Editorial Máscara Negra1 - Portal do Envelhecimento
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Editorial Máscara Negra1 - Portal do Envelhecimento
1 Editorial Máscara Negra1 Quanto riso! Oh! quanta alegria! Mais de mil palhaços no salão. Arlequim está chorando Pelo amor da Colombina No meio da multidão. Foi bom te ver outra vez, Está fazendo um ano, Foi no carnaval que passou. Eu sou aquele Pierrô Que te abraçou e te beijou meu amor. Na mesma máscara negra Que esconde o teu rosto Eu quero matar a saudade. Vou beijar-te agora, Não me leve a mal: Hoje é carnaval. E sta romântica marchinha, de enorme sucesso, é muito presente nas lembranças do grupo 60 e +, retomando o sempre presente triângulo amoroso, que tanto faz sofrer os apaixonados. Durante anos, muitos foram os casais que se aproximaram ou se afastaram devido aos “desencontros” provocados por certa liberalidade própria a essas festas. A “quebra de contrato”, ou regras, percorre a história dessas comemorações que, desde os tempos mais antigos, estiveram ligadas à fertilidade e, assim, à exaltação da sexualidade, como nos indica o artigo Pequena História do Carnaval no Brasil. O autor nos traz não apenas a história recente da festa em nosso país, mas vai buscar as origens e, dentre elas, destacamos os costumes da Roma antiga com as bacanais, as saturnais e as lupercais. As bacanais, em homenagem ao deus Baco, eram celebradas com muita bebida, festas e sexo. As saturnálias aconteciam em homenagem a Saturno (deus da agricultura), e as lupercais eram celebrações em honra ao deus Luperco ou Pã. Segundo o autor, nas festas todos perdiam a cabeça: homens, mulheres, crianças e velhos, libertos e até escravos [...] Os dias de festas eram feriado e 1 Marchinha de Zé Kéti e Hildebrando Pereira Matos, 1967. http://letras.mus.br/marchinhas-decarnaval/473881/ REVISTA PORTAL de Divulgação, n.29. Ano III. Fev.2013, ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 2 tudo fechava: o comércio, os tribunais, as escolas. Os foliões podiam fazer o que quisessem, e até os escravos podiam dizer verdades aos seus senhores e ridicularizá-los. Eram igualmente comuns - em Roma e na Grécia antigas - os cortejos com pessoas mascaradas - e o “carrus novalis”, um carro parecido com um barco, puxado por cavalos enfeitados, que levava mulheres nuas e homens que cantavam canções impudicas. A descrição nos lembra que o espírito de transgressão das comemorações continua ainda hoje, mesmo considerando as manifestações organizadas, nos enredos das grandes escolas de samba. Nelas as pessoas de todas as classes se juntam em desfiles nos quais persistem a inversão de papéis por meio das fantasias tradicionais de reis e rainhas e os travestimos em figuras históricas e heróis, mantendo, muitas vezes, enredos de conteúdo mais político. O carrus novalis já teve sua representação mais “inocente” no corso do começo do século passado, mas hoje podemos aproximá-los dos carros alegóricos de grande porte, com pessoas seminuas e forte apelo sexual. Os blocos tradicionais mantêm ainda certa informalidade e familiaridade, desfilando pelas ruas da cidade, e o tom de crítica às instituições e figuras públicas. Mas voltemos à máscara da qual nos fala a marchinha que iniciou estas reflexões. A palavra deriva do latim maschera, cuja raiz, presume-se, provém do termo árabe mashara – bufão considerado personagem ridículo. No seu uso mais teatral é utilizada como artefato que encobre o rosto e faz ressoar a voz do ator, derivando daí a palavra persona – per-sonare – soar por meio de... A máscara se mantém, ao longo do tempo, com um sentido simbólico – como a ocultação da verdadeira identidade e veículo de libertação. As máscaras, ao “esconder” a aparência (o eu) real, permitem um trânsito ambíguo entre quem sou e o que quero ser (ou fazer), com potencial de liberação para atos transgressores, ante as normas e regras sociais. Alguns autores afirmam que o “novo eu” pode estar ligado à ideia de renovação ou recomeço, retornando ao significado inicial, ligado aos cultos arcaicos de fertilidade e de renascimento, como marcas das mudanças de estação ou nos de passagem – de jovens para adulto. A máscara (negra) da marchinha esconde e ao mesmo tempo revela a identidade da persona (re)conhecida, propondo um recomeço... Como vimos, o Carnaval é uma festa cujas origens remontam às manifestações dos primeiros grupos humanos organizados, com uma simbologia e um rito que permanecem os mesmos em sua essência. Além dessas interpretações, o Carnaval mantém, ainda hoje, o que se considera sua característica: festa democrática na qual todos brincam, cada um a seu modo. REVISTA PORTAL de Divulgação, n.29. Ano III. Fev.2013, ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 3 Mas falemos do “nosso” Carnaval em São Paulo, já considerado o túmulo do samba, afirmação negada inúmeras vezes por seu suposto autor, Vinicius de Moraes. Falemos de um bairro símbolo da boemia paulistana: a Vila Madalena. Falemos de Pasquale, um italiano apaixonado por samba. Esse é o cenário do artigo Pasquale Nigro - Vila Madalena: vale a pena chegar e ver o povo sambar. Em seu depoimento relata como de alto executivo tornou-se um chef de cozinha na cantina que leva seu nome e, por coincidência, localizada em frente à quadra da tradicional escola de samba Pérola Negra. Ao contar sua trajetória até a situação atual afirma: Na vida você não pode ser arrogante em nada [...] Tem que procurar fazer o que gosta porque quando faz o que gosta não trabalha mais, mas se diverte [mas tem gente que] quer fazer samba falando do mundo, e se esquece que o mundo também pode ser o quintal da gente. Em Preparemo-nos... pois é (quase) Carnaval no Brasil! o autor assume o papel de abre-alas, e nos prepara para a entrada de duas escolas tradicionais: Pérola Negra, a escola de samba da musical Vila Madalena e Eis que chega a Peruche. As duas matérias, fruto de um dedicado trabalho jornalístico e fotográfico, são um “mergulho” no universo no qual se unem vida, trabalho e paixão, expressas pela voz de alguns de seus mais tradicionais integrantes. Zélia, pertencente à tradicional Ala das Baianas da Pérola, afirma: Estou com 75 anos, muito feliz, graças a Deus. Tive cinco filhos, um morreu. E vários netos, muita gente da família sai aqui na Pérola, acho que todo mundo. Só não sai o cachorro porque não pode. Para não desmentir dona Zélia, seu genro Luiz Carlos, de 60 anos, diz com orgulho: Estamos com força total para subir [...] A escola está bem montada. Vamos para ganhar. A história de Carlão e da Peruche é, praticamente, uma só. Fundador da escola, sempre viveu para a escola. Por ser negro e sambista sofreu preconceitos. Mas sua persistência, que arrastou com ele outros sambistas, deu origem à Federação das Escolas de Samba e Cordões Carnavalescos do Estado de São Paulo, o que permitiu a organização e o progresso das escolas de samba paulistas. Aos 83 anos ele afirma: REVISTA PORTAL de Divulgação, n.29. Ano III. Fev.2013, ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 4 Não há nada melhor no mundo do que envelhecer sambando e cantando dentro da quadra de uma escola de samba. Envelhecer é natural. Todo mundo vai envelhecer... Todos. Mas depende de como se envelhece. Veja a ala das baianas, quer coisa mais linda?! Veja a Velha Guarda. Olha, lhe digo com a maior certeza do mundo: não há nada melhor no mundo do que envelhecer sambando, dentro de uma escola de samba. Aqui não há sedentarismo, ninguém fica parado. Uma escola de samba significa ginástica para o corpo, ginástica para a alma. No final da entrevista ainda reafirma seu amor pela Peruche: Escreva aí, por favor, que dediquei toda a minha vida a esta escola. Outros interessantes depoimentos, representando quatro Estados do Brasil – São Carlos e São Paulo (SP), Feira de Santana (BA), Uberaba (MG) e São Luiz do Maranhão (MA) - estão em Memórias do Carnaval, no qual algumas pessoas, na faixa de 60 e (muito) mais, relatam as memórias de antigos Carnavais. As primeiras memórias foram extraídas do Memória Viva, projeto do Arquivo Público e Histórico do Município de Rio Claro (SP) que registra a vida e a história de cidadãos “silenciados e desvalorizados historicamente”. Histórias transmitidas para uma nova geração, pois “um idoso que falece é toda uma biblioteca que se queima”. Como o projeto do Memória Viva, nos preocupamos em trazer à tona essas outras memórias de Carnavais, como as que narra Durvalzinho do Pandeiro, Eu sinto orgulho de saber que eu consegui colocar a minha escola de samba na rua porque isso representou muito para nós, foi o início de uma mudança na história da comunidade negra, conquistamos um espaço na avenida para nos manifestarmos pelo samba. Ou Decio Otero, Quando era jovem amava Carnaval. Naquela época era emocionante porque dava a oportunidade para a pessoa se transfigurar em outra coisa que sempre gostou de fazer e nunca foi. Ou mascarado, ou o homem que se fantasiava de mulher ou a mulher em homem, ou tinha o ideal de uma figura mitológica. O Carnaval servia exatamente para essa emancipação, para essa oportunidade de ser, porque o amanhã seria diferente. Finalizando as reflexões, gostaríamos ainda de trazer as considerações de alguns antropólogos, indicativas do sentido de ordem e desordem como partes de um único e mesmo sistema. Estudando as sociedades mais rígidas e tradicionais observa-se a semente da desordem como potencial gerador da novidade, da criatividade e do progresso. Assim, o Carnaval sempre teve, e mantém, simbologias e significados muito fortes como expressão cultural, indicando continuidade, no sentido de REVISTA PORTAL de Divulgação, n.29. Ano III. Fev.2013, ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 5 progresso, mesmo quando travestida de transgressão, pois a partir dessa ambiguidade surgem transformações necessárias à sua manutenção. No potencial transgressor de liberdade irrestrita, vivida nas festas, a sexualidade fica menos subjugada às normas habituais. Momentos de extravasar, de se alegrar, compartilhar, usufruir, mas tempo de cuidar e ser cuidado. Atitude ativa em todas as idades da vida, Aids, Carnaval e os mais velhos: uma mistura explosiva lembra que em meio a tantos estímulos devemos estar atentos. A autora, baseada em diversos estudos, afirma: Numa época como o Carnaval, em que vivemos, de forma consciente, uma espécie de “suspensão das normas”, algo parecido com um libertar-se mágico de si mesmo, nunca é demais lembrar os cuidados essenciais. Sexo é bom, sexo é saúde. Que fique claro que velhice não é sinal de fim, menos ainda de término dos desejos e práticas sexuais. Esse sexo existe efetivamente, não é invisível e menos ainda vazio, como muitos acham. Com Carnaval ou sem Carnaval, sexo com camisinha é, sempre, a melhor combinação e opção. Vamos então cantar, brincar, dançar. Deixar as máscaras (não carnavalescas) de lado e aproveitar a festa sabendo de seus ricos significados, sem esquecer a saúde e o bem-estar, nossos e dos demais. Encerramos com a frase do Guilherme Salgado Rocha, jornalista da nossa equipe, que resume os desejos de todos nós da Revista Portal de Divulgação, neste nº 29, especial de Carnaval: Bom Carnaval a todos, sem negligência, com responsabilidade, sem exageros que podem resultar em arrependimento eterno. Mas com muito, mas muito samba, e muita, mas muita alegria! Beltrina Côrte e Vera Brandão Editoras REVISTA PORTAL de Divulgação, n.29. Ano III. Fev.2013, ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista