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RELAÇÃO DO DEVANEIO COM O SONHO Sabrina Barbosa Sironi1 Segundo Freud (1915, p. 105 e 132), sonhos são fenômenos psíquicos onde realizamos desejos inconscientes. O sonho é o resultado de uma conciliação (Ibidem, p. 133). Dorme-se e, não obstante, vivencia-se a remoção de um desejo. Satisfaz-se um desejo, porém, ao mesmo tempo, continua-se a dormir. Ambas as realizações são em parte concretizadas e em parte abandonadas. Segundo Garcia-Roza (1991, p. 26), todo o material que compõe o sonho procede de nossas experiências, daquilo que foi por nós vivenciado na vigília. Este material é recordado no sonho, embora não seja imediatamente reconhecido pelo sonhador como originário de suas próprias experiências. Esta é uma das características do conteúdo onírico manifesto: a de ser experimentado pelo sonhador como algo que lhe é estranho, como se não fosse uma produção sua. Alem da deformação a que são submetidos os pensamentos latentes pela elaboração onírica, o sonho é também deformado pelos pensamentos da vigília, o que ele denomina de elaboração secundária. Segundo Garcia-Roza (1991, p. 81), o sonhador tem acesso ao conteúdo manifesto, ou seja, ao sonho sonhado e recordado por ele ao despertar. Este é o substituto distorcido de algo inteiramente distinto e inconsciente que são os pensamentos latentes. A distorção a que é submetida o conteúdo do sonho é produto do trabalho do sonho de não deixar passar algo proibido, interditado pela censura. A censura deforma os pensamentos latentes no trabalho do sonho (Ibidem, p. 88). Freud concebe a censura como uma função que se exerce na fronteira entre os sistemas inconsciente e pré-consciente, algo que opera na passagem de um sistema para outro mais elevado (Freud apud Garcia-Roza, 1991, p. 88). Segundo Garcia-Roza (Ibidem, p. 91), um fragmento não é distorcido ao acaso, mas imposto por uma exigência da censura, a principal responsável pela deformação onírica, apresentando o conteúdo manifesto condensado, deslocado, simbolizado ou através da elaboração secundária. Segundo ele (Ibidem, p. 92-93), a condensação designa o mecanismo pelo qual o conteúdo manifesto do sonho aparece como uma versão abreviada dos pensamentos latentes. Ela pode omitir determinados elementos dos pensamentos latentes, permitindo apenas que um fragmento do conteúdo latente apareça no sonho manifesto ou combinando 1 Trabalho apresentado em Jornada Interna do Círculo Psicanalítico do RS em 2 de julho de 2011. 1 vários elementos do conteúdo latente, que possuam algo em comum, num único elemento do conteúdo manifesto. Outro mecanismo do trabalho do sonho que Garcia-Roza coloca (Ibidem, p. 94) é o deslocamento, que também é efeito da censura onírica. O deslocamento substitui um elemento latente por um outro mais remoto que funcione em relação ao primeiro como uma simples alusão; ou muda o acento de um elemento importante para outros sem importância. Assim, aquilo que é essencial nos pensamentos latentes não desempenha nenhum papel importante ou sequer aparece no conteúdo manifesto. Podemos também apreciar o sonho segundo Grinstein (1987, p. 69), por um ponto de vista simbólico. O simbolismo passou a ter muitos significados na língua e na literatura popular. Ele se refere, em seu sentido mais amplo, a significação metafórica ou alegórica de um termo, uma idéia ou um objeto. Esta significação metafórica deve sempre ser considerada quando se examina qualquer elemento onírico. O mesmo símbolo pode ter diversos significados, não só em culturas diferentes, mas também para pessoas diferentes ou até para a mesma pessoa, em ocasiões diferentes. Através da linguagem, segundo Garcia-Roza (Ibidem, p. 117), o homem é capaz de simbolizar estabelecendo uma relação entre o real e o signo, este último entendido como um representante do real, relação esta que será de significação. O termo é empregado não no sentido de expressar uma qualidade do objeto mas no de uma relação. A elaboração secundária, segundo Freud, não faz parte do trabalho do sonho, posto que ela toma como matéria-prima não os pensamentos latentes, mas o material já elaborado pelos mecanismos do trabalho do sonho. No entanto, Freud confere a elaboração secundária um papel ativo na própria formação do sonho. A elaboração secundária não é um processo externo ao trabalho do sonho, mas um dos fatores que, juntamente com a condensação e o deslocamento, fazem parte da elaboração onírica (Garcia, 1991, p. 106). O devaneio, a fantasia, conforme entendi, tem sentido e relação com a elaboração secundária do sonho. As fantasias, segundo Garcia-Roza (Ibidem, p. 108), ocorrem no estado de vigília. Baseiam-se, em boa parte, em impressões de vivências infantis e beneficam-se de um certo relaxamento das instâncias censuradoras. Assim como há fantasias diurnas conscientes, há também em abundância fantasias inconscientes e estas frequentemente são utilizadas pela elaboração secundária na formação do sonho. Um sonho pode se apresentar como a repetição de uma fantasia diurna, estando ela sujeita às mesmas transformações a que são submetidos os demais componentes do conteúdo latente. 2 A principal diferença com relação a estes últimos é que, embora também seja submetida à condensação e ao deslocamento, a fantasia diurna permanece, na maior parte das vezes, reconhecível como um todo no sonho. Laplanche e Pontalis (1970, p. 634-635) descrevem o sonho diurno ou devaneio como um enredo imaginado no estado de vigília, sublinhando a analogia deste devaneio com o sonho. Os sonhos diurnos constituem, como o sonho noturno, realizações de desejo e seus mecanismos de formação são idênticos com predomínio da elaboração secundária. De acordo com Laplanche e Pontalis (ibidem, p. 228), a encenação imaginária em que o indivíduo está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, constitui a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente. O fantasma ou fantasia apresenta-se sob diversas modalidades: fantasias conscientes ou sonhos diurnos, fantasias inconscientes, tais como a análise revela como estruturas subjacentes a um conteúdo manifesto. Em Laplanche e Pontalis (p. 231), no sonho os devaneios diurnos utilizados pela elaboração secundária podem estar em conexão direta com a fantasia inconsciente, que constitui o núcleo do sonho. As fantasias de desejo que a análise revela nos sonhos noturnos surgem muitas vezes como repetições e remodelações de cenas infantis. Assim, muitas vezes a fachada do sonho designa-nos de modo imediato o verdadeiro núcleo do sonho, que se acha deformado porque está misturado com outro material. No trabalho do sonho, a fantasia está presente nas duas extremidades do processo: por um lado, está ligada ao desejo inconsciente mais profundo, ao capitalista do sonho e, por outro, está presente na elaboração secundária. As duas extremidades do sonho e as duas modalidades de fantasia que nele se encontram parecem, se não se encontrarem, pelo menos se comunicarem interiormente e simbolizarem uma a outra. De acordo com Freud (1915-1916, p. 133), os devaneios são na realidade satisfações de desejos, satisfações de ambições e de desejos eróticos que nos são bem conhecidos, porém constituem pensamento, ainda que vividamente imaginado e jamais experimentados sob a forma de alucinações. Das duas principais características dos sonhos, a menos constante é aqui preservada, ao passo que a outra está totalmente ausente, visto depender do estado de sono e não poder realizar-se no estado de vigília. O uso idiomático, por conseguinte, encerra uma noção de que a satisfação de desejos é a característica principal dos sonhos. Diga-se de passagem, se nossa vivência nos sonhos é apenas um tipo modificado de imaginação que se tornou possível devido às condições do estado de sono, isto é, um devanear noturno, já podemos compreender como o processo de 3 construção de um sonho pode utilizar o estímulo noturno e proporcionar satisfação, visto que o devaneio também é uma atividade vinculada à satisfação, na verdade, somente é exercido por este motivo. Quem sonha fica surpreendido, irritado ou repugnado com relação ao sonho e, além disso, com uma parcela do próprio conteúdo onírico. A maioria destes sentimentos críticos nos sonhos não se acha, com efeito, dirigido contra o conteúdo do sonho, mas vem a ser parcelas dos pensamentos oníricos que foram absorvidas e utilizadas para um fim adequado. Mas, segundo Freud, algum material desta espécie não se presta a tal explicação. Seu correlato no material dos pensamentos oníricos não se encontra em parte alguma. Isto também acontece nos pensamentos de vigília. Nem tudo contido num sonho se origina dos pensamentos oníricos. As contribuições para o seu conteúdo podem ser efetuadas por uma função psíquica que é indistinguível dos nossos pensamentos de vigília. Segundo Freud (data, p. 182-183), há uma parte da elaboração onírica conhecida como elaboração secundária, cuja função é conferir um aspecto de unidade e maior ou menor coerência aos produtos primários da elaboração onírica. No transcorrer desta, o material é arranjado segundo o que amiúde é um sentido totalmente confuso e, onde parece necessário, são feitas interpolações (não entendi...). A elaboração secundária, segundo Freud, não está presente apenas no momento do relato do sonho, conferindo-lhe uma forma inteligível. Muito daquilo que atribuímos ao sonho pertence realmente à elaboração secundária e isto independentemente da elaboração do relato do sonho. Assim, um determinado estímulo pode integrar-se à recordação do sonho, fazendo parte do sonho enquanto recordado por ele. Da mesma forma, no despertar, pode ser ativada uma fantasia com todos os seus detalhes a qual, acrescentada ao sonho, dá a impressão do que se passou quando o sonhador estava dormindo, enquanto na verdade foi acrescentada ao conteúdo onírico no momento do despertar. Esta fantasia inconsciente já estava pronta, a espera de uma oportunidade de expressão que pode ter surgido com um estímulo despertador adequado. Conforme Freud (apud Gay, 1988, p. 286-287) em Escritores Criativos e Devaneios de 1908, ao brincar a criança cria um mundo próprio para si mesma, ou dito mais precisamente, transpõe as coisas de seu mundo para uma nova ordem que lhe agrade. Ao brincar a criança leva as coisas muito a sério, mas sabe que o que está fazendo é uma invenção: “O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas – a realidade” (página). O poeta procede de maneira muito semelhante, ele reconhece as fantasias que elabora como fantasias, mas isso não as torna menos importantes do que, digamos, o coleguinha imaginário da criança. As crianças 4 gostam de brincar e, como os seres humanos tem uma profunda relutância em renunciar a um prazer que alguma vez lhes agradou, quando adultos encontram um substituto. Ao invés de brincar, fantasiam. Estas duas atividades praticamente se espelham uma na outra. Ambas são instigadas por um desejo. Mas, enquanto a brincadeira da criança expressa o desejo de ser crescida, o adulto considera infantis suas fantasias. Neste sentido, brincadeira e fantasia refletem igualmente estados de insatisfação: “Pode-se dizer que a pessoa feliz nunca fantasia, apenas a insatisfeita o faz” (autor, data, página). Em suma, uma fantasia, tal como um desejo expresso numa brincadeira, é “uma correção da realidade insatisfatória” (autor, data, página). As revisões fictícias que o adulto impõe a realidade incluem ambições não realizadas ou desejos sexuais irrealizáveis. Ele os mantém ocultos porque são desejos que a sociedade respeitável baniu do discurso social e mesmo familiar. É ai que o Dichter, termo alemão aplicado igualmente ao romancista, dramaturgo ou poeta, encontra sua tarefa cultural. Movido por sua vocação, ele dá expressão a seus devaneios e assim irradia as fantasias secretas de seus contemporâneos menos extrovertidos. Como o sonhador à noite, o devaneador criativo combina uma experiência poderosa de sua vida adulta com uma distante lembrança recuperada, e então transforma em literatura o desejo gerado por essa combinação. Como um sonho, seu poema ou romance é uma criatura mista do presente e do passado, de estímulos tanto internos quanto externos. REFERÊNCIAS FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-1917[1915-1917]), vol. XV. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______ A interpretação de sonhos (1900-1901). Parte II, vol. V. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. A interpretacao do sonho (1900), vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. GAY, P. Freud, uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. GRINSTEIN, A. As normas de Freud para a interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. LAPLANCHE, J. e PONTALIS B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1970. 5