O mal secreto da mpb

Transcrição

O mal secreto da mpb
ROMULO FRÓES
www.romulofroes.com.br
__________________________________________________________________________
JARDS MACALÉ_
"O mal secreto da MPB"
O ano de 1972 é especial para a música brasileira. Alguns dos discos lançados naquele ano,
não só se destacam na carreira dos artistas que os lançaram, como se tornaram
fundamentais para a construção da história da música popular brasileira. A lista impressiona:
Expresso 2222 de Gilberto Gil, Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges, A Dança
da Solidão de Paulinho da Viola, Acabou Chorare dos Novos Baianos, pra ficar em alguns.
Outro grande disco de 1972 é relançado agora em seu formato original pela Polysom, dentro
da coleção "Clássicos Em Vinil". Trata-se de Jards Macalé, o primeiro disco, homônimo, de
Jards Macalé.
Macalé, que dois anos antes, em 1970, havia lançado o compacto Só Morto (Burning Night),
estava no centro das mais importantes experimentações artísticas daquele período. É dele a
direção musical de um dos discos mais importantes de Gal Costa, Legal, lançado em 1970.
Gal, que um ano mais tarde voltaria a gravá-lo no antológico Fa-Tal - Gal a Todo Vapor, disco
que acabaria por imortalizar Vapor Barato (Jards Macalé / Waly Salomão), o maior sucesso
de toda a carreira do compositor. Mas principalmente, neste mesmo ano de 1972, Macalé
assina a direção musical daquele que para muitos é o melhor disco de Caetano Veloso, o
álbum Transa. Pode-se dizer que Transa e Jards Macalé, foram os primeiros trabalhos que
chegaram mais próximos de algo que podemos identificar como sendo um rock brasileiro. É
claro que a Tropicália e antes a Jovem Guarda, haviam se apropriado do ritmo, mas nestes
discos a influência do rock vai além de sua apropriação. Eles transformam o rock em música
brasileira. Macalé é fundamental nessa transformação.
Antes de mais nada, é preciso dizer que Jards Macalé é um disco de banda. Um estranho e
poderoso powertrio, formado por Tuti Moreno (bateria), Lanny Gordin (baixo e violão de aço) e
Jards Macalé (violão). Logo na faixa de abertura do disco o som do trio se impõe. Farinha do
Desprezo (Jards Macalé / Capinam) parte de uma convenção executada pelo baixo e pelos
violões, mas só parcialmente acompanhada pela bateria, provocando uma tensão rítmica que
faz seu andamento flutuar. A canção se equilibra sobre acidentes rítmicos fazendo estender
sua melodia a fim de manter sua integridade. Estrutura semelhante, mas ainda mais radical,
se repete em Let's Play That (Jards Macalé / Torquato Neto). Ao longo da faixa, a canção é
desconstruída por completo, a ponto de, ao final, não reconhecermos mais sua forma original.
O disco é todo organizado por esse movimento de concentração e dispersão, alternando-se
entre a euforia e a contenção. Um comportamento parecido com Transa. Mas se ali as
mudanças de intenção são comandadas pela letra e pelo sem número de citações
despejadas por Caetano, no disco de Macalé, seu violão é que vai guiar essas oscilações.
Um dos mais originais da música brasileira, ele é ao mesmo tempo, refinado, basta ver suas
harmonias, e tosco, pelo jeito propositalmente desleixado de Macalé tocar. Entre o
virtuosismo de Turíbio Santos, de quem foi aluno, e o som rude do violão beliscado de Nelson
Cavaquinho, influência declarada de Macalé.
Sua imaginação musical incomum é responsável também por um capítulo importante no que
se refere a letra de canção no Brasil. No momento em que a motivação para compor se
resumia sobretudo à discussão ideológica entre a música engajada e a música de mercado,
Macalé e seus parceiros, em especial Capinam, Torquato Neto e Waly Salomão, para além
do sentimento da época, mas sem perdê-lo de vista, produziram uma lírica sem qualquer
adesão, difícil de ser definida. Ao mesmo tempo, inventiva, transgressora, contundente,
pessimista, libertária, irônica, política e porque não dizer, poética. Macalé podia tanto cantar a
violência dos versos de Revendo Amigos (Jards Macalé / Waly Salomão), "(...) se me der na
veneta eu mato, se me der na veneta eu morro e volto pra curtir", quanto o desencanto de
Movimento dos Barcos (Jards Macalé / Capinam), "Tô cansado e você também, vou sair sem
abrir a porta e não voltar nunca mais".
Artista inclassificável, Jards Macalé ocuparia um lugar desconfortável dentro da MPB, então
já estabelecida como gênero. Não convém aqui destacar os motivos que contribuíram para
que isso acontecesse. Este disco relançado agora determinou seu temperamento artístico e o
modo como construiu sua obra musical. Definitivamente, uma das mais importantes e
influentes obras da música popular brasileira. Temos a chance de ouví-lo novamente. Let's
play that!
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, C2+Música, p. D8, 14/07/2012.

Documentos relacionados

Jards Macalé - Theatro São Pedro

Jards Macalé - Theatro São Pedro – com Luiz Melodia, Thais Gulin e Zeca Baleiro de convidados especiais – 30 de abril, Theatro São Pedro Em 2013, os 70 anos de Jards Macalé foram comemorados com um show especial no Circo Voador, R...

Leia mais