalização que caracteriza a época atual foi Milton Santos. Dentre várias de suas obras, a utilizada aqui é exatamente o seu último livro7 , Por Uma Outra Globalização. Neste livro, Santos procura descrever a face perversa do processo de globalização, e são os aspectos que caracterizam este fenômeno que fornecem uma base para a compreensão de determinadas idéias e valores veiculados nos filmes aqui escolhidos para análise. Milton Santos concebe a globalização como um “processo perverso”, onde o dinheiro e a informação exercem uma dupla tirania. Este processo é perverso à medida que produz um novo tipo de desigualdade social, cuja manifestação é a exclusão social de enormes parcelas da sociedade. Como descreve este autor, referindo-se à dupla tirania do dinheiro e da informação: “Ambas [as tiranias], juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala” (Santos, 2001, p. 37). A competitividade - característica do mundo social contemporâneo - seria para este autor a fonte de um novo totalitarismo, onde o pensamento único em relação à organização econômica de cunho neoliberal, isto é, uma organização econômica centrada no mercado e com poucas e pontuais intervenções do Estado na vida econômica da sociedade8 , é difundido como sendo um verdadeiro consenso social. Como se verá, difundido também através de produtos culturais como o cinema. Um dos alicerces desse novo totalitarismo está nas novas e sofisticadas técnicas de comunicação e, como ressalta Santos (2001): “Nas condições atuais, as técnicas de informação são principalmente utilizadas por um punhado de atores em função de seus objetivos particulares. Essas técnicas de informação (por enquanto) são apropriadas por alguns Estados e por algumas empresas, aprofundando assim os processos de criação de desigual-dades. É desse modo que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 controle” (p. 39). É nesse sentido que este autor evidencia a violência da informação, chamando a atenção para o fato de que a informação, se por um lado buscar instruir, por outro busca convencer. Este convencimento se dá pela publicidade, ou, melhor situando, pela lógica da publicidade, que se estende para além da venda de um produto, alcançando, no mundo atual, a esfera pública, bem como a organização econômica e as próprias relações interpessoais. Uma lógica baseada no consumo, no dinheiro e no poder em estado puro (Santos, 2001). Para os fins deste artigo, o mais importante a se destacar é que esta globalização perversa, conforme expressão deste autor, produz duas grandes fábulas: o mito da aldeia global e o mito do espaço e do tempo contraídos, isto é, o mito da velocidade. Sobre estes mitos, afirma Santos (2001): “O fato de que a comunicação se tornou possível à escala do planeta, deixando saber instantaneamente o que se passa em qualquer lugar, permitiu que fosse cunhada essa expressão [aldeia global], quando, na verdade, ao contrário do que se dá nas verdadeiras aldeias, é freqüentemente mais fácil comunicar com quem está longe do que com o vizinho. Quando essa comunicação se faz, na realidade, ela se dá com a intermediação de objetos. A informação sobre o que acontece não vem da interação entre as pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos” (p. 41). Na seqüência desta reflexão, assim o autor critica o mito da velocidade: “Só que a velocidade apenas está ao alcance de um número limitado de pessoas, de tal forma que, segundo as possibilidades de cada um, as distâncias têm significações e efeitos diversos e o uso do mesmo relógio não permite igual economia de tempo” (p. 41). A citação a seguir, embora extensa, merece aqui um destaque, pois sintetiza bem a idéia de Milton Santos em relação ao atual processo de globalização: “Aldeia global tanto quanto espaço-tempo contraído permitiriam imaginar a realização do sonho de um mundo só, já que, pelas mãos do mercado global, coisas, relações, dinheiros, gostos largamente se 106 difundem por sobre continentes, raças, línguas, religiões, como se as particularidades tecidas ao longo de séculos houvessem sido todas esgarçadas. Tudo seria conduzido e, ao mesmo tempo, homogeneizado pelo mercado global regulador. Será, todavia, esse mercado regulador? Será ele global? O fato é que apenas três praças, Nova Iorque, Londres e Tóquio, concentram mais de metade de todas as transações e ações; as empresas transnacionais são responsáveis pela maior parte do comércio dito mundial; os 47 países menos avançados representam juntos apenas 0,3% do comércio mundial, em lugar dos 2,3% em 1960, enquanto 40% do comércio dos Estados Unidos ocorrem no interior das empresas” (pp. 41-42). Tem-se, portanto, um mundo que se estrutura com base na produção global e no consumo global. No entanto, isto não se traduz na existência de um mundo homogeneizado em sua capacidade de consumir ou produzir, utilizando-se das técnicas mais modernas e sofisticadas hoje existentes. Ademais, a lógica que sustenta o mundo contemporâneo - um sistema social de consumo como se destacará a seguir - produz e difunde determinados consensos sociais necessários a sua continuidade, e será um importante consenso que se identificará em dois produtos culturais da indústria cinematográfica norte-americana. 2.4 A Nova Sociedade do Consumo A abordagem da sociedade de consumo apresentada neste artigo pode ser reduzida à expressão sistema social de consumo9 . Não se trata mais de uma sociedade de produtores e consumidores, como até então era fácil de se caracterizar as sociedades modernas da última metade do século XX. Como afirma Bauman (1999), a nova fase da sociedade atual: “...tem pouca necessidade de mão-deobra industrial em massa e de exércitos recrutados; em vez disso, precisa engajar seus membros pela condição de consumidores. A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor” (p. 88). Para Baudrillard (1991b), o sistema social de consumo acaba por definir previamente o que deve ser consumido, fazendo com que as pessoas consumam mais significantes do que significados. Como ressalta este autor: 107 “Nunca se consome o objeto em si no seu valor de uso, os objetos no sentido lato manipulam-se como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior” (Baudrillard, 1991b, p. 60). Pode-se dizer que a nova sociedade do consumo é produto de uma nova forma de organização da produção capitalista que, conforme Harvey (1995), apresenta como característica principal uma flexibilidade dos processos produtivos10 , o uso de novas técnicas e, ainda, complexos e sofisticados sistemas de informação e comunicação. Estes avanços, como é sabido, explicam o processo de globalização atual, pelo menos em sua face econômica, isto é, produtiva e altamente racionalizadora. O sistema de consumo, característica central desta época, produz um novo tipo de consumidor. Como afirma Bauman (1999): “Para os consumidores da sociedade de consumo, estar em movimento – procurar, buscar, não encontrar ou, mais precisamente, não encontrar ainda – não é sinônimo de mal-estar, mas promessa de bem-aventurança, talvez a própria bem-aventurança. Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de riqueza no seu sentido material, palpável, mas a excitação de uma sensação nova, ainda não experimentada - este é o jogo do consumidor. Os consumidores são primeiro e acima de tudo acumuladores de sensações; são colecionadores de coisas apenas num sentido secundário e derivativo” (p. 91). Como será destacado na análise dos filmes, a sociedade contemporânea, através da reprodução de algumas idéias e valores, se estrutura fundamentalmente pela lógica do consumo, levando-a até ao campo das relações pessoais e também públicas. Este novo tipo de consumidor é fruto de um novo tipo de consumo. Como descreve Santos (2001), atualmente o consumo apresenta-se de forma despótica. O trecho que reproduzimos abaixo deixa mais clara esta questão: “Um dado essencial do entendimento do consumo é que a produção do consumidor, hoje, precede à produção dos bens e serviços. Então, na cadeia causal, a chamada autonomia da produção cede lugar ao despotismo do consumo. Daí, o império da informação e da publicidade... Desse Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 modo, vivemos cercados, por todos os lados, por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da informação ideologizados. Esse consumo ideologizado e essa informação ideologizada acabam por ser o motor de ações públicas e privadas” (Santos, 2001, pp. 48-49). No entanto, esta nova sociedade do consumo se impõe à medida que produz, e também reproduz, um consenso social sobre ela; consenso na forma da defesa e difusão de algumas idéias e valores como, por exemplo, a ênfase no individualismo, ou mesmo a idéia, descrita acima, de um mundo homogeneizado (cultura global?), interligado pelas novas técnicas de comunicação e informação e caracterizado pela velocidade, tanto da produção quanto do consumo. Este artigo tem como um de seus objetivos apontar os principais valores e idéias que reafirmam um sistema social assim caracterizado, ou seja, um sistema social baseado na lógica do consumo, só realmente acessível a poucos grupos privilegiados dentro das sociedades. Esses valores e idéias, aqui contribuindo para a produção de um consenso social mais amplo e profundo, deverão ser identificados analisando-se dois filmes da indústria cinematográfica norte-americana e, sendo assim, faz-se necessária uma breve discussão sobre o cinema. 3. CINEMA, CULTURA E IDEOLOGIA Procura-se, aqui, destacar alguns aspectos do universo cultural do cinema que fazem desta arte um lugar privilegiado, dentro da indústria cultural, para a veiculação de idéias e valores (consensos sociais) que justificam uma sociedade globalizada e estruturada pelo consumo. A compreensão, ainda que básica, da relação entre cinema, cultura e ideologia é importante para a fundamentação da análise dos filmes Matrix e Show de Truman. Para Turner (1997), várias tentativas foram feitas para entender a relação entre cinema e cultura (ideologia). Elas ocorrem em diferentes tópicos: cinema e política, cinema e cultura de massa, por exemplo. Algumas destas análises mostram relações entre o cinema e as tendências na cultura popular (Easy Rider/Sem Destino e os hippies da década de 1960, por exemplo), enquanto outras mostram evidências de movimentos na história social. Em muitos casos, essas análises supõem uma relação mais ou menos reflexionista entre o cinema e a sociedade, ou seja, o cinema reflete as crenças e valores dominantes de sua cultura. No entanto, a análise é sempre complexa e insatisfatória, pois passa por um processo de seleção e combinação necessário na composição de qualquer expressão, seja no cinema ou em outro contexto. Além do Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 mais, entre a sociedade e esse seu espelho que é o cinema há um conjunto de determinantes culturais, subculturais, industriais e institucionais concorrentes e conflitantes. A questão da ideologia11 , presente e veiculada pelo cinema por exemplo, sempre será um aspecto a ser considerado quando se procura analisar a relação entre cinema e cultura. Aqui se trata da ideologia da cultura, entendida por Turner (1997) nos seguintes termos: “A ideologia da cultura é composta de interesses concorrentes e conflitantes, disputando o domínio. Este processo é reproduzido em nossas narrativas. Se nossas narrativas atuam para resolver simbolicamente contradições sociais, devem lidar com as divisões ou iniquidades políticas existentes entre grupos, classes ou sexos, que foram construídas como naturais ou inevitáveis em nossa sociedade. Portanto, os filmes como sistemas de representação ou como estruturas narrativas são ideais para análises ideológicas” (p. 131). Ainda segundo este autor, as instituições cinematográficas têm interesses políticos que determinam quais os filmes que serão feitos, e praticamente os que serão vistos. Percebe-se a natureza dos interesses a que servem as instituições, seus objetivos e qual o significado de sua função para o público, a indústria cinematográfica e a cultura como um todo (Turner, 1997). Aqui vale a pena transcrever outro trecho da análise deste autor: “A ideologia de um filme não assume a forma de declarações ou reflexões diretas sobre a cultura. Ela se encontra na estrutura narrativa e nos discursos usados - imagens, mitos, convenções e estilos visuais. Mesmo se tratando de um melodrama convencional que envolve um caso amoroso entre um herói e uma heroína individualizados. Sendo este o caso, o final do filme precisa resolver conflitos sociopolíticos bem como os dilemas pessoais - mas isto ele não faz. É característico da ideologia expressar diferenças sociais ou políticas como sendo pessoais e individuais, devendo portanto ser resolvidas no nível pessoal e não no político, e como um sinal de fraqueza individual, e não fraqueza do sistema social e político” (Turner, 1997, p. 146). Tomás Gutiérrez Alea (1983), discutindo o cinema enquanto arte, afirma que a capacidade de revelar, através 108 de associações e relações de diversos aspectos isolados da realidade, é o verdadeiro realismo do cinema, através da criação de uma “nova realidade”. Assim, pode-se estabelecer uma diferença entre a realidade objetiva que o mundo (a vida) oferece e a imagem da realidade que o cinema oferece. Uma seria a verdadeira realidade, e a outra seria a ficção. Sabe-se que o real mais amplo inclui a vida social e todas as manifestações culturais do homem, e isto inclui, portanto, a esfera da própria ficção, do espetáculo enquanto objeto cultural. Como são esferas distintas, cada uma com suas peculiaridades, podem ser caracterizadas como dois momentos no processo de aproximação da realidade. O momento do espetáculo corresponderia ao momento da abstração no processo do conhecimento (Alea, 1983). Mas se a idéia é discutir o cinema como uma arte específica e também como um produto da indústria cultural, não se deve deixar de considerar o seu público, pois o cinema é um espetáculo, ou seja, um fenômeno destinado à contemplação. O espectador, segundo o autor aqui utilizado, pode ser classificado como um espectador contemplativo ou ativo. Nas palavras deste autor: “Quando falamos de espectador ‘contemplativo’ estamos nos referindo àquele que não supera o nível passivo-contemplativo; enquanto o espectador ‘ativo’ seria aquele que gera um processo de compreensão crítica da realidade (que inclui, claro, o espetáculo), e, provoca uma ação transformadora. Quando o espetáculo é contemplado como um objeto em si, nada mais, o espectador ‘contemplativo’ pode satisfazer uma necessidade de gozo, mas sua atividade se expressa numa aceitação ou rejeição do espetáculo, não supera o plano cultural. Este se oferece, então, como simples objeto de consumo e toda referência à realidade social que o condiciona se reduz a uma afirmação de seus valores, ou, em outros casos, a uma ‘crítica’ complacente” (Alea, 1983, p. 49). Deve-se, ainda, considerar o cinema como um produto de consumo e, neste sentido, perceber sua importância na veiculação de idéias e valores do e para o mundo social. Assim, tem-se o cinema também como uma forte arma ideológica capaz de conformar grandes setores do povo para valores e idéias de setores específicos e dominantes dentro de uma sociedade. As considerações realizadas até aqui já são suficientes para evidenciar a importância de um olhar mais 109 crítico sobre o cinema enquanto produto de consumo de massas. No entanto, os filmes, analisados no próximo item, apresentam algumas características que, a princípio, sugerem eles pertencer a uma categoria de espetáculo onde a realidade é questionada, levando o espectador a uma postura mais reflexiva (espectador ativo) do que contemplativa. Segundo Alea (1983), para provocar uma resposta reflexiva no espectador, é preciso que o espetáculo questione a realidade, exprima e transmita inquietações e interrogações. Ora, como é possível perceber, Matrix e Show de Truman são filmes cujo argumento central é o questionamento da realidade, ou seja, apresentam, de formas distintas, é certo, um tema filosófico e, por esta mesma razão, muito instigante. Seriam estes filmes espetáculos “abertos”, no sentido que permitem uma reflexão mais profunda do espectador, assim como sugere o autor acima citado? Esta questão é pertinente, pois, como argumenta Alea (1983): “Quando se trata deste espetáculo aberto, se coloca inquietações não somente estéticas, mas conceituais e ideológicas, o espetáculo se converte numa operação séria porque entra no plano da realidade mais profunda” (p. 52). A resposta a esta questão deverá, como se espera, ficar evidente na análise, apontar para o fato de que os filmes aqui em questão, muito embora apresentem o questionamento do real como tema, bem como outras características interessantes do ponto de vista da reflexão sobre o mundo atual, estão longe de provocar uma reflexão mais profunda sobre a realidade social. Ao contrário, ao veicularem determinadas idéias e valores, produzindo e veiculando um determinado consenso social, esses filmes contribuem para a reprodução de uma sociedade de consumo globalizada, nos termos que aqui se considera a realidade social contemporânea. Por outro lado, não se pode negar o impacto que o cinema exerce no mundo contemporâneo, porém, para entender esta que é considerada a oitava arte do mundo, é preciso um pouco mais de discussão. Roberta Veiga (1998), num interessante artigo, ressalta que o cinema não é algo deslocado, ele está presente na realidade vivida dos valores humanos, dos sonhos e da imaginação dos homens, e nós lhe damos espaço e sentido. Por esta razão o cinema é comunicação, pois seu processo compreende os interlocutores, a linguagem, o contexto e a realidade social com suas representações coletivas, suas relações e seus valores. Esta autora nos apresenta três aspectos sobre o cinema, segundo ela complementares e convergentes, que são descritos a seguir. O primeiro deles é a dimensão relacional, resRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 ponsável pelo fascínio que o cinema exerce. Resumindo as idéias de Roberta Veiga (1998), pode-se afirmar que o cinema só existe na interação com os sujeitos, e são os espectadores que completam o circuito comunicativo do cinema. Não se trata de um tipo de relação com o público, mas de relações de natureza diferenciada, que vão caracterizar a troca simbólica entre emissão e recepção. A indústria cinematográfica, como esta autora observa, produz bens simbólicos para estimular a demanda dos consumidores nas relações comunicativas, extrapolando a dimensão do consumo, onde os espectadores buscam “algo” no cinema que vai variar de acordo com o significado e/ou a significância da atividade de recepção. Como ainda observa esta autora, ir ao cinema pode ser uma atividade de lazer, de entretenimento, de compromisso social, uma manifestação cultural ou até mesmo profissional, pode ser uma forma de aprendizagem, ou um conglomerado dessas razões. O cinema é um espaço mágico que contribui para a formação de um elo entre o espectador e um mundo de sonhos, onde só existe o que se passa na tela. Conforme comenta Mafessoli (apud Veiga, 1998): “...nesse momento o sujeito se despe do papel social que lhe é imposto no diaa-dia, permitindo-se identificar com os personagens do filme, experimentar mil possibilidades de existência, vivenciando outras faces de sua persona” (p. 33). Um segundo aspecto é a relação entre cinema e vida social, visto como o entrelaçamento de imagens. Aqui a idéia parte do pressuposto de que o cinema derrama sobre a sociedade componentes imaginários (fantasia e ficção). A sociedade, em suas manifestações de sociabilidade, constitui um catalisador desse transbordamento, ela se revela como um manancial de matériaprima que vai se alimentar de imagens das telas. Como afirma Veiga (1998): “No momento da recepção o cinema alimenta a imaginação simbólica dos indivíduos. A partir daí suas imagens, histórias, tipos, passarão a fazer parte e a ser novamente transformados pela vida. É o espectador que faz a ligação entre as imagens da tela e o cotidiano. É ele que incorpora e reproduz essas imagens. Contudo, a realidade que alimenta o cinema e esse aspecto imaginário que alimenta o social são contextos que se inter-relacionam” (p. 34). O terceiro e último aspecto apresentado por esta autora - talvez o mais importante a ser destacado neste artigo - é o cinema como lugar de cristalização. No Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 cinema estão presentes imagens do cotidiano, do cenário das cidades, de pessoas, das relações sociais através de histórias, num filme que mostra uma forma própria e ficcional de brincar com o tempo e com o espaço. Por isso, ele permite que os espectadores se entreguem a ela como se acreditassem-na possível, sem perder a magia. Assim, o filme organiza o lado confuso e absurdo da vida (Veiga, 1998). Segundo Mafessoli (apud Veiga, 1998): “A cristalização permite que num momento ou num espaço único se condensem umas séries de nuances do vivido, da experiência dos sujeitos, como os mistérios, a libido, os sonhos, o sobrenatural, que na rotina diária parecem escondidos, pois escapam às práticas convencionais” (p. 36). O cinema utiliza a força do simbólico quando sai do campo do dever ser para o do poder ser. Como cristalização do imaginário, sintetiza em suas imagens as operações sígnicas e simbólicas, mesclando o dado concreto à imaginação. Ao resgatar o passado, reconstitui uma época ou uma memória, e ao projetar o futuro, mostra o dia-a-dia de sua concretude. Dessa forma, demonstra uma pluralidade de possibilidades, incorporando o surpreendente, o inusitado, e até mesmo o banal. Assim se faz espetáculo e capta a pulsão de viver. À medida que cristaliza o lado de sombra do social, o cinema permite a transcendência imanente ao cotidiano, ou seja, tudo aquilo que transcende o dado mundano, pois atinge o sobrenatural, mas que ao mesmo tempo emana do vivido no dia-a-dia (Veiga, 1998). É esta capacidade de transitar entre a realidade e a fantasia (de formas cada vez mais sofisticadas pela tecnologia hoje utilizada nos filmes) que faz do cinema um lugar privilegiado de transmissão de consensos sociais. A realidade social, por exemplo, sempre é de alguma forma retratada na tela, seja se aproximando do mundo real, seja ocultando ou mesmo transfigurando este mundo. Após todas estas considerações de cunho teórico, apresenta-se, a seguir, a análise dos filmes Matrix e Show de Truman. Uma análise que pretende ser clara justamente após todas estas considerações aqui realizadas. A tarefa não é fácil e, desde já, deixa-se evidente que o conteúdo da reflexão pretende ser uma leitura fundamentada sobre a veiculação de um determinado consenso social por esses filmes e, sendo assim, outras leituras podem ser sugeridas e realizadas. Com isto, fica registrado, não somente os limites do presente artigo, mas também a especificidade da abordagem aqui apresentada, cujo resultado deve estar condicionado aos pressupostos descritos anteriormente. 110 4. MATRIX E SHOW DE TRUMAN: A REPRODUÇÃO DE UM CONSENSO SOCIAL DA SOCIEDADE DE CONSUMO É preciso frisar que, para uma melhor compreensão da análise, assistir os referidos filmes é o mais indicado, pois a imagem, com sua fotografia, seus efeitos especiais, bem como todos os outros recursos que compõem o universo do cinema, não podem ser descritos no impacto que causam. 4.1 Análise dos Filmes Como se percebe, os dois filmes abordam a questão da realidade, fazendo do questionamento “do que é ou não o real” o ponto central de suas histórias. Mas é preciso deixar claro que Matrix é uma ficção científica e, por esta mesma razão, apresenta-se como um filme mais complexo, requerendo um maior esforço do espectador para compreender sua trama mais elaborada, muito embora de sua metade para o final este filme se transforme numa briga de mocinhos e bandidos. Já Show de Truman é uma comédia cujo enredo é de fácil compreensão. Os dois filmes são produtos comerciais, mas apresentam algum tipo de reflexão sobre o mundo contemporâneo, tornando-os sob este aspecto bem semelhantes. Show de Truman “brinca” com os paradoxos da realidade virtual e com a idéia de sociedade do espetáculo, abordando os poderes de manipulação da mídia eletrônica. Em Matrix, a questão se apresenta de forma mais profunda: o sistema social é a Matrix, uma realidade falsa, ou seja, um simulacro, pois o real é outro e foi destruído. Nos dois filmes, o tema do questionamento da realidade é o pano de fundo para uma trama que envolve o homem contra um sistema (um sistema social em Show de Truman, ou um sistema inteligente, mas artificial, em Matrix). Ademais, são dois dos filmes mais recentes da indústria cinematográfica norte-americana - de grande sucesso de público e bilheteria - que possuem por tema o questionamento da realidade. Deve-se ressaltar o seguinte: embora sejam filmes distintos, com histórias, tramas, estilos e formas diferenciadas, ambos podem ser vistos sob o mesmo ponto de vista, ou seja: têm por tema o questionamento da realidade e, como será destacado logo adiante, veiculam um mesmo consenso social necessário à reprodução da sociedade de consumo atual. A análise que segue não aborda os filmes separadamente. Decidiu-se por uma abordagem conjunta, separada apenas por temática, isto é, pelas idéias e valores que veiculam e que reproduzem um determinado consenso social. Essas idéias e valores, estando presentes 111 e difundidas de maneira muito evidente nestes filmes, caracterizam um consenso em torno do que aqui se sugere ser um modelo novo de homem. São elas: • o individualismo: a autonomia do homem diante da máquina; •a re-humanização do homem pela técnica: uso e domínio da velocidade; •o consumismo: instrumento de realização do novo homem. Sendo assim, apresenta-se uma abordagem destas categorias que procura descrever as idéias e valores a elas agregados e que permitem identificar a veiculação de um modelo novo de homem (um consenso social), isto é, o modelo de um novo indivíduo, cuja autonomia deve ser conquistada pela velocidade do uso e domínio das técnicas através do consumo. 4.1.1 O Individualismo: A Autonomia do Homem Diante da Máquina Identificar a veiculação de idéias e valores individualistas nos filmes aqui analisados pode ser uma tarefa aparentemente simples, afinal, os filmes enquanto produtos da indústria cultural contemporânea acabam por reproduzir a cultura dominante desta sociedade que, a rigor, foi construída com base no individualismo (liberalismo econômico). No entanto, para identificar a veiculação de um modelo novo de homem que os filmes apresentam, de acordo com uma nova sociedade de consumo, deve-se perguntar que individualismo está fundamentando este modelo, pois, como se afirmou anteriormente, no mundo atual o consumo não é mais somente uma característica importante de uma sociedade moderna, ele é o próprio sistema pelo qual se organiza toda esta sociedade (sistema social de consumo). Neste sentido, aqui se sugere que o individualismo veiculado nos filmes apresenta um conteúdo mais elaborado, sutil e renovado. Porém, perceber este individualismo nos filmes requer uma reflexão mais profunda, buscando suas evidências não em uma ou outra cena, e sim na obra como um todo. O individualismo na era moderna podia ser percebido como o valor fundamental que estruturava o mundo privado movido pela lógica liberal, a mesma que fundamenta as sociedades de mercados capitalistas. O contrapeso deste individualismo era o mundo público, representado pelo Estado encarnando o interesse coletivo, pelo menos em tese. Neste sentido, a distinção entre público e privado de alguma forma caracterizava a Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 organização social. Podemos começar nossa análise aqui. Nos dois filmes em questão, a distinção entre a esfera pública e a esfera privada simplesmente não existe. Se a distinção entre público e privado permitia um contraponto ao individualismo inerente ao sistema capitalista (o mundo individual, privado), pois o Estado tinha como função promover o interesse coletivo (o mundo político, público), no momento em que os filmes não apresentam esta distinção e, ao contrário, centram o conteúdo de suas narrativas na luta do homem contra a técnica, através de ações baseadas em esforços pessoais (heróis), temos, assim, somente uma esfera, a individualista, sendo enfatizada. Dito de outra forma, estes filmes reproduzem uma ideologia que abordam diferenças sociais e políticas como sendo pessoais e individuais, devendo ser resolvidas no nível pessoal e não político, como fraqueza individual e não do sistema social. Assim, o individualismo nestes filmes é mostrado através do mito do herói, da velocidade, do amor, da emoção, da luta do bem contra o mal, o homem se colocando como senhor de seus atos e buscando sempre uma resposta interior. Em Matrix, o próprio sistema “matrix” representa o sistema social onde impera o consenso fabricado pela matriz geradora de sentidos, tendo regras para manter a continuidade da dominação das mentes dos autômatos. O que leva o personagem Neo a querer conhecer a “matrix” é a busca de uma resposta interior, uma busca pela liberdade da mente, e é em busca dessa resposta que o filme trabalha a questão do que é real e do que parece ser real, da simulação e do simulacro. Em Show de Truman, a cidade “montada” onde vive Truman - na verdade um show televisivo passado durante todo o tempo - é apresentada como perfeita e, enquanto show, serve para o entretenimento das pessoas no mundo real, além, é claro, de servir como instrumento de propaganda para inúmeros artigos de consumo. No entanto, a sociedade “real”, isto é, a que assiste ao show, é apresentada como uma sociedade onde o consumo é colocado de forma central na vida das pessoas, afinal, todos estão “ligados” à TV, consumindo o show de forma alucinante. É contra um sistema assim, falso e desprovido de sentido, que Truman se levanta e busca se libertar. Sua busca é pela verdade e liberdade, representada por uma sociedade que está inteiramente “ligada” em um canal de TV. A busca pela verdade e pela libertação de um sistema que os domina representa, nos dois filmes, uma luta onde a principal arma é o esforço pessoal (herói) motivado por sentimentos humanos nobres, como o amor por exemplo. Tanto Neo em Matrix quanto Truman em Show de Truman são movidos por sentimentos interiores contra o sistema no qual estão aprisionados. O individualismo, aqui, é agora percebido mais profundamente: o homem é capaz, com suas características peculiares (capacidade de amar, de refletir sobre o mundo, de decidir Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 entre alternativas), de resgatar sua autonomia diante de uma tecnologia (por ele mesmo criada) que o domina. A figura do herói está presente em Matrix: Neo é o predestinado que salvará toda a humanidade, mas para isto ele tem de lutar contra os agentes, enviados a Matrix pelos computadores (que dominam os homens) que querem eliminá-los. No Show de Truman, esta questão do herói é mais sutil: Truman já é o herói do seu próprio Show para seus telespectadores, mesmo quando sai em busca da verdade. Aliás, é curioso observar que o próprio nome Truman significa, em inglês, “homem verdadeiro” (true man). Mas ao sair nesta busca pela verdade, transformase no herói também para os que estão assistindo ao filme, pois terá que descobrir a verdade por suas próprias forças ou, como é claro no filme, terá de lutar contra o sistema de vigilância da cidade cenário, contra o seu medo do mar e contra as tempestades fabricadas pelos diretores do Show. Ademais, fato marcante é que nos dois filmes, os respectivos protagonistas têm a intuição (percebem) que algo está errado, e isto os impulsiona para a busca da verdade. A questão aqui é: o individualismo, característica do mundo globalizado, é difundido, subliminarmente nestes filmes, como a redenção para o homem que se encontra aprisionado pelo “sistema”. Ao apelar para sentimentos humanos como o amor, a intuição, a coragem etc, os filmes apresentam a possibilidade de o homem resgatar sua autonomia perdida para a máquina (ou sistema tecnológico) que o domina. O que aparenta ser uma crítica ao mundo tecnológico, idéia esta que é ressaltada por muitos críticos de cinema, acaba reproduzindo este próprio mundo, pois, como vimos, os benefícios do avanço tecnológico são apropriados somente por algumas sociedades e suas elites. Em outras palavras, este avanço da técnica é fruto de uma sociedade individualista onde os benefícios da tecnologia são privatizados e, por isto mesmo, não são acessíveis para a maioria dos indivíduos. Ao apresentar uma crítica à tecnologia mas não questionar a própria lógica que a produz e, ainda, ao atribuir ao indivíduo a capacidade de, com seu esforço pessoal e interior, suplantar a tecnologia, estes filmes reforçam o valor individualista à medida que acenam para a possibilidade de se construir uma sociedade melhor através de esforços individuais, o que seria possível porque os homens são naturalmente superiores às máquinas. Esta naturalização da resolução do conflito (máquina x homem) parece só ocultar o fato de que a máquina (a técnica, a tecnologia) está servindo aos interesses de alguns homens e não de todos ou da maioria deles. Mas é a idéia, evidentemente falsa é claro, de que todos podem ser autônomos em relação à máquina, que vai caracterizar este tipo de individualismo. Um individualismo que constitui um dos aspectos do modelo novo de homem que estes filmes transmitem. 112 4.1.2 A Re-Humanização do Homem pela Técnica: Uso e Domínio da Velocidade A velocidade inerente à tecnologia é vista neste trabalho como uma das principais características do mundo contemporâneo. Uma síntese deste fenômeno pode ser assim apresentada: “Trata-se de um processo angustiante de troca em que as pessoas são compelidas por uma pulsão incontrolável de trocar de carro, de casa, de companheiro, de emprego, de roupas etc. É uma pulsação incessante pelo dever sem nenhum investimento substantivo no estar: não se está em lugar nenhum, vive-se continuamente na expectativa do provável. É um estado de permanente flutuação acima das coisas, dos atos e dos comportamentos. A ênfase já desloca-se do conceito de ‘sentido’, da materialidade, da mera existência física; os bens, matérias, tornam-se somente componentes físicos de uma sensação, de um eterno pular de ponto. É o girar, o movimento que se opõe à permanência. Oscila-se o tempo todo entre um estado de expectativa angustiante e de prazer e euforia que rapidamente se desfaz. Estimula-se a um ritmo crescente, a busca contínua por outra coisa, e, no momento de sua obtenção, ela como que automaticamente se dilui, recriando novamente a busca” (Marcondes Filho, 1991, p. 22). Resgatar a autonomia diante da técnica só é possível pelo esforço individual, isto é o que a análise realizada até aqui sugere. Mas os filmes mostram claramente que este esforço tem no interior subjetivo dos personagens o seu impulso central. Alguns exemplos: Neo, depois de consultar o Oráculo - uma espécie de vidente/curandeira - e receber a notícia de que não é o predestinado (mas no fim era ele mesmo) procura no seu interior as forças para tomar a atitude de salvar Morfheus que fora capturado numa emboscada; em outro momento, quando Neo está morrendo (ou já está morto?), Trinity usa seu amor por ele para salvá-lo, praticamente o ressuscitando. Em Show de Truman, o protagonista busca em seu interior a coragem para fugir da cidade cenário, enfrentando seus medos e traumas, para conseguir encontrar a mulher que ama. Outros exemplos poderiam ser dados, mas estes são suficientes para evidenciar como a autonomia do homem é buscada voltando-se para o seu interior. Assim, temos o amor como elemento redentor para a espécie humana, sendo este o sentimento que nos diferencia das máquinas. Aqui se sugere uma proposta 113 de re-humanização da espécie humana, em outras palavras, o reencantamento do homem a partir do acesso às imagens produzidas por seus sentimentos e emoções, por seu inconsciente, um lugar habitado por mitos, fábulas e maravilhas. Mas, se tudo isto é o que parece mover o indivíduo rumo à reconquista de sua autonomia diante da máquina, pode-se concluir, observando melhor estes filmes, que não é o que, de fato, garante esta autonomia, pois a técnica é utilizada para esta reconquista. Para uma melhor compreensão desta evidência, é preciso ressaltar uma outra questão presente nestes filmes: a velocidade inerente à técnica. Como ressaltado anteriormente, a velocidade é característica do mundo contemporâneo, apresentandose como mito produzido pelo avanço da técnica (Santos, 2001). Para Baudrillard (1991) é o mito, expulso do real pela violência da história, que invade o cinema como conteúdo imaginário. Nas palavras deste autor: “O cinema atualmente tenta se aproximar cada vez mais da perfeição, do real absoluto, na sua banalidade, na sua veracidade, na sua evidência nua, no seu aborrecimento e ao mesmo tempo, na presunção, na pretensão de ser o real, o imediato. Simultaneamente a esta tentativa de coincidência absoluta com o real, o cinema aproxima-se também de uma consciência absoluta consigo própria – e isto não é contraditório: é mesmo a definição do hiper-real” (Baudrillard, 1991, p.64). Em Show de Truman, a crítica à tecnologia é evidente e a libertação do protagonista, sua busca da liberdade e da verdade, não se traduz por uma superação dela, ao contrário, pois não há nenhuma evidência de sua subordinação ao homem. As pessoas (os telespectadores) não mudam suas atitudes em relação à televisão: elas simplesmente mudam de canal com o fim do Show. A velocidade, proporcionada pela tecnologia, é usada pelas pessoas de forma até inconsciente, ela está interiorizada nos indivíduos que assistem ao Show e está sendo assimilada de forma subliminar nos espectadores do filme. Esta idéia fica clara quando se percebe que a tecnologia, ali, produz um hiper-real (o real veloz, imediato e perfeito) necessário para afastar qualquer questionamento sobre a realidade, assim como ela se processa na vida cotidiana. A tecnologia continua dominando a todos e o Show, afinal, foi proporcionado por ela, assim como outros vão continuar a proporcionar. Show de Truman, aparentemente, questiona o domínio do mundo tecnológico (no caso a TV) sobre as pessoas, mas acaba não questionando a incorporação, pelos indivíduos, da velocidade produzida por esta mesma tecnologia. O filme veicula a idéia de que é possível ao Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 homem se libertar deste domínio, apresentando isto na vida de Truman. No entanto, ao mostrar os telespectadores absorvidos pelos acontecimentos da telenovela, o filme acena, de maneira ainda mais emblemática, para o fato de que a velocidade (a técnica) é, na realidade, pelo menos mais em seu uso do que em seu domínio, o paradigma que move este mundo. Ademais, a velocidade está aparente ao mostrar uma tecnologia capaz de transmitir para milhões de pessoas uma telenovela em tempo real. Algo curioso, mas sintomático, é o fato de Truman, na cena final, entrar no mundo real subindo uma escada encravada no céu artificial do cenário do show: o mundo real seria perfeito em sua imperfeição? Isto parece estar de acordo com a sentença proferida por Baudrillard (1991) ao observar que a relação atual entre o cinema e o real é uma relação inversa negativa: resulta da perda de especificidade de um e de outro, ou como afirma: “O cinema pode hoje colocar todo o seu talento, toda a sua técnica ao serviço da reanimação daquilo que ele próprio contribuiu para liquidar. Apenas ressuscita fantasmas e aí se perde ele próprio” (Baudrillard, 1991, p.65). Mas é no filme Matrix que o uso e domínio da velocidade apresenta melhor a idéia de re-humanização do homem pela técnica. Como se percebe ao ver este filme, a velocidade é uma constante. Na crítica de Celso Fioravante (1999) para o jornal Folha de São Paulo: “Matrix é um filme saudosista, que, embora professe uma estética pautada na velocidade dos videogames, reconstrói essa estética pautado em inúmeras outras áreas do conhecimento, como lingüística, filosofia, religião, tecnologia, medicina, álgebra, história etc. É isso que faz com que exista sempre algo de familiar em Matrix. E é com isso que cativa o espectador [que] se sente próximo de Matrix, mas essa proximidade não é espacial ou estética, mas temporal. O que conta no filme é o tempo, a facilidade com que ele se desloca entre o passado e o futuro, a maneira como confunde essas duas ‘realidades’. Deve ser isso que faz com que as pessoas o discutam, mesmo achando que seja superficial. Matrix sobrevive como um filme que sonha com um conhecimento mais humanista, que se contrapõe aos abusos das mais avançadas das tecnologias.” No filme Matrix, a velocidade está presente não só nas cenas onde Neo desvia dos projéteis das poderosas armas dos agentes, dos incríveis pulos e saltos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 dos personagens quando se enfrentam, mas também em toda a animação, utilizando-se de uma estética baseada na velocidade dos videogames12 . Aqui já se pode fazer uma relação com a sociedade atual, onde a vida é rápida, o consumo é e deve ser veloz, o que é possível pelo enorme avanço da tecnologia. Como destaca Marcondes Filho (1991): “Mas as máquinas não são apenas os computadores penetrando cada vez mais amplamente em todos os ambientes da vida pública e privada. A rapidez do envio das mensagens e comunicados encontra um paralelo no conceito de velocidade, uma das categorias mais decisivas da nova era da técnica. Em alta velocidade dá-se a transmissão de informações, o domínio de percursos geográficos, a criação de material técnico, a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, a rotatividade dos objetos e materiais que servem nosso cotidiano, e até mesmo da mão-de-obra” (pp. 21-22). O uso e o domínio da velocidade (inerente à técnica) é o meio pelo qual Neo, o protagonista de Matrix, consegue vencer seus perseguidores, escapando do domínio dos poderosos computadores que escravizam a humanidade. Isto é claro nas cenas em que Neo e seus amigos utilizam programas de computadores sofisticados para treinarem e receberem informações sobre técnicas de lutas marciais, bem como, outro exemplo dentre vários no filme, quando eles recebem todo um conhecimento, transmitido em tempo real para seus cérebros, para pilotarem um helicóptero utilizado em uma de suas fugas. Ou seja, é com auxílio de uma sofisticada tecnologia (que dominam) que podem sair da Matrix e vencer as máquinas, o que não deixa de ser contraditório. Aqui, o mito da velocidade, isto é, o mito do encurtamento do tempo e do espaço, conforme a descrição de Milton Santos, apresentada anteriormente, se faz presente de forma clara. Se, por um lado, estes filmes apresentam uma defesa mais interessante do individualismo, à medida que colocam o homem superando a máquina, apelando para valores como reflexão, capacidade de escolha e emoções, por outro lado, ao colocarem como meio para esta re-humanização (um resgate da autonomia humana) o uso e domínio da tecnologia, acabam por veicular um modelo novo de homem que somente reproduz uma sociedade de consumo globalizada, onde a técnica e sua racionalidade imperam e organizam o mundo social. É neste sentido que Marcondes Filho (1991) apresenta uma das conseqüências da velocidade no mundo atual: 114 “A alta velocidade trouxe como conseqüência a acentuada volaticidade e efemeralidade das modas, produtos, da inovação técnica, dos processos do trabalho, das idéias, ideologias e práticas préestabelecidas. Valoriza-se a instantaneidade e a descartabilidade, inclusive a de valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, da fixação em coisas, edifícios, lugares, povos, formas autênticas de fazer e de ser” (p. 22). A apologia à técnica é também a apologia à velocidade. No filme o Show de Truman, esta apologia é mais sutil e subliminar, pois só a percebemos pela ausência de um questionamento sobre ela no mundo real (o dos telespectadores). Deve-se observar, porém, que este filme reproduz um mundo altamente racionalizado pela técnica, haja vista que a sociedade ali retratada está profundamente condicionada ao aparelho de TV com suas reproduções virtuais da realidade. Porém, no filme Matrix a apologia à tecnologia é evidente, não só pelo uso de sofisticados recursos técnicos pelos personagens, mas também pelos diversos efeitos especiais que ali são criados. É o uso e domínio da técnica que possibilita uma re-humanização do homem. Marcondes Filho (1991) observa algo semelhante ao discutir a técnica no mundo contemporâneo, a saber: “O processo de industrialização em seus desdobramentos com a técnica, que cada vez mais avança sobre os espaços da vivência humana, deixa transparente através da imagem e da forma como ela realiza a destituição dos monarcas e de supressão de Deus. A técnica acaba com o ‘ponto central no mundo’, que levará mais tarde os homens a questionar o próprio sentido da metafísica e de sua existência enquanto seres com estruturas estáveis, enraizadas ou culturalmente consolidadas. Por meio da reprodução eletrônica, a Segunda natureza do homem deixa de ser a cidade, a arte, a linguagem, para ser a própria técnica. Esta passa a simular o processo de comunicação: de quem agora já não tem mais nada a dizer” [grifo nosso] (pp. 30-31). Até esta altura da análise já foi possível perceber dois conjuntos de idéias constitutivas do modelo de novo homem, aqui considerado um consenso social veiculado por estes filmes e que contribuem para a reprodução da sociedade de consumo atual. No entanto, este individualismo de cunho humanista, exercido pelo uso e domínio da tecnologia, acenando para uma re-humanização do 115 homem, ou seja, para um resgate de sua autonomia diante da máquina, só poderia ser conquistado pelo homem, realmente, se todos tivessem acesso à tecnologia, isto é, ao seu uso e domínio. Como esta questão não está colocada nos filmes, poderia se concluir que o modelo de novo homem, ali sugerido, está apenas apontando para a necessidade de rever o uso da tecnologia, veiculando um consenso social que, aí sim, seria importante para o questionamento da atual sociedade de consumo globalizada. Alías, esta é a idéia, pelo menos aparente, que estes filmes apresentam. Porém, como deve ficar claro a seguir, não parece ser esta a questão, pois estes filmes incorporam no modelo novo homem que veiculam um elemento muito importante: o consumismo. Este elemento faz parte, de forma direta e, também às vezes indiretamente, do modelo, fazendo deste um consenso social que reproduz a lógica social hoje dominante. 4.1.3 O Consumismo: Instrumento de Realização do Novo Homem Aqui se sugere que o modelo novo de homem veiculado por estes filmes, ou seja, um indivíduo autônomo pelo uso e domínio da tecnologia (velocidade), é adequado à sociedade de consumo globalizada, isto porque este modelo pressupõe o consumo da tecnologia moderna como forma de emancipação do homem contemporâneo. E aqui está mais clara a contradição desta lógica: temse um novo homem cujo modelo deve-se seguir para se ter autonomia e compreensão deste mundo, algo que já não se tem em virtude da racionalidade extrema de um mundo dominado pela técnica. A questão do consumo é fundamental nesta análise. O consumo surge, nestes filmes, como instrumento pelo qual o homem pode se emancipar, e é isto que faz do consumismo o último elemento constitutivo do modelo novo de homem que os filmes veiculam. Num primeiro momento, pode-se perceber a questão do consumo colocada de forma aparente nos filmes. Em Show de Truman, por exemplo, isto é claro, não só pelo fato de o show ser transmitido durante todo o tempo e ao vivo, mas também pelas propagandas de tudo o que faz parte do show, como cortador de grama, chocolate em pó, facas e tantos outros objetos. Em Matrix, o consumo, em sua aparência, é percebido pela própria maneira do cinema influenciar os gostos das pessoas, como, por exemplo, no caso deste filme, pelos óculos, por um modelo de roupa ou mesmo um estilo de corte de cabelo. No entanto, é a essência do consumo que este artigo quer evidenciar, pois nestes filmes a propaganda do consumo não é aparente (Em Show de Truman o consumo aparece para ser criticado e em Matrix não se percebe uma discussão aberta sobre ele), pois ela é realizada de forma subliminar e faz parte de um consenso social (modelo novo de homem) que contribui para a reprodução da Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 sociedade de consumo globalizada. O mundo virtual que estes filmes apresentam tem a capacidade de tornar mais bonita a imagem e de sobrepor mais importância a ela, influenciando o consumismo desenfreado baseado na emoção. Nos dois filmes, o visual está presente em toda parte e não só nas roupas e objetos usados pelos personagens. Entretanto, o que mais se destaca nos filmes, sobretudo em Matrix, é a própria tecnologia, ao mostrarem um mundo repleto de novas técnicas e sofisticados meios de comunicação e informação. Em geral, estes filmes, para além de seus conteúdos e suas mensagens, representam, de alguma forma, a propaganda da própria tecnologia usada na produção dos próprios filmes, produções milionárias, como em Matrix e seu mundo cibernético. Este cenário cibernético e informático é uma referência que se impõe às pessoas no sentido de procurarem a renovação de suas tecnologias (do consumo delas), fazendo com que elas pensem que sem essas tecnologias estariam atrasadas em relação ao desenvolvimento do mundo, sentindo-se diferentes, excluídas da sociedade que ali presenciam (e de certa forma estão) e parece ser a melhor. A propaganda da tecnologia aqui é sutil e, elaborada dentro dos quadros e das possibilidades do cinema, geralmente tem um efeito para além do simples consumo de um produto: ali se forma o consumidor em potencial de uma tecnologia, antes mesmo de se criar, na realidade, o produto, como por exemplo (extremo) um programa que leva diretamente ao cérebro humano uma enorme gama de conhecimentos técnicos, tudo em fração de segundos. Deve-se ressaltar que a técnica é consumida pelos personagens como meio de conseguirem vencer o sistema que os oprimem. Em Matrix isto é evidente pelo aparato tecnológico que usam em suas lutas com os agentes que os perseguem. Em Show de Truman, o consumo aparece, e aí sem crítica alguma, na realidade dos telespectadores condicionados à TV. Um outro aspecto a ser ressaltado sobre o filme Show de Truman, ainda, é o fato de que apresenta uma realidade bem mais próxima da atualidade do que Matrix, haja vista a influência hoje da TV na vida das pessoas e, também, a veiculação de programas do tipo reality show por várias emissoras atualmente. Deve-se observar, também, que o consumo parece hoje dar mais identidade aos indivíduos do que o trabalho, uma questão sintomaticamente ausente nestes filmes. Assim, temos o modelo novo de homem caracterizado, um consenso social que reproduz toda a lógica de uma sociedade fundamentada na produção e consumo global de tecnologias. E estas são criadas orientando-se Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 pela obtenção de valor econômico mais do que para a socialização de seus benefícios, assim produzindo e reproduzindo as desigualdades sociais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo procurou caracterizar a sociedade de consumo contemporânea destacando os aspectos que permitem evidenciar a produção de um certo consenso social necessário à sua própria reprodução. Isto foi possível analisando dois produtos da indústria cultural cinematográfica norte-americana, apontando a veiculação de um consenso social em torno de um modelo novo de homem, adequado à sociedade de consumo globalizada. Desta forma, foi possível, não somente revelar o poder do cinema como agente modelador de idéias e valores que contribuem para a manutenção de uma sociedade acentuadamente desigual, mas, sobretudo, chamar a atenção para necessidade da crítica a um consenso social vazio de significado por não representar a realidade social, servindo, assim, mais para ocultá-la do que questioná-la ou mesmo contribuir para sua transformação. A fundamentação teórica aqui apresentada procurou, como foi visto, deixar clara a importância do consenso social para a organização de uma sociedade, mas ressaltou também que, em geral, os consensos sociais são construídos e transmitidos a partir das idéias e valores dos setores dominantes dentro da sociedade. A discussão sobre a indústria cultural procurou demonstrar o quanto sociedades industriais capitalistas influenciam na transmissão de idéias e valores, sobretudo culturais, veiculando uma ideologia que procura dar sentido à lógica individualista que fundamenta a organização social baseada no mercado. Às discussões anteriores, somou-se uma abordagem crítica do mundo globalizado, onde a preocupação foi apresentar os aspectos “perversos” de um processo de globalização. Este processo, provocador de extremas desigualdades em países periféricos aos centros de poder econômico - como o Brasil, por exemplo - se confunde com as novas características das sociedades atuais, onde o consumo passou a ser o próprio sistema social que as fundamentam. Após estas discussões, foi possível abordar o cinema, evidenciando-o como manifestação artística importante do mundo atual, mas, também, como um instrumento poderoso de veiculação de idéias e valores. A análise dos filmes só foi possível, como aqui se apresentou, a partir de todas estas considerações teóricas, permitindo empreender um sentido mais claro para o que foi sugerido: os filmes veiculam um consenso social em torno de um modelo novo de homem, um modelo necessário para a reprodução da sociedade de consumo globalizada. Se este modelo é realmente passível de ser incorporado pelas pessoas, ainda que indiretamente 116 (não será diretamente?), basta observar os aspectos do cinema aqui anteriormente descritos. Em outras palavras, levando-se em consideração a dimensão relacional do cinema (a responsável pelo fascínio que ele exerce), a relação entre cinema e vida social (a mescla real e ficção) e, ainda, o fato de o cinema ser um lugar de cristalização, onde o que é fantasiado orienta o próprio real, pode-se ter uma clara idéia de como o modelo novo de homem aqui sugerido é assimilado e reproduzido. Outras questões poderiam ser incorporadas na análise dos filmes como, por exemplo, os mitos e arquétipos que são apresentados e difundidos, como também a veiculação de outras mensagens subliminares como a questão ecológica, a idéia de esperança e tantas outras. Mas optou-se por questões mais de fundo e abrangentes como o individualismo, a técnica e o consumo. Os filmes aqui abordados são produtos da indústria cultural num mundo dominado pelas relações de troca, num mundo onde o consumo é um sistema próprio que se encontra na base da sociedade, estruturando-a por completo. Se, como procurou evidenciar este artigo, estes produtos reproduzem uma sociedade assim constituída, isto é, uma sociedade baseada no consumo, dividindo consumidores e não-consumidores, ou subconsumidores, marginalizando um grande segmento da população ao impor uma lógica de mercado excludente, enfim, se estes filmes (e muitos outros) têm o poder de encantar as pessoas através de suas estéticas cada vez mais atraentes e sofisticadas, não se deve, aqui, sugerir uma conclusão que se situe na já conhecida fórmula de criticá-los ou aceitá-los, adotando uma perspectiva teórica dos “integrados” (aqueles que defendem o papel dos meios de comunicação de massa) ou “apocalípticos” (os que criticam este papel)13 . Este trabalho prefere se situar conforme a crítica elaborada por Umberto Eco (1979) a estas posições, resumidas aqui nos seguintes termos: “Os ‘apocalípticos’ estariam equivocados por considerarem a cultura de massa ruim simplesmente por seu caráter industrial. Para Eco, não se pode ignorar que a sociedade atual é industrial e que as questões culturais têm quer ser pensadas a partir dessa constatação. Os ‘integrados’, por sua vez, estariam errados por esquecerem que normalmente a cultura de massa é produzida por grupos de poder econômico com fins lucrativos, o que significa a tentativa de manutenção dos interesses desses grupos através dos próprios meios de comunicação de massa. Além disso, não é pelo fato de veicular produtos culturais que a cultura de massa deva ser considerada naturalmente boa, como querem os 117 ‘integrados” (Crespo, 1993, pp. 196-197). Na perspectiva de Umberto Eco, não se pode pensar a sociedade atual sem os meios de comunicação de massa. Sendo assim, a preocupação deste autor volta-se para a descoberta do tipo de ação cultural que deve ser estimulado pelos meios de comunicação de massa para que realmente eles transmitam valores culturais mais abrangentes, não reproduzindo uma visão de mundo de grupos privilegiados dentro da sociedade (Crespo, 1993). Esta parece ser a questão mais importante após uma análise mais crítica dos filmes. É claro que filmes assim continuarão a ser produzidos14 , mas isto não quer dizer que a sociedade não tem condições nenhuma de valorizar outros conteúdos para o entretenimento das pessoas. Mas isto só será viabilizado com um aumento da consciência dos indivíduos que, por sua vez, só pode ser pensado a partir de uma maior participação da sociedade nas decisões políticas e, sobretudo, econômicas. Ademais, não se pode perder de vista que a tecnologia tem se tornado o fator central que caracteriza as sociedades contemporâneas, influenciando as formas pelas quais a realidade social é concebida pelas pessoas. Na visão de Marcondes Filho (1991) a técnica se apresenta como um substituto dos componentes clássicos estruturantes da realidade, e nas palavras deste autor: “Desaparecendo os clássicos componentes estruturantes da realidade de cada um (forte ligação à religião, a um princípio filosófico, a uma ideologia política), as pessoas buscam sair da angústia do esvaziamento através de novas formas de metafísica. Assim, o renascimento religioso, ou seja, a busca de uma ‘verdade eterna’ acaba funcionando como um oportuno substituto deste estado de coisas marcado pelo flutuar acima de qualquer envolvimento mais afetivo. É uma forma de pseudomistificação numa sociedade altamente racionalizada” (Marcondes Filho, 1991, pp. 22-23). Deve-se chamar atenção, isto sim, para o fato de que estes filmes, como produtos culturais contemporâneos, por um lado reproduzem um consenso social necessário à reprodução da sociedade de consumo e, por outro lado, constituem-se como pontos de onde se pode partir para uma reflexão mais crítica que contribua para a superação de um sistema social cada vez mais vazio de sentido. Finalmente, a perspectiva de análise aqui apresentada teve a pretensão de deixar claro que, a partir de uma visão crítica mais ampla, estes filmes devem ser vistos como o reflexo de uma sociedade já vazia de Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 sentido devido à sua extrema racionalidade técnica e, por outro lado, como grandes simulacros de um mundo ou realidade que assim já não existe ou não quer se deixar aparecer em suas reais contradições. (8) Sobre o neoliberalismo, indica-se o livro organizado por Emir Sader: Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1995. 6. REFERÊNCIAS (9) Este termo é utilizado por Jean Baudrillard em suas análises, e na mesma perspectiva é usado também por Milton Santos e Zygmunt Bauman; ver obras referenciadas destes autores. (1) Sobre este argumento, ver Simulacro e Simulação, de Jean Baudrillard, Lisboa: Antropos, 1991. (2) Para uma discussão mais ampla sobre o conceito de Consenso Social, ver Dicionário do Pensamento Social do Século XX, de Tom Bottomore. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. (pp. 131-132). (3) Sobre o conceito de ideologia, aqui usado no sentido de ocultação da realidade, ver o clássico Ideologia Alemã, de Karl Marx & F. Engels. Uma boa discussão do conceito de ideologia no sentido aqui utilizado é o livro O que é ideologia, de Marilena Chauí. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984. (4) Escola de Frankfurt foi como ficou conhecido o grupo de intelectuais de influências teóricas diversas que se reuniram a partir de 1923, em Frankfurt, empreendendo uma crítica radical daquele tempo. Entre seus principais autores estão: Theodor W. Adorno, Hebert Marcuse, Max Horkheimer e Walter Benjamin. Os principais temas abordados por estes autores, conhecidos também como formuladores da Teoria Crítica, foram: o totalitarismo, a sociedade de consumo e a indústria cultural, entre outros. Ver A Escola de Frankfurt – luzes e sombras do iluminismo, de Olgária C. F. Matos. São Paulo: Moderna, 1993. (5) Aqui é interessante deixar claro para o leitor não especializado a definição dos conceitos semiológicos de signo, significado e significante. Conforme o Dicionário Michaelis (São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1998), por signo entende-se a entidade que substitui o objeto a conhecer, representando-o aos indivíduos e apresentando-lhes em lugar do objeto. Significado é o sentido, a acepção expressa pelo signo, e significante é o complexo sonoro audível que encerra o significado do signo lingüístico. (6) Simulação, como usado por este autor, é fingir uma realidade que existe, e simulacro é fingir uma realidade que já não existe. A diferença é que na simulação ainda há relação com uma realidade existente, já no caso do simulacro não há esta relação, pois a realidade que o simulacro retrata já não existe. (7) Milton Santos faleceu em junho de 2001, quando este trabalho ainda estava sendo elaborado. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 (10) Sobre as transformações do capitalismo no século XX, sobretudo a passagem de um sistema industrial de produção rígido, baseado na padronização da produção e do consumo, para um sistema de produção flexível, alcançado graças às inovações tecnológicas do final do século, ver A Condição Pós-Moderna, de David Harvey. São Paulo: Edições Loyola, 1995. (11) Aqui o termo tem a seguinte definição dada por Turner (1997) : “Ideologia é o termo empregado para descrever o sistema de crenças e práticas que é produzido por essa teoria da realidade. Embora a ideologia em si não tenha forma material, podemos ver seus efeitos materiais em todas as formações sociais e políticas, da estrutura de classes às relações entre os sexos e à nossa idéia da constituição de um indivíduo. O termo também é usado para descrever as atividades da linguagem e da representação na cultura que possibilitam que tais informações sejam construídas como naturais” (p. 130). Ver referências bibliográficas. (12) O comentário de Celso Fioravante sobre o filme Matrix, publicado no Jornal Folha de São Paulo (ver referências bibliográficas), destaca esse aspecto do filme, entre outros. (13) Esta discussão se encontra na obra de Umberto Eco, Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. (14) O próprio filme Matrix deverá ter uma seqüência produzida na Austrália pela Warner Bros. Pictures. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEA, T. G. Dialética do espectador. São Paulo: Summus, 1983. BAUDRILLARD, J. O meio de comunicação de massa. São Paulo: mimeo, s/d. ______________. Simulacros e simulação. Lisboa: Antropos, 1991. ______________. A sociedade de consumo. Lisboa: 118 Edições 70, 1991b. UFMG, n. 49, maio 1998, p. 31-37. BAUMAN, Z. Globalização – as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BOBBIO, N. Dicionário de política. 3ª ed. Brasília: UnB, 1991. BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1991. CRESPO, R. A. Cultura e ideologia. IN: TOMAZI , Nelson Dacio (coord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual, 1993. Unidade V, p. 161-205. ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. FIORAVANTE, C. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 jun 1999. Acontece, p.2. HARVEY, D. 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Os Finos Esqueletos do Pensamento” Sônia Guedes do Nascimento Leal * Resumo. Trata-se de uma reflexão sobre as categorias lógicas do pensamento em Peirce. Palavras-chave: Predominância, sentir, sensação, símbolo, dilapidar, infiltrar, regenerar. Abstract. This paper deals with a reflection on the logical categories of thought in Peirce. Key words: Prevalence, feel, sensation, symbol, dilapidate, infiltrate, regenerate. 1. AS PREDOMINÂNCIAS NA LÓGICA DO PENSAMENTO EM PEIRCE 1.1 Predominância I A nossa pressuposição mais inicial como seres de representação é a intimidade com o instante. O instante é corpo inteiro, o todo, borrão dentro do qual escorremos. O modo de contactá-lo é estar com ele, é existi-lo. Diz Peirce: “...nada é mais oculto do que o presente absoluto.” (Peirce, 1977, p.24). E o modo de ser no presente absoluto é sentir. Sentir é uma espécie de compreensão que, em vez de caminhar, empoça. E aí ficamos, como crianças, chapinhando com os pés. E não é que a criança não esteja fazendo “nada”, ao contrário, ela está sentindo o peso do tudo, está em ofício. E este “ofício” já é uma tradução, uma “... finíssima película de mediação.” (Santaella, 1984, p. 62). * Professora da UNIVAP. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Esta qualidade do sentir está aberta a uma miríade de semelhanças que tecem a vaga mancha de uma impressão. A semelhança é o ícone, incipiente estar de um objeto que oscila entre uma multidão de parecenças como se procurasse a si. A inquietude do objeto em ser sem definitivamente ser, cria uma hipótese, um rema. Uma hipótese é o apagado latejar de uma compreensão. Mabe recria a umidade do quase-signo, da qualidade do sentir. O instante se abre e se furta. 1.2 Predominância II Por nuvens separados Os patos selvagens se dizem adeus. (Bashô, 1980, p. 41) 120 Imersos na percussão do próprio eu, somos de repente interrompidos por um elemento estrangeiro a essa percussão. O elemento estrangeiro é o não-eu, a experiência que força a vontade, o sinsigno. Diz Peirce: “A realidade é aquilo que insiste, nos força a reconhecer um outro diferente do espírito...” (Peirce, 1983, p. 95). O que insiste é a experiência do ‘faneron’, a mira que cria tensão em nosso arco de ser e nos retesa até a pressão do quase pensar. É o pensarsensação, margem anterior à intenção. E na tensão do arco retesado pelo outro, pelo índice, descobrimos, força bipolar, e outro e a nós próprios. O que resta do confronto é a constatação, sensação do que somos e do que é o outro. O que resta do confronto é “... Esta noção de ser aquilo que outras coisas nos fazem ser ...” (Santaella, 1984, p. 65). Creio estarem aí as “nuvens” de que diz Bashô, que fizeram com que os patos selvagens, que voariam juntos, se dissessem adeus. 1.3 Predominância III “A palavra crisântemo é de origem grega, oriunda de vocábulos que significam ouro e flor. Os antepassados silvestres do moderno crisântemo foram duas pequenas espécies nativas da China e do Japão. Milhares de variedades hoje cultivadas são derivadas de espécies e híbridos do gênero Chrysantemum, da família das Compostas.” (Enciclopédia Barsa, vol. 5, 1964, pg. 17) O que faz o mundo vir à tona é o signo como inteligibilidade. Sem ele seríamos seres obnubilados, acumulados, atirados para dentro. Entre nós e o fenômeno há uma mediação sígnica, onde se dá a criação do mundo como representação e o nosso próprio nascimento como “... seres simbólicos, isto é, seres de linguagem.” (Santaella, 1984, p.12) Signo como lei guarda uma relação para dentro de si, ou seja, como enraizamento nos quase-signos, e para fora de si num movimento de comunicação, através do símbolo, com uma mente interpretadora onde se processará nova remessa sígnica. O signo indica o objeto dinâmico, mas não consegue expressá-lo e, “Eis aí ... aquilo que funda a miséria e a grandeza de nossa condição como seres simbólicos.” (Santaella, 1984, p. 11) Como no hai-kai de Buson, o objeto dinâmico “crisântemo amarelo”, sob uma lanterna sígnica, em121 palidece O crisântemo amarelo sob a luz da lanterna de mão perde sua cor. (Buson, 1980, p.36) 2. OS ... “FINOS ESQUELETOS DO PENSAMENTO...” (Santaella, 1984, p.51) “Aí está o mundo (quase-signo): digam e façam dele o que quiserem ou puderem (interpretante): aí está o mundo.” (Pignatari, 1979, p.52) O homem busca o sentido, busca a linguagem. O sentido é tecido pelos modos de operação do pensamento diante dos fenômenos tais como eles se apresentam à consciência. Os modos de operação desse pensamento são as categorias, tipos tão interdependentes que as fronteiras entre elas, como linhas estáticas, inexistem. A consciência é uma amplidão e as idéias que nela vagam só podem ser descritas em sua constituição como “finos esqueletos” do pensar. Nessa medida, o mundo como o temos, ou o que chamamos de “real” é uma construção mental, é uma tradução. A tradução é a nossa própria vida: somos sígnicos. As categorias universais, no campo psicológico, perfazem então nossa experiência de mundo: são elas “... coisas vivas e vividas ...” (Santaella, 1984, p. 53). A Primeiridade de nossas vivências é formada de uma experiência tão inusitada que não logramos compará-la a coisa alguma. É que a “matéria” dessa Primeiridade foge a qualquer medida necessária para se construir um pensamento: não há tempo e portanto não há digitalização; os espaços são concomitantes, e o sentido tem tal abrangência, que mais se assemelha a um borrão ou a um som agudo que apenas tonteia. Esse “mundo” a contactar, exatamente por ser todo inteiro e simultâneo, tem a qualidade do que é inesgotável e assim pode prover uma série infinita de linguagens, como ainda tem o poder de regenerá-las como organismos vivos que são. A riqueza do que não se divide seria então o princípio gerador de toda uma possibilidade de estilhaçamento, que é o caminho da busca de um sentido. Desta maneira, a Primeiridade seria como silos da linguagem: o ponto de onde tudo parte e para onde deve retornar o signo poético. O signo poético é um compreender que para ser inteligível precisa ser símbolo, mas para atingir uma compreensão deve apontar o caminho de volta ao ícone. O primeiro contactar é, pois, um imantar-se na presentidade que, de imediato, é resgatada pelo recorte Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 que os nossos sentidos fazem das sensações no existir em reação. E isto, que já é Segundidade, é a encarnação de uma atualidade tal como a carrega o sorriso da Mona Lisa e o interminável salto da rã de Bashô. E embora o signo estético não queira “distrairse de si”, como cita Júlio Plaza (Plaza, 1985, p, 27), o terceiro esqueleto do pensar é a encarnação de uma inteligibilidade “ ... através de signos-tipos que refletem intenções e hábitos e que incidem sobre a sintaxe e construção do próprio signo.” (idem) É que para cumprir-se como ser de linguagem o homem tem que tomar uma forma tocável, tem que cristalizar-se. São cristais, a linguagem. E essas pedras de aquisição do mundo (signos de lei), são em si mesmas vivas, pois a sua mais recôndita intimidade é a de um líquido (1º), que entrando em ebulição diante dos fatos (2º), ascende pelos seus canais (as sensações), e vem a se cristalizar (3º), em contato com a superfície. E apesar de vivos, esses cristais de linguagem, pela própria natureza (a digitalização), barram e metamorfoseiam os quase-signos, refratários que são à mudança de meio. Eis que o símbolo, nascido para representar o real, usurpa para si o poder total, e à semelhança de uma ditadura, lapida e dilapida a realidade que deveria representar. É que a língua como mediadora entre o sujeito e o objeto afirma-se como fenômeno (1º) para a consciência, donde se origina seu poder repressor. O real do homem simbólico torna-se então uma paisagem enquistolada: nada mais nasce nem se deixa permear pela experiência. O signo-homem está enganchado à superfície de si próprio e asfixia. É então necessário abrir passagens no terceiro para que o signo poético possa exercer seu poder regenerador. O trabalho é de uma infiltração: o fio poético se enreda na própria materialidade da língua e energiza e vivifica a representação do real. É pois de se considerar a interdependência das categorias, uma vez que, como informante de um sentido, Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 o homem deve cristalizar-se, mas só cumpre a si mesmo se esses cristais puderem refletir a revivificação de cor, forma e brilho que emerge de suas bases. O poder regenerador do signo poético é o poder de cura que Freud encontrou no estudo do inconsciente do signo-homem quando solto nos sonhos. E são infindáveis as possibilidades que se abrem para o signo de lei nesse insólito contactar com espaços que caminham, massas de qualidades que se atraem e se repelem e o formigueiro de uma presentidade sem fim. 3. BIBLIOGRAFIA BASHÔ; BUSON. O livro dos Hai-Kais. São Paulo: Massao Ohno, 1980. ENCICLOPÉDIA Barsa. Rio de Janeiro: Enciclopédia Britânica do Brasil, 1964. v.5. FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1969. _______. O Chiste e sua Relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1988. v.8, p.130. PIERCE, C. S. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983. __________. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977. __________. Semiótica e Filosofias. São Paulo: Cultrix, 1972. PIGNATARI, D. Semiótica e Literatura. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. PLAZA, J. Sobre Tradução Inter-Semiótica. 1985. 305f. Tese (Doutorado em Semiótica). Departamento de Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1985. 122 Economia Informal: os Camelôs de São José dos Campos Gilson dos Anjos Ribeiro* Friedhilde M. K. Manolescu* Resumo. Este trabalho analisa o perfil socioeconômico de um segmento de trabalhadores da economia informal, denominados de “camelôs”, na cidade de São José dos Campos, no ano de 2000. Os dados foram obtidos através de entrevistas e aplicação de questionários aos ambulantes. Os resultados são de importância para o planejamento urbano. Palavras-chave: Economia informal, camelôs. Abstract. Analysis of the social and -economical profile of a segment of workers of the informal economy- the so called “camelôs”- is conducted in the city of São Jose dos Campos during the year of 2000. The data have been obtained by means of questionnaires applied to street vendors. The results of that work constitute a contribution to urban planning. Key words: Informal economy, street vendor. 1. INTRODUÇÃO Com a globalização da economia torna-se imperativo às empresas a busca de máxima eficiência, com o objetivo de competir no mercado internacional. Em conseqüência, há exigência maior de avanços tecnológicos, que são introduzidos nas indústrias, reduzindo o número de pessoas para a realização do trabalho. Diante de tal situação a taxa de desemprego vem aumentando em todos os países, o que vem provocando o crescimento da economia informal, que tem várias categorias, entre elas a de “camelô”. A tendência de maior qualificação ou profissionalização do trabalho cria paralelamente uma massa de trabalhadores desqualificados que oscila entre os temporários, os parciais, os terceirizados. Muitos desses se acomodam na economia informal como forma de sobrevivência no meio urbano. Antunes (1997) classifica os trabalhadores informais como subproletários, que desempenham trabalho precário com baixo nível de qualificação. O presente trabalho analisa o perfil sócio-econômico dos camelôs em uma cidade de médio porte que teve a indústria como a grande impulsora da atividade econômica. Com as atuais mudanças na economia do mundo, e mais a inovação tecnológica, a cidade teve de se adaptar às novas situações mercadológicas * Professor(a) da UNIVAP. 123 2. REVISÃO DO CONCEITO DE ECONOMIA INFORMAL E DA CATEGORIA CAMELÔ. A palavra camelô vem do francês, “camelot”, usada, no Brasil, por influência da cultura francesa, com o mesmo significado: comerciantes que se instalam nas ruas paralelamente ao comércio formal, com uma simples autorização do poder público municipal para atuar. O vendedor ambulante se encontra nas atividades cujo acesso não é tão livre, por ocupar um espaço público, tornando-se portanto vulnerável à fiscalização em conseqüências das denúncias da população e de alguns comerciantes formais. A categoria conhecida como camelôs tem características próprias; segundo Clóvis Cavalcanti (1973), “esta população se caracteriza por possuir baixo nível escolar, procedente de famílias de baixa renda, com idade acima de 20 anos, sendo que grande parte desse comércio é ocupado por mulheres que têm nessa atividade uma forma de complementar a renda familiar”. Os camelôs são trabalhadores informais, em sua maioria migrantes ou pessoas que perderam o emprego e que caem na informalidade circunstancialmente. A partir da década de 80, o tema economia informal passou a constar na literatura especializada e várias causas foram analisadas como: o reflexo do desemprego, ou a não inclusão da mão-de-obra em outro setor da economia formal. Keith Hart (apud Ney Prado, 1996) definiu economia informal no Quênia, África, como “economia Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 invisível”, caracterizando-a como modelo duplo de renda da força de trabalho urbana, baseado na diferença entre emprego assalariado e auto-emprego. O conceito de informalidade foi atribuído aos indivíduos autônomos. Para o PREALC (Programa Regional de Empregos para América Latina e Caribe), é a economia informal caracterizada com subemprego, abrangendo os trabalhadores excluídos dos setores da economia moderna, o que caracteriza a pobreza urbana de um país quanto ao crescimento econômico que não corresponde ao crescimento de empregos. Este setor tem crescido em conseqüência do desemprego ou da não absorção da mão-de-obra. O conceito do IBGE sobre o setor informal urbano é o mesmo da Organização Internacional do Trabalho (OIT): “toda atividade em que não há distinção entre o núcleo familiar e o negócio”. O setor informal é formado pelos trabalhado- res por conta própria (ou autônomos), também pelos empregados sem carteira de trabalho assinada e ainda pelos empregados domésticos, sendo o contrário do setor formal, que é o conjunto dos empregados com carteira de trabalho assinada pelo empregador. 3. COMÉRCIO DE AMBULANTES E AS TENDÊNCIAS DO MERCADO DE TRABALHO. O Brasil, na década de 80, caminha para integração do mercado de trabalho, embora uma boa parte sob a forma de relações assalariadas precárias e que não correspondem às expectativas de uma boa situação de emprego ou de um adequado nível de renda para uma parcela dos trabalhadores. Desta forma, a tendência é o crescimento de trabalhadores no mercado de trabalho não-regulamentado; os trabalhadores que não possuem carteira assinada pelo empregador, os autônomos e os pequenos proprietários passam a viver na irregularidade em conseqüência do não crescimento econômico do País. Tabela 1 - Crescimento de empregados com carteira assinada Fonte : IBGE – 1998. De acordo com a tabela 1, em 1990, mais de 50% dos trabalhadores tinham carteira assinada, caindo essa porcentagem para 44,10 em 1998. Os motivos que levaram a esse acontecimento foram as formas de produção e de relações de trabalho, que tendem a elevar o número de trabalhadores informais, entre eles, os camelôs; a causa principal de esses trabalhadores se encontrarem na clandestinidade é a facilidade de burlar a legislação trabalhista. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho) duas são as razões para tão grande número de desempregados. Primeiro, a intensidade e a velocidade na informática, na tecnologia e nos meios de comunicação; com o desenvolvimento desses setores, mudou-se a forma de trabalhar, e muitas funções tornaram-se desnecessárias: a outra razão é a globalização que permite às multinacionais transferirem seu capital de um país para outro com muita facilidade. Com isso podem desempregar em um país e empregar em outro, pagando salários menores. Essas alterações no trabalho e na produção geram competição e pressão pelo aumento da produtividade. A indústria automobilística é um bom exemplo, despede operários e robotiza em todo o mundo. De acordo com a OIT calcula-se que cerca de Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 47 milhões de pessoas entram a cada ano no mercado de trabalho já saturado. Destas, aproximadamente 38 milhões estão na Ásia, África e América Latina. Com a mudança na economia mundial, desde os anos 80, os empregados dos setores de manufatura e de serviços, que eram sindicalizados, foram sendo substituídos por trabalhadores não sindicalizados, em regime parcial de trabalho. No futuro, a maior parte da força de trabalho global será trocada pela tecnologia de informação, robôs, máquinas e biotecnologia. Com essas mudanças, há uma retração dos empregos, como, por exemplo, no setor manufatura, onde o trabalho humano está sendo eliminado. Este fenômeno de dimensão mundial ocorre também no Brasil, ainda que em ritmo diferenciado em relação a outros países. A preocupação com a questão do desemprego, entretanto, ganhou novas dimensões no início da década de 90. A abertura comercial posta em marcha desde o governo Collor, em 1990, adotada de forma brusca e não orientada por diretrizes claras de política industrial e agrícola, forçou uma importante parcela do setor produtivo brasileiro a adotar um profundo e drástico programa de ajuste, que colocasse o Brasil, rapidamente, em condições de competir com os concorrentes internacionais. 124 Por todos esses motivos, o desemprego no Brasil possui uma dimensão estrutural, cuja explicação vai além de problemas ligados às flutuações cíclicas da atividade econômica, colocando na ordem do dia a necessidade de formulação de políticas ativas de geração de emprego e renda. Com a abertura comercial, associada à valorização do real, somados à internacionalização, alguns setores começaram a enfrentar concorrência agressiva de produtos de procedência principalmente dos países asiáticos e reflexos negativos nos níveis de produção e de emprego locais. A fragilidade do próprio mercado de trabalho formal no Brasil tem provocado o crescimento do mercado de trabalho informal, que é decorrente dos baixos salários, excessiva instabilidade no emprego, baixa qualidade do trabalho proveniente da formação, pois o mercado formal se encontra cada vez mais exigente. O trabalho formal vem hoje encontrando, na tecnologia, a forma poupadora de mão-de-obra nas empresas, com a importação de máquinas e equipamentos de países de economias mais avançadas, pois este tipo de custo e escala de produção são compensadores em relação às contratações; junta-se a esse fato a desqualificação dos trabalhadores em manusear essas máquinas e até mesmo manuais de instrução, causando a expulsão desses trabalhadores da formalidade. Tal complexidade provoca o crescimento do comércio ambulante; cria uma especialização para um tipo de serviço que a população da cidade utiliza, com tamanha flexibilidade e elasticidade, adequando-se a horários de fluxos, local de contingentes humanos maiores, mesmo que temporariamente, como jogos, shows e outros. Um exemplo dessa adequação acontece nos dias de competições esportivas, com a presença de camisetas, bonés, fitas e outros das equipes em confronto. 4. METODOLOGIA O trabalho seguiu uma metodologia descritiva e exploratória, que tem como objetivo primordial a descrição das características de uma determinada população, aqui denominada de “camelôs”. Para atingir os objetivos propostos foi utilizada a técnica de coleta de dados através de uma amostra em 250 ambulantes, o que corresponde a 13,44, de uma população total de 1.860 camelôs. A aplicação de um questionário em forma de entrevista aos ambulantes, com 21 questões abertas e fechadas, e o levantamento junto a prefeitura municipal contribuíram para a caracterização dessa categoria. 5. RESULTADOS Entre os camelôs de São José dos Campos, conforme tabela 2,predomina a população masculina, Destes, 60% são chefes de família que responderam que têm no comércio ambulante a única fonte de renda; os que têm, nessa atividade, a forma de complementar a renda, são pessoas que exercem outras tarefas, também informais como: pedreiro, carpinteiro ou biscates. Tabela 2 - Sexo e função da renda Quanto às mulheres que complementam a renda como camelô, também exercem outras atividades informais como: costureiras, domésticas, faxineiras e outras. “Eu trabalho de doméstica durante o dia, e à noite vendo cachorro quente aqui no bairro, para ganhar um dinheirinho extra, porque estou pagando um consórcio de um gol.” (Maria Claudete, 34 anos, bairro Putim) As mulheres em que o comércio ambulante é a única fonte de renda assumem o papel de chefe de 125 família. Outra característica comum entre os homens e as mulheres que complementaram a renda é que a maioria trabalha a noite, principalmente próximo as escolas. Das abordagens realizadas, 12% são jovens, na faixa etária entre 12 e 20 anos, não são proprietários das bancas; geralmente o proprietário que tem um grau de parentesco se afasta temporariamente do serviço para realizar outras tarefas, deixando que os filhos, sobrinhos, primos ou cunhados assumam as barracas, pois o poder público municipal permite o afastamento de até 30 dias, desde que faça um comunicado à prefeitura. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Tabela 3 - Faixa etária e grau de instrução De acordo com a tabela 3, das pessoas que se encontram entre a faixa etária 12 a 20 anos, foi constatado que 82%, estavam estudando; dos 48% que estão no segundo grau, obteve-se declaração que possivelmente ingressarão no mercado de trabalho formal com o certificado de conclusão do segundo grau. Outra evidência da tabela é que a população mais velha possui o grau de instrução mais baixo. no trabalho formal; outra constatação relevante é que 11% dos camelôs na faixa etária de 26 a 35 anos e 15% na faixa etária de 36 a 49 anos têm rendimento maior na informalidade. Portanto, o comércio ambulante, reduto de mão-de-obra menos jovem e o grau de instrução, entre todas as faixas, é baixo para o padrão de exigência do mercado de trabalho formal, poucos com segundo grau completo. A idade e o baixo grau de instrução criam dificuldades de ingresso no trabalho formal, cada vez mais exigente. Observando a faixa etária e o nível de instrução dos camelôs, nota-se que o setor se encontra com mãode-obra de baixa qualificação, parecendo mostrar que essa atividade informal não pode ser considerada como estágio de passagem dos trabalhadores para ocupações formais. Na faixa etária de 21 a 25 anos, 78% não pretendem deixar o comércio de ambulantes, pois estão nessa atividade há mais de 5 anos e têm dificuldades de ingresso Tabela 4 - Procedência Com relação à procedência dos trabalhadores do comércio ambulante de São José dos Campos, conforme a tabela 4, 38%, correspondem a regiões ou estados vizinhos, sendo que 62% das pessoas que estão nessa atividade são da própria região, incluindo os 33%, do próprio município. Dos 67%, de migrantes, 5%, são procedentes da região Sul; 13%, vieram da região Nordeste; 2%, da região Centro-Oeste e 2% da região Norte; na pesquisa com os camelôs considerou o deslocamento direto da região de origem para o destino, no caso, São José dos Campos. Com relação à migração interestadual, 12% são pessoas que vieram de Minas Gerais e 4% do Rio de Janeiro e 29%, das cidades vizinhas do Vale do Paraíba, sendo que 92% desses migrantes foram atraídos pelo crescimento econômico da cidade, principalmente a partir da década de 60, quando a cidade absorvia boa parte da mão-de-obra que aqui chegava. Tabela 5 - Camelôs que já trabalhavam registrados Conforme a tabela 5, a perda do registro em carteira é grande, considerando que mais da metade dos entrevistados já foram registrados. O custo da informalidade para esses camelôs está na falta de qualquer proteção Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 trabalhista ou previdenciária: na realidade ocorre a falta de seguridade social, além do custo para o Estado, já que há recolhimento. 126 Tabela 6 - Tempo de trabalho registrado e de pessoas da família De acordo com a tabela 6, constatou-se que 61% nunca tiveram registro em carteira; desses, 51%, afirmaram que o baixo nível de instrução foi o principal empecilho para ingressarem no trabalho formal e 10% afirmaram que sempre tiveram na família pessoas que trabalharam na informalidade, por isso, foram motivados a seguir essa atividade. Os demais, que trabalharam registrados, relacionaram a perda do trabalho formal e viram no trabalho informal a forma de sobrevivência, por motivos de baixo nível de instrução, idade avançada, tecnologia substituindo a mão-de-obra e a terceirização. Constatou-se que os 33%, dos familiares que nunca foram registrados encontram-se na informalidade, como camelôs, pedreiros, serventes, domésticas e outros; portanto, a seguridade social dessas pessoas é quase inexistente; os 32%, que trabalham registrados, no período de 01 a 05 anos, já estiveram na informalidade momentaneamente, possivelmente quando o mercado formal voltar a contratar eles abandonam a atividade informal e ingressam no trabalho formal em busca de seguridade social e salário fixo, já que, como camelô, há perdas desse tipo. Tabela 7 - Tempo que exerce a atividade Ao observar a tabela 7, conclui-se que o período em que as pessoas se encontram nessa atividade, em sua maioria, está entre 1 e 5 anos, coincidindo com o desemprego em São José dos Campos, que ocorreu no início dos anos 90, quando a cidade passa por uma estagnação econômica, em conseqüência do fim da Guerra Fria, quando os maiores compradores de produtos bélicos das indústrias aqui instaladas suspendem as compras, causando o fechamento inclusive de duas fábricas – Engesa e Avibrás- isso somado à abertura às importações, concedidas pelo governo federal e à implantação de novas tecnologias que substituíram a mão-de-obra por máquinas. Com relação ao estado civil e a renda mensal e familiar, pode-se observar, na tabela 8, que todos eles têm ganho mensal superior ao salário mínimo; 59%, dos comerciantes ambulantes são casados, com uma média de 5 pessoas por família. Todos os entrevistados têm na família alguém que trabalha, isto é, não contam somente com o salário do camelô; entre os casados, as maiores médias se encontram entre 3 a 4 salários mínimos, que , no momento da pesquisa, é de R$150,00. Tabela 8 - Estado civil e renda * outros (viúvos, divorciados). 127 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Com relação aos setores de atividade exercida pelos camelôs, segue-se a distribuição, conforme tabela 9. Tabela 9 - Setores de atividades De acordo com a aplicação dos questionários, 37%, dos comerciantes ambulantes trabalham com alimentação, tal opção ocorre pelas facilidades encontradas, desde o acesso aos produtos que servem como matériaprima até a facilidade de venda; entre as atividades exercidas pelos camelôs, a alimentação tem o retorno mais rápido dentro os investimentos feito. Em segundo lugar está o de importados, como: brinquedos, eletrônicos e outros, também pela facilidade de compra via Paraguai e a cotação do dólar próximo do real, compensava que se os buscassem. Os produtos importados via Paraguai chegam até as barracas com a participação de uma outra categoria da economia informal, “as sacoleiras”, que geralmente têm um grau de parentesco com o dono da banca, ou às vezes é o próprio que exerce a atividade. Com 20%, a atividade artesanato merece destaque, pois a maior concentração se encontra na Praça Afonso Pena, aos sábados, sob a condição do poder público, que permite a instalação na localidade somente de trabalhos artesanais confeccionados pela própria pessoa e membros da família; nesse caso, a maioria tem no comércio ambulante a segunda fonte de renda, pois, desses, 15%, expõem nos bairros; as duas situações confirmam o conceito de economia informal do IBGE; “toda atividade em que não há distinção entre o núcleo familiar e o negócio”. As demais atividades, como brinquedos nacionais ou artesanais, que ocupam 7% dos camelôs; vestuário, 7%; 1% com perfumaria, 2% com cosméticos, são pouco representativos e se encontram nos bairros; na área central nenhuma dessas atividades foi encontrada, isso se justificando por ocorrer no centro a concorrência com o mercado formal e a fiscalização mais rígida pelo poder público municipal, ao passo que nos bairros passam a ser atendidas as necessidades da população local. Tabela 10 - Número de dias da semana trabalhados Em relação aos dias trabalhados, 34% dos camelôs trabalham 5 dias, descansam dois dias da semana, geralmente nos domingos e segundas, dias com menor movimento nas ruas; a prefeitura permite que o vendedor ambulante se ausente duas vezes do local determinado por ela; 34% trabalham 6 dias da semana, descansando somente um dia da semana, geralmente no domingo; 29%, trabalham 7 dias da semana, mas não exercem a atividade todos os dias no local destinado pela prefeituRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 ra, já que mantêm o comércio ambulante no litoral nos feriados e período de férias ou nas festas que acontecem em diversos locais na cidade, nem sempre vendendo o mesmo produto que expõem nas barracas, mas, sim, outros, de fácil aceitação e locomoção. Verifica-se que não há vendedor ambulante que trabalhe menos de 8 horas/dia, conforme dados na tabela a seguir. 128 Tabela 11 - Horas trabalhadas por dia Pode-se perceber que o maior índice, o de 35%, correspondente a 10 horas de trabalho por dia, aqui estando computados também os tempos gastos na montagem e desmontagem das barracas e acomodação e retirada das mercadorias. Em relação ao motivo que os levou à atividade de comerciante ambulante, pode-se verificar que há uma diversidade, conforme a tabela 12. Tabela 12 - Motivo que levou a esta atividade Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, a recessão econômica, no ínico dos anos 80, provocou o decréscimo do Produto Interno Bruto, em 8,4% ao ano, no período de 1983 a 1996; coincidentemente esse foi também o período de crescimento do desemprego e da economia informal, portanto observando-se os comerciantes ambulantes de São José dos Campos também foi o desemprego, com 51%, o motivo que levou à informalidade. Dos 17%, que responderam baixo salário, a opção pela informalidade justifica-se pelo ganho maior do que na formalidade, junto a esse motivo está a flexibilidade no horário, o fato de não haver patrão, na realidade observa-se como prezam pela liberdade. Tabela 13 - Tipo de atividade anterior Com base nas informações da tabela 13, podese afirmar que o comércio ambulante de São José dos Campos não é conseqüência direta do êxodo rural, pois 34% já trabalharam no comércio. A opção pela atividade anterior de empregados na indústria, 21%, e 30% na prestação de serviços, estão hoje na informalidade em conseqüência do desemprego. 129 De acordo com os questionários aplicados e analisados, verificou-se o nível de expectativa de crescimento do comércio ambulante do ponto de vista do próprio camelô, conforme tabela 14. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Tabela 14 - Expectativa de crescimento Os 65% que responderam “sim” apresentaram os seguintes motivos: 28% afirmaram que não há concorrência; 42%, afirmaram que os salários estão baixos, portanto as pessoas passam a procurá-los, pois suas mercadorias são mais baratas; 22% afirmaram que a acessibilidade ao produto facilita a venda, isto é, as pessoas que circulam pelas ruas encontram os produtos nas barracas com maior facilidade; 8% afirmaram que o crescimento das vendas está relacionado à exclusividade dos produtos que vendem; dos 26%, que responderam que não têm expectativa de crescimento do comércio ambulante ssim justificaram: 45% afirmaram que a fiscalização é rígida e acaba sendo empecilho, pois não podem diversificar suas mercadorias; 27% afirmaram que a concorrência tem aumentado, principalmente as lojas de preço único; 28% justificaram que a falta de capital para novos investimentos atrapalha o crescimento da atividade. Com relação ao grau de satisfação com a atividade que exerce, apenas 18% estão insatisfeitos, conforme dados da tabela 15. Tabela 15 - Grau de satisfação com a atividade de camelôs Dos 82%, que responderam que estão satisfeitos, 24% disseram que estão satisfeitos com tudo, 6% gostam do que fazem porque o salário é superior ao do trabalho formal; 38% disseram que a satisfação está na liberdade de horário e por não terem patrão; 32% relacionaram a satisfação à amizade que fazem com os colegas e as pessoas na rua. Já o nível de insatisfação, de 18%, está relacionado ao trabalho excessivo, pouco dinheiro e a fiscalização rígida do poder público municipal. encontram meio de vida e possibilidades de inserção na economia urbana de muitos indivíduos; se por um lado é forma de sobrevivência de um grupo de que não conseguiu se estabilizar no trabalho formal; por outro, o trabalho exercido por esse tipo de comércio é avaliado favoravelmente pelos consumidores porque se integra na estrutura econômica do consumidor por atender suas necessidades e ajusta-se ao próprio arcabouço cultural, ao estilo e forma espontânea de vida deles. Fica aqui caracterizada a função útil que o comércio informal de ambulantes desempenha; nele Foi perguntado também quais os bens que possuíam, conforme a tabela 16, abaixo. Tabela 16 - Bens Adquiridos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 130 Esses dados confirmam que os camelôs não são tão pobres assim, pois mais da metade possui casa própria e uma boa parcela tem os produtos de consumo considerados básicos a um família; portanto, quando questionados em relação ao momento em que adquiriam os produtos, obteve-se o seguinte resultado: 58% adquiriram os produtos quando trabalhavam registrados e 42%, adquiriram os bens de consumo trabalhando na informalidade. Pelos resultados obtidos, verificou-se que os comerciantes ambulantes não se preocupam com a seguridade social. Tabela 17 - Pagamento de I.N.S.S. De acordo com a tabela 17.0 verifica-se que 80%, não pagam o INSS, portanto não possuem seguridade social, como aposentadoria, férias remuneradas, não são assistidos pela Previdência Social, não possuem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e 13º salário, causando assim um peso aos cofres públicos, já que a atividade não tem recolhimento. 6. CONCLUSÃO Para o camelô de São José dos Campos, segmento da economia informal, o comércio ambulante não é mais um subemprego, se for considerado o rendimento dessa atividade relacionando-a ao nível de instrução do trabalhador. Para muitos, o rendimento na informalidade acaba sendo superior ao que se ganhava no trabalho formal. Por isso, o trabalho informal deixou de ser também um estágio de trabalho temporário, com o objetivo futuro de ingressar no mercado formal, considerando esta atividade um trabalho e não um emprego. Para o camelô, o emprego está distante de se tornar uma realidade em um momento de tantas exigências, de avanço tecnológico cada vez mais rápido e exigente de automação da produção e de subcontratação de atividades de autônomos e de pequenas empresas. O camelô não se encaixa em nenhuma dessas categorias de trabalho; mesmo sendo autônomo, a atividade desenvolvida por ele não tem nenhuma relação com as exigências citadas acima, mesmo porque são comuns aos setores mais avançados, mesmo entre algumas categorias autônomas. Diante dessa situação, pode-se dizer que, para os camelôs de São José dos Campos, o trabalho no comércio ambulante é de fato a forma que encontraram para sobreviver, dado o baixo nível de instrução que possuem. Os indicadores que motivaram o crescimento do comércio ambulante de São José dos Campos estão relacionados com o desemprego na indústria, a partir do final da década de 80, considerando que mais de 50% dos entrevistados afirmaram que estão nessa atividade 131 em conseqüência do desemprego. Outros indicadores observados são o custo e a burocracia para ingressar no mercado formal, somados aos baixos salários da formalidade. A opção da informalidade apresentada por 26% dos camelôs está ligada ao fato de que ganham mais do que estariam ganhando na formalidade. O custo da informalidade para o comerciante ambulante é a falta de proteção jurídica, falta de seguridade social e de não poder assegurar seus produtos, no caso de perdas, roubos ou qualquer dano, sendo que todo o prejuízo é por conta do próprio camelô. O camelô, por não tomar os caminhos legais, acaba desprotegido das formas legais a que tem direito todo o comerciante formal. Estes custos representam desvantagens para os camelôs. No entanto, as vantagens de manter este tipo de atividade está na ocupação de mão-de-obra desempregada, de pessoas portadoras de deficiência física, de aposentados e de possibilitar a complementação de renda das pessoas com baixo rendimento. Outra vantagem está relacionada à possibilidade de o ambulante comprar produtos do comércio formal e de vender produtos similares, ou mais baratos, às pessoas de baixa renda, gerando renda. Uma característica marcante entre os camelôs de São José dos Campos é a relação que há entre a participação de membros da família nesta atividade. Esta relação ocorre ainda com objetivo de ampliar o negócio, empregando parentes ou dando-lhes emprego. Esta questão não foi dimensionada na pesquisa, porque houve resistência dos entrevistados em respondê-la. Uma coisa é certa entre os camelôs de São José dos Campos: não são organizados, pois não possuem sindicatos e nem associação, dependendo do apoio do poder público municipal para melhor se organizarem. 7. BIBLIOGRAFIA Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 ANTUNES, R. Adeus ao trabalho. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1997. CACCIAMALI, M. C. Expansão do mercado de trabalho não regulamentado e o setor informal. Revista de Estudos Econômicos, São Paulo, v.19. 1990. CAVALCANTI, C. Emprego, produção e renda no setor informal urbano do Nordeste: caso Salvador, Bahia. Revista de Estudos Econômicos, São Paulo, v.11. 1981. DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Sócio-econômico. Encargos Sociais no Brasil – n.º 12. PRADO, N. Economia informal e o Direito no Brasil. São Paulo: LTR, 1996. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS. Caderno Industrial: 1960–1996. São José dos Campos: Secretaria de Planejamento Urbano de São José dos Campos. SANTOS, M. A Urbanização Desigual: a espeficidade do fenômeno urbano em países subdesenvolvidos. São Paulo: Vozes, 1985. FUNDAÇÃO SEADE – Anuário Estatístico do Estado de São Paulo. São Paulo: SEADE, 1998. PASTORE, J. A. Agonia do Emprego. São Paulo: LTR, 1997. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 132 Elementos para um Projeto Nacional de Desenvolvimento José Paulo Breda Destro * Luiz Carlos Andrade de Aquino ** Resumo. Este artigo sintetiza uma reflexão crítica sobre a economia brasileira. Visa delinear o panorama da fragilidade atual da economia política e, também, contribuir com elementos para construção de um projeto autônomo de desenvolvimento. Palavras-chave: Economia brasileira, desenvolvimento econômico. Abstract. This work summarizes critical considerations on Brazilian economy. It presents an overview about the present weakness, and suggests elements related to the construction of an autonomous development project. Key words: Brazilian economy, economic development. 1. INTRODUÇÃO “O mundo do tempo real busca uma homogeneização empobrecedora e limitada, enquanto o universo do cotidiano é o mundo da heterogeneidade criadora (...) Os pobres não se entregam, descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho e de luta.” (Milton Santos). A assertiva de Milton Santos, sobre a racionalidade que predomina no pensamento social contemporâneo, segundo a qual “...pequena margem é deixada à variedade, criatividade e espontaneidade...” (2001, p. 120) inspirou o elenco de alguns tópicos, aqui apresentados, que procuram contribuir para o debate sobre a construção de um projeto autônomo de desenvolvimento do Brasil. Não se pretende esgotar o assunto, haja vista a complexidade que envolve a participação multissetorial da sociedade brasileira. Mas, aqui, registram-se elementos que podem contribuir ao debate, crucial à nossa soberania como Estado num mundo globalizado. Preliminarmente, mencionam-se comentários sobre a proposta de projeto da esquerda nacional, elaborada pelo Partido dos Trabalhadores. Em seguida, apresentam-se as conseqüências ao epílogo do governo de Fernando Henrique Cardoso, ressaltando, então, as fragilidades do sistema econômico nacional, ampliadas e dissimuladas por um marketing irresponsável. Tenta- se, conforme ressalta Santos (2001), “despolitizar estatísticas”, permitindo a consciência da vulnerabilidade econômica do Brasil. Nesse sentido, são apresentadas estatísticas sobre aumento da porcentagem de inativos, comércio exterior, opiniões de empresários, economistas, cientistas políticos etc. Focalizam-se, ainda, aspectos do estrangulamento do financiamento da economia nacional para um projeto de desenvolvimento, tanto em nível externo, como também interno. Posteriormente, apresentam-se alguns elementos, contribuições a um projeto autônomo de desenvolvimento nacional. Finalmente, as Considerações Finais sintetizam alguns pontos de destaque. 2. DESENVOLVIMENTO Como projeto econômico de esquerda, vale mencionar a opinião do Editorial de importantes jornais sobre o Projeto Fome Zero do Partido dos Trabalhadores: - (...) é pouco provável que, na ausência de propostas consistentes e não sintonizadas com múltiplos segmentos da sociedade brasileira, atinjam-se resultados (...) (Folha de São Paulo, 10-10-2001); - (...) aumentará a dívida externa, sem possibilidade de resolver, de forma efetiva, o problema da miséria nacional (...) (O Estado de São Paulo, 10-10-2001); - (...) esse projeto é baseado em um programa americano, com ações de longo prazo embasadas em projetos de renda mínima, de incentivo à agricultura * Bacharelando do 2º ano do curso de Ciências Ju- familiar e, também, de reforma agrária, ingredientes semelhantes aos programas sociais do governo FHC rídicas (Correio Braziliense, 17-10-2001). da Univap. ** Professor da UNIVAP. 133 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Cabe enfatizar que, em se tratando de editoriais, divulgam-se pontos de vista muitas vezes tendenciosos da imprensa. Por outro lado, não se trata do posiciona-mento de articulistas. Trata-se, isto sim, de um conjunto de formas que acabam referendando a posição de agências formadoras de opinião. E, principalmente, em se considerando a penetração desses meios e o teor do repúdio, questiona-se, de antemão, a viabilidade dessas propostas. Destarte, tendo-se em vista os problemas do modelo atual, a que são dirigidos os próximos parágrafos, percebe-se a ausência de perspectivas para um projeto nacional de desenvolvimento econômico. Um momento de aporia sócio-econômica, que coincide com a possibilidade histórica de se tornar, “pela primeira vez, construído projeto nacional de desenvolvimento sob regime democrático” (Sachs, 2001, p.490). Alguns dados da economia brasileira são alarmantes, como, por exemplo, a queda do número de trabalhadores brasileiros. Apenas no período de setembro de 2000 a setembro de 2001, o percentual de inativos aumentou de 41,61% para 43,71% (Farid, 2001, comentando dados do IBGE). Destacam-se, também, as dificuldades do setor produtivo, convivendo com inflação de 6% ao ano, e juros de 180% ao ano, privilegiando o setor financeiro, segundo Ramon (2001) sobre a opinião de empresários em recente encontro da APAS – Associação Paulista de Supermercados. E, também, ao pífio desempenho do comércio exterior, que baixou de 1% para 0,80% na participação das exportações mundiais nos últimos 20 anos, enquanto alguns países europeus e asiáticos cresceram na base de 2,4% ao ano, uma diferença espantosa (Moraes, 2001). Convive-se hoje com uma dívida externa de US$ 200 bilhões, e uma dívida interna de US$ 400 bilhões. Exportamos menos de U$ 50 bilhões por ano e, descontando-se as importações e serviços da dívida, necessitam-se US$ 30 bilhões em divisas ao ano para equilibrar o balanço de pagamentos (Netto, 2001). É desnecessário comentar os problemas do modelo econômico neoliberal, proposto externamente, e seguido à risca pelo atual governo, cujas discordâncias e divergências vêm à tona pelos discursos e entrevistas de autoridades do próprio governo. Pode-se citar, recentemente, as divergências entre o tucano economista, José Serra, ministro da Saúde e candidato à Presidência da República pelo PSDB, e o atual ministro da Fazenda, Pedro Malan (Costa, 2001), a ponto de já se antecipar o fim da “Era Malan”. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Cientistas políticos, sintonizados com o momento atual, captam aproximações do empresariado nacional à idéia da esquerda, endossando redução dos juros, flexibilização do Consenso de Washington e preocupação com o modelo nacional de desenvolvimento. Uma posição clara e objetiva do posicionamento dos empresários foi defendida pela cientista social Eli Diniz, no 25º Encontro da ANPOCS, em Caxambu (MG). Antônio Gois (2001) transcreveu, via entrevista, o ponto de vista atualíssimo e objetivo desta estudiosa, docente da UFRJ e membro externo da FGV: “o empresário brasileiro já não teme o PT, mas apóia FHC...” Vive-se uma crise sem precedentes pela fragilidade de um modelo que demanda financiamento externo. Esse migra para regiões que oferecem melhores condições de remuneração ou segurança. Trata-se de um dos “pecados do capitalismo”, comprovado pela opinião lúcida do Prof. de Economia do MIT, Lester Thurow, em recente artigo (Thurow, 2001). De modo que, numa economia globalizada, o papel interventor do Estado, para promover o desenvolvimento, transfere-se ao FMI, BID etc., proprietários efetivos do capital a ser investido que, entretanto, rapidamente retorna como serviço da dívida. E assinam-se acordos que restringem ou elidem a liberdade de ação do governo. A necessidade de subserviência a organismos internacionais é uma questão da garantia do financiamento externo, cada vez mais difícil e necessário para equilíbrio do balanço de pagamentos. Por outro lado, não menos intrincada, encontra-se a situação do financiamento interno. Os empresários brasileiros, avessos a dispor de suas fortunas pessoais para financiar projetos com indubitável período de carência e/ou sob pesado risco, sempre contaram com o Estado. Porém, hoje, o Estado brasileiro não consegue arcar sozinho com o ônus do financiamento econômico. Pouco, ou quase nada, restou das recentes privatizações. E a saúde financeira nas escalas federal, estadual e municipal encontra-se debilitada. Neste sentido, seria fundamental os empresários participarem de forma efetiva para um projeto nacional. Resumem-se, assim, a situação crítica e as dificuldades do financiamento interno e externo para a economia brasileira. Registram-se os elementos para um projeto autônomo de desenvolvimento, na tentativa de sintetizar contribuições para um debate: I. Pesquisa e Desenvolvimento de programas próprios, setoriais e específicos para populações que sobrevivem sob condições miseráveis e que não dispõem 134 de mínimas condições para participar dos atuais empregos tecnológicos. Trata-se, por exemplo, de indivíduos que não têm acesso à linguagem escrita e constituemse em parcela substantiva da nação brasileira. Alguns segmentos de construções populares, agro-negócios, cooperativas, pequenas empresas têm-se mostrado capazes de absorver parcelas deste contingente excluído. Nesta área, o Brasil conta, também, com o potencial do seu mercado doméstico para superar efeitos da crise econômica mundial, no caso de recessão internacional induzida pela economia norte-americana; II. Opção pelo descomprometimento com a simples cópia de modelos anteriores ou externos, buscando alternativas comprometidas com questões sócio-econômicas nacionais. Trata-se, no fundo, de um corolário do item anterior. Assim, por exemplo, a fase de atrair e privilegiar multinacionais tem dado sinais de esgotamento e, ao mesmo tempo, alavancado efeitos mínimos para inclusão dos brasileiros. Pelo contrário, tem se comprovado o “totalitarismo” imposto pelos seus rígidos padrões de atuação, muitas vezes desconectados da realidade nacional. Micros e pequenas empresas, cooperativas sob administração responsável e sintonizada com um projeto autônomo de desenvolvimento (que, infelizmente, não existe; mas, estamos elencando pontos a serem observados) tendem a se apresentar, em linhas gerais, mais afinados com a política nacional; III. Promoção e desenvolvimento do entusiasmo nacional: uma “revolução espiritual”. Resgatar o espírito de agentes da História aos brasileiros e não permitir a simples crença como vítimas de um processo injusto. Isto implicaria fomentar, via lideranças legítimas, o ânimo para cada pequena conquista do cotidiano de forma continuada. Que cada pequeno sucesso ou fracasso viabilizasse a construção de uma cultura, identidade. Este é um ponto delicado, pois, está ligado a uma atmosfera que se funda através de valores comuns, capaz de transmitir energia positiva de vibração, permitindo-se vibrar sob interferência construtiva, estendendo o círculo às áreas mais remotas. Como, por exemplo, alguns efeitos do Projeto Comunidade Solidária, fomentado pelo atual governo. Ou da iniciativa de Colônias Penais Agrícolas, pela iniciativa privada, para menores infratores; IV. Resgate e instituição da criatividade. Significa um corolário do item anterior. É, sobretudo, o tópico frasal da obra do Milton Santos (Santos, 2001). Talvez, seja um dos pontos mais importantes e, ao mesmo tempo, mais difíceis, haja vista que a criatividade só é liberada, à medida que situações de exclusão, injustiça social e distribuição de renda sejam sanadas. Trata-se, portanto de um desafio; V. Liberdade para busca e comércio com grupos, 135 países, blocos dotados de complementaridade e atratividade econômicas, isto é, “parceiros cujas opções sejam compatíveis com as nossas” (Singer, 2001, p.130). Ou seja, evitar as imposições externas dos órgãos de financiamento internacional: FMI, BID etc. Impedindo, na medida do possível, o esmagamento, dinamitação das estruturas internas frágeis por imposição do capital, que terminam por migrar alhures, conforme foi comentado no financiamento externo. Uma política nesse sentido teria, também, efeitos terapêuticos no sentido de revitalizar energias internas e externas, necessárias para o item I. A busca livre e independente por parceiros compatíveis, de certa forma, é, também, corolário de II. De modo a contar e depender mais do capital interno, que se dinamiza com forças liberadas pela reestruturação de parcerias; privilegiando excluídos internos grandes (famílias detentoras de capital com pequenas opções de investimento) e pequenos (população alijada do mercado de trabalho atual), em vez de potências internacionais ou transnacionais infinitamente corporativas, que se impõem pela força, em detrimento do interesse nacional; VI. Fomento de discussões e debates para construção do projeto de desenvolvimento, promovendo consenso setorial entre as camadas da sociedade brasileira. É claro que existem obstáculos advindos da democracia representativa, mas um projeto de desenvolvimento deve ser escorado nos múltiplos segmentos, numa atmosfera de solidariedade capaz “de novas soluções, que não mais seriam centradas no dinheiro, como na atual fase da globalização, para encontrar no próprio homem a base e o motor da construção de um novo mundo” (Santos, 2001, p. 118). Neste sentido, é que se cumprem elogios ao Projeto Fome Zero, responsável pelo despertar de ricas opiniões no final de 2001, ou como comenta Furtado: “Aspectos que deveriam ocupar lugar preferencial em nossas discussões” (2001, p. 425). Poder-se-ia incluir, aqui, um número bem superior de elementos e dissecá-los com mais objetividade econômica: quantificando por números e descrevendo qualitativamente o projeto, a implementação e o impacto. Tarefa que transcenderia o escopo deste trabalho, conforme foi comentado na Introdução. Na missão do debate e da construção de um projeto de desenvolvimento, inquestionavelmente, deveriam participar todos os cidadãos. E, sobretudo, adotada e discutida pela comunidade universitária, que infelizmente vem se ausentando cada vez mais do importante processo de crítica e produção de idéias sobre os rumos do País. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram sintetizadas a situação sócio-econômica frágil da República Federativa do Brasil e as dificuldades do financiamento externo e interno. Não se atentou às causas, se conseqüência de um modelo econômico neoliberal ao longo deste duplo mandato de FHC, de graves problemas enfrentados na inserção à economia globalizada etc. Entretanto, não se restringiu à descrição do atual panorama da economia nacional. Elencaram-se elementos básicos à construção de um projeto, contribuindo com a necessidade de seu efetivo debate pela sociedade brasileira, premida, na atualidade, por delicada condição sócio-econômica. Foram sublinhadas as forças internas, encorajando-se soluções independentes, autênticas (desvinculadas da simples imitação de estereótipos internacionais), capazes de contemplar a inclusão de parcelas ineptas de participar do processo econômico nas circunstâncias atuais. Destarte, há possibilidade de um projeto autônomo de desenvolvimento, desvinculando-se da simples cópia de soluções externas. A comunhão com parceiros solidários à sinergia de um projeto nacional de desenvolvimento, reacendendo a motivação dos segmentos sócio-econômicos, dos indiferentes ou dos excluídos. Um debate que transcende o círculo do Distrito Federal e se estende imanente aos elementos particulares da sociedade. Uma solução natural, inserida na “Physis” brasileira, capaz de formatar um projeto ontológico com nossa realidade frágil e toda sociedade, numa transformação espiritual. E que seja sob a vibração de energia criativa, característica do povo latino-americano. Fica, aqui, uma mensagem de esperança, na certeza de possível “redescoberta pelos homens da verdadeira razão (...) [que] Tal descobrimento se dê exatamente nos espaços não conformes à racionalidade dominante, posto que na esfera da racionalidade hegemônica, pequena margem é deixada para a variedade, a criatividade, a espontaneidade” (Santos, 2001, p. 120). 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORREIO BRAZILIENSE. Editorial, 17 out. 2001. COSTA, R. Serra rompe silêncio e diverge de Malan. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 out. 2001, p. A7. DUPAS, G. Os grandes desafios da economia globalizada. IN: SACHS, Ignacy; WILHEIM; Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.), Brasil Um Século de Transformações. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 431–455. FARID, J. Cai número de trabalhadores no Brasil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 25 out. 2001, p.3. FURTADO, C. Quando o futuro chegar. IN: SACHS, Ignacy; WILHEIM; Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil Um Século de Transformações. 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Um parâmetro adimensional é proposto como medida da eficácia do mecanismo. Palavras-chave: Mecânica cardiovascular, transitórios cardiovasculares, mecanismo de FrankStarling. Abstract. A theoretical study of the cardiovascular mechanics is presented. Differential equations for rate of blood flow and blood volume variations in different parts of the cardiovascular system are derived. The equations are satisfied by average quantities and are useful for investigating transient cardiovascular phenomena. The derived equations are used to explain the Frank-Starling mechanism, a control mechanism that plays an eminent role in the maintenance of the cardiovascular system stability. A non-dimensional quantity is proposed as a measure of that mechanism effectiveness. Key words: Cardiovascular mechanics, Transient cardiovascular phenomena, Frank-Starling me- 1. INTRODUÇÃO O coração humano é uma bomba dupla que mantém o sangue circulando no sistema cardiovascular. Costuma-se dizer, em fisiologia, que há dois corações: coração direito e coração esquerdo. O volume de sangue ejetado por cada coração, por unidade de tempo, é chamado de débito cardíaco, e existe um mecanismo de controle, chamado mecanismo de Frank-Starling, que mantém o balanço entre os débitos cardíacos direito e esquerdo (Braunwald e Ross Jr., 1979; Guyton et al., 1973; Jacob et al., 1992; Skarvan, 2000). Na literatura, encontra-se somente uma explicação qualitativa daquele importante mecanismo, sem qualquer referência a equações diferenciais para fluxos sangüíneos e variações de volume de sangue em diferentes partes do sistema cardiovascular (McGeon 1996; Berne e Levy 1997; Richardson et al., 1998). Em geral, modelos matemáticos do sistema cardiovascular são investigados através de simulações numéricas que, em muitos casos, exigem muito tempo de computação (Quarteroni, 2001). Entretanto, o mecanismo de Frank-Starling, em seus pontos mais essenciais, pode ser discutido analiticamente, através de equações diferenciais para valores médios de grandezas fisiológicas. No presente trabalho, um sistema de equações diferenciais, úteis para o estudo de transitórios no sistema cardiovascular, é deduzido, e utilizado na explicação do mecanismo de Frank-Starling. 2. TEORIA Equações Diferenciais para o Sistema Cardiovascular A figura 1 é um diagrama do sistema cardiovascular que consiste em uma bomba dupla, o coração, e duas circulações distintas: sistêmica e pulmonar (McGeon, 1996; Berne e Levy, 1997). * Professor(a) da UNIVAP. 137 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Fig. 1 - Diagrama do sistema cardiovascular Cada coração tem dois compartimentos, átrio e ventrículo, que periodicamente contraem e relaxam. A contração e a relaxação são chamadas, respectivamente, de sístole e diástole. Os compartimentos são sincronizados de tal modo que quando os átrios contraem os ventrículos relaxam e vice-versa. O átrio recebe e armazena sangue durante a contração ventricular, e durante a diástole ventricular o sangue flui do átrio para o ventrículo. O fluxo sangüíneo através da circulação sistêmica depende da contração do ventrículo esquerdo, e o coração direito bombeia o sangue para a circulação pulmonar, onde o sangue é oxigenado e CO2 é eliminado. Um sistema de válvulas garante o sentido dos fluxos de sangue como mostra a figura 1. Seja vDi (t) o volume de sangue contido no coração direito no instante t. Então, escrevemos a equação de continuidade d[vDi(t)]/dt = QSi(t) – QDi(t) (1), dvEi(t)/dt = QPi(t) – QEi(t) (3), e dvPi(t)/dt = QDi(t) – QPi(t) (4), onde as grandezas QEi(t) e QPi(t) são, respectivamente, o débito cardíaco esquerdo, e o retorno venoso pulmonar. As equações (1)-(4) fornecem d(vEi + vDi + vSi + vPi)/dt = dV/dt = 0 que expressa a conservação do volume de sangue total no sistema cardiovascular. No estado estacionário o débito cardíaco esquerdo instantâneo é uma função periódica do tempo que pode ser escrita como QEi(t) = QE + f(t), onde QSi(t) é o retorno sistêmico venoso, isto é, a taxa instantânea do fluxo de sangue (em litro/minuto) da circulação sistêmica para o átrio direito, e QDi(t) é o débito cardíaco direito instantâneo. O índice superior i indica valores instantâneos. onde QD é o valor médio do débito cardíaco esquerdo, dado por Da mesma maneira, escrevemos, para os volumes de sangue instantâneos na circulação sistêmica, no coração esquerdo, e na circulação pulmonar, respectivamente, as equações que é constante no tempo, e f(t) é uma função periódica do tempo que tem valor médio igual a zero. T é o período cardíaco. dvSi(t)/dt = QEi(t) – QSi(t) Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 (2), Durante um transitório cardiovascular, o débito cardíaco esquerdo não é exatamente uma função perió138 dica do tempo, e, conseqüentemente, seu valor médio num ciclo cardíaco varia no tempo. Com a finalidade de estudar fenômenos transitórios, formulamos a hipótese de que o débito cardíaco é aproximadamente dado por QEi(t) = QE(t) + f(t) (5), onde f(t) e sua derivada são funções periódicas no tempo, com valor médio igual a zero, e QE(t) é uma função que varia lentamente com o tempo. Da equação (5) segue-se que QE(t) é o valor médio de QEi(t), e o valor da derivada dQEi(t)/dt é aproximadamente igual a dQE/dt . O mesmo raciocínio pode ser aplicado a todas as variáveis das equações (1)-(4), de modo que os valores médios dessas equações são aproximadamente dados por dvD/dt ≅ QS - QD (6) dvS/dt ≅ QE - QS (7) dvE/dt ≅ QP – QE (8) e dvP/dt ≅ QD - QP (9) No estado estacionário as derivadas temporais dos volumes médios de sangue são nulas e QD = QE = Q S = QP . Das equações (6)-(9) obtemos dvE/dt ≅ - QE + QD – dvP/dt (10) e dvD/dt ≅ QE – QD – dvS/dt (11) As funções ventriculares acoplam as equações (10)-(11), como se mostra a seguir. A Curva de Função Ventricular Em 1895 Frank mostrou que o aumento do estiramento no ventrículo do coração de sapo, durante a diástole, aumentava a pressão desenvolvida durante a sístole (Richardson et al., 1998; Berne e Levy, 1997). Em 1914 Starling (Richardson et al., 1998; Berne e Levy, 1997) usou uma preparação do coração-pulmão canino para demonstrar uma relação similar no coração de mamíferos. Starling observou experimentalmente que existe relação entre débito cardíaco e pressão de enchi139 mento do átrio direito. A última variável determina o grau de enchimento do ventrículo e pode ser considerado como uma medida do volume diastólico final ventricular, que é aproximadamente igual ao volume médio de sangue no coração. Os dados obtidos por Starling mostram que o débito cardíaco primeiro cresce e então decresce quando a pressão de enchimento do átrio direito aumenta (Elzinga, 1989; Richardson et al., 1998; Berne e Levy, 1997). A segunda parte da relação tem sido chamada “ramo descendente da curva de Starling” e foi motivo de controvérsias durante anos (Elzinga, 1989; Richardson et al., 1998). Como a pressão de enchimento do átrio direito é uma medida do volume médio de sangue contido no coração, podemos dizer que os débitos cardíacos são funções dos volumes médios de sangue contidos no respectivo coração. Então escrevemos as relações QE = QE(vL) e QD = QD(vD) e que são chamadas funções ventriculares. Tem sido observado que, para a posição supina, o ventrículo opera próximo ao máximo da função ventricular. Tentativas para aumentar o volume de enchimento levam a uma aumento da pressão atrial, mas somente uma pequena melhora no desempenho ventricular. Em contraste, na posição vertical, o ventrículo claramente opera no ramo ascendente da sua curva e, conseqüentemente, a administração de fluido pode aumentar consideravelmente a capacidade de bombeamento do coração. (Skarvan, 2000; Lee et al., 1986; Parker e Case, 1979). Essas observações experimentais mostram que a curva de função ventricular não é linear, e que, na posição supina, o coração opera num ponto da curva ventricular onde a derivada dQ/dv é menor que seu valor correspondente à posição vertical. O mecanismo de Frank-Starling O mecanismo de Frank-Starling é comumente explicado da seguinte maneira: “O mais importante mecanismo intrínseco envolvido no controle do débito cardíaco é geralmente conhecido como lei de Starling do coração ou mecanismo de Frank-Starling, em referência aos dois fisiologistas que primeiramente o descreveram. (...) A lei de Starling ajuda a explicar dois importantes detalhes da função cardíaca, que são a igualdade entre o débito cardíaco e o retorno venoso, e o fato de os valores médios dos dois débitos cardíacos serem iguais. Se o retorno venoso repentinamente aumentar acima do débito ventricular, o sangue acumulará no ventrículo, aumentando o volume diastólico final. A lei de Starling prediz que esse fato levará a um aumento do débito cardíaco até que um novo estado seja alcançado em que o débito cardíaco seja igual ao retorno venoso. Como o débito de um ventrículo é responsável pelo retorno venoso do outro lado do coração na circulação integral, este mecanismo também garantirá que os débitos cardíacos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 dos dois ventrículos se mantenham iguais. Por exemplo, se o débito cardíaco do ventrículo esquerdo aumentar, o retorno venoso direito aumentará e, conseqüentemente, o débito ventricular direito aumentará” (McGeon, 1996). As explicações qualitativas acima são baseadas em afirmações que são mais precisamente expressas pelas equações (6)-(9) e pela hipótese de que ambos os corações trabalham na parte ascendente da curva de função ventricular. Por exemplo, a afirmação de que um aumento do retorno venoso acima do débito ventricular levará a um aumento em débito cardíaco é expressa pelas equações (6) e (8), juntamente com a hipótese mencionada. Introduzindo as expressões para as funções ventriculares nas equações (10) e (11) obtemos dvE/dt = - QE(vE) + QD(vD) – dvP/dt (12) e dvD/dt = QE(vE) – QD(vD) – dvS/dt (13) onde, por simplicidade, substituímos o símbolo ≅ pelo símbolo de igualdade. A distribuição do volume de sangue no sistema cardiovascular depende da postura do corpo em relação ao campo gravitacional. Por exemplo, o volume médio de sangue na circulação pulmonar e no coração é maior na posição deitada do que na posição vertical, pois a gravidade induz uma redistribuição do volume de sangue no sistema cardiovascular (Skarvan, 2000; Lee et al., 1986; Parker e Case, 1979; Berne e Levy, 1997). A eficácia com que o volume de sangue é redistribuído depende do coração e de características vasculares. Os termos dvP/dt e dvS/dt representam a resposta vascular à perturbação do sistema, e eles dependem da viscosidade de sangue, da geometria e propriedades elásticas do sistema de vasos sangüíneos, medidos por sua complacência (Berne e Levy, 1997). Se os vasos sangüíneos fossem rígidos, aquelas derivadas seriam nulas. Supondo que, durante o transitório, vS e vP sejam constantes, isto é, desprezando a complacência vascular, as equações (12)-(13) se reduzem a dvE/dt = - QE(vE) + QD(vD) (14) e dvD/dt = QE(vE) – QD(vD) (15) As equações (14)-(15) contêm somente grandezas fisiológicas relacionadas ao coração, o elemento ativo do sistema, de modo que elas explicam o papel do coração Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 no mecanismo de controle. Nas equações acima os débitos cardíacos médios, QE e QD, são funções implícitas do tempo, sendo as derivadas temporais dadas por dQE/dt = (dQE/dvE).(dvE/dt) = (dQE/dvE)[QD(vD) – QE(vE)] (16) e dQD/dt = (dQD/dvD).(dvD/dt) = (dQD/dvD)[QE(vE) – QD(vD)] (17) O coração normalmente trabalha na parte ascendente da curva de função ventricular, onde as derivadas dQE/dt e dQD/dt são positivas. No estado estacionário os débitos cardíacos direito e esquerdo são constantes e iguais entre si, isto é, QD = QE e dQE/dt = 0 = dQD/dt. Se, por alguma razão, QE se tornar maior que QD, as equações (16) e (17) mostram que dQE/dt torna-se negativa, ao passo que dQD/dt torna-se positiva. Conseqüentemente, QE decrescerá e QD crescerá, com o aumento do tempo, de modo que a diferença entre os débitos direito e esquerdo diminuirá até que o estado estacionário seja restaurado. Este é o mecanismo de Frank-Starling ou a lei de Starling do coração. Como uma medida da sua eficácia definimos a grandeza adimensional ϕ (vE, vD) = T[dQE/dvE + dQD/dvD] (18) onde T é o período cardíaco e as derivadas são calculadas no ponto de operação do coração. Chamaremos ϕ eficácia do mecanismo de Frank-Starling e observamos que ϕ é, em geral, uma função de duas variáveis, vE e vD. No estado estacionário vE = vD e, neste caso, ϕ pode ser visto como uma função somente de uma variável v = vE = vD . As equações (16)-(18) fornecem d(QE – QD)/dt = - (QE - QD)[dQE/dvE + dQD/dvD] = - (QE – QD) ϕ /T (19) Se, devido a alguma razão, o débito cardíaco esquerdo se tornar maior que o direito, ambos os débitos variarão no tempo e a diferença entre eles variará de acordo com a equação (19). Se ambos os corações trabalham na parte ascendente da curva de função ventricular, as derivadas dQE/dvE e dQD/dvD são positivas e, neste caso, a equação (19) mostra que a diferença entre os débitos cardíacos esquerdo e direito diminuirá até que o estado estacionário seja restaurado. O valor positivo da quantidade ϕ expressa o fato de que o mecanismo de 140 Frank-Starling é eficiente em restaurar o estado estacionário do sistema cardiovascular. Além disso, para valores positivos, quanto maior o valor de ϕ mais rápido o estado estacionário é alcançado. Se ambos os corações trabalham no ramo descendente de curva de função ventricular, as derivadas dQE/dvE e dQD/dvD são negativas e, conseqüentemente, a quantidade ϕ é também negativa. Neste caso a equação (19) mostra que a diferença entre os débitos cardíacos direito e esquerdo aumentará continuamente no tempo, de modo que o mecanismo de Frank-Starling está completamente exaurido como o mecanismo de controle, fato que é expresso pelo valor negativo da grandeza ϕ. Portanto, está provado matematicamente que ambos os corações não podem trabalhar no ramo descendente da curva de função ventricular, justificando a explicação qualitativa que se encontra na literatura (Richardson et al., 1998). Se, durante o transitório, as derivadas dQE/dvE e dQD/dvD não variarem muito, de modo que possam ser consideradas constantes no tempo, a grandeza ϕ será aproximadamente constante, e a equação (19) tem a solução QE(t) – QD(t) = [QE(0) - QD(0)]exp[-(ϕ/T)t] (20) Nesta aproximação linear, a diferença entre o débito cardíaco esquerdo e o direito decresce exponencialmente com o tempo, com uma constante em tempo igual a T/ϕ, se ϕ é positivo, e cresce exponencialmente se ϕ é negativo. Por isso, nesta aproximação, para ϕ positivo, a duração do transitório é inversamente proporcional a ϕ. Supondo, por simplicidade, que as funções ventriculares esquerda e direita tenham a mesma forma matemática, escrevemos QE(vE)=Q(vE) e QD(vD)=Q(vD). Então, para estados estacionários, a equação (18) se reduz a ϕ (v) = 2T(dQ/dv) (21) Como, na parte ascendente da curva de função ventricular, dQ/dv decresce com o aumento de v, a eficácia do mecanismo de Frank-Starling é maior na posição vertical do que na posição deitada. Uma estimativa aproximada de ϕ pode ser feita utilizando dados experimentais encontrados na literatura. Estudos circulatórios em oito atletas apresentaram, na posição deitada, em repouso, os valores médios (Bevegard et al., 1963): débito cardíaco Q = 9,18 l/min; volume total de sangue V = 7,51 l ; pulsação cardíaca 1/T = 63 pulsações/min. O volume de sangue contido em ambos os corações é ~7,2 % do volume total de sangue (McArdle et al., 1998). Então o volume de sangue em 141 cada coração é v = 0,270 l . Com esses valores, e supondo a aproximação de que Q é proporcional a v, achamos ϕ ≅ 2TQ/v ≅ 1,08. Como a função ventricular não é linear e d2Q/dv2 < 0, no ponto correspondente à posição deitada (Skarvan, 2000; Lee et al., 1986; Parker e Case, 1979 ), escrevemos ϕ(deitada) <1,08 < ϕ(vertical). Uma melhor estimativa de ϕ poderia ser feita se existissem dados completos para a função ventricular. Como qualquer quantidade fisiológica, ϕ varia de pessoa para pessoa e de momento para momento, de modo que seus valores numéricos são significativos quando utilizados para se comparar o sistema cardiovascular de pessoas diferentes, ou da mesma pessoa em diferentes condições físicas e de saúde. Consideremos a insuficiência cardíaca congestiva. De acordo com observações experimentais, a curva de função ventricular é achatada comparada com a curva do coração normal. Em virtude da capacidade de adaptação cardiovascular, é possível que o débito cardíaco seja quase normal, embora o miocárdio esteja severamente doente. Experimentos com cães mostram que se pode reduzir a fração de ejeção ventricular sem uma diminuição significativa do débito cardíaco. No entanto, para manter o débito cardíaco normal, o coração precisa dilatar (Komamura et al., 1993; Richardson et al., 1998; Berne e Levy, 1997; Jacob et al., 1992; Weber et al., 1982). Estas observações podem ser expressas matematicamente através do parâmetro ϕ que para o coração deficiente é menor que o valor normal. Redistribuição do volume de sangue Consideremos uma situação em que o ser humano muda da posição sentada para deitada. Então, o sangue será redistribuído entre a circulação sistêmica e pulmonar, e as grandezas cardiovasculares mostrarão uma variação transitória no tempo de acordo com as equações (12)(13), que fornecem d(vE – vD)/dt = - 2QE + 2QD – d(vP - vS)/dt Sejam tI e tF , respectivamente, os instantes inicial e final da redistribuição do volume de sangue. Integrando as equações acima entre tI e tF, e considerando que, no estado estacionário, os volumes médios de sangue contidos nos corações direito e esquerdo são iguais, obtemos Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 (22) Num movimento da posição sentada para a deitada, a integral é positiva, pois o volume médio de sangue na circulação pulmonar (sistêmica) é maior (menor) na posição deitada do que na posição sentada. Portanto, durante a redistribuição do volume de sangue entre a circulação pulmonar e sistêmica, a variação transitória temporal dos débitos cardíacos esquerdo e direito não podem ser iguais, isto é, QD(t) deve ser necessariamente diferente de QE(t). QD(t) e QE(t) dependem de como a pessoa se move da posição inicial para a final, mas a integral depende somente da variação do volume de sangue na circulação pulmonar e sistêmica, isto é, depende somente dos estados estacionários inicial e final. No entanto, DvP e DvS dependem do volume total de sangue e de características dos vasos sangüíneos. O valor médio da diferença entre QD(t) e QE(t), durante o transitório D = tF - tI , é dado por [QD – QE] . D = [DvP - DvS]/2. Então, a duração do transitório médio é inversamente proporcional a (QD – QE)médio . A duração do transitório depende da velocidade com que a pessoa se move de uma posição para outra. Quanto mais rápido o movimento menor será a duração do transitório. No entanto, D não pode igual a zero, pois quando D → 0, (QD – QE )médio → ∞ . Portanto, D deve satisfazer à condição D ≥ Dmin > 0, onde Dmin é a duração mínima, que ocorre quando (QD – QE)médio for máximo. A duração mínima não depende somente do coração, mas também das características dos vasos sangüíneos. Como a solução expressa pela equação (20) foi obtida desprezando-se a complacência vascular, escrevemos Dmin > T/ϕ. A quantidade adimensional T/Dmin é uma medida da eficácia do sistema na redistribuição do volume de sangue entre a circulação pulmonar e a sistêmica. Dmin não pode ser determinado pela presente teoria porque são necessárias mais duas equações para completar o conjunto de equações para vL, vR, vS e vP . Mas, Dmin pode ser medido experimentalmente observando o tempo necessário para o sistema cardiovascular restaurar o estado estacionário alterado por uma mudança de posição em relação à gravidade. Qualquer grandeza mensurável que varie em conseqüência do transitório cardiovascular pode, em princípio, ser útil para a estimativa de Dmin . Enfatizamos o fato de que todas as conclusões teRevista UniVap, v.9, n.16, 2002 óricas, referentes ao mecanismo de Frank-Starling, foram deduzidas das equações (12)-(13), sem supor uma forma particular para a função ventricular, de modo que elas são úteis para simulações numéricas em que diferentes formas de função ventricular podem ser consideradas. 3. DISCUSSÃO E RESULTADOS Foram deduzidas duas equações diferenciais para valores médios de fluxos sangüíneos e das variações do volume de sangue em diferentes partes do sistema cardiovascular. Elas são úteis para o estudo de transitórios no sistema cardiovascular. O sistema de equações (12)-(13) não constitui um conjunto completo de equações, pois há somente duas equações e quatro variáveis fisiológicas. A dedução das outras duas equações é essencial para um completo entendimento de fenômenos transitórios do sistema. Apesar disso, a presente teoria é útil para discutir analiticamente alguns pontos essenciais do mecanismo de Frank-Starling. O mecanismo de Frank-Starling pode ser explicado matematicamente pelo sistema de equações (12)-(13). A grandeza ϕ, definida pela equação (18), representa a medida da eficácia deste mecanismo. ϕ depende da função ventricular e do ponto de operação do coração. Em contraste com a presente teoria, a explicação qualitativa do mecanismo de Frank-Starling, encontrada na literatura, não pode fornecer uma medida da sua eficácia. Foi demonstrado matematicamente que ambos os corações não podem trabalhar no ramo descendente da curva de função ventricular porque, neste caso, o mecanismo de Frank-Starling estaria completamente exaurido como um mecanismo de controle, fato que é expresso pelo valor negativo de ϕ . Quando uma pessoa se move em relação ao campo gravitacional, por exemplo, da posição sentada para a deitada, o estado estacionário é perturbado. A variação temporal dos débitos cardíacos direito e esquerdo, durante a perturbação, não é a mesma, de modo que o volume de sangue é redistribuído entre a circulação pulmonar e a sistêmica. A duração do comportamento transitório do sistema cardiovascular depende da velocidade com que se move de uma posição para outra. De acordo com esta teoria, a duração do transitório não pode ser arbitrariamente pequena, pois o sistema cardiovascular precisa de algum tempo para restaurar o estado estacionário, de modo que há uma duração mínima para o transitório. Devido à falta das duas equações, a presente teoria não pode determinar essa duração mínima que depende de características do coração e dos vasos sangüíneos. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEVEGARD, S.; HOLMGREN, A.; JONSSON, B. Cir142 culatory studies in well trained athletes at rest an during heavy exercise, with special reference to stroke volume and the influence of body position. Acta Physiol. Scand. n 57, 1962, p. 26-50. gstone, 1996. p. 52. BERNE, R. M.; LEVY, M. N. Cardiovascular Physiology, 7 ed. St. Louis, Missouri: Mosby 1997. p. 96-8, 195-6; 207-8; 215. QUARTERONI, A. Modeling the Cardiovascular System – A Matematical Adventure: Part II, SIAM News, v. 34, n.6, 2001, p .1-3. BRAUNWALD, E.; ROSS Jr., J. Control of cardiac performance. In: BERNE R. M., ed., Handbook of physiology, Section 2, Cardiovascular system. The heart, Vol 1. Bethesda,(MD): American Physiological Society, 1979. p 533-80. RICHARDSON, D. R.; RANDALL, D. C.; SPECK, D. F. Cardiopulmonary System, Fence Creek; Madison, 1998. p. 69-71, 140-145. ELZINGA, G. Starling’s law of the heart a historical misinterpretation, Bas. Res. Cardiol. V.84, 1989, p. 1-4. GUYTON, A. C.; JONES, C. E.; COLEMAN, T. G. 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Informações sobre os microdomínios formados por polissacarídeos naturais ou quimicamente modificados em solução são de grande importância quando se deseja utilizá-los para o desenvolvimento de sistemas carregadores de drogas de ação específica. O presente artigo discorre sobre sistemas carregadores de drogas em geral e apresenta informações específicas sobre sistemas carregadores de drogas baseados em polissacarídeos, possibilidades de utilização, modificações estruturais e avaliações dos microdomínios. Palavras-chave: Biomateriais, carregadores de drogas, polissacarídeo anfifílico, microambiente hidrofóbico. Abstract. Presently, drug-delivery systems have been studied and developed with the purpose of effectively direct the drugs to specific organs of the body, avoiding, that way, the unpleasant side-effects for the patient. Information on microdomains formed by natural or chemically modified polysaccharides in a solution are of great importance when the intention is to use them as delivery systems for action-specific drugs. The present article provides a general view of the drug-delivery systems and presents specific information on drug-delivery systems based on polysaccharides, the possibilities for their usage, structural modifications and the evaluations of the microdomains. Key words: Biomaterials, drugs delivery, amphiphilic polysaccharide, hydrophobic microenviron1. INTRODUÇÃO Nos dias atuais, estudos relacionados a drogas inteligentes têm recebido uma atenção especial devido seu caráter multidisciplinar e altamente especializado. Estes estudos visam a interação da droga somente com as partes doentes do organismo humano sem causar efeitos colaterais desagradáveis ao paciente. Neste sentido, os sistemas carregadores de drogas surgem como alternativa viável por apresentarem algumas vantagens sobre as injeções e comprimidos tradicionais: direcionamento da droga a um sítio de ação particular, bem como a liberação dela a uma taxa predeterminada e constante (Chandra, 1998). A droga pode ser encapsulada em uma membrana ou em uma matriz polimérica, e a erosão ou dissolução do polímero contribui para o mecanismo de liberação (Zambaux, 2000). Outras vezes, a droga é ligada a um sítio específico do polímero e pode ser liberada pela clivagem da ligação. A seletividade é alcançada graças ao uso de ligações que são clivadas somente sob certas condições, por exemplo, por enzimas do fígado (Chandra, 1998). * Professor(a) da UNIVAP. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Um material é classificado biodegradável quando, sob ação de agentes biológicos e sob condições adequadas de umidade, temperatura e disponibilidade de oxigênio, é passível de sofrer processos relativamente rápidos de biodegradação e bioerosão. O termo biocampatível refere-se ao material com características que permitam sua interação com um sistema biológico. Desta forma, materiais com características biodegradáveis e biocompatíveis, naturais e sintéticos, vêm sendo desenvolvidos e estudados para utilização como carregadores de drogas. A partir deles, vários sistemas carregadores de drogas têm sido propostos como, por exemplo, micelas poliméricas (Kim, 2000), lipossomas (Smith, 1990), nanopartículas (Cho, 2001; Oh, 1999), microesferas poliméricas (Nordmark, 2000; Gupta, 1989) e hidrogéis (Chandra, 1998). Hidrogéis são redes tridimensionais de polímeros insolúveis e com habilidade para reter grandes volumes de água sem sofrer dissolução. Eles vêm sendo muito utilizados em aplicações biológicas e médicas por fornecerem uma barreira física para reter células juntamente com alto conteúdo de água, permitindo a difusão de nutrientes. Algumas vezes o hidrogel produzido não é 144 biodegradável e a droga é liberada por difusão; outras vezes o hidrogel é utilizado em seu estado desidratado e, ao contato com a água, a droga solúvel é liberada enquanto a água é absorvida (Chandra, 1998). 1.1 Pesquisas sobre sistemas carregadores de drogas Em terapia fotodinâmica (Rousset, 1999; Mantareva, 1997; Michailov, 1997) a baixa solubilidade de alguns fotossensibilizadores, como as ftalocianinas, freqüentemente impede sua injeção diretamente na corrente sangüínea, e este problema é contornado pela utilização de sistemas carregadores como lipossomas (Wöhrle, 1999) e polímeros biodegradáveis (Yapp, 1999). Por outro lado, a toxicidade de certas drogas aplicadas nesta modalidade terapêutica é um fator limitante da dose a ser utilizada e do tempo de tratamento. A liberação lenta da droga no local lesado e, portanto, a possibilidade de utilização de maior concentração por mais tempo, pode ser conseguida por sua inclusão em um polímero biodegradável (Yapp, 1999). Microesferas biocompatíveis e biodegradáveis dos polímeros sintéticos poli(ácido láctico) e poli(ácido láctico-co-glicólico) têm-se mostrado sistemas carregadores bastante promissores tanto para vacinas (Kofler, 1996), como para agentes terapêuticos direcionados a infeções, incluindo o vírus da imunodeficiência humana (HIV) (Akhtar, 1997). Apesar da possibilidade da aplicação das nanopartículas como sistemas carregadores, a maior preocupação é que durante a liberação da droga em fluidos fisiológicos (por exemplo, o sangue) ou em órgãos (por exemplo, pulmões), estas partículas interajam com outros componentes do ambiente. Por isso, as características de superfície devem ser corretamente projetadas para maximizar interações favoráveis. Partículas de poli(ácido láctico) e poli(ácido glicólico) recobertas de poli(etileno glicol) têm sido sintetizadas com este propósito, e uma importante característica obtida é um maior tempo de circulação no ambiente fisiológico objetivado com poucas interações indesejáveis (Hrkach, 1997). Embora as ligações intercruzadas em polímeros venham sendo extensivamente usadas como um método de preparação de hidrogel, relativamente poucos trabalhos têm sido relatados sobre a preparação de hidrogéis biocompatíveis via fotopolimerização de polímeros solúveis em água. Sistemas fotoiniciadores para preparação de hidrogel incluem: 1) polimerização iniciada via radical livre, por luz ultravioleta ou visível, de grupos acrílicos ligados a um polímero solúvel em água e 2) fotodimerização de grupos fotossensíveis, como cinamato ou cumarina, que são adicionados como grupos terminais de polímeros hidrofílicos (Andreopoulos, 1996). A fotopolimerização, sob irradiação de luz 145 ultravioleta, de poli(etileno glicol) contendo um grupo cinamato produz hidrogel não iônico solúvel em água, avaliado para utilização como carregador de droga. O intercruzamento é realizado pela fotoadição entre um grupo cinamato no estado excitado de uma cadeia com o grupo cinamato no estado fundamental contido em outra cadeia (Andreopoulos, 1996). Seguindo a mesma técnica, hidrogéis de poli(etileno glicol)) – co – poli(α - hidroxi ácido) (Elisseeff, 1997) e de poli(L-ácido láctico – co – L –ácido aspártico) (Elisseeff, 1997) hábeis a sofrer erosão por via biológica têm sido produzidos por fotopolimerização, fornecendo, portanto, uma alternativa viável para a produção de carregadores de drogas. Estudos com oligômeros de poli (D,L-ácido láctico) revestidos com 1,2-propileno glicerol demonstraram ser bons candidatos a carregadores de drogas, especialmente em relação ao ácido salicílico (Andreopoulos, 1996). 2. POLISSACARÍDEOS (WHISTLER, 1973; INGRAM, 1966) Juntamente com monossacarídeos e oligossacarídeos, os polissacarídeos fazem parte de uma classe de compostos chamados carboidratos. Inicialmente, os carboidratos receberam este nome pelo fato de a fórmula empírica geral de muitos deles ser Cn(H2O)n. Essa fórmula contribuiu para a crença primitiva de que este grupo de compostos poderia ser representado como hidratados de carbono. Com a descoberta de outros compostos que tinham as propriedades gerais dos carboidratos, mas continham em sua molécula nitrogênio ou enxofre, além de carbono e hidrogênio, observou-se que a definição não era adequada. Polissacarídeos são polímeros naturais de cadeia longa, de estrutura linear ou ramificada e alta massa molar, compostos de unidades simples de monossacarídeos. Eles podem possuir função estrutural ou exercer um papel de armazenador de energia. Todos podem ser hidrolisados por ácidos ou enzimas, fornecendo monossacarídeos e/ ou derivados de monossacarídeos. A Figura 1 contém a estrutura de alguns polissacarídeos. Por serem não-tóxicos, biocompatíveis, biodegradáveis, de fácil solubilização, capazes de formar hidrogel ou cristal líquido, inertes em sistemas biológicos e abundantes na natureza, alguns polissacarídeos apresentam certas vantagens sobre outros materiais quanto à sua utilização em aplicações biomédicas, bem como na produção de sistemas carregadores de drogas. Em particular, a modificação na estrutura de determinado polissacarídeo, por introdução de grupos hidrofóbicos ou Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 hidrofílicos, pode contribuir para otimizar sua aplicação como carregador de droga. Dentre os polissacarídeos que mais têm sido utilizados na produção de biomateriais estão: dextrana, pululana, amilopectina, ácido hialurônico, quitosana e celulose. Particularmente, este último tem sido o mais utilizado em formulações tradicionais de sistemas carregadores de drogas (Davies, 2000). Centenas ou milhares de moléculas de glicose ligadas dão origem à dextrana, um polissacarídeo bacterial que pode ser sintetizado por vários organismos, mas que tem sido produzido comercialmente somente a partir das bactérias Leuconostoc mesenteroides e Leuconostoc dextranium sob influência da enzima dextrana sacarose (Chandra, 1998; Ingram, 1966). O monossacarídeo glicose, constituído de seis átomos de carbono, é o mais abundante e o mais importante encontrado na natureza. Unidades de glicose ligam-se por pontes de oxigênio, chamadas ligações glicosídicas. Fig. 1 - Estrutura de alguns polissacarídeos Em dextranas a ligação glicosídica ocorre entre o carbono C-1 de uma unidade glicose com configuração α e o carbono C-6 de outra unidade glicose, formando o que se denomina ligação α-1,6. Além das ligações normais α-1,6 as cadeias podem conter ramificações curtas, constituídas de uma única unidade de glicosil por ligação α-1,3 a cada 20-30 resíduos de cadeia principal. O polissacarídeo dextrana exibe capacidade anticoagulante semelhante à heparina (Krentsel, 1997), ação de inibição sobre células tumorais (Bittoun, 1999; Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Bagheri-Yarmand, 1997) e sobre a infeção do vírus da AIDS quando em concentrações próximas a 10 µg / mL (Yoshida, 1990). Também, a dextrana é degradada no organismo humano pela enzima dextranase do cólon e, por isso, além da biocompatibilidade, tem sido utilizada em carregadores de drogas específicos. Em particular, o hidrogel de metacrilato glicidil dextrana / poli(etileno glicol) dimetacrilato tem mostrado propriedades físico-químicas úteis e viabilidade como carregador de drogas hidrofóbicas (Kim, 2000). 146 Biomateriais compostos de lipossomas recobertos com polissacarídeos têm sido extensivamente estudados para aplicação em sistemas carregadores de drogas. A utilização do polissacarídeo visa uma maior especificidade do sistemas e, neste sentido, pululana, amilopectina e dextrana têm sido utilizados (Kobayashi, 1986; Sunamoto, 1992). modificados (Chandra, 1998; Ingram, 1966) Quitosana é um amino-polissacarídeo linear composto de unidades de β-D-glucosamina unidas por ligações 1,4, proveniente de conchas de crustáceos. Estudos têm demonstrado uma eficiência maior de esponjas de quitosana sobre outros carregadores devido a suas propriedades de mucoadesão e sua habilidade para flutuar, o que permite sua utilização tanto por via nasal, como por via oral (Oungbho, 1997). Em sistemas macromoleculares o caráter anfifílico está diretamente relacionado à quantidade de grupos hidrofóbicos e hidrofílicos presentes na cadeia. Em polímeros sintéticos, naturais ou quimicamente modificados, os grupos hidrofóbicos são as cadeias carbônicas longas e os grupos hidrofílicos são grupos polares (aniônicos, catiônicos ou não-iônicos) ligados a ela. Glicolipídeos, glicoproteínas e mucopolis-sacarídeos fazem parte da capa celular das células animais. Os mucopolissacarídeos são substâncias gelatinosas de alta massa molar que ao mesmo tempo lubrificam e servem de cimento ligante. O ácido hialurônico é um lubrificante natural das juntas ósseas, encontrado também no cordão umbilical; é solúvel em água, formando soluções viscosas. É composto de unidades alternadas de ácido Dglucurônico e N-acetil-D-glucosamina ligados por uma unidade β-1,3, formando um dissacarídeo. Cada dissacarídeo liga-se ao próximo por β-1,4 em várias unidades que se repetem. Soluções aquosas de ácido hialurônico não formam hidrogel, exceto se a massa molar do polímero e / ou a concentração são extremamente altas. Um caminho para modificar esta propriedade e favorecer a utilização como carregador de drogas é transformá-lo em seu derivado anfifílico para que haja associação hidrofóbica em solução aquosa (Pelletier, 2000). Nanopartículas são partículas coloidais de tamanho variando de 10 a 1.000 nm. São aplicadas em vários campos das ciências da vida como em diagnósticos clínicos, estudos histológicos e sistemas carregadores de drogas. No último caso, a aplicação de nanopartículas é de interesse particular devido a algumas vantagens como ação adequada na liberação da droga, fácil purificação e esterilização. Muitos estudos têm sido relatados sobre a modificação da superfície da nanopartícula, em especial, por polissacarídeos solúveis em água visando melhora no tempo de liberação da droga e no tempo de circulação no sangue (Cho, 2001). Moléculas anfifílicas possuem duas partes, uma das quais tem afinidade pelo solvente e a outra não. Quando o solvente é a água, são utilizados os termos hidrofílico para a parte solúvel em água e hidrofóbico para a parte insolúvel em água (Kalyanasundaram, 1987). O estudo de polissacarídeos modificados mostra que a introdução de grupos hidrofóbicos ou hidrofílicos na estrutura pode causar a associação intercadeias, que será dependente da natureza do substituinte, bem como do grau de substituição. A substituição de grupos hidrofílicos, como, por exemplo –OH, por grupos hidrofóbicos, como, por exemplo, cadeias alquílicas longas, na estrutura de polissacarídeos, favorece a associação intra e intermolecular e resulta na formação de grandes agregados que induzem alterações em algumas propriedades de polissacarídeos como, por exemplo, viscosidade, tensão superficial, solubilidade, além de diminuir a polaridade da macromolécula. Agregados de sistemas macromoleculares anfifílicos comportam-se de forma similar às micelas de surfactantes que se formam somente acima de uma certa concentração, a concentração micelar crítica (cmc). No caso de polissacarídeos, a concentração a partir da qual começam a formar-se os agregados chama-se concentração de agregação crítica (cac) (Kalyanasundaram, 1987). Como mencionado anteriormente, informações sobre os microdomínios formados por polissacarídeos naturais ou quimicamente modificados em solução são de grande importância quando se deseja utilizá-los para o desenvolvimento de sistemas carregadores de drogas de ação específica. Neste sentido, vários estudos têm sido realizados. Por causa de sua origem e estrutura, ciclodextrinas podem ser caracterizadas como carboidratos e, devido à propriedade de formar complexos com grande número de compostos em solução aquosa, têm sido utilizadas como carregadores de drogas (Chandra, 1998). Estudos fotofísicos conduzidos em soluções aquosas de quitosana mostram um aumento da hidrofobicidade do microambiente formado em solução com o aumento da concentração do polissacarídeo, sugerindo uma associação intermolecular de cadeias poliméricas de quitosana (Amijy, 1995). 2.1 Estudos em sistemas anfifílicos de polissacarídeos Através de estudos por microscopia eletrônica e 147 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 cromatografia, o microambiente formado pelo polissacarídeo natural pululana substituído com grupos colesterol demonstrou a propriedade de auto-agregação em solução aquosa, formando nanopartículas coloidais monodispersas e estáveis acima da concentração de agregação crítica (Akiyoshi, 1993). As propriedades físico-químicas do hidrogel biodegradável de dextrana modificada e poli(etileno glicol) têm sido estudadas in vitro, demonstrando capacidade para complexar várias substâncias hidrofóbicas quando acima da concentração de agregação crítica (cac) (Kim, 2000). Lipoproteínas interagem fortemente com o polissacarídeo HyPE (ácido hialurônico covalentemente ligado à fosfatidiletanolamina) em solução. Estudos espectrais indicam que a interação resulta em um aumento aparente do tamanho das partículas de lipoproteínas (Schnitzer, 2000). A interação de pectina e outros polissacarídeos com proteínas tem sido estudada utilizando a técnica de laser. Tal técnica fornece informações sobre a composição e a morfologia do microdomínio nas misturas bipoliméricas (Nordmark, 2000). Os microdomínios hidrofóbicos, bem como a concentração de agregação crítica (cac) de derivados hidrofobicamente modificados de pectina, obtidos por reação de substituição com halogenetos de alquila, têm sido avaliados utilizando-se cromóforos introduzidos na solução ou ligados ao polímero (Fischer, 1998). Estudos sobre associações hidrofóbicas de derivados anfifílicos dos polissacarídeos hialuronato de sódio alginato de sódio têm sido conduzidos utilizando a técnica viscosimétrica, evidenciando associações hidrofóbicas em regime diluído (Pelletier, 2000). Rotaxanos são compostos constituídos de um composto linear e estreito o suficiente para atravessar a estrutura de um anel de ciclodextrina, ao qual se encontra ligado. Valendo-se do fato de moléculas de ciclodextrinas possuírem uma região extremamente polar e solúvel em água e uma região interna apolar e pouco solúvel em água, rotaxanos vêm sendo utilizados como carregadores para algumas drogas pouco solúveis, as quais são ligadas às duas extremidades do composto linear e ocupam uma localização externa ao anel. Devido ao tamanho em relação aos anéis, as drogas não possuem mobilidade, e sua ligação à estrutura possibilita maior solubilidade em meio aquosa, aumentando as possibilidades de utilização em organismos vivos (Chandra, 1998). Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estudos relacionados aos sistemas carregadores de drogas apresentam complexidade de causa e efeito de ordem física, química e biológica, oferecendo grandes possibilidades para pesquisa pura e aplicada de caráter interdisciplinar. Entretanto, os sistemas carregadores de drogas ainda apresentam alguns problemas, como, por exemplo, distribuição e solubilidade inadequadas da droga e rápida liberação; curto tempo de circulação no sangue, instabilidade térmica, fragilidade estrutural e pouca eficiência quanto ao carregador. Embora modificações em polissacarídeos venham sendo praticadas há um longo tempo, somente nos últimos anos pesquisas vêm se desenvolvendo para novas metodologias, o que representa um vasto campo de estudo a ser desbravado tanto no que diz respeito a novos sistemas carregadores, como estudos físico-químicos e de interação com drogas e moléculas de interesse em biotecnologia. 4. 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Aceita artigos originais, não publicados anteriormente, de seus docentes, discentes, bem como de autores da comunidade científica nacional e internacional. Publica artigos, notas científicas, relatos de pesquisa, estudos teóricos, relatos de experiência profissional, revisões de literatura, resenhas, nas diversas áreas do conhecimento científico, sempre a critério de sua Comissão Editorial e de acordo com o formato dos artigos aqui publicados. Solicita-se observar as instruções a seguir para o preparo dos trabalhos. 1. Os originais devem ser apresentados em papel branco de boa qualidade, no formato A-4 (21,0cm x 29,7cm) e encaminhados completos, definitivamente revistos, com no máximo 15 páginas, digitadas em espaço 1,5 entre as linhas. Recomenda-se o uso de caracteres Times New Roman, tamanho 12, em 3 vias, acompanhadas de disquete (de 3,5”), de computador padrão IBM PC, com gravação do texto no Programa Word for Windows e, se possível, enviar o Artigo pelo e-mail [email protected]. Somente em casos muito especiais serão aceitos trabalhos com mais de 15 páginas. Os títulos das seções devem ser em maiúsculas, numerados seqüencialmente, destacados com negrito. Não se recomendam subdivisões excessivas dos títulos das Seções. 2. Língua. Os artigos deverão ser escritos preferencialmente em Português, aceitando-se também textos em Inglês e Espanhol. No caso do uso das línguas Portuguesa e Espanhola, deverá ser anexado um resumo em Português (ou Espanhol) e em Inglês (Abstract). 3. Os trabalhos devem obedecer à seguinte ordem: - Título (e subtítulo, se houver). Deve estar de acordo com o conteúdo do trabalho, conforme os artigos aqui apresentados. - Autor(es). Logo abaixo do título, apresentar nome(s) do(s) autor(es) por extenso, sem abreviaturas, com asterisco, colocado logo após o nome completo do autor ou autores, remetendo a uma nota de rodapé relativa à(s) informação(ões) referentes às instituições a que pertence(m) e às qualificações, títulos, cargos ou outros atributos. 151 - Resumo. Com no máximo 500 palavras, o resumo deve apresentar o que foi feito e estudado, seu objetivo, como foi feito (metodologia), apresentando os resultados, conclusões ou reflexões sobre o tema, de modo que o leitor possa avaliar o conteúdo do texto. - Abstract. Versão do resumo para a língua Inglesa. Caso o trabalho seja escrito em Inglês, o Abstract deverá ser traduzido para o Português (Resumo). - Palavras-chave (Key words). Apresentar de duas a cinco palavras-chave sobre o tema. - Texto. Deve ser distribuído de acordo com as características próprias de cada trabalho. Um trabalho pode, por exemplo, ter uma Introdução, um Desenvolvimento, Considerações Finais e Referências Bibliográficas. De um modo geral, contém: a) Introdução, b) Material e Métodos, c) Apresentação e Análise dos Dados d) Resultados, e) Discussão f) Conclusões, Recomendações ou Considerações Finais, g) Agradecimentos (quando necessário), h) Referências Bibliográficas. - Citações dentro do texto. As citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um parágrafo independente. As menções a autores no decorrer do texto devem subordinar-se ao esquema sobrenome do autor, data (Novo, 1989, p.20). Se as idéias dos autores forem apresentadas de modo interpretado e resumido, portanto não sendo “textuais”, devem trazer apenas o sobrenome do autor e a data. Ex.: Segundo Demo (1991), nenhum texto diz tudo. As linhas não dizem tudo. As entrelinhas muitas vezes dizem mais. Caso o nome do autor já estiver no texto, indica-se apenas a data entre parênteses. Ex.: Segundo dados do SEBRAE (1993), o grupo de áreas destinadas às lavouras temporárias ficava em torno de 7% do total das terras. Se a citação for textual, devese adicionar o número da página. Ex.: Segundo Jaime Lerner (1992, p.20), “A cidade ambientalmente correta evita a industrialização forçada, rejeita as indústrias poluentes...”. - Refências Bibliográficas. Elas devem ser apresentadas no final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es), como nos seguintes exemplos: a) Livro: SOBRENOME, Nome. Título da obra. Local de publicação: Editora, data. Exemplo: PÉCORA, A. Problemas de redação. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. b) Capítulo de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do livro. Local de publicação: Editora, data. Página inicialfinal. Exemplo: LACOSTE, Y. Liquidar a geografia... liquidar a idéia nacional? In: VESENTIN, José William (org.). Geografia e ensino: textos críticos. Campinas: Papirus, 1989. p.31-82. Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 c) Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação, volume do periódico, número do fascículo, página inicial-página final, mês(es). Ano. Exemplo: ALMEIDA JÚNIOR, M. A economia brasileira. Revista Brasileira de Economia, São Paulo, v. 11, n.1, p. 26-28, jan./fev. 1995. d) Dissertações e Teses: SOBRENOME, Nome. Título da dissertação (ou tese). Local. Número de páginas (Categoria, grau e área de concentração). Instituição em que foi defendida. data. Exemplo: CECCATO, V. Proposta metodológica para avaliação da qualidade de vida urbana a partir de dados convencionais de sensoriamento remoto, Sistema de Informações Geográficas e banco de dados georrelacional. São José dos Campos, 140 p. (INPE-5457-TDI/499). Dissertação (Mestrado em Sensoriamento Remoto) - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 1992. e) Outros casos: Consultar as Normas da ABNT para Referências Bibliográficas. 4. As figuras (desenhos, gráficos, ilustrações, fotos) e tabelas devem apresentar boa qualidade e serem acompanhados de legendas breves e claras. Indicar, no verso das ilustrações, escritos a lápis, o sentido da figura, o nome do autor e o título abreviado do trabalho. As figuras devem ser numeradas seqüencialmente com números arábicos e iniciadas pelo termo Fig., devendo ficar na parte inferior da figura. Exemplo: Fig. 4 - Gráfico de controle de custo. No caso das tabelas, elas também devem ser numeradas seqüencialmente, com números arábicos, e colocadas na parte superior da tabela. Exemplo: Tabela 5 - Cronograma da Pesquisa. As figuras e tabelas devem ser impressas juntamente com o original e quando geradas no computador deverão estar gravadas no mesmo arquivo do texto original. No caso de fotografias, desenho artístico, mapas etc., estes devem ser de boa qualidade e em preto e branco. 5. O encaminhamento do original para publicação deve ser feito acompanhado do disquete e com a indicação do software e versão usada. ência ou não da publicação do trabalho enviado, bem como poderá indicar correções ou sugerir modificações. A cada edição, o Corpo Editorial selecionará, dentre os trabalhos considerados favoráveis para publicação, aqueles que serão publicados imediatamente. Os não selecionados serão novamente apreciados na ocasião das edições seguintes. 7. Os conteúdos e os pontos de vista expressos nos textos são de responsabilidade de seus autores e não apresentam necessariamente as posições do Corpo Editorial da Revista UniVap. 8. Originais. A Revista não devolverá os originais dos trabalhos e remeterá, gratuitamente, a seus autores, cinco exemplares do número em que forem publicados. 9. O Corpo Editorial se reserva o direito de introduzir alterações nos originais, com o objetivo de manter a homogeneidade e a qualidade da publicação, respeitando, porém, o estilo e a opinião dos autores. 10. Endereços. Deverá ser enviado o endereço completo de um dos autores para correspondência. Os trabalhos deverão ser enviados para: UNIVERSIDADE DO VALE DO PARAÍBA - UNIVAP PRÓ-REITORIA DE INTEGRAÇÃO UNIVERSIDADE/SOCIEDADE Conselho Editorial da Revista UniVap Av. Shishima Hifumi, 2.911 - Bairro Urbanova CEP 12244-000 - São José dos Campos - SP Telefone: (0 12) 3947-1036 Fax: (0 12) 3949-1334 E-mail: [email protected] 6. O Corpo Editorial avaliará sobre a conveni- Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 152 REVISTA UNIVAP 153 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 A REVISTA UniVap tem por objetivo divulgar conhecimentos, idéias e resultados, frutos de trabalhos desenvolvidos na UNIVAP - Universidade do Vale do Paraíba, ou que tiveram participação de seus professores, pesquisadores e técnicos e da comunidade científica. Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. A publicação total ou parcial dos artigos desta revista é permitida, desde que seja feita referência completa à fonte. Revista UniVap - Ciência - Tecnologia - Humanismo. V.1, n.1 (1993)São José dos Campos: UniVap, 1993v. : il. ; 30cm . Semestral com suplemento. ISSN 1517-3275 1 - Universidade do Vale do Paraíba CORRESPONDÊNCIA UNIVAP-Av. Shishima Hifumi, 2.911 - Urbanova CEP 12244-000 – São José dos Campos - SP - Brasil Tel. (0 12) 3947-1036 Fax (0 12) 3949-1334 E-mail: [email protected] Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 154 SUMÁRIO Baptista Gargione Filho Reitor Antonio de Souza Teixeira Júnior Vice-Reitor e Pró-Reitor de Integração Universidade Sociedade João Luiz Teixeira Pinto Pró-Reitor de Credenciamento e Recredenciamento de Cursos e de Recredenciamento da Universidade v.9 1517-3275 n.16 jun.02 ISSN PALAVRA DO REITOR..........................................................................................5 Ailton Teixeira Pró-Reitor de Administração e Finanças EDITORIAL.............................................................................................................7 Luiz Antonio Gargione Pró-Reitor de Planejamento A FUNDAÇÃO VALEPARAIBANA DE ENSINO (FVE) E A UNIVERSIDADE DO VALE DO PARAÍBA (UNIVAP) ..............................................................9 Elizabeth Moraes Liberato Pró-Reitora de Avaliação Élcio Nogueira Pró-Reitor de Graduação Maria da Fátima Ramia Manfredini Pró-Reitora de Cultura e Divulgação Maria Cristina Goulart Pupio Silva Pró-Reitora de Assuntos Jurídicos Francisco José de Castro Pimentel Diretor da Faculdade de Direito do Vale do Paraíba Francisco Pinto Barbosa Diretor da Faculdade de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo Frederico Lencioni Neto Diretor da Faculdade de Educação Luiz Alberto Vieira Dias Diretor da Faculdade de Ciência da Computação Renato Amaro Zângaro Diretor da Faculdade de Ciências da Saúde Samuel Roberto Ximenes Costa Diretor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas Vera Maria Almeida Rodrigues Costa Diretora da Faculdade de Comunicação e Artes Marcos Tadeu Tavares Pacheco Diretor do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Maria Valdelis Nunes Pereira Diretora do Instituto Superior de Educação COORDENAÇÃO GERAL Antonio de Souza Teixeira Júnior REVISÃO DE TEXTO Glória Cardozo Bertti DIGITAÇÃO E FORMATAÇÃO Glaucia Fernanda Barbosa Gomes CONSELHO EDITORIAL Amilton Maciel Monteiro Antonio de Souza Teixeira Júnior Antônio dos Santos Lopes Cláudio Roland Sonnenburg Élcio Nogueira Elizabeth Moraes Liberato Francisco José de Castro Pimentel Francisco Pinto Barbosa Frederico Lencioni Neto Jair Cândido de Melo Marcos Tadeu Tavares Pacheco Maria da Fátima Ramia Manfredini Maria do Carmo Silva Soares Maria Tereza Dejuste de Paula Rosângela Taranger Samuel Roberto Ximenes Costa Vera Maria Almeida Rodrigues Costa 155 MUDANÇAS QUALITATIVAS NO ENSINO DA GRADUAÇÃO, NO ENFOQUE DIDÁTICO-PEDAGÓGICO Elizabeth Moraes Liberato.......................................................................................12 AVALIAÇÃO DO EXAME NACIONAL DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A OPINIÃO DO ALUNADO, FCSA/UNIVAP, 2001 Vera Lúcia Ignácio Molina .....................................................................................19 AVALIAÇÃO DA QUALIDADE AMBIENTAL DE TRÊS ÁREAS DE LAZER PÚBLICAS EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP: DO PROJETO À PÓSOCUPAÇÃO Rubens A. Reisig Moreira, Mário Valério Filho, Emmanuel A. dos Santos........... 44 LOCALIZAÇÃO DAS ÁREAS DE INUNDAÇÃO EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP COMO SUBSÍDIO AO PLANEJAMENTO URBANO Ana Catarina Farah Perrella, Marlene Elias Ferreira.............................................. 52 METODOLOGIA PARA DIGITALIZAÇÃO DE PLUVIOGRAMAS E PARA GERAÇÃO DE UMA BASE DE DADOS PLUVIOGRÁFICOS Roberto Cordeiro Waltz, Marlene Elias Ferreira.................................................... 68 LEVANTAMENTO PRELIMINAR DA MIRMECOFAUNA DA FAZENDA SANTANA DO POÇO - CAMPUS URBANOVA Marcelo de Castro Pazos, Graziela Souza, Nádia M. R. de Campos Velho........... 79 ETNIA, NAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO André Augusto Brandão.......................................................................................... 87 MATRIX E SHOW DE TRUMAN: A REPRODUÇÃO DO CONSENSO NA SOCIEDADE DE CONSUMO GLOBALIZADA Luiz Carlos Andrade de Aquino, Amanda Pereira de Toledo, Flavia Chaves Valentim, Jacqueline Stefânia Fernandes de Paiva ......................................................................... 100 1,2,3: “OS FINOS ESQUELETOS DO PENSAMENTO” Sônia Guedes do Nascimento Leal....................................................................... 120 ECONOMIA INFORMAL: OS CAMELÔS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS Gilson dos Anjos Ribeiro, Friedhilde M. K. Manolescu ................................................ 123 ELEMENTOS PARA UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO José Paulo Breda Destro, Luiz Carlos Andrade de Aquino ............................................ 133 FÍSICA DO SISTEMA CARDIOVASCULAR Mituo Uehara, Kumiko Koibuchi Sakane. ............................................................................... 137 CARREGADORES DE DROGAS - POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE POLISSACARÍDEOS MODIFICADOS Máira Regina Rodrigues, Milton Beltrame Júnior............................................................... 144 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 Revista UniVap, v.9, n.16, 2002 156