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Seminário
Seleção de textos
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Governador
Lúcio Gonçalo de Alcântara
Secretária da Cultura
Cláudia Sousa Leitão
Secretária Adjunta da Cultura
Lúcia Carvalho Cidrão
Secretária Executiva
Ângela Márcia Fernandes Araújo
Coordenador de Políticas do Livro e de Acervos
Fabiano dos Santos
Coordenador de Ação Cultural
Pedro Domingues
Coordenadora do Patrimônio Artístico e Histórico Cultural
Eveline Vasconcelos
Coordenador Administrativo Financeiro
Aníbal Júnior de Oliveira Chaves
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Organizadores
Cláudia de Sousa Leitão
Fabiano dos Santos
Seminário Cultura XXI
Seleção de Textos
Fortaleza
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Coordenação Editorial
Fabiano dos Santos
Produção
Ângela Márcia Fernandes Araújo
Revisão Técnica
Luis Celestino de França Júnior
Conselho Editorial
Fabiano dos Santos
Pedro Domingues
Eveline Vasconcelos
Aníbal Júnior de Oliveira Chaves
Andréa Havt Bindá
Revisão
Fernando Filgueiras
Catalogação na Fonte
Maria Zuila de Lima
Projeto Gráfico e Diagramação
Qu4tro Comunicação
Catalogação na Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel
L324m
Leitão, Cláudia de Sousa
Seminário Cultura XXI: Seleção de Textos/Cláudia
de Sousa Leitão/Fabiano dos Santos, Org._ Fortaleza:
Secult, 2006.
306p. : (Coleção Nossa Cultura. Série Documenta)
ISBN: 857563206-X
1. Gestão Cultural. 2. Cultura e Cidade. 3. Cultura
e Comunicação.
I. Título. II. Série.
CDD 301.2
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Apresentação do Governador
OBS: A enviar....
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Reflexões sobre a Cultura
Embora estejamos inseridos em um mundo "on line",
percebemos o quanto nos falta tempo e, sobretudo, acesso a
reflexões e discussões qualificadas sobre temas mais complexos
e menos pragmáticos. A cultura constitui um destes temas. Sua
amplitude de conexões e significados suscita ao mesmo tempo
aprofundamento teórico assim como capacidade de observação
da realidade. A Secretaria da Cultura do Ceará, no Governo Lúcio
Alcântara, não se omitiu deste desafio. Não poderíamos definir
políticas, programas e projetos culturais sem antes constituirmos
o devido espaço para reflexão teórica e intelectual acerca da
temática cultural, condição a priori para qualquer ação concreta
no campo da cultura.
Os seminários Cultura XXI nascem em março de 2003 e tornamse fóruns privilegiados para o exercício do pensamento crítico
assim como para o relato de experiências no campo da cultura.
As relações entre a Cultura e a Gestão, a Economia, o Direito, a
Cooperação Internacional, o Planejamento Urbano, o
Desenvolvimento Local, o Turismo, as Cidades, a Comunicação,
a Mídia, o Poder foram o temas dos quatro seminários ocorridos
em nossa gestão. Em todos eles tivemos a oportunidade de
refletir teórica e pragmaticamente sobre os temas citados e,
como todos os debates foram registrados, constituímos um
acervo significativo de depoimentos de intelectuais, artistas,
gestores, pesquisadores, os quais participaram com brilho de
nossas palestras e mesas-redondas ao longo destes quatro anos.
A qualidade e a atualidade dos registros, levou-nos a compilar
e publicar os depoimentos mais significativos, objetivando darlhes maior divulgação e perenidade.
Esperamos que espaços de reflexão, como o Seminário Cultura
XXI, multipliquem-se em nosso Estado e em nosso país pois, em
tempos de tanta intolerância, superficialidade e açodamento, é
sempre bom manter acesa a chama da velha ratio humana, aquela
que nos permite pensar, analisar e discutir as nossas próprias
contradições. Afinal de contas, é ela que poderá nos livrar da
condenação de Babel, símbolo maior da incompreensão e da
falta de comunicação entre os homens.
Cláudia Leitão
Secretária da Cultura do Ceará
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Sumário
I
2003
Desafios da gestão cultural
15 Cultura no Governo Lula: uma visão estratégica do MinC Gilberto Gil
19 Desafiosda Gestão Cultural - TarcianaPortela
21 Idéias Sobre uma Política Cultural para o Século XXI
Alexandre Barbalho
27 Histórico das Leis Federais de Incentivo à Cultura e Seus
Benefícios Fiscais - Fábio de Sá Cesnik
37 Federalismo Cultural - Humberto Cunha
47 O MinC e a Economia da Cultura: Perspectiva e Desafios
Paulo Miguez
49 Reflexões sobre a potencialidade de formação do Cluster
Cultural do Centro Histórico de Fortaleza
Paulo César de Sousa Batista
II
2004
Fórum de Cooperação Cultural Internacional
61 Abertura Oficial - Lúcio Alcântara
65 Política Cultural e Cooperação Internacional no Ceará
Cláudia Leitão
69 Política Externa Brasileira na Área da Cultura - Antenor Bogéa
75 O Ministério da Cultura e as Relações Internacionais
Márcio Meira
79 Painel Geral: o Ceará e suas Culturas - Eduardo Diatahy B.
de Menezes - Oswald Barroso - Gilmar de Carvalho
87 Painel Internacional I - Indonésia - Portugal - Coréia - Síria
99 Painel Internacional II - Costa Rica - Romênia
105 Painel Internacional III - Grã-Bretanha - Finlândia - Cuba - México
117 Painel Internacional IV - Japão - China - Equador
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III
Cultura e Cidades
2005
129 Gestão Municipal, Cultura e Desenvolvimento Urbano: a
experiência da Região Rhône-Alpes - Jean Jacques Pignard
133 Painel I - Identidade cultural e paisagem: um olhar sobre as
cidades - Fernando Resende - Bárbara Freitag
151 Painel II - O Papel dos Centros Culturais para o
Desenvolvimento das Cidades - Carlos Augusto Machado Calil Henilton Menezes - João Pedro Garcia
161 Painel III - Federalismo Cultural e os papéis do município no
fomento à cultura - Francisco Humberto Cunha Filho - Aloysio
A. Castelo Guapindaia
169 Painel IV - A construção de equipamentos culturais como
estratégia de requalificação social de bairros e núcleos históricos das cidades - Danilo Santos de Miranda - José Nascimento Júnior - Fausto Nilo
179 ECOA - Escola de Cultura, Comunicação, Ofício e Arte Clodoveu Arruda Sobralense
183 Estratégias e Ações do Centro Dragão do Mar de Arte e
IV
Cultura na Cidade de Fortaleza - Augusto César Faria Costa
2006
Cultura e Comunicação
195 Cultura, Mídia e Poder - Sérgio Paulo Rouanet - Margarethe Born
213 Mesa Redonda 1 - Manfredo Oliveira - Mohamed Elhajji
235 Mesa Redonda 2 - Alemberg Quindins - Luiz Paulo Correa e
Castro - José Paulo Araújo
245 Cultura e Novas Tecnologias - Arlindo Machado - Ricardo Kotscho
257 Mesas Redondas - Bernardo Kucinsky - Artur Matuck André Lemos
277 Jornalismo Cultural - Homero Fonseca - Juremir Machado Hélio Ponciano - Thiago Seixas
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Anexos
295 Programação 2003
298 Programação 2004
300 Programação 2005
303 Programação 2006
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2003
I
Desafiosda
gestãocultural
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Apresentação
O Ceará inicia um novo ciclo de desenvolvimento sustentável.
Agora, ao lado do crescimento econômico, da inclusão social e da
preservação ambiental, a cultura assume caráter estratégico. É vista como
fonte de valorização de identidades, de ampliação de liberdades e espaço
de participação.
Pensar a política e a administração cultural nessa perspectiva implica em
buscar uma ação integrada ao estudo, do mercado e da sociedade civil.
Implica em fomentar o diálogo entre o Estado e os criadores, produtores,
animadores, financiadores e consumidores de bens simbólicos.
O Seminário Cultura XXI é uma iniciativa da Secretaria da Cultura do
Ceará e objetiva calçar as bases da política cultural do governo e refletir
sobre um modelo de gestão que mobiliza meios, idéias e pessoas em
torno de um projeto de inclusão cultural.
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CulturanoGoverno
Lula:umavisão
estratégicadoMinC
GilbertoGil
Ministro da Cultura
O objetivo maior do Governo Lula, nos termos mais amplos possíveis, é a recuperação da
dignidade nacional brasileira - dignidade interna e externa, entrelaçadas. É a construção
de um novo Brasil, socialmente mais equilibrado, mais saudável, e capaz de se afirmar
como nação soberana no cenário internacional.
Um projeto de futuro, portanto, antevisão do Brasil realizando-se plenamente como nação:
para nós e para o mundo.
Inicialmente, contudo, a discussão desse projeto concentrou-se - como era natural - nos
campos da política e da economia. Mas esse primeiro momento já ficou para trás. Tratase, agora, de abrir o leque, de ampliar o raio das discussões e intervenções, de modo que
possamos entrelaçar política, economia, educação, cultura, etc. Pois, da perspectiva do
Ministério da Cultura, o desejo de "construir um novo Brasil" e de recuperar a dignidade
nacional brasileira, terá maior probabilidade de êxito se passar pelo mundo da cultura.
Cultura não no sentido das concepções acadêmicas ou dos ritos de uma "classe artísticointelectual", mas em seu sentido pleno, antropológico. Vale dizer: cultura como a dimensão
simbólica da existência social brasileira. Como usina e conjunto de signos de cada
comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossas identidades, construções
continuadas que resultam dos encontros entre as múltiplas representações do sentir, do
pensar e do fazer brasileiros e a diversidade cultural planetária.
Como espaço de realização da cidadania e de superação da exclusão social, seja pelo
reforço da auto-estima e do sentimento de pertencimento, seja, também, por conta das
potencialidades inscritas no universo das manifestações artístico-culturais com suas múltiplas
possibilidades de inclusão socioeconômica.
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Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É
um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais
distante ainda do modelo neoliberal que faliu. Vemos o Governo como um estimulador da
produção cultural. Mas também, através do MinC, como um formulador e executor de
políticas públicas e de projetos para a cultura. Ou seja: pensamos o MinC no contexto em
que o Estado começa a retomar o seu lugar e o seu papel na vida brasileira. Enfim,
pensamos a política cultural do Governo Lula como parte do projeto geral de construção
de uma nova hegemonia em nosso país. Como parte do projeto geral de construção de
uma nação realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência da construção
de um Brasil de todos.
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Sim. Cultura, também, como fato econômico, capaz de atrair divisas para o país - e de,
aqui dentro, gerar emprego e renda.
HERANÇA E DESAFIO
O que vimos no Brasil, ao longo dos últimos anos, passou por muito longe disso. Daí que
três questões-desafio se imponham, agora, ao Ministério da Cultura: a retomada de seu
papel constitucional de órgão formulador e executor de uma política cultural para o país;
a sua reforma administrativa e a correspondente capacitação institucional, do ponto de
vista técnico e organizacional para operar tal política; e a obtenção dos recursos financeiros
indispensáveis à implementação desta política, seus programas e seus projetos.
Esses três desafios resultam da herança que recebemos. Desde o Governo Collor, o Ministério
da Cultura definhou. Sua estrutura apequenou-se. Perdeu capacidade política, técnica e
gerencial. Desmantelado, foi incapaz, por exemplo, de operar integralmente os instrumentos
previstos no Programa Nacional de Apoio à Cultura, a conhecida Lei Rouanet.
Mas o mais grave é que o Ministério abandonou por completo aquela que deveria ser a sua
função maior. Em vez de ter uma política cultural para o país, simplesmente entregou essa
tarefa ao mercado, aos departamentos de comunicação e marketing das empresas, pela
via dos incentivos fiscais. E assim chegamos a uma situação absurda: a política cultural
passou a ser pensada e executada não pelo Ministério da Cultura, mas por comunicólogos
e marketeiros voltados para atender aos interesses particulares de suas empresas. Por esta
lógica, a cultura e suas criações só adquiriam relevância caso pudessem vir a reforçar a
imagem corporativa das empresas.
É desse quadro que emerge o tríplice desafio anunciado acima. Desafio cujo pano de
fundo é a urgente necessidade da volta do Estado ao campo da cultura, expressando-se
através da centralidade insubstituível do MinC, no papel estratégico de promotor do
desenvolvimento cultural da sociedade brasileira e criador de condições indispensáveis à
construção da cidadania em nosso país, já que o combate à exclusão social passa
necessariamente por uma ação de inclusão cultural, que garanta a pluralidade de nossos
fazeres, o acesso universal aos bens e serviços culturais e à criação e produção desses
mesmos bens.
E aqui chegamos à questão do financiamento da execução da política cultural do Governo
Lula, sem a qual será praticamente impossível que as coisas saiam do papel - ou deixem a
luz do sonho para existir à luz do sol.
Impõem-se, nesse particular, duas ações. Uma, o desenvolvimento de mecanismos que
possam incrementar os fundos hoje disponíveis para a ação do Estado na área cultural.
Criatividade, aqui, é a palavra-de-ordem: loteria da cultura, selo-cultura, cartão-cultura,
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etc. A outra é uma reconfiguração do Programa Nacional de Apoio à Cultura em pelo
menos três direções.
Primeiro, regulamentação do Fundo Nacional de Cultura, estabelecendo critérios claros
para a aplicação dos seus recursos. Segundo, ativação dos Fundos de Investimento Cultural
e Artístico, que, apesar de regulamentados desde 1995, ainda hoje não entraram em
funcionamento - o que vai requerer uma ação do MinC junto às instituições de fomento
e aos bancos públicos e privados que trabalham com fundos de investimento. Terceiro,
revisão da legislação de incentivos fiscais que suporta a ação do mecenato, cujo
desempenho, através da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual, acumulou distorções de
toda ordem - entre elas, ausência de contrapartida financeira do parceiro privado,
concentração regional dos benefícios, aberrações fiscais, surgimento de fundações privadas
(de grandes empresas), em larga medida criadas e alimentadas com dinheiro público, sem
as devidas contrapartidas sociais e culturais.
O LUGAR DAS ESTATAIS
A reconfiguração do Programa Nacional de Apoio à Cultura não se esgota, porém, nas três
ações supracitadas. Pelo contrário. Há uma outra questão, tão importante quanto as da
regulamentação, ativação ou revisão dos seus instrumentos, de forma a redirecioná-los
para a consecução dos objetivos propostos quando da promulgação da lei.
Entram em cena, aqui, as grandes empresas estatais, que figuram entre os maiores
utilizadores dos recursos postos à disposição da vida cultural brasileira, através da renúncia
fiscal. E uma observação deve ser feita desde já: ainda que legal, o problema é, neste
caso, essencialmente político. É preciso separar bem as coisas. Separar o dinheiro. Com
toda a clareza. Porque uma coisa é a eventual utilização em ações culturais de verbas de
comunicação e marketing - isto concerne a decisões empresariais de ordem mercadológica
e corporativa. E outra coisa, radicalmente distinta, é o investimento dessas empresas, em
atividades de cultura, com recursos obtidos através dos mecanismos de incentivo fiscal.
Sim. Neste segundo caso, o que está sendo investido é dinheiro público, resultante de uma
renúncia fiscal por parte do Estado, com objetivos claramente definidos em lei específica.
Nada mais correto, politicamente - ainda mais por conta do caráter estatal dessas empresas -,
que seja o próprio Estado a decidir sobre a destinação desses recursos. E mais: que o faça
tendo como norte uma política pública para a cultura brasileira - e, como executor, o ator
institucional criado para formular e executar tal política: o Ministério da Cultura.
Os organismos do Governo envolvidos diretamente com o assunto estão compreendendo,
de forma positiva, a importância desta questão. E, nessa linha já estão estudando,
articuladamente, os procedimentos político-legais destinados a transferir para o MinC a
responsabilidade pela utilização de tais recursos. Recursos indispensáveis à formulação e
implementação de uma política cultural engajada efetivamente no projeto de transformação
nacional arquitetado pelo Governo Lula.
ECONOMIA DA CUL
TURA
CULTURA
Um bem simbólico é um produto cultural, político e econômico - simultaneamente.
Como envolve custos de criação, planejamento e produção é, obviamente, uma fonte
geradora de emprego e renda. Uma fonte de lucro para empresas e de captação de divisas
para países exportadores de bens e serviços culturais.
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Ou seja: além de dar emprego em casa, a produção cultural pode trazer dinheiro de fora.
Hoje, o mercado internacional de bens e serviços culturais é extremamente dinâmico,
envolvendo bilhões e bilhões de dólares. Não é por acaso que os EUA pressionam fortemente
os demais países para que abram os seus mercados, considerando os bens e serviços
culturais como mercadorias comuns, da perspectiva do assim chamado "livre comércio". E
que a França e outros países reagem, argumentando que a cultura não é uma mercadoria
como as outras, merecendo tratamento diferenciado, com o Estado tendo o direito de
controlar o mercado cultural interno de seu país e de proteger a sua produção de bens e
serviços simbólicos. Tenta-se, assim, evitar que a discussão sobre a matéria vá parar na
Organização Mundial de Comércio. Tudo isso apenas mostra a importância do que hoje se
chama "economia da cultura", que, entrelaçando-se à "economia do lazer", é um dos setores
mais dinâmicos da economia mundial. O comércio internacional de serviços move,
anualmente, cerca de dois trilhões de dólares.
O Brasil é um país exportador de bens e serviços culturais. Nossos filmes repontam no
exterior. Nossa música popular tem hoje uma já notável presença no mundo. E nossas
telenovelas circulam planeta afora. Isto é importante não apenas para a captação de algumas
divisas, mas, sobretudo, para a nossa afirmação nacional no mundo. Mas a nossa
participação no comércio internacional de bens e serviços culturais ainda é muito tímida.
E precisa ser incrementada - a partir, é claro, não só da iniciativa privada, mas, principalmente,
de uma ação estatal centralizada no MinC.
O estudo "Diagnóstico dos Investimentos da Cultura no Brasil", realizado em 1998 pela
Fundação João Pinheiro, para avaliar o impacto dos investimentos públicos e privados em
cultura no país, nos fornece números reveladores. Impressionantes, mesmo. Alguns exemplos:
Em 1994, já havia 510 mil pessoas empregadas na produção cultural brasileira. Um
contingente 90% maior do que o empregado na fabricação de equipamentos e material
elétrico e eletrônico; 53% superior ao da indústria automobilística e de autopeças; e 78%
superior ao empregado em serviços industriais de utilidade pública (energia elétrica,
distribuição de água e esgotos e equipamentos sanitários). Mais. Para cada milhão de reais
investido, a economia da cultura - que movimentou, em 1997, cerca de 6,5 bilhões de
reais -, chega a gerar, em média, 160 empregos diretos. E com um salário médio que é o
dobro da média do conjunto das atividades econômicas, no que parece ser uma tendência
constante do setor. Enfim, o panorama traçado por este estudo, realizado sob encomenda
do Ministério da Cultura, dá conta de um quadro dinâmico e promissor, que não refluiu de
1998 para cá. E que, também, precisa ser incrementado.
UM NOVO MINC
Por tudo o que foi dito, é fundamental, urgente mesmo, que o MinC ocupe um lugar central no
espaço da produção cultural brasileira, formulando políticas e implantando projetos, no momento
mesmo em que o Estado retoma o seu lugar no movimento concreto da sociedade brasileira.
Com as mudanças necessárias para a configuração plena de uma política cultural do Governo
Lula, tendo por base um projeto brasileiro de civilização, o MinC - um novo MinC, será
mais exato dizer - poderá cumprir a sua parte no projeto de reconstrução da dignidade de
nosso povo, através da inclusão sociocultural, e no processo de afirmação do Brasil na
cena planetária, através da veiculação internacional de nossas "visões de mundo",
expressando-se em bens e serviços culturais.
Assim, a cultura assumirá, de fato, uma dimensão estratégica no caminho da nação que
desejamos construir.
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Desafiosda
GestãoCultural
TarcianaPortela
Delegada do Ministério da Cultura para o Nordeste
Falar em gestão pública da cultura no Brasil contemporâneo implica, num primeiro
momento, em falar na história das políticas públicas para a cultura em nosso país. As
práticas da gestão cultural serão sempre o resultado de uma definição a priori acerca da
cultura e das diretrizes que sustentarão suas formas de fomento. O Brasil é um país
marcado por uma história de autoritarismo e gestão centralizadora. Deste modo,
compreender os desafios da gestão cultural em nossos dias obriga-nos a recuar no tempo
e fazer a seguinte pergunta: como se deu a intervenção do Estado na cultura no Brasil?
Impossível não constatar através dos diversos períodos da história brasileira a existência
de uma relação próxima entre cultura e Estado autoritário, isto é, a primeira grande
intervenção do Estado na cultura vai se dar com o Estado Novo de Getúlio Vargas,
momento em que o país resolve afirmar uma "identidade nacional". É quando se dá a
criação do Ministério da Educação com Gustavo Capanema, cuja preocupação
fundamental é a de construir, a partir da cultura, uma imagem substantiva de nossa
brasilidade. Nos anos 30 e 40, vários institutos culturais são criados: o Serviço Nacional
de Teatro, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, além do Museu Nacional
de Belas Artes são exemplos de organizações a serviço desta ideologia nacionalista. Não
se deve esquecer que, ao lado dos primeiros esboços de uma política cultural para o país,
observava-se uma grande efervescência entre os intelectuais brasileiros, muitos deles
egressos da Semana de Arte Moderna de 1922, os quais dividiam-se entre a adesão e a
crítica a esta política. Neste período, a cultura se torna um importante instrumento de
propaganda do Estado. Mas, apesar da visão autoritária da cultura nacional, não se pode
negar o grande apoio do Estado aos artistas e intelectuais brasileiros, fomentando-se a
riqueza cultural do país.
Com o Golpe de 1964, um novo momento autoritário se anuncia. A cultura servirá neste
período como uma espécie de "cola" integradora do país. O governo militar tratará a
cultura como um elemento privilegiado de "integração nacional" e em 1966 é criado o
Conselho Federal de Cultura pelo Presidente Castelo Branco. É quando pela primeira vez
se estabelece um Plano Nacional de Cultura a partir da definição de uma política cultural
coerente com o ideário militar. Novamente os intelectuais brasileiros são chamados a
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participar para legitimarem as políticas culturais deste período. Observamos também aí
uma presença monopolizadora do Governo sobre a cultura, ou seja, é o Estado que decide
o que deve ou não ser produzido culturalmente no país. Assim, a censura campeia cerceando
o direito de livre expressão artística e cultural. Vale ressaltar que, no exercício de sua atividade,
o Conselho Federal de Cultura acabará enfatizando uma ambigüidade ainda hoje presente
na gestão pública da cultura em nosso país: de um lado, intelectuais e pensadores da
cultura, de outro, os tecnocratas ou gestores da máquina estatal revezam-se ou partilham
o mesmo espaço político. Em ambos os casos, observa-se um distanciamento da gestão
das reais demandas dos artistas e do mercado cultural.
Nos anos 70, Afonso Arinos será o responsável pela redação das primeiras diretrizes para
uma política nacional de cultura. O que se constata neste período é uma forte imbricação
entre cultura, desenvolvimento e segurança nacional. Fala-se neste documento na criação
de um Ministério da Cultura, mas esta percepção da autonomia da cultura não impede de
tratá-la de forma centralizadora, com um planejamento advindo de forma incisiva de Brasília,
o qual objetivava homogeneizar as ações culturais regionais a partir de um modelo nacional
de cultura. Por outro lado, os movimentos culturais de esquerda mantinham-se ativos e
sempre críticos ao dirigismo cultural.
A partir da década de 80, com a distensão política, as relações entre cultura e Estado vão
tomando novas perspectivas. O ideário neoliberal que assolará o país o afastará da definição
de políticas públicas para a cultura. Nestes períodos observaremos uma diminuição da
intervenção do Estado na cultura que passará a ser fomentada particularmente através do
incentivo pela renúncia fiscal. Da lei Sarney à Lei Rouanet constrói-se uma política neoliberal
de gestão da cultura, onde a iniciativa privada passa a definir os critérios de apoio às
manifestações culturais. E mais, são tantos os trâmites e tão difícil o acompanhamento de
projetos, que o apoio cultural se destinará a "eleitos", aqueles mais próximos de Brasília e
com maior capacidade de articular apoios na rede pública federal.
Ministros da cultura vêm se sucedendo nestes últimos anos sem quaisquer transformações
desta realidade. Impossível não se constatar o quanto o Ministério da Cultura tornou-se
uma pasta fraca, sem recursos, sem poder de decisão. Sua omissão no que concerne à
definição de políticas com critérios claros e transparentes para o apoio à produção cultural
brasileira, hoje entregue aos departamentos de marketing dos bancos ou das estatais é,
sem dúvida, seu maior pecado. Como vemos, o grande desafio da gestão cultural no
Governo Lula é o de resgatar seu papel de produtor de políticas públicas para a cultura,
definindo canais de escuta das demandas da população brasileira. Urge que se crie um
Federalismo Cultural, onde o Município, o Estado e a Federação possam atuar de forma
harmônica no fomento à cultura em todo o país. Além disto, a nova gestão cultural deve
abrir-se a parcerias, buscar alternativas para novos recursos. Sem a democratização do
acesso à cultura, enfim, sem a inclusão cultural neste país, continuaremos a testemunhar
as desigualdades entre grupos, comunidades e Estados da Federação, perpetuaremos a
imagem de um país injusto, incapaz de promover a cidadania entre seus habitantes. A
revisão da Lei Rouanet é hoje uma urgência para o Ministro Gilberto Gil, além da própria
reestruturação do Minc. Ao mesmo tempo, a criação de um Sistema Unificado de Cultura
poderá constituir um grande passo para a expansão da atuação do Ministério para todo o
território brasileiro.
Todos estes desafios só serão superados com a participação de todos nós, artistas, produtores,
empresários, minorias étnicas, capacitadores, formadores de opinião, enfim, de todas as
categorias vinculadas ao saber e ao fazer cultural. São questões complexas, como é complexo
o nosso país, mas todo este quadro nos deve motivar e não nos fazer desanimar.
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IdéiasSobreuma
PolíticaCultural
paraoSéculoXXI
AlexandreBarbalho
Professor de História da Universidade Estadual do Ceará - UECE
Este texto, como o título indica, não trata da gestão cultural propriamente dita. Por gestão
cultural entendo um conjunto de técnicas e de instrumentos oriundos dos saberes
administrativos, gerenciais, e aplicados ao setor da cultura. Em outras palavras, a gestão
cultural pode ser definida como um conjunto de táticas, ou melhor dizendo, um conjunto
tático de ações administrativas. Tático, em seu sentido etimológico, takticós, que significa
"capaz de pôr em ordem", capaz de ordenar.
Em vez de pensar já na ordenação do fazer cultural, gostaria de refletir mais
estrategicamente. Ou seja, sobre algo que é anterior à gestão cultural; sobre algo que lhe
dá ânimo, alma. Gostaria de falar, portanto, de política cultural. Ou, mais especificamente,
gostaria de levantar algumas idéias que eu considero estratégicas para uma política pública
de cultura adequada a este nosso século.
Aqui cabe definir o que entendo por política cultural. Não se trata, por exemplo, da
definição encontrada no Dicionário Crítico de Política Cultural, organizado por Teixeira
Coelho. Segundo o verbete do dicionário, política cultural seria uma "ciência da organização
das estruturas culturais". Entendida assim, ela estaria mais próxima do conceito de gestão
cultural do qual falava há pouco. Algo próximo de um saber instrumental, para usarmos
um termo adorniano.
Para mim, política cultural significa atuar na criação, circulação e fruição de bens simbólicos.
Esta atuação implica reconhecer que esse sistema processual, que é a cultura, se organiza
como um campo, o campo cultural, que possui valores, capital e poder específicos. Neste
campo cultural, atuam diferentes atores ou agentes, que podem ser indivíduos (como,
por exemplo, os artistas, os produtores, os gestores culturais) ou instituições (como os
museus, os centros de cultura, as bibliotecas, as secretarias e as fundações de cultura,
sindicatos de artistas etc.). Por sua vez, todos estes atores possuem forças com níveis
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Partindo desta concepção de campo cultural e de sua política, a questão que se coloca é:
qual o papel do Estado na cultura? Ou de outra forma: como pensar uma política pública
de cultura? E ressalto a palavra pública, pois ela tem uma conotação estratégica ao se
contrapor explicitamente, por um lado, à idéia de privado. Por outro, ao incluir não só o
Estado, mas também a sociedade civil como um todo. O que Gramsci denominaria de
concepção ampliada de Estado. E isto é o que devemos esperar de uma democracia, de
uma res pública.
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diferenciados de poder que, constantemente, entram em conflitos, mas também em
combinações e alianças.
Pois bem, acredito que há várias possibilidades de políticas públicas de cultura. Possibilidades
pautadas pelas condições econômicas, políticas, sociais e culturais de cada local específico.
Fica difícil assim pensar em uma ou várias fórmulas aplicáveis sem discriminação. Se
assim fizesse, estaria recorrendo àquele saber instrumental do qual quero me afastar. Daí
porque o título de minha intervenção trata de "uma política cultural" - artigo indefinido e
singular - e não de "a política cultural".
No entanto, o artigo indefinido não significa que algumas coisas não possam ser definidas
como ponto de partida. Ao contrário, precisamos fazer previamente uma análise de
conjuntura para traçarmos uma política de cultura, qualquer que seja ela.
Aqui gostaria de ser o mais amplo possível. O que implica em não me deter nas esferas
local, municipal, estadual, regional ou mesmo nacional. Mas pensar a conjuntura de um
mundo globalizado que engloba todas estas esferas, ao mesmo tempo em que as mantém
conectadas em uma mesma rede.
E como nomear esta rede? Podemos chamá-la, segundo alguns autores contemporâneos,
de "capitalismo mundial integrado" ou de "Império". Sendo que ambos os termos remetem
a um mesmo estado de coisas.
Em um livro recente, Michael Hardt e Toni Negri procuraram definir o Império contemporâneo.
Este pode ser entendido como a realização plena do capitalismo em todo o mundo; como
a implicação de todas as forças sociais pelo capital globalizado. No Império atual, já não
vivemos sob as ordens de uma sociedade disciplinar moderna, como a definida por Foucault.
Mas em uma exacerbação desta, quando a disciplina salta os muros das instituições (como
as escolas, as prisões, os asilos etc.) e envolve todo o corpo social. Na atual sociedade pósmoderna vivemos sob as ordens de uma sociedade de controle.
Nas palavras de Hardt e Negri, "a sociedade, agrupada dentro de um poder que vai até os
gânglios da estrutura social e seus processos de desenvolvimento, reage como um só
corpo. O poder é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas profundezas
da consciência e dos corpos da população - e, ao mesmo tempo, através da totalidade das
relações sociais".
Portanto, a força maior do Império contemporâneo está em seu poder sobre a esfera dos
afetos; na interiorização dos valores imperiais por parte dos indivíduos; na colonização de
suas subjetividades pelo poder imperial. Assim ficamos todos desejando as mesmas palavras,
as mesmas coisas. E se instaura a vitória do sentimento e do pensamento únicos.
Outros nomes poderiam ser dados a essa plenipotência capitalista; a essa onipresença do
mercado. Como, por exemplo, "sociedade do espetáculo", como nomeou Guy Debord; ou
"ordem do simulacro", como defende Jean Baudrillard.
Mas penso que Hardt, Negri e outros autores afins não caem no niilismo vigente e
apontam os limites do Império e a possibilidade de forças contra-imperiais. Estas residem
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principalmente na biopolítica, ou seja, em uma política que afirma as potências da vida. O
que se dá por meio da capacidade criativa dos homens, de seu trabalho imaterial e afetivo.
Por trabalho imaterial devemos entender aquele que produz um bem imaterial, como um
produto cultural, um conhecimento, uma comunicação. É um trabalho profundamente
afetivo, comunitário, cooperativo, pois implica sempre na relação entre subjetividades.
Como podemos deduzir, a cultura, campo privilegiado do trabalho imaterial, é um lugar
estratégico para nos opormos à sociedade de controle; ao imperativo da mercadoria. O
que não implica desconhecer que também a cultura foi invadida pela lógica mercadológica.
Basta consultarmos os números que apontam o lugar de destaque na economia da
indústria cultural, ou indústria do entretenimento, como preferem sintomaticamente os
norte-americanos.
Mas também ocorre um movimento contrário. Ou seja, a mercadoria agrega cada vez
mais um valor simbólico. O que se dá de duas formas. Uma, com a valorização cada vez
maior do design na fabricação de objetos os mais diversos: da geladeira ao avião; do
liqüidificador à televisão. E outra, com a construção das marcas destes objetos, por meio
da publicidade, do marketing.
Ambas as formas são tentativas de destacar os produtos imersos no lugar-comum que é o
mercado consumidor. Ao mesmo tempo, as renovações constantes do design e da marca,
marcadas pelo ritmo alucinante da moda, imprimem aos objetos um caráter efêmero,
descartável. Assim é criado, ao lado do valor de uso e do valor de troca, o seu valor-signo,
como diria Baudrillard.
Diante dessa perspectiva, volto à nossa questão e ao nosso local específico - a de pensar
uma política pública de cultura para Fortaleza, para o Ceará, para o Brasil. Se optarmos por
responder a este desafio da biopolítica, que é o que proponho, que é a minha possibilidade
de resposta, devemos lutar por uma política cultural que promova, favoreça e intensifique
a invenção e a diferenciação.
Paradoxalmente, para dar conta dos significados que as palavras invenção e diferenciação
devem adquirir neste século XXI, recorrerei a um autor de fins do século XIX, o sociólogo
francês Gabriel Tarde.
Tarde pode ser considerado como um dos fundadores da Sociologia, mesmo não constando,
geralmente, nos manuais de introdução sociológica. Isso porque a disciplina, em sua ânsia
cientificista, positivista, em busca de um pensamento macro, objetivo, relegou ao
esquecimento os pensadores que observavam a sociedade em suas dimensões micro,
subjetivas, como Tarde ou Georg Simmel.
Pois agora, faz-se necessário observar o que ocorre nas nossas vizinhanças para podermos
dar conta do global. Glocalize-se, um neologismo resultado da junção entre localizar e
globalizar, é a palavra de ordem da estratégia contemporânea.
Pois bem, contra as forças hegemônicas e de homogeneização do capitalismo mundial integrado,
volto a dizer, devemos promover em nosso espaço de atuação a invenção e a diferenciação.
Por invenção, e aí seguindo as idéias de Tarde, não devemos entender apenas as criações
que revolucionam; que transformam radicalmente um estado de coisas; que promovem
um salto de qualidade. Mas também são invenções aquelas descobertas mais simples; que
ocorrem em nosso dia-a-dia; que afetam quem está próximo a nós, ao nosso lado, em
nossa vizinhança.
Por invenção, Tarde entende "todas as iniciativas individuais, não somente sem ter em conta
o seu grau de consciência - porque muitas vezes o indivíduo inova no seu íntimo, e para
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Podemos, portanto, qualificar de inovações, de descobertas, as criações mais simples, "tanto
mais que as mais fáceis nem sempre são as menos fecundas, nem as mais difíceis são as
menos inúteis". Assim, é preciso valorizar estas idéias imperceptíveis em seu nascimento,
acidentais, anônimas, tênues, pois elas engrossam o caldo de criação que é a vida humana.
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dizer a verdade, o mais imitador dos homens é inovador por qualquer lado - mas ainda sem
reparar absolutamente nada na maior ou menor dificuldade e no mérito da inovação".
Por sua vez, esta dimensão imediata não impede que surja uma grande corrente de afetação
e que ganhe um alcance social cada vez mais amplo, talvez mesmo global. Em todo caso,
como afirma Tarde, é preciso partir daqui, das iniciativas renovadoras que trazem ao mundo,
"ao mesmo tempo necessidades novas e novas satisfações".
Uma idéia assim potencializa uma política cultural. Esta deixa de separar os artistas geniais
dos consumidores passivos e vê a todos como possíveis criadores. Ela afeta a todos, não
como públicos de uma sociedade do espetáculo, mas como inventores. Dessacralizando a
criação, dessacraliza também a circulação e a fruição. Os museus, os centros de cultura, os
teatros, os cinemas deixam de ser locais sagrados, herméticos, e acabam incorporados,
apropriados pela multidão. Também não precisa mais que estes locais da cultura sejam
imponentes, grandiosos, sofisticados, higienizados.
Assim, a criação, a circulação e a fruição da cultura se dão em qualquer local, pois todo
local tem o seu saber, a sua inventividade. Temos então uma política cultural inclusiva e
não exclusiva; democrática e não autoritária; geradora e não reprodutora.
Por sua vez, promover a invenção é promover a diferença, a diferenciação. O que significa
ir contra as linhas de força dominantes do mercado cultural com suas ofertas controladas.
Mas também ir contra os movimentos delimitadores das identidades. Diferir é aumentar a
riqueza do corpo social. Identificar é traçar fronteiras, limites, a este movimento. Para
Tarde, se há alguma substância definidora do ser é a substância da diferença, da
heterogeneidade. O ser é o ser da diferença e não o ser da identidade: "Existir é diferir, e, de
certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais
próprio e mais comum".
As representações sociais são, antes de tudo, invenções de indivíduos em processos de
interação e, ao mesmo tempo, de diferenciação. A qualquer momento pode surgir uma
nova idéia. Uma bifurcação ocasionando uma série divergente. Portanto, a invenção renova,
faz variar o social, produz diferenças. É a diferença a força inventora do social.
E as identidades, como situá-las nesse processo de diferenciação? Se é possível alguma
identidade a partir de semelhanças entre subjetividades diferenciadas, ela se dá por meio
da imitação e da repetição. Não há, portanto, identidade preexistente. Qualquer uma é
antes criação de subjetividades permeadas por um mesmo fluxo.
Um indivíduo não se assemelha a outro naturalmente. Eles se tornam semelhantes na
medida em que um exerce uma ação sobre o outro. Na medida em que a diferença de um
afeta a do outro e passa a constituí-lo. A identidade, diz Tarde, "é apenas um mínimo, não
passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença".
No corpo social, onde a identidade e a diferença se alternam repetidas vezes, "o termo inicial
e o termo final são a diferença". O que vale são as diferenças em si, em suas alteridades. As
diferenças podem até ser integradas em uma identidade. Mas esta possível síntese não
esgota jamais a força de diferenciação criadora interna a cada subjetividade. Estabelecer uma
identidade como elemento heurístico é definir um território, não o mapa completo do indivíduo,
pois todo indivíduo é perpassado por vários fluxos diferenciados e diferenciantes.
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Quando uma política pública de cultura promove o discurso identitário, ela corre um
grande risco de, no fim das contas, colocar em ordem, gerenciar, o processo de diferenciação,
que é um movimento de instabilidade, de dispersão. Ela pode acabar por instaurar o
idêntico lá onde pulsam as diferenças. "Todo déspota ama a simetria", afirmou Tarde. O
autoritarismo não aceita a diferença, a oposição. Assim, podemos entender porque no
Brasil os regimes autoritários de Getúlio Vagas e dos militares tinham tanta obsessão por
definir uma identidade nacional, o Ser nacional.
Em um movimento contrário, creio que uma política pública de cultura deva promover o
lugar da diferença na sociedade contemporânea. Sociedade marcada por movimentos
contraditórios de homogeneização global (certamente a linha de força maior) e de ratificação
das diferenças microscópicas. Lugar este que, na tradição egocêntrica e etnocêntrica do
pensamento ocidental, foi sufocado pelo peso da identidade (individual e social).
Pensar a diferença como o personagem de Jorge Luis Borges, Ts'ui Pen, pensava o tempo
no seu romance-labirinto O jardim de veredas que se bifurcam. Tal como não há uma
identidade essencial, não existe um tempo uniforme, absoluto, universal. Mas "infinitas
séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes
e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que
secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades". Um tempo, tal como as
diferenças, em constante diferenciação.
Para finalizar, gostaria de trazer uma definição de política proposta por Michael de Certeau.
Certeau coordenou nos anos 70 uma longa pesquisa para o Ministério da Cultura da
França, pesquisa da qual resultaram os livros A invenção do cotidiano e A cultura no
plural. Livros que, como os títulos indicam, têm tudo a ver com o que acabamos de falar.
Pois bem, Certeau disse que "a política não garante a felicidade nem confere significado às
coisas. Ela cria ou recusa condições de possibilidades. Ela proíbe ou permite: torna possível
ou impossível".
Assim, gostaria de propor uma política pública de cultura que criasse as condições de
possibilidades, que permitisse, que tornasse possível. Enfim, uma política cultural que não
sucumbisse aos imperativos mercadológicos; que inventasse; que se diferenciasse. Mesmo
que errasse mais e acertasse menos, os acertos valerão o investimento.
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ADORNO, Theodor W. Cultura y Administración. In: ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M.
Sociologica. Madri, Taurus, 1986a. p. 53-73.
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BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo. Lisboa, Edições 70,
1995a.
_____. Simulacros e simulações. Lisboa, Relógio d'Água, 1991.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Vol I. São Paulo, Globo, 1999.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, Papirus, 1995.
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. Cultura e imaginário. São Paulo,
Iluminuras, 1997.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1985.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro, Record, 2001.
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis, Vozes, 2003.
_____. As leis da imitação. Porto, Rés, 1976.
Alexandre Barbalho
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HistóricodasLeis
FederaisdeIncentivo
àCulturaeSeus
BenefíciosFiscais
FábiodeSáCesnik
Diretor do Instituto Pensarte. Advogado sócio do escritório Azevedo, Cesnik e Salinas,
especializado em direito autoral e leis de incentivo à cultura; autor dos livros "Projetos
Culturais", na 4ª. edição pela Editora Escrituras e "Guia do Incentivo à Cultura", pela
Editora Manole.
No início deste século (1917), o governo dos Estados Unidos da América adotou política
de incentivos à cultura (tax deduction) pela qual as pessoas físicas ou jurídicas poderiam
abater do valor efetivamente doado no imposto de renda. Setenta anos se passaram e se
desenvolveu com grande expressão nesse país uma política de investimento em cultura.
Alguns importantes investidores americanos surgem nesse período, tais como: Rockefeller,
Guggenheim, Carnegie e tantos outros.
No Brasil, o investimento privado inicia sem qualquer impulso do poder público. Entre os
anos de 1940 e 50 inicia-se um processo de investimento privado sem qualquer participação
do poder público. Esse movimento surge mais pelas vaidades pessoais dos empresários
"mecenas" do que por qualquer estímulo público. Talvez o componente básico tenha sido
mesmo o "status social" proporcionado pelos referidos investimentos. São desta época os
empresários Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho que construíram o Museu de
Arte Moderna de São Paulo (MAM - 1948) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz
(1949). Matarazzo ainda instituiu a Fundação Bienal São Paulo. Posteriormente, o Museu de
Arte de São Paulo (MASP) foi criado por Assis Chateaubriand, que chegava a trocar inserções
no seu jornal, o "Diários Associados", por doações ao museu. Caso similar acontece com
Paulo Bittencourt e Niomar Muniz Sodré, donos do jornal "Correio da Manhã", que criam o
Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro (MAC-RJ) com este mesmo sistema de
"troca" (a atual permuta). Naturalmente se esperava que o Estado passasse a estimular a
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O ápice desse processo ditatorial atrasado, anacronicamente situado num momento
democrático, foi a postura do presidente eleito em 1989, Fernando Collor de Mello, que
extinguiu todos os organismos de cultura existentes até então, como o Conselho Nacional
de Direito Autoral (CNDA), Embrafilme, Funarte, o mecanismo de incentivo "Lei Sarney" e
rebaixou o Ministério da Cultura à Secretaria ligada à Presidência da República. Tudo isso
ocorre como vingança e ódio dos artistas que apoiaram maciçamente o candidato da
oposição em 1989, Luís Inácio Lula da Silva, numa postura antidemocrática e cega da
realidade nacional.
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iniciativa privada e, com isso, criar um sistema misto de financiamento em que participassem
Estado e empresas. Afinal, esse havia sido o resultado satisfatório da experiência nos Estados
Unidos da América. Mas isso não ocorreu. O Brasil recebe em muito breve uma ditadura.
Ainda vamos perceber ao longo dos anos quão absurdas foram tais medidas. Afinal,
cultura não é um processo descartável que se construa numa política de curto prazo, mas
um emaranhado de elementos complexos que só pode produzir efeitos a médio e longo
prazo. A falta de orçamento para a cultura nos dias atuais é uma das conseqüências dos
atos do Presidente Collor, por incrível que possa parecer. Com a extinção do Ministério da
Cultura, o orçamento para cultura caiu a quase zero, integrando o orçamento geral da
Presidência da República. Com a recriação do Ministério, este precisa, aos poucos, convencer
o Congresso e membros do Executivo da importância de seu orçamento e pleitear o
gradativo aumento. Ou criar, como defendemos, vinculação orçamentária na Constituição
Federal, para se exigir aplicação de, no mínimo, 1% (um por cento) do orçamento federal,
e dos Estados e municípios para a cultura.
Em 1990, o setor cultural passa a buscar os Estados e municípios para tentar uma política
de investimentos em cultura e consegue, inspirado nos moldes da antiga Lei Sarney, mas
com importantes correções, criar alguns mecanismos estaduais e municipais de fomento à
cultura. O primeiro deles é a Lei Mendonça, no município de São Paulo, que oferece ao
"mecenas" o abatimento de 70% (setenta por cento) do valor investido do ISS ou IPTU
devidos no Município de São Paulo (limitado a 20% do imposto devido).
Esse formato passa a ser adotado por diversos Estados e municípios a partir de então e é o
modelo que vai ser seguido pelo projeto federal. Aliás, esse sistema pode ser chamado de
"dinâmica moderna dos incentivos fiscais à cultura", pois o produtor cultural deve efetuar
o seu cadastro, apresentar um projeto com descrição e orçamento ao Governo. Aprovado
pelos órgãos do Governo, o produtor está habilitado a buscar os recursos na iniciativa
privada. Finalmente, quando concluída a ação, o produtor volta ao Governo para explicar
qual a utilização dada aos recursos.
Em 1991, o Secretário da Cultura da Presidência da República, Sérgio Paulo Rouanet,
obtém sucesso com seu projeto de lei, vindo a produzir o texto legal que dá base a toda
política de incentivos praticada hoje no Brasil. Esta lei possui grande rigor formal no
cadastramento do projeto, análise e prestação de contas, sempre dentro do princípio da
transparência da administração pública. Talvez por falta de permeabilidade do sistema
implantado, de 1992 a 1994, somente 72 empresas investiram em cultura, com ausência
absoluta de apoio dado por pessoas físicas.
Em 1995, a União passa a aparelhar a regulamentação da lei, implantando no Ministério
da Cultura o PRONAC - Programa Nacional de Apoio à Cultura, previsto no texto da Lei
Rouanet. O Ministro da Cultura por todo o Governo de Fernando Henrique Cardoso foi
Francisco Corrêa Weffort, professor da Universidade de São Paulo. Estava iniciada uma
política de incentivo à cultura, que levou, nos dias de hoje, a um aumento de investimento
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no setor, que chegara no ano de 1999 em 1.040 empresas e 2.289 pessoas físicas
contribuindo por meio da Lei Rouanet (veja tabela a seguir). Essa lei hoje carece de algumas
urgentes reformulações. No entanto, entendemos que o avanço tido até o presente momento
só veio a contribuir com nossa cultura.
Passemos aos abatimentos de que trata a Lei Rouanet. Primeiramente, o dispositivo legal
fixa o teto de abatimento para cada tipo de mecenas, limitado a 4% do IR devido pela
pessoa jurídica e 6% da pessoa física. No caso da Lei do Audiovisual esse benefício é
limitado a 3%.
Em segundo lugar, podemos encontrar duas situações que geram abatimentos distintos
no imposto de renda. A Lei Rouanet separa em dois artigos diferentes: 18 e 26. O primeiro
foi modificado pela Lei nº 9.874, de 23 de novembro de 1999, e pela Medida Provisória nº
2.228-1/01.
O artigo 18 autoriza a dedução de 100% do valor efetivamente transferido para os seguintes
projetos: a) artes cênicas; b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; c) música
erudita ou instrumental; d) exposições de artes visuais; e) doações de acervos para bibliotecas
públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e
aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos; f) produção de obras
cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão
do acervo audiovisual; e g) preservação do patrimônio cultural material e imaterial. O
patrocinador deve ficar atento, pois os benefícios devem ser concedidos pelo governo na
portaria de aprovação, publicada no Diário Oficial da União, mencionando explicitamente
esta qualificação, o que não significa dizer que basta o projeto apresentado estar enquadrado
nas áreas especificadas. O lançamento da despesa pelo patrocinador não é efetuado como
despesa operacional para efeito de cálculo de imposto de renda, por vedação em um dos
parágrafos do artigo, descontando-se o valor transferido diretamente do IR devido.
Para os projetos não constantes nesse rol, ou seja, aqueles circunscritos ao artigo 26 da
mencionada legislação, vale a regra geral dos benefícios da Lei nº 8.313/91: 30% de abatimento
no caso de patrocínio e 40% no de doação. Neste caso, os valores transferidos ao projeto são
lançados como despesa operacional e posteriormente é feito o desconto legal no imposto de
renda. Isso leva a empresa a efetuar um resgate tributário na ordem de 64% no caso de
patrocínio e 74% no de doação, conforme demonstraremos na tabela seguinte.
As empresas tributadas com base no lucro presumido ou arbitrado estão vedadas de se
beneficiar de incentivo fiscal à cultura, conforme previsto no artigo 10° da Lei nº 9.532/
97. Com isso, os incentivos fiscais dedutíveis do imposto de renda somente poderão ser
utilizados pelas empresas que estejam tributadas com base no lucro real.
Outro detalhe importante é que os incentivos não são cumulativos com o Programa de
Alimentação do Trabalhador (PAT). A Lei nº 9.532/97, nos seus artigos 5° e 6° com a
redação dada pela MP nº 1.680, alteraram os limites individuais e globais das deduções de
incentivos fiscais, como segue:
I - dedução limitada a 4%:
PAT - Lei nº 6.321/76
Cultura - Lei nº 8.313/91
PDTI/PDTA - Lei nº 8.661/93
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II - dedução global limitada a 4%:
1º Grupo
PAT - Lei nº 6.321/76
PDTI e PDTA - Lei nº 8.661/93
2º Grupo
Cultura - Lei nº 8.313/91
Audiovisual - Lei nº 8.685/93
Assim sendo, a empresa poderá deduzir 4% do incentivo à atividade cultural ou 3% no
audiovisual e 1% na atividade cultural, respeitando o teto máximo de 4% para cada um
dos grupos delimitados acima, no item II.
Outro aspecto relevante diz respeito à segura dedutibilidade de despesas ou autorização
para o efetivo desconto no imposto de renda devido. A Lei nº 9.249/95 (artigo 365 do
Regulamento de Imposto de Renda de 1999) deu fim à maioria das contribuições e doações
dedutíveis para fins de determinação do lucro real. Nesse sentido, os descontos em imposto
autorizados pela Lei Rouanet passaram a ser uma forma segura de a empresa gastar sem
enfrentar problemas com a Receita Federal. Eis abaixo um exemplo desta insegurança:
um importante veículo de comunicação voltado à divulgação de grandes eventos sociais,
de onde extrai o seu conteúdo, adquiriu camarote para o carnaval no intuito de produzir
conteúdo fotográfico e de textos para suas páginas, evidentemente atendendo suas
finalidades societárias. A interpretação de que a aquisição poderia se realizar como despesa
de propaganda não foi aceita e os pagamentos efetuados para a aquisição de camarotes
para os desfiles de carnaval foram considerados despesas indedutíveis, por entender que
não possui relação direta com a atividade da empresa. A decisão foi proferida pelo 1º
C.C., ac.nº 101-90.829/97, publicado no DOU de 07 de maio de 1997.
A empresa pode, no entanto, buscar uma das escolas de samba do Rio de Janeiro ou de
São Paulo e manifestar seu interesse no patrocínio da escola. Esse patrocínio está sempre
calcado no apoio da lei de incentivo à cultura e fornece para a empresa o recibo para
abatimento. Essa despesa jamais será glosada, por possuir expressa permissão legal de ser
deduzida e descontada, nos limites legais, do imposto de renda. Como contrapartida ao
patrocínio, a escola fornece como cortesia um camarote na avenida, no intuito de que o
seu cliente possa apreciar o desfile de carnaval. Isso impulsiona que as empresas ou
pessoas físicas invistam em carnaval, que é hoje o maior evento cultural brasileiro, sem
qualquer sombra de dúvida.
Além das vantagens tributárias, o patrocinador ainda pode obter retorno em produtos ou
ingressos, no caso de apresentações, para ser distribuído como brinde, como material
didático às escolas carentes e/ou release para imprensa e obter mídia espontânea. Isso
deve constar do Plano Básico de Distribuição do projeto cultural incentivado e está limitado
a 25% (vinte e cinco por cento) do resultado do produto cultural (número de CDs ou
lugares na platéia, por exemplo).
Por fim, vale explanar sobre o vínculo do beneficiário com o agente para a concretização
do patrocínio. A doação ou patrocínio não poderá ser efetuada a pessoa ou instituição
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vinculada ao agente. Os vinculados, para efeitos da lei, são a pessoa jurídica da qual o
doador ou patrocinador seja titular, administrador, gerente, acionista ou sócio, na data da
operação, ou nos doze meses anteriores. Considera vinculado ao doador, patrocinador ou
outra pessoa da qual o investidor seja sócio, o cônjuge, o parente até terceiro grau, inclusive
os afins, e os dependentes do doador ou patrocinador ou dos titulares, administradores,
acionistas ou sócios de pessoa jurídica vinculada.
A lei, no entanto, garante uma exceção no parágrafo seguinte, que são as instituições
culturais sem fins lucrativos, criadas pelo doador ou patrocinador, desde que devidamente
constituídas e em funcionamento na forma da legislação em vigor. É o exemplo do Instituto
Itaú Cultural, ligado ao Banco Itaú e do Instituto Gtech Cidadania e Cultura, ligada à Gtech
do Brasil.
a - Abatimento parcial (artigo 26 da Lei nº 8.313/91) - Empresas financeiras e não financeiras:
A seguir explicitamos como uma empresa pode obter os benefícios da Lei Rouanet, na
forma de seu artigo 26, que abrange todas as áreas culturais descritas no rol de apoio da lei
de incentivo. Nesse caso, o patrocínio ou doação é lançado como despesa operacional e,
depois, efetua-se um resgate de mais 30% ou 40% do imposto de renda pago (sem o
adicional), respectivamente.
Foram listados abaixo dois exemplos distintos: um para patrocínio e outro para doação.
Em ambos os casos, admitimos tratar-se de uma empresa não financeira, cuja alíquota da
contribuição social está fixada em 9% do lucro líquido.
EXEMPLO 1: PATROCÍNIO
Com apoio à Cultura
em Reais (R$)
Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
10.000.000,00
10.000.000,00
50.000,00
0,00
9.950.000,00
10.000.000,00
895.500,00
900.000,00
5) Lucro Real (3 - 4)
9.054.500,00
9.100.000,00
6) IR devido 15% de 3 (**)
1.492.500,00
1.500.000,00
971.000,00
976.000,00
15.000,00
0,00
9) IR a ser pago
2.448.500,00
2.476.000,00
10) Total de Impostos Pagos (9 + 4)
3.344.000,00
3.376.000,00
1) Lucro Líquido
2) Valor do Patrocínio(*)
3) Novo Lucro Líquido
4) Contribuição Social (9 % de 3)
7) Adicional de IR (+10%)
8) Dedução permitida do IR devido pela
Lei nº 8.313/91,de 30% de 50.000,00
- Patrocínio (***)
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Com apoio à Cultura Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
em Reais (R$)
1) Lucro Líquido
10.000.000,00
10.000.000,00
2) Valor da Doação(*)
50.000,00
0,00
3) Novo Lucro Líquido
9.950.000,00
10.000.000,00
895.500,00
900.000,00
5) Lucro Real (3 - 4)
9.054.500,00
9.100.000,00
6) IR devido 15% de 3 (**)
2.463.500,00
2.476.000,00
971.000,00
976.000,00
20.000,00
0,00
9) IR a ser pago
2.443.500,00
2.476.000,00
10) Total de Imposto Pagos (9 + 4)
3.339.000,00
3.376.000,00
4) Contribuição Social (9 % de 3)
7) Adicional de IR (+10%)
8) Dedução permitida do IR devido pela
Lei nº 8.313/91, de 40% de 50.000,00
- Doação (***)
2003
EXEMPLO 2: DOAÇÃO
(*) Abatimento como despesa operacional.
(**) A alíquota de IR que incide sobre o lucro real é de 15%. O valor de lucro real que
excede a R$ 240 mil sofre uma incidência adicional de 10%. Assim, quando o lucro real
for superior a R$ 240 mil, o resgate tributário acresce em 9,26%, passando para
aproximadamente 64 %.
(***) Limitados a 4% do imposto devido, calculado com a aplicação da alíquota de 15%.
O imposto devido pela aplicação adicional de 10% sobre o excedente aos R$ 240 mil deve
ser recolhido integralmente e não é computado para relação entre os 30% (patrocínio) ou
40% (doação) do valor do projeto e os 4% do IR devido.
Observação: Verifica-se assim que o empresário ao patrocinar R$ 50.000,00 teve uma
redução tributária, no primeiro caso de 3.376.000,00 - 3.344.000,00 = R$ 32.000,00.
Em resumo, o empresário usou no seu marketing cultural R$ 32 mil de recursos de
impostos ou 64% do valor do patrocínio. No segundo caso, o empresário doou
3.376.000,00 - 3.339.000,00 = R$ 37.000,00. Em resumo, o empresário usou no seu
marketing cultural R$ 37 mil de recursos de impostos ou 74 % do valor da doação.
b - Abatimento integral (Artigo 18 da Lei nº 8.313/91) - Empresas financeiras e não financeiras:
Trataremos, nesta seção, do benefício auferido pelas atividades incentivadas nos termos
do art. 18 da Lei nº 8.313/91, com suas alterações. Além da porcentagem de retorno ao
patrocinador, há outras diferenças em relação à aprovação com base no artigo 26 da
mesma lei, especialmente com relação à base de cálculo do imposto de renda, e a forma
de dedução como despesa operacional.
Reza o parágrafo primeiro do artigo que "os contribuintes poderão deduzir do imposto de
renda devido as quantias efetivamente despendidas nos projetos enumerados no parágrafo
Fábio de Sá Cesnik
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2003
3º, previamente aprovados pelo MinC, nos limites e condições estabelecidos na legislação
do imposto de renda vigente, na forma de: doações e patrocínios". A seguir, enumera as
áreas que poderão contar com o referido apoio, fechando um rol exclusivo: "a) artes cênicas;
b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; c) música erudita ou instrumental; d)
exposições de artes visuais; e) doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos
públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos
para a manutenção desses acervos; f) produção de obras cinematográficas e videofonográficas
de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; e g) preservação
do patrimônio cultural material e imaterial".
Dois são os impostos que devem ser pagos pela empresa quando da apuração do lucro
real: Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) e Imposto de Renda (IR). O artigo 18,
em seu parágrafo 2º, veda o lançamento da doação ou patrocínio como despesa operacional
para as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real. Desta feita, a base de cálculo
do imposto de renda não pode ser alterada, visto que a lei veda expressamente seu lançamento
como despesa operacional. Observe-se que o valor do adicional do IR deve ser recolhido
integralmente, não sendo permitidas quaisquer deduções.
Para a determinação da base de cálculo da CSLL, no entanto, devemos utilizar o artigo 13
da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Diz o artigo: "para o efeito da apuração do
lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre lucro líquido, são vedadas as
seguintes deduções, independente do disposto no artigo 47 da Lei nº 4.506, de 30 de
novembro de 1964: (...) VI - das doações, exceto as referidas no parágrafo 2º".Segue o
parágrafo 2º dizendo: "poderão ser deduzidas as seguintes doações: I - as de que trata a Lei
nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991" (patrocínio ou doação).
Desse modo, as doações e patrocínios aplicados em projetos culturais aprovados nos termos
do artigo 18 da lei não poderão ser considerados como despesas dedutíveis para fins de
determinação do lucro real, mas podem, no entanto, ser deduzidas para determinação da
base de cálculo da CSLL, refletindo automaticamente na redução da base desta contribuição
e, conseqüentemente, na redução do valor do tributo.
EXEMPLO : EMPRESAS NÃO FINANCEIRAS
Com apoio à Cultura
em Reais (R$)
Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
10.000.000,00
10.000.000,00
50.000,00
0,00
9.950.000,00
10.000.000,00
895.500,00
900.000,00
5) Lucro Real (1 - 2)
9.100.000,00
9.100.000,00
6) IR devido 15% de 1 (**)
1.500.000,00
1.500.000,00
7) Adicional do IR (+10%)
976.000,00
976.000,00
50.000,00
0,00
9) IR a ser pago
2.426.000,00
2.476.000,00
10) Total de Imposto Pagos (9 + 4)
3.321.500,00
3.376.000,00
1) Lucro Líquido
2) Valor do patrocínio ou doação (*)
3) Novo lucro líquido para cálculo da CSLL
4) Contribuição social (9 % de 1)
8) Dedução de 100% do IR devido pela
Lei nº 9.874/99 - R$ 50.000,00 (***)
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(**) A alíquota de IR que incide sobre o lucro real é de 15%. O valor de lucro real que
excede a R$ 240 mil sofre uma incidência adicional de 10%.
(***) Limitados a 4% do imposto devido, calculado com a aplicação da alíquota de 15%.
O imposto devido pela aplicação adicional de 10% sobre o excedente aos R$ 240 mil deve
ser recolhido integralmente e não é computado para relação entre os 30% (patrocínio) ou
40% (doação) do valor do projeto e os 4% do IR devido.
2003
(*) Abatimento como despesa para efeitos de cálculo da CSLL.
Verifica-se, assim, que o empresário, ao aplicar R$ 50 mil, teve uma redução tributária no
primeiro caso de 3.376.000,00 - 3.321.500,00 = R$ 54.500,00. Em resumo, o empresário
aplicou recursos exclusivamente de impostos no projeto, obtendo ainda um resgate tributário
de R$ 4,5 mil, ou seja recebeu de volta 109 % do valor do patrocínio ou doação.
c - Pessoas físicas
A pessoa física pode investir até 6% do seu imposto de renda devido em favor de projetos
culturais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura. Esse investimento pode se dar
na modalidade de patrocínio ou doação. A previsão legal encontra-se no artigo 26 da Lei
nº 8.313/91.
Como patrocínio, o investidor abate 60% do valor efetivamente contribuído e, como
doação, até 80%. Vale salientar que os benefícios de que trata o artigo 26 da lei não
excluem ou reduzem outros benefícios, abatimentos e deduções em vigor, em especial as
doações a entidades de utilidade pública (parágrafo 3º). Caso o projeto apoiado pela
pessoa física esteja enquadrado no artigo 18 da lei, o abatimento é integral, apesar de
limitado aos 6% da previsão geral.
A pessoa física, para gozar do benefício supra-referido, precisar preencher sua declaração
de imposto de renda no formulário completo oferecido pela Receita Federal. Caso opte
pelo formulário simplificado, estará optando pelo desconto genérico de 20% (vinte por
cento) e não poderá utilizar o recibo de investimento em cultura.
EXEMPLO 1: PESSOA FÍSICA - ARTIGO 26 - PATROCÍNIO
Com apoio à Cultura Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
em Reais (R$)
1) Imposto de Renda devido
1.000.000,00
1.000.000,00
50.000,00
0,00
3) Desconto no Imposto de Renda devido pela Lei
nº 8.313/91 - 60% de 2 - Patrocínio - Limitado
a 6% do IR devido
30.000,00
0,00
2) Valor do patrocínio
4) Novo imposto a pagar
970.000,00
1.000.000,00
Fábio de Sá Cesnik
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EXEMPLO 2: PESSOA FÍSICA - ARTIGO 26 - DOAÇÃO
Com apoio à Cultura
em Reais (R$)
Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
1.000.000,00
1.000.000,00
50.000,00
0,00
3) Desconto no Imposto de Renda devido pela Lei
nº 8.313/91 - 80% de 2 - Doação - Limitado a
6% do IR devido
40.000,00
0,00
1) Imposto de Renda devido
2) Valor da doação
4) Novo imposto a pagar
960.000,00
1.000.000,00
EXEMPLO 3: PESSOA FÍSICA - ARTIGO 18
Com apoio à Cultura
em Reais (R$)
Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
1.000.000,00
1.000.000,00
50.000,00
0,00
3) Desconto no Imposto de Renda devido pela Lei
nº 8.313/91 - 100% de 2 - Patrocínio ou doação
- Limitado a 6% do IR devido
50.000,00
0,00
1) Imposto de Renda devido
2) Valor do patrocínio ou doação
4) Novo imposto a pagar
950.000,00
1.000.000,00
Observação: No caso de apoio advindo de pessoa física, a partir do artigo 26 da lei, o
desconto é de 60% (patrocínio) ou 80% (doação) do imposto de renda devido pela pessoa
física. No caso do artigo 18, o abatimento é integral. Deve-se considerar o limite de 6%
para investimento em cultura nas duas situações, fixado como limite para pessoas físicas.
d - Lei do Audiovisual - Artigo 1º:
A seguir, explicitamos como uma empresa pode obter os benefícios da Lei do Audiovisual,
quando adquire cotas representativas de projetos aprovados pelo MinC/ANCINE. Nesse
caso, o investimento é lançado como despesa operacional para efeitos de base de cálculo
de imposto de renda, mas não pode ser utilizado como desconto da base de cálculo da
contribuição social sobre lucro líquido.
A seguir, listamos um exemplo de aplicação de R$ 50 mil de uma empresa não financeira,
cuja alíquota da contribuição social está fixada em 9% do lucro líquido.
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LEI DO AUDIOVISUAL - ART. 1º
Com apoio à Cultura
em Reais (R$)
Sem apoio à Cultura
em Reais (R$)
10.000.000,00
10.000.000,00
50.000,00
0,00
9.950.000,00
10.000.000,00
900.000,00
900.000,00
5) Lucro Real (3 - 4)
9.050.000,00
9.100.000,00
6) IR devido 15% de 3 (**)
1.492.500,00
1.500.000,00
971.000,00
976.000,00
50.000,00
0,00
9) IR a ser pago
2.413.500,00
2.476.000,00
10) Total de Impostos Pagos (9 + 4)
3.313.500,00
3.376.000,00
1) Lucro Líquido
2) Valor do Investimento (*)
3) Novo Lucro Líquido
4) Contribuição Social (9 % de 1)
7) Adicional de IR (+10%)
8) Dedução permitida do IR devido pela Lei
nº 8.865/93, de 100% de 50.000,00 (***)
2003
EXEMPLO DE APLICAÇÃO DE RECURSOS:
(*) Abatimento como despesa operacional para efeitos de cálculo de imposto de renda. O
valor não pode ser lançado como despesa para efeitos de cálculo de contribuição social
sobre lucro líquido.
(**) A alíquota de IR que incide sobre o lucro real é de 15%. O valor de lucro real que
excede a R$ 240.000,00 sofre uma incidência adicional de 10%.
(***) Limitados a 3% do imposto devido, calculado com a aplicação da alíquota de 15%.
O imposto devido pela aplicação adicional de 10% sobre o excedente aos 240 mil deve ser
recolhido integralmente e não é computado para relação entre os 100% do valor do
projeto e os 3% do IR devido.
Observação: Verifica-se assim que o empresário ao patrocinar R$ 50.000,00 teve uma
redução tributária, de 3.376.000,00 - 3.313.500,00 = R$ 62.500,00. Em resumo, o
empresário usou no seu marketing cultural R$ 62.500,00 de recursos de impostos ou
125% do valor do investimento.
Fábio de Sá Cesnik
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2003
Federalismo
Cultural
HumbertoCunha
Advogado da União. Doutor e Mestre em Direito. Professor da Universidade de
Fortaleza - UNIFOR
Aceitei o desafio, posto pela Secretária Cláudia Leitão, para refletir sobre alguns pontos
referentes à Lei Jereissati, o que farei considerando uma única interferência: o conjunto
de sugestões da classe artística que a mim chegou, e que adiante explicitarei. Principio
dizendo que minhas reflexões se inserem num contexto maior, que extrapola a simples
modificação de artigos, incisos ou alíneas da Lei Jereissati; este contexto, eu o chamo de
Federalismo Cultural.
Pra se falar sobre Federalismo Cultural tem-se que ter a noção do que seja uma federação.
Uma federação é um estado complexo, composto de vários centros autônomos de poder,
assim definidos porque podem fazer as próprias normas, uns independentes dos outros. O
caso do Brasil é sui generis, porque é uma federação de quase 6.000 entes autônomos:
mais de 5.500 municípios, 26 Estados, o Distrito Federal e a própria União.
O instrumento jurídico que consolida e organiza um Estado e, sobretudo uma federação,
é a Constituição. O poder que cada ente de uma federação tem é dado pela Constituição.
Nenhum ente pode fazer mais do que aquilo que a Constituição permite e deve fazer
exatamente aquilo que a Constituição ordena.
Como a Constituição distribui as competências, existem algumas tarefas que são distribuídas
de forma comum para todos os entes. A tarefa de executar ações de saúde, educação,
proteção do meio ambiente, e também da cultura, diz a Constituição, é comum a todos
os entes. A competência comum impõe uma indagação: se todo mundo pode fazer
simultaneamente essas tarefas, isto não vai gerar um certo caos? Observe-se que, além
dos citados, em princípio sim, porém, para evitar o caos, as federações se organizam de
forma sistemática.
Como é essa organização sistemática? É uma organização em que são distribuídas as
tarefas de forma racional, segundo a vocação de cada ente. Se a tarefa abrange todo o
território nacional, naturalmente essa é uma tarefa da União; se abranger mais de um
Estado, seria tarefa da União; se, da mesma forma, abrange todo um Estado ou mais de
um município, é tarefa do Estado; se for uma tarefa local, é eminentemente do município.
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É necessário, em toda a federação, organizar o que é competência de cada ente para evitar,
por exemplo, ações repetidas. Pode-se observar na prática o que vem a ser dito, observandose o seguinte caso: ontem me disseram que a representante do Ministério da Cultura em
Recife falou aqui de mapeamento cultural. Todo mundo já queria fazer mapeamento cultural,
em todo canto, sem uma organização. Tarefa repetida é desperdício de recursos; pessoas
fazendo a mesma atividade estão gastando dinheiro desnecessariamente.
É interessante notar que a sistemática de organização federativa, em alguns setores, já é
bastante desenvolvida. Dentre esses setores, podem ser citados a educação e a saúde. Há
dificuldades de entender estes exemplos porque o que aparece na imprensa é apenas o
conjunto de defeitos das áreas de educação e de saúde. Mas escuta-se também, por outro
lado, notícias de certo município que paga 18 (dezoito) salários por ano aos professores.
Isso não é resultado de algo aleatório, mas dessa organização sistemática.
Na área da saúde já existe um sistema - a situação deste setor estaria muito pior do que
está se não houvesse esse sistema. Na área da educação já se percebe, pelo menos em
termos quantitativos, ainda não qualitativos, a inserção das pessoas nos serviços públicos.
Esses avanços são devidos à organização sistêmica dos dois citados setores.
Na área da cultura, a rigor não existe ainda uma sistemática estabelecida por lei. Existe
uma espécie de "convite" formulado pela Lei 8.313 (Lei Rouanet) para se formar um sistema
nacional da cultura. Mas trata-se de um convite um tanto quanto solto, sobre o qual farei
a crítica daqui a pouco. O que é que diz essa lei 8.313? Atenção nos termos da norma,
que são absolutamente importantes para uma reformulação de uma legislação estadual ou
municipal: "com a finalidade de garantir a participação comunitária, a representação de
artistas e criadores no trato oficial dos assuntos da cultura e a organização nacional sistêmica
da área, o Governo Federal estimulará a institucionalização de conselhos no Distrito Federal,
nos Estados e nos Municípios".
Quais as formalidades necessárias para integrar este acanhado sistema proposto pela
Lei 8.313? Diz o artigo 39 do decreto (1.494/95) que regulamenta essa Lei que
"resguardada a decisão final pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a análise,
a aprovação, acompanhamento e avaliação técnica de projetos poderão ser delegados
pelo Ministério da Cultura aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios mediante
instrumento jurídico que defina os direitos e deveres mútuos". O que seria um
instrumento jurídico? Uma avença qualquer, um contrato, um convênio, ou seja, ainda
é na base do convênio.
E quais os requisitos necessários para, na atualidade, integrar um sistema nacional de
cultura, que até hoje isso não foi implementado efetivamente, o que redundou em
deformações como a dos 90% dos recursos do programa nacional de apoio à cultura
serem destinados ao Rio e a São Paulo? A nossa legislação cearense seria capaz de,
atualmente, integrar um sistema conforme a possibilidade jurídica atual ofertada pela
Lei Rouanet? A delegação referida anteriormente dependerá basicamente de dois fatores:
1º) a existência de Lei de Incentivos Fiscais à Cultura (o Ceará tem) e 2º) de órgão
colegiado, para análise e aprovação dos projetos, no qual a sociedade tenha
representação pelo menos paritária (se tiver um representante do Estado tem que ter o
par correspondente da sociedade, e se não for assim a sociedade tem que ser majoritária),
e as diversas áreas culturais e artísticas estejam representadas. Então a gente já começa
a perceber que se o Estado do Ceará quisesse, com a atual legislação não poderia se
integrar, por causa do defeito formal de não possuir órgão deliberativo nos termos
anteriormente descritos.
Humberto Cunha
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É interessante a existência de um sistema de cultura, porém esse que está proposto na
legislação federal é absolutamente tímido, porque depende de avenças, contratos, convênios
pontuais. Nos outros sistemas já formulados existe um repasse que eles chamam de "fundo
a fundo"; por exemplo: existe o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ou
FUNDEF (Desenvolvimento da Educação). Eles repassam dinheiro para os fundos estaduais
e para os fundos municipais, independentemente de projetos pontuais, de projetos
específicos. Repassam a partir de critérios e de méritos técnicos da atuação, dos Estados e
dos municípios naquela área específica.
Isso que acontece na saúde e na educação seria possível realizar no âmbito da cultura?
Sim, porque nós também temos um fundo nacional da cultura. É um Fundo Nacional da
Cultura, porém tem tratamento de fundo federal. Olha a sutileza: é um fundo nacional
com tratamento de federal. Qual é a diferença? Isso pra um ambiente artístico é fácil de
entender: a União tem dupla personalidade. Estou falando assim não é porque as pessoas
tenham dupla personalidade, mas porque os artistas encarnam várias personalidades. Então:
a União tem uma personalidade específica de um ente que tem obrigações a realizar,
como por exemplo, guardar fronteiras (aqui se manifesta a personalidade federal). Mas
tem uma outra personalidade que é de congregar o interesse de todos os entes federados
(eis a faceta nacional).
Se há um Fundo Nacional da Cultura, a rigor esse Fundo Nacional é para realizar redistribuição
e não alimentar a concentração de recursos, ou seja, nós podemos propor a reorganização
de um fundo para que o atendimento ao cidadão se dê próximo de onde ele mora, que é
no município, que é no Estado, segundo a vocação de cada um, ou seja, pode-se reelaborar
normas ou, pelo menos, propor a reelaboração delas para o Fundo, para que tenha uma
destinação, segundo critérios.
E quais seriam os possíveis critérios para um repasse do tipo "fundo a fundo", ou seja, se
alguém quer lançar um CD e deseja o apoio público, quem faz o atendimento dele?
Curiosamente é a própria União, quando o artista poderia ter esse atendimento no município
ou no Estado, segundo critérios. E eu imagino que poderiam ser critérios relativos a uma
sistemática, independentemente de projetos pontuais; poderiam considerar o PIB cultural
de cada ente da federação (o conjunto de todas as riquezas de cultura; quanto mais
obrigações culturais há, por exemplo, para conservar patrimônio histórico, realizar festivais,
etc). Um outro critério poderia observar se o Estado ou município efetivamente implementa
atividades de apoio à cultura; se efetivamente protege o patrimônio cultural; se efetivamente
respeita os direitos culturais, dentre os quais os direitos autorais que contam aqui com um
paladino que é o Ricardo Bacelar (não se pode ter um Estado pirata, ou fomentando a
pirataria do trabalho intelectual). Mais um critério: a efetiva injeção de recursos próprios,
ou seja, não se pode propor repasse "fundo a fundo" sem que o Estado ou o município se
comprometa pecuniariamente. Isso equivaleria a se livrar da sua própria responsabilidade
para com a cultura.
Para que se possa chegar a um possível ingresso num sistema de cultura, hão de ser
adotadas posturas de duas naturezas: uma postura ativa interna, de preparar a própria
legislação de forma compatível com o sistema; e praticar aquelas atitudes que vem de ser
citadas, as quais credenciariam um ente como efetivamente apoiador da cultura. E tem
também que ter uma postura proativa de natureza externa, que seria a de o Estado, como
ente da federação, através dos seus deputados federais e senadores, propor o aprimoramento
da legislação federal para deixar de ser acanhada no sentido aqui exposto, ultrapassando a
idéia de projetos pontuais e construindo um modelo até mais aprimorado que o do SUS e
da educação, vez que deles já temos a experiência.
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O ambiente em que estamos (Seminário Cultura XXI) abriga muitos pensadores; e alguém
já deve ter pensado o seguinte: um sistema geralmente gera um grande problema que eu
batizei aqui por algo semelhante ao "buraco federal". Inicialmente na construção dos sistemas,
a gente via debates da seguinte natureza: se havia um buraco na Aguanambi (uma avenida
de Fortaleza que é continuidade da BR 116), pedia-se: "Prefeito tapa esse buraco"; ele dizia:
"não, esse buraco é federal". Ou seja, qual seria o risco de um sistema cultural? Alguém
dizer assim: "eu não apóio isso, seria uma atividade que merece exclusivamente o apoio da
União ou do Estado". No caso, o município poderia vir com uma argumentação dessas.
Mas a gente não pode matar a vaca por causa do carrapato. A gente tem é que criar
antídotos contra esses riscos, preparar um sistema local, estadual compatível, porém
autônomo, ou seja, que funcione independentemente de se coligar ou não com o federal
e com os municipais, mas buscando sempre essa coligação.
Essa coligação, a única metáfora que me veio pra explicar isso foi a de uma estação
espacial. Vamos supor uma estação espacial construída por um País que não vou citar o
nome em protesto à guerra. Como é que se faz uma estação espacial? Faz-se de modo a
compatibilizar uma nave com outras. Se a Rússia vier, pode acoplar e aumentar o espaço.
Se a de Israel vier, também pode acoplar, aumentar o espaço, aumentar a pesquisa, aumentar
tudo. Porém se a de Israel for embora, a da Rússia for embora continua aquela funcionando
com menos produtividade, menos espaço, menos tudo, porém continua funcionando. É
desta forma que a gente tem que elaborar o nosso sistema estadual de cultura, ou seja,
apto a receber os demais, porém permanecendo autônomo. Afinal de contas, os entes
federados são autônomos. Na prática, como se faz um sistema desta natureza, ao mesmo
tempo compatível e autônomo? Aqui não pode entrar a ditadura do técnico.
Antes de continuar, um pequeno parêntese: Cláudia Leitão me propôs: "Humberto, você
gostaria de compor a equipe?" Eu disse: "Não posso compor a equipe". "Mas você aceita o
desafio de fazer uma proposta de reelaboração da Lei Jereissati?" Respondi: "Eu faço,
porque já fiz muitas críticas. Se eu não fizer a proposta, seria covarde". Porém acrescentei:
"Mas tem uma condição: me dá as sugestões que já apareceram, referentes à Lei Jereissati
e, quem sabe, até ampliar a abertura para novas sugestões". De pronto ela disse: "Topo no
ato, porque o que eu quero é fazer". Até sexta-feira passada, chegaram várias sugestões
para mim e vou dizer quais são elas, vou tentar provar que o sistema que eu proponho é
compatível com essas sugestões. Afinal de contas, as sugestões exigem do Estado apenas
que ele cumpra os princípios da administração pública, que são legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência. Então, basicamente todas as sugestões chegadas são
compatíveis com uma legislação da natureza da que se deseja propor.
As colaborações que a mim chegaram foram de duas naturezas: institucional e pessoal.
Algumas formalizadas diretamente para a estrutura da Secretaria da Cultura e outras coletadas
até mesmo de reportagens veiculadas na imprensa. Das reportagens, vocês vêem nos
slides os nomes de algumas pessoas, o que dispensa menção. As colaborações institucionais
vieram do movimento Ceará Cidadania. Uma única sugestão da Federação das Artes do
Estado do Ceará, mas respaldada por 139 assinaturas e uma sugestão institucional do
"Comunicação e Cultura", assinada pelo Daniel Raviolo.
Essas sugestões eu as classifiquei do seguinte modo: 1) critérios para aprovar projetos; 2)
sugestões de como deve tramitar um projeto; 3) sugestões referentes ao limite de renúncia
fiscal; 4) sugestões de critérios para as pessoas serem beneficiárias da legislação de incentivo
à cultura; 5) sugestões atinentes a alterações na representação dos artistas e da área de
cultura de uma forma geral, tanto na CAP como no FEC; 6) adoção de outras atitudes não
existentes, ou seja, sugestões inovadoras; e o que eu achei muito curioso e muito cidadão
foi 7) sugestões relativas a deveres culturais dos beneficiários.
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Quanto aos critérios para ter acesso aos recursos, há sugestão no sentido se ser fixado um
percentual para os municípios, ou seja, a idéia de interiorizar a abrangência da lei. Outra
idéia é a de que órgão público não pode se beneficiar do incentivo fiscal que concede,
pelo motivo óbvio de que o tributo é dele. Como é que ele vai se beneficiar do tributo
próprio? Ele tira de um bolso e bota noutro? Uma outra sugestão é priorizar projetos de
organizações e projetos independentes, aqui entendidos como os que não são nitidamente
comerciais. Uma outra sugestão, em sentido contraposto, é de priorizar os projetos
comerciais. Uma última sugestão nesse bloco, que é diferente da primeira porque visa
atender o interior (artistas, sociedade civil, etc), e não apenas o município.
Um outro critério sugerido é que o beneficiário deve ter tempo de atuação mínima no
Estado do Ceará, para evitar o risco de se formar uma entidade só pra captar recursos de
um projeto, e depois simplesmente desfazê-la. Há sugestão para que não sejam definidos
projetos prioritários. O que a pessoa quis dizer com isso? Ela até especificou: assegurar o
pluralismo cultural, assegurar que o Estado não tenha uma preferência por certa manifestação
cultural. E uma última sugestão de dar preferência a projetos vencedores de concurso,
com a seguinte idéia subjacente: se alguém tem que definir o mérito de um projeto
cultural, esse alguém não é o Estado, mas os pares daquela manifestação artística, ou seja,
vamos supor: qual a melhor peça de teatro? O Estado não pode dizer. Quem deve dizer
isso é a comunidade artística. Acho que é nesse sentido que se vai aprovar por mérito e
que o mérito seja definido pelos pares.
Sugestões relativas ao trâmite de projetos: uma delas é eliminar a exigência do certificado.
Acho muito difícil. Pode até mudar o nome, Certificado de Incentivo à Cultura, mas não
pode ser eliminado, porque precisa ter controle. No mesmo sentido, foi sugerido eliminar
a participação da SEFAZ (Secretaria da Fazenda). Não pode porque faz parte da essência
das competências dela. Outras sugestões: estabelecer mais reuniões da comissão que
analisa os projetos, reduzir os prazos de tramitação de projetos e dar publicidade a todas
as fases e a todos os projetos que estão tramitando para que todos saibam que projetos
foram aprovados e se tramitaram por ordem de apresentação. Ora, se o Estado não pode
definir prioridades para artes, qual é o critério? Em critérios de iguais, os gregos já faziam
sorteio ou então aquele que chegasse primeiro.
Sugestões relativas ao limite da renúncia fiscal: a mais constante é atingir efetivamente a
renúncia dos 2% do ICMS. Outra: criar renúncia variável por contribuinte, porque hoje em
dia é 2% para todo mundo, não interessa se a empresa e pequena ou se ela é grande, são
2% para todo mundo. Qual é a idéia dessa sugestão aqui? Se a empresa é pequena ela
pode renunciar mais, se ela é média, um pouco menos, se ela é grande, um pouco menos
ainda. Isso em termos percentuais, obviamente. Mais uma sugestão: manter a doação
com dedução de 100%. Em sentido oposto, há a opinião dos que purgam pela eliminação
dos 100%, ou seja, o contribuinte teria que entrar sempre com uma parte. É possível
compatibilizar essas duas coisas? Talvez seja. Como regra, o doador entra com uma parte
do dinheiro para incrementar a cultura, mas em segmentos pontuais que estejam muito
fragilizados, e para épocas pontuais, doação com abatimento integral.
Outras sugestões são relativas a alterações do sistema de representação da CAP e do FEC.
Há uma sugestão pra exigir a paridade entre o Estado e a sociedade; uma outra para tornar
a CAP transparente, redefinir a sua composição; uma outra para que os membros da CAP
sejam remunerados; uma outra para inserir representantes da sociedade na comissão do
FEC, que atualmente é apenas do poder público; uma outra para criar representação
especificada de um setor específico que seria a música, ou seja, projetos musicais seriam
aprovados ou avaliados por uma comissão específica.
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Um outro tipo de sugestão que eu achei curioso, porque onde só existe direitos e não
deveres, é um ambiente desequilibrado e não pode ir para frente. Sugeriu-se que os
beneficiários devessem entregar partes do produto à SECULT para que ela faça uma
redistribuição, ou seja, se alguém teve acesso aos recursos públicos para editar discos ou
livros, por exemplo, entrega parte à SECULT para que ela distribua às bibliotecas ou às
discotecas. Uma outra sugestão: cada projeto apoiado deve destinar 5% do respectivo
orçamento para o FEC, ou seja, como o FEC é o instrumento de realizar o reequilíbrio
daquelas atividades que não têm inserção no mercado, todos teriam responsabilidade,
segundo essa opinião, de fomentar os recursos do FEC.
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Agora as sugestões inovadoras. A primeira delas é relativa à possibilidade de implementar
a defesa oral de projetos perante a CAP e o FEC, ou seja, o artista não consegue explicar
bem no papel e iria lá fazer uma defesa oral do seu projeto. E uma outra seria de criar
mecanismos de aproximar incentivadores e captadores.
Vocês ainda estão lembrados do sistema? Eu disse que essa história das sugestões era um
parêntese. Parêntese para quê? Para saber como é possível construir um sistema estadual
de cultura ao mesmo tempo passível de se conectar aos sistemas federal e municipais e,
por outro lado, permanecer autônomo, além de incorporar os anseios da sociedade.
A partir de agora apresento uma proposta que elaborei, não como consultor, mas como
uma pessoa que recebeu um desafio. Trata-se da proposta de um programa cearense de
apoio à cultura de forma a torná-lo compatível com aquelas idéias anteriormente expostas,
emanadas dos diretamente interessados. O primeiro ponto do sistema consiste em perceber
que legar apenas ao mercado o incentivo fiscal à cultura não dá certo. O sistema deve
atuar a partir de recursos do tesouro estadual, sem dúvida nenhuma. Outro veio são os
recursos do Fundo Estadual da Cultura, com aquela idéia de alimentação sistêmica, que a
gente já viu agora, mas também com a fomentação de novos recursos: a renúncia fiscal,
que é o incentivo fiscal à cultura, além de recursos de outras fontes, essas aqui mais
instáveis já que dependem de acordos até internacionais.
Nessa sistemática, para integrar um sistema nacional ou internacional de cultura, existe uma
expressão chave, que é "gestão democrática". Vou dizer um segredo que desde 1989 está
escondido na Constituição Estadual: ela não previu o incentivo de renúncia fiscal. Ela previu
o Fundo Estadual da Cultura. Porém, a Constituição Federal prevê a renúncia fiscal, então dá
pra fazer o somatório. Quando a Constituição Estadual prevê a criação do Fundo Estadual,
ela diz que ele será gerenciado pela SECULT, ouvido o Conselho de Cultura. A atual estrutura
do Fundo, portanto, é inconstitucional. Por que? Porque ele escuta uma comissão de três ou
quatro pessoas da própria Secretaria de Cultura do Estado e o Conselho da Cultura está
desativado. Sobre este Conselho, muita gente faz a crítica que ele é beletrista e sem critérios.
Qual é a solução? Reformulá-lo para atender aos critérios democráticos e cumprir a Constituição.
Se a gente abre mão da Constituição, a gente abre mão de todos os direitos.
Nesse novo sistema, a chave de deliberação política dele deve ser, na minha opinião, o
Conselho de Cultura, sem dominação do Estado e representado por todos os segmentos
culturais e pela sociedade em geral. A participação da sociedade nas políticas públicas
deve dar-se em dois momentos: o de definição de tais políticas e o de fiscalização da
implementação das mesmas. O momento de execução, como tudo que está definido na
lei, deve ser confiado a técnicos. Então, a rigor, a chave de deliberação de um sistema
estadual da cultura que deve ser democrático para ser compatível seria o Conselho da
Cultura reformulado. Mas o que é que quero dizer com isso? Que o grande papel da
participação da sociedade é definindo e fiscalizando a aplicação política. Por exemplo: no
começo do ano o Conselho se reúne e pondera: "ano passado, o teatro não foi grande
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aquinhoado com o sistema de cultura estadual e o patrimônio histórico nada teve; esse
ano a gente precisa corrigir essa deformação". Ou então: "Nós precisamos estabelecer
certas prioridades: qual é o projeto da Secretaria da Cultura; vamos aprimorar sobre tal
atuação cultural". Ou seja, do ponto de vista operacional os projetos são apresentados
dentro daquelas diretrizes definidas pelo Conselho, mas são avaliados por técnicos, pois
eles são instrumentos da sociedade. Se eventualmente um projeto não for aprovado, aí
sim, aquele prejudicado pela decisão recorre para este mesmo Conselho dizer se aquela
reprovação se enquadra ou não nas deliberações que ele definiu no início da atuação anual
da Secretaria de Cultura.
A exigência de estruturação democrática do sistema não é minha, mas dos âmbitos nacionais
e internacionais que permitem fomento e integração. Reitero, portanto, que no sistema
estadual da cultura o principal órgão técnico-político seria o Conselho Estadual da Cultura.
As funções dele não seriam executivas, pois executar as tarefas é trabalho dos técnicos.
Suas funções seriam normativas em linhas básicas: definindo critérios, aprovando metas,
opinando sobre a política e realizando a fiscalização, ou seja, o Conselho seria a única
instância recursal e a instância recursal por excelência no caso de alguém se sentir preterido
na execução das políticas públicas de cultura.
Há, atualmente, um Conselho Estadual de Cultura na forma da 11.400. Mas é um Conselho
sem a devida estruturação. Para atender esses objetivos expostos, o Conselho deve ser não
apenas paritário entre sociedade-estado, ele deve ser plural, ou seja, contemplar pelo menos
todos os segmentos envolvidos na questão da cultura, seja na produção das normas, na
execução das normas, na participação econômica. Vocês se lembram que já foi dito que
para incorporar algum ente político ao sistema federal de cultura, seria preciso que todos os
segmentos da sociedade estivessem representados? Então a idéia é que o Conselho não seja
apenas paritário, mas plural, ou seja, representação não apenas da música, mas de todos os
segmentos vislumbrados como segmentos passíveis de serem apoiados pelo sistema estadual
de cultura. Em minha proposta de reformulação do Conselho seriam membros temporários:
um representante do empresariado (porque não há sentido esse distanciamento entre os
artistas, os produtores culturais e os empresários, que não participam, em momento algum,
da política de financiamento; a CAP não tem representação do empresariado), e quatro
intelectuais escolhidos dentre pessoas com absoluta notoriedade de atuação no Estado do
Ceará, ou seja, hoje o atual Conselho que é composto exclusivamente desse tipo de intelectuais;
ele continuaria prestigiando os intelectuais mais ou menos livres, não vinculados a entidade
alguma, mas continuaria prestigiando. No Conselho, além dos membros temporários, os
natos. Quais seriam? O gestor dos órgãos vinculados ou pactuados com a Secretaria de
Cultura, que eu imagino que sejam só a TVC e o Instituto Dragão do Mar; o Secretário da
Fazenda, porque ele tem uma grande dificuldade, agilizar o papel da SEFAZ (eu acho que é
porque também não se conversa com ele, também não se escuta as razões dele); o
representante do Ministério Público que atua nas questões relativas ao meio ambiente, no
caso, o meio ambiente cultural; um representante da Assembléia; e um representante dos
dirigentes municipais da cultura. Seria basicamente essa composição do novo Conselho
Estadual da Cultura, que teria também novas tarefas, já enumeradas.
Agora é necessário ponderar sobre o redirecionamento das estruturas atuais: o Fundo
Estadual da Cultura e o Mecenato Estadual (que o pessoal aqui chama de CAP). Quais as
finalidades do Fundo Estadual da Cultura? Isso não está definido, mas precisa ser. O fundo
dever servir aos projetos que não têm fins lucrativos, bem como àqueles não atrativos ao
mercado; deve servir de suporte para implementar as obrigações estatais específicas para a
cultura, e realizar o equilíbrio daquelas artes que ficaram deficitárias em um determinado
momento. O problema do Fundo é que ele aqui é gerenciado como se fosse um
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complemento, uma extensão do Mecenato Estadual, e inclusive concorre, em termos de
captação, com o Mecenato Estadual. E o Fundo tem mais forças por representar um ente
público. Precisamos, sim, fortalecer o Fundo, agora precisamos encontrar outras formas
de fortalecimento, diferente da que atualmente existe, que é basicamente a concorrência
com o Mecenato Estadual. A criação do sistema já é uma grande força, mas precisamos
encontrar, entre nós, algumas idéias para fortalecer esse Fundo, porque ele é o mecanismo
que vai realizar o equilíbrio entre os diversos setores. Os recursos do Fundo como eu
acabei de dizer são compostos exclusivamente por recursos instáveis. O que é isso? Não se
tem certeza se os aportes que estão previstos para o Fundo Estadual de Cultura vão acontecer.
É dotação orçamentária (orçamento acontece ou não), é doação, é patrocínio, ou seja,
não existe qualquer recurso estável, diferentemente do Fundo Nacional da Cultura, que
tem recursos emanados, por exemplo, das loterias.
E quanto à concorrência do Fundo com o Mecenato, como reorganizar? Dotando-o de
recursos estáveis. Existem quatro possibilidades de eliminar essa concorrência de o Fundo
ir buscar dinheiro nas mesmas fontes em que vocês, produtores, vão buscar: 1ª
possibilidade: extinguir o Fundo - essa solução foi adotada pela Lei Municipal de Cultura
de Fortaleza, lei que eu cito só pra que vocês cobrem a efetivação dela. Olha como é
interessante: como no Estado o Fundo vai buscar dinheiro lá do Mecenato, a solução
encontrada por Fortaleza foi extinguir o Fundo, ou seja, extinguir com o mecanismo que
equilibra ou que tem a potência de equilibrar as deformações do mercado; 2ª possibilidade:
extinguir o Mecenato, como fez agora Recife, aliás, Pernambuco (lá pensaram assim:
esse negócio de ir atrás de captação de recursos é massacrante para o artista; vamos
continuar com a renúncia fiscal, mas jogando tudo no Fundo, e desse Fundo a gente tira
metade para os projetos do Estado e a outra metade só para projetos culturais dos
artistas. E quem define essa outra metade dos projetos dos artistas são os próprios
artistas. Acho que do jeito que a legislação deles está construída eles vão se arrepender
futuramente, mesmo porque vão distanciar o empresariado e a gente deve formar ou
persistir nessa idéia de formação de uma consciência de que o empresariado deve incentivar
a cultura, ou seja, acrescentar mais valores à cultura; e segundo porque lá a renúncia é
de 100%, ou seja, eles vão dar publicidade de graça da mesma forma; 3ª possibilidade:
extinguir simultaneamente o Fundo e o Mecenato; 4ª possibilidade: partilhar os recursos
entre o Fundo e o Mecenato (isso é o que proponho).
A gestão do FEC é, hoje em dia, feita por uma Comissão composta pelo Secretário da
Cultura, dois servidores da SECULT e um da SEFAZ. E como deve ser? Em obediência a
uma ordem constitucional a gerência é da SECULT, com a oitiva do Conselho da Cultura,
aquele que a gente desconfiava porque era exclusivo dos intelectuais, e que deve ser
reformulado para contemplar a todos.
Agora algumas questões operacionais. A questão do período de funcionamento: o nosso
Fundo Estadual de Cultura tem um funcionamento ininterrupto, ou seja, se chega um
projeto e já existem recursos disponíveis ele apóia. Porém, se chega um outro projeto, que
por questões previstas na lei deve ser considerado prioritário, este último não pode ser
apoiado porque o recurso já foi gasto. E como resolver o problema? No plano federal, eles
reúnem todos os projetos para o Fundo Nacional da Cultura, num certo período e deliberam
segundo não o critério da ordem de chegada, mas segundo o critério da prioridade,
seguindo a deliberação democrática emanada do órgão que contém todas as representações
da comunidade cultural. Pode-se questionar: e se todos forem igualmente prioritários?
Realiza-se, a partir do conjunto de verbas existentes no Fundo, uma partilha eqüânime.
Sinceramente, nesse aspecto de funcionamento temporal, tanto o Fundo como o Mecenato
cearenses, funcionam caoticamente, porque a apreciação dos projetos é ininterrupta e
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pelo critério cronológico. E como se propõe para o FEC? Deliberação planejada semestral,
trimestral, quadrimestral e apreciação dos projetos pelo mérito, segundo critérios legais.
O Mecenato como é? Atualmente ele contempla três mecanismos: doação, patrocínio e
investimento. A doação permite dedução de 100% e divulgação do nome do doador que
é mera mudança de endereço do pagamento do imposto, sem acréscimo algum, e o
Estado pagando a publicidade desse nome do incentivador. O único benefício que eu vejo
é o seguinte: o Estado pode dispor de algum dinheiro fora da previsão do orçamento, o
que é inclusive questionável. Qual é a regra? A dedução integral. Qual é a proposta? Seria
a dedução de 80% no caso da doação e publicidade. Agora os 20% de acréscimo por
parte do incentivador poderiam ser, para facilitar, não apenas em dinheiro, mas em bens e
serviços, ou seja, facilitar a vida de quem quer contribuir com a cultura. Por exemplo: se o
incentivador tem ônibus e o projeto precisa de ônibus, às vezes, ele não quer dar o
dinheiro, mas dar o bem ou o serviço. Eu acho que é uma enganação essa dedução de
100% a não ser que seja algo estratégico, como a legislação do audiovisual, implementada
por 10 anos para mostrar a viabilidade econômica do setor para os investidores. É o caso
de se perguntar: se os 100% são do Estado porque que ele não dá direto ao projeto? Se se
quer adotar essa sistemática (dedução integral) deve-se fazê-lo por causa de uma vantagem.
É possível ter-se uma dedução de 90% ou mesmo 100% em situações específicas e de
fomentos específicos e temporários.
Como é o patrocínio no mecenato cearense? Dedução de 80% mais publicidade. Eu acho
que deveria ser dedução de 75% mais publicidade e mais participação negociada, que
poderia ser, por exemplo, num festival de jazz, 25% das entradas.
E a renúncia fiscal no mecenato estadual, como é? Aqui é um problema imenso. A lei
estabeleceu que é 2% para o contribuinte. Interpretou-se literalmente da seguinte forma:
cada contribuinte pode renunciar 2% do seu ICMS. O decreto regulamentar reduziu a
dimensão dessa renúncia fiscal, o que gerou o pedido reiterado e quase unânime da classe
artística para que se atinja efetivamente os 2%. Talvez seja possível atingir, mas o ICMS é
um tributo muito complexo. Ele oferece muitas miragens para quem não é da área jurídica,
por exemplo, ele tem imposto que recebe e depois se a pessoa não negocia o Estado tem
que devolver. Fora isso, na situação da renúncia fiscal de 1995 para 2001 houve uma
alteração substancial em algo que foi uma exigência da cidadania, que é a lei de
responsabilidade fiscal. A lei de responsabilidade fiscal traz parâmetros para a renúncia
fiscal, parâmetros esses que toda vez que o Estado renuncia receber o tributo que ele tem
obrigação de receber, deve demonstrar uma compensação, e essa demonstração de
compensação é no plano técnico que a Secretaria da Fazenda tem que demonstrar. No
plano federal existe, por exemplo, a possibilidade de uma pessoa física fazer doação à
cultura e abater 80% do que dá para um projeto cultural quando for fazer a declaração do
ajuste do imposto de renda. Mas fora este limite pessoal, existe uma limitação geral, que
é fixada por decreto e geralmente corresponde a R$ 160 milhões para isso. Mas o Presidente
da República fixava R$ 160 milhões de renúncia fiscal, tendo em mira o número de
habitantes do país. É como se o governo renunciasse receber dinheiro para que cada
habitante utilizasse R$ 1 em atividades culturais. O Ceará poderia adotar um critério mais
ou menos semelhante, se isso for possível, dentro das limitações da Lei de Responsabilidade
Fiscal e ser até um pouco mais audaz. Seria uma unidade fiscal do Ceará por habitante do
Estado. Uma unidade destas equivale a R$ 1,60 e, para que não haja esgotamento da
possibilidade em um único momento do ano, fixar a renúncia fiscal por trimestre.
Penúltimo tópico: como é que tramitaríamos os projetos culturais? Haveria uma inversão
de fluxo. Hoje em dia você tem seu projeto aprovado e depois você sai para captar. A idéia
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seria que já se apresentasse à SECULT os projetos, toda a documentação hábil para ser
aprovado imediatamente, se ele estiver correto. Aquele problema de controlar a transparência,
como é que isso é possível? Eu refleti muito sobre isso e do jeito que está é impossível que
se saiba qual projeto entrou, em qual ordem, e saber se você está preterido ou não nesse
critério. Nesse plano da renúncia fiscal não é mais o critério do mérito, do equilíbrio, mas
o critério do pluralismo, ou seja, ninguém é suficientemente bom para dizer qual é a
atividade cultural a ser apoiada. O critério básico seria o de uma atuação entre iguais, seria
de ordem de chegada. Como controlar isso? Imagino o seguinte: a Secretaria de Cultura
receberia projetos a cada trimestre. Por exemplo: no fim do mês de janeiro, faria uma
divulgação dos projetos que foram recebidos para que todo mundo tivesse ciência dos
mesmos. No mês de fevereiro deliberaria sobre todos os projetos. Se houvesse uma
deliberação reprovando algum projeto, no mês de março aquele que teve o projeto não
aprovado teria prazo para recorrer ao Conselho da Cultura. Se, eventualmente, algum
projeto não fosse aprovado porque os recursos existentes já se esgotaram, ele ficaria na
fila, o primeiro da fila, para o trimestre subseqüente. A deliberação da SECULT sobre o
conjunto de todos os projetos seria em bloco e fundamentada. A idéia básica é essa.
Fora isso, no sistema estadual da cultura a gente precisaria redimensionar a lei para abrigar
a participação dos municípios ativamente - o que também é válido para o plano federal. O
que eu entendo por sistema da cultura? Sistema estadual da cultura é a conjunção de
esforços de poderes públicos das três esferas de poder, dos organismos internacionais, da
sociedade em geral, para o fomento de atividades culturais no Estado do Ceará.
Compreendendo celebração de avenças, criação de mecanismo de reconhecimento - que
se chama o selo da cultura - principalmente para entidades que apóiam a cultura,
independentemente de incentivo fiscal, além de integração das diferentes legislações e da
realização de outras atividades definidas pelo Conselho de Cultura, bem como a possibilidade
do repasse Fundo a Fundo em termos da cultura.
A sistemática estadual da cultura, na prática, seria encetada a partir da delegação de
competência dos municípios; apoio à criação de legislações locais; criação de banco de
projetos culturais; constantes atividades de aproximações com os financiadores e apoios
técnicos. Caso não haja a efetiva integração - porque uma integração sistêmica depende
da vontade da União e dos municípios - mesmo assim a Secretaria de Cultura deve se
instrumentalizar para otimizar a utilização de sua legislação e das outras legislações existentes,
favorecedoras da cultura.
Então, seria basicamente uma idéia sistemática e não apenas uma idéia centrada no foco
da renúncia fiscal. Tudo isso exige deliberação política e reconhecimento, na prática, de
que cultura é importante na vida e não apenas na retórica.
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OMinCeaEconomia
daCultura:
PerspectivaeDesafios
PauloMiguez
Assessor Especial do Ministério da Cultura
No campo da economia a invasão da cultura alcança várias dimensões e importância
crescente. Em inúmeros ramos da produção, como as indústrias do vestuário e moveleira,
a publicidade e a arquitetura, e até mesmo a indústria automobilística, artistas, estilistas e
designers se tornaram trabalhadores fundamentais pelo que agregam de valor simbólico
aos bens produzidos.
Por outro lado, a cultura, na forma de mercadoria, comparece como importante segmento
produtor e empregador com seus bens e serviços simbólico-culturais (indústrias culturais,
do entretenimento, do lazer e do turismo etc.), constituindo-se como um setor econômico
de proporções cada vez mais gigantescas - a tal ponto que alguns autores, inclusive,
começam a se referir a ele como o setor quaternário da economia.
É que os números e resultados apresentados por este setor econômico impressionam pela
magnitude e, particularmente, pela importância que vêm assumindo na economia de
vários países. Tomemos, por exemplo, o caso da poderosa economia norte-americana.
Dados divulgados pela revista Business Week indicam que, já no início da década de
1990, os americanos gastavam algo em torno de 340 bilhões de dólares em aluguel de
vídeos, visitas a parques temáticos e cassinos, entre outras atividades de recreação,
entretenimento e consumo cultural que compõem o que lá é chamado de entertainment
economy e que europeus e japoneses costumam chamar de Mickey Mouse economy. Na
mesma altura, a produção audiovisual norte-americana chegou a representar o segundo
lugar do produto nacional deste país, ficando abaixo apenas da indústria aeronáutica.
Dados mais recentemente compilados indicam que as indústrias de informação e diversão
foram o setor que mais rapidamente cresceu na economia norte-americana entre 1994 e
2000, ultrapassando, inclusive, os importantes setores financeiro e de serviços.
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Ainda que, obviamente, sem a mesma magnitude que a observada no caso norte-americano,
no Brasil, os produtos culturais conformam um mercado que já apresenta uma
expressividade digna de realce. Ao menos é o que revela a pesquisa realizada em 1998
pela Fundação João Pinheiro sobre a economia da cultura no país por encomenda do
Ministério da Cultura.
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No Canadá, por seu turno, quanto à participação no PIB, a economia da cultura só perde
para agricultura, alimentos e indústria automotiva e em termos de emprego ela fica atrás
apenas da agricultura.
A pesquisa, intitulada Diagnóstico dos Investimentos na Cultura no Brasil, cobrindo o
período compreendido entre 1985 e 1994 e com projeções para os três anos seguintes,
1995-97, teve como objetivo avaliar o impacto dos investimentos públicos e privados em
cultura na economia brasileira, portanto, os gastos diretamente efetuados em atividades
culturais pelos governos federal, estaduais e dos municípios das capitais, dos órgãos das
administrações indiretas, dessas e outras esferas governamentais, bem como das empresas
estatais e das empresas privadas de forma a permitir uma primeira aproximação números
do "PIB da cultura" no país, isto é, do valor adicionado à economia pelas atividades específicas
da área cultural.
Segundo projeções do estudo, a produção cultural brasileira movimentou, em 1997, cerca
de R$ 6,5 bilhões, algo equivalente a aproximadamente 1% do PIB brasileiro, percentual
ligeiramente abaixo de setores fundamentais como saúde e educação, cuja participação
no PIB alcançaram no período, respectivamente, 2,2% e 3,2%.
A pesquisa indica, também, números surpreendentes, por exemplo, quanto ao potencial
empregador da economia da cultura, que para cada R$ 1 milhão investidos chega a criar,
em média, 160 empregos diretos. Assim, de acordo com este estudo, em 1994 havia 510
mil pessoas empregadas na produção cultural brasileira, considerando-se todos os seus
setores e áreas. Esse contingente era 90% maior do que o empregado pelas atividades de
fabricação de equipamentos e material elétrico e eletrônico; 53% superior ao da indústria
automobilística, de autopeças e de fabricação de outros veículos e 78% superior do que o
empregado em serviços industriais de utilidade pública (energia elétrica, distribuição de
água e esgotos e equipamentos sanitários).
Outro dado interessante é que o setor, além de ser capaz de gerar empregos, paga um
salário médio que é o dobro da média do conjunto das atividades econômicas, no que
parece ser uma tendência constante do setor, pois já em 1980 o salário médio das atividades
culturais era 73% superior ao da média da economia.
O panorama traçado por esta pesquisa, mesmo tendo deixado de fora setores que, como
a publicidade e as indústrias da informação, do lazer e do turismo, ocupam espaços de
grande magnitude num mercado ampliado de bens simbólicos, dá conta de um quadro
promissor e dinâmico, alimentado, em particular, tanto pelas políticas e recursos públicos
quanto pela crescente e já expressiva participação do capital privado nas atividades culturais
estimulada, nos anos mais recentes, pela legislação de incentivo fiscal tanto federal quanto
estadual e municipal.
O quadro que pincelamos até aqui não deixa margem a dúvidas quanto à importância de que
se reveste, na sociedade contemporânea, as relações entre cultura e economia. Enfrentá-lo, na
perspectiva de sua potencialização, requer um esforço urgente e abrangente de atualização e
capacitação das instituições responsáveis pela cultura em nosso país, cabendo ao Estado,
neste processo, assumir o insubstituível papel de formulador e executor de políticas culturais
públicas de cunho verdadeiramente democrático.
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P
Reflexõessobre
apotencialidade
deformaçãodo
ClusterCultural
doCentroHistórico
deFortaleza
auloCésardeSousaBatista
Ph.D em Economia. Professor da UECE
RESUMO
O presente artigo trata da possibilidade de consolidação de Cluster Cultural no Centro
Histórico de Fortaleza, área que apresenta expressiva concentração de atividades culturais
e próprias da economia da cultura, associadas à sua condição histórica, à importância
simbólica para os fortalezenses e à sua riqueza patrimonial histórica e arquitetônica. Baseados
nas contribuições das teorias da economia cultural e das indústrias criativas, do
desenvolvimento local e da formação de aglomerados geográficos, os autores do artigo
especulam sobre as condições necessárias à consolidação do Cluster Cultural.
Palavras-chaves: cluster cultural, economia cultural, indústria criativa, desenvolvimento
local e política pública.
INTRODUÇÃO
O presente artigo foi apresentado no Seminário Cultura XXI - I Fórum de Cooperação
Cultural Internacional, promovido pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, e se
refere à análise da possibilidade de consolidação de um Cluster Cultural no Centro Histórico
de Fortaleza.
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Metodologicamente, o artigo é um estudo exploratório sobre o tema, baseado em revisão
bibliográfica e na observação direta da dinâmica da área onde se desenvolve o cluster.
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Contempla ainda uma reflexão sobre os elementos essenciais de uma política pública
destinada a promover essa consolidação, esperando com isso contribuir para o
desenvolvimento da cidade.
O desenvolvimento do trabalho contempla quatro capítulos. O primeiro apresenta os
conceitos da economia cultural e das indústrias criativas e aborda a natureza das atividades
inerentes a estas novas áreas da economia moderna e seu impacto sobre o desenvolvimento
de um território em particular. O capítulo segundo trata do desenvolvimento local, como
um fenômeno endógeno, que pode ser acionado pela dinâmica das atividades criativas. O
capítulo ainda realça a importância de estruturas flexíveis para o processo de desenvolvimento,
conduzindo à reflexão sobre a formação de clusters, assunto tratado no capítulo terceiro.
O capítulo três explica a natureza dos clusters e apresenta os diversos estágios de formação
dos clusters. O capítulo quatro trata da possibilidade de o poder público poder induzir a
formação de clusters, explicitando os elementos essenciais da política pública no caso do
Centro Histórico de Fortaleza.
1. INDÚSTRIAS CRIA
TIV
AS E ECONOMIA DA CUL
TURA
CRIATIV
TIVAS
CULTURA
Caves (2000), Florida (2002) e Howkins (2001) acreditam que as Indústrias Criativas têm
potencial para movimentar a economia de forma significativa através da geração de uma
cadeia produtiva favorável à criação de empregos e redistribuição de renda. Um dos aspectos
mais importantes relacionados a esse conceito é a percepção de que as sociedades da
informação que privilegiam a indústria do entretenimento, do lazer e do mercado de bens
simbólicos utilizam justamente a criatividade como fator estratégico de desenvolvimento.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a Economia Criativa é um setor que já
é responsável por 10% do PIB mundial e cresce 7% ao ano, representando uma estratégia
fundamental para promover o desenvolvimento sustentável e impulsionar a inclusão social.
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as Indústrias
Criativas do país são responsáveis por 1% do PIB brasileiro. De forma geral, o valor econômico
da atividade empresarial dessas empresas está ligado ao conteúdo cultural e origina-se da
criatividade e do talento, que constituem recursos próprios ao ser humano e que estão
presentes em qualquer sociedade.
A Economia Criativa é o conceito apropriado para designar um segmento que engloba as
Indústrias Criativas e as atividades culturais como elemento especial. Compreende um
setor complexo onde ocorre a produção, circulação e consumo de bens e serviços simbólicos,
conhecidos de forma genérica como bens culturais. A expectativa é de que ela possa
propiciar o desenvolvimento humano e não mero crescimento econômico. Por sua vez, a
principal característica das Indústrias Criativas é a geração de propriedade intelectual, estando
mais focada na produção do que propriamente na distribuição e consumo da produção.
Segundo Caves (2000), a criatividade se destaca por ser um elemento muito importante
no processo produtivo de todos os bens e serviços e é típico das Indústrias Criativas. O
conceito de Indústrias Criativas pode até variar de país para país, mas definitivamente
abrange aquelas indústrias em que a criatividade é obrigatoriamente incorporada no âmago
do negócio. Dessa forma, infere-se que este segmento seja composto, simultaneamente,
de cultura, arte, ciência e negócio.
Na visão de Howkins (2001), a criatividade pode ser entendida como a capacidade de
produção manifestada a partir da originalidade inventiva e inovativa. A criatividade baseada
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na capacidade inventiva pode até se manifestar de forma individual, sem necessariamente
oferecer algum tipo de impacto econômico. Por sua vez, a capacidade inovativa decorre
da criatividade, levando-a a uma posição de destaque no momento em que um impacto
econômico significativo pode ser sentido no ambiente interno.
O poder econômico da criatividade tem despertado o interesse nas nações mais desenvolvidas
como o Reino Unido e a Austrália, berços das Indústrias Criativas, e que são casos que podem
e devem ser tomados como benchmark. Suas experiências ensinam que a criatividade tem se
tornado matéria-prima de uma nova indústria que promete trazer grandes mudanças nas
formas tradicionais em que a relação entre o valor econômico e os bens culturais é concebida.
As Indústrias Criativas são formadas a partir da convergência conceitual e prática entre as
artes criativas e tradicionais, como a joalheria e a dança; as indústrias culturais, os veículos
de massa, como a televisão, o cinema e o rádio; e as novas tecnologias de informação de
base eletrônica, como a Internet, os softwares e o DVD.
Sob a ótica de Florida (2002), a Economia Criativa é formada por pessoas talentosas que
compõem uma classe criativa. Esta classe engloba cientistas, engenheiros, músicos,
arquitetos, artistas, gestores e outros tipos de trabalhadores que lidam com tarefas
essencialmente criativas. Estes devem apostar no talento aliado à inovação e tecnologia,
de modo a ter como resultado final um crescimento econômico. Os aspectos educacionais
e sócio-culturais contribuem para atrair talentos relacionados a esse novo perfil da economia,
onde os profissionais da classe criativa oferecem produtos e serviços baseados no
conhecimento e na cultura.
O talento criativo e o empreendedorismo podem surgir nos núcleos criativos e são
diretamente fomentados pelas estruturas sociais e culturais de cada lugar. A relação entre
capital criativo, qualidade de vida e competitividade pode formatar uma conjuntura social
diferenciada e, justamente pela combinação destes três fatores, Caves (2000) aponta as
Indústrias Criativas como um fator econômico de grande potencial a ser considerado na
questão do desenvolvimento econômico das regiões.
Cada vez mais, a criatividade é reconhecida como um ativo estratégico para o
desenvolvimento econômico, e que pode determinar o sucesso de uma economia global
em permanente mudança. De fato, as Indústrias Criativas têm potencial de crescimento e
podem ser utilizadas para dotar as regiões de uma maior capacidade de criação de novas
oportunidades, elemento propulsor do progresso econômico.
2. DESENVOL
VIMENTO LLOCAL
OCAL
DESENVOLVIMENTO
O desenvolvimento pode ser entendido como a junção dos esforços da população e do
governo em busca de melhorias nas condições sociais, econômicas e culturais de uma
comunidade, rumo ao progresso social. Neste contexto, segundo a concepção de Dowbor
(1998), comunidades fortemente estruturadas podem contribuir para a constituição de
um lastro de sociedade organizada capaz de viabilizar as transformações necessárias nos
níveis mais amplos.
De acordo com Buarque (2002), o desenvolvimento local de uma região pode ser
conceituado como um processo endógeno de mudança, que leva ao dinamismo da
economia e à melhoria da qualidade de vida de seus habitantes. Sua fonte propulsora são
as energias locais, liberadas pela mobilização de atores internos, tendo como conseqüência
o desenvolvimento de potencialidades locais e o aumento de oportunidades sociais, além
da promoção da competitividade da economia local, no contexto de um país inserido na
globalização mundial.
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Com o objetivo de aproveitar as potencialidades e, de outra parte, superar os pontos
críticos que emperram o processo de desenvolvimento, Carvalho Filho (1999) sugere um
conjunto de princípios para servirem de orientação às ações e iniciativas locais. São eles:
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Apenas com uma economia eficiente e competitiva, capaz de gerar riqueza local sustentável,
é que se pode falar, efetivamente em desenvolvimento local, reduzindo a histórica
dependência de transferência de rendas geradas em outros espaços. Dessa forma, o
desenvolvimento local resulta da interação e sinergia entre a qualidade de vida da população
local, a eficiência econômica e a gestão pública eficiente.
a) aproveitamento das potencialidades e vantagens competitivas locais;
b) melhoria da qualidade de vida;
c) conservação ambiental;
d) democratização do poder e participação social;
e) descentralização;
f) administração local; e
g) integração dos diversos setores de desenvolvimento, combinando eficiência produtiva
com igualdade social.
Através de uma abordagem mais abrangente, Farrel et al (1999), concebe a viabilização
do processo de desenvolvimento local por intermédio da valorização do capital territorial
que, na visão dos autores, representa aquilo que constitui a riqueza do território como:
atividades, paisagem, patrimônio, etc. Neste contexto, são propostos oito componenteschaves do capital territorial que devem ser trabalhados no processo de desenvolvimento
local. São eles:
a) recursos físicos e a sua gestão - em particular os recursos naturais (relevo, subsolo,
solo, vegetação, etc.), equipamentos e infra-estruturas, além do patrimônio histórico
e arquitetônico;
b) a cultura e a identidade do território - correspondem aos valores comumente
partilhados pelos atores do território, seus interesses, sua mentalidade, suas formas
de reconhecimento, etc.;
c) recursos humanos - as pessoas que vivem no território, ou que vêm viver e os que
partem. As características demográficas da população e a sua estruturação social;
d) o saber-fazer implícito/explícito e as competências - assim como o conhecimento
das tecnologias e a capacidade de busca de desenvolvimento;
e) as instituições e administrações locais - as regras políticas do jogo, os atores coletivos
a gestão do território, além dos recursos financeiros e sua gestão;
f) as atividades e empresas - a sua maior o menor concentração geográfica e a sua
estruturação;
g) os mercados e as relações externas - designadamente a sua integração nos diferentes
mercados, redes de troca, de promoção, etc.;
h) a imagem e a percepção do território - tanto internas como externas.
A análise aproximada de cada componente proposto possibilita a construção do perfil do
território, tornando mais fácil a identificação dos recursos disponíveis e, de outra parte,
dos desequilíbrios sobre os quais se deve agir para alcançar o desenvolvimento local.
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Nessa perspectiva, o conceito de desenvolvimento endógeno, por sua vez, perpassa o
conceito de local tendo em vista que o desenvolvimento propriamente dito é proveniente
do sistema econômico social, por fatores próprios e internos.
Na visão de Barquero (2002), a Teoria do Desenvolvimento Endógeno determina que os
sistemas produtivos locais constituem formas de organização que tornam eficientes os
processos de desenvolvimento econômico e considera que cada território tem uma trajetória
econômica própria e, ainda, que nem todos os territórios se comportam, sempre, de
modo inovador.
A teoria em questão refere-se a territórios inteligentes, a sistemas produtivos imersos em
entornos que permitem formar coalizões entre atores locais, que impulsionam a inovação
e remetem a mudanças estruturais e ao desenvolvimento da região. E para satisfazer as
necessidades e as demandas coletivas, em nível local, o desenvolvimento endógeno se
orienta através da cultura, dos valores, das vocações produtivas locais, dentre outros aspectos.
3. OS CLUSTERS E SEUS ESTÁGIOS DE FORMAÇÃO
Neste contexto, para que se possa atingir o desenvolvimento local sustentável são
necessárias sólidas estruturas locais, democratizadas e participativas, e, sobretudo, respeito
às diferenças culturais de cada município ou comunidade.
A experiência da Emilia Romagna, na Itália, e do Vale do Silício, nos Estados Unidos, para
citar duas experiências internacionais de reconhecida significância, demonstram que os
Clusters podem ser uma dessas estruturas capazes de liberar as energias locais capazes de
por em movimento o processo endógeno de desenvolvimento.
Os clusters, conforme Porter (1999) e Amorim (1998), podem ser entendidos como
aglomerados de atividades produtivas afins, localizadas em determinada área geográfica
e desenvolvidas por empresas autônomas de pequeno, médio e grande portes, intensamente
articuladas, constituindo ambiente de negócios onde prevalecem relações de recíproca
confiança entre as diferentes partes envolvidas. Tais empresas são apoiadas por instituições
provedoras de recursos humanos, de informações, de recursos financeiros, de infraestrutura, de pesquisas e tecnologias, de apoio técnico etc.
Além disso, os clusters de empresas e instituições independentes e informalmente
vinculadas representam um modelo organizacional robusto, que oferece vantagens em
fatores como eficiência e flexibilidade.
Porter (1999:2) cita como exemplo desse tipo de arranjo produtivo local o Cluster de
vinho da Califórnia, que envolve 680 empresas vinícolas, alguns milhares de produtores
de uvas, grande número de setores de apoio à produção de uva e vinho, além de várias
instituições, como o programa de vinicultura e enologia da Universidade da Califórnia, o
Instituto do Vinho e a Comissão Especial da Assembléia Legislativa da Califórnia.
Amorim (1998) ressalta especialmente os clusters de pequenas empresas, destacando-os
como importantes e adequados instrumento de promoção do desenvolvimento local.
A idéia básica que fundamenta a formação de clusters é a de que nenhuma empresa
pode ser competitiva isoladamente. O que acontece dentro da unidade produtiva é
importante, mas está comprovado que o ambiente empresarial no qual a firma está
inserida (o cluster) também desempenha papel vital para a competitividade.
Meyer-Stamer (2002), depois de ressaltar o grande potencial dos clusters para a criação
de vantagens competitivas, a partir de fatores dinâmicos locais, observa que tais fatores
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podem ser de natureza passiva, próprias da aglomeração (disponibilidade de mão de obra
qualificada, suprimento de matérias-primas, insumos e equipamentos, facilidades de vendas
pela atração dos potenciais compradores em face da concentração e variedade da oferta
etc) e ativa, resultantes dos processos colaborativos entre os diferentes atores (iniciativa
privada, governo), como a instalação de uma escola técnica, de um laboratório para
certificação, uma agência de promoção de exportações etc.
Segundo Amorim (1998), de acordo com a densidade de empresas interconectadas
instaladas na área, voltadas para a atividade fim, e o grau de cooperação existente entre
elas, os clusters produtivos passam por diferentes estágios de evolução, ao longo do
processo de formação (Figura 1).
O reconhecimento do estágio de sua formação é, portanto, tarefa indispensável para o
desenvolvimento de qualquer política pública voltada ao seu fortalecimento.
4. A FORMAÇÃO DO CLUSTER DO CENTRO HISTÓRICO DE FORTALEZA
Levando em conta as contribuições de Amorim (1998) e Farrel et al (1999), pode-se inferir
que o Centro Histórico de Fortaleza, e em particular, a região abaixo delimitada corresponde
a um território com todas as características de um cluster em formação:
a) Leste: Praia de Iracema;
b) Oeste: Estação João Felipe;
c) Norte: Oceano Atlântico;
d) Sul: Rua Castro e Silva
D e fato, a área apresenta a maior concentração de bens patrimoniais e arquitetônicos e
de atividades culturais e da indústria criativa do Estado, reunindo cultura, arte e negócios.
Sem a preocupação de ser exaustivo, mas a título ilustrativo, o quadro a seguir lista os
principais tipos de bens culturais de valor patrimonial, cultural e de lazer que se encontram
na área.
O Centro Histórico de Fortaleza, além do mais, tem grande simbologia para os cearenses
e, em particular, para os fortalezenses, uma vez que representa o berço do nascimento da
cidade e se constitui no espaço mais democrático, e o patrimônio de todos, em uma
cidade de grandes diferenças sócio-econômicas a leste e oeste.
Há, contudo, a ausência de uma política pública que induza a consolidação desse Cluster,
pelo incentivo e articulação das energias locais já atuantes. Em linha com a teoria dos
aglomerados, alguns elementos básicos podem ser sugeridos para a definição do conteúdo
desta política:
1) articular espaço institucional para uma participação continuada e democrática dos
atores locais;
2) criar ou redefinir o papel das instituições locais na promoção do desenvolvimento
local;
3) definir plano de desenvolvimento local, através de processo participativo, e que
contemple as diversas dimensões do processo, tais como a sócio-econômica, a
populacional, a urbanística, a ambiental e a da segurança;
4) entendimento em torno ao assunto entre os poderes municipal e estadual.
Quadro 1 - Lista dos Bens Culturais do Centro Histórico de Fortaleza
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Tipos de Bens Descrição
Patrimônios Arquitetônicos: Ponte dos Ingleses, Ponte Metálica, Conjunto arquitetônico
da Praia de Iracema, Prédio da Alfândega, Conjunto de Prédios Históricos na Av. Pessoa
Anta, Seminário da Prainha, Praça do Cristo Redentor, Conjunto de Prédios da Secretaria da
Fazenda, Paço Municipal, Prédio que pertenceu à COELCE, Sede da Associação Comercial,
Forte de Nossa Senhora da Assunção, Praça do Passeio Público, Prédio da Santa Casa de
Misericórdia, Prédio da Estação João Felipe e Galpões da REFESA.
Mercados e Equipamentos de Cultura e Lazer: Teatro São José, Prédio do Velho Mercado
Central, Centro Dragão do Mar, Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel, Novo
Mercado Central, EMCETUR (antiga cadeia pública), Pirata Bar e outras casas de espetáculo,
restaurantes, ateliês e lojas de artesanato da Praia de Iracema, Rua Dr. João Moreira, entorno
do Centro Dragão do Mar e comércio da av. Monsenhor Tabosa.
Fonte: pesquisa dos autores
CONCLUSÃO
A análise das teorias associadas à economia da cultura, às indústrias criativas, ao
desenvolvimento local e, em particular, a dos aglomerados geográficos, ou Clusters,
favorecem a possibilidade de que seja consolidado um Cluster Cultural no Centro Histórico
de Fortaleza. Este cluster basear-se-ia no patrimônio arquitetônico e histórico local e na
concentração expressiva de atividades culturais, em todas as 7 áreas da cultura, nos termos
do Plano Estadual da Cultura, beneficiando-se ainda de um conjunto significante de
equipamentos culturais e de lazer, de natureza pública e privada.
A consolidação do cluster, contudo, carece de maior iniciativa do poder público, a partir
de cooperação entre os poderes municipal e estadual, com vistas à articulação dos atores
locais. A nova política pública deveria ter caráter mais abrangente, continuada, articulada
e democrática do que as iniciativas públicas até então tomadas, o que requer um pacto
dos diversos atores em torno de um plano exeqüível de desenvolvimento local.
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
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Fortaleza: Banco do Nordeste, 1998.
BARQUERO, Antonio V. Desarrollo local. Una estrategia de creación de empleo. Madrid,
ed. Pirâmide, 1988.
_____ Desenvolvimento Endógeno em Tempos de Globalização. Trad. Ricardo Brinco.
Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2001.
BUARQUE, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável. Metodologia e
Planejamento. Rio de Janeiro:Garamond, 2002.
CARVALHO Filho. M. V. de. Assessoria ao processo de desenvolvimento local. Natal:
Projeto de cooperação técnica - INCRA/IICA, abril, 1999.
CAVES, Richard. Creative Industries. Contracts betweem arts and commerce. Harvard
University Press, 2000.
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FLORIDA, Richard. The Rise of the creative class. Perseus Book Groups, 2002
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FARRELL, G.; THIRION, S.; SOTO, P. DURIEUX, E. FRANÇOIS, M. A competitividade
territorial: conceber uma estratégia de desenvolvimento territorial à luz da experiência
LEADER. In: OBSERVATÓRIO EUROPEU LEADER: inovação em meio rural. Caderno nº6,
fascículo nº1, Observatório Europeu LEADER: dezembro de 1999.
HOWKINGS, John. The Creative Economy:how people make money from ideas. Penguin
Books, 2001.
MEYER-STAMER, Jorge. Algumas observações sobre clusters em Santa Catarina. [on
line]. S/d. [cited 09/set/2002]. http://www.meyer-stamer.de/2000/cluster-sc.htm.
PORTER, Michael E. Vantagem competitiva: criando e sustentando um desempenho
superior. Rio de Janeiro, Campus, Elizabeth Maria de Pinho Braga, 1990.
_______. Cluster e competitividade. HSM - Management, São Paulo, Ano 3: nº 15: 100110, 1999.
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Apresentação
A rápida assimilação de novos traços culturais incorpora ao nosso
vocabulário conceitos como "transcultura". Uma manifestação ou idéia
cultural é rapidamente difundida em todos os recantos de todos os países.
O mundo é uma aldeia global. Os indivíduos e grupos são portadores de
várias identidades. A diversidade cultural é a marca dessa nova sociedade.
A valorização do regional surge como possibilidade de enraizamento e
difusão da identidade cultural de um povo. As culturas regionais buscam
elementos de permanência para efetuarem suas trocas sem o risco da
homogeneização, o que empobreceria a cultura universal.
O Fórum de Cooperação Cultural Internacional visa criar macroáreas de
diálogo na busca de alternativas de trocas culturais que sejam
enriquecedoras para todos os países envolvidos. Esse Encontro tem por
finalidade discutir as políticas culturais, percebendo como os diversos
países desenvolvem as suas políticas e identificando as oportunidades
de parcerias e intercâmbios. Com base nos resultados deste Encontro,
poderemos antecipar cenários e suas respectivas repercussões.
O evento pretende criar uma ambiência perfeita para a reunião de
representantes de Embaixadas e entidades de cooperação internacional
nas diversas áreas culturais, com o objetivo de discutir políticas
culturais e de incentivar o intercâmbio e a promoção de parcerias
com os países participantes.
Objetiva ainda:
• Identificar possibilidades de cooperação dos países participantes com
organismos promotores da cultura no Estado do Ceará e em outros
Estados brasileiros.
• Conhecer os processos do fazer cultural em outros países.
• Conhecer experiências de políticas culturais de outros países.
• Conhecer modelos de parcerias entre países na área da cultura.
• Alavancar parcerias e recursos junto a entidades internacionais para
efetivar projetos culturais.
• Divulgar a riqueza da cultura cearense.
• Aproveitar o investimento realizado pelo Governo do Estado em
equipamentos culturais para promover futuros eventos culturais
com a presença de representantes de outros países.
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AberturaOficial
LúcioAlcântara
Governador do Estado do Ceará
Excelentíssimo Senhor Ministro Gilberto Gil, cidadão do mundo, homem de arte, régua e
compasso e;
Excelentíssimos Senhores Embaixadores das nações amigas que tão gentilmente acolheram
nosso convite;
Excelentíssimas Senhoras e Senhores adidos culturais e encarregados de assuntos culturais
junto às representações diplomáticas acreditadas em Brasília;
Senhores Cônsules honorários em Fortaleza,
Autoridades Estaduais a quem saúdo na pessoa da Secretária da Cultura Cláudia Leitão,
articuladora e organizadora deste Fórum,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
É com a maior satisfação que inauguro este primeiro Fórum de Cooperação Cultural
Internacional e, em nome de todos os cearenses, dou as boas-vindas aos representantes
dos diversos países que aqui vieram emprestar o seu testemunho de amizade e alargar
iniciativas de cooperação.
Quisemos que esta sessão de abertura tivesse lugar neste palco tão carregado de
significados, tão evocativo do encontro de culturas. Este teatro-jardim, uma pequena jóia
da arquitetura brasileira, é um belo exemplo da assimilação da engenhosidade dos escoceses
pela criatividade dos cearenses. Justaposta a uma construção de estilo eclético, esta estrutura
de ferro, fundida em Glasgow, foi plantada, aqui no litoral do semi-árido, para colher a
brisa marinha e oferecer uma rara mescla de beleza, conforto, ventilação e acústica.
O Theatro homenageia José de Alencar, o escritor maior de todos os cearenses, cuja obra
principal registra o encontro das culturas portuguesa e ameríndia, na representação do
romance entre o guerreiro branco português e a índia Iracema. A literatura de Alencar
estabelece o mito fundador da cearensidade, mas também, com seus romances regionais,
chama a atenção para a diversidade cultural do Brasil e suas múltiplas heranças. De certa
forma, os temas que inspiram suas narrativas são os mesmos que nos animaram a realizar
este seminário: identidade, diferença, interação e alteridade. Culturas.
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Fórum de Cooperação Cultural Internacional
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A discussão sobre cooperação cultural internacional suscita os temas perenes da singularidade
étnica, do pluralismo cultural e do universalismo de valores, que terão, por sua vez, um
peso significativo na equação que estabelece as relações entre cultura e desenvolvimento.
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O objetivo deste fórum é, pois, favorecer o diálogo propiciador de trocas culturais relevantes
entre todos os países envolvidos, a partir da discussão das diferentes alternativas de política
cultural e do exame de oportunidades de parceria e intercâmbio. O Ceará quer promover
um encontro de culturas para fomentar ainda mais a diversidade criativa propugnada pela
UNESCO, através da Comissão Mundial da Cultura e do Desenvolvimento.
Vivemos em um mundo de diversidade cultural em que cerca de dez mil sociedades
partilham o território de quase duzentos países. Todos os povos têm direito a uma identidade
étnica, têm direito a escolher um modo particular de se relacionar com a natureza, a
organizar a seu gosto sua vida social, a eleger seus deuses e a grifar seus símbolos.
Mas o direito a um modo singular de existência está hoje condicionado por valores universais
que nenhuma cultura pode desconhecer. O principal deles é o respeito à diferença. Nenhum
grupo étnico, ainda que majoritário, pode se sentir no direito de esmagar um outro. E
nenhuma minoria pode impor seu modo de vida a uma maioria. Somente o respeito aos
direitos humanos, a tolerância com relação à diversidade cultural e a plena aceitação dos
valores democráticos podem assegurar o pluralismo e todo o seu potencial de criatividade.
Independente da situação de raça, gênero, faixa etária, o ser humano tem direito à vida, à
integridade física e à liberdade. Em nome da cultura de um povo, não se pode justificar a
discriminação ou o sacrifício do grupo estigmatizado, seja da mulher, do trabalhador, da
criança ou do idoso.
Por outro lado, inúmeros preconceitos ainda definem a natureza das relações entre cultura
e desenvolvimento. Durante boa parte dos séculos dezenove e vinte, e mesmo muito
recentemente, os tenentes do progresso, os teóricos da modernização e os novos
conservadores, reivindicaram a existência de obstáculos culturais ao crescimento econômico,
sugerindo que o atraso de alguns países decorre de determinadas características psicossociais
das populações periféricas. Era uma questão de atavismo. Para superá-lo, cumpria aos
modernizadores buscar transferir, ainda que "a descargas de canhão e golpes de baioneta",
as instituições e os valores da modernidade e da cultura ocidental, de sorte que os povos
atrasados pudessem seguir a trajetória de crescimento dos países desenvolvidos.
Certamente, existem fatores culturais e socioculturais que influenciam o desenvolvimento.
Também é certo que o desenvolvimento econômico tem um impacto significativo sobre a
cultura. Mas é forçoso reconhecer que o grande obstáculo ao crescimento econômico é
justamente a falta de consideração pela cultura local como elemento balizador de um
projeto de desenvolvimento. O desenvolvimento não é uma via de mão única. São variados
os caminhos que permitem aglutinar o meio físico, as tradições locais e as instituições do
mercado em torno de uma via particular para o crescimento. A Ásia nos oferece hoje
inúmeros exemplos nessa direção.
A cultura local permite reconhecer e aglutinar as energias criativas e extraordinárias de uma
comunidade em torno da construção de seu destino. É a única poupança de
institucionalidade, de confiança e de apoio mútuo capaz de servir à formação do capital
social necessário ao progresso econômico. O desenvolvimento culturalmente inclusivo ou
não será sustentável.
A iniciativa de realizar este fórum parte da constatação de que as relações internacionais
do mundo contemporâneo, ditadas pelas dinâmicas da integração regional e da
mundialização, vêm transformando, de forma significativa, a ação externa dos estados
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nacionais. Para concretizá-lo, tivemos o apoio incondicional do Ministério da Cultura e do
Ministério das Relações Exteriores, aqui representado por Antenor Gorgea, do Departamento
Cultural do Itamaraty. Novos atores, agentes e processos puseram em xeque as visões
unitárias do Estado e suas realizações no plano externo. O doméstico e o internacional
fundiram-se de forma inexorável. Pensadas estrategicamente, cidades e regiões buscam
uma interação direta com o mundo global. A fronteira entre os assuntos de interesse
interno e a agenda externa dos Estados não é mais percebida por grande parte das sociedades.
A desparoquialização das regiões, dos estados da Federação e dos municípios é uma
conseqüência natural e positiva das mudanças nas relações internacionais. Da economia à
cultura, passando pela arquitetura do poder político mundial, as modificações operadas
em escala global vêm criando a necessidade de uma maior inserção dos governos
subnacionais na construção de novas possibilidades de cooperação internacional.
No entanto, esses mesmos objetivos podem ser mais facilmente alcançados se forem
reconhecidas e valorizadas as iniciativas dos governos subnacionais no plano da cooperação
internacional do país. Sem ferir as prerrogativas do governo federal e sem comprometer a
unidade de propósitos, trata-se de federalizar o intercâmbio e a cooperação técnica,
econômica, científica e cultural.
Em favor do interesse nacional e do interesse da sua própria comunidade, o Ceará resolveu
colocar em primeiro plano sua integração estratégica no cenário internacional. Desde o
primeiro dia do meu governo, temos procurado explorar a posição privilegiada que ocupamos,
dos pontos de vista geográfico, econômico e político, para explorar as enormes possibilidades
de intercâmbio que se apresentam nos campos comercial, turístico e cultural.
O Ceará é uma economia dinâmica, de vocação exportadora, com diversificada pauta de
produtos primários e semimanufaturados, que tem investido intensamente para agregar
valor a seus recursos e características naturais. Exemplo disso é o complexo industrial do
Pecém, com porto off-shore, retroporto, gasoduto, geração de energia elétrica e toda
infra-estrutura para a instalação de novas indústrias.
Rico na sua diversidade, o Ceará não é apenas um oceano de esmeraldas líquidas e uma
vastidão de praias ensombradas de coqueiros. Na própria área do turismo ainda estão por
ter devidamente exploradas as enormes potencialidades de atração do interior do Estado.
Berço da chamada civilização do couro, as pequenas e médias cidades e a zona rural do
Ceará têm vocação para o turismo cultural. Além de suas belezas naturais, esses sítios
oferecem uma gama de obras do patrimônio edificado, de manifestações da religiosidade
popular, de folguedos, de artesanato e de culinária regional. E, sem dúvida, uma de suas
grandes vocações é o turismo cultural.
Por todas essas razões, a cultura é a grande prioridade do meu governo, transformada em
letra de forma, em política pública e em ação concentrada de inúmeros agentes. Uma
leitura atenta do plano de governo revela que a cultura perpassa todos os quatro eixos da
estratégia governamental - o Ceará empreendedor; o Ceará da vida melhor; o Ceará da
integração econômica, social e regional e o Ceará do Estado a serviço do cidadão, como,
aliás, está demonstrado neste documento. As ações dele decorrentes foram concebidas
sob o signo da cearensidade, palavra que denota nossas preocupações com a identidade,
a diversidade e a auto-estima dos cearenses.
Matriz da nossa identidade, a cultura é hoje importante espaço de geração de renda e
emprego, de melhoria da qualidade de vida, de promoção de vocações e potencialidades
regionais e mudança nas relações Estado-Sociedade. É o solo fértil para a inclusão social,
permitindo ampliar liberdades, superar a pobreza política e valorizar a cidadania.
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Nosso Plano Estadual de Cultura revela uma compreensão clara da importância da economia
da cultura. Sem descurar da dimensão propriamente simbólica, engaja-se no desafio de
aumentar a renda dos cearenses, através da articulação e da potencialização dos arranjos
produtivos da cultura. Seu amplo leque de diretrizes, programas e ações contempla tanto a
criação, a interpretação como a execução, a produção, a distribuição, o consumo e o
registro de bens simbólicos; tanto a preservação de nosso patrimônio material e imaterial,
como a criação de redes estaduais de museus, bibliotecas, teatros e arquivos.
Agradeço o comparecimento de todas as delegações diplomáticas que nos honram com
sua presença. São, desde já, interlocutores privilegiados em nosso esforço de cooperação.
Também sou reconhecido aos representantes das instituições nacionais e internacionais
que vêm trazer sua contribuição a este debate. Aos intelectuais daqui e d'alhures, meu
muito obrigado. Espero que as exposições e debates que aqui terão lugar, marcados pelo
brilho de seus participantes, sejam muito produtivos e possam contribuir para a atualização
da agenda de cooperação cultural internacional.
Assim, desejo a todos uma estadia proveitosa, tranqüila e agradável em Fortaleza e que
este seminário produza todos os frutos para os quais foi idealizado.
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PolíticaCultural
eCooperação
Internacional
noCeará
CláudiaLeitão
Secretária da Cultura do Estado do Ceará. Doutora em Antropologia e Sociologia
Comparada pela Sorbonne/Paris V. Professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Todos nós que trabalhamos com cultura sabemos que o Estado brasileiro subestimou o
seu papel de líder e articulador no campo da cultura. Graças à sua dimensão continental,
à sua diversidade cultural, ao seu exemplo de convivência entre culturas, o Brasil poderia
ter liderado a reflexão planetária sobre o papel estratégico da cultura na construção das
identidades, na inclusão social, na construção de uma cultura de solidariedade entre
povos. Lamentavelmente isto não ocorreu. Pelo contrário. Historicamente os governos
não compreenderam o peso estratégico da cultura brasileira para o nosso desenvolvimento.
O resultado disso é que durante muitas décadas o país abdicou do seu papel de realizador
de uma política cultural capaz de criar instrumentos de cooperação e de troca de
experiências entre municípios, estados, regiões e países. Somos um grande "caldeirão"
cultural, somos o repositório de memórias de outros continentes, mas nunca assumimos
o protagonismo cultural como um instrumento político, como uma estratégia de
desenvolvimento local e regional.
O que tem feito o Brasil para fomentar o seu desenvolvimento através da cultura? Muito
pouco ou quase nada, pois restringiu sua ação nesta área às leis de incentivo fiscal. Assim,
acabou abdicando de seu papel de promotor de políticas capazes de fomentar a produção
cultural, de democratizar o acesso a bens e produtos culturais por parte de todos os
brasileiros. Do mesmo modo, os estados da federação brasileira também foram omissos
no que concerne à formulação de políticas culturais. Assim como o Ministério da Cultura
perdeu ao longo dos anos importância técnica, política e orçamentária, também em
muitos estados as secretarias ou fundações culturais tornaram-se organizações secundárias.
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Este quadro é grave e merece nossa reflexão. Em um país reconhecido pela sua riqueza e
diversidade cultural, o fomento à cultura foi delegado aos departamentos de marketing e
comunicação de empresas, os quais, evidentemente, não tinham interesse em proteger
ou difundir produtos culturais considerados de "pouca visibilidade" ou de pouco retorno
para estas empresas. O resultado disto é que na última década o patrimônio cultural
brasileiro dilapidou-se, tombou literalmente diante dos nossos olhos, perdemos acervos,
a memória dos nossos saberes e fazeres, enfim, empobrecemos como nação, pois
empalidecemos os traços de nossa identidade brasileira.
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Em alguns casos, chegou-se a retroceder nas conquistas relativas à gestão pública da
cultura, pois algumas secretarias tornaram-se meros departamentos ou apêndices de
secretarias de educação.
Hoje acreditamos, a partir do discurso do nosso Ministro da Cultura, Gilberto Gil, na
formulação de políticas públicas que permitirão um novo fazer cultural para o Brasil. O
Ministério assume finalmente o seu papel de definidor de políticas, comprometendo-se
em criar as condições necessárias para a produção, difusão e inclusão cultural, oferecendo
aos brasileiros os instrumentos necessários à consolidação de uma cidadania cultural,
especificamente, do direito de todos aos bens e serviços culturais.
Como fazer cultura em um país com tamanhas desigualdades regionais, como é o caso
do Brasil? Como garantir instrumentos de fomento à cultura que libertem a gestão cultural
de velhas práticas clientelistas, onde são beneficiados os amigos, correligionários, os que
tradicionalmente tiveram acesso aos beneplácitos do poder? E mais, como definir políticas
criativas, capazes de articular setores sociais e econômicos, que possam neutralizar os
tradicionais e insatisfatórios recursos para a cultura? Ao mesmo tempo, em que políticas
culturais devem ser capazes de criar sinergias, atrair parceiros, propor compartilhamentos,
elas necessitam garantir o respeito à diversidade cultural, a autonomia e a participação de
todos. Estes princípios funcionam como salvaguardas à necessária vinculação das
manifestações culturais às comunidades que as produzem, evitando a mera imitação de
culturas alheias ou ainda processos de homogeneização entre produtos culturais.
Muito bem. Estamos a falar de garantias de autodeterminação e de proteção do fazer
cultural. Falamos ainda da necessidade premente de fazermos cultura em parceria, de
construirmos conjuntamente instrumentos de cooperação capazes de reunir grupos,
comunidades e países, aptos a trocar e confrontar experiências, a produzir solidariedades,
contribuindo para uma cultura de paz em tempos tão belicosos como os que vivemos.
A que serve a cultura em tempos de crescimento da intolerância religiosa, em tempos em
que o terrorismo ocupa a mídia internacional produzindo pânico e ódios generalizados?
Haveria um significado maior para as políticas culturais nestes tempos de descrédito no
Estado-Nação ou ainda no poder de controle de organizações internacionais como a
Organização das Nações Unidas sobre as relações entre superpotências? Como justificar o
nascimento de dois grandes fóruns mundiais culturais (um em Barcelona, outro em São
Paulo) neste ano? Estaríamos nos preparando para a construção de um novo modelo de
organização internacional voltada às culturas? Talvez pudéssemos começar a refletir sobre
uma Organização das Culturas Unidas?
Pois muito bem. São estas questões que fundamentam a Etapa 2004 do nosso Seminário
Cultura XXI, o Primeiro Fórum de Cooperação Cultural Internacional. Sim, nós acreditamos
que através da cultura poderemos promover imensas trocas entre povos. Se pensarmos em
trocas comerciais, econômicas, trocas na área de formação, de capital humano, estaremos
ainda subestimando a dimensão deste grande encontro entre tantos países. Estamos seguros
de que este encontro representa um passo significativo para uma nova dimensão que a cultura
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alcançará neste novo século. Será a cultura como princípio maior de valorização do homem,
que poderá construir caminhos para a tolerância, o entendimento e a cultura de paz no planeta.
A missão da Secretaria da Cultura do Ceará é exatamente esta: promover a cultura como
princípio fundamental de valorização do homem, propondo e desenvolvendo políticas
para a inclusão social através da cidadania cultural. São desafios da nossa gestão:
1. A afirmação da cultura como fator de promoção da auto-estima, da inclusão social e do
desenvolvimento local;
2. A afirmação da cultura como elemento transversal nas ações estaduais e municipais
(deste modo não limitamos nossa ação às artes, ou seja, o teatro, a dança, o cinema,
mas refletimos sobre os papéis da cultura na saúde, na habitação, na educação, no
planejamento urbano, na empregabilidade etc);
3. A afirmação da cultura como elemento redistribuidor de renda e fomentador de novas
profissões;
4. A afirmação da cultura como matéria privilegiada de gestão, o que implica na formação
de gestores, planejadores, sociólogos e economistas da cultura que sejam capazes de
demonstrar a importância da cultura para o desenvolvimento econômico e social das
comunidades e nações.
Para enfrentarmos estes desafios, a Secretaria da Cultura mantém ações em parceria com
todas as pastas de governo, estando presente de forma transversal em todos os seus eixos.
Do empreendedorismo econômico à qualidade de vida do cearense, a cultura deve
desempenhar um papel integrador, deve intermediar negociações, facilitar interlocuções,
revelar os desejos dos grupos sociais para que os mesmos possam ser atendidos pelos
governos. Os programas da Secretaria da Cultura buscam dar conta desta dimensão
transversal, marca constitutiva da cultura, e para tanto optam pelas seguintes diretrizes:
1. A geração de conhecimento na área cultural (sem levantamento de dados sobre a cultura
pouco poderemos fazer por ela. No Brasil, temos uma enorme carência de dados culturais,
a saber: os PIB's estaduais da cultura, os censos e inventários culturais, as estatísticas
relativas ao consumo cultural, o perfil dos consumidores etc);
2. A valorização das culturas regionais (embora as capitais brasileiras monopolizem grande
parte dos serviços e equipamentos culturais, a nossa grande riqueza e diversidade
encontram-se no interior do país; daí a necessidade de programas que fomentem a
produção, circulação e consumo de produtos culturais em âmbito estadual, regional,
nacional e internacional);
3. A preservação do patrimônio material e imaterial (nossas igrejas, nosso casario, nossos
sítios históricos necessitam de inventário para posterior tombamento; ao mesmo tempo
necessita-se rever o uso destas edificações para que possamos transformar nossas cidades
históricas em importantes destinos turísticos. Por outro lado, urge registrar nosso patrimônio
imaterial. Refiro-me às nossas festas populares, nosso artesanato, nossa culinária tradicional,
enfim, todo um manancial cultural que se encontra ameaçado e que desaparece a cada
dia com a morte de um homem ou de uma mulher que carregam consigo um saber ou
um fazer cultural únicos, ainda desconhecidos pelas novas gerações);
4. O apoio à criação artística e cultural (os artistas em suas diversas áreas necessitam de
apoio. Escritores, dramaturgos, cineastas, artistas plásticos, músicos, enfim, os artistas
em geral necessitam de apoio do Estado para os seus projetos culturais. Sem prêmios de
fomento, sem editais, sem equipamentos culturais, sem formação profissional, o artista
pode menos do que é capaz. É papel de uma política cultural dar-lhe condições de
trabalho e desenvolvimento);
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5. A gestão eficaz e compartilhada (sem conhecimento de gestão aplicada às demandas
do setor da cultura a melhor das políticas públicas de cultura continuará a ser mero
instrumento de retórica ou, no melhor dos casos, uma ingênua carta de intenções. É
necessário trabalharmos de forma cada vez mais competente a qualidade, e nos casos
possíveis, a sustentabilidade dos produtos e serviços culturais. Sem ferramentas de
gestão financeira, de gestão de marketing, de gestão de pessoas, de planejamento
estratégico para o setor cultural, corremos o risco de agregarmos pouco valor aos
nossos traços culturais, desvinculando-os de sua natural vocação de geração de
desenvolvimento e inclusão.
São estas diretrizes que fundamentam os programas e projetos produzidos e acompanhados
pelos profissionais que trabalham na rede de equipamentos que hoje compõem o Sistema
Estadual de Cultura: o Museu do Ceará e o Museu de Arte Sacra São José do Ribamar, o
Museu da Imagem e do Som, os Arquivos Público e Intermediário, a Biblioteca Pública
Menezes Pimentel, o Theatro José de Alencar, a Escola de Artes e Ofícios, além da nossa
televisão e o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um dos mais importantes centros
culturais deste país.
Estamos aqui para discutir afinidades, para descobrir diferenças, para avaliar possibilidades
de ações conjuntas no campo cultural. Talvez ainda saibamos pouco uns dos outros, mas
certamente estamos todos extremamente curiosos com a perspectiva de dar e receber, de
trocar experiências, de construir a várias mãos ações conjuntas que resultarão em
conhecimento recíproco, em construção de intercâmbios, acordos, consensos e
solidariedades. Talvez através das artes e, portanto, através da estética, possamos construir
uma nova ética, um novo olhar sobre os outros e o mundo que nos cerca. Este Fórum é
mais do que um encontro, representa a esperança da construção de uma cultura de paz e,
portanto, uma postura de não dominação entre países e continentes, pois culturalmente
somos todos, sem exceção, países ricos, países admiráveis, países singulares.
Gostaria, por último, de propor, a todos os países aqui presentes a elaboração durante
o Fórum de um documento, de uma "Carta de Fortaleza", que simbolize esta nossa
crença na cultura da cooperação, e mais, na cooperação cultural internacional como
um instrumento privilegiado de redenção, desenvolvimento e solidariedade entre os
povos do mundo.
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PolíticaExterna
Brasileirana
ÁreadaCultura
AntenorBogéa
Diretor Geral Cultural do Ministério das Relações Exteriores
Inicialmente eu gostaria de dizer que, na verdade, mais que uma palestra, essa minha
intervenção aqui será, sobretudo, uma conversa em que eu pretendo falar sobre relações
culturais internacionais e fazer algumas reflexões, alguns tópicos e depois dizer qual a ação
do Itamaraty em relação à divulgação da cultura brasileira no exterior.
Se a aproximação entre as nações é tarefa da diplomacia em geral, a cooperação por meio
da cultura e das artes constitui um dos melhores instrumentos livres para a aproximação
dos povos. Assim, o papel desempenhado pelas relações culturais nesta busca de aproximação
justificará por si só a importância desta atividade. Neste contexto, poderíamos dizer que
estas relações culturais internacionais têm por objetivo desenvolver, ao longo do tempo,
maior compreensão e aproximação dos povos, em proveito mútuo.
Por outro lado, também falamos da diplomacia cultural que teria como realização específica
a relação cultural com a concepção de objetivos nacionais de natureza não apenas cultural,
mas também política, comercial ou econômica. Por conseguinte, não podemos negligenciar
o fato de que as relações culturais, além de seus méritos intrínsecos, podem também
viabilizar, com grande eficiência, outros tipos de objetivos que não são, necessariamente,
objetivos de cooperação cultural. Falamos de diplomacia cultural para descrever a difusão,
cooperação, divulgação e intercâmbio, levantando considerações teóricas sobre a política
externa em geral.
Neste quadro, a diplomacia cultural abrangeria temas de intercâmbio, promoção de artes,
de artistas, de ensino da língua, veículo de valores, distribuição integrada de material de
divulgação, apoio a projetos de cooperação intelectual e apoio a projetos de integração
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técnica. Como se sabe, a gente já falou tanto de cultura aqui, mas cultura é um conjunto
tão complexo de padrões de comportamento, de crenças, dos sonhos, e de outros valores
espirituais e materiais, transmitidos coletivamente. As características da cultura abrangem
conhecimento moral, a arte de ler e várias outras aptidões e hábitos que nós adquirimos
como membros de uma sociedade. A cultura de um povo é um bem público. É um bem
pelo qual o estado deve zelar sempre, estimulando a criação sob todas as formas, preservando
sua diversidade, protegendo o cabedal cultural acumulado durante os tempos, que é um
patrimônio que a todos pertence.
No exercício desta função de zelar, estimular, preservar, cabe também ao Estado tornar
a cultura, e isto é o mais importante de tudo, um patrimônio acessível a todos, ao maior
número de pessoas, nas melhores condições. Uma política cultural, por sua vez, inspirada
na convicção que não é apenas uma fonte de enriquecimento pessoal, do ponto de vista
humanístico, estético e artístico, mas também um meio privilegiado para reforçar a
coesão social, ao dar a cada um, todo diálogo e a consciência de partilhar com o outro
valores fundamentais.
Nós vivemos hoje o que se chama a era da comunicação. Este período, em que tudo
se torna igual, onde quase tudo tende a se tornar comum, em que o mundo tende a se
uniformizar sob pressões e interesses econômicos que se impõem de forma cada vez
mais intensa.
Vivemos um momento em que a pressão da interdependência da sociedade tornou-se
algo sem precedentes na história. A propósito disso, o economista e pensador Celso
Furtado, que foi nosso ministro da cultura durante o governo Sarney, afirma que o processo
de globalização da cultura tende a acelerar-se, ao mesmo tempo em que todos os povos
aspiram a ter acesso ao patrimônio comum da humanidade, o qual se enriquece
permanentemente. Resta saber quais são os povos que continuarão a contribuir para este
enriquecimento e quais são aqueles povos que serão relegados ao papel de simples
consumidores de bens culturais adquiridos no mercado.
Ter ou não ter acesso à cultura, ter ou não ter acesso à criatividade. Eis a questão!
No caso do Brasil, nós precisamos lutar por um maior apoio da indústria cultural a fim de
que, entre outros benefícios, ela amplie sua presença no mercado internacional de bens
culturais, visto que a qualidade de nossos produtos culturais, a criatividade da nossa
gente, e o domínio do espírito tornaram-se o denominador comum dos esforços da iniciativa
privada e do governo, compreendendo o Ministério das Relações Exteriores, que eu
represento aqui.
Esta conjugação de esforços, sua intensidade, tende a aumentar ainda a audiência e o
êxito das nossas produções culturais no exterior. Com algum impulso oficial, a cultura
brasileira, eu poderia dizer, forte transmissora de valores positivos, pode ter reforçado sua
contribuição ao patrimônio cultural comum.
O fenômeno da indústria cultural, na acepção que vem sendo conferida por muitos
analistas como indústria da cultura e de massa, pode ancorar uma forma contemporânea
de dominação cultural, forma intimamente ligada a este processo de globalização a que
nos referimos.
Em seu trabalho intitulado "Diplomacia cultural", o Embaixador Edgar Teles Ribeiro, que é
o diretor geral cultural do Ministério das Relações Exteriores, fala de uma percepção muito
aguda de que os países desenvolvidos geraram inúmeras gerações. Concepção de que a
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cultura pode desempenhar um importante papel na superação de barreiras convencionais
que separam os povos.
Na promoção ou estímulo de mecanismos de compreensão mútua em geração de
familiaridade ou na geração de desconfiança. Nem sempre isso ocorre. Na verdade, é
suficiente que ocorra com certa freqüência, para que estejam completamente justificados
os recursos canalizados nesta direção.
Do ponto de vista da política exterior brasileira, o intercâmbio é um importante veículo
para a difusão cultural, na medida em que, no relacionamento bilateral, o Brasil abre suas
portas para a cultura externa como contrapartida para que os parceiros também facilitem
a difusão da cultura brasileira nos seus respectivos territórios.
Nos dias de hoje, a escala de prioridades do Ministério das Relações Exteriores, do Itamaraty,
para a difusão e intercâmbio cultural, começa com os países do Mercosul, seguidos depois
pelos países da América do Sul. Depois vêm os países da América como um todo, países
da CPLP (comunidade dos países da língua portuguesa), depois a Europa e finalmente os
demais Estados.
Para o Brasil, a diretriz política latino-americana, inclusive no plano cultural, tornou-se tão
evidente que foi feito um dispositivo na própria Constituição Federal sobre uma comunidade
latino-americana de nações. Isso nós podemos encontrar no artigo quatro da Constituição
de 88. O artigo que prevê justamente a formação desta comunidade de países da América
do Sul, por sua localização geográfica e cultural, com a importância política e econômica
da América Latina, é a região de precedência do exercício da atividade cultural.
Nós mencionamos há pouco, a comunidade dos países da CPLP. É uma comunidade
formada por oito Estados, de quatro continentes. A CPLP constitui um exemplo típico da
importância da vertente cultural, em um relacionamento prático, ainda que a principal
motivação para a sua criação tenha sido mais política do que cultural. E o idioma comum
é a língua portuguesa, que fornece e continua fornecendo o substrato básico para a
existência da CPLP.
Os estatutos e a declaração constitutiva da comunidade dão realce primeiramente à política
diplomática, para depois se construir a vertente cultural. Nas relações por construir ainda
no mundo lusófono, o conceito de cooperação passa a ser o de intercâmbio. Uma vez que
se espera do Brasil uma atitude de prestar serviços, sobretudo de assistência técnica
incluindo, também neste contexto, o ensino da língua portuguesa aos países africanos de
língua portuguesa e ao Timor Leste. Eu diria também que, dados os interesses envolvidos,
é evidente que este trabalho pode ser feito em parceria entre o Brasil e Portugal.
Para executar suas atribuições básicas, a direção geral do Ministério das Relações Exteriores
conta com quatro divisões e a coordenação. A primeira delas chama-se Divisão de Linguagem
da Língua Portuguesa, LP.
O Ministério das Relações Exteriores tem uma direção geral cultural que tem também esta atribuição
de difusão da cultura brasileira no exterior através das embaixadas brasileiras. Em muitas dessas
embaixadas nós temos os Centros de Estudos Brasileiros ou Institutos de Estudos Brasileiros que
têm essa função mais específica. Portanto, hoje nós trabalhamos de forma absolutamente integrada,
o Ministério da Cultura e o Ministério de Relações Exteriores do Brasil.
Para que a gente possa otimizar ao máximo essa difusão da cultura brasileira no exterior,
aqui eu queria fazer um parêntese para só reforçar para vocês e lembrar uma coisa importante
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Enfim, de todas nossas expressões artísticas brasileiras tão ricas e bastante diversificadas,
mas nós estamos falando de mais do que isso, nós estamos falando de uma coisa
importantíssima que é a idéia que eu acho de jóia, a nossa jóia da coroa, da nossa cultura
que é a língua portuguesa.
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que é o fato de como nós falamos em difusão da cultura brasileira no exterior. Nós não
falamos apenas que é muito importante a difusão da arte, ou seja, difusão da música,
teatro, dança, cinema, isto é, das nossas culturas populares.
O nosso programa, nós hoje mantemos em nível local e regional e, em alguns casos, até
nacional com convênios com as universidades. Estes centros estão instalados em várias
cidades do mundo. Nós temos centros em Assunção, Barcelona, Santiago do Chile, Helsinque,
Lima, Manágua, Maputo, Roma, São Salvador. Os institutos culturais, diferentes dos centros,
não têm fins lucrativos. Os centros privados autônomos, que trabalham de acordo com as
embaixadas, não são subordinados às embaixadas.
Estes institutos estão em cidades como Berlim, São José da Costa Rica, Buenos Aires,
Montevidéu, Washington. O êxito deste novo formato já vem sendo experimentado por
estes novos institutos, por alguns antigos centros como, por exemplo, o fundo Sembre de
Buenos Aires, cuja fundação é o centro de estudo dos brasileiros autônomos, que desfruta
de autonomia financeira e que já abriu filial em outra cidade da Argentina, Córdoba.
A rede de leitorados reúne professores especialistas em língua portuguesa que trabalham
juntos em outras conceituadas faculdades estrangeiras. Adicionalmente, a direção geral
cultural do Itamaraty colabora com várias outras instituições acadêmicas que desenvolvem
trabalhos voltados para o estudo de temas brasileiros.
O Ministério das Relações Exteriores tem também responsabilidade de coordenar outras
diretrizes para as políticas culturais fora do Brasil. É o que acontece com o Ministério
da Cultura e o Ministério da Educação, com os quais o Itamaraty assinou um documento
chamado "Política Nacional Brasileira". Trata-se de um documento que reconhece
expressamente a necessidade de uma coordenação destes três ministérios e engloba
certas diretrizes.
Na sua estrutura, o Itamaraty também dispõe de uma direção geral cultural, que tem não
apenas a necessidade de propor diretrizes de política no exterior, no âmbito das relações
culturais e educacionais, mas tem também a necessidade de difundir a arte e a cultura
brasileiras. A direção geral cultural das relações exteriores, que é a unidade do Itamaraty a
que eu pertenço, focaliza a difusão da cultura brasileira, não deixando de facilitar a cultura
estrangeira no Brasil. Como eu disse antes, temos um princípio de contrapartida que implica
no enriquecimento cultural pela porta das relações artísticas que os povos trazem aos
povos brasileiros.
Os acordos de intercâmbio cultural daí decorrentes, têm se tornado também uma forma de
exercício da nossa diplomacia e servem aos demais para proporcionar uma maior ligação
entre esta direção cultural do Itamaraty e os outros órgãos culturais do governo brasileiro.
Eu teria outros tópicos para falar, já que minha palestra estava prevista para ontem, para o
início do seminário, mas já se falou de tanta coisa que estou preferindo outros tópicos para
desenvolver. Então outro ponto que eu queria falar aqui é sobre a questão do financiamento
da atividade cultural. Deve-se ou não financiar as atividades culturais? O Estado, no caso,
deve financiá-las?
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Alguns analistas acham que sim, no sentido de defender setores de alto valor artístico que
não são auto-financiáveis. Para estes analistas, o Estado deve financiar. Outros já acham
que não, como é o caso do ex-presidente José Sarney, para quem cabe aos consumidores
decidir a sorte das iniciativas e eventos culturais.
O ex-presidente Sarney considera a Lei Rouanet demasiado restritiva, que é a lei da renúncia
fiscal, do mecenato, por deixar aberto, sob controle do Estado e não dos projetos culturais,
os candidatos à captação de recursos da iniciativa privada.
Por que o ex-presidente Sarney considera a Lei Rouanet restritiva?
Porque ele acha que as autoridades culturais poderão vir a discriminar artistas e intelectuais
no momento de fazer uma escolha, de fazer uma aprovação de um projeto.
A iniciativa privada está, obviamente, presente, como é o caso do cinema comercial, o
caso da música popular. Mas nossa discussão trata aqui da participação empresarial em
atividades artísticas não-lucrativas. Neste contexto, não pode se falar em responsabilidade
do financiamento à cultura, a não ser que o tema responsabilidade tenha conotação com
o entendimento de que todos os segmentos da sociedade são responsáveis pelo conjunto
e têm condições privilegiadas. Cabe zelar pelo bem comum, que se deve aprimorar e
aperfeiçoar através da arte e da cultura.
Como se sabe, esta responsabilidade foi efetivamente assumida, apesar dos americanos,
na primeira metade do século vinte, não só em função da mentalidade independente da
função do Estado, mas também das leis de incentivos fiscais dos Estados Unidos desde a
década de 20.
Nos países desenvolvidos, há inúmeros casos em que o poder estatal tem coragem como
a iniciativa privada. Numa proporção mais modesta eu lembraria também no Brasil, de
entidades culturais de São Paulo como o Museu de Arte Moderna, Pinacoteca Brasileira. O
MASP teve a sua criação em meados do século passado. Os paulistas foram seguidos pelos
cariocas que criaram o MAM (Museu de Arte Moderna). Porque naquela ocasião não
havia no Brasil nenhum registro fiscal. A primeira lei, a Lei Sarney, publicada em 1986, foi
o marco ao incentivo fiscal no Brasil.
Segundo a maior parte dos analistas, a Lei Sarney não atingiu os objetivos para os quais
teria sido promulgada, pelo fato de não exigir a aprovação prévia de projetos culturais,
mas somente exigir o cadastramento junto ao Ministério da Cultura, de pessoas físicas ou
jurídicas interessadas.
A Lei Sarney foi substituída pela Lei Rouanet no governo Collor e esta lei passou a exigir a
aprovação prévia de projetos a partir de uma comissão de representantes do governo e
culturais. E também a Lei Rouanet estabeleceu mecanismos de financiamento de cultura e
o mecenato.
O fundo nacional de cultura da China obtém recursos para projetos culturais através de
empréstimos reembolsáveis, ou cessão a fundo perdido a pessoas físicas, pessoas jurídicas
sem fins lucrativos e órgãos públicos culturais.
Já o mecenato cria benefícios fiscais segundo o imposto sobre a renda, que apóia projetos
culturais sob a forma de doação ou patrocínio. Na administração do presidente Fernando
Henrique foi assinado um decreto para a Lei Rouanet para torná-la mais prática e viável.
As emendas previam a viabilidade do agenciamento cultural entre o artista e o empresário.
O artista tem de sair sozinho atrás de um patrocinador, o que é uma questão muito séria
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Agências de publicidade passaram a ver no marketing cultural o meio criativo dos
seus clientes.
Gostaria de concluir agradecendo a presença de tantos representantes de países tão diversos
e parabenizar pela iniciativa da Secretaria da Cultura e do Governo do Ceará.
Antenor Bogéa
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em muitos países do mundo, inclusive no Brasil. Você mesmo tem que sair atrás de
patrocinadores. Depois da Lei Sarney, houve esta facilidade.
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OMinistérioda
CulturaeasRelações
Internacionais
MárcioMeira
Secretário de Articulação Institucional de Difusão Cultural do MinC
O Ceará é um dos estados com que o Ministério da Cultura tem uma relação muito
grande de afinidade conceitual e funcional no campo da política cultural, então não
poderia deixar de fazer registros de agradecimento e de saudação pelas iniciativas da
Secretaria de Cultura do Ceará.
Gostaria muito também de agradecer e valorizar a presença de trinta e três países que
estão presentes aqui, que estiveram presentes ao longo desses três dias, agradecer às
Embaixadas dos países com que o Brasil tem relação de amizade profunda, pois a participação
em eventos como esses, sem dúvida, aumenta nossos laços através da cultura.
Nos relacionamentos construídos pela cooperação internacional a amizade e a solidariedade
são profundamente as mesmas e ter relações entre os povos significa uma riqueza e, por
isso, eu queria agradecer em nome do Ministério da Cultura também a presença dos trinta
e três participantes aqui dos países que vieram participar deste encontro com muita alegria.
Agradecer também a presença de vários Estados, alguns estados dos quais eu conheço
inclusive pelo menos duas Secretárias de Cultura que estão aqui: Espírito Santo e Piauí.
Como estão vendo as mulheres são as primeiras nesse campo de secretarias de cultura.
Estamos muito antenados com a Secretaria de Cultura do Ceará, pela competência que
tem demonstrado e, portanto, gostaria de falar um pouco para vocês saberem que o
Ministro da Cultura tem pensado e tem procurado atuar também nos últimos meses,
desde janeiro do ano passado, no Governo do nosso Presidente Lula, com relação a essa
questão importante que é a questão internacional, das relações internacionais.
A gente sabe que o Brasil viveu de costas para a América do Sul e não olhava para o outro
lado do Atlântico. O Brasil tem, historicamente, um governo que tem sempre priorizado
as relações com a Europa e com os Estados Unidos. Então, nesse sentido, a maior
contribuição que, hoje, nós devemos fazer é a promoção da cultura brasileira no exterior
e também abrir as nossas fronteiras culturais para receber a contribuição destes nossos
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Uma das articulações mais importantes é a da Comunidade de Países da Língua Portuguesa.
Na verdade, em parte destes encontros da CPLP, tem acontecido que os ministros se
encontram, têm muita boa conversa, mas não há um desdobramento efetivo de resultados
concretos para os povos dos países. Os resultados foram muito tímidos em relação ao
potencial que nós podemos ter em relação aos países de língua portuguesa.
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países vizinhos, dos africanos e de outros países do Oriente, a Índia e a China. Estes são
países que têm uma riqueza cultural imensa e que nós, brasileiros, pouco conhecemos das
suas produções culturais e da sua diversidade cultural.
Por isso, por iniciativa do Governo Brasileiro, em conversa com a CPLP, nós realizamos,
antes das reuniões dos ministros, um seminário em Salvador. Foi um seminário de trabalho,
com a participação de todos os membros da CPLP, com uma pauta da discussão em que
a centralidade da cultura foi colocada de forma muito enfática no sentido de que nós
podemos desenvolver programas que serão abordados pelos ministros em Maputo. Se na
reunião de ministros forem aprovados estes programas, não teremos tempo de correr
(usando um termo bem usual nosso da cultura), para as captações de financiamento.
Porque nós sabemos que os países de língua portuguesa estão na África, Brasil e Portugal.
A maioria, noventa por cento, são países que têm dificuldades de financiamento para
programas de desenvolvimento e cultura, mas estão com uma intenção. E como há um
desejo muito forte das instituições de apoiar países da América Latina e da África, nós
vamos elaborar programas para que possamos obter das agências de financiamento
internacionais, apoios a projetos e programas para os países de língua portuguesa. Esperamos
que o encontro de ministros possa ser um avanço concreto de desenvolvimento da cultura
para os países de língua portuguesa.
É óbvio que isto são exemplos que sinalizam para uma ênfase, um enfoque novo, do
ponto de vista do Ministério da Cultura, porque isso significa um trabalho integrado com
o Ministério das Relações Exteriores. Não só de difusão das relações exteriores, mas também
da possibilidade de um desenvolvimento mais humanitário nestes países com os quais o
Brasil tem tido uma relação muito frágil.
Em primeiro lugar, eu gostaria de registrar para vocês que do ponto de vista do Ministério
da Cultura, ou seja, do Estado Brasileiro, o Ministério da Cultura tem como uma de suas
atribuições promover a difusão da cultura brasileira no exterior, ao longo dos últimos anos
em que o ministério foi criado, desde 1985.
O Ministério da Cultura tinha uma posição importante nesse campo, mais ainda muito
tímida e nesse sentido havia no ministério uma assessoria internacional que cuidava
desses assuntos, cuidava mais na verdade das relações do Ministro com os países com
quem o Brasil se relacionou na área cultural, com alguns projetos importantes. Mas
vimos um aumento muito grande da demanda da necessidade de maior intercâmbio na
área cultural do Brasil com outros países e observamos que esta área internacional era
uma área em que nós precisávamos avançar, precisávamos ganhar muito mais fôlego, e
dar a maior importância a ela porque, em primeiro lugar, hoje nós vivemos cada vez
mais em um mundo globalizado.
A gente ouve isso virar um lugar-comum, se fala o tempo todo da globalização, mas, na
verdade, o que nós vivemos hoje é um mundo em que o sistema de comunicação é
global. Ele é poderosíssimo, ganha cada vez mais força penetrando em todos os lugares
do planeta, mas, por outro lado, nós não temos uma relação social humana que seja
coincidente, ou seja, equilibrada em relação a esse poder da globalização, principalmente
das grandes mídias e também do capital financeiro.
Márcio Meira
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Portanto, é muito importante hoje que um país como o Brasil, pelo tamanho que tem, por
sua importância econômica e cultural, assuma um papel fundamental na condução de
uma nova ordem internacional, que seja uma ordem em que prevaleça o princípio de
desenvolvimento, mas que não seja apenas o desenvolvimento econômico ou o
desenvolvimento financeiro.
Quando nós ouvimos falar em desenvolvimento, geralmente as pessoas se referem ao
desenvolvimento do ponto de vista apenas econômico ou financeiro e é necessário, portanto,
que a gente coloque no debate internacional a questão do desenvolvimento numa órbita
diferente, um desenvolvimento que considere o ser humano. O Brasil pode e deve contribuir
para o debate internacional no campo da cultura.
A Carta de Fortaleza está dizendo isso muito claramente e isso tem aparecido em vários
instrumentos, nos documentos da UNESCO, do órgão das Nações Unidas para a educação
cultural, e de órgãos para o desenvolvimento. A posição do Brasil, é a de que nós precisamos
ter efetivamente uma política internacional na área cultural, forte, solidária, integradora e
que seja baseada nas relações de paz entre os povos. Por isso mesmo, no Ministério da
Cultura, nestes meses que nós tivemos até agora, foi operada uma mudança institucional
de tal forma, que a área internacional do Ministério pudesse ganhar um status mais forte,
mais organizado, nas suas relações internacionais, portanto, hoje nós criamos uma Secretaria
dentro do Ministério da Cultura, que é a Secretaria de Articulação Institucional que cuida,
entre outras coisas, também da articulação internacional.
É importante refletir aqui uma coisa: esta ação de difusão da cultura brasileira no exterior,
através do Ministério da Cultura, através de sua Secretaria de Articulação Institucional, tem
sido feita nestes últimos meses cada vez mais de forma integrada com um planejamento
construído conjuntamente com o nosso Ministério da Relações Exteriores, que já foi inclusive
representado hoje pelo nosso colega diplomata, Antônio Bogéa.
E também um outro aspecto que eu queria falar sobre a política internacional são as
realizações com entidades multilaterais. São muito importantes também nossas relações
com a Unesco, que é a principal organização das Nações Unidas relativa à cultura. Mas
também é muito importante que se diga da relevância da reavaliação do comércio com a
organização mundial, com a realização intelectual como a UNPI e com a Alca.
Nós não podemos mais chegar naquela época, em que a cultura era vista apenas como
entretenimento ou algo banal. Pelo contrário, todos nós sabemos que a segunda maior
indústria é a cultural. Maior que a indústria cultural, só a indústria bélica. Mas a indústria
cultural americana, embora seja a segunda, certamente destrói mais.
Nós sabemos que, neste sentido, a comercialização, as relações internacionais de bens de
comércio, são uma questão absolutamente central no mundo contemporâneo. Porque
não é a mesma coisa um comercial, cinema ou televisão. E comercializar sabonete e
frango, não é a mesma coisa. Quando a gente vende um produto como o cinema, além
do cinema, estão indo as pessoas que fizeram aquele filme. Suas maneiras, que representam
a identidade daquele país.
Podemos considerar que países destas relações de negociação, da Organização Mundial do
Comércio, da ALCA e outras organizações internacionais, é que vão definir no futuro, como se
deve fazer com que o comércio de serviços e de bens culturais, seja tratado da mesma forma.
Então, neste sentido, a plataforma internacional hoje, está muito dirigida e focada na
diversidade cultural. Nós não queremos que seja um mundo pasteurizado e que tudo seja
igual e que todas as pessoas sejam do mesmo jeito, as mesmas comidas da mesma forma.
Pelo contrário, nós queremos que o mundo seja um mundo da diversidade, onde se faz
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com que os homens sejam diferentes e o que define o ser humano é a cultura. Então,
neste sentido é que o Brasil tem uma posição muito clara com a maioria dos países que
são membros da UNESCO. 2005 é o ano em que a UNESCO deverá aprovar uma convenção
da diversidade cultural. Esperamos que esta convenção da diversidade cultural seja aprovada
da melhor forma possível e que ela seja um parâmetro moral, porque nós sabemos que as
convenções da UNESCO são uma indução concreta e real nas negociações comerciais.
Esperamos ainda que esta convenção da diversidade cultural seja um parâmetro moral dos
debates que estão ocorrendo no âmbito da organização mundial do comércio e outros
fóruns de discussão de comércio internacional.
Então, esta é uma questão que eu deixei para falar no final para vocês, porque ela é a
questão mais importante no mundo, se a gente pensa o mundo do ponto de vista histórico,
de longa duração. Não é uma questão para a semana que vem ou daqui a uns cinco ou
dez anos, mas certamente, é um grande debate que temos pela frente. Cada vez mais, o
mundo fica subordinado às grandes redes, aos grandes meios, aos grandes aglomerados
financeiros e de comunicação. A única forma, portanto, que nós temos de garantir que o
planeta não seja transformado em um bloco pasteurizado, congelado, é que,
definitivamente, a gente possa garantir a diversidade cultural.
E o Brasil tem um papel importante neste processo. Estamos conscientes do papel que o
Brasil tem neste processo e, neste sentido, devemos valorizar esta nossa diversidade cultural
que os Estados e os municípios brasileiros conseguiram construir ao longo destes quinhentos
anos no processo de construção do Brasil. Nós temos que prezar por eles e fazer com que
eles ganhem a notoriedade e importância que devem ter e devem ser reconhecidos, sem
que nos tornemos, de forma alguma, um país fechado, uma redoma aonde não vamos
negociar nem dialogar com outros. Pelo contrário, o que nós queremos é que nossa
afirmação cultural, a nossa presença cultural no mundo seja uma presença de troca de
relações bastante ricas, bastante frutíferas, com todos aqueles povos do mundo que querem
também estar trocando e dialogando conosco, trazendo para nós, sua cultura, sua forma
de expressão.
Nós no Brasil temos uma tradição de ser um povo aberto. Nós nunca fomos fechados para
as culturas que nos chegam. Então, esta tradição brasileira é uma tradição importante da
cultura brasileira e este é um dos fatores que fazem com que o Brasil tenha sim uma
estatura moral para ter posições, por exemplo, como esta, no cenário nacional.
Então, eu gostaria mais uma vez de agradecer. Espero que vocês tenham, com esta minha
exposição, uma impressão geral do que nós, no Ministério da Cultura, estamos fazendo,
trabalhando, pensando na política cultural em âmbito nacional e estou disposto, aqui
também, a debater e dialogar e, virtualmente, com quem queira debater esta questão. E
também estou aberto lá em Brasília ao diálogo com vocês todos aqui do Ceará. Certamente,
através da nossa Secretária Cláudia Leitão e de outras pessoas, aqui no Ceará.
Muito obrigado mais uma vez, e a gente espera que este Fórum seja frutífero e que
ocorram outros fóruns deste tipo em outros Estados. Não sei, o Espírito Santo pode ser
um outro Estado que receba o Segundo Fórum de Cooperação Internacional. A Secretária
de Cultura do Espírito Santo já confirmou. Eu acho que isso é um sinal de que essa
iniciativa ganha corpo, ganha a importância que deve ter, contribuindo para a Cooperação
Internacional Cultural que nós tanto queremos.
Márcio Meira
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PainelGeral:oCeará
esuasCulturas
Participação:
Eduardo Diatahy B. de Menezes - Professor Titular do Mestrado e Doutorado em
Sociologia da UFC, e do Mestrado em Filosofia da UECE.
Oswald Barroso - Mestre em Antropologia. Professor da UECE. Diretor do Teatro
Boca Rica.
Gilmar de Carvalho - Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC. Professor do
Curso de Comunicação Social e do Mestrado em História da UFC.
Coordenação: Régis Lopes - Doutor em História Social (PUC-SP), professor do
Departamento de História (UFC) e diretor do Museu do Ceará.
Eduardo Diatahy B. de Menezes
Os sociólogos são todos ingleses que têm estudado o fenômeno da cultura popular e essa
expressão para a sociologia não tem a conotação que ela tem aqui no Ceará e no Brasil.
Não remete às camadas mais pobres, do mundo rural e do sertão, todas conotações
tipicamente de nordeste semi-árido. Ela remete, sobretudo, a uma conotação urbana
industrial, ou seja, o que nós chamaríamos de cultura de massa.
E aí eles, ao tentar enfrentar este assunto, fazem uma tipologia do tipo weberiana, de
ideais típicos, em que a cultura pode ser vista em três níveis fundamentais. A cultura folk,
esta que nós chamamos de cultura popular entre nós, esta cultura coletiva que se perde
nas memórias do tempo e que tem um certo anonimato quanto à autoria, porque são
figuras pobres em que autoria não está bem definida. Outro nível é a cultura de massa, a
cultura popular, cultura urbana da indústria cultural, cinemas, vídeo, teatros e televisão,
estas coisas todas que fazem parte do cotidiano, sobretudo das cidades. E, finalmente, a
alta cultura, a cultura de elite, que eu prefiro chamar de tradição letrada. Como eu tinha
que fazer uma exposição rápida eu fiz uma escolha.
Eu quero falar de um fenômeno cultural importantíssimo do Ceará, e que tem caráter
histórico: a tradição letrada do Ceará. Eu prefiro chamar tradição letrada do que Alta
Cultura e do que chamar também de cultura de elite, pois na verdade não era uma elite no
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Para entender a história, lembramos que Fortaleza era uma cidade paupérrima, uma vila
colonial que em 1870 tinha vinte mil habitantes, uma população menor que muitos bairros
de Fortaleza. Hoje, qualquer bairro maior de Fortaleza tem alguns milhares ou centenas de
milhares de habitantes. Era essa vila pequena, minúscula, mas que estranhamente, inclusive
se a gente quiser pensar em termos de modelo marxista ortodoxo, não há como explicar
que com forças produtivas tão pobres, o desenvolvimento tecnológico econômico, etc.
tão pobre, deu umas das gerações intelectuais mais marcantes que o país já teve, que
nasceu aqui nesta cidade minúscula, que no passeio público mostra claramente sua divisão
de classe. Havia nesse passeio público que está aí ainda uma praça que era freqüentada
pela pequena elite provincial. Havia um outro nível, que depois se transformou em campo
de futebol quando eu era menino, que era freqüentado pela classe média, e eu olhava para
cima para a elite e olhava lá embaixo, já no nível da praia, para a população pobre.
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sentido político. A tradição letrada do Ceará, no último quartel do século XIV, nos primeiros
anos da república e nos primeiros anos do século XX, um período marcante, é um desafio
para a sociologia da vida intelectual.
Eu acho isso aí uma metáfora muito boa, porque este espaço é mais ou menos esse que é
ocupado hoje pelo Dragão do Mar. E eu estou chamando a atenção disso porque são dois
momentos significativos, quando estas elites diminutas da província pensaram em investir
num equipamento cultural. Eles fizeram aquele teatro que vocês freqüentaram ontem à
noite, o Theatro José de Alencar, que foi terminado em 1911 durante a oligarquia Acioli.
Inclusive tinha arruinado as finanças do Estado e acabou pedindo dinheiro emprestado aos
Gourrin Flex, empresa francesa radicada aqui no Ceará, que emprestou dinheiro para o
Estado para terminar o equipamento cultural.
E esse de hoje, quando se investiu num novo equipamento cultural não se pensou num
teatro clássico, que significa um teatro de classe, de classe alta. Pensou-se neste equipamento
como uma síntese destes três níveis de que eu estava falando, pois tanto tem pretensão
científica, quanto pretensão com a cultura de massa com museus, galeria de artes, etc. De
modo que ele tem essas coisas todas, mas de onde vem essa tradição, não sei explicar.
Eu venho estudando este período intensamente, estudando a melhor vocação filosófica
desta geração, um cearense cheio de iniciativa e cheio de inquietações que estudava
desesperadamente e adoecia várias vezes durante os estudos por causa disso. Em uma das
crises pessoais dele, ele tinha ido ao Recife fazer os preparatórios para entrar na Faculdade
de Direito, em Pernambuco. Era a única academia que havia perto, mas ele adoeceu e
voltou e se recolheu num abrigo que não existe mais, em Jacarecanga, debaixo das sombras
das palmeiras e dos cajueiros.
Numa carta que faz para Capistrano de Abreu, ele conta que passou uns meses se recuperando
da saúde e diz assim: "Eu entrei com dezesseis anos e saí com cinqüenta". Esta metáfora
é muito forte e mostra toda a transformação interior, a depressão, as coisas que ele viveu
e o empenho enorme com que ele volta e cria um dos grupos mais marcantes, que foi um
grupo chamado de calhorda e eu quero chamar a atenção para isso. Duas das características
do espírito do cearense, desde o povo mais humilde até seus intelectuais, é a ironia e a
sátira. Aliás, são dois dos instrumentos dos humilhados e ofendidos. Realmente é uma
maneira de navegar socialmente e talvez seja ironia no sentido socrático.
Rocha Lima e seus amigos constituíram um grupo. O Rocha Lima tinha ficado órfão de pai
muito cedo, pois o pai deixou a mãe ainda grávida. Logo após o nascimento dele, fica
órfão também da mãe. Uma tia professora foi quem o adotou carinhosamente e deu-lhe
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uma formação excelente e ele mergulhava nas bibliotecas de então, e aí eu chamo atenção
para três aspectos: a vida cultural daquele tempo não tinha Internet, computador, televisão,
nada disso. Eram basicamente três coisas: a escola, as bibliotecas públicas e o jornalismo
(a imprensa).
A imprensa tinha um papel fundamental. O Brasil foi educado por Portugal numa suprema
ignorância. As bibliotecas eram proibidas, salvo as grandes bibliotecas dos colégios jesuítas
da Bahia que eram imensas e importantíssimas, mas, de um modo geral, publicar aqui era
crime de lesa majestade, de modo que não havia nada destas coisas. Não havia imprensa,
não havia nada disso. Ela só surge quando Dom João, que é a primeira figura de uma
monarquia européia que põe os pés no novo mundo, vem para cá e traz a sua biblioteca
e libera a imprensa e começam a aparecer intensamente jornais por todas as partes. Todas
as províncias passaram a publicar intensamente e isso teve o papel de veicular as idéias e
trazer os conflitos para os debates.
Essa geração dos anos 70, que viveu nos anos 70 e 80, quando eles eram jovens aqui no
Ceará, viveu a seca mais brutal que o estado já enfrentou. Foram quatro anos de seca, de 77
a 80, que dizimou a base da economia do Ceará que era a agricultura, e afetou sobretudo a
pecuária pois dizimou o rebanho de gado. A economia do Estado foi toda depredada e um
quarto da população morreu. Fortaleza de repente se viu, em 1877, com 135 mil habitantes
dos quais morriam mil por dia e o maior problema de saúde era retirar estes cadáveres,
desaparecer com estes cadáveres nas dunas, no meio desse panorama de miséria.
Essa geração via jornais enfrentar as tradições, enfrentar o primeiro Bispo do Ceará, Dom
Luís Antônio do Santos, que tem uma avenida grande aqui em homenagem a ele, e era
um bispo bem conservador, bem romano, cêntrico, e essa juventude que trazia estas
idéias novas, que trazia a modernidade, combatia isso. Eles criam uma escola popular
gratuita, à noite, aberta a todo mundo, sobretudo, às operárias e às mulheres. Isso cria
muito conflito, sobretudo porque as mulheres não participavam da cultura, e passam a
participar, e passam a assistir às conferências, e eles traziam os temas mais candentes e
publicavam em vários jornais como o Fraternidade, da maçonaria.
Enquanto isso, os conservadores, os extremamente conservadores, como eles chamavam
os representantes do catolicismo retrógrado, se entrecerravam na Tribuna Católica, que era
um jornal semi-oficial da diocese que os combatia em praças públicas. Eles respondiam
publicando. Se a gente pegar os jornais desta época é impressionante o volume de discussões
e de temas. Eles pegavam os resultados das conferências que faziam e dividiam em vários
artigos nestes jornais. Esses acervos estão meio desaparecidos. Eu tenho a impressão de
que jornais como o Ceará, Pedro Segundo, A Fraternidade e outros, já não existem aqui na
Biblioteca Pública, que é colada com o Centro Dragão do Mar. Já não existe nenhuma
coleção completa, mas o que se salvou foi microfilmado também para o Instituto Histórico.
Essa geração produziu uma porção de intelectuais como Araripe Júnior, como o Felino
Barroso, pai do Barroso, que eram figuras extremamente públicas, inteligentes, que sabiam
de todas as idéias. Claro que as idéias fundamentais eram importadas da Europa, sobretudo
da França, mas também da Inglaterra e da Alemanha.
E o século XIX é um século muito rico, revolucionário. É um certo preconceito chamá-lo
de o século de burguês, mas foi talvez o século contemporâneo mais rico de idéias, que
teve o maior repertório de idéias, de concepções novas, de visões que tiveram do mundo
como, por exemplo, o revolucionalismo e outras teorias deste tipo, como a antropogeografia alemã.
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Esta geração bebeu isso fortemente, o que é estranho no caso do Ceará, embora eles
tenham ido estudar o curso superior em Pernambuco ou em São Paulo, as duas únicas
Faculdades de Direito que havia no Brasil, eram absolutamente autônomos em relação a
estes centros e não receberam uma influência direta de Pernambuco, nem de São Paulo,
mas desenvolveram aqui mesmo uma visão do mundo. Uma série de figuras como Farias
Brito, Clóvis Bevilácqua registraram isso.
Clovis Bevilácqua, inclusive, foi quem escreveu a história da Faculdade de Direito do Recife
em dois volumes e ele dizia assim: "As nossas idéias vinham nos navios da Europa e nós
íamos buscar no porto" e foi assim evidentemente, mas não quanto à nossa a parte criativa.
A parte estética, a parte ficcional nasceu com muita autonomia e até com antecipação. E
uma das características desta gente era se agremiar, criar associações, como era esta academia
na casa da tia do Rocha Lima, que eles chamavam de Academia Francesa, porque eles
eram influenciados por Tobias Barreto e alguns francófilos.
E essa gente depois migrou, porque estas eram as condições das províncias quando se
atingia um certo nível: ou você migrava ou morria por suspensão de atividade mental,
porque as províncias não tinham muito que oferecer e eles iam para a corte. O Rio de
Janeiro era o grande centro cultural do País, que acolhia esta gente toda.
E foi esta gente que se projetou, como Capistrano de Abreu, que fez toda a renovação da
historiografia moderna no país. Uma figura genial que nem terminou a escola secundária,
mas que dedicou a vida toda à pesquisa. Quando ele chega em 1875 no Rio de Janeiro,
com 22 anos de idade, José de Alencar, que estava na plena maturidade, faz uma carta
para o Bruno Sealvara onde ele apresentava Capistrano de Abreu. José de Alencar era uma
figura muito acolhedora e morreu moço, como a maioria deles.
José de Alencar dizia na carta para Bruno Sealvara, que dirigia um jornal, não sei se era A
Gazeta de Notícias, no Rio: "Estou te apresentando meu jovem compatriota. Quando estive
lá nas províncias, me ajudou nas pesquisas que estou fazendo e eu o contratei. É uma
inteligência brilhante e a imprensa da corte só tem a ganhar com a presença desta criatura".
Aí ele dizia: "Esta província tão pobre mercê de Deus, talvez seja a mais rica do país", é
aquilo que a Cláudia sublinhou e que o Governador, ontem, no discurso dele também
acentuou, e de fato ocorreu.
Quando em 1922, no Almanaque do Ceará - uma publicação que deveria voltar, pois
houve uma tradição de 1870 até os anos 30 e 40, de que todas as províncias, ou pelo
menos as províncias principais, tinham um almanaque, uma prática que deveria voltar.
Pernambuco, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará publicavam almanaque e davam um
balanço anual da indústria, estatística, administração pública, da instrução pública, da
cultura, das artes, das letras, etc. - o velho Rodolfo Teófilo, homem de ciências, cientista,
ficcionista, historiador que fez parte desta geração, dá um balanço desta geração porque
eles todos foram colegas do Ateneu. Vocês se lembram que eu falei das escolas e das
bibliotecas públicas que eram os poucos recursos que as províncias tinham e havia duas
grandes escolas: uma criada em 45 e outra criada em 63, o Liceu do Ceará.
Escolas públicas que não tinham a conotação que têm hoje (escola para pobres). Era a elite que
freqüentava escola pública, que era modelo do Liceu Francês de alto nível onde estudou o Barão
de Studart e toda aquela gente. O Rodolfo Teófilo, quando faz o balanço, o ensaio que ele
escreveu para o almanaque de 1922, ele diz assim: "Aqueles meninos que freqüentaram o Ateneu,
que foram meus colegas de sala de aula, possuíam o que ia ser a geração mais brilhante que o
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Ceará intelectual já teve". Era Araripe Júnior, esta gente toda e fora destas agremiações havia
outras figuras que participavam da padaria espiritual, como Adolfo Caminha, antes dele o Domingos
Olímpio e o que é estranho é que as condições de vida eram tão precárias.
Tem também uma figura genial da ficção da época, o Oliveira Paiva, que escreveu um dos
romances mais brilhantes do país e que ia ficar desconhecido. Morreu com 31 anos de
idade, tuberculoso, aqui de tristeza nas províncias. E a grande historiadora da literatura
que foi a Lúcia Miguel Pereira descobriu nos arquivos os pedaços de um romance que foi
recompondo, as publicações em capítulos na imprensa, porque a imprensa era um grande
veículo como eu já acentuei. Então recolheu este material e publicou, já agora no final dos
anos cinqüenta, Dona Guidinha do Poço, que marcou a mais importante obra do
naturalismo no Brasil e era de um ilustre desconhecido. Geralmente costuma acontecer,
geralmente uma das coisas que pesam sobre a pobreza das províncias é o esquecimento.
Então, para concluir eu me lembro, a propósito disso, de uma frase em que o próprio Marx,
em manuscrito de crítica, diz assim: "De que o estado da arte numa determinada sociedade
esteja ligado ao desenvolvimento tecnológico, ao desenvolvimento econômico em geral,
parece que não cabe dúvida, mas como explicar que até hoje, dois mil anos e tanto depois,
depois de tantas transformações econômicas, de tantas transformações científicas e
tecnológicas, o Teatro Grego, a escultura grega, a arquitetura grega, continuam sendo um
exemplo inextinguível para todos nós?" Há algo intangível na arte que não se explica pelo
aspecto econômico e ele mesmo duvidava do esquema analítico que propunha nos debates
e reconhecia estes fenômenos. Então para mim é um enigma e um desafio: Por que nesta
província tão pobre se consegue fazer com que ela fique espiritualmente tão rica?
Oswald Barroso
No Teatro geralmente a gente não escolhe preparar os ensaios, e talvez o ideal seja que não
se prepare nem as apresentações, porque o grande prazer de um ensaio ou de uma
apresentação é que ela seja um momento de criação, de criação total a partir do nada. E
por isso eu escolhi não preparar nada para este momento e usufruir o máximo do que foi
dito aqui e do que foi estimulado e penso que este foi um caminho interessante porque só
por esta manhã, muitas e muitas idéias da maior importância apareceram e a gente pôde
pensar coisas novas.
Eu confesso que pensei uma coisa que eu nunca tinha pensado. Há muito tempo eu penso
sobre o Ceará, sobre a cultura cearense, mas nunca tinha pensado nisso e pensei depois
das falas que eu ouvi aqui, particularmente a fala da Cláudia, quando ela disse que "o
cearense é um povo avesso à preservação". Nós vivemos num acampamento que a gente
constrói um dia, levanta uma barraca num dia para desarmar no outro, e assim
sucessivamente, e as coisas não permanecem.
E eu fiquei pensando sobre isso e é verdade. O Ceará é o Estado brasileiro onde o semiárido predomina mais completamente, um Estado sujeito às intempéries, onde a seca
destrói não só a vegetação, mas a sociedade periodicamente, e quando tem estas enchentes
também há destruição.
Quer dizer que o Ceará se reconstrói a cada década e eu penso onde é que fica esta
cultura, o que é preservado disso, se não é no patrimônio material. Eu pensei agora que
isso é preservado no corpo do cearense, quer dizer, esta cultura é uma cultura incorporada,
é uma cultura inalienada, porque ninguém pode tirar do cearense, porque ela está entranhada
nas suas bases e por onde ele vai, ele leva esta cultura.
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E por isso o cearense desenvolveu uma capacidade extrema de sobrevivência, de criatividade,
de habilidade corporal, de memória, de memorização. Eu me lembro de um filme do
Joaquim Batista de Andrade, O Homem Que Virou Suco, sobre dois nordestinos em São
Paulo e um que virava suco trabalhando nas fábricas. Ele era um operário padrão
empedernido na sua moralidade, nos seus princípios e acabou enlouquecendo e virando
suco. Enquanto o outro (era o Zé Dumont que fazia os dois personagens inclusive), mercê
da sua astúcia, do seu futuro em não virar suco em São Paulo. Exatamente a partir da sua
cultura, da sua improvisação, de invencibilidade, da sua capacidade de se reinventar, ele
conseguiu preservar sua identidade, e também sua capacidade e seu equilíbrio mental,
vamos dizer assim, sua lucidez.
Eu penso que aí está o cearense, embora aqui não haja grandes cidades, grandes patrimônios
arquitetônicos antigos (embora haja patrimônios como Icó, Aracati, Aquiraz, algumas
coisas em Fortaleza) há grandes cidades construídas na imaginação dos cearenses.
O povo do Ceará usa uma noção que se chama do encantamento, então se você for a
Juazeiro, lá é uma cidade pobre com problemas sociais enormes. O centro sagrado de
romaria que chama a atenção pela vitrine de misérias sociais que é. No entanto, na imaginação
do cearense, lá é uma nova Jerusalém, é uma cidade belíssima, é um portal do divino céu.
Na verdade, todas essas cidades sagradas revelam o como e o porquê desta cultura. Caldeirão,
Canudos, o próprio Juazeiro, na verdade estão por trás desta realidade ordinária, vulgar, tão
desigual. É uma construção imaginária, fortíssima, belíssima, de grande complexidade.
Então me parece que o grande patrimônio cultural do cearense é guardado no seu próprio
corpo, ou seja, na capacidade de viver que ele leva consigo pelo mundo inteiro e que é tão rica.
Parece-me que esta oportunidade que nós estamos tendo aqui de ter contato com estes
países todos é de extrema importância e representa uma espécie de religação do Ceará
com o mundo. Nós somos o ponto do Brasil mais distante de qualquer fronteira
internacional, embora como a Cláudia falou nós estejamos a meio caminho da Europa,
dos Estados Unidos, da África, mas do ponto de vista da distância geográfica não há um
Estado brasileiro mais longe de outro país do que o Ceará.
Entretanto, esta cultura cearense foi formada por culturas das mais numerosas e
variadas vindas do mundo inteiro. A Serra da Ibiapaba, por exemplo, nos primeiros
séculos após a descoberta do Brasil pelos europeus, era uma verdadeira Babel. Existiam
franceses, holandeses, judeus, mouros, portugueses numa espécie de terra de
ninguém. E essa riqueza de cultura, quer dizer, somada à contribuição americana e
africana, que também foram de muitas nações, foi preservada, não num freezer
porque aqui não tem, mas como numa espécie de abafador tropical em que muitos
traços destas culturas antigas, traços que já desapareceram nos seus países de origem,
foram preservados aqui nos sertões. E, se algum francês, um europeu, mesmo um
africano ou um asiático, se internar no alto sertão cearense vai bater com muitos
traços de sua cultura, vai se identificar, vai se ver em muitos traços da cultura do
povo cearense.
Eu penso que nestes momentos é que o Ceará, como o Diatahy falou, é que esteve
sintonizado com o mundo de uma maneira direta, não usando a intermediação do sudeste,
mas sim se ligando aos países mais importantes na sua própria formação cultural, se
religando a estes países nestes momentos. Foi neste momento que a cultura cearense teve
seus períodos de renascimento, seu período mais forte, seu período mais propício.
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Eu penso que este encontro aponta neste sentido, aponta para uma religação do Ceará
com o mundo de uma maneira direta e sem exceções, sem preconceitos. E outra característica
nossa é que nós sempre fomos uma cultura muito aberta, que recebe e sabe dialogar. Sabe
dialogar com estrangeiros, sabe dialogar com outras culturas, sabe incorporar traços desta
cultura e sabe levar os traços desta cultura, tão substanciada, de volta aos outros países.
Quer dizer, eu penso que a iniciativa de retomar estes contatos com estes países tão
diferentes dos quatro cantos do mundo é das mais oportunas.
Eu, por exemplo, trabalho com teatro e um dos sonhos meus é fazer uma viagem de volta
à Índia, uma viagem que comece aqui no Ceará e passe pela Europa, pela Ásia e vá até
Hong Kong, vá até Macau, até Goa, vá até São Tomé, a Timor Leste, a todos aqueles
lugares onde os portugueses estiveram e de onde eles trouxeram traços culturais e para
onde também eles levaram traços culturais e acabam sendo nossos também, cearenses
também. Parece-me que esta religação, este reencontro do Ceará com suas raízes universais
e a descoberta do Ceará pelo mundo pode ser a partir do contato que nós estamos
fazendo aqui hoje.
Eu penso que esta cultura, embora tenha este paradoxo, este mistério, que é bom que
continue tendo este mistério, este mistério está sediado no próprio corpo do cearense.
Este mistério é um mistério incorporado que o cearense levará consigo para onde ele
for e esta possibilidade de retomar estas ligações fará com que este mistério seja
renovado, complexificado e dê frutos de maior abertura, quer dizer, que este mistério
também seja renovado.
Gilmar de Carvalho
Constitui um desafio trabalhar com a idéia de cultura cearense. Estamos sempre a um
passo do reforço do estereótipo. Lembro Barthes quando falava desta figura maior da
ideologia e dizia que um tomate, um pimentão e um macarrão significavam a italianidade.
E o que seria a Cearensidade?
A leitura de uma bibliografia básica que passa por Raimundo Girão, Paschoal Barroso,
Silvio Júlio, Gustavo Barroso, dentre outros, nos dá alguns balizamentos. O cearense seria
assim, o Ceará é assim, no Ceará é assim.
E como seria este Ceará?
Determinado, forte e reverente, não seriam estas características de todos os povos, inerentes
à própria condição humana? A publicidade se apropria com competência destes estereótipos.
É fácil trabalhar com eles, os resultados são previsíveis e o que se visa atingir é quase
sempre alcançado.
Trabalhamos com a habilidade cearense e seria cegueira fechar os olhos a esta constatação.
Melhor talvez do que insistir no reforço do que parece óbvio demais, que se busque
compreender a estabilidade como sendo estratégia de sobrevivência de um povo sem
muitas alternativas. Que teve no algodão o único ciclo importante, ciclo econômico de
certa esterilidade e que precisou vencer condições sempre muito adversas, daí a explosão
criativa do feito à mão, daí a criatividade que aí rompe, reciclando matérias e inventando
o que não poderia ser inventado.
Estamos no campo da cultura se sobrepondo à natureza, não que sejam dicotômicas ou
antagônicas, mas dialogam e desse diálogo vem uma riqueza que passa e é o fio que vai
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Passamos do utilitário para o estético propriamente dito, não que o utilitário não possa ser
estético, do contrário o que dizer das cestarias, dos pilões, das redes de atravessa do
Tremembé, mas de uma estética que ultrapassa as limitações dos usos e se inscreve nas
categorias do simbólico e se reforça de significações, atinge outros níveis ou patamares.
Tudo isso é Ceará.
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alimentar. Pela palha que se transforma em chapéu, ou do gado que vira paçoca, enfim
pelo que se transforma e se cria.
A recusa do estereótipo passa pela negação do pronto para o mal acabado e insiste em
outras angulações, relações de causalidade, nexos que não parecem tão evidentes, que
fique bem claro que não se trata de negar o Ceará, de tirar a importância de nossa gente
e do que ela faz. Antes, este processo de desmontagem é profundamente respeitoso para
com a terra e para com o povo que nela vive.
Por que aceitar sem contestação o que nos vendem? Nosso nomadismo é marcado pela
dor e pela perda e quase sempre se traduz em volta. É o exílio a que nós somos forçados,
pela concentração da renda, pela questão da terra e pela força das oligarquias que se
transvertem, assumem outras conotações, mas não perdem o controle da situação. Vivemos
um exílio interior.
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Participação:
Indonésia - "A Indonésia": Sr. Ahmsa Soekartono, Secretário da Embaixada da Indonésia
em Brasília.
Portugal - "Política de Descentralização Cultural em Portugal": Sr. Adriano Jordão,
Presidente do Instituto Camões e Conselheiro da Embaixada de Portugal em Brasília.
Coréia - "História e Cultura da Coréia": Secretário Hak You Kim, da Embaixada da Coréia
em Brasília.
Síria - "O Turismo Cultural na Síria": Sr. Glassanabbas, Secretário da Embaixada da Síria
em Brasília.
Coordenação: Francisco Brandão - Cônsul de Portugal no Ceará
Indonésia
- Sr
Sr.. Ahmsa Soekartono
Nós vamos falar sobre como a Indonésia trata a cultura. A Indonésia tem relações bilaterais
com o Brasil já há muito tempo e isso começou em 1953. Nós começamos abrindo uma
Embaixada no Rio de Janeiro na época, e depois, com a construção de Brasília nós nos
deslocamos para lá em 1976.
A partir deste momento nós divulgamos muitos eventos culturais entre os dois países. Uma
vez nós tivemos um espetáculo no Teatro Municipal em São Paulo, onde nós convidamos
artistas da Indonésia que mostraram várias danças: uma dança típica da Indonésia, uma
dança chamada Airnan-Aurhn (é uma espécie de teatro de sombras, homens com fantasias).
Vou falar um pouco sobre a Indonésia. É um pouco distante daqui, um lugar que está do
outro lado do mundo. Parece que quando nós perguntamos a um brasileiro o que é
Indonésia, os brasileiros não sabem o que responder. Geralmente acham que é um lugar
inatingível, um lugar que você nunca conseguiria visitar, mas é que nem o Brasil na
verdade. É um país grande, que consiste de várias ilhas. Nós temos uma cultura muito
rica, porque temos muitas influências de vários lugares no mundo: influências portuguesa,
holandesa, chinesa, indiana, japonesa e é uma mistura de várias influências, digamos
assim. É isso que representa a Indonésia hoje em dia, ou seja, nós podemos dizer que a
Indonésia tem várias influências culturais.
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A Indonésia é um gigantesco arquipélago com mais de 18 mil Ilhas, todas espalhadas entre
o Continente da Ásia e a Austrália. A principal porta de entrada para o maior conjunto de
ilhas do mundo é a Ilha de Java. Nela está a capital do país, Jacarta. Esta é a primeira mostra
da diversidade que a Indonésia possui, arranha-céus ao lado de habitações típicas, requintados
shoppings a poucos passos de mercados tradicionais de rua. O conforto está presente em
uma rede hoteleira variada, com opções para todos os gostos e todos os bolsos. Seja qual for
a escolha, uma coisa é certa, na Indonésia a hospitalidade, a boa comida e a diversão vão
estar garantidas em todos os lugares. É hora de conhecer a Indonésia.
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O nome do arquipélago é Indonésia, o sobrenome desta terra é encanto. Na Indonésia é
difícil dizer que um dia é igual ao outro. A chegada já é um convite, as imagens deslumbrantes
das praias, montanhas e cachoeiras. Cenários que deixam qualquer um apaixonado, antes
mesmo de colocar os pés em terra firme.
Em Jacarta o mais difícil é escolher o que ver primeiro, o lado financeiro na cidade ou as
atrações para todas as idades, como o Tamamini, um lindo parque da Indonésia em miniatura
que retrata um pouquinho de cada província do país, mas a Ilha de Java é muito mais que
apenas Jacarta.
Porobodur fica a quarenta e dois quilômetros de Jacarta. As toneladas de pedras vulcânicas
esculpidas formam o maior templo budista do planeta. São mais de duas mil e setecentas
esculturas de budas em degraus. Cada uma representa a ascensão humana em busca da
sua espiritualidade.
Pranbanam também é certeza de beleza colossal. É a maior estrutura de Buda em Jarba,
construída no século XIII. A visita à Indonésia é sempre uma viagem a um mistério, ao que
nunca foi desvendado pelo homem antes. Outro destino que não pode faltar em qualquer
viagem à Indonésia é a Ilha de Bali, onde as palavras são poucas para descrever a beleza que
a natureza esculpiu em suas praias e seus mares. Bali é um paraíso para os apaixonados pelo
mergulho. Até quem nunca se aventurou num mundo submerso, pode conhecer seus corais,
animais gigantescos, peixes coloridos formando verdadeira aquarela submarina. Beleza que
faz de Bali a ilha mais procurada pelos turistas.
A Indonésia ainda é mais. É nas outras ilhas que também se encontra o verdadeiro significado
de que a unidade está na diversidade, nas florestas tropicais de Sumatra que poucos sabem
existir na Indonésia, no isolamento de Komodo, ilha famosa pelo maior descendente de vivo
dos dinossauros, conhecido como o Dragão de Komodo.
Outro exemplo de diversidade é o Cracatoa, na ilha de Banca, o maior vulcão da Indonésia.
Sua erupção mais famosa foi em 1883. O Cracatoa e suas explosões criaram, mas também
destruíram várias ilhas com o efeito de suas erupções. Para os turistas mais dispostos, passear
pelas cinzas vulcânicas é a aventura imperdível.
A Indonésia é a terra com mais vulcões de todo o planeta, mas o passado da Indonésia não
está só nas rochas vulcânicas ou em suas ruínas. Toda a memória deste povo está principalmente
em suas tradições mantidas até hoje e o Ayham é prova disto. Um teatro de sombras que
retrata para crianças as lutas entre o bem e o mal.
Outra tradição destas máscaras é que elas fazem parte do topem, uma dança quase mágica
que conta história de batalhas, duelos, vidas de antigos reis. Feitas artesanalmente, há a crença
de que cada uma destas máscaras tem personalidade própria desde a hora que é criada.
O Legon Cratom é outra prova da cultura da Indonésia: uma dança do século XIII, que só
podia ser encenada por meninas dentro dos palácios. Hoje, a dança é uma das maiores
provas de que a cultura da Indonésia está viva em cada movimento.
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Esta é uma pequena mostra do que é a Indonésia: uma terra de danças exóticas, um lugar
onde o maior tesouro é a cultura dos mais de duzentos e vinte milhões de habitantes, todos
sempre de braços abertos para receber os nossos visitantes. Quem conhece sabe o significado
desta magia. É como um presente dos deuses. O impossível é sair da Indonésia sem levar um
pedacinho destas ilhas dentro da memória e dentro do coração."
Ahmsa Soekartono- Até agora nós ainda não realizamos um projeto formal, digamos assim,
para realizar este Intercâmbio Cultural, mas desde 1953 nós já demos o primeiro passo e
realizamos vários shows em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. E em outros lugares. Quer
dizer, nós estamos melhorando e aumentando nossa atuação no Brasil.
Estamos tentando divulgar a cultura contemporânea na Indonésia, mas vocês devem saber
que na Indonésia, várias pessoas conhecem muito bem música brasileira, principalmente as
músicas de Antônio Carlos Jobim, bossa nova, Gilberto Gil.
Agora em Jacarta há um grupo de capoeira. Estão dando aula de capoeira em Jacarta. É um
grupo brasileiro que está lá e existem vários alunos que estão interessados. É ótimo ver este
tipo de coisa. Está se tornando a atividade predileta. A cultura brasileira está se tornando
cultura popular, mas eu podia dizer que até agora nós não formalizamos esse intercâmbio,
mas com certeza virá. É um processo lento, infelizmente, mas eu também quero lhes informar
que tempos atrás, nos anos 80, nós assistimos as novelas brasileiras e realmente estas novelas
comoveram o povo da Indonésia.
Escrava Isaura, por exemplo, tornou-se famosa na Indonésia. Talvez no futuro, quando abrirmos
este canal com o Brasil, talvez vocês também possam assistir nossas novelas, os nossos
programas como, por exemplo, uma história sobre um garoto que luta para melhorar, para
pular de classe social, de uma classe baixa para uma classe alta.
Portugal
- Adriano Jordão: "P
olítica de Descentralização Cultural em PPortugal"
ortugal"
"Política
Pediram-me um tema e eu pensei como um pianista. Eu pensei, ao longo destes anos, em
relação ao que eu conheço do Brasil, das muitas e muitas vezes que toquei no Brasil e que já
toquei em Fortaleza, no Theatro José de Alencar. Mas resolvi falar sobre o mundo que nós
vivemos, este mundo de globalização.
Eu estava a dizer que neste mundo globalizado que nós vivemos, aqueles que andam por aí
pensam que tentam pensar, que olham e que ouvem. Todos estes vivem uma ficção. Eu não
sou uma pessoa crítica, eu acho que na vida tem sempre o lado positivo e o lado negativo,
portanto a globalização tem suas qualidades e tem seus riscos no ponto de vista cultural. No
meu ponto de vista estou aqui para defender a cultura portuguesa. Portugal é um país
preterido da Europa, um país que está ao piscar o olho para o Ceará, é um país que não tem
meios para impor a sua cultura.
Cada vez que eu chego a uma terra, eu peço muitas desculpas, pois eu não quero
ofender ninguém, mas a cada vez que se abre um McDonald eu fico feliz, porque eu fui
criado com coisas deste gênero. Não é por isso que temos que nos defender e preservar
nossos valores. Neste sentido, Portugal e o Ceará tem muito em comum e juntos temos
que preservar aquilo que nos une, devemos respeitar aquilo que nos diferencia e cooperar,
de modo que das quatro coisas que estão escritas ali no painel, Fórum, Cooperação,
Cultural e Internacional, a que mais se adequa a mim é a cooperação, no sentido dinâmico
da palavra cooperação. E eu vou dar a minha cooperação, e aguardo das autoridades
cearenses cooperação simétrica.
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Neste sentido da globalização, nós passamos do internacional ao nacional, do nacional
ao regional, e do regional ao local, a fenômenos que são transpostos num sentido em
outro. Quando aqui se falou de manhã no centripetismo dos grandes centros nacionais,
lembramos que Portugal tem um pouquinho mais de habitantes do que o Ceará, mas
uma relação muito semelhante no âmbito nacional e territorial, e temos uma grande
história em comum para trás.
Com tudo que a história tem de bom, de mau, de ótimo, de maravilhoso, de péssimo, a
história faz parte da nossa história. O Ceará é da minha família sempre, quer sim, quer não.
Podem ser os primos que gostamos menos, mas acontece nas famílias, mas somos primos,
irmãos, filhos, isso no sentido mútuo.
Bom, após a Segunda Guerra Mundial assistimos uma tentativa intencional por parte dos
governos, e eu penso que na Europa quem abriu o esqueminha foi o Ministro André
Marroco da França, que contrariou este centripetismo, esta atração que as grandes cidades
têm pela exclusividade da cultura e criou rede de casas da cultura na França.
Em Portugal vivemos esta abertura, amigos estrangeiros me dizem que o Portugal de hoje
não tem nada a ver com o Portugal de vinte anos atrás. Para mim é extraordinário, pois
penso nos meus filhos, nos meus netos e dá aquela sensação de achar que na minha
infância era um país chato, cinzento, triste e hoje ver que é um país alegre, aberto para o
futuro moderno. Hoje Portugal é um país moderno.
Isso aconteceu depois da revolução de 30 anos atrás, e na década de 80, sobretudo,
houve um enormíssimo evento em Portugal. Houve uma política intencional de contrariar
a diversificação humana que existiu em Portugal com a imigração para a Europa. Estava
criada a simetria extraordinária do meu país com quase exclusividade de Lisboa, Porto e,
tradicionalmente, Coimbra.
Ouvia aqui de manhã, que no século XIX no Brasil, as Faculdades de Direito que havia em
Pernambuco e São Paulo determinavam o pensamento nacional e eu sou formado em
Direito. Quando eu me formei, em Portugal só havia uma Faculdade de Direito em Lisboa
e outra no Porto e ponto final.
Mudando e adaptando os países, mesmo assim era realmente muito pouco o que havia,
o jovem que vivia sem estruturas diárias, sem meios de comunicação, com dificuldades
econômicas, não podia seguir o ensino superior. A melhoria das estruturas diárias, que foi
um grande investimento do governo nos anos 80, acompanhou esta abertura das redes
de universidades, que ao meu ver foi a medida crucial para a fixação dos jovens no interior
do país, como vocês sabem e eu posso testemunhar.
Estas u niversidades que são pólos de cultura, que foram criadas nas comunidades, são
cada vez maiores. Empresas são aquilo que nos gera economia. Eu sou muito a favor da
economia, do cluster da criatividade, e que se mencionou também esta manhã quando a
Sra. Secretária disse: "Que a cultura importasse o turismo". Esta ligação entre o Turismo e
a Cultura é essencial, faz parte clássica da criatividade que é a exploração das idéias, dos
conhecimentos que se geram em termos econômicos, aumentando o que gera riqueza. É
preciso que os governantes se convençam de que a cultura gera riqueza.
Ontem eu ouvi o Sr. Governador dizer que o desenvolvimento sem estrutura cultural em
um estado é perdido, e eu ouvi dele uma coisa que eu penso que nunca ouvi na minha
vida alguém dizer: "A cultura é a minha prioridade". Eu tenho ouvido dizer "a educação é
a minha prioridade", que "a saúde é prioridade", muitas vezes isso se cumpre ou não, mas
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ouvir dizer que a prioridade era a cultura nunca ouvi. Já o simples fato de um dirigente
político dizer isso em público, mostra como esta onda de compreensão de cultura como
parte deste cluster é essencial.
Nós viemos aqui conhecer um conjunto de indústrias que produzem produtos culturais.
Mesmo indústrias que têm contratos indiretamente, mas que incluem organizações não
lucrativas, que incluem alguns espetáculos, turismo, um software, a indústria de notícias,
de entretenimento, a publicidade. Tudo isso cria serviços abstratos que são cultural e
economicamente rentáveis.
Este cluster exprimia-se nas grandes cidades, depois novamente se desenvolve na oposição
de duas cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. Eu falei em oposição e o questionamento é
típico, mas não é só Rio de Janeiro e São Paulo, é Madri e Barcelona, e em nosso caso em
Portugal, Lisboa e Porto. Há uma sociedade tradicional, há uma sociedade que cria riqueza
e que tem uma tendência a chamar mais a si as coisas.
O nosso papel aqui, o nosso de Portugal e o vosso do Ceará, não é lutar contra isso, não
é nos defendermos disto, é como eu costumo dizer para mim na música: "não olhes para
mim, sigamos em frente, sigamos o nosso caminho e, se nós seguirmos o nosso caminho,
os resultados virão com certeza".
Durante um certo período, desde as décadas de 50, 60 ou 70, houve comunidades
européias, menores no sentido geográfico e maiores no sentido histórico, que cresceram
com a cultura, como Salzburg que hoje vive praticamente dos festivais: Festival Abelson
Folder, Festival da Páscoa, Festival do Outono, Festival da Primavera, Festival da Música,
Festival do Violino, festivais o ano inteiro. Vemos que a economia neste caso está totalmente
subordinada à ação cultural.
Há o exemplo menos conhecido, mas que também pensei que é o exemplo da Inglaterra,
a Estátua Pody Have que se não fosse por Shakespeare, sequer estava no mapa. Há um
caso semelhante na Espanha, pois nós podemos dizer que Bilbao tem duas vidas: Bilbao
antes do Gugenheim e Bilbao depois do Gugenheim e eu vou arriscar uma previsão.
Vamos assistir ao Icó antes do festival e Icó depois do festival. No ano que vem eu lhe direi
a comparação para que isto aconteça. Exatamente isso que é importante para que as
comunidades vejam como a descentralização no sentido positivo pode trazer valor
acrescentado, valor que é mensurável.
Hoje as pessoas das finanças, muitas não têm qualquer sensibilidade cultural (coitados são
limitados) e só sabem ver o que é mensurável. Nós podemos mensurar isto, nós somos da
cultura deste país e uma sociedade civil. Eu hoje sou diplomata, mas os que vêm da sociedade
civil têm que aprender e saber mensurar, e saber dizer, e saber provar como o investimento
na cultura é um investimento importante para o bem-estar das populações.
Como eu ouvi pela manhã, nós não podíamos ver a cultura como no século XIX, que é
uma grande tendência que existe nos meios culturais, nós temos dois tipos de abordagem:
a dos retrógrados, que vivem sempre no século XIX; e temos depois um salto dos
vanguardistas, que vêem às vezes com muita noção. É preciso encontrar aquilo que eu
acho o bom sentido da palavra elite, porque as elites culturais têm obrigação de por ao
serviço da comunidade este privilégio que tiveram de divulgação, de contatos.
Devemos pensar qual é o caminho, para onde é que é isto vai. Aproveitar porque o
amanhã está hoje já orientado para o amanhã e não orientado para o ontem. Quando eu
vejo este Portugal novo, este Portugal moderno, o Portugal do século XXI, um Portugal
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A primeira à qual eu sou muito ligado, já que a minha família é da Figueira, um núcleo de
uma cidade, (que não é nem Lisboa nem Porto), mas uma cidade perto de Coimbra, uma
cidade à beira-mar numa região que é a principal emissora de portugueses para o Ceará.
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que se orgulha do seu passado, mas que se apresenta como europeu e, sobretudo aberto
à cooperação com o Ceará, eu trago à Secretária duas propostas muito concretas.
No fim do século XIX e começo do século XX, numa ação de descentralização que o
Governo fez em Portugal e que foi muito grande, lembro da recuperação de teatros: o
Garcia do Gazeei, do Faro, o Teatro Jane Castro Alves, o Teatro Sino Braga. Foram teatros
que estavam decadentes e que foram recuperados, mas hoje também acho muito
importante, porque quando se pensa em espetáculo hoje não se pode ver um teatro na
sua forma tradicional.
Hoje, como muito bem foi dito de manhã, fazem centros polivalentes na sua forma
tradicional, mas que podem também funcionar em outros meios modernos adaptados ao
nosso tempo.
Foi inaugurado há um ano o extraordinário Centro de Arte e Espetáculo e eu trouxe
congratularmente para a Sra. Secretária uma carta do prefeito da cidade. Entreguei ontem
ao Sr. Governador um documento em que se demonstra que seu presidente e nós temos
por obrigação fazer o Centro funcionar, portanto há uma comunidade em Lisboa, em
Portugal com ligações com o Ceará e que querem incrementar ações. Também precisaria
de produtores da Indonésia, pois estamos à sua espera, mas queremos incrementar
articulações específicas desta região com o Ceará. A sessenta quilômetros da Figueira foi
inaugurado em outubro um maravilhoso teatro.
É bonito não é? É Bonito.
O Sr. Cônsul Metavan me diz que eu aí não podia dizer do teatro de Lisboa, mas que o
teatro também está a serviço do Ceará. Como eu sou músico, eu entendo, ao contrário do
ministro da cultura, que quando tomou posse disse assim: "Eu, como venho da música,
evidentemente não vou privilegiar a música", pois eu digo o contrário: "Eu, como venho da
música, vou privilegiar a música, não tenho dúvida nenhuma".
Foi criada também na década de 90 uma rede de orquestras regionais em Portugal, que é
muito pequeno, é um retangulozinho. Foram criadas orquestras que fazem sua atuação
para as populações de fora dos grandes centros.
A Orquestra do Porto (e depois a orquestra do norte que cobre todo o território) faz
concertos com programas itinerantes, e é por isso que nos seus onze anos tocaram para
mais de seiscentas mil pessoas, realizaram mais de dois mil concertos, numa média de
cento e oitenta concertos por ano, porque prepara um programa e depois toca uma, duas,
sete vezes o mesmo programa, correndo até a pequenas igrejas. Bom, esta orquestra está
em um programa maravilhoso, didático, para crianças.
Gostaria muito de fazer protocolos sobre José de Alencar, protocolos que seriam os possíveis.
Não vamos dizer que vamos trazer 100 pessoas para Portugal. Vamos pregar, trocar
programas: isso não custa nada, é mandado pelo correio. Levar a orquestra do Ceará para
lá e trazer a portuguesa para cá é mais difícil, pois há um grande caminho a percorrer e
nestas condições é muito usual ouvir um não, baseado nas dificuldades, pois é ótima
desculpa, a de que não há verba. Se não há verba faça sem verba, não é verdade? Pois é
isso que eu vim dizer: se não há verba faça sem verba.
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Coréia
- Secretário Hak Y
ou Kim: "História e Cultura da Coréia"
You
Muitos dos cearenses conhecem muito pouco sobre a Coréia, então eu gostaria de apresentar
um pouco, brevemente, a história cultural da Coréia.
Bom, eu gostaria de apresentar primeiro a história da Coréia, como surgiu a Coréia, então
eu queria começar com um mito. Tem uma lenda de como surgiu a península coreana,
porque há cinco mil anos um filho de deuses desceu na península com treze mil seguidores,
mas naquela época dois animais queriam se tornar seres humanos: era um tigre e um urso.
E aquele Deus impôs uma condição: aqueles animais tinham que ficar numa gruta comendo
alhos durante cem dias, mas o tigre não conseguiu, e o urso sim. Aí o urso se tornou uma
linda mulher e casou com o filho de Deus e deles nasceu outro filho e foi este filho quem
criou a península coreana. Essa é a lenda.
Havia algumas cidades e estados naquela época, mas depois se tornaram três reinos
importantes. (Mostrando o mapa:) Em cima tem o Rhogurio, onde atualmente é a península
da Coréia, mas Seruhro ficou até esta parte e Cogulo é aqui. Ultimamente a China dominou
os reinos e se tornou a China unificada.
Bom, qualquer território fica bem perto da China e do Japão e a gente tem muita história
com esses países, mas como aqui tem representantes da China e do Japão, eu não vou
falar muito mal deles.
Tive que falar isso, não tem jeito. (Mostrando o mapa:) A China unificada tomou esta
parte, mas perdeu muito terreno em cima, mas surgiu outra dinastia que se chamava
Pahe. Essa era para seguir a Coréia que foi dominada pela China, mas durou pouco tempo
e só ficou a China. Então a China teve uma dinastia que durou mil anos e tem muito forte
o budismo e muita cultura.
Bom, depois a China foi enfraquecida e surgiu outra dinastia que se chamava Coréo, era
um país que queria dominar o território que ocupava esta parte e agora é da China e queria
ocupá-lo, mas não tinha tanta força militar e acabou ficando com esta parte.
Essa Coréo era antigamente um país também, um país de budismo. O atual nome da
Coréia saiu deste nome Coréo, que parece que era árabe, pois esse povo foi para a
Coréia e ali teve um negócio, e como gostaram da península eles começaram a
chamá-la Coréia.
Depois veio Gorho e houve um golpe militar, pois ele estava indo invadir a China, aí ele
voltou e ao contrário, derrubou aquela dinastia Coréo e fundou a nova dinastia que chama
Dyoson, que agora tomou uma península inteira da Coréia.
Então quer dizer que na última dinastia, a Dyoson, era muito forte o confucionismo.
Então o confucionismo surgiu na China, mas floresceu na península coreana.
Eles enfatizaram muito a literatura, as artes, muitas outras coisas e não deram muita importância
à força militar. Isso é que os enfraqueceu muito no século XIV, quando surgiu o imperialismo,
então acabaram ficando dominados pelo Japão durante quarenta e cinco anos.
Bom, durante quarenta e cinco anos sofreu influência do imperialismo. O Japão dominou
a Coréia e houve muitos protestos, muitos intelectuais que havia no continente da China,
fizeram manifestação e houve muita luta, muita resistência. Foram fazer o motim da
Segunda Guerra Mundial e a Coréia virou novamente um país independente.
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Em vez de se tornar um país independente, a Coréia, que é cercada geograficamente pelo
Japão, China e Rússia, torna-se um ponto muito estratégico naquela região, e por isso
houve muita briga, muito conflito político e acabou não tendo consenso com a União
Soviética e os Estados Unidos, o que acabou dividindo a Coréia em duas partes.
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Com essa libertação do domínio do Japão, infelizmente se teve que dividir a Coréia em
duas partes: Coréia do Sul e Coréia do Norte. Naquela época, a Coréia do Norte teve
influência da União Soviética, e a Coréia do Sul dos Estados Unidos.
Eu quero falar mais sobre a Guerra da Coréia que começou em 1950. A Coréia do Norte
invadiu a do Sul, com a ajuda da União Soviética, e a Guerra durou três anos, com três
milhões de mortos naquela época. Milhões de familiares estão separados até hoje e não
tiveram notícias. Por exemplo, os senhores devem ter visto pela televisão um irmão, uma
mãe e um filho que se encontraram depois de 65 a 70 anos, e isso é muito triste, tem uma
influência política muito grande, influencia muito ainda na política da Coréia.
Eu queria falar sobre a população da Coréia. Hoje há cerca de quarenta e sete milhões de
habitantes e é um povo muito alegre, que gosta de muita dança como brasileiros também,
e vocês devem ter visto isso na Copa do Mundo, já que havia uma multidão na torcida
pelo futebol coreano. São fracos, mas eles cresceram muito e foram para a semifinal, mas
a torcida deve ter ajudado o time.
Esta população é muito alegre por causa da Síria Unificada, porque a Coréia se unificou e
aí nos livramos do problema de etnia.
Eu vou falar de uma das características principais da Coréia. Temos essas raízes que são
muito fortes, e dizem que quando cresce muito parece que mostra a forma de um ser
humano, e aí quando fica mais tempo fica melhor e também é muito bom para a saúde,
especialmente para o homem. A gente acredita na medicina oriental que é muito famosa
na Ásia e agora no mundo inteiro.
Existia uma língua entre o povo, mas naquela época havia um nobre que dominava, então
o povo não sabia escrever. Então naquela época, um rei no século XV ou XVI, que se
chamava Sérgio, estudou e criou uma nova língua, com dez vogais e quatorze consoantes.
É uma língua muito científica e dizem que é uma pronúncia de qualquer coisa, e como foi
criada com a própria vontade, dizem que é muito cientifica, muito boa, é fácil de aprender,
muito fácil, mais fácil do que o próprio chinês. Na verdade, o chinês é muito difícil, até
para um chinês.
Eu vou falar um pouco da gastronomia da Coréia, porque é de uma comida muito picante,
talvez por ela ser feita na chapa, na hora, a gente usa molho de shoyu, pouco açúcar,
gengibre, alho, cebolinha, muitas coisas. Os norte-americanos gostam muito, acho que
eles não gostam de doce. Em geral a comida coreana é muito picante, com muita pimenta
e acelga. É fermentada e nós não comemos muito queijo como os brasileiros. Como a
gente come acelga e fermentado então não precisamos de queijo. Isso também nos
causaria problema de estômago, teríamos vários cânceres na Coréia. É até inacreditável,
até existe seguro para câncer de estômago e aí a gente gasta muita grana por causa disso.
Tem uma dança de máscaras muito famosa que eu acho que os srs. não devem ter visto.
A nossa Embaixada já apresentou várias vezes em São Paulo, no Rio de Janeiro, mas aqui
em Fortaleza ainda não. Fiquei sabendo que aqui tem um teatro bom e fiquei de trazer
uma dança. Quem sabe venha também outra coisa e essa dança de máscaras que é muito
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famosa. Quando a rainha Elizabeth visitou a Coréia foi para uma ilha tradicional onde iria
ter a Festa de Máscaras. Eu também gosto muito, é uma dança popular que agora virou
uma apresentação espetacular.
A Coréia é um país muito pequeno. O tamanho é um terço do Estado de São Paulo e,
além disso, 70% da terra é montanhosa, então nesses 30% a densidade é muito grande.
Na Coréia do Norte são 22 milhões e na Coréia do Sul 70 milhões de habitantes.
Há muitas montanhas bonitas para que a gente possa fazer esporte radical e na Coréia se
gosta muito disso. Eu gosto muito das montanhas brasileiras. Elas são muito altas. Eu não
conheço o Pico da Neblina, mas vou subir, e também já subi escalando o Pão de Açúcar.
Mas quem gosta de montanha devia adorar a Coréia porque tem quatro estações super
marcadas: primavera, verão, inverno e outono. O outono, com folhas bem coloridas é a
mais bonita. O inverno também é muito bonito, não por causa da cultura. O turismo
também é muito bom e quem quiser passear no Japão, China, pode também passar por lá.
E o Tae kon do não é tão popular como o futebol aqui no Brasil, mas muita gente pratica, até
eu aprendi na escola primária, no exército também, mas nunca cheguei a faixa preta. O Tae
kon Do é muito praticado, mas agora virou um esporte e é uma luta oficial das olimpíadas.
Mas, além do Tae kon do, há várias artes marciais da Coréia que são muito famosas.
Síria
- Sr
urismo Cultural na Síria"
Sr.. Glassanabbas: "O TTurismo
A República Árabe da Síria tem uma área de 285.000 quilômetros, então é um pouco menor
que o estado de São Paulo. É uma pergunta que se pode fazer porque vamos visitar a Síria,
e na Síria pode-se encontrar praticamente os rastros das civilizações mais antigas do mundo.
Lá são encontradas mais de três mil jazidas que representam mais de trinta civilizações.
Vamos falar mais à frente destas cidades. Vamos falar de um motivo muito importante
para visitar a Síria que é um motivo cultural que chama Turismo Cultural, mas além do
Turismo Cultural temos vários motivos como estão colocados aqui: temos a geografia, a
situação estratégica frente aos continentes do mundo antigo, o clima moderado, a variação
de paisagem, da montanha, deserto e o litoral (porque nós temos o litoral oriental do
Mediterrâneo), a amabilidade do povo, a segurança (ainda que isto pareça absurdo, ainda
que estejamos numa área tão quente do mundo, temos poucos conflitos, uma vida sem
guerra, sem sangue, sem violência. Quem procura a Síria percebe que há verdadeiramente
uma segurança que pode ser percebida por qualquer visitante).
Vamos falar sobre algumas das épocas do Paleolítico. Podem ser encontrados na Síria
restos de milhões de anos, um ser humano de um milhão de anos antes de Jesus Cristo.
São encontrados na parte norte da Síria, especialmente na bacia do rio Oriente e na bacia
do Eufrates. Na bacia do Rio Oriente, encontram-se restos humanos que correspondem a
quinhentos mil anos antes de Jesus Cristo e encontram-se também alguns instrumentos
como machados e outros artefatos para o uso pessoal que foram encontrados e ainda
algum rastro da utilização inicial do fogo.
Na era do Mesolítico só são encontradas algumas cidades, onde pode ser representada
muito bem esta era: o Gerudo, o Alcom que é próximo a Bina, uma magnífica cidade da
época e que conserva muitos monumentos romanos.
Temos Hamurábi e aqui embaixo podemos ver duas da época do Mesolítico, de doze mil
anos antes de Cristo até oito mil anos. De nove mil anos antes de Cristo pode ser encontrado
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um culto à deusa mãe, figuras que pertencem a sete mil anos atrás antes de Cristo, figuras
que estão conservadas no Museu de Delego, figuras de outro culto sagrado. Havia um
culto muito famoso na Síria, desde os cultos dos antepassados até a era do Neolítico,em
vários lugares: Aramoibé, Tharalaha. Uma missão espanhola encontrou restos de tecidos
que pertencem a sete mil antes de Cristo, restos de desenhos de mulheres que estão
praticando atividades diárias do cotidiano e também encontraram restos de canalização
de água e que pertencem a oito mil anos antes de Cristo.
O Governo da Síria estava fazendo uma represa perto de Rhalona e fez uma chamada
internacional para que todas as missões paleontológicas fossem ali para ver e encontrar ali
realmente coisas magníficas.
Vamos falar detalhadamente sobre as civilizações que passaram na Síria, desde a época
antiga começando pelos romenos. Temos um lugar que representa bem esta civilização
que é Talbra, que está situado a Oeste do Rio Jagua, afluente do Eufrates, que é um dos
rios mais importantes da Mesopotâmia e o resto do lugar tem várias atividades de eventos
militares, de seis mil a dois mil antes de Cristo. Temos vários homens e animais encontrados
neste sítio e representamos aqui a figura dos ossos que foram encontrados, um par de
estátuas que foram encontradas no Templo dos Olhos em Baraqui.
Depois falamos dos Arcários, aos quais pertence o rei que se chama Sargão, que tem
outro nome que é chamado Ochonkir, que é o rei justo. Sua dinastia governou mais de
cento e oitenta anos. Tem um famoso rei também que é chamado Freitamba, que foi
chamado nos seus dias o rei dos quatro cantos da terra e conservam o quadro deste rei
que representa Sibar, a Cidade de Chaves, porque antigamente naquela época cada cidade
tinha um Deus e a obediência ao Deus era o mais importante, como agora é a lealdade a
um governo ou a uma nacionalidade. Antigamente a lealdade para um Deus era a mesma
coisa que a relação de nacionalidade hoje, as relações políticas.
Os amoreus que tinham civilizações, tinham várias cidades na Síria e naquela época
estavam mais caracterizados por guerras, então essas cidades estão caracterizadas pelas
fortificações que temos, inclusive fortificações de oito metros e trinta, ou seja, as pessoas
começaram a ter medo e começaram a construir castelos para se proteger dos ataques
dos vizinhos inimigos, etc.
Sob o meu ponto de vista, temos duas cidades muito importantes na Síria, que são Mary
e Hebla. Mary foi a capital da dinastia real posterior ao dilúvio e era uma cidade muito
famosa e hoje, quem visita fica muito encantado da forma de organizar esta cidade, pois
tinha um palácio muito importante, que é o palácio de Sabreli, que tinha duzentos e oito
habitações, tinha o muro sagrado que estava em torno da cidade e que tinha também
uma sala para receber embaixadores. Parece um pouco absurdo, mas houve embaixadores
tantos milhões de anos antes de Cristo.
Hebla também foi um centro cultural e político muito importante da Síria. Sua fundação foi
em 5.000 a.C., mas a época do seu apogeu foi de 2.400 a 2.300 a.C. e nos restam hoje as
escavações onde se descobriram mais de dezessete mil tabuletas de argila que deram uma
boa oportunidade de descobrir o que exatamente era aquela cidade. Foi encontrado em
Hebla o primeiro dicionário, de 10.000 a.C., da língua que falavam em Hebla, de aramaico
com assírio, então tinha uma mistura de sumério, com aramaico e assírio.
Hebla, no seu apogeu, controlava todas as rotas de comércio do Mediterrâneo, a
Mesopôtanea ao leste, Alatalia, ao Norte onde temos a Turquia, até Rhama ao sul onde é
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a Síria atual, e havia muitos produtos na cidade naquela época. A partir de 1.300 a.C.
acabou e não se encontra nenhuma notícia sobre Hebla por parte dos historiadores.
Vamos falar sobre os fenícios e os cananeus, ainda que a maioria das pessoas confundam.
Acreditam que os fenícios existem somente na Costa do Líbano, enquanto a existência
deste povo foi encontrada entre a Síria, Palestina e Líbano. Na Síria temos várias cidades e
a mais importante de todas, Teogadi, tem uma fama muito boa devido a que ali foi
descoberto o alfabeto cuneiforme. Também nesta cidade encontramos a primeira partitura
musical escrita e é algo incrível.
Em 1.600 a.C. em outras cidades como Ataquia, Latquia foram encontrados rastros de
um esporte e um estádio esportivo com as medidas olímpicas e algumas medidas que
podem ter antecipado o Estádio Olímpico de Atenas.
Além disso, foram encontrados os alfabetos, que para os intelectuais é um invento dos
mais importantes para a história do ser humano.
Depois falamos dos aramaicos que consideramos agora mesmo os árabes, pois eles são
descendentes dos aramaicos e até a linguagem falada hoje em dia pertence a esta rama
de língua se que chama Aramas recente. Os aramaicos têm alguns sítios na Síria e sua
capital que esteve um tempo na sua terra. Também temos outro reino que é chamado
de Arhan, dois rios Eufrates e Alcabú, que também têm bastantes restos arqueológicos
daquela época.
Damasco é onde se encontra a mesquita de Umayar. Essa mesquita era o primeiro templo
dos aramaicos e foi construída na base de um templo que se chamava Ada, no qual os
gregos que ocuparam a Síria construíram outro templo que pertence ao Deus Júpiter.
Depois da época romana, foi construída uma Igreja: a Igreja de São João. Em São João
Batista encontram-se os restos mortais que estavam ainda na mesquita.
Os persas praticamente ocuparam a Síria mais de uma vez, mas eu me referi a isso
particularmente porque hoje são encontrados restos sobre os persas.
Os gregos bitalomeus que pertencem ao reino de Alexandre Magno, que pertenceu à Síria
em 330 a.C., depois da batalha que foi praticamente entre persas e gregos, deixou várias
cidades construídas na Síria: a Panameia é uma delas, e é uma cidade magnífica.
Também temos um mercado, que é chamado de mercado Reto, que tem o comprimento de
três quilômetros. É uma parte desta construção dessa cidade que foi fundada com o nome
de Apamea. Apamea também recebeu visitas muito importantes de personalidades como
Cleópata, Marco Antônio e Aníbal e então na sua época era uma cidade muito importante.
Falamos sobre os romanos que ocuparam a Síria entre 64 a.C. a mando do General Marco
Emílio Socorro, e que a Síria ficou nas mãos do Império Romano, então Roma influenciou
a Síria, e ela influenciou Roma.
A cidade de que vamos falar agora, está perto de Bossora, e se chama Charban, de
240 d.C. É nova, na qual foi nomeado o Árabe Imperador de Roma, mas antes desta
data tinha outra família que pertencia à família Julia Dona, que tiveram alguns
imperadores como Alexandre Sibério, graças à educação de duas mulheres, Julia Dona
e Julia Missa, que eram duas irmãs e que para empossar estes imperadores fizeram
gerar o filho de Ciro.
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Aqui temos que observar que neste pequeno tempo não se pode falar praticamente sobre
toda a história de um país, mas somente podemos escolher alguns exemplos para poder
dar uma pequena idéia. A maioria das cidades da Síria mudou sua forma de governo.
Algumas cidades podem, como falamos, ter influência de várias civilizações como Amari,
Hebla, Damasco e a maioria.
Em geral, o turismo na Síria foi um setor limitado até os anos 70, porque o tema do
turismo pertencia ao Ministério da Economia. Hoje pertence a um ministério que tenta
industrializar o setor de turismo para poder corresponder às novidades mundiais.
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articipação:
Costa Rica - "A Contribuição do Patrimônio Cultural no Desenvolvimento do Turismo da
Costa Rica" - Sra. Faingeicht de Golbe, Embaixadora da Costa Rica em Brasília.
Romênia - "Convergências e Encontros Culturais entre Brasil e Romênia: Um espaço
unido pela Latinidade" - Sra. Mônica Mariana Gricoresco, Embaixadora da Rômenia em
Brasília.
Coordenação: Sheila Ritmam - Câmara de Comércio, Indústria, Turismo e
Cultura de Brasil e Israel
Costa Rica
- Sra. Faingeicht de Golbe
Costa Rica é um país privilegiado, um país que tem um patrimônio que foi dado por Deus
e que realmente é de causar inveja aos costarriquenhos. Nós soubemos dar lugar, que
corresponde à importância, que corresponde e tem sido parte da cultura costarriquenha
desde muitos anos, a que se falasse nos termos de ecologia, nos termos sustentados.
Eu estudei numa escola que se chama escola Brasil. Ali eu aprendi o Hino do Brasil.
Também na escola se ensinavam a importância de cuidar dos recursos naturais da Costa
Rica. O costarriquenho sempre recebeu esta educação.
Agora estão pondo atenção em outro tipo de turismo, o turismo que vem do patrimônio,
de cuidar do patrimônio histórico das nossas cidades, porque nós consideramos a herança
histórica e o patrimônio cultural que se converte num fio condutor do desenvolvimento
dos povos. Sua contribuição tem sido de grande importância no desenvolvimento e na
promoção do Turismo Cultural e Ecológico.
O turismo cultural se constitui em um segmento de interesse que está em plena expansão
e se converteu num protagonista da recuperação urbanística, arquitetônica e funcional
das nossas cidades.
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A cultura e sua diversidade são o eixo, a finalidade e o espaço primeiro onde são construídos
o capital social, intelectual, desenvolvimento e a governabilidade. A cultura e o turismo
constituem uma fonte direta e indireta de empregos, são fatores decisivos para atração de
investimentos estrangeiros. O turismo cultural enriquece os projetos culturais e proporciona
benefícios econômicos.
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Um produto turístico, no qual os consumidores procuram um contato mais direto com o
patrimônio e a cultura. Costa Rica é conhecida internacionalmente como um país exemplar,
dando prioridade no investimento de educação, saúde, benefícios sociais, serviços públicos
e na sustentabilidade de recursos naturais.
Já em 1897 em Costa Rica, é construído o Teatro Nacional quando a entrada de divisas
mais importante vinha da exportação de café. Hoje o café já não é o produto mais importante
de exportação.
Costa Rica goza de um sistema democrático e estável. O centenário da abolição
constitucional do exército em 1949, permitiu aos seus governantes dedicar um percentual
muito representativo dos recursos econômicos às causas sociais, à redução da taxa de
analfabetismo. Os índices de saúde e mortalidade infantil estão próximos daqueles dos
países desenvolvidos.
A revalorização do patrimônio cultural contribui em ativar o setor turístico e, nesse
sentido, a cultura pressupõe um valor agregado para o turismo. Temos que ser mais
ambiciosos incentivando os investimentos privados e a participação da sociedade na
atividade turística cultural.
Costa Rica também foi considerado um país privilegiado, por sua diversidade biológica,
como eu falei no começo, e um dos patrimônios mais importantes que nós temos,
apesar do seu pequeno tamanho, parece que está na América Central com 51 mil
km2, uma posição geográfica também privilegiada em uma área de convergência da
região tropical.
Nós temos dois litorais, o litoral do Oceano Pacífico e Oceano Atlântico uma parte
marítima que é dez vezes maior que a parte terrestre. Um país de extraordinária riqueza
biológica. É um dos países com maior diversidade de espécies do mundo. Por exemplo,
para ter uma idéia, a Costa Rica tem cerca de 0,01% da extensão global e tem 4% da
biodiversidade mundial.
Desde o século XIV vem se consolidando uma cultura ambiental que é um exemplo para
todo o mundo. Tivemos a visão de educar os homens e as mulheres neste tema.
A trajetória do costarriquenho, ao longo da história, para proteger o meio ambiente,
mereceu reconhecimento internacional e tem sido parte da cultura costa riquense, que é
de conservar e proteger a Terra e todos os seres vivos que se refugiam nelas.
Os costarriquenhos de várias épocas trabalharam para herdar às gerações futuras, um lugar
ambientalmente cheio de recursos valiosos. O ecoturismo tem sido um conceito que
revolucionou o turismo nacional e internacional. Têm se fortalecido na Costa Rica, com o
transcorrer dos anos, valores propriamente culturais. Não ficam desagregados e nem se
comprometem com interesses turísticos, longe disso. A maior influência dos monumentos
é a influência de admiradores que contribuem em afirmar a consciência de sua importância.
Um monumento restaurado adequadamente em um conjunto urbano dado o seu valor, o
Parque Nacional que é conservado. Costa Rica tem 30% da sua superfície em parques
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nacionais, área de preservação, um parque de preservação que é uma lição viva da história
e é um motivo de orgulho nacional. É muito possível estabelecer uma relação harmoniosa
entre a cultura e o crescimento econômico.
Gostaria de trazer aqui um fato que vive do passado. A Costa Rica depositou na sede um
instrumento de ratificação mediante o qual adere ao segundo protocolo da convenção de
Haia sobre a proteção dos bens culturais, em caso de conflito armado. Esta adesão de
Costa Rica entra em vigor e este protocolo necessitava da adesão número vinte para que
o protocolo entrasse em vigor.
Neste momento nós estamos muito felizes porque a humanidade conta com um instrumento
para guardar os bens culturais que resultam ameaçados nos casos de um conflito armado.
Para o gozo e benefício da educação, da cultura e das atuais e futuras gerações.
Para o governo da Costa Rica é uma honra ter sido o pai mediante o qual vai entrar em
vigor tão importante instrumento internacional, sobretudo tratando de um país sem exército
e da paz, da observância e dos direitos humanos.
Conhecer tudo aquilo que oferece este belo é uma aventura. Apesar de seu território só
chegar a 51 mil km², para conhecê-lo realmente temos que passar vários dias visitando suas
espetaculares praias ou sua exuberante e diferente Floresta das Nuvens, falando das pessoas
ou desfrutando das maravilhas de seu micro-clima, da sua flora ou da sua fauna.
Costa Rica está localizada na metade da América, está na América Central, está ao Norte
com a Nicarágua, ao sul com o Panamá com praias tanto no Pacífico quanto no Caribe.
Este país conta com um clima privilegiado na região na qual se converte no sentido deste
próximo e atrativo de fácil acesso, mas uma das coisas que mais atrai o turista é a
especialidade de sua gente, traços muito característicos da diversidade étnica que existe
neste país. Os costa riquenses, "os ticos" como carinhosamente chamamos, são pessoas
serviçais, dedicadas e muito espontâneas.
"Pura Vida" é a frase que melhor descreve a sua experiência neste país tão especial. Costa
Rica se diferencia dos demais países da região por sua moderna infra-estrutura, produção
de energia em harmonia com a natureza e seus avançados sistemas de telecomunicações,
um dos mais avançados na América Latina, como fax, Internet que cobre todo o país,
além de contar com serviços de luz, água e telefone. Sua geografia ainda facilita a
comodidade dos seus visitantes.
Por ser um país democrático por convicção, que não conta com o exército desde 1948,
permitiu contar com o investimento de grandes multinacionais na indústria da tecnologia
da telecomunicação. Com uma economia aberta, dedica 20% da sua produção à exportação
de equipamentos eletrônicos.
A banana e o já reconhecido café, que foi durante muitos anos o produto básico da
economia costa riquense deram lugar ao turismo, que se converteu na pedra angular de
divisas do país. Cada vez mais turistas do mundo reconhecem este pequeno oásis da
tranqüilidade, visto como um dos destinos mais completos e seguros do mundo.
Quinhentas mil espécies de fauna e flora, sessenta e cinco % da biodiversidade mundial.
Em poucos lugares do mundo é possível encontrar tantas maravilhas de todas as cores.
Florestas que permitem voar com a imaginação para a Costa Rica, um país de contrastes
que lhe permite descansar em uma praia branca pela manhã e ir até o mais imponente
vulcão ao cair do sol.
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Dividido em seis áreas de interesse turístico, o visitante poderá encontrar na Costa Rica
a natureza, a infra-estrutura, a diversão com que tanto sonhou nas suas férias. Nos
seus arredores, desde as mais bonitas vistas noturnas da montanha, até a calorosa
província onde nós encontramos um dos dois aeroportos internacionais do país. Agora,
se você procurar diversão noturna, São José oferece o calor da música ao vivo e da
alegria dos ticos.
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Vinte e cinco por cento do território de Costa Rica está dedicado à proteção da natureza
em áreas protegidas como em parques nacionais, reservas biológicas, reservas florestais e
área de manejo privado.
O Pacífico começa a duas horas de São José e se converteu no destino mais procurado
daqueles que amam o surf e, em geral, os esportes aquáticos. Além do mais, com um
acesso muito fácil por uma estrada de perfeito estado você encontrará uma das praias mais
belas do país: Manoel de Antônio, declarada zona de proteção e condecorada com bandeira
ecológica por seu esplendor natural.
O mistério e a magnificência do Tilipo, o ponto mais alto da Costa Rica, o expoente
perfeito do Pacífico Sul está na zona que se destaca pela diversidade de praias e ilhas
verdes, de todo tipo de fauna e muitos atrativos. Nos planaltos do norte poderá experimentar
o místico poder do vulcão Arenado, com sua força natural e imponência que fazem dele
único no mundo. Esta zona é além do mais, a preferida daqueles que gostam do windsurf,
da equitação e de observação de árvores.
Mas quando falamos do sabor e beleza selvagens, não podemos pensar em outra região
que a do Caribe. Com uma clara influência caribenha, com suas praias que descansam no
mar do Caribe, são por si mesmas, um novo mundo em Costa Rica. As diversas cores das
suas paradisíacas praias douradas, brancas, cinzas, pretas contrastam com o verde furioso
da sua espessa vegetação.
Ter que falar das suas comidas e ter suas experiências todas é uma fusão européia e caribenha
que somente é superada pela diversidade dos esportes e lazer encontrada na área. Como
uma receita em que misturamos quilos de natureza viva, centos de paz e alegria e uma
colher dos encantos dos ticos. Definitivamente, a Costa Rica não precisa de ingredientes
artificiais. O único que falta é você.
Romênia
- Embaixadora Mônica Mariana Gricorescu: "Convergências
e Encontros Culturais entre Brasil e Romênia: Um espaço unido pela Latinidade"
Se fosse falar da relação do Brasil com meu país, necessitaria de muito tempo. Toda a
minha vida, trinta e cinco anos que eu estudo a América Latina, tive a idéia da grandeza
da América Latina, espaço que eu conheço e que considero a minha segunda casa. Falo
todos estes idiomas do continente: inglês, francês, espanhol e português. Gerônimo
Moscardo, que foi Ministro da Cultura, é cearense e morou no meu país. Uma das
luminosas figuras de intelectuais no nosso novo mundo e que nós consideramos que
pertence às duas civilizações.
Ele é para nós um grande europeu, um grande conhecedor da nossa cultura e um grande
brasileiro e cearense, porque a primeira coisa que eu vi no seu escritório quando eu entrei
era a bandeira do Brasil. Era uma bandeira totalmente desconhecida. E eu perguntei:
"Gerônimo, o que é isso?" e ele disse: "Esta é a bandeira do Ceará, minha pátria".
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O que ele fez durante estes seis anos, eu escreveria um doce livro, porque antes de eu
entrar aqui como Embaixadora eu publiquei dois livros sobre o Brasil e com quinhentos
artigos eu fiz comparações sobre a vossa cultura e como ter na nossa espiritualidade da
Europa a imagem querida de um novo mundo da sua originalidade, força criativa. Eu tive
um amplo curso na Academia Diplomática de meu país, que analisando quinhentos anos
de filosofia, cultura e literatura de toda a Europa eu achei com cinco mil páginas escritas,
como este país aparece, este continente tão utópico e de sonhos.
Os primeiros filósofos europeus que tiveram a noção de utopia foram Thomas Morus e
Ramphanela. Falaram da utopia porque existia um novo mundo, porque tinham a esperança
de que a vida pode ser melhor em outra casa. Mas o Ceará não é para mim somente o
Embaixador Moscardo, mas é também para meu curso, o Cônsul honorário o Professor
Luciano Maia, Cônsul honorário em Fortaleza, a mais querida personalidade brasileira
que conhece meu idioma que traduziu vários livros em português, mas é um tradutor de
poesias, a coisa mais sofisticada que existe no mundo.
Traduziu as obras dos grandes românticos do século XIV, da Europa e do meu país,
traduziu as mais complicadas baladas folclóricas de um país como o meu que tem mais
de três mil anos de história. São patrimônios como para vocês são as literaturas de cordel,
patrimônio de uma sabedoria que deu uma filosofia antes da morte.
Eu havia preparado uma análise, uma análise do tipo da filosofia da cultura. Eu analisava
onde estava o Brasil e onde estava a Romênia no campo da afinidade.
Porque a Romênia é a ultima fronteira de Roma, a afinidade do Oriente e vocês estão na
afinidade das Américas. Isso me impressiona. Adorei o livro de Darcy Ribeiro intitulado "O
Povo Brasileiro". Descobri uma frase que é agora o título do meu último livro sobre o
Brasil. Esta frase fala assim: "Brasil, uma Roma tardia, mulata e tropical". Assim, me sentia
latina, que é herdeira de dois corpos de idéias imperiais, porque nós estamos em nossa
língua e sistema de valores que vieram da Roma, mas para nossa religião, ortodoxia, filho
do império de Bizantino, batizado pelo apóstolo André. Somos cristãos do primeiro
momento da cristianidade.
Mas queria dizer uma coisa sobre a Romênia e o Brasil. O que eu quero sublinhar é que
a característica comum e mais profunda é que os dois povos são latinos e arrogantes.
Diria que o grande encontro entre os vários países se faz em diversos territórios da cultura.
Não podemos esquecer que nesta parte do mundo, que está contada pela primeira vez
por Heródoto, é o território onde apareceu pela primeira vez o carnaval, o carnaval de
Dioson. Esta é a mesma festa da irreverência durante três dias e o dono seu, o homem, é
livre. Já não está estressado. Não são livres, mas se sentem livres por três dias. Uma
heroína se comporta como uma mulher qualquer e a escrava se sente uma heroína.
Nosso carnaval é um carnaval de grande alegria, mas também é o carnaval da irreverência
e da liberdade. Falando de valores comuns eu me lembro o nome de um padre da história
da religião, o professor Romeno Mercealado que é um padre e professor da Universidade
de Chicago. Em um de seus livros ele analisa a semelhança dos índios do Amazonas com
os pré-cristãos do meu país e descobre que a noção do paraíso é a que você tem que
mostrar a sua aspiração do bem.
Veja que a expressão do paraíso é expressa pelos índios da Amazônia, de todos os jeitos,
estão sendo expressas em todas as idéias de três mil anos atrás do meu país. Também
como um mito da Gênesis de tantos mitos naturais que é gente antes de Cristo, que
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Falando em relatividade e antigüidade, sendo por várias vezes palestrante em grandes
universidades como é na USP, Mackenzie, na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
encontrei algo em comum com meu país. Os professores da universidade, também
namorados das idéias do meu país, de um altíssimo nível intelectual, que conhecem
muito bem o pensamento do meu país, e descobri a ciência social do Brasil. Acho que
estão entre os primeiros do mundo, não só na profundidade da análise, mas criando uma
estrela da apologia. Às vezes eu acho que a Europa tem muito que aprender.
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expressava com conceitos e imagens muito parecidas do extraordinário imaginário, dos
poucos que você tem em toda zona amazônica.
Descobri todos estes amigos fraternais. Um deles está aqui na primeira fila. É Flávio Saraiva,
com quem temos uma parceria extraordinária através de nossa Embaixada e a Universidade
de Brasília e queria fazer esta homenagem, como também aos professores cearenses desta
manhã. O meu marido foi um dos grandes matemáticos professores de probabilidade de
Queensbering, Oxford. Parabéns porque pude ver a naturalidade desta gente culta, que fala
tão livremente e tão facilmente sobre o mais profundo sistema do humanismo.
Eu sempre me considerei uma intelectual e depois uma Embaixadora, mas isso é muito
normal para um país como o meu, um país de três mil anos onde é obrigatório o colégio.
Então não existe noção do analfabetismo, quando nosso primeiro orgulho é de comprar
um livro e não de comprar sapatos.
Estamos traduzindo o melhor da literatura da América Latina, porque como disse Darcy
Ribeiro: "O mais brasileiro dos livros é o livro de todos os brasileiros, é Casa-grande e
Senzala, de Gilberto Freyre", e continuamos com um livro clássico que é "Formação
Econômica do Brasil", do Celso Furtado. Temos continuado com uma série das autoras de
grandes poetas, escolhemos o que não é literatura popular, mas que é literatura
profundamente brasileira que explica este povo muito bem.
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Participação:
Grã-Bretanha - Sr. Brian Ath, Interpretativo Design UK: "Projeto e Patrimônio Histórico
e Desenvolvimento".
Finlândia - "Sistema de Bibliotecas Públicas da Finlândia" Exmo. Sr. Hannu Uussividenoja,
Embaixada da finlândia em Brasília.
Cuba - "Palestra a Definir" Embaixada de Cuba em Brasília, Conselheira Martha Visqueira.
México - "Cultura como assunto do Estado" Embaixada do México em Brasília, Exmo Sr.
Secretário Felipe Ehrenberg.
Coordenação: Romeu Duarte - Superientendente do Instituto de Patrimônio
Histórico e Artistico Nacional - IPHAN.
Grã-Bretanha
- Sr
atrimônio
Sr.. Brian Ath-Interpretative Design UK: "Projeto PPatrimônio
Histórico e Desenvolvimento"
Vou falar sobre o ótimo trabalho do Conselho Britânico aqui no Brasil e os programas de
intercâmbio que nós temos aqui, em termos de intercâmbio cultural. Também não teria o
tempo suficiente para falar com vocês sobre um projeto no qual eu estou me envolvendo
no Recife, você pode projetar, por favor.
Eu vou falar sobre o exemplo de cooperação entre o Reino Unido e o Brasil. Esse é um
projeto que já tem mais de quatro anos de idade, isso foi devido ao convite do Governo do
Estado de Pernambuco e o município de Recife.
O Conselho Britânico convidou vários especialistas britânicos para irem até Recife. O processo
começou em 1999 em uma conferência com a localidade em Recife, onde eles analisaram vários
aspectos patrimoniais, principalmente o patrimônio arquitetônico de monumentos e prédios.
Então nossos consultores como eu, da inglesa Reltecher Noll Cost, e todos que estavam
presentes nesta conferência, falamos sobre interpretação. Um conceito no qual explicarei
posteriormente na minha palestra sobre conservação patrimonial e planejamento. Essas
discussões nos levaram à idéia de que esse intercâmbio seria muito valioso para todos,
então, ano que vem teremos uma oficina, um workshop no Recife.
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Outro Seminário que seguiu foi organizado sobre os resultados da outra oficina que
nós trabalhamos na comunidade de Brasília Teimosa e várias coisas interessantes
aconteceram aqui.
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Para explorar estes conceitos, vários profissionais brasileiros visitaram a Inglaterra em sítios,
locais relevantes pessoalmente. A interpretação e planejamento interrelativo no contexto
brasileiro durante essa oficina ocorreram em Recife, São José e Brasília Teimosa.
Vocês podem ver nesta foto: estamos trabalhando com vários artistas locais na comunidade.
Eles criaram estes murais, ilustrando alguns aspectos desse passado, desse ambiente, da
comunidade, de uma forma que foi ótimo para eles e para os turistas. Então é esta
habilidade de trabalhar com as comunidades e também para o desenvolvimento do turismo
que enfocamos.
É assim que nós queremos trabalhar. Nós queremos explorar mais até essa idéia e depois
criarmos um plano tentativa para o Recife antigo e trabalhando com a Secretária de Realização,
etc, nós conseguimos realizar isso. Então agora eu quero falar sobre o conceito interpretação.
Eu fiquei muito feliz de ver na apresentação anterior, que interpretação já está sendo
levada a sério aqui no Estado do Ceará. E o Estado do Ceará também participou em várias
oficinas e seminários lá no Recife e o motivo principal, a finalidade principal é continuar a
importância de um objetivo. Nosso povo precisa entender que o patrimônio vai valorizar
melhor e vai entender porque é preciso ser preservado nessa definição.
Foi desenvolvida na época que eu trabalhei na inglesa Reltecher de associação de
interpretação patrimonial na Grã-Bretanha. É muito importante nosso sistema político.
Nós estamos tributando. Os turistas, as pessoas entendem o porquê que elas estão pagando
estes tributos. As pessoas precisam saber porque estão dando dinheiro para isso. Eis porque
a interpretação torna-se muito importante.
Nessa condição, torna-se muito importante neste contexto. Agora vamos dar uma olhada
nos exemplos de interpretação para vários mercados-alvo. São estas rotas patrimoniais
diferentes, por ter uma amostra temporária para pessoas que moram numa região ou área.
Vamos dar uma olhada em alguns exemplos, em um projeto do Reino Unido. Foi a casa da
família real da Rainha Vitória. Ela recebeu vários artefatos, objetos indianos da época em
que a Índia era uma colônia. Nós consultamos a comunidade indiana sobre o que ela
queria mostrar. Este artefato, esses objetos e queriam saber sobre o império da rainha
Vitória, estas coisas. Eles queriam saber sobre toda a especialidade para criar esses objetos
em termos de artesanato, etc.
Então nós desenvolvemos estas telas em que você pode tocar na tela, no objeto para
receber informações detalhadas sobre o objeto. Também com acesso a um vídeo que
mostra um artesão indiano produzindo aquele mesmo objeto, que você pode ver ali.
Então você pode ver como esses objetos são feitos. Você pode tocar no objeto e dar uma
olhada nele. Aí você olha para o objeto com outros olhos. Isso é que é interpretação, ela
permite que você veja coisas de uma forma diferente, que você veja isso sob uma nova
ótica. Aqui é um outro exemplo de uma galeria de arte em Londres, onde estão usando
estes guias auditivos, que nem telefone celular. Nós recebemos uma exibição do século
XVIII e eles penduravam estes quadros lado a lado.
O real desta experiência é imediato e era assim que elas eram mostradas na época no
século XVIII. Esses mestres na época eram artistas contemporâneos. Então nós queremos
que as pessoas experimentem a arte dessa forma e cada pessoa recebeu um catálogo com
um pequeno número em cada quadro, e com estes números nós colocamos nesse guia
auditivo e os visitantes poderiam descobrir o que eles quisessem sobre qualquer quadro,
com aqueles números em cada quadro.
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Nós vamos mais tradicionalmente e tem novas tecnologias no contexto de um museu de crianças.
Elas adoram esses dispositivos e os museus estão concorrendo com a televisão e com os centros
de entretenimento, etc. Então os museus têm que captar, despertar o interesse das crianças.
Também este é um outro exemplo de um projeto que nós fizemos na Índia. É, na verdade,
uma forma muito simples, muito barata de projeção. Nós utilizamos uma tela com quatro
espelhos. Quando você fica na frente, parece que você está diante de um globo, um
globo gigante, um globo cheio de imagens e depende da criatividade do produtor.
Nós podemos produzir programas deslumbrantes, entretenimento puro e, às vezes, as pessoas
ficam deslumbradas. Isso é muito importante em interpretação. Às vezes é importante não
levar tudo muito a sério. A interpretação também ocorre quando uma pessoa fala com a
outra. Não precisa ser alta tecnologia, não precisa ser uma coisa complicada. Pode ser uma
pessoa que saiba muito bem do que a outra está falando, com novas tecnologias.
Às vezes, nós esquecemos que as pessoas têm acesso aos programas mais sofisticados
através da Internet, e as coisas podem ser interpretadas de outro jeito. Com certeza vocês
já viram unidades de multimídia portáteis que nem um palm top.
Essas tecnologias são também utilizadas em museus e não podemos esquecer que as
escolas também podem trabalhar com a interpretação em termos de patrimônio cultural.
Esse é um outro exemplo na educação formal, mas é um outro exemplo onde a interpretação
comunica a importância de um objetivo ou de um lugar, que é o planejamento interrelativo.
Nós pegamos a interpretação e comunicamos a importância de um objeto ou de um lugar.
Nós pegamos a interpretação e o desenvolvimento e novos projetos e procuramos, enquadramos
em estratégias políticas e planos existentes. Nós não podemos apenas ter boas idéias, elas
precisam se enquadrar com o que as pessoas estão fazendo e assegurar que não há nenhuma
sobreposição sobre o que as outras pessoas estão fazendo. O resultado de um plano interrelativo
descreve o que precisa ser comunicativo, por exemplo, o problema onde você vai comunicar.
Seria inútil transmitir para as pessoas que nunca vão visitar um centro cultural, se uma
pessoa nunca visitou uma galeria de arte. Seria inútil transmitir isso para essa pessoa. Você
tem que transmitir para estas pessoas corretas, para o público-alvo dos objetivos gerais do
projeto que desenvolveu em plano estratégico.
Nós tivemos que ver, contar estas histórias para mercados-alvo e onde estas histórias
devem ser contadas, tivemos que envolver a comunidade. Fizemos através de várias técnicas
nas ruas, em centros comunitários e tivemos que definir os temas também, porque muitas
importantes definições do tema são cruciais para a interpretação, como vocês viram aí.
Por exemplo, com a Casa Real. O tema geral que foi desenvolvido para o bairro do Recife
que foi e continua sendo um portal entre o Brasil e o resto do mundo, um portal para
mercadorias pessoais e influências culturais.
Eu peço desculpas que esse projeto foi para Recife e foi para o Estado do Pernambuco. Eu
sei que outros Estados fazem a mesma coisa, mas há muitas provas que mostram que,
realmente, Recife foi um ótimo lugar para realizar esse projeto.
Outros temas surgiram. Vocês podem ver os temas isolados, mas eu quero falar sobre a
conservação e revitalização. Durante as pesquisas que nós fizemos com as pessoas que
moram na área, elas queriam saber porque esta conservação estava acontecendo, porque
a revitalização. As pessoas precisam saber porque não faz parte dos temas gerais iniciais
do projeto, mas as pessoas querem saber porque isto está acontecendo.
Então nós continuamos com o planejamento detalhado e isso envolveu acentuadamente
o desenvolvimento de um plano empresarial, um plano de negócios. Nós tivemos em
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Eu tenho que dizer que um dos nossos projetos prediletos foi um Centro de Carnaval e
Frevo. Infelizmente nós não colocamos esse lugar em Recife, porque São José queria esse
projeto aqui. Mas é um projeto em que os visitantes podem experimentar o carnaval no
ano inteiro, uma trilha patrimonial. Uma rota patrimonial foi feita através do bairro
conectando atrações e sítios como a antiga alfândega, ligando esses locais, esses sítios,
viagens de barco ao redor do bairro, muito difícil é entender a geografia da região.
2004
uma sessão de Benestone, à luz de toda a pesquisa que ocorreu. Nós elaboramos quarenta
ou cinqüenta projetos possíveis. Nós selecionamos quarenta projetos que serão
desenvolvidos e terão planos empresariais para assegurar sua sustentabilidade. A primeira
Casa do Açúcar se tornaria um ponto de orientação para Pernambuco, para Recife, uma
ligação entre turismo de negócios, gastronomia e pensão.
Se você passar por Recife, você passa por várias pontes e nunca sabe exatamente onde
está. Então é interessante fazer uma viagem de barco ao redor da ilha para entender a suas
limitações físicas. É também muito divertido.
E finalmente nós queríamos criar uma janela digital no bairro. Isso representa o trabalho de
um Centro de Alta Tecnologia chamando Séctona. Aqui nós mostramos várias fotos no
passado e futuro. É muito interessante que o bairro não é apenas um portão.
Antigamente havia os portugueses, mas também os cabos de telégrafos e vários portais.
Hoje em dia tem uso de Internet também. Então nesses projetos que foram desenvolvidos,
nós criamos um plano que mostra todas as ligações, os links entre as atrações. Nós ligamos
todas essas atracões dependendo dos mercados-alvos e mostramos como esses mercados
utilizariam esses links.
Então como resumo, em primeiro lugar nós queríamos concentrar em atividades turísticas
do Marco Zero onde vários eventos ocorrem. Seria o ponto de partida para todas as
atividades turísticas. Nós queríamos criar ligações entre o pólo alfândega na rua de Bom
Jesus e criar uma identidade visível para ela através de painéis.
Nas Pontes Trilhas de Patrimônio, você nunca sabia se estava no bairro ou não. Isso é um
problema também. Ter certeza que as pessoas do bairro tinham acesso a essa interpretação.
Também tem a história de uma pessoa que trabalhava há mais de quarenta anos no bairro
e não tinha idéia sequer da história do lugar. Ele não sabia que ele estava sobre essas
paredes holandesas antigas e sítios arqueológicos. Portanto, nós queríamos aumentar a
permanência de turistas no bairro.
Eu tenho certeza que o secretário deve saber que quanto mais tempo as pessoas ficam na
área mais elas gastam com comida, com artesanato e bens e há mais benefício econômico
para as próximas missões. Esse é o ultimo lançamento.
Então, para concluir, o projeto produziu vários projetos de turismo sustentável e cada projeto
tinha um plano empresarial onde nós identificamos quantos empregos seriam criados. Verificou
quanto dinheiro, quanta receita ele poderia injetar na economia e logo no início do projeto
nós tínhamos que assegurar que as técnicas não seriam aplicadas em outros lugares. Em
2003, o Secretário de Cultura de Belo Horizonte, está levando a cópia de um projeto semelhante
para desenvolver um plano para ligar o turismo patrimonial na sua área.
Finlândia
- Embaixador Hannu Uusividenoja: "Sistema de Bibliotecas
Públicas da Finlândia"
Estou convencido de que este Fórum promoverá o melhor entendimento entre as diferenças
culturais e implementará cooperação entre o Ceará e os países aqui representados. Entre os
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temas desse seminário eu escolhi uma área muito concreta que são as bibliotecas
públicas na Finlândia. Minha intenção é apresentar nesse plenário uma sinopse de
bibliotecas públicas da Finlândia, assim como nossas estratégias para desenvolver redes
de informação, infra-estrutura técnica de conteúdos das bibliotecas públicas, na Internet
internacionalmente. Eu acho que o sistema das bibliotecas públicas na Finlândia é
considerado muito avançado e um dos melhores do mundo. Então não vou falar nada
sobre bibliotecas especiais, como as universidades. Vou concentrar-me em bibliotecas
públicas municipais. Porém, em primeiro lugar, desejo falar umas poucas palavras sobre
a Finlândia para colocá-la no mapa dos ouvintes.
Meu país está localizado no norte da Europa, entre a Suécia e a Rússia. Temos uma
população de 5,2 milhões de habitantes, com um território de 337 mil quilômetros
quadrados, que é mais ou menos o tamanho do estado do Goiás.
A Finlândia, após sua independência em 1917, conseguiu uma política externa de
neutralidade e continua hoje sendo um país no alinhamento de alianças militares. A Finlândia
é membro da União Européia desde de 1995. Sua economia foi tradicionalmente baseada
em indústrias florestais, nos tornando um dos principais produtores e exportadores de
papel e celulose no mundo.
Hoje, as telecomunicações e a indústria eletrônica formam a maior parte das nossas
exportações. A Finlândia é um país ativamente industrializado e de alta tecnologia com o
PIB per capita de U$ 26.000 por ano. Segundo os estudos e comparações internacionais
excelentes, a Finlândia é um país menos competitivo do mundo antes do Estados Unidos.
Segundo o Fórum Internacional Econômico, a chave para o sucesso econômico e bemestar da Finlândia é a alta qualidade da educação. Quero citar que em estudos recentes, a
Finlândia ficou em primeiro lugar entre todos os países desenvolvidos com relação ao
padrão da qualidade de ensino.
E um pilar importante no ambiente cultural e educacional finlandês é nosso sistema de
bibliotecas públicas. As bibliotecas finlandesas formam uma grande rede interativa e
organizada. Estão baseadas no extensivo curso de tecnologia da informação e
comunicação, assim como de redes de informática e serviço são eficazes e acessíveis.
Por isso, a utilização dos diferentes serviços oferecidos pelas bibliotecas é muito alta na
Finlândia. O primeiro decreto sobre a biblioteca começou vigorar em 1929. São doze
anos depois da independência do país. A legislação atual de 1999 procura atender as
necessidades e os desafios da sociedade da informação.
No ano passado, o governo adotou a extraordinária biblioteca para as estratégias. Apresenta
visões, objetivos concretos com visitas ao acesso à informação e à cultura, identifica
também necessidades de desenvolvimento do setor da Finlândia. Os municípios são
responsáveis pela organização dos serviços de bibliotecas em suas respectivas áreas.
Hoje em dia, os serviços e acervos não são mais limitados aos espaços físicos porque
formam partes das redes nacionais e internacionais de informação de bibliotecas públicas.
Estão abertas para o mundo tanto quanto empréstimos. Todo acervo é gratuito, incluindo
os livros, CDs, DVDs, etc.
O princípio de igualdade sempre foi fundamental na política nacional das bibliotecas. As
condições de uso dos serviços devem ser ou tratar de ser, o mesmo, tanto na capital
recente, como as áreas remotas do país, como na Lapônia, ao Norte.
Os cidadãos têm o direito de exigir os mesmos serviços, as mesmas qualidades de qualquer
biblioteca. Do mesmo modo, a população finlandesa de língua sueca, cerca de 6% fala
sueco como uma língua materna e os lapões. Mil e trezentas pessoas têm o direito de
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O governo central promove o subsídio aos municípios que cobrem cerca de 40% das
despesas totais das bibliotecas públicas. Elas obtêm também subsídios entre 25 a 50% dos
custos para a construção de novos prédios de bibliotecas. A Finlândia tem o total de 430
municípios. Cada um tem pelo menos uma biblioteca principal e as cidades maiores
também possuem uma rede de bibliotecas no país, além de mais ou menos 200 bibliotecas
móveis que servem áreas rurais remotas.
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serviços das bibliotecas em sua língua materna. Naturalmente, as bibliotecas também são
acessíveis aos estrangeiros residentes na Finlândia.
Todas as bibliotecas têm um estoque. O total das bibliotecas públicas no país está acima
de 40 milhões de itens, 90% sendo livros e o restante sendo gravações musicais, CDs ou
K7 e alguns livros com K7.
A biblioteca pública é o serviço cultural mais usado da Finlândia. Aproximadamente 8% da
população utiliza este serviço. Para dar uma idéia concreta do tamanho típico do estoque, a
biblioteca finlandesa de uma cidade com trinta e sete mil habitantes no sul do país possui uma
conexão de 142 mil livros em finlandês, mais ou menos quatro mil em sueco, e treze mil livros
em outro idioma. Também temos quatorze mil gravações de música K7, vídeos, CDs e dois mil
em DVD.
Em 2002 esta biblioteca teve um orçamento de um milhão de euros, aproximadamente
1,2 milhão de dólares e o espaço total da biblioteca em questão é de mais ou menos três
mil metros quadrados. Isso é um exemplo concreto.
O tempo de empréstimos normalmente dos livros é de quatro semanas; de CDs, de duas
semanas e de vídeos de uma semana e aplicam-se multas se o material for devolvido com
atrasos. Todas as bibliotecas finlandesas estão informatizadas, oferecem conexões gratuitas
de Internet e têm sua própria página de ler.
Utilizando o serviço Pergunta aos Bibliotecários, os usuários podem enviar perguntas às
bibliotecas e obter uma resposta especializada em poucas horas ou dias. As bibliotecas
têm um banco de dados eletrônico que contêm informações exatas sobre todo o material
que elas emprestam. Por exemplo, se a biblioteca tem um certo livro que está na prateleira
ou emprestado qualquer um pode acessar de casa pela Internet, e pode reservar um livro
ou Cd.
Algumas bibliotecas anunciam para os clientes a chegada dos livros solicitados enviando
mensagens para o celular ou para o correio eletrônico. Há também um sistema que possibilita
que os clientes possam informar seu perfil e quando há um material novo com este perfil que
chega a biblioteca ele é avisado. Usando um computador em casa, qualquer um pode
verificar a situação de seus empréstimos e prolongar o caso ou reservar mais livros.
Quais são os desafios das bibliotecas públicas no futuro?
O papel das bibliotecas finlandesas está mudando muito rapidamente nesta nova sociedade
da informação. Entre novos desafios está a necessidade de ensinar o cidadão a buscar,
avaliar, comparar, combinar e usar adequadamente a promoção disponível.
Na biblioteca pública na era da informação, serviços físicos e virtuais apóiam e reforçam
um ao outro. O mínimo de serviços na biblioteca física finlandesa pública deve ser o
material cultural, informativo, atualizado em diferentes formatos para fácil acesso.
Pessoal convencional da biblioteca, o sistema bibliotecário computadorizado e conexões de
redes, serviços de rede acessíveis e terminais ligados à Internet para uso livre dos usuários.
A tradicional missão cultural e de ensino da biblioteca não desaparecerá, mas vai surgir
como serviços modernos de promoção e consultoria. A biblioteca municipal é um centro
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cultural local, um portal de qualidade que disponibiliza capital cultural e intelectual ao público
que pode usar conforme suas necessidades, seja na biblioteca ou através de rede. O material
está cada vez mais disponível, de várias formas. Tanto o serviço de informação quanto o
equipamento relevante devem ter capacidade de responder às necessidades do público.
Qualquer biblioteca na Finlândia em área residencial ou numa pequena cidade oferece
uma sala de estar para a comunidade. Provê caminho para a cultura e dá formação guia
para usuários recuperarem informação independentemente, liga redes com serviço público
e privados e organiza eventos e serviços culturais.
De acordo com a visão adotada na estratégia da biblioteca para 2003, a biblioteca
pública na sociedade finlandesa é uma instituição ativa e eficaz, facilmente acessível e
de fácil acesso à visitação pública e está aberta para todos de Fortaleza. É democrata,
transmite herança cultural, apóia a construção de uma sociedade multicultural e promove
o espírito comunitário.
Oferece um ambiente de aprendizado apoiando as pessoas e promove a habilidade da mídia
compreensiva. O direito à informação e criatividade é um direito humano básico na sociedade de
informação. O direito de informação é igualmente algo intrínseco para total cidadania. O direito
à informação é indispensável para habilidades de criatividade de expressão da própria história.
Na Finlândia, temos confiança em que o sistema eficaz de bibliotecas públicas seja um
veículo importante para a promoção destes valores básicos e posso mencionar que as
bibliotecas públicas têm um portal comum em inglês na Internet: www.laiborarhis.fi e
com este portal vocês podem acessar a qualquer biblioteca na Finlândia e obter mais
informações sobre seus serviços.
Cuba
- Conselheira Martha Visqueria
Para dar a idéia de como é desenvolvida a cultura, nós temos elementos fundamentais a
partir de 1959, como tem sido o desenvolvimento da cultura no nosso país.
Joan Marti que foi o herói nacional em nosso país, disse que o culto dos cubanos para a
dignidade plena dos homens e a cultura não é apenas entidade nas culturas artísticas e a
base da cultura nacional.
A obra cultural realizada em Cuba desde 1959 até hoje é uma das mais altas expressões no
sentido humanista e democrático da revolução cubana. A criação da alfabetização de todo
sistema natural que promoveu o livro e a leitura para uma escala de população, sistema de
ensino único no mundo e com uma ampla base popular de concordância de base, que
sustente por todos os municípios do país, com um papel excessivo na defesa da identidade
local, na formação de um público para as diferentes manifestações da arte e enriquecimento
da vida espiritual da população.
Instituições nacionais encarregadas da arte, não somente alguns aspectos desta obra que
enriquecem a vida do nosso povo e é reconhecida internacionalmente. A política cultural
revolucionária foi direcionada para propiciar a participação de nosso povo nos processos
culturais e nos seus acessos à melhor arte cubana universal. Por outro lado, visa garantir a
intervenção dos instrutores e artistas no desenho na prática desta política.
Os criadores cubanos, comprometidos de forma intrínseca com a revolução tiveram e têm
um peso decisivo na projeção nacional e internacional das instituições culturais, nos
municípios, nas Casas de Cultura, museus, bibliotecas, cinemas, galerias de artes, livrarias,
entre outras. Garantiram uma infra-estrutura requerida para avançar uma autêntica
democratização da cultura, propiciando o acesso das populações à arte, à literatura, à
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Nos anos 90, é produzida uma grave contradição na vida cultural no país. As limitações de
recursos financeiros e materiais no país incidiram de maneira muito sensível na indústria
cultural, na provisão de livros, de filmes, do ensino de artistas e do movimento de artistas,
funcionamento de instituições nacionais, provinciais e municipais, que afetou na criação e
produção da arte da literatura. Hoje, como parte da batalha de idéias, a cultura cubana está
recebendo um impulso decisivo e nós estamos num processo de crescimento cultural do país.
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história e às tradições locais comentando hábitos culturais e o desenvolvimento de
movimentos de artistas e aficionados.
Neste momento, o privilégio é do Ministério da Cultura, das direções municipais e provinciais
do setor. Há as seguintes metas:
- A criação da arte e literatura no país e a participação dos criadores na vida das instituições,
a integração dos esforços da União Nacional de Escritores e Artistas, das instituições em
todos os níveis na posição política e cultural;
- O desenho e execução de uma programação cultural variada e de qualidade em estreita
relação com uma instituição nacional ou provincial municipal com o objetivo de satisfazer
as crescentes demandas da população;
- O crescimento da preservação e a difusão do patrimônio cultural, que depois vamos
detalhar e assinalar alguns aspectos recentes;
- O trabalho das instituições culturais na comunidade com a participação das diferentes
forças sociais que apóiam o trabalho cultural como comunitário. Atendimento no sistema
artístico no geral, desenvolvimento de recursos gerais, desenvolvimento de recursos
humanos e a introdução e aplicação de novas tecnologias da informação e a comunicação,
as relações com os meios de comunicação como canais fundamentais de formação da
população e dos cursos de projeção internacional da cultura cubana;
- O desenvolvimento da capacidade de gestão cultural e insuficiência econômica e o
controle interno, a comercialização de bens e serviços culturais, assim como a procura e
a aplicação de novas formações e organizações e remuneração no setor artístico.
Nos municípios, apesar das carências de recursos, as Instituições de base que providenciam
serviços ao público sistematicamente procuram através da sua programação enriquecer a
vida espiritual da população e garantir que seja preservado e reconhecido o talento onde
quer que ele se encontre.
Hoje encontramos uma gama de instituições culturais na base ao longo de todo o país,
num total de 2050, incluindo além do mais a biblioteca, salas de videocassete, etc.
O maior desafio enfrentado pelas instituições culturais é respondido com maior necessidade
da população entre as ações desenvolvidas. Podem ser encontradas as assinaturas para cada
casa controlar a televisão ou vídeo, o que permitiu nos 27 anos, os vídeos com áudio projeção,
com diferentes horários e cursos de universidades para todos, debates de filmes e matérias para
todos com fins educacionais para poder contribuir na formação fundamental da nova geração.
A assinatura para uma nova instituição de instrumentos musicais e meios para artes plásticas
com o objetivo de favorecer uma nova geração, para favorecer o desempenho do
movimento de artistas e aficionados. O acesso ao correio eletrônico pelos computadores
por todos os endereços municipais permitiu a extensão da informática até este nível,
chegando até 65 municípios com acesso à Internet e 102 com páginas na Web, além de
desenvolver todos os programas em todo território nacional.
A coleção de Arte Universal e Cubana, que circula nos últimos dois anos por mais de 150
municípios, representando as instituições culturais do centro de trabalho, abertura de
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oficinas de cerâmicas improvisadas com o objetivo de improvisar a obra de criadores dos
territórios e daquelas províncias.
As bibliotecas públicas e seus usuários têm como função principal a fundamentação
da leitura. São importantes no trabalho desta rede a organização de oficinas literárias,
a organização de círculos de leitura nas escolas, o atendimento das necessidades dos
municípios e a atividade de extensão a áreas mais distantes dos centros urbanos, além
da criação de bibliotecas públicas com o apoio dos moradores. Um exemplo notável
do que pode conseguir uma coordenação de esforços, são os concursos Leramartin
que já chegaram às nas suas últimas edições com a participação de mais de um milhão
de crianças e jovens, dos quais foram premiados 283 em nível nacional.
As Casas de Cultura desempenharam um importante papel no momento da produção
artística e literária, principalmente entre crianças e jovens. Uma contribuição significativa
deste trabalho é realizada por escritórios de artistas profissionais que foram incorporados
às oficinas com crianças e jovens. São destacadas as escolas de balé que englobam quatro
mil e cinqüenta jovens da cidade de Havana, os seminários e oficinas o repente infantil
com a participação de mais de oitocentas crianças, entre as quais se destaca a maior
presença de meninas e de prestigiosos narradores.
A próxima incorporação ao trabalho, em torno de mais de três mil e quinhentos instrutores
de arte da primeira graduação iniciada em 2002, vai contribuir para o fortalecimento do
trabalho de casas de turismo. Os programas culturais nos sistemas educacionais e a formação
do BoBbo (o movimento de armadores formado a partir da casa de cultura) indica a
tendência de crescimento dos últimos anos, até chegar hoje a 762 mil integrantes. Mas,
além de ser animador, está muito distante daquilo que nós queremos.
O trabalho com artistas amadores é uma das expressões dos amplos veículos das instituições
culturais de base com obra das equipes. Atualmente mais de 2.200 promotores procuram
profissionais que desempenham atividades em conselhos populares, bairros e assentamentos,
onde também são realizadas exposições artísticas, feira de livros e atividades correlatas.
Na preparação do atual curso escolar foram planejadas ações para conseguir uma presença
estável de instrutores de arte nos centros de referências onde são trabalhadas todas as
manifestações artísticas. Constituem um exemplo do que nós obteremos numa outra área.
Esta experiência será decisiva para o trabalho nos ingressados na escola de instrutores de arte,
no processo do Centro das Divisões Educacionais, as Instituições Culturais de base participam
ativamente dos programas educacionais direcionados às crianças em idade pré-escolar.
Particular atenção tem as associações de pessoas deficientes ou desenvolvimento de festivais
amadores e a aprovação de licenças culturais distribuídas a artistas amadores. Mesmo
distante das associações, tem crescido o papel da arte e da cultura como fator de
transformação social na comunidade, a colaboração nos programas de prevenção e
atendimento social engloba, além do mais, atendimento nas exposições de todos alunos,
oficinas e festivais e outras atividades com recursos e centros de educação muito importantes
para a sua iniciativa na melhoria da qualidade de vida através da cultura em zonas imaginárias
de difícil acesso, as apresentações artísticas, formação de grupos amadores, pesquisas
sociais só como uma das principais ações.
Neste sentido, temos que destacar o trabalho artístico-cultural das campanhas direcionadas
à prevenção e outras atividades de tradição sexual e o uso de drogas.
A vida cultural nos territórios tem insistido na diversidade, na divulgação e qualidade,
nas atividades e dar continuidade na avaliação de parte social. Outras manifestações
menos importantes, hoje, são constituídas pela música e espetáculos musicais, cantorias,
teatros de dança, balé e artes plásticas. Assim como o cinema, de particular destaque é
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Nós gostaríamos de dar alguns dados, pois consideramos que é um exemplo da necessidade
de um trabalho coletivo da preservação do patrimônio cultural de cada país, de cada região
e de cada localidade.
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o trabalho sistemático de resgate desenvolvido no centro histórico da velha Havana e a
discussão de um programa cultural de amplo aspecto desenvolvido pelo historiador da
cidade de Havana.
A área que tem o que nós chamamos de centro histórico de Havana é de 12,14 quilômetros.
Tem 1.704 edificações. Setecentos monumentos são de primeira categoria. Desde o ano de
1958, esta zona foi proclamada monumento nacional e no ano de 1982, patrimônio cultural
da humanidade pela UNESCO.
Nesta zona temos uma população de 650 mil habitantes que moram em 22.516 moradias
com 600 habitantes por km².
Acredito que um dos maiores exemplos de conservação do patrimônio é dado pelos
moradores através do cuidado no atendimento à vida que é dado nesta zona para a sua
preservação por ser a história viva do nosso povo.
Por fim, gostaria de referir-me à missão de outras atividades como, por exemplo, as peças
musicais e teatrais realizadas por escritores e criadores de artes plásticas do cinema que
foram apresentados no cinema nos vários cenários com embaixadores da cultura do povo
cubano. Da mesma forma, nosso país acolhe muito freqüentemente relevantes criadores de
outros países que desafiam as propagandas que deferem e por obstáculos impostos pelos
imperialistas e seus aliados, especialmente com o bloqueio.
Nossos artistas fizeram um trabalho de mérito contra esta manipulação da opinião pública em
torno de Cuba em nosso país. Têm participado de vários eventos internacionais e assumem
grande importância em vários organismos e organizações internacionais.
Por fim, gostaríamos de assinalar através do desenvolvimento de lutas de idéias, alguns dos
programas especiais que estão vinculados à esfera da cultura e que vamos enumerar muito
rapidamente e a extensão a todo o país da rede internacional de Havana que é um programa
de impacto cultural e social, que permitiu estender a Feira de dezenove para trinta cidades
em todo o país.
A coleção de biblioteca familiar está prevista para deixar na mão da população uma mostra
do melhor da literatura cubana e internacional, em encontros, teatro, crônicas, assim como
a literatura infantil e juvenil no que foi convertido no novo momento para a promoção do
hábito da leitura.
Programa que proporciona 699 bibliotecas públicas e escolares de uma bibliografia de consulta
especializada com assinatura de atlas, dicionários que têm tido um amplo alcance social,
escolhendo os instrutores de arte e inauguração oficial no dia 18 de fevereiro de 2000. Das
quinze escolas instrutoras de arte, uma em cada província do país e num município especial
uma verba com entrada total de quatro mil estudantes por ano. A abertura da escola nacional
de balé, com capacidade para trezentos estudantes e seus correspondentes efeitos na ampliação
da matrícula de alunos de todas as províncias do país.
A Escola de Balé e Artes Plásticas de Guanabei concluiu seu concerto, a restauração do seu
importante centro docente com remodelação do imóvel e adoção de equipamentos
correspondentes para a capacidade de ação para os nossos estudantes. Este programa implica
na criação de novas escolas de nível médio profissional de artes plásticas, nas cidades do interior
de nosso país.
Obras do complexo de escolas de Kubanacan, que é uma reconstrução na capital do instituto
nacional de ensino superior de arte, vão finalizar esta obra que representa um dos exemplos
mais valiosos e originais da arquitetura cubana.
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Por fim, temos o programa de universidade para todos. É como um curso de técnicas narrativas
feito por prestigiados cubanos. Então hoje, muitos são os intelectuais das narrativas que entraram
neste programa. Entraram conscientes da recuperação cultural e social que não tem precedentes.
Finalmente, podemos reafirmar a unidade dos artistas cubanos em torno da revolução, o
papel dos escritores, músicos, bailarinos, atores e artistas plásticos e outros criadores em
atos e atividades e mobilizações, programas priorizados por parte da direção do país.
Somados nas atividades de arte, o melhor do movimento de artistas amadores demonstrou
a importante estratégia da cultura na defesa de nossos princípios. Hoje, nossos melhores
artistas e escritores estão entre os protagonistas destes transcendentes momentos da história
do nosso povo.
México
- Felipe Ehrenberg: "Cultura como Assunto do Estado"
Eu sou o que se denomina diplomata de apoio e exerço o cargo de primeiro-secretário, em
nível cultural da embaixada, mas meu desempenho é também como artista plástico e
jornalista durante quarenta e cinco anos initerruptos. Agora faço parte de um punhado de
pensadores e criadores que talvez sejam os mesmos que foram nomeados há quase três
anos pelo atual governo do México.
Para representar, para entender esta cultura no exterior, decerto que meus comentários refletem
os ventos de mudanças que começam a soprar em torno da promoção cultural que é
desenvolvida no México e no exterior. No entanto, devo advertir que vou expressar a
continuação e uma conseqüência da liberdade de expressão que nós gozamos na atualidade.
É provável que o público aqui presente tenha notado o incremento dos últimos três anos
da presença do México nos meios nacionais de comunicação de massa.
No Brasil, 80% dos casos desta presença corresponde a eventos culturais que como formigas
estamos realizando no Brasil, não somente no Rio de Janeiro e São Paulo, mas também em
quase toda extensão do país. O único evento que tem acontecido entre o intercâmbio
comercial entre os nossos dois países, fator chave, tratamento entre as nações, a cultura e
seus sentimentos. As artes têm sido sempre um veículo de expressão individual e coletiva,
ao mesmo tempo em que a comunicação. É necessário destacar que a cultura é um
fenômeno temporal, sem princípio, sem fim reflexo, cotidiano e sublime contrasocial.
Falando diretamente, é a base da política e o motor da economia.
França, Japão, Canadá, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos, Espanha, Brasil, China e Itália são
exemplos de nações que criam pressupostos necessários em ocasiões generosas, que permitem
difundir sua cultura no exterior. Isto é assim porque existem muitos países em que não há
diálogo político, muito menos um intercâmbio comercial saudável e as artes não são reveladas
às sociedades amigas, pois antes não compartilham o imaginário dos seus povos.
Investir na promoção de sua cultura dá lucros, dá muitos lucros. A cada dois ou três anos se
reúnem pessoas com as melhores intenções para redigir convênios culturais e nacionais. Logo
depois, no entanto, se encarregam de incrementar os setores de operatividade, tristemente
limitados, sem bússola, com os convênios assinados. Eles se convertem em letras mortas, do
dito fato a um amplo espaço. Sem referências claras não há planos gerais definidos. Sem
estratégias traçadas é difícil conhecer e compreender o contexto cultural do país hóspede.
O terreno em que floresce o diálogo oferecido ao azar é uma obra de Daniel Catan. Uma
construção de oferecimento dos dias dos mortos, uma exibição de Francisco Toledo ou a
degustação de gastronomia mexicana são eventos em que realizam o que se requer, como
eczemas capazes de seu conjunto e oferece o que podemos denominar de um leque de
sua cultura, seu imaginário. Verdade seja dita, são poucos os governos em nossa América
Latina, pelo menos que eu saiba, que demonstram distribuir com clareza o que é a cultura.
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O que são seus segmentos, as artes como conseqüência às pessoas que representam a
cultura de nosso país no estrangeiro, normalmente vão à deriva, realizando ações que
dependem do grau de talento e carisma que pode ter no individual. Mais do que alinhamento
constitucional para que o país hóspede possa criar as plataformas necessárias para conduzir
o diálogo binacional, são requeridos, primeiramente, estratégias com cinzas e depois táticas
de difusão e promoção ágeis, capazes de se ajustar às idas e vindas do momento.
Gostaria de melhor falar de um país convidado e não hóspede. Da mesma forma entre as
nações e suas manifestações artísticas, são de fato, as únicas ferramentas capazes de estabelecer
verdadeiros diálogos de pano de fundo. Precisamente por isso porque a cultura flui e conflui
o diálogo, diz a atos saudáveis, políticos e comerciais. Precisamente por isso, a promoção da
cultura tem que ser tratada como tema de prioridade máxima, isto é, como tema de Estado.
A cultura é tema de Estado da mesma forma que é tema de Estado a relação militar e a
relação comercial com ações próximas. Não por acaso, foi tanto tempo para distinguir das
demais funções diplomáticas do conceito de Datache com agregado adido. Tal como o
dicionário, o adido é um elemento agregado a um elemento que se une a um todo.
O dicionário claro de fala espanhola, o mais atual em circulação, consigna duas palavras muito
parecidas: agregado, agregada ou agregadoria. A primeira concepção de agregado é funcionário
diplomático encarregado de assuntos de sua especialidade. O agregado comercial da embaixada
assistiu uma reunião com um agregado cultural. A acepção da agregadoria é cargo do agregado,
a agregadoria cultural desta embaixada será ocupada por um escritório famoso. Se o dicionário
menciona aos agregados culturais desta forma, é que pelo menos os médicos, psicólogos
sabem os valores que tem tido o agregado da diplomacia ao longo da história.
Para chegar a ser um bom diplomata de carreira, o indivíduo deve cumprir um treinamento
rigoroso, passar por provas obrigatórias e ficar atualizado de forma constante. Isto, na
América Latina, é possível para todas as disciplinas requeridas pela diplomacia.
Pelo momento, são poucos os países que oferecem uma capacitação de alto nível aos
indivíduos interessados em manejar a cultura como ferramenta diplomática. A razão é a
mesma que nos dificulta a definir políticas culturais do Estado. Ainda não conseguimos
colocar aqui, devidamente, a vitalidade e a importância da matéria. Relegamos a segundo
e terceiro planos, ou simplesmente o esquecemos.
Uma boa parte da diplomacia é efetuada sobre leis de costumes preestabelecidos e outra
parte por sensatez. As tarefas do adido na sua minuciosa complexidade são muito pouco
conhecidas na maioria das vezes. Irão de um momento a outro, do histórico ao instantâneo.
O agregado cultural é melhor que reconheça através do trato diário, a curiosidade específica
que pode ter um país anfitrião que também pode atender a demanda de expressões de
diferentes extratos sociais. É nato conceber as ações culturais mais receptivas para poder
abrir e novamente fomentar e estimular o diálogo. Claro que para isso temos que procurar os
apoios logísticos do seu consulado. Um agregado eficiente pode ser um bom diplomata.
E o que promove um bom diplomata? Promove e difunde suas ações com consciência
plena do impacto que têm em suas relações políticas dos dois países. Familiarizado com o
labirinto da cultura, o diplomata realiza ações no campo que são muito diferentes. É a
mesma coisa com o teatro, a gastronomia, as artes, o cinema e as matérias com fins
educacionais para poder contribuir na formação fundamental da nova geração.
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articipação:
Japão - Exmo. Sr. Secretário Masahiko Kobayashi, da Embaixada do Japão em Brasília e o
Sr. Takahashi, da Fundação Japão. Palestra informativa sobre a ação da Embaixada do
Japão no Brasil e do escritório da Fundação Japão em São Paulo no Campo Cultural.
China - "Palestra a definir", Sr. Wang Zhenmao e Sra Secretária Lu Anting.
Equador - "Diversidade Cultural no Equador" Exmo. Sr. Ministro Gustavo Eguez, adido
cultural da Embaixada do Equador em Brasilia.
Coordenação: Demócrito Dummar - Presidente da Empresa jornalística O Povo
de Comunicação.
Japão
- Masahiko K
obayashi
Kobayashi
Antes de falar do intercâmbio cultural entre Brasil e Japão, quero fazer uma pequena
retrospectiva das relações bilaterais.
Nosso relacionamento começou em 1855, quando nós assinamos o tratado de amizade,
comércio e navegação. Aí começaram nossas relações diplomáticas. Em 1908, os primeiros
japoneses imigrantes chegaram no famoso navio Kasatu Maru ao porto de Santos. Com
esta chegada, vocês já sabem, os japoneses contribuíram na agricultura e também nas
outras áreas. Isso é o fortalecimento de outros países e é o fluxo contínuo até quase 1960.
As vindas de imigrantes japoneses totalizaram mais ou menos 250 mil pessoas.
Na época de imigração, nas décadas de 60 e 70 houve aqueles intercâmbios econômicos
muito intensos. Fizemos uns projetos binacionais em áreas como siderurgia e construção
naval. Esta é uma época de ouro para as relações econômicas dos países.
O Brasil presenciou na década de 80, a chamada década perdida. No Japão, em meados de
96, estourou a bolha econômica. Preços de ordem imobiliária caíram e isso afetou seriamente
a economia e o intercâmbio econômico entre vários países tem sido estagnado durante
este período, então nós queríamos levantar isto agora, mas a estagnação econômica refletiuse nos intercâmbios culturais.
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Entrarei agora no intercâmbio cultural que é o tema deste fórum. Primeiro eu quero dizer
que o nosso país renunciou ao uso de força militar. Esta constituição proíbe qualquer uso
de força para solucionar conflitos internacionais. Isso significa intercâmbio cultural. Tornouse um dos quatro pilares da diplomacia japonesa, ao lado, é claro, do intercâmbio econômico
e cooperação econômica.
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Isso é, mais ou menos, a história do nosso intercâmbio, mas apesar de tudo, nos mantemos
em uma geração bem forte. O Japão é o maior doador de assistência para o Brasil e
também na área da diplomacia. Nós estamos cooperando nas várias esteiras bilaterais
como nas Nações Unidas, e também é muito importante a nossa cooperação na área do
meio ambiente. Então, apesar de tudo isso, a geração é bem forte.
A cultura tem um peso muito importante na diplomacia japonesa. Esta não se trata de
uma diplomacia convencional, do tipo que o governo conversa com o Itamaraty. Tem
uma diplomacia que nós chamamos de diplomacia pública que nós falamos diretamente
ao povo brasileiro. Nós achamos muito importante e também a força da cultura que é
muito bem abordada. O Embaixador do Itamaraty, Samuel Guimarães, explicou muito
bem a este respeito.
Cultura é força branda. Tem muitas discussões em países como Estados Unidos e GrãBretanha. Então, nós achamos que apreciando o melhor de nossa cultura para o povo
brasileiro e absorvendo, ao mesmo tempo, a cultura japonesa, isso certamente contribuirá
para o entendimento mútuo dos dois povos, bem como para a paz mundial e também
para o bem-estar da humanidade.
Muitos acham que o Japão tem esta força. Nossa cultura é muito rica. É que nem a cultura
brasileira e a de outros países. Achamos que o intercâmbio mundial não gera um produto
imediato, então temos que ter uma estratégia a longo prazo.
E nós estamos adquirindo uma diretriz para nossa política diplomática nesta área. Estamos
apresentando vários projetos da cultura japonesa, como o Brasil se dividindo em vários campos.
É um campo que nós realizamos nossas repartições, que são as embaixadas e consulados que
nós temos no Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus, Belém, Recife, Curitiba e Porto Alegre. O Estado
do Ceará e o Estado de Pernambuco já estão entrando em contato.
Os consulados e as embaixadas fazem as atividades culturais de acordo com a realidade
de cada região. Rio de Janeiro tem a sua característica e São Paulo também. O consulado
que sabe mais da região tem autonomia para fazer isso. Então isso é mais ou menos o
que nós estamos fazendo. Nós temos anexado ao consulado, o centro cultural informativo,
que também faz um trabalho de alcance nacional, como a edição de boletim informativo.
Nossa biblioteca está no Rio de Janeiro. Então se vocês quiserem realizar algum cinema
japonês, através do consulado em Recife podemos oferecer este serviço.
Através da Fundação do Japão, e de seu representante, hoje ele vai explicar mais tarde as
nossas funções. Basicamente, a diferença entre os consulados e as embaixadas é a fundação,
pois a fundação tem mais recursos. A fundação geralmente traz o teatro do Japão.
Falando um pouco da nossa cultura, hoje em dia, conhecendo as áreas com pouco POP
CULT (cultura pop). Mangás, talvez vocês saibam o que é. Mangás, desenhos em quadrinhos
e estas coisas. Estamos vendo a necessidade do governo tomar alguma posição sobre isso.
A pessoa da minha geração tem a cabeça muito dura sobre estas coisas. Então, por
exemplo, para o meu filho você não vai ser um homem importante assim e ele me dizia
"não, não, você não entende nada". Estou me arrependendo um pouco, mas talvez todos
conheçam esta cultura.
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Ainda dentro do governo não é uma decisão final. Muita gente ainda está em dúvida para
saber se merece, mas a realidade também mostra que isso também representa uma cultura
japonesa e outra coisa que eu gostaria de falar é sobre a culinária.
Recente reportagem na VEJA, em São Paulo, mostrou que há mais restaurantes japoneses
do que churrascarias. É fantástico ver a culinária no Brasil, qualquer restaurante japonês
em Brasília que eu freqüento, você pode experimentar sushi com banana caramelada,
sushi de morango com creme, doce de maracujá, estas coisas tropicalizadas. Eu não
aprecio muito estas coisas, mas você nunca pode ver estas coisas no Japão.
A cultura evolui. A cultura é uma coisa muito dinâmica e eu aceito sim isto. É uma
evolução da nossa culinária na terra tropical e acho que isto é uma observação
muito importante.
Estas coisas são exatamente para nós vermos o vento a favor e acharmos, como disse
anteriormente, que há pouco espaço que a gente possa participar. Estas coisas já estão
caminhando sozinhas e eu espero que continuem caminhando assim.
Eu quero falar sobre o intercâmbio humano. Achamos que isso é muito importante, pois
cada vez mais há pessoas que entendem sobre o nosso país, pois estamos recebendo 44
bolsistas. No nível da população de um país, tudo isso é o maior da América Latina e nós
queremos aumentar ainda mais este número. Realmente, estas pessoas são muito
importantes, além de pós-graduação, estamos recebendo, também, graduação para os
professores de ensino fundamental e também alunos que querem aprender japonês. Isto
há um ano e meio.
Como se trata de bolsa completa, ele ganha mais ou menos bem para viver no Japão.
Recomendamos que vocês se interessem por nossas bolsas. Outro fator que eu acho
muito importante para a comunidade no Brasil, que atualmente conta com uma sociedade
de 370 mil brasileiros, sendo a maior parte imigrantes e filhos, é que o governo não está
gastando nada. Eles vão por sua própria vontade e nós estamos cooperando com o
governo brasileiro.
Hoje nós tivemos uma palestra do secretário do turismo e eu aprendi muita coisa.
Nosso governo está fazendo muita coisa porque nós queremos trazer mais turistas
ao Japão. A imagem que sempre prejudica o Japão é que é muito longe, muito
caro, muito complicado para entender. Nós queremos derrubar esta imagem. A
distância nós não podemos diminuir muito, mas há maneiras de facilitar a viagem.
Por exemplo, estamos começando a numerar as estações dos metrôs e isso facilita
muito aos turistas brasileiros.
Eu queria terminar. Eu tenho algumas coisas que nós estamos achando de mais importantes,
que é a difusão da língua japonesa e a pesquisa do Japão. Estamos cooperando com
algumas universidades e dessa forma queremos ajudar. Então estamos tentando ajudar
estas escolas e universidades.
Em 2008, nós teremos o centenário da imigração no Brasil e vamos comemorar juntamente
com o povo brasileiro e, certamente, seria uma oportunidade para pensar como vamos
formar os próximos cem anos. Estamos desenvolvimento vários projetos, então queria que
o povo do Ceará também participasse destes eventos.
E, finalizando, eu agradeço a sua atenção e que este Fórum seja muito frutífero aos países
participantes deste programa.
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Na verdade, analisaremos a cultura do ponto de vista político, e não mais empírico
como nós vínhamos desenvolvendo. Foi muito prático como o secretário colocou que
a cultura é um mecanismo onde as nossas comunicações se consolidam da forma mais
viável e sustentável.
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akahashi
Japão - SrSr.. TTakahashi
Quando o secretário sugere o sushi de morango com creme de maracujá, na verdade isso
pode ser um processo que provavelmente, Acido de Campos, falecido o ano passado,
teria chamado de transcriação. Na verdade, não é uma tradução, mas trata-se de um
processo criativo de se reinterpretar uma cultura. Acredito que os brasileiros têm um
potencial para isso.
A Fundação do Japão desenvolve isso com base em São Paulo, através da colaboração de
diplomatas do Japão nas oito capitais brasileiras, onde a nossa referência principal é a
embaixada do Japão em Brasília.
Nós temos desenvolvido um intenso programa de atividades que contempla projetos que
nós trazemos do Japão. São espetáculos, teatro, músicas, e que têm tido uma ressonância
importante no público brasileiro. O que nós temos percebido nos trinta anos é que não
basta apenas a apresentação do produto cultural japonês, porque neste contexto, o público
se torna apenas um espectador e nesta relação não existe uma formulação para que a
gente possa desenvolver o intercâmbio consistente e mais constante.
Em dois ou três anos, nós começamos a investir mais em processos. Eu acho que,
diferente do turismo, que trabalha com produtos formatados, nós não podemos pensar
em cultura somente como produto. Ela existe sim, mas, nós acreditamos que o nosso
apoio, o nosso acompanhamento no processo de criação é que faz com que nós tenhamos
um outro tipo de projeto. Este talvez mais viável, mais sustentável, que permita, enfim,
a participação do artista e do estudioso brasileiro também em relação às japonesas.
Esta visão comparativa me parece de suma importância. Apenas a cultura comparada permite
um equacionamento mais profundo e eu acredito que bons resultados têm acontecido.
O investimento em processo é um investimento muito demorado. Não podemos impor
cronograma prático, mas as nossas bolsas de estudo, por exemplo, permitem que o
artista ou o acadêmico vá e colha as informações para que ele próprio possa desenvolver
o seu próprio resultado. Então, estes são os mecanismos que estamos oferecendo aqui,
neste fórum, e colocando à disposição de todos vocês para que possamos desenvolver
um intercâmbio mais consistente.
China
- Sra Lu Ann Ting
Vou abordar a atividade cultural da China e o intercâmbio entre China e Brasil, mas, antes
de tudo, quero encaixar a China no mundo inteiro. China é o país mais populoso do
mundo. É um território de 9.600.000 km².
Nos últimos dez anos, a taxa de PIB da China tem crescido entre 7% a 8% da taxa anual.
Dividido por 1,3 bilhão de habitantes fica somente mil dólares a renda per capita. Mas a
China tem uma história de cerca de 5.000 anos de civilizações.
A filosofia antiga da China é tão rica que influencia na vida dos chineses. Por exemplo, a
primeira pessoa mais conhecida na China, quanto no mundo, se chama Confúcio e pode-se
dizer quinhentos anos antes de Cristo. Temos muitas obras clássicas e cheias de filosofia.
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Outros também com idéias muito sábias mencionam algo mais. Esta filosofia tem uma
frase muito referida por acadêmicos estrangeiros, sociólogos estrangeiros. Por exemplo,
você fazer algo que não quer que façam. Nunca faça algo que você não queira que os
outros façam com você, isso é respeito mútuo.
Também com respeito a idosos e o equilíbrio, o termo usado é meio injusto. Não
ultrapassar o limite das coisas, boa combinação entre o trabalho e o descanso, não
trabalhar demais, nem descansar demais. Estas coisas influenciam muito o povo chinês
e a herança é muito importante.
A medicina tradicional da China agora não está apenas beneficiando o povo chinês, mas
toda a humanidade. A China tem, agora, 29 patrimônios culturais classificados como
patrimônio cultural da humanidade e estes patrimônios nacionais evoluíram muito na
identidade nacional dos chineses, tais como: a grande Muralha da China, e outras coisas
que eu quero mencionar. A gastronomia da China também é importante, acho que no
mundo inteiro, onde tem seres humanos, tem restaurante chinês. Eu, uma vez num país
muito pequeno de Santa Lucia de Caribe, encontrei dois restaurantes chineses com
cozinheiros negros.
Agora vou abordar dois temas principais da política nacional da China. Tem dois elementos
mais importantes. Um é verificar tanto a atividade cultural quanto o nacional, quanto o
internacional. Quero destacar que a China tem 56 grupos étnicos diferentes, entre quais,
55 representam 8% da população total e 92 pertencem a estes grupos que moram
geralmente em regiões menos desenvolvidas.
Eles também têm uma cultura muito rica. O Governo Chinês vem respeitando muito cada
grupo étnico diferente. Estamos vendo universidades para estes grupos diversos da China,
onde se instala também a Faculdade de Arte e Cultura. Cada região onde se concentra
este grupo, como nós dizemos, tem universidades para eles. Eles também se organizam
em grupos artísticos financiados pelo governo.
E na China se organiza também, periodicamente, festival de canto e dança folclórico,
com combinação e predominação destes grupos étnicos. E quanto ao ambiente
internacional, pronunciamos a respeito de qualquer cultura, nação independentemente
de tamanho, de raça, de crença religiosa.
Em respeito à outra nação se deriva a paz mundial, a tolerância, por isso nas
conferências nacionais, os representantes do governo chinês enfatizam a
importância da diversidade cultural no mundo inteiro e a exposição da hegemonia
cultural do mundo.
Um dos movimentos culturais da política do governo chinês é desejar a herança cultural
e desenvolvê-la. Como na China as manifestações são muito grandes, o governo chinês
vem enfatizando conservar estas heranças culturais, mas, ao mesmo tempo, desenvolvêlas criando algo novo e estas tarefas caem sempre no Centro da Arte da China, companhias
de óperas, orquestras.
A China tem muitos institutos de óperas, de danças etc. Estes institutos que dão
aula de artes se dividem em duas partes. Temos o Conservatório Central da China
que ensina, principalmente, música ocidental, mas temos também o Conservatório
da Música Chinesa, orquestras e sinfonias. Temos muitas orquestras de música
tradicional da China.
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No momento, acordos estão sendo assinados com o intercâmbio dos países do mundo.
Isso deu início em 1985 e, periodicamente, se renova agregando e aumentando conteúdos.
No final deste ano, o final deste acordo estará agregando muitas coisas novas, por
exemplo, intercâmbio de programas de televisão, tradução da literatura de boa qualidade
dos chineses para os portugueses e vão assinar este acordo no final deste ano.
Agora vou falar do intercâmbio entre China e Brasil. Temos um intercâmbio muito forte
entre Brasil e China. Por isso, em 2001, em todo lugar da China pode se ver uma turnê do
grupo de Pequim, uma exposição de pintura contemporânea da China. O Brasil também
organizou uma exposição de pintura contemporânea e o famoso pianista João Martin foi à
China para fazer uma turnê e também o grupo Chorinho foi à China para fazer apresentações.
Lá no ano passado, de fevereiro a julho, em São Paulo, no parque Ibirapuera, no Museu
Oca, teve uma exposição extremamente importante sobre a China que disponibilizava
mais de 200 peças.
Nos últimos anos também um grupo de acrobacia da China viajou duas vezes para o
Brasil para fazer uma turnê com grande sucesso. Este ano, entre as diplomacias entre a
China e o Brasil, nos vemos em processo de intercâmbio cultural. Por exemplo, um
grupo de dança e folclore daqui, composto de 37 pessoas. Vai também uma exposição
de arte popular daqui para o Brasil. Enquanto isso, o Brasil vai também fazer uma
exposição do Palácio Imperial e uma semana de filmes do Brasil na China.
Também mandamos um professor da língua da China para a Universidade de São Paulo
e também estamos planejando um centro de estudos no Brasil.
Equador
- Ministro Gustavo Eideis: "Diversidade Cultural no Equador"
Da mesma forma que o Embaixador do México eu sou um artista plástico. Em função
disso, há uma intervenção que está de alguma forma motivada e pode ter sensibilidade
de ser um artista e estar trabalhando muito vinculado em todo o processo de participação
da América Latina neste momento.
Gostaria de começar contando de onde vem a palavra Equador.
Vocês sabem que este nome representa uma linha imaginária que divide o nosso planeta.
Foi numa expedição que os franceses do século XIV marcaram e definiram esta
equatorialidade, esta metade do planeta.
O Equador é o país que tem o nome desta palavra. Para nós, um fato poético, pois nós
sabemos que nós equatorianos talvez moremos num país imaginário, um país que está
em construção permanente.
Esta magia que é esta palavra nos dá uma idéia da nossa história, a nossa tragédia. Nossa
alma está muito vinculada a toda história da América Latina e eu acho que quando nós
falamos do tema da diversidade cultural e a sua necessidade, vemos que são importantes
as políticas estatais e de relações aos países. É importante que tenham respeito à
diversidade cultural. Se fosse assim, todas obviamente, nós falaríamos de um mundo
diferente. A história da humanidade fez todo o contrário e está fundamentada em não
respeitar o próximo, na necessidade da hegemonia sobre o outro. Isto é nossa América
Latina, da mesma forma que os outros continentes, inclusive a minha colega da China,
pensamos em milhares de histórias que tem a América Latina.
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Eu acho que as culturas e civilizações da América Latina são realmente maravilhosas.
Astecas, maias, incas, que construíram uma civilização extraordinária. Em 1492 em uma
cidade na Bolívia tem mais habitantes que outras capitais européias. Depois que chegou
e conquistou, calcula-se mais de 13 milhões de pessoas na Bolívia naquela época, isto é,
tem a diversidade cultural que ser uma dependência da construção das identidades da
América Latina e eu acho que a América Latina tem um grande problema que é a sua
regionalidade. Sendo parte de um mesmo espaço geográfico não nos conhecemos, não
temos as suficientes vias de comunicação para que alguém venha para São Paulo, pois é
mais caro que para a Europa, e assim por diante.
E em segundo, estamos num controle das fortunas das atividades culturais que não
podem ser possíveis sem que as políticas das estatais não levem em consideração o
papel da diversidade. Eu acho que a política cultural não pode ser uma política separada
dos Estados. Senão tem que ser por todas as outras políticas do governo, de fazer uma
estrada pela metade de um povo indígena da Amazônia. É um problema não somente
das obras públicas do Brasil, é um problema cultural.
Quando se constrói um projeto e se faz um preço arquitetônico nos espaços culturais, as
formas e os materiais. A simbologia está afetando a diversidade cultural. Por exemplo,
um projeto de saúde incorporado às tradições culturais sobre a saúde está afetando a
diversidade cultural. Isto é, não podemos continuar fazendo políticas estatais sem que
esteja atravessado o tema da cultura, somente então podemos gerar um respeito para
todas as diversidades culturais.
O Equador é um país, contrariamente à China, muito pequeno. Temos 240 quilômetros
quadrados, mas com uma grande história cultural e com uma grande diversidade
cultural. Somos 12 milhões de habitantes e 30% pertencem a povoados, povos e
culturas indígenas que incrivelmente resistiram primeiramente à conquista inca que
durou 35 anos no Equador e logo a conquista espanhola que ao longo destes quinhentos
anos desta resistência.
A formação de Estados, nações são geradas pelas lutas de independência com estes
estados nacionais. Antigamente, tinham a idéia de que o Estado é uma riquíssima
cultura e que não existia outras. Para falar dos últimos veteranos no Equador, nós
trabalhamos muito fortemente no tema da diversidade cultural. Não sei como é possível
que povos indígenas da América Latina tenham resistido à diversidade, pois foram
marginalizados, explorados, não participaram nunca da formação de Estados e nações
e não tomavam parte de nenhuma política social. Mas a política agregava nos seus
espaços, nas suas culturas, nas suas línguas, agregariam a sua religiosidade e, no
entanto, são povos que resistiram e que aí estão, cheios de alegria, que têm uma
religiosidade, que têm uma festa, estas maravilhosas de arte popular, mas povos que
vivem com o drama de não serem verdadeiros atores.
No Equador, por volta de 1992, eu acho para a América Latina foi um ano muito
importante além de que foram celebrados os mais de 500 anos. Foram os anos onde
começaram a ter viva voz os movimentos indígenas. Isto é, estavam resistentes e, a
partir de 1992, começaram a serem ouvidos sem intermediações da Igreja ou dos partidos
políticos, antropólogos, etc.
Depois de 92 os povos indígenas começam a se expressar e começam a lançar uma
coisa que é muito importante, um direito à cultura, um direito à diversidade, um respeito
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No Equador nós falamos, a maior parte, o idioma castelhano e temos nove idiomas
indígenas. A partir de 92 esses idiomas estão sendo protegidos. Não estavam incorporados
nos textos constitucionais do Equador, onde tinha um único idioma. Cento e poucos anos
da república negando os outros idiomas de uma população de 30% de equatorianos. Isso
não podia continuar. Não porque o governo decidiu mudar, mas porque os povos indígenas
tomaram a sua própria voz e se pronunciaram. Isto é o que se chama de levantamento e
o levante onde fica uma outra forma, mas de ir caminhando em direção à capital em
busca de seus direitos e isso nós vimos em vários países da América Latina. Nós vimos nas
manifestações na Bolívia e não podemos esconder uma realidade que para a América
Latina é muito dolorosa.
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aos seus idiomas, um respeito por seus territórios. E o mais importante para a inclusão
social é que não se pode ter políticas públicas que não levem em consideração a voz dos
mesmos atores culturais, isto é, das nove nações indígenas.
Os excluídos da América Latina somente agora estão tomando a sua voz e seus estímulos.
Passaram muitos séculos onde tem sido atropelados nos seus direitos culturais e esperamos
que possamos construir um mundo em que os direitos à cultura, à diversidade sejam não
somente uma má política, mas sim um eixo fundamental onde estejam marcadas as
relações de países entre as pessoas.
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Cultura e
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Apresentação
O que pode a cultura pelas cidades? De que forma a cultura se apresenta
no cotidiano dos seus habitantes? Como a cultura contribui para o
desenvolvimento local, inclusão social e a qualidade de vida dos indivíduos
e comunidades? Quando nos referimos ao país e ao Estado, tratamos de
construções abstratas de estruturas político-jurídicas desprovidas de uma
territorialidade própria. No entanto, ao falarmos das cidades percebemos
imediatamente o quanto as mesmas nos parecem tangíveis. Nas cidades
vivemos. Nas suas ruas, praças e bairros construímos nossas histórias,
consolidamos nossa identidade e reverenciamos a nossa memória.
Neste momento em que novas administrações municipais realimentam
esperanças de todos os brasileiros e brasileiras que vivem e convivem nos
espaços urbanos deste grande país, é que o Governo do Estado do Ceará
vem propor a realização do Seminário: "A Cultura e as Cidades" .
O Seminário objetiva contribuir para a construção dos planejamentos
estratégicos municipais voltados para o desenvolvimento das cidades, nelas
enfatizando os novos papéis dos setores turístico e cultural.
O Seminário "A Cultura e as Cidades" destina-se aos prefeitos, secretários,
assessores, pesquisadores, técnicos, estudiosos e interessados em geral
nas questões relativas aos papéis estratégicos da cultura e do turismo
cultura no cotidiano das cidades e de seus habitantes.
Deste modo, estrutura-se a partir das seguintes diretrizes:
1. A cultura é responsável pela consolidação de uma imagem positiva das
cidades, assim como da auto-estima dos seus habitantes.
2. A cultura é responsável pelo desenvolvimento de novas profissões,
promovendo empregabilidade e distribuição de renda.
3. A cultura é um direito dos habitantes de uma cidade, pois é responsável
pela sua qualidade de vida, assim como constitui elemento fundamental
para a educação e a cidadania.
4. A cultura contribui de forma eficaz para a neutralização e redução dos
índices de violência das cidades oferecendo, através de seus inúmeros
produtos e serviços, novas formas de sociabilidade aos indivíduos e
comunidades, produzindo, por conseguinte, uma cultura de paz e
solidariedade.
A cultura é responsável pela memória das coletividades, memória esta a
ser preservada a partir de suas expressões materiais ou imateriais, as quais
animam suas marcas identitárias.
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GestãoMunicipal,
Culturae
Desenvolvimento
Urbano:aexperiência
daRegião
Rhône-Alpes
JeanJacquesPignard
Prefeito e Vice-presidente do Conselho Geral da Região Rhône-Alpes,
encarregado da Cultura.
Na Europa nós não gostamos muito de falar tanto sobre a nossa identidade com nossos
amigos do novo mundo, como vocês. A França tem mais de 3.200 quilômetros quadrados
de superfície e mais de 1.1215.000 habitantes. Realmente é muito difícil compará-la com o
Brasil. O Nordeste possui mais ou menos, três vezes o tamanho da França, mas realmente
seria difícil entender a cultura francesa, a mentalidade, seus atrativos, se não tivermos na
cabeça alguns pontos que caracterizam a geografia da França, sua diversidade cultural. São
mais de 1.000 quilômetros de Leste a Oeste, Norte a Sul, é um país de vários tipos de
climas, de paisagens, somos banhados por vários oceanos.
O Brasil tem muitas riquezas, muitas belezas em suas paisagens e em suas cidades. Nós
também temos ótimas cidades e paisagens, mas todas são concentradas num espaço
muito limitado. Vocês precisam pegar um avião de Belém para Fortaleza ou de Fortaleza
até Recife, até a Bahia. Já na França, vocês podem fazer um tour em poucos dias, até de
bicicleta. E é isso que faz com que o país seja um destino turístico muito interessante.
Anualmente, mais de setenta e dois milhões de turistas visitam nosso país. E não é por
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motivos turísticos que, há mais de três mil anos, populações vêm se instalando na França.
Os primeiros povos, os gregos e romanos, foram atraídos pela riqueza desse território.
Outros vieram de todas as regiões da Ásia. Na origem do nosso país podemos encontrar
gregos, romanos, entre outros povos, até árabes. Além de tudo isso, nos tempos
contemporâneos, recebemos um forte movimento migratório de populações que fugiam
de ditaduras ou que buscavam sua sobrevivência: italianos, portugueses, espanhóis,
poloneses etc. Nosso movimento colonial, entre as guerras mundiais, permitiu a chegada
de indo-chineses, turcos e dos povos do Leste europeu em nosso território.
Apesar de sua diversidade cultural, a França vive um paradoxo. Esse país viveu historicamente
regimes centralizadores, tanto na Monarquia quanto na República. Essa centralização pode
ser representada hoje pelo governo presidencialista e parlamentar que, de Paris, governa
mais de 36.000 municípios.
Com a Revolução Francesa criou-se a figura jurídica do ‘departamento’, que já tem mais de
duzentos anos de existência e uma outra conectividade, por assim dizer, que nós chamamos
de ‘região’. Muitas pessoas têm certa dificuldade para achar seu lugar na paisagem
administrativa do nosso país, porque, curiosamente, as regiões têm menos possibilidades
orçamentárias do que os departamentos. Então, para resumir, a França é constituída por
inúmeros departamentos, regiões, municípios. Desde 1992 até 2004, novas competências
surgiram para a administração local, iniciando-se vinte anos de descentralização. No plano
cultural são importantes os investimentos do Estado. Mais de dezenove bilhões de euros
representam as despesas culturais públicas na França. A esmagadora maioria dessas despesas
vai para Paris, que tem grandes teatros nacionais, a grande biblioteca, os grandes museus.
Como se vê, os maiores equipamentos culturais na França estão concentrados em Paris e é
para lá que vai a grande parte do dinheiro. Eu venho do departamento do Rhône, com um
milhão duzentos e quinze mil habitantes que representa 2,5% da população total, o qual
tem uma metrópole chamada Lyon. No Brasil, Lyon seria uma cidade de porte médio. O
departamento do Rhône reúne muitos municípios e eu sou o prefeito de um deles. O Rhône
é um departamento da administração francesa que tem um orçamento muito importante
para a cultura.
Analisemos o orçamento departamental, que representa mais de um bilhão de euros.
Deste orçamento, 3,22% é destinado à cultura. Muitas pessoas têm dificuldades para ter
acesso a isso, como os deficientes físicos, os jovens. Mas, mesmo assim, esse orçamento
representa 3,22% para a cultura, ou seja, mais de quarenta e dois milhões de euros. Na
França, quanto mais nós descemos na hierarquia administrativa, mais a cultura é considerada
importante. Então, o que eu faço com esse 3,22% do orçamento cultural? Esse orçamento
de mais de 42.000.000 de euros é consagrado, antes de mais nada, aos equipamentos
culturais. Eu tenho quatro parcerias, que são, o estado, a região, o departamento e a
cidade. Alguns equipamentos são municipais como é o caso da Ópera de Lyon, a segunda
maior da França. O patrimônio edificado é gerenciado pelo Estado com os municípios.
Temos o Conservatório Regional e uma Escola Nacional de música.
Vamos refletir agora sobre as relações entre a ciência e a cultura a partir dos equipamentos
museológicos. Em Paris, nós temos um museu de história natural. Esse museu, que já
tem mais de 200 anos de existência, reúne coleções de um acervo muito diversificado
voltado para as ciências da vida, as ciências do homem, as ciências da Terra. Ele recebe
de 50 a 60 mil visitantes por ano. Em Lyon, podemos também falar sobre a cultura
científica porque inauguramos um museu dedicado às ciências e à percepção das ciências
pelos cidadãos. Ele foi idealizado e construído pela cidade, pelo município. Então, nós
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tomamos a decisão de construir um outro museu de grande porte. Esse museu é um
projeto que, hoje, está se tornando realidade. Já arrecadamos os fundos de mais de cinqüenta
milhões de euros para construí-lo. Ele se chamará ‘Museu das Confluências’. Fizemos
uma licitação internacional e um escritório de altíssimo nível de arquitetos foi vencedor.
Tem um design bem futurista, bastante arrojado. Esse museu está sendo construído na
confluência de dois rios: o Rhône e o Saône. Ele será um museu da consciência, dos
saberes, do conhecimento.
Desejamos responder através das exposições a três perguntas: Quem somos? De onde
viemos? Para onde vamos? Teremos exposições temporárias sobre vários temas ligados à
medicina, à saúde, às novas tecnologias.
Vamos agora ao que é da responsabilidade dos Departamentos. Lyon é a capital da Gália,
sendo a capital mais antiga da França. Todos esses sítios romanos fazem parte do patrimônio
histórico da Região e eu sou responsável por eles. Nós gerenciamos esses antigos teatros
romanos de Lyon, que têm capacidade para mais de cinco mil pessoas. Ao redor desses
teatros, temos um museu, com com peças raríssimas, que reune um importante patrimônio
da época galo-romana. Esses museus precisam ser vivos e é por isso que, durante o ano
inteiro, várias animações culturais acontecem dentro deles. Eu me refiro a espetáculos
musicais, teatrais etc.
Temos ainda um museu na periferia da cidade, consagrado principalmente aos mosaicos.
Descobrimos nessa região, através de escavações, vários mosaicos antigos e criamos no
museu um ateliê de restauração para mosaicos. Nós restauramos mosaicos do mundo
inteiro no museu, mas também nele realizamos muitas atividades como shows e
espetáculos. Eu acho que se um museu antigo quer viver, ele precisa falar, comunicar-se
com o povo.
Em 1994, há onze anos, criamos um enorme festival que acontece durante o verão.
Temos ópera, teatro, rock, reggae, músicas francesas, músicas não francesas. O ministro
Gilberto Gil também já tocou no festival.
Para conservar o patrimônio histórico, o departamento apóia a restauração de edificações
de vilarejos e comunidades como castelos e igrejas. É muito difícil para um vilarejo conservar
essas estruturas. Os municípios entram com 50 % dos gastos de restauração e o departamento
com os outros 50%.
Vale citar o Instituto Lumiére, que é o berço do cinema. Nós construímos, junto com o
departamento, cidade e município, uma sala de cinema, onde reunimos vários professores
e estudantes de cinema. O Instituto não é apenas um museu histórico que mantém viva a
memória do cinema, mas é também um cinema moderno. Por último, investimos recursos
para a criação da Casa da Dança, que há trinta anos fomenta a dança contemporânea
realizando parcerias com vários continentes. Nossa Bienal da Dança Contemporânea é
conhecida internacionalmente e já recebemos grandes artistas brasileiros. Como eu já
disse, o grande drama na França é que apenas cinco teatros recebem 100% dos seus
recursos do Estado e quatro deles se encontram em Paris. Os outros teatros na França, nas
pequenas, médias e grandes cidades são financiados 100% por seus governos locais.
Então, em Lyon nós investimos em alguns teatros. São vinte de grande porte, com até mil
lugares e pequenos teatros que cabem até 50 pessoas.
Temos centros culturais que também possuem teatros em cidades de médio porte que
ficam no entorno de Lyon. Esses centros culturais reúnem as energias culturais e criativas
da periferia e isso se manifesta neles a partir do teatro de rua. Essas expressões artísticas
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Cultura e Cidades
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Para concluir, eu queria dizer que a cidade participa de forma decisiva no desenvolvimento
da cultura no meu país. Seja através da manutenção de equipamentos culturais, seja através
dos orçamentos consagrados à educação artística, à criação artística. Graças a esses
orçamentos, fomenta-se as ações culturais e artísticas das coletividades locais. É importante
dizer que a cultura também participa do desenvolvimento da cidade. É a cultura, em toda
sua diversidade, que permite o sonho, o pensamento crítico, a capacidade de resistir, o
sentimento de pertença, além de uma cultura de solidariedade. Ela também viabiliza espaços
de sociabilidade, de encontro e de felicidade entre indivíduos e comunidades.
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revelam a presença de grupos étnicos que vivem nessa periferia e que hoje são responsáveis
pela mestiçagem da cultura francesa.
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Painel I
Identidadecultural
epaisagem:umolhar
sobreascidades
Coordenação: Romeu Duarte Junior - Superintendente do IPHAN
F ernandoResende
Professor titular do Doutorado e Mestrado em Sociologia e Mestrado em História
Social da Universidade Federal do Ceará - UFC
Eu sou da área de Comunicação Social e fico pensando qual é a contribuição que eu
posso dar ao pessoal que está presente aqui hoje. Eu tenho sempre me dedicado em
estudar as questões da cultura e isso é o que me interessa, o que me conduziu nesses dez
últimos anos, desde quando eu comecei o mestrado e o doutorado. Particularmente, na
Comunicação Social tenho dedicado as atenções ao que eu tenho chamado àquelas questões
que são periféricas, que eu também entendo como dominantes na Comunicação Social e,
nesse momento, chamo a atenção no que diz respeito às cidades e penso que esse olhar
sobre a comunicação é a contribuição que eu posso dar e diz respeito a essa trajetória que
eu venho fazendo.
Eu gostaria primeiro de dizer que a comunicação social, para mim, é pensada como um
espaço, como um lugar em que as relações sociais se procedem e acontecem e, portanto,
é a partir desse pressuposto que eu vou propor aqui algumas provocações, alguns desafios
sobre as questões das cidades contemporâneas.
Eu convido, então, vocês a se apropriarem comigo de um olhar que eu acho muito
significativo, muito rico que é de um pensador francês, Michel Certeau, que vai propor
que a gente se coloque de cima de uma cidade, que se olhe para ela como se a gente
estivesse em um avião, sobrevoando, para que a gente entenda que, na verdade, qualquer
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Cultura e Cidades
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cidade se reconstrói, qualquer cidade se redesenha na medida em que o pedestre faz as
suas trajetórias naquela cidade, ou seja, o Certeau para mim abre uma perspectiva que é
muito rica, de que a gente pense a cidade em um constante processo de reconfiguração.
Ela não é um lugar estático, ela não está pronta, ela está sempre por fazer. Parece-me que
isso é uma perspectiva muito rica, muito interessante. Ele chama a atenção para aquilo que
para ele é uma cidade visível, aquela que a gente planejou, aquela que a gente acreditou
que seria uma cidade, para uma outra que é a que se insinua nesse "texto" da cidade
planejada, que é quase a cidade indesejada, quase a cidade que traz o sujo, a cidade que,
na verdade, não comporta aquilo que a gente previamente pensou dentro dela. Não interessa,
então, essa outra cidade, que é a cidade insinuada, que o Certeau diz pra gente, mas
interessa também agregar a perspectiva que a gente tem dessa cidade não planejada com
essa que nos é visível, com essa que se apresenta pra gente como sendo a cidade que seria
ideal, digamos assim. No meu entender, somente associando essas duas perspectivas é que
a gente vai dar, então, uma idéia de cidade possível. Eu estou querendo trabalhar com o
que é possível, e de jeito nenhum com aquilo que é ideal.
Eu vou fazer algumas relações com a comunicação social. Primeiro, porque é o lugar que eu
tenho mais refletido e também porque eu acredito que essas reflexões tenham ajudado,
tenham contribuído para a gente entender esse mapa da cidade, digamos assim. E também
para dizer o quanto eu penso que a comunicação social é responsável por retroalimentar
tanto essa cidade visível, quanto essa cidade insinuada, ou seja, esses dois textos da cidade,
eles se apresentam pra gente hoje, muito mais do que nunca, através da comunicação social.
Nós podemos dizer aqui, uma palavra mais delimitada, através da mídia. Com essas linhas,
assim traçadas, de modos gerais, eu tenho uma pergunta central que é: de que modo nós
podemos contribuir, então, para que essa cidade, essa cidade em que a gente vive hoje, se
reconfigure, se redesenhe a partir do que nela é planejado e também a partir dos fragmentos
das desordens que nela se instalam.
A cidade para mim vai ser vista como uma arena, ela é um espaço em que acontecimentos
se dão. Uma arena tem quem ter essa idéia, então, e com essa perspectiva eu quero
entrar um pouquinho naquilo que seria essa cidade planejada. O que é essa cidade
planejada em termos de proporção histórica? Eu diria que essa cidade planejada como eu
vejo, é a cidade que tem uma perspectiva moderna, desenvolvimentista que pensa e
acredita numa ordem possível das coisas. É uma cidade que vai definir setores, que vai
definir categorias, que vai partir de princípios que são binários, que são dicotômicos, que
são divididos, por exemplo, entre aquilo que é centro e aquilo que é periferia, entre
aquilo que é nobre e aquilo que é popular.
O que eu quero dizer é que o traçado urbano dessas cidades, ele vai nascer, ele vai ser
gerado a partir de um desejo que é que essa cidade ideal se realize nesses setores. Nesse
sentido, eu gosto de pensar os espaços públicos, então, em termos físicos pré-fixados, eles
existem antes que o pedestre caminhe, digamos assim, eles são pré-imaginados antes do
caminhar dos seus pedestres. São espaços que na verdade esperam limpeza, esperam
absoluta ordem e que com o olhar que o Certeau propõe pra gente, nós começamos a
descobrir o quanto isso vai se desorganizando.
Vem-me aqui à mente a praia de Copacabana, por exemplo, no Rio de Janeiro, que é hoje,
uma praia absolutamente destituída daquilo que ela foi anteriormente. Daquilo que ela
apresentava pra gente anteriormente, a "princesinha do mar", com uma série de ambulantes
que hoje estão no calçadão e que nos obrigam, então, pedestres, a estarmos naquele lugar,
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a conviver com aquele mercado o tempo todo. Isso aí pra mim é uma idéia de um espaço
público, físico, que me vem agora à mente, em que essas junções aí se apresentam.
A idéia que Certeau propõe, no meu entender, é de que há, então, uma cidade que se
rompe, e que se rompe a partir do texto que é planejado. O que eu penso que o Certeau
vai nos ajudar a entender é que há uma dimensão no espaço público que é simbólica,
que é para além daquele físico que se determinou e eu creio que é fundamental que a
gente associe essas duas dimensões, para que a gente possa entender um pouco esses
conflitos e essas divergências que nos são apresentadas. Parece-me fundamental entender
que haja uma dimensão simbólica no espaço público, então eu estou tratando de uma
dimensão muito mais ampla, e há dimensões que são físicas nesse espaço público
traçado, planejado e pensado.
Eu penso, também, que a chegada dos meios eletrônicos, eu acho a televisão fundamental
nesse aspecto, a partir dos anos 50 e 60, é que vai problematizar muito essa questão pra
gente desse espaço público, que se torna, então, um lugar simbólico. A televisão nos
apresenta um mundo, na verdade, tudo nos é dado a ver a partir da televisão e essas imagens
que vão chegando pra gente. Não estou aqui dizendo que a televisão tenha um poder
absoluto. Estou tomando a televisão, como exemplo, para dizer que a mídia constrói imagens
a partir dos anos 60 que vão contribuir para que a gente remodele os espaços físicos em que
a gente se encontra. Então, por exemplo, a partir daí a gente vai, inclusive, se distanciar da
cidade física e criar outras cidades pra gente, que pode ser dentro da nossa casa. Eu vou
evitar estar na rua, eu vou evitar estar com o outro na rua, porque lá é perigoso e vou ficar
em casa assistindo a televisão ou vou mandar meus filhos para o shopping center porque
esse é o espaço público que eu penso possível, porque lá ele vai estar protegido daquilo que
tem naquela cidade que eu não gostaria que ele convivesse.
Essa noção do espaço público, então, bem dimensionado, no meu entender, chama a
atenção primeiro para a importância dos meios de comunicação. Eles reinventam o
imaginário urbano. Eu acho importante marcar isso, penso que ele pode ajudar a gente a
entender melhor a cidade, a ler melhor a cidade, porque essa noção agrega a cidade
planejada com a cidade insinuada e penso que essa noção pode ajudar a gente a entender
a formação e a presença das subjetividades que são diversas no mundo contemporâneo.
É com a mídia, portanto, que, penso eu, que centro e periferia vão se cruzar o tempo
todo. Não apenas as novelas que mostram isso pra gente. Não estou dizendo da qualidade
do que é mostrado, estou dizendo do fato, que se apresenta pra gente como lugares que
são cruzados e vários outros exemplos que a gente poderia citar aqui, que explicariam pra
gente o que eu estou dizendo que é esse intercruzamento de espaços, que antes se
pensavam divididos.
Esses elementos que se apresentam, com a chegada da mídia, me parecem contribuir para
que a gente, primeiro, pense a cidade já se redesenhando. Por exemplo, me veio uma
outra idéia que é no Rio de Janeiro, também, a possibilidade que você tem, por exemplo,
de assistir a um samba no morro. Você mora na zona Sul, que é um espaço categoricamente
dividido, digamos, com geografias divididas. Você mora na zona Sul e vai para o morro
assistir a um espetáculo de samba, digamos assim. Assim como o morro desce para o
asfalto e a gente, também, do próprio asfalto, já tem essa relação com aquilo que é de um
outro lugar.
Os bailes "funks" são outros exemplos muito importantes, também, com relação a esses
cruzamentos que eu estou dizendo. Então, isso, no meu entender é que vai fazer com que
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Para entender isso, também, eu trabalho com um autor que se chama Miège, que é um
francês que tem se dedicado a pensar as questões do espaço público contemporâneo em
relação à mídia, e o mesmo vai dizer pra gente que uma das normas que é possível pra que
a gente estabeleça as relações nesse espaço público, hoje, é o conflito. Não há outra
perspectiva, não há outra possibilidade da gente lidar com aquilo que nos chega através da
mídia, através do conflito ou com aquilo que é produzido na mídia, também, como sendo
o próprio conflito.
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a gente pense as cidades, já se redesenhando, ou seja, as pessoas, elas estão presentes, a
gente precisa olhar pra elas, que vai nos dar motivo para que, de fato, a gente repense as
cidades, eu acho que isso aí é fatal, nesse aspecto.
O conflito do Miège vai se dar a partir de uma noção do que é assimetria e fragmentação.
Assimetria porque nem todos têm acesso a toda a tecnologia que está aí e fragmentação
porque, na verdade, chegam pra gente vários relatos, várias narrativas a respeito dos fatos,
que fazem com que a gente tenha essa noção fragmentada da realidade. Eu penso, também,
que seria muito interessante a gente fazer essa transposição para aquilo que a gente entende
como espaço urbano. Então, não vejo outra possibilidade, também, para que a gente lide
com esses fatos que se configuram hoje, se não for pela via do conflito, que eu acho isso
também muito interessante. Por que? Primeiro a gente divide espaços que são distintos.
Confira os exemplos que eu busquei dar para vocês e a gente divide cenas que são muito
diferenciadas, que são muito contraditórias o tempo todo. Basta andar nas ruas pra que essas
cenas se apresentem pra gente de modo bastante instigante e eu penso que são essas
relações, também de conflito, que vão criar o que então seria esse embate que a gente tem
o tempo todo que lidar na atualidade, que é em relação a essas diferenças que se apresentam.
Eu tenho percebido que muito da solução pra esse conflito, ou pra esse embate, tem
vindo de propostas que são homogeneizadoras, que é uma tentativa de unificar, uma
tentativa quase de excluir as diferenças, para que aquilo que é limpo, aquilo que é correto,
aquilo que é o desejado se sustente. Acho que pela força econômica, isso tem se feito
muito presente. Só que eu penso, também, que há um outro aspecto, que se apresenta
pra gente que é o de ressaltar as diferenças.
Eu percebo muito claramente como cada vez mais na rua essas diferenças vão sendo
apresentadas pra gente e eu entendo isso aí como a força da cultura. Eu acho, então, a
importância da cultura no que a gente está discutindo aqui. Eu digo até que isso é um
trunfo que a gente tem, do qual, a gente precisa cuidar muito bem pra entender, porque
eu penso que é a alternativa, é a saída que a gente tem pra poder lidar um pouco com
esses conflitos, com esses embates que aparecem.
Nesse sentido, o olhar, então, vai ser que a cultura é uma luta contra a uniformidade,
quem diz isso não sou eu, é um indiano, que se chama Homi Bhabha. Eu acho isso muito
rico, muito interessante e vou querer dizer, ainda, que a cidade, ela é, antes de tudo, uma
arena cultural. Quem diz isso é Renato Gomes, da PUC do Rio de Janeiro, e eu acho
também uma perspectiva muito rica, muito interessante, pra gente entender, isso que eu
estou chamando de conflito, que a gente vive no espaço urbano.
Esse espaço urbano, então, é um espaço que se redesenha na medida em que essas
assimetrias e essas fragmentações vão se revelando. E como elas se revelam? Elas se
revelam a partir de sociabilidades contemporâneas, novas formas que vão sendo criadas
no mundo de hoje, pra que a gente lide com o outro. E eu chamaria a atenção aí para a
idéia que se tem de uma reconfiguração da noção de tempo/espaço. A gente passa a lidar
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com a idéia de tempo de uma maneira distinta, a gente passa a lidar com a idéia de
espaço, também, de uma maneira muito diferente daquilo que foi presente, foi constância
no final do século XIX até meados de 60, 70 do século XX.
Reincorporação da noção de tempo/espaço à promiscuidade. Promiscuidade, tenho dito eu,
no bom sentido dos fluxos locais, dos fluxos globais, isso também é algo que me parece
fundamental pra determinar essas novas ou essas outras sociabilidades que aparecem pra
gente e advindo disso um cruzamento de experiências que eu acho também muito rico, que
eu acho muito significativo que se apresentam pra gente hoje. Nessa idéia, nesse cruzamento
de experiências, eu penso que o conhecimento do outro é uma perspectiva.
Volto a dizer, não estou dizendo aqui da qualidade desse conhecimento, estou dizendo do
que nos é imposto a partir do ressaltar dessas diferenças que chegam a nós pelo viés da
cultura. O que há, então, nesse caso é um processo de alargamento, um processo de
ampliação daquilo que a gente vai chamar de experiência cultural. É uma diferença que se
apresenta pra gente e isso me parece muito importante, inclusive pra que a gente se
pergunte o que esse fato provoca em nós.
Eu gostaria de ter tido mais tempo, por exemplo, de andar por Fortaleza, pra entender um
pouco o que significa a internacionalização dessa cidade. A notícia que chega pra gente lá
no Sudeste, agora com muita freqüência, isso é notícia que a gente recebe. Eu estive em
Portugal fazendo parte da pesquisa e eu praticamente conheci Fortaleza, também, em
Portugal. É impressionante como muita gente lá tem levado notícia de Fortaleza. Fortaleza
passa a ser o Brasil para esses portugueses que vêm aqui, muitos deles só vêm aqui, não
vão a nenhum outro lugar. Fortaleza é mais perto da Europa, por exemplo, que Rio de
Janeiro e São Paulo. Isso é um fato que chega pra gente como novidade, novidade que eu
digo contemporânea e que tem sido cada vez mais incluída nesse tipo de pensamento.
A gente passa a ter um tipo de relacionamento com o outro, na breve caminhada no
calçadão, de uma forma bem clara, muito objetiva. É interessante a gente pensar no
quanto essa paisagem contemporânea, então se enriquece pra nós. O que eu acho que
talvez não saibamos ainda é ler e escrever essa paisagem, ela está aí. Isto aí, pra mim, é
fato. O que eu acho é que nós temos que lidar com o fato de que essa experiência
contemporânea que a gente tem hoje, ela é mediada pelas máquinas, definitivamente, a
gente não escapa disso. Mas a gente tem que ter a certeza e saber lidar com o fato de que
a cultura tece esse vínculo. Isso aí me parece que é fundamental.
A idéia da visibilidade passa a ser um vetor também fundamental. A gente precisa ser visto
o tempo todo, estar dentro dos "reality shows", "Big Brother Brasil", pra mostrar pra gente
como isso é verdade. Eu diria que isso seria uma perspectiva mais delicada, que a gente
precisa cuidar o tempo todo. Mas eu acho que junto com isso a gente precisa entender
que os nossos modos de vida são alterados. Trabalho altera, lazer altera, roupa, comida,
todas essas questões que estão numa dimensão mais simbólica na nossa vida, mas que
também dizem respeito ao nosso próprio corpo, são alteradas. Eu penso que, a partir daí,
essa apropriação que a gente faz do espaço urbano também vai se alterar.
Se é através da mídia que isso chega a nós, eu penso que é também fundamental a gente
pensar que é através do que se conta, é através das narrativas que isso se apresenta. Eu
gosto de dizer sempre que, na verdade, o que a gente faz na mídia é narrar a experiência do
modo de vida, com todos os problemas que a gente tem, com todos estereótipos que a
gente cria, com todos os rótulos que a gente cria. O que a gente faz na mídia é isso, é uma
narrativa de experiência e de modo de vida. Porque muitas vezes sustenta aquilo que já é
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determinado, o status se faz sustentado, mas muitas vezes se cria outros modos de vida. O
Certeau vai dizer também que caminhar com esse pedestre que caminha, que desenha a
cidade, que esse ato de caminhar é ter falta de olhar. Eu acho essa imagem muito interessante,
também, e penso que se caminhar para o Certeau é desenhar a cidade, é descrever a cidade,
eu penso também que é nesse caminhar que você constrói o lugar. Eu acho que isso é uma
outra perspectiva bem instigante pra pensar essas escritas, essas narrativas que a gente tem
na mídia, também, que é uma tentativa de fundar, penso eu, identidades.
Eu acho que a gente, mais do que nunca, hoje, funda as identidades, através da mídia e a
partir das narrativas que a gente vai construindo na mídia. Nesse sentido, as narrativas são
representações coletivas, compactos sociais e ajudam a gente a conhecer o outro, a nos
fazermos conhecidos e a nos conhecermos também. Eu acho que essas são perspectivas
fundamentais pra gente entender a importância da mídia hoje na constituição desse espaço
público contemporâneo com as suas dimensões simbólicas, e no espaço urbano na
construção dessas identidades que, na verdade, penso eu, é o que está em conflito. E o
que está em conflito, no meu entender, é a fundação, é a constituição dessas identidades
culturais diversas que se apresentam pra gente.
A minha pergunta volta, então, num sentido muito mais amplo, de como é que nós
fazemos então para que o olhar lançado à cidade, aproveitando o tema da mesa, dê conta
dessas identidades culturais diferenciadas que se apresentam no texto das cidades
contemporâneas? Penso que esse é um dilema que a gente tem, até porque se nós dentro
da cidade, por exemplo, como num teatro de uma guerra de relatos, digo novamente que
Certeau, acho essa imagem assim, muito contundente, a cidade como teatro de uma
guerra de relatos. Nós precisamos atentar ao fato de que há discursos hegemônicos que
vão tentar dizer pra gente que nós precisamos separar o joio do trigo. Os cursos oficiais
vão dizer pra gente o certo está aqui, o errado, o bom está aqui, o mal está lá. Nós temos
que separar esses espaços, digamos assim.
Mas, o que eu penso é que a vida está aí fora o tempo todo, quando a gente anda na rua,
que está na mídia o tempo todo. Se a gente olhar pra mídia com esse olhar que busca a
diversificação, nós vamos ver essa riqueza que se apresenta pra gente. Diante disso eu
penso que a gente teria duas opções: uma é entender o sujo, eu vou dizer sujo aqui da
cidade coordenada, entender o sujo como constitutivo da vida, lidar com isso e tratar
planejamentos que tenham isso como questão, como verdade ou a outra opção seria
construir muros. Vamos construir muros, nos colocar em espaços que vão parecer como
paraísos pra gente e vamos nos constituir dos medos, das angústias, dos pânicos que
fazem parte desse paraíso construído também. Eu fico com a primeira opção, acho que
ela é muito mais rica e ela traz pra gente essa possibilidade.
Enfim, o que eu acho, eu teria exemplos de como essas paisagens tão urbanas aparecem
pra gente como absolutamente diversas, não vai ser possível dizer aqui. Mas eu gostaria
de insistir que a tarefa não é fácil, que a tarefa é árdua e muito difícil, porque ela implica
na questão, que eu acho que é o nó central do problema, que é a questão da autoridade.
A questão da diferença, como é que eu lido com o outro, de modo a entender que a
diferença que é parte dele e pode inclusive enriquecer a minha cultura e vice-versa. Como
é que eu consigo estabelecer uma troca com esse outro que quer se fazer sujeito o tempo
todo? É nesse sentido que eu acho que a questão se torna um desafio muito grande e não
tem forma, não tem nenhuma regra de como isso acontece. Eu só sei que a gente precisa
ficar muito atento, eu acho que é preciso que seja feita uma reforma do pensamento, algo
muito amplo, que diga respeito a várias pesquisas que têm que ser realizadas, diga
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respeito às políticas públicas de comunicação social, que precisam ser muito bem pensadas
na questão das cidades. Eu acho que as questões das diferenças, elas precisam ser dadas e
dadas com muito cuidado. Penso que a articulação de estratégias, também em conjunto
com fatores sociais diferenciados, é algo absolutamente fundamental para que a gente
possa pensar e chegar mais perto dessa cidade conflituosa que se nos apresenta.
É isso. Eu gostaria novamente de insistir que são provocações, são desafios que são colocados
pra gente, que eu acho fundamental, que a gente possa conversar, mas essa interrupção
aconteceu. Eu agradeço mais uma vez a todos vocês.
Bárbara Freitag
Professora e Pesquisadora da Universidade Nacional de Brasília - UNB
Introdução
Ninguém mais apropriado para orientar o nosso olhar sobre as cidades que o urbanista
inglês Peter Geoffrey Hall. Como é sabido pelos seus leitores, ele foi durante décadas
professor da Barlett School para Arquitetura, Construção, Desenho ambiental e
Planejamento na Universidade de Londres, mas também, por muitos anos, professor do
Instituto de Planejamento Urbano e Regional na Universidade da Califórnia.
Autor do já clássico, Cities of Tomorrow (1988), (Cidades de amanhã) ele nos presenteou
com uma "história intelectual de planejamento e desenho urbano do século vinte". No
capítulo sete deste livro, "A cidade das torres", Hall introduz a idéia das cidades radiantes
de Le Corbusier e discute, entre outras cidades, Chandigarh (no Punjab/Índia) e Brasília
(no Planalto Central/Brasil). Enquanto a primeira, é um projeto concretizado de Corbusier,
Brasília é, para Hall, "a quasi corbusian City". Nos dois casos, trata-se de cidades que
estão longe de dar soluções perfeitas para os problemas das cidades de hoje e de amanhã.
Desde cedo Hall deixou claro que não é nenhum entusiasta incondicional do Planejamento
urbano. Bem ao contrário, em "Great Planning Desasters" (London, 1980) manifestou seu
ceticismo com relação ao planejamento, em alta nos anos 60 e 70. Em quase todos os
seus livros aponta para os desastres do planejamento urbano, citando como exemplo
paradigmático a implosão de um bairro planejado na cidade de St.Louis, situada perto da
região dos grandes lagos nos Estados Unidos.
Em "Cidades de amanhã", Peter Hall também confirma uma das teses da filosofia da história
de Walter Benjamin, segundo a qual "Nunca houve um monumento da cultura que não
fosse também um monumento de barbárie" (p.220 em Obras Escolhidas, vol.1, Ed.
Brasiliense). Isso se aplica perfeitamente à análise das cidades. Hall ilustra em pelo menos
dois capítulos do livro aqui citado a verdade incontestável dessa tese. Em "A cidade da
terrível noite" os aspectos sombrios (a barbárie) das cidades de Londres, Paris, Berlim, Nova
Iorque no século 19 são focalizadas e, em "A cidade no jardim", a dimensão da luz, da
beleza, da cultura e da ecologia dessas mesmas cidades, na primeira metade do século 20.
Se em "Cidades de amanhã" Hall fornece várias pistas para pensar a questão da cultura no
contexto urbano, é em Cities in Civilization (Cidades na Civilização) de 1998 que a
complexidade das relações entre cidade e cultura é magistralmente tratada. Este livro de
mais de 1.200 páginas leva o sub-título Cultura, Inovação e Ordem urbana. Trata-se em
verdade de cinco livros, em si autônomos, a saber:
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"A cidade como cadinho cultural"(livro 1),
"A cidade como meio inovador" (livro 2)
"O casamento de arte e tecnologia" (livro 3)
"O estabelecimento de uma ordem urbana" (livro 4)
"A união de arte, tecnologia, e organização" (livro 5).
É do primeiro dos cinco livros que tentarei extrair alguns ensinamentos para ilustrar meu tema
sobre Identidade cultural e paisagem, "paisagem" aqui compreendida como ambiente urbano.
A cidade como cadinho cultural
Peter Hall trata da cidade como sendo uma instituição que numa constelação privilegiada
de fatores e em um determinado tempo muito especial ("cairós"), é capaz de produzir uma
cultura "sui generis" que a singulariza e a torna modelo para todas as demais no campo
cultural da época.
Isso Hall ilustra em seis cidades que atingiram uma excelência cultural jamais vista: Atenas,
nos anos de 500 a 400 a.C. (no século de Péricles); Florença entre 1400 e 1500 (na
Renascença); a Londres shakespeariana de 1570-1620 (como palco do mundo); a Viena
da valsa (incorporação do princípio do prazer) entre 1780 a 1910; a Paris (capital das
Luzes) entre 1870 e 1910 e a Berlim (inventora do século vinte) de 1918 a 1933.
Antes de nos debruçarmos sobre uma pequena seleção dessas cidades em seus períodos
dourados com o intuito de aprofundar algumas das reflexões de cada uma delas, cabe
lembrar a tese da filosofia de história de Benjamin, há pouco citada: ao mesmo tempo em
que essas cidades atingiram o período áureo de sua produção cultural, elas também
constituíram monumentos de barbárie. Esses a humanidade prefere escamotear e/ou esquecer
("verdrängen"), diante do esplendor cultural que elas foram capazes de realizar. Assim, Marx
lembrou em O Capital que a Atenas de Péricles convivia com a escravidão; Florença era
dominada por lutas políticas entre as elites dominantes, lutas essas que Maquiavel sintetizou
de forma tão brilhante em seu O Príncipe. A Londres que se divertia no Globe Theater da
margem esquerda da Thamise, conviveu com a peste, descrita por Defoe, que seguiu ao
grande incêndio na City da capital da monarquia inglesa (cf. detalhadamente pesquisado por
Peter Ackroyd em sua "Biografia sobre Londres" de 2000). Em Viena, enquanto o Congresso
dançava valsa e resolvia diplomaticamente as conseqüências das derrotas napoleônicas, os
povos do leste subjugados (checos, húngaros, eslavos, poloneses, entre outros) se preparavam
para lutar por seus direitos, deslanchando finalmente uma das mais sangrentas guerras
mundiais [a primeira do século 20 (1914-1918)]. Enquanto a capital das Luzes, atraía sobre
si os olhares do mundo cultural da época, que aplaudia Victor Hugo, Gustave Flaubert,
Heinrich Heine e até mesmo Karl Marx, reunidos em Paris, essa cidade vivia no final do
século da "Belle Époque" um de seus maiores conflitos sociais e políticos: a derrota dos
franceses pelos prussianos, que invadiram a capital francesa e a Comuna de Paris. Esta,
como se sabe, terminou em um banho de sangue nos muros do famoso cemitério, Père la
Chaise, onde estão enterrados, entre outros, Auguste Comte, o pai da Sociologia e Chopin,
o gênio da música, foram fuzilados (em 1871) os líderes da Comuna.
Passemos agora aos "golden ages", os anos de ouro das cidades acima citadas. Peter Hall
pergunta-se: Por que grandes cidades têm essas idades de ouro, ou como os franceses
preferiram chamá-las "belles époques"? Como tais épocas emergem? Por que as chamas
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criativas dessas épocas surgem de modo tão singular e único nas cidades e não no campo?
O que faz com que uma cidade particular, em um tempo determinado se torne num piscar
de olhos imensamente criativa e excepcionalmente inovadora? E por que esse espírito
somente floresce por algum tempo, no máximo uma a duas décadas, desaparecendo tão
repentinamente como começou? E, finalmente, como se explica que somente algumas cidades
conseguem reaparecer, reflorindo como únicas no campo cultural? (P.Hall, 1998, p.3).
As respostas que, de início, devem guiar o leitor curioso, são emprestadas à história e à
sociologia geral. Uma delas recorre à existência de gênios criadores, personalidades
excepcionais, lideranças carismáticas, capazes de gerar um clima cultural excepcional.
Nestes casos, o nome da cidade em que atuaram esses gênios, ganham destaque pela
grande personalidade que nela viveu e a tornou famosa. É o caso de Erasmus de
Rotterdamm. Mas também seria o caso de Shakespeare para Londres, mesmo que esse
tenha nascido em Stradford-upon-Avon. Napoleão, Victor Hugo, o Barão de Haussmann,
entre outros, serão sempre associados a Paris, a qual exaltaram e tornaram gloriosa.
Maria Theresia, os irmãos Strauss ou até mesmo Freud são as personalidades que deram
destaque a Viena; assim como Bismarck, Fontane, Döblin, Bertolf Brecht, para somente
mencionar alguns, a Berlim. Aqui temos vários casos em que nem sempre o lugar de
nascimento do gênio ou personagem "faz" sua cidade, e sim o meio no qual agiu, produziu
e no qual sua obra chegou à perfeição.
Esse fato fez com que autores ligados a uma visão materialista e estruturalista da história
preferissem explicações menos personalistas e mais sócio-econômicas, ligadas ao modo de
produção, à conjuntura econômica e política internacional, à importação de modelos e
correntes de pensamento exógenas. Com as redescobertas de antigos impérios (Egito, Assíria,
Grécia, Roma) pelos viajantes, arqueólogos, antropólogos e sociólogos em diferentes épocas,
novas riquezas e modelos de vida foram trazidos para as cidades européias, influenciando-as
em sua arquitetura, seu embelezamento e criação de novos estilos artísticos, como o barroco
e o rococó que se beneficiaram do ouro e da prata trazidos das Américas. As respostas
fornecidas por essa orientação estariam defendendo a tese de que o meio cultural é criativo
graças ao seu grau de desenvolvimento material, tecnológico e cultural, que, por sua vez,
inspira certos indivíduos a expressarem com toda a clareza as tendências de seu tempo,
revelando a capacidade (como foi o caso de Goethe em seu romance de formação "Wilhelm
Meister") de sintetizar o passado e projetar, a partir desse passado e do presente, as tendências
futuras do processo cultural.
Nesses termos, a genialidade de Goethe (nascido em Frankfurt) mas atuante em Weimar,
teria sido fruto da condensação cultural, nessa cidade, de um clima cultural altamente
estimulante. Isso explicaria também a atração que a cidade exerceu sobre Lucas Kranach,
Herder, Goethe, Schiller, Liszt, Nietzsche, os idealizadores da estética do Bauhaus e muitos
outros, que fizeram de Weimar a "capital cultural" da Alemanha no imaginário dos alemães
durante muitos séculos.
Pensadores como Karl Marx, Althusser, T.S.Kuhn, Michel Foucault, Jean Piaget, entre outros,
introduziram a idéia de modos de produção, revoluções científicas, epistemes, ou paradigmas
do conhecimento que teriam uma certa estrutura e estabilidade no tempo mas sofreriam
abalos (internos ou externos) que conduziriam a humanidade a novos patamares de
organização e conquistas culturais. Dois suecos adaptaram essa idéia à questão do meio
ambiente criativo e à cidade inovadora: Torsten Hägerstrand e Gunnar Tötrnquist. Essa
orientação teórica sobre a formação das cidades poderia explicar fenômenos como o
esplendor e a inovação gerada pelo Silicon Valley entre Los Angeles e San Francisco na
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costa pacífica dos Ustados Unidos, onde o fenômeno Bill Gates e sua empresa Microsoft
revolucionaram a organização tecnológica do mundo. Seguindo essa trilha, os fatores
"informação", "conhecimento", "competência" e "criatividade" configurariam o meio criativo
que nas palavras de Manuel Castells gerou a "sociedade informacional" e com essa, o que
Saskia Sassen acabou chamando de "cidade global". Esse tipo de cidade pós-moderna
dos nossos tempos, reúne e condensa em uma área urbana específica as qualidades do
"meio criativo". Saskia Sassen dá como exemplos de cidades globais por excelência, Nova
Iorque, Tóquio e a Londres contemporâneas.
Em vez de optarmos por uma das possíveis explicações acima sugeridas pelos mais diversos
pensadores, sugiro que orientemos nossas análises sobre as cidades douradas, recorrendo
simultaneamente às três óticas, que buscaram uma explicação para o seu surgimento e
apogeu, sem perdermos tempo com a questão do que existiu primeiro, o ovo ou a galinha,
ou seja: a cidade ou as grandes personalidades que as honraram.
Além disso, na qualidade de socióloga, não gostaria de abrir mão da idéia do
desenvolvimento material (tecnológico e cultural) das civilizações. Deste modo, uma
cidade medieval terá características e silhuetas diferentes das cidade ditas pós-modernas,
já que se assentam em modos de produção econômicos e tecnológicos muito distintos.
Os gênios ou personalidades produzidos em um ou outro tipo de cidade, necessariamente
precisam ser diferentes e pensar de maneira diferenciada, adequando-se ao grau de
conhecimento, informação, competência e criatividade que cada época permite atingir.
Leonardo da Vinci, por exemplo, projetou um avião e uma nave espacial, contudo, a
tecnologia do seu tempo não permitia realizá-los. Os materiais disponíveis ainda eram
inadequados. Três a quatro séculos depois, essas barreiras tinham sido superadas.
Voltemos a nossas seis cidades que atingiram - segundo Peter Hall - uma "idade de ouro"
na Europa que conhecemos: Atenas, Florença, Londres, Paris, Viena e Berlim e destaquemos
os elementos e personagens culturais que lhes deram brilho e aura.
ATENAS
Ao debruçar-se sobre a Atenas de 500 a 400 aC., nosso autor dá destaque a três grandes
conquistas dos atenienses, que habitavam a polis de Atenas: a filosofia, o drama e a arte.
A filosofia (o amor pelo conhecimento) foi trazido da Ásia Menor por Anaximandro, Thales
de Mileto e Anaxímenes, entre outros, mas adquiriu em Atenas o seu esplendor com
Sócrates, Platão e Aristóteles. A filosofia desses pensadores representa o abandono da
mitologia e da religião e prega a necessidade do homem perguntar-se sobre as razões de
sua existência, da origem e do fim do mundo, fazendo recurso à sua capacidade de
reflexão e crítica. Apesar de correntes conservadoras na filosofia, Péricles dava apoio e
proteção a esses pensadores geniais que, segundo boa parte dos filósofos modernos,
construíram o fundamento da filosofia tout court. Para outros, o que a eles se seguiu não
passa de um pé de página na história das idéias filosóficas.
O drama grego como realizado nas obras de Eurípedes e Sófocles tinha pelo menos três
funções na cultura grega da época: a artística, a pedagógica e a catártica (cf.VidalNaquet, 1973). As peças desses grandes dramaturgos até hoje mobilizam a humanidade.
A tragédia grega alimenta-se da mitologia mas a transcende. Os atores do drama assumem
feições típico-ideais, quase caricaturais. Os dramas exprimem dilemas morais e conflitos
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sociais, via de regra universais, que até hoje nos sensibilizam e levam à identificação
com os personagens. Basta lembrar os caracteres clássicos de Édipo, Antígona, Creonte
e outros.
No campo das artes a Acrópole de Atenas constitui a metonímia de todas as artes, incluindo
a arquitetura, a escultura e a pintura. O modelo dos templos gregos foi levado para todas as
colônias da Ásia Menor e do Mediterrâneo, especialmente o sul da Itália e Sicília.
A "golden age" ateniense certamente só foi possível graças a uma economia florescente
baseada na agricultura e manufatura locais e no intenso comércio de Atenas com as outras
cidades gregas da península e colônias e povos que habitavam as costas mediterrâneas. Hall
observa com procedência que todas as cidades gregas "olhavam" para o mar e davam as
costas para as montanhas. A civilização ateniense da qual Atenas foi capital, era marítima,
universal e culturalmente aberta para todos os aportes que vinham graças ao comércio com
outras culturas. No período destacado (Século de Péricles) deu-se a mudança de uma sociedade
agrária auto-suficiente para uma sociedade urbana, baseada no comércio global.
FLORENÇA
O auge da cultura florentina na Itália de 1400-1500 reduziu-se a algumas poucas décadas.
E novamente Hall se pergunta: por que a sociedade de Florença era tão criativa e tão
receptiva às inovações e mudanças ? Por que coube à Florença e não à Gênova, Milão
ou Veneza a distinção no campo da arte e do aprendizado nesses anos? (Hall, p.70) O
autor sugere como resposta que foi na Florença da Renascença que as artes e a cultura
emergiram (como antes em Atenas) como poder independente, sem qualquer controle
secular ou eclesiástico.
Os florentinos beneficiaram-se da redescoberta das artes clássicas gregas, antes dos
habitantes das outras cidades italianas, e foram eles que desenvolveram a capacidade de
observar, organizar e abstrair dessa herança para recriar uma nova cultura estética. Também
foram eles que voltaram à observação da natureza, redescobrindo o realismo nas artes.
Nesse contexto, basta lembrar alguns nomes como Giotto, Brunelesco, Donatello,
Ghirlandaio, sendo impossível fazer justiça a todos os gênios que criaram cultura e
deram aura e fama à cidade de Florença. Dante com sua Divina Comédia, Leonardo da
Vinci e Michelangelo são protagonistas cujos nomes e cuja obra ficaram definitivamente
ligados ao esplendor de Florença. Enquanto esses artistas foram considerados gênios
universais por combinarem vários ofícios (entre os quais o de urbanistas, arquitetos,
escultores, pintores, etc.) delineiam-se, no final do século 15, duas tendências estratégicas
para a sobrevivência da cidade de Florença em sua "idade de ouro": a idéia do homem
universal como ideal humanista e uma divisão de trabalho no campo das artes, que
levou cada um dos ofícios à sua realização plena. Deste modo, Florença forneceu a
base para uma sociedade praticamente revolucionária. Os florentinos tinham amplas
redes de conexões com artistas, reis, cardeais, papas e a aristocracia local . Para Hall eles
foram os verdadeiros "criadores da Renascença"(p.85) que deram ao mundo europeu da
época seu estilo de vida, seus gostos e valores, seus modos de pensamento, suas
percepções e representações do mundo urbano. Segundo Burckhardt, o historiador
suíço da Renascença, os florentinos foram também os inventores do Estado moderno.(cf.
Burckhardt, J.C. A Civilização da Renascença na Itália, 1990).
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A idade de ouro, mais precisamente, a primeira idade de ouro de Londres começa em
torno de 1570, quando a cidade já atingia aproximadamente 200 mil habitantes. Para
situarmos melhor a época de duração do apogeu cultural (1500-1620), é bom lembrar que
em 1588 os ingleses venceram a Grande Armada de Felipe II da Espanha, tornando-se com
essa vitória, os "donos dos mares". Estamos no reinado de Elisabeth I (1556-1601). Em
torno de 1500, época do descobrimento do Brasil, já existiam os dois grandes centros
universitários - Oxford e Cambridge - chegando a ter matrículas anuais entre mil e mil e
quinhentos universitários. Nas décadas seguintes, esses números somente cresceram.
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LONDRES (teatro: o palco do mundo)
O controvertido rei Henrique VIII, que cortou o cordão umbilical com a Igreja Católica em
Roma, implementando o anglicanismo na Inglaterra, desapropriou os mosteiros católicos e
os subordinou à guarda de sua igreja e coroa, dando início a um processo de secularização
sem precedentes e implementando um regime de arrendamento da terra que somente passamos
a compreender depois da publicação, por Engels, do terceiro volume do Capital de Marx.
Entre 1540 e 1640 houve um deslocamento da riqueza para as classes médias altas e
médias. Londres passou a ser a sede dos ricos, independentes da coroa e do clero. Todas as
editoras e teatros concentravam-se na capital. Na virada do século 16 para o 17 foram
escritas mais de 2.500 peças de teatro. Os autores mais conhecidos da época chamavamse: Thomas Hetywood (com mais de 200 peças escritas), John Fletcher (69), Thomas
Dekker (64), Philip Massinger (55), Henry Chettle (50), Shakespeare (38), Middleton (31),
entre muitos outros. (Cf.Hall, 1998, p.115 e seguintes). A maioria desses dramaturgos era
pobre, muito poucos ficaram ricos. Mas quem viu o filme "Shakespeare in love" (Shakespeare
apaixonado) com Judy Dench e Gwineth Poltrow, recorda-se das multidões que vinham ao
teatro. E nisso o filme é perfeitamente fiel aos fatos históricos. Entre os teatros da época, o
"Globe Theatre" (hoje reconstruído e restaurado) ficou o mais famoso. Para sua platéia
afluíam todas as noites pessoas simples, comuns, que pouco pagavam de entrada para
entrar nas arquibancadas ou ficar em pé, no espaço especial dedicado a esse tipo de
público. Eram centenas no mês, e no ano, milhares.
O teatro era na época a única instituição democrática em uma sociedade altamente
hierarquizada e elitista. Mas justamente por seu apelo popular, os teatros representavam
um excelente negócio mas também, uma certa ameaça para a monarquia e a própria "City"
de Londres. Para elas as peças (comédias, tragédias, dramas) que refletiam a vida na corte
e entre o povo da Inglaterra eram motivo de inquietação. Houve um período já no final do
reinado de Elisabeth I e no início da ascensão ao trono de James I (p.132), em que a coroa
tentou interferir (censurar e até fechar) os teatros. Mas como a própria coroa se beneficiava
com direitos autorais e o número de encenações, chegou-se a um consenso: as companhias
de teatro foram expelidas do centro da cidade , a "City", e deslocadas para a outra margem
do Tâmisa, mais especificamente para a região de Southwak, já considerada fora das muralhas
da "City", onde boa parte das companhias e teatros ainda atua hoje. Como escreve
Weinmann (1978), um dos estudiosos do teatro elisabetheano: "os teatros eram empresas
comerciais, construídos somente depois de projetados os lucros, cuidadosamente calculados.
A partir da história do teatro torna-se perfeitamente claro que foi o negócio e não o espírito
comunitário que motivou tais associações teatrais. Essas eram em larga escala dependentes
de amplas audiências plebéias - pessoas ligadas às velhas tradições de mímica e festivais,
por isso mesmo, ainda distantes do ethos puritano novo, que viria se implementar."(citado
por Hall, 1998, p.170)
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É no contexto dessa mentalidade que os construtores do Globe-Theatre formaram um
sindicato que dividia os lucros do negócio, como contratualmente fixado em 1599 entre
Nicholas Brend (o dono do bank side) e o sindicato dos atores ao qual pertencia Shakespeare
como "playwright" e ator, que já na época era considerado uma espécie de "fenômeno
singular, único" (ibid.p.153). Enquanto em Florença a cultura inovadora (quase
revolucionária) da cidade se baseava na formação de guildas de artistas inovadores, que
em seu funcionamento ainda seguiam alguns dos paradigmas do feudalismo, em Londres
a cultura se calcou nas empresas teatrais, conseguindo realizar uma cooperação até então
não usual entre empresários, escritores, artistas e público. Segundo Peter Hall, ambas as
cidades forneceram o fundamento para uma cultura do capitalismo, mas não por meio
de inovações tecnológicas como imaginaria Marx, mas sim através de sua habilidade de
conquistar mercados novos e desenvolver formas novas da organização capitalista.
VIENA (capital da música)
Viena, a cidade do princípio do prazer, foi uma das cidades européias em que o período
dourado durou por mais tempo (1780-1920). Segundo Hall, ocorreram nessa cidade do
Império austro-húngaro dois momentos dourados: o período entre 1780 e 1830, associado
aos nomes de Mozart, Hyden, Beethoven e Schubert, por um lado; e o período entre
1890 a 1910, por outro, descrito com saudosismo por Stefan Zweig em seu livro "O
Mundo de Ontem" (1943), em que tiveram destaque os nomes de Mahler, Schoenberg,
Freud, Schnitzler, von Hoffmansthal, Wittgenstein, Klimt e Kokoschka, entre outros.
Nos dois períodos Viena constituiu o húmus que alimentou a rica produção cultural que
devemos a todos eles, pelo fato de as estruturas da sociedade austríaca terem permanecido
constantes, inalteradas entre 1780 e 1910, quando caía a monarquia austríaca. Nesse
sentido, poderíamos dizer que Viena constituiu o meio cultural adequado para produzir
ou atrair grandes gênios da música, filosofia, literatura e artes plásticas.
Cabe aqui lembrar uma interpretação crítica, feita por Schorske, em seu belo "Fin-de-sciècle
Viena: politics and culture" (London, 1980), segundo a qual, os vienenses deslocaram para as
artes as pulsões e tensões políticas e inquietações econômicas que agitavam a sua sociedade
e que incidiam sobre essa, a partir dos movimentos políticos e mudanças econômicas que
aconteciam no resto da Europa. Segundo Schorske, para não terem de mudar suas estruturas
societárias os austríacos, em particular os vienenses, preferiram refugiar-se na torre de marfim
da cultura, sublimando - em todas as suas vertentes artísticas - os conflitos que a longo prazo
irromperiam na Primeira e Segunda Guerras Mundiais do século 20.
No primeiro período áureo de Viena a cultura da cidade repercute através da música, em
especial a música de Amadeus Mozart, Beethoven, Hyden, Schubert, entre outros. No
segundo período, é preciso lembrar a introdução da música dodecafônica de Berg e
Schoenberg, que tanto entusiasmou o filósofo Theodor W. Adorno, dedicando-lhe vários
capítulos de sua teoria estética.
Em 1780 , Johann Pezzl, um visitante alemão em Viena constata uma clara preferência dos
vienenses pela música em detrimento das ciências e da filosofia. "Aqui em Viena as artes
são bem mais prestigiadas que as ciências. Um pintor, um escultor, um gravador, um
músico, etc. tem automaticamente um bom cachet na sociedade, onde ele é respeitado e
bem recebido ... Um mero scholar (sábio), autor, homem das letras, é apenas aceito com
reservas, e seu título é raramente mencionado..." (citado por Hall na p. 162)
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Viena foi a cidade da explosão de talentos musicais. Mozart, nascido em Salzburg, tocou
como menino de 7 anos em Paris, diante de Marie Antonieta e estabeleceu-se depois de
deixar Salzburg, na corte de Franz Joseph em Viena, mas com dificuldades. Grande
compositor de óperas, missas, réquiems, ele ficou na história da música como o provocador:
ousou compor óperas com librettos em alemão como a "Flauta mágica" e o "Rapto do
Serralho". Seu lado brincalhão e inventivo mas também pessimista e sofrido ficou eternizado
no filme de Forman, "Amadeus" (O querido dos Deuses), que destaca a existência de
correntes retrógradas entre os músicos da corte de Viena, parcialmente representadas pelo
Chefe da Orquestra do Imperador, o invejoso Salieri.
Já no segundo momento (1890-1910) os irmãos Strauss introduziram a valsa nos salões
da aristocracia, anteriormente somente tocada e dançada em festas populares e considerada
vulgar. Em pouco tempo, a valsa conquistaria todas as cortes na Europa, consagrando,
dessa forma, a ascensão da música popular da época. Johann Strauss II (1825-1899) com
sua opereta "O morcego" de 1874 e Franz Léhar (1870-1948) com sua "Viúva alegre"
(1905) procuram estender a temporada e o auge dourado da música até os inícios do
século 20, "globalizando" sons e ritmos vienenses.
Nesse segundo período, em que uma explosão das artes se faz sentir, Viena, a capital do
grande império austro-húngaro, passa a ser a cidade do consumo dos bens culturais
anteriormente criados e a cidade da cultura consagrada ("Kulturstadt"). Paradigmático para
o segundo período é a música inovadora de Berg e Schoenberg, rompendo os velhos
padrões e introduzindo a música dodecafônica. Mas fora essa inovação, a cultura em
Viena sofre estagnação e retrocesso.
Schorske exemplifica essa tendência, analisando a produção do artista plástico Klimt, famoso
por seu mural dedicado a Beethoven e quadros como "O beijo ", entre outros. Klimt é
contratado para pintar os tetos da nova Universidade, construída no "Ring", confiando-se-lhe
a representação mural da filosofia, medicina e jurisprudência. O pintor tenta inovar,
abandonando o estilo clássico que consagrara os artistas das épocas anteriores. O Conselho
Universitário discorda de suas projeções, fortemente influenciadas pelo pensamento de
Schopenhauer e Nietzsche, cobrando-lhe uma exaltação da razão. Também os representantes
da medicina estão descontentes com o seu projeto que não coloca no centro das atenções a
ciência e a cura mas as limitações humanas na luta pela vida. Finalmente, no caso da
jurisprudência, Klimt não dá destaque à justiça e positividade da lei mas sim ao emaranhado
e à falsidade das leis, representando-as como cobras agressivas, das quais o ser humano é a
vítima. Arma-se um conflito que resulta na intromissão dos políticos na arte e da politização
da arte pelos artistas, criticando a classe política e a organização da sociedade. Nesse conflito
não há vencedores nem perdedores. As estruturas políticas e burocráticas permanecem como
estão e a arte retrai-se para o seu campo e deixa de renovar-se. Klimt, resigna-se, na interpretação
de Schorske, à arte não política, algo que já se refletira em seu friso dedicado a Beethoven.
Neste Klimt tende a exaltar a poesia e o amor. Em "O beijo", estaria levando essa resignação
à perfeição. (cf. Schorske, capítulo 5 sobre Klimt, pp. 208-28).
O duplo período de auge no campo da cultura vivido por Viena deveu-se aos gênios de
Mozart e Schoenberg, que - como vimos - revolucionaram a música. Vimos também que
no caso da sociedade austríaca entre 1780 e 1910 a arte teve a função de brecar o
desenvolvimento político e econômico, agindo como "Ersatz"(substituto) para as reformas
estruturais que a sociedade exigia. Contudo, a profissionalização e capitalização da música
graças ao seu consumo intenso em Viena e pelo mundo afora, forneceu uma base
econômica importante para a sustentação desse modelo societário conservador.
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PARIS (revolução na pintura)
Se os anos de ouro de Viena se deveram à perfeição atingida no campo da música, na
"Belle époque" que marca "l'Age d'or" de Paris (1870-1910), esse campo foi a pintura.
Nesse período viveram na cidade das Luzes grandes artistas como Monet, Cézanne,
Gauguin, Van Gogh, Matisse, Braque, Vlaminck, entre muitos outros que procuravam
expor as suas obras no Salão da Academia. Devido ao seu esforço inovador, esses pintores,
apelidados de "les Refusés" (os recusados) tiveram dificuldades de apresentar suas obras ao
público nesse salão, considerado tradicional. Mas obtendo a simpatia do Imperador
Napoleão III, este lhes concedeu o direito de expor sua arte no Salon des Réfusés, para
onde, desde 1866 houve grande afluência do público, querendo admirar a obra de
Monet, Cézanne, Dégas, Sisley, Renoir, para mencionar somente alguns nomes. E assim
como na idade de ouro da Viena do século dezenove Mozart se destaca entre os grandes
músicos de sua época, será Picasso o pintor que chama a maior atenção sobre si com a
introdução do "cubismo" como nova forma de ver e retratar o mundo, substituindo o
olhar dos impressionistas, fauvistes e expressionistas com sua arte influenciada por Goya
e outros grandes talentos da pintura espanhola. É preciso lembrar que Picasso é natural
de Barcelona/Espanha mas que ainda muito jovem estabeleceu-se em Paris: primeiro em
Montmartre, no bairro dos artistas da época e posteriormente em Montparnasse. Segundo
Peter Hall, Picasso buscava alcançar uma forma nova de expressão através da invenção
e da criatividade. Deste modo, ele influenciou seus colegas franceses a segui-lo, criando
um campo novo na arte, que atrairia sobre si a atenção do mundo inteiro. Outros artistas,
como escultores, gravadores, escritores e músicos seguiram o exemplo e a atuação dos
pintores, confluindo para Paris e criando uma Sociedade Anônima para protegê-los e
sustentá-los. Nem todos foram tão infelizes quanto Van Gogh que em vida não conseguiu
vender um quadro sequer. Entretanto, foram aparecendo e se especializando os
vendedores (dealers), críticos e o público, que transformaram esse ramo da arte e da
cultura em grande negócio. Formaram-se os salões, as galerias, as exposições periódicas
que visavam vender a obra de pintores individuais, avaliando-lhes sua arte em termos de
lucro e de chances mercadológicas.
Walter Benjamin caracterizaria essa tendência como a "perda de aura" da obra de arte, que
deixa de ser feita para o deleite próprio e a sublimação e passa a ser produzida como
mercadoria, destinada à troca e à venda. (cf. A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, em Benjamin: Obras escolhidas I, S.Paulo: Brasiliense.)
Enquanto em Florença a idade dourada de sua cultura se deveu à globalização da arte por
sua circulação, compreendendo-se aqui também a mobilidade dos artistas e mestres, em
Londres foi a organização racional do lucro do teatro, que contibuiu para sua hegemonia
durante décadas no campo cultural. Na Paris do "fin-de-sciècle" (do 19 ao 20) a revolução
artística da época se deu com a introdução de novas tecnologias. Cabe aqui lembrar a
criatividade de um Toulouse Lautrec, que passou das aquarelas e pinturas ao desenho de
cartazes que ele próprio concebia como gravuras a serem reproduzidas em grande quantidade
a serem distribuídas pela cidade. Foram os cartazes comerciais tão característicos de Lautrec
e de sua época, anunciando eventos culturais de boates, cabarés, teatros e concertos, que
marcaram o rosto da Paris "Belle époque", tão familiar a nós.
A verdadeira revolução tecnológica, contudo, veio com a introdução da fotografia que
deslanchou na primeira metade do século vinte e relegou aqueles pintores retratistas que
haviam cultivado o academicismo nas artes ao ostracismo. Talvez essa revolução tecnológica
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explique como a pintura, que conferiu charme e beleza à capital Paris, passou, posteriormente,
por uma fase de declínio e até mesmo de pobreza apesar de sua guinada para a
comercialização e busca de mercados de arte. Walter Benjamin esclareceu no artigo já
citado que a revolução tecnológica não se limitou à fotografia, mas também pôs em
cheque o teatro com o desenvolvimento do cinema que começava a emergir. Novos
materiais de construção, como o ferro e o vidro, até então pouco usados, buscavam novas
formas de expressão e moldagem que fossem além das conhecidas colunas gregas e
cúpulas romanas.
Se na literatura talvez outras cidades pudessem competir com Paris enquanto a capitial da
cultura e das artes, havia pelo menos duas razões segundo Hall pelas quais Paris era a
prima inter pares: Paris era a líder no campo das artes experimentais, da crítica e das artes
visuais, destacando-se aqui a pintura. (cf. P.Hall, 1998, p.223). Já nessa época Paris constituía
o que ele e Castells chamariam posteriormente uma "highly network society". Por isso
mesmo, nosso autor retorna, como nos casos anteriores, à pergunta: por que Paris e não
Londres, Amsterdã ou Madri ou outras grandes cidades que também tinham suas grandes
galerias, suas associações de artistas e a concentração de compradores ricos ? Qual a
especificidade de Paris como lugar ? O que nela era diferente?
Em sua resposta tenta destacar o envolvimento há muitos séculos de Paris com as artes,
envolvimento esse que nem a Revolução Francesa conseguiu diminuir. Mas o fato relevante
que explicaria a singularidade de Paris como capital cultural do século 19 se deveu ao
apoio estatal dado à arte e aos artistas. Esses tornaram-se verdadeiros servos do Estado.
No momento em que eles conquistavam a aceitação e o suporte do Estado eles adquiriram
prestígio e segurança material. (cf. p.236). Foi graças a esse apoio que conseguiram
desenvolver uma indústria da arte a partir de dentro e transformá-la radicalmente. Esse
espírito criativo foi destruído no contexto da Primeira Guerra Mundial.
BERLIM (arte e tecnologia da modernidade)
As cidades que depois dessa guerra apontam como centros da cultura de avant-garde
serão (a partir de 1920) Moscou e Berlim. Especialmente Berlim transformou-se no ímã
dos grandes talentos da época. Ir a Berlim era a aspiração de qualquer compositor, jornalista,
ator, levando-se em conta suas grandes orquestras, 120 periódicos, 40 teatros. Os visitantes
se encantavam com as reações entusiasmadas do público, com as respostas imediatas e
divertidas de qualquer vendedora de peixes do mercado, seus cabarés, seus cafés...
Berlim tinha se transformado desde os "Gründerjahre", os anos de fundação, em uma
cidade moderna, dinâmica, populosa e rica. Como diria Heinrich Mann, muitos artistas,
escritores, poetas, cineastas, transformaram-se em "Wahlberliner", berlinenses por opção,
que depois da Primeira Guerra mudaram-se para esta cidade. Para lá se dirigiram também
Rilke, Kafka, Marc Chagal, Vladimir Nabokov, Bertolf Brecht, Gottfried Benn, Zuckmayer
e outros. O clima dessa cidade naqueles decênios está muito bem reproduzido no filme de
Walter Ruttmann "Berlin - Symphonie einer Grosstadt"(1927). O expressionismo teve suas
origens com o grupo do Blauer Reiter, Kokoschka, George Grosz e outros; aqui o teatro
experimental de Reinhardt, Piskator e Bert Blecht entrou em cena e os filmes de Fritz Lang
(Metropolis, 1927) tiveram sua peremière. Foi em Berlim que Schliemann depositou no
Pergamonmuseum os seus achados únicos das escavações de Troja. Apesar do dadaísmo
ter sido batizado em Zurique, ele já estava na mente de boa parte dos artistas residentes
em Berlim.
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Politicamente o clima estava sendo agitado por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. No
campo da tecnologia, a capital alemã tornou-se rapidamente uma das mais evoluídas,
com suas linhas de metrô, a eletricidade obrigatória em todas as casas, as residências
operárias ("Mietskasernen") oferecendo tetos aos operários da indústria, que florescia
desde a reunificação alemã a partir de 1870. Com seus 4 milhões de habitantes, Berlim
era a segunda maior cidade em número de habitantes do mundo. A primeira era Los
Angeles nos Estados Unidos.
Em todas as suas manifestações artísticas verificava-se uma forte politização da arte,
compreendida em sua função como alavanca das mudanças sociais e econômicas. Nestes
termos justifica-se a expressão de Peter Hall de que Berlim teria sido a inventora da
modernidade em praticamente todos os campos, acatando sem preconceitos, as
contribuições que as demais cidades e cidadãos estrangeiros que a ela afluíam, lhe
pudessem oferecer.
Segundo Hall toda essa glória e brilho tiveram um final rápido e infeliz com a quebra da
bolsa de Nova Iorque, em 1929, que trouxe desemprego em massa, inflação e pauperização
para os alemães, fatores que devem ser apontados como corresponsáveis pelo desastre
posterior que se instalou na sociedade alemã a partir de 1933, quando Adolf Hitler ascendeu
ao poder.
CONCLUSÕES DO PRIMEIRO LIVRO
No final do livro I, P.Hall procura sintetizar suas pesquisas em algumas diretrizes para o
conhecimento e a organização de nossas cidades:
1) Em nenhuma das seis cidades a idade de ouro surgiu do nada ou de repente. Em todos
os casos, ela foi fruto de longos processos de maturação, em que o investimento em arte
e o incentivo à cultura constituíram uma constante.
2) Todas as cidades atingem o auge, o florescimento de sua cultura, em um período de
transição e ruptura com as fases históricas anteriores, aventurando-se em um ou outro
campo cultural em território desconhecido.
3) Todas essas cidades, que poderíamos chamar de "criativas", caracterizaram-se por
uma atitude cosmopolita: com abertura para outras terras e gentes, sem xenofobia ou
falsos nacionalismos.
4) Finalmente, as mudanças sócio-econômicas e invenções tecnológicas, acompanhadas
de um "savoir faire", um treinamento artesanal e tecnológico, foram fundamentais para
permitir a inovação e incentivar a inventividade.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto do presente seminário justifica-se a pergunta se a relação das cidades analisadas
(como Atenas, Florença, Londres, Paris, Berlim) com a cultura pode ser transposta para as
cidades brasileiras. É claro que nenhum dos casos singulares relatados pode ser "copiado"
ou "reproduzido" no Brasil, sem enormes adaptações. Mas é preciso admitir que muitas
cidades brasileiras tentaram "imitar" reformas urbanas e até mesmo prédios clássicos de
cidades européias que lhe serviram de modelo. Basta lembrar os esforços de
"haussmanização" da arquitetura urbana no Rio de Janeiro, com Pereira Passos, e da
construção do Teatro Municipal de São Paulo, obra do prefeito Alexandre de Albuquerque,
inspirada na Ópera de Paris.
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Sem dúvida, houve tentativas de "europeização" e de "aprendizado" com as cidades
estudadas por Peter Hall. Mas é preciso lembrar pelo menos duas características específicas
das cidades brasileiras e sua relação com a cultura: sua origem colonial e sua população
que deu origem a formas extraordinárias de criatividade e hibridação da cultura. No
início, a colonização portuguesa impunha um traçado urbano e estruturas arquitetônicas
concebidas em Lisboa. Assim, Salvador foi construída seguindo um projeto aprovado por
D. João III em Portugal e implementado por Tomé de Souza, em 1549, no Brasil. Algumas
igrejas da primeira capital vieram trazidas pedra por pedra, santo por santo, de Lisboa.
Mas, com o tempo, as culturas que se encontraram em solo brasileiro, foram seguindo
outros modelos. As formas e a arquitetura dos prédios foi se inspirando em outras
estruturas e materiais. A vida cultural foi se diversificando e deixando outras marcas. Essas
levam hoje o selo da criatividade. Brasília, por exemplo, é um salto típico de cidade
palnejada e a Pampulha, em Belo Horizonte, um dos mais belos exemplos de igreja. E para
concluir, lembro o Museu da Palavra, recentemente inaugurado em São Paulo, na Estação
da Luz, que vem a ser a demonstração viva da capacidade criativa do povo brasileiro.
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Painel II
OPapeldosCentros
Culturaisparao
Desenvolvimento
dasCidades
Coordenação: José Almir Farias Filho - Professor do Curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Ceará - UFC e da Universidade de
Fortaleza - UNIFOR
CarlosAugustoMachadoCalil
Diretor do Centro Cultural São Paulo, Professor do Departamento de Cinema, Rádio
e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Eu queria dizer que essa história toda de centro cultural começou em meados dos anos 70,
e o que houve então? Um bairro, hoje um bairro absolutamente recuperado, mas naquela
época em vias de recuperação. Criou-se um projeto de arquitetura agressivo, completamente
destoante do conjunto da cidade. A cidade, como todo mundo sabe, estabilizou-se
arquitetonicamente em meados do século XIX e o projeto era agressivamente moderno e
visceralmente colorido. Pela primeira vez, as estruturas de construção eram expostas, enfim,
todo mundo sabe o que é o Centro Georges Pompidou. Esse centro então inaugurou uma
novidade, que era misturar as várias atividades culturais num único espaço. Existia teatro,
biblioteca, galeria de exposições, museu, existiam centros de pesquisa, cinema, salão de
conferências, pinacoteca. Eles transformaram a idéia. A idéia é concebida em duas vertentes.
Primeiro, trata-se da junção de tudo, ou de quase tudo, ou de partes desse todo, de
combinações, enfim ao gosto do freguês, desse cardápio que eu, mais ou menos, expliquei
aqui para vocês. Mas, sobretudo é uma intervenção urbana, e, sobretudo, um prédio de
grande impacto.
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Nós estamos falando de uma nova idéia, que é a idéia de que a arquitetura começa a
recuperar o papel predominante que ela tinha perdido, sobretudo na Europa, onde se
estabilizou. Nenhum arquiteto iria derrubar uma obra construída na Europa para fazer
experiência modernista, que só teve aplicação no Brasil ou em países como a Argélia, onde
não havia tradição arquitetônica suficiente para impedir a chegada do moderno. Paris,
com essa vocação de ‘umbigo do mundo’, trouxe a idéia de um centro cultural. É claro
que isso repercutiu em São Paulo, evidentemente, que é uma cidade habituada a imitações.
O que existia naquele momento era o projeto numa sobra de terreno do metrô que estava
se construindo. Num terreno que dava para a encosta da avenida 23 de Maio tinha sobrado
ali uma nesga de terreno que foi oferecido e que eles iam talvez lotear. A empresa municipal
de urbanização chegou à Secretaria de Cultura dizendo assim: ‘Sobrou. Vocês não querem
aproveitar para fazer alguma coisa?’ O problema que se tinha, naquela época, naquela
gestão, era o problema da duplicação da torre da biblioteca Mário de Andrade, que já
naquela época estava no seu limite. Até hoje não foi feita a torre. Pode-se imaginar o que
acontece com a biblioteca Mário de Andrade até hoje. Então aí se pensou em não duplicar
a torre e criar uma outra biblioteca nesse espaço. Chamou-se um arquiteto moderno para
fazer uma grande intervenção arquitetônica e, para revitalizar uma área, para reocupar,
enfim, para redirecionar o desenvolvimento urbano. Portanto, a primeira idéia de centro
cultural é de integração da malha urbana.
Não existe a idéia de um centro cultural afastado da cidade. Isso não faz sentido nenhum.
No caso do Centro Cultural São Paulo, ele está ligado ao metrô, portanto o acesso é muito
fácil. Não tem estacionamento, o que faz com que a burguesia não vá ao Centro Cultural,
porque não tem onde botar o seu carro. Então ele é freqüentado por um público mais
popular, tem um caráter muito democrático. Talvez seja, sem nenhum exagero, a instituição
mais democrática, em termos culturais, da cidade de São Paulo.
Os projetos de urbanização e reurbanização das cidades contemporâneas contam
necessariamente em seus planejamentos com informações provenientes dos indicadores
culturais. O problema é que nem sempre esses indicadores revertem para os próprios
projetos em termos de qualidade de vida e estímulo de práticas culturais. O que tem
impedido aos nossos urbanistas e arquitetos um tratamento orgânico das questões de
habitação com o convívio cultural? Eu arriscaria dizer a vocês que eu acho que o
problema não está nos profissionais e nos arquitetos e nem nos profissionais da cultura.
O problema está nas práticas políticas de contratação de obras, onde predominam os
interesses das empreiteiras e, portanto, onde a cultura é sempre uma coisa decorativa,
está no hall de entrada do prédio, no hall da entrada do banco ou no jardim de entrada
de não sei o quê.
Na minha opinião, e na opinião de muitos de nós, a cultura não pode estar dissociada da
qualidade de vida, que pressupõe área verde, pressupõe mínimas condições de moradia,
proximidade de equipamentos públicos, como escolas, hospitais e serviços de transporte.
Sobretudo, atividade cultural não pode ser instrumentalizada em projetos políticos para se
tornar a compensação pela inexistência das condições mínimas da vida urbana decente.
Eu entendo que o atual sistema cultural brasileiro está pervertido e a responsabilidade por
tudo isso é do poder público. Não há mecenato privado ou alguém aqui acredita quando
vê o emblema da lei de incentivo fiscal, que aquele dinheiro saiu dos cofres de uma
empresa privada? Não sai nunca. Todo investimento financeiro, via lei de incentivo fiscal,
é feito com recursos públicos diretos ou indiretos. Os indiretos por meio da renúncia fiscal
e os diretos por meio de orçamentos. Mas os orçamentos são mais minguados. Vocês
Carlos Augusto Machado Calil
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devem ter lido com tristeza, como eu, a notícia da semana passada em que o Ministério
da Cultura teve cinqüenta por cento, ou mais de cinqüenta por cento do seu orçamento
cortado. Mas não foi tolhida a expansão dos incentivos fiscais, porque não entram no
caixa do tesouro, e se não entram no caixa do tesouro não são contingenciáveis, e,
sobretudo, não são utilizados para o estoque de déficit primário. Portanto, toda operação
da política macro-econômica brasileira, que é de criar superávit para exportar divisas, não
entra no incentivo fiscal, mas segura o orçamento. O Ministério sa Cultura criou todas as
expectativas para sua expansão mas o seu orçamento será cortado. Isso acontece com
todos nós. Só é preciso entender a perversão, porque ela legitima aquilo que é feito pelo
privado enquanto que aquilo que é feito pelo poder público é considerado dirigismo
cultural. Não pode. Isto tem, evidentemente, uma malícia advinda do período da ditadura
militar, onde então havia um sistema cultural brasileiro bastante bem desenvolvido. Cá
entre nós, muito melhor do que hoje e que era tido como intervencionista e dirigista, mas
não era coisa alguma. Simplesmente, ele se contrapõe à idéia muito brasileira de fazer
abano com o chapéu dos outros. Então, as empresas privadas fazem, no fundo, abano
com o chapéu nosso. Meu, seu, nosso! Porque é o dinheiro público que elas utilizam,
segundo a lógica privada, com a privatização da gestão cultural. Não há nenhum controle
do governo e nenhum controle das sociedades, seja por instrumentos do terceiro setor,
seja pela imprensa, universidades ou ministério público dessa utilização dos recursos, via
incentivo fiscal. É realmente uma farra do boi.
Outra característica que me parece muito grave e que eu vou mencionar aqui para vocês
é a proliferação incessante de instituições tanto privadas quanto governamentais. Há uma
hipertrofia da cultura e dos espaços culturais nessa idéia, provavelmente, de valorização
dos edifícios, de valorização de uma certa cultura de classe. Vocês sabem que existe uma
cultura de coquetel feita para uma certa classe social. Em São Paulo, sobretudo, que é o
lugar onde eu vivo, você é convidado. Há coquetéis que são mais caros, ou tão caros,
quanto o próprio evento cultural, que a própria exposição. Sei de casos, inclusive bastante
constrangedores, em que as pessoas ficaram constrangidas a saírem daquele coquetel
porque ele era ostensivamente para novos ricos. Então, há uma idéia do uso desses recursos,
que utilizam a cultura como uma instância de visibilidade, de espetacularização e de
promoção social. Enfim, dissociada daquilo que a gente considera fundamental que é a
qualidade de vida, os crescimentos individual e social e a inclusão.
Então, o governo, em vez de resolver os problemas dos museus, cria mais museus. Ocupa
prédios antigos, por exemplo, sem cuidar-lhes e dar-lhes o sustento necessário quando
inaugurados ou dos já existentes. É inconcebível que o ato político considerado importante
seja somente o da criação. Depois de criado, ele é ‘solto às feras’, passando a ser um
problema da próxima gestão. E nós sabemos que a próxima gestão não fará nada ali
porque não tem mais onde colocar placa de inauguração, pois o novo gestor irá inaugurar
outra coisa, em outro lugar. E aquilo ficará abandonado. No campo privado, também, já
que no que se refere aos incentivos fiscais, não há nenhum tipo de inibição para a criação
de projetos e de espaços culturais próprios. A coisa mais espantosa no Brasil são os bancos
criando espaços culturais. Eu reivindico para os centros culturais e museus, a partir desse
seminário, a redação de uma ‘carta patente’ que proponha garantias para o financiamento
das nossas atividades. Nós, que não temos orçamento, porque o orçamento tem que
fazer superávit fiscal. Se não podemos captar recursos de incentivos fiscais, porque não
podemos nos candidatar diretamente? Tem que ser via associação de amigos, enfim,
quase um caixa dois, quase uma ação clandestina. Se nós não podemos viver, porque não
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A criação dessas instituições culturais pelas próprias corporações leva à crescente
autarquização das iniciativas privadas. Elas hoje independem de qualquer sistema. Elas
funcionam por si próprias. Mas eu pergunto simplesmente o seguinte: o que ocorreria se
por um simples golpe um governo extinguisse o incentivo fiscal de um dia para o outro,
o que ia acontecer? Acabariam? Todos os institutos culturais acabariam? Ficariam só os
esqueletos, como ruínas do futuro?
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ter uma carta patente para explorar banco? Já que o banco pode fazer cultura, o Centro
Cultural pode também fazer operação bancária e quem sabe seja essa a maneira de financiar
a cultura das instituições brasileiras.
HeniltonMenezes
Gerente do Ambiente de Gestão da Cultura do Banco do Nordeste do Brasil
Nós vamos passar aqui, rapidamente, algumas informações sobre o funcionamento da
cultura dentro do Banco do Nordeste. É uma rápida trajetória do Centro Cultural do Banco
do Nordeste aqui em Fortaleza. Essa trajetória está servindo de base para a instalação de
mais alguns equipamentos culturais em cidades do Nordeste.
Muita gente pergunta: por que um centro cultural para o Banco do Nordeste? Na verdade,
por que o Banco do Nordeste mantém um centro cultural? Nós somos a instituição do
Governo Federal responsável pelo desenvolvimento da região Nordeste e atuamos em
vários segmentos da economia e não poderíamos deixar de atuar na economia da cultura.
O Banco, historicamente, desde 1952, quando foi criado, vem investindo na cultura de
forma assistemática. Somente depois da criação do centro cultural é que o banco passou
a investir seus recursos de forma mais coerente, mais sistemática, mais democrática e
mais transparente. Principalmente, a partir desse último governo, o Centro Cultural Banco
do Nordeste teve um impulso maior, quando recebeu a missão de dirigir a política de
cultura do Banco do Nordeste. E daí nasceu a idéia de instalar outros centros culturais,
em outros municípios da região em que nós atuamos, que são nove estados do Nordeste,
mais o norte do Espírito Santo e o norte de Minas Gerais.
Mas a gente pode resgatar um pouquinho do que diz o Governo Federal, que considera
cultura como estratégia para o desenvolvimento do nosso país e, naturalmente, sendo a
cultura uma estratégia para o desenvolvimento do Brasil, terá que ser também, uma
estratégia para o desenvolvimento da região Nordeste. A cultura também é considerada
pelo Governo Federal como um direito básico da comunidade. Então, mais um motivo
para que o Banco do Nordeste encare a cultura como um direito básico da comunidade
nordestina. E, a partir de 2003, quando construímos o nosso plano estratégico de 2004 e
2005, a cultura passou a fazer parte de forma explícita do plano de trabalho do Banco e
hoje ela é praticamente transversal em todas as áreas que nós atuamos. Até o ano de
2003, a gente era considerado na área cultural, meio marginal dentro do Banco do
Nordeste. Até os nossos gerentes não entendiam porque que o Banco mantinha um
centro cultural funcionando dentro da cidade de Fortaleza. Mas hoje, com essa nova visão
da cultura dentro do Banco, isso realmente mudou a imagem que nós tínhamos dentro da
empresa. E, por conta disso, criou uma superintendência de comunicação e cultura, quer
dizer, pela primeira vez, a cultura dentro do Banco do Nordeste chega ao nível de
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Superintendência. Até 2003, nós éramos apenas um apêndice de uma grande área que
concorria com todo o Banco. Hoje, nós estamos situados ao lado da presidência e essa
superintendência se divide em dois grandes conjuntos, dois grandes blocos de trabalho,
que é a comunicação interna, externa e a cultura em todas as suas vertentes. Essas duas
áreas atuam especificamente na área de imprensa, na publicidade, na área de patrocínios,
que agora está absolutamente reformada, nossa área de patrocínios culturais e os centros
culturais que já estão instalados em Fortaleza e que vão ser instalados em mais onze
cidades do Nordeste brasileiro. A diferença é que essas áreas, hoje, conversam entre si. Há
uma perfeita sintonia entre o centro cultural, a área de patrocínio, a área de imprensa e a
área de publicidade do Banco. Isso gera um trabalho muito mais consistente e com
resultados muito mais visíveis.
Para quem conhece o centro cultural aqui em Fortaleza, tem muita gente daqui, mas tem
algumas pessoas de fora. Estamos instalados desde 1998 no Centro da cidade de Fortaleza,
num prédio relativamente privilegiado, em relação aos outros prédios do centro de Fortaleza.
Um prédio que tem um destaque e ocupamos uma área de quatro mil e quinhentos
metros quadrados e temos uma equipe de cinqüenta e sete colaboradores, entre gerentes,
coordenadores de programas, limpeza, vigilância, monitoria, uma equipe de bibliotecários,
uma equipe bastante grande, para um equipamento como o nosso, que é pequeno.
Temos um salão principal, onde a gente monta praticamente todas as nossas exposições.
Ele tem uma vantagem de ter uma área muito grande disponível, tanto de altura, como de
largura. Esse espaço nos permite, também, uma mobilidade muito grande em termos de
instalações para novas exposições. No primeiro andar, a gente tem uma área que nós
dedicamos ao artesanato nordestino. No segundo andar, nós temos mais um salão de
exposição, onde mantemos um painel do Caribé, o maior painel pintado pelo artista
argentino-baiano e que hoje serve de base para receber as escolas que por lá passam.
Nesse painel, constam todas as manifestações culturais da região Nordeste e serve de
roteiro de aprendizagem nas escolas que nos visitam.
Temos um pequeno teatro, que é bastante funcional. Lá acontecem nossos shows, peças
e debates. É um teatro bastante confortável. Nós privilegiamos o conforto do público. É
um teatro pequeno, mas que tem sido muito bem utilizado dentro do Centro Cultural.
Temos uma biblioteca, bastante rica, onde nós dispomos, praticamente, de quase todo
o acervo dos grandes autores da literatura nordestina, que lá estão disponíveis para o
nosso público. Nós temos várias salas de vídeo, salas de DVD. Temos uma biblioteca
infantil com mobiliário adequado para esse público infantil e temos uma biblioteca
virtual com duas estações e acesso grátis à Internet. Temos, também, um auditório,
onde realizamos os nossos cursos, nossas palestras. É um espaço também que costumamos
ceder para outras entidades para discutir temas de cultura. Também utilizamos as áreas
externas do centro cultural. Nós estamos situados em frente a uma praça que também é
mantida pelo Banco do Nordeste. Possuímos também um ônibus que realiza um programa
chamado ‘Percursos Urbanos’ em parceria com a ONG Mediação de Saberes, que leva e
traz público para o centro cultural. É uma forma de utilizar espaços que não dispomos
dentro do centro cultural.
Nossa programação é diversa e bastante intensa. Todos os dias acontece alguma coisa no
centro cultural. Algumas pessoas vêm ao centro cultural sem saberem o que está programado
para aquele dia. São vários programas que são pensados de uma forma bastante específica
para cada área. Eles são avaliados e eventualmente redirecionados ou até mesmo tirados
de circulação, substituídos por outros, se assim julgarmos que não estão trazendo os seus
resultados. Vocês vêem aí que tem ato compacto, imagem e movimento, programa de
audiovisuais, curso de apreciação de arte, que é um curso que a gente dá para oferecer
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Desde 1998 a gente tem acompanhado a visitação do nosso público. Começamos
de forma tímida. No primeiro ano um público de 44 mil pessoas. E fomos, assim,
nessa média até 2002, em torno de 100 mil pessoas que circulavam pelo centro
cultural. Vale ressaltar que o acesso sempre foi gratuito. Em 2003, a gente começou
um trabalho de formação de platéia com escolas, entidades de classe e instituições
sociais e passamos a levar um público maior para o centro cultural, chegando em
2004 a um público de 407 mil pessoas. Em 2003/2004, reestruturamos nossa biblioteca
que hoje é uma ‘âncora’, do centro cultural. Grande parte do público que nos procura,
o faz por conta da nossa biblioteca. Hoje temos um público diário de 1500 visitantes.
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elementos para o nosso público, para que possam consumir os produtos culturais que
estão disponíveis nas prateleiras tanto no Centro Cultural Banco do Nordeste como em
outros equipamentos. O ‘Poesia em Revista’ é um exemplo de um programa voltado para a
poesia nordestina, especialmente a cearense. É um espaço democrático para todos os poetas.
O investimento do Banco, nesse Centro Cultural, até 2002 era muito tímido. Na verdade,
nós tínhamos apenas o investimento que era dirigido e direcionado para patrocínios
culturais. Em 2003, nós tivemos um começo de ampliação dessa verba que era destinada
aos nossos eventos. Em 2004, já um valor de R$ 770 mil. Esse valor, ressaltando que é
um valor de pagamento de cachês, não é o valor destinado ao Centro Cultural como
um todo. Em 2004, nós investimos no Centro Cultural com todas as suas despesas R$
1,7 milhão. Nosso orçamento para 2005 para o Centro Cultural Banco do Nordeste em
Fortaleza, para a realização de eventos é de R$ 840 mil e o investimento total previsto
é de R$ 2 milhões. Ressaltando que isso não é um investimento de lei de incentivo à
cultura. Isso é investimento do caixa do Banco do Nordeste. O Banco não usa praticamente
nenhum incentivo de lei, das leis federais, até porque é uma instituição que tem o seu
lucro muito pequeno em relação a outros bancos, já que nós somos um banco de
desenvolvimento. Então, o nosso potencial de investimento nas leis de incentivo é
muito pequeno. Esse valor vem do caixa do banco, de recursos próprios.
O investimento ano vai se ampliar este ano em R$ 3 milhões porque estamos instalando em
Juazeiro do Norte, em Sousa, em Teresina, três novos equipamentos culturais, além do
Programa BNB de Cultura, que foi um edital que nós lançamos recentemente. Lançamos
um edital de R$ 1 milhão para patrocínios de projetos culturais em todo o Nordeste. E
vamos lançar, até o próximo semestre, ou, há uma possibilidade, ainda, de aumentar, nesse
mesmo edital, a verba para R$ 2 milhões. De qualquer forma, se a gente não aumentar
nesse edital que está em vigor, a gente vai lançar um novo edital no segundo semestre.
O Programa BNB de Cultura, que hoje faz parte de uma das atividades do Centro Cultural,
é uma briga de muitos anos dentro do Banco do Nordeste porque o Banco investiu, mais
ou menos, esses recursos em patrocínios culturais. O que a gente está fazendo, agora, é
distribuindo esse dinheiro de forma mais democrática, mais transparente e, com certeza,
isso vai resultar em benefícios para a comunidade nordestina.
Nesse primeiro edital, as áreas contempladas pelo programa foram: música, artes visuais,
artes cênicas e literatura. Muita gente pergunta por que nós só contemplamos essas
atividades. Na verdade, esse foi o nosso primeiro edital, e essas quatro áreas da cultura
foram as áreas mais demandadas nos últimos três anos no Banco do Nordeste. Como
primeiro resultado desse programa, um resultado inusitado para nós, é que recebemos
1832 projetos. Nós tínhamos uma estrutura para receber algo em torno de 600 projetos.
Até porque a demanda de projetos do último ano foi de 300 projetos/ano. E se imaginava
que com a divulgação a gente pudesse dobrar esse número. Mas, para nossa surpresa,
nós recebemos 1832 propostas. Na verdade, recebemos mais de 2000 propostas. Essas
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1832 são propostas que foram escritas. Mais ou menos 180/190 propostas foram eliminadas
por falta de documentação ou por atraso de entrega, ou por algum problema técnico do
projeto. Música ficou com 39% de demanda; artes cênicas 26%; literatura 22% e artes
visuais 11%, que é mais ou menos o mesmo perfil da demanda que nós tínhamos,
espontaneamente, no Centro Cultural. Dividindo por Estados, dos 11 estados que nós
atuamos, você tem como destaque o Ceará com 586 projetos e o Estado de Pernambuco
com 318 projetos apresentados, que, por sinal, grande parte, talvez 60 ou 70% desses
projetos de Pernambuco são da cidade de Olinda, que é mais uma surpresa nossa nesse
processo. Na divisão percentual, o Ceará apresentou 32% dos projetos, seguido de
Pernambuco com 17% . E uma coisa importante que a gente diagnosticou, nesse primeiro
resultado, é que nós recebemos projetos de 273 cidades diferentes. Todas elas da região
Nordeste. Nós temos aí 1850 municípios que nós atendemos e pelo menos 273 municípios
mandaram os seus projetos. Isso pra gente é muito gratificante porque atingimos o pequeno
produtor cultural que está lá no interior e que muitas vezes não tem como ter acesso a
esses recursos das instituições federais.
A nossa expansão vai acontecer em dois momentos. No primeiro momento, vamos instalar
em Juazeiro do Norte um equipamento que já está em processo de reforma, em Sousa;
no interior da Paraíba; em Petrolina em Pernambuco e em Teresina, no Piauí. No segundo
momento, a gente já está analisando a instalação de centros culturais nas cidades de
Aracaju, Natal, Vitória da Conquista ou Barreiras. Com essa demanda que nós tivemos de
Olinda, também Olinda passou a ser uma cidade que potencialmente pode receber um
equipamento cultural do Banco do Nordeste. No Cariri, para que vocês tenham uma
idéia, nosso prédio no centro da cidade de Juazeiro do Norte, fica em frente a uma praça,
a praça Padre Cícero. E nós estamos ocupando cinco andares desse prédio que estava
vazio já há alguns anos.
O primeiro grande papel de um centro cultural para o Banco do Nordeste é ser um centro
de formação de platéias, mantendo-se uma política de gratuidade do acesso aos nossos
produtos e serviços culturais. Tivemos uma certa resistência, no início, da direção do
Banco, sempre naquela máxima de que o que é de graça, as pessoas não dão valor. Nós
provamos o contrário, as pessoas valorizam e preservam nossos programas. Para vocês
terem uma idéia, a gente produz algo em torno de 200 espetáculos por ano, algo em
torno de 300 peças de teatro são disponibilizadas para a comunidade. Isso demanda
recursos volumosos e gera um público muito intenso em torno desses eventos. Ao mesmo
tempo, produz um amadurecimento profissional da classe artística, à medida que a gente
tem todo um processo de organização, de seleção e de funcionamento da nossa atividade
cultural. A gente tem visto que os nossos artistas cada vez se organizam mais, para seguir
aquelas diretrizes que a gente tem colocado como prerrogativas para a realização de
eventos do Centro Cultural.
A gente tem feito também um trabalho de identificação e apoio de iniciativas exitosas
feitas pelas comunidades, trazendo-as para o centro cultural. Estamos iniciando uma
parceria com o pessoal do Teatro de Arena da Comédia Cearense, trazendo para o centro
cultural atividades que já são exitosas e que merecem o apoio do Banco do Nordeste. O
centro cultural também realiza Inclusão digital, já que nele temos acesso à Internet, e
nesse acesso à Internet a gente tem um cuidado de oferecer cursos para as pessoas que
não têm nenhuma informação sobre a Internet, quer dizer, a gente não só disponibiliza os
terminais, como a gente oferece treinamento para que as pessoas, minimamente, possam
ter acesso a essa ferramenta. O ancoramento de outras atividades produtivas em torno do
equipamento cultural que está instalado estimula o turismo, obviamente. Quem não
gosta de ir a um centro cultural quando está na sua viagem de turismo? Preservamos a
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memória de tudo o que acontece dentro do centro cultural; fazemos o registro de todos os
eventos que nele acontecem. Hoje, a gente tem aproximadamente 1200 horas de gravação
de espetáculos que estão guardados e arquivados e já estão sendo utilizados pelos próprios
artistas em discos que são produzidos na região. Nós temos uma disponibilização de
todos os textos que são produzidos nos programas do Centro Cultural, que são escritos
por especialistas na área. A gente contrata esses especialistas para fazer comentários sobre
filmes, peças, vídeos, shows e esses textos estão sendo agora disponibilizados na Internet,
como memória do centro cultural. Nós temos a produção de discos de divulgação. São
discos que fazemos com o resultado dos espetáculos musicais nele apresentados. São
discos que servem de cartão de visita para aqueles artistas que não dispõem de outro
instrumento para mostrar o seu trabalho. E, finalmente, a gente tem também a produção
de DVDs para a exibição e distribuição com o público. Nossos eventos, debates, entrevistas
são gravados em DVDs e disponibilizados nas bibliotecas, nas escolas, nas instituições
públicas, nas televisões não-comerciais.
JoãoPedroGarcia
Diretor do Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris
Vou tentar ser o mais claro possível. Em primeiro lugar eu não vou falar sobre questões
políticas e sociológicas dos centros culturais das cidades. Sendo responsável por uma parte
do Centro Cultural Português, eu acho que o meu primeiro dever é explicar o que faço. É um
centro cultural um pouco sui generis, que é totalmente privado. Tem sede em Lisboa e
extensão em Paris e Londres. Um trabalho por todo o mundo também.
Vou tentar explicar um pouco o que a Fundação faz em Lisboa. Porque a Fundação de fato
é uma instituição muito importante em Portugal. A maior parte da minha exposição vai
centrar-se em minha experiência pessoal. Trabalho na Fundação e desde que eu nasci
beneficiei-me dos seus serviços. Por isso, acho que posso dar um testemunho interessante
do que a Fundação, que é um grande centro cultural em Lisboa, fez por mim.
Eu gostaria, também, de agradecer esta oportunidade de vir a Fortaleza. É a primeira vez que
venho a Fortaleza e não será a última. Agradeço especialmente à Secretária da Cultura do
Estado do Ceará, minha amiga Cláudia Leitão. Já estivemos juntos em Lisboa e em Paris, e
cada vez que nos encontramos da sua cabeça surge um turbilhão de projetos e idéias. Eu
espero que possamos continuar essa dupla colaboração entre o governo do Ceará e a Fundação
Calouste Gulbenkian.
A Fundação nasceu em 1956 e vai fazer cinqüenta anos no próximo ano. Foi criada por um
magnata do petróleo, Calouste Gulbekian, de origem Armênia, que vivia na França, tinha
passaporte inglês e nasceu na Turquia, portanto, era uma espécie de homem global, antes do
seu tempo. Ele estava na França no princípio da Segunda Guerra Mundial, em 1942. Foi a
Lisboa passar umas curtas férias e ficou até morrer, em 1955.
Gostou muito de Portugal, gostou muito de Lisboa, acreditou nos portugueses, acreditava no
seu advogado que era um grande advogado português, acreditava no seu médico, que era
português. Ele não conhecia Portugal anteriormente, tinha uma das mais fabulosas coleções de
arte do mundo, mas não tinha nenhuma peça portuguesa. A relação de confiança foi de tal
maneira grande, que o advogado o convenceu a criar uma fundação cultural em Portugal.
João Pedro Garcia
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A Fundação se destinava, em primeiro lugar, a divulgar as obras de arte de Calouste
Gulbenkian. O seu advogado foi o primeiro presidente da fundação. No âmbito da
Fundação, há quatro fins estatutários que são educação, arte, ciência e saúde. Um ano
depois de criada a Fundação, ele morreu.
Neste momento, há seiscentas pessoas que trabalham na Fundação. O seu orçamento
anual é de cem milhões de euros, portanto, cerca de trezentos e cinqüenta milhões de
reais. Tem uma orquestra, um coral, uma companhia de balé, dois museus e uma biblioteca
com um acervo de trezentos mil livros. Além disso, tem uma extensão em Paris e outra
em Londres e tem também na área de Ciências um Instituto de Biologia, que é um dos
mais aperfeiçoados do mundo.
Em Paris, a Fundação tem mesmo um Centro Cultural. Seu nome exato é Centro Cultural
Calouste Gulbenkian e é uma pequena extensão da Fundação, na casa do Sr. Gulbenkian,
onde ficavam as obras de arte, antes de virem para Lisboa. Nela acontecem várias iniciativas
relacionadas à cultura portuguesa, desde concertos, exposições, lançamento de livros,
colóquios, conferências. Temos também a biblioteca, que é a segunda maior biblioteca
portuguesa, fora de Portugal.
A Fundação desenvolve, ainda, um enorme e importantíssimo programa de bolsas e subsídios
em Portugal e no estrangeiro nas suas áreas estatutárias. Aliás, também se pode dizer, com
toda a certeza, que a Fundação interveio, pelo menos em um momento, na vida de cada
um dos portugueses. Quando a Fundação foi criada, há quase cinqüenta anos, Portugal
vivia uma ditadura, e foi ela que evitou que o Estado realizasse intervenções na cultura
portuguesa. Por outro lado, o primeiro presidente da Fundação, deu a tônica de sua atuação.
Foi assim que, por exemplo, vieram trabalhar nela muitos adversários do regime. Outros
foram beneficiados com bolsas estrangeiras. Durante vinte anos, Estado e Fundação viveram
uma espécie de coexistência pacífica, embora a Fundação fosse uma rival cultural do Estado,
uma espécie ‘oásis’ em Portugal.
Pode-se dizer, como muitos já disseram, que a Fundação era um Ministério da Cultura e
da Ciência. Nós tínhamos esse ministério em Portugal. Não havia nem Ministério da
Cultura, nem da Ciência. Mas também era um provável Ministério da Educação e da
Saúde, que existiam, mas eram, nesse caso, incompetentes. Depois da Revolução de 25
de abril de 1974, a Fundação diversificou e alargou a sua ação aos campos mais modernos
da criação artística, mas continua a desenvolver e apoiar projetos e iniciativas que outros
não apoiariam. Apesar da ação de fomento cultural realizada pelo governo português, a
Fundação Gulbenkian mantém uma experiência ímpar no campo cultural.
Após esta introdução longa, mas necessária para se conhecer o que é a Fundação Calouste
Gulbenkian, vou falar da sua ligação com a cidade de Lisboa, onde se situa a sua sede e outras
cidades onde não tem divulgação. Em 1956, quando foi criada, e até 1969, quando foram
inauguradas, nos mesmos extremos, os atuais edifícios, a Fundação situava-se na periferia da
cidade. Desde o início, os portugueses para ela se deslocavam para assistir concertos, visitar
museus, passear nos jardins, estudar na biblioteca, aprender música ou pintura. Cada um dos
museus dispõe de um serviço educativo muito eficaz. Aos sábados e domingos, existem
visitas especiais, além de concertos.
Posso falar da minha experiência pessoal na Fundação, porque meus pais viviam no prédio
ao lado. Meu pai viveu nessa casa desde 1950, portanto muito antes da criação da Fundação,
e isso aí, como dizemos em Portugal, é loteria, para mim, para os meus irmãos e toda a
minha família. Nós atravessávamos a rua desde os três anos e íamos à Fundação. Uma das
minhas memórias mais antigas é cantar com três anos. Lembro perfeitamente. Foi há mais
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Fui tratado em hospitais subsidiados inteiramente pela Fundação. Aliás, nessa altura, a
Fundação também subsidiava hospitais do Brasil, por exemplo, em São Paulo. Estudei com
livros didáticos da Fundação e li nas férias muitos outros livros. Em Portugal, era muito difícil
visitar as aldeias mais longínquas, então, a Fundação tinha uma série de fulgões carregados
com livros que eram emprestados a quem quisesse ler por Portugal afora. Entregavam os
livros num dia, na semana seguinte iam buscá-los. E eu, em férias, aproveitei muito esses
livros da Fundação. Li Memórias Póstumas de Brás Cubas, graças à Fundação. Eram chamadas
bibliotecas itinerantes, que mais tarde foram transformadas em oficinas, pelas câmaras
municipais, as prefeituras de Portugal. Foi esta a minha vida cultural, educacional e formação
que eu tenho e devo à Fundação Calouste Gulbenkian.
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de quarenta anos e é uma das minhas memórias mais antigas. Mas também fiz outras
coisas, comprei minha primeira entrada num espetáculo na Fundação com o meu próprio
dinheiro. Com 12 anos, namorei nos jardins da Fundação. Por outro lado, a Fundação
também demonstrava a sua influência em minha vida em outras áreas muito importantes.
Vim de Portugal aos vinte e poucos anos e fui para Paris para exercer funções diplomáticas.
Em lá chegando, entrei outra vez na Fundação, e assim pude fazer uma missão mais
reduzida da que eu fazia em Lisboa. Lá também a Fundação nos colocava à disposição
livros, discos, CDs, computadores, artistas, quadros para nos aguçar a curiosidade e isso,
em relação a muitas outras pessoas que eu conheço por esse mundo afora, é um privilégio
que eu tive. Tive a possibilidade de ter os olhos mais abertos e isso num período de ditadura
quando eu tinha 15 anos.
Eu gostaria também de falar de outras coisas da Fundação que se referem aos centros
culturais. No departamento internacional da Fundação, que eu dirijo, há um programa de
apoio à restauração, vitalização do patrimônio histórico português e arquitetônico do mundo
afora. Nos últimos vinte anos, nós pudemos restaurar vinte monumentos, do mundo inteiro,
desde o Brasil até a Indonésia. Há muitos desses monumentos que funcionam como centros
culturais da cidade. Há em Mombaça um monumento construído pelos portugueses, que
passou por uma confluência de culturas portuguesa, inglesa, muçulmana, árabe e agora é
um centro de diversas culturas. O forte de Mombaça é um local de diálogo, de discussão,
é um local sereno, um centro cultural que a Fundação fez fora de Portugal, fora de Paris, em
lugares que os portugueses estiveram há quinhentos anos.
João Pedro Garcia
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Painel III
Federalismo
Culturaleospapéis
domunicípiono
fomentoàcultura
FranciscoHumbertoCunhaFilho
Doutor e Mestre em Direito. Professor da UNIFOR. Advogado da União
A presente mesa provoca a seguinte reflexão inicial: o que, precisamente, se busca saber a
partir do tema ‘Federalismo Cultural e os Papéis do Município no Fomento à Cultura?’
Nele, crê-se, está embutida a pergunta: o que, na área cultural, podem e devem fazer os
municípios atuando em conjunto com os demais entes da federação brasileira, ou seja,
com outros municípios, os Estados, a União e o Distrito Federal?
Esta é uma indagação posta a um advogado que tem profunda crença no estado democrático
de direito; a conseqüência é que a resposta preferencialmente virá da Constituição Federal1,
o instrumento que fixa as competências, ou seja, os poderes e deveres dos entes públicos.
Subsidiariamente, também emanará da Constituição do Estado do Ceará2 , em virtude de
ser a mesma uma extensão da outra (subsistema constitucional), bem como da peculiaridade
de o público destinatário destas palavras ser preponderantemente composto de cearenses.
1
2
Adiante, a Constituição Federal poderá ser identificada pela sigla CF/88.
Adiante, a Constituição do Estado do Ceará poderá ser identificada pela sigla CE/89.
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A nossa Constituição Federal tem muitos dispositivos sobre cultura, mas vários deles se
repetem em conteúdo ou apenas constituem reforço ou especificação da maneira de
operar, uns relativamente aos outros, ou seja, há muitas normas, mas poucas tarefas (‘ou
papéis’) são atribuídas aos municípios. Mas atenção: poucas tarefas não significam, neste
caso, pequena quantidade de atividades, e nem pouca importância das mesmas, porque
um comando curto em expressão verbal (“faça tudo!”, por exemplo) pode ser imenso em
termos de abrangência.
É necessário que se revele, agora, quais os dispositivos constitucionais que mais diretamente
tratam do papel do município, relativamente à cultura. Antes, porém, adverte-se que a
Constituição usa diferentes expressões para esta referência: município, administração e poder
público, entre possíveis outras. Isto posto, da Constituição Federal serão enfocados, no todo
ou em parte, os seguintes artigos: 5º, 23, 24, 210, 215 e 216, sem prejuízo de outros que
sejam conexos ou complementares, para a idéia que ora se desenvolve; da Constituição do
Estado do Ceará, pelos mesmos critérios, serão enfocados os Art. 233 a 237.
Destes dispositivos extrai-se que ‘os papéis’ do município compreendem - como é normal
aos entes públicos - dois grandes gêneros temáticos: legislar e executar normas relativas
à cultura.
Quanto a legislar, pode-se sinteticamente dizer que o município funciona
preponderantemente como coadjuvante da União e do Estado, uma vez que em quase
tudo, na matéria analisada, apenas suplementa as legislações federal e estadual, no que
couber e no que for indispensável à sua atuação (Art. 24, VII, VIII e IX c/c Art. 30, II, da CF/
88 e Art. 237, CE/89).
No plano executivo, a posição secundária do município é abrandada e, mnemonicamente,
pode ser simplificada por quatro verbos: proteger, apoiar, promover e garantir. É falso,
porém, pensar que os verbos citados, segundo a Lei Superior, sempre indicam suas
respectivas ações de forma ilimitada; ao contrário, por vezes há nas normas com eles
construídas uma precisão capaz de trazer certa tranqüilidade ao gestor cultural, como se
passa a especificar.
O papel de PROTEGER:
Nesta seara, a Constituição Federal determina ser competência do município PROTEGER o
patrimônio cultural, este que tem abrangência gigantesca, segundo o Art. 215; mas visando
sair da abstração generalizada, a CF/88 prioriza, como objeto da referida proteção, “os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos,
as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (Art. 23, III, CF/88), bem como
“as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Art. 215, § 1º, CF/88); no mesmo
rol prioritário, a documentação governamental (Art. 216, § 2º, CF/88).
O texto constitucional chega a indicar alguns modos de como deve ser feita a proteção: no
plano das ações ostensivas, impedindo “a evasão, a destruição e a descaracterização de
obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural” (Art. 23, IV, CF/88),
bem como realizando “inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação,
[além de] outras formas de acautelamento e preservação” (Art. 215, § 1º, CF/88); ainda:
criando sistemas de arquivos e bibliotecas (Art. 234 a 236, CE/89). No plano da formação
Francisco Humberto Cunha Filho
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da consciência coletiva sobre o assunto, fixando “conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais” (Art. 210, CF/88).
O papel de APOIAR
A descrição constitucional do papel imposto ao município para APOIAR a cultura segue
uma regra da lógica: quanto menor a extensão, maior a compreensão, ou seja, o constituinte
usando expressões singelas como a que contém a ordem para “proporcionar os meios de
acesso à cultura” (Art. 23, V, CF/88), “apoiar e incentivar a valorização e a difusão cultural”
e “garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura
nacional” (Art. 215), deixou ao encargo da edilidade (como dos outros entes políticos)
um oceano de possibilidades de atuação, cuja moldura limitadora é difícil mas não
impossível de desenhar, o que pode ser feito levando em consideração os fundamentos
da nossa República e os princípios constitucionais culturais.
O papel de PROMOVER
Promover é “dar impulso a; trabalhar a favor de; favorecer o progresso de; fazer avançar;
fomentar”3 . Da mesma maneira que no papel de apoiar, salvo indicações pontuais para
que sejam fixadas “datas comemorativas de alta significação” (Art. 215, § 2º, CF/88) e
franqueada “a consulta da documentação governamental a quantos dela necessitem”
(Art. 216, § 2º, CF/88), os redatores da Constituição Federal também usaram a regra
amplíssima de que o poder público (o município aí se inclui) promoverá o patrimônio
cultural brasileiro (Art. 216, § 1º, CF/88). Mas por qual modo? Com qual abrangência?
Além dos já referidos, tanto em termos de atividades quanto de princípios, há muitos
meios possíveis para a referida promoção da cultura, desde que estabelecidos em lei.
Esta grande abertura de possibilidades de promoção da cultura ocorre porque prevista em
norma que os juristas chamam de “programática”, cuja característica é a de poder amoldarse ao programa vencedor das eleições, desde que este cumpra os seguintes requisitos:
(1º) seja criado por lei e (2º) esta lei não contrarie os valores constitucionais.
O papel de GARANTIR
É genérico e auxiliar, relativamente aos demais, uma vez que GARANTIR significa “tornar
certo, seguro”4 , ou seja, materializar as determinações constitucionais, retirando-as do
plano retórico para a realidade da vida. Tal papel, vê-se de pronto, é o mais difícil, tanto
de concretizar, quanto de entender.
Quanto à dificuldade de concretização, esta pode ser explicada por fatores como ‘ausência
de vontade política’ e/ou ‘escassez de recursos’.
No que concerne à dificuldade de entendimento do papel de garantir, resulta do fato de
que nem todos lembram e, na verdade, muitos não sabem que esta operação envolve
necessariamente três tipos de valores: DIREITOS – DEVERES – GARANTIAS, cuja mútua
relação pode ser sintetizada na seguinte frase: aos direitos correspondem deveres, para
cujo cumprimento são necessárias garantias.
3
Extraídos da versão eletrônica do Dicionário Aurélio.
4
Extraídos da versão eletrônica do Dicionário Aurélio.
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Na Constituição Federal e na Constituição do Ceará algumas garantias são expressamente
indicadas como suporte para implementação dos papéis de proteger, apoiar e promover a
cultura. Uma delas é a permissão, mais que isso, a ordem para que os entes públicos
punam os danos e ameaças ao patrimônio cultural, por um lado repressivo (Art. 216, § 4º,
CF/88, CF/88), e por outro, proativo e estimulador, para que criem incentivos para a produção
e o conhecimento de bens e valores culturais (Art. 216, § 3º).
2005
Mas o que são, afinal de contas, garantias? São todos os elementos de natureza jurídica,
política e social que convergem forças para realizar os direitos e deveres, no caso, aqueles
atinentes ao mundo cultural e que são de responsabilidade dos municípios.
Para concretizar esta ordem de criação de incentivos, optou-se, em considerável quantidade
de municípios, seguir o exemplo da União criando-se um sistema de renúncias fiscais, que
apresentam as virtudes e as mazelas de conhecimento público e notório. É uma possibilidade,
não a única. A Constituição Estadual do Ceará, por exemplo, desde 1989 prevê em seu art.
233 um Fundo Estadual da Cultura, como garantia pecuniária à realização das atividades
que relaciona; aliás, o referido Fundo ganhou a possibilidade de ser muito fortalecido com
a inserção do § 6º no art. 216 da Constituição Federal: com esta alteração, a partir de 19
de dezembro de 2003 os Estados que quiserem podem vincular aos fundos “de fomento à
cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento
de programas e projetos culturais”, algo que, uma vez concretizado, será revolucionário
em termos de autonomia da cultura.
Mas até agora as garantias referidas, não obstante importantíssimas, têm natureza
preponderantemente técnica. Há que se falar das garantias que mais proximamente lembram
o estado democrático de direito, estas que poderiam ser consideradas as garantias das
garantias, as quais consistem na intervenção dos cidadãos e das coletividades na construção,
realização, fiscalização e redimensionamento das políticas públicas de cultura. Neste sentido
é que, no plano individual, a Constituição Federal autoriza, sem despesas, “qualquer cidadão
[a] propor ação popular que vise a anular ato lesivo [...] ao patrimônio histórico e cultural”
(Art. 5º, LXXIII, CF/88), bem como fixa que a atuação pública nesta seara sempre se dará
com a “colaboração da comunidade” (Art. 215, § 1º CF/88).
Para concluir é necessário observar que, não obstante as ações (ou papéis) do município
possam ser sintetizadas por quatro verbos, as atividades são incomensuráveis e o sistema
de distribuição de recursos de nosso país não permite que estes entes arquem com todos
estes ônus sozinhos. Neste ponto entra a idéia de federalismo cultural: é necessário estender
as regras de cooperação, já centenárias em alguns países organizados semelhantemente ao
nosso, à área cultural, para que haja justa e coerente distribuição de recursos e tarefas entre
a União, os Estados e os Municípios.
Os municípios são, portanto, no plano dos direitos culturais, devedores destes à sua
população, mas são credores da colaboração popular, bem como de ações por parte do
Estado e da União que implementem os objetivos fundamentais de nossa República, em
particular para o caso sob análise, a redução das desigualdades sociais e regionais. É uma
tarefa e tanto, mas cuja concretização depende do esforço que nela, na condição de
cidadãos, empregarmos. Ao trabalho, à luta!
Francisco Humberto Cunha Filho
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AloysioA.CasteloGuapindaia
Gerente de Articulação Nacional do Ministério da Cultura
O governo Lula marca uma nova fase para a democracia no Brasil. O Ministério da
Cultura, em sintonia com as políticas de inclusão social, geração de emprego e renda,
de participação e transparência da gestão pública, vêm operando a política cultural com
o foco na diversidade cultural do povo brasileiro, na promoção e no resgate do patrimônio
material e imaterial e na valorização da capacidade criativa e participativa da sociedade
e de seus artistas. A política do Ministério considera a cultura como a dimensão simbólica
da existência social brasileira. De cada comunidade e de toda a nação, a diversidade
cultural é compreendida como o direito de ser e de fazer de todos e a cultura quanto
atributo essencial na produção econômica, na inclusão social e na geração de empregos
e renda. A atual política propõe mudar a percepção que se tem da cultura, elemento
vivo e dinamizador da vida social brasileira.
O Ministério da Cultura assume a tarefa de traduzir a mudança cultural na maneira de
compreender o papel do Estado no que concerne à dinamização do patrimônio cultural,
devidamente observado na Constituição Federal. Para que as mudanças aconteçam, o
Ministério da Cultura vem trabalhando desde o ano de 2003 na implantação do Sistema
Nacional de Cultura (SNC), que se constitui em um processo de articulação, gestão e
promoção conjunta de políticas, tendo como objetivo gerar, formular e implantar políticas
públicas de cultura democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e
da sociedade civil, promovendo o desenvolvimento social com pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional. Em outras palavras, significa a implantação
de uma política de Estado, permitindo a execução de ações de política cultural de alcance
nacional, sustentada ao longo do tempo, como determina a própria Constituição Federal.
Através do SNC, o governo federal pretende implantar um novo modelo de gestão pública
para a área cultural, que possibilitará o desenvolvimento institucional dos órgãos públicos,
fazendo com que todos possam criar capacidades executivas para os programas e projetos
culturais oriundos da própria localidade.
A intenção de constituir um Sistema Nacional de Cultura não é nova. Em 1976, o então
Conselho Federal de Cultura realizou em Salvador o Encontro Nacional de Cultura. O tema
geral do encontro foi o Sistema Nacional de Cultura. Diferentes personalidades da vida
cultural brasileira discorreram então sobre temas como Sistema Nacional de Arquivos,
integração regional e regionalização cultural, Sistema Nacional de Museus, Sistema Nacional
de Bibliotecas, propondo políticas de integração nacional da cultura.
Os avanços democráticos da sociedade brasileira, desde a prorrogação da Constituição
de 1988, conduziram a uma visão de descentralização não mais delimitada a processos
político-administrativos, mas entendida de forma mais extensa ao plano da social e
cultural, como exemplifica o Artigo 215 da Constituição. O Senado Federal estará
votando em segundo turno nos próximos dias, o projeto de emenda constitucional
que cria o parágrafo terceiro, onde fica determinado a criação de um Plano Nacional
de Cultura visando o desenvolvimento cultural do país e a integração das ações do
poder público em todas as suas esferas. Com a aprovação dessa emenda, o Estado
brasileiro possuirá um instrumento jurídico estratégico no desenvolvimento de ações
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Visando a integração do governo público e da sociedade civil, o governo federal,
através do Ministério da Cultura, vem trabalhando, como já dissemos, na implantação
do SNC. Para isso, o MINC opera em três eixos básicos: primeiro, assinatura do
protocolo de intenções com os Estados e municípios; segundo, decreto de criação do
Sistema Federal de Cultura e implantação do Conselho Nacional de Política Cultural;
terceiro, articulação do Congresso Nacional com vistas a implantar um novo modelo
jurídico para a área cultural. Com relação ao protocolo de intenções, ele tem como
objetivo estabelecer as condições e orientar a instrumentalização necessária, definindo
as competências da União, Estados e municípios para a implantação do SNC. O
objetivo é criar novas bases institucionais entre os entes da Federação para o
estabelecimento do próprio Sistema. A União cooperará por meio deste instrumento
com os Estados e municípios para a implantação dessas bases. O objetivo dessa ação
é que cada ente da federação defina uma política pública de cultura, um sistema de
financiamento próprio e eficiente para a execução dessas políticas, um plano de cultura
próprio pactuado com a sociedade, conselhos de cultura atuantes, enfim, uma base
institucional que assegure a permanência e desenvolvimento desse novo modelo de
gestão para o setor cultural.
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políticas de forma planejada e articulada entre os entes da Federação, visando a
proteção do patrimônio cultural brasileiro, com a colaboração da comunidade, como
determina o Artigo 216 do parágrafo 1º.
Com relação à adesão ao SNC, ainda hoje estaremos assinando com o Estado do Ceará,
com o município de Fortaleza e outros municípios do estado, os referidos protocolos de
intenções. O Estado do Ceará é o primeiro Estado do Brasil que assina esse protocolo. O
Sistema Federal de Cultura visa organizar todos os órgãos federais que atuam direta ou
indiretamente no campo cultural sob a coordenação do Ministério da Cultura. Esse modelo
sistêmico vai permitir uma maior centralidade das políticas culturais desenvolvidas pelo
Governo Federal, que se articularão com o Sistema Nacional de Cultura, que é formado
pelos sistemas federal, que é esse que estou me referindo, os sistemas estaduais e
municipais. Todos esses sistemas devem, em linhas gerais, seguir o mesmo modelo
institucional, resguardadas as devidas particularidades e autonomia de cada esfera
governamental. O Conselho Nacional de Política Cultural, colegiado integrante da estrutura
organizacional do Ministério da Cultura, deverá traduzir a visão sistêmica e participativa
do Governo Federal. O Conselho também servirá de modelo para os demais entes federativos
desejosos de trilhar caminhos semelhantes. Na verdade, o Conselho já existe hoje. Ele é
restrito, fechado ao órgão governamental, ao próprio Ministério da Cultura. O Ministério
está reabrindo este Conselho para a participação da sociedade dentro da lógica de
constituição do próprio Sistema Nacional de Cultura. Então esse Conselho se constituirá
de um plenário de vinte membros da área governamental e vinte membros da sociedade
civil, além do comitê de integração de políticas culturais e também dos colegiados, que
são os conselhos, câmaras, comitês e outros dos sistemas ou políticas setoriais. Então,
para cada setor da cultura e para cada linguagem do fazer cultural haverá um órgão
colegiado que será parte integrante desse conselho.
O principal órgão colegiado que nós já estamos trabalhando no Ministério da Cultura
são câmaras setoriais que muitos de vocês já devem ter ouvido falar. Então, nós já
estamos implantando, antes da assinatura do decreto que requalifica esse Conselho, as
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câmaras setoriais como, por exemplo, a leitura, música, teatro, dança, entre outras
que a gente já iniciou a sistemática de implantação. Tão logo seja sancionado o
plano nacional, o Ministério da Cultura estará apresentando um projeto de lei ao
Congresso Nacional para o seu estabelecimento. Após isso, estaremos realizando até
dezembro desse ano a Conferência Nacional de Cultura, onde será debatido o projeto
apresentado para que a mesma possa deliberar sobre as emendas que serão
encaminhadas posteriormente ao Congresso Nacional. A conferência de cultura é um
processo em que a sociedade civil se reúne, através das delegações, para a discussão
e definição desse plano. É um processo que se inicia ao nível dos municípios ou ao
nível de um conjunto de municípios, passando por uma conferência estadual e
chegando, então, à conferência nacional.
O plano nacional de política cultural será discutido desde o nível regional chegando ao
nível nacional. O Estado do Ceará estará fazendo em breve a sua Conferência Estadual,
que é um dos compromissos que nós estamos assumindo nesse protocolo de intenções.
O Ministério da Cultura trabalha, também, nas articulações políticas com o objetivo de
fazer aprovar no Congresso o projeto de emenda constitucional de número 150, de
autoria do Deputado Paulo Rocha, que cria a obrigatoriedade de exploração do orçamento
para as três esferas de governo, ou seja, 2% para a União; 1.5% para os estados e 1% para
os municípios, o que significa dobrar a capacidade do Estado brasileiro em investimentos
no setor da cultura. Dos 2% da União, é bom que fique claro, haverá obrigatoriedade de
repasse de 1% para os estados e municípios. E esse repasse será feito de fundo para
fundo. Para que o novo modelo jurídico da área cultural se concretize no Estado brasileiro,
é necessária ainda a constituição de novas normas jurídicas como a lei federal da cultura,
para que o conjunto de leis existentes no país possa ser modernizado, e da criação de
outros instrumentos e novas capacidades de execução de políticas públicas de cultura.
Nesse sentido, os projetos de lei estão sendo trabalhados pelo Ministério da Cultura e
dentro em breve serão apresentados à sociedade para a discussão e posterior
encaminhamento ao Congresso Nacional. Essa ação é necessária porque é através dela
que estaremos definitivamente implantando no país um Sistema Nacional de Cultura
como política de Estado, e outras formas legais definirão os direitos e deveres do poder
público para o setor cultural.
Como já podemos perceber, com a implantação desse novo modelo de gestão para a
cultura, os municípios assumirão um papel estratégico no desenvolvimento cultural do
país. Tal modelo visa capacitá-lo ao oferecimento de todos os serviços culturais para as
populações locais. Significa também afirmar a descentralização desses serviços da União
ou Estado para os municípios, permitindo-lhes uma nova via de desenvolvimento social e
econômico. Esse modelo significa também definir de forma clara, através de regulamentos
legais, as atribuições de cada ente da Federação na política cultural brasileira, respeitando
sua autonomia.
Para finalizar, o Ministério está desenvolvendo programas para a criação de uma rede
municipal de equipamentos culturais, que é tarefa em longo prazo do Sistema Nacional
de Cultura, que, ao longo do tempo, deverá suprir as necessidades de todos os
municípios, como, por exemplo, os pontos de cultura, a criação de novas salas de
cinema financiadas pelo BNDES e a instalação de bibliotecas públicas, além do fomento
e integração dos museus, através do sistema brasileiro de museus. O conselho de
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redes, não só de equipamentos culturais, mas de outras redes, que perpassa o Sistema
Nacional de Cultura. Como sabemos, a grande maioria dos municípios é deficiente de
algum tipo de equipamento cultural, e é necessário que o Estado brasileiro invista e
fomente a instalação desses equipamentos onde não existem e promovam a
requalificação dos já existentes, para que estes possam oferecer às suas populações
acesso aos bens culturais.
Segundo o IBGE, num levantamento feito no ano de 2001, enquanto 64% dos municípios
têm videolocadora, apenas 8% têm cinemas, o que demonstra a crescente substituição
das salas de cinema pelos equipamentos domésticos na área do audiovisual. Do mesmo
levantamento, observamos que apenas 19% dos municípios possuem teatros e 17% possuem
museus. Esses números se tornam ainda mais preocupantes quando observamos grande
concentração desses equipamentos culturais nos grandes centros urbanos. São esses
indicadores que justificam a criação de um Sistema Nacional de Cultura para o nosso país,
capaz de descentralizar recursos, neutralizar desigualdades regionais, consolidando a
cidadania cultural de todos os brasileiros.
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PainelIV
Aconstruçãode
equipamentosculturais
comoestratégiade
requalificaçãosocial
debairrosenúcleos
históricosdascidades
Coordenação: José Marcus Vinicius de Souza - Cônsul Geral do Brasil em Barcelona
D
aniloSantosdeMiranda
Diretor Regional do SESC de São Paulo.
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Eu gostaria, como disse, de falar sob o ponto de vista de alguém que administra uma
entidade como o SESC no estado de São Paulo, uma instituição que tem uma presença
marcante na comunidade, graças também à sua estrutura física, à sua rede de centros
instalados em São Paulo na capital e no interior e, naturalmente, com isso, prestando um
serviço à população, à comunidade e também requalificando espaços e mostrando, portanto,
como a ação cultural organizada, feita de maneira aberta, de maneira democrática, de
maneira, portanto, cidadã, consegue ser um elemento importante para a revitalização e
requalificação de espaços urbanos. No final da fala eu terei a oportunidade de mostrar
algumas imagens dessas nossas unidades, sobretudo na capital de São Paulo, onde a
deterioração urbana se dá de uma maneira muito mais acentuada e hoje, portanto, a
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Cultura e Cidades
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Em primeiro lugar, eu gostaria de mencionar o que é essa instituição. O SESC é uma
instituição criada nos anos 40 do século passado com o objetivo claro, definido, no
bojo de várias outras instituições que foram também criadas para atender o bem-estar
do trabalhador no comércio e seus dependentes, seus familiares e a população em
geral. Ele tem um objetivo claro, num momento histórico importante, no Pós-guerra,
momento de industrialização do país, momento, portanto, de migração intensa no
país, que saía do mundo rural para o mundo urbano. É nesse momento que surge o
SESC como uma resposta, uma proposta do empresariado do comércio, no sentido de
criar uma instituição que proporcionasse bem-estar aos trabalhadores, um programa de
desenvolvimento social, cultural em todas as áreas. A proposta era atingir um padrão
melhor de vida, proporcionar serviços e equipamentos e condições de bem-estar para
os indivíduos. Naquele momento, um empresário antecipou políticas públicas que hoje
são propostas pelo Estado.
2005
necessidade de uma reação, de uma ação efetiva por parte das organizações, do serviço
público, enfim, de todas as entidades, para que isso seja revertido.
De lá para cá são quase 60 anos de SESC. As coisas mudam, mas o DNA da instituição é
esse: o bem-estar social para o trabalhador do comércio, seus dependentes e a população
em geral. Quem financia esse bem-estar são as empresas comerciais de serviços, e, para
isso, os empresários propõem ao governo a criação de uma lei que obriga os empresários
a contribuir. É interessante ver que eles propõem, naquele momento, a criação desse
mecanismo de maneira compulsória. Finalmente, vale dizer que o SESC é uma instituição
de direito privado na sua origem, na sua essência e também na sua governança. No caso
do SESC, a sua governança é feita de maneira autônoma, formando, portanto, uma
federação. Esse modelo é o mesmo modelo dos chamados "S", que são criados na mesma
ocasião: o SENAC, o SENAI, o SESI e o SESC, com objetivos assemelhados. No caso do
SENAC, essa entidade foi criada para a formação profissional com o mesmo arcabouço
jurídico, pretendendo, portanto, capacitar profissionais e produzir mão-de-obra qualificada
para o trabalho no comércio.
Como vemos, o SESC tem um compromisso de ordem pública, embora seja uma
instituição de caráter privado. Ele abandona uma perspectiva assistencialista nos anos
40, que considerava o indivíduo um elemento a ser ajudado, e vai migrando, pouco a
pouco, no decorrer da sua história, para uma perspectiva sócio-educativa ou sóciocultural cada vez mais intensa, cada vez mais forte. É isso que explica esse compromisso
institucional, especialmente no caso de São Paulo, com essa ação cultural permanente,
esse compromisso de transformação e mudança da sociedade através da ação cultural.
É um compromisso que serve de amparo, de suporte e, muitas vezes, de modelo para
a ação pública na área cultural.
Nesse sentido é que nós procuramos ter essa atuação, que é comprometida,
obviamente, com a valorização da questão cultural em todos os níveis. Cada vez
mais se discute e se aprofunda a discussão sobre cultura como esse elemento
fundamental, não apenas de valorização do ser humano, de valorização da sua
identidade, mas também de desenvolvimento, de melhoria de uma sociedade,
crescimento que, aliás, é um padrão importante hoje inclusive na área econômica,
na área de financiamento etc. O SESC de São Paulo tem por finalidade promover o
bem-estar, e as práticas de cidadania por meio de ações sócio-culturais e de lazer,
Danilo Santos de Miranda
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para o trabalhador de um modo geral, sua família e para a população em geral.
Dessa forma, e ao longo dos seus quase 60 anos, transformou e aperfeiçoou a
qualidade arquitetônica dos seus espaços e unidades, particularmente para melhor
acomodar o público, otimizando suas atividades.
Atualmente, para os equipamentos do SESC, a função básica da arquitetura é disseminar
valores do tempo de lazer como prazer, informalidade, sociabilidade, convivência,
criatividade, alegria, liberdade. São esses valores que estão por trás dos programas
oferecidos aos arquitetos para que eles pensem no espaço que nós estamos querendo
criar. Os espaços, segundo essa concepção, fogem naturalmente do padrão que expressa
poder, autoridade, supremacia, força, como são geralmente construídos alguns espaços
sob orientação, por exemplo, de poderes políticos centralizados, como ditaduras, muitas
vezes pensados a partir de uma arquitetura monumental, até mesmo religiosa, nos
quais o respeito, a hierarquia e a disciplina são absolutamente obrigatórios. São esses
valores que são colocados, projetados com apurado senso estético, os equipamentos
voltados para o tempo do lazer e atividades sócio-culturais têm a responsabilidade de
mediar os desejos de fruição e práticas do público, das pessoas, que são muitas vezes
indefinidos, subjetivos, etc, com as propostas e ações culturais, de modo a reunir as
intenções e possibilidades de forma estimulante e eficaz. Nós vamos juntar o interesse
das pessoas e, ao mesmo tempo, a oferta que é colocada à sua disposição. As áreas de
convivência são concebidas como praças (nós vamos ver como isso é importante na
nossa descrição) para congregar o maior número possível de pessoas, para que as
diversas faixas etárias se encontrem e convivam. Os complexos esportivos são constituídos
de espaços também informais com sala de jogos etc. As oficinas ocupam salas que em
alguns centros têm múltiplos usos, ao longo do dia, para artes variadas, atividades
literárias, cinemas etc. Então, a unidade do SESC é múltipla e atende uma ampla
diversidade de interesses, também pela maneira como estão articulados os espaços e
as suas diversas vocações.
De maneira geral, essa arquitetura busca primeiramente atrair o público e dotar os espaços
de lazer e cultura de algumas características. Quais são essas características? As primeiras
são a transparência e a visibilidade. Elas possibilitam que todos os espaços tenham a
maior visibilidade possível, de modo que o freqüentador possa rapidamente dominar o
entorno e, ao mesmo tempo, ser sensibilizado, ser atraído, ser tocado para as diversas
atividades que estão ali oferecidas. As outras são a transitividade e interatividade. Elas
buscam permitir, da melhor forma possível, a circulação entre os diferentes espaços de
um modo descontraído, agradável, reproduzindo de algum modo um comportamento
livre do pedestre nas ruas. A idéia da rua, é aqui concebida como um lugar livre onde as
pessoas são realmente livres para circular. Ao mesmo tempo, devem estimular o repouso,
constituindo-se em um espaço relaxante e acolhedor. Essa diversidade dos espaços permite
a compatibilidade entre atividades que são naturalmente ruidosas e outras mais silenciosas.
É necessário criar um espaço onde essa convivência entre esses espaços e usuários desses
espaços seja absolutamente adequada. E é uma questão de cidadania. A gente costuma
dizer que cultura, lazer, esporte, recreação, faz barulho. Por outro lado, nós temos que
ser exemplares também na cidadania e no respeito a todos. Como conciliar esses dois
elementos? Esse elemento da criação de espaços que criam ruído, tumulto ou alguma
confusão, algum movimento e, ao mesmo tempo, a tranqüilidade do entorno, o respeito
à cidadania etc. Então isso tem que ser partilhado, isso tem que ser conversado de
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E, finalmente, um dado que para mim é fundamental, presente também na
arquitetura, diz respeito à sensibilidade e à integração. Todos os espaços devem ser
de fácil acesso e circulação para todos. Sobretudo os portadores de necessidades
especiais, crianças e idosos. Não sei se vocês têm a oportunidade ou já tiveram a
oportunidade de ver. Estou me referindo a uma rua que entra no espaço cultural,
onde várias coisas acontecem e as pessoas se encontram. Eu procurei antecipar um
pouco sobre como os equipamentos podem contribuir para transformar as relações
sociais estabelecidas nos diversos espaços urbanos.
2005
alguma forma. O mesmo espaço pode ser utilizado para diversas atividades diferentes,
sendo bastante ágil e flexível o seu uso.
Nós temos exemplos em toda parte do mundo de requalificação dos centros
históricos a partir da construção de equipamentos culturais. Temos exemplos aqui
mesmo em Fortaleza, na Praia de Iracema com o Centro Dragão do Mar. Temos
exemplos no Brasil inteiro de espaços requalificados para outros usos com o objetivo
de atender melhor a população. Esses espaços devem respeitar os interesses de
todos ou pelo menos, da maioria da população e as intervenções desses
equipamentos não podem desprezar as expectativas e o direito à participação de
todos os cidadãos. No entanto, muitos princípios de revitalização urbana, é bom
que se diga, ainda estão ligados à intervenção urbanística que tem um caráter
meio saneador, meio de limpeza urbana, de limpeza do ambiente, em geral retirando
apenas a população de baixa renda das ruas. Sem dúvida alguma, as experiências
que nós temos observado mais adequadas são aquelas que levam em conta toda
uma série de serviços que devem estar colocados à disposição da população, de
um modo a ter essa diversidade também na requalificação desses espaços.
Atualmente, no caso de São Paulo, a habitação de interesse social é empregada como
uma das maneiras de reduzir a degradação de áreas centrais históricas. Outros aspectos
são igualmente importantes para requalificação, não dependendo somente de critérios
funcionais, mas políticos, sociais, culturais e ambientais. Assim, é decisivo humanizar os
espaços coletivos, valorizar os marcos culturais e históricos, ampliar áreas de lazer,
integrar a comunidade no planejamento e execução desses projetos. A parceria que
envolve um projeto público de intervenção urbana deve contar com o apoio de instituições
privadas e representantes locais para que se possa estabelecer num compromisso um
pacto comum. No caso do SESC, a experiência de implantação de centros do SESC em
diversas cidades do Estado de São Paulo, que é a experiência na qual estou envolvido,
demonstra alterações significativas na qualidade de vida da população que trabalha ou
reside no seu entorno.
Muitos exemplos poderiam ser dados, a começar pelo SESC Pompéia. Quando foi
inaugurado em 1982, pela habilidade e maestria da arquiteta Lina Bo Bardi, marcou a
cidade como um evento histórico e arquitetônico de requalificação espacial para fins
culturais e artísticos. Recontextualizando a antiga fábrica, a arquiteta Lina seguiu os
princípios da Carta de Veneza, uma concepção dinâmica que deixou viva a história dos
galpões, manteve aquele partido, aquela imagem, aquela fachada dos galpões visíveis,
as diversas técnicas empregadas inclusive. O centro esportivo foi aberto ao público
depois, só em 1986, e transformou não só o entorno, estimulando pontos comerciais,
residenciais, de lazer, de cultura em volta do SESC, mas a própria cidade. Ou seja,
Danilo Santos de Miranda
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deslocou um pouco o eixo da ação cultural e de lazer que percorria o Centro ou a Bela
Vista, indo em direção à Paulista, para o lado de Pinheiros, Vila Madalena, enfim para
a zona oeste, para o lado do SESC Pompéia. Temos depois outros dois projetos que é
o caso do SESC, que vai ser construído próximo à Estação da Luz, perto da Cracolândia
(vocês têm idéia do que é a Cracolândia?), uma região conhecida no centro de São
Paulo, onde o comércio e o consumo do crack é muito grande. Próximo a esse lugar
nós estamos realizando mais uma intervenção que deverá ser a nova unidade SESC no
bairro da Luz, com a intenção realmente de agir no seu entorno. Temos a unidade na
24 de Maio, que vai ficar a 50 metros do Teatro Municipal de São Paulo, onde era a
antiga sede de uma grande loja comercial do Brasil, que era a Mesbla. Lá o SESC vai
instalar uma outra unidade.
Vale citar a unidade do SESC Belenzinho, uma antiga fábrica de jeans, a primeira fábrica de
jeans do país, que produziu, segundo dizem, muitas peças para o exército americano
durante a Guerra do Vietnã. Essa fábrica é uma área imensa; ela tem duas torres, uma em
cada ponta do terreno. Então, numa das pontas, nessa torre, vai ser instalada a sede do
SESC em São Paulo e na outra ponta, usando todo o entorno e todo o restante do espaço,
um grande centro cultural na zona leste, que é uma zona muito carente e a mais populosa
de São Paulo.
Temos ainda a unidade Pinheiros. Foi instalada num prédio absolutamente novo, mas
numa região deteriorada, um pouco antiga, embora em começo de desenvolvimento. Na
verdade, todas as nossas intervenções não possuem carater autoritário. Para nós não basta
simplesmente chegar e dizer: ‘vamos fazer isso’. O público vai lá, muda, transforma,
modifica, o que prova ser necessário estabelecer um diálogo necessário com o entorno e
trabalhar com a questão da diversidade. Quando eu digo diversidade, refiro-me não apenas
à diversidade que atende ao pequeno, ao médio e ao grande, ao pobre, ao remediado e ao
rico, não. É também a que atende às diversas características das atividades humanas,
atividade comercial, habitações de nível adequado, aproveitamento de espaços disponíveis,
a vocação cultural do lugar.
JoséNascimentoJúnior
Diretor de Museus e Centros Culturais do MinC
Embora pareçam temas demasiadamente comuns, as cidades e a cultura devem ser
assuntos de reflexão constante, devem ser pensados a cada instante, a cada momento.
Sem dúvida, o perfil que as nossas cidades vêm assumindo deve ser repensado. No
Brasil, entre os gestores, produtores culturais e agentes da cultura há necessidade de
uma reflexão mais aprofundada sobre essas temáticas, principalmente sobre qual é o
papel da cultura, de fato, nas cidades. No Ministério, coordeno a política de museus e
dirijo o Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan. Na coordenação,
procuramos implantar uma política que dialogue com o conjunto das instituições culturais
do país. Com uma equipe integrada podemos pensar em outros e novos projetos nos
quais o Ministério vem se envolvendo, como a criação de novos centros culturais e
novos museus. Mas não vou me ater a mostrar o que o Ministério está fazendo. Esta
questão aparece em debates, diálogos, na Política Nacional de Museus ou em outros
momentos que demonstram o ponto de vista do Ministério. Faço, aqui, uma reflexão a
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partir desse locus de gestor num âmbito federal, do ponto de vista de quem já tem uma
trajetória nessa área, de quem já gerenciou instituições culturais e, por isso, deve ajudar
a pensar nas políticas culturais que o Ministério vem fazendo, mas no âmbito das
cidades. Positivamente, essa reflexão passa pela requalificação de espaços em todo o
Brasil. Ao longo da história, tivemos alguns momentos de política cultural do Estado
que acabaram por influenciar o perfil das nossas cidades.
Um primeiro ciclo importante foi a chegada da Família Real ao Brasil, com a criação de
importantes instituições culturais para o país.
O segundo ciclo foi o do Segundo Reinado, que teve um papel importante por criar relações
entre as instituições, por pensar na educação e na cultura dentro de uma visão unificada.
O terceiro ciclo, o getulista, com a implantação de instituições com uma visão estratégica
e mais consolidada a respeito do papel da cultura e da ação do Estado. Criou modelos
para divulgar o discurso oficial e uma série de instituições que temos até hoje.
Um quarto ciclo foi o da ditadura militar, também com uma visão estratégica do ponto de
vista do planejamento do Estado e, conseqüentemente, na área cultural.
Qual é o desafio que enfrentamos hoje? Os quatro ciclos mencionados estão situados em
períodos autoritários e o desafio atual é, com certeza, a construção de políticas culturais
dentro de um perfil democrático. É importante ressaltar que o espaço da cultura, o espaço
simbólico é o espaço da dignidade humana e da cidadania, mas também é o espaço da
gestão pública, espaço de realização, e, com este foco, devemos pensar como podemos
contribuir para as estratégias de desenvolvimento local de políticas públicas. Ou seja, quando
pensamos em estratégias de equipamentos culturais em requalificações urbanas, temos que
pensar na construção desses equipamentos numa macroestratégia da cidade. Não podemos
pensar pontualmente em um único setor da cidade, mas sim dentro de uma estratégia de
construção e de requalificação para o desenvolvimento da cidade como um todo. Se isso
não for feito dessa maneira, corremos o risco de perder esses investimentos, de fazer uma
intervenção pontual num determinado setor da cidade, perdendo a estratégia de qualificação
da cidade. Pensar nessas políticas públicas é pensar de forma sistêmica, ou seja, na construção
de ingredientes que articulem os diversos fatores sociais que atuam nas cidades.
Então, pensar na requalificação significa, também, repensar esses fatores. Insisto que é
toda uma estratégia de ocupação das cidades por equipamentos culturais que deve ser
pensada globalmente, sistemicamente, para que a prefeitura e o Estado sejam indutores
desses investimentos, evitando que ações corporativas ocupem espaços das cidades com
os seus equipamentos culturais. É importante ver estes aspectos pensando na cidade
como um meio ambiente cultural.
Acredito que seja interessante fazer uma analogia com o meio ambiente. Sei que tivemos
um avanço importante na formulação de políticas públicas na área da cultura,
principalmente na década de 60, que ficou congelada até sermos ultrapassados,
conceitualmente, pela política pública do meio ambiente. Nas políticas ambientais existem
elementos importantes que dialogam com a questão urbana, com a questão das cidades,
e que podem ser úteis para as políticas culturais.
Temos que pensar a cultura dentro de um ambiente cultural, temos que pensar a cultura
dentro de uma ecologia cultural, ou seja, pensar a cidade como um espaço de meio
ambiente, como um espaço ecologicamente, culturalmente pensado. A cidade é uma
floresta de símbolos e a cultura tem o papel de articular esses símbolos e tentar transformar
a cidade em algo legível para os seus habitantes. A cidade também é o espaço do conflito.
Sendo o espaço da diversidade, é espaço do conflito. Assim, o papel do poder público
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como gestor público é cada vez mais o de transformar a cidade em algo legível, pois,
quanto mais legível para o cidadão, mais inclusiva ela é para aqueles que vivem nela. Uma
cidade na qual o cidadão não consegue reconhecer seus espaços, transforma-se numa
cidade que afasta as pessoas, que não cria seus espaços de sociabilidade. Por isso, é
importantíssimo pensarmos numa estratégia de desenvolvimento local.
Acredito que essas estratégias de implantação de equipamentos culturais devam ser
reforçadas dentro de eixos da política cultural e da economia da cultura das cidades. Antes
de pensar em construir centros culturais e museus, devemos pensar em uma pauta, num
plano estratégico de desenvolvimento e revitalização das cidades para depois analisar o
que isso significa do ponto de vista da materialização de espaços culturais ou não. Analisar
a cultura como fator de ampliação do setor de serviços; a cultura como geração de emprego
e renda; a cultura como geradora de riqueza para as cidades; a cultura como força
dinamizadora e inovadora da criação; a cultura como fator de desenvolvimento regional e
municipal; a cultura como valor afetivo de identidade local; a cultura como difusora da
imagem da cidade e a cultura como fator de melhoria da qualidade de vida do cidadão. Se
não conseguirmos refletir esta análise em um plano estratégico para as cidades na área da
cultura, corremos o risco de dispersar energia, dinheiro e investimentos. Os investimentos
na área da cultura devem estar dentro de uma estratégia macro da cidade. Não podemos
mais pensar somente no ponto de vista da fruição cultural. O investimento na cultura deve
estar ligado a uma estratégia do desenvolvimento local forte.
Democratizar o acesso da população aos bens culturais e ampliar o consumo cultural.
Temos que apresentar à população ampla oferta de serviços de atividades culturais e, ao
mesmo tempo, pensar na cidade como um fenômeno cultural e, por isso, tem que estar
totalmente articulada, cerzida, costurada pela cultura. Suas veias têm que estar alimentadas
pela cultura e é, talvez, pela cultura que poderemos mudar um pouco a cara das nossas
cidades. Estimular a demanda cultural é uma estratégia para atingir o público potencial da
cultura; apoiar a demanda de grupos existentes; apoiar criadores de grupos ativos; implantar
estratégias de redução do não-público.
Há sempre uma dúvida entre os gestores: "Por que as pessoas não vão aos museus?"; "Por
que não participam das atividades?"; "Por que não assistem aos eventos?". Em Barcelona,
por exemplo, as pessoas costumavam não ir à biblioteca. A diretora da Biblioteca de
Barcelona promoveu uma reunião com esse público para entender o porquê. Ao fim do
encontro foram distribuídos ingressos de cinema a fim de verificar se outra atividade
cultural interessaria. Aquelas pessoas, mesmo com ingresso, não foram ao cinema e não
voltaram à biblioteca porque, de fato, elas simplesmente não queriam ir à biblioteca nem
ao cinema. As pessoas não freqüentavam a área cultural de uma maneira geral.
Toda essa discussão pode sugerir que há uma indução aqui na construção de direitos
culturais. Mas o ministério que não cuida do direito não tem direito sobre si! Por que existe
o Ministério da Saúde? Essencialmente para cuidar do direito à saúde e de suas
conseqüências. O Ministério da Educação, para cuidar do direito à educação. O Ministério
da Cultura só terá a sua existência validada se ele de fato cuidar de direitos culturais.
Obviamente, o Brasil está muito longe de ter uma legislação cultural que possa demonstrar
esse caráter de direitos culturais, mas é fundamental que a gente construa essa pauta a
partir das cidades, que articulemos um plano estratégico de desenvolvimento da cidade a
partir, também, de uma ação legislativa que crie esse sistema de legislação de direitos.
A visão sobre as cidades é, desde a Bíblia, uma visão historicamente negativa. O que diz a
Bíblia? As primeiras cidades que ela descreve são cidades do mal, do caos. E esse imaginário
sobre as cidades está presente nessa nossa tradição judaico-cristã: a cidade é o espaço do
mal, é o espaço onde se perde a singularidade, a ingenuidade, a pureza. O desafio das
cidades é transformar a sua diversidade, as suas especificidades e os seus conflitos em
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Benjamim acreditava que seria possível pensar a cidade dentro de um ritmo ou de um
espaço e tempo que permitisse que o cidadão se apropriasse dela como algo menos
angustiante, menos opressivo, menos marcado pelo tempo do relógio. Talvez isso não seja
possível do ponto de vista formal, mas é um desejo e, como desejo, como utopia, temos
que buscá-lo. Obviamente, nossas vidas estão reguladas pelo trabalho, pelo tempo do
relógio, e isso acaba se traduzindo para como nos apropriamos das nossas cidades.
Acordamos, temos o tempo de ir de casa para o trabalho, vamos de um lugar para o outro
e não vivemos a cidade em seu espaço pleno. A modernidade nos transformou em corredores
de microespaços: casa, trabalho, trabalho, casa, escola etc., e não nos apropriamos dos
espaços da cidade como gostaríamos e deveríamos fazê-lo.
2005
energia positiva para a sua transformação. Não temos que temer a diversidade ou a discussão
da identidade. São questões paralelas, que se constroem e desconstroem a partir de um
jogo de encaixe e desencaixe. Não podemos temer o que nos empurra para a construção
de uma identidade e nem o que nos repele para a desconstrução, que são os conflitos e a
diversidade dentro do espaço da cidade.
Em As cidades invisíveis, Calvino dialoga com Marco Pólo, falando das pontes, das pedras
e dos arcos. Ele começa a pensar na cidade a partir de uma imagem da ponte. Mas e
aquele arco? Aquele arco é feito de pedras. E as pedras? As pedras compõem o arco e sem
as pedras não existe arco, e sem o arco não existe a ponte. A cidade é exatamente isso:
pontes entre diversas culturas. Acredito que deveríamos buscar essa imagem de construção
dos espaços como construção das cidades.
Outra imagem importante na literatura é o da Metamorfose, de Franz Kafka. Talvez essa seja,
para mim, uma das maiores analogias do cidadão no contexto urbano. Da transformação do
indivíduo numa barata, ele vai perdendo a sua identidade, vai se transformando fisicamente
e perde-se totalmente. Esquece quem é e as pessoas esquecem quem ele é. Do ponto de
vista de literatura moderna, é uma das expressões importantes para pensar o que é a angústia
da urbanização, do chegar na cidade, do indivíduo nas cidades.
Há luz, muita luz nos estudos da Escola de Chicago, que vêm num período posterior, mas
importante, para pensar a cidade num momento em que os Estados Unidos passam por
uma urbanização forte, desenraizadora dos indivíduos. As pessoas chegam à cidade e
perdem a noção de comunidade, dos arrabaldes, de poder conviver.
Temos, historicamente, alguns exemplos importantes na requalificação de espaços urbanos,
com foco nas macroestratégias de cidades. Barcelona é um deles. Pensou nas Olimpíadas
não como um evento esportivo, mas dentro de uma macroestratégia de requalificação da
cidade. A Olimpíada era uma "desculpa" para fazer uma série de mudanças em Barcelona,
modificando toda uma área da cidade que estava apartada e descaracterizada. Captaram
as Olimpíadas para Barcelona com o intuito de poder realizar essa qualificação e beneficiar
não só o espaço urbano, mas todas as instituições culturais. Em Barcelona, demoraram
mais quinze anos para buscar outra estratégia de requalificação para um outro espaço da
cidade. Desta vez utilizaram o Fórum Mundial das Culturas, numa excelente estratégia de
marketing. É importantíssimo pensarmos nesses exemplos e espero que o Rio de Janeiro
busque pelo menos algo parecido para os Jogos Pan-Americanos.
Outro exemplo pontual: o museu Guggenheim em Bilbao, Espanha. Bilbao não era nada
para o mundo da cultura, a região não era representativa na Espanha no que diz respeito
à circulação turística. O que aconteceu com Bilbao quando se construiu o museu? Não
apenas os espaços culturais, mas cidade foi totalmente requalificada devido ao fluxo
turístico que se reverteu para a cidade e para o norte da Espanha.
No Brasil, temos o exemplo de São Francisco do Sul, em Santa Catarina. O Museu Nacional
do Mar foi um gancho para a requalificação urbana, a recuperação do patrimônio de toda
a cidade e do seu patrimônio histórico.
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Temos, também o Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre, que vai criar um novo corredor
cultural no sul da cidade, puxando e descentralizando os investimentos culturais para
aquela região. Outro exemplo de Porto Alegre é o sambódromo, o famoso sambódromo,
que todas as cidades querem ter, assim como os museus de arte contemporânea. Não
tem uma capital que não fuja desse binômio: sambódromo e museu de arte contemporânea.
Parece que, sem isso, as cidades não se satisfazem como cidades. Não é um fenômeno só
daqui, é um fenômeno internacional. O fenômeno "museu de arte contemporânea" é um
problema relevante a ser estudado pelas áreas de gestão cultural, pois não há como
manter, do ponto de vista da indústria cultural das artes, a quantidade de museus de arte
contemporânea hoje existentes no mundo. Pode ser considerada uma endemia.
Voltando ao caso do sambódromo de Porto Alegre, houve uma discussão de mais de dez
anos sobre onde ele se instalaria. Por se tratar de um equipamento indutor de investimentos,
de processos de qualificação e de outros elementos que a cidade acaba criando, os
sambódromos não podem estar localizados em áreas centrais, que já estão adensadas e
que normalmente possuem equipamentos culturais. Num processo de requalificação dos
centros das cidades devemos pensar em tornar este esse espaço menos denso, porque o
centro é o espaço de conflito mais explícito da cidade. Todos os conflitos da cidade se
encontram no centro. Os movimentos sociais, onde fazem as suas manifestações? No
centro da cidade. Para onde converge o transporte público? Para o centro da cidade. A
cidade se encontra ali, seus conflitos também. Em Porto Alegre a discussão sobre tirar o
sambódromo de uma zona central para ir para outra região levou tanto tempo porque,
para o movimento negro, estaríamos desqualificando, marginalizando, as escolas de samba
no entendimento de que a visibilidade do samba, do movimento negro se dá no centro
da cidade, onde o espaço é consagrado. Esse tipo de argumento congelou a discussão e
a decisão de levar o sambódromo para o norte da cidade ficou demonstrada a importância
de um equipamento dessa magnitude: a região norte acabou se transformando no centro
da região metropolitana em Porto Alegre, qualificando toda uma região que se mostrou
atrativa do ponto de vista de logísticas, eventos etc.
Temos que analisar bem qual é o impacto que esse tipo de equipamento gera numa
determinada região. Vale, também, para o sambódromo de São Paulo. Na avenida Tiradentes,
construíam-se as arquibancadas com tubulares e também houve uma discussão sobre
para onde ia. Eu dirigia a área de eventos naquele momento e fizemos uma grande
discussão sobre se ele deveria ir para a zona norte - hoje, Campo de Marte, que é uma
pista de pouso. Ao final, mostrou-se acertado ir para a zona norte de São Paulo, tornando
menos denso o centro, que já contava com a Pinacoteca e outros equipamentos.
Portanto, na discussão sobre a construção de equipamentos culturais como estratégia de
requalificação, temos que nos desarmar e pensar em estratégias a longo prazo com foco
no desenvolvimento das nossas cidades.
FaustoNilo
Arquiteto e Urbanista
A CIDADE COMO UM POEMA
O senso de comunidade não tem representação material sem a forma urbana
correspondente. Esta forma urbana se revela fisicamente por meio da aglutinação de
artefatos relacionados com espaços públicos e paisagens naturais. Nessa malha de
agregação as pessoas se movimentam e realizam sua vida, seus sonhos, contatos e
intercâmbios. Estas estruturas formam as cidades. As cidades nunca são iguais e nunca
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vivem de forma isolada. Sempre estão em grupos com outras cidades, formando regiões
e tecem entre si uma rede hierárquica de papéis distintos. Historicamente começaram
quando caçadores-catadores, depois de milhares de anos de nomadismos, descobriram
que, com a criação de animais e a irrigação poderiam obter alimentação, em repetidos
círculos, permanecendo no mesmo território. Até hoje, estas formas de estabelecimentos
humanos apóiam nossa vida no planeta. Se iniciaram com populações de cerca de cem
mil habitantes, evoluindo posteriormente para agrupamentos de trezentos a quinhentos
mil e grandes concentrações de dois mil a três mil habitantes em estabelecimentos
neolíticos como Ain Ghazal, na Jordânia, que era três vezes maior que sua contemporânea
Jericó. Em nossa atualidade temos os exemplos de Calcutá, São Paulo e Cidade do
México, onde as populações alcançam números nunca antes imaginados.
Há nove mil anos os homens têm vida compartilhada, memórias compartilhadas e lugares
para compartilhar vida e memória. Por essa razão a arte urbana se aplica ao estudo das
funções denotadas espacialmente por via simbólica e estética, podendo-se até mesmo falar
de uma poética da cidade, projeto já demonstrado nos textos de Aristóteles. Neste sentido,
as cidades são poemas como também o eram uma equação algébrica ou um instrumento de
trabalho. Poética das coisas que são feitas por pessoas, mediante regras de feitura que não
são inscritas em leis naturais e sim desenhadas pela experiência. Poética das razões práticas e
dos diálogos de interesses entre componentes da população. Daí se origina um caráter de
lugar baseado em nossa experiência dos objetos poéticos e das pessoas que os usam,
considerando-se a eficácia de como essas coisas podem ser produzidas para servir ao que
elas têm que servir: o alto grau de intercâmbio na vida urbana. Entende-se, portanto, que a
coisa mais importante que as pessoas fazem nas cidades é trocar bens, serviços, dinheiro,
idéias, opiniões, conhecimento e amor, com outras pessoas. Essa troca depende de
proximidade, conectividade e boa legibilidade ambiental. Estes são os principais negócios
intercambiáveis das boas cidades.
Para ser uma boa matriz de intercâmbio a cidade não deve se tornar somente o espaço
bem incorporado para adultos e seus carros, mas também o espaço onde crianças, idosos,
pobres, cegos, deficientes, podem ter liberdade de movimento e acesso conveniente para
todas as boas coisas que ela pode oferecer. Ela é também o lugar da proteção de recursos,
garantidos como acessíveis às futuras gerações.
Como a comunidade urbana é por natureza um engenho de trocas e crescimento em
idéias, ética e conhecimento, quando falta-lhe a matriz de intercâmbio, inviabiliza-se a
estabilidade que deveria surgir das diferenças na transmissão cultural. Mesmo assim ainda
viveremos por muito tempo em nossas cidades, a construção do poema daquilo que seria
uma comunidade de recompensa, realçando nas atividades de seus habitantes o maravilhoso
tecido que se expande enquanto replica a si próprio. É a orgânica estrutura que se forma
pela agregação de objetos individuais que podem ser desenhados e construídos por pessoas
diferentes em diferentes tempos, para servir a diferentes gostos. Se em nossas vidas essa
poética não se realiza num ambiente legível a qualquer cidadão, de pouca serventia serão
as estatísticas para a avaliação da qualidade de vida na cidade em que estamos vivendo.
Fausto Nilo
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ECOA-Escolade
Cultura,Comunicação,
OfícioeArte
C lodoveuArrudaSobralense
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Vice-prefeito da cidade de
Sobral e Ex-Secretário de Cultura e Turismo de Sobral.
Gostaria de falar sobre a ECOA (Escola de Cultura, Comunicação, Ofício e Arte) e a
política de preservação e revitalização do patrimônio edificado em Sobral. Na verdade, a
gente não veio falar só sobre a ECOA, mas a proposta feita vincula as atividades voltadas
nessa escola para a questão da preservação. De qualquer modo, eu não poderia falar
dessa nossa experiência sem fazer um pouquinho de retorno. Na palavra anterior, falavase da construção de equipamentos culturais como estratégia de requalificação social de
bairros e de cidades. Vimos as brilhantes intervenções que foram feitas e eu poderia até
dizer assim: ‘bom, diante disso, nós poderíamos, ao ficar ouvindo aquelas reflexões,
considerar que a experiência de Sobral seria menos significativa’. A ECOA não é um
equipamento para requalificar o seu entorno. Na verdade, o que aconteceu é que, a
partir de 1997, em Sobral, foi necessária uma política de refundação do próprio município.
Se a gente volta um pouco ao passado, durante muitos anos, o que aconteceu foi um
processo de reestruturação do município na suas mais amplas e diversas esferas. Não
apenas na pública, mas nas atividades da sociedade civil.
Nossa tarefa não foi somente requalificar um bairro em torno de um equipamento. O
que desejávamos era reinventar a cidade com base em novos referenciais, novos
parâmetros. Era fundamental isso. O que predominava até então era uma política de
ausência, na verdade, as políticas públicas inexistiam. O Estado na esfera municipal
inexistia. Havia uma espécie de seqüestro do poder público pelos interesses da sociedade.
E aí é que vem um aspecto que eu considero importante nesse processo de refazer, de
recriar a idéia de um município, de uma cidade.
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A cultura teve um papel fundamental e acho que talvez seja um pouco um diferencial
que Sobral tem experimentado nessa área. É o caso, por exemplo, do plano plurianual.
Em nossa gestão quando discutimos o orçamento do município, já o fazíamos de
forma participativa, levando em consideração o papel estratégico da Secretaria da
Cultura. Ela já surge com essa tarefa, não apenas de organizar as atividades
artísticas, a dança, a música, o teatro etc. Mas sua maior missão era a de contribuir
para a criação de uma nova cultura política no município de Sobral. Isso foi
fundamental. Para vocês terem uma idéia, a coordenação do plano plurianual da
Prefeitura foi conduzida pela Secretaria de Cultura de Sobral. Você poderia perguntar
quais as relações entre orçamento e cultura. Eu poderia responder que construir o
orçamento de um município é uma expressão cultural. Em geral, esses orçamentos
são construídos em escritórios de contabilidade, geralmente nas grandes capitais,
longe dos indivíduos que deles se servirão. Isso é um erro. Às vezes, os grandes
escritórios, que destroem as cidades no interior, estão sediados na capital. Mas, nem
sempre o melhor modelo de cidade é o da capital. Pelo contrário. Talvez ele nos sirva
para nos mostrar o que não deve ser feito. Foi exatamente em 1997 que criamos o
novo modo de ser e pensar a cidade, um modo de ser que não negue nossas referências
e raízes. É possível construir novos caminhos, propor novas alternativas, fazer diferente.
É possível construir uma cidade que não produza a domesticação de seus habitantes,
mas sim que os tornem protagonistas de seus próprios destinos.
Essa tarefa é essencialmente cultural, embora não se deva descuidar do fomento às diversas
linguagens artísticas. Senão as pessoas nos cobrariam: ‘e o Salão de Sobral?’, ‘o festival de
reisado?’, ’o carnaval?’, ‘a semana santa?’, ‘a dança?’, ‘o teatro?’, ‘a literatura?’. É importante
fomentar a diversidade cultural mas é preciso pensar anteriormente na liberdade do fazer
cultural, na ambiência do artista que compõe a música que dança, que escreve, que
contracena. Para tanto o poder público possui grande responsabilidade e não pode se
eximir de sua tarefa.
Nós podemos organizar um carnaval, um desfile de escola de samba de um jeito,
mas também podemos organizá-los de outro. Falo de um novo jeito de ser e de
uma nova forma de criar pontes entre o poder público e a sociedade. Esse carnaval
pode ser organizado de uma maneira diferente, criando uma espécie de teia que
reproduz as relações sociais. Dessa forma, a expressão cultural pode reproduzir os
sentimentos de cumplicidade, de compartilhamento da própria sociedade. A ECOA
é fruto de uma reflexão coletiva. Não é um equipamento, um prédio. A ECOA é
uma idéia, ela se materializa também através da edificação, mas sua maior presença
é intangível pois está nos valores e nos comportamentos que a orientam. Vale
ressaltar aqui o seu maior pensador: o Augusto Pontes que foi secretário de cultura
do Estado do Ceará. Aí a história de ECOA vem sendo construída graças à
contribuição da população de Sobral mas também de alguns pensadores e
profissionais da cultura: Augusto Pontes, Romeu Duarte, Roberto Galvão, Fausto
Nilo, entre outros nomes.
Acreditamos que a forma parceira de trabalhar é também um traço cultural que pode ser
cultivado nas cidades.Criar relações não apenas com as pessoas, mas também com as
instituições: a Secretaria de Cultura do Estado, a Secretaria de Desenvolvimento Local e
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Regional, o Iphan, cooperação cultural com países como Portugal, França, Cuba etc.
Enfim, esse é o entendimento de como se expressa, de como se realiza essa idéia chamada
ECOA. O tempo e a idéia propostos aqui me conduzem à questão da revitalização do
patrimônio edificado. Vejamos.
Nós poderíamos ter criado uma ‘Secretaria das Artes’ voltada unicamente às linguagens
artísticas, mas a nossa opção foi por construir em Sobral, pela primeira vez, uma
Secretaria da Cultura capaz de interferir nas questões maiores relativas à cidade e à vida de
seus habitantes. Resolvemos olhar para a cidade.
Nós não temos que ficar fora, por exemplo, do plano diretor. Como é que vai se
discutir um plano diretor de uma cidade sem uma intervenção firme e atuante da
Secretaria de Cultura? Como se pode pensar uma cidade se a cultura é a mais inventiva,
a mais interessante criação, ou melhor, é a própria cidade? Como é que nós podemos
pensar no desenvolvimento urbano da cidade, entregando-a somente aos engenheiros
e arquitetos? Isso não mera tarefa de urbanista ou de arquiteto; é tarefa do cidadão, é
tarefa da população, é tarefa de todos nós, das nossas inteligências conectadas e
articuladas. Vamos decidir que cidade nós queremos, e que indivíduos nela irão viver.
Vejamos o caso do Salão de Artes Plásticas de Sobral. Nós não o consideramos um
mero evento mas acreditamos que ele pode contribuir nesse processo de recriação da
cidade que queremos: uma cidade humanista, uma cidade rural, uma cidade
democrática, uma cidade saudável. Então nós saímos do Salão da Casa da Cultura,
onde nós nascemos, e fomos para as ruas. E, pela primeira vez, se realiza no Ceará um
Salão nas ruas com intervenções urbanas. E aí você dialoga com a cidade e as pessoas
que estão andando na rua, interagindo com a cidade. De repente, você, que é pedestre,
compõe o desenho do próprio Salão. Estamos discutindo aí uma cidade a partir da
metáfora de um Salão de Arte Contemporânea, uma cidade que ao mesmo tempo
encontra-se tombada pelo patrimônio nacional mas que se renova a partir de
intervenções estéticas contemporâneas.
Esta é a cidade que nós queremos. Uma cidade que é do passado, uma cidade de
tradição, que se liga às suas raízes, mas uma cidade que quer o futuro, que constrói o
futuro, que quer construir, quer se fazer contemporânea e de melhor qualidade. Então,
essa é a nossa orientação para uma política de preservação, preservação que não
significa estagnação mas sim, desenvolvimento, transformação. É preciso tratar a cultura
de forma tranversal e intersetorial. Cultura é saúde, é urbanismo, é segurança pública,
é educação, é desenvolvimento econômico. E preservação não deve se limitar à
conservação de prédios, casarios e igrejas. Preserva-se também os fazeres, os saberes,
as socialidades, a oralidade, as formas de estar na cidade. Preservar é também cuidar
da natureza, observar as mudanças ambientais. Então, na hora de uma intervenção
fizemos um concurso nacional, que foi exatamente a requalificação e revitalização da
margem inteira do rio Acaraú. Sobral nasceu por causa do rio Acaraú. O rio Acaraú é
o mais velho sobralense. Depois dele veio a cidade. E, de repente, a cidade se colocou
de costas para o rio, usando o rio como esgoto. Nós temos que mudar isso. Reconstituir
a nossa relação afetiva com o rio. Para refazer essa relação é necessário adotar atitudes
concretas de proteção desse bem natural que também compõe nossa memória e
identidades locais.
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Um último ponto. Quando nos referimos à recuperação da memória, é preciso estendê-la
a todos, não somente à memória das elites da cidade. É preciso que todos se reconheçam
na cidade e possam participar da sua reconstrução. A restauração não necessariamente
tem que ser obra de especialistas formados na Itália, França ou Alemanha. Precisamos
produzir pedreiros, marceneiros, pintores que refaçam esta memória edificada através de
uma escola de artes e ofícios.
Você dá uma capacitação profissional a um adolescente em situação de risco e ele
recupera o sentido de cidadania, passando a desenvolver uma nova relação com a cidade.
Temos um belo conjunto arquitetônico em Sobral. O Teatro São João é uma beleza. É
importante registrar o apoio do governo federal e estadual na restauração do teatro.
Na verdade, tudo que eu falei até agora diz respeito à ECOA. A Escola era uma usina de
refinamento de algodão enorme que fica à margem do rio Acaraú. No conjunto cultural
temos o Museu Madi, a Biblioteca Pública, a Escola de Artes e Ofícios, salas de formação
artéstica e cultural, espaços de convivência etc. Mais do que um conjunto cultural, a
ECOA inaugura um novo olhar sobre a cidade. É isso que nos anima.
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EstratégiaseAções
doCentroDragão
doMardeArtee
CulturanaCidade
deFortaleza
AugustoCésarFariaCosta
Presidente do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
"Um espírito malicioso definiu a América como um país que passou da barbárie à decadência
sem conhecer a civilização. Poderíamos, com mais exatidão, aplicar a fórmula às cidades
do Novo Mundo: elas vão do frescor à decrepitude sem passar pela maturidade". Essa
frase que provavelmente encontra eco na memória de alguns de vocês é de autoria do
antropólogo Claude Lévi-Strauss e abre o 11º capítulo de seu famoso livro, "Tristes trópicos".
O capítulo intitula-se "São Paulo" e reflete as primeiras impressões de Lévi-Strauss sobre a
cidade, datadas de 1935, quando da chegada da missão francesa ao Brasil, para participar
na fundação da Universidade de São Paulo.
De lá até os nossos dias a reflexão do grande pensador francês confirmou-se como aguda
profecia do mal crônico das metrópoles brasileiras.
Enquanto isso, na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará, o professor
Liberal de Castro dizia para sucessivas gerações de estudantes um aforismo que o tempo
também veio, duramente, confirmar: "a cidade de Fortaleza, até os anos 50, civilizava
quem aqui chegava. Dos anos 60 em diante ela foi perdendo progressivamente essa
característica e passou a sofrer influências, nem sempre positivas". Poderíamos, com a
devida vênia ao Mestre Liberal de Castro, adensar o prognóstico e afirmar que na realidade
Fortaleza foi sendo barbarizada e tendo sua memória e suas referências culturais
aceleradamente destruídas.
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O planejado processo de anulação da identidade urbana e da memória histórica foi deflagrado
pelo emergente triunfalismo dos fundamentalistas do mercado que atuam sempre assumindo
uma atitude de infalibilidade e arrogância que busca inocular na sociedade a noção de que
todas as idéias, atitudes e valores que não possam ser monetarizados estão deslocados e
devem ser desprezados como inúteis pela simples razão de que não se encaixam nos
estreitos limites dessa ideologia.
2005
Nesse 2005, a síntese perfeita da cidade está contida no conceito hai-kai do cientista e
artista plástico Hélio Rôla: "Fortaleza é nossa debilidade".
A pensadora canadense Jane Jacobs, famosa por seus estudos sobre planejamento urbano
e a arquitetura da cidade, ao refletir sobre os impactos e conseqüências da deterioração
cultural, faz uma série de instigantes advertências em seu mais recente livro - "Dark Age
Ahead", ou, "A Próxima Idade das Trevas", lançado no ano passado e ainda sem tradução
em português. Para ela, os cinco pilares da sociedade urbana moderna que já exibem fortes
sinais de decadência são: 1) a família e a comunidade; 2) a educação superior; 3) ciência
e tecnologia; 4) representação governamental; e 5) a auto-regulação das profissões.²
O norte-americano, o sociólogo Abraham Maslow³, criador da hierarquia das necessidades
diz que a compreensão do mundo e da produção dos bens materiais e culturais nas
sociedades urbanas acontecem sempre em função das ferramentas que são empregadas
para processar as informações e apreender a realidade. O que não é abrangido no espectro
referencial tende a ser esquecido e apagado. Então, se a ferramenta mais utilizada para
medir os valores é a monetarização, os produtos que não são facilmente etiquetáveis com
um preço, ou que não estão entronizados como objetos de desejo da escalada consumista,
começam a ser desvalorizados e progressivamente descartados.
Se a sociedade não percebe, ou é induzida a não perceber a importância da cultura e das
artes, então as fronteiras entre civilização e barbárie vão ficando cada vez mais tênues e a
história contemporânea das grandes cidades brasileiras, acaba demonstrando à exaustão as
imensas derrotas do processo civilizatório e a escalada da barbárie e da indiferença social,
com o colapso dos processos de solidariedade comunitária, a reprodução acelerada do
egoísmo, a expansão da ignorância e a banalização da violência.
Ao analisarmos o processo de degradação das grandes cidades é importante refletir
sobre a observação do historiador paulista Elias Thomé Saliba. Segundo ele, "o drama da
modernização das cidades latino-americanas se constitui, precisamente, no choque coletivo
que interrompe o fluxo das experiências tradicionais". Ou seja, o crescimento desenfreado
das cidades, fruto direto da escolha por um modelo de, digamos, desenvolvimento, que
não contempla a inclusão social, resulta da ação de pessoas ou até de um grupo restrito
de pessoas que eventualmente poderiam inverter o processo de caos porque detém um
imenso poder e representam a chamada elite mas na realidade acabam favorecendo a
exclusão, a divisão do espaço urbano em guetos e fortalezas, e no dizer da arquiteta e
urbanista Raquel Rolnik, "sitiando a cidade e transformando seus espaços públicos em
territórios de guerra".
Ao contrário de São Paulo, que transitou de metrópole industrial à mega-cidade prestadora de
serviços, Fortaleza não se constituiu como uma cidade tipicamente industrial na sua formação
urbana, mas progrediu na sua vocação de cidade comercial, tentando consolidar-se como uma
cidade de serviços, com destaque para as atividades turísticas, de lazer e entretenimento.
Segundo o arquiteto e urbanista cearense Joaquim Cartaxo, dois movimentos podem ser
percebidos claramente no cenário urbano de Fortaleza, notadamente a partir de 1985: de
um lado, a ampliação do setor terciário a partir da atração de novas empresas e expansão
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econômica das existentes que se concentraram no Centro da cidade e no subcentro da
Aldeota; de outro lado, o deslocamento de indústrias para outros municípios. Para Cartaxo,
"além dessa condição de pólo de oportunidades de negócios, nesse setor concentram-se
preponderantemente as camadas de alta renda e as melhores condições de infra-estrutura
e equipamentos da cidade. Na direção oeste, a cidade expande-se produzindo periferias
urbanas sub-equipadas onde mora a grande maioria da população.
A cidade equipada e a sub-equipada convivem de forma desigual e combinada, sem
antagonismos. A desordem espacial desse processo é aparente, pois os aspectos 'disfuncionais'
do desenvolvimento desigual contribuem com a acumulação capitalista. A produção de
periferias desprovidas de infra-estrutura e equipamentos é um dos meios para tornar o
investimento de capital mais lucrativo em outras áreas da cidade".
Ao tratar do mesmo problema abordado por Joaquim Cartaxo, a urbanista Raquel Rolnik
usa a classificação de "cidade legal" para as regiões ricas e com infra-estrutura da cidade de
São Paulo, e "cidade ilegal" para as regiões pobres e plenas de precariedades, onde a população
defronta-se com imensas dificuldades para ter acesso à educação, trabalho, cultura e lazer.
Nesse cenário, comum à maior parte das metrópoles brasileiras, instala-se um processo de
esquecimento, de estranhamento da cidade e de suas raízes históricas e culturais. Quando
não estimulamos e não reconhecemos a cultura, ela tende a desaparecer. Torna-se comum
que as pessoas não tenham idéia das manifestações culturais que acontecem no lugar onde
vivem. Terminam sendo estrangeiros em sua própria terra. Estabelece-se para uma imensa
parcela da população um vazio do tempo social e um ofuscamento da memória. Nessa
vacuidade medram, céleres, a ignorância, a violência, o cinismo, a indiferença face aos
destinos da cidade. Para a população, o espaço público transforma-se mais e mais em
espaço de criminalidade, perigo, insegurança, abandono. O tecido urbano e social é rompido,
muitas vezes além da possibilidade de reconstituição.
Jane Jacobs diz que o domínio da escrita, a universalização da imprensa e a onipresença da
Internet, tudo isso nos dá uma falsa sensação de segurança sobre a inabalável permanência
da cultura. Na realidade, a maior parte dos milhões de detalhes que constituem uma
determinada cultura não são transmitidos pela escrita ou por artefatos audiovisuais. Ao
contrário, as culturas vivem e são enriquecidas, geração após geração, graças à transmissão
oral e aos exemplos vivos de seus mestres.
Como recipientes culturais ou como produtores de saber as pessoas vivenciam incontáveis
aprendizados, cheios de nuances e assimilados através da experiência direta ou coletiva.
Assim, uma cultura viva está permanentemente em mudança, sem, no entanto, perder o
papel de moldura e contexto da própria mudança.
Daí porque a reconstrução cultural não é a mesma coisa que sua restauração. Após um
processo de decadência, de "Idade das Trevas", a amnésia coletiva dos cidadãos, o ofuscamento
da memória do qual falávamos anteriormente, transforma-se em estado permanente e
profundo. E aí então as perdas mais desastrosas são as que envolvem os conceitos de
justiça, dignidade, vergonha, estima e solidariedade.
Nesse conflagrado espaço urbano tudo termina sendo banalizado e, às vezes, sequer
percebido. Na culminância desse processo é como se as imagens instantâneas da realidade
nos distanciassem da própria realidade. A modernidade, o brilho feérico da cidade, o falso
glamour de sua geografia violentada por muralhas de arranha-céus, transforma-se de fato
num estado de perda.
É nessa cidade que o centro cultural pensado pelo antropólogo Paulo Linhares e projetado
pelos arquitetos Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon, começa a ser discutido em 1994,
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O conjunto arquitetônico de 16 mil metros quadrados de área construída e cerca de 30
mil metros quadrados de área total é considerado o maior centro cultural do país e está
instalado na Praia de Iracema, primeira zona portuária de Fortaleza e talvez por isso mesmo
bairro tradicionalmente identificado com a boêmia. O nome do centro presta homenagem
ao jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, que liderou o movimento
que impediu o desembarque dos escravos no porto de Fortaleza em 1881, e a revolta
popular armada que derrubou a oligarquia Accioly em 1912. O herói libertador, após
esses dois episódios, ganhou o título de "Dragão do Mar".
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tem sua construção iniciada em 1995 e concluída em 1998. A inauguração, contudo, só
aconteceria em 29 de abril de 1999.
Integrado ao centro histórico da cidade de Fortaleza, o Dragão é um ambiente arquitetônico
privilegiado, recebendo anualmente cerca de um milhão de pessoas em seus mais diversos
eventos e programas e reunindo milhares de artistas. Proporciona intensa inclusão cultural
na região metropolitana de Fortaleza, recebendo mensalmente mais de 10 mil alunos de
escolas públicas e privadas, e desenvolvendo diversos programas gratuitos ou com ingressos
a preços subsidiados. A partir do segundo semestre de 2004, O Dragão estendeu sua
atuação ao interior do estado.
A programação do centro cultural garante a oferta aos diversos segmentos da população
local, nacional e internacional de oportunidades de lazer, produção, criação, formação,
pesquisa e difusão artístico-cultural. Para isso o Centro Dragão do Mar dispõe de variados
espaços destinados à realização das mais diferentes atividades culturais e artísticas, a
saber: Memorial da Cultura Cearense (MCC), museu antropológico cultural com seis
grandes galerias e um mini-auditório, instalados numa área de 800 m²; Museu de Arte
Contemporânea (MAC), formado por um conjunto de 13 salas, ocupando uma área de
700 m² e equipamentos de qualidade igual ou superior aos mais qualificados museus do
país; Núcleo de Acervo, que atua na definição, orientação e coordenação de projetos para
ações de conservação dos acervos artísticos, culturais, imagéticos e documentais do MAC
e do MCC e ainda da Coleção de Arte do Estado do Ceará; Núcleo de Documentação e
Registro, destinado à catalogação e preservação da memória das atividades desenvolvidas
no CDMAC; Núcleo de Comunicação, com assessorias de Imprensa, Relações Públicas,
Atendimento a Artistas e Produtores; Teatro Dragão do Mar, com 246 lugares, dotado de
equipamentos de cena, luz e som de superior qualidade, possibilitando a exibição de
produções no âmbito da música, do teatro e da dança; cinemas - duas salas de cinema,
com 113 e 163 lugares, respectivamente, mantidas e administradas por meio de parceria
com o Unibanco; Planetário Rubens Azevedo, com cúpula espelhada de 10 metros de
diâmetro e sofisticados equipamentos, constituindo-se como um dos mais modernos do
país, com capacidade para 90 pessoas; Anfiteatro Sérgio Mota, com capacidade para 900
pessoas; Espaços e Salas de Usos Múltiplos, como o Auditório com 110 lugares, as Salas
de Aula e o Ateliê de Arte, a Praça Historiador Raimundo Girão (Praça Verde) com
capacidade para grandes shows e concentração de até 8.000 pessoas, o Espaço Rogaciano
Leite Filho (palco sob a passarela) e o Espaço Mix, uma área multifuncional para exposições
de arte e eventos diversos. O acesso a todos esses espaços é extremamente democrático.
A maior parte dos equipamentos têm preços de ingressos subsidiados e essa política é
estimulada junto aos parceiros locais e nacionais.
Buscando resgatar as celebrações coletivas, o espírito de convivência e a troca de experiências
culturais e artísticas que a cidade foi perdendo gradativamente, o Centro Dragão do Mar
se propõe como continuação da rua. Assim, o longo corredor que liga a avenida Dom
Manuel até a Praça Almirante Saldanha é uma verdadeira rua aberta a todos, um lugar de
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livre trânsito que funciona como um pólo de difusão cultural, espaço de lazer e também
como núcleo de atração dos movimentos que pensam a melhoria da qualidade de vida na
cidade, propiciando o resgate de sua memória histórica e cultural e se estabelecendo
como ponto qualificado para a expressão das várias linguagens artísticas contemporâneas.
A administração do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura é exercida pelo Instituto de
Arte e Cultura do Ceará, uma organização social sem fins lucrativos, vinculada à Secretaria
da Cultura do Estado do Ceará. A equipe de trabalho é constituída por 89 pessoas que
cuidam das tarefas de planejamento, capacitação, ação e produção cultural. Os serviços
de vigilância e zeladoria são terceirizados e subordinados a uma prefeitura.
Dentro da estratégia de ação cultural do Dragão do Mar são mantidos hoje 16 programas,
alguns dos quais propostos e mantidos diretamente por grupos independentes e organizações
não governamentais.
Hoje, programas como "Quinta com Dança", "Planeta Hip Hop", ou "RPG no Dragão", entre
outros, têm expressão própria e representam uma conquista de grupos organizados com
espaço garantido por tempo indeterminado na programação do centro cultural.
Ao mesmo tempo, são mantidos projetos de geração de emprego e renda de grande
relevância, principalmente para os moradores da comunidade do Poço da Draga. São eles:
Projeto Galera do Dragão - iniciado em 2003 esse projeto envolve 82 adultos de ambos os
sexos, chefes de família residentes na comunidade Poço da Draga, na vizinhança do
CDMAC e parte do que se convencionou chamar de entorno da Praia de Iracema. Desse
total, 53 são vendedores ambulantes e 29 guardadores de veículos. Eles foram treinados
pelo CDMAC, Polícia Militar do Ceará e AMC. Além de qualificar profissionalmente essas
pessoas o projeto visa, sobretudo, uma tomada de consciência, pontuando de maneira
objetiva questões que fomentam a violência e como as mesmas podem ser contornadas
ou superadas. Criou-se assim uma identificação mais responsável com o ambiente onde
vivem e o local de trabalho. Além de ter garantido emprego e renda em várias áreas do
CDMAC como o Anfiteatro e a Praça Verde, espaços de estacionamento e várias áreas de
circulação de público, os participantes do "Galera do Dragão" terminaram também por
atuar como guias turísticos informais e guardiões do centro cultural.
Projeto de Formação de Recreadores Infantis - esse projeto é voltado para a formação de
monitores de arte-educação para o público infantil, através da contratação de bolsistas
(alunos da rede pública de ensino residentes na comunidade do Poço da Draga) que
atuam inicialmente como estagiários nos programas "Brincando no Dragão" e "Pintando no
Dragão". Estes programas têm como objetivo resgatar as brincadeiras populares e estimular
jogos com brinquedos feitos a partir de sucatas, e também a criação artística através de
atividades de pintura e desenho livre. Os programas acontecem aos sábados e domingos.
Criado em agosto de 2003, até dezembro de 2004 o projeto havia formado 70 recreadores
de nível médio. Atualmente estão contratados 15 monitores/estagiários.
Projeto de Formação de Monitores para os Museus - esse projeto visa a formação de
monitores que irão atuar nos museus do CDMAC (Memorial da Cultura Cearense e
Museu de Arte Contemporânea). Atualmente estão contratados 20 jovens universitários
das áreas de ciências humanas (Pedagogia, História, Letras e Geografia) e artes plásticas.
O objetivo é manter permanentemente um sistema de monitorias temáticas para os
museus, com uma monitoria direcionada para crianças, outra para jovens e outra para
adultos. O contrato de trabalho é de um ano e pode ser renovado por igual período. O
CDMAC implantou o sistema de monitorias para o museu a partir de 2003 e até hoje 68
jovens já participaram do projeto.
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Em 2004 foram realizados 78 eventos de capacitação, entre cursos, oficinas, seminários e
residências, desenvolvidos em Fortaleza e em outros municípios do interior do Estado, para
um público de 2137 pessoas.
2005
A cultura, com seus muitos significados e seus bens tangíveis e simbólicos, tem um papel
estratégico a desempenhar na construção de uma sociedade que se almeja mais pacífica e
solidária. Nesse sentido e, necessariamente voltando o olhar para nós mesmos, para a
nossa realidade, destacamos as intervenções realizadas no ano de 2004 pelo setor de
Capacitação do CDMAC e, também, aquelas que estão projetadas para 2005.
Esse plano de trabalho, estratégico para o desenvolvimento da área da arte e da cultura no
Ceará, além de diverso traz em si ações de capacitação estruturantes e potencialmente
transformadoras das diferentes realidades onde iremos intervir.
Ainda na área de Capacitação do CDMAC deve ser destacado um evento que teve sua
primeira edição em 2004 com extraordinário êxito: o Festival de Música da Ibiapaba, com
o conceito básico da formação de iniciantes e o desenvolvimento e aperfeiçoamento de
profissionais no campo da música popular.
Realizado pela primeira vez no período de 23 a 31 de julho de 2004 no município de
Viçosa do Ceará, situado a 350 quilômetros de Fortaleza, encravado a 750 metros de
altitude na serra da Ibiapaba, o festival contou com a participação de 600 alunos, entre
jovens e adultos, 32 oficinas musicais, 8 shows nacionais, 12 shows regionais, 5 shows
pedagógicos monitorados por professores e 1 show erudito, totalizando cerca de 36 horas
de apresentações musicais com o comparecimento de um público de 60.000 pessoas. Os
destaques no cenário musical nacional e local foram: Luiz Melodia, Orquestra de Câmara
Eleazar de Carvalho, Cristiano Pinho, Marimbanda, Cláudio Nucci, Fausto Nilo, Roda de
Som, Encontro de Mestres e Paulo Moura. A edição 2005 do Festival já está programada
para acontecer em Viçosa, de 22 a 30 de julho.
Outro destaque que serve como um dos melhores exemplos da descentralização da ação
cultural do Dragão foi o Curso "Cantaria, a Arte de Esculpir em Pedra". Esse curso, proposto
pela Secretaria da Cultura e realizado pelo CDMAC em parceria com a Escola Profissional
das Artes e Ofícios Tradicionais da Batalha (Portugal), o Instituto CENTEC, o SEBRAE, a
Prefeitura de Limoeiro do Norte, a Federação das Indústrias do Estado do Ceará, o Sistema
Fecomércio, a empresa cearense Carbomil, e a Fundação Calouste Gulbenkian, introduziu,
de maneira pioneira e inovadora, o ofício da Cantaria, capacitando, em 600 horas de aulas,
13 jovens artífices das cidades de Fortaleza, Russas, Sobral e Limoeiro do Norte.
A ação desenvolvida pelo curso de Cantaria é apenas parte do programa "Descentralizando
a Formação Profissional na Área de Arte e Cultura". O objetivo dos cursos propostos nesse
programa é o de contribuir para uma melhor qualificação e desenvolvimento cultural da
comunidade em diferentes regiões do Estado do Ceará. Em 2004, o Centro Dragão do
Mar, através de seu setor de Capacitação, executou o projeto com um total de 1.604 horasaula, atendendo a 766 jovens e adultos nos municípios de Fortaleza, Juazeiro do Norte,
Guaiúba, Itapipoca, Sobral, Beberibe, Crato, Aracati, Granja, Nova Olinda e Tauá. Os cursos
fornecidos cobriram as áreas de Teatro, Música, Audiovisual, Dança, Design, Literatura,
Artes Visuais e Gestão Cultural.
Em 2005, o Programa Formando e Profissionalizando o Cidadão em Arte e Cultura, prevê
a realização de 143 eventos de capacitação, formatados em cursos, oficinas, seminários,
residências e estágios, com desenvolvimento previsto para a região metropolitana de Fortaleza
e também outras cidades do interior do Ceará, onde pretendemos atender 8.000 pessoas.
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Na área específica da circulação cultural o programa mais notável executado pelo Dragão é
o Circuito Ceará de Cultura. Esse programa aconteceu em 2004 em 15 municípios cearenses
e dois grandes bairros da região metropolitana de Fortaleza. Mobilizou 842 artistas e atingiu
um público de 67 mil pessoas no interior do estado e 50 mil na capital. Acontece
paralelamente às feiras do SEBRAE-CE e transformou-se em um case nacional, sendo único
no país.
Para executar todas as ações programadas para acontecer na sede do centro cultural na
Praia de Iracema, em outros bairros da região metropolitana de Fortaleza, e nos municípios
do interior do estado, o Dragão construiu uma rede de parcerias.
Em 2004, nossos principais parceiros foram: o Unibanco, com o programa "Cine Dragão";
o Grupo Gerdau, com a exposição Iberê Camargo; a FUNARTE, com o Projeto Pixinguinha;
a Petrobras, com o Projeto MPB Petrobras; o Banco do Nordeste do Brasil, no I Festival de
Música da Ibiapaba; o SEBRAE, Banco do Nordeste e o SESC, no Circuito Ceará de Cultura;
o Instituto CENTEC, o SEBRAE, a Prefeitura de Limoeiro do Norte, a Federação das Indústrias
do Estado do Ceará, o Sistema Fecomércio, a Carbomil e a Fundação Calouste Gulbenkian,
no Curso de Cantaria; o SESI, no Projeto SESI Bonecos do Brasil.
Para 2005 já garantiram parceria: o Unibanco; a FUNARTE, com a nova versão do Projeto
Pixinguinha; o Banco do Estado do Ceará, no II Festival de Música da Ibiapaba; a Petrobras
na nova versão do Projeto MPB Petrobras e no II Festival de Música da Ibiapaba; o Itaú
Cultural, com o programa Rumos; o SEBRAE, o Banco do Nordeste do Brasil e o SESC, com
o Circuito Ceará de Cultura; e o Banco do Brasil, com o Circuito Cultural Banco do Brasil.
Investir nos programas do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura deixou de ser um risco
e transformou-se, principalmente a partir de 2004, na certeza de incorporar-se a um projeto
vitorioso e referendado pela população de Fortaleza.
Ao longo de seis anos, desde a inauguração deste centro cultural, a cidade foi percebendo
pouco a pouco a importância de ter, no entorno da Praia de Iracema, um núcleo
civilizatório, a melhor barreira contra os processos de degradação e de barbárie urbana.
E a resposta do público não poderia ser mais direta e incontestável. Em 2004 este
centro cultural recebeu mais de um milhão de visitantes, a melhor marca de circulação
desde sua fundação, em 1999.
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EVENTOS
1999
2000
2001
2002
2003
2004
1.470
1.731
1.829
2.067
2.156
2.099
PÚBLICO
1999
2000
2001
2002
2003
2004
809.118
884.302
851.282
976.368
856.650
1.046.670
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I
Cultura e Cidades
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1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
ARTIST
AS
ARTISTAS
ENVOL
VIDOS
ENVOLVIDOS
8.095
8.160
6.443
8.419
10.249
8.419
Mas esse é um trabalho que apenas se inicia. É ilusório imaginar que o Centro Dragão do
Mar está consolidado. Nenhum projeto cultural tem suficiente estabilidade em menos de
uma década de atuação. E ainda assim tem de manter presente o desafio de atualizar
permanentemente suas interlocuções com a sociedade. Portanto, a partir de agora, é
preciso olhar para as experiências desses primeiros seis anos e (re)discutir os nexos norteadores
desse projeto, redimensionando os eixos estruturantes e os conceitos essenciais que devem
perpassar todas as atividades em seus diversos equipamentos.
Nesse sentido, simbolicamente, um desafio especial está no plano dos museus, as jóias
mais preciosas de qualquer centro cultural, em qualquer lugar do mundo. Os museus são
o lócus por excelência para a guarda, exibição e reflexão das tradições, artefatos e expressões
artísticas. Contém a síntese da produção cultural popular e também servem como o melhor
espaço para o fluxo de idéias e linguagens das artes visuais contemporâneas. São centros
formadores de pensamento, sinalizadores de tendências e modos. Se a cidade compreende
esse papel, se os nossos museus conseguem ampliar e qualificar mais e mais sua atuação,
então teremos, sem dúvida, começado a solidificar e enraizar a experiência inovadora do
Centro Dragão do Mar.
Por outro lado, é imprescindível que as autoridades e as ditas elites econômicas do Ceará,
percebam este centro cultural como uma conquista, uma extraordinária vantagem no
processo de competição pelo mercado turístico, e mais ainda como ferramenta essencial
nos programas de desenvolvimento local e regional.
No entanto, como dissemos no início de nossa fala, esse conjunto de preciosos
equipamentos é muito mais que isso: é a melhor proteção contra a ignorância, a violência,
a degradação da cultura e da vida. É necessário, pois, investir mais e mais em sua manutenção
e no desenvolvimento de seus programas, numa ação permanente de inclusão cultural e
social, na prática efetiva de cosmopolitismo e no exercício pleno dessa melhor estratégia
de sobrevivência e qualificação urbana, lançando efetivamente as bases para a (re)construção
de um lugar civilizado para viver e criar.
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
1LÉVI-STRAUSS,
Claude - "Tristes tropiques" - p. 106 - Librairie Plon - France - 1976
Jane - "Dark Age Ahead" - p. 24 - Random House - New York - 2004
3REMNICK, David, apud Al Gore - "The Wilderness Campaign" - The New Yorker - p. 67 - 13 de
Setembro de 2004
4SALIBA, Elias Thomé - "Una ciudad descarrilada: cronistas del olvido y de las historias perdidas
de São Paulo" - Revista Ábaco - Nº 39: São Paulo: ciudad sin retrato - Espanha - Janeiro - 2005
5ROLNIK, Raquel - "São Paulo en el filo de la navaja" - Revista Ábaco - Nº 39: São Paulo: ciudad
sin retrato - Espanha - Janeiro - 2005
6CARTAXO, Joaquim - "Crescimento desigual e combinado" - jornal O POVO - Seção Opinião Fortaleza-CE - 27 de fevereiro de 2005
7ROLNIK, Raquel - artigo citado
8JACOBS, Jane - obra citada - pp. 5 - 6
2JACOBS,
Augusto César Faria Costa
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IV
Cultura e
Comunicação
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Coordenação:
Silas de Paula e Tarcísio Pequeno
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Apresentação
A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (SECULT) vem realizando
anualmente, desde 2003, um seminário temático denominado CULTURA
XXI. O seminário tem como objetivo promover a discussão em torno das
grandes questões que envolvem a cultura como princípio fundamental de
valorização do homem e elemento essencial de inclusão social, tendo em
vista a proposição e execução de uma política cultural capaz de responder
aos desafios do século.
Em sua primeira realização, em 2003, o Seminário reuniu gestores da
cultura, produtores culturais e intelectuais para discutir gestão e política
cultural. Tal discussão foi de grande relevância para a elaboração do Plano
de Cultura do Estado Ceará pela SECULT.
Em 2004, o CULTURA XXI foi realizado sob a forma de Fórum de
Cooperação Cultural Internacional, com a participação de personalidades
ligadas à cultura em todo o Brasil e de gestores culturais de dezoito países.
Como resultado do Fórum, foi elaborado um documento denominado
"Carta de Fortaleza".
Em sua última realização, em 2005, o CULTURA XXI foi promovido em
parceria com a Prefeitura da Cidade de Fortaleza e, tomando a oportunidade
de renovação das administrações municipais, foi dedicado ao tema "A
Cultura e as Cidades". O Seminário reuniu prefeitos, secretários, assessores,
pesquisadores, técnicos e estudiosos para discutir questões como: O que
pode a cultura pelas cidades? De que forma a cultura se apresenta no
cotidiano dos seus habitantes? Como a cultura contribui para o
desenvolvimento local, a inclusão social e a qualidade de vida dos
indivíduos e comunidades?
O quarto Seminário CULTURA XXI, a ocorrer em março de 2006, será
dedicado ao tema Comunicação e Cultura. Nele a discussão das relações
entre a expressão e a preservação da cultura, o exercício da cidadania, a
inclusão social e os meios de comunicação, será conduzida sob três subtemas: Cultura, Mídia e Poder; Cultura e Novas Tecnologias e Jornalismo
Cultural. Tais temas foram escolhidos por refletirem preocupações de grande
atualidade, ou mesmo urgência, na afirmação da cultura e na consolidação
da participação social e da democracia.
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2006
S
Cultura,Mídia
ePoder
érgioPauloRouanet
Diplomata, Cientista Político e Ensaista. Membro efetivo da Academia Brasileira de Letras
Gostaria, primeiramente, de agradecer a generosidade do convite que me traz aqui mais
uma vez ao Ceará. Já estive tantas vezes aqui, percorrendo com os olhos a audiência,
enquanto tantas pessoas que eu conheci em outras ocasiões aqui no Ceará, de modo que
pra mim é um privilégio estar aqui nessa cidade, nesse estado, que são pioneiros e é típico
de tantos pontos de vista. Não podemos deixar de considerar, como lembrou a Cláudia,
que a primeira Secretaria de Cultura do Brasil foi criada no Ceará. Há outros pioneirismos,
há outros vanguardismos também associados ao nome do Ceará. Como todo mundo
sabe o Ceará foi a primeira província do Império do Brasil que decretou a Abolição. A lei
Áurea Cearense, inclusive, mereceu uma carta extremamente honrosa de Victor Hugo.
Em 2002 eu fui encarregado pela Academia Brasileira de Letras de fazer uma palestra
sobre a repercussão da obra de Victor Hugo no Brasil e folheando velhos alfarrábios, quase
se desfazendo, sob a ação crítica das traças, como dizia Machado de Assis, encontrei uma
carta que Victor Hugo enviou à Assembléia Cearense, congratulando o povo do Ceará,
com aquele jeito fático e condoreiro, que caracterizava Victor Hugo, por essa iniciativa
humanitária de alcance extraordinário, pioneiro de outros pontos de vista.
Não esqueçamos a Padaria Espiritual, por exemplo, com movimentos de uma importância
extraordinária na história da Literatura no Brasil, em que o ceará foi também um pioneiro
do Modernismo, dessa vez. Atípico, ele é atípico em tantas coisas também. Ele é atípico,
por exemplo, atualmente eu diria que ele é atípico em seu governador e atípico em sua
Secretária de Cultura, com relação à primeira atipicidade.
Eu gostaria de lembrar um fato que me foi recordado agora pelo governador, quando eu era
Embaixador em Praga. Eu tinha acabado de escrever um artigo sobre um assunto, aparentemente,
de nenhum interesse para pessoas ligadas à política brasileira. Era um artigo que eu lembrava
que tinha encontrado na biblioteca de Praga, um velho documento, sobrescrito por Freud e
que não aparecia em nenhuma das obras concretas de Freud e eu considerava aquilo importante.
Quando eu recebo uma carta assim, absolutamente atípica, de um certo Senador, Lúcio Alcântara,
que me pediu uma cópia desse documento. Eu fiquei absolutamente estupefato. Como é que
um Senador aqui no Brasil pode ter tempo, pode ter interesse em obter um documento desse
tipo, aparentemente tão longe da vida prática da esfera pública?
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Atípica em sua Secretária de Cultura. Eu gostaria também de dar um depoimento pessoal.
Eu sabia que a Cláudia era uma socióloga eminente, que tinha tido uma carreira eminente,
tem e terá uma carreira eminente na academia, mas é atípica, também, não somente por
sua cultura, não somente por sua capacidade administrativa excepcional, não somente por
seus conhecimentos teóricos e práticos em matéria de gestão cultural, mas também por
sua graça e por sua beleza e isto foi testemunhado por um PM. Eu acho que a Cláudia me
permitirá contar essa história. Ela estava me trazendo gentilmente no carro dela e fomos
abordados aqui na entrada por um PM robusto, truculento e mal encarado que perguntou
ao motorista quem eram aquelas pessoas estranhas que estavam chegando no carro. E o
motorista disse que era a Secretária de Cultura. Aí ele olhou pra Cláudia e fez pra ela o
maior cumprimento que uma mulher pode receber. Não acreditou que ela fosse a Secretária
de Cultura. Então atípica em sua história do Ceará. Atípica em seu governador atual.
Atípica em sua Secretária de Cultura atual. Viva ao estado do Ceará em sua atipicidade.
Devido a minha formação ou deformação profissional de diplomata, coisa que eu sou
entre outras coisas, eu gostaria de abordar o tema da relação entre a comunicação e o
poder, mas a partir de outro ângulo. Não o poder interno do país, mas o poder internacional
em termos de poder mundial. Então a Conferência não tem título, mas poderia ser algo
em torno dessa relação entre a comunicação e o poder.
Muito se tem escrito sobre a relação de comunicação e política. Via de regra, o tema
é tratado numa perspectiva nacional. De que modo os meios de informação e
comunicação interagem com a ordem política interna? Seja no sentido positivo, como
instrumento de democratização, seja no sentido negativo como obstáculo, ao pleno
exercício da liberdade democrática.
Em vista da atual crise política brasileira e do papel nela desempenhado pela mídia, penso
que não faltarão nesse Congresso contribuições que tenham como foco o Brasil de hoje.
Pretendo abordar o tema da relação entre a política e a comunicação de outro ângulo - o
internacional. Partirei primeiro de um fato que me parece evidente. A crescente perda de
capacidade decisória por parte de todos os países do mundo, inclusive dos mais desenvolvidos,
na condução de suas políticas nacionais. E que se manifesta sob a forma de um duplo
déficit de autonomia.
autonomia Um no âmbito econômico e outro no âmbito político.
Esboçarei, em segundo lugar, algumas idéias sobre a construção de uma democracia
mundial, como uma das formas possíveis para preencher esses dois déficits. Déficit de
autonomia econômica e déficit de autonomia política. Examinarei, em terceiro lugar, o
papel dos meios de comunicação, tanto na formação desses dois déficits, como na
cristalização de uma política destinada a superá-los e a criar condições pra uma
democratização internacional. Portanto, três partes. Nosso raciocínio costuma sempre ser
ternário. A primeira parte, perda de autonomia. Segunda parte, o meio de superar esses
déficits através dessa proposta, um tanto sonhadora, da criação de uma democracia mundial
e terceira parte o papel dos meios de comunicação nessas duas coisas. Tanto na formação
dos déficits, como na possível formação de um antídoto a esses venenos.
Primeira Parte: a perda de autonomia
autonomia.
A perda de autonomia foi particularmente sensível no caso dos países periféricos. Vivíamos
num mundo em que as principais decisões eram tomadas por Bancos Centrais estrangeiros
em que a volatilidade dos capitais impedia qualquer planejamento a longo prazo. Em que
as inovações tecnológicas tinham origem externa, em que a indústria eletrônica de massas,
estrangeira ou nacional, nos submetia a todos os condicionamentos. Era um mundo em
que os países do grupo dos sete, mais tarde dos oito, tinham adotado como novo dogma
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o consenso neoliberal formalizado em 1990 pelo economista John Williamson e impunham
esse credo em instituições multilaterais em que detinham o poder decisório quase total FMI, Banco Mundial. E das quais, por sua vez, dependia o sucesso ou malogro de nossas
políticas de desenvolvimento.
Em suma, era o mundo da globalização dependente, que tinha aspectos inegavelmente
positivos, mas cerceava com extremo rigor nosso espaço de liberdade. No entanto, tínhamos
o consolo, ao menos, de acreditar que a dominação internacional se dava agora pela ação
de forças anônimas, desvinculadas de qualquer interesse imperialista, o que bem ou mal
representava um progresso com relação à época em que tínhamos que enfrentar as
canhoneiras da Rainha Vitória.
A globalização correspondia a um estado pós-nacional do capitalismo, em que o papel
dos estados nacionais era praticamente nulo. O que significa que não havia espaço para o
Imperialismo Clássico, que pressupunha a disputa entre estados nacionais por territórios,
mercados e fontes supridoras de matérias-primas. Tinha essa impressão de que a ordem e
a segurança internacionais eram mais ou menos garantidas pela ONU, com base no sistema
para solução de conflitos que excluía o uso unilateral da força. Era um primeiro passo para
sairmos do estado de natureza em que vivia a sociedade internacional. Não havia ainda o
que os tratadistas de direito natural chamavam de pactum subjectionis. A submissão dos
estados membros a uma autoridade comum dotada de poder coercitivo, mas já havia pelo
menos o pactum societatis que consagrava um compromisso mútuo de não agressão. A
tese de que o Imperialismo Clássico estava extinto foi sustentada mesmo pela esquerda
radical, pós-marxista, representada pelo livro "Empire" de Michel Hardt e Antonio Negri.
Para eles, a dominação global era exercida por um Império, e não por uma potência
isolada, por mais poderosa que fosse.
Os Estados Unidos ocupavam nesse Império um lugar privilegiado, mas nenhum estado
nacional detinha sozinho o poder imperial. Os autores pensavam numa pirâmide cujo
vértice era representado pela super potência americana, mas em que o poder era partilhado
pelo demais membros do grupo dos oito, por organizações como o FMI, o Banco Mundial,
a Organização Mundial de Comércio, pelos demais estados nacionais etc. Havia assim um
poder imperial, mas não imperialista. A invasão do Iraque desfez brutalmente esse modesto
otimismo. Com a arrogância com que impôs sua vontade pela força das armas, os Estados
Unidos deixaram claro que estavam dispostos a assumir a herança do velho Imperialismo,
cuja principal característica, no século XIX, era a utilização do exército e da marinha para
levar a civilização aos países da África e da Ásia.
A disputa por matérias-primas, básica para o Imperialismo antigo, subsiste no atual. Não
podemos esquecer que o acesso às reservas petrolíferas do Iraque, as mais importantes
depois da Arábia Saudita, foram os objetivos declarados da guerra.
A idéia de que o Imperialismo antigo perdeu sua base por estarmos vivendo numa fase
pós-nacional revelou-se falsa. Porque o estado nacional subsiste sim, com mais virulência
que nunca, com a única diferença de que os vários estados nacionais que outrora
pretendiam dominar o mundo reduziram-se, na prática, a um só, o estado nacional
americano. O fato de que o Imperialismo multipolar de antigamente tenha se reduzido
à monocracia americana, possibilita que vejamos com mais compreensão a tentativa
dos que preferem caracterizar a atual hegemonia dos Estados Unidos com a designação
de Império, não no sentido de Antonio Negri, porque não se trata de uma dominação
coletiva, mas por analogia, digamos, com o Império Romano - senhor exclusivo do
mundo antigo desde a destruição de Cartago.
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É claro que essa descrição precisa ser tomada com alguma cautela, porque os reveses militares
e políticos do Pós-guerra indicam que o poder americano não é tão irresistível assim, mas
permanece o fato de que a Guerra do Iraque confrontou a maioria da população do mundo
com sua impotência. Foi nossa segunda perda de autonomia. Nossa segunda queda, para
usarmos uma linguagem teológica. Voltamos ao mundo de Hobbes, o da guerra de todos
contra todos. Em que a vida de cada um, como dizia Thomas Hobbes, no Leviatã, não depende
apenas da mão invisível do mercado, mas também da mão visível que dispara mísseis "tomahawk".
O castigo da desobediência antes era a cessação do fluxo de capitais dos quais dependíamos
para fechar nosso balanço de pagamentos. Hoje pode ser a nossa transformação em campos
de prova para que o Pentágono possa testar sua última geração de armas inteligentes. A
estrutura de nossa subordinação passou a ter dois extratos. Se antes estávamos sujeitos à
dinâmica da globalização, agora estamos sujeitos também a uma vassalagem mais direta
de caráter econômico e militar. É uma espécie de refeudalização do mundo. Uma regressão
a formas concretas e corpóreas de subordinação, sem que com isso desapareça a
subordinação capitalista a poderes abstratos.
Essa dupla subordinação tem conseqüências devastadoras sobre o conceito clássico de democracia,
que pressupõe a vigência plena do princípio iluminista da autonomia. Em sua versão "rousseauista"
esse princípio se aplica aos dois pólos do processo democrático, o da formação do poder e o do
exercício do poder. Um indivíduo é autônomo enquanto soberano, porque não depende de
nenhuma instância superior. E é autônomo enquanto súdito, porque ao obedecer a lei que ele
próprio promulgou, está obedecendo apenas a si mesmo. Essa unidade dos dois pólos, o que
manda e o que obedece, é rompida com a nossa dupla perda de autonomia.
Todos somos objetos do poder econômico globalizado e do poder político imperial. Mas
somente uma insignificante minoria da população do planeta ocupa a posição de sujeito,
portanto, disjunção entre o pólo que determina a política e o pólo que sofre o efeito dessas
políticas, crescência da democracia clássica. Hoje em dia, todos sofremos o efeito de
políticas que não foram decididas dentro de nossas fronteiras. Portanto, ruptura do contrato
"rousseauista" entre os dois pólos do processo democrático.
A globalização obriga os pólos periféricos a viverem passivamente as conseqüências de
políticas que eles não tiveram meios para co-determinar. Elas foram tomadas fora de suas
fronteiras, seja pelos conselhos de administração dos mega conglomerados, seja por
especuladores individuais. No plano político militar a dependência é igualmente grave, o
que de novo foi ilustrado pela guerra. Em todos os países do mundo a opinião pública foi
hostil à invasão do Iraque e, no entanto, em nenhum momento, a rejeição em massa da
política de Bush foi levada em conta pelo governo norte-americano. E na verdade, não
precisava fazê-lo, segundo a regra do jogo, que tem regido a democracia americana, na
qual os eleitos somente são responsáveis perante seu próprio eleitorado. Mesmo quando
tomam iniciativas que afetam profundamente a vida e o bem-estar de outros povos.
Isso sempre ocorreu no passado, mas nunca de modo mais contundente do que na guerra
de Bush. Entre as pessoas que foram afetadas, mas não ouvidas, estão em primeira instância
o povo iraquiano, que não deu nenhum mandato a Bush para libertá-lo da tirania de Saddam
Hussein. Em seguida, o resto da humanidade, ou seja, a bagatela de 5,5 bilhões de seres
humanos, afetados, mas não consultados. Primeira parte, portanto, perda de autonomia.
Segunda parte: o que fazer para superar os déficits econômico e político
político.
Esse déficit da economia, ao meu ver, é uma opinião totalmente pessoal, só pode ser
preenchido na medida em que o resto for sendo incluído no processo deliberativo. Um dos
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caminhos para isso proposto por autores como David Daniele é a criação de uma democracia
cosmopolita, como eles dizem, a ser implementada por um pacto subscrito por todos os
países do mundo, e em outros atores internacionais como FMI, Organização Mundial de
Comércio etc; destinada a democratizar a governância mundial. Governância é o termo da
moda na ciência política, então eu me submeto à moda. Destinar a democratizar a
governância mundial, em bases sociais democráticas, e que embora restringindo os limites
da soberania clássica, não envolveria o estabelecimento de uma república universal.
Outro caminho, a mais longo prazo, conduziria a essa república. É o que chamarei de
democracia mundial. Seria a concretização de um ideal kanteano expresso em seu ensaio
sobre a paz perpétua, aquele ensaio de Kant em que ele acaba concluindo que a solução
política ideal para o mundo seria a criação de uma república universal, mas considera
como uma solução transitória, uma espécie de liga dos estados com uma solução
intermediária adequada.
Então eu quero me concentrar a um ideal mais a longo prazo proposto por Kant, que é
a criação de uma república mundial. A meu ver, somente a democracia mundial, que é a
democracia mundial que estou chamando, que é o ideal Kanteano da República, permitiria
recompor a unidade original entre o pólo ativo e o passivo do processo decisório. O
demos da democracia, se tornaria planetário, complementando demos puramente nacional
e com essas decisões de alcance global se tornariam legítimas porque auto-determinada.
Portanto, a única maneira nesse mundo globalizado de recompor a unidade original dos
dois pólos da democracia, o povo que obedece enquanto súdito e que manda enquanto
soberano, seria criar idealmente um demos planetário.
A democracia mundial não elimina a soberania dos estados nacionais, o que é inviável e
indesejável, mas não seguiria tampouco um modelo confederal que deixasse intacta essa
soberania o que seria inócuo e no fundo não seria nada de muito diferente do atual
sistema das Nações Unidas, que tem como limite justamente o princípio da soberania dos
estados membros. Um sistema federal que não busca abolir os estados nacionais e sim
criar expressões globais que possam conviver com eles, sobrepondo-se à sua autoridade
somente em casos bem definidos. Haveria vários níveis de governância, organizados segundo
o princípio da subsidiaridade.
As questões seriam processadas em nível nacional somente quando não pudessem ser tratadas
no nível local. No nível regional, somente quando não pudessem ser tratadas no nível nacional
e no nível mundial somente quando não pudessem ser tratadas no nível regional.
O nível mais elevado seria composto por uma sociedade civil, onde funcionariam instituições
como igrejas, sindicatos, associações de artistas intelectuais, organizações não
governamentais, e de uma sociedade política que seria uma evolução a partir da própria
Organização das Nações Unidas. Sua constituição teria no pórtico os princípios contidos
na Declaração Universal dos Direitos Humanos e documentos equivalentes. Seus órgãos
incluiriam um parlamento bicameral em que além da atual assembléia geral, com membros
indicados pelos governos, haveria uma assembléia dos povos, cujos membros seriam
escolhidos por eleição direta.
O direito emanado desse parlamento não teria caráter apenas interestatal, como o atual
Direito Internacional. Os indivíduos também seriam sujeitos e titulares de direito
internacional. O tribunal penal internacional e uma corte internacional de justiça reformulada,
seriam os núcleos de um poder judiciário eficaz, com autoridade efetiva para julgar não
somente estados, mas também indivíduos culpados de violação dos direitos humanos e de
crimes contra a humanidade, o famoso caso Pinochet.
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"Está em curso, disse ele, um processo de globalização análogo aos processos anteriores
ocorridos quando se formaram as economias nacionais. Infelizmente, não temos um governo
mundial responsável diante dos povos de todos os paises para supervisionar o processo de
globalização, de modo comparável ao modo de governos nacionais guiaram o processo
de acumulação interna. Invés disso, temos um sistema que pode ser chamado finança
global sem governo global. Em que algumas poucas instituições, o Banco Mundial, o
FMI, a OMC e alguns poucos atores, como Ministério de Finança e do Comércio,
intimamente ligados aos interesses financeiros e comerciais, dominam a cena, mas em
que muitos dos afetados por suas decisões praticamente não têm voz”.
2006
Haveria enfim, para aplicar as leis da democracia mundial, um executivo dotado de atribuições
econômicas e políticas. No ramo econômico, esse executivo seria competende para
supervisionar o processo de globalização e corrigir suas anomalias. Quero deixar a palavra
aqui para Joseph Stiglitz, ex-funcionário do Banco Mundial e prêmio Nobel de Economia:
Nossa proposta, a proposta que eu estou fazendo neste momento, permitiria fornecer os
mecanismos transnacionais de supervisão, nos quais teriam voz todos os afetados pelo
processo de globalização, proporcionando o equivalente funcional dos mecanismos nacionais
que haviam supervisionado o processo de industrialização no inicio do capitalismo. Portanto,
primeiro déficit de economia, seria um caminho para preencher essa lacuna.
No âmbito político, segundo déficit político. O executivo mundial herdaria as funções do
conselho de segurança e seria responsável pela preservação da paz e da segurança
internacionais. Nessa incumbência, teria o monopólio da violência legitima. A médio
prazo, o objetivo seria a desmilitarização dos estados nacionais e a transformação das
forças esporádicas de manutenção que fazem as Nações Unidas, as Peace Keeping
Operations, em forças permanentes, sujeitas ao controle dos outros dois poderes.
Esse conjunto de instituições democráticas em que a mais ampla diversidade cultural coexistiria com o núcleo mínimo de normas e princípios aplicados a todos, garantiria uma
participação efetiva da grande maioria da população da humanidade nos processos decisórios
de caráter global, contribuindo para preencher o nosso duplo déficit de economia, o econômico
e o político. O resultado iria fortalecer o principio básico da soberania popular. Notem bem
a diferença que eu estou fazendo entre soberania popular e soberania nacional, soberania
popular já existia desde Atenas, continuou existindo nas Casas nacionais e vai existir com
mais forte razão numa democracia mundial. A soberania nacional foi um estágio transitório
na biografia da democracia popular, em que primeiro se desdobrava no estado da posse,
depois passou a se desdobrar no estado, no âmbito estado nação, e agora se fosse implementada
essa idéia, seria implementada no âmbito do mundo. O resultado, dizia eu, seria fortalecer o
principio básico da soberania popular que agora não se desdobraria apenas no estado da
nação, mas também no da localidade, da região e do mundo.
Os objetivos da democracia cosmopolita, sem governo mundial e da democracia mundial
que pressupõe esse governo, não são incompatíveis. Podemos pensar o primeiro como
transição para o segundo, democracia cosmopolita como transição para democracia mundial.
Mas não nos iludamos, as dificuldades para um pacto cosmopolita são quase tão grandes,
como as que inibiriam um pacto federal entre os estados, porque nos dois casos a super
potência teria que abrir mão, em maior ou menor grau, do seu poder de ação unilateral.
Digamos que o primeiro objetivo é difícil e o segundo é utópico. Mas há utopias concretas,
aquelas cuja realização pode ser antevista em tendências inscritas na realidade e utopias
abstratas baseadas em fantasmagorias subjetivas. Considerado o grau atual de interdependência entre as nações que contribui para flexibilizar as fronteiras nacionais, e
recordando que há apenas duas gerações o ideal da Europa unificada era um sonho sem
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substância, não há dúvida que podemos classificar o ideal da democracia mundial como
uma utopia concreta.
Terceira parte: o papel da comunicação
Resta especificar o papel da comunicação nesse jogo cruzado de heterônoma, e de autonomia.
As novas tecnologias de informação e comunicação são indissociáveis do déficit de autonomia
econômica. Os analistas apontam para a existência de um hiato digital, semelhante ao hiato
de renda que separa os países desenvolvidos dos países em desenvolvimento. As vítimas
desse hiato são excluídas de modo mais ou menos irreversível no processo de globalização.
Cria-se uma nova relação de poder, colocando no ápice os detentores das novas tecnologias,
e na base os que a elas não têm acesso. A marginalização econômica passa a ser determinada
pela marginalização digital. Quanto à globalização em si, é obvio que ela não é concebível
hoje fora do espaço eletrônico, é o que acontece no caso da globalização financeira que
utiliza as três principais propriedades das redes eletrônicas: velocidade, simultaneidade e
interconectividade para introduzir ou retirar de modo instantâneo os fluxos de capital
especulativo. Premiando ou punindo os governos nacionais de acordo com sua maior ou
menor disposição de adotar políticas compatíveis com as exigências do mercado.
Quanto ao segundo déficit de autonomia, o político, boa parte da mídia mundial,
principalmente americana, desempenhou um papel indispensável, antes, durante e depois
da invasão ao Iraque. Como preparação para a guerra os canais de televisão fizeram uma
verdadeira lavagem cerebral, para encucar nos telespectadores a convicção de que Saddam
Hussein possuía armas de destruição em massa e existia um vínculo entre o governo
iraquiano e a rede terrorista Al Qaeda. Direta ou indiretamente, esses canais de televisão e
mesmo jornais responsáveis como New York Times se transformaram em porta-vozes da
política belicista do Pentágono e da Casa Branca. Informações vitais que o resto do mundo
recebia, não eram recebidas nos Estados Unidos. Não foram mostradas imagens que as tvs
exibiam no Brasil, como a de iraquianos se manifestando contra as tropas de ocupação,
em vez disso os canais mostravam cenas de regozijo popular. Foram feitas montagens
dignas do Ministério da Propaganda da Alemanha nazista.
Sabe-se que o número de baixas foi muito superior ao admitido pelas fontes oficiais, que,
muitas vezes, diziam que os soldados estavam apenas desaparecidos ou tinham sido
vítimas de acidentes ou de fogo amigo. Quando as tropas americanas entraram na cidade
de Falúgia, matando centenas de civis, a CNN e outras redes endossaram sem evitar a
versão dos militares que o objetivo da ação era apenas desbaratar um pequeno número de
fiéis de Saddam. Nem nesse momento, nem em nenhum outro foi usado o termo resistência.
Para a CNN e a virtual totalidade da mídia só havia insurgência. Os jornalistas alegavam
estar agindo por patriotismo. Isso nos faz lembrar a frase de Samuel Johnson, segundo o
qual o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.
Mas se não podemos canonizar os meios de comunicação, não podemos também demonizálos. Os dois déficits de democracia, o econômico e o político, teriam sido mais graves sem
as contra-tendências que vieram das novas tecnologias eletrônicas e dos jornais. No início
a internet tinha como objetivo fortalecer a abertura e descentralização da rede, no sentido
de torná-la universalmente disponível. Não havia hierarquia, nem centro, nem controle,
nem autoritarismo, nem monopolização. Foi só a posteriori que a internet começou a ser
comercializada. Em grande parte, essa vocação anárquica e libertária continua ativa. As
forças mundiais dispersas que se congregaram no fórum mundial de Porto Alegre, para
lutar contra a globalização se inter-comunicam através da internet.
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Durante a invasão do Iraque, milhares de internautas do mundo inteiro, sobretudo nos
Estados Unidos, trocavam mensagens condenando a guerra e seus autores. Quanto aos
jornais, há publicações respeitadas que vêm se dedicando à luta contra a globalização
dependente, como o Le Monde. E foi em parte por pressão da mesma mídia que tinha
contribuído para dar credibilidade ao mito das armas de destruição em massa que Bush e
Blair foram forçados a admitir que essas armas nunca tinham existido. O próprio New York
Times publicou uma autocrítica sem precedentes. Em sua edição de 26 de maio de 2004, o
jornal admitiu não ter examinado com suficiente rigor a veracidade das afirmações
governamentais dadas pelo governo. E admitiu que o periódico foi usado numa astuciosa
campanha por aqueles que desejavam convencer o mundo de que o Iraque possuía as armas
de destruição em massa.
Quaisquer que tenham sido seus pecados anteriores no que diz respeito a déficits de
democracia, os meios de comunicação são indispensáveis no que se refere à superação
desses déficits, inclusive nessa proposta que eu acabo de fazer pela implantação de uma
democracia mundial. Uma imprensa e uma televisão que representem o interesse de
todos os povos, e não apenas dos povos do Primeiro Mundo são evidentemente
indispensáveis para esse fim, mas quero destacar aqui apenas o papel das novas tecnologias
de comunicação, incluindo a internet e a televisão por satélite. Esse papel é decisivo na
criação das condições da democracia mundial. Interligando milhões de pessoas de todos
os países do mundo, as novas tecnologias podem relativizar os reflexos nacionalistas,
combater a xenofobia, facilitar a compreensão mútua entre as diversas culturas, mas sua
influência será importante para o próprio funcionamento da democracia mundial. Isso é
especialmente verdadeiro se quisermos ir além de uma simples democracia liberal, em
que se trata somente de agregar interesses segundo critérios majoritários, e aderimos ao
modelo em que se visa a formação coletiva da vontade, num processo argumentativo de
que participem todos os interessados em âmbito global.
Quando uma superpotência adota uma política protecionista ou restringe a emigração
ou degrada o meio ambiente ou realiza uma intervenção militar que solapa o sistema
multilateral das Nações Unidas pra prevenção de conflitos, todos os habitantes do planeta
são afetados, mas somente alguns são chamados a participar do processo político que
levou à adoção dessas medidas. A democracia mundial que queremos se destina a
corrigir esse estado de coisas, ela deve ser deliberativa. O que as distorções que desejamos
corrigir têm a ver com o caráter excludente, não participativo da atual ordem
internacional? Só uma democracia deliberativa mundial pode incluir no processo
deliberativo todos os afetados pelas decisões que vierem a ser tomadas a partir desse
processo. O processo deliberativo terá como arena a sociedade civil mundial que mediatiza
os interesses dos protagonistas e as estruturas da sociedade política. É obvio que com o
demo de seis bilhões de cidadãos, o exercício deliberativo será ligeiramente mais
complicado que em Atenas no tempo de Péricles.
Uma resposta para isso é que a democracia deliberativa valerá também no nível local, em
que as interações face a face não são impossíveis. Mas no âmbito desse congresso, a
resposta mais cabível é que qualquer que seja o tamanho dos demos, as novas tecnologias
de comunicação podem ser mobilizadas para aproximar pessoas geograficamente distantes.
Elas permitem, em tese, que todas as pessoas que foram ou venham a ser afetadas por
certas políticas possam argumentar contra ou a favor dessas políticas, e permitem também
que o resultado dessas deliberações seja levado a instancias decisórias apropriadas, que no
caso de políticas de alcance planetário são as instituições da sociedade política mundial. E
com isso eu vou encerrar minha intervenção.
Sérgio Paulo Rouanet
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MargaretheBorn
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisadora das
Áreas de Jornalismo, Comunicação e Lingüística, tendo lecionado na
PUC-RJ, Unicamp, PUC-SP e Universidade Livre de Berlim.
Em primeiro lugar, eu quero dizer que fiquei muito emocionada nessa seção da tarde de
hoje. Fiquei emocionada porque é muito raro encontrar aqui no Brasil, um espaço em que
se pode discutir a teoria e as experiências simultaneamente, ou seja, dentro do mesmo
evento, que, de um modo geral, parece que nós vivemos uma segregação. O discurso
acadêmico, o discurso teórico de um lado, e as experiências e os trabalhos dos movimentos
sociais, a ação social de outro lado. Eu acho que essa capacidade de aproximar essas duas
vertentes ainda é bastante rara entre nós. O Luiz Paulo, o Alemberg Quindins e o José
Paulo deixaram claro que estão voltados para um trabalho, para uma missão que, como
disse o Alemberg, está acima das individualidades. É um compromisso com uma missão
de alimentar, consolidar e estimular um universo de cultura aqui do nosso Brasil e em
especial no espaço cearense. Mas essa preocupação, então, de se desligar das
individualidades e se integrar a um processo muito maior, que é um processo que não é
tão fácil de controlar, através de meios de dominação, por exemplo, através da imprensa é
uma mídia que trabalha a serviço das classes dominantes.
Nesse momento eles deixaram muito claro que o compromisso é com a ação social, com os
movimentos sociais, com a transformação da sociedade e que se os teóricos e os acadêmicos
quiserem fazer parte, eles terão que se sensibilizar para essas práticas que estão sendo
encaminhadas, e a gente viu aqui exemplos fantásticos que a própria veemência dos aplausos
demonstrou o quanto essa platéia está sensibilizada pra valorizar esses tipos de iniciativas.
Essa tarefa de buscar, agora, uma síntese é bastante difícil pra mim. Há também uma
trajetória dupla: de um lado uma vida acadêmica, uma vida de pesquisa, publicando
artigos, publicando livros, participando de congressos, de debates, mas de outro lado,
acho que a minha forma de desenvolver os discursos da ação e voltados para um fazer, eu
sempre coloquei nas práticas jornalísticas. Então esse diálogo entre teoria e prática, na
minha trajetória, sempre se deu como um diálogo entre a academia e a imprensa, entre a
minha atuação como professora e pesquisadora, de um lado, e a minha atuação como
jornalista, do outro. É uma cisão difícil de resolver, ou seja, de trazer à prática das redações,
o trabalho daquele ambiente da máquina de "moer carne", como eu costumo dizer, que o
trabalho do jornalista - o jornalista vive numa máquina de moer carne - ele sofre uma
pressão muito grande na sua atividade diária, ele é levado a produzir três, quatro matérias
num dia. Ele é sobrecarregado de pautas, aquela pauta sonhada que ele gostaria de
desenvolver, ele muitas vezes tem que ir adiando, ou vai conseguir escrever uma matéria
especial por mês sacrificando o sono nas madrugadas. Então, eu vejo esse lado da prática
jornalíatica, como um lado que eu desenvolvi, e agora recentemente só de forma mais
sazonal, um lado muito sofrido como prática profissional diária. Eu vejo o jornalista, hoje,
vivendo um momento de crise, muito intensa, na medida em que, de um lado, as empresas
jornalísticas, estão através da esteira industrial de produção da notícia, cada vez buscando
um jornalismo mais homogeneizado, mais pasteurizado, cada vez mais mergulhado numa
espécie de pensamento único, você troca o canal e é tudo a mesma coisa, você abre a
primeira página do jornal e as manchetes muitas vezes estão batendo. Enfim, você tem
essa sensação de homogeneização, que é fortalecida pela política dos manuais de redação
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que foi um passo importante pra estabelecer esse processo de homogeneização. Cada um
de nós se tornou um profissional mais facilmente substituível, na medida em que é tomada
como referência a observação do manual de redação, então, trocam-se os jornalistas dentro
da redação e o efeito, praticamente, é nulo porque um que segue o manual vai ser
substituído por outro que também segue o manual, ou seja, a gente perdeu aquele
aspecto saboroso da criatividade, que hoje através do novo jornalismo, algumas pessoas
estão trabalhando e estão buscando uma revitalização, mas isso é uma proposta ainda de
difícil execução, justamente porque da parte das empresas não há abertura pra isso. Onde
está o espaço da criatividade, hoje, no jornalismo? Esse espaço está nos blogs, está num
trabalho. Não é exatamente um jornalismo digital, que às vezes é tão telegráfico, é até
mais massificado do que aquilo que a imprensa e as televisões estão produzindo. Mas o
blog é um caminho. Eu vejo que já há uma luz no "fim do túnel", embora, claro, nunca se
possa ganhar de todos os lados.
O fato de você ganhar um espaço de criatividade nos Blogs, tem uma contrapartida também
negativa que é a perda da confiabilidade da notícia, a perda da credibilidade. Quer dizer,
quem é responsável pela informação que vem no blog? O responsável se não é alguém
que já tem uma credibilidade construída como jornalista, essa informação se torna um
objeto de confiança menor, digamos. Ganhamos em criatividade e perdemos em
credibilidade, mas, enfim, é uma alternativa.
O que eu vou falar aqui, hoje, pra vocês é um texto que está baseado nesse meu último
livro que se chama Discursos Geopolíticos da Mídia, Jornalismo e Imaginário Internacional
na América Latina. Eu escrevi esse texto a partir de reflexões que eu apresentei no livro,
mas procurando integrar meu pensamento agora mais recente e também integrar as
contribuições que eu ouvi, aqui, hoje.
Nessa primeira parte, então, eu vou apresentar o conceito de imaginário que Castoriades
desenvolve e os caminhos para uma revolução social, através do imaginário, uma revolução
operada no imaginário social. Na segunda parte, que se chama modos de instituição
jornalística de comunidades ou modos de instituição midiática de comunidades, eu vou
remeter um pouco mais de perto, ao que foi falado agora na sessão da tarde.
Começando pela tentativa de aproximação entre as idéias que eu ouvi de manhã e pela
tarde. Em primeiro lugar, eu quero só remeter essa história tão saborosa que a secretária de
cultura Cláudia Leitão apresentou do caranguejo, que é desenhado com perfeição depois
de dez anos. Eu me vi um pouco como esse caranguejo, porque há trinta anos eu venho
estudando e pesquisando os discursos jornalísticos, anais do discurso, os estudos de mídia
e o que eu quero dizer pra vocês é que o meu caranguejo, mesmo depois de trinta anos e
não de dez, ainda está imperfeito. Também a preocupação que a Cláudia demonstrou em
valorizar a teoria, em valorizar a contribuição da academia pra esse debate sobre os temas
de interesse social. O embaixador Sérgio Paulo Rouanet falou de uma forma irreverente,ele
interrompeu o Governador, sugerindo uma reforma agrária da cultura e depois veio uma
pergunta sugerindo uma reforma agrária da comunicação. Acho que é bem isso que nós
estamos precisando e se há uma forma de aproximar o que foi falado, discutido na sessão
da manhã e o que foi apresentado à tarde, eu acho que uma forma de síntese dessas duas
sessões é pensar nessa reforma agrária da comunicação, ou seja, pensar em caminhos pra
distribuir o poder que vem centrado na comunicação e na comunicação midiática, porque
o que eu estou pensando aqui não é na comunicação das abelhas, nem das baleias. Nós
estamos falando de comunicação jornalística. Estamos pensando em comunicação como
mídia jornalística, em especial.
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Acho que aí a gente encontraria um caminho, pelo menos um objetivo - nós vamos buscar
a reforma agrária da comunicação, que, em última análise, é um projeto de democratização
das mídias. E, falando de democratização das mídias, também me refiro ao embaixador
Rouanet quando ele apontou o problema visceral na nossa sociedade que é o déficit de
autonomia política. Esse déficit de autonomia política, se traduz, então, entre nós, de um
lado, numa relação em que a nossa soberania comunicacional ou soberania informacional,
muitas vezes, ameaçada, em especial na área de jornalismo internacional onde eu tive uma
inserção nessa parte final da minha trajetória como jornalista de área.
Eu pude ver, trabalhando na editoria internacional da Folha de São Paulo e depois como
correspondente da Folha de São Paulo em Berlim, como essa quebra da nossa autonomia se
dá a cada dia, em cada texto que nós produzimos, um exemplo que denota essa espécie de
quase violência que nós sofremos em nossa autonomia. Aí, no caso, na nossa autonomia
comunicacional ou na nossa autonomia informacional, eu vivi quando eu cobria a guerra no
território da antiga Iugoslávia. Nesse momento em que eu estive lá a guerra estava na República
da Croácia, que naquela época ainda não havia se tornado independente. Minha base era em
Berlim, mas eu era a correspondente que estava mais próxima do cenário da guerra e então eu
tive essa sorte de conseguir ser enviada para a cidade de Zagreb, capital da Croácia. O que eu
queria naquele momento, o que eu estava buscando? Eu queria ir como jornalista brasileira,
mulher, descrever o que se passa no cotidiano de uma cidade em guerra. Quais eram as
pautas, quais eram os projetos de reportagem que eu tinha? Eu queria saber o que as pessoas
conversavam quando estavam nos abrigos antiaéreos, se havia uma discussão sobre os grandes
temas internacionais, se havia uma discussão sobre as relações dentro da União Européia, se
havia uma discussão sobre a Otan. Eu queria, saber, no dia-a-dia, como é que todos esses
assuntos estavam aterrissando na vida social.
Pra minha surpresa, eu vi o que interessava para o cidadão. Que os frangos tinham
acabado cedo no mercado, e às oito horas já não se podia comprar nenhum frango.
Como colocar as crianças? Porque as escola estavam fechadas e havia o problema de ficar
com as crianças dentro de casa. Então, combinando rodízios, algumas mães ficando com
os filhos das outras, pra que as outras se desocupassem. Os temas eram o filme que
estava passando no cinema, porque uma cidade em guerra continua com o cinema
funcionando e o colega aqui que falou dos comportamentos diante do cinema, ele se
referiu a esse filme belíssimo que é o Cinema Paradiso. O cinema em uma cidade em
guerra funciona, exibe filmes e pra vocês terem uma idéia, o filme que estava passando
era do Rambo e o pessoal preferia ir lá assistir o Rambo e falar do filme do Rambo, em vez
de falar da guerra que estava acontecendo no cotidiano, ali no dia-a-dia.
A minha idéia de fazer uma cobertura de guerra, era fazer esse trabalho na minha condição
de jornalista brasileira mulher. Os colegas que também trabalhavam nesse momento e
que eram meus companheiros no hotel em que nos hospedávamos, eram cerca de trinta
jornalistas estrangeiros, de diferentes países, mas a maioria da Europa e Estados Unidos.
Eles ficavam muito surpresos quando eu dizia que era brasileira, mas o que uma jornalista
brasileira está fazendo aqui, cobrindo essa guerra tão distante. E era muito difícil explicar
para esses colegas, que as guerras distantes, pra nós parecem muito mais próximas. São
dessas guerras que nós queremos ouvir falar. É sobre essas guerras que nós queremos ler e
a nossa guerra cotidiana, que os colegas da sessão da tarde deixaram entrever de uma
maneira maravilhosa. Essa guerra a gente ignora. Como explicar para esses colegas o que
acontece nas nossas esquinas? Nós temos aí uma perspectiva fora de lugar. Isso tudo está
relacionado à violência que a nossa autonomia sofre, a cada texto, a cada momento em que
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nós colocamos a nossa percepção a serviço dos fatos. Essa situação acabou desembocando
num final tempestuoso em que o secretário de redação da Folha de São Paulo me telefonou
e disse, depois de um mês e tanto: não queremos que você continue em Zagreb. Volte para
Berlim e vamos mandar para você os telegramas, os realeses que as agências internacionais
estão nos mandando e você compila porque nós não temos como te manter em Zagreb. De
fato, me manter lá era bastante difícil, porque nos últimos dias eu passei a base de "pipoca",
eu fiquei os três últimos dias comendo pipoca, porque eu tive que usar de todos os meus
artifícios pra economizar o máximo. Pensem, eu estava numa cidade onde eu não podia
recorrer a bancos. Os bancos todos fechados, não havia condição de fazer ordens de pagamento,
ou seja, o dinheiro em espécie que o correspondente leva, ele leva no bolso e tem que viver
com aquilo e conforme ele vai percebendo que o dinheiro vai se escoando e ele quer ficar
mais e quer ficar o máximo de tempo possível. A gente acaba aceitando, como eu acabei
aceitando, fiquei numa pensão de um chinês e comendo pipoca. Isso me deu uma
sobrevivência de mais uns poucos dias, mas depois tive que voltar para Berlim. Essa situação,
portanto, do jornalista no seu cotidiano retrata todo esse déficit de autonomia que nós
vivenciamos. Uma autonomia que é política, uma autonomia que é como cidadãos e uma
autonomia que é profissional também.
Tudo isso é posto em questão, é um contra exemplo interessante e importante. É o caso de
uma viagem que eu fiz e eu consegui voltar depois e nessa segunda vez a cidade estava
cercada, não havia mais aeroportos, trens, ônibus. Não havia nenhum tipo de transporte,
então eu viajei de avião até uma cidadezinha no Sul da Áustria e de lá eu tinha que encontrar
alguma forma de condução pra me levar ao cenário da guerra, e eu cheguei no aeroporto,
nessa cidade no Sul da Áustria, às oito horas da noite, com aquela fila de táxis na frente do
aeroporto e não tinha outro transporte. Eu comecei a conversar com os taxistas. — Quem
pode me levar? — Eles diziam: — mas como? A senhora não sabe, o país está em guerra.
A senhora não pode ir pra lá. Eu disse: - mas é justamente porque está em guerra que eu
preciso ir pra lá. Todos me olhavam muito desconfiados e se entreolhavam, achando que
minhas faculdades mentais estavam abaladas e aí um rapaz mais jovem se aproximou do
grupo e disse: - Eu levo a senhora, eu não tenho medo de guerra, eu sou curdo. Como vocês
sabem, os curdos são um povo que vive na fronteira entre Turquia, Iraque, Irã, naquela
região em que eles estão espalhados e é um povo que não tem um Estado constituído,
então eles vivem divididos entre esses diferentes estados e vivem naturalmente em guerra pra
ganhar a sua autonomia. Esse taxista me levou. Foram 250km percorridos durante a noite,
numa viagem em que nós éramos parados de momento a momento por patrulhas, até que
chegando, por volta de uma hora da manhã, a gente já estava a 8 km de Zagreb e fomos
interrompidos por uma patrulha com soldados trajados em camuflagem e eles acharam que
nós estávamos sinalizando, mas nós estávamos com o farol alto porque tinha muita neblina
de madrugada. Eles achavam que estávamos sinalizando para os aviões. Avançaram sobre o
carro e nós estávamos indo de metro a metro, devagarinho, por causa da neblina, abriram as
portas, puxaram o motorista e eu pra fora, jogaram a maletinha do meu computador longe
e eu levei uns trinta segundos pra me recompor e puxar a minha credencial e gritar (press,
press) que é imprensa, um nome praticamente internacional e aí fomos muito bem tratados
e escoltados pra entrar na cidade, inclusive eles falaram que nós não teríamos conseguido
entrar na cidade, naquela madrugada porque as patrulhas que estavam em trincheiras nos
limites das cidades teriam atirado, vendo um carro assim inadvertidamente entrando à noite,
com blecaute, a cidade toda às escuras. Nós teríamos sido atacados. Esse comandante dessa
patrulha, que nos levou então pra dentro da cidade, nos fez esperar na casa dele que era na
periferia da cidade, nos fez esperar até que amanhecesse e disse que quando amanhecesse
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nos levaria até o centro. Nessa espera, cochilamos um pouco e a minha surpresa foi enorme
quando eu abri os olhos e o mesmo comandante, que antes estava com um uniforme de
camuflagem, aparece com terno e gravata e eu olhei tão espantada e ele percebendo meu
espanto disse: - A senhora está surpresa por eu estar de terno e gravata, eu sou um advogado,
eu agora vou para o centro da cidade trabalhar. Esse trabalho que nós fazemos à noite é um
trabalho da guarda civil, são os próprios cidadãos que se organizam pra vigiar as fronteiras
da capital, pra garantir, então, que qualquer ataque seja avisado em tempo. Mas eu sou um
cidadão como outro qualquer. Agora amanheceu, eu ponho o meu outro uniforme e vou
desempenhar o meu trabalho no centro da cidade, que era justamente onde ficava o hotel
pra onde eu me dirigia.
Então aqui, eu acho que a gente tem um contra exemplo, um exemplo de cidadania, de
autonomia da comunidade dessa cidade, principalmente masculina mas algumas mulheres
participavam também. Pessoas assumem a defesa da sua cidade, assumem a defesa do
seu território e atribuem a si essa autonomia a que têm o mais legítimo direito. Então
essas histórias são sempre pra ilustrar o tema do déficit de autonomia. Um caso positivo e
um caso negativo.
Ainda na palestra do Sérgio Paulo, ele falou de um projeto utópico, como ele mesmo
admitiu, de criação de uma assembléia dos povos e de instalação de uma soberania
popular internacional baseada nesse conceito de "glocalidade", o global e local combinados,
pra garantir que essa soberania popular, no plano internacional, se estabeleça e pra
desenvolver essa idéia ele mencionou um conceito de sociedade civil mundial. Esse é um
conceito que me interessa muito de perto, porque a pesquisa que eu venho realizando é
sobre essa construção dos discursos geopolíticos da mídia e a forma como a geopolítica é
produzida no jornalismo internacional, mesmo esse jornalismo internacional de arremedo,
baseado no trabalho das agências. Essa minha pesquisa tem a preocupação de investigar
a capacidade que temos de desenvolver diálogos transculturais, diálogos que ultrapassem
fronteiras. Hoje é mais fácil ter uma aproximação com grupos interessados em projetos de
ação social em outro continente do que, às vezes, ter uma aproximação com os seus
vizinhos de bairro. Nós estamos vivendo um momento em que cada um vai buscar a sua
comunidade, a sua turma, seu grupo, e essa busca já não precisa se restringir aos limites
territoriais e geográficos. Nós podemos, então, buscar a nossa turma em outros continentes,
países e em outras comunidades e essa é a idéia de uma sociedade civil mundial, uma
sociedade civil que transponha as fronteiras e que se apresente a partir das suas metas, dos
seus objetivos, muito mais do que a partir dos seus vínculos culturais, locais apenas.
Também o embaixador Rouanet falou sobre a questão da ordem, isso foi sobre uma
pergunta que fizeram a respeito do conceito de anarquismo e foi mencionado o conceito
de anarquismo e ele disse não, o anarquismo está num pólo, mas no outro pólo há o
totalitarismo e o que nós devemos buscar é uma posição de equilíbrio, nem totalitarismo,
nem anarquismo, nem o vale tudo e o relativismo total e nem a imposição de um pluralismo,
como a gente viu de manhã o Mahamed Elhajji tão bem apresentar. Quer dizer o pluralismo
imposto, o politicamente correto por imposição e não por escolha. Então, nem tanto ao
mar, nem tanto à terra e essa resposta que o Sérgio Paulo Rouanet deu, me motivou pra
pensar nessa escala de gradação entre uma ordem totalitária e uma ordem anárquica, a
pensar no papel das instituições na sociedade e das instituições democráticas. Na verdade,
as instituições democráticas são o instrumento que a nossa sociedade tem pra regular
esses nossos caminhos e garantir que nós consigamos uma posição de equilíbrio entre
essas duas ordens extremas, essas duas ordem mais radicalizadas.
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Esse papel regulador das instituições democráticas vai trazer um gancho pra pensar no
papel que a mídia desempenha na sociedade e aí esse meu título A Instituição Midiática da
Sociedade vem justamente ao encontro dessa perspectiva, de uma sociedade que se constrói
pela mídia, mas ao mesmo tempo, que essa construção se dê numa moldura de democracia.
O Manfredo Araújo falou muito bem quando disse que a comunicação não é um meio e
sim uma forma de estruturação da sociedade. A comunicação, hoje, ela estrutura, ela é
uma matriz de compreensão da sociedade e a mídia traz essa matriz atualizada, a cada
dia, a cada telejornal. A cada notícia nós vemos que a realidade está sendo construída,
como bem disse o Manfredo, no discurso e no caso aí no discurso midiático, que é o
objeto aqui de interesse mais próximo. Ele também mencionou esse fascínio e esse
mundo espetacularizado que a mídia está construindo, essa "realidade" espetacularizada
mostrando que esse fascínio é um elemento constitutivo da nossa realidade. Aqui eu
encontrei, também, a oportunidade de vincular ao conceito de imaginário, ou seja, por
que o espetáculo, o fascínio nos alcança? Por que a sociedade recebe essa tentação do
fascínio e incorpora e se deixa seduzir por essa mídia espetacularizada? Aí nós, então,
começamos a trabalhar com o conceito que está abaixo da cintura, que está fora da
moldura de razão, que nós costumamos desenvolver nas nossas teorias e o conceito de
imaginário é que vai trazer a possibilidade de pensar nesse mundo que o Alemberg falou
aqui tão bem, um mundo que é o mundo da cultura que está acima das individualidades,
um mundo sobre o qual nós não temos um controle direto e imediato assegurado. Esse é
o mundo do imaginário social.
Vou começar a falar, agora, sobre o conceito de imaginário em Castoriades e como esse
conceito pode ser pensado como caminho para uma revolução social. Pra acelerar um
pouco eu vou ler alguns trechos, comentando-os, pra garantir que eu fique dentro do
meu tempo.
O velho mundo é visto como um mundo apertado, escuro, cheio de regras. O novo
mundo, em contrapartida, é aquele mundo que tem muito espaço e muita luz. A América
é terra de oportunidades, de progresso e de livre iniciativa. A África é um continente de
miséria, subnutrição e epidemias. O Brasil é um território de florestas, índios selvagens,
serpentes, mas também é terra de samba e futebol. Os ingleses são fleugmáticos. Os
latinos são expansivos. O que é tudo isso?
São exemplos de estereótipos, de generalizações que são construídas no plano do imaginário
social. Nós construímos essas generalizações e passamos a tomá-las como dadas. Elas
caracterizam, de uma maneira intuitiva, o conceito de imaginário social a respeito de uma
região, de um país, de um território ou de um povo. O que esses estereótipos trazem na
verdade? Em primeiro lugar, eles são apresentados como retratos completos, de cada um
desses lugares, de cada um desses povos e não apenas como traços. Os aspectos parciais são
construídos também numa percepção parcial. Em segundo lugar, esses estereótipos são
produzidos a partir de pontos de vista que supostamente seriam exteriores a esses países, a
esses povos, a essas sociedades, ou seja, um ponto de vista exterior que seria capaz de fazer
essa apreensão total, de construir essa generalização. Infelizmente é com esse tipo de
generalização que no dia-a-dia da imprensa a gente acaba lidando. A linguagem jornalística
não tem meio termo, ela é a linguagem do preto ou do branco é a linguagem que tem que
ser precisa, então se sai uma manchete: A inflação pode subir, o povo entende que a inflação
vai subir, mesmo quando a imprensa se cerca de cuidados pra buscar uma certa precisão,
para buscar uma certa exatidão, a sociedade já tão habituada a essa forma de discurso
jornalístico do preto e do branco, que ela já interpreta como uma certeza. Pensem, por
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exemplo, na identidade que nós chamamos América Latina, na identidade do que nós
chamamos Brasil, do que nós chamamos Ceará, do que nós chamamos Fortaleza. Essa
identidade é estabelecida como se pudesse ser reconhecida a priori, ou seja, a existência,
o modo de ser vão preceder a própria investigação e descrição dessas identidades. Elas já
são dadas. Nós ouvimos falar em América Latina, Brasil, Ceará, Fortaleza e nós achamos
que já sabemos do que se trata. Na nossa comunicação e na nossa comunicação jornalística
nós trabalhamos com uma ilusão de precisão, trabalhamos com uma certeza, em relação
à comunicação, que na maioria das vezes não encontra nenhuma base na realidade. Hoje
pela manhã se falou - acho que foi o Rouanet - que a comunicação pra se dar é preciso que
seja validada entre os sujeitos envolvidos, quer dizer, intersubjetivamente. É preciso que
um sujeito reconheça o que o outro está falando, não como sendo o certo ou o errado,
mas como sendo comunicativamente válidos, e isso deve ser recíproco para que a
comunicação se dê.
Quando nós construímos esses estereótipos a respeito de entidades como países, cidades,
ou continentes, nós estamos contando com essa validade intersubjetiva. Nós estamos
contando que esses estereótipos também sejam comunicativamente válidos para os nossos
interlocutores. Na sociedade em que esse tipo de enunciado é produzido, é preciso pensar
o que esses estereótipos fazem. Quais são os elementos e as relações que eles estão
contribuindo pra instituir? O Brasil é um país de altíssima complexidade. Ainda há pouco,
conversando com a Cláudia Leitão, ela me dizia: - é, mas nós não temos a palavra
"sudestinos" pra nos referirmos aos habitantes do sudeste do Brasil. De fato, nós temos os
sulistas, os nortistas, os nordestinos, mas quem é do sudeste é o quê?
Vejam, então, falta um nome, é sugestivo. Por que faltam nomes? Faltam nomes quando
nós não indicamos como objeto de fala, como objeto dessa comunicação intersubjetiva
a situação de ser habitante do Sudeste. Então o habitante do Sudeste é aquele, em princípio
do qual não se fala na sua condição de "sudestino". Vejam, então os estereótipos existem
também pelo avesso. Se eu falo dos Ingleses como fleugmáticos, mas deixo de falar dos
sudestinos como sudestinos porque, também, não tem palavra pra tal. Tanto num caso,
como no outro eu estou constatando um bloqueio na comunicação. De um lado porque
tem uma generalização excessiva porque elegeu só um predicado, só um atributo pra
nomear todos os Ingleses, e do outro lado porque não se elegeu nenhum atributo que se
refira a essa condição de homem ou mulher "sudestino".
Nós estamos falando aqui de bloqueios, que se estabelecem na comunicação a partir da
nossa capacidade de nomear e a partir da nossa incapacidade de nomear. Então, pra
caracterizar a forma como uma sociedade se institui pela linguagem e aqui no caso nós
queremos falar da linguagem da mídia, nós temos que constatar que essa linguagem,
institui a sociedade através de escolhas, escolhas que ficam, quando eu digo abaixo da
cintura, no plano do imaginário são escolhas, das quais nós não temos consciência, faltam
palavras ou há palavras que não dizem tudo que gostaríamos e nós lidamos com esses dois
tipos de limite. Então, perguntar sobre o que esses bloqueios fazem, na verdade, é perguntar
também sobre de que forma eles contribuem para instituir a sociedade. Por que eu estou
usando a palavra instituir? - Quando falamos de instituição, nós estamos pensando numa
organização que é regulada, numa organização que se comporta mediante regras, mediante
normas. Então, podemos dizer que as sociedades também podem ser compreendidas
dentro de uma escala de institucionalidades. Há situações em que a intitucionalidade já
está muito fortalecida, já é muito claro pra aqueles que participam da comunidade. Quais
são as regras instituídas? - Podem ser violadas, lógico. Até um colega fala que o brasileiro
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É preciso pensar nas contradições que vão aparecer nesses bloqueios que nós estamos
identificando. Quais são os valores e quais são os poderes que esses bloqueios revelam?
Que poderes e valores eles instituem ou destituem? Nesse potencial que esses atributos
têm de separar e de reunir grupos de nós e grupos de outros. O que te aproxima do
seu vizinho? - Ah! Ele também é cearense, ele também é jornalista - Você escolhe qual
é o atributo que vai ser tomado como referência pra construir uma comunidade e é
nessa medida que se pode então pensar na mídia como um instrumento poderoso pra
construir comunidades.
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tem o prazer de quebrar as regras. O gozo pela quebra das regras. Tudo bem violar as
regras, gozar quebrando as regras, mas as regras estão lá. As regras são objeto de uma
partilha que é intersubjetiva, mesmo quando violadas.
Esse é o poder da linguagem, mas é o poder, aqui no nosso caso, do discurso jornalístico.
Quem tem esse poder de decidir quais são os atributos que vão ser tomados como referência
pra identificar determinados grupos? Vamos ver um exemplo concreto. Vejam o caso do
conceito de cidadania. Nós podemos ser cidadãos econômicos, sem sermos cidadãos
culturais. Por exemplo, na União Européia, hoje, há uma aproximação, há uma unificação
econômica, mas as culturas ainda são restritas às regiões, aos países, aos territórios. Como
falar de cidadania na Europa? O que é uma cidadania européia? Não é uma cidadania
plena, é uma cidadania econômica, é uma cidadania administrativa em termos burocráticos.
Quer dizer, há um passaporte comum, mas ainda não é uma cidadania cultural. Nós
podemos, também, ser cidadãos políticos sem sermos cidadãos sociais. Por exemplo, os
eleitores brasileiros, vivendo em nível miserável e excluídos do consumo, são cidadãos
políticos, porque votam, mas não são cidadãos sociais, ou seja, não têm igualdade de
oportunidade de consumo em relação ao resto da sociedade. Por causa disso, Cristóvão
Buarque chama esses cidadãos de "instrangeiros" que são os estrangeiros de dentro da
nossa própria comunidade brasileira. Nós podemos, também, ter cidadãos culturais, sem
que sejam cidadãos políticos. Por exemplo, vocês sabem que na Alemanha os turcos já de
terceira geração, já o pai ou o avô viveram na Alemanha. Mesmo esses turcos de terceira
geração não têm direito ainda ao voto.
Nós podemos repensar os conceitos, a partir do atributo específico que, por um fator
ideológico, por um fator político, por um fator econômico, nós elegemos como o atributo
que vai ser tomado como consenso e nós estamos vendo que esse consenso então tem
uma fabricação muito problemática.
Então, o que o Castoríades traz como contribuição pra pensar a construção da sociedade
a partir desse imaginário social é compreender que nós nos estruturamos socialmente
a partir de duas lógicas muito distintas, uma lógica que é a lógica do dizer e a outra
lógica que é a lógica do fazer. Na lógica do dizer nós trabalhamos com conceitos
estáveis, supostamente estáveis, nas lógicas do fazer das quais a gente viu aqui pela
tarde exemplos então muitos significativos. Nessas lógicas do fazer fica mais difícil
identificar e surpreender a manifestação desse imaginário social para as elites, nas
classes populares, ao contrário, esse fazer é muito mais facilmente identificado como
uma lógica que permeia o cotidiano.
Então, digamos que nós vivemos uma espécie de segregação em que há uma sociedade do
dizer e uma sociedade do fazer. Essa segregação tem uma genealogia, tem uma raiz histórica,
uma cisão entre o que nós fazemos e o que nós dizemos. O melhor exemplo é em relação às
nossas instituições. Na área jurídica temos um problema: fazemos uma lei. E o quê fizemos?
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Resolvemos pela lógica do dizer, mas na prática a lei necessariamente não se cumpre, então
parece que nós vivemos numa certa lógica intermediária em que a lei vale, mas a lei vale para
o outro, então nós construímos a lei dentro da lógica do dizer, mas na hora do fazer cada um
faz como quer. Então nós vivemos nessa cisão entre o discurso e a prática, daí a minha
alegria e a minha emoção de ver como esses dois planos aqui hoje nessas sessões da manhã
e da tarde se mostraram tão próximos e de repente essa integração hoje deu mostra de não
ser nenhuma utopia, isso é um projeto que está aqui, que está presente e que acho que,
hoje, nós todos aqui que testemunhamos e acompanhamos as apresentações, podemos
testemunhar, está muito presente e é real.
Pra avançar na terceira parte da minha exposição, eu vou abreviar um pouco. Então
lembrando, a terceira parte é sobre os modos de instituição midiática de comunidades.
Nessa terceira parte, eu retomo as idéias do Castoriades que são mais abstratas e de
seguimento mais difícil pra dialogar com a sociologia de Bordier. Então, eu tomo a economia
das trocas simbólicas de Bordier e coloco Bordier e Castoríades na mesma mesa para os
dois conversarem. E afinal, que revolução social é essa, que esses dois grandes pensadores
podem nos fazer, nos indicar como caminho?
Para Bordier, a vida política pode ser descrita como uma vida de trocas simbólicas, então na
vida política são trocados valores, às vezes se troca, também, economia material em espécie.
O Brasil de hoje está demonstrando que na vida política as trocas não são só simbólicas. Nós
estamos vendo que são trocas materiais bem concretas também, mas nesse plano das
trocas simbólicas então, há uma oferta e procura e uma distribuição de instrumentos de
produção e difusão de representações de mundo. Então a maneira como nós exercemos o
poder sobre os instrumentos de fusão, de produção, de representações de mundo, ainda é
bastante assimétrica, o que gera uma disputa entre diferentes formações sociais que brigam
pelo seu modo de representar o mundo, que brigam pelas suas interpretações.
O Luís Paulo falou hoje pela tarde, que ele não quer mais ouvir essa conversa de que a
periferia tem que fazer a sua própria mídia. Eu achei muito interessante essa idéia. Ele
disse: - nós já temos a música da mídia, a gente já tem a música da periferia, nós já temos
os produtos da periferia e nós não queremos uma mídia da periferia. Nós queremos a
mídia, ou seja, o espaço público que esteja acessível a todos os segmentos da sociedade.
Então, quando o Luís Paulo disse que não quer a mídia da periferia, ele não quer um
espaço segregado, ele quer que a periferia participe do espaço público, que a mídia da
periferia seja mais uma mídia no conjunto de todas as mídias que atendem aos interesses
dos diferentes segmentos da sociedade, com igual peso, com igual valor, com igual acesso
a esse espaço público que é a mídia.
Então, essa concepção da mídia como uma arena onde os diferentes segmentos sociais têm
que disputar o seu espaço, onde os diferentes segmentos sociais têm que garantir o direito
de aceso, leva ao conceito de excluídos do espaço público midiático. Quem são os excluídos?
- Cada um de vocês nas suas comunidades, porque a gente participa de várias comunidades,
como eu mostrei, dependendo do atributo que seja tomado como referência, você participa
de diferentes comunidades. Nessas diferentes comunidades nós podemos olhar e identificar
quais são os excluídos. Então, na cidade de São Paulo, por exemplo, até agora, a pouco
tempo, nós constatávamos que os "sem teto" não tinham nenhum aceso à mídia e "sem
tetos" são grupos que buscam espaço de moradia, sobretudo, no centro de São Paulo, que é
um espaço esvaziado, que foi abandonado pelas elites e ficou um espaço meio que largado.
Ali circulam traficantes, prostitutas, ficou um espaço que tem dono na escritura, mas não
tem dono concreto direto e esses "sem teto" estão pleiteando que esses grandes espaços,
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Então, alunos meus, orientandos do programa de Pós-Graduação de Comunicação Jornalística
da PUC de São Paulo, foram buscar essa comunidade que não tinha acesso ao espaço
público da mídia e descobriram que o jornalista, hoje, não precisa estar em crise, que o
jornalista que está em crise é o jornalista de redação, é o jornalista que quer trabalhar com
carteira assinada numa situação funcional estável, porque o jornalista que está a fim de
arregaçar as mangas e buscar o seu papel como jornalista e como cidadão, ele pode identificar
quais são os segmentos da sua comunidade que estão excluídos e ir lá para oferecer a sua
competência jornalística pra esses segmentos. Esses segmentos não têm aceso à mídia por
que não desenvolveram a competência pra gerar fatos que cheguem até aos veículos de
comunicação. Se eles conseguem gerar um fato de grande impacto, é claro que eles vão
ganhar o acesso da mídia, porque a mídia, a despeito de todos os aspectos de manipulação
que também permeiam as suas práticas, acima de tudo, ela trabalha com o conceito de
noticiabilidade. Se você gera um fato que é notícia, esse fato vai ser mostraso. Então, é essa
competência jornalística que o profissional pode ir buscar, pode ir levar para os excluídos e
aí não se trata de fazer uma mídia da periferia, se trata de oferecer e contribuir com uma
competência para uma comunidade que quer ter o acesso à arena do espaço público.
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grandes apartamentos, grandes áreas do centro de São Paulo, sejam, já que estão ociosos,
distribuídos a quem não tem moradia.
Vou falar da mídia como estruturadora do espaço público. A própria mídia, ela, muitas
vezes é capaz de falar sobre si mesma. Hoje, nós estamos vendo, é muito comum se ver
um jornalista entrevistar outro jornalista. Não sei se vocês têm TV a cabo. Ainda não tive
oportunidade de ver televisão aqui. Não sei como é que funciona a TV a cabo? Na TV a
cabo, os telejornais, são construídos em cima de entrevistas em que o âncora traz um
colega que é jornalista, supostamente especializado, um jornalista político ou um jornalista
econômico que vai dar o seu depoimento e fazer uma análise sobre os fatos. Então, nós
estamos vivendo um momento, hoje, também em que o jornalista, de um lado, ele tem
essa abertura pra se tornar um jornalista social, atendendo aos segmentos excluídos da
arena pública, mas, de outro lado, ele trabalha no sentido inverso, ele se fecha e vai
buscar como fonte, companheiros que são também jornalistas, e aí o jornalista entrevista
o jornalista, que entrevistou outro jornalista, que, por sua vez, tomou outro jornalista
como fonte e a gente pode desenvolver aí uma cadeia em que se dá uma autoreferencialidade da mídia. É o jornalismo falando de si mesmo. Essa auto-referencialidade
às vezes acontece por boas razões. Nós vimos um bom exemplo que foi a cobertura da
primeira guerra, a Guerra do Golfo, uma cobertura em que se tinha muito pouco material
de informação porque se monopolizou a informação e ali naquele momento o que restava
aos jornalistas? Eles tinham que citar outros jornalistas, eles tinham que remeter a outros
jornalistas. Então nesses casos a auto referencialidade até se justifica, mas esse jornalismo
que se alimenta do próprio jornalismo, esse jornalismo que fala do próprio jornalismo e
que dá como notícia o próprio jornalismo é uma forma autofágica de instituir, então, o
jornalismo, como uma atriz estruturadora da sociedade. É um jornalismo que se fecha na
própria comunidade jornalística em vez de se abrir para a sociedade. Para finalizar, então,
esse conceito que eu trouxe de mídia como um discurso público, é um discurso público
regulamentado, é um espaço que instaura previsibilidades a respeito de quem pode
participar, de qual evento comunicativo, em qual papel, junto com quem, pra falar sobre
o que, quando e onde. Esse espaço, portanto, é tão fortemente regulamentado que eu
diria que para fazer a reforma agrária da comunicação, nós temos que trabalhar, hoje,
numa desregulamentação da mídia, e fico por aqui.
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Moderador: Silas de Paula - Doutor em Comunicação pela Universidade
Loughborough, Inglaterra. Fotógrafo e Professor Adjunto do Depto. de
Comunicação Social da UFC.
ManfredoOliveira
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Doutor em
Filosofia pela Universidade de Ludwig-Maximilian de Munique, Alemanha. Professor
Titular de Filosofia da UFC.
Comunicação, ética e cidadania.
A) A Intersubjetividade simbólica enquanto lugar da comunicação na vida humana.
É enquanto "ser simbólico" que o ser humano manifesta de uma forma privilegiada a
"sociabilidade" como uma dimensão essencial de seu existir. Certamente se pode falar de
uma corrente de consciência pré-lingüística, do mundo das vivências humanas, mas mesmo
as necessidades mais íntimas e os sentimentos mais profundos do ser humano se diferenciam
de acordo com suas articulações lingüísticas e é fenômeno conhecido pelos cientistas
sociais que uma linguagem comum exerce uma influência determinante de unificação
sobre o mundo dos sentimentos humanos.
Em virtude do papel tão central que a linguagem exerce na vida humana, desde muito tempo
emergiu a preocupação de tematizar as funções básicas que ela desempenha na existência
humana. Elemento fundamental nesta determinação é a consideração de seus elementos
constitutivos. Neste contexto, é importante a consideração de Ch. Peirce sobre a linguagem
humana em sua semiótica. Para ele, todo conhecimento humano é mediado por signos e
possui uma "estrutura triádica", pois ele é sempre uma relação entre: a)um objeto real, a coisa
que é apresentada; b)um signo que estabelece a relação com ela; c)os usuários dos signos, a
comunidade lingüística que interpreta os signos, ou seja, os sujeitos que precisamente através
deles estabelecem relações intersubjetivas e se constituem como comunidade.
A partir daqui o conhecimento humano se revela como interpretação de algo que é mediado
por signos e seu sujeito não pode ser um sujeito puro, fora do mundo e da história, mas
é um sujeito real que vive no mundo dos signos no contexto do mundo social que se forja
a partir deles de acordo com regras que se institucionalizam e se configuram como estruturas
articuladas. Estes sujeitos reais expressam a si mesmos e se entendem entre si sobre algo
no mundo através das formas simbólicas que estão sempre inseridas em contextos sóciohistóricos específicos. A linguagem unifica, portanto, em si o mundo dos objetos, o
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mundo do sentido, o mundo subjetivo e o mundo intersubjetivo, o que vai desembocar
na tese de que o conhecimento humano é antes de tudo um entendimento intersubjetivo.
Isto implica em afirmar que toda relação sujeito x objeto já está sempre mediada pela
relação sujeito x sujeito, lingüisticamente mediada. Com isto se revela uma dimensão
central no existir humano: o ser humano não simplesmente existe, mas dá sinais de si
mesmo, apresenta o mundo e se constitui enquanto ser social. Ele se revela como aquele
que interpretando sinais interpreta o mundo que ele tem através da mediação destes
sinais. É justamente neste sentido que se pode dizer ser a linguagem a mais fundamental
das instituições sociais: toda a organização da vida social ocorre através da linguagem, de
tal modo que ela é produto e expressão do ser comunitário e enquanto tal o primeiro
recurso para a criação e conservação de novas relações.
Daqui emergem horizontes novos para a compreensão da linguagem humana: o ser humano
não só através dela ultrapassa o mundo imediato das situações e dos instintos, mas situa sua
vida no mundo do sentido aberto pela palavra e é isto que constitui propriamente sua casa
no universo. O homem que fala põe sentido e precisamente aqui se situa o que distingue
a palavra do simples ruído, pois, sendo ela algo material, aponta, contudo, para algo de
outra esfera ontológica, o significado. A simples percepção - a mesa é marrom - já possui
uma estrutura proposicional: nela algo é determinado enquanto algo, o que só é possível
porque já situamos o objeto em questão no horizonte de sentido intersubjetivamente partilhado
por um grupo humano em seu mundo vivido , ou seja, "o filtro simbólico apanha-o em suas
redes e situa-o fortemente num conjunto ligado". Isto implica dizer que o entendimento
humano ocorre sempre num duplo nível, ou seja, no nível do conteúdo proposicional
(dimensão semântica) e no nível da dimensão performativa (dimensão pragmática) em que
estabelecemos diferentes tipos de relações sociais mediadas pela linguagem. A linguagem
é, assim, tanto o espaço do desvelamento do sentido como de sua possível crítica.
É só através desta interpretação que nossa percepção se completa e assim, falando, fazemos
a realidade familiar a nós, ou seja, a realidade, efetiva ou possível, necessária ou contingente,
numa palavra, a totalidade da realidade se nos revela através da mediação da linguagem. Ela
se constitui a mediação fundamental da presença a nós das coisas, das pessoas e de nós
mesmos a nós mesmos. Precisamente isto constitui o ser da palavra e funda os mundos
simbólicos onde o ser humano emerge e vive, ou seja, já sempre num contexto de relação
aos outros num mundo dotado de sentido: a subjetividade já se constitui no seio de um
contexto de relações simbolicamente mediadas. Quem aprende uma língua é introduzido
num mundo de significados já sempre intersubjetivamente compartilhados e é neste seio
que se pode constituir a consciência individual até chegar ao nível da capacidade de inovação
criativa e de posição crítica frente ao todo do mundo intersubjetivo em que se situa. É por
esta razão que M. Scheler afirma que sem saber já sempre vivemos no passado que permanece
atuante em nossas vidas através do poder da tradição que nos marca.
É importante, justamente para poder refletir sobre o poder dos meios de comunicação em
nosso mundo, lembrar que a força da tradição em nossas vidas não se limita à transmissão
de determinadas concepções que se tornam familiares, mas, sobretudo, através do saber
implícito que normalmente não somos capazes de tematizar e mesmo assim tem profunda
influência em nossas vidas . É este saber que constitui o pano de fundo de sentido a partir
de onde nos situamos no mundo e isto tem enormes conseqüências para a configuração
de nossa vida social. Isto nos ajuda a compreender uma questão fundamental: através da
tradição, de seu saber implícito, podemos estar introjetando erros, ideologias, concepções
que justificam a exploração e a destruição da vida humana e da natureza. Este é o preço
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que o ser humano tem a pagar para ter acesso ao mundo espiritual: ele não existe fora dos
sistemas simbólicos que ele em sua história vai criando e que o criam. Mas, é também
neste contexto, que se vão formando os conceitos universais que tornam, por exemplo,
possível o desenvolvimento da ciência e que revela claramente a tendência do espírito
humano de superar as experiências sensíveis.
É partir de uma consideração sobre a linguagem, que se manifesta o que caracteriza o ser
humano enquanto ser humano: a capacidade de levantar a questão da validade. Quem
fala transcende o mundo dos signos na direção das coisas do mundo (mundo objetivo),
dos outros (mundo intersubjetivo) e de si mesmo (mundo subjetivo) e levanta pretensões
de validade a respeito dos fatos do mundo objetivo, da correção das normas que regem a
vida social e de suas próprias vivências subjetivas . Ora, levantando a questão da validade,
o ser humano transcende o fático, o que revela que o sentido abre o espaço do
questionamento, da crítica. Quem fala se põe no espaço de uma possível argumentação
que tem como finalidade buscar as razões que legitimam as pretensões de validade já
sempre implicitamente levantadas nos proferimentos lingüísticos: a linguagem abre para a
vida humana o espaço do co-existir na esfera do sentido. A ação do ser humano no
mundo se situa neste espaço aberto pelo sentido, que não apenas é sentido já efetivo, mas
também sentido a ser efetivado pela práxis humana.
Portanto, é no seio dos mundos simbólicos que o ser humano pode levantar a questão da
validade e ter acesso à verdade libertando-se dos erros recebidos, o que revela a capacidade do
ser espiritual de transcender sua própria tradição histórica e questioná-la, embora por ela
marcado. Assim, o ser humano só conquista sua capacidade de autonomia no pensamento e
na ação no seio de uma comunidade cujo valor se mede precisamente por sua capacidade de
permitir e promover a transcendência, objetivamente fundamentada, de suas próprias tradições.
A emergência da palavra é a dissolução da inocência originária, da ingenuidade. Tudo pode,
em princípio, ser posto em questão pela força da palavra. Desta forma, a palavra abre o
espaço da história. Pela crítica, ela torna o ser humano capaz de transcender o faticamente
existente e abrir-se para a esfera do possível na busca de novas configurações de seu ser.
Portanto, a linguagem é o espaço da reflexão e enquanto tal se mostra como a instância
de que dispõe o espírito para ter acesso à verdade a que em princípio é aberto.Mas ela
também é a instância do possível erro, porque estabelecendo, pela mediação do mundo
dos signos, uma esfera de distância tanto do real como do pensamento, ela tem possibilidade
de dissimulação e, assim, abrir o espaço para o erro, o engano, a fraude, a falácia, o ardil.
Os símbolos possuem lógica e poder próprios: têm enorme capacidade de provocar
determinados comportamentos coletivos, mesmo em total independência em relação à
realidade a que se referem: se existe ou não, se é criação sua ou não, se está sendo
devidamente apresentada ou não. Uma palavra tem o poder de despertar sentimentos
humanos que muitas vezes nada têm a ver com seu significado.
Neste horizonte, aparece como primeira função da linguagem a capacidade de exteriorizar
pensamentos primeiramente em símbolos que procuram de certa forma imitar o que
exprimem, depois em signos, cuja característica é a total separação física do que expressam
e que têm como traço essencial a significação: signos significam algo. Através deles a
linguagem apresenta objetos do mundo dos objetos, expressa a riqueza do mundo interior
e constitui relações sociais.Numa palavra, o falante comunica pensamentos a outros e
através disto constitui intersubjetividade. Entre a consciência e o mundo se põe na vida
humana o mundo dos símbolos que constitui o alicerce do mundo humano comum e
enquanto tal a linguagem se revela como o fundamento de toda cultura.
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Num primeiro momento, consideramos a comunicação como momento fundamental da
constituição do ser humano, isto é, a consideramos enquanto uma propriedade constitutiva
do ser humano enquanto tal. Contudo, em virtude da historicidade da vida humana, a
comunicação assume formas e significações diferenciadas nos diferentes contextos sóciohistóricos em que os seres humanos se inserem. Daí a pergunta inevitável: como se configura
a comunicação em nossas sociedades? Vivemos hoje num mundo da comunicação, mais
do que isto: a comunicação parece dever regular todos os problemas humanos. Ela
literalmente invade em nossos dias todos os campos da vida humana: as empresas, os
meios políticos onde o marketing político e a imagem se tornaram questões fundamentais,
a imprensa, a publicidade, o mercado editorial, a esfera das religiões, as terapias individuais
e grupais, as ciências comunicativas, das organizações e das decisões, as próprias ciências
exatas, a inteligência artificial, a informática, as ciências cognitivas, etc.
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B) A comunicação na sociedade da sensação e do enfeitiçamento.
Assim, a comunicação não diz respeito apenas aos meios de comunicação e não só a uma
dimensão constitutiva da vida social, mas tem a ver com uma forma determinada da
própria sociedade ser e se configurar e está radicalmente vinculada à revolução tecnológica
da modernidade que transformou a técnica em medida para o progresso e a felicidade do
ser humano e fez dela a grande força espiritual da humanidade muitas vezes escamoteando
a desigualdade de seu uso em nossas sociedades. Por esta nova configuração, ela provoca
uma reelaboração do caráter simbólico da vida social enquanto tal ligada à pretensão
moderna da realização tecnológica dos desejos humanos.
Na realidade, a "revolução comunicativa" provocada pelo desenvolvimento dos meios de
comunicação de massa modificou profundamente a comunicação humana nas sociedades
contemporâneas e reestruturou de maneira radical as relações entre as pessoas. A primeira
mudança básica é que aqui se passa de uma interação face a face em que os encontros
possuem caráter dialógico e em que os sujeitos são co-presentes e partilham do mesmo
mundo vivido, ou seja, do mesmo sistema de referência espaço-temporal para uma
comunicação que normalmente é de mão única e que usa meios mecânicos possibilitando
a transmissão dos conteúdos simbólicos a sujeitos distantes no espaço e no tempo. Aqui
as formas simbólicas são produzidas para um número indefinido de receptores potenciais.
Uma das conseqüências importantes deste processo é que hoje os indivíduos das mais
diferentes culturas são confrontados com diferentes concepções de vida humana e de sua
vocação e com isto surge, apesar de todas as dificuldades provenientes do complexo
sistema de comunicação, possibilidade de abertura de um diálogo crítico sobre os valores
essenciais da pessoa humana e conseqüentemente sobre a orientação fundamental a dar à
vida. O debate universal se torna tecnicamente possível.
Neste sentido, os destinatários das mensagens destes meios não podem propriamente ser
considerados parceiros num processo recíproco de interação, pois falta a partilha do mesmo
sistema de referência espaço-temporal. Antes ocorre uma espécie de viagem através de
outros mundos vividos, ou seja, de outros sistemas de referência, distintos dos quadros
referenciais da vida cotidiana. Isto não implica, contudo, que tenhamos que necessariamente
considerar os meios de comunicação de massa como instrumentos todo-poderosos capazes
de determinar de forma inexorável a forma como as pessoas pensam e agem em nossas
sociedades. Hoje se dá muita atenção aos processos de apropriação e seleção dos conteúdos
significativos, isto é, para a forma de elaboração e de apropriação das mensagens como
formas de resposta a outros e que elimina a idéia de um público completamente passivo .
Isto, contudo, não significa dizer que não exista mais a "domesticação do imaginário"
como efeito possível da transmissão incessante de notícias e do impacto das imagens.
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Inserida neste contexto sócio-histórico, a comunicação provoca um afastamento entre a
produção e a recepção de formas simbólicas, de modo que as mensagens estão à disposição
das pessoas em contextos muitos distantes daqueles em que são produzidas e, assim, se
faz possível propriamente uma circulação pública das formas simbólicas. O uso cada vez
mais intenso de meios técnicos na comunicação provoca uma alteração das condições
espaço-temporais: os sujeitos adquirem condições de se comunicarem para além das
fronteiras do espaço e do tempo e podem assim agir e interagir à distância e criar também
novas formas para o controle do próprio espaço e do tempo. Isto significa um enorme
alargamento do mundo humano e das condições espaço-temporais da organização social.
Para Thompson, o desenvolvimento das formas de telecomunicação provocou uma
separação do espaço e do tempo, uma vez que o distanciamento espacial não requer mais
a partir de então distanciamento temporal. Esta separação entre espaço e tempo preparou
o terreno para uma transformação radical, ou seja, para o que ele chama "a simultaneidade
desespacializada": no passado, simultaneidade pressupunha identidade de tempo e espaço
o que não é mais necessário.
Passam aqui para o primeiro plano certos recursos técnicos e institucionais de produção
e difusão de mensagens, o que significa acoplar todo o processo à indústria destes meios
e conseqüentemente ao capital e aos processos de sua valorização. Este processo vai
inevitavelmente vincular a comunicação ao mercado e, conseqüentemente, aos processos
de mercantilização, "de repressão e de acomodação dos sentidos humanos " aí vigentes.
Comunicação e economia se tornam processos inseparáveis. É por esta razão que M.
Castells é de opinião que a nova revolução tecnológica das tecnologias da informação
reestrutura a própria base material da vida social. As economias se interconectaram entre
si e integraram o mundo em redes globais criando um número enorme de comunidades
virtuais e dando origem a uma forma nova de relação entre estado, sociedade e economia
que provocou a emergência de uma nova configuração do sistema capitalista. Neste
contexto, a tecnologia da informação se transformou num instrumento imprescindível em
todos os setores da vida social, sobretudo no que diz respeito à produção cultural e ao
acesso à informação e é ela o canal privilegiado através do qual os indivíduos hoje
experimentam o que seja a realidade.
A nova evolução é basicamente uma revolução do conhecimento, uma vez que diz respeito
à pesquisa, ao processamento e à comunicação de informações aos outros, e,
conseqüentemente, a uma nova forma de venda de bens e serviços, o que conduz a uma
série de problemas sociais e políticos novos. Foi precisamente a comunicação eletrônica
empregada nestes processos de geração de conhecimento que tornou possível a penetração
da comunicação em todas as esferas da vida dando origem ao que hoje os analistas de
nosso tempo denominam "Era da Informação", que é baseada em redes de expansão
ilimitada aptas a dar aos seres humanos novas capacidades, novas mentalidades e novas
instituições, novas formas de aprendizagem, convivência e, conseqüentemente, novos
desafios. Elas constituem um caso extremamente importante para o estudo das relações
entre renovação tecnológica e mudanças sociais, mais ainda para a compreensão da
significação para a vida humana da nova estruturação da organização social de que a
esfera tecnológica constitui elemento básico.
Já, de tempos passados, conhecemos um fenômeno que adquiriu proporções fundamentais
na sociedade da informação: o fenômeno do fascínio que foi representado pela forma
antiga dos santos e que continuou presente através dos séculos "nos jogos dos gladiadores,
nas festividades dos hereges, na queima das bruxas, no carnaval e nas touradas". Pode-se
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denominar todos estes fenômenos de "sensacionais" no sentido que esta palavra possui
hoje e que desempenha um papel fundamental na compreensão de nosso mundo: sensação
significava originariamente percepção, hoje significa aquilo que atrai magneticamente a
percepção a si mesma, ou seja, o espetacular, o extraordinário. A percepção do
extraordinário, que era o caso supremo da percepção, se torna o caso ordinário. Assim,
sensacional é aquilo que é capaz de seduzir as massas e constitui uma válvula de escape
para as possíveis frustrações.
O importante aqui é que estes acontecimentos não só significam a quebra da rotina do
quotidiano, o que faz com que o constante em nossa sociedade seja justamente a inconstância,
a inquietude generalizada, a excitação, mas eles estabelecem os limites que definem a
própria existência e seu sentido e, portanto, constituem referências fundamentais para a
orientação da totalidade da vida social. Nossa sociedade se transformou numa sociedade do
espetáculo , na qual notícias não são simplesmente transmitidas, mas produzidas justamente
na perspectiva de chamar atenção. Sensação se faz uma necessidade vital: a luta por aparecer
é uma luta contra a insignificância. Daí a radical inversão: o "transmitir, porque importante"
transforma-se em "é importante, porque transmitido ", ou seja, precisamente em virtude do
fato de que algo seja transmitido, considera-se que ele diz respeito a todos, o que também
conduz a uma espetacularização dos fatos sociais. Hoje nenhum sistema moderno de notícias
pode subsistir sem esta lógica. Há aqui inegavelmente uma imbricação entre poder e relações
de percepção que faz com que a sensação seja tanto uma forma de percepção quanto uma
forma de dominação: ninguém mais pode perceber ou expressar-se a não ser sob as condições
de complexo de sensação, o que muitas vezes conduz a formas de falseamento, encobrimento
e fragmentação da realidade.
Ch. Türcke nos alerta para o fato de que a compreensão adequada deste fenômeno, que
se tornou central em nossos tempos, só se dá através de sua vinculação com a sociedade
moderna produtora de mercadorias. Foi precisamente esta sociedade que fez a fusão do
extraordinário e do comum, até porque o mercado já possui em si mesmo o caráter de
espetáculo: ele exalta suas mercadorias. Ora ali onde o mercado é a instituição fundamental
da vida social, a primeira força de integração da sociedade e também de exclusão dela, ali
onde ele chega mesmo a determinar o sentido da existência, então, os produtos e os
produtores deste mercado são enfeitiçados já que se apresentam como o extraordinário.
Pessoas, acontecimentos e produtos que provocam maior fascínio e espanto são
reconhecidos como algo singular: "aquilo que não se destaca na massa de ofertas não
vende, pois não é verdadeiramente percebido. O que não é percebido é um nada; quem
não é percebido é um ninguém, o que gera uma necessidade premente de autopercepção
ou necessidade de saber se não estamos sendo iludidos em nossas percepções de nós
mesmos, pois disto depende nosso ser. Na necessidade, no desejo da sensação, encontrase a angústia da existência de uma sociedade inteira". Daí a exigência da propaganda:
quem não faz propaganda não tem presença social, não entra em comunicação, portanto,
praticamente não existe, uma vez que a imagem adquiriu importância fundante na vida
humana. Assim, a propaganda se transforma no imperativo da autoconservação, é a nova
formulação do imperativo categórico. Desta forma, a integração no mundo da comunicação
é a nova fórmula para exprimir salvação e humanização.
Articula-se, portanto, uma nova compreensão da realidade enquanto tal e, especificamente,
da realidade humana : ser significa agora "ser percebido".Quem não é percebido literalmente
não é em nossas sociedades da comunicação. Trata-se aqui da primeira afirmação da
ontologia da época micro-eletrônica. É por esta razão que hoje tudo da vida humana é
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mostrado sem qualquer escrúpulo: sofrimento, horror, morte, desespero, sexo. Tudo na
vida real é exibido, inclusive a intimidade, a miséria humana. A sobrevivência é agora
conquistada através da "estética", da manifestação, do parecer, da impressão que se causa:
precisamente nisto consiste a sociedade da sensação , o que conduz a uma questão grave:
o bem e o mal deixam de ser uma questão ética para se transformar numa questão estética
e o estético se transforma na questão decisiva para ser ou não já que em nossa sociedade
ser é aparecer.
A angústia básica da existência é a angústia do aparecer e uma visualização clara desta
nova situação é a velocidade incrível das imagens que se sucedem freneticamente no
cinema e na televisão. Onde a aceleração diminui, o ser deixa de existir: o que não choca,
o que não chama atenção não presta, não é e deve ser substituído por uma nova imagem.
O que não é percebido torna-se marginalizado, não possui direito à existência. Não se trata
aqui do prazer da velocidade pela velocidade, mas de um medo novo de que a humanidade
hoje é profundamente marcada: o medo de desaparecer, de cair no abismo da não-percepção
que é o abismo do não-ser.
Por isto, as pessoas não deixam de estar presentes onde possam aparecer e, por outro lado,
explica-se a necessidade de enviar dados aos outros. Neste contexto o computador se vai
transformar em instrumento universal de trabalho e ponto de encontro de todo o conjunto
de relações sociais através da imensidade de dados que dizem respeito a todas as dimensões
da vida e que nele são armazenados, trabalhados e transmitidos. Armazenar, receber e
enviar dados se vão tornando as atividades humanas básicas. Através de mensagens
eletrônicas meu aqui e agora adquire a dimensão do mundo.Por outro lado, uma
característica curiosa de um emissor de dados é que ele se desvincula de seu aqui e agora
e se transfigura em algo etéreo que se pode captar em todos os lugares num campo
determinado de emissões, mas que não se deixa propriamente apanhar. Para exprimir este
fenômeno se inventou a palavra "realidade virtual". A presença etérea é uma presença real,
com tal poder de ação, que produz para si mesma a aparência de uma força vital coletiva
que não pode mais faltar na vida humana. O grave é que normalmente nos esquecemos
de que se trata de uma realidade fantasmagórica: basta que a energia suma, que a bateria
se esvazie ou que a antena apresente um defeito para que ela desapareça.
É necessário situar toda esta problemática no contexto sócio-histórico do Brasil
contemporâneo.Vivemos num país estranho, pois nele, no Brasil oficial, apenas uma
parcela minoritária de sua população é incluída. Coexistem, no mesmo território, uma
sociedade moderna, que cada vez mais se aproxima econômica e culturalmente dos
países mais ricos do mundo, e uma sociedade primitiva com milhões de habitantes
vivendo nas cidades e nos campos em condições de vida que humilham a pessoa humana.
Esta cisão interna é aprofundada pela forma de inserção na nova configuração da economia
como sistema mundial.
Nesse contexto, os mercados financeiros, cada vez mais, impõem suas leis ao processo
global de configuração da vida humana. Tal processo não só não atenuou as desigualdades,
mas seguramente as aprofundou. Suas conseqüências estruturais são pobreza, instabilidade,
desemprego: o desemprego e o emprego instável de milhões de pessoas é o sinal mais
visível de um processo de desenvolvimento, que está criando pessoas literalmente inúteis
à nova ordem mundial. 4,5 bilhões de pessoas no mundo vivem na pobreza, 2 bilhões
sobrevivem com menos de um dólar por dia. Todo este processo se agrava ainda mais com
a tese hoje difundida de que devem ser eliminadas as distorções de mercado, ou seja, as
intervenções na economia destinadas a fazer com que a economia se volte à satisfação das
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Esta situação já é, em si mesma, trágica, mas tem um agravante: a resignação, que se
torna cada vez mais difundida, a convicção, profundamente arraigada de que nada se
pode fazer, pois o ser humano é incapaz de legitimar qualquer sentido, que fundamente
uma tomada de posição frente à realidade de sua vida. Na modernidade se considerava a
razão, como pensou toda a tradição do ocidente, a instância capaz de estabelecer critérios
a partir de onde seria possível criticamente situar-se no mundo. A pós-modernidade nos
pretende convencer da impossibilidade de um tal empreendimento. Não existe a razão
única e universal, o chão da vida humana é o mutável, o contingente, o provisório:
vivemos numa multiplicidade de muitas razões, subsistemas e jogos de linguagem. Não
há unidade na realidade de tal maneira que se pudesse articular um sentido unitário para
a vida humana. Ao invés de uma grande narrativa, capaz de legitimar os outros discursos,
como foi a pretensão da filosofia da tradição, deparamo-nos hoje com uma série de
pequenos relatos, sempre de perspectivas locais, de jogos de linguagem diversos, cada
um com seu sistema específico de regras .
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necessidades humanas. Assim, são consideradas distorções de mercado as leis trabalhistas,
o seguro desemprego, as políticas universais de educação e saúde, as de pleno emprego
e proteção ao meio ambiente, o que vem causando uma crescente exclusão e marginalização
de grande parte da população.
Aqui são privilegiadas a heterogeneidade e a diferença, a fragmentação e a indeterminação
do pensar como forças libertadoras da vida humana frente ao caráter opressor e nivelador
de todo discurso universalista . A verdade não depende da razão, mas dos regimes de
poder: instituir uma verdade é um ato essencialmente político, é o exercício de um poder.
Por esta razão, não tem sentido buscar os fundamentos de inteligibilidade da vida humana
enquanto vida histórica: não há essência alguma a se realizar na história, não há uma
ordem subjacente a tudo que acontece como não há uma finalidade única para a qual
tudo deve tender.
C) Ética e História Atual.
Muitas vezes, ao ouvir a palavra ética, as pessoas pensam, antes de tudo, num código de
deveres, num fardo pesado que torna a vida diminuída, sem gosto, sem qualidade. Ocorre
que a ética caracteriza um ser, que não apenas vive, mas que se pergunta pelo sentido de
tudo e, portanto, pelo sentido de sua vida, pela razão de ser de suas ações. Já na Grécia,
a ética nasceu no seio da polis como a pergunta pelos critérios que tornassem possível o
enfrentamento da vida com dignidade. Isto significa dizer que o ponto de partida da ética
é a vida mesma, a realidade humana, que, em nosso caso, é uma realidade de fome e
miséria, de exploração e exclusão, de desespero e desencanto frente a um sentido para a
vida humana.
Muitos defendem hoje que a história humana não tem um objetivo, é destituída de um
sentido que possa fundamentar as ações dos seres humanos, pois não há instância fundante.
Todas as condições são estritamente contingentes e é absolutamente inútil dotá-las de um
fundamento. A história não é o esforço de auto-realização da humanidade, pois a
humanidade mesma é uma das ilusões que desapareceram. Sendo assim, todas as éticas
são necessariamente contingentes, limitadas, diferenciadas sem qualquer sinal de pretensão
ao estabelecimento de normas e fins últimos extensíveis a todos os seres humanos. A
ética se torna, em última instância, uma invenção da cada um, a pluralidade é o único
valor legítimo e qualquer unidade última está sob suspeita de ilusão metafísica. O grande
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mérito da pós-modernidade não é aguçar nossos sentidos para captar as diferenças, para
compreender as formas diferenciadas de conceber e apresentar a verdade? Uma cultura
pós-metafísica não prescinde mesmo da verdade? O reconhecimento das diferenças e da
pluralidade na vida humana não constitui uma riqueza?
No entanto, perguntas inconvenientes para esta mentalidade permanecem: se o homem
pós-moderno se contenta com as ciências, como responde ele às questões da fome e da
injustiça, ou seja, ao clamor do que grita: tenho fome, por isso exijo justiça? Liberdade e
justiça não são mitos que desapareceram? Que se pode dizer aos milhões de excluídos,
aos domesticados em seu imaginário e enfeitiçados em suas aspirações, aos silenciados e
marginalizados? Por que não se pode perguntar pelo sentido último da existência humana,
de suas conquistas e de sua história, da técnica, da comunicação, da vida e da morte?
Não é esta proibição nela mesma um ato totalitário, realizado precisamente por aqueles
que se contrapõem (em nome de que?) a todo totalitarismo? Por que proibir?
É necessário levar a sério a exigência permanente que marca a existência humana: a
exigência de encontrar uma configuração de seu ser e de seu mundo. Trata-se da necessidade
de construir-se, o que implica a possibilidade do fracasso, portanto, a possibilidade de
autonegação, de alienação do próprio ser. Neste horizonte é fundamental para o ser
humano tematizar o horizonte a partir de onde ele pode perguntar, se o que ele faz
conduz à realização de seu ser e, com isto, o liberta das causas cegas que o impulsionam.
Trata-se aqui de fazer emergir aquilo que caracteriza o ser humano no meio dos seres: a
questão da validade .
O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade de sua própria práxis, da
forma de seu existir, o que significa transcender o mundo dos fatos na direção da tematização
da esfera normativa, que lhe abre a possibilidade de afirmar que, o que é, não deve ser e
que algo, que ainda não é, deve ser, ou seja, que a realidade deve ser transformada. É
precisamente isto que manifesta o caráter paradoxal de nosso ser: sempre realizado de
uma forma específica, e sempre para além de qualquer fechamento, pois sempre capaz de
levantar a questão da validade de qualquer forma de sua realização teórica ou prática e
assim de abrir-se ao processo de sua superação. Nenhum mundo histórico é capaz de
aprisioná-lo de modo definitivo, pois, a pergunta, em sua radicalidade, mostra que o
homem é capaz de transcender qualquer realidade imediata, qualquer dado. Ele não está
preso a nenhum mundo, mas é transcendência constante, tarefa permanente, portanto,
existe sempre como realidade a ser construída.
A cultura pós-moderna nos chama atenção para algo fundamental: o ser humano só pode
efetivar-se em mundos históricos concretos, que são o fruto de sua ação. A ética emerge
neste contexto como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar
o mal e conquistar a humanidade do homem enquanto ser livre. Sendo assim, ela é
mediação para a humanização do ser humano, para a efetivação de um mundo humano
enquanto mundo que torna a liberdade efetiva. Seu objetivo fundamental é então estabelecer
os marcos nos quais é possível configurar um mundo humano livre. O que é buscado,
acima de tudo, são critérios que permitam aos seres humanos conduzir suas vidas com a
dignidade que os constitui como seres chamados à liberdade.
A ética se põe de antemão no nível do discurso transcultural, global, o que significa aqui
fundamentar princípios universais que são critérios para o relacionamento entre indivíduos,
grupos e instituições, estados nacionais, justificados por razões e não pelo arbítrio e pela
força. Trata-se da fundamentação de uma ética à altura dos desafios de nossa situação
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Ora, a globalização de todos os problemas revela justamente a premência da fundamentação
de um princípio normativo, de uma norma fundamental de justiça universalmente válida.
Numa palavra, a própria situação de pluralismo desafia a reflexão ética hoje a não perder
nenhum dos pólos em questão: por um lado, as próprias questões de abrangência mundial
com que nos confrontamos tornam premente a recuperação de uma postura universalista;
por outro lado, a consciência da historicidade e, conseqüentemente, da imensa diversidade
das situações humanas nos impede de advogar uma ética indiferente à particularidade
histórica. O grande desafio não seria aqui precisamente encontrar uma posição mais
abrangente capaz de reconciliar os opostos?
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histórica, isto é, que fundamente os princípios normativos tanto das ações dos indivíduos
como da configuração das instituições políticas internacionais na referência às chances,
mas também aos conflitos trágicos provenientes da globalização. Trata-se de fundamentar
uma ética política da solidariedade universal.
Ora, falar de particularidade sem universalidade é uma grande abstração, pois, ao fazer
isto, estamos proferindo proposições que se destroem a si mesmas, que se refutam a si
mesmas, pois se trata aqui de proposições semelhantes à que afirma não haver verdade.
Na medida em que é proferida, levanta a pretensão de ser verdadeira uma vez que, quem
a profere, levanta a pretensão que algo de fato é assim como está sendo dito. Este
procedimento argumentativo manifesta a inconsistência de um pluralismo absoluto: o
retorno reflexivo da proposição sobre si mesma e sua auto-aplicação revelam sua falsidade,
portanto, a existência de pelo menos uma proposição verdadeira, a proposição que é
contraditória a ela. Ora, a existência de pelo menos uma proposição verdadeira já demonstra
que em princípio a verdade existe, o que refuta a tese do ceticismo radical. Daqui emerge
uma proposição afirmativa universal: existem em princípio proposições verdadeiras, ou
seja, quem afirma que só há pluralidade, que não há unidade, princípios universais, refutase a si mesmo, uma vez que com isto está proferindo uma proposição universalíssima.
Assim se mostra que universalidade e particularidade não constituem mundos inteiramente
dicotômicos, uma vez que a própria particularidade já possui em si mesma a universalidade.
Do ponto de vista ético, é precisamente a recuperação do universal que abre o espaço à
crítica e, portanto, à emancipação do universal humano: a insistência no particular, pensado
sem universalidade, confirma situações de degradação da vida humana e destruição da
natureza, a perpetuação dos guetos e da marginalização. Por um lado, o universal é algo
ineliminável e sua negação nos leva a um relativismo insustentável, porque contraditório.
O universal é, assim, o ponto de partida de qualquer reflexão ética.Mas ele não é tudo,
pois tomado em si mesmo, é ainda abstrato, isto é, ele exprime um sentido não ainda
plenamente exposto, não explicitado em suas determinações internas. Assim, por exemplo,
a dignidade incondicional da pessoa humana é um universal sem o qual não podemos
evitar os diferentes tipos de violência contra o ser humano; no entanto, o que significa
concretamente respeitar a dignidade humana nas diferentes situações históricas não pode
ser deduzido a priori.
Desta forma, o universal é um momento necessário do agir ético e, enquanto tal, algo
que não pode faltar numa decisão ética, seu limite intransponível na medida em que
exprime que o que em última instância está em jogo é a própria efetivação do ser humano.
Este limite é, entretanto, insuficiente uma vez que ele mesmo traz em si uma exigência de
explicitação, o que ocorre através das situações particulares que constituem a história
humana. Neste caso, a particularidade constitui o momento de auto-explicitação do
universal sem o qual não temos critérios para distinguir entre o correto e o incorreto em
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nossas vidas. Precisamente a situação histórica exige de nós uma encarnação histórica do
universal, uma tradução sua no irrepetível de uma determinada situação histórica.
Tanto a universalidade, quanto a historicidade são dimensões essenciais da ação ética, de
tal modo que uma decisão humana concreta pressupõe um duplo saber: o saber da
ordem universal e o saber da situação histórica que é o lugar em que normas se devem
tornar realidade. O saber da ordem universal estabelece o que não pode faltar em nossas
ações, o que está excluído a priori, o horizonte normativo em que a ação se situa. No
entanto, esta ordem universal não pode estabelecer positivamente de forma completa o
que deve ser feito nas diversas situações históricas.
D) Comunicação e Ética.
A análise de nossa situação histórica nos mostrou um mundo marcado pela imbricação
entre comunicação e recursos tecnológicos.Estes novos recursos podem ser instrumentos
excepcionais para permitir um maior acesso à educação e à cultura, mas até agora ainda
não são de acesso generalizado, o que está levando ao surgimento de novos tipos de
marginalização. De qualquer modo, isto cria uma nova situação para a vida humana
enquanto tal e por esta razão constitui não apenas um problema tecnológico, mas um
problema antropológico fundamental: como conquistar a humanidade neste novo contexto?
Que tipo de sociabilidade surge aqui? Qual a qualidade das relações sociais que se gestam
nas novas redes que entrelaçam indivíduos e povos?
Uma consideração ética de nossa sociedade da sensação pressupõe, em primeiro lugar, a
consideração do poder das opiniões e convicções, isto é, das idéias, na vida humana:
convicções habitam o mais íntimo dos seres humanos e podem durar para além da morte
daqueles que as proclamaram ao mundo e o próprio poder não se sustenta sem idéias.
Ora, uma sociedade da comunicação é uma sociedade que se fundamenta em formas da
influência que provêm de mudanças de opinião mediadas pelo sistema de comunicação
que estrutura a vida coletiva. Trata-se aqui não simplesmente do conhecimento de meios
necessários para a consecução de determinados fins, mas dos próprios fins, dos valores
que devem pautar a existência humana no mundo. São os valores que constituem o mais
profundo da identidade de um ser pessoal, portanto, quem tem a ver com estes valores,
como é o caso do sistema de comunicação em seus diferentes níveis, está tocando no
próprio processo de construção do ser humano.
É neste espaço que se abre a possibilidade de manipulação, cuja característica fundamental
é o fato de que o que exerce influência atinge de tal modo o pensamento e o mundo dos
sentimentos dos outros que eles não percebem. Desta forma, quando a manipulação tem
sucesso não há propriamente conflito justamente porque as pessoas não têm consciência
dela, portanto, não se dão conta de que foram feridas em sua autonomia e, por isto, não
se pode formar a idéia de resistência. Convicções que resultam de processos de manipulação
podem tornar-se "evidências" de uma cultura de tal modo que constituem os horizontes
implícitos de sentido a partir de onde as pessoas orientam sua ação, ou seja, elas configuram
inconscientemente a maneira de pensar e a maneira de agir das pessoas. Elas possuem por
esta razão um peso social muito grande, uma vez que é através delas que se estabelece o
que afinal conta na vida humana.
É a partir daqui que se pode perceber a importância de um elemento fundamental para o
processo de integração social, isto é, da "opinião pública " que é uma forma particular do
consenso a respeito dos valores fundamentais de uma sociedade. Claro que nas sociedades
pluralísticas contemporâneas este consenso é sempre parcial, mas de qualquer modo ela
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se constitui como uma esfera que faz a mediação entre a sociedade e o estado, pois
transcende o privado, mas não é um órgão estatal. Uma vida política democrática
pressupõe a formação da opinião pública, pois ela fornece as informações que são
indispensáveis à participação dos cidadãos nas deliberações e decisões a respeito das
questões comuns e, portanto, também para o controle das ações dos governos. Por esta
razão monopólio ou oligopólio no campo dos meios de comunicação tem importância
não somente econômica, mas política e, assim, ética já que seu controle nas democracias
de massa possui a influência mais forte na formação da opinião pública e assim condiciona
energicamente o processo político.
É necessário ter presente que podemos ter na opinião pública as coisas mais diversas:
tanto orientações racionais teóricas e práticas como as opiniões mais absurdas que, no
nosso contexto, são apresentadas como se fossem verdades e que exercem enorme
influência sobre as pessoas que encontram na opinião pública uma orientação considerada
segura para as difíceis questões que a existência humana levanta. Neste contexto, exercem
maior influência precisamente aqueles formadores de opinião que são capazes, por seus
recursos, tecnológicos de atingir o maior número de pessoas e de tocá-las emocionalmente.
Daí porque mudanças nos meios de comunicação que alcançam as grandes massas têm
hoje uma importância política fundamental e manifestam a imbricação profunda entre o
poder das opiniões e o poder econômico.
Neste contexto, podemos considerar a "revolução comunicativa" que nos marca. Livros
são normalmente uma fonte de conhecimento conceitual e jornais constituem uma condição
fundamental para o surgimento de uma opinião pública politicamente sólida apesar de
muitas vezes darem muita importância ao efêmero. Rádio, televisão e filme, os novos
meios de comunicação, tendem a uma analfabetização das pessoas e ao cultivo de emoções,
de necessidades fictícias e falsas, cuja tentativa de satisfação pode impedir as pessoas de
atender às necessidades realmente fundamentais. Com isto influenciam não só através da
transmissão de conteúdos, mas de estruturas formais que são da maior importância para
as atividades individuais e políticas. Tal influência pode chegar a prejudicar substancialmente
a capacidade humana de tomar decisões políticas responsáveis, o que levanta o desafio
ético da formação e ampliação da opinião pública. Isto não pode ocorrer aí onde toda
forma de debate, de expressão pública e livre, é supressa e as pessoas são reduzidas ao
silêncio o que, em nosso contexto, só pode efetivar-se através do monopólio total de
todos os instrumentos de informação.
Ora a exigência fundamental de uma ética capaz de enfrentar esta problemática é o respeito
a toda entidade em sua forma própria de ser de tal modo que se garanta, de forma
consciente, a comunidade ontológica universal que constitui a estrutura básica do universo.
Se todo ente é portador de um valor intrínseco que corresponde à sua estrutura própria de
ser, todo ser humano, enquanto ser inteligente e livre, possui uma dignidade incondicional,
que o faz portador no mundo do valor intrínseco supremo. Assim, a dignidade ontológica
do ser humano que consciente e livremente se possui a si mesmo exige a dignidade ética
do ser pessoal que assim se revela como fim em si mesmo, portanto, portador de valor
absoluto e dignidade absoluta. Este horizonte ético torna possível e fundamentado um
engajamento no mundo que tem como alvo básico a reconstrução dos laços com a
natureza, rompidos por nossa civilização técnico-científica, e a instituição de comunidades
humanas fundadas em relações de reconhecimento e de respeito mútuo da igual dignidade
de todos os seres humanos e, conseqüentemente, de todos os povos, e por esta razão,
constituídas por relações simétricas entre todos os seres humanos, nos diferentes níveis de
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organização de sua vida. Isto exige a configuração de relações interpessoais e instituições
básicas de vida coletiva inclusive as instituições do mundo da comunicação, que sejam
capazes de tornar efetivos os direitos de todos. Numa palavra, a exigência ética suprema
se explicita enquanto imperativo de construção de uma sociabilidade simétrica e transitiva
em que qualquer tipo de violência à dignidade incondicional do ser humano e a destruição
irracional da natureza sejam reconhecidos como inaceitáveis. Com isto se manifesta a
responsabilidade do ser pessoal diante do mundo e da história, ou seja, trata-se de humanizar
a natureza e construir uma história de solidariedade. Esta é a norma que deve reger o
sistema do mundo da comunicação, o critério fundamental de seu uso.
Assim, a ética da comunicação se radica, antes de tudo, no valor intrínseco da estrutura
ontológica da pessoa humana que se efetiva na esfera de suas relações básicas: com a
natureza e com os outros seres humanos. Daí porque se deve dizer que a exigência ética
que deve marcar todo o complexo comunicativo é a humanização, ou seja, a promoção
de tudo aquilo que pode contribuir para a realização do ser humano enquanto ser inteligente
e livre, o que implica também necessariamente o respeito e o cuidado da natureza. Como
a comunicação toca os valores, é fundamental aqui o estabelecimento de uma hierarquia
de valores que estabeleça as balizas do processo de conquista da humanização e o critério
básico a partir de onde esta hierarquia pode ser construída. O que se acaba de dizer a
respeito do valor do ser humano e da natureza constitui precisamente este critério básico.
Portanto, todo aparato comunicativo deve ser posto a serviço do desenvolvimento de
uma nova consciência cidadã, crítica e participativa, o que implica o reconhecimento da
dignidade incondicional da pessoa humana e da dignidade da natureza que se explicita na
consciência dos direitos elementares.
A tradição chamou de direito natural a esses direitos elementares que decorrem da
estrutura ontológica do ser humano e exprimem a exigência de sua dignificação ética.
Enquanto tal, o direito natural é o conjunto de normas que podem ou mesmo devem ser
impostas com meios coercitivos por razões morais. Neste sentido, o direito natural se
constitui como a medida para o julgamento moral do direito positivo, que se fundamenta
nos princípios de uma ética universal : sem ele, não é possível articular um julgamento
fundamentado sobre a injustiça de um sistema jurídico vigente, portanto uma crítica
objetiva do direito positivo se torna impossível. Nesta perspectiva se diz que os direitos
humanos são "direitos pré-estatais" que permitem aos seres humanos se reconhecerem
mutuamente como parceiros do direito. Assim, o direito natural é a instância de controle
do direito positivo, pois pode haver sistemas positivos de direito em contradição com as
exigências do direito natural.
A norma decisiva do direito natural objetivo é que os direitos naturais subjetivos dos
portadores de direito devem ser protegidos com coerção, o que significa efetivar a razão
como a instância que rege a existência social e que, portanto, os seres humanos orientam
suas vidas nos princípios da justiça e se respeitam mutuamente como membros de uma
associação de iguais e livres. Por uma série de razões o reconhecimento político, a defesa
destes direitos, sua proteção jurídica que objetiva a harmonia das liberdades deve ser
tarefa de uma instância pública, o Estado de direito, o que implica que pode ou deve
empregar coerção, quando necessário, para defender as pessoas, sobretudo os indefesos
- crianças e deficientes, mulheres, idosos, enfermos, moradores de rua, desempregados que enquanto tais são compreendidos como cidadãos, isto é, não simplesmente na
particularidade empírica de sua existência natural , mas na universalidade racional de sua
existência política, ou seja, como sujeitos universais ou sujeitos de direitos universais, isto
é, direitos de todos e para todos, e esta é sua tarefa primeira e elementar.
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Por esta razão, um direito moral precisa também garantir a segurança jurídica e um
"Estado de direito" é o que é capaz de unir justiça e segurança legal e, portanto, é capaz
de reconhecer e garantir a prática dos direitos humanos e só enquanto tal pode ser dito
um Estado de Direito. Neste contexto, devem ter privilégio ético todos os que de diferentes
formas são vítimas de discriminações que implicam na negação de seus direitos. O papel
do mundo da comunicação é aqui central, pois tal mudança radical na vida das pessoas
não pode ocorrer sem que mudem seus valores básicos.Daí porque é fundamental o
desenvolvimento de uma cultura de direitos que se radica na tomada de consciência da
dignidade do ser pessoal. Isto constitui uma tarefa educativa que é igualmente norma
ética para o mundo das comunicações, cuja meta básica deve ser a reestruturação das
instituições fundamentais da sociedade a fim de que possam tornar efetivo o
reconhecimento dos direitos humanos. É na consciência e na luta pela defesa destes
direitos que o ser humano se constitui como cidadão.
Daqui se seguem conseqüências básicas para o engajamento do ser humano no mundo:
entre os diferentes fins contingentes, que se oferecem à ação humana, possuem primazia
os que efetivam o respeito à vida humana e à vida dos outros seres vivos, o que implica
afirmar que as necessidades materiais básicas que se referem à manutenção e reprodução
da vida humana, portanto, que são indispensáveis à vida e o desenvolvimento humano,
têm prioridade em relação a qualquer outro tipo de necessidade, no sentido do mínimo
exigido. Isto, por sua vez, implica como conseqüência uma exigência básica em relação
à economia: ela não é fim em si mesma, mas apenas o pressuposto material do
desenvolvimento integral do ser humano e por isto deve estar a serviço da satisfação das
necessidades básicas e não simplesmente do crescimento econômico, que
conseqüentemente a partir deste horizonte se revela como meio e não como fim último
da atividade econômica. Isto implica olhar a economia a partir dos direitos humanos e se
constitui um imperativo ético para o mundo da comunicação em nossas sociedades abrir
para as pessoas o espaço para valores novos que possam levar a uma nova forma de
organização econômica e social.
MohamedElhajji
Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Pesquisador do CNPq e
Coordenador de ECONET - Integração Eletrônica da ECO
A Comunicação Intercultural contra o Fechamento Comunitário
O presente artigo objetiva iniciar, a partir de uma perspectiva comunicacional, um debate
teórico analítico em torno da problemática da Interculturalidade e da Comunicação
Intercultural (CIC) enquanto marcos centrais da paisagem social e política da atualidade e
pontos nevrálgicos reveladores das grandes e difíceis transformações pelas quais passa a
sociedade contemporânea.
A Problemática
Se não há como ignorar a realidade irreversivelmente multicultural de nosso mundo, as
dúvidas persistem quanto ao significado deste fato e às suas implicações sociais, políticas,
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civilizacionais e filosóficas. Tampouco se vislumbra um consenso convincente quanto aos
direitos, prerrogativas, status e responsabilidades que se pode outorgar à Comunicação
Intercultural - meios e conteúdo confundidos; no afã de privilegiar o diálogo construtivo
entre as diferentes franjas culturais e étnicas da sociedade e tornar públicos seus discursos
auto-reflexivos.
De fato, uma das vantagens da CIC é de dotar a sociedade de interfaces comunicacionais
(através da mídia comunitária e/ou da participação e visibilidade na mídia geral) que
possibilitem uma maior transparência aos projetos sociais, políticos e culturais dos grupos
constitutivos da sociedade multicultural (grupos étnicos, culturais, confessionais e/ou
nacionais), evitando assim amálgamas, desconfiança desnecessária, suspeitas infundadas
e preconceitos disfarçados. Ao mesmo tempo que este tipo de mídia sustenta a
comunicação intra-comunitária e serve de instância de enunciação de sua identidade
coletiva (incluindo a sua visão do mundo, suas crenças, sua filosofia, seus ideais políticos,
seus modelos sociais, etc..), ele não deixa de ser uma janela aberta sobre a comunidade,
da qual toda a sociedade pode exercer seu legítimo (republicano) direito de olhar.
Por outro lado, a instituição de canais formais de comunicação incentiva as comunidades
a elaborar discursos coerentes e em sintonia com os ideais supremos da sociedade geral
na qual elas se inserem. Além de constituir um terreno sólido para o estabelecimento de
um modus vivendi baseado na confiança mútua e na transparência, a mídia comunitária
ou a presença midiática comunitária exigem dos grupos e comunidades culturais uma
evidente coerência entre seus discursos internos e externos. Já que nos planos social,
intergeracional e interinstitucional (pelo fato da inevitabilidade de contato entre os membros
da comunidade e seus pares da sociedade geral), não parece viável manter discursos
contraditórios, duplos ou demasiadamente ambíguos.
Portanto, antecipando a tese final deste artigo, podemos afirmar que, ao contrário de que se
pode pensar, a CIC (na sua forma midiática comunitária étnica, notadamente) pode prevenir
ou remediar ao fechamento comunitário ou comunitarismo fechado que ameaça vários
grupos pelo mundo. Mesmo no caso das comunidades mais conservadoras e/ou belicosas,
pela regra da coerência discursiva, a CIC pode se revelar um antídoto contra as tentações da
exclusão e da animosidade e do ódio de natureza racial, religiosa ou cultural. Ou, pelo
menos, pode deixar tais tendências flagrantes e evidentes para toda a sociedade, possibilitando
assim a tomada das medidas jurídicas cabíveis e as posturas políticas necessárias para a
manutenção da paz e garantia da convivência harmoniosa dentro da sociedade.
A questão da CIC se torna mais urgente ainda quando se observa que no atual momento
de profunda perplexidade e de deflagração generalizada do sentido e do sentimento, a
atitude psicológica e a tendência política predominante é de barricadas defensivas,
desconfiança acirrada do outro e recolhimento patológico sobre si. O discurso hegemônico
vigente na maior parte do mundo busca suas raízes nas narrativas escatológicas mais
aterrorizantes e volta a se nutrir das fobias e paranóias mais arcaicas.
A alteridade e a diferença ou são escamoteadas e negadas - de algum modo conjuradas
ou são cada vez mais naturalizadas, essencializadas e investidas de uma aura negativa,
demoníaca, má, nociva, perniciosa e aviltante. Paradoxalmente, a nossa época marcada
pela aceleração dos processos de comunicação, de trocas tanto simbólicas como físicas e
materiais é também a era do Reino absoluto da Alterofobia.
Não parece mais ter espaço discursivo, midiático e político para celebrar a diferença
complementar e enriquecedora que fertiliza o Humano e frutifica suas múltiplas experiências
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Porém, ao mesmo tempo que se pode observar claramente uma volta das ideologias mais
reacionárias e mais friorentas nos segmentos majoritários da sociedade; ao mesmo tempo
que o medo e o horror ao Outro se erguem em programas de governo, é mais espantoso
ainda ver os próprios movimentos comunitários e comunitaristas geralmente minoritários,
recentemente ainda saudados como barreiras humanas contra o totalitarismo do Sistema
Capitalista e sua correlata Indústria Cultural uniformizante, se encontrarem hoje fortemente
atraídos pelo ralo fascistizante da exclusividade paroxística e da diferença irremediável
que, em vez de negociar as suas relações com o Outro, simplesmente o nega e lhe nega
todo direito à simples existência.
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subjetivas e civilizacionais - sem negar a sua indispensável unidade no devir planetário e sua
unicidade na origem compartilhada da espécie. Medo, desconfiança e desejo da aniquilação
do outro, da alteridade, do diferente e da diferença são, doravante, a palavra de ordem
generalizada que move as relações entre grupos, nações, estados, culturas e civilizações.
Aos sentimentos solidários forjados na consciência histórica de compartilhamento das mesmas
condições sociais e do destino político comum (próprios ao comunitarismo aberto, progressivo,
progressista, ideal e idealista que vai ao encontro do Outro), são hoje substituídos espectros do
pertencimento religioso mítico-mitológico e/ou biológico, racial, étnico e (desculpem o trocadilho
fácil) sanguinário de tanto insistir no seu aspecto sanguíneo. Comunitarismo mesquinho, fechado,
reacionário e regressivo que só se efetiva, atualiza e realiza na negação da alteridade, no ódio da
diferença e no desprezo do humano - ou na mutilação deste humano para limitá-lo às peculiaridades
intrínsecas a seu grupo restrito e expulsar da própria esfera da humanidade todos aqueles que não
cabem na sua fantasmagoria elitista.
Não é preciso lembrar que a matriz filosófica e o espelho teórico tanto das conhecidas
ideologias de Estado como das narrativas deste segundo comunitarismo plantaram seu
arcabouço conceitual no terreno de uma certa literatura culturalista que deturpou a tradição
antropológica pluralista, fascinada pela diferença e pelo mistério da diversidade humana,
e a aprisionou nos etnocentrismos reducionistas e nos universalismos estreitos, suprematistas
e exclusivistas. "Cultura", na verdade, se tornou um substituto de "Raça" que justifica o ódio
e a abominação do outro, e busca manter as mesmas estratégias discursivas de
inferiorização, dominação e opressão de todos aqueles que, de alguma maneira, incomodam
aos projetos hegemônicos mal acabados tanto das comunidades fechadas como das
nações autocentradas.
Um dos principais sintomas deste movimento regressivo que assola a época moderna e
não augura nenhum futuro feliz para as utopias humanistas, é que exclusivismos nacionais
e comunitarismo fechados andam de mãos dadas. Não são incompatíveis ou opostos,
mas sim duas facetas de uma mesma realidade apocalíptica, dominada pela intolerância
conservadora e a auto-suficiência retrógrada.
Raízes Históricas e Contexto Atual
A realidade sociopolítica contemporânea, não é nenhuma novidade, é profunda e
irremediavelmente marcada pela flagrante inadequação entre os planos nacional-estatal
e cultural-identitário. Os fluxos e refluxos migratórios devidos aos processos de colonização
e descolonização, assim como à explosão de setores econômicos e industriais usuários
de mão-de-obra numerosa e/ou de competências específicas, deixaram rastros definitivos
na topografia social da maior parte do planeta. A utópica homogeneidade cultural,
confessional, étnica ou lingüística, que sustentava os ideais nacionais e nacionalistas
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herdados da alta modernidade, não passa mais de um referencial abstrato relegado aos
manuais da História positivista.
Inúmeros estudos demonstraram, ao longo do século, que o fato intercultural é central
para qualquer esforço de compreensão das transformações sociais em curso. Apesar de
todas as estratégias de sistematização da experiência humana e de seu enquadramento no
projeto jacobino, de neutralização dos anseios de singularidade e de diferença, as
manifestações identitárias acabaram se impondo como pólo aglutinador das subjetividades
e base de organização comunitária de segmentos importantes da sociedade.
Desde o início do século passado, percebeu-se que a multiculturalidade tornava-se cada
vez mais a regra da realidade social das grandes metrópoles do que um fenômeno excêntrico
passageiro. A organização comunitária a caráter cultural (incluindo suas vertentes
lingüísticas, religiosas, étnicas, etc...) não se limitava mais à máfia ou à culinária, mas sim
impregnava até as atividades tidas como racionais e impessoais ao exemplo dos bancos e
das organizações empresariais.
De fato, uma das características da sociedade moderna é a sua complexa composição por
categorias sociais distinguíveis "com continuidade histórica" e a coexistência, "harmoniosa
ou não", de uma pluralidade de tradições cujas motivações podem ser ocupacionais, étnicas,
religiosas ou outras. Por outro lado, apesar de sua ação desterritorializante e uniformizante,
esse modelo organizacional estimula, dialeticamente, a formulação de quadros comunitários
não-instrumentais propícios à afirmação da singularidade e à resistência às tentativas de
sua homogeneização.
É verdade que, muitas vezes, o contexto moderno favorece, em primeiro lugar, as
articulações de caráter vocacional, reduzindo os quadros identitários à sua função opcional,
cujo objetivo não é a expressão efetiva de subjetividades singulares, mas apenas o
aproveitamento da possibilidade de construção de uma narrativa que sustente os interesses
e os ideais do sujeito. Pois, por causa da redução de suas opções de realização enquanto
sujeito, o indivíduo moderno busca modos de inserção em grupos de interesses semelhantes
aos seus para poder alcançar seus objetivos tanto materiais como subjetivos. As instâncias
de enunciação da cultura do grupo, enquanto marcas diferenciadas, passam, assim, a se
expressar sob novas formas e via novos canais, de tal maneira que possam conciliar a
preocupação identitária com outras articulações a caráter vocacional ou profissional.
Porém, graças à sua capacidade de se organizarem paralelamente e até em função das
determinações do mercado, essas instâncias têm a vantagem de constituir uma manifestação
viva do desejo visceral de ser e de se afirmar enquanto marca diferenciada num mundo
que funciona no princípio da uniformização e categorização das populações, artificialmente
sintetizadas e congeladas nas premissas estatísticas e projeções de necessidades e hábitos
de consumo.
A identidade étnico-cultural (que pode incluir elementos nacionais, lingüísticos e/ou
religiosos), em especial, se revelou um poderoso catalisador ideológico, capaz de secretar
complexos mecanismos de estruturação da vida social sob todas as suas formas.
Funcionando, notadamente, como molde (parcial ou predominante) dos quadros simbólicos
que estabelecem os critérios de reconhecimento e as regras de conduta dentro do próprio
grupo e nas relações com o resto da sociedade. O desejo de diferenciação das comunidades
humanas é, com certeza, inerente a seus próprios processos de auto-organização e de
afirmação enquanto entidades coesas e coerentes.
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Portanto, no afã de assegurar a sua continuidade e se impor enquanto diferença diante
outras formas sociais, a comunidade cultural é obrigada a definir seu projeto existencial e
delimitar seus campos e níveis de operacionalidade; notadamente através de seus sistemas
de comunicação tanto internos como externos. Inversamente, os marcos identitários da
comunidade contêm naturalmente em si um conteúdo reflexivo e uma dimensão comunicativa
que determinam seu posicionamento político e social no quadro geral da sociedade.
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Assim, ao se estruturarem em torno de seus sistemas comuns de classificação e representação
do real, através de seus respectivos sistemas de comunicação e suas instâncias de enunciação
de sua identidade coletiva, os grupos sociais visam a instituição e a perpetuação de uma
marca distinta capaz de consolidar seus interesses materiais, ideológicos e afetivos.
Todavia, essa multiplicidade dos quadros identitários (ou pluri-pertencimento) que, com
certeza, é uma preciosa fonte de riqueza simbólica, pode também ser (e muitas vezes é)
portadora de conflitos latentes ou manifestos e incompatibilidades potenciais ou expressas
em termos de lealdade e reconhecimento, tanto ao nível abstrato dos valores culturais e
civilizacionais como no plano organizacional concreto de atitudes e comportamentos
sociais e políticos.
Neste sentido, a CIC tem um duplo valor sócio-científico. Além de servir de interface social
intercomunitária, ela constitui um quadro epistêmico capaz de efetivar as condições teóricas
e analíticas necessárias para a apreensão do significado dos fluxos migratórios a partir de
seus rastros comunicativos. Enquanto horizonte epistemológico, a CIC pode oferecer um
plano reflexivo altamente operacional, seguro e confiável para manobras teóricas inéditas
e audaciosas, capazes de trilhar profundamente a complexidade sociopolítica da época
contemporânea e retraçar de modo bastante fiel o emaranhado geocultural da era global.
Processo de Globalização e Princípio Geocultural
Com o processo de globalização, a questão do pluri-pertencimento, da múltipla lealdade
e da incompatibilidade de valores está chegando ao paroxismo de sua exacerbação. Se o
distanciamento geográfico e a relativa lentidão das comunicações da época pré-global
ainda permitiam uma reelaboração mais aprofundada da identidade minoritária de origem
no ambiente local de destino, hoje, à medida que se configure uma nova esfera étnicocultural transnacional, se torna mais problemática a desvinculação do universo simbólico
inicial ou o afastamento das comunidades "irmãs" espalhadas pelo mundo.
Para uma apreensão significativa desta mudança, primeiro há de salientar a natureza infotemporal e tecno-organizacional do processo de globalização - já que a particularidade da
época contemporânea reside na rearticulação das relações sociais e de produção em torno
das Novas Tecnologias de Comunicação. A especificidade dessas tecnologias, por sua vez,
consiste no deslocamento das instâncias de mediação política, econômica e social da
dimensão espacial para a temporal, e a instituição do princípio de instantaneidade e de
imediatez como base de regulação de nossa experiência significativa.
É conhecida a proposta da equação que possibilite o cálculo do grau de "encolhimento"
do planeta em função da velocidade tecnicamente possível para cobri-lo. O que significa
que as distâncias "vividas" entre diferentes pontos do espaço físico são inversamente
proporcionais ao tempo necessário para atravessá-las, tornando, assim, virtualmente
possível a utopia do mundo como "um lugar só", na medida que o próprio das NTCs é,
justamente, a instantaneidade.
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O conceito de globalização, portanto, não deve ser entendido em relação ao globo terrestre,
mas sim no sentido da globalidade de uma ação ou de um processo, ou seja, a sua realização
ou a sua vivência simultânea em múltiplos pontos do espaço. É essa equação que possibilita o
surgimento efetivo e concreto das culturas e identidades transnacionais, fundadas numa origem
comum (muitas vezes mítica), mas dialeticamente (in)-dependentes, em contradição, negação
ou negociação dos quadros organizacionais estatais e territoriais tradicionais. A teoria da
globalização, através de seus principais formuladores, não deixou de chamar a atenção sobre
essa correlação dialética existente entre o processo de globalização e a tendência generalizada
de des / reterritorialização e de reenraizamentos locais, particulares e transnacionais.
A mesma teoria é, com certeza, bastante prolixa (e geralmente benevolente) quanto ao
"iminente" esvaziamento das funções reguladoras do Estado-Nação, sua "extinção" anunciada,
a aparição de novas formas de sociabilidade, o ressurgimento de antigos e arcaicos tribalismos
e a formação de novas bacias de subjetividades emancipadas do controle espacial e da
gestão territorial. A figura do Estado-Nação, nesse tipo de literatura produzida pelo Global
Think Tank e agências especialistas comprometidas com o capital internacional, não passa
de uma anomalia histórica desde a origem fadada ao fracasso e a diluição.
Se faz aqui, todavia, imperativo um posicionamento filosófico - organizacional claro e sem
ambigüidade: o comunitarismo aberto, progressista e progressivo, tanto na teoria como
na prática, não se opõe ao espírito republicano favorável à manutenção e consolidação do
Estado-Nação. Pelo contrário, ele acredita e confia no papel vital do Estado enquanto
gerente dos direitos de todas as minorias e todas as comunidades de todas as naturezas.
Partindo do princípio que só um Estado forte é capaz de assegurar a neutralidade das leis
e a supremacia dos princípios republicanos e preservar os direitos de todos, os partidários
deste tipo de comunitarismo elegem o quadro estatal (de destino) como a base primeira e
o referencial imediato de sua ação social e política.
O pluri-pertencimento identitário, nessa perspectiva, não significa a superação ou a negação
dos deveres cívicos locais do território de acolhimento, mas sim a conciliação sincera,
honesta, generosa e igualitária entre os diferentes quadros simbólicos de identificação.
Não se trata de colocar uma estrutura imaginária - discursiva - organizacional contra ou
acima da outra, mas sim optar por uma visão complementar que, em vez de separar, junta
e, em vez de empobrecer, enriquece.
Assumindo a sua narrativa polifônica e a sua identidade composta, as comunidades abertas
buscam se realizar na diversidade, sem medo da diferença ou da alteridade. Considerando
o Humano como Uno e Universal (de um universalismo ele próprio aberto e mutável), o
comunitarismo aberto acredita na convivência harmoniosa e na possibilidade concreta de
construir territórios comuns regidos pelo princípio da complementaridade que acresce as
totalidades e multiplica as sinergias.
Na filosofia construtivista desta forma plural de se agregar, a insistência nos direitos
comunitários e a sua prática convicta não devem ser percebidas como contrárias aos ideais
republicanos e democráticos, mas sim são ritornelos conceituais existenciais que se sobpõem
ao exercício da cidadania plena e incondicional. Dito de outro modo, o (multi) pertencimento
comunitário é, em si, uma maneira efetiva e concreta de negociar a cidadania total no
espaço democrático republicano (a seus níveis cultural, social, político, etc...) e ensaiar de
fato seus diversos e possíveis sentidos e desdobramentos.
Já a fábula do fim do Estado reflete, na verdade, o desejo apenas disfarçado das comunidades
fechadas, sectárias e exclusivistas que recusam a idéia de compartilhar o espaço político
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É nesse quadro civilizacional confuso e conturbado que se vê, hoje, florescer em todo o
mundo o desejo de elaboração de novas instâncias de produção da subjetividade e de
enunciação das singularidades. Como se pode constatar na maior parte do planeta,
globalismo versus localismos, particularismos ou transnacionalismos são as duas faces de
um mesmo fenômeno; onde o processo vem provocando reações abruptas e muitas
vezes violentas por parte das culturas e das identidades singulares ou minoritárias. Reações
que vão dos mais cruéis e sangrentos enfrentamentos até as mais diversas revoluções
moleculares e estratégias micropolíticas de reterritorialização, reformulação e re-apropriação
de territórios existenciais e espaços públicos ou comunitários.
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igualitariamente e privilegiam os laços transnacionais (étnicos, confessionais, culturais,
lingüísticos, sanguíneos, etc...) em detrimento da convivência civil e democrática. O
território de destino, para eles, não passa de uma etapa estratégica de solidificação de
seus objetivos inconfessos, uma ilha espacio-temporal no seu percurso histórico, um
parêntese existencial ou uma provação escatológica no seu delírio hermético.
De fato, ao mesmo tempo que assistimos à interconexão das diferentes partes do planeta
no já real "sistema-mundo" e à globalização de certos aspectos das culturas locais, se faz
cada vez mais insistente a inconformidade com as fórmulas identitárias clássicas, buscando
e propondo novos modos e novas modalidades de reenraizamento na diferença de seus
respectivos "aqui e agora". Assim, neste contexto de crises e rupturas, as identidades
étnicas e culturais se tornam o verdadeiro motor da História, abrindo caminho para a nova
configuração política mundial de ordem, não mais ideológica no sentido tradicional, mas
sim geocultural.
A perspectiva geocultural, como vem sendo amargamente experimentada, não deixa espaço
crítico para as realidades sociais, políticas ou econômicas, reduzindo o mundo e a totalidade
dos mecanismos que o sustentam à idéia errônea dos princípios culturais irredutíveis e
necessariamente belicosos. As conseqüências desta dramática essencialização da cultura
(que não passa de uma nova roupagem para o antigo racismo biológico) se vêm agindo,
por toda parte, como um discurso auto-referente total e uma profecia auto-realizada
perfeita, capazes de subsidiar todos os extremismos e fanatismos de programas de
bestialização ideológica e (re)ação odiosa.
É à luz desta triste realidade histórica que a organização comunitária e o pluri-pertencimento
devem ser apreendidos, analisados e instrumentalizados. Já que, como foi exposto, o
comunitarismo pode ser tanto uma filosofia progressista e progressiva como uma prática
retrógrada, reacionária e regressiva. Em todos os casos, o estudo de seus aparelhos,
sistemas e interfaces pode se revelar valioso instrumento epistemológico que ajude a
entender e prevenir os possíveis conflitos evidentes ou latentes que a sociedade
contemporânea incuba. Porém, vale insistir, neste sentido, que não existe, no momento,
literatura significativa relativa a essa problemática das mais sensíveis de nossa época e das
mais oportunas para nossa área de estudo.
Estrutura Discursiva e Lutas Simbólicas
Ao desvelar a natureza política, ideológica e estratégica da CIC, fica manifesta a necessidade
urgente de elaborar uma estrutura epistêmica capaz de medir os movimentos e oscilações
nos quadros simbólicos de identificação dos grupos étnicos e confessionais, tais como
são ecoados pelos discursos de sua mídia comunitária ou através do posicionamento de
seus membros na esfera midiática pública. Uma radiografia geral desses quadros e um
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detalhamento sistemático de seus contornos em função das especificidades de cada grupo
e/ou à luz de eventos extraordinários internos ou externos, se impõem com vigor e vivacidade
para o campo de nossos estudos e as trilhas de nossa pesquisas.
A interpelação parece lógica e pertinente; já que a CIC, sob a forma de mídia comunitária ou
através da presença comunitária na mídia geral tem, de fato, esse mérito de oferecer um
discurso reflexivo, organizado, aberto e público sobre o próprio grupo, sobre os Outros e
sobre o mundo. Não é preciso lembrar que toda identidade é construída a partir de narrativas
sobre si mesmo e sobre o Outro, mas, no caso específico dos grupos minoritários (étnicos e
confessionais), é na base deste exercício que eles elaboram as suas estratégias de legitimação
e formação de consenso, tanto entre o seu público interno como junto à sociedade.
É verdade que existem outros canais e outras modalidades de comunicação comunitária
que contribuem na formação da complexa paisagem ideológica do grupo. Como são
múltiplas as práticas e instâncias sociais e culturais que subentendem as estruturas
imaginárias, subjetivas e simbólicas de toda coletividade humana, independentemente de
seus marcos identitários. Contudo, a vantagem dos processos comunicacionais
institucionalizados reside na sua representatividade política estabelecida e reconhecida
tanto pela sociedade geral como pelos próprios membros do grupo.
Além de ser essencial para a produção, reprodução e circulação de sentido dentro e fora
do grupo, o discurso elaborado pelos meios formais de comunicação comunitária constitui
em si uma construção ideológica reflexiva (em autoria e autoridade) que objetiva provocar
voluntariamente um impacto na cognição social de seus receptores internos e externos,
desempenhando assim, um papel intencional crucial na validação, expressão e legitimação
de seu universo social, cultural e político, aos próprios olhos dos membros do grupo e aos
olhos do mundo.
Não é por acaso que os grupos culturais espalhados pelo mundo, geralmente são dotados
de uma eficiente mídia comunitária que ajuda a assegurar a sua coesão social, cultural e
política aos níveis local, regional, nacional e global. Há, neste dado estatístico, um indício
efetivo do quanto é vital para esses grupos poder se manifestar sobre a realidade social e
política na qual eles se inserem para se posicionarem com relação à sociedade e oferecer a
seus membros um quadro coerente de ação e argumentação.
Existe, decerto, uma correlação estreita entre as formas organizacionais de uma comunidade
e as instâncias de enunciação de seu projeto sócio-histórico, na medida que, ao elaborar as
suas práticas discursivas, ela procura desenvolver estratégias que atuem como dispositivos
simbólicos na disputa pela imposição de sentido (ainda que plural e polifônico) tanto junto
a seus próprios membros como junto à sociedade em geral. O que elege a CIC como
superfície ideal para a observação e a análise das múltiplas dinâmicas sociais, culturais e
políticas que se dão no encontro entre as diferentes comunidades componentes da sociedade
e o encontro de cada uma delas com a sociedade geral.
Por outro lado, a mesma CIC, enquanto processo comunicacional, serve de plataforma de
reivindicação dos marcos identitários indispensáveis para a perenidade do ethos do grupo
e de cenário de negociação dos possíveis territórios existenciais e subjetivos necessários
para sua integração plena na sociedade acolhedora. As modelagens discursivas são, com
efeito, um dos principais recursos utilizados pelas comunidades minoritárias no seu esforço
de se pensar enquanto projeto social, político e filosófico e, ao mesmo tempo, simular as
possibilidades de negociação deste projeto com o conjunto da sociedade.
De fato, se, como sabemos, os diferentes grupos e classes estão sempre envolvidos numa
"bourdivina" luta simbólica no afã de negociar e impor a definição do mundo mais conforme
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Portanto, a importância dos discursos politicamente fundamentados e socialmente coerentes
não se limita à sua capacidade de representação do real, mas sim se sustenta por sua
eficácia em produzir sentido e estabelecer o consenso necessário para a sobrevivência do
grupo enquanto tal e o sucesso político, social e identitário de seus membros tanto dentro
do grupo como no seu relacionamento diário com os diversos segmentos da sociedade na
sua totalidade.
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aos seus interesses sociais, culturais e políticos, os discursos desenvolvidos por eles constituem
o melhor barômetro para compreender e discernir os objetivos e as regras desta luta; já que
toda organização social é estruturada, primeiramente e antes de nada, no plano discursivo.
Enfim, a centralidade da CIC para a apreensão da questão intercultural, no contexto
contemporâneo, se justifica mais ainda pelo fato de o locus de luta pelo poder, de
negociação dos papéis sociais e posicionamentos políticos ter migrado do espaço público
físico material tradicional para o espaço midiático virtual, tornando, assim, os processos
comunicacionais institucionais um dos principais pilares da democracia republicana e
um recurso imprescindível para o acesso igualitário de todos aos meios de disputa deste
poder; seja ele real, material ou simbólico.
O que implica que a CIC (comunicação comunitária própria e presença efetiva como agente
e sujeito na mídia geral) é um direito e requisito fundamental para a negociação da cidadania
pelos diferentes grupos culturais no contexto da "Sociedade da Informação", já que não se
pode mais negar que a visibilidade midiática, em suas várias e variadas formas, goza, hoje
mais de que nunca, de um real poder político e é vestida de uma autoridade social e moral
plenamente representativa.
O outro lado desta implicação, todavia, é que essa nova esfera de visibilidaderepresentatividade (locus por excelência de negociação e de luta pelo poder) não pode ficar
oculta aos olhos da República (no seu sentido original de Res Publica) e ao campo de
observação e análise da sociedade civil, na medida que o mesmo ideal democrático
republicano deve assegurar a todos as mesmas condições de acesso aos instrumentos.
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MesaRedonda2
Moderadora: Cristiana Parente - Mestre em Sociologia. Produtora Cultural.
Produtora de Mídia Interativa. Professora-Pesquisadora na Área da Comunicação
Social, Cultura e Novas Tecnologias da UNIFOR
AlembergQuindins
Diretor da ONG Fundação Casa Grande
A Fundação Casa Grande é uma ONG que atua na cidade de Nova Olinda, região do Cariri,
no Ceará. Nela funcionam quatro programas: Memória, Artes, Comunicação e Turismo. A
Fundação Casa Grande, surgiu da restauração da primeira casa da cidade que era a Casa
Grande da Fazenda de Tapera que foi o primeiro nome da cidade de Nova Olinda. Então,
restauramos essa casa, e hoje funciona o Memorial do Homem do Cariri, um resgate da
memória através da mitologia e da arqueologia. O resgate de uma parte que faltava sobre
a pré-historia do homem dessa região. Nesse programa, temos um laboratório de
museologia. É nele que os meninos iniciam os estudos na Casa Grande, pequisando a préhistória do homem Cariri e as formas de comunicação que esse homem desenvolveu ao
longo do tempo. Era uma tecnologia como uso de pedras, que eram batidas como se
fossem sinos para se comunicar com outros bandos de homens que moravam em outras
localidades em torno da chapada do Araripe. Então, nós fomos localizando e catalogando
cada sítio arqueológico e cada sítio mitológico. Nesses sítios mitológicos, fomos resgatando
também as lendas do Cariri que é um lugar de habitação humana muito antiga, devido ao
clima de um ecossistema especial que existe em torno da chapada do Araripe, e que
conseguiu se manter nesses 350 milhões de anos.
O segundo programa é o de Comunicação. Surgiu do resgate de uma amplificadorazinha
que tinha na cidade. Antigamente, Nova Olinda tinha um sistema de amplificadora
que foi meu pai que criou. Eu cresci dentro dessa amplificadora, que tocava música
para a comunidade. Foi um dos primeiros sistemas antes da era do rádio, naquelas
cidadezinhas pequenas.
Era assim, ouvindo aquelas cornetas em torno da praça de Nova Olinda, que acontecia
a animação dos jovens. As mulheres ficavam arrudeando a praça e os homens sentados,
oferecendo músicas “de alguém para um certo alguém”. Muitos casamentos nasceram
assim e essas pessoas estão casadas até hoje. Então, a amplificadora e o padre contribuíram
muito para a população de Nova Olinda. O Programa de Comunicação nasceu do resgate
dessa amplificadora, e hoje temos uma rádio comunitária. A rádio só pega 3 km em
torno da cidade, mas nós apresentamos um projeto ao Ministério da Cultura para ampliação
da rádio.
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No Programa de Comunicação, essa rádio comunitária faz uma programação como se
fosse uma universidade de música. A gente procura tocar qualidade, a gente tem, por
exemplo, um programa de forró. Tem um outro que é só os passarinhos cantando. Às 5
horas da manhã, a gente bota só os passarinhos para cantar. E tem um programa de
jazz. Inclusive uma pessoa de uma cidade pequena também andou lá e disse: “mas
quem é que escuta um programa de jazz em Nova Olinda?” Eu disse 100% . Aí ele
disse: “100% de quê, da população?” Não! 100% a mais do que em uma cidade que
não tenha um programa de jazz.
Na rádio, a meninada vai nutrindo o repertório, conhecendo a música de qualidade, um
repertório diferenciado do que normalmente se toca no circuito comercial. Nesse Programa
de Comunicação temos também uma editora que faz toda a parte de design e produção do
material da Fundação: banners, cartazes e histórias em quadrinhos. Nós temos também
uma TV que funcionou durante três meses. Mas quando a Anatel descobriu lacrou a nossa
TV. Agora estamos passando o material da TV no nosso teatro, no Programa de Artes, antes
das sessões de cinemas, dos shows e dos espetáculos que acontecem no teatro. Como a
Anatel lacrou a nossa TV, ficamos sem ter um canal para passar a nossa programação. Aí
criamos uma brincadeira com aquela história do “Canal 100” que existia na época do cinema,
aquele jornal que tinha antes do filme começar. E nós criamos o “100 Canal”. E assim, toda
semana os meninos produzem vídeos com pessoas sobre o folclore do Cariri e com pessoas
que contam suas histórias. São diversos vídeos produzidos pelos meninos que passam antes
de cada espetáculo ser mostrado na atividade da TV Casa Grande. A gente também faz
produtos para outras TVs que nos solicitam materiais: como o Canal Futura, a TV SESCSENAC, a TV Cultura de São Paulo. A gente tem produzido esses vídeos com a meninada.
No Programa de Artes existe uma Escola de Música. Ela tem uma bandinha de lata onde os
meninos começam aprendendo a gostar de música. Eles fazem os instrumentos e passam
a tocá-los através de imitações. Eles acreditam que estão tocando, e o povo acredita que
está ouvindo, e dá tudo certo. Então, é assim a aberturinha do “100 Canal”.
O Programa de Artes também tem um projeto de formação de platéia. Nova Olinda tem
uma programação normal de cinema para a comunidade. Nós temos um Cine Clube que
estamos fazendo em parceria com o Ministério da Cultura. É que nós somos um Ponto de
Cultura. A Fundação Casa Grande fez um projeto de ver e fazer cinema. O Cine Clube tem
mais de 1500 títulos, onde os meninos vêem cinema de arte e passam para a comunidade,
que vai aprendendo também como se comportar dentro de um espaço intimista, resgatando
a memória do comportamento dentro do cinema e como freqüentar um espaço comum
para assistir um produto de arte.
Hoje nós temos Sessão de Matinê para crianças todos os domingos. À noite tem cinema
noturno para população. Temos também outra sessão que se chama Cinema Temático
em, que a gente escolhe um filme, e a rede pública escolar discute aquele filme. O primeiro
filme que a gente passou foi o Cinema Paradiso de Giuseppe Tornatore, que trata da
importância de um espaço de formação do cinema, como um batizador na vida e na
formação de uma pessoa, de um cidadão. E temos também um Cine Clubezinho que
forma cinéfilos. São professoras e pessoas que gostam de cinema, que já assistem estudando
e conhecendo os diretores. Nosso programa tem parcerias com o SESC, que passa no
teatro o Festival Cariri das Artes, com o Sonora Brasil e com o Palco Giratório. Esse movimento
gerou uma visitação na Casa Grande de três mil visitantes aproximadamente por mês.
Vendo que estava passando muitas pessoas, a gente potencializou esse fluxo para o turismo
solidário. Fizemos um projeto e junto com os pais construímos pousadas domiciliares. O
Sebrae capacitou os pais para o turismo. E hoje a Casa Grande vem trabalhando e
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fomentando essa coisa do turismo solidário dentro de Nova Olinda. Hoje Nova Olinda tem
dez pousadas domiciliares com quarenta leitos e mais duas pousadas rurais no sertão do
Cariri para quem não quer ficar na área urbana da cidade. Nós temos também uma lojinha
onde vendemos produtos (souvenirs) com a imagem da Casa Grande. A Fundação passou
o direito de imagem para a cooperativa, como forma de gerar renda para os pais dos
meninos. E assim procuramos trabalhar essa coisa da educação com a meninada que
convive na Casa Grande. Fazer com que eles cheguem à universidade, que eles se formem.
É por isso que 10% da renda da cooperativa é reinvestida para a educação e o transporte
desses meninos que vão até a faculdade.
A diária da pousada custa R$40,00 por pessoa, incluindo café da manhã, almoço, jantar,
dormida e uma rodada no parque da cidade se a pessoa quiser. Isso tem gerado renda para
os pais. A renda da cooperativa no ano passado foi de mais de 15 mil reais. 10% foi aplicado
em educação, 10% na manutenção da cooperativa e 80% foi justamente para a melhoria das
pousadas. Os pais botaram azulejos nos banheiros e estão investindo em infra-estrutura e em
capital de giro. Quando a pessoa se hospeda, seja numa casa em Nova Olinda ou no sertão,
ninguém vai botar nada além do que já se come. O hóspede vai comer o que já tem. O dono
da casa só faz aumentar a água do feijão. O resto é a hospitalidade.
Isso é uma forma de educação. É batizar um turismo produtivo, mais humano e que gere
para a cidade um dividendo também educativo para aquelas famílias. Isso tem gerado para
as famílias um benefício bastante positivo, porque algumas delas tinham problemas em
casa. Muitas vezes o pai era alcoólatra e, com a chegada dos turistas em suas casas, eles
tiveram que ir se moldando, melhorando, e com esses cursos de capacitação foi havendo
uma transformação dentro daquelas residências, e hoje nós temos um total de 20 cooperados
na fundação.
Com o direito de imagem que a Casa Grande cedeu à cooperativa, foi aberta uma lojinha.
Nós temos oficinas nas casas dos pais e eles fabricam produtos. A imagem da Casa Grande
é reproduzida em camisas e em artesanato. Quem anda por lá tem acesso a esse material. É
esse o nosso programa de arte.
L
uizPauloCorreaeCastro
Diretor da Companhia de Teatro Nós do Morro - RJ
"A partir da década de 90, as comunidades das favelas e da periferia do Rio de Janeiro
encontraram um novo caminho para suprir a carência de investimentos do poder público
na criação de acesso à arte e à cultura. Iniciativas como a Fundação do Nós do Morro ainda em meados da década de 80 - e de diversos outros grupos - já na década de 90 -,
visando criar oportunidades de acesso aos bens da produção cultural para crianças, jovens
e adultos pobres e que não têm como pagar por eles são exemplos de resistência cultural
e de iniciativa dessas comunidades na busca por uma cidadania mais plena.
Hoje, as páginas dos principais jornais e os espaços das mídias eletrônicas dedicam um
grande espaço para a divulgação dos trabalhos realizados por ONGs e associações, como
o Nós do Morro (Morro do Vidigal); Afroreggae (Vigário Geral); Cia Étnica de Dança
(Morro do Andaraí); Grupo da Favela da Maré; Dançando Para Não Dançar (Morro do
Cantagalo) e mais dez comunidades carentes da cidade do Rio, entre outros projetos de
cunho sócio-cultural, que são desenvolvidos em bairros pobres na cidade do Rio de Janeiro.
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Todos esses movimentos possuem um objetivo em comum: dar voz a uma população
cada dia mais excluída das benesses produzidas pela indústria cultural, sob a forma de
trabalhos produzidos a partir de um processo de ensino-aprendizagem em variados setores,
como o teatro, o audiovisual, a música, a dança, entre outros, visando a profissionalização
dos seus integrantes e a inserção dos mesmos no mercado profissional, seja como artistas
ou como técnicos nas mais diversas áreas de competência desse mercado.
Daí, tornou-se lugar comum nos últimos anos a realização pelos mesmos de espetáculos
que cumprem temporadas em teatros e espaços do circuito profissional e recebem
financiamentos dos setores público ou privado para a produção e execução dos mesmos.
Esses espetáculos são o resultado do processo de formação profissional levado a cabo por
esses projetos de cunho sócio-cultural nas nossas comunidades carentes e se pautam
sempre pela pesquisa para o desenvolvimento de novas linguagens e a busca incessante do
atingimento de padrões estéticos que pautam qualquer iniciativa do mercado dito
"profissional". Nossos objetivos são o de quebrar os estereótipos e a precariedade das
produções de tipo amadorísticas, que tanto prejudicam as produções alternativas em nosso
país e buscar um padrão estético, próprio, mas que não é diferente daqueles buscados nos
principais grupos de teatro, dança, música ou do setor de audiovisual.
Para realizar tais objetivos e multiplicar a nossa revolução para o conjunto da sociedade,
precisamos de uma nova mídia, que seja capaz de perceber as nossas diferenças, mas que
não se paute sempre por posições estereotipadas e por pré-conceitos, que acabam
deformando a informação que é levada ao público em geral. Se é certo que nas favelas, os
níveis de violência são bastante altos para os padrões dos cidadãos das classes mais abastadas,
também é certo que os produtores dessa mesma violência não chegam a 1% do total da
população dessas comunidades. Se existem armas, também existe arte, cultura, folclore e
uma população ávida por acesso a esses bens da produção cultural para assim descortinar
novos horizontes e se tornarem agentes da sua própria história. Cabe à mídia, ter um
pouco mais de sensibilidade e humildade para reconhecer que não conhece esse lado da
população brasileira, para poder buscar essas histórias de vida e reproduzi-las de modo
menos estereotipado (quando não caricato) para o conjunto da sociedade.
Vemos com preocupação, por exemplo, a criação junto à mídia e, também, em alguns
setores das universidades - que já voltam os olhos para as produções desses movimentos
culturais nascidos nas favelas e na periferia - de conceitos como "estética da periferia" para
dar conta do produto final desenvolvido por estes grupos culturais. No nosso entender, a
estética desenvolvida por nós é a mesma estética desenvolvida pelos grupos profissionais
do mercado. Nossos objetivos, nossa pesquisa, guardadas as devidas diferenças, são os
mesmos dos grupos tradicionais do mercado e se volta única e exclusivamente para a
obtenção de um produto de qualidade, capaz de se apresentar em qualquer espaço do
circuito profissional e disputar o mercado com as companhias de teatro, dança, música ou
de cinema do mercado profissional.
Da mesma maneira, também não queremos criar uma mídia da periferia, conforme alguns
especialistas da Academia e, também da mídia, sugerem para a divulgação do nosso
trabalho. Ora, se a estética é a mesma para todos, a mídia também o deve ser. O que é
preciso sim, é que os meios de comunicação e a sociedade em geral mudem o seu modo
de ver o nosso trabalho, deixando para trás os conceitos estereotipados e o preconceito por
ser a arte desenvolvida pelos nossos grupos nascida em favelas e em bairros carentes das
nossas periferias. Há muito tempo, o Nós do Morro, o Afrorregae, a Cia Étnica de Dança
e os outros movimentos culturais da periferia dexaram de fazer "teatrinho", "espetáculoszinhos"
de dança ou "produçõezinhas" de cinema. Hoje, o público vai ao teatro ou outro tipo de
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espaço cultural para ver os atores do Nós do Morro, os músicos do Afroreggae, os
dançarinos da Cia Étnica de Dança e por aí vai. Não por acaso, um dos espetáculos do Nós
do Morro, Noites do Vidigal, montado em 2002, recebeu duas indicações para o Prêmio
Shell de Teatro (Autor, Luiz Paulo Correa e Castro e Direção Musical, Gabriel Moura),
tendo sido agraciado com o prêmio na categoria Direção Musical. Noites do Vidigal foi
considerado pela crítica especializada um dos 12 melhores espetáculos apresentados no
circuito profissional do Rio de Janeiro em 2002. Outro exemplo é o do Afroreggae, que
abriu o show dos Rolling Stones na Praia de Copacabana em fevereiro de 2006 e já realizou
turnês pela Europa apresentando seus músicos para o mundo.
História do Nós do Morro que completa 20 anos em 2006 mostrando que a vida levada na
arte é bem mais bonita de ser vivida.
Neste começo do século XXI tornaram-se comuns na cidade do Rio de Janeiro, cada vez
mais aviltada pela crescente violência nas ruas, os trabalhos destinados a criar acesso à arte
e à cultura nas comunidades carentes de favelas e bairros da periferia do município. Graças
a estas iniciativas, milhares de crianças, jovens e adultos podem ter acesso a informações,
formação profissional em diversas áreas artísticas como teatro, canto, dança, cinema etc.
Dessa forma, essas pessoas mais pobres e que não têm acesso aos bens da produção
cultural passam a ter oportunidade de ver seus horizontes ampliados e de se tornarem
cidadãos mais plenos e conscientes dos seus direitos e deveres.
O Nós do Morro, fundado em 1986, é um dos projetos pioneiros neste setor no Rio de
Janeiro, marcando a sua trajetória com a idéia de fazer arte com e para a comunidade. Ao
longo dessas quase duas décadas de trabalho já passaram pelos cursos e oficinas do grupo
mais de três mil crianças, adolescentes e adultos. Parte deles, hoje, se encontra inserida no
mercado profissional do teatro, televisão e cinema e consegue sobreviver à custa dos
trabalhos realizados nesses veículos, como peças, filmes de longa e curta-metragens, novelas
e programas. Parte deles também já atua como técnicos em setores como iluminação,
produção e cenografia.
Do objetivo inicial do projeto, que era o de fazer teatro na comunidade e para a comunidade,
o Nós do Morro passou, a partir de 1996, a investir na profissionalização dos seus
integrantes, de forma a torná-los aptos a disputar uma vaga no mercado profissional do
teatro e do audiovisual. Assim, cada integrante que ingressa no grupo passa a ter acesso
ao mundo maravilhoso da arte e da cultura e à formação profissional que o prepare para
encarar o mundo do trabalho, atuando como ator, técnico e, como no caso do cinema,
realizador de filmes e documentários.
Com a implantação de uma grade curricular que oferece os mais variados tipos de cursos
e oficinas de formação, o Nós do Morro pode se orgulhar de ser, atualmente, uma das
escolas de teatro que oferece oportunidades para que os seus alunos aprendam na teoria e
na prática os segredos da arte que desejam abraçar. O mesmo ocorre com o núcleo de
cinema: atualmente o Nós do Morro passou a contar com o projeto Ponto de Cultura do
MINC, curso profissionalizante na área de cinema destinado a atender 50 alunos a cada
semestre, num curso de formação de um ano, com aulas de direção, fotografia de cinema,
roteiro, história de cinema, edição e produção. Dessa forma, o grupo prepara seus integrantes
para enfrentar não só o mercado, mas também a vida, já que participando do projeto eles
têm oportunidade ampliar os seus horizontes do conhecimento e o seu acesso a uma
gama de informações que lhes servirão ao longo de toda a vida.
Com isso, o grupo contribui para melhorar a vida dos seus integrantes e investe atualmente
no desenvolvimento do conceito da formação do "Artista", com A maiúsculo. Diferentemente
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do ator, formado especificamente para atuar no palco ou na tela, o "Artista" é aquele ser
com idéias multiplicadoras, capaz de repassar os conhecimentos e as experiências adquiridas
para os mais novos que estão ingressando no Nós do Morro. Esses "Artistas" viram uma
referência não só no grupo, mas também na comunidade, ajudando a mostrar para os seus
jovens moradores que existem outros caminhos que não os do crime e da marginalidade,
para se alcançar o reconhecimento e a ascensão social. Afinal de contas, a vida levada na
arte é bem mais bonita de ser vivida.
JoséPauloAraújo
Jornalista. Atualmente trabalha na Unicef - Angola
Eu gostaria de tomar emprestado uma frase do oitavo marido da Elizabeth Taylor: " Eu
acho que sei o que devo fazer, só não tenho certeza se farei muito interessante".
Assim, gostaria de restringir minha análise sobre poder, mídia e cultura a um grupo que sempre
serviu apenas como receptáculo de cultura: As crianças. Em todos os países por onde já passei
há expressões exatamente iguais quando se fala desse pessoal: "Criança é o futuro do país" e "E
uma criança, não sabe de nada". Gramsci também disse que "a geração antiga realiza sempre a
educação dos jovens", dando ênfase ao sempre. Essas frases estão desatualizadas.
Primeiro, criança não é apenas o futuro. É o presente, também. Mesmo para quem vê
gente como massa produtiva, essa frase peca por não ver a quantidade de trabalhadores
que ainda são crianças e adolescentes, assim como desconhece o tanto que as crianças
estão transformando o mundo na medida em que surgem com novos conceitos e
mecanismos, como fez Bill Gates ao pensar no primeiro PC doméstico aos 13 anos ou
Nomita (bela) Das, uma menina de Bangladesh que negou casar-se à força em 1967 e por
isso foi banhada por ácido pelo seu pretendente. Somente com esta decisão individual o
mundo passou a tomar conhecimento dos casamentos forçados naquele país asiático.
Quanto à associação entre criança e desconhecimento, parece-me que estes conceitos estão
cada vez mais distantes a cada nova geração. Para muita gente é melhor desprezar do que
encarar a realidade. Pela primeira vez na história da humanidade os adolescentes têm mais
conhecimento em certas áreas específicas do que seus pais e são eles que estão na dianteira
de dois assuntos que estão mexendo com o Globo: Aids e Tecnologia de Informação,
computador, celular, i-pod etc. O aparecimento da Aids traz consigo uma nova cultura e uma
nova relação de poder entre homem e mulher, entre países industrializados e países miseráveis.
Pesquisas indicam que mesmo nas culturas mais tradicionais o nível de conhecimento sobre
o HIV é maior entre os adolescentes do que entre seus pais. Eles sabem mais sobre as formas
de prevenção e transmissão do vírus e estão mais abertos a conversar sobre sexo de forma
sadia do que o pessoal das gerações anteriores. O chip transformou muitas relações, formas
de comunicação e viabilizou os meios eletrônicos para todas as pessoas que podem ter
acesso a eles, permitindo que mais gente possa falar com maiores audiências. Quarenta anos
atrás usavam-se linotipos, e só poucos poderosos poderiam dar suas opiniões ou mostrar
suas versões da verdade publicitária-editorial e, portanto, "sua verdade". Menos de 15 anos
atrás um programa de computador chamado Page Maker apareceu para enriquecer a indústria
tecnológica, mas também para viabilizar outras formas de comunicação. Com algumas
centenas de dólares e um curso de computador aumentou imensamente o número de pessoas
que poderia mandar notícias ou fazer circular suas opiniões por meio de um jornal de bairro
ou escolar. Isso e válido para qualquer outro meio de comunicação tradicional como rádio,
televisão, revista e também para os mais modernos, como internet. Estes progressos
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começaram a viabilizar a mídia para qualquer um, mas estes canais alternativos foram
primeiramente explorados como ferramenta de rebeldia típica dos jovens e adolescentes,
como as rádios e TVs piratas, os fanzines e os blogs.
Para ilustrar esse percurso e ver a proximidade entre poder, mídia e cultura, queria citar
como exemplo de toda essa transição o que presenciei na Fundação Casa Grande, quando
assisti ao embrião desse grande projeto. O Brasil já vivia sob a égide de uma constituição
democrática, o poder descentralizava-se e a tecnologia aliava-se a este processo político.
Era um projeto simples e, por isso mesmo, ousado. O acesso à mídia estava sendo dominado
por um grupo de meninos e meninas, mas havia aí algumas diferenças: Havia um casal
que buscava as raízes culturais daquela meninada como ponto de encontro e de partida
para aquela jornada cultural; e também porque os meios estavam à disposição de gente
muito simples, do interior nordestino e não da classe média e alta que já dominavam
como proprietários, trabalhadores ou receptáculos dos sofisticados meios de comunicação
de massa. Na minha cabeça, uma idéia ousada como essa só seria possível em pequena
escala e na América Latina, conhecida no mundo por seus metodos e práticas participativos.
Mas não é apenas a tecnologia acessível nem a democracia representativa que poderiam se
contrapor à globalização. Desde que a ex-primeira ministra inglesa Margareth Tatcher disse
que não há alternativa para a globalização, esta frase tornou-se um mantra para políticos,
intelectuais, empresários e governos que adotaram o programa comum das reformas neoliberais que se refletiram em uma nova religião (no sentido de re-ligação) a que se submeteram
os países periféricos. Como novo dogma, todos os que a eles se contrapuserem são
considerados irresponsáveis ou populistas. Afinal de contas, o que está sendo globalizado?
As raízes culturais da meninada da Casa Grande ou as grandes indústrias? Claro que a
meninada da Casa Grande ganhou acesso que antes seria impensável, mas este acesso
sozinho ainda não tem o ruído e a visibilidade necessários para se afirmar - ainda - como
tendência global.
Quando me mudei para Moçambique, parecia-me impossível que uma idéia semelhante
pudesse vingar. O país fazia apenas quatro anos que saíra de uma guerra civil, os meios de
comunicação eram controlados pelo Estado, era um país que vivia um dilema político:
manter o planejamento centralizado onde todas as decisões cabiam ao nível central versus
adesão a um plano neoliberal. Foi aí que eu vi um projeto de programa de rádio para
criança. Eu teria que guardar meus princípios e segurar meu ímpeto: Não havia ido a um
outro país para impor projetos, mas para identificar potenciais e dar um upgrade, buscar
aprofundar as relações de poder, democratizar os meios de comunicação ou empoderar as
populações, como prefiram chamar. O que advoguei foi para que as crianças participassem
diretamente dos programas. Segundo a legislação local, somente os profissionais de rádio
poderiam falar nas emissoras. Argumentei que eram apenas crianças e usei o chavão de
que eram inocentes e não fariam mal ao poder. A emissora da província da Zambezia
aceitou o desafio. O diretor da rádio do interior do país entendia a extensão do projeto.
Hoje em Moçambique praticamente todas as emissoras de rádio possuem programa de
rádio de criança para criança e eles estão conectados através de uma rede em que trocam
experiências, ensinam-se mutuamente e repassam reportagens entre as 30 emissoras
envolvidas nesse projeto. O mais curioso de tudo isso é que após a abertura das emissoras
para as crianças, um grupo de mulheres passou a reivindicar o mesmo direito. Quer dizer,
foram as crianças que abriram espaço, democratizaram os meios de comunicação, dividiram
poder, ganhando-o. Seus programas buscavam amplificar através das ondas da rádio as
discussões e os assuntos que eles tratavam em pequenos grupos, nas ruas, em casa ou na
escola. Gramsci aconselha aos jornalistas a lerem "as revistas dos jovens e não somente
aquelas que se afirmaram e que representam interesses sérios e bem estabelecidos".
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Aí surge um novo dilema: Como enfrentar o poder de grupos editoriais bem estabelecidos
com iniciativas isoladas? A mídia e cultura confundem-se cada vez mais e estão nas mãos
destes grupos editoriais poderosos que se transformam em semi-deuses. Quais são as
características de um deus? Energia? Assim são os meios de comunicação eletrônico: energia
em forma de som e imagem. Onipresença? A mídia esta em todos os lugares ao mesmo
tempo e hoje com os satélites e cabos, mais do que nunca. Onisciência? O que sai na
imprensa é verdade inconteste para a grande maioria da população que desconhece os
métodos científicos. Por exemplo: Muçulmanos são violentos e ocidentais são livres, segundo
a verdade dos países ocidentais. Onipotência? Mais do que os desacreditados poderes públicos,
são a imprensa que ditam a cultura, a forma de pensar de um povo, a gramática e por aí
adiante. Pois bem, esse poder do Olimpo está à disposição de uma multidão de pessoas,
mas aí é que surge o problema: são tantas as fontes de informação disponíveis - 4.000
canais de televisão por assinatura no mundo; prevê-se a curto prazo a distribuição de quase
2.000 canais de TV digital no Brasil: milhões de sites na internet; milhares de filmes e
músicas sendo lançadas todos os dias - que parece impossível competir com os grandes
meios de comunicação de massa que se unem numa poderosa rede de empresas que
confundem imprensa com entretenimento, público com privado, poder político, cultural e
econômico. O problema hoje já não é mais o acesso à informação, mas o excesso desordenado
dela. Companhias poderosas tornam-se ainda mais imbatíveis no campo do mercado de
ações ao unirem-se, formarem blocos e inundarem o mundo com poucas opções editoriais.
Fica difícil contrapor-se a este poderio, uma vez que metade da verba dos filmes de Hollywood
é para promoção, o jabá ainda perdura, os sites de busca exibem na sua primeira página os
sites pagos e as TVs a cabo de todo o mundo têm contrato com estas grandes corporações.
Aí é que surge uma forma simplista de antagonizar esse poder, como muitas vezes escutei
em Bangladesh ou nos Emirados Árabes. O discurso fácil sugere que se deve contrapor os
países ocidentais difundindo os valores essenciais de cada cultura e os vínculos familiares.
Mas a Al-Jazeera nao se contrapõe à CNN, nem Ira por Gary Bauer, muito menos à
liberalização pelo fundamentalismo, nem mesmo à religiosidade bélica pelo belicismo
religioso. Eles são as faces de uma mesma moeda. Muitos jornais publicaram charges
sobre o Profeta Maomé por interesses econômicos imediatistas. Como sugeriu o vicepresidente do Conselho Francês de Fé Muçulmana, Mohamed Bechari para os jornais préfalimentares: " Tudo o que você precisa é insultar os muçulmanos e o Islã e as vendas
incendiarão". O que se contrapõe a esse poder é o diálogo aberto, proporcionado também
pela popularização desses meios de comunicação. Tanto no local de trabalho como em
casa, as intransigências só acontecem se não há um diálogo aberto e permanente entre as
partes. E este diálogo é contruído na base da confiança e fortifica esta. É inocência imaginar
que uma televisão ou rádio comunitária possa se contrapor a este poderio e não se pretende
isso. Muitos destes meios já fazem a diferença nas comunidades onde atuam. Mas uma
rede permanente e solidária pode proporcionar essa evolução sustentável até que se
transforme em políticas internacionais de desenvolvimento. Como no caso de Moçambique,
foi somente quando tinhamos 2/3 das emissoras de rádio transmitindo quase que
simultaneamente os programas de criança para criança e quando eles conseguiram uma
audiência de 72% entre as crianças que eles chamaram a atenção das mulheres que viram
nesse programa um potencial para ter sua voz ativa. Foi somente neste momento que os
anunciantes se interessaram em pagar a conta. Mas estes foram escolhidos a dedo pelas
emissoras e pela meninada para apoiarem esta rede. Eles já sabiam o que queriam e o que
não queriam.
Neste momento surgiu a idéia de estendermos a rede para o Brasil e outros países de língua
portuguesa, como Angola que já iniciou sua rede de programas de adolescente para
José Paulo Araújo
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adolescente. É uma iniciativa que só está consolidada nas nossas cabeças. Já imaginou o
impacto e a riqueza cultural que seria ouvir adolescentes que falam uma mesma língua,
embora com sotaques diferentes, trocando idéias, mostrando diferentes perspectivas e pontos
de vista? Não se propõe aqui nenhuma revolução, mas um processo evolucionário que leve
gerações, mas que se resgate um diálogo perene mostrando e enfatizando o respeito aos
diferentes pensares. Mais uma vez me recorro a Gramsci que sugere que "uma associação
normal concebe a si mesma como sendo ligada por milhões de fios a um determinado
agrupamento social e, através dele, a toda a humanidade. Portanto, esta associação não se
considera como algo definitivo e enrijecido, mas como tendente a ampliar-se a todo um
agrupamento social que e também considerado como tendente a unificar toda a humanidade".
A globalização deve ser encarada como uma oportunidade para esta proposta e não como um
obstáculo. Por exemplo, meus filhos estudam em escolas internacionais onde há alunos de 30
ou mais nacionalidades. Nestas escolas, respeitam-se e valorizam-se o individual, embora eles
muitas vezes estejam conectados entre si em torno da MTV. No currículo internacional estudase geografia e história do local onde vivem e do local onde nasceram. Cada aluno traz histórias,
estórias, curiosidades e um pouco de sua cultura para a sala de aula. É neste momento que o
chavão professoral de que sempre aprende com os alunos passa a ser verdade. Ninguém mais
do que o próprio vivente de uma cultura pode falar com mais propriedade sobre a vida de sua
nação, especialmente entre crianças. Os outros podem até conhecer na teoria, mas jamais
conseguirão copiar. Se isso é possível no currículo internacional, por que não se pode adaptar
nas escolas locais, onde as histórias do passado seriam pesquisadas e usadas como base para
reforçar a cultura local? Sei que Itapagé já fez isso.
Devemos resistir à tentação facil de ver a globalização como fonte única do saber. Por exemplo,
uma vez, em Moçambique, um amigo pediu para eu ver umas roupas que ele tinha desenhado.
Eu avisei que não entendia nada de moda - embora tenha sido esse o meu primeiro emprego.
Quando ele me mostrou, usei da minha habitual honestidade: Reforcei que não entendia do
assunto, mas que ele estava fazendo moda européia bonita. Enfatizei que nunca um europeu
conseguiria fazer uma autêntica moda africana, mas ele, sim. Então, por que copiar? Em
minhas viagens pelas vilas sempre digo que as comunidades desacreditem de quem chega em
um 4X4, com uma garrafa de água mineral e diga a eles como devem se comportar. Este
conselho é desnecessário. Eles não escutam a não ser que faça sentido para eles. Não há
ninguém que consiga sobreviver melhor no deserto, nas mesmas condições, do que os beduínos.
São milhares de anos de experiência. O mesmo é válido para o nosso sertanejo ou favelado.
Desculpa a expressão, mas devemos preservar essa biodiversidade cultural promovendo um
diálogo moderno, que busca encontrar soluções práticas já vividas por outros.
Recentemente Alemberg esteve comigo em Angola para facilitar um workshop com crianças
e adultos para trabalharem juntos no projeto de rádio - Se der tempo, a gente pode
mostrar o vídeo. Nossa proposta era a seguinte: Eu trabalharia com os adultos fazendo-os
ver como a infância foi determinante para ser o que eles são hoje e como as brincadeiras
infantis ensinaram coisas fundamentais para a sua vida hoje (vixe, mais coisa pra gente
conversar). Os relatos foram impressionantes. Um dos participantes contou que sofria
muito na mão de seu pai e, por isso resolveu abrir mão da violência para descobrir uma
nova forma de cuidar do filho com carinho e atenção, apesar da pressão social que não
permitia a um pai trocar fraldas de seu filho. Na sala ao lado, crianças contavam lendas de
várias partes do país e Berg contava uma lenda da região do Cariri. Em dois ambientes
diferentes vimos dois grupos aproximando-se. Um descobria o valor do passado vivido e
outro valorizava o passado contado. O distanciamento que é uma marca do poder, estava
diluído depois daquele dia de trabalho. Um compreendia mais o outro. Estava aberto o
diálogo entre culturas geracionais. Espero que seja permanente.
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Volto a enfatizar: o que se propõe aqui é a utilização qualitativa dos meios disponíveis
para a promoção de um diálogo respeitoso e permanente entre culturas. E apropriar-se
do que serve como material de venda de poderosos para promover um vasto e poderoso
intercâmbio cultural. Não se pretende uma revolução, mas uma evolução, que requer
tempo e maturidade nos moldes de movimentos sociais como o Fórum Mundial Social
que, este ano aconteceu em três países e reuniu mais de 200.000 pessoas. Depois que
essas redes, inicialmente infantis - no sentido pejorativo da palavra -, se expandirem por
todo o mundo vai ser difícil dizer que as crianças são o futuro. Posso até estar sendo
inocente, mas prefiro acreditar em sonhos.
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CulturaeNovas
Tecnologias
ArlindoMachado
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo, professor de Cinema,
Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP).
A expressão inglesa media art e o seu correlato português artemídia são usados hoje para
designar formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das
mídias e da indústria do entretenimento em geral, ou intervêm em seus canais de difusão,
para propor alternativas qualitativas. Essa designação genérica apresenta o inconveniente
de restringir a discussão da artemídia apenas ao plano técnico (suportes, ferramentas,
modos de produção, circuitos de difusão), sem atingir o cerne da questão, que é o
entendimento da imbricação desses dois termos: mídia e arte. Que fazem eles juntos e
que relação mantêm entre si? Dizer artemídia significa sugerir que os produtos da mídia
podem ser encarados como as formas de arte de nosso tempo ou, ao contrário, que a arte
de nosso tempo busca de alguma forma interferir no circuito massivo das mídias? Em sua
acepção própria, a artemídia é algo mais que a mera utilização de câmeras, computadores
e sintetizadores na produção de arte, ou a simples inserção da arte em circuitos massivos
como a televisão e a Internet. A questão mais complexa é saber de que maneira podem se
combinar, se contaminar e se distinguir arte e mídia, instituições tão diferentes do ponto
de vista das suas respectivas histórias, de seus sujeitos ou protagonistas e da inserção
social de cada uma.
O suporte instrumental parece resumir o aspecto mais simples do problema. A arte sempre
foi produzida com os meios de seu tempo. Bach compôs fugas para cravo porque este era
o instrumento musical mais avançado da sua época em termos de engenharia e acústica.
Já Stockhausen preferiu compor texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos, pois em
sua época já não fazia mais sentido conceber peças para cravo, a não ser em termos de
citação histórica. Mas o desafio enfrentado por ambos os compositores foi exatamente o
mesmo: extrair o máximo das possibilidades musicais de dois instrumentos recém-inventados
e que davam forma à sensibilidade acústica de suas respectivas épocas. Edgar Degas, que
nasceu quase simultaneamente com a invenção da fotografia, utilizou extensivamente
essa tecnologia, não apenas para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em
técnica impressionista, mas também em suas esculturas, para congelar corpos em
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movimento com o mesmo frescor com que o fazia o rapidíssimo obturador da câmera. A
série fundante de Marcel Duchamp Nu descendant l'escalier é uma aplicação direta da
técnica da cronofotografia (precursora da cinematografia) de Étienne Marey, com que o
artista travou contato através de seu irmão Raymond Duchamp-Vallon, cronofotógrafo do
Hospital da Salpêtrière, em Paris. Por que, então, o artista de nosso tempo recusaria o
vídeo, o computador, a Internet, os programas de modelação, processamento e edição de
imagem? Se toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes eletrônicas representam
a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime
sensibilidades e saberes do homem da virada do terceiro milênio.
Desviando a tecnologia do seu projeto industrial
Mas a apropriação que faz a arte do aparato tecnológico que lhe é contemporâneo difere
significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como a indústria de bens
de consumo. Em geral, aparelhos, instrumentos e máquinas semióticas não são projetados
para a produção de arte, pelo menos não no sentido secular desse termo, tal como ele se
constituiu no mundo moderno a partir mais ou menos do século XV. Máquinas semióticas
são, na maioria dos casos, concebidas dentro de um princípio de produtividade industrial,
de automatização dos procedimentos para a produção em larga escala, mas nunca para a
produção de objetos singulares, singelos e "sublimes". A pianola, por exemplo, foi inventada
em meados do século XIX como um recurso industrial para automatizar a execução musical
e dispensar a performance ao vivo. Graças a uma fita de papel cujas perfurações
"memorizavam" as posições e os tempos das teclas pressionadas durante uma única
execução, o piano mecânico podia reproduzir essa mesma execução quantas vezes fossem
necessárias e sem necessidade da intervenção de um intérprete. A função do aparato
mecânico era, portanto, aumentar a produtividade da música executada em ambientes
públicos (cafés, restaurantes, hotéis) e diminuir os custos, substituindo o intérprete de
carne e osso pelo seu clone mecânico, mais disciplinado e econômico. As perfurações de
uma fita podiam ser ainda copiadas para outra fita e assim uma única apresentação se
multiplicava em infinitas outras, dando início ao projeto de reprodutibilidade em escala
que, um pouco mais tarde, com a invenção do fonógrafo, desembocaria na poderosa
indústria fonográfica.
A fotografia, o cinema, o vídeo e o computador foram também concebidos e desenvolvidos
segundo os mesmos princípios de produtividade e racionalidade, no interior de ambientes
industriais e dentro da mesma lógica de expansão capitalista (sobre a relação entre a
invenção desses dispositivos técnicos e o contexto político-econômico ver, sobretudo,
Winston 1998 e Zielinski 1999). Mesmo os aplicativos explicitamente destinados à criação
artística (ou, pelo menos, àquilo que a indústria entende por criação), como os de autoria
em computação gráfica, hipermídia e vídeo digital, apenas formalizam um conjunto de
procedimentos conhecidos, herdados de uma história da arte já assimilada e consagrada.
Neles, a parte "computável" dos elementos constitutivos de determinado sistema simbólico,
bem como as suas regras de articulação e os seus modos de enunciação são inventariados,
sistematizados e simplificados para serem colocados à disposição de um usuário genérico,
preferencialmente leigo e descartável, de modo a permitir a produtividade em larga escala
e atender a uma demanda de tipo industrial.
Os atuais algoritmos de compactação da imagem, utilizados em quase todos os formatos
de vídeo digital, são a melhor demonstração da "filosofia" que ampara boa parte dos
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progressos no campo das tecnologias audiovisuais. Eles partem da premissa de que toda
imagem contém uma taxa elevadíssima de redundância, entendidas como tal as áreas
idênticas dentro de um único quadro e as que se repetem de um quadro a outro, no caso
da imagem em movimento. Eliminando-se essa redundância por meio de uma codificação
específica, obtém-se uma significativa compactação dos arquivos de imagem. A premissa
do vídeo digital é evidentemente discutivel, pois só é aplicável à produção mais banal e
cotidiana, de onde, aliás, ela foi extraída. Ela não pode aplicar-se a imagens limítrofes da
arte contemporânea, como os quadros da action painting ou os flickering films (filmes
"piscantes", em que cada quadro individual é diferente dos demais) do cinema experimental
norte-americano, razão porque obras dessa natureza resultam destruídas pela compactação
digital. Experiências desse tipo, que lidam com questões essenciais da arte, como o
estranhamento, a incerteza, a indeterminação, a histeria, o colapso, o desconforto existencial
não estão obviamente no horizonte do mercado e da indústria, ambientes usualmente
positivos, otimistas e banalizados. Algoritmos e aplicativos são concebidos industrialmente
para uma produção mais rotineira e conservadora, que não perfura limites, nem perturba
os padrões estabelecidos.
Existem diferentes maneiras de se lidar com as máquinas semióticas crescentemente
disponíveis no mercado da eletrônica. A perspectiva artística é certamente a mais desviante
de todas, uma vez que ela se afasta em tal intensidade do projeto tecnológico originalmente
imprimido às máquinas e programas que equivale a uma completa reinvenção dos meios.
Quando Nam June Paik, com a ajuda de imãs poderosos, desvia o fluxo dos elétrons no
interior do tubo iconoscópico da televisão, para corroer a lógica figurativa de suas imagens;
quando fotógrafos como Frederic Fontenoy e Andrew Davidhazy modificam o mecanismo
do obturador da câmera fotográfica para obter não o congelamento de um instante, mas
um "fulminante processo de desintegração das figuras resultante da anotação do tempo no
quadro fotográfico" (Machado 1997: 64); quando William Gibson, em seu romance digital
Agrippa (1992), coloca na tela um texto que se embaralha e se destrói, graças a uma
espécie de vírus de computador capaz de detonar os conflitos de memória do aparelho,
não se pode mais, em nenhum desses exemplos, dizer que os artistas estão operando
dentro das possibilidades programadas e previsíveis dos meios invocados. Eles estão, na
verdade, atravessando os limites das máquinas semióticas e reinventando radicalmente os
seus programas e as suas finalidades.
O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às
determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do
programa de que ele se utiliza, é manejá-los no sentido contrário de sua produtividade
programada. Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa
sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos
instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas,
reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de deixar-se escravizar
por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar, obras realmente fundantes
na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia.
Vejamos o caso de Conlon Nancarrow, compositor anglo-mexicano que, a partir de 1950,
decidiu compor especificamente para a pianola, o mesmo instrumento do século XIX que
introduziu, juntamente com a fotografia, a estandardização, a reprodutibilidade e a
serialização da produção audiovisual. Um século após a invenção do piano mecânico,
Nancarrow viu nele algo que as gerações anteriores não puderam ver, limitadas como
estavam pela adesão ao projeto industrial do instrumento. Como a música era produzida
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graças à "memorização" das notas codificada nas fitas perfuradas, ela podia ser produzida
através da manipulação direta das fitas e não apenas, como se fazia até então, através do
registro de uma performance. Produzindo as perfurações manualmente, era possível fazer
o piano soar como nunca havia soado antes, pois já não havia o constrangimento da
performance de um intérprete, restrita, como não poderia deixar de ser, aos limites do
desempenho humano. A máquina, até então limitada à reprodução de uma performance
humana, podia agora produzir uma música que potencializava infinitamente essa
performance. Mais que isso: explorando diferentes velocidades de rotação das fitas, "vozes"
diferentes podiam ser combinadas de forma complexa em simultâneos accelerandos e
ritardandos. Dessa maneira, ao inverter ou corromper a programação original da pianola,
Nancarrow contribuiu para uma radical reinvenção dessa máquina até então restrita a
aplicações comerciais banais.
As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir
e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes,
indiferentes aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer outras. Eles estão
carregados de conceitos, eles têm uma história, eles derivam de condições produtivas
bastante específicas. A artemídia, como qualquer arte fortemente determinada pela mediação
técnica, coloca o artista diante do desafio permanente de, ao mesmo tempo em que se
abre às formas de produzir do presente, contrapor-se também ao determinismo tecnológico,
recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua
obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade
tecnológica. Longe de se deixar escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos
estandardizados de operar e de se relacionar com as máquinas, longe ainda de se deixar
seduzir pela festa de efeitos e clichês que atualmente dominam o entretenimento de
massa, o artista digno desse nome busca se reapropriar das tecnologias mecânicas,
audiovisuais, eletrônicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em
benefício de suas idéias estéticas. O desafio atual da artemídia não está, portanto, na mera
apologia ingênua das atuais possibilidades de criação: a artemídia deve, pelo contrário,
traçar uma diferença nítida entre o que é, de um lado, a produção industrial de estímulos
agradáveis para as mídias de massa e, de outro, a busca de uma ética e uma estética para
a era eletrônica.
A arte como metalinguagem da mídia
Como poderíamos entender esse "desvio" do projeto tecnológico original no diálogo
com as mídias e a sociedade industrializada? Ora, a artemídia é justamente o lugar onde
essa questão encontra uma resposta consistente. O fato mesmo das suas obras estarem
sendo produzidas no interior dos modelos econômicos vigentes, mas na direção contrária
deles, faz delas um dos mais poderosos instrumentos críticos de que dispomos hoje para
pensar o modo como as sociedades contemporâneas se constituem, se reproduzem e se
mantêm. Pode-se mesmo dizer que a artemídia representa hoje a metalinguagem da
sociedade midiática, na medida em que possibilita praticar, no interior da própria mídia
e de seus derivados institucionais (portanto não mais nos guetos acadêmicos ou nos
espaços tradicionais da arte), alternativas críticas aos modelos atuais de normatização e
controle da sociedade.
A videoarte talvez tenha sido um dos primeiros lugares onde essa consciência se constituiu
de forma clara desde o início. Antes mesmo da invenção do videotape portátil e da mídia
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eletrônica ser reconhecida como campo de possibilidades para a expressão estética, alguns
criadores como Wolf Vostell e Nam June Paik já desmontavam os sintagmas televisuais em
instalações ao vivo ou através do registro em suporte cinematográfico. Pode-se dizer, como
o faz Anne-Marie Duguet (1981: 86), que a perturbação dos signos visuais e sonoros da
televisão, o retalhamento e a desmontagem impiedosa de seus programas, de seus fragmentos,
ou até mesmo de seus ruídos naturais, constituem a matéria de boa parte das pesquisas
plásticas em vídeo. Daí por que não seria exagero dizer que a televisão tem sido o referente
mais direto e mais freqüente da videoarte nos seus quase quarenta anos de história.
Algumas verificações. This is a Television Receiver (1971), vídeo de David Hall: nele, a
imagem e a voz bastante familiares do apresentador da BBC Richard Baker recitando as
notícias de um telejornal são progressivamente deformadas em anamorfoses cada vez
mais acentuadas, ao mesmo tempo em que suas sucessivas recopiagens vão fazendo
desintegrar suas formas originais. Assim, nós assistimos a uma desintegração implacável
da face do apresentador, à medida que as anamorfoses a distorcem, tornando-a cada vez
mais grotesca, e à medida também que as sucessivas regravações vão degenerando o sinal
original, dissolvendo-o progressivamente nos ruídos do canal. O resultado é que essa
figura respeitável e emblemática da mídia se vê reduzida àquilo que ela é em sua essência:
uma seqüência de padrões pulsantes de luz sobre a superfície da tela. Outra verificação:
Technology/Transformation (1979), vídeo de Dara Birnbaum, que utiliza imagens "pirateadas"
do seriado americano Wonder Woman (Mulher Maravilha) e as desmonta para discutir a
imagem da mulher nos meios de massa. A artista fixou-se basicamente na seqüência da
transformação da mulher comum em Mulher Maravilha, um espetáculo típico de seriados
juvenis, baseado em efeitos pirotécnicos de mágico de vaudeville. Essa seqüência é repetida
mais de uma dezena de vezes, até esgotar todo o seu apelo sedutor e resultar banalizada
pelo excesso de ênfase.
No caminho que vai da videoarte à artemídia, há uma obra que se pode considerar fundante
no que diz respeito ao questionamento da sociedade midiática: a de Antoni Muntadas. De
fato, poucas obras, a partir da segunda metade do século XX, foram capazes de revelar o
funcionamento mais íntimo e invisível de nossas sociedades com a mesma penetração e
radicalidade com que o fez esse artista catalão. As mídias eletrônicas, os espetáculos de
massa, os cenários da performance política e econômica, a instituição das artes, a arquitetura
e a organização urbana, tudo isso foi dissecado por ele com o rigor de um cirurgião, o
alcance de um filósofo, mas, sobretudo, com a sensibilidade de um artista capaz de
experimentar as contradições mais agudas de nosso tempo e exprimi-las na linguagem
mais adequada. Em outras palavras, a análise que faz Muntadas das estruturas de poder,
que subjazem por baixo das formas aparentemente inócuas de nossas sociedades, não
toma a forma de um discurso racional e distanciado, mas é produzida com os mesmos
instrumentos e meios com que essas estruturas são construídas. Trata-se, portanto, de um
ataque por dentro, de uma contaminação interna, que faz com que essas estruturas deixem
momentaneamente de funcionar como habitualmente se espera, para que as possamos
enxergar por um outro viés, preferencialmente crítico.
A obra de Muntadas é extensa e variada: compreende vídeos, programas para a televisão,
instalações multimídia tanto em espaços fechados quanto em espaços públicos, intervenções
na paisagem urbana e, mais recentemente, projetos para a Internet. Nela, a tendência
mais forte consiste em reciclar materiais audiovisuais, por meio da construção de novos
enunciados a partir dos materiais que já estão em circulação nos meios de massa. Nesse
aspecto, Muntadas retoma uma grande tradição da arte contemporânea, que começa
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com os ready mades de Duchamp, segue com a reapropriação de objetos industriais pelo
dadaísmo, as colagens de Schwitters, Rodtchenko e Heartfield, até a retomada da iconografia
de massa pela pop art. Mas a sua contribuição particular está em colocar toda essa
poética da reciclagem a serviço de uma investigação sistemática e implacável do modo
como se organizam e reproduzem as formas de poder no mundo contemporâneo.
Para proceder ao exame crítico dos mecanismos subjetivos com que trabalha, por exemplo,
a televisão, Muntadas faz reciclar as imagens e os sons da própria mídia eletrônica,
justapondo fragmentos uns em seguida aos outros, como se estivesse praticando o zapping,
porém, num ritmo muito mais lento, de modo a permitir um exame mais sistemático de
seu modo de funcionamento. Basicamente, ele faz correr na tela, tal e qual foram nela
encontrados, spots publicitários, programas religiosos, propaganda eleitoral ou créditos de
abertura e encerramento de programas, todos eles tomados dos mais diferentes canais,
dos mais variados modelos de televisão das várias partes do globo. O resultado perturbador
é que tudo, seja qual for a fonte ou a origem, é tristemente igual e repetitivo, confirmando
uma espécie de variação infinita em torno da identidade única. Cross-cultural Television
(1987), realizado em parceria com Hank Bull, é exemplar nesse sentido: imagens eletrônicas
provenientes de inúmeros países do globo demonstram que, malgrado as variações locais
ditadas por especificidades culturais ou lingüísticas e por diferenças de suporte econômico,
a televisão se constrói da mesma maneira, se endereça de forma semelhante ao espectador,
fala sempre no mesmo tom de voz e utiliza o mesmo repertório de imagens sob qualquer
regime político, sob qualquer modelo de tutela institucional, sob qualquer patamar de
progresso cultural ou econômico. Trata-se, nesse vídeo, de tornar evidente o imperialismo
do mesmo na tela pequena.
Os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito. Em nosso tempo, a mídia está
permanentemente presente ao redor do artista, despejando o seu fluxo contínuo de sedução
audiovisual, convidando ao gozo do consumo universal e chamando para si o peso das
decisões no plano político. É difícil imaginar que um artista sintonizado com o seu tempo
não se sinta forçado a se posicionar com relação a isso tudo e a se perguntar que papel
significante pode ainda a arte jogar nesse contexto. As respostas que ele pode dar constituem
a diferença introduzida pela intervenção artística no universo midiático. Em lugar de
simplesmente cumprir o papel que lhe foi designado, como criador de demo tapes
atestadores do poder da tecnologia, alimentando assim com enunciados agradáveis a
máquina produtiva, o artista, na maioria das vezes, tem um projeto crítico relacionado
com os meios e circuitos nos quais ele opera. Ele busca interferir na própria lógica das
máquinas e dos processos tecnológicos, subvertendo as "possibilidades" prometidas pelos
aparatos e colocando a nu os seus pressupostos, funções e finalidades. O que ele quer é,
num certo sentido, "desprogramar" a técnica, distorcer as suas funções simbólicas, obrigandoas a funcionar fora de seus parâmetros conhecidos e a explícitar os seus mecanismos de
controle e sedução. Nesse sentido, ao operar no interior da instituição da mídia, a arte a
tematiza, discute os seus modos de funcionar, transforma-a em linguagem-objeto de sua
mirada metalingüística.
A mídia como reordenamento da arte
Mas há também o movimento no sentido inverso. Falamos até aqui de arte como se ela
correspondesse a um conceito definitivo. Entretanto, sabemos que arte é um processo em
permanente mutação. Arte era uma coisa para os arquitetos egípcios, outra para os calígrafos
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chineses, outra para os pintores bizantinos, outra para os músicos barrocos e outra para os
cineastas russos do período revolucionário. Nesse sentido, não é preciso muito esforço
para perceber que o mundo das mídias, com sua ruidosa irrupção no século XX, tem
afetado substancialmente o conceito e a prática da arte, transformando a criação artística
no interior da sociedade midiática numa discussão bastante complexa. Basta considerar o
fato de que, em meios despontados no século XX, como o cinema, por exemplo, os
produtos da criação artística e da produção midiática não são mais tão fáceis de serem
distinguidos com clareza. Ainda hoje, em certos meios intelectuais, há uma controvérsia
sobre se o cinema seria uma arte ou um meio de comunicação de massa. Ora, ele é as
duas coisas ao mesmo tempo, se não for ainda outras mais. Já houve um tempo em que
se podia distinguir com total clareza entre uma cultura elevada, densa, secular e sublimada
e, de outro lado, uma sub-cultura dita "de massa", banalizada, efêmera e rebaixada ao nível
da compreensão e da sensibilidade do mais rude dos mortais. Se em tempos heróicos,
como aqueles da Escola de Frankfurt por exemplo, a distinção entre um bom e um mau
objeto de reflexão era simplesmente axiomática, nestes nossos tempos de ressaca da chamada
"pós-modernidade", a cisão entre os vários níveis de cultura não parece tão cristalina. Em
nossa época, o universo da cultura se mostra muito mais híbrido e turbulento do que o foi
em qualquer outra época.
Mas a idéia de que se possa fazer arte nas mídias ou com as mídias é uma discussão que
está longe de ser matéria de consenso. De uma forma geral, os intelectuais de formação
tradicional resistem à tentação de vislumbrar um alcance estético em produtos de massa,
fabricados em escala industrial. No seu modo de entender, a boa, profunda e densa tradição
cultural, lentamente filtrada ao longo dos séculos por uma avaliação crítica competente,
não pode ter nada em comum com a epidérmica, superficial e descartável produção em
série de objetos comerciais de nossa época, daí porque falar em criatividade ou qualidade
estética a propósito da produção midiática só pode ser uma perda de tempo.
Os defensores da artemídia, entretanto, costumam ser menos arrogantes e mais espertos.
Eles defendem a idéia de que a demanda comercial e o contexto industrial não inviabilizam
necessariamente a criação artística, a menos que identifiquemos a arte com o artesanato
ou com a aura do objeto único. No entender destes últimos, a arte de cada época é feita
não apenas com os meios, os recursos e as demandas dessa época, mas também no
interior dos modelos econômicos e institucionais nela vigentes, mesmo quando essa arte
é francamente contestatória em relação a eles. Por mais severa que possa ser a nossa crítica
à indústria do entretenimento de massa, não se pode esquecer que essa indústria não é um
monólito. Por ser complexa, ela está repleta de contradições internas e é nessas suas
brechas que o artista pode penetrar para propor alternativas qualitativas. Assim, não há
nenhuma razão porque, no interior da indústria do entretenimento, não possam despontar
produtos - como programas de televisão, videoclipes, música pop etc - que em termos de
qualidade, originalidade e densidade significante rivalizem com a melhor arte "séria"de
nosso tempo. Não há também nenhuma razão porque esses produtos qualitativos da
comunicação de massa não possam ser considerados verdadeiras obras criativas do nosso
tempo, sejam elas consideradas arte ou não.
O fato de determinadas formas artísticas serem criadas no interior de regimes de produção
restritivos, estandardizados e automatizados, com o suporte de instrumentos, know how
e linguagem desenvolvidos pela ou para a indústria do entretenimento de massa, às vezes
até mesmo encomendadas e/ou financiadas pelas mesmas instâncias econômicas que
sustentam ou promovem essas formas industrializadas de produção, não as torna
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necessariamente homologatórias dessas estruturas e poderes. Pelo contrário, elas podem
estar sendo produzidas sob forte conflito intelectual e com inabalável capacidade de
resistência contra as imposições do contexto industrial. Afinal, a cultura de outras épocas
não esteve menos constrangida por imposições de ordem política e econômica do que a
de agora e nem por isso ela deixou de ser realizada com grandeza. Assim como o livro
impresso, tão hostilizado nos seus primórdios, acabou por se revelar o lugar privilegiado
da literatura, não há porque a televisão ou a Internet não possam abrigar as formas de arte
de nosso tempo.
Talvez possamos com proveito aplicar à arte produzida na era das mídias o mesmo raciocínio
que Walter Benjamin (1969: 72) aplicou à fotografia e ao cinema: o problema não é saber
se ainda podemos considerar "artísticos" objetos e eventos tais como um programa de
televisão, uma história em quadrinhos, ou um show de uma banda de rock. O que importa
é perceber que a existência mesma desses produtos, a sua proliferação, a sua implantação
na vida social coloca em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno
artístico, exigindo formulações mais adequadas à nova sensibilidade que agora emerge.
Uma crítica não dogmática saberá ficar atenta à dialética da destruição e da reconstrução,
ou da degeneração e do renascimento que se faz presente em todas as etapas de grandes
transformações. O que não se pode é julgar toda essa produção com base numa legislação
teórica prefixada, baseada em categorias assentadas e familiares, já que ela está sendo
governada por modelos formativos que provavelmente não foram ainda percebidos ou
analisados teoricamente (Lyotard 1982: 257-267). Com as formas tradicionais de arte
entrando em fase de esgotamento, a confluência da arte com a mídia representa um
campo de possibilidades e de energia criativa que poderá resultar proximamente num salto
no conceito e na prática tanto da arte quanto da mídia, se houver, é claro, inteligências e
sensibilidades suficientes para extrair frutos dessa nova situação.
Existe hoje toda uma polêmica com respeito às origens das artes eletrônicas e essa polêmica
pode nos trazer alguns ensinamentos. Para alguns, ela nasce no ambiente sofisticado da
videoarte, com as primeiras experiências do alemão Wolf Vostell e do coreano Nam June
Paik. A videoarte surge oficialmente no começo dos anos 60, com a disponibilização
comercial do Portapack (gravador portátil de videotape) e graças sobretudo ao gênio
indomesticável de Paik. Mas se a televisão puder ser incluída no âmbito das artes eletrônicas
(e não há nenhuma razão para que não seja), teremos de acrescentar à galeria de seus
pioneiros nomes como o do húngaro-americano Ernie Kovacs e do francês Jean-Christophe
Averty, que introduziram na televisão a autoria e a criação artística, além de terem sido os
primeiros a explorar largamente a linguagem do novo meio, razão porque alguns autores
os considerem os verdadeiros criadores da videoarte, antes mesmo de Vostell e Paik.
Averty, o Méliès da televisão, foi um dos primeiros a propor e a realizar, em quase uma
centena de programas, uma televisão autoral e delirante, utilizando largamente recursos
de inserção eletrônica quando eles ainda mal tinham acabado de ser inventados. Seus Ubu
Roi e Ubu Enchaîne, produzidos para a Radio et Télévision Française na década de 1960,
hipertrofiam o que já havia de absurdo na peça homônima de Alfred Jarry, inaugurando
abertamente uma televisão de invenção. Kovacs, por sua vez, desde o começo dos anos
1950, escreveu, dirigiu e interpretou uma série de programas fulminantemente inventivos
para as três principais redes comerciais de televisão dos EUA, onde foram experimentados,
de forma sistemática e radical, vários procedimentos que depois seriam conhecidos como
desconstrutivos: dissociação entre imagem e som, revelação dos bastidores da televisão,
com seus aparatos e técnicos, desmistificação das técnicas ilusionistas, constante referência
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à televisão como dispositivo. Bruce Ferguson (1990: 349-365) chegou a vislumbrar na
obra de autores seminais da vanguarda contemporânea, como Michel Snow, Bruce Nauman
e Vito Acconci, vários procedimentos desconstrutivos e metalingüísticos que já haviam
sido utilizados antes por Kovacs.
O sentido das artes eletrônicas adquire rumos completamente diferentes se contarmos a
sua história a partir de Paik e Vostell, que vêm do circuito sofisticado e erudito dos museus
e galerias de arte, ou a partir de Kovacs e Averty, que despontam da experiência da cultura
popular "eletrificada" e ampliada pelas tecnologias eletrônicas. É a mesma tensão que existe
entre Chaplin e Eisenstein no cinema, ou entre Theremin e Stockhausen na música eletrônica.
Tradicionalmente, a história da arte contemporânea é contada a partir apenas da primeira
perspectiva, ignorando quase completamente a segunda, mas uma artemídia conseqüente
tem de ser capaz de encontrar o ponto de fusão das duas principais perspectivas.
Talvez a dificuldade esteja apenas para aqueles que encaram essa questão a partir do
prisma das artes tradicionais e para os teóricos que se colocam também nesse horizonte.
Quem faz arte hoje, com os meios de hoje, está obrigatoriamente enfrentando a todo
momento a questão da mídia e do seu contexto, com seus constrangimentos de ordem
institucional e econômica, com seus imperativos de dispersão e anonimato, bem como
com seus atributos de alcance e influência. Trata-se de uma prática, ao mesmo tempo,
secular e moderna, afirmativa e negativa, integrada e apocalíptica. Os públicos dessa nova
arte são cada vez mais heterogêneos, não necessariamente especializados e nem sempre
se dão conta de que o que estão vivenciando é uma experiência estética. À medida que a
arte migra do espaço privado e bem definido do museu, da sala de concertos ou da galeria
de arte para o espaço público e turbulento da televisão, da Internet, do disco ou do
ambiente urbano, onde passa a ser fruída por massas imensas e difíceis de caracterizar, ela
muda de estatuto e alcance, configurando novas e estimulantes possibilidades de inserção
social. Esse movimento é complexo e contraditório, como não poderia deixar de ser, pois
implica um gesto positivo de apropriação, compromisso e inserção numa sociedade de
base tecnocrática e, ao mesmo tempo, uma postura de rejeição, de crítica, às vezes até
mesmo de contestação. Ao ser excluída dos seus guetos tradicionais, que a legitimavam e
instituíam como tal, a arte passa a enfrentar agora o desafio da sua dissolução e da sua
reinvenção como evento de massa.
OBRASCITADAS
Benjamin, Walter (1969). "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica". A
Idéia do Cinema (José Lino Grünnewald, org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Duguet, Anne-Marie (1981). Vidéo, la mémoire au poing. Paris: Hachette.
Ferguson, Bruce (1990). "The Importance of Being Ernie". Illuminating Video (Doug Hall
and Sally Jo Fifer, eds.). New York: Aperture.
Lyotard, Jean-François (1982). "Réponse à la question: qu'est-ce que le Post moderne?".
Critique, Paris, n. 419.
Machado, Arlindo (1997). Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas: Papirus.
Winston, Brian (1998). Media Technology and Society. London: Routledge.
Zielinski, Siegfried (1999). Audiovisions. Cinema and Television as Entr'actes in History.
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Escritor, Jornalista. Coordenador de Imprensa de três campanhas
presidenciais do atual Presidente da República: Luís Inácio Lula da Silva:
1989, 1994 e 2002
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RicardoKotscho
Sou muito antigo mesmo. Não se trata de nostalgia, é mera constatação. Só para vocês
terem uma idéia, a primeira vez que vim ao Ceará foi para fazer a cobertura da morte do
Presidente Castelo Branco, num acidente aéreo, pouco tempo depois dele deixar o governo.
Ele tinha ido, no final de semana, visitar uma amiga dele, a escritora Rachel de Queiroz, se
não me engano na cidade de Quixadá. E na volta num pequeno avião monomotor; aconteceu
o acidente quando o avião dele bateu no avião da FAB, aqui em Fortaleza. Isto está fazendo
40 anos. Com certeza a maioria de vocês aqui nem tinha nascido. Para transmitir as matérias
tinha que enfrentar uma enorme fila na Central dos Correios, onde funcionava a agência
telegráfica. O meio de comunicação mais rápido que havia naquela época era o telégrafo.
Para transmitir as fotografias, usávamos um aparelho de rádio tão grande e barulhento que
virou atração turística lá na Agência dos Correios. E ninguém acreditava que no mesmo
momento aquelas fotos estavam entrando em um outro aparelho na redação do jornal O
Estado de São Paulo, em São Paulo. Era um assombro da moderna tecnologia para a época;
explosiva década de 1960, que um marco de transformações no mundo. Depois viriam os
aparelhos de telex e fax. Só duas décadas mais tarde, aos jornalistas seriam apresentados aos
primeiros computadores portáteis que os repórteres chamavam de marmita.
Se alguém falasse numa coisa chamada "telefone celular", ou laptop, maravilhas que hoje te
permitem transmitir um texto com uma foto do interior da China, como aconteceu comigo
dois anos atrás, para qualquer lugar do mundo, seria chamado de maluco. Vivi todas estas
transformações sem maiores sobressaltos porque elas vinham aos poucos, naturalmente.
Nada, porém, pode ser comparada à celeridade das mudanças que a revolução da Internet
vem provocando na cultura, nas comunicações e nas relações humanas.
Dessa vez não se trata de um novo instrumento tecnológico para melhorar as comunicações
físicas e facilitar a vida de gente sempre apressada como nós jornalistas, por exemplo. A
Internet estabeleceu um novo patamar na relação das sociedades democratizando as
informações e o acesso à cultura e abriu novos campos de fusão de idéias, sem a
intermediação exclusiva da mídia tradicional. A opinião da grande imprensa deixou de ser
sinônimo de opinião pública. O jornalista deixou de ser o dono da verdade, que fala e que
escreve o que quer. Está se lixando para que os outros pensam. Na Internet você coloca no
ar um texto agora e um minuto depois tem gente concordando ou discordando, detonando
o que você escreveu, te xingando ou simplesmente abrindo um debate com outros leitores.
E no lugar dos monólogos, dos donos do poder e da verdade, hoje vemos multiplicado
geometricamente o número de emissores e receptores de informação, por meio de um diálogo
permanente, embora seja ainda minoritária a parcela da população ligada à Grande Rede.
Nesse debate, qualquer Zé Mané pode falar de igual para igual com Carlos Heitor Cony, com
Arnaldo Jabor. A cada dia, milhares de novos atores sobem nesse palco invisível em que a
platéia não se limita a aplaudir ou vaiar. Quer participar do espetáculo e influir no resultado.
Confesso que fiquei até meio assustado quando entrei nesse novo mundo no começo do
ano passado. Convidado a fazer uma coluna semanal no site no Rio de Janeiro, não tinha
a menor idéia de como funcionava esse tal de jornalismo eletrônico. O retorno dos leitores
é imediato e sem piedade. Nunca fui tão contestado na minha vida, nem na minha
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própria casa. Tive que me reciclar, como se diz, aprender a conviver com as críticas e até
com as ofensas. Faz parte do jogo da interatividade.
Para quem começou a trabalhar numa redação em 1964, o ano em que o Brasil entrou nas
profundezas da Ditadura Militar, quando muitos colegas ainda faziam as suas matérias à
mão, porque achavam a máquina de escrever muito complicada, foi um verdadeiro choque
cultural. De uma hora para a outra, a Internet mudou totalmente a relação entre quem
escreve e quem lê. Passou a ser uma imensa estrada de comunicação em duas vias, em
tempo real, sem limites geográficos.
Antes de vir para cá, a minha mulher estava lendo esse texto e me contou uma história de
como a Internet revolucionou, não só as comunicações, a troca de informações na sociedade,
mas as próprias relações humanas. (Eu tenho uma sobrinha que conheceu o marido dela
pela Internet. Acabou casando... etc. Como tudo na vida, tem o lado bom e o lado ruim. A
minha mulher me contou que uma amiga dela tem uma filha que conheceu um rapaz de
um outro país, começaram a namorar. O rapaz veio para cá e ela foi para o país dele.
Marcaram casamento, contrataram buffet, convites, gastaram uma nota... E quando ela foi
para lá, para Londres, descobriu que o cara não prestava. Era um malandro que fazia isso
com mulheres do mundo inteiro. Se divertia arrumando namoradas. Ia conhecer outros
países, por conta delas e aí em cima da hora tinha que desmarcar o casamento).
Mais que isso, os livros mais raros das bibliotecas mais distantes, de repente podiam ser
consultados sem sair de casa. Nos tempos do jornal, eu recebia, de vez em quando, uma
carta, um telefonema de algum leitor. No site, passo boa parte do dia, hoje, respondendo as
mensagens que chegam sem parar. Os temas das colunas que escrevo passou a ser mero
pretexto para que cada leitor conte a sua própria história, dê a sua opinião, sugira novas pautas
ou faça a defesa de suas próprias idéias para salvar o Brasil. Tivemos um exemplo disso, ainda
recentemente, no plebiscito sobre a venda de armas, no ano passado. Em poucas semanas,
uma violenta campanha, desencadeada na Internet em defesa do não; depois sustentada com
os mesmos argumentos na televisão, inverteu de cabeça para baixo as pesquisas que apontavam
a tranqüila vitória do sim, da proibição do comércio de armas e no fim deu o contrário.
Agora, por exemplo, estou impressionado com o volume de mensagens defendendo o
voto nulo. É uma campanha que você não sabe de onde vem, sem dono nem nome, mas
que ganha força a cada dia. Gostaria de chamar a atenção para um fato novo para a
campanha eleitoral desse ano. É a primeira vez que o universo dos sites, dos blogs... Terá
um papel, eu acho, de maior importância na definição do voto. Veículos da mídia
tradicional, ainda são obrigados a respeitar certas regras da justiça eleitoral para evitar o
abuso do poder econômico. E podem ser punidos, como aconteceu várias vezes, quando
desrespeitam a legislação. Mas quem e como será capaz de estabelecer limites para as
campanhas feitas por meios eletrônicos em que os emissores utilizam codinomes ou
pseudônimos. É simplesmente impossível num país onde só temos três jornais de circulação
nacional: a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo e o Globo e que mesmo assim ainda
chegam no fim do dia, quando chegam a muitas capitais do Estado; a força da comunicação
está cada vez mais nos meios eletrônicos. Enquanto cai a circulação da imprensa de papel
e a audiência dos telejornais tradicionais, cada vez mais profissionais da comunicação
migram para os novos meios que, por sua vez, chegam on-line às comunidades mais
afastadas dos grandes centros. Por mais que os setores da grande mídia queiram implantar
um pensamento único, o fato inegável é que houve, está havendo uma democratização
do fluxo de informações no Brasil. Isso se deu, não só pela entrada em cena das novas
tecnologias, da criação em série de sites e blogs, mas também da disseminação de
publicações segmentadas, além de rádios e televisões comunitárias. Hoje, esses novos
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Ao contrário do que muitos ainda pensam, veículos ou colunistas da grande mídia já não são
capazes de derrubar, nem de eleger governos. Assim como já não determinam o que presta
e o que não presta, no cinema, no teatro, na música, nas diferentes formas de expressão
cultural. A prova disso, por exemplo, foi o que aconteceu com a música sertaneja ou brega,
como alguns preferem chamá-la.Execrada pelo caderno da vida é a música que mais se
ouve, hoje, no Brasil inteiro, até mesmo nas casas de espetáculos mais caras do país.
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veículos alternativos de difusão de notícias e de opiniões, contemplam desde sem-terras a
índios; passando por prostitutas, igrejas, sindicatos, moradores de rua e ong's, em geral.
Outra constatação que faço em minhas viagens pelo o Brasil é o crescimento da imprensa
regional; não só em circulação, mas, principalmente, em qualidade.
O popular boca a boca, que faz o sucesso de um livro ou de um filme ganhou um fantástico
trombone na Internet; mais do que a opinião do crítico famoso, o que influi nas nossas escolhas
são os comentários que lemos na Internet, enviados tanto por amigos como por desconhecidos.
Ao mesmo tempo em que a Internet trouxe a cultura e a comunicação global para dentro
das casas das pessoas, ela nos dá as informações de que precisamos para novos vôos que
despertam o desejo de novos conhecimentos.
Muita gente das antigas mídias está assustada com o poder da Internet, já anunciando a
morte da imprensa escrita e da televisão como a conhecemos, sem falar no cinema e no
teatro, condenados há muito tempo, por profetas com medo do futuro. Eu não tenho esse
medo. Acho que haverá lugar para as diferentes formas de comunicação, novas e antigas,
desde que cada uma respeite a sua própria natureza. O cinema não acabou com o teatro,
assim como a televisão não acabou com o cinema e os três juntos não acabaram com o
cantador de viola. Há de se adaptar a esses novos tempos de mudanças tão rápidas e
radicais. Os jornais de papel, por exemplo, onde trabalhei a maior parte da minha carreira
não podem querer concorrer com os meios eletrônicos no mesmo campo, como fazem
hoje. Vão ter que se diferenciar na forma e no conteúdo. Até porque hoje, todos parecem
ser dirigidos, pautados, escritos e editados por uma mesma pessoa.
Para se diferenciar entre si e das demais mídias, os jornais vão ter que voltar a fazer
reportagens, quer dizer, contar novidades, levantar histórias inéditas com começo, meio e
fim, explicar o que está acontecendo, surpreender o seu leitor. Vão ter que sair na rua,
deixar de lado os gabinetes e ver o que está acontecendo na vida real, nos becos e nas
trilhas do Brasil real e não apenas nos gabinetes oficiais. Só vão morrer aqueles que insistirem
em fazer matérias por telefone, depois de uma consulta na Internet, enchendo suas páginas
de colunas de matérias de agências que são as mesmas em todo o lugar. Já falei demais e
agora quero ouvir vocês. Se alguém quiser saber de mais histórias de um velho repórter,
vou contá-las num livro que será lançado pela Companhia das Letras, agora em junho. Vai
se chamar Primeira página, memórias de um repórter do golpe ao Planalto.
Antes de terminar, eu queria só dizer uma coisa aos mais jovens que estão entrando na profissão
agora. Não desanimem diante das eventuais dificuldades.Não entrem no pessimismo dos mais
velhos. Não aceitem as coisas como são ou estão. Lutem pelo o seu espaço e acreditem
sempre em vocês mesmos. Nunca o nosso mercado de trabalho foi tão diversificado. Nunca
tivemos tanta liberdade e tantas oportunidades para colocar em prática os nossos sonhos.
Apesar de tudo, apesar de todas as crises, vivemos num fantástico país onde quase tudo
ainda está por ser feito e contado. É muito bom ser jornalista nesta terra e neste tempo. O
futuro da nossa profissão vai depender apenas de cada um de nós, da nossa capacidade de
alçar novos caminhos e de resistir à tentação de procurar o caminho mais fácil.
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MesasRedondas
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Assessor Especial da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica
do Governo Federal. Jornalista
Vou me inspirar na fala de abertura deste seminário do embaixador Rouanet, que,
respondendo a uma pergunta, referiu-se a um clamor do auditório por uma reforma
agrária nos meios de comunicação de massa, na grande mídia. Eu fiquei pensando nessa
frase e ocorreu-me que essa reforma agrária já está acontecendo. O grande latifúndio
improdutivo dos meios de comunicação de massa já está sendo retalhado por dentro, e de
fora para dentro, por milhões de blogs, sites e boletins na Internet. O arame farpado da
comunicação de massa está sendo cortado pelos internautas.
Já está se criando um espaço midiático de outra natureza no qual cada cidadão pode se
comunicar, informar e ser informado. Uma esfera pública totalmente diferente dessa
esfera pública formada pelos meios de comunicação de massa que vinha existindo nas
últimas décadas. Claro que as duas esferas ainda coexistem, mas a dinâmica da novidade
jornalística, a dinâmica da revolução tecnológica está com essa nova esfera pública. É
sobre isso que eu queria fazer alguns comentários. Eu queria falar de uma dimensão
material do que está acontecendo e de uma dimensão cultural, sob a ótica do jornalismo.
No plano material, o traço central dessa revolução tecnológica é a desconcentração. E ele
é importante porque é o oposto do que aconteceu com a Revolução Industrial que ocorreu
na Inglaterra com a invenção do motor no século XVIII. Do motor derivavam as correias
de transmissão. Em torno dele, as máquinas, a estamparia, a furadeira, todas as máquinas.
Aquilo criou uma nova escala de produção concentrada e mais barata que destruiu os
artesãos. Tornou impossível uma produção artesanal, a produção daquela pequena oficina,
na frente da casa do artesão. Destruiu os ofícios. A produção migrou para um campo de
concentração chamado fábrica, onde todos os operários ficavam em torno das máquinas
e de uma linha de montagem.
No jornalismo, esse modo de produção atingiu o seu ponto máximo com a invenção das
rotativas, que são centrais de produção gigantescas. E nas empresas jornalísticas, isso
assumiu uma forma acabada, e veja que interessante, tardia já fora de seu tempo quando
as redações se mudam para prédios isolados e distantes. Em São Paulo, as redações foram
para as marginais do Tietê. Até em Londres isso aconteceu. As redações tornaram-se
grandes campos de concentração, longe da cidade e do centro, hoje, obsoletas.
Hoje, ninguém precisa ir à Marginal do Tietê para entregar a matéria para a revista Veja ou para
qualquer revista da Editora Abril, ou para o Estadão. Esses edifícios viraram monumentos à
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A autonomia do trabalhador intelectual é um dos traços centrais da nova revolução
tecnológica que a gente precisa observar. Ele manterá essa autonomia, ou será
submetido ao poder do grande capital? O grande capital resiste, tentando manter a
dominação e a concentração, através dos controles dos canais de distribuição e até
através da criação de conceitos novos que criminalizam a reprodução autônoma, como,
o de pirataria. O nosso governo assumiu com grande empenho, por pressão dos
americanos, o combate à pirataria. Combatemos a pirataria com todo o empenho, no
entanto, este é um conceito absurdo. Como é que você vai impedir que as pessoas
copiem e produzam os seus CD's, se a tecnologia permite fazer isso dentro de casa
com baixo custo? Uma outra reação do capital a esse processo são as mega-fusões.
Elas podem ser vistas como tentativas de sobrevivência. São mega-fusões que criam
grandes corporações, mas elas não conseguem obstar o processo de perda de controle
do grande capital sobre os mecanismos de reprodução.
2006
obsolescência desse modo de produção concentrada. Hoje nós trabalhamos em casa. Cada
um é autônomo na sua produção. E mais, todo mundo é autônomo na reprodução e pode
reproduzir o seu CD, a sua matéria e espalhar suas idéais e criações pelo mundo afora a partir
de sua casa!
O grande fascínio da atual revolução tecnológica é o seu potencial de devolver ao
homem a sua autonomia produtiva no campo cultural. Qualquer pessoa, hoje, pode ser
um produtor cultural, de vídeo ou de jornal a custos cada vez mais baixos. Nas próprias
grandes empresas, predomina a dinâmica da fragmentação, da segmentação, da
terceirização na compra de conteúdos de produtores autônomos, tal é a força desse processo.
Até mesmo nas fábricas clássicas que produzem bens tradicionais, como na indústria
automobilística, produtores autônomos são contratados para trabalhar para dentro da
fábrica, sem terem com a fábrica relação de emprego, para ali dentro, contribuírem para
a montagem final do veículo. Por exemplo, essa fábrica modelo da Volkswagen que dizem
ser a última palavra em produção de veículos, em vez de comprar as tintas do automóvel
e pintá-lo na sua fábrica, sub-contrata o fabricante de tintas para que ele pinte os carros
dentro de sua fábrica. Então, uma fábrica acaba sendo um mosaico de pequenas fábricas.
Ela se fragmentou em pequenas fábricas. Este é um processo dominante. A segmentação,
fragmentação, especificamente no campo do jornalismo e da comunicação, também a
possibilidade de produção e reprodução a baixo custo.
As rotativas ainda rodam jornais. Mas os jornais são cada vez mais jornais virtuais. Cada
vez mais o jornal é recebido pela pessoa sob uma forma imaterial. Ele lê o jornal na
Internet. E já existe uma tecnologia pela qual você baixa um jornal e imprime numa folha
plástica e, no dia seguinte aquela tinta se apaga e você usa a mesma folha plástica para
imprimir o jornal do dia seguinte. As novas gerações lêem mais Internet do que jornal. Eu
tenho um colaborador em Brasília que todo dia de madrugada me ajuda a escrever um
relatório importante para o governo com base nos jornais. E eu insisto com ele que ele tem
que ler o jornal. E depois você vai ver na Internet. Ele só lê o jornal pela Internet. Não
adianta brigar com ele. Então, esse fenômeno é cultural. As novas gerações lêem jornal na
Internet. Não lêem os jornais em si.
Hoje, toda a produção científica já é disponibilizada pela Internet, não mais na forma
impressa. Os exemplares impressos são em número reduzido para ficar em bibliotecas que
também estão fadadas a desaparecer na sua forma material. Teremos bibliotecas cada vez
mais virtuais. O processo é muito rápido, violento, abrangente, profundo, e nós estamos
com essa dificuldade toda de conceituar, entender e saber até aonde isso vai.
No campo da esfera pública jornalística, certamente, define-se um novo estilo de esfera
pública, que atropela a esfera pública existente. São milhares de sites e blogs criados a
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cada dia, segundo eu leio nos jornais. É uma galáxia em expansão contínua. A Internet
é um meio de comunicação de massa. A escala de acesso a classifica como meio de
comunicação de massa. Depois, eu vou falar dos paradoxos e das contradições desse
novo meio.
A Internet não é apenas mais uma mídia, que se acomoda entre as já existentes; é ao
mesmo tempo uma poderosa nova ferramenta de trabalho. E provocou um terremoto
que está sacudindo as bases de vários dos meios convencionais, especialmente, o jornalismo
impresso. E já está alterando o modo de se fazer jornalismo nas empresas, e fora delas.
Essa nova esfera pública, propiciada pelo surgimento da internet e do aparelho celular já
é hoje um dos importantes fatores determinantes da luta política. Ela alterou profundamente
o espaço midiático que, por sua vez, tinha se tornado, nas últimas décadas, o espaço da
política. Então, numa primeira etapa, a praça pública e a rua desaparecem como espaços
da política e esse espaço passa a ser o meio de comunicação. E, numa segunda etapa,
agora, esse espaço é atropelado, é modificado, é transformado. A Internet atropela partidos,
estruturas e modos de fazer política. Já teve um papel fundamental na reunião daquele um
milhão de espanhóis, em Madrid, depois do atentado terrorista, mobilizados pela Internet,
em 24 horas. Essa mobilização instantânea pela internet subverteu o resultado eleitoral
previsto levando à vitória de Zapatero.
A Internet e o telefone celular estão tendo um efeito importante nas manifestações na
França. Segundo me disseram, são mobilizadas inúmeras mensagens tipo torpedo. A juventude
está se mobilizando por torpedos. A Internet teve papel fundamental no sucesso dos Fóruns
Sociais Mundiais. Está tendo papel importante nas mobilizações no Equador, Bolívia e
Chile, em todos esses processos políticos que estão ocorrendo no mundo.
Nós temos que fazer um grande esforço para entender o caráter democratizante e
mobilizador dos novos meios porque ainda é hegemônica na academia a visão apocalíptica
que vê como nefasta a influência dos meios de comunicação de massas nas pessoas e
política. Nós estamos sempre procurando ver o demônio na comunicação, mesmo nesses
novos meios. Mas, eu vejo o contrário, pela primeira vez vejo uma mudança total de
rumo. É como disse Marx: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Está se desmanchando
a comunicação de massa vertical e concentrada.. Está surgindo uma coisa nova. Pode
ser que dure pouco. Pode ser que comecem a colocar controles sobre isso. Eu acho
importante nós arejarmos um pouco a nossa cabeça, sob essa visão apocalíptica porque,
senão, vamos travar a luta errada. Estamos denunciando o latifúndio, propondo a reforma
agrária quando ela já está acontecendo. O que nós temos que impedir é que eles tentem
re-impor controles que funcionavam nos meios antigos sobre os meios novos.
Essa revolução tecnológica está provocando uma série de rupturas e pondo fim a várias
demarcações. Vou dar alguns exemplos:
Acaba a demarcação entre o público e o privado. Na Internet, não sabemos se a comunicação
é pública ou privada. Até hoje não se fez um protocolo que estabeleça essas regras para
a internet. Tudo é público. Tudo é privado. E o privado se torna público. Você manda um
informe para um amigo, por um e-mail e, no dia seguinte, ele mandou o mesmo informe
para trinta destinatários pelo comando "encaminhe-se.": E os trinta mandaram para outros
trinta. E aquilo acaba indo para milhões.
Na Internet ou na rádio digital, quebra-se a verticalidade na relação autor/leitor. O leitor
interage, questiona, intervém e acaba se tornando ele mesmo um autor. A interatividade
não tem limite na nova tecnologia.
Na Internet, rompe-se o conceito de periodicidade, característica até então demarcadora
do produto jornalístico. Nós aprendemos na escola, anos atrás que o veículo é jornalístico
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quando ele tem periodicidade, e atende os critérios da novidade e do interesse público.
Acaba a periodicidade. Quando eu vi, há duas semanas atrás, a revista Época, anunciar no
seu editorial que estava lançando um blog, veio-me a percepção de que os veículos que
têm periodicidade, especialmente, as mais longas, semanal, mensal, não podem mais
esperar. Ele já tem que estar na Internet na terça, na quarta, na quinta ; a edição impressa
da sexta corre o risco de se tornar inútil, de tender a desaparecer. Quando um jornal escala
seu correspondente em Brasília, e diz que você vai fazer um blog, é porque o próprio
jornal não pode esperar o dia seguinte. E ele quer dar uma identidade a esse novo espaço,
não quer que seja apenas uma agência de notícia do jornal, que os outros jornais depois
vão pegar. Ele já quer naquele momento produzir um fato, mostrar a sua identidade.
Então, ele estimula os seus jornalistas a criarem os seus blogs. Tudo isso é transitório, mas
evidencia o fim da periodicidade. O tempo é contínuo agora no jornalismo.
As novas tecnologias também derrubam os limites à manipulação do texto, da imagem e
do som.Tudo é permitido pela nova tecnologia, as colagens, o reducionismo, a compactação,
a fusão. Nas fotos, nos textos, nas imagens, em tudo .Acabam-se todos os empecilhos
físicos à produção jornalística, ao acesso aos bancos de dados, à transmissão, composição,
tudo isso se faz agora sem dificuldade.
É claro que fica implodido o conceito de direito autoral, por dois motivos: Primeiro,
qualquer pessoa pode copiar. E segundo, não tem mais sentido reproduzir uma obra
inteira, um CD inteiro ou o livro todo; as pessoas reproduzem o que lhes interessa.
Na internet acaba a separação entre emissor e receptor.Todos são emissores e receptores.
E mais, na Internet, os usuários criam o tempo todo novas ferramentas. O usuário é
também um inventor.
Invertem-se alguns papéis: está comprovado que a internet é hoje o meio de informação
jornalística mais denso, mais rico, que se utiliza de mais fontes. E, no entanto, as fontes
da Internet são os jornais. O jornal que devia se valer de uma agência de notícias,
operação típica de uma Internet, vira agência de notícia da Internet. É lá que ela vai
buscar as suas informações.
Finalmente, o mais importante: a internet e o celular fornecem a primeira solução técnica
eficaz para o exercício do direito de todo ser humano de informar estabelecido na Carta
da ONU, como distinto do direito de ser informado. Hoje, cada pessoa razoavelmente
inserida na sociedade tem como informar, intervir, opinar.
Toda essa revolução ofusca a demarcação do jornalismo como um campo social, como um
conjunto de regras, relações, atribuições de papéis que legitimem uma certa prática. Quais são
os papéis? Quem é na Internet o jornalista? E quem não é? E o que ele pode fazer e o que não
pode? O blog é jornalismo, ou não é? E aonde é que fica a ética jornalística, um dos mais
importantes fios condutores nessa teia de regras que se chama jornalismo? Então, a minha
percepção é que nós estamos no começo de um processo muito rápido, em que o jornalismo
como campo social está sendo desafiado, ou seja, a profissão está sendo desafiada. Ela tem
que discutir a sua identidade, seus objetivos dentro dessa mudança toda. Isso já começou
antes, quando a comunicação começou a penetrar em todos os caminhos da sociedade.
Jornalismo e comunicação começaram a se misturar muito. Mas agora virou uma bagunça
geral. Essa teia de relações que definiam o jornalismo foi, num certo sentido, corrompida
porque os papéis foram subvertidos. O campo jornalismo como profissão foi invadido pelo
homem comum. É o homem comum que cortou o arame e está fazendo a reforma agrária,
que está invadindo esse grande latifúndio que é o jornalismo profissional.
Bernardo Kucinsky
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A ética jornalística clássica que a gente ensina na escola, nessa situação está superada.
Não reponde a nada. Já estava em crise, tempos atrás. Eu sentia isso quando dava aula,
fazia palestras, por motivos até mais interessantes. Percebia-se que estamos num momento
de profunda transição em que todos os valores são válidos e nenhum valor é dominante.
Aliás, o valor dominante é o da tolerância a todos os valores, ou seja, um paradoxo. As
pessoas podem se vestir como quiserem. Ter a opção sexual que quiserem. Ter o tipo de
família que quiserem. Não há um padrão dominante em nada. Se não há um padrão
dominante em nada, como é que se pode chegar numa sala de aula e dizer que a ética
jornalística diz que a conduta correta neste caso deve ser esta ou aquela? Os alunos não
aceitam. Eles não entendem que possa haver uma ética impositiva. Cada um com a sua
consciência. Então, essa crise da ética no jornalismo já vem de antes. Mas agora, ela é
materialmente implodida por essa nova tecnologia. Eu diria, com uma certa ousadia,
que . até mesmo a lei básica do capitalismo de que tudo se transforma em mercadoria
está sendo desafiada pela Internet. Por que na Internet, não se sabe ainda como ganhar
dinheiro. Quase tudo é fácil, é barato. Não só ela não é um empreendimento estritamente
comercial, como ela está erodindo a lucratividade dos meios tradicionais, dos meios de
comunicação de massa que estão sendo levados à bancarrota pela Internet. A Internet é
uma coisa tipicamente anti capitalista.
E com isso eu encerro as minhas provocações.
A
rturMatuck1
Pós-doutor em Arte e Tecnologia pala Universidade Carnegie Mellon em Pittsburgh.
Pós-doutor em Cultura Eletrônica pela Universidade da Flórida. Doutor em Artes
pela ECA-USP. Professor de Comunicação Digital da ECA-USP
A Criação TTextual
extual Híbrida e o FFuturo
uturo da Ciência
Proposição
O extraordinário avanço tecnológico das últimas décadas acarreta mudanças profundas
em todos os setores da sociedade, mas incide particularmente sobre a cultura e os meios
de produção intelectual, o que faz emergir a necessidade de reflexão acerca das formas de
criação e circulação da informação e cria, inclusive, a necessidade de revisão de paradigmas.
Um novo ambiente digital gradualmente reconceitua a percepção e a compreensão da
sociedade, do ser humano e, conseqüentemente, da produção, recepção e interação cultural,
transformando diretamente os próprios conceitos de texto, autor, leitor, comunicação,
público, informação, conhecimento e universidade.
A emergente cultura midiática, de tendência expansiva, vem desafiando planejadores e
produtores culturais a conceberem estratégias de ação que respondam às possibilidades
potenciais das novas tecnologias. A universidade, especialmente, vem sendo desafiada a
se atualizar diante deste processo midiático-cultural que se dissemina simultaneamente
em diversos campos do conhecimento.
Trabalho apresentado para a mesa temática: “Por uma prospectiva política da dimensão digital”, XXVIII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, INTERCOM 2005.
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No âmbito tecnológico, examina-se o impacto da transição analógico-digital sobre a
produção do conhecimento e as novas formas de utilização do computador como
instrumento de trabalho intelectual.
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.Este artigo analisa aspectos de natureza técnica e política concernentes à digitalização do
conhecimento, com o intuito de identificar elementos que enriqueçam a reflexão sobre o
tema e contribuam para uma atuação política mais consistente perante as linguagens digitais
Na esfera da ação política, aborda-se o papel da Universidade perante essa transição, a
função social da informação científica diante do potencial de processamento informacional
das tecnologias digitais, bem como as questões fundamentais das novas formas autorais e
da propriedade intelectual na ciência.
Digitalização e prospectiva política
A transição do analógico para o digital, em pleno curso, altera radicalmente as formas de
criação intelectual e provoca uma ampla e irreversível transformação no processo de
captação, geração, registro e circulação da informação. Arquivos, memórias, documentos,
certificações, contratos e transações de todos os tipos passam a ter cada vez mais uma
existência digital.
Nesse novo cenário, o computador assume um papel fundamental, torna-se multinstrumento
e interfere decisivamente na nova forma de produção do conhecimento, crescentemente
co-produzindo enunciados a partir de um sistema híbrido homem-máquina ou homemmáquina-homem.
A compreensão da linguagem digital torna-se indispensável para a concepção, ampliação
e prospecção dos novos sistemas de autoria, da intercomunicação, da produção co-autorada
e de formas alternativas de validação do conhecimento.
O filósofo francês Pierre Levy, pioneiro neste cenário, já previa, na década de 1980, a
amplitude da revolução digital:
A mediação digital remodela certas atividades cognitivas fundamentais que envolvem a
linguagem, a sensibilidade, o conhecimento e a imaginação inventiva. A escrita, a leitura,
a escuta, o jogo e a composição musical, a visão e a elaboração das imagens, a concepção,
a perícia, o ensino e o aprendizado, reestruturados por dispositivos técnicos inéditos, estão
ingressando em novas configurações sociais. (1988, p. 17)
A inserção digital, hoje já relevante, será indispensável para questões de articulação política,
de presença social, proposição cultural, inovação estética, construção identitária e direitos
humanos num futuro próximo.
Historicamente, o domínio do conhecimento científico e das tecnologias determinou o domínio
político. Não há razão para imaginar que na época atual será diferente. Os europeus detinham
a tecnologia de delimitação de fronteiras, de execução de mapas e por isso puderam estabelecer
domínio territorial sobre os povos indígenas das Américas no século XVI. O mesmo risco está
colocado para a sociedade contemporânea em relação às novas tecnologias.
Embora imprescindível, a capacidade de atuação política da sociedade nesse novo universo
dependerá do seu grau de consciência acerca dos efeitos possíveis e previsíveis da crescente
digitalização da ordem simbólica, da sua habilidade em prever os fundamentos dessa
civilização emergente.
Nessa perspectiva, torna-se crucial estabelecer, desde já, estruturas educacionais, políticas,
sociais e culturais que permitam à sociedade estar preparada para uma adaptação consciente
e negociar condições favoráveis no limiar desta mutação.
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O novo contexto digital requer formas inéditas de apreensão e teorização, pede a elaboração de
novas metáforas que esclareçam e desvendem esse universo em constante transformação. Tratase de se propor um modelo de sociedade, de cultura, de informação e de ciência no qual direitos
atuais e emergentes sejam contemplados para que os homens não sejam apenas periféricos de
um sistema cada vez mais ubíquo. Nesse contexto, a Universidade tem papel fundamental.
À Universidade caberá: desenvolver teorias e modelos de atuação e interação que promovam
a utilização do potencial das tecnologias digitais; atuar no cenário político e na elaboração
de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento científico e tecnológico do Terceiro
Mundo; atualizar-se constantemente em termos de instrumentos e programas
computacionais; solidarizar autores e instituir colaborações nos mais diversos níveis autorais.
Aos docentes e discentes, restará a árdua tarefa da reciclagem periódica, do treinamento
constante, do aprendizado de novos modos de construção do conhecimento, da adaptação
a um ambiente em transformação contínua. A evolução dos bancos de dados e programas
de busca propiciará um mapa mais detalhado das necessidades de informação,
conhecimento e recursos de cada área, disciplina, região, país ou continente, possibilitando
uma resposta particularizada para cada demanda.
Na Universidade, deverá se desenvolver uma pesquisa, um conhecimento, um pensamento
que investigue, planeje e preveja o futuro iminente, que promova a necessária preparação
para a constante disseminação das tecnologias digitais e das transformações sociopolíticas
e culturais dela decorrentes.
Um pensamento crítico e reflexivo sobre a emergência dos sistemas digitais deverá conduzir
a uma contínua pesquisa em políticas públicas e promover o amplo acesso à informação, às
tecnologias, aos equipamentos e programas computacionais. Esse pensamento deve refletirse sobre os principais pontos de tensão resultantes da transição analógico-digital: a hibridização
homem-máquina, as tecnologias da escrita e da inteligência, as novas formas de autoria e do
direito autoral, o processamento automático da informação, a questão política e ética da
propriedade intelectual, o status jurídico dos programas e sistemas computacionais.
A importância da crítica na assimilação social das tecnologias foi destacada por Nicolau
Sevcenko, historiador da cultura:
É fato que não se pode prever o curso e o ritmo das inovações tecnológicas, mas a conclusão
seguinte - de que também não podemos resistir a elas ou compreendê-las - não é verdadeira.
Pode-se fazer muitas coisas com a técnica, e graças ao seu incremento é possível fazer cada vez
mais. Mas uma coisa que a técnica não pode fazer é abolir a crítica, pela simples razão de que
precisa dela para descortinar novos horizontes. Os sistemas políticos que tentaram abolir a
crítica morreram, sintomaticamente, por obsolescência tecnológica. (SEVCENKO, 2001, P. 17)
Na conclusão deste estudo, apresenta-se uma proposta de reavaliação de valores, princípios
e paradigmas que se faz absolutamente necessária diante do potencial multiverso das
tecnologias digitais, conclamando a uma ciência compartilhada, a uma ética da solidariedade
em nível planetário, pois. Castells, por exemplo, afirma:
A partir da observação dessas mudanças extraordinárias em nossas máquinas e
conhecimentos sobre a vida, e com a ajuda de tais máquinas e conhecimentos, está
havendo uma transformação tecnológica mais profunda: a das categorias segundo as
quais pensamos todos os processos. (2000, p. 80)
A hibridização homem-máquina
O universo digital apresenta modos de aquisição, estruturação, compreensão e disseminação
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As próteses tecnológicas que permeiam os sistemas orgânicos propõem ao ser humano a
superação das limitações físicas, perceptivas, intelectuais e expressivas, bem como o colocam
diante de questões que exigem uma reflexão teórica, humanista, científica e filosófica.
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da informação que constituem verdadeiros processos semióticos de integração homemmáquina no campo da linguagem.
A interação entre a inteligência humana e a inteligência artificial desafia os paradigmas
dominantes, pois os conceitos estabelecidos que ora norteiam o pensamento, a reflexão, a
expressão e a ciência são insuficientes para o entendimento do processo de hibridização.
Bruce Mazlish, historiador da tecnologia do MIT, observa que:
É necessário reconhecer que a evolução biológica humana, agora mais bem entendida em
termos culturais, impõe à humanidade - a nós - a conscientização de que ferramentas e
máquinas são inseparáveis da evolução da natureza humana. Também precisamos perceber
que o desenvolvimento das máquinas, culminando com o computador, mostra-nos, de forma
inevitável, que as mesmas teorias úteis na explicação do funcionamento de dispositivos mecânicos
também têm utilidade no entendimento do animal humano - e vice-versa, pois a compreensão
do cérebro humano elucida a natureza da inteligência artificial. (MAZLISH, 1993, p. 80)
A decodificação dessa realidade híbrida requer uma percepção aberta e apurada e só se faz
possível mediante a reformulação de estruturas fundamentais que informam o ser humano,
a cultura, a história, o planeta, as identidades, a criação científica e a própria linguagem.
Processamento automático da informação
Atualmente, programas de busca podem investigar informações textuais em novas ordens
de magnitude, superando as tradicionais limitações de acesso do homem à informação,
características da era da imprensa e do livro.
Esses programas de captação e de recuperação de informações têm-se desenvolvido e têm
previsto um desenvolvimento ainda mais avançado em direção a sistemas cada vez mais
complexos, projetando buscas, identificação, leitura, organização e estruturação de dados
de maneiras crescentemente sofisticadas, o que permite aos agentes humanos formatações
diversificadas e cada vez mais inusitadas, fato também observado por Castells:
O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e
informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de
conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um
ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. (2000, p. 51)
Uma área recente das ciências da computação intitulada Data Mining (termo normalmente
traduzido por 'mineração de dados') propõe-se a elaborar teorias e tecnologias apropriadas
a esse crescente desenvolvimento.
Data Mining é definida como "o processo não-trivial de identificar em dados, padrões
válidos, novos, e potencialmente úteis e ultimamente compreensíveis." (FAYAD et al apud
NAVEGA, 2002, p.1)
Sérgio Navega observa que, numa primeira aproximação ao processo, em seu estado
atual, já se evidencia a hibridização homem-máquina:
Este processo vale-se de diversos algoritmos (muitos deles desenvolvidos recentemente) que
processam e encontram esses 'padrões válidos, novos e valiosos'. É preciso ressaltar um
despercebido na literatura: embora os algoritmos atuais sejam capazes de descobrir padrões
'válidos e novos', ainda não temos uma solução eficaz para determinar padrões 'valiosos'. Por
esta razão, Data Mining ainda requer uma interação muito forte com analistas humanos,
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que são, em última instância, os principais responsáveis pela determinação do valor dos
padrões encontrados. Além disso, a condução e o direcionamento da exploração de dados é
também tarefa fundamentalmente confiada a analistas humanos, um aspecto que não pode
ser desprezado em nenhum projeto que queira ser bem sucedido. (2002, p. 1)
O processamento automático e a mineração de informações a partir de volumosos bancos de
dados proverão mapeamentos variáveis, a partir de parâmetros diferenciados, do conhecimento
acumulado e disponível. Pode-se prever que a evolução programada desses sistemas deverá
facilitar sobremaneira o processo de aquisição de informação e influir decisivamente no processo
de educação, compreensão, estruturação, raciocínio e integração de informações.
Além disso, é previsível também que, em breve, sistemas de síntese informacional
desempenharão um papel preponderante no processo de atualização, recriação e evolução
do conhecimento adquirido.
Escrita computacional e gênese da informação
No processo de hibridização, destaca-se especialmente a escrita computacional, uma área de
pesquisa ainda incipiente no campo da produção textual científica, mas bem conceituada e
avançada no campo da literatura, aqui apresentada pelo escritor e semiólogo Pedro Barbosa:
Literatura Gerada por Computador (LGC), Infoliteratura ou Ciberliteratura são termos que
designam um procedimento criativo novo, nascido com a tecnologia da informática, em
que o computador é utilizado, de forma criativa, como manipulador de signos verbais e
não apenas como simples armazenador e transmissor de informação, que é o seu uso
corrente. (BARBOSA, 1998, p. 181)
As diversas operações textuais proporcionadas por sistemas digitais reinventam as práticas
tradicionais de leitura e escrita e induzem a novas concepções de texto, autor, leitor, escrita
e leitura e mesmo de 'máquina de escrever'.
Os sistemas computacionais forneceram à criação textual formas inéditas de co-autoria, de interface
homem-máquina. Programas concebidos para interferir nos processos da escrita reelaboram
estruturas linguísticas, ortográficas, frasais, sintáticas, morfológicas e produzem os chamados
'eletroescritos', que mimetizam a autoria humana ou recriam suas estruturas discursivas,
selecionando, resumindo, sintetizando ou mesmo redigindo textos originais. (MATUCK, 2005)
A criação e a recriação de palavras, frases, parágrafos e textos, a recombinação computacional
de elementos textuais caracterizam uma nova disciplina ou metodologia derivada da
lingüística computacional e da geração de textos por computador.
Esse novo processo escritural propõe um diálogo criativo entre as estruturas manifestas da
língua na sociedade e na mente e as possíveis modificações que o computador pode
introduzir nessas estruturas a partir de algoritmos especialmente projetados para atuarem
como autores eletrônicos.
O computador tem, portanto, o potencial de inaugurar uma maneira inédita não-linear de
escrever. Através de sistemas computacionais pode-se conceber métodos para se combinar
ou recombinar componentes textuais em novas formulações, gerando textos inteiros em
frações de segundos. (MATUCK, 2004)
Sistemas computacionais podem ainda analisar textos do ponto de vista matemático,
desvendando as estruturas discursivas de gêneros específicos - científico, jornalístico ou
literário - que podem, então, ser mimetizadas com algumas variações semi-randômicas,
formulando, desse modo, frases, parágrafos e textos, de certa maneira originais, de
complexidade e significados similares aos criados por agentes humanos.
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Nessa possível orientação de pesquisa encontra-se o germe de uma escrita computacional
que produz discursos que não mimetizam aqueles produzidos por humanos, mas que os
confrontam com de-ordenações, tornando-se, desse modo, elementos de uma sucessão
de operações que formam, ao final, um processo criativo co-autorado por esta característica,
elementos de um processo criativo co-autorado homem-máquina.
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Num outro direcionamento da criação textual computacional, os sistemas generativos são
utilizados para criar uma de-ordenação, propondo outras combinações propositadamente
atípicas ou mesmo agramaticais, criando estranhamentos da linguagem, por vezes similares
aos produzidos por experimentos literários e poéticos.
As diversas alternativas de se utilizar o computador na formulação de novas maneiras de
escrever revelam o potencial co-criativo dos meios eletrônico-digitais. Esses processos
matemático-computacionais apontam possibilidades para a produção linguística do homem,
novos modelos autorais para a literatura, o jornalismo, a dramaturgia, a ciência.
A autoria no universo digital - a gênese da eletroescritura
Uma investigação teórica acerca da utilização de procedimentos computacionais para a
criação textual implica, necessariamente, em uma reflexão sobre a inter-relação linguagempensamento, sobre a fundamentação combinatória da linguagem. Kristeva em sua História
da Linguagem, sugere que: "Para captarmos a linguagem temos que seguir o rastro do
pensamento, que através dos tempos (...) esboçou as diferentes visões da linguagem."
(1969, p. 15)
A eletroescritura, um processo de alterar ou gerar textos através de sistemas computacionais
integrados a algoritmos especialmente concebidos, surge como produto dessa reflexão e
engendra teorias, métodos e técnicas destinadas a projetar uma operação de renovação da
língua escrita como instrumento do pensamento.
No processo de elaboração conceitual e tecnológica da eletroescritura, empreende-se uma
busca por aplicativos que permitam operações lingüísticas automatizadas ou semiautomatizadas, projetadas para produzir textos finalizados ou textos a serem ainda integrados
por meio da interação entre agentes maquínicos e humanos.
Essa investigação implica, portanto, uma reflexão sobre escrita, autoria e tecnologia. O
autor redimensionado surgiria nesse processo como um meta-autor, estruturando a criação
textual a partir de sistemas combinatórios. (MATUCK, 2004)
Nesse processo de criação metatextual, os meta-autores propõem sistemas que projetam,
designam e definem interações complexas entre agentes humanos, sistemas computacionais
e telecomunicacionais, possibilitando múltiplas formas de criação co-autorada. Tais
pesquisadores deverão estar, necessariamente, assessorados por programadores, por
especialistas em redes e em criação de algoritmos, habilitados a prestar assessoria técnica.
A criação metatextual objetiva conceber e implementar sistemas de comunicação homemmáquina, e outros sistemas complexos de cooperação, visando a criação de enunciados e
conhecimento através de novos processos autorais.
Propriedade intelectual e direito autoral
O recente avanço tecnológico exerce impacto também sobre o conceito de propriedade intelectual.
Meios eletrônicos de comunicação transmitem dados complexos globalmente e instantaneamente,
prescindindo de suportes materiais tradicionais. As redes de informação ganham amplitude mundial,
tornando-se elemento essencial e constitutivo do processo de evolução da ciência.
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Tal desenvolvimento, porém, não tem sido acompanhado por mudanças nos conceitos,
valores e legislação, o que ainda traz dificuldades para o uso livre da tecnologia e releva a
necessidade de reavaliação das concepções vigentes de direito do autor e de informação
como ferramenta de evolução e desenvolvimento social, como também aponta Irati Antonio:
A obra intelectual e artística na Internet não mais se apresenta exclusivamente como a
produção íntegra e perene de autores que se pode reconhecer, mas também como obra
coletiva, múltipla e, freqüentemente, anônima, fragmentada, incompleta e, muitas vezes
fugaz. Aqui 'prevalece uma perspectiva combinatória, que, no limite pode levar a uma
certa letargia esquizofrênica e à institucionalização da barbárie intelectual', mas que também
'pode estar apontando para uma renovação cultural em que a criação artística, intelectual
e científica se insere em um outro jogo de articulações', o que 'exigiria uma reflexão sobre
o resguardo do patrimônio intelectual numa formação cultural que pode prescindir da
noção de autoria" (1990, p. 190-191)
O conceito atual de autoria está fundamentado sobre o princípio da propriedade privada.
Entretanto, a posse e a restrição da informação é incompatível com o funcionamento de
uma sociedade que almeje o acesso igualitário à informação. O desenvolvimento tecnológico
torna agudo o conflito entre o direito público à informação e o direito do autor de controlar
a distribuição dos produtos de sua criação.
No sistema legal atual, a propriedade intelectual pode ser acoplada à informação científica,
técnica, social, literária e artística. Textos podem ser protegidos pela lei do copyright,
enquanto inovações tecnológicas, métodos, e instrumentos podem ser protegidos por
patentes. (MATUCK, 2004)
A propriedade intelectual, no entanto, não é o único dispositivo legal para se restringir o acesso
à informação. A informação também pode permanecer secreta ou confidencial, o que implica
em níveis mais elevados de controle e compromete o projeto de uma sociedade transparente.
Defensores do conhecimento privatizado alegam que as restrições são justificadas, porque
a propriedade intelectual traz, indiretamente, benefícios sociais na forma de progresso
científico e avanços tecnológicos. Alegam que o direito comunitário à propriedade
intelectual é prejudicial à geração de novas idéias porque a impossibilidade de lucro resulta
na queda dos investimentos nesse setor de atividade. Já os críticos argumentam que a
propriedade intelectual é uma garantia da autonomia da ciência perante o Estado.
Esses argumentos, no entanto, não levam em conta as implicações ideológicas e as restrições
colocadas pelo presente sistema sobre a ciência e a tecnologia. Em termos práticos, a propriedade
intelectual permite que o direito de publicação seja comercializado, portanto, os detentores
desses direitos podem impedir inclusive que o trabalho seja publicado. Patentes podem ser
vendidas para grupos de interesses, que, eventualmente, impedem que elas sejam utilizadas.
A propriedade intelectual pode fornecer o aparato legal para a censura, assim como para o controle
corporativo e econômico sobre a disseminação do saber. Contudo, se a propriedade intelectual
aparentemente garante a autonomia da ciência perante o Estado, ela não garante a autonomia da
ciência perante o poder econômico das grandes empresas, como salienta Nicolau Sevcenko: "As
grandes empresas adquiriram tal poder de mobilidade, redução da mão-de-obra e capacidade de
negociação (...) que tanto a sociedade quanto o Estado tornaram-se seus reféns." (2001, p. 31)
Apenas a transparência nas instituições científicas, a clareza do propósito das pesquisas e
a disponibilidade irrestrita do acesso ao saber são garantias de que o conhecimento não
será usado para controlar, mas sim para liberar o homem.
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No cenário atual, a crescente comodificação da informação tem sido contestada diante da
demanda mundial pelo saber relevante.
Tanto a ciência pura, quanto a ciência aplicada são fatores importantes para o
desenvolvimento econômico e social das nações emergentes. As ciências, no entanto, são
utilizadas em estratégias políticas ou na luta pelo poder. O saber se tornou um produto ou
um aditivo nas estratégias diplomáticas, enquanto poderia ser um fator ativo e solidário na
interação política internacional.
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A ciência como produto e como informação
A ciência poderia ainda ser utilizada de maneira passiva no cenário político. Métodos e
técnicas, por exemplo, nem sempre são compartilhados ou transferidos, impedindo assim
o desenvolvimento econômico de outros países. Via de regra, prefere-se a comercialização
da tecnologia aplicada ao invés da transferência das informações fundamentais,
perpetuando-se, com isso, a dependência política e econômica. Por outro lado, considerar
a ciência como informação implica no reconhecimento das necessidades informacionais
dos países em desenvolvimento.
A rápida transformação propiciada pela disseminação do conhecimento exige uma
responsabilidade ética por parte dos cientistas e representantes políticos. Na atual situação
de desequilíbrio mundial, a apropriação da informação é antiética, como é antiético deter
o fluxo do conhecimento relevante.
Diante disso, pergunta-se: se a ciência deve realmente beneficiar a sociedade, por que então
restringir o acesso à informação? Alguns argumentarão que a restrição é necessária para garantir
investimentos futuros, que indiretamente resultarão em benefícios sociais por meio do progresso
científico. Mas, para que servem os investimentos se os frutos da ciência não se destinam a
maioria dos membros da sociedade humana? Por que o Estado deve continuar dando
sustentação à propriedade intelectual, se o produto resultante não será acessível a todos?
Atualmente quase toda criação científica, literária, ou artística requer um conhecimento prévio
da matéria, logo, o acesso à informação é condição sine qua non para uma bem informada e
criativa produção intelectual. Assim, se considerarmos as populações menos favorecidas como
um conjunto de autores em potencial, teríamos também que admitir que seus direitos morais
à criação estão sendo desrespeitados devido à restrição ocasionada pelo sistema da propriedade
intelectual, uma espécie de espoliação cultural, ilustrada por Otavio Ianni:
Nos países dominantes, alguns setores sociais reconhecem: o mundo é múltiplo, os modos
de ser são diversos, as culturas expressam distintas formas de vida e de trabalho, a história se
revela num vasto painel no qual se desenha a pluralidade dos mundos. Isoladas e interligadas,
interdependentes e tensas, simbióticas e antagônicas, as múltiplas culturas, com os seus
indivíduos, tribos, clãs, grupos e classes revelam-se capazes de modificar-se e afirmar-se,
enriquecer-se, revelar-se. São distintos modos de ser, enraizados em diferentes patrimônios
sócio-culturais, nas diversas possibilidades da praxis humana. Entretanto, uma parte significativa
dos produtos materiais e espirituais dessa praxis perdeu-se; ou encontra-se depositada em
bibliotecas e museus como relíquias do outro mundo. (IANNI, 1992, p. 63-64)
O quadro se agrava ao se levar em conta que a concessão pelo Estado do direito à
propriedade aos autores e inventores converteu-se em uma forma de protecionismo de
uma elite intelectual, contribuindo para a sustentação da comodificação da informação.
Por uma ciência compartilhada
A convergência da informática e da telecomunicação tem favorecido o aparecimento de
propostas que correlacionam telemática, programação computacional e novos processos
autorais, promovendo a sinergia entre meios, redes, algoritmos e sujeitos.
Artur Matuck
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As interações infotelemáticas homem-máquina e homem-máquina-homem proporcionam
formas alternativas de comunicação e criação coletivas, incentivando a experimentação de
estratégias de colaboração e co-autoria3.
Neste contexto, os softwares como instrumentos complexos de expressão colocam-se
como co-autores na medida em que proporcionam utensílios intelectuais que atuam em
praticamente todas as fases do processo de produção da informação, do conhecimento e
da ciência, moldando a expressão, a pesquisa, a experimentação, a colaboração, a redação,
a disseminação e a interação.
Um exemplo pertinente são os colaboratórios, programas que proporcionam um espaço
virtual de interação na Internet e promovem um laboratório de pesquisa e desenvolvimento
compartilhado a distância.
O termo "collaboratory" (em português, colaboratório) foi concebido 1987 pelo cientista
norte-americano William Wulf, então presidente da Fundação Nacional de Ciência Americana.
Wulf aglutinou os termos "laboratory" e "collaboration" e propôs a seguinte definição para
a palavra criada: "um centro sem paredes onde os cientistas de toda nação possam realizar
suas pesquisas independentemente de localização geográfica - interagindo com colegas,
acessando instrumentos, compartilhando dados e recursos computacionais e acessando
informações em bibliotecas digitais.4"
Os colaboratórios atuam como sistemas telemáticos interativos e apontam para uma
estratégia de pesquisa que desafia os formatos tradicionais e estimula as possibilidades de
co-autoria em sistemas híbridos homem-máquina e homem-máquina-homem.
A autoria em meios híbridos deverá ainda proporcionar realização pessoal, pois não será
totalmente maquínica, no entanto, não será também similar às formas de autoria conhecidas,
pois deverá requerer cada vez mais uma alfabetização nos sistemas digitais e uma orientação
meta-autoral.
Entretanto, já se aventa a hipótese de que os sistemas computacionais não serão apenas instrumentos
para uma melhor ciência futura, mas serão, eles próprios, agentes ativos na formulação de
hipóteses, experimentações, proposições, equipamentos, instrumentos e mesmo teorias.
Uma das áreas de pesquisa que aponta nessa direção é a Inteligência Computacional que
"busca, através de técnicas inspiradas na natureza, o desenvolvimento de sistemas inteligentes
que imitem aspectos do comportamento humano, tais como: aprendizado, percepção,
raciocínio, evolução e adaptação.5"
Uma prospectiva para a comunicação digital implica, pois, em uma crescente utilização
de softwares no processo de criação intelectual. Nesse sentido, os processos computacionais
de captação, absorção, recriação, atualização e síntese de informações tornam-se
instrumentos indispensáveis à construção do conhecimento.
A evolução científica semi-automatizada, organizada em redes colaborativas, passa a ser uma
possibilidade, desde que a ciência seja interconectada e os possíveis elementos formadores de
novas proposições encontrem-se publicados e disponíveis. Uma engenharia evolutiva poderia
conceber e implementar os algoritmos capazes de dirigir as operações necessárias e de
atuarem como dispositivos generativos em comunidades pluriativas de investigação e ciência.
Experiências de criação coletiva e produção textual co-autorada foram desenvolvidas no Simpósio Actamedia
III, evento realizado em 2004, na Universidade São Paulo, que reuniu pesquisadores refletindo sobre a
disseminação das linguagens digitais em diferentes áreas do conhecimento.
4
The History of Collaboratories. Disponível em: http://www.stonesoup.info/collaboratory.html
5
Inteligência Computacional. Disponível em:
http://www.ica.ele.pucrio.br/inteligencia_computacional/intel_comput.htm
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A proposição emergente sugere uma reavaliação da própria ciência, incitando os próprios
cientistas a iniciarem um processo de auto-avaliação, tendo como base os argumentos
aqui apresentados.
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Nessa perspectiva, a questão do direito autoral torna-se fundamental. O estatuto desses
possíveis textos formadores, enquanto propriedade intelectual, coloca em xeque a própria
teoria da ciência e encontra-se no centro de um debate com implicações em áreas tão
diversas como o direito, a ética, a política científica.
A produção científica considerada como informação pode fornecer razões para que a
apropriação do conhecimento seja desafiada. A propriedade intelectual estaria efetivamente
em contradição com os fundamentos epistemológicos na medida em que restringe a livre
circulação da informação e, conseqüentemente, sua evolução qualitativa.
Uma ciência realmente compartilhada é uma ciência mais evoluída desde que a validade
do conhecimento se dê por consenso. Quando não aprovada por todo um ciclo de
intercâmbios, uma formulação científica não passa de uma simples hipótese. Uma ciência
restrita, que se autovalida, está à mercê de interesses políticos, ou pode tornar-se estéril
por meio de dogmas incontestáveis. O conhecimento restrito tende a refletir a parcialidade,
porque tem menos oportunidades de ser discutido e avaliado.
Do outro lado do espectro, uma ciência compartilhada reflete valores abertos à discussão,
disposição de confrontar pontos de vista e metodologias diversas, ou mesmo conflitantes.
A ciência compartilhada representa o mais alto ideal do conhecimento cientifico e constitui
um fator de avanço e evolução.
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
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Computador.In: Revista da UFP, n. 2, v. I, p. 181-188, mai. 1998.
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IANNI, O. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
KRISTEVA, J. História da Linguagem. Lisboa: Ed.70, 1969.
LÉVY, Pierre. A Máquina Universo: criação, cognição e cultura informática. Porto Alegre:
ARTMED, 1998.
MATUCK, Artur. A emergência do eletroescrito. São Paulo: 2005. Pesquisa em processo.
MATUCK, Artur. Informação e Propriedade Intelectual: direito de autor no ambiente
eletrônico. Jornal da USP, São Paulo, 2004.
MATUCK, Artur. A linguagem ciborgiana: a criação textual através dos sistemas
matemático-computacionais. São Paulo, 1998.
MATUCK, Artur. Processos Criativos em Artemídia. Palestra proferida no Actamedia II Simpósio Internacional de Artemídia e Cultura Digital, USP, São Paulo, Ago. 2003. Disponível
em: geocities.yahoo.com.br/actamedia/artur.rtf
MAZLISH, B. The fourth discontinuity: the co-evolution of humans and machines. New
Haven: Yale University Press, 1993.
NAVEGA, Sergio. Princípios essenciais do Data Mining. Anais do Infoimagem 2002,
Cenadem, Nov. 2002. Disponível em:http://www.intelliwise.com/reports/i2002.htm
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop montanha russa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
Artur Matuck
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Doutor em Sociologia pela Université René Descartes - França. Diretor
do Centro Internacional de Estudos Avançados e Pesquisa em
Cibercultura.
Em primeiro lugar a idéia da cultura do século XXI, é a que muitos autores, departamentos
de pesquisas, centros universitários têm chamado de Cibercultura. Então, uma cultura
efetivamente das redes telemáticas e das tecnologias digitais. Obviamente que esse nome
tem sempre uma conotação determinista, porque estamos sempre nomeando a nossa
época a partir dos processos tecnológicos vigentes. Mas ela nos traz um pouco de um
fenômeno emergente que vem transformando as sociedades ocidentais desde a década de
70 até hoje, talvez estejamos entrando no ápice da cultura eletrônica ou da cibercultura.
Eu queria antes de tentar definir isso melhor, retornar à idéia de cultura e do que me parece ser
fundamental pra pensar qualquer cultura e, principalmente, essa cultura que é a questão das
redes. Eu vou retomar aqui dois autores importantes, um é o matemático, pai da inteligência
artificial chamado Allan Ture, que criou um teste bastante conhecido pra ver se nós conseguíamos
detectar se estaríamos conversando com um computador ou com uma pessoa, então teríamos
duas salas um computador numa sala, uma pessoa na outra e um terceiro que conversaria
com o computador e com a pessoa, e checaria se nós chegaríamos a um ponto tal de não
percebermos quem é quem, quem é o computador e quem é a pessoa.
Bom, eu acho um teste, bastante interessante, acho que metodologicamente deve ser
bastante utilizado para a inteligência artificial, mas um teste a meu ver irrelevante porque
não acrescenta muita coisa, porque se eu descobrir que o computador é um computador
isso não vai me dizer muita coisa. A idéia que está na base disso é que nós somos inputs
e autputs, então tudo que nós fazemos são os nossos outputs e o que nós absorvemos e
que vai se produzir nesses outputs são os inputs. Mas a busca aí era desenvolver um
cérebro eletrônico, certo. Bom, essa é a primeira imagem.
A segunda imagem é um conto, que diz mais ou menos assim, as pessoas chegam para
um cientista que está desenvolvendo um grande computador, um cérebro eletrônico e
perguntam: você sabe o que é Deus? Ele diz não, mas aguarde. E ele continua a desenvolver
o computador, depois a pessoa chega de novo pergunta pra ele: e agora você já sabe o
que é Deus? Não, aguarde. E ele começa a desenvolver mais computadores, pergunta de
novo o que é Deus? Não, não sei ainda. E num determinado momento ele começa a
conectar todos esses computadores e essa pessoa pergunta pra ele: você sabe o que é
Deus? Agora eu sei. O importante, acho, de todo o desenvolvimento da cultura, da
cultura no sentido biológico do termo mesmo, é de uma espécie de fermentação, de
conexão de pessoas, de símbolos, de técnicas, de formas de vida, de formas de arte e é
que é isso que faz a dinâmica cultural.
Parece ser quase redundante falar em cultura da rede, porque toda cultura é rede, toda
sociedade é constituída por uma sociedade em rede, e o que nós temos hoje, a meu ver,
é o surgimento ai de uma nova rede, extremamente importante porque ela vai de alguma
forma pilotar as outras e pilotar ai no sentido grego da palavra que dá origem à palavra
cibernética.
Nós temos uma rede emergente que vai interligar todas as outras. Aqui nós podemos ver
diversas redes elétricas, telefônica, telemática, instituições, pessoas, simbolismos, imaginário,
esse entrelaçamento é que constitui qualquer cultura.
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O que nós chamamos de cibercultura, ou seja, a cultura que emerge a partir da década de
70 com a convergência entre telemática e as telecomunicações, vai se configurando por
essa passagem do analógico ao digital, tecnologias que funcionam sobre outro princípio,
não de grandezas contínuas, mas sim de abstrações matemáticas e grandezas descontínuas
e, não só com essas tecnologias eletrônicas digitais, mas sim da configuração e reunião
dessas tecnologias em rede.
A cultura contemporânea é uma cultura na qual todas as redes ou já estão ou estão sendo
de alguma forma controladas por redes de computadores, sinais de trânsito, iluminação
elétrica, pública, em casa, a arte, o Arlindo Machado falava disso hoje pela manhã.
Nós temos hoje a emergência não de uma novidade que seria a cultura da rede, mas sim de
uma continuação, de um processo que é o processo cultural, no qual a rede telemática
passa a ser uma rede fundamental na determinação de diversos projetos socioculturais.
Essa determinação não é unívoca, certo. Não está aqui nenhuma idéia de um determinismo
tecnológico, mas sim de uma inter-relaçao, de uma sinergia entre processos que vão surgir
nessa década de 70, todo processo ligado a uma quebra de diversos paradigmas da era
moderna, de novas formas de sociabilidade, de resgate de colônias a partir do póscolonialismo de colônias na África, na Ásia, que emergiram e produziram fenômenos
extremamente importantes pra isso que a gente hoje visualiza como globalização. Ela é
fruto do desenvolvimento tecnológico, ou seja, dessa passagem da possibilidade da existência
de instrumentos eletrônicos digitais, mas a partir de uma sinergia com a vida social, sem
uma atitude. O Arlindo Machado hoje falava de toda uma apropriação da mídia nas artes.
E como é que os artistas desviam os usos, na realidade isso não é, embora esteja perfeitamente
correto, isso não é uma exclusividade do fazer artístico. A emergência das tecnologias
digitais se deu a partir de uma apropriação social desse meio. A micro-informática surge
assim, a internet surge assim, surge pelos militares, mas depois vai sendo apropriada para
diversos usos, o modem surge, os hackers vão inventar esse aparelhinho pra poder “hackiar”
e pra poder se comunicar via redes telefônicas, diversos instrumentos que nós temos hoje
foram criados a partir de uma apropriação social desse meio.
Parece-me que o que vai caracterizar a cultura contemporânea, a cibercultura, é uma
sinergia entre sociabilidade e perda de algumas meta-relatos da era moderna, associados
à potência desses instrumentos digitais. Isso vai trazer, então, alterações substanciais em
todas as áreas do conhecimento, na economia, na política, na sociedade, cultura, na
subjetividade. Toda mídia, de certa maneira, vai causar essas transformações. No fundo,
podemos traduzir isso numa alteração da nossa percepção e da nossa ação no espaço e
no tempo. Eu me lembro que costumava definir mídia como todo artefato que nos
permite escapar de constrangimentos no espaço e no tempo, isso é desde a escrita, 3000
a.C, até a internet. Nós temos a cada fase, a cada era da humanidade, uma visão, uma
inserção no espaço e no tempo que é devedora do conjunto de artefatos que nós
construímos. A religião, o mito, o imaginário, todas essas esferas, que são fundamentais
pra compreender a vida social.
Estamos vivendo hoje uma particularidade dessa relação espaço-tempo, tanto que falamos
de um espaço global e de um tempo real. As sociedades primitivas não compreendiam
assim o espaço e o tempo, a sociedade moderna alterou a compreensão das sociedades
primitivas do tempo insistindo numa idéia de um tempo linear e hoje nós estaríamos
entrando em uma outra configuração.
Essas novas mídias vão funcionar efetivamente a partir dessa linguagem, desse esperanto
contemporâneo que é o digital, todas as máquinas hoje funcionam sob essa linguagem,
por isso que podemos trocar qualquer tipo de arquivo em tempo real com qualquer
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pessoa, em qualquer sistema operacional, em qualquer lugar do mundo e não só em
sistemas operacionais de computadores, mas hoje em diversos equipamentos. Eu acho
que talvez o mais importante hoje que nós estamos prestando ainda muito pouca atenção
é o telefone celular, que não é mais um telefone celular, mas o que eu costumo chamar
de tele-tudo. Na realidade é uma máquina oblíqua que permite que a gente faça diversas
coisas e acho mesmo que deveríamos pensar a inclusão digital talvez mais pela telefonia
celular do que efetivamente pelos computadores, mas esse é outro assunto.
Essas novas mídias vão trazer algo que foi sempre o sonho de toda mídia que é a
transformação de instrumentos de informação em instrumentos de comunicação. Nós
os chamamos meios de comunicação, mas na realidade isso não são meios de
comunicação, são meios informativos. Tá certo, uma comunicação pressuporia ao meu
ver, uma troca entre consciências engajadas, um processo de construção e desconstrução
de si nessa relação com o outro. Ligar a televisão e ouvir o Jornal Nacional não caracterizaria
isso como um processo comunicacional, mas sim como uma recepção de informação.
O telégrafo quando surgiu parecia ser o instrumento que estaria na casa de todos.
As pessoas pensavam que poderiam ser emissoras de informação. O rádio tem um
texto célebre do Brecht falando justamente dessa potência da emissão pelo rádio. A
televisão também.
Estamos caminhando para uma nova estrutura técnica que eu chamaria de pós-passível,
mas pouco importa o termo, na realidade não importa muito o nome da rosa, o que
importa é a rosa, então não importa muito o nome que a gente venha dar a isso, o que
importa é tentar detectar as diferenças e semelhanças com os fenômenos. Então, nós
temos pela primeira vez na história da humanidade uma estrutura ímpar, que é a
possibilidade de emissão de qualquer tipo de informação por qualquer pessoa em qualquer
lugar do mundo em tempo real, ou mais ou menos.
Essa estrutura ímpar vai ser prenhe de diversas conseqüências. Acho que a própria
passagem do que a gente chama PC que, ao meu ver, é uma nomenclatura totalmente
superada, o computador pessoal, isso surge na década de 70 já fruto da apropriação
contra a grande informática que é a dos militares, da IBM, das grandes industrias, e
dos grandes centros universitários. Radicais californianos começaram a se apropriar
disso e inventaram a microinformática.
Esse computador pessoal era um computador mesmo pra uma pessoa, pra um indivíduo,
o Arlindo falava disso também, como os objetos são construídos para um determinado
usuário. Paulatinamente essa máquina foi se transformando e eu daria uma adaptação na
década de 90, não mais para um PC, mas para um CC, ou um computador coletivo, que
é o ciberespaço. Na realidade, o verdadeiro computador é a rede. Pouco importa meu
computador, ele não precisa estar aqui para que eu tenha meus arquivos, pra que eu
consiga agir nas diversas esferas da vida social. Eu preciso é de algo que me conecte à
rede e, por isso, as duas imagens no começo da minha fala.
Então, é uma estrutura inédita, fruto de uma efervescência social inegável, planetária,
em números de bilhões e milhões. O Bernardo Kucinsky falava sobre o crescimento de
páginas, segundo algumas estatísticas um blog é criado a cada segundo, fenômeno
planetário, mundial, social, efervescente que marca aí uma mudança do paradigma uma
máquina individual para uma máquina coletiva, ninguém hoje compra um computador
sem conexão à internet. Na realidade não compra nem mais com modem.
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Outro dia eu estava falando com meus alunos da graduação sobre o som do modem, e
um aluno levantou a mão, dizendo que nunca ouviu, não sabe o que é o som do modem,
porque já entramos direto em placas de rede de maior velocidade, embora as nossas
bandas largas aqui sejam “bandinhas larguinhas”, não temos efetivamente banda larga.
Mas é um fenômeno que normalmente associamos à tecnologia, mas é um fenômeno
social, não existe fenômeno técnico que não seja social, mas nesse caso a ênfase é muito
mais no social do que no técnico. Vai emergir aí um primeiro princípio. Vou falar de três
princípios aqui que eu acho que são fundamentais pra compreender a época e pra
compreender a cultura contemporânea.
Princípio de conexão. Esse princípio de conexão está associado a um outro princípio que
é o da emissão, da liberaçao da emissão. Efetivamente, não estou fazendo nenhum juízo
de valor. Não acredito necessariamente que estamos caminhado para um mundo melhor,
ou mais comunitário, etc, tudo isso é uma questão de fé, cada um acredita no que quiser,
eu tô aqui fazendo apenas uma análise quantitativa. Então, a internet é hoje um fenômeno
de liberação da emissão e-mails, chats blogs, postcasts, ... software livre, inegável,
planetário, tá certo, que não é apenas o princípio da emissão, não me cabe apenas emitir,
mas só faz sentido se eu emitir em rede e todos esses fenômenos são fenômenos de rede.
O meu blogger tá ligado a outro blogger, o postcast eu vou falar mais adiante se tiver
tempo, é uma emissão sonora que eu coloco anexada através de sistemas RSS para que
pessoas ao redor do mundo possam captar o meu sistema. O sistema só existe porque
nosso colega francês mostrou um sistema muito interessante de uma capilarização cada
vez maior da rede, eu não vou a um site central, mas eu troco arquivos diretamente,
computador a computador. É um sistema que só se sustenta pela dádiva e pelo dom da
liberação da emissão.
E esses dois princípios vão estar aliados a um terceiro princípio, que é fruto, inclusive, de
muita confusão, que eu chamo princípio de reconfiguração. Nós temos emissão, mas não
é emissão isolada, é uma emissão que conecte e essa emissão que conecta reconfigura.
Não aniquila, não substitui, não anula, mas reconfigura. Efetivamente, estamos numa era
da reconfiguração de diversas instituições, de diversas relações, que não significa
necessariamente o fim. Não é porque eu me relaciono com pessoas via chats, via internet
com pessoas de bate-papo que eu não vou conversar com meus amigos, não vou mais ao
baile e à praia, não é porque eu tenho minha comunidade virtual que eu não participo
mais da minha comunidade, não é porque eu estou na internet que eu não vou mais ver
televisão, não há nenhuma evidência de que isto esteja mesmo acontecendo e eu acredito
mesmo que isto não vá acontecer. O que nós estamos vivendo hoje, acho que é um
enriquecimento da paisagem audiovisual, onde dois sistemas estão hoje funcionando
paralelamente e vão continuar, com conflitos obviamente, o problema da indústria
fonográfica, cinematográfica em relação a essa troca de arquivos revela essa crise.
Acho que todo esse processo nos coloca num enriquecimento dessa paisagem audiovisual
onde os dois sistemas vão permanecer. Uma cultura massiva, de um emissor pra uma massa
de receptores, o que é muito interessante, certo, isso não. Não há nada de mau nisso. Só
que hoje nós temos a possibilidade de escapar desse sistema e conseguirmos emitir e receber,
processar informação ponto a ponto e isto está trazendo diversas conseqüências.
Essas novas práticas comunicacionais vão expressar, efetivamente, uma busca por conexão
apropriação, remixagem, criação colaborativa e cooperativa, a internet só existe por
isso. Se tivéssemos que obedecer a lei do copyright, teríamos que parar a internet agora.
Ligar um computador e ter uma página fixada na memória Ram já é violação do direito
do autor, já é cópia. Se você clica com o botão direito no mouse e copia isso é crime.
Não precisa vender, utilizar. A cópia é direito do autor. Se ele te autorizar, a gente pode
copiar uma imagem.
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O processo é irreversível independente de lei. Então, nós temos aí novos princípios, esses
três princípios em andamento que vão reconfigurar diversas praticas, remixagem,
recombinação, colaboração. Independente se pode ou não. Esses três processos não são
uma novidade radical, mas são uma ampliação em crescimento geométrico dessas
possibilidades, queiramos ou não.
Em segundo lugar, quando eu estou na internet você não pode dizer o que eu
estou fazendo a priori, quando estou lendo um jornal, um livro, vendo televisão,
ouvindo rádio, está configurada aí diretamente a ação com o meio. Assistir televisão,
todo mundo sabe o que é, ouvir rádio todo mundo sabe o que é, mas quando eu
digo estou na internet isso não quer dizer nada. Eu posso estar fazendo todas essas
coisas ao mesmo tempo e muitas outras, escrevendo um texto, falando com alguém,
visitando um museu virtual, etc. Ela é, ao meu ver, uma incubadora e aí eu insisto na
metáfora biológica, uma incubadora de processos de comunicação.
A idéia do copyright é da época do surgimento da sociedade industrial, quando editores
da Inglaterra compravam o direito do autor. Esse sistema foi importante para o
desenvolvimento da ciência. Estamos num impasse, eu não vou usar e depois vai ganhando
novas conotações. num determinado texto institulado "Os sonhos da fábrica" o autor
conta que sonho da fábrica é o computador pessoal para um indivíduo que vai ali
escrever as suas coisas ou uma máquina de processamento. Mas o que nós temos que
entender é que existe hoje uma prática colaborativa e é ela que faz com que a internet
seja esse caldo cultural, planetário, efetivo que se dá pela própria característica do meio.
Não adianta tentar controlar ou patentear obras, por exemplo, nós temos empresas que
patentearam os dois clicks do mouse. Na realidade a empresa usa isso até como uma
barganha jurídica. Tem uma empresa que produzia um editor de páginas web que se a
gente for ler aquelas coisinhas do certificado que, obviamente, todos nós lemos, já que
ninguém aqui pirateia software nenhum, está escrito que eu não posso fazer nenhuma
página contra o governo americano, por exemplo. Com certeza nós estamos aqui não é
porque nós estamos vendendo os livros, os livros são importantes obviamente, mas
talvez seja pela circulação da informação, seja pela cópia, pela troca de informação dos
nossos textos é que nós estamos aqui hoje, e não pela compra do livro que não vende.
Eu que escrevo 100% do livro e ganho 8%.
O sistema tem que ser readaptar. Eu não sei exatamente como isso vai ser feito. Existem
vários fenômenos na esfera musical que mostram essa necessidade de uma readaptação.
Existe um grupo pernambucano chamado Momojor que começou a difundir sua música
exclusivamente pela rede e depois eles conseguem fazer shows. Agora, as pessoas compram
o disco depois, porque não é um disco com preços exorbitantes, é um preço que as
pessoas podem pagar. Tem toda uma equação aí que eu não sei exatamente como
resolver, mas que também não me interessa, não interessa a nós usuários, interessa às
empresas, elas que resolvam. Elas têm dinheiro, criatividade, inteligência pra resolver. O
que elas estão fazendo hoje é tentar resolver esse problema na força bruta, caçando e
prendendo adolescentes que têm músicas nos seus HDs, pessoas que estão trocando
seus arquivos, etc. Na realidade, é um problema delas e não nosso, porque na realidade,
querendo ou não, essa prática é uma prática planetária.
Nessa nova cultura, nessa rede social, o que importa, no fundo, é colocar pessoas em
conexão. Isso está sendo feito hoje, nós temos essa potência, isso sempre aconteceu. Em
todas as sociedades e culturas é assim. A cultura brasileira é feita por diversas influências,
a nossa identidade, a nossa criatividade emerge justamente porque nós não tentamos
trancar a cultura e o conhecimento na propriedade privada. Estive no México recentemente
e os astecas já chupavam coisas de sociedades pré-astecas, a cultura asteca já é híbrida.
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Tentar travar e bloquear a cultura como propriedade privada é, na realidade, fazer o jogo
das empresas pra apenas legitimar o capital e empobrecer o conhecimento. Acho mesmo
que a universidade está saindo da Idade Média agora, porque o ideal da ciência é a troca
entre pesquisadores, entre professores, entre alunos. É preciso fazer circular o conhecimento
e, nós só estamos conseguindo fazer isso agora. Eu não sou tão velho assim, tenho
colegas que estão na universidade há muitos anos, sei lá, 30 anos, e eu não consigo
entender como é que eles conseguiam fazer pesquisa antes no Brasil. Em centros mundiais
você tem biblioteca, você tem os livros à disposição. No Brasil é uma dádiva o que nós
temos hoje, temos que aproveitar essa possibilidade.
Eu terminaria dizendo que todos esses três princípios são norteadores da cultura
contemporânea: liberação da emissão, princípio de conexão e reconfiguração. É
importante pensar nessas três coisas, pois elas afetam a cultura e o fazer político
obviamente. Bloggers foram fundamentais para a discussão sobre todo o problema de
corrupção do governo brasileiro, etc. O próprio caso Mônica Lewinski nós conhecemos
por causa de um blogger. Informações quentes da Guerra do Golfo eram conhecidas
através de bloggeiros iranianos. Um inclusive um foi contratado pelo The Guardian, um
dos mais importantes jornais da Inglaterra.
A cultura é sempre um embate entre o mundo da vida e o sistema. Há um vitalismo social
que atacou algo que era um inimigo público que era a tecnologia, tomou na mão esses
artefatos e consegue produzir coisas. Os jovens têm um papel fundamental nesse processo.
Acho que essas novas tecnologias, digo isso sempre aos meus estudantes da graduação,
precisam ser exercidas. Essa idéia de um gênio que recebe uma inspiração divina, é totalmente
superada. Nós temos aí um instrumento que permite que você faça foto, divulgue-a
rapidamente, faça vídeos, divulgue-os, escreva, coloque o blogger, etc. Essa criatividade e
essa pulsão da liberação são extremamente importantes e é isso que nos vai enriquecer e
nosso país tem um papel fundamental nisso, porque nós somos muito amigos do audiovisual
e temos um papel fundamental no futuro.
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Jornalismo
Cultural
omeroFonseca
Jornalista Editor da Revista Continental Multicultural do Recife
Gostaria de dividir o assunto em doi aspectos: o jornalismo cultural de uma forma mais
ampla e, em segundo lugar, o que eu chamo de Milagre Pernambucano, que no fim eu
explicarei o que é. O Jornalismo Cultural do Brasil hoje - e todo observador diz isso - pra
todos não é nenhuma novidade, se encontra atrelado à indústria cultural. Eu diria até,
com as exceções de praxe, os chamados cadernos de cultura da grande imprensa no
Brasil, deveriam ser chamados mais apropriadamente de cadernos de entretenimento. O
que prevalece é a informação rápida, superficial, fragmentária, sobre eventos da área
cultural, em geral, de conotação pop, da música popular etc., e quando você conversa
com os jornalistas, com professores, com estudantes, com pessoas da área, todos se
lamentam disso.
Quando se pergunta aos repórteres, dos cadernos culturais, eles acusam os editores, se
você vai para os editores, os editores acusam as empresa, os donos das empresa e não há
espaço para isso. O fato é que os Jornais e mesmo as revistas semanais dão espaço muito
pequeno para as atividades culturais propriamente ditas. Eu vi um exemplo que fiquei
estarrecido. Ainda no começo desse mês, eu estive em São Paulo, na Bienal do Livro, que
é um evento enorme e muito importante. Oitocentas mil pessoas passaram por lá e
muitos aconteceram lançamentos de livros. Tem todo o caráter de feira, mas independente
disso, tinha um espaço de discussão, de reflexão, muitos escritores, muitos críticos, muitos
acadêmicos participando lá, e no último dia, após o encerramento eu abro a Folha de São
Paulo, que é talvez, dos jornalões, o mais reputado hoje. Nele tinha uma matéria de
encerramento da Bienal do Livro que era um quarto de página e eu fiquei estarrecido.
Quando nós lembramos em épocas mais remotas, na passagem, por exemplo, do século
XIX para o século XX, nós tínhamos na imprensa diária, um Machado de Assis escrevendo
folhetins, a crítica de José Veríssimo, de Sílvio Romero, do primeiríssimo time, escrevendo
jornais diários. Mas isso é muito remoto, se a gente vier mais pra perto, até os anos 50,
você teria na grande imprensa, gente do calibre de um Álvaro Lins, fazendo crítica literária
de primeira qualidade, uma ótima "Maria Carpeau" cuja sapiência vai além da literatura,
para todos os aspectos da cultura escrevendo nos jornais.
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Eu não quero ser saudosista, não é que naquele tempo era melhor. É uma comparação
que a gente tem que fazer, e entender as modificações que aconteceram. No caso do
jornalismo cultural, essas modificações, eu acredito que elas acompanhem, inclusive,
modificações na sociedade brasileira. Nós tivemos nos últimos trinta anos, uma
globalização acelerada no Brasil, o que significa mais gente nas cidades, mais demandas
de todo tipo. Paralelamente, houve um enfraquecimento grande na educação e isso é
um problema eterno e aliás já está chegando a campanha eleitoral e todo mundo fala
em educação- o discurso agora vem à tona- mas é uma carência que ainda não foi
devidamente enfrentada no Brasil.
Nós temos um público que recebe uma educação deficiente, que não tem o hábito de
leitura, porque paralelamente à essa urbanização, há uma manutenção da desigualdade
regional. No país, nós tivemos um avanço tecnológico enorme, então nós temos toda
uma geração de formação audiovisual, o que eu não acho necessariamente ruim, pelo
contrário, a formação audiovisual traz mais uma abordagem da visão da realidade, mas
não pode ser só isso. A leitura é imprescindível para uma apreensão crítica da realidade,
para a pessoa se posicionar perante a sociedade numa verdadeira postura de cidadania.
Hoje não há falta de informação. Nós somos bombardeados diariamente por um número
absurdo de informações, que nossa mente, inclusive, não tem capacidade de processar e
os especialistas devem estar estudando sobre isso. Mas é uma informação fragmentada, é
uma informação sem articulação, e a leitura é importante para isso. Eu costumo dizer para
a turma mais jovem que uma imagem fácil de aprender é o seguinte: para vocês entenderem
exatamente a necessidade disso, a leitura é a malhação do cérebro, do mesmo jeito que
você faz a malhação física na academia pra ficar em forma, a leitura é que faz o seu
cérebro, a sua mente, o seu raciocínio, a sua capacidade de conhecimento ficar em
forma, ser exercitada.
Mas nós estamos tendo um problema de emergência de massas iletradas, que seria o
público do Jornalismo Cultural, por outro lado, nesses trinta anos, aconteceram mudanças
econômicas que rebateram nas empresas jornalísticas, que deixaram certo diletantismo
que havia, um certo partidarismo da imprensa até a década de 60, que era muito partidária.
A imprensa se tornou muito mais profissional. Em alguns casos, eu me lembro de grandes
reformas. Eu trabalhei no Estadão e também no Jornal do Brasil.
Na década de setenta esses grandes jornais brasileiros passaram por algo chamado
reengenharia. Financistas, especialistas em organização e método, planejadores, engenheiros
foram decidir o que era o jornal, e com uma visão muito financeira. Segundo essa visão
mecanicista da imprensa o número de leitores qualificados é cada vez menor, se dá menos
espaço para eles e então entramos num círculo vicioso de alimentação dessa carência,
dessa pobreza intelectual, que ameaça todo o mundo, a nossa sociedade, o nosso futuro,
o nosso pensamento. Eu vejo isso com muita apreensão, mas não tenho uma visão
apocalíptica. Eu acho que estamos passando por uma espécie de transição, não só social
do país, cultural e nesse aspecto aí, podem aparecer caminhos, que hoje eu não sou capaz
de dizer quais. Um deles, que nós temos visto, por exemplo, é a Internet.
A Internet é um espaço amplo, democrático onde hoje você encontra o que na minha
geração se chamava imprensa alternativa. Nós tínhamos a imprensa alternativa, jornais
de circulação nacional, como o Pasquim - que foi memorável como reformador da linguagem
de jornal- jornais mais politizados como o Movimento, o Opinião, jornais culturais, o
Bondinho que tratava exclusivamente de histórias em quadrinhos de alto nível, além do
que em cada capital, em cada cidade havia movimentos culturais independentes. Havia o
que se chamava de poesia de mimeógrafo - eram jovens poetas que não tinham espaço
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editorial - é difícil ter espaço editorial nas grandes editoras, na própria imprensa para
publicar seus poemas, seus textos. Eles rodavam em mimeógrafos e distribuíam nos bares,
cinemas, teatros. Essa era a poesia de mimeógrafo e isso era a cultura alternativa, era a
imprensa alternativa, que agora migrou para a Internet, mostrando que a tecnologia serve
para o bem e para o mal, dependendo do uso que nós fazemos dela, isso é um truísmo,
mas é bom repetir.
Na Internet você fica, então, a par dos interesses comerciais que existem, dos interesses
políticos. Não entendo muito dessa coisa, mas tomei um susto enorme, um dia desses,
lendo um caderno de informática de um jornal de Pernambuco, que tinha a seguinte
informação, - eu pretendo, até depois ,tendo contato com a área de informática tentar
entender um pouco essa informação que eu não sabia e que existem treze super servidores
no mundo por onde trafega toda a informação da Internet- isso eu não sabia: (dez nos
Estados Unidos, dois na Inglaterra e um no Japão), toda a informação que circula na Internet
passa por esses servidores, isso é um dado a ser pensado, a ser analisado, a história do
controle da informação que hoje é mais importante do que qualquer outro tipo de controle.
O controle da informação, a influência nas cabeças, o poder de influência cultural é muito
mais forte do que qualquer poder discursionário, do que qualquer poder militar, é isso por
exemplo que o Presidente Gorge Bush não entende, então manda tropas para o Iraque
que já estão lá afundadas naquela confusão toda, sem solução nenhuma e as coisas só
fazem piorar, quando a maior arma do império americano não está no Pentágono, está
em Hollywood. É o cinema americano, que é universal, que é a forma cultural mais
globalizada que existe desde os anos 30 e que faz com que as populações dos lugares
mais díspares do mundo, admirem e até adotem os modelos, os signos, as formas de
comportamento da indústria cultural americana, personificada por Hollywood e
secundarizada pela música popular, pela indústria fonográfica.
Voltando à Internet, eu quero dizer que é um espaço democrático importantíssimo, tem
os interesses comerciais, tem essa questão política que precisa ser acompanhada e analisada
por todas as pessoas que têm interesses nessas coisas, mas é lá onde se faz o Google,
onde se faz o Orkut, onde se faz protesto, onde se criam grupos de solidariedade, onde
também tem gente ensinando terrorismo, tem gente propagando o nazismo, e usando
imagens de pedofilia. Claro que a questão não é só separar o "joio do trigo". O controle da
Internet é uma coisa muito séria, muito complexa que vai merecer um capítulo à parte na
pauta política e cultural do mundo nos próximos anos. Mas é um espaço onde a gente
pode pesquisar. Estudante pesquisa muito na Internet e eu acho maravilhoso, eu vejo às
vezes - professor Silas- alguns acadêmicos torcendo um pouco o nariz, por que cita-se
um dado tirado da Internet, como se não tivesse valor em si, pelo suporte de ser a
Internet em comparação com o sagrado livro, por exemplo. Eu acho isso um fetiche.
Você sabe triar as fontes e deve se certificar do que se trata. Você entra nas universidades
pela Internet, nos grandes jornais, você tem acervos bibliográficos disponíveis, você tem
referências, mas você não tem tudo, falta muita coisa.
Você pode usá-la como uma poderosa ferramenta de pesquisa, que não é aquela história
de copiar, cortar, colar e levar não, é pra servir de base e os professores também estão
desafiados hoje a enfrentar essa realidade. É preciso fazer uma forma interativa, que eu
não sei qual é, pra usar isso a favor da educação, a favor do ensino, como um instrumento
pedagógico. Evitar o simples recortar, colar e apresentar como trabalho, você tem que ter
uma interatividade qualquer.
Mas separando o "joio do trigo", a Internet está tendo uma repercussão enorme, sobre os
jornais, como um todo, e vai ter uma profunda influência também sobre o jornalismo
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cultural, que eu não sei em que vai dar. Acho que positivamente, porque há bastante "trigo
no meio daquele joio todo", daquele lixo todo que tem na Internet. A realidade, do jornalismo
cultural é séria, mas depende muito do esforço de cada um, dos que trabalham na área de
se prepararem mais pra ir além dessa notícia fragmentada. Vai depender de mudanças
sociais no Brasil, do nível de educação, da pressão da opinião pública sobre os empresários
de comunicação, e eventos como esses são uma oportunidade de começar uma discussão
sobre isso, daí a sua pertinência como eu falei inicialmente.
A segunda parte dessa conversa seria sobre o milagre pernambucano. O milagre
pernambucano, eu estou dizendo de forma irônica. Tinha uma expressão chamada "Milagre
Brasileiro", na década de 70, então nós usamos isso para o caso da nossa revista Continente
Multi Cultural, que eu tenho o prazer de ser mais um dos editores ao lado de Marco Pólo.
Eu não sei se aqui todo mundo conhece a revista Continente. Quem conhece, por favor se
identifique. É a minoria, eu deveria ter trazido alguma coisa da revista para mostrar aqui.
Foi uma falha minha, mas é uma revista na área cultural, mensal, editada no Recife, que já
vai com cinco anos e quatro meses completando, o que é um recorde de longevidade de
revista cultural, sobretudo no Nordeste brasileiro. É isso que eu chamo um milagre. Como
isso é possível? São vários fatores, e é essa experiência que eu trago pra vocês.
Em primeiro lugar, há um dado crucial para entender a longevidade da revista, que é o fato
da revista ser patrocinada pelo mecenato estatal. Ela é produzida e bancada pela CEP
(Companhia Editorial de Pernambuco), que é a imprensa oficial de Pernambuco, por isso
ela tem poucos anúncios. Você abre a revista e pensa em como é que essa revista sobrevive,
ela sobrevive porque é bancada como um instrumento de fomento cultural do Estado,
então ela tem essa característica. Ela não usa recursos do tesouro do Estado, poderia
alguém dizer, a revista é toda colorida, isso poderia ser aplicado de outra forma. Cada
edição dessa daria pra construir uma sala de uma casa popular. Ela não é do tesouro do
Estado. A imprensa oficial tem recursos próprios, tem arrecadação de editais, anúncios
dos diários, assinaturas, e usam recursos próprios pra isso, considerando um instrumento
de política cultural.
O segundo motivo que faz com que a revista consiga existir até hoje é o ponto de
equilíbrio que a gente sempre procurou ter em temos de pauta, em temos de postura
editorial. Em primeiro lugar, ela não é uma revista "chapa branca". Eu acredito que os que
conhecem podem testemunhar isso. Não parece ser uma revista estatal. Para vocês terem
uma idéia, a revista só com o número "cinqüenta e tantos", já com quase cinco anos,
publicou, pela primeira vez, uma foto do governador, e não por ser o governador, mas
pelo fato do governador ser um colecionador de arte popular, de arte tradicional, um dos
três maiores do Brasil, por ter feito uma grande exposição no Instituto Cultural Bandepe,
de parte do acervo dele, e que era notícia nacional. Os cadernos de entretenimento de
cultura deram cobertura e nós demos uma foto do governador com as esculturas de
cerâmica, de madeira da sua importante coleção. Então, isso ajudou muito as pessoas a
lerem. Não há coisa pior do que imprensa "chapa branca".
Em terceiro lugar, na pauta da revista a gente busca, também, o equilíbrio.Tem o cânone
que é consagrado. O cânone são os autores que fazem parte da nossa indentidade nacional
em todas as áreas, na literatura, no cinema, na poesia e teatro, na dança, nas artes plásticas.
Nós temos, sempre a cada número, recuperado a memória desses grandes produtores do
cânone artístico cultural brasileiro. Por outro lado, temos, na medida do possível, aberto
espaço para o novo, para a produção nova. Nós temos uma seção de pops, de poesias,
misturando essas coisas, com um único critério, que é a qualidade. Segundo a avaliação de
um conselho ético que nós temos na redação editorial, que avalia a qualidade, e publicamos
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independente de qualquer coisa. Já publicamos textos, não muitos, mas até de estudantes
de graduação em Letras e Jornalismo. Então, esse é outro ponto de equilíbrio, outra busca
que faz com que a revista tenha uma aceitação bastante razoável.
Por fim, nós temos uma equipe bastante enxuta. A equipe fixa da revista é um diretor, dois
editores, que são o Marco Polo e eu. Marco Polo já esteve num simpósio de comunicação,
aqui, há uns dois anos. Temos também dois editores assistentes e três pessoas na área de
artes - um editor de arte, um diagramador e um tratador de imagens. Todo o material da
revista é produzido por colaboradores, aos quais nós pagamos um preço compatível com
o mercado, o que fazemos questão. Esses colaboradores se dividem, basicamente, em
duas grandes categorias, que são os jornalistas da área cultural e os acadêmicos que são
pessoas especialistas em várias daquelas manifestações artísticas, em literatura, teatro e
cinema. Nós temos feito um mix desses dois saberes, com maior felicidade ou menor de
um número pra outro, mas a idéia é essa, e sempre tendo em vista que nós estamos
atingindo um leitor genérico. Não é uma revista dirigida a um nicho de letras, por exemplo,
ela é dirigida a leitores que têm interesse cultural diversificado.
Quando trata de literatura nós pretendemos que haja um certo nível de aprofundamento,
mas que seja entendido por todos. Temos nível de aprofundamento por dois motivos: um
de ordem doutrinária, digamos assim, e outro de ordem prática. A coisa doutrinária, é que
por ser uma revista com essa característica estatal e que pretende ser fomento, tem a
obrigação de elevar o nível do leitor e contribuir. Ela não quer ser redundante, repetindo o
que todo mundo sabe, que é o que existe muito por aí então, nós como uma revista de
formato cultural, pretendemos aprofundar um pouco mais para elevar o nível do leitor. Do
ponto de vista pragmático, se a gente não fizer isso, ninguém vai comprar a revista,
porque se for ler o que está no jornal, o que está no caderno Ser e no caderno Viver, que
são os dois principais de lá - o Jornal do Comércio e o Diário de Pernambuco -ou o
mesmo que vê na Veja ou na Isto É ou em uma revista semanal na parte de Cultura. Se a
gente escrever, numa revista que sai uma vez por mês, aquilo que já se lê por aí, ninguém
vai mais se interessar, então a gente tem que ter algo mais.
Nós costumamos dizer, um pouco "anedoticamente", que o nosso manual de redação, se
resume em duas normas. Aos Acadêmicos nós recomendamos expressamente que escrevam
como jornalistas, e aos Jornalistas nós orientamos que escrevam como acadêmicos. Isso
quer dizer que a gente quer que o acadêmico saia do seu jargão, do seu nicho, porque ele
não está escrevendo entre seus pares, está escrevendo para o grande público, então, deve
esquecer aqueles preâmbulos introdutórios, metodologias, notas de rodapé, remissões,
citações excessivas de autores. A gente recomenda que ele vá direto ao assunto.
Para o Jornalista dizemos que quando for escrever, procure escrever como acadêmico,
procure o lado bom, a profundidade. Tem que pesquisar, tem que dizer algo que as
pessoas não saibam, porque se você vai escrever um artigo, o nosso critério é selecionar.
Em todas as áreas as pessoas se oferecem para escrever e mandar artigos. Acadêmicos e
jornalistas mandam pautas. Quando a gente lê e vê que já se sabe tudo isso que está
escrito, esse já está descartado. Tem que ter uma informação qualquer que no mínimo
que me surpreenda, que me diga alguma coisa nova, que a gente diga valeu a pena ler.
Esse é o critério da nossa pauta.
Curiosamente, a revista vem se mantendo bem até agora. É muito bem recebida pelo
público, mas ela também não cresce. Ela tem cerca de dez mil exemplares, uns cinco mil
assinantes, o resto é de bancas e fica nisso. Nós temos tentado analisar as razões disso e
não sei se a demanda é inelástica, como diria os economistas, é aquela mesma. Ou se
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pode ser deficiência nossa, porque o fato de ser estatal, tem seus lados negativos também.
Nós não temos a cultura da produtividade, e eu conversei isso com o professor Nóber . As
pessoas, que integram, têm a maior boa vontade. Os gráficos fazem milagre, e é quase
um milagre, quase literal. Têm equipamentos razoavelmente obsoletos, e o pessoal veste
a camisa e faz uma revista muito bonita. Mas não tem aquela cultura de ir buscar anúncios,
de ver a distribuição, de distribuir por todo canto. Aqui em Fortaleza deve chegar em
pouquíssimos lugares. Em São Paulo chega em duas livrarias importantes, onde as pessoas
circulam, mas só em dois pontos naquela megalópole. No Rio de Janeiro chega naquela
livraria "Letras e Expressões", e outras livrarias, mas não chega em bancas de revistas.
Então tem esse "Calcanhar de Aquiles", que seria a distribuição, a questão da competição
para buscar anúncios, e a divulgação. Não há verba para fazer campanha publicitária, mas
temos feito o melhor possível e é por isso que eu chamo, com uma certa dose de ironia
de "O Milagre Pernambucano".
JuremirMachado
Doutor em Sociologia pela Universidade Paris. Pesquisador do CNPq. Jornalista e
Escritor. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-RS
Balzac tinha sérios problemas com os jornalistas, então, em determinado momento ele
disse o seguinte: "Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la", e o jornalismo
cultural é a mesma coisa, se não existisse seria preciso não inventá-lo, porque com
raríssimas exceções, e elas existem, é preciso destacar, o jornalismo cultural em geral,
vamos ficar no brasileiro, é uma farsa, é um jogo de compadres, é a prática mais aberta do
que eu chamaria de nepotismo crítico, que se caracteriza por uma fórmula bastante simples:
aos da casa tudo, aos de fora, muito "pau", deboche, crítica violenta. Eu resumiria dizendo
assim, na Folha de São Paulo, por exemplo, se o Carlos Heitor Cony decidir ir ao banheiro,
sai uma página interinha com foto e tudo.
Ano passado ou ano retrasado, por exemplo, na feira literária de Parati, evento com todo
apoio da Rede Globo, muitos escritores jovens foram para lá, com a ilusão de que teriam
o seu trabalho, finalmente percebido por algum jornalista, então ficaram lá com seus
livrinhos, e andaram de um lado para o outro e tentaram mostrar os seus livros para todo
mundo, mas tiveram a infelicidade de que o Chico Buarque estava lá e resolveu jogar
uma partida de futebol. Uma página no Globo, com direito a todas as entrevistas possíveis
como: Você acha que Chico Buarque joga bem?, Você acha que ele devia ser volante ou
centroavante? Então, é o que eu chamo de evasão de divisa. O sujeito transfere o seu
capital de uma rubrica para a outra, e funciona muito bem.
O jornalista cultural, em geral, eu digo em geral, não vale para todos, não estou tentando
dizer isso em relação aos meus companheiros de mesa. O jornalista cultural, em geral, é
como uma patricinha deslumbrada com o poder das marcas, então é como uma patricinha
que vai ao shopping e fica encantada com uma bolsa Witon, cada vez que ele ouve a
palavra companhia, referindo-se à Companhia das Letras, ele tem um orgasmo. Se chegar
na redação um livro, ele olha duas marcas, a marca do escritor e a marca da editora, se
chegar na redação um livro de Fernando Morais, ele já teve o primeiro "Orgasmo", se for
da Companhia das Letras, ele teve o segundo. Então depois de dois "orgasmos", tudo que
ele disser vai ser, evidemente elogioso. Então, já tem jornalista que, depois de algum
tempo de profissão, diz que agora vou ser escritor, ele vai colar a um grande nome do
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tipo um livro sobre Carmem Miranda, e ele vai vender seu capital de mídia, ou seja, as suas
amizades nas redações, e com isso ele vai ter toda a cobertura possível, todas as matérias
imagináveis, todos os títulos favoráveis, tudo que imaginar.
A Rede Globo, por exemplo, inventou um sistema perfeito, eu não diria que ela inventou,
mas tem acelerado, tem aprimorado esse esquema. O Fantástico faz uma série de matérias
sobre um tema qualquer. A editora Globo reúne em um livro, a revista Época entrevista e
resenha, o jornal O Globo entrevista e resenha, o Jô Soares entrevista, o Faustão chama o
autor para alguma participação e finalmente depois de tudo isso, os personagens da novela
das oito, milagrosamente, aparecem com o livro. O personagem da novela das oito só vê
filme produzido pela Rede Globo, e só lê livro que tenha alguma vinculação com a Rede
Globo. É impressionante, nenhum outro tipo de livro, os personagens da novela da
Globo se interessam. Então é um esquema perfeito, é o sujeito que cobra o escanteio,
corre e faz um golaço de cabeça. É uma maravilha. Nós temos hoje a figura do autor,
resenhista, entrevistador, crítico e leitor ideal de seu próprio livro, o sujeito faz de ponta a
ponta, todo o processo, não escapa nada.
Um sociólogo francês, tem uma frase muito interessante sobre a televisão que pode ser
adaptada ao jornalismo como um todo, que diz assim: "O jornalismo existe para cobrir o
acontecimento, como meio que se respeite, mas faz muito tempo que o jornalismo se
tomba pelo acontecimento, e cobra si mesmo". Então é a cobertura circular. O que os
jornalistas gostam mesmo de cobrir, hoje, é as próprias estrelas da mídia. Então nós temos
esse tipo de situação, interessantíssima, em que a mídia produz o próprio acontecimento
que ela cobre, e depois tem um tipo de explicação que é assim, mas é o que o público
quer, e de alguma forma o público quer, mas é também o que o jornalista quer, ele se
reconhece naquilo. Um jornalista não consegue imaginar que dois livros possam chegar à
redação, e que ele tenha que ler os livros para saber qual deles merece o espaço, maior,
menor, ou algum espaço, ele vai logo pelas marcas. É um jornalismo de grife, ele vai olhar
que esse livro aqui, foi editado por uma pequena editora em Santana do Livramento, que
é a minha cidade lá na fronteira com o Uruguai, e o outro foi editado pela Record, foi
editado pela Companhia das Letras, é esse que vai ser resenhado.
O jornalismo cultural é um jornalismo da indústria cultural. Ele está ali para acompanhar
as grandes editoras. Fazem o seguinte, porque todo jornalista tem vontade de publicar
um livro, é inevitável, então o que faz a editora? Vai lá e publica o jornalista e aí fica
devendo para a casa, em conseqüência ele vai resenhar os livros da editora e vai ser
simpático, por que ele vai querer resenhar outro, e claro que seus colegas vão fazer duas
coisas, ou vão resenhar o seu livro positivamente, e também depois vão publicar e vão
querer uma resenha positiva, ou se for muito ruim, vão silenciar. Por que jornalista não
crítica jornalista, raramente.
Então acontece, às vezes, de um veículo querer mostrar que é mais independente e dizer
que não, nós criticamos. E aí acontece esse episódio que nós tivemos recentemente.
Pensei até que o Daniel Piza estaria aqui hoje, seria interessante discutir isso com ele.
Daniel Piza que é um bom jornalista, um jornalista polêmico, um jornalista de posição, e
que de vez em quando, como todo mundo comete alguns erros, então recentemente o
Daniel Piza escreveu uma biografia de Machado de Assis, onde cometeu alguns erros
factuais, trocou alguns nomes de personagens, José Dias do Machado de Assis virou João,
o Bentinho matou e morreu, todo mundo sabe que o Bentinho nem matou nem morreu,
mas enfim uns errinhos assim.
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Acontece o seguinte, o sujeito criticado, tem três coisas a fazer: a primeira é a seguinte, se
ele não reage é por que ele aceitou a crítica, logo ela é verdadeira. Se ele reage é porque
ele não sabe aceitar crítica, logo ela é verdadeira, mais verdadeira ainda, porque ele está
admitindo, tocou no ponto certo, e se ele não fizer nada por estratégia, talvez até seja a
melhor solução, embora incorra naquela primeira categoria.
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Um crítico literário, lá do Rio Grande do Sul, observou isso num artigo na Zero Hora de Porto
Alegre, e disse, olha o Daniel Pisa cometeu tais e tais erros factuais. O jornalista está acostumado
a criticar e não a ser criticado, então imediatamente Daniel respondeu, disse que ele era um
crítico ressentido, todo vez que alguém crítica um jornalista, é chamado de ressentido.
Então o criticado é convidado sempre pelo jornalista de cultura, a elegantemente se
conformar. Agora quando é um jornalista que publicou o seu livro e leva uma porrada, ele
não pensa duas vezes, ele vai lá e se mostra crítico ressentido. Ele queria estar no meu
lugar, ele fez isso por que ele não tem espaço aqui. A Veja, que nós sabemos que é a
revista mais "escrota" do país, chegou lá e entrou nessa discussão.
Nós vamos mostrar que Daniel Piza errou mesmo e que reagiu mal, e até lembrou outro
episódio que Daniel Piza escreveu, alguma coisa do tipo: Quando Jesus Cristo foi enforcado,
que era um furo de jornalismo, porque até hoje ninguém sabia disso, então a Veja foi lá e
mostrou que Daniel Piza errou e foi deselegante com o outro, e não admitiu seus erros e
sim mostrou a todos os seus erros. Assinou a matéria? Claro que não, porque quando a
gente " mete o pau " no colega a gente não assina, por duas razões, o cara que assinou a
matéria, também quer publicar seu livro e ele tem medo de um dia levar o troco do Daniel
Piza no outro jornal, e sem contar o seguinte, que um dia ele pode perder o emprego na
Veja, e procurar emprego no Estadão.
Então é covardia pura, foi lá, criticou pra mostrar independência, veja só como a Veja é
autônoma, como é independente, como é corajosa, mas não assinou. Então nós vivemos
constantemente isso no jornalismo cultural, um jornalismo de conivência, um jornalismo
em que um colega elogia o outro, ou silencia quando o livro é muito ruim e que
simplesmente, não estabelece critérios reais de avaliação de obras, a não ser o de bajular
as grandes editoras, de bajular os autores consagrados.
O jornalista cultural, na maior parte do tempo, é um assessor de imprensa de celebridade,
ele tem que acordar de manhã e pensar assim, " O que será que o Paulo Coelho disse hoje?
O que será que o Fernando Morais pensou hoje? Pra onde será que eles vão amanhã? E ele
tem que acompanhar, diariamente, ele tem que se informar sobre o que as estrelas estão
fazendo, para ele noticiar. Então é aquele jornalismo interessantíssimo.
Quando eu trabalhava como resenhista no jornal Zero Hora de Porto Alegre, era uma coisa
interessante, praticamente, uma vez por semana, numa reunião de pauta, ou de avaliação,
alguém tinha uma idéia brilhante! Alguém precisa fazer uma matéria diferente, precisamos
fazer algo realmente assim de impacto, e alguém dizia assim, vamos fazer uma entrevista
com Luís Fernando Veríssimo. A gente publicava uma entrevista por semana com Luís
Fernando Veríssimo. Era sempre a mesma idéia.. Em Porto Alegre, revista cultural não dá
certo, por que só tem cinco estrelas, depois de cinco edições todos já foram entrevistados,
todos já deram capa, então acaba a revista, e aí depois de seis meses vem outra e entrevista
os mesmos cinco e termina também. Então é um jornalismo que repete o esquema aplicado
a todas as outras áreas, é um jornalismo como o de esporte de. É preciso todo dia saber o que
Ronaldinho gaúcho, Ronaldinho fenômeno fez, com quem que ele casou, com quem ele se
separou. Todo os dias é a mesma coisa. O jornalismo voltado não para um conteúdo, não
para aquilo que é feito, não para a obra, mas para o autor.
Juremir Machado
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A crítica literária dos anos 60, a crítica estruturalista, com suas frases de efeito, tinha dito o
seguinte: o autor está morto, o autor morreu, o que contava era a obra, era a estrutura, era
o texto, então era o "crime perfeito", porque o leitor nunca ficou sabendo. O leitor nunca teve
a menor idéia de que o autor estava morto, e depois agora nós descobrimos o crime mais
que perfeito, o autor está vivo, foi a obra que morreu. Um autor agora para ser autor de fato,
de preferência não pode ter obra, porque a obra atrapalha. De repente alguém vai lá e
examina a obra e encontra erros como esses do Daniel Piza. Então, melhor é ele não ter obra,
o que importa é ele ter um nome, é ter um nome capaz de ser vendável, capaz de tocar o
imaginário do crítico cultural, aí sim se chegar na redação com um nome, aí funciona, aí o
jornalista sai correndo, porque ele diz que não pode perder esse sujeito, não pode deixar de
ter um espaço. Foi o que ocorreu quando o Jô Soares publicou O Xangô de Baker Street ,
um dos piores livros já publicados na história da literatura brasileira e olha que a história da
literatura brasileira, é feita em geral de piores livros. É um livro absolutamente ridículo. O Jô
Soares tem essa característica, ele consegue se superar, porque os seguintes são ainda piores.
Mas é claro que a imprensa ficou assim desvairada, e aí era preciso escrever sobre aquilo
sem falar do livro, porque qualquer jornalista decente sabia que era ruim. Então, como
falar de um livro em três, quatro páginas sem poder dizer a verdade sobre ele. Então o que
faziam as pessoas, escreviam sobre tudo: "Jô Soares a que horas você escreve? -Eu escrevo
às três da manhã" Então era um parágrafo inteiro sobre o ato de escrever às três da manhã.
Mas qual é a marca do seu computador? - Ah! Eu escrevi no computador não sei o que e
usei o programa não sei o que, mais três parágrafos. Então todos os hábitos do Jô Soares
foram esquadrinhados, para que se pudesse falar do livro, e alavancar, jogar pra cima, e
mostrar o quanto o Jô era maravilhoso, sem dizer o óbvio. Depois tinha o seguinte, a parte
mais divertida, mais interessante era o seguinte: todo escritor sonha em ser entrevistado
pelo Jô. Então os escritores iam lá ser entrevistados pelo Jô, e iam com Xangô de Baker
Street debaixo do braço e pediam um autógrafo na hora de dar a entrevista, que era um
exercício explícito de bajulação, só separado nos últimos tempos, justamente pela Veja,
que na semana passada, ou retrasada, comparou o Fernando Henrique Cardoso ao Príncipe
de Maquiavel. Aí, o Mário Sabino se superou, ele dificilmente vai ter outra idéia tão
deslumbrante, tão importante na vida.
Jornalismo cultural é isso. A maior parte do tempo é isso. Eu colecionei, ao longo da vida,
histórias. Algumas até que se referem a mim. Normalmente eu conto essas histórias
porque elas são engraçadas, embora elas passem um traço assim: - esse cara está é ressentido,
porque os outros caras dão bola pro Jô Soares e não dão bola pra ele. Mas as histórias são
interessantes. Na época eu fui trabalhar na revista Isto É. Eu estava lá e tinha acabado de
publicar um romance por uma editora do Rio Grande do Sul chamada Editora Suline e eu
cheguei lá e o editor de cultura disse: - Eu soube que você publicou um romance, é pena
que não chegou aqui e eu disse: - A editora mandou. E ele: -Mas não chegou.
Nós ficamos meia hora falando sobre os seríssimos problemas dos correios do Brasil. Os
correios extraviam tudo e além do mais é um órgão público, então pensamos como seria
bom se privatizasse tudo. Fizemos um longo discurso neoliberal sobre a decadência dos
Correios no Brasil. Depois disso fui almoçar com todo mundo no refeitório da Editora Três.
Sentou na minha frente uma moça muito simpática, muito simples e até muito humilde,
ela era a moça que se encarregava da triagem de cartas na editora Três. Então, lá pelas
tantas, ela disse: olha gaúcho, achei muito bom o seu romance e eu disse, é mais que
surpreendente, o correio não entrega pro editor mas entrega pra ti, mas como aconteceu
isso? Comprou na livraria? E ela - não foi o seguinte toda vez que chega um livro que o
editor não quer ou não conhece o autor ou a editora ele me dá.
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É assim que funciona, eu também quando era editor de cultura da Zero Hora fazia o
mesmo, quando chegava um livro de Santana do livramento. -Que importância tem esse
cara, não tem o selo da Record. Ano retrasado eu publiquei um livro pela Record, foi
publicado por uma editora grande e é claro que já mudou um pouco o olhar dos jornalistas.
Mesmo assim tinha umas dívidas. Era um livro sobre Getúlio Vargas, por ocasião dos 50
anos da sua morte. Um romance biográfico.
A editora que tem excelentes relações com a Veja esperava uma excelente matéria na
revista. Em determinado momento, eles ficaram sabendo que a revista não daria nenhuma
linha e olha que o livro ficou seis ou sete semanas na lista dos mais vendidos da própria
revista, e a revista tem por critério toda vez que um livro fica mais de três semana na lista
dos mais vendidos, fazer pelo menos um Box, que eles chamam os mais vendidos. Mas
eles não fizeram. Então em determinado momento, eu fui convencido a ligar para o
Carlos Graieb da Veja, pessoa que eu conhecia bem, pra ver por que não saía nada. Então,
não saiu nada porque num artigo publicado pela Rede de Porto Alegre, você chamou a
revista de "escrota".
Eu tenho essa mania de chamar a Veja de "escrota". Chamei, mas por uma razão muito
simples, é que eu fiquei analisando os textos da Veja e qualquer matéria editorial da Veja,
qualquer reportagem, é pura opinião. Você chega a ter três adjetivos por linha, e todo
colunista da Veja não tem opinião nenhuma, exceto o Diogo Mainardi, os outros não tem
opinião, a gente lê um colunista da Veja, André Petrik, lê da primeira à ultima linha e não
têm uma opinião, o cara ganha a vida fazendo opinião, mas não opina sobre nada. Troço
absolutamente amorfo. Foi só por isso, além de que a Veja costuma sacanear as pessoas,
todo mundo sabe. Aí ele me disse: - Olha, ficamos sabendo que o seu livro é muito bom,
mas não vamos dar nenhuma linha. E eu disse: - Então eu acho que me enganei, a revista
não é escrota, é uma revista absolutamente honesta. E não deu nenhuma linha, não deu
absolutamente nenhuma linha porque tinha sido criticada. Então eu fiquei lá na lista
negra. - Fui lá, "lambi o chão": - Não, aceitem a crítica porque é normal no jogo democrático.
Normal "porra" nenhuma, é normal quando o autor é criticado, não quando o veículo é
criticado, quando o jornalista é criticado, quando aquele que tem o poder é criticado, aí
não tem conversa, tudo aquilo que é aconselhado aos outros desaparece.
Então é uma relação vertical em que o autor, aquele que está fora das redações, aquele
que não é uma celebridade, é convidado a se conformar com o exercício do poder,
normalmente com qualquer tipo de linguagem. Pode ser a mais vil possível, pode ser a
mais destruidora possível é claro, quando a resposta acontece, acontece esse tipo de
coisa. Então, é por isso que, para concluir eu diria: Para que um jornalismo cultural
razoável aconteça no Brasil, vai ser preciso esquecer a grande imprensa e acreditar talvez
nesses novos meios, as pessoas que escrevem nos blogs e tudo o mais.
Ainda ontem aqui se falou o seguinte: - Mas esses novos meios ainda não têm a
credibilidade. A grande imprensa não tem credibilidade nenhuma, é vergonhosa a falta de
credibilidade, ou alguém acredita realmente que um sujeito escreveu uma matéria
encantada, sobre este ou aquele só porque ele amou. Não. É muito mais jogo de interesse,
do que realmente de credibilidade. Então eu prefiro ler um autor anônimo, de cuja
credibilidade eu não posso nem desconfiar, porque não conheço, do que ler a grande
imprensa. Na grande imprensa eu desconfio sempre, que tem algum interesse escuso. E
não é difícil de identificar. É o amigo do amigo que escreveu por tal razão, é o sujeito que
escreveu sobre o livro da mulher. Outro dia eu liguei a televisão e lá estava a Marília
Gabriela entrevistando o filho dela, isso é que eu chamo de um nepotismo maravilhoso e
descarado. Muito obrigado.
Juremir Machado
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HélioPonciano
Editor de Teatro e Dança da Revista Bravo.
A situação que o Juremir descreve é bastante grave e realmente ele apontou muito bem o
mal que acomete boa parte do jornalismo, mas eu acho que deve ter alguma luz no "fim
do túnel", pra gente poder, dentro do jornalismo cultural, achar algumas soluções, algumas
coisas que possam melhorar um pouco, aliviar um pouco essa situação.
Uma coisa que me chamou a atenção no discurso do Juremir , foi sobre jornais ou revistas
que não são opinativos, são meramente adjetivos e isso é realmente um problema que
acomete bastante os cadernos do jornalismo cultural e as revistas de jornalismo cultural.
Estava conversando, agora a pouco, com a repórter da TV Ceará, e a gente tocou justamente
nessa questão. Se a gente for comparar num Jornal Diário, como se dá a cobertura da
política ou mesmo dos problemas da cidade, do cotidiano, a gente vai reparar que esses
cadernos têm sempre uma postura combativa, então você percebe que sempre há um tom
crítico. Quando a cobertura é voltada à política, há sempre um tom crítico quando você
tem no caderno das cidades essa cobertura dos problemas, da situação do município.
Agora, com relação ao jornalismo cultural, a coisa é diferente, a gente tem
predominantemente uma postura de jogar confete, de alardear o espetáculo pelo espetáculo.
Então, embora eu concorde com o Juremir, que a gente tem um sério problema de círculo
de amizades no meio cultural, eu acho que tanto os jornais como as revistas do meio
cultural, não podem deixar de ser críticos. Agora, é claro, é preciso haver um esforço
grande para driblar esse problema das amizades, do ccírculo de amizades, dessa "moeda
corrente", que eu falo bem de você, para você falar bem de mim, depois e eu não vou
falar mal de você agora, para você não falar mal de mim depois.
Acho que é preciso que haja em todos os jornais e revistas, críticos que possam atender à
cada aérea da cultura. O que eu percebo hoje, pelo menos em São Paulo, é que os cadernos
de cultura, eles atendem, quando são críticos, pouquíssimas áreas. Então a gente tem as
áreas de Cinema e Livros, por exemplo, muito bem atendidas pela crítica do jornal. Então
você tem os jornais de cultura de São Paulo, e dois ou três críticos par cada uma dessas áreas.
Então na área de cinema: - sexta feira é o dia dos grandes lançamentos, então você vê em
jornais como o Estado e a Folha, dois ou três críticos para cada veículo, cobrindo essas áreas.
A música num caderno como o Ilustrada, tem uma cobertura muito ampla, muito forte, só
que, infelizmente, não é uma cobertura crítica, é uma cobertura mais de reportagem, mais
de "ôba-ôba, e que procura alardear alguns grupos, fazendo uma abordagem mais pop, mais
bacaninha do que há no cenário musical.
Todo sábado, a Folha e, também, O Estado, você tem uma cobertura mais atenta, mais
voltada à área de literatura, e no domingo você tem algo mais amplo, e nesse algo mais
amplo do domingo, a gente vê, na Folha por exemplo, essa coisa do opinativo e do
objetivo, e aí nós temos o que ? - Um dia, que a gente vai chamar de um dia mais light na
Folha, e já no Estadão a gente tem uma postura diferente de mais análise, mais crítica.
Então no caso da Folha, a gente vê a coluna da Mônica Bérgamo, que é gostosinha de ler,
que é interessante, mas que na verdade apresenta, busca alardear e propagandear exatamente
aquilo que o Juremir criticou aqui, que seria o futebol de Chico Buarque. Então se criou na
coluna na Folha de São Paulo, todo domingo, um caderno cultural, em que você tem ali,
exatamente, essa propaganda, essa divulgação do espetáculo, do leve, do corriqueiro, da
fofoquinha. Agora, você tem cinema, livros e música, por exemplo, como as grandes
áreas nobres que são cobertas pelo jornalismo cultural.
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Agora áreas como: teatro, dança e artes plásticas têm uma repercussão e um cuidado
menor, recebem uma atenção muito menor dos veículos culturais, e isso não se deve
apenas porque dizem que o teatro passa por um momento de decadência, ou por que
não chamam tanto assim a atenção do público, isso é um problema recíproco. Ao mesmo
tempo que você talvez tenha hoje uma produção menor, ou tem um teatro que precisa
enfrentar um cinema, você tem aí a desatenção dos jornais, e isso é uma coisa bastante
grave. Então, você percebe, também, na cobertura dos jornais uma atenção muito menor
para o teatro. Enquanto você tem dias específicos e certos para a cobertura de teatro
numa cidade como São Paulo, para o teatro, isso fica muito disperso. Antigamente, nós
tínhamos mais de um crítico até, para cada jornal, ou cada jornal tinha um crítico de
teatro, para dar cobertura para ao repertório da cidade. Hoje isso não acontece, hoje você
pega um jornal como a Folha de São Paulo, você tem apenas um crítico de teatro na Folha
de São Paulo, e no Estadão você tem um ou dois, mas que não escrevem tão
sistematicamente, assim. Então você vê um jornal como a Folha de São Paulo, Caderno
Ilustrada, queira ou não, que é o caderno que tem, talvez, mais repercussão e força hoje
no país, você não tem espaço para o teatro, por exemplo, como tinha antigamente.
Então o que acontece? Era preciso que houvesse um equilíbrio dentro das editorias, dentro
dos cadernos culturais, para essas editorias de cultura. claro que o editor do caderno,
precisa atender algumas necessidades que o público demanda, mas eu acredito também
que os jornais, os cadernos culturais precisam ter uma função educativa, parar com esse
círculo vicioso de apenas tentar reconhecer o que o mercado exige. Eu sei que pode ser um
pouco fantasioso, mas o jornalismo cultural, para forçar assim um pouquinho, ele deveria
ter uma função combativa também, tem força pra isso, tem poder pra isso também.
Um jornal como a Folha de São Paulo, com um Caderno como o Ilustrada, assim como
tem força para lançar novos grupos de música, de pop rock no mercado, coisa que a
Folha faz muito, dentro do esquema que o Juremir identificou bem das amizades. Porque
se você for ler a Folha, você percebe que grupos são lançados na Folha de São Paulo,
grupinhos de rock, pop, funk. Os cadernos culturais também poderiam ter esse
comprometimento de dar mais força e visibilidade a grupos importantes de teatro, grupos
de dança, artistas plásticos novos. É claro, o que já está consagrado deve ter sim a
cobertura, isso é óbvio, mas o que há de novo, como fica isso?
Eu acho que os cadernos culturais, falando um pouco da revista Bravo, em que eu trabalho,
eu colaboro, ela pelo menos no seu início, tinha muito essa preocupação de ser crítica, de
ser analítica. Não adianta o jornalismo cultural ficar apenas na descrição do que acontece,
na descrição do que vai estrear, tentando identificar o que é bacana, o que é pop, o que
é legal, ou o que dá pra curtir. É preciso também criticar, é preciso ser chato, é preciso ser
analítico, e isso, infelizmente vem se perdendo muito nos últimos tempos, tudo em favor
do espetáculo, tudo em favor do maravilhoso, do legal, do que é divertido.
Então, eu não saberia dizer, como se dá aqui na imprensa em Fortaleza, essa cobertura,
mas pela riqueza da cultura aqui no Ceará, por exemplo, uma cobertura dos grupos
novos, das atividades, da cidade, do Ceará, dos arredores. Tudo isso precisaria também
ocupar bastante as páginas dos cadernos culturais da cidade. Uma revista que surgiu, no
fim do ano passado, e eu espero que tenha uma vida longa, foi a revista Raiz. Tem algo aí
do Ministério da Cultura no meio, que é uma revista, justamente, que pelo o que eu li
dela, das três primeiras edições, foge a esse esquema de sociedade do espetáculo. É uma
revista que pelo nome, pela proposta, busca identificar na cultura popular, meios e
formas interessantes e ricos. Eu acho que o jornalismo cultural precisa sempre ser crítico
e analítico, e além das reportagens, será sempre necessário ter alguém nas redações, que
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possa identificar o que é bom, e o que é ruim e não ficar só no adjetivo, mas ficar também
na crítica, épreciso falar mal sim, do que é ruim, e falar muito bem do que é bom, e
identificar novos grupos, novos talentos, enfim o que há de novo, também, surgindo no
Brasil, em todas as cidades.
ThiagoSeixas
Doutor em Sociologia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Comunicação
e Cultura da FA7. Diretor o Laboratório de Pesquisa em Comunicação da FA7. Autor
do Livro: Gabriel Darde, Sociologia e Subjetividade.
A primeira idéia que me parece já estar implícita no tema do simpósio Cultura, Mídia e
Poder, apresenta o diagnóstico de uma relação perversa entre essas três dimensões que
deveriam guardar uma radial autonomia entre si. Tanto no caso da cultura, da produção
cultural, como da produção da informação midiática, deveria haver uma radical separação
em relação às principais disposições do poder. Se esses três domínios aparecem
construindo o tema de um debate, parece que há uma percepção coletiva, talvez ainda
um pouco silenciosa, de que o poder hoje tem representado um dos grandes perigos
para o exercício da cultura, do pensamento livre, e da construção de formas de existência
minimamente viáveis.
Eu diria que haveria uma outra dimensão possível a ser articulada à cultura e à mídia, que
é a dimensão do pensamento. Talvez seja esse o maior perigo que ronda o universo do
pensamento: sua subordinação aos limites dos valores estabelecidos, ou a submissão aos
axiomas do poder, no caso do mundo moderno, do poder econômico. É isso que tenho
tentado insistentemente passar para os meus alunos de comunicação, que o poder, ou os
valores estabelecidos, não podem funcionar como o limite daquilo que é pensável ou
daquilo que pode ser pensado, daquilo que pode ser dito. Essa é justamente a característica
do mundo da opinião, e não do pensamento.
Há, nos dias de hoje, uma cruel apropriação da palavra crítica, ou do termo crítico. Todo
mundo pede e exige que as pessoas tenham um pensamento crítico, mas deixam de
levar em consideração duas operações que são fundamentais para que um pensamento
possa ser considerado como crítico. Primeiro, a percepção de que a dimensão do sentido
das coisas não é única, não está subordinada a um significante; todo o sentido tem uma
história, e é, sobretudo, complexo. Nesse sentido, o conceito de acontecimento é muito
mais preciso que o conceito de fato, tão importante para as ideologias jornalísticas
contemporâneas. O primeiro implica uma dimensão irredutível de multiplicidade; nenhum
sentido único esgota o sentido do acontecimento. Por isso ele é sempre paradoxal,
exigindo um pensamento capaz de se embrenhar em paradoxos. Já o conceito de fato
pede por um sentido único, que revela a verdade, o bom sentido do fato. Sendo assim,
é tarefa do pensamento crítico dar conta da complexidade dos acontecimentos, mas é
justamente isso que o senso comum não permite que o façamos. Tudo deve ter um
sentido determinado, normalmente um bom sentido e que leva provavelmente à
reconstrução da ordem estabelecida.
A segunda operação da crítica, talvez ainda mais importante do que a primeira, é a
possibilidade de discutir permanentemente os princípios a partir dos quais a gente interpreta
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os acontecimentos, ou seja, colocar em questão o valor dos valores a partir do qual nós
pensamos. Acredito que essas duas operações estão sendo radicalmente colocadas de
lado, seja na atividade de produção cultural, seja na atividade da mídia, mas também nas
universidades - que respondem cada vez mais aos imperativos do mercado e da
empregabilidade, nos movimentos sociais. Vivemos então um esvaziamento de criticidade,
porque ninguém está a fim de fazer essas duas perguntas. Qual é a história, qual é o
processo de construção social dos sentidos que nós compartilhamos, e quais são os valores
a partir dos quais esses sentidos únicos são produzidos?
Como não há ninguém muito disposto a discutir princípios, ou colocar o dedo em princípios,
talvez por um medo já identificado pelo romancista inglês D. H Lawrence no começo do
século, um medo coletivo de perder o emprego, a gente vai cotidianamente fazendo
pequenas concessões a esse poder, que nos afastam cada vez mais de um exercício legítimo
do pensamento. Eu cito um exemplo para pensarmos juntos, que é muito tranqüilo.
Gostaria de colocar em questão dois princípios fundamentais do mundo contemporâneo:
o primeiro que afirma vivermos ainda hoje em uma sociedade de pensamento livre, e o
segundo, que gosta de afirmar que vivemos em uma sociedade da informação.
Eu, muito humildemente, discordaria desse diagnóstico que o Humberto traçou, e que diz
que no mundo hoje tem muita informação disponível. Eu discordaria, acredito haver
muita palavra de ordem disponível: - faça isso, compre aquilo, use isso, tome esse
medicamento, use aquela roupa, vá para aquele lugar, pense dessa maneira, tenha esse
corpo. Há uma constante exigência de que as pessoas tenham uma posição passiva em
relação às informações, e a passividade é característica da obediência, e não da reflexão.
Para que haja reflexão, para que haja pensamento é preciso um mínimo de espontaneidade,
ação, e é essa espontaneidade que está sendo retirada e substituída por uma passividade
que se torna cada vez mais desconfortável.
Talvez a euforia com que o Juremir tenha sido aplaudido revele um pouco isso, estamos
cansados de sermos passivos, e são essas forças ativas do pensamento que aparecem
nesses pequenos acontecimentos. Eu tenderia a dizer que não vivemos numa sociedade
da informação, mas sim numa sociedade em que as palavras de ordem é que são
abundantes. Exemplo: uma jovem criança numa sala de aula, dentro do nosso modelo
escolar contemporâneo. É quase provocação dizer que as crianças aprendem alguma coisa
na escola, ou que elas são informadas de alguma coisa na escola. O que os professores
divulgam, hoje em dia, nas nossas escolas, principalmente com o ritmo em que elas estão
funcionando, é aprenda isso, pense dessa maneira, reaja dessa maneira a tal situação, sinta
náuseas em relação a isso, se alegre em relação àquilo, mas não há uma construção quase
que artesanal, que é necessária e indispensável ao exercício do pensamento.
E não só em relação às escolas, quando a gente liga o noticiário, quando abrimos o jornal,
quando somos bombardeados pelas informações, pelas propagandas, o que temos não
são informações, são palavras de ordem, são formas padronizadas de comportamento,
muito embora, os meios de comunicação insistam em manter atual o discurso positivista
da neutralidade, da objetividade, da veracidade do discurso jornalístico que hoje, de maneira
descarada serve apenas para encobrir as verdadeiras alianças, que a indústria da informação
tem tecido com a indústria do comércio e com a economia.
Eu daria alguns outros exemplos para podermos debater. Eu não quero tomar muito o
tempo de vocês, porque há outras idéias mais pertinentes a serem discutidas. Mas
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grande parte das "mazelas" contemporâneas que nos atingem são, se não produzidas,
fortalecidas por falta de informação. Exemplo: vivemos uma epidemia contemporânea
de câncer em que todos os médicos, minimamente sérios ou críticos, e críticos nesse
sentido significa autônomos em relação à indústria farmacêutica, são unânimes em dizer
que a grande causa dessa epidemia de câncer é a industria petroquímica ligada à industria
alimentícia. E estamos vivendo essa epidemia crescente de maneira passiva, e uma
epidemia que foi construída por falta de informação do tipo, comer isso faz mal, ou
comer isso de maneira prolongada pode te matar. Porém, são poucos os médicos que
têm a coragem de romper esse perverso acordo com a indústria farmacêutica. Normalmente
as causas reais são substituídas por outras causas: tendência de família ou hereditariedade.
Em ambos os casos, há uma despolitização do problema, uma desresponsabilização. A
gente está vivendo uma crise contemporânea de depressão juvenil, os remédios mais
vendidos do mundo, hoje, são antidepressivos e calmantes normalmente destinados à
juventude e até mesmo à infância. Quando as famílias vão aos psiquiatras, novamente a
genética, ou os genes são os grandes culpados, quando não é preciso mais ser doutor
em nada para saber que esse surto de depressão está ligado a uma coisa chamada estilo
de vida, ou forma de existência.
Mais uma vez, não somos bem informados, ou seja, não recebemos conhecimentos que eu
reinvente a própria maneira como me comporto. Estamos vivendo uma crise de violência
urbana, e não há nenhum órgão da imprensa que consiga articular a causa da violência
urbana, ou as razões da violência urbana, com a profunda desigualdade social que marca
historicamente a sociedade Brasileira. Não é preciso ser doutor em sociologia para saber que
as condições de vida materiais de uma população estão intimamente relacionadas aos números
da violência pública. Mais uma vez não somos informados, e todas as soluções, ou todas as
palavras de ordem que nos são transmitidas pelos meios de comunicação a esse respeito, são
via controle: mais polícia, mais repressão, mais força ostensiva.
Vivemos, atualmente, no Estado do Ceará, uma atividade de grilagem da terra, sobretudo
a litorânea, motivada pela especulação imobiliária, como aconteceu na Inglaterra do século
XIX quando o capitalismo dava sinais de suas violências características. Mais uma vez, não
somos informados, acontecendo à revelia de toda a sociedade civil. Talvez por que se
fôssemos informados, se o conhecimento que nos é passado ativasse as nossas forças de
pensamento, isso talvez não acontecesse de maneira tão descarada como na sociedade
brasileira. Parece provocação dos meios de comunicação ocultar esses acontecimentos,
num país onde o desrespeito à lei é absolutamente flagrante. Hoje em dia no Brasil,
respeitar a lei pode parecer um gesto anarquista.
Nós não vivemos em uma democracia. Há muito tempo que estamos longe de uma
sociedade que se alimenta de valores democráticos. Nós vivemos numa plutocracia, que é
o governo dos ricos sobre os pobres, e que vem produzindo todos os mecanismos necessários
para manter esse atual estado de coisas. Parece ser necessário um velho português chamado
Saramago, que já não se interessa mais pela imprensa, para dizer que os intelectuais não
deveriam emprestar a sua autoridade para dizer que nós vivemos em uma sociedade de
livre expressão, ou seja, seria melhor que calassem. Essa poderia se transformar na sua
atividade crítica por excelência. Nesse caso, dos males, o menor.
Nesse sentido, não dá para dizer que nós somos periodicamente informados. Não! O
que recebemos são palavras de ordem, e o que é mais terrível é que, normalmente,
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essas palavras de ordem sugerem comportamentos contrários ao nosso interesse. Sendo
assim, me parece que os meios de comunicação, em vez de cobrir os fatos, encobrem
os acontecimentos.
Eu terminaria aqui minha fala, para abrirmos o debate, com a seguinte provocação: se
não somos capazes de colocar em questão ou colocar em suspensão os princípios ou os
valores a partir dos quais a gente tem produzido as nossas avaliações, parece que a
gente está criando uma triste rede de redundância em torno de palavras de ordem e não
em torno de pensamentos construídos coletivamente e que buscam produzir efeitos,
também, coletivamente.
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2003
Programação
Dia17deMarço
Tema: Gestão Cultural
08:30h - palestra "Os desafios da Gestão Cultural" - Tarciana Portella - Delegada do ministério
da Cultura para o nordeste.
10:15h - Intervalo.
10:30h - Mesa Redonda com Glauber Filho (Presidente da TVC), Roberto Galvão (Artista
Plástico), Nara Vasconcelos (Diretora do TJA) e Rosemberg Cariri (Cineasta).
14:30h - Paletra "Ideas sobre uma política cultural para o Século XXI".
16: 15h - Intervalo.
16:30h - Mesa Redonda com Sueli Mendonça (Gestora do Centro Cultural do Banco do
Nordeste), Tibico Brasil (Fotógrafo), Moncho Rodrigues (Dramaturgo) e Ernesto
Gadelha (Diretor do Colégio de Dança).
D
ia18deMarço
Tema: Políticas de Financiamento da Cultura
08:30h - Palestra "Federalismo Cultural" - Humberto Cunha - Advogado da União.
10:15h - Lançamento do Livro "Teoria e Prática da Gestão Cultural", de Humberto Cunha.
10:30h - Mesa Redonda com Francis Vale (Advogado), Conceição Rodrigues ( Gerente
de Comunicação da Coelce), Geraldo Luciano (Diretor Financeiro do Grupo M.
Dias Branco) e Ana Mônica Menescal (Assessora Jurídica da SEFAZ).
14:30h - Palestra "Leis de Incentivo à Cultura" - Fábio Cesnik - Vice - do instituto Pensarte.
16:15h - Lançamento do Livro "Guia de Incentivo à Cultura", Fábio Cesnik.
16:30h - Mesa Redonda com Artur Bruno (Deputado Estadual, Presidente da Comissão
de Educação e Cultural da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará), Sheila
Pitombeira (Procuradora da Justiça do Estado), Patrícia Veloso (Produtora Cultural)
e Daniel Raviolo (Diretor Regional da Associação Brasileira das ONGs).
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Tema: A Economia da Cultura e o Mercado de Bens Simbólicos
08:30h - Palestra "As Condições para a Formação de Cluster Cultural"
Paulo César Batista - Coordenador do Mestrado Acadêmico
de Administração da UECE.
2003
Dia19deMarço
10:15h - Intervalo.
10:30h - Mesa Redonda com Cláudio Lucci (Empresário do Segmento Fonográfico),
Wolney Oliveira (Diretor da Casa Amarela Eusélio Queiroz), Everardo Fereira
(Executivo do Segmento Gastronômico) e Maria Amélia Mamede (Empresária
do Segmento de Eventos Culturais).
14:30h - Mesa Redonda com Eloísa Bezerra da Rocha (Diretora do Iplance), Pio Rodrigues
(Empresário e Presidente da Ação Novo Centro), Luiz Gastão Bittencourt,
(Empresário e Presidente da Federação do Comercio de Estado do Ceará) e
Raimundo Padilha (Presidente da Bolsa de Valores Regional).
16: 15h - Intervalo.
16:30h - Palestra "O MINC e a Economia da Cultura: Perspectiva e Desafios".
Paulo Miguez - Assessor Especial do Ministério da Cultura.
Dia20deMarço
Tema: A Municipalização da Cultura
08:30h - Palestra "Gestão Compartilhada: Uma Visão de Futuro".
Marcelo Brito - Coordenador Nacional do Programa URBIS no IPHAN/
Ministério da Cultura.
10:15h - Intervalo.
10:30h - Mesa Redonda com Alemberg Quindins (Diretor da Fundação Casa Grande),
Dora Andrade (Diretora da Edisca), Juçara Peixoto (Coordenadora Geral do Projeto
Oficina Escola de Artes e Ofícios), e Julio César Batista (Prefeito e Presidente da
APRECE).
14:30h - Palestra "A Municipalização da Cultura e a Experiência da Região Metropolitana
de Fortaleza" - João Parente - Diretor Executivo do PLANEFOR.
16:15h - Intervalo.
16:30h - Mesa Redonda com Clodoveu Arruda (Secretário de Cultura de Sobral), Cristiano
Góes (Presidente da Câmara Municipal de Quixadá), Fátima Façanha (Assessora
Cultural da Prefeitura de Maranguape e Barros Pinho (Presidente da FUNCET).e
Daniel Raviolo (Diretor Regional da Associação Brasileira das ONGs).
18:30h - Pronunciamento do Ministério da Cultura, Gilberto Gil.
Pronunciamento do Governo do Estado do Ceará, Lúcio Alcântara.
Anexos
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2003
Dia21deMarço
Tema: A Economia da Cultura e o Mercado de Bens Simbólicos
08:30h - Palestra "Perspectiva do Patrimônio".
Maria Eliza Costa - Presidente do IPHAN.
10:15h - Intervalo.
10:30h - Mesa Redonda com Romeu Duarte (Coordenador Regional do IPHAN),
Eveline Pinheiro (Superintendente do patrimônio Histórico da SECULT),
Luisa interlenghi (Diretora do Museu de Arte Contemporânea do Centro
Dragão do Mar) e Marcos Lima (Presidente do Instituto dos Arquitetos
do Brasil).
14:30h - Palestra "patrimônio Cultural Imaterial: Que coisa é Essa?
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes - Professor titular do Doutorado
e Mestrado em Sociologia da UFC.
16: 15h - Intervalo.
16:30h - Mesa Redonda com Nirez (Memorialista e Pesquisador), Lia Rossi
(Coordenadora de Design do Centro Dragão do Mar), Régis Lopes
(Diretor do Museu do Ceará), e Flávio Paiva (Jornalista e Produtor
Cultural).
Encerramento: Palavra da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará,
Cláudia Leitão.
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2004
Programação
Dia16deMarço
Local: Theatro José de Alencar (TJA)
20h30 - Presença do Exmo. Sr. Governador do Estado do Ceará, Dr. Lúcio Alcântara, do
Exmo. Sr. Prefeito de Fortaleza, Dr. Juraci Magalhães, do Exmo. Sr. Embaixador
Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores,
do Exmo. Sr. Ministro da Cultura, Gilberto Gil, da Secretária da Cultura do
Estado do Ceará, Dra. Cláudia Leitão, Embaixadores, Adidos Culturais, Diplomatas,
Cônsules e autoridades representativas da sociedade civil e militar.
Programação:
• Hino Nacional/Hino do Estado: pela Orquestra Eleazar de Carvalho e pelo Coral Vozes
do Outono.
• Abertura do Fórum pelo Exmo. Sr. Lúcio Alcântara, Governador do Estado do Ceará.
• Fala do Exmo. Sr. Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral do Ministério
das Relações Exteriores.
• Palavras do Exmo. Sr. Gilberto Gil, Ministro d Cultura.
• Apresentação do grupo EDISCA no palco principal do Theatro José de Alencar.
• Coquetel nos jardins do TJA.
D
ia17deMarço
Local: Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
SEMINÁRIO
8h - Entrega do Material.
8h30 - Palestra de Abertura: "Política Externa Brasileira na Área da Cultura" Ministro Antenor
Bogéa, Direção-Geral Cultural do Ministério das Relações Exteriores.
9h - Palestra: "Política Cultural e Cooperação Internacional no Ceará"
Dra. Cláudia Leitão, Secretariada Cultura do Estado do Ceará.
9h30 - Intervalo para café.
9h45 - Painel Geral: "O Ceará e suas Culturas".
Anexos
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10h45 - Visita guiada ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
12h - Intervalo para almoço.
14h - Painel Internacional I
Participantes: Rússia, EUA, Indonésia e Síria.
15h20 - Intervalo para café.
Painel Internacional II
Participantes: Portugual, Romênia, Costa Rica e China.
17h - Palestra e lançamento do livro: "Indústria Culturais no Mercosul"
Prof. Dr. José Sombra Saraiva - Assessor Internacional da Universidade de Brasília
(UnB), Diretor-Geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e Professor
do Instituto Ro Branco do Ministério das Relações Exteriores.
D
ia18deMarço
Local: Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
08h30 - Palestra: "Os Caminhos do Turismo Cultural no Ceará".
Dr. Allan Pires de Aguiar, Secretário de Turismo.
09h - Painel Internacional III
Participantes: Coréia, Grã Bretanha, Suíça e Finlândia.
10h20 - Intervalo para café.
10h40 - Painel Internacional IV
Participantes: Alemanha, Japão, Itália e Hungria.
12h - Intervalo para o almoço.
14h - Painel de Encerramento.
16h40 - Intervalo para café.
17h - Painel Final:
Ilmo. Sr. Márcia Meira, Secretário de Articulação Institucional de Difusão Cultural
do Ministério da Cultura (MinC).
18h - Encerramento.
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2005
Programação
Dia21deMarço
Tema: Gestão Municipal, Cultura e Desenvolvimento Urbano: a experiência
da Região Rhône-Alpes.
Local: Theatro José de Alencar (TJA).
19h - Solenidade de Abertura.
20h - Conferência de Abertura.
Palestrante: Jacques Pignard (Prefeito e Vice-presidente do Conselho Geral da Região
Rhône-Alpes encarregado da Cultura).
Dia22deMarço
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
8h - Inscrições e recebimento do material do Seminário.
9h - Painel I: Identidade cultural e paisagem: um olhar sobre as cidades.
Coordenação: Romeu Duarte Júnior (Superintendente do IPHAN).
Participantes: Fernando Resende (Doutor em Ciências da Comunicação-USP e Professor
do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-RJ); Eduardo
Diatahy Bezerra de Menezes (Prof. Titular do Doutorado e Mestrado em
Sociologia e Mestrado em História Social da UFC) e bárbara Freitag
(Professora e pesquisadora da UNB).
11h - Relatos de Experiências.
Moderador: Alexandre Almeida Barbalho (Presidente da Fundação de Cultura, Esporte e
Turismo da Prefeitura Municipal de Fortaleza).
Tema: Projetos de requalificação urbana da cidade de Recife.
Relator: João Roberto Peixe (Secretário Municipal de Cultura do Recife).
Tema: Projetos de requalificação urbana da cidade de Belém.
Relator Paulo Chaves Fernandes (Secretário Estadual de Cultura do Pará).
Anexos
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14h - Painel II: O papel dos Centros Culturais para o Desenvolvimento das cidades
Coordenação: José Almir Farias Filho (Prof. do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Ceará-UFC e da Universidade de Fortaleza-UNIFOR)
Participantes: João Pedro Garcia (Diretor do Serviço Internacional da Fundação Calouste
Gulbenkian em Paris); Paulo Sérgio Souto Mota (Superintendente da Área
de Comunicação e Cultura do Banco do Nordeste); Carlos Augusto Calil
(Diretor do Centro Cultural São Paulo)
16h - Relatos de Experiências
Moderador: Cláudia Sousa Leitão (Secretária da Cultura do Estado do Ceará)
Tema: Estratégias e Ações da Fundação Iberê Camargo na cidade de Porto Alegre
Relator: José Paulo Soares Martins (Gerente de Comunicação Social do Grupo Gerdau)
Tema: Estratégias e Ações do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura na cidade de
Fortaleza
Relator: Augusto César Faria Costa (Presidente do Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura)
17h30 - Informações da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará destinadas aos municípios
Apresentação: Equipe de Coordenadoria da SECULT
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ia23deMarço
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
9h - Painel III: Federalismo Cultural e os papéis do município no fomento à cultura
Coordenação: Humberto Cunha (Advogado da União).
Participantes: Sérgio Duarte Mamberti (Secretário da Identidade e da Diversidade Cultural
do MinC); Sérgio Luiz Carvalho Xavier (Secretário de Fomento e Incentivo à
Cultura do MinC); Aloysio Antônio Castelo Guapindai (Gerente de Articulação
Nacional do MinC) e Mário Diamante (Assessor Especial da Secretaria do
Audiovisual do MinC).
Relatos de Experiências
Moderador: Allan Pires de Aguiar (Secretário do Turismo do Estado do Ceará).
Tema: A Estratégia de Salvador para o Crescimento do Turismo e da Cultura.
Relator: Paulo Renato Dantas Gaudenzi (Secretário Estadual de Cultura e Turismo da Bahia).
Tema: A economia da Cultura e do Turismo no Amazonas.
Relator: Robério dos Santos Pereira Braga (Secretário Estadual da Cultura e Turismo do Amazonas).
Relatos de Experiências
Moderador: Alex Araújo (Secretário do Desenvolvimento Local e Regional do Ceará)
Tema: As ações culturais da Caixa Econômica Federal para a requalificação das cidades
Relator: Ana Cristina Ribeiro da Cunha (Gerente Nacional de Relações Institucionais da
Caixa Econômica Federal)
Tema: As ações Culturais do Banco do Brasil para a requalificação das cidades
Relator: Henrique Pizzolato (Diretor de Marketing e Comunicação do BB)
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Relatos de Experiências
Tema: Sobral, A ECOA - Escola de Comunicação, Ofícios e Artes, e as ações
de requalificação do patrimônio material
Relator: José Clodoveu de Arruda Coelho Neto (Vice-Prefeito de Sobral e
ex-Secretário de Turismo e Cultura de Sobral)
Encerramento
• Assinatura do Acordo de Cooperação entre a Região de Rhône-Alpes, França
e o Estado do Ceará através de suas Secretarias da Cultura, do Turismo e do
Desenvolvimento Local e Regional
• Entrega do Sistema Estadual de Cultura pelo Governador do Estado do
Ceará, Lúcio Gonçalo de Alcântara, para o Deputado Marcos Cals (Presidente
da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará)
• Transferência do Título de Capital Cultural do Estado do Ceará
Assinatura dos primeiros Protocolos de Intenções, entre a União e o Estado
do Ceará, e entre a União e cada um dos municípios cearenses, cujo o
objetivo é estabelecer as condições e orientar a instrumentalização necessária
para a implantação do Sistema Nacional de Cultura.
Anexos
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2006
Programação
Dia8deMarço
Local: Auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
19h - Antônio Albino Rubim (Professor Titular e Diretor da Faculdade de Comunicação da
UFBA. Professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade
da UFBA).
Dia15deMarço
Jornalismo Cultural
Lira Neto (Jornalista e escritor, tem publicado artigos e reportagens em diversos jornais e
revistas brasileiros, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo).
Dia22deMarço
Cultura e Novas Tecnologias
Sílvio Meira (Ph.D em computação pela University of Kent at Canterbury, na Inglaterra. Professor
de computação da UFPE. É o cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do
Recife, C.E.S.A.R)
Programação
Local: Auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
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2006
Dia29deMarço
Cultura, Mídia e Poder
7h30 - Credenciamento.
8h15 - Conferência.
Sérgio Paulo Rouanet (Diplomata, cientista político e ensaísta. É membro efetivo
da Academia Brasileira de Letras).
10h15 - Coffee break.
10h30 - Mesa-redonda.
Moderador: Silas de Paula (Doutor em Comunicação pela Universidade de Loughborough,
Inglaterra. Fotógrafo e Professor Adjunto do Deptº. de Comunicação Social
da UFC).
Debatedores: Manfredo Oliveira (Mestre em Teologia pela Pontefícia Universidade
Gregoriana de Roma. Doutor em Filosofia pela Universidade LudwigMaximilian de Munique, na Alemanha. Professor Titular de Filosofia na
UFC), Mohamed Elhajji Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO UFRJ. Pesquisador do CNPq e Coordenador de ECONET - Integração
Eletrônica da ECO. Atual Coordenador de Projetos do Laboratório de
Estudos em Comunicação Comunitária - LECC) e Isabel Lustosa (Doutora
em Ciência Política pelo IUPERJ e Pesquisadora da Fundação Casa de Rui
Barbosa).
12h30 - Almoço.
15h - Mesa-redonda
Moderador: Cristiana Parente (Mestre em Sociologia, Produtora Cultural, Produtora de
mídia interativa, Professora - Pesquisadora na área da Comunicação Social,
Cultura e Novas Tecnologias pela UNIFOR).
Debatedores: Alemberg Quindins (Diretor da ONG Fundação Casa Grande), Luiz Paulo
Correia e Castro (Diretor da Cia de Teatro Nós do Morro-RJ) e José Paulo
Araújo (Jornalista, atualmente trabalha na Unicef - Angola).
18h - Coffee break
18h30 - Conferência
Margarethe Born (Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC - SP, é
pesquisadora das áreas de Jornalismo, Comunicação e Lingüística, tendo
lecionado na PUC - RJ, Unicamp, PUC-SP e Universidade Livre de Berlim).
Anexos
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2006
Dia30deMarço
Cultura em Novas Tecnologias
8h15 - Conferência.
Arlindo Machado (Doutor em Comunicação em Semiótica pela PUC-SP
e professor de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo).
10h15 - Coffee Break.
10h30 - Mesa-redonda.
Moderador: Glauber Filho (Presidente da TV Ceará, graduado em Jornalismo
pela UFC, Pós-graduado em Gerência Executiva de Marketing
Cineasta/videomaker).
Debatedores: Eugênio Bucci (Jornalista, Presidente da Radiobrás. Assina a
coluna "Tempo de TV" na revista Veja), Aran Aharonian (Vice
Presidente da Nova Televisão do Sur C.A. - "La Nueva Televisión
del Sur C.A." e Diretor Geral da Telesur) e Bernardo Kucinsky
(Assessor especial da Secretaria de Comunicação de Governo e
Gestão Estratégica do Governo Federal).
12h30 - Almoço.
15h - Mesa-redonda.
Moderador: Tarcísio Pequeno (Professor do Doutorado em Ciência da
Computação e do Mestrado em Filosofia da UFC, Diretor do
Laboratório de Inteligência Artificial (LIA), Pesquisador do CNPq).
Debatedores: Artur Matuck (Pós-doutor em Arte e Tecnologia pela Universidade
Carnegie Mellon em Pittsburgh, Pós-doutor em Cultura Eletrônica
pela Universidade da Flórida, Doutor em Artes pela ECA - USP,
Professor de Comunicação Digital da ECA - USP), Cláudio Prado
(Coordenador de Políticas Digitais do Ministério da Cultura) e
André Lemos (Doutor em Sociologia pela Université René Descartes
- França, Diretor do Centro Internacional de Estudos Avançados
e Pesquisa em Cibercultura).
18h - Coffee break.
18h30 - Conferência.
Ricardo Kotscho (Escritor, Jornalista com diversos prêmios.
Coordenador de imprensa de três campanhas presidenciais do atual
Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva: 1989, 1994 e 2002).
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Jornalismo Cultural
8h15 - Conferência.
Homero Fonseca (Editor - executivo do Estado e Colaborador das
revistas Bravo!, Entrelivros e Continente Multicultural).
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Dia31deMarço
10h15 - Coffee break.
10h30 - Mesa-redonda.
Moderadora
Moderadora: Regina Ribeiro (Jornalista, Editora de Comportamento e Cultura do O POVO)
Debatedores
Debatedores: Homero Fonseca (Jornalista, Editor da Revista Continente Multinacional,
do Recife), Hélio Ponciano (Editor de teatro e dança da revista Bravo!.
Pesquisador sobre prática teatral entre grupos sediados em São Paulo) e
Juremir Machado (Doutor em Sociologia pela Universidade Paris V,
Pesquisador do CNPq. Jornalista e escritor, Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da PUC - RS).
12h30 - Almoço
15h - Mesa-redonda
Moderador
Moderador: Anderson Sandes (Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual
do Ceará, Editor do Caderno 3 - Diário do Nordeste)
Debatedores
Debatedores: Ivana Bentes (Pesquisadora na área de Comunicação e Cultura, é diretora
e professora da graduação e pós-graduação desde 2006 da Escola de
Comunicação da UFRJ), Sergio Augusto Andrade (Formado em Grego e
Latim Clássico pela USP, colunista da revista Bravo!) e Beatriz Furtado
(Jornalista, Professora de Teoria da Imagem, da Universidade de Fortaleza,
e Presidente da Funcet - Fundação de Cultura de Fortaleza).
18h - Coffee break
18h30 - Conferência
Nelson Mota (Jornalista e produtor musical)
Anexos
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