tências jurídicas na representação política dos Estados Federados

Transcrição

tências jurídicas na representação política dos Estados Federados
Inconsistências jurídicas na representação política dos Estados
Federados: por uma releitura do constitucionalismo brasileiro à luz do
direito civil e da história.
1. Introdução.
O presente estudo tenciona apontar, na estrutura e na prática constitucional brasileiras,
alguns elementos que parecem, ao autor, inconsistentes com alguns conceitos de direito
comum consolidados em nossa tradição, e também com as circunstâncias históricas que
marcaram sua institucionalização. Trata-se da idéia – pouco estudada – de representação dos
Estados federados, e, por conseguinte, da instituição que alegadamente a realizaria no plano
político, o Senado Federal.
O tema é sensível, mas não pareceria alheio a uma assembléia de representantes dos
Estados federados. Embora restrita a representação dos aqui congressistas à esfera judicial,
sobre ela não pairam dúvidas. Já a outra, de pretensões abrangentes e até universais
(Constituição Federal, art. 65 c/c. 48), só subsiste por força não de mera tradição, mas de
inércia mesmo, aí se incluindo a daqueles agentes incluídos de subsidiar os chefes dos
executivos estaduais com elementos jurídicos adequados para que possam – eles, sim – levar a
cabo essa incumbência de representação política dos seus estados sem dissipar enormes
montas de capital político e orçamentário com integrantes de uma instituição dotada de um
talvez impróprio poder de veto sobre qualquer matéria passível de tratamento legislativo no
país.
A inserção conceitual das questões adiante tratadas se dá no âmbito do direito
constitucional, por suposto, mas não como um conjunto de reflexões meta-jurídicas para
fundamentar propostas de lege ferenda, e, sim, como elementos para uma hermenêutica
1
constitucional que traga à luz a precariedade de alguns fundamentos de dispositivos em vigor
que, por isso mesmo, haveriam de merecer temperamentos quando de sua aplicação prática,
mesmo não contenciosa, e, no limite, incitar o Supremo Tribunal a reconhecer a falibilidade
de um hipostasiado legislador constituinte que, conquanto possa muito, não poderia solapar
conceitos jurídicos multisseculares e muito menos a história vivida da Nação.
É sintomático da inércia referida que a primeira proclamação do governo provisório
inaugurado em 15 de novembro de 1889, antes mesmo de qualquer ato formalmente
legislativo, ao “decretar a extinção do sistema monárquico representativo” estatuiu:
“Fica, porém, abolida, desde já, a vitaliciedade do Senado, e bem assim abolido
o Conselho de Estado. Fica dissolvida a Câmara dos Deputados” (in Bonavides
& Andrade, 2008).
Para o argumento aqui encetado, releva notar o tratamento diferente prestado às casas
legislativas, nominalismos à parte. Fato é que o império ali ruíra; o senado, não. Na mesma
data, o decreto nº 1 do governo provisório, além de instituir a forma republicana de governo,
instituiu então – e só então – a federação, transformando as províncias existentes em estados e
acenando-lhes com “legítima soberania” e “governos locais” (art. 3º). A influência norteamericana no formato proposto, evidente até na terminologia adotada, já permitia o vislumbre
de uma nova ratio essendi para o senado, a representação das províncias neo-federadas, tal
qual naquele país se fizera. Talvez tenha sido justamente a federação a circunstância a
impedir a ruína também do senado.
A transição normativa de uma ordem constitucional à outra é tão curiosa quanto
desconhecida. A partir de 15.11., o poder de facto do novo regime pôs-se a legislar por
decreto sobre as matérias que lhe demandavam providências imediatas.
Vários desses
decretos tiveram induvidosa natureza constitucional, destacando-se o de nº 1, que instituiu a
própria república, a federação e transformou as províncias do império em estados, o de nº 6,
de 19.11, que instituiu o sufrágio universal, o de nº 29, de 3.12.1889, que designou uma
2
comissão para elaborar um anteprojeto de constituição a ser apreciado por uma futura
assembléia constituinte; o de nº 78-B, que a convocou, e o 510, de 22.6.1890, que apresentou
um projeto de constituição provisória, e o 511, de 23.6., que veiculou o regulamento das
futuras eleições constituintes.
O então ministro da Justiça, Rui Barbosa, com alguma participação do ministério,
reviu o anteprojeto da chamada “comissão dos cinco”, instituída pelo decreto nº 29, de três de
dezembro de 1889, e o transformou num substitutivo veiculado num decreto, o de nº 510, de
22 de junho, para entrar em vigor imediatamente e ser apreciado pela Assembléia Constituinte
então igualmente convocada, a se instalar em 15 de novembro de 1890.
Em verdade, a primeira constituição republicana, tanto quanto o fora a imperial, foi
outorgada, baixada pelo decreto referido e alterada por outro, o de nº 914, de 23.10.1889.
Sobre sua apreciação pela constituinte, assim se manifestou Arinos (apud Bonavides et al.
2008:233):
“As alterações sofridas pelo projeto do Governo Provisório na Assembléia Constituinte foram
relativamente irrelevantes, e, seguramente, em escasso número. Pedro Calmon observa que,
comparados os dois textos, verifica-se que 74 artigos do projeto se incluem intactos ou apenas
ligeiramente alterados‟ nos 90 artigos da Constituição aprovada”.
A constituição promulgada adotou expressamente como forma de governo a
“República Federativa sob o regime representativo” (art. 1º); manteve as duas casas com
idêntico processo eleitoral para cada qual (art. 30), idênticos subsídios para seus integrantes
(art. 22) e idênticas prerrogativas legiferantes (art. 37 e 39), inclusive na possibilidade
compartilhada de derrubada de emendas da casa revisora pela maioria qualificada (2/3) dos
integrantes da casa iniciadora da proposta.
As diferenças concerniam aos requisitos de
investidura (idade mínima de 35 anos, cidadania anterior por seis anos), à duração do mandato
(três anos para deputados, nove para senadores) e à paridade na representação por estado.
3
A influência norte-americana, ademais, foi textualmente reconhecida no último
discurso do presidente da Constituinte e futuro Presidente da República, Prudente de Moraes,
assim:
“(...) o Brasil, de hoje em diante, tem uma Constituição livre e democrática, com o regime da mais
larga federação, única capaz de mantê-la [ao Brasil] unida, de fazer com que possa desenvolver-se,
prosperar e corresponder na América do Sul ao seu modelo na América do Norte” (Anais da
Constituinte, apud Bonavides et al. 2005:233).
Todo esse registro permite afirmar-se que a república neonata assumidamente
transplantara ao sul as instituições florescidas ao norte do hemisfério, mas não poderia ter
trazido a história subjacente a cada qual1. O senado imperial, nascido abertamente nãodemocrático, não-federal e elitista na pior acepção do termo2, encontrava nessa transplantação
um alento novo que não só o salvou da extinção imposta a seus parceiros do poder moderador
(a própria Coroa e o Conselho de Estado), mas também lhe permitiu um fortalecimento que o
trouxe ao segundo século da experiência republicana como uma das mais poderosas segundas
câmaras do mundo atual (Lemos 2008:13).
A primeira constituinte e a primeira constituição republicana oficializaram, no debate
político brasileiro, os temas da representação/representatividade e da democracia, mas o tema
mais polêmico do processo constituinte, segundo Bonavides, foi mesmo a questão federativa,
à qual desde então se ligou, também no Brasil, a forma legislativa bicameral. A federação ali
1
Patterson & Mughan assim relatam a experiência norte-americana:
“In the Connecticut Compromise, convention delegates agreed on a Congress in which the lower house would be
popularly elected (limited to white male suffrage), its membership allocated to the states in accord with their
census population, and in which an upper house, the Senate, would be based on equality of state representation,
with two senators selected by each state legislature.
This “federal solution” was little discussed by the founders beyond acknowledging their belief that this would
resolve worries about the relative advantage of large as opposed to small states in the new constitutional system.
At the time of the founding, the Compromise was essential to resolve the fear of the representatives of small
states like Delaware or Connecticut that their states would be dominated by large states like New York or
Virginia, a fear placated by giving each state two senators regardless of differences in population (…).
Conceived as a federal house, the Senate largely ceased to be so after the Civil War of the 1860s, and Lord Bryce
noted at the end of the nineteenth century that there never had been “any division of interests or consequent
contests between the great States and the small ones‟ after the implementation of the new federal constitution
(…)”.
2
Acepção “altimétrica”, por oposição a um critério de mérito (cf. Sartori 1987:142).
4
instituída viu a luz sob violentos protestos, num contexto em que o primeiro presidente se viu
obrigado a renunciar ao mandato, e o segundo, a um governo manu militari. Nos estados,
politicamente fortalecidos naquele contexto, as oligarquias não demonstravam a mesma
preocupação com representatividade de seus governos, ou legitimidade de sua investidura, ou
mesmo a liberdade de seus governados. E também por isso a nova Carta acabou por fracassar
na organização da convivência política no país.
Seguiram-se várias outras, que aqui não
caberá historiar, e alguns períodos de ditadura explícita, o último dos quais encerrado com a
promulgação da Carta atual, igualmente instável em seus 20 anos de vigência e mais de 60
emendas. O que cabe ressaltar, para o objeto do presente, é o formato atual assumido pelo
Senado, afinal fundamentalmente o mesmo de sua primeira versão republicana, que por sua
vez preservara traços de seu original imperial.
Uma leitura dos constitucionalistas contemporâneos corresponde à literal leitura da
Constituição federal. Para ela, o Senado “compõe-se de representantes dos Estados e do
Distrito Federal” (art. 46), enquanto “a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes
do povo” (art. 45). Trata-se, aí, de um lugar comum da engenharia institucional importada do
norte, que acabou por ser formalmente fixado no texto constitucional. Em seu comentário
declaradamente “despretensioso”, Michel Temer, depois de perguntar se existe alguma
relação entre a forma de Estado e a estrutura do Poder Legislativo no Brasil, afirma:
“O bicameralismo, no particular, atende à forma de Estado federal positivada pelo constituinte. É
que são duas as Casas legislativas componentes do Congresso Nacional(...).
Assim, tanto o povo brasileiro quanto as unidades da Federação (Estados) têm representação no
órgão Legislativo. (...)
Uma das notas características da Federação é a participação da vontade dos Estados na formação
da vontade nacional. Como ambas as Casas cuidam da elaboração da lei nacional, os Estados
participam de sua formação por meio da representação no Senado Federal.
Daí a relação entre nosso bicameralismo e a Federação. Por isso, é chamado de bicameralismo do
tipo federativo. Com isto se o distingue de outros sistemas bicamerais como o aristocrático,
encontrável na Inglaterra, onde uma das Casas representa a nobreza (Câmara dos Lordes) e a outra,
os comuns (Câmara dos Comuns)” (sic, Temer 1995:5 e 125).
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Mas no próprio meio jurídico há autores que não compram a Constituição por seu
valor de face. José Afonso da Silva (1998:510) se manifesta nos seguintes termos:
“O argumento da representação dos Estados pelo Senado se fundamentava na idéia, inicialmente
implantada nos EUA, de que se formava de delegados próprios de cada Estado, pelos quais estes
participavam das decisões federais. Há muito que isso não existe nos EUA, e jamais existiu no
Brasil, porque os Senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os Deputados, por via de
partidos políticos. Ora, a representação é partidária. Os Senadores integram a representação dos
partidos tanto quanto os deputados, e dá-se o caso, não raro de os Senadores de um Estado, eleitos
pelo povo, serem de partido adversário do Governador, portanto defenderem, no Senado, programa
diverso deste; e como conciliar a tese da representação do Estado com situações como esta?
Essa questão se está na raiz da problemática exposta no presente trabalho, e é para a
busca de possíveis respostas que a análise exposta a seguir se dirige. Sua importância avulta
no estabelecimento dos parâmetros da institucionalização da democracia no país,
induvidosamente pretendida pela Carta atual3, já que mais e mais difícil, senão impossível, se
torna a prática democrática dissociada da representação imposta pela própria demografia de
cada polis. Vale aqui outra consideração de Plotke (1997:32), assim formulada:
“A política democrática é constituída parcialmente pela representação. A representação é
construtiva, produtora de conhecimento, da capacidade de se compartilhar insights, e a habilidade
para se conseguir acordos difíceis. Ela acarreta a capacidade de se reconhecer relações sociais para
que se possa considerar sua mudança. Também ajuda a constituir as instituições democráticas;
requer procedimentos para a tomada de decisões e mecanismos de sustentabilidade dessas decisões
ao longo do tempo”.
2. A Federação e a territorialidade como fundamentos da representação do atual
Senado brasileiro.
2.1. Breves elementos teóricos sobre os conceitos de federação e federalismo.
3
Eg., art. 1º, caput e parágrafo único [princípios fundamentais, entre os quais a democracia], 14 [soberania
popular], 17 [regime dos partidos políticos], 37 [princípios da administração pública], 60, parágrafo 4º [cláusulas
„pétreas‟], dentre outros.
6
Há uma correlação bastante forte entre a estrutura cameral dos legislativos e a
dimensão unitário-federativa dos regimes políticos (Lijphart 1999:203). A atual Constituição
adotou o entendimento consagrado na literatura: “a base mais comum sobre a qual os senados
têm sido constitucionalmente ungidos é a instituição de representação territorial” 4 (Patterson
& Mugham 1999:10). Em tese, ao menos (Sartori 1994:204), a adoção do bicameralismo
legislativo tenderia a reforçar o federalismo a ele associado, não por acaso o tema mais
candente da constituinte que fundou a república, e cláusula pétrea na vigente constituição (art.
60, § 4º, I).
“O maior clássico político da teoria política americana tem por título „O Federalista‟.
(...) A mais profunda crise da história americana foi, em grande medida, uma crise do
federalismo”.
“O Federalismo jamais foi tão crucial para o estudo da democracia e da política
comparada. A maioria das pessoas que (atualmente) vivem em democracias já consolidadas
ao longo do tempo o faz em regimes federais”.
“Os sistemas federais podem ser vistos como experimentos históricos de
compartilhamento de responsabilidades políticas e como modelos operacionais para uma nova
ordem global”. Ademais, “se o federalismo esteve ameaçado num mundo de construções de
nacionalidades e estados nacionais soberanos de meados do século XX, ele provavelmente
prosperará num século XXI de complexa interdependência, múltiplas vinculações de
cidadania, jurisdições interdependentes e imbricadas, e multiplicidade também de produção
legislativa e implementação de políticas”.
As duas primeiras observações são de Sheldon Wolin na apresentação da obra de
Riker (1964: VII); as intermediárias, de Stepan, na introdução de seu artigo sobre o tema
(2001:315); as últimas, de Imbeau, citado por Galligan (2006:261), e desse próprio. Não
obstante, são vários os autores, além dos referidos, que lamentam a pouca importância que o
tema tem merecido na literatura política, inclusive no tocante a suas interações com as
instituições democráticas.
4
“The most common basis upon which senates have been constitutionally anointed is to provide territorial
representation”.
7
Um bom conceito de federalismo é dado por Dahl, citado por Stepan (op. cit., p. 318):
“um sistema no qual alguns assuntos encontram-se exclusivamente dentro da competência de
certas unidades locais – cantões, estados, províncias – e estão constitucionalmente além do âmbito
da autoridade do governo nacional; e onde outras tantas matérias estão constitucionalmente além
do âmbito da autoridade das unidades menores”.
Segundo Riker (op. cit., p. 5), as instituições essenciais do federalismo são o governo
da federação e aqueles das unidades membros, com jurisdição sobre o mesmo território e
pessoas e com autoridade para tomar decisões independentes do outro, num grau de
independência variado.
A origem e propósito do federalismo são vistos por Riker como uma negociação entre
possíveis futuros líderes nacionais e os titulares dos governos integrantes com vistas à
agregação de território, uma melhor imposição de tributos, e a organização de exércitos.
Com efeito, essa seria a síntese do processo de formação da federação americana, que
correspondeu à sucessão de um assim chamado “federalismo periférico”, semelhante aos
casos antecedentes da história da humanidade e cristalizado nos “Articles of Confederation”,
pelo federalismo centralizado veiculado na Constituição (a se lembrar que o advento dessa
ocorreu apenas em 1787, alguns anos após a independência). Stepan vê aí apenas um
primeiro – não o único – tipo ideal de federação, que ele denomina de “federação para
prosseguir junto” (“coming together federation”).
A esse ele acrescenta
um tipo que
denomina “federação para manter-se junto” (“holding together federation”), e ainda um
terceiro tipo, para “colocar junto” (“putting together federation”).
Para o segundo caso, oferece como exemplos os casos da Índia, em 1948; da Bélgica,
em 1969 e da Espanha, em 1975, todos regimes unitários que entenderam de restituir poder a
instâncias sub-nacionais e transformar em federações anteriores unidades políticas ameaçadas.
É também neste tipo ideal que melhor se subsume o caso brasileiro.
O terceiro tipo ideal proposto por Stepan concerne à formação involuntária de
federações, exemplificado no caso da União Soviética, à qual várias unidades foram reunidas
manu militari entre as duas guerras mundiais. Nesse caso, avulta a questão aqui considerada
8
de se harmonizar federação e democracia, entendendo não poucos que a primeira seria
inconcebível num contexto não-democrático.
Riker percebe também no federalismo uma forma eficiente de expansão territorial, já
que novas unidades constituintes podem ser trazidas para a federação sem se privar de
identidade territorial, tampouco dos empregos de seus governantes.
2.2. O território brasileiro e suas divisões.
Como cediço, a Constituição Federal estabelece que o Senado “compõe-se de
representantes dos Estados e do Distrito Federal” (art. 46). A despeito do caráter imperativo
da disposição, e de seu livre curso nas comunidades jurídica, política e até acadêmica, tratarse-á aqui de ecoar as ressalvas - excepcionais - como o citado Silva (1998:510), e verificar a
pertinência daquela colocação. Seu paralelismo com a associação Câmara/povo (art. 45), e sua
remissão a uma experiência histórica de patente influência (a dos EUA) têm sido suficientes
para fragilizar, ou mesmo infirmar essas ressalvas, ao longo de toda a experiência
republicana5.
Embora o exame da história dessa idéia esteja ainda por ser feito, caberia registrar que
a redação atual do dispositivo repete a da Constituição de 1946 (art. 60), não tendo constado
das anteriores. Aliás, a primeira delas no período republicano estabeleceu singelamente que
“O Senado compõe-se de (...) de três Senadores por Estado e três pelo Distrito Federal, eleitos
pelo mesmo modo por que o forem os Deputados” (art. 30).
Antes, em seu art. 28,
estabeleceu que “[a] Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo eleitos
pelos Estados e pelo Distrito Federal (...)”. A redação, imprópria, sugere que os Estados
seriam os mandantes da representação – impropriedade que se pretendeu adensar
posteriormente fazendo-os (aos Estados) mandantes, sim, da representação no Senado. Ora,
esse adensamento conceitual dos dispositivos posteriores é apenas aparente; ao contrário,
5
Para além do questionamento da mera pertinência ou mesmo veracidade do dispositivo constitucional sobre o
Senado, a questão que se coloca para o leitor atento é se faz sentido, tanto tempo depois de 1787, representar-se
aos estados federados nas democracias federais.
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contribuiu para turvar uma realidade que, bem examinada, deles se distancia, como se
pretende demonstrar.
Em verdade, uma mera circunscrição eleitoral, em tudo semelhante àquela por onde se
elegem os deputados, foi tomada por algo de dimensão maior que essa, com vistas a se criar
uma ratio legis que aos constituintes do Império parecera desnecessária. Busque-se clarear o
ponto com um exame do que os Senadores alegadamente representam, ou representariam – os
estados membros da federação.
O Estado-federado, numa primeira abordagem – jurídica – é uma pessoa jurídica de
direito público interno (Código Civil, art. 41, repetição do art. 14 do código anterior, de
1916). Enquanto pessoa jurídica, corresponde a uma ficção igualmente jurídica – a atribuição
de personalidade jurídica, a capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações, a uma entidade
qualquer, em geral material (uma organização, p. ex.), às vezes imaterial.
A referência
material, no caso de um estado federado, é o território. Mas aí, a política dita territorial não
pode se limitar à descrição decorrente de textos legais e dos diversos níveis em que a
jurisdição territorial é formalizada – o local, o regional, o nacional e o supranacional (Thoenig
2008:282).
Na mesma passagem, lê-se:
“O senso comum define o território como um fator geográfico. (...) Mas características físicas não
abarcam o sentido integral de território como elemento fundante da política, da formulação de
políticas e da unidade política.
(...) O território está associado aos limites espaciais dentro dos
quais uma instituição governamental tem autoridade e legitimidade...”.
Em seu momento fundacional, o Estado brasileiro se constitui sobre uma base
territorial reconhecida, anteriormente submetida na íntegra à jurisdição portuguesa, sem
registro de outras justaposições ou associações territoriais, e sem registro, tampouco, de
subdivisão em jurisdições menores e autônomas. Há, de fato, províncias, e até administrações
provinciais, porém sem qualquer autonomia política em relação ao governo central, primeiro
de Lisboa, depois do Rio de Janeiro. Houvera, em certo período da colonização, os estados do
Brasil e do Maranhão, e depois Grão Pará, separadamente submetidos ao império
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metropolitano, e depois reunificados sob Pombal. Mas há também, como de resto lembrado
por Riker (1964:43) elites locais (“ruling classes”) aspirando a nacos maiores de poder.
Carvalho (1993:54) resume em três pontos a herança colonial no tocante à organização
político-administrativa:
“a) um poder metropolitano débil, incapaz de exercer uma administração centralizada e que por
isso recorria à cooperação do poder privado e à descentralização política e administrativa;
b) um poder privado forte, mas oligárquico, centrado principalmente na grande propriedade
fundiária e na possessão de escravos;
c) uma colônia que era um conjunto de capitanias debilmente unidas entre si, para as quais o
poder do vice-rei era apenas nominal”.
Ao retorno de D. João VI (1821), juntas de governo eleitas em várias províncias
preferiram manifestar fidelidade a Portugal e suas Cortes6. No mesmo sentido, quando da
dissolução da constituinte imperial, as províncias do Nordeste se sublevaram na Confederação
do Equador; já sob a Regência, o Rio Grande proclamaria sua República Farroupilha.
Houve, portanto, reclamos autonomistas e até separatistas, porém dirigidos mais contra o
absolutismo e a centralização – “irmãos gêmeos”, segundo Carvalho (1993:59) – do que
contra algum novo estrangeiro opressor de um povo em busca de soberania. Mais ainda:
“a solução monárquica (...) foi uma opção consciente da elite brasileira da época, (...) que buscava
a unidade do país através da monarquia constitucional (...) a que não faltou apoio popular (...) e
que se acreditava a única maneira de se evitar a fragmentação do país e as guerras que assolavam
os vizinhos” (Carvalho 1993:57).
Num quadro assim, querer-se dar às províncias autonomia, vida própria, soberania ou
mesmo pré-existência em relação ao que veio posteriormente a ser a União Federal, como
fizeram e fazem ainda hoje os porta-vozes dos localismos, parece uma extrapolação
inconsistente com a evidência histórica. De resto, o senado nem nasceu federal, tampouco
como câmara de representação das províncias, que, repita-se, não eram a pátria pernambucana
de Frei Caneca ou a república ouro-pretana dos inconfidentes mineiros.
6
O Pe. Feijó, eleito às Cortes, ali chegara a afirmar que as províncias eram independentes entre si, e que os
deputados americanos representavam a elas, e não ao Brasil; com o mesmo espírito, os participantes da
conjuração mineira se identificavam com a província de Minas Gerais, não como brasileiros (cf. Carvalho,
1993:58).
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Ao longo do Império, predominaram a centralização política, administrativa e até
judicial, com a nomeação dos governos, dos senadores, dos presidentes das províncias e dos
membros da magistratura pelo Imperador, no exercício do Poder Moderador. As demandas
federalistas se embutem na crítica ao centralismo, associado a despotismo monárquico,
enquanto a federação o era à liberdade. A polêmica foi acerba, e pontuou o “Manifesto
Republicano” de 1870.
Carvalho (op. cit., p.75) situa aí a absorção, pela cultura política brasileira, da tradição
federalista norte-americana desenvolvida por Jefferson e descrita por Tocqueville, enfatizando
autonomia e autogoverno, e não a pioneira, de Hamilton e demais “Federalistas”, preocupada
com o fortalecimento do governo central. E registra que o centralismo sempre tendeu ao
despotismo do governo, ao passo que o federalismo, ao do poder privado. Camargo corrobora
essa leitura (1993:308).
Na conversão republicana, as províncias são transformadas em estados federados
(decreto nº 1, já referido) e, tão arbitrariamente quanto, agraciadas com o direito de enviar
uma deputação paritária ao novel Senado da República, agora titular da atribuição de câmara
de um equilíbrio federativo a ser construído. Há semelhanças com o quadro inglês no qual,
segundo Lijphart, “local governments are the creatures of central governments”(1999:17) 7.
Ou mesmo com a Índia recém-independente: datada embora de 1948, a observação do
presidente da comissão elaboradora do anteprojeto de sua nova constituição, calcado numa
realidade social, lingüística e cultural até mais heterogênea que a brasileira, contribui a clarear
o processo de federalização do Brasil, do qual o Senado republicano se pretende decorrência:
“O uso da palavra União é deliberado... O Comitê de Elaboração do Anteprojeto pretendia deixar
claro que, embora a Índia se destinasse a ser uma federação, a Federação não foi o resultado de um
acordo entre Estados para se reunirem em uma Federação, e não sendo a Federação o resultado de
um acordo, nenhum dos Estados teria direito à secessão... Embora possam o país e o povo ser
divididos em diferentes Estados para conveniência de sua administração, o país é um todo integral,
e seu povo, um povo único vivendo sob um império único derivado de uma fonte única” (citado
por Stepan 2001:321, trad. do autor).
7
O léxico inglês, neste caso certamente mais inspirado pela história britânica que norte-americana, cunhou um
termo específico para o processo em questão, „devolution‟, que, segundo o dicionário Webster‟s New Collegiate
(1973:312), significa “the surrender of powers to local authorities by a central government”.
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Causa uma certa perplexidade, nesse momento,
essa necessidade de se atribuir
representação a algo (os próprios estados) criado simultaneamente, sem uma identidade
anterior, sem quaisquer vínculos de lealdade ou obediência („allegiance‟, na terminologia
anglo-saxã) com sua população, com reduzida, em alguns casos talvez nenhuma,
organicidade, enfim. Essa perplexidade aumenta em se considerando que as populações
afetadas já tinham representação na Câmara de Deputados – igualmente questionada ao longo
do período anterior e nem por isso melhorada – e que essa nova representação era proposta
em quantitativos idênticos para unidades extremamente díspares.
É evidente (e
historicamente confirmado pelos próprios personagens de maior relevo à época, como Rui
Barbosa, cf. Bonavides & Andrade 2008:227, e Prudente de Moraes, citado anteriormente,
mesma fonte, p.233) que se importou o formato institucional norte-americano, porém sem se
atentar para as peculiaridades do compromisso histórico em que ele fora engendrado, a
convenção de Filadélfia, que buscou harmonizar conflitos latentes entre unidades políticas
autônomas e anteriores à fundação daquele país, além de esconjurar o risco militar
permanente (já igualmente inexistente quando da fundação da república brasileira)
representado pela Inglaterra. O que era um exemplo de federalismo com representação
bicameral passou a ser o exemplo, o modelo, e, literalmente depois de 1946, a norma.
Na fundação da República, e posteriormente, o território já não era um fator
determinante de clivagens sociais e políticas, ainda que até pudesse sê-lo no que se refere aos
interesses políticos mais imediatos. Não obstante, foi-lhe atribuída “identidade social e
política própria (...) em adição ou em substituição às verdadeiras identidades sociais” (Lima
Jr. 1999:119). Instituições fundadas em premissas assim não teriam como escapar à marca do
artificialismo, da arbitrariedade mesma, como parece ter sido o caso dos estados-membros
que resultaram das anteriores províncias imperiais, muito distantes do modelo de estados
anteriormente confederados que, diante de novos desafios a sua sobrevivência, inclusive
militares (cf. Riker 1964: 11, 13, 32, 41) decidem se federar. Afinal,
“o espaço e sua administração são definidos e redefinidos não apenas por juristas e gestores, mas
também pelos conflitos sociais e por cambiantes identidades e solidariedades. (...) No final do
século XIX, (...) localismos diferenciados [se viram] fundidos num sistema nacional unificado.
Identidades e raízes territoriais seriam substituídas por clivagens funcionais e econômicas”
(Thoenig, op. et loc. cit.).
13
Em outras palavras, modelos de federalização, ou trajetórias de federalização, há, e
houve, vários. Mas o que historicamente justificou a paridade na representação do Senado e
sua simetria de prerrogativas com a Câmara foi o norte-americano, e, desse, o caso brasileiro
é, definitivamente, distinto.
A referida institucionalização da república federativa “por decreto” seria até risível,
não fosse pelas características que Lima Jr. (1997:117) assim descreveu:
“A política da República Velha parece revelar uma faceta extremamente perversa do federalismo
então implantado: de um lado, as reiteradas tentativas da União de sobrepor-se aos estados, na
tentativa de submetê-los; de outro, o esforço permanente dos estados em dominar politicamente a
União, o que implicava, no jogo do poder, a sistemática exclusão da maioria dos estados da
partilha que se fazia do governo da União”.
A Revolução de 1930 ensejou a implantação de um regime que, conquanto tivesse
pretensões unitárias e houvesse conseguido “domesticar” o regionalismo mais “arrogante e
rebelde”, notadamente o originado em S. Paulo, nunca eliminou por completo certo
“ritualismo federativo”, ou “a política dos governadores como principal locus de negociação
política junto ao governo federal” (Camargo in Carmagnani, 1993:307, 308 e 323).
Nessa perspectiva, após o interlúdio democrático-liberal de 1946, o regime de 1964 se
apresenta como uma recidiva da tendência centralizadora do regime de 30.
2.3. A representação dos estados federados no Brasil
O maior problema da federação brasileira, e da estrutura parlamentar de representação
com ela relacionada – bicameral – não se encontra na criação propriamente dita de estados
federados sobre parcelamentos heterogêneos de um já unificado território nacional, por mais
ficcionais, em sentido jurídico e não-jurídico possam vir a ser tais construções. A primeira
constituição republicana elevou a estados as „antigas Províncias‟ (sic, arts. 1º e 2º), mas
mesmo sob um critério tão questionável, tais ficções não seriam ilegítimas, longe disso até:
são um instrumento usual que a ordem jurídica confere a agentes públicos e privados para o
equacionamento de soluções para problemas da coexistência humana (naquele momento, a
14
predominância na comunidade política de um entendimento acerca da necessidade de se
descentralizar a estrutura estatal herdada do extinto Império).
Não obstante, é sempre
conveniente um conteúdo material, de realidade mesma, atual ou ao menos potencial para que
a ficção inicial se desenvolva e consolide.
Para a abordagem aqui considerada, o maior problema está na representação mesma
das entidades às quais a polis nacional atribuiu existência autônoma, jurídica e principalmente
política. Ou que, no dizer de Lima Jr. (1997:118): foram “constituídos como atores do jogo
político”. A crucialidade do ponto já fora implicitamente percebida pelos juristas e
legisladores do já lembrado Código Civil (arts. 46, II do Código de 2002 e 19, II, do Código
de 1916) ao estabelecer como requisito do registro – ato instituidor da pessoa jurídica de
direito privado – a declaração do “modo por que se administra e representa” aquela. Entendase a norma, conquanto dirigida a instituições privadas, como um princípio aplicável também
às pessoas jurídicas de direito público (como os estados federados), instituídos por lei, ou pela
própria Constituição, na qual não deve faltar aquela declaração. Afinal, é um outro princípio
disseminado na tradição jurídica ocidental o de que aonde há a mesma razão jurídica, também
haver a mesma disposição legal.
Essa ratio é a percepção, haurida na vida, intuitiva mesma, de que a indefinição sobre
a administração/representação de uma pessoa jurídica (uma entidade social) a inviabiliza, na
acepção obstétrica do verbo: a impede de nascer, ou a impede de sobreviver. Pela mesma
lógica, Plotke (1997:30) aponta que eventual contradição entre o agir e o representar-se nas
relações de representação (principal/agent) as desnatura, e por serem elas constitutivas da
democracia, faz com que essa não se configure. Cite-se:
“A representação ajuda a constituir capacidades e práticas democráticas. Nas relações
mandante/mandatário (“principal/agent”) num contexto de mercado, não se presume uma oposição
entre o agir e o representar-se.
Ao contrário, presume-se que o mandante (“principal”) é,
simultaneamente, ativo e representado. Ambas as noções de representação, a política e a do
mercado, presumem a capacidade de agir do mandante”.
Ainda no campo jurídico, é da tradição republicana brasileira, aliás, de qualquer
regime presidencialista, a atribuição ao Presidente da República da competência privativa de
“exercer (...) a direção superior da administração federal” (art. 84, II, da CF/1988, com
15
equivalentes nos arts. 41 e 48 da CF/1891). Também da tradição republicana, a autonomia
dos entes federativos “observados os princípios desta Constituição” (arts. 18 e 25, CF/1988, e
63, CF/1891). Os estados membros (e municípios) não têm muito como escapar ao princípio
da simetria constitucional, donde a constatação inafastável de que se alguém tiver de
representá-los, será o respectivo chefe do poder executivo – como na União Federal – ou
alguém por aquele investido. Ou seja, o mandante de um estado federado é seu governador.
Dizer-se, como literalmente o faz a Constituição Federal, que o Senado “compõe-se de
representantes dos Estados e do Distrito Federal” (art. 46), ou, inversamente formulado, que
os senadores representam aos Estados e ao Distrito Federal, é uma impropriedade jurídica à
luz do direito comum.
Mas não só. É também uma impropriedade à luz das quatro acepções que o termo
representação encontra na teoria política, segundo Grifiths, citado por Lima Jr. (1997:56).
Um senador brasileiro não realiza uma representação (1) descritiva, isomórfica, do estado
pelo qual se elege; nem (2) simbólica, ausente, muitas vezes, a identidade de pontos de vista
com seu „representado‟; nem sempre desempenha uma (3) ação em defesa dos interesses
desse, nem, por fim, configura, para esse, um (4) sentido atributivo, que submete o
representado a suas decisões. Backes (2008:72) chega a afirmar, com pertinência, que “as
definições constitucionais do Senado não são diretamente associadas à questão federativa –
apenas sua composição é que é”.
A rigor, não seria passível de registro, portanto de criação legal, uma pessoa jurídica
que tivesse uma administração totalmente desvinculada de sua representação. E se porventura
obtivesse tal registro, certamente fadada ao insucesso seria, com as incômodas conseqüências
que essa situação ambígua acarretaria, na forma de passivos jurídicos, econômicos e até
políticos, a serem distribuídos socialmente. A invocação reiterada do direito comum impõe a
conclusão, já vislumbrada por entre as aberrações da dinâmica política brasileira, de que a
senatoria atual definitivamente não representa os estados federados, em que pese a importada
dicção constitucional em contrário, e o lugar comum que a originou, ou que dela decorreu.
As vicissitudes do paradigma norte-americano reforçam a hipótese acima levantada.
Sinclair (1999:34) observa que a expectativa dos pequenos estados pioneiros naquela
federação era de que o Senado fosse uma “assembléia de embaixadores”, paritária de forma a
prevenir a eventual tirania dos estados maiores (Riker 1964:88). O “Federalista”, espelho do
16
Zeitgeist dos “pais fundadores”, em seu nº 62 (Hamilton et alii 1952/1978:189), defendeu a
indicação dos senadores pelas assembléias legislativas estaduais sob os argumentos de uma
melhor seleção dos nomeados e, mais relevante aqui, “de atribuição aos governos estaduais da
condição de agentes na formação do governo federal, de modo a assegurar a autoridade
daqueles e poder formar um liame conveniente entre as duas esferas”8.
Contudo, o prestígio e força do Senado [em seus primórdios] eram menores que os da
Câmara, pois seu papel não estava claro, e as assembléias estaduais que elegiam os senadores
não dispunham de mecanismos ou prerrogativas para cobrar-lhes acatamento a diretivas que
eventualmente lhes eram assinadas (Sinclair 1999: 34-35).
As campanhas senatoriais,
especialmente após a Guerra Civil, “emanciparam (sic) a maioria dos senadores de sua
dependência em relação aos estados (assembléias estaduais que os elegiam) e romperam
quaisquer canais ainda remanescentes para conduzir decisões nacionais de volta aos estados.
A emenda nº 17 [ratificada pelos estados em 1913, objetivando a eleição direta dos senadores]
simplesmente formalizou a ruptura que já havia ocorrido” (Riker 1964:91). Destaque-se a
idéia de “emancipação” dos senadores, constatada por Riker, e conclua-se com a assertividade
de Sinclair sobre os efeitos daquela emenda:
“Senadores nunca haviam sido agentes (“agents”) de suas assembléias estaduais; agora a
expectativa clara é de que viessem a representar diretamente as populações de seus estados”
(1999:37)9.
Embora esse arquétipo norte-americano tenha se distanciado de sua ratio original,
tanto quanto – aventa-se – o congênere brasileiro (esse até já nascido desvinculado das
assembléias ou governos estaduais), há que se registrar a possibilidade e a efetiva existência,
em outras bases, da representação pretendida (do estado federado). É o caso do Bundesrat
alemão – “verdadeiramente federal”, segundo Patzelt (1999:60).
Ali se reúnem não
representantes do “povo” (id, ib.), mas hierarcas dos 16 estados-membros da república
federal, que atuam referenciados por instruções recebidas de seus governos. Não raro os
próprios primeiros-ministros e outros membros de gabinetes estaduais se apresentam e
8
“(…) giving to the State governments such an agency in the formation of the federal government as must
secure the authority of the former, and may form a convenient link between the two systems”.
9
Com igual assertividade registram Patterson & Mughan (1999:11):
“The Senate simply did not develop as a federal house, a council of states, certainly not in the way in which the
German Bundesrat directly represents the länder” (O Senado simplesmente não se desenvolveu como uma Casa
federal, um conselho de estados, certamente não na maneira pela qual o Bundesrat alemão representa os Länder).
17
participam dos trabalhos de comissões e das votações. Provavelmente não por mero acaso,
registra ainda o mesmo autor que a comunidade política alemã não tem proposto a reforma ou
abolição dessa câmara, diferentemente do que se verifica em outros países de legislativo
bicameral.
A representatividade dos Länder alemães é reforçada pela história de cada qual: a
maioria precedeu a formação do estado-nação; alguns poucos resultaram de rearranjos
territoriais implementados pelas forças de ocupação no após-guerra; cinco foram criados pela
República Democrática Alemã em seu território, em 1990, pouco antes da extinção daquela e
reunificação do país. A crítica intensa do Partido Social Democrático sobre um alegado
déficit democrático por contraste com uma Câmara eleita diretamente não foi suficiente para
fragilizar a legitimidade associada aos próprios governos locais, e a jurisprudência do tribunal
constitucional alemão tem até chancelado a ampliação das atribuições decorrentes dessa
representatividade dos interesses dos estados.
Essa evocação reforça que a representação dos estados – ou, com um rigor caro ao
estereótipo alemão, dos governos dos estados – é passível de adequada institucionalização e
reconhecimento pela prática política, mas por certo não no formato canhestro implantado com
o advento da república no Brasil. Resta verificar, nada obstante, se essa representação seria
realmente uma finalidade da segunda Câmara, ou uma mera justificativa, tópico a que se
retornará à frente.
As eleições de 2010 em Minas Gerais, dentre tantos outros exemplos, de não tão difícil
levantamento empírico, evidenciam o disparate constitucional: o governador do Estado e um
de seus senadores disputaram por partidos contrários a eleição para o cargo de governador no
mandato a se iniciar em 2011. Escancara-se o conflito potencial que o constituinte norteamericano originário (e os legisladores das leis civis, relativamente a instituições privadas, e
os constituintes alemães) vislumbraram e pretenderam evitar com o alinhamento dos agentes a
quem se concedeu poderes de representação. Sendo cada qual titular de mandato, caberia
questionar a quem compete efetivamente a representação, e o argumento jurídico poderia ser
o primeiro a fundar um entendimento a favor do chefe do executivo. O argumento político o
reforçaria: de há muito os parlamentares representam as idéias propaladas por seus partidos,
mais que territórios, populações ou meras circunscrições eleitorais. Emanciparam-se, segundo
o citado Riker, de seu liame com os estados federados, e se inseriram nas malhas partidárias,
18
de resto ainda inexistentes, ao menos em sua configuração contemporânea, quando da
promulgação da constituição americana.
Ao discorrer sobre “competing principals” em 19 polities contemporâneas, Carey
(2007:93) relembra que
“os legislativos nacionais em todos os sistemas democráticos são organizados por partidos, e quase
todos os legisladores são membros de grupos partidários dentro dessas assembléias. (...) Assim,
virtualmente todos os legisladores estão sujeitos à influência de ao menos um mandante
(“principal”): a liderança legislativa de seu partido”.
O autor reúne evidências suficientes para corroborar a hipótese – intuitiva até – de que
a unidade partidária é maior em contextos unitários relativamente a contextos federativos,
onde as lideranças nacionais encontram rivais de alguma envergadura nas lideranças
subnacionais. A configuração dessa hipótese, contudo, não se faz tomando-se as unidades
federadas como „principals‟, mas outras lideranças atuantes nessas sub-unidades, não
necessariamente vinculadas a seu governo.
Cheibub, Figueiredo e Limongi (2009:265), depois de reconhecerem a importância dos
interesses regionais sobre a política nacional, afirmam que “não se pode tomar como um fato
comprovado que o comportamento dos legisladores individuais seja moldado e ditado pelo
poder dos governadores, isto é, que o poder destes prevaleça sobre o dos partidos políticos
nacionais”. Citam Desposato (2004:279), para quem “a maioria dos comportamentos de voto
dos legisladores pode ser explicada por protagonistas nacionais:
presidentes e partidos
políticos nacionais”
É sintomático que a análise desses autores acerca desses determinantes “locais” do
voto “nacional” exclua, a priori, o Senado. Justifica-se: a Câmara é a instância de entrada
das propostas do executivo no Congresso; ali se exacerbariam, pela própria fragmentação dos
partidos, os potenciais conflitos entre Legislativo e Executivo;
o pequeno número de
senadores por estado comprometeria a validade das análises estatísticas (id, p. 268). A
conclusão geral é então reescrita em termos que iluminam bem o ponto aqui desenvolvido: “a
influência do estado sobre o comportamento dos legisladores individuais e sobre as bancadas
estaduais [na Câmara, insista-se] não é mais forte do que a dos partidos políticos nacionais e a
do governo nacional” (p. 269).
19
Ora, toda a análise tenta captar a influência dos governadores estaduais sobre suas
bancadas como um indicativo da influência dos estados, ou de fatores locais/regionais em
contraste com considerações de ordem nacional. A démarche, se válida, e parece sê-lo,
corrobora o entendimento de que (1) o primeiro representante de cada estado é seu
governador; (2) a principal advocacia dos interesses de um estado no Legislativo federal
ocorre com a articulação de deputados em torno das propostas veiculadas por seu governador
e pelo governo que chefia; (3) a representação formalmente atribuída pela Constituição aos
senadores perde muita substância, virtualmente desaparecendo, se esses não são
correligionários de seus governadores.
Sinclair (op.cit., passim) destaca alguns traços do Senado norte-americano hoje em dia
que talvez encontrem paralelo com o brasileiro, se não integralmente consolidados na hora
atual, talvez como uma tendência já percebida e, de toda forma, inegável. O primeiro deles, a
possibilidade já agora tantas vezes verificada de ser uma bancada representante de um
determinado estado composta de senadores de diferentes partidos, tal como ocorre na atual
legislatura relativamente a Minas Gerais. No caso do pluripartidarismo brasileiro, acresça-se
a possibilidade de o governador do estado pertencer a um quarto partido, diferente dos três
que eventualmente detenham os assentos senatoriais, e se ter com isso a absoluta irrelevância
do critério territorial (origem geográfica) para a determinação da ação parlamentar de cada
senador. Ela destaca ainda o elevado custo das campanhas, fazendo com quê os partidos
tenham dificuldades em bloquear o acesso de candidatos financeiramente bem situados a suas
disputas internas por obtenção da indicação partidária. No caso brasileiro, o fenômeno se
manifesta com o engajamento de provedores de fundos como suplentes.
Por fim, há uma certa assimilação da noção de câmara „alta‟ na atitude de alguns
senadores, especialmente aqueles que já tenham ocupado elevados cargos executivos, que
reduz seu acatamento às orientações das lideranças partidárias tanto quanto dos governadores
estaduais, ensejando-lhes um comportamento que aquela autora, no caso norte-americano,
qualificou de individualista (1999:43).
2.4. A paridade da representação senatorial no Brasil.
20
Um aspecto crucial a ser abordado, ainda no aspecto da territorialidade como critério
da representação, diz respeito à paridade das bancadas. A constituição norte americana erigiu
uma tal paridade como „cláusula pétrea‟, vale dizer, insusceptível de modificação por emenda
exceto se com ela anuir o estado considerado10.
Soares & Lourenço (2004:5, versão eletrônica) endossam a visão tradicional:
“a federação destaca interesses de natureza territorial na representação
política e, com isso, envolve sempre algum grau de desproporcionalidade
na representação dos cidadãos na esfera nacional”.
Talvez resida nesse aspecto a afronta mais significativa ao princípio tão caro à visão
majoritária da democracia segundo o qual uma pessoa corresponde a um voto. Os autores
citados lembram que a desproporcionalidade na representação da população é o preço a pagar
pela proporcionalidade na representação das regiões politicamente consideradas. Em outras
palavras, se, para a câmara de representação da população, a desproporcionalidade entre o
número de eleitores da circunscrição e o número de (assentos) votos correspondentes naquela
é a exceção, para a câmara de representação territorial essa desproporcionalidade é a regra,
aceita até com uma certa „naturalidade‟, i.e., como dado de uma realidade (federativa) que lhe
antecederia. Também aqui a experiência específica de um povo transitou de mero exemplo a
difundido modelo e, finalmente, norma cogente, que muitos insistem em associar
inextricavelmente ao federalismo, e com isso atropelar sem hesitação o princípio majoritário
referido. O “Federalista” (Hamilton et alii 1952/1978:189) tocou no ponto sem subterfúgios
– em seu contexto eles não eram necessários. Assim (tradução do autor):
“A igualdade da representação no Senado é outro ponto que, sendo evidentemente o resultado de
compromisso entre as pretensões opostas dos Estados maiores e menores, dispensa maiores
discussões. Se de fato for correto que no seio de um povo integralmente incorporado numa nação
todo distrito deveria ter uma participação proporcional no governo, e que entre Estados soberanos
e independentes, associados por uma mera liga, as partes, conquanto desiguais no tamanho,
deveriam ter participação igual em conselhos comuns, não pareceria irrazoável que numa
república composta, em que coexistem um caráter nacional e um federal, o governo devesse ser
10
Art. 5º, in fine: “(...) no State, without its consent, shall be deprived of its equal suffrage in the Senate”.
21
fundado numa mescla dos princípios da representação igualitária e proporcional. Mas é supérfluo
testar, por parâmetros teóricos, uma parte da Constituição por todos admitida como resultado não
de teoria, mas „de um espírito de amizade, e que a deferência mútua e concessão que a
peculiaridade de nossa situação política tornou indispensável.
(...) Um governo calcado em
princípios mais conformes aos propósitos dos Estados maiores não é passível de ser obtido dos
menores Estados. (...)
Nesse espírito pode ser observado que o voto igual atribuído a cada Estado é ao mesmo tempo um
reconhecimento constitucional da porção de soberania remanescente nos Estados individualmente
considerados, e um instrumento para a preservação dessa soberania residual” 11.
No momento fundacional do Brasil não houve “compromisso entre as pretensões
opostas dos Estados maiores e menores”, simplesmente porque aqui nunca houve “Estados
soberanos e independentes, associados por uma mera liga”. Tampouco seria necessário, ou
desejável, o “reconhecimento constitucional da porção de soberania remanescente nos Estados
individualmente considerados”, simplesmente porque a soberania estatal original sempre
esteve afeita ao governo geral, jamais a partes que nunca lhe foram anteriores, mas foram
criadas por aquele ou por um de seus antecessores coloniais. A atribuição de uma “soberania
residual” aos estados não era explícita na constituição norte-americana, mas houve por se lhe
incorporar através da emenda 10. A mimese brasileira dessa disposição veio no § 2º do art.
65 da primeira constituição republicana, ratificado no § 1º do art. 25 da atual constituição, na
forma de “competências reservadas” aos estados, exatamente aquelas “que não lhe sejam
vedadas por esta Constituição”. A distopia do princípio, e, portanto, seu artificialismo, saltam
aos olhos, bastando para tal conclusão considerar que, após as 25 competências exclusivas da
11
“The equality of representation in the Senate is another point, which, being evidently the result of
compromise between the opposite pretensions of the large and the small States,
does not call for much
discussion. If indeed it be right, that among a people thoroughly incorporated into one nation, every district
ought to have a proportional share in the government, and that among independent and sovereign States, bound
together by a simple league, the parties, however unequal in size, ought to have an equal share in the common
councils, it does not appear to be without some reason that in a compound republic, partaking both national and
federal character, the government ought to be founded on a mixture of the principles of proportional and equal
representation. But it is superfluous to try, by the standard of theory, a part of the Constitution, which is allowed
on all hands to be the result, not of theory, but “of a spirit of amity, and that the mutual deference and concession
which the peculiarity of our political situation rendered indispensable”.
(…) A government founded on
principles more consonant to the wishes of the larger States is not likely to be obtained from the smaller States.
(…) In this spirit it may be remarked that the equal vote allowed to each State is at once a constitutional
recognition of the portion of sovereignty remaining in the individual States, and an instrument for preserving that
residual sovereignty”.
22
União elencadas no artigo 21 e as 12 competências comuns do artigo 23, bem como as 28
competências legislativas privativas da União elencadas no artigo 22 e as 16 competências
legislativas concorrentes do artigo 24, o que restou de “poderes reservados” aos estados
membros ou é insignificante ou pressupõe alguma esfera da vida humana inexistente nas
atuais condições materiais e tecnológicas do país. Em outras palavras, a constituição federal
atribuiu à União um leque de competências incomparavelmente maior que o atribuído aos
estados, mas retoricamente atribuiu a esses uma competência residual que, segundo a
concepção dos “Federalistas” norte-americanos, significaria o reconhecimento de uma
soberania prévia de que eles jamais haviam sido titulares.
A percepção que se impõe é a de que os determinantes da instituição da paridade da
representação senatorial, quando da federalização dos originais 13 estados unidos da América,
lhes foram peculiares, sendo indevida sua extrapolação a outras realidades políticas, mais
ainda de maneira tão extemporânea12. Dahl (1956:142) não tergiversa:
“A representação igualitária dos Estados no Senado (...) não era uma matéria de elevados
princípios constitucionais, mas uma transigência necessária combatida pelas melhores cabeças na
Convenção [de Filadélfia], inclusive o próprio Madison”.
O caso brasileiro é tanto mais impressionante na medida em que a evolução
institucional do Senado foi lhe configurando mais e mais nos moldes do arquétipo norteamericano, já bicentenário, anacrônico e merecedor de severas críticas por observadores
razoavelmente atentos aos processos políticos ali em curso, como o citado Dahl. Uma dessas
críticas, a atinente ao anacronismo da instituição, também aplicável ao caso brasileiro, radica
no deslocamento do lócus da representação, da unidade territorial para os partidos políticos –
que não existiam quando da elaboração constitucional norte americana. Nada obstante, Temer
(1995:125), no excerto inicialmente transcrito, chega a afirmar que “(...) os Estados
participam d[a] (...) formação [da lei] por meio da representação no Senado Federal”.
Como também já observado acima, os advogados dessa paridade silenciam diante da
recorrente fragmentação da deputação senatorial em mais de um partido, sem jamais se
preocupar em esclarecer qual dos partidos eventualmente presentes naquela deputação
efetivamente estaria a realizar a tantas vezes invocada representação do estado membro, ou
12
Cf. novamente nota 1, supra.
23
mesmo se a fragmentação da bancada não implicaria a quebra da propalada paridade das
diversas representações. O exame do quadro aqui cogitado sugere que esses esclarecimentos
– tanto acerca da real representação do estado como da aniquilação da paridade pelo
pluripartidarismo da bancada – não são feitos simplesmente porque nenhuma dessas
(representação e igualdade dessa representação) ocorre nos termos propostos, e esse silêncio
acoberta esse vazio.
E nem se pretenda ser o modelo de paridade adotado no Brasil um imperativo teórico
decorrente do possivelmente mais bem sucedido experimento bicameral e federalista que se
conhece. A Alemanha Federal não compartilha dessa característica em seu já invocado
Bundesrat. Ali também são feitas concessões à desproporção da população dos Länder e sua
representação, porém mitigadas pelo estabelecimento de uma deputação que varia de três a
seis membros. E mais: os votos de cada Länder são tomados em bloco, uniformizando a
representação aí ocorrida, e impedindo que eventuais divergências entre os representantes
gerem votos contrários ao que a maioria entendeu como melhor para o representado. O que
importa ressaltar é que a ausência de paridade na representação do Bundesrat em momento
algum significou uma afronta ao propósito federativo alemão, muito ao contrário: procurou
contemplar a disparidade existente entre um estado membro de 17.890.000 de habitantes
(Renânia do Norte-Westphalia, o mais populoso) e outro de 680.000 habitantes (Bremen, o
menos) e reconhecer a impropriedade de qualquer medida tendente a igualar a quem igual não
é (apud Patzelt, op. cit., passim).
No caso brasileiro, a paridade senatorial, tomada impropriamente como dogma do
federalismo – o que o bem sucedido exemplo alemão demonstra não ser – e tornada norma
constitucional, tolera que aos mais de 30 milhões de eleitores de São Paulo correspondam os
mesmos três senadores que correspondem aos 272 mil eleitores de Roraima, ou aos 420 mil
eleitores do Amapá, ou aos 470 mil eleitores do Acre (apud www.tse.jus.br, para julho/2010).
Todas as distorções já apontadas na representação da população na Câmara dos Deputados,
por expressivas e incontestáveis que sejam, se apequenam diante dessa desde sua origem
injustificada institucionalização da absurda desigualdade no valor do voto de cidadãos de
estados diferentes.
Segundo Backes (2008:67), a agregação regional da representação senatorial brasileira
confere às regiões Norte e Centro-Oeste, com 13% da população, 21% dos votos da Câmara
24
dos Deputados e 40% (!) do Senado – circunstância que se exacerbou artificial e
artificiosamente ao longo de meio século com a divisão dos estados de Mato Grosso e Goiás,
a transformação de quatro territórios federais (juridicamente, “autarquias territoriais”)
esparsamente povoados em estados, a atribuição de representação ao Distrito Federal e a
fusão do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro. No Congresso Nacional tramitam ainda
diversos projetos de redivisão territorial envolvendo estados dessas regiões. Segundo Soares
& Lourenço (2004:14), há 18 projetos de criação de novos estados ou territórios em
tramitação no Congresso Nacional, dos quais seis em condições de votação imediata em
plenário. Atribuir a cada uma dessas novas unidades federadas presença senatorial nos
moldes atuais, sobre ser artificial a um ponto inaceitável, além de exposta permanentemente
ao gerrymandering (criação de circunscrições eleitorais de conveniência), significaria sem
dúvida novas distorções na representatividade dessa Casa, sempre em detrimento das regiões
mais povoadas – não necessariamente mais ricas. E em violência ao princípio da igualdade
dos cidadãos, inexistente quando desiguais seus votos 13.
Reconheça-se a plausibilidade da conveniência administrativa de se descentralizar
estruturas de governo em regiões extensas; não é, entretanto, do que aqui se cogita. O
artifício que viola a igualdade eleitoral reside exatamente na atribuição de representação
paritária às novas unidades federadas assim surgidas, equiparando-as às demais, préexistentes, com as quais guardam sempre enormes diferenças, no mínimo no aspecto
demográfico. Ao se lhes reconhecer a titularidade de competências residuais, “reservadas”,
segundo o art. 25, § 1º/CF, o dogma mal nacionalizado lhes reconhecerá uma soberania préexistente que jamais poderia ter existido, exatamente porque inexistente o titular dessa
pretensa soberania. Essa inconsistência lógica desnuda a fragilidade tanto do imperativo da
representação paritária na segunda câmara quanto do próprio imperativo bicameral. E a
invocação daquela paridade como um dogma federativo inarredável resvalaria para a má-fé,
não fora o respaldo do (infeliz) art. 46 da Constituição, já referido.
Lima Jr. aventa a hipótese do “recurso à representação política como forma de corrigir
os eventuais desvios de uma Federação capenga e que inclui unidades desiguais” (1997:120).
Mas acrescenta em seguida:
13
As prerrogativas regimentalmente associadas à Presidência do Senado, e os resultados eleitorais relativamente
ao partido de maior bancada senatorial das legislaturas desde 1985, revelam um quadro de distorções ainda mais
agudas que essas referidas por Backes e que consideram apenas a população de cada estado como um todo.
25
“Embora se possa admitir, para fins de argumentação, que a sobre-representação, na Câmara, de
estados menos populosos e mais pobres funcione como um contrapeso à influência e, certamente,
afluência dos estados mais populosos e ricos, há que se admitir, também, no plano da experiência
histórica, que o desequilíbrio na representação em favor dos estados mais pobres não poderia, por
si só, ser responsável pelo desenvolvimento mais equilibrado e harmonioso da Federação (se e
quando tal ocorreu)”.
Seu argumento mira as notórias distorções verificadas entre os eleitorados dos estados
e suas representações na Câmara dos Deputados, mas se aplica a fortiori ao Senado, embora o
autor seja tímido nessa extrapolação (cf. p. 123). Se não há demonstração de correlação
positiva entre essas sobre-representações cogitadas e o desenvolvimento econômico e bem
estar das populações assim “beneficiadas”, há, com toda certeza, uma correlação negativa
entre tais formatos institucionais e a representatividade, a legitimidade e, enfim, a própria
componente democrática do estado que os abriga.
Depois de situar o Senado brasileiro na extremidade de seu continuum de
constrangimento ao povo (demos), não é casual a observação de Stepan (2001:339) no sentido
de que “o federalismo brasileiro, com sua extremamente desproporcional câmara alta, e sua
extremamente desproporcional câmara baixa, pode certamente contribuir para a manutenção
de um status quo estruturalmente induzido”. É uma exposição refinada do que Backes
(2008:78) chamou de “visão negativa: o Senado é fortalecido par reforçar o
conservadorismo”.
Admitindo a complexidade do tema, inclusive a inconsistência da
associação de visões de esquerda a regiões mais urbanas ou mais modernas, essa autora
sugere, não obstante, que “a sobre-representação dos estados mais pobres fortaleça uma
política baseada em práticas clientelistas (a suposição aqui é que em estados mais pobres haja
mais clientelismo)”.
O presente trabalho tenta responder à questão da real representação do Senado; trata-se
de seguir buscando sua articulação com a prática democrática, reiteradamente preconizada no
texto constitucional.
Ao consagrar o bicameralismo, a Constituição vigente é taxativa ao estabelecer, em
seu art. 46, que “o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito
26
Federal”. Com a autoridade de lei maior, pareceria liquidar quaisquer dúvidas sobre quem ou
o quê o Senado representa.
Difundido com ares axiomáticos junto à communis opinio doctorum, mais infenso se
torna a um exame crítico. O que aqui se pretendeu, nada obstante, foi apor-lhe um ponto de
interrogação: “o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito
Federal”?
E uma hipótese incontornável é a de que, na dinâmica política empiricamente
verificada, os Senadores não representam seus Estados ou o DF, a não ser como distritos
eleitorais.
3. Conclusões.
1)
O regime de 1988, embora corresponda ao mais longo período de vigência do estado
de direito democrático na história do país, abriga um Senado que destoa completamente de
seus propósitos e até de sua concepção de polis democrática. O Senado, como registrado,
nasceu desprovido de representatividade, só se tornou declaradamente uma câmara de estados
em 1891, consagrando uma fictícia igualdade entre esses ao preço de uma nada fictícia
desigualdade entre os eleitores de cada qual, e nas constituintes de 1946 e 1988 não se
preocupou em reparar ou amenizar esses defeitos.
2)
A despeito da assertiva constitucional de que “o Senado Federal compõe-se de
representantes dos Estados e do Distrito Federal”, o direito civil positivo e a doutrina adotada
na formação do direito brasileiro induzem o entendimento de que os primeiros representantes
dos Estados e do Distrito Federal são em verdade seus governadores, falecendo aos senadores
qualquer possibilidade de se manifestar em nome dos estados membros, exercer direitos a eles
atribuídos enquanto pessoas jurídicas ou contrair obrigações que os vinculem.
3)
Se a razão de ser atribuída ao Senado pela própria Constituição Federal se desfaz
diante evidências contrárias induvidosas, não pareceria impróprio dizer que o Senado não é
representativo da população como um todo (função afinal da Câmara dos Deputados), o que
basta para lhe dissociar dos propósitos democráticos do regime atual.
27
4) Se o Senado não representa os estados federados, se apenas em sua composição se
considera o elemento federal (Backes 2008:72, cap. 3, retro) como também resulta da análise
aqui desenvolvida, sua função de defensor da Federação também se esvai.
5) Na medida mesma em que os governos estaduais, que são os legítimos administradores dos
estados segundo elementares princípios jurídicos hauridos no direito civil, encontram no
Senado opositores políticos que, pela mera lógica eleitoral, pretendem lhes derrotar, não é
insensato dizer-se que essa configuração da representação senatorial em verdade enfraquece
aos estados, e, portanto à Federação que os une.
6)
Ainda que democracia e representação não se confundam historicamente, essas idéias
acabaram por confluir nos regimes egressos das revoluções francesa e americana, ao ponto de
ser difícil, contemporaneamente, conceber a prática de um sem o outro. Paradoxalmente, foi
a expansão da democracia, através do alargamento do direito de voto, que levou àquela
confluência (Manin 1996), que não necessita ser tomada como uma pauperização da
democracia.
7)
A incompatibilidade de uma verdadeira representação com as regras de instituição do
Senado (alem das de composição e funcionamento) o afasta, sim, do propósito democrático
generosamente vertido na atual Constituição, e permite a usurpação de suas prerrogativas por
grupos eleitoralmente pouco expressivos que ali procedem a uma “monumental, ainda que
desapercebida” (Dahl 2003:48) alavancagem de suas possibilidades políticas.
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