BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira
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BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. Cap. X – O grande encarceramento Os criminólogos críticos dos anos setenta do século XX não poderiam adivinhar os novos sentidos do processo de acumulação de capital. A crise recessiva mundial, a década perdida dos oitenta e seus personagens Reagan, Thatcher, enfim o que se denominou “neoliberalismo”, trouxe o sistema penal para o epicentro da atuação política. A prisão não perdeu sentido, embora o trabalho vivo de uma forma geral tenha mudado seu espaço no admirável mundo novo. O singular do neoliberalismo foi conjugar o sistema penal com novas tecnologias de controle, de vigilância, de constituição dos bairros pobres do mundo em campos de concentração. No Rio de Janeiro, de onde escrevo, a governamentalização da segurança pública conjuga o maior índice de mortos pela polícia, os famigerados autos de resistência (mais de mil por ano) com a pacificação das favelas. É importante atentar para o uso histórico no Brasil (e no mundo, vide a pax romana) dessa expressão: após os embates populares pela radicalização da idéia de direitos na década de trinta do século XIX, as rebeliões foram massacradas para a pacificação da década de cinquenta, que instituiu o império brasileiro. Os medos do povo e dos seus desejos de nação produziram o mais lento processo de emancipação da escravatura, aliado ao embranquecimento da classe trabalhadora e de massacres consentidos de rebeliões e revoluções como a dos Farrapos, dos Malês, dos Cabanos e outros. Revoluções adiadas, diria Marildo Menegat. As favelas do Rio que estão ocupadas manu militari são vendidas como um modelo que se assemelha aos territórios ocupados da Palestina: muros, controle minucioso da movimentação, novas armas, novas técnicas, mas principalmente uma gestão policial da vida. É o oficial de plantão da polícia que decide se vai ou não haver festa, batizado ou baile funk. Os jornais estampam fotos de policiais oferecendo chocolate na Páscoa, igualzinho aos americanos no Iraque. Mas os moradores adultos se recusam a conversar. O Rio de Janeiro converteu-se num laboratório de projetos de controle social por ocupação que se inspiram na Colômbia, no Iraque, na Palestina, nos territórios do mal como diria Bush. Mas essa torturante contemporaneidade foi delineada por Loïc Wacquant ao demonstrar a ascensão do Estado Penal como algo correspondente ao desmonte do Estado Previdenciário dos Estados Unidos. Como ele mesmo diz, esse vento punitivo soprou da América para a Europa e de lá para as velhas colônias. O sistema penal tornou-se o território sagrado da nova ordem sócio-econômica, atualizando a reflexão de Rusche: sobram braços e corpos no mercado de trabalho, aumentam os controles violentos sobre a vida dos pobres. A grande mídia tem sido um obstáculo a uma discussão aprofundada sobre a questão criminal. É ela quem produz um senso comum que nós chamamos de populismo criminológico. Zaffaroni analisou como o declínio do público e a ascensão do privado fizeram com que restasse ao Estado o poder de polícia. Se a política não tem como reduzir a violência que o modelo econômico produz, ela precisa mais do que de um discurso, precisa de um espetáculo. E é nessa policização da política que a vítima (preferencialmente a rica e branca) vai para o centro do palco, é ela que vai produzir as identificações necessárias para a inculcação de uma subjetividade punitiva. Nossas matrizes ibéricas já trabalham com o dogma da pena, mas os novos tempos renovaram essas mentalidades. É Zaffaroni quem também demonstra as marcas do inimigo, essa figura que vem da Inquisição mas que se teoriza juridicamente no nazismo de Carl Schimitt, para aportar no novo direito penal. Se os Estados Unidos são os maiores carcereiros do mundo, o Brasil passou a ocupar um lugar importante: em 1994 (quando FHC aprofunda o que Collor havia tentado) o Brasil tinha 110.000 prisioneiros. Em 2005 já eram 380.000 e hoje estamos com cerca de 500.000 presos e 600.000 nas penas alternativas. Aprendi com Maria Adélia Aparecida de Souza e sua geografia brasileira como bairros e até cidades se transformaram em prisões, como é o caso de Hortolândia em São Paulo. Guarapuava já foi no século XIX um lugar de degredo, não é coincidência que seja hoje uma prisão de segurança máxima. Com a mais dramática expansão carcerária da história da humanidade conjugam-se prisões decrépitas com imitações da supermax estadunidense e seus princípios de incomunicabilidade, emparedamento e imposição de dor e humilhações aos familiares dos presos. Perdemos a mordida crítica que tínhamos contra o autoritarismo na saída da ditadura e hoje aplaudimos a tortura e o extermínio dos inimigos de plantão. O importante é traduzir toda a conflitividade social em punição. O importantíssimo livro de Anitua nos fala de um marco geral das políticas criminais contemporâneas como compreensões determinadas da questão criminal que produzem desdobramentos e estratégias políticas distintas para o enfrentamento dos problemas. Ele aponta para três grandes linhas: “lei e ordem”, direito penal mínimo e abolicionismo penal. Para além das simplificações e maniqueísmos, afinal, não é só a direita que aposta na lei e ordem, não é só no centro que pontua o direito penal mínimo e nem tampouco a esquerda é abolicionista. Tentar entender esse panorama numa perspectiva mais ampla é inseri-lo no que Zaffaroni chamou de curso dos discursos sobre a questão criminal. Lembrando sempre a lição de Pavarini, temos que eclipsar o objeto criminológico para entende-lo através das demandas por ordem. Historicamente, nas relações entre o capital e o poder punitivo vimos como, entre os séculos XIII e o XVIII, constitui-se a pena pública e organiza-se o sistema penal. E também como, entre o XVIII e o XIX, a prisão e seus saberes constituem-se na principal pena do ocidente. O século XX e o saber sociológico produziram para o integracionismo do Welfare System uma crítica dos processos de criminalização que foram potencializados pela criminologia marxista e anarquista. O século XXI acontece no esplendor do neoliberalismo e na sua crise. Seu caráter suicida, de capitalismo de barbárie, vai intensificar relações entre o mercado, a mídia e o capital vídeofinanceiro.1 A questão criminal transformou-se numa mercadoria de altíssimo valor para a gestão policial e para ganhos concretos. Vamos resumir com Anitua essas diferentes estratégias para o enfrentamento da questão criminal. Para Anitua, “lei e ordem” seria parte da base ideológica criminal da intolerância. Como disse Salo de Carvalho, ao analisar a política criminal de drogas, essa estratégia se sustenta num tripé ideológico entre as ideologias da defesa social, da segurança nacional e do direito penal do inimigo. Ela brota na década de sessenta contra a criminologia crítica, o abolicionismo e o rotulacionismo que lutaram junto aos movimentos sociais contra o poder punitivo. Nos Estados Unidos essa estratégia orienta toda a produção 1 Cf. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Príncipe da Moeda. 2.ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997. legislativa em matéria criminal para a “guerra contra as drogas”, recuperando do positivismo o caráter patológico do crime. Com o auxílio luxuoso da mídia e suas campanhas de alarme social, inculcaram as teorias do senso comum, ampliando o espectro punitivo, impondo penalidades mais severas, flexibilizando as garantias, mas, principalmente fortalecendo o dogma da pena como solução por excelência para os conflitos humanos. Nilo Batista demonstra as relações entre mídia e sistema penal no capitalismo de barbárie, denunciando seu inédito protagonismo. Quem pauta as agências do sistema penal é o monopólio global da mídia no Brasil.2 A “lei e ordem” se insurgiu contra a “leniência” dos anos setenta, restabelecendo uma pugna entre o bem e o mal nessa “criminologia da vida cotidiana”. James Wilson foi o grande intelectual orgânico dessa escola, como membro do Partido Republicano e da Rand Corporation. Seu livro Pensando sobre o Delito, de 1975, transformou-se no livro de cabeceira do realismo criminológico de direita. A relação que ele estabeleceu entre os índices delitivos e as possibilidades de ser preso pontuam até hoje os discursos criminológicos hegemônicos em nosso país e é responsável pelo recrudescimento das penas mais pesadas, inclusive a pena de morte. Anitua cita também Ernest Van der Haag, que lança em 1975 Castigando os Delinqüentes. Ali ele desenvolve um cálculo utilitarista que tem a ordem como valor jurídico supremo. Para ele é mais fácil dissuadir que reabilitar e ele classifica os “delinqüentes” em três tipos: maus, inocentes e calculadores. A partir dessa tosca classificação sua proposta é: separar os maus, proteger os inocentes e convencer os calculadores das relações 2 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, n. 12. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2002, pp. 271-288. custo/benefício. É uma fusão sinistra do positivismo com o contratualismo utilitarista, e ainda uma pitada de Pavlov. Sua máxima economicista é: quem faz tem que pagar. O retributivismo volta à cena e a crítica à ressocialização vem junto ao fim do Welfare System, do Estado Previdenciário. Nos anos oitenta, Wilson se converte no principal assessor de Reagan difundindo a Teoria das Janelas Quebradas, em 1981. Sua proposta de criminalização dos pequenos delitos foi vendida como a mercadoria mais barata, mais eficiente, mais visível e mais próxima. A moda demorou a chegar na nossa colônia mas aí está até hoje... Como diria Nilo Batista, ao falar da virada do XIX para o XX, e suas medidas de segurança, as elites neoliberais precisam de pena para além do delito: a idéia de condutas desordeiras ou antisociais criminalizadas resultou em seletividade, estigmatização e criminalização dos pobres em todo o mundo. A Prefeitura do Rio hoje faz parte da vanguarda desse atraso: choque de ordem, remoções, prisões de camelôs, flanelinhas. A política da Tolerância Zero já é página virada em New York e recebeu profundas e oportunas críticas da criminologia em geral, mas ainda rende boas consultorias abaixo do Equador. Hart e Fridman, em Castigo e Responsabilidade, apostam nessa linha de causalidades envolvendo os conceitos de indivíduos, escolhas racionais e críticas economicistas. Essa ideologia, ou cultura ou discurso criminológico, é que deu sustentação conceitual à política de criminalização do excedente de mão-deobra para o grande encarceramento. Ela tem marcas no direito e no processo penal, além da expansão sem fronteiras do sistema penal: do RDD ao controle a céu aberto de que fala Passetti.3 É o que Wacquant denominou de onda 3 Cf. PASSETTI, Edson. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Verve (PUCSP), São Paulo, v. 9, p. 83-114, 2006. punitiva. Essa cultura fortaleceu como nunca o direito penal simbólico e sua perene emergência. Ninguém trabalhou melhor o direito penal do inimigo do que Zaffaroni, contestando em Jakobs e sua genealogia a retomada da prevenção geral em nossa margem. A grande mídia foi sua principal aliada e condutrice, replicando o espetáculo da “criminalidade”, vendendo sua vigilância eletrônica, apregoando a punição como a catarsis popular. O vídeocapital financeiro foi o grande legitimador da policização da vida e da legitimação do poder punitivo. Foi ele quem produziu a adesão subjetiva à barbárie. Infelizmente a esquerda seduziu-se por esse poder. Na Inglaterra de Tony Blair e pelo mundo espraiou-se teoricamente o realismo de esquerda, convocando os criminólogos e as ciências sociais a colaborarem com a governamentalização do Estado penal. Como na colônia a moda demora a chegar, estamos no auge da produção “realista de esquerda”. É só olhar a sociologia e suas assessorias e planos para os governos que atiram a nossa polícia aos maiores índices de letalidade do mundo, e também ao sofrimento psíquico e físico. Os policiais e os que ganham a vida na segurança privada são as categorias de trabalhadores mais sofridas nos dias de hoje. Voltando ao marco geral de Anitua das políticas criminais contemporâneas temos um conceito abrangente de direito penal mínimo que envolve um espectro não homogêneo de forças teóricas e políticas também conhecidas como reducionistas, minimalistas ou garantistas penais. É um olhar menos sociológico e mais jurídico, crítico do sociologismo na criminologia. Seu surgimento não é casual, vem da resistência de vários matizes às grandes violações dos direitos humanos dos anos setenta. Aliás, o garantismo tem a ______.; Louk Hulsman e o abolicionismo penal. Verve (PUCSP), São Paulo, v. 12, 2007. idéia de direitos humanos como tema central, do “imperialismo dos direitos humanos” de Hobsbawn à militância de esquerda contra as violências do Estado. Tendo a justiça como trincheira, retomam-se alguns postulados liberais, radicalizando na direção do uso alternativo de direitos, da produção de novos direitos e na lenda fundacional do iluminismo, o Estado Democrático de Direito. O minimalismo contrapôs-se à legislação fascista na Itália e na Espanha, à legislação anti-terror e ao autoritarismo na América Latina, mas produziu também uma ressalva à criminologia crítica da mesma natureza da linha “lei e ordem”: uma convocação a produzir alternativas práticas ao invés de constituir “diques utópicos à barbárie”, como diria Marildo Menegat. De uma maneira geral contribuiu para a jurisdicionalização da vida cotidiana e para a maximização das intervenções jurídicas. Para demonstrar a diversidade qualitativa e teórica do direito penal mínimo, Anitua trabalha as diferenças entre Alessandro Baratta, Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli no curso desses discursos. O que os separa na verdade é o grande divisor de águas na criminologia e no direito penal: teorias legitimantes ou deslegitimantes da pena. Muitos abolicionistas atuam na trincheira garantista e muitos militantes de movimentos sociais apostam no poder punitivo para “fazer justiça”. Não é simples a questão. Alessandro Baratta marcou uma presença fundamental no pensamento jurídico crítico da América Latina e pensou o direito penal como uma práxis teórica alternativa, uma saída para os impasses do pensamento jurídico-penal, o que ele chamou de novo modelo integrado de direito penal e criminologia. Seu artigo dos anos oitenta Os princípios do direito penal mínimo apontavam limites à potencialidade lesiva: limitação formal, limitação funcional e limitação pessoal. Otimista com o futuro, e quem conheceu sua doçura e simplicidade pode imaginar, ele pensava um mundo menos punitivo e trabalhou na Alemanha sua teoria deslegitimante da pena. Criou uma escola fértil e fecunda de pensamento crítico que ecoa forte até hoje através dos seus magníficos seguidores no Brasil como Juarez Cirino dos Santos, Vera Andrade, Ana Lúcia Sabadell, Teodomiro Dias Neto e outros. Baratta tinha também uma sólida formação marxista. Já Luigi Ferrajoli duelava com as ampliações do poder puntivo e com a teoria crítica. Sua obra não produziu uma teoria deslegitimante da pena. Seu garantismo critica a expansão mas justifica o sistema penal. Para Anitua, sua crítica não aprofunda, produzindo uma contradição entre essa justificação e essa deslegitimação não pela coisa em si, mas pelo seu excesso. Desde a teoria marxista até os leitores de Foucault, como Agamben, está demonstrado que o excesso, ou a exceção, fazem parte do que foi historicamente o papel do poder punitivo no capitalismo. Nilo Batista percebeu algo de religioso nos dez mandamentos de Ferrajoli: retributividade, legalidade, necessidade, lesividade, materialidade, culpabilidade, jurisdicionalidade, acusatório, carga de prova, contraditório. Enfim, um “utilitarismo penal reformado” aonde a idéia de prevenção retorna triunfante para a utilização das penas alternativas ou informais. Como disse Baratta, temos de pensar em alternativas à pena e não em penas alternativas. É curioso notar que sua entrada maciça nos cursos de direito no Brasil (muito mais lido do que Baratta) acabou por adaptar-se à expansão do sistema penal. A prisão só se agigantou e se articulou com uma miríade de controles sobre os pequenos conflitos domésticos e privados. O pensamento de Habermas repercutiu na teoria sistêmica de Luhman e outros; entrou na academia brasileira nesse vácuo, dominando obsessivamente o pensamento jurídico nacional. Os adeptos da jurisdicionalização da vida vão estar bem no centro do grande encarceramento, tendo à direita seus companheiros da lei e ordem (é só ver os cursos de segurança pública e direitos humanos para policiais) e à sua esquerda os companheiros da esquerda punitiva e seus faróis para trás. Nesse marco, fulgura Eugenio Raúl Zaffaroni e seu pensamento singular e marcado pela sua trajetória latino-americana. Anitua conta um pouco sua história e a mudança de perspectiva que ele delineia em 1990 quando homenageia Hulsman e o abolicionismo em Em Busca das Penas Perdidas. Ele retrata a reconstrução da dogmática jurídico-penal, que ele conduz para além do finalismo e da ressocialização, numa perspectiva deslegitimadora e abolicionista, com suas marcas existencialistas e cristãs. Ali ele introduz sua visão sobre o sistema latino-americano: A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os 4 sistemas penais. Para ele a pena aparece como fato de poder não legitimado. Introduz ali a idéia de uma criminologia clínica e uma clínica da vulnerabilidade na direção contrária da policização e da burocratização. Seu livro Criminología, Aproximación desde un Margen produziu a idéia de realismo marginal e de que a criminologia é um curso (no sentido dos rios) dos discursos sobre a questão criminal e de que temos que entender essa acumulação de discursos a partir 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 15. de nossa margem latino-americana. Seus últimos textos, que trabalham a construção do genocídio (para que ele aconteça tem que haver discursos legitimadores), trouxeram uma questão fundamental: utilizando o conceito de técnicas de neutralização, ele pergunta porque historicamente a criminologia não tratou dos genocídios, todos realizados pelos sistemas penais estatais, pelas polícias ou por forças armadas em função de polícia. Com a palavra os sociólogos, psicólogos, antropólogos que ganham a vida governamentalizando o grande encarceramento. Para fechar, o que difere o direito penal mínimo de Ferrajoli versus Baratta e Zaffaroni é a teoria deslegitimante do poder punitivo, empreendida pelos últimos. Eles trabalham o garantismo numa perspectiva política, histórica e por isso muito mais ampla. É Salo de Carvalho que entende o garantismo como uma estratégia abolicionista a partir do conhecimento histórico das funções da pena e do sistema penal. Curiosamente, parte da esquerda, ao tratar do sistema penal, despreza as garantias (como privilégios de classe) mas não descarta a pena. Nilo Batista resplandece como alguém que conheceu e militou um garantismo à brasileira, e com ele homenageia todos os que, na trincheira do direito penal, duelaram com a pena, “esse monstro que só olha para trás”, a partir da realidade do nosso país. Seu livro, que aqui homenageamos, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, é leitura obrigatória também na perspectiva da compreensão do garantismo deslegitimante. Sua parceria intelectual com Zaffaroni, na tradução brasileira do Direito Penal, é um marco no pensamento jurídico do continente. Os criminólogos da nossa margem não vão poder deixar de lê-los. No Brasil núcleo de força, diques de resistência garantista em torno de Salo de Carvalho, Geraldo Prado, Luis Gustavo Grandinetti, Jacinto Nelson Coutinho, Sérgio Salomão Shecaira, Alberto Silva Franco e tantos outros que tentam conter a onda punitiva. Por fim, no espectro das políticas criminais contemporâneas ressurge, fortemente, o abolicionismo, como decorrência também do grande encarceramento. No capítulo de Anitua sobre o abolicionismo ele o aponta como a crítica mais profunda à “racionalização” do poder de punir que só aumenta a violência. Como diz Passetti, a pena ou o castigo não está só no sistema penal, ele é um dispositivo que produz assujeitamentos e verticalizações na pedagogia, na psicologia, na família. É uma lógica instaurada a partir da escolástica e para Louk Hulsman a escolástica é a verdadeira fundadora da lógica penal. A crítica foucaultiana, baseada também em Rusche, propõe uma desconstrução da pena e do sistema penal a partir do desvelamento de suas funções históricas e concretas. Como na “Lei e Ordem” e no Direito Penal Mínimo, não há maniqueísmos. O abolicionismo é amplo, está na deslegitimação mais profunda da pena em diferentes estratégias políticas e jurídicas: no liberalismo, no marxismo, no anarquismo mas também na criminologia crítica e no garantismo. Para Anitua os antecedentes do Abolicionismo vêem numa seqüência histórica desde William Godwin (1756-1836), o primeiro teórico do anarquismo a articular uma crítica às relações entre organização política, contrato social, propriedade privada, Estado e castigo. Depois, a linda figura de Josephine Butler (1828-1906), a dama vitoriana que protegia as prostitutas do higienismo policial do seu tempo. Na tradição anarquista, desde Etienne de la Boétie, passando pela revolução dos iguais, do começo do século XX até hoje, lutouse contra o sistema penal e as prisões. Essa história, no mundo e no Brasil, pode ser conhecida em torno de Edson Passetti e seu Núcleo de Sociabilidade Libertária (NU-SOL) que reúne as memórias e os devires do abolicionismo anarquista na Criminologia. Nos anos sessenta um conjunto de movimentos políticos contra a prisão dirigiu sua militância para os presos e seus familiares: o Krum na Suécia em 1965, o Krim na Dinamarca em 1967, o Krom na Noruega em 1968, o Krak na Alemanha em 1970, a Liga Coohnhert na Holanda em 1971, o RAP (Radical Alternatives to Prison) na Inglaterra dos anos setenta, bem como o PROP (Preservation of the Rights of Prisoners). A Holanda é um centro histórico de pensamento abolicionista, com raízes na pensadora libertária Clara Meijer Wichmann (1895-1922) e em William Bonger (1876-1940), que do ponto de vista marxista relacionava capitalismo e direito. Mas ninguém radicalizou mais a deslegitimação do direito penal no marxismo do que o soviético Pashukanis (1891-1938), cujo pensamento avant la lettre pagou um preço muito alto em tempos difíceis. Na Holanda, Bianchi lutou contra as prisões e a idéia de castigo e Louk Hulsman desconstruiu a definição de delito como utopia negadora da realidade, propondo a idéia de situação problemática como um contraponto ao confisco da vítima. Foi ele o maior de todos os cronópios, o grande arquiteto da política de drogas na Holanda. Em 1983, o abolicionismo entra no 9º Congresso Mundial de Criminologia em Viena e acontece também o 1º Congresso Internacional de Abolicionismo realizado pelos Quakers no Canadá. Seguindo as pegadas de Anitua vale pontuar sobre a obra do marxista norueguês Thomas Mathiesen, fundador do Krom, sociólogo e filósofo, autor de As Políticas da Abolição (1974). Para ele o sistema penal pode sempre piorar e por isso problematiza a militância entre a reforma e a revolução, entre a luta pela extinção do sistema penal e sua melhoria na atualidade. Ele dizia que a estratégia abolicionista era inacabada e discutia com o garantismo e o realismo de direita. Nils Christie é um dos mais importantes autores abolicionistas cujo livro mais conhecido no Brasil é A Indústria do Controle do Crime, de 1983. Crítico do controle, em 1977 escreveu uma obra ligada a sua militância comunitarista (Conflitos como Pertencimento) e, em 1981, lançou Os limites da dor onde se contrapõe á categoria natural de delito. Seu último livro faz uma aguda crítica ao papel da utilização da vítima como dispositivo de expansão do poder punitivo, já que o abolicionismo propõe papel não vitimizável nos conflitos intrahumanos. Na Alemanha, Anitua também cita Heinz Steinert e Sebastian Scheerer, que escreveram contra o que denominaram empresários morais “atípicos”: realistas de esquerda, feministas, ambientalistas e outros. Salo de Carvalho, no livro Diálogos sobre a Justiça Dialogal, faz uma boa resenha das idéias político-criminais dos anos sessenta e setenta que propunham outras instâncias de resolução de conflitos no sentido da contração e da substituição do sistema penal. Mais que uma escola ou um marco, o abolicionismo é um movimento. Zaffaroni faz a seguinte tipologia desse movimento: Foucault estaria na análise estrutural historicista das fundações discursivas; Mathiesen no paradigma marxista-materialista; Christie no modelo fenomenológico-historicista do controle e da dor e Hulsman numa fenomenologia das situações problemáticas na perspectiva da abolição de todos os sistemas formais. Sua presença na América Latina marcou algumas gerações brasileiras. Sua vida, a luta contra o nazismo e contra as opressões, sua militância anti-proibicionista, sua doçura, sua jardinagem e culinária fazem parte da memória viva da história da criminologia. No Brasil, Edson Passetti e o NU-SOL são o grande foco de produção e militância acadêmica abolicionista e Maria Lúcia Karam a mais fina jurista e militante antiproibicionista, contra a violência dos sistemas penais. A doce e impávida figura de Evandro Lins e Silva, nosso eterno Ministro, foi o mais corajoso crítico da instituição prisional. Esse movimento amplo, generoso, libertário e heterogêneo pode limitarse fenomenologicamente se não conseguir produzir uma crítica às funções do poder punitivo no capitalismo. Começamos o curso desses discursos lembrando com Anitua, Zaffaroni e Foucault o confisco do conflito, a Inquisição, a centralização da Igreja e do Estado no processo que se instaurava de acumulação de capital. Quem percorreu esse caminho crítico, fatalmente será um abolicionista. Fica a pergunta de Salo de Carvalho: é possível, nos tempos do grande encarceramento, ter o abolicionismo como meta e o garantismo como estratégia?