le sinthome - Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica
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le sinthome - Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica
CLINAMEN R e v i s t a d e P s i c a n á l i s e Clinamen R e v i s t a d e P s i c a n á l i s e A n o N X X I I I o 5 LE SINTHOME Uma publicação: Membro de Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana Convocante da Reunião Lacanoamericana de Psicanálise CLINAMEN Revista de Psicanálise Publicação da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica Editor Yuri Disaró Amado Conselho Editorial Carlos Augusto Remor Inezinha Brandão Lied Jeanine Fialho Tania Vanessa Nöthen Mascarello Normatização Aline Veiga Pereira Ribeiro Velho Clara Ataíde Fonseca Carvalho Djulia Justen Fabrício Antônio Raupp Tahiana Pereira Brittes Projeto Gráfico e Capa Yuri Disaró Amado C641 Clinamen: Revista de Psicanálise / Maiêutica Florianópolis – Vol. 5, n.5. (Dez. 2013) - Florianópolis: Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, 2001Semestral ISSN 1519-4620 1. Psicanálise _ Periódico.I. Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. II. Le Sinthome. SUMÁRIO CDD 150.1 4 Índice Apresentação desta edição ..............................................................................................7 Fausto e o Sinthome – Do único Deus Trinário ao Diabo a Quatro (Pedro Heliodoro Tavares) ............................................................................................ 9 Comentário e questões para debate sobre a conferência: FAUSTO E O SINTHOME (Tania Nöthen Mascarello)............................................................................................ 29 Eu e nós (Alessandra do Couto Valentim) ..................................................................................... 32 O real da letra (Ana Virginia Nion Rizzi May) ....................................................................................... 39 Nós não somos nós? (CARLOS AUGUSTO MONGUILHOTT REMOR) ......................................................................... 43 O seminário 23 e o artifício analítico (Clara A. Fonseca Carvalho)......................................................................................... 48 Peter Pan na Terra do Não (Claudemir P. Flores) ................................................................................................... 51 Os nós e os nós (Fabricio Antonio Raupp)............................................................................................. 54 Tudo, mas não isso (Inezinha Brandão Lied) ............................................................................................... 59 O artifício do analista e os fins de análise na clínica com crianças (Luana de Araújo Lima Vizentin) ..................................................................................... 65 Ee: Diz-mensão do Sinthome em Joyce (Marcio Bayestorff) .................................................................................................... 69 Psicanálise pós-joyceana: algumas considerações (Maurício Maliska) ...................................................................................................... 82 Angu de caroço (Tahiana Pereira Brittes) ............................................................................................. 90 Tempos de Lacan, Fins de Análise (Tania Nöthen Mascarello)............................................................................................ 93 5 6 Apresentação desta edição É com satisfação que entrego aos leitores este número tão especial da Clinamen, a revista de Psicanálise da Maiêutica Florianópolis. Após os longos anos de sua existência acompanhando a trajetória da instituição, pela primeira vez ela se transforma em uma revista eletrônica, formato com o qual esperamos poder divulgar seu conteúdo em um âmbito muito mais amplo, alcançando um público que no passado esteve mais distante do que se poderia ambicionar alcançar. Apostamos em um formato atualizado para continuar desenvolvendo sua função em consonância com o que faz a Psicanálise, esse saber que da mesma forma que soube-se inventar em uma época passada, continuou gerando frutos exatamente por ter podido atualizar-se até os dias de hoje. Nesta edição, selecionamos alguns dos trabalhos que marcaram o empenho conjunto de maiêuticos que debruçaram-se ao longo do ano de 2013, sobre nosso tão emaranhado tema institucional “Le Sinthome – O seminário 23 de Lacan”. Da Jornada com a qual coroamos este ano de estudo focados em um tema comum, também incluímos a conferência de Pedro Heliodoro Tavares, nosso convidado especial que tão bem marcou sua passagem por esta instituição. Agradeço a todos os que doaram seu esforço na realização desta revista, e desejo a seus leitores que este número lhes propicie muitos novos enlaces, seja para sua atuação clínica como psicanalistas, seja para continuar semeando dentro da cultura este saber tão caro e singular que é a Psicanálise. Yuri Disaró Amado 7 8 Fausto e o Sinthome – Do único Deus Trinário ao Diabo a Quatro Pedro Heliodoro Tavares1 “...der vilarbeide, hanføder sin egen Fader.” [...que[m] se põe a trabalhar, dá a luz seu próprio pai] Søren Kierkegaard - FrygtogBæven Em diferentes trabalhos previamente publicados, procurei demonstrar como o tema de Fausto se aproxima da Psicanálise de diversas maneiras: desde a construção da empresa freudiana compreendida à luz da influência do “Fausto” de Goethe (obra literária mais frequentemente citada em seus escritos); passando pelos objetos e conceitos referentes à clínica psicanalítica em sua relação com a construção biográfico-ficcional, pela repetição e pela nominação; o drama da identificação ante o pai cindido (Deus X diabo); a relação do sujeito fáustico com o sujeito psicanalítico na busca por um saber que espose a verdade, pela produção estética da beleza e pela transubstanciação subjetiva; etc. Porém, num sentido mais restrito, meu objetivo foi o de demonstrar as consonâncias das produções de Fausto ou sobre Fausto com as articulações desenvolvidas no “Seminário 23: Le Sinthome” de Jacques Lacan à luz da obra de James Joyce. Busquei apontar a analogia do pacto de Fausto com a re-ligação concebida por Lacan a partir de sua cadeia borromeana. Tendo por pressuposto as leituras de Roberto Harari sobre o referido seminário, que enfatizam uma saída da relação ao pai enquanto sintoma, procurei mostrar como Fausto nos aponta justamente a passagem da relação ao pai-sintoma para 1 Psicanalista e Germanista. Professor da Área de Alemão - Língua, Literatura e Tradução DLM - FFLCH - USP. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (UNIVERSITÉ PARIS VII), bem como Doutor em Teoria Literária(UFSC). Realizou Pós-Doutorado junto à PGET-UFSC investigando as traduções da obra de Sigmund Freud. Coordena com Gilson Iannini a coleção “Obras Incompletas de Sigmund Freud” (Ed. Autêntica), edição da qual é também o coordenador de tradução e revisor técnico. É autor dos livros “Versões de Freud” (7Letras, 2011), “Fausto e a Psicanálise” (Annablume, 2012), “Freud &Schnitzler” (Annablume, 2007) e coorganizador de “Tradução e Psicanálise” (7Letras, 2013). 9 um saber-fazer com o Nome-do-Pai (da ordem do Sinthome), que ao mesmo tempo demonstra um prescindir e uma utilização. Afinal, como explicitamente coloca Lacan, Por certo que supor o Nome-do-Pai é Deus. É por isso que a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai, à condição de nos servirmos dele..2 Compreendendo-se o sintoma analítico como produto da falta, de uma falha inscrita no psiquismo, a noção de Sinthome virá delimitar não uma busca de tamponamento ou substituição metafórica, mas aquilo que Lacan chamará de supleção, noção anteriormente atrelada à ausência paterna enquanto inscrição na psicose, mas que vem merecer um estatuto especial a partir da aproximação da obra joyceana diante da qual Lacan se questiona: Seu desejo de ser um artista que ocupasse a todos, ou ao maior número de pessoas possíveis em todo caso, a compensação deste fato, digamos, de seu pai jamais ter sido para ele um pai? Que não somente não lhe tenha ensinado nada, mas que negligenciou quase tudo a não ser da aproximação dos bons pais (padres) jesuítas, a Igreja diplomática?3 É o que se processa na passagem de uma fantasia capturada no romance familiar, o qual, uma vez processado e transfigurado em algo público, “desprende-se” tal qual na noção de objeto a, desse sujeito. É nesse sentido que, quando tomarmos os nomes de Fausto, entendam-se estes como os dos autores ou das personagens a partir deles engendradas, podemos evidenciar como eles acabam fazendo do nome próprio, herdado do pai-do-Nome, um nome comum a ser legado à cultura enquanto obra. Não haveria aí algo como uma compensação dessa demissão paternal, desta Verwerfung efetiva no fato de Joyce se sentir imperiosamente chamado? Essa palavra que resulta de um tanto de coisas nisso que ele escreveu. Aí está o motivo próprio pelo qual o nome é nele algo de estranho [...] O nome que lhe é próprio, é isso que ele valoriza às custas do pai. É a esse nome que ele quis que fosse feita a honra que ele mesmo recusou a quem quer que seja. 4 “Supposer le Nom-du-Père, certes, c’est Dieu. C’est en cela que la psychanalyse, en réussir, prouve que le Nom-du-Père, on peut aussi bien s’en passer. On peut aussi bien s’en passer à condition de s’en servir.” (LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p.136). 3 “Son désir d’être un artiste qui occuperait tout le monde, le plus de monde possible en tout cas, n’est-ce pas exactement le compensatoire de ce fait que, disons, son père n’a jamais été pour lui un père ? Que non seulement il ne lui a rien appris, mais qu’il a négligé à peu prés toutes choses, sauf á s’en reposer sur les bons pères jésuites, l’Église diplomatique ?” (Idem, ibidem, p. 88) 4 “N’y a-t-il pas quelque chose comme une compensation de cette démission paternelle, de cette Verwerfung de fait, dans le fait que Joyce se soit senti impérieusement appelé ? C’est mot qui résulte d’un tas de choses 2 10 Como afirma Nietzsche, “Quando não se teve um bom pai, é necessário inventar um”5. E é justamente o que procuramos demonstrar como o que se processa pelas escrituras dos Faustos: o engendrar ou parir o próprio pai para nos aproximarmos da noção kierkegaardiana que serve de epígrafe. Mesmo que possa parecer uma constatação supérflua, evidentemente que não se trata aqui do pai biológico, tão somente, mas de tudo que tal categoria traz em si: a cultura (filiação clânica), a pátria (terra-pai - Vaterland), a religião (Deus-pai). Do servir ao pai em sua (dele) maneira, passa-se ao servir-se do pai à própria (do filho) maneira, a partir de uma nova aliança que subverte a servidão voluntária ao pai absoluto. É o que se verifica como traço de repetição nos vários Faustos (da literatura, da música, do folclore, da mitologia...): o pacto. Fausto abandona a via comum da ligação ao pai enquanto sintoma, ou seja, ao Deus-Pai em sua prévia organização trinitária (Pai Filho - Espírito Santo, sendo este último o elo sintomático), tal qual a dissolução que Lacan demonstra em Joyce entre os três registros da experiência psíquica (Real Simbólico - Imaginário), para, a partir do que Mefisto representa, refazer esta ligação ao seu próprio modo. Eis o que implica o quarto elemento, ou quarta atadura: o Sinthome lacaniano ou o pacto fáustico com Mefistófeles. Viso demonstrar essa hipótese não só nas consonâncias entre os temas como também nas suas ressonâncias em diversas produções de diferentes épocas, mitos, produções e autores a partir do nome Fausto. Essas consonâncias certamente se fazem em relação à teoria da Influência de Harold Bloom, no que tange à produção literária, teoria que cai-nos como uma luva para aliar o psicanalítico ao literário. Eis a tese central de Bloom no que concerne a influência poética: A influência poética – quando envolve dois poetas fortes, autênticos – sempre se dá uma leitura distorcida do poema anterior, um ato de correção criativa que é na verdade e necessariamente uma interpretação distorcida. A história da influência poética frutífera, o que significa a principal tradição da poesia ocidental desde o Renascimento, é uma história de angústia e caricatura dans ce qu´il a écrit. C’est là le ressort propre par quoi le nom propre est chez lui quelque chose qui est étrange. (...) Le nom qui lui est propre, c’est cela que Joyce valorise aux dépens du père. C’est à ce nom qu’il a voulu que soit rendu l’hommage que lui-même a refusé à quiconque” (Idem, ibidem, p. 89). 5 NIETZSCHE apud BLOOM, Harold. A Angústia de Influência – Uma Teoria da Poesia. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 1973 /1997, p. 104. 11 autossalvadora, de distorção, ou perverso e deliberado revisionismo, sem o qual a poesia moderna não poderia existir. 6 Joyce, o modelo lacaniano, apesar da forte influência deixada pelo catolicismo em sua formação e manifesta em sua produção, sobretudo no biográfico “A Portrait of the Artist as a Young Man”7, não procurou ser o redentor (redeemer) do pai, mas fez, antes, sua “caricatura autossalvadora”. Se num plano que ultrapassa o do pater families Lacan aponta a supleção em relação a esse pai insuficiente, que melhor exemplo de uma “caricatura autossalvadora” poderíamos apontar que aquilo que se celebrizou como o maior romance do século XX: sua releitura da “Odisséia” de Homero; seu “Ulysses”? Aquilo que Bloom (o crítico literário, e não a personagem de Joyce) chama de uma correção criativa, guarda perfeita consonância com a noção de supleção lacaniana. Trata-se de uma disciplinada perversidade, de uma apropriação que sempre envolve uma distorção. A “Apropriação [seria] de fato um fazer errado (e compreender errado)”8. Porém, esse errar, há que se compreendê-lo em sua equivocidade. Não como um engano ignorado do incauto (dupe), mas com o que etimologicamente o significante errar traz de “apartar-se do caminho”, donde o vagar errante, que se atribui não só a Joyce, mas também ao vagabundo Fausto histórico, o homem de Knittlingen que inspira o mito literário. Pela mesma via da equivocidade, Lacan aponta este fazer errante com o(s) Nome(s)-do-Pai (le[s] Nom[s]-du-Père) como legado, transformando-o em os nãoincautos erram (les non-dupes errent). O Sinthome tem ligação inequívoca com que fazemos do legado paterno, a referência que nos introduz na realidade da cultura através da transmissão de suas insígnias; disso se trata no tão difundido conceito lacaniano de Nome-do-Pai. O Sinthome é uma quarta consistência que vem perverter o estabelecido, desacomodando e desatando suas estruturas prévias para propor uma nova articulação. É aí que entra o jogo homofônico entre perversion (perversão) e père-version (pai-versão). Essa rearticulação é uma nova tomada de posição diante do pai enquanto sintoma. 6 Idem, ibidem, p.80. JOYCE, James. A Portrait of the Artist as a Young Man. Londres: Penguin, 1996. 8 BLOOM, Harold. A Angústia de Influência – Uma Teoria da Poesia. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 1973 /1997, p. 131. 7 12 Não é que sejam rompidos o Simbólico o Imaginário e o Real que define a perversão, é que eles já são distintos, e devemos supor um quarto, que é o Sinthome na ocasião, que se deve supor tetrádico, o que faz a ligação borromeana, que perversão (perversion / père-version) só quer dizer versão em relação ao pai, e que, em suma, o pai é um sintoma (symptôme) ou um Sinthome, como vocês quiserem. A ex-sistencia do sintoma (symptôme) é o que está implicado pela própria posição, aquela que supõe esta ligação – do Imaginário, do Simbólico e do Real – enigmática. 9 Figura 1 - O Sinthome representado pela letra grega sigma (Σ), como quarta consistência do nó Borromeo. O Sinthome implica em tomar como diretriz a assertiva proferida no monólogo inaugural do “Fausto” de Goethe: Was du ererbt von deinen Vätern hast, Erwib es, um es zu besitzen. 10 (O que de teus pais herdastes, Conquista-o, para fazê-lo teu.) Essa citação nada teria de estranho à Psicanálise. Celebrizou-se em seu seio por ter sido o último, dentre tantos extratos do “Fausto” de Goethe na obra de Freud. Ela “Ce n’est pas que soient rompus le Symbolique, l’Imaginaire et le Réel qui définit la perversion, c’est qu’ils sont déjà distincts, de sorte qu’il en faut supposer un quatrième, qui est en l’occasion le Sinthome. Je dis qu’il faut supposer tétradique ce que fait le lien borroméen – que perversion ne veut dire que version vers le père – qu’en somme le père est un symptôme, ou un Sinthome, comme vous voudrez. Poser lien énigmatique de l’imaginaire, du symbolique et su réel implique ou suppose l’ex-sistence du symptôme” (LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p.8). 10 GOETHE, Johann Wolfgang von. Faust I und II. Colônia: Könemann, 1997, p. 682-3. 9 13 aparece na última página da última obra do psicanalista – “Abriss der Psychoanalyse”11, uma obra que pretendia ser o apanhado geral, o compêndio, de toda a sua invenção, de um modo que facilitasse a apropriação pela cultura, o que lhe aufere um caráter iniludível de legado. Por certo, ao se tomar o jogo homonímico perversion – père-version não se trata de induzir (o analisante, na experiência clínica à qual o termo originalmente se refere) à perversão enquanto estrutura clínica. Isso seria, além de feito impossível, a heresia despropositada, a vã blasfêmia. Trata-se antes de tomar dessa estrutura o seu modo de negação em relação ao Nome-do-Pai. Se, em textos tais como “Totem und Tabu” 12 ou “Die Zukunft einer Illusion”13, Freud coloca, em sua concepção da natureza do sentimento religioso, a ligação de culpa-dívida (Schuld) com uma imago paterna onisciente e onipotente, o lugar para o pai-sintoma estará mais bem apresentado em seu breve “Eine Teufelsneurose im Siebzehnten Jahrhundert”14. Deixando claro, já de início, as fortes influências do mestre de sua juventude, Jean-Martin Charcot, que apontava nos casos medievais de bruxaria as manifestações da histeria em outros tempos, Freud seguirá semelhante caminho ao apontar uma leitura psicanalítica de um caso de possessão demoníaca. Eis, para irmos diretamente ao ponto, a concepção freudiana da dupla inscrição da imago paterna em sua forma religiosa: Para começar, [sabemos] que Deus é um substituto paterno ou, mais corretamente, que ele é um pai exaltado ou, ainda, que constitui a cópia de um pai tal como é visto e experimentado na infância – pelos indivíduos em sua própria infância, e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda primitiva ou primeva. Posteriormente, na vida, o indivíduo vê seu pai como algo diferente e menor. Porém, a imagem representativa que pertence à infância é preservada e se funde com os traços da memória herdados do pai primevo para formar a ideia que o indivíduo tem de Deus.15 FREUD, Sigmund. “Abriss der Psychoanalyse”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1940/ 2000. 11 FREUD, Sigmund. “Totem und Tabu” . In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1912 / 1999. 13 FREUD, Sigmund. “Die Zukunft einer Illusion”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1927 / 1999. 14 FREUD, Sigmund. “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922 / 1999. 15 “Zunächst, dass Gott ein Vaterersatz ist oder richtiger: ein erhöhter Vater oder noch anders: ein Nachbild des Vaters, wie man ihn in der Kindheit sah und erlebte, der Einzelne in seiner Kindheit und das Menschengeschlecht in seiner Vorzeit als Vater der primitiven Urhorde. Später sah der Einzelne seinen Vater anders und geringer, aber das kindliche Vorstellungsbild blieb erhalten und Verschmolz mit der überlieferten Erinnerungsspur des Urvaters zur Gottesvorstellung des Einzelnen”. (Idem, ibidem, p. 331) 12 14 Como ele já adianta nesse trecho, em algum ponto adviria não só uma subvaloração, mas também a ambivalência. O problema não solucionado entre o anseio pelo pai, por um lado, e, por outro, o medo dele e o desafio pelo filho, proporcionou-nos uma explicação de importantes características da religião e de decisivas vicissitudes nela. [...] Com respeito ao Demônio maligno, sabemos que ele é considerado como a antítese de Deus, e, contudo, está muito próximo dele em sua natureza. [...] O demônio mau da fé cristã – o diabo da Idade Média – foi, de acordo com a mitologia cristã, ele próprio um anjo caído e de natureza semelhante a Deus. Não é preciso muita perspicácia para adivinhar que Deus e o Demônio eram originalmente idênticos – uma figura única posteriormente cindida em duas figuras com atributos opostos.16 Serve-nos aqui essa ideia/representação do demônio-pai como o caído ou talvez, anterior à ascese sagrada, que somente advém, no que se refere ao pai-totêmico, após seu assassinato e a instituição da lei unificadora. Um pai ainda-não ou não-mais sagrado, no que nos faz lembrar sua aparência pré-humana, identificada ao animal totêmico (chifres, cornos e cauda) e que na imagem de Haizmann, do qual se trata no texto de Freud, anterior à partilha dos sexos (demônio com pênis e mamas). Guarda-se aqui a chave para a Unheimlichkeit, ou estranheza familiar, que denota esta imagem do demoníaco, sobretudo na figuração híbrida (parte animal - parte humano) que lhe reserva o cristianismo medieval. Lembrando a definição que Freud 17 empresta de Schelling: ‘“Unheimliche’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. Teremos oportunidade de retomar à problemática do diabo como relacionado a um Nome-do-Pai destituído de um lugar ideal, mas cabe introduzirmos a ideia que Freud esboça em “Totem e Tabu”, do pai da horda como um pai-diabo. Como coloca Luisa de Urtubeyem seu “Freud et le Diable”: “Ele não recalca suas pulsões (O diabo = a personificação da vida pulsional), ele tem traços animais (como o diabo com sua cauda e “Aus dem nicht zu Ende gekommenen Widerstreit von Vatersehnsucht einerseits, Angst und Sohnestrotz anderseits haben wir uns wichtige Charaktere und entscheidende Schicksale der Religion erklärt. (...) Vom bösen Dämon wissen wir, dass er als Widerpart Gottes gedacht ist und doch seiner Natur sehr nahe steht. (…) Der böse Dämon des christlichen Glaubens, der Teufel des Mittelalters, war nach der christlichen Mythologie selbst ein gefallener Engel und gottgleicher Natur. Es braucht nicht viel analytischen Scharfsinn, um zu erraten, dass Gott und Teufel ursprünglich identisch waren, eine einzige Gestalt, die später in zwei mit entgegengesetzten Eigenschaften zerlegt wurde” (Idem, ibidem, p. 331, grifo nosso). 16 FREUD, Sigmund. “Das Unheimliche”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1919 / 1999. 17 15 seus chifres) e, além do mais, seu narcisismo não seria, afinal, uma característica demoníaca (Lúcifer, a mais bela criatura)?” 18. No que trazemos deste resto do pai oculto (heimlich) nas trevas em contraposição ao pai Ideal, manifesta-se a noção de Spaltung freudiana concernente não ao Eu, mas sim àquele que lhe serve de ideal enquanto alicerce para a constituição subjetiva pelo campo do discurso, da figura que estaria na base da formação do supereu. A boa heresia atribuída por Lacan a Joyce teria a ver com a aceitação da imago paterna, porém não tão somente enquanto o ideal, lugar-comum e forma pasteurizada de concebêla. Joyce recorre ao pai fazendo-o figurar como sujeito titânico, exuberante, galante, encantador, mas também quanto ao que esse tem de ímpio, de pobre-diabo, para poder fazer com essa herança um artifício que lhe resulte proveitoso. Joyce se depara de maneira iniludível com a castração deste Outro (A /) desde sua inscrição, mas, ao invés de negála pelo delírio (Psicose), pelo fetiche (Perversão) ou pelo recalque (Neurose), faz uso disso em sua arte. Trata-se do que deve ser conquistado a partir do que é imposto enquanto carência. Algo que apontaria para o essencial do mito fáustico no que este preserva de estrutural em suas versões: o comércio com o demônio. Não com o todo-poderoso Lúcifer, belo e magnífico portador da luz, mas com o demônio bufo, rasteiro, vulgar e escarninho, tal qual se caracteriza na figura de Mefistófeles, aquele que não ama a luz. Segundo Thomas Mann, o nome desse demônio teria algo a ver com “mefítico” (sulfuroso, pestilencial) “pois se trata de um tipo ignóbil, ignóbil em alto estilo, porém com um sentido de humor dominando a sua sujidade”19. E é na escatologia que o humor de Mefistófeles de Marlowe20 e Goethe se afinam com o de James Joyce, o qual dará a seu primeiro livro publicado o nome “Chamber Music”, que alude tanto a sublime Música de câmara quanto à escatológica e grotesca “música de quarto”, o som da urina contra o urinol de metal (chamberpot). “Il ne refoule pas ses pulsions (le diable = la personnification de la vie pulsionnelle), il a des traits animaux (comme le diable avec sa queue et ses cornes) et de plus son narcisisme n’est-il pas une caractéristique démoniaque (Lucifer, la plus belle créature)?” (URTUBEY, Luisa de. Freud et le Diable. Paris: Presses Universitaires de France, 1983, p.99). 19 CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo No Fausto de Goethe – Leitura do Poema, acompanhada da transcriação em português das duas cenas finais da Segunda Parte. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 81. 20 MARLOWE, Christopher. Doutor Fausto – The Tragical History of the life and Death of Doctor Faustus (Edição Bilingue). Trad. de J. Duarte e V. Ferreira. Sintra: Publicações Europa América, 2003. 18 16 O horror ao diabo, de fato, remete ao horror ao Real e ao que diz respeito à ruptura com os sentidos. Isso guarda uma relação direta com a clínica psicanalítica, muito mais próxima de Tanatos e do Real da ruptura, do esvaziamento que da superfetação de sentidos proposta por determinadas correntes psicoterápicas. Como coloca Harari, nessa aproximação do Real lacaniano à pulsão de morte freudiana, no fazer clínico: “Analýo, quer dizer, ‘eu desato’. Por isso, não se trata em Psicanálise, de partir em pedaços, nem de desfazer, mas de desatar, o que acontece devido à efetuação tanática” 21 . Trata-se, portanto, de desatar para, assim, permitir um novo re-enlace. No “Seminário 23”, aliás, Lacan deixa bastante clara esta relação entre Tanatos, a pulsão de morte, e seu Real: A pulsão de morte é o real no que ele não pode ser pensado, senão como impossível. Quer dizer, a cada vez que ele mostra a ponta de seu nariz, ele é impensável. Abordar este impossível não poderia constituir uma esperança, posto que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser pensada é o fundamento do real.22 Freud, neste sentido era explícito: na análise não se opera “per via de porre”, acrescentando sentidos aos que o paciente, em sua neurose, já porta em demasia, mas “per via de tirare” auxiliando o paciente a “desfazer os nós”. Mefisto, ao se apresentar - com a ironia analítica que lhe é característica - irá apontar a dubitável crença humana em sua pretendida completude. Freud soube, aliás, identificar no demônio esta dimensão de real, de um desejo oculto ou inexprimível, um horror unheimlich e sem nome que de algum modo pede vazão pela ex-sistencia: Os demônios nos são como desejos maus forcluídos (verworfene), derivados de moções pulsionais que foram repudiadas e recalcadas (verdrängter). Nós simplesmente eliminamos a projeção dessas entidades mentais para o mundo externo, projeção esta que a Idade Média fazia; em vez disso, encarando-as como tendo surgido na vida interna do paciente, onde têm sua morada23;24. HARARI, Roberto. Como se Chama James Joyce – A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Trad. de Francisco Settineri. Salvador / Rio de Janeiro: Agalma / Companhia de Freud, 2003, p. 288. 21 “La pulsion de mort c’est le réel en tant qu’il ne peut être pensé que comme impossible. C’est-à-dire que, chaque fois qu’il montre le bout de son nez, il est impensable. Aborder à cet impossible ne saurait constituer un espoir, puis que cet impensable, c’est la mort, dont c’est le fondement du réel qu’elle ne puisse être pensée” (LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p. 125). 23 “Die Dämonen sind uns böse, verworfene Wünsche, Abkömmlinge abgewiesener, verdrängter Triebregungen. Wir lehnen bloß die Projektion in die äußere Welt ab, welche das Mittelalter mit diesen Seelischen Wesen vornahm; wir lassen sie in Innenleben der Kranken, wo sie hausen, entstanden sein.” 24 FREUD, S. “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert“. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922 / 1999. p. 287. 22 17 O demoníaco foi tratado por Freud, como já nos referimos algumas vezes, em seu texto sobre o caso Haizmann, aquele que teria feito um pacto fáustico com o demônio para vencer uma inibição (incapacidade de trabalhar) após a morte do pai. Um ponto curioso a ser pensado é o seguinte: como se poderia dar a representação desse que aqui aproximamos do real por parte de alguém que tem a representação pictórica por ofício? Afinal, Haizmann era pintor. Freud, muito pouco dado às ilustrações, sempre privilegiando a palavra, quando trata deste caso, faz questão de mostrar as duas representações que o pintor faz do demônio em suas duas “aparições”. Figura 1 - Primeira aparição do demônio segundo Ch. Haizmann25 Essas duas representações nos ajudam a entender a teoria de Freud do demônio em sua relação com o pai cindido. Na primeira delas, como não é raro nas diferentes versões de Fausto, ele aparece como bem trajado como um homem sedutor, charmoso, encantador (em algumas versões luteranas, como um religioso católico). Luisa de Urtubey26 (1983) em seu Freud et le Diable, dedica um capítulo justamente à tese da representação do diabo como o Pai sedutor da histeria27. Mas é digno de nota que esta primeira aparição, uma luminosa “figura burguesa-citadina” (bürgliche Gestalt), manifestação de um Ideal, se veja ladeada de um FREUD, Sigmund “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert“. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922/1999. 25 26 URTUBEY, Luisa de. Freud et le Diable. Paris: Presses Universitaires de France, 1983. Uturbey indica os aspectos do demoníaco presentes nos vários casos de histeria apresentados por FREUD e BREUER dedicando especial atenção as alucinações de Katharina de Studien über Hysterie com o pai sedutor com aparência de demônio. (p. 24-28) 27 18 cão negro. É essa, afinal, a primeira configuração (Gestalt) assumida por Mefistófeles (schwarzer Puddel) para se aproximar de modo insuspeito de Fausto no drama de Goethe, entre outros. Também em tantos outros Faustos, como no de Thomas Mann aparece este cão coadjuvante Suso ou Kaschperl28. Se num primeiro plano aparece o gentil-homem que poderia representar o elemento divino (god), seu inverso o espreita (dog)29. A questão aqui é a seguinte: para a representação ideal deste pai-sintoma substituto, na união de simbólico e imaginário a boa-forma (e aqui o termo da psicologia da Gestalt não é por acaso) para a formação da figura, resta uma sombra a-significada. De fato, a emergência de um real é o que se manifestará no segundo quadro, quando o demônio volta a se manifestar como uma representação do irrepresentável. Aí não há mais espaço para a separação organizadora de uma figura (bürgeliche Gestalt) e de um fundo (o cão ignóbil), o real como disperso e indistinto aparece em seu puro horror. Figura 2 - Segunda aparição do demônio segundo Ch. Haizmann Aí temos o Real como aquilo que não faz accord – a-corps. Jogando com a homofonia entre acordo e corpo no francês, Lacan nos remete a formação forçada do imaginário no estádio do espelho, da passagem do corps morcelé a uma imagem 28 Nome de uma personagem do folclore alemão que se torna mediadora entre Fausto e Mefistófeles quando incorporada às representações do drama de Fausto em teatro de marionetes em praça pública nas terras germânicas a partir do século XVII. 29 Num trabalho que dedicamos às questões do nome e da nominação cabe esta observação: A curiosa coincidência da grafia inglesa para cão (dog) com o oposto (leitura palíndromo) de Deus (god) não fica sem consequências e é certamente uma das responsáveis pela ligação deste animal a figura do demoníaco nas culturas anglo-germânicas. 19 apressada de uma totalidade apaziguadora. Mas o morcelé do real retorna nas formações do inconsciente e aí o vemos bizarramente representado neste não-corpo, ou seja, nãohomem, não-mulher, não-humano, não-animal, não-Deus. Lembrando Milner e seu Les Noms Indistincts: “Frente a S, que distingue, e a I, que liga, R é então o indistinto e o disperso como tais.”30; 31 Nesta representação aparece algo que remete ao real do pai, esse resto “varrido para debaixo do tapete” na formação do ideal que engendra o supereu. O pai pré-edípico, que é indistinto em muitos aspectos: - anterior ao assassinato e à lei unificadora que marca a passagem para a cultura, é pré-totêmico, não é humano nem animal, nem sagrado nem profano é non-sacer, não apartado de uma cadeia significante que ainda não existe; - anterior a partilha dos sexos e a organização genital, mostra-se com pênis (ou traços masculinos secundários, como a barba) e mamas, não que deva ser compreendido como a mãe fálica, não barrada, mas como uma figura anterior à dialética do falo e sua significação. Numa análise, este elemento do horror se manifesta justamente quando algo do real se apresenta em seu estado puro, disjunto do simbólico e do imaginário. Logo, temos esta manifestação mefistofélica como a ruptura da boa-forma da trinitárioparanóide cadeia borromeana tão próxima do paradigma religioso do catolicismo. No capítulo quinto de minha tese, em que procurei tratar da problemática dos nomes e das nominações em Fausto, acabei por nomear o seu célebre deuteragonista Mefisto, ou simplesmente o diabo ou demônio. Utilizei essa figura controversa para dar conta da também controversa irrupção do Sinthome ou das nominações como a responsável por uma reviravolta nas proposições assentadas da clínica psicanalítica. Fausto, na obra de Valéry (Mon Faust), define seu destino como “faire et défaire et refaire tous ces nœuds que sont les événements d’une vie” 32 ; 33 . E para isso - pensando aí evidentemente os nós lacanianos - vimos que o pactário faz uso de seu companheiro, seu Schwager, o demônio Mefisto. Nisso, aponto a quaternidade desatadora e reatadora que rompe com a sequência harmônica e “ortopédica” pela irrupção do quarto elemento dionisíaco. Isso, a irrupção do quarto elemento ou do número quatro como o caótico e demoníaco, contrapondo-se ao religioso, ao trinitário regulado e ortodoxo, encontra-se “Face à S qui distingue et à I qui lie, R est donc l’indistinct et l’disperse comme tels”. MILNER, Jean-Claude. Les Noms Indistincts. Paris: Seuil, 1983. p. 9-10. 32 “Fazer e desfazer e refazer todos estes nós que são os acontecimentos de uma vida”. 33 VALÉRY, Paul. Mon Faust (Ébauches). Paris: Gallimard, 1946. p. 33. 30 31 20 nos vários Faustos da literatura, bem como na conhecida expressão brasileira “fazer o diabo a quatro”, algo que se costuma dizer do que parece estapafúrdio, absurdo ou simplesmente inusitado. Realmente, assim parecem ser compreendidas por muitos leitores e psicanalistas as propostas do último Lacan. Nas várias evocações de Fausto, aparece o número quatro, que mais diretamente remete ao mundano (quatro elementos) em detrimento do divino (unotrinitário), na simbologia alquímica geralmente associada ao mito. Mas é, afinal, muito disso que se trata no Sinthome: “dessacralizar” o pai e o sintoma a ele associado, devolvendo ao mundano o que lhe pertence. Já no inaugural Faustbuch do editor luterano Johann Spies está presente o Regimento Quádruplo do inferno em seus pontos cardeais (Und sind unter ihnen vier Regimente königlicher Regierung 34 ) 35 . Belzebu seria o responsável pelo setor setentrional; Belial, pelo meridional; Astaroth, pelo ocidental e Lúcifer, como é também conhecido, seria o Príncipe do Oriente. Na evocação do Doctor Faustus de Marlowe, primeiro fausto autoral, o drama se inicia com o encantamento pelo tríplice nome de Jeová para chegar ao também tríplice nome dos Deuses do Aqueronte, sendo Mefistófeles o quarto, disjunto e descontínuo em relação aos outros três, a ser por eles enviado. Sint mihi Dei Acherontis propitii, valeat numen triplex Jehovae, Ignei, Aerii, Aquatici, Terrini, spiritus salvete: Orientis Princeps Lúcifer, Belzebub inferni ardentis monarcha, et Demogorgon, propitiamos vos, ut appereat, et surgat Mephostophilis. (Que me sejam propícios os deuses do Aqueronte! Que me valha o nome tríplice de Jeová ! Salve, espíritos do fogo, do ar, da água e da terra ! Lúcifer, Príncipe do Oriente, Belzebu, monarca do ardente Inferno, e Demogorgon, nós vos rogamos para que surja Mefistófeles e se manifest)36. Marlowe parece “brincar com fogo” ao usar, em sua época, do nome de Jeová entoado na sacra língua romana para que sua personagem evoque o demônio: Quid tu moraris; per Jehovam, Gehennam, et consecratam aquam quam nunc spargo ; signumque crucis quod nunc facio ; et per vota nostra ipse nunc surgat nobis dicatus Mephostofiles. “E está dividido entre eles em quatro regimentos o governo real”. SPIES, Johann (Editor). Historia von D. Johann Fausten: Dem Weitbeschreybten Zauberer und Schwarzkünstler. Stuttgart: Reclam, 1587 / 1992. p. 23. 36 MARLOWE, Christopher. Doutor Fausto: The Tragical History of the life and Death of Doctor Faustus (Edição Bilingue). Sintra: Publicações Europa América, 2003. p. 45. 34 35 21 (Por que demoras? Por Jeová, Geena e a água benta que agora esparjo e pelo sinal da cruz que agora faço, e pelos nossos votos, fazei que surja o próprio Mefistófeles para nos servir)37. O Diabo como “nascido do quatro” também está na invocação do Fausto de Goethe. Eis o encantamento que usa para trazer Mefistófeles ao seu encontro: Erst, zu begegnen dem Tiere, Brauch’ ich den Spruch der Viere: Salamander soll glühen Undene sich winden, Sylphe verschwinden. Kobold sich mühen (Primeiramente, para enfrentar a besta Preciso da evocação dos quatro Salamandra se abrase Ondina se retorça Silfo saia da toca Gnomo apareça)38. Aqui, Fausto procura extrair o demônio, Verworfenes Wesen (ente forcluído), como a ele se refere, dos elementos mundanos, terrenos; respectivamente, do fogo, a Salamandra; da água, Ondina; do ar, Silfo e da terra, o Gnomo (Kobold) 39. São quatro os elementos do mundo material (Keines der Viere / Steck in dem Tiere40). Essa associação do número quatro estará igualmente presente no Doktor Faustus de Thomas Mann, conforme coloquei no Capítulo 7 de Fausto e a Psicanálise41, em suas incursões pelo quadrado mágico de Dürer. Contudo, a questão central aqui não é nenhum estudo de numerologia simbólica, mas sim o fato de que o mito de Fausto, feito Literatura, dará voz a esse elemento reprimido ou recalcado, evitado, banido, ativamente calado para além da trindade primordial (da divina, do triângulo edípico, das três dimensões, das três pessoas do discurso (eu-tu-ele), etc.). Este Unheimliche parece, porém, ter a melhor tradução, ou melhor expressão no único autor a que recorremos que, em seu Fausto, justamente, prescindirá do demônio. Trata-se de Fernando Pessoa. 37 Idem; ibidem. GOETHE, Johann Wolfgang von. Faust I und II. Colônia: Könemann, 1997. p. 45. 39 FRANTZ, Évelyne; FRANTZ, Jean-Pierre. Avant Propos. In : GOETHE, J. W. Von, Faust I et II. Paris : Larousse, 2004 .p. 40 “Nenhum dos quatro se encerra na besta.” 41 TAVARES, Pedro Heliodoro. Fausto e a Psicanálise: Sopros de Sinthome na forja do pactário. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012. 38 22 De fato, no Fausto – Tragédia Subjectiva de Pessoa a personagem de Mefisto, enquanto tal, inexiste. Será antes incorporada ao drama-monólogo do protagonistaepônimo. Entretanto, em outra obra do poeta português é que veremos a melhor expressão do que seria dar vez e voz ao demônio. Trata-se de A Hora do Diabo, inicialmente concebido em inglês como Devil’s Voice (A Voz do Diabo). Num expediente que nos lembra a comparação feita com a “escuta” voltada às histéricas, outrora tidas por possuídas, Pessoa, parece nesse escrito intentar dar voz ao espírito mais caluniado que caluniador. Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas – por natureza meus amigos – que me defendem me não têm defendido bem. Um – um inglês chamado Milton – fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. Outro – um alemão chamado Goethe – deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas, não sou o que pensam. As igrejas abominam-me. Os crentes tremem no meu nome. Mas tenho, quer queiram, quer não, um papel neste mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio 42. Paródia tanto da anunciação de Cristo quanto do Fausto, o Diabo aparece fazendo às vezes de um anjo Gabriel que, por sua anunciação, pelo Verbo, irá fecundar a Maria (espécie de Gretchen) da historieta. Maria o teria encontrado numa festa à fantasia, caracterizado de Mefistófeles na versão oficial, ou de Fausto numa versão alternativa. O número quatro também está ali presente: já grávida a re-fecundação do diabo se dará no quarto mês de gestação (“A criança, um rapaz, nasceu cinco meses depois”)43. Com essa re-fecundação, depreende-se que surge o atributo do gênio poético do rebento: “É o diabo que verdadeiramente fecunda pelo Verbo o fruto de seu ventre, que o arranca à sua condição de ser qualquer e o sagra poeta de gênio 44 ”. Ele próprio, o diabo, em sua autoapologia, também se apresenta como poeta: “Sou naturalmente poeta porque sou a verdade falando por engano”45”. Fernando Pessoa, em suma, confere ao diabo o papel fecundante da inspiração do gênio poético. Numa nota inédita, Pessoa esclarece seu objetivo com a historieta, que parece ser o de mostrar um caráter inofensivo, num relato quase hagiográfico do diabo: 42 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p. 56. Idem, ibidem, p. 63. 44 Idem, ibidem, p. 29 45 Idem, ibidem, p. 29. 43 23 “considerar o diabo como o espírito do Bem, baseado no fato de que sempre que os investigadores medievais alcançaram alguma verdade na ciência foram ameaçados de morte pelos padres, que o consideravam mágicos e homens que tinham comércio com o diabo 46 ”. Não seria nem o espírito do mal nem o grande Negador. Seria o Tanatos indispensável à existência de Eros: “Tudo vive por que se opõe a alguma coisa, eu sou aquele que a tudo se opõe47”. “Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas sim o espírito que contraria48”. Ele segue esclarecendo que não contraria atos, muito pelo contrário, nega ideias que paralisam. Não é um criador para o homem, dele se apossando e agindo por obsessão, mas o que propicia a ação no homem. “Sou o espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo e cuja alma é um erro49”. Afirma-se senhor do que é fictício “Senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é meu reino, o sonho meu domínio. O que não tem peso nem medida isso é meu50”. Mas é aquele que tem “peito” para afirmar e sustentar esta condição não sendo mais fictício que Deus ou o Universo que sói chamar-se realidade: “Quantas vezes Deus me disse: ‘Meu irmão, não sei quem sou’” [...] “Sou um pobre mito, minha senhora, e, o que é pior, um mito inofensivo. Consola-me só o fato de que o universo – sim, esta coisa cheia de várias formas de luzes e vidas – é um mito também51”. Vemos aí o claro eco do que diz Lacan quanto ao savoir-faire atribuído ao Deus único e do qual se deve apossar o sujeito no que toca ao Sinthome tal qual o artista, seu verdadeiro detentor: “Não foi Deus que cometeu essa coisa que chamamos uni-verso. Imputamos a Deus o que é negócio do artista cujo primeiro modelo é, como cada um sabe, o oleiro [...]” 52; 53. Lacan menciona o “oleiro” demiurgo como o modelo para o artifício do Sinthome, é aquele que é bem sucedido em fazer do um. Do que se atribui a um deus, disso deve-se tornar o possuidor. O deus-oleiro, quanto aos elementos, toma o barro (terra e água), molda-o e sopra em suas narinas o spiritus, o sopro (ar) vital. Mas, dos quatro, 46 Idem, ibidem, p. 13 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p. 44. 48 Idem, ibidem, p. 53. 49 Idem, ibidem, p. 55. 50 Idem, ibidem, p. 58. 51 Idem, ibidem, p. 59. 52 “C’est pas Dieu qui a commis ce truc qu’on appelle l’Univers. On impute à Dieu ce qui est l’affaire de l’artiste, dont le premier modèle est, comme chacun sait, le potier". 53 LACAN, J.. Joyce le Symptôme. In: Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris : Seuil, 1975/2003. p. 64. 47 24 falta aí o fogo que aquece o sangue e o hálito. Esse fogo que é o elemento associado ao diabo em sua morada e ao calor do ímpeto humano. Sem este quarto elemento, que consome e destrói, não há criação possível. Tal elemento não fica de fora no mito de Fausto que vem na trilha de tantas personagens de diferentes mitologias ligadas a um artesão em especial: o ferreiro. “Em várias mitologias, o ferreiro é um poderoso agente de transformação. Rebelde, ligado ao ato prometéico do roubo do fogo e sua domação. Lúcifer torna-se semelhante aos deuses.54” Comentamos a respeito disso55 quando tratamos do “forjar” no mito de Fausto e em seus predecessores em Prometeu e Hefesto, mas cabe aqui acrescentar o que diz o mitólogo Mircea Eliade em seu Ferreiros e Alquimistas56 sobre o papel mítico desses artesãos: “Sua técnica o tornou mestre dos quatro elementos e seus utensílios são carregados de muitas significações simbólicas, de sentidos culturais e intensificadamente sexuais”. Eliade apresenta “uma série de documentos relativos à função ritual da forja, ao caráter ambivalente do ferreiro, às relações existentes entre magia, o domínio do fogo, o ferreiro e as sociedades secretas”. Jerusa Pires Ferreira, motivada ou não por questões de seu nome (ver grifo), em seu estudo Fausto no Horizonte (1995) dedica atenção especial ao tema de Fausto como ferreiro na Literatura de cordel no nordeste brasileiro. Nas inúmeras versões que essa modalidade regional de Literatura elabora para a questão do pacto e do comércio com o diabo, quem geralmente faz o papel do pactário é justamente a figura do ferreiro, como um sujeito que talvez ilustre da melhor forma o que aqui procuramos explicitar quanto à ideia de fazer uso e simultaneamente prescindir do Nome-do-Pai, nessa modalidade “dessacralizada” que o artífice encontra no diabo. As características de “pícaro e malandro” presentes nos Mefistos de origem europeia estarão também presentes no diabo que se apresenta ao(s) ferrreiro(s), mas estes últimos terão astúcia o suficiente para “lograr” o diabo, terminando por uma inversão de 54 FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo: Hucitec / Educ, 1995. p. 77. TAVARES, Pedro Heliodoro. Fausto e a Psicanálise: Sopros de Sinthome na forja do pactário. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012. 56 ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1979. p. 87. 55 25 posição. Ele, o ferreiro, saberá valer-se do diabo sem a ele ter que servir e se entregar, mas saberá fazer uso do “fogo” por ele ofertado. Nessas intervenções, o Ferreiro-Fausto vê-se geralmente entre o demônio e algum santo (sobretudo Pedro) ou o próprio Cristo. Eliade de fato remarca essa característica do ferreiro como uma espécie de iniciado, e, portanto, apartado dos demais por uma série de tabus, já que tem contato com as divindades, independentemente de estas terem um caráter, digamos, maléfico ou benigno. Geralmente, o ferreiro das histórias de cordel sabe lançar mão de sua astúcia e perícia para fazer com que os deuses lhe sejam propícios, fazendo-se favorecidos (Fazendo jus a etimologia no nome de nossa personagem: faustus). Nessa modalidade de Literatura, o cordel, em sua recorrência, o diabo pode equivaler a qualquer Santo (sobretudo São Pedro, São Nicolau e Santo Eloi) como ao próprio Cristo. Isso não seria uma invenção datada e localizada no nordeste brasileiro. Ferreira bem lembra que “no folclore religioso da Idade Média, tanto Jesus como o diabo revelam-se senhores do fogo57”, e uma das histórias mais emblemáticas da forja como o símbolo da transformação alquímica, da extração do suprassumo de uma matéria, está na anedota de Jesus Cristo, o ferreiro, mestre dos mestres (s/d) de Manuel Almeida Filho58: Jesus “lança ao fogo que arde uma mulher velha, esposa ou sogra, e forjando-a sobre a bigorna, transforma-a numa jovem de grande beleza”. Releitura inequívoca do mito de Fausto com o seu rejuvenescimento e a busca do nobre e do belo n’A Mulher (Gretchen/Helena), a anedota remete a esta condição de um saber-fazer-aícom (savoir-y-faire-avec). Em seu O Triunfo da religião Lacan profetisa o que sugere o título, pois para lidar com o horror do real sempre haverá a religião: “A religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”59;60. É a máquina de fazer sentido que se aciona quando o eu já não dá conta da tarefa: “Ela encontrará uma correspondência de tudo com tudo. É, inclusive, sua função”61;62. Questão muito bem 57 FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo : Hucitec / Educ, 1995. p. 83. ALMEIDA FILHO, Manuel. In.: FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo: Hucitec; Educ, 1995. 59 “La religion est faite pour ça, pour guérir les hommes, c’est-à-dire pour qu’ils ne s’aperçoivent pas de ce qui ne vas pas”. 60 LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 87. 61 “Elcanle trouvera une correspondance de tout avec tout. C’est même as fonction.” 62 LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 82. 58 26 ilustrada por Fernando Pessoa, um de nossos autores de Fausto: “No fundo o homem religioso é um hedonista. O instinto religioso geral é um instinto de prazer, de ter tudo resolvido na vida. Deter-se só perante a verdade é doloroso para o homem. A Realidade é muda e fria63”. Mas se a rejeita como engodo, Lacan não se põe indiferente à religião e propõe neste sentido a religião trinitária, o catolicismo, como a verdadeira, “a verdadeira religião é a romana. Tentar colocar todas as religiões no mesmo saco e fazer o que se chama de uma história das religiões é realmente horrível. Há uma verdadeira religião, é a religião cristã” 64; 65. Esta é de fato a mais eficaz no sucesso deste engano em se tamponar ou remendar o que o real desata com o nome de Deus. “O real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender, e a religião terá então muito mais razões ainda para apaziguar os corações”66; 67. A religião, diferentemente da ciência empírica, tem a seu favor a prerrogativa do princípio tertuliano “credo quia absurdum” relegando ao Deus inapreensível e inominável as respostas e os sentidos. Como coloca Angelos Silesius (apud Flusser), nesse sentido, “Deus é um grande Nada, não o toca nenhum Aqui nem Agora, quanto mais se O tenta agarrar, mais Ele te repele68. É inapreensível, mas serve de tapume e causa para todos os buracos abertos pelo real, ou por qualquer dos outros dois registros em que se irrompa a falha na trindade borromeana. Tratando da falha, do desenlace das três consistências de real, simbólico e imaginário, ou coloquemos simplesmente A, B e C, enumerando-as, pois de fato pouco importa em qual delas esteja a primazia ou a ruptura surgida na vida ou numa análise, começamos este artigo falando do Sinthome como a nominação que vem produzir este reatar. A quarta consistência religiosa o D que vem aparentemente reatar o A, B e C sabemos 63 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.p. 50. “La vraie religion c’est la romaine. Essayer de mettre toutes les religions dans le même sac et faire une histoire des religions, c’est vraiment horrible. Il y a une vraie religion, c’est la religion chrétienne”. 65 LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 81. 66 “Le réel, pour peu que la science y mette du sien, va s’étendre, et la religion aura là beaucoup plus de raisons encore d’apaiser les cœurs” 67 LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 79. 68 “Gott ist ein lauter Nichts, Ihn rührt kein Nun noch Hier, je mehr du nach Ihn greifst, je mehr erwidert Er dir”. 64 27 ser sempre e em tudo o D maiúsculo de Deus o único nome comum maiúsculo por aludir a um nome próprio impronunciável ou inexistente69. Sugerindo aqui Mefisto, o demônio, como um nome para este real que se manifesta puro em sua desunião, propomos à quarta consistência sua representação por um d minúsculo (em relação aos anteriores A, B e C) que virá reatar a cadeia de modo singular e pouco harmonioso, mas que retira do inaudito um caráter sagrado e mágico para apontá-lo nesse anteriormente nome próprio (grafado maiúsculo por sua distinção) tornado agora um nome comum, re-associado à cadeia. Talvez aí resida a possibilidade de fazer-se um nome a partir da associação com o elemento demoníaco em Fausto: Encarando o horror demoníaco do real de frente e dele se servindo em nome próprio. 69 É o único caso, ao menos nas línguas latinas, em que se deve usar maiúscula em pronomes (Ele, Lhe, O, Seu, Cujo) quando fazendo tal referência. 28 Comentário e questões para debate sobre a conferência: FAUSTO E O SINTHOME, de Pedro Heliodoro Branco Tavares Pela debatedora: Tania Nöthen Mascarello O conferencista assume diretamente estabelecer uma articulação singular entre os domínios da literatura e da psicanálise. Tratando-se dos significantes arte e psicanálise, ou mesmo mais especificamente literatura e psicanálise, sem dúvida, rios de tinta já foram vertidos a este respeito, mas certamente esta abordagem que Pedro Heliodoro nos apresenta é absolutamente original. Dirigir o olhar para duas de suas paixões, a literatura alemã desde o mito de Fausto de Goethe – mas não só, pois explora o mito como invenção em vários autores – e a psicanálise, me parece mais um passo absolutamente lógico na trajetória deste colega que acompanho já há algum tempo, e que é marcada por agradáveis surpresas sempre muito originais e, se posso dizer, como um efeito esperado. O livro que dá origem às formulações desenvolvidas hoje na Conferência mereceria um detido comentário, impossível neste momento. Mesmo assim, não posso deixar de mencionar. Farei somente uma breve referência à estética apurada da publicação, com um feliz detalhe da tela do importante pintor Catarinense e florianopolitano, Rodrigo de Haro. Trata-se da tela Fausto e Mefisto, que convoca nosso olhar na austeridade da capa em negro. Este feliz achado/procurado leva-nos a considerar até mesmo neste detalhe de abertura, um pacto fáustico do autor com sua obra. Sobre o que se encontra para além da capa, só posso recomendar a leitura. Ainda que o autor afirme que o estilo tem funções teóricas que se sobrepõem às meramente estéticas, Pedro não descuida de sua habitual elegância textual aliada à erudição e ao rigor teórico em suas elaborações. Abro um parêntesis para dizer que parece que tudo conspira a nosso favor, a favor de nosso tema, Le Sinthome. Rodrigo de Haro é filho de Martinho de Haro, artista ainda mais reverenciado que o filho. Ambos têm obra farta e reconhecida, mas de estilos 29 distintos. Rodrigo de Haro, ao inventar seu estilo, absolutamente singular, inovador, teria ido além do Pai, prescindido do Nome-do-Pai, sabendo dele servir-se? São questões como esta, talvez, que fazem do Seminário 23 de Lacan um tema tão apaixonante, como está dito no argumento de nossas Jornadas – denso e apaixonante, que nos lança enigmas. Mas afinal, o que é isso, o Sinthome? Ele nos permite alcançar uma clínica do Real? Diz Lacan que a religião foi pensada para curar os homens, para que não se dêem conta do que não anda. A primazia do Simbólico na clínica psicanalítica, leva consigo este risco. Propõe então o sintoma como o que não anda, o único verdadeiramente Real. Lacan entende o sintoma como uma necessária consequência do amor reprimido ao Pai. Quando o amor eterno ao Pai é reduzido por voltar a ligar-se ao inconsciente mediante a pulsão de morte e é transformado pelo trabalho analítico, pode dar lugar a invenção do Sinthome. Lacan apresenta James Joyce como o paradigma para suas formulações apresentadas no Seminário 23 e estabelece mais uma vez a privilegiada relação da psicanálise com a literatura. A partir do excepcional encontro de Lacan com Joyce e sua singular escritura, marca insubstituível de seu saber-fazer, Lacan convida os psicanalistas a romper com o léxico, com o sentido comum da linguagem cotidiana da comunicação. Pedro Heliodoro, como acabamos de ouvir, a partir de Lacan foi buscar no mito de Fausto os alicerces para suas proposições sobre o saber-fazer sinthomático. Sem mais delongas, apresento algumas questões para iniciar o debate. Para isso quero destacar um dos pontos centrais das idéias desenvolvidas na conferência, repetindo as palavras de Pedro, que me provocaram muitas reflexões. Cito nosso conferencista: Fausto abandona a via comum da ligação ao pai enquanto sintoma, ou seja, ao Deus-Pai em sua prévia organização trinitária (Pai - Filho – Espírito Santo, sendo este último o elo sintomático). Isso, tal qual a dissolução que Lacan demonstra em Joyce, entre os três registros da experiência psíquica (RealSimbólico-Imaginário), para, a partir do que Mefisto representa, refazer esta ligação ao seu próprio modo. Eis o que implica o quarto elemento, ou quarta atadura: o Sinthome lacaniano ou o pacto fáustico com Mefistófeles. Gostaria que desenvolvesses um pouco mais o que te levou a equiparar Sinthome e pacto fáustico. Em outro lugar (“Subversão do sujeito e dialética do desejo”, Escritos, p. 8234) Lacan explora – a partir de Hegel –, o pacto que se instala entre o Senhor e o Escravo, o que garante o avanço do Simbólico sobre o Imaginário, fazendo um corte na violência da luta à morte por puro prestígio. Escravizado, o sujeito goza de trabalhar para o Senhor. 30 Este campo está configurado como o da produção. A questão é o que diferencia este pacto com um amo diabólico, daquele campo da invenção e do registro do Real? E ainda, se não fugir das tuas proposições, se chegaste a estabelecer o que afasta os mitos de Fausto de serem tomados como diferentes versões do fantasma originário da castração, da concepção que te norteia de se tratarem de singulares Sinthomes dos diferentes autores que se inscrevem na lógica fáustica. 31 Eu e nós Alessandra do Couto Valentim1 No Seminário 23, “O Sinthome” 2 , Lacan propõe que a correção do erro na amarração da cadeia topológica de Joyce é feita através de seu Ego. O que teria o Ego a ver com o Sinthome, e como poderia desempenhar a tarefa de fazer-se consistência capaz de recuperar o Imaginário de volta a uma cadeia com dois registros já atravessados um no outro (Real e Simbólico)? A proposta seria pesquisar o Ego Joyceano, começando com o próprio vocábulo: por que motivo, falando em Francês, Lacan usou o termo Ego e não Moi? Outro ponto de interesse foi buscar o modo como o Ego de Joyce corrige topologicamente a cadeia fazendo surgir o Sinthome. Esse breve escrito tenta articular alguns recortes do livro de Roberto Harari, “Como se chama James Joyce”3, com o capítulo 10 do Seminário 23 de Lacan4, “A escrita do Ego”, mais o artigo de Freud “O Ego e o Id” 5. O termo ego Por que o próprio Lacan se referia ao Ego de Joyce por Ego e não por Moi ? Moi, seria, em resumo, o conceito criado por Lacan para localizar a sede das identificações. Tudo começou com a tradução do artigo original de Freud, “Das Ich und das Es”, para o Inglês. Os ingleses decidiram adotar a palavra Ego, do Latim, para traduzir o Ich freudiano, que, no Alemão, é o pronome pessoal da primeira pessoa do singular. Essa solução não deu conta da amplitude do alcance teórico do conceito de Ich, o que Lacan conseguiu resolver usando dois termos: Je e Moi. Je, que é o Eu em posição de sujeito, sujeito da enunciação, Simbólico, correspondente à primeira pessoa do singular; 1 Psicanalista, adjunto da Maiêutica Florianópolis-Instituição Psicanalítica. LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. 3 HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador: Ágalma e Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2002. 4 Idem 3 5 FREUD, S. “O Ego e o Id”. In: ESB. OC. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago. 2006. 2 32 e Moi, que corresponde à auto designação em posição de objeto, herdeiro da imagem especular, correspondente à terceira pessoa do singular Não se pode deixar de notar que na tradução para o Português a solução não foi mais feliz que a dos ingleses, uma vez que adotamos um termo único para as duas posições lacanianas: o Eu. Causa surpresa ver Lacan, naquela altura de seu percurso, usar a palavra Ego, uma vez que no decorrer da história da Psicanálise ela passou a ser mais que uma palavra, englobando um pensar e fazer psicanalíticos completamente diferentes, aliás opostos, ao que era o conceito proposto por Freud e Lacan. Segundo a interpretação dos ingleses era preciso fortificar o Ego, torná-lo uma fortaleza. Isso foi levado ao seu expoente máximo por essa linha da psicanálise e passou a definir uma Escola dedicada ao fortalecimento do Ego: a Psicologia do Ego. É difícil acreditar que Lacan poderia compactuar com a Escola da Psicologia do Ego, a não ser que fosse como paródia ou ironia. Harari encontra evidências dentro da obra de Joyce, para conjeturar sobre a intencionalidade do uso que Lacan faz da palavra e do conceito de Ego no caso de Joyce 6. Ocorria que Joyce reclamava de sua constante angústia econômica (um tema de sua pèreversion: o pai quebrado, pobre) e mencionava sua ambição: sua meta vital era dotar-se de um mecenas, alguém que o sustentasse financeiramente. E como ele chamaria alguém que alcançasse esse propósito? Assim o refere o próprio Joyce numa carta a seu irmão Stanislaus: “Nessas circunstâncias eu talvez também fosse um EGOarca” 7. O sufixo -arca (como em monarca, oligarca) denota um mando, um governo, nesse caso o mando do Ego, seu próprio Ego. Assim, a escrita é essencial ao Ego de Joyce pois, em poucas palavras, se ali o Ego é quem manda, há o Ideal do Ego manifestando seu anseio explícito, apontando a via do gozo. Ali o gozo está para além de qualquer demanda ao Outro, sua escrita é ininteligível, e como diz Lacan, Stephen Dedalus, personagem do primeiro romance de James Joyce: Retrato do Artista Quando Jovem, “é Joyce na medida em que decifra seu próprio enigma”8 ele, ao mesmo tempo, faz enigma para outros. 6 HARARI, R. Como se chama James Joyce? (A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan). Salvador: Ágalma e Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2002, p.305. 7 Idem 8 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p.67. 33 Papel do ego Lacan afirma que o Ego de Joyce é diferente do nosso. No Seminário 23, “O Sinthome” há algumas passagens nessa direção: “Alguma coisa lhe aconteceu (a Joyce) e faz com que, nele, o que chamamos correntemente de Ego, tenha um papel muito diferente do simples papel – que imaginamos simples – que ele tem para o mais comum do que chamamos, de modo apropriado, os mortais”9 “Porque Joyce é tão ilegível? (...) Talvez seja porque não evoca em nós simpatia alguma. (...) Será que alguma coisa não poderia ser sugerida pelo fato de ele ter um Ego de natureza bem diferente?”10 Que seria então essa diferença? Como é o nosso Ego, o do “mais comum dos mortais”? Em Freud, o Ego é uma organização coerente de processos mentais, produto do contato da superfície do Id com o mundo exterior. No artigo O Ego e o Id11, entre outras coisas, Freud diz que o Ego deriva das sensações corporais, da projeção mental da superfície do corpo. O Ego seria um ego corporal12. Com funções como intermediar as pulsões do Id com o Princípio da Realidade, proteger o sujeito (sede das pulsões de autoconservação) e tendo os comandos da ação motora, seria de se esperar que, durante uma surra como aquela que Joyce recebe dos colegas, o Ego dos simples mortais experimentasse uma variedade de sentimentos como desejo de fuga, raiva, ira, violência, ódio pelos agressores, gozo, prazer. Mas Joyce, após a surra, relata não ter sentimento algum pelos colegas. Escorregamento do Imaginário: a surra Joyce, adolescente, levou uma surra dos colegas. Buscada, ou não, através de provocações, esse foi o momento que levou ao deslizamento do Imaginário para fora da cadeia. 9 Idem 9, p.143. Idem 9, p.147. 11 FREUD, S. “O Ego e o Id”. In: ESB. OC. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Vol. XIX. 12 Idem, p.39. 10 34 Recontando o fato, diz Joyce que durante a surra sentiu o corpo se soltar como uma casca. Depois da surra, nas palavras de Lacan, “Só resta ao grande I (Imaginário) cair fora. (...) Ele desliza, a relação Imaginária não acontece.”13 O Imaginário escapou, deslizou. Se escapou é porque não estava enlaçado borromeanamente. Lembremos que a condição inicial para um enlace Borromeu é que duas consistências estejam separadas, soltas uma em cima da outra, superpostas, deixando a possibilidade para que venha uma terceira consistência e enode os três anéis borromeanamente, fazendo-os permanecer em cadeia. Uma vez em cadeia, esses três elementos podem ser soltos e reamarrados ad infinitum pelo corte de qualquer um dos três elementos, enfim, por novas e dinâmicas amarrações. Em Joyce isso não acontece pois dois anéis não estão soltos. O Real já estava cingido, seu buraco já atravessado pelo Simbólico. Topologicamente isso se chama Enlace de Hopf. Trata-se de uma cadeia olímpica de dois elementos, onde um elo passa por dentro do buraco do outro. Assim, em Joyce, a relação entre esses dois elementos, Real e Simbólico, não é afetada por um terceiro elemento. Figura 1 - Duas consistências separadas. Posição inicial que permite a formação do enlace Borromeu. 13 Idem 9, p.147. 35 Figura 2 - Enlace de Hopf. Posição inicial em Joyce. Dessa forma, entende-se que não havia mesmo jeito do Imaginário entrar borromeanamente na relação. Ele se ajeitou por ali mesmo, ficou precariamente perto do Real e do Simbólico, apenas aparentemente funcional. Assim, esses três elementos (R S I) em Joyce, não formavam uma cadeia, o Imaginário estava só apoiado no Real e Simbólico. Figura 3 - O Imaginário não está enodado Pois bem, Joyce não odeia os colegas, não tem nenhum sentimento por eles. Não houve gozo, mas uma relação de repugnância, asco de seu próprio corpo. Segundo Harari, é uma ideia de si como corpo que tem peso de Ego para Joyce. Ideia de si como “possuindo” um corpo, “tendo” um corpo, como quem tem um móvel. E, naquele momento, um móvel asqueroso. Então, quando da surra, ele perde essa relação com a imagem do corpo, perde essa imagem especular identificada com o Ego, i(a), fruto 36 daquela primeira identificação jubilosa, antecipatória, da criança que se vê no espelho como um corpo inteiro e funcional. Caindo essa imagem (pequeno i), cai também a consistência Imaginária, (grande I). Harari chama essa circunstância de forclusão da imagem especular, enquanto sustentação do Ego. Amarração – ego como imagem especular: i(a) Deixar-se cair é da operância do objeto a. Geralmente, na relação com a imagem especular i(a), o sujeito tem de deixar cair de seu corpo (pequeno i) os objetos a. “Vão-se os anéis, ficam os dedos.” Vão-se os objetos a, fica o (i). No caso de Joyce, ocorre o contrário: o objeto a é que fica e o que se perde é a imagem, (pequeno i), a qual arrasta consigo o Imaginário. Quando o Ego tenta o resgate desse pequeno i, isso acontece no corpo, pois este se inscreve no Imaginário. Joyce deixa cair o corpo como a uma casca. Nesse ponto a reparação é imperativa pois ali Joyce passa a se relacionar com seu próprio corpo com uma relação de asco. Conforme Harari, ali aparece o Ego como consistência a recapturar o Imaginário desprendido, ou seja, o corpo desprendido14. Passando pelo estádio do espelho, o que há para o sujeito é uma imagem do corpo como todo, como inteiro. Não se interessar pelo que aconteceu a seu corpo, a sua imagem, naquela ocasião, mostra como o Ego de Joyce tem uma função diferenciada. Talvez um Ego Imaginário, narcísico? Parece plausível: o Narcisismo está presente no Sinthome. A incidência narcísica no Sinthome pode ser expressa pela palavra-valise NARCISÁRIA; é Narcisismo, é secundário e é necessário. O Ego, fazendo uma correção diretamente ali onde havia o lapso, repara o enodamento entre Real e Simbólico, e tem como consequência prender o Imaginário que tinha caído fora. Em suma, a ação do Ego não pôde ser feita diretamente na consistência Imaginária, foi feita no lapso entre Real e Simbólico. 14 Idem 7, p.308. 37 Figura 4 - Ego entre o Real (R) e o Simbólico (S) tem como efeito o enlace do Imaginário (I), que assim pode permanecer em cadeia. Assim, a cadeia é recomposta, mas não borromeanamente. O Ego corrige a relação que não acontece, a relação Imaginária. Sinthome Não se deve confundir Ego com Sinthome. Quando é o Sinthome “comum” que ata, aquele Sinthome que vem do sintoma, então o enlace é Borromeu: qualquer um dos elementos que seja cortado desfaz todo o enlace. Em Joyce, a cadeia resultante não é do tipo Borromeu: o que há é um Ego que, corrigindo a cadeia, simplesmente permite ao Imaginário operar pelo fato de permanecer enodado, fazendo relação. Assim, em se tratando de Sinthome, o quarto nó pode ser Borromeu ou não. Quanto ao fazer analítico, em relação ao Sinthome, não há nada a fazer para analisá-lo, naquele lugar há o alojamento de um gozo que produz um ponto de enlace onde antes havia uma falha. Ali o sujeito frui de gozo mental. Joyce gozava ao propor enigmas, queria que se ocupassem dele por trezentos anos. Aqui estamos. 38 O real da letra Ana Virginia Nion Rizzi May1 A trajetória do Real, enquanto conceito passa por modificações. Modificações que vão passando por diferentes conceituações, que são passíveis de mudanças a partir da clínica. Entendendo o real como corte, na medida que o corte é constitutivo e externo ao discurso, quer dizer que algo o constitui e ao mesmo tempo algo que está fora dele. Esse corte Lacan situa como Verwerfung, onde na experiência clínica trata-se de tocar em pontas do Real. Lacan a partir do seu retorno a Freud, retoma o conceito de Verwerfung traduzido como rejeição em Freud e forclusão em Lacan - que reaparece no Real2 . O exemplo é a alucinação que ocorre com o Homem dos Lobos quando alucina o dedo cortado3. O que vem no Real alucinado é nesse caso um pedaço do corpo não simbolizado4. Por outro lado está o recalque: Verdrangung situa o recalcado. Isto podemos ver no exemplo do Esquecimento do Nome Próprio Signorelli, onde recalca Sig produzindo o sujeito dividido e desloca para outros nomes porque ele estava ligado ao conteúdo de morte e sexo.5 A partir do Seminário “O objeto da psicanálise”, Lacan elaborou uma outra maneira de entender o Real: aliou a função da cadeia significante em relação à lógica. No seminário “Mais, ainda”, o Real só se atinge por uma escrita definida como ciência do Real: o impossível só pode ser discernido por uma modalidade lógica, é aquilo que deve ser excluído para que o discurso adquira coerência lógica. Por isso é, então, o Real o que “não para de não se escrever”.6 Psicanalista, membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. LACAN, J. Seminário 3: As Psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 57. 3 FREUD, S. “Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos.” [1917-18]. In: ESB. OC. Vol. XVII. 4 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 109. 4 CONTÉ, C. O Real e o Sexual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 139. 5 FREUD, S. “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana.” [1901]. In: ESB. OC. Vol. VI. 4.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p.22 6 LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda [1972-73]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 81 1 2 39 Este trabalho vai ao encontro do que Lacan situa no seminário XXIII, o Real pautado desde outro prisma. A importância radica na passagem do inconsciente para pulsão. Pulsão que se traduz em pedaços de Real, em pedaços de lalangue que emergem dos cortes provocados pela Pulsão de morte 7 . O Real intervém de maneira crucial e incisiva para destronar o significante como insígnia. Agora aponta a um traço fônico aliado ao Real. Se antes era o sujeito o que representava um significante para outro significante, agora o sujeito se representará no nonsens - sem sentido da voz pulsional, resto vocálico, polifônico desabonado do inconsciente8. Este seminário aborda o Real de outra maneira. A escrita de Joyce reporta ao Real da letra. Lacan 9 se reporta à letra dizendo que “a escritura, a letra, está no Real, o significante, no simbólico”. Na obra de Joyce e, dando o acento em Finnegans Wake, incide aquilo que há de mais inusitado, de inovador, dando voz ao mais real na emissão sonora, rompendo as amarras da copulação entre o Imaginário e o Simbólico produtores de sentido, para mergulhar no Real. Se o significante é o que representa o sujeito para outro significante, o sujeito se encontra entre, onde há pura divisão entre um e outro. O sujeito não é representado nem pelo seu antecessor nem pelo seu sucessor, ele é entre um e outro. Deixa de lado significante que remete a uma significação, quebra o elo das palavras com a imagem, perde o laço que reporta ao narciso como à sua imagem e semelhança. Esta, está perdida. Perde-se para encontrar um outro sentido, já não mais decorrente da teoria do significante. Para Marc Darmon, o significante é pura diferença, a diferença entre dois significantes10. A letra possibilita a carência de ambiguidade, de duplo sentido, porque bane a duplicidade, ela traz a identidade com ela mesma. Quando se joga com o significante se joga com o sentido. Enquanto a letra cai, parece que se desprende de sentido. Ao cair no inconsciente faz substituições, jogos, cópulas, ela visa o gozo. Trabalha para o gozo. 7 LIMA, M. N. Linguagem na Psicanálise. In: CLINAMEN, Florianópolis, n. 01, p. 61, 2001. HARARI, R. Como se chama James Joyce? Salvador: Ágalma e Cia de Freud, 2003. p. 89. 9 LACAN, J. Lituraterra. Em Che vuoi? [1971-1986] In: Psicanálise e Cultura, Porto Alegre: Cooperativa Cultural J. Lacan, ano 1. p 28. 10 DARMON, M. “Revenamento”. In: MELMAN, C. O Significante, a letra e o objeto. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. p.65 8 40 A ruptura entre objeto e gozo sofre diferentes destinos, Sinthome não é sublimação. Sublimar é elevar o objeto à dignidade da coisa, ganhar um estatuto de supremacia, uma promessa de um gozo. Guarda em última instância uma ligação com objeto, mesmo que ele seja objeto perdido, há uma amarração do Imaginário que permite concatenar, fazer elo. Há possibilidade de inventar um arranjo diferente, algo a mais que lhe muda sua qualidade. O sujeito se faz e ao fazer-se se exprime naquilo que realiza. Por outro lado, Sinthome é fazer suplência com a letra, com o Imaginário reamarrado. Se a sublimação consegue elevação do objeto para alcançar um gozo que conduz à dignidade, o Sinthome alcança a L´âme-à-tiers, o espírito, a terceira, a matéria do real que Lacan designa alma.11 Joyce faz letra, no Real da Coisa. Faz uma elaboração que lhe escapa ao sentido. Se o significante é polifônico, o Real da letra não deixa dúvidas, aparece como algo instransponível. Decompõe a língua, perde o arraigo da língua materna, utiliza várias línguas diferentes, entrelaça-as, faz trocadilhos, corta, decompõe, pulveriza até degradar o óbvio, o sentido entranhado, para chegar ao osso, ossoobjeto.12 Lacan o chama desta maneira no seminário XXIII. Engendra a possibilidade de dar novos significados porque quebra o sentido, aponta para um “curto-circuito de sentido” e desenraizando a filiação da palavra, desterra a raiz, corta com toda a philia, entendida com ph - filiação que guardava no seu cerne a evolução histórica. Rompe os traços que o ligavam com o primordial.13 O signo guarda relação com o objeto. O signo representa com um nome o objeto. Os signos carregam fonemas. A leitura do signo pode contar com a separação do objeto. A letra é o Real, como uma borda cujo objeto se desprende pela introdução da linguagem. Ela é estruturada e localizada no significante. Sem presumir fazer uma análise aplicada, a maneira como o artista revela o contato com o inconsciente é pertinente à sua estrutura. Joyce não era psicótico, mas as deformações impostas pela censura para que o recalcado possa retornar não se encontravam ao nível da estrutura neurótica onde o recalcado encontra seu destino através GUERRA, A. M. “Sutilezas do tratamento do Real no final do ensino Lacaniano”. In: Saber Fazer com o Real” .Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2009. P. 140. 12 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 141. 13 Idem, ibidem. 11 41 do sintoma, do ato falho, do sonho. Joyce não faz obstáculo, goza com os restos dos trocadilhos, das palavras cruzadas, com as reminiscências vocálicas que velam o Real. Lacan se pergunta se Joyce era louco.14 A “loucura” lhe permite adentrar em esferas de outros sentidos. Os significantes cortam, pautam, delimitam o sujeito que é afetado pelos significantes primordiais. Nem tudo é significável, o significante faz marca no corpo, mas pelos sentidos adjudicados engana, diferente da angústia que é aquilo que não engana. Não engana porque a angústia traz um Real que toca o sujeito. Na escrita aparece um precipitado do significante. Precipitado que Lacan alude, como se fosse um resto, algo que decanta, que se desaloja da sua matriz. Como fazer menção de algo - em francês mention, aporta a mesma raiz mensonge: dizer algo que não é necessariamente a verdade. Ao escrever, aponta para o dizer, diz porque mente, diz para além do dito. Dizer mensongeando, escrever mentindo. Mentindo encontra o osso, mentindo encontra o real. Lacan prossegue em que a escrita, só se alude a ela escrevendo, mentindo porque dribla a philia. A philia é do registro do Imaginário, do terreno da identificação. Ela cai, desliza-se porque não há engate, a philia desloca desde uma raiz para outros descendentes, quebra este saber philial. O nó bó não pertence à lógica Aristotélica em que a verdade da verdade é outra verdade, no nó bó a verdade da verdade é uma mentira. Porque para falar a verdade, por exemplo, a verdade do melancólico: “sou um merda, não sirvo para nada” - tem que adoecer para falar essa verdade. Para viver, precisamos do engano de que nos cremos bons, de que fazemos o bem. Como aponta Harari em “Como se Chama James Joyce”, para poder suportar a contradição inerente ao falante.15 O nó de Joyce se consegue escrever porque algo fez suplência: sua escrita. Nela capta algo do Real, a verdade da verdade não como na lógica aristotélica, e sim, nos mostra Lacan, a escrita Joyceana aponta para o Real, qual a medula, aquilo que sustenta a carne, o osso, ossoobjeto, essa escrita que é letra. 14 15 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 141. Idem 9, p. 89. 42 Nós não somos nós? Carlos Augusto Monguilhott Remor1 Nada se sustenta só. Esta topologia, devido a sua inserção matemática, está ligada a relações, a relações de pura significância, ou seja, por que estes três termos são três, vemos que a presença do terceiro estabelece, entre esses outros dois uma relação. Isto é o que quer dizer o nó borromeu. Lacan A antiga questão pelo ser é muito pregnante. O ser falante tem verdadeira obsessão por ela: de tudo, quer saber “o que é isso?” Esse fascínio é também a questão da identidade, tema central da psicologia, mas não da psicanálise. Nas psicologias, se expressa nas formas ônticas, até as dirigidas a si mesmo, como o “quem sou eu”, pela qual Lacan inicia o seminário das Identificações. 2 O título privilegia a forma negativa, já que a forma positiva não é a equivocação própria do inconsciente. “Se há algo, [diz Harari], isso acontece porque se recorta sobre um inexorável contexto de ausência”. 3 Daí também a questão do termo lacaniano da exsistência, ao contrário do existencialismo. Aparenta uma identidade, mas pela negativa, ou seja somente aparência de identidade: “nós não somos nós?” A identidade é essa fórmula matemática da igualdade, na qual é possível dizer que isto é aquilo; ou, que isto é isto, ou ainda, que isto é assim. O “é” marca uma afirmação plena, rotunda, estável, aponta à completude e à essência, não combina com a psicanálise. Lacan enfatiza a organização do sujeito ao redor de um ou mais buracos4 diz que o inconsciente é ético, em contraposição ao ôntico, exatamente pelo fato de não haver essência, mas sim de se sustentar na falta. De certa forma, só podemos dizer o que o inconsciente não é, nunca o que é, motivo de tantas Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. LACAN, J. Seminário 9: A Identificação [1961-62]. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. Publicação para circulação interna. p.17. 3 HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.51. 4 HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.51. 1 2 prescrições negativas por parte de Lacan. Além disso, o título se constitui da forma negativa – “nós não somos nós” – tanto quanto da forma interrogativa, ambas ao estilo das prescrições lacanianas e talvez até freudianas também, ao contrário de uma ontologia do todo estável e essencialista. O primeiro “nós” é tanto o pronome quanto o substantivo que designa o enlace. Igualmente o segundo também é tanto um quanto outro. Assim, nós somos ou não esses nós borromeus? Claro que não somos o próprio enlace – de novo a forma negativa – mas nos constituímos assim, pelos enlaces, são eles que nos colocam nos lugares, tanto discursivos quanto estruturais, das estruturas clínicas mesmo, posto que o Seminário 23, discute esse tema quanto ao ego de Joyce, mas também quanto ao trevo, como mostra da psicose. A crença na identidade é um imaginário social advindo de uma afirmação narcísica do eu, que tenta se fazer um, procurando lutar contra a divisão, a partir da crença no um unificante, no um da totalidade,5 marca a cristalização egóica da crença na inteireza do eu. Após os anos 60, Lacan deslocou seus estudos em direção à topologia das superfícies ou variedades bidimensionais. Embora bidimensionais na matemática, ele tratou estas superfícies do seu modo habitual: de “importação do que lhe serve”. Na topologia lacaniana, podemos ver também na consideração ao toro, mais do que a questão das superfícies. Esta área estuda objetos como o toro, a banda de Móbeis, o crosscap, a garrafa de Klein e o nó borromeu. Quanto a nós, mais diria que temos características tóricas, Lacan diz que somos tóricos, ao mostrar as operações topológicas com o toro. Contudo, podemos pensar que estamos mais para cilíndricos, pois nossos buracos permitem as trocas com o mundo, o que fica questionado nisso é o caráter de externo e interno. Nesse ponto aparece o que mostram os enlaces borromeus, ou seja, a preservação do buraco, já que no nó borromeu [Bô] não há atravessamento do buraco pelas outras consistências para que todas fiquem amarradas. Essa preservação se traduz pelo fato de que o enlace, ao não passar pelo buraco, mas sim pelo falso buraco, mantém aberto o buraco. Assim, é o buraco que permite a sustentação do nó, mas sem que haja atravessamento através dele, mantendo-o. O atravessamento do buraco, mais caracterizaria o Sintoma do que o Sinthome, seria sua obstrução e não sua preservação. O buraco atravessado estaria, por assim 5 LACAN, J. A Identificação. Op. Cit. p.170. 44 dizer “ocupado”, daí as expressões de esburacar o sintoma, o fantasma... Além disso, a condição Bô é a de três, no mínimo. Essa terceiridade, Lacan a refere na paronomásia do que chamou moterialisme, ou seja, do materialismo da (mot) palavra, seguido de outro jogo homofônico de l’âme-a-tiers, que soa como “a matéria”. Embora nada fácil de traduzir, pois designa a alma em, ou a, ou de três, ou tudo isso em terceira instância. 6 Essa materialidade é o privilegiado no que concerne a alma, que não tem origem nem substância, pois só se sustenta nesse ‘a três’ borromeu, como lógica ternária, nunca bivalente ou bijetiva. Essa alma, que Lacan refere é a questão também da tradução do seele, de Freud, que foi, para nós, traduzido por ‘mental’, mas ao qual Harari contesta que denota “do intelecto” e critica pela alegação de que contém uma pretensão objetivante e intelectualista. Afirma que assim, se há alma, esta não está por debaixo de nada, mas sim sustentada a três. Descarta o psiquismo do falante como composto por estágios, níveis ou similares.7 Lacan privilegia o significante como o que representa o sujeito para outro significante. O que o primeiro significante tem a ver com o segundo, nessa relação triádica? – Trata-se de uma referência topológica borromea, na qual um primeiro registro enlaça o segundo através do terceiro, ou seja, é de segunda ordem, nunca o registro é enlaçado por si mesmo, nem pelo outro, mas pelo terceiro. A Topologia é um ramo recente da Geometria 8 que se preocupa com o aspecto qualitativo dos objetos e nesse sentido ela independe do número. Tamanho e forma não são propriedades topológicas. Os fios da cadeia borromea não são só fios, também conformam letras. Então, o trabalho letrino de Joyce é a sua derrubada em ato, do olimpismo da palavra; é a mostra do tênue laço borromeu capaz de unir as letras de uma palavra. Nós, os falantes acreditamos no olimpismo da palavra, na legítima defesa da “boa” sintaxe, do significado preciso. Pois Joyce e Lacan ensinam, sobre o borromeanismo da palavra. A relação entre os elementos compositivos de uma palavra é precária. Tais elementos, pois, são movíveis, removíveis, cortáveis e – no dizer de Lacan – novamente suturáveis mediante engates enroláveis (épissures). Por isso, a palavra é qualquer coisa, 6 HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.66. HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.67. 8 Ciência que investiga as formas e as dimensões dos seres matemáticos; as propriedades de um conjunto de elementos que são invariantes sob determinados grupos de transformações. 7 45 menos uma unidade sólida, indissolúvel, perene. Algumas diferenças entre o Sintoma e o Sinthome são fundamentais de se comparar. Começando pelo Sintoma: este é remissivo, ou seja, trata-se da cadeia significante em sua remissão do S1 ao S2, com seu retorno sobre o S1. O Sinthome não é remissivo, tratase da cadeia Bô, não remete de um ou outro, mesmo porque sua condição mínima é de três. O Sintoma acaba por trazer um caráter de insuportabilidade ao sujeito, quanto ao retorno do recalcado, enquanto o Sinthome, pelo contrário, mostra seu “avesso”, a interversão topológica que resulta em que o insuportável seja a vida sem ele. O Sintoma torna o sujeito passivo, embaraçado pela metáfora que exige decifração, enquanto o Sinthome marca-se pela caráter ativisante, pela busca do que não se pode ficar sem. SINTOMA Remissivo (S1 S2) Cadeia olímpica Insuportável Recalque Passivisante Embaraçoso Metáfora SINTHOME Não remissivo Cadeia Bô Insuportável sem ele Não recalque Ativisante (parturiente que já deu à luz – alívio Tabela de autoria de Roberto Harari9 A clínica desenvolvida pela lógica borromea permite a Lacan conceber um tipo diferente do da cadeia significante. A cadeia borromea implica em independência mútua dos dois elos iniciais – apenas superpostos, e fazendo falso buraco entre eles,10 enquanto que a cadeia significante se inscreve como olímpica, isto é, entrelaçada. É por isso que a borromea indica uma mobilidade e uma autonomia do material do significante – ou seja, da letra. O Sinthome se faz por um nó, a partir da preservação do buraco, e só o nó Bô preserva o buraco, pela sua característica de não atravessamento, mantém a possibilidade de se fazer trocas. O atravessamento fixa, a fixação é mais característica do sintoma. Quebrada a inter-remissão significante, segundo Harari, cancela-se a concepção do sujeito definida por seu intermédio. Por isso o “último Lacan” avança junto ao desabono do 9 10 HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004 HARARI, R. Les noms de Joyce. Sur une lecture de Lacan, L´Harmattan, Paris, 1999, pp.25-26. 46 inconsciente e à lógica borromea não olímpica através da noção escrita como LOM.11 Uma homofonia com l´homme, “o homem”. Foi Freud que iniciou essa busca pelo sem sentido, pela proposição da associaçãolivre, primeiro passo na quebra da linguagem compreensivo/comunicativa. Depois, Lacan afirma que o Real da língua é o Real do inconsciente, dado que a estrutura do inconsciente, como linguagem, não é a linguagem comunicativa. Os enlaces borromeus são os enlaces das palavras, as mots-valises que fazem violência à linguagem estabelecida, para que o sujeito não entenda pelo que já sabe, já conhece, re-conhece, ou seja, só ouve o que já sabe – cópula do gozo-sentido – jouissance, contra o qual Lacan interpõe o sens blanc. Esse é a quebra que Lacan busca com os enlaces, com essa materialidade da palavra, o moterialisme. Por isso, esse jogo com as palavras, os sons, as letras, restos desse real do inconsciente, para quebrar a hipnose na qual o sujeito procura sempre mais do mesmo, mais do conhecido, para reconhecer-se narcisicamente, em espelho. Daí seu artificiar, tanto com a fala quanto com os nós, para mostrar essa operação com o que é Real do inconsciente. Eis o artifício joyceano que ensinou a Lacan esse caráter lacaniano. Toda essa operação se direciona para a quebra, o corte, a separação – análise. Para fazer Sinthome é necessário ainda, outro passo. É para desfazer o nó olímpico, porque o outro passo é a inclusão do outro nó, o do Sinthome. LACAN, J. “Joyce le Symptôme”, AA.VV., Joyce et Paris. 1902 … 1920-1940 … 1975, PUL-CNRS, Lille-Paris, 1979. p.13-16. 11 47 O seminário 23 e o artifício analítico Clara A. Fonseca Carvalho1 Lacan2 nos indica que o sintoma subsiste por estar articulado à linguagem, sendo, portanto, possível que algo nele se modifique pela via da manipulação interpretativa, pelo jogo com o sentido. Entretanto, considerando o sintoma em sua vertente de gozo, coloca-se uma nova forma de pensar a direção da cura, fazendo-se necessário uma clínica que possa, indo além da dimensão do Simbólico, dar acesso a pontas de Real. Desta maneira, surge uma nova possibilidade de fim de análise: a identificação com o Sinthome. A questão que proponho articular refere-se ao campo do gozo, à transformação do gozo implicada no saber-fazer-ali-com aquilo que gerava o sintoma. Partamos, então, de duas posições trabalhadas por Harari 3 para pensar as posições ocupadas pelo sujeito no percurso de uma análise: por um lado, a posição de Antígona, remetendo ao lugar do analisante; por outro lado, a posição de Sócrates, no lugar de analista. Antígona enfrenta a lei dos homens, comete um “delito santo”, um ato de obediência cega à lei dos deuses, enquanto mandamento imutável e universal, apenas lhe restando lamentar por seu infortúnio. Trata-se, aqui, do lugar de analisante, que padece de seu sintoma, encontrando neste sua possibilidade de gozo, um gozo fálico, que encarnando efeitos de linguagem, mantém o sujeito numa posição de vitimização fantasmática. Destaca-se, em Antígona, seu sacrifício diante do imperativo divino, o que nos possibilita pensar na posição do neurótico diante da lei insensata veiculada pelo supereu, instância feroz e obscena que força o sujeito a gozar. O imperativo de gozo se estabelece como uma exigência por um gozo pleno, que não conhece limites. Na medida 1 Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma, 1975-1976. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. 2 3 HARARI, R. Lo social y lo singular: de Antígona a Sócrates. In: ______. El Fetichismo de La Torpeza y otros ensayos psicoanalíticos. Buenos Aires: Homo Sapiens, 2003. 48 em que o sujeito se mantém na posição de obediência a este mandato impossível de ser cumprido, na busca por um gozo inalcançável, consegue encontrar apenas sofrimento e destruição. Sócrates, condenado a morte, não cede diante desta, sustenta sua posição de forma tal que sua morte não é padecida à maneira de uma tragédia da qual é a vítima, mas é uma morte pensada. Diferente de Antígona, em Sócrates fica marcada a singularidade. Encontramos, aqui, uma referência ao Sinthome, ao fazer sem o qual o sujeito não pode viver, que implica um gozo diferente, o gozo mental. É o “tudo, mas não isso” que marca a ética do analista. Lembremos que o analista se produz em sua análise, de forma que a partir de seus sintomas padecidos, possa inventar-se enquanto Sinthome, sustentando um desejo que não mais o desejo de ser desejado. A passagem de analisante a analista implica a modificação da relação do sujeito com a demanda do Outro, o que viabiliza a transformação do gozo fálico em gozo mental. Com o “mas não isso”, o Sinthome, afirmase uma possibilidade de sustentar uma ponta do Real, de forma que ao se subtrair da demanda do Outro, se sustenta um fazer que não pede sentido ou significação. Aqui se coloca a questão da responsabilidade, isto é, da resposta à demanda. “Assim, somos responsáveis, porque nos confrontamos com a imperatividade de ter que dar resposta” 4, a resposta requerida por vozes que interpelam o sujeito e das quais não se reconhece como enunciador. Trata-se das falas impostas, sobre as quais Harari pontua que, enquanto estruturas fônicas, podem ser sofridas como alucinações ou ser trabalhadas para, com o que foi ouvido, fazer Sinthome, como ocorre com Joyce. Encontramos nestas falas impostas a presença da voz como objeto a, o que nos permite pensar uma articulação com o supereu. Gerez-Ambertín 5 ressalta que o supereu se constitui a partir de resíduos verbais, é palavra desprendida do Outro, voz que não se assimila, apenas se incorpora. Lacan, ao indicar o supereu como o objeto a voz, coloca um real que se refere à intrusão do Outro pela via do imperativo de gozo. Colocase, então, a questão: podemos considerar que nas falas impostas se trata da voz tal como esta opera no supereu, sendo a maneira do sujeito responder ao ser por ela interpelado o 4 HARARI, R. Como se chama James Joyce?: a partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan. Tradução de Francisco Franke Settineri. Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Companhia de Freud, p.121, 2002. 5 GEREZ-AMBERTÍN, M. As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo: Cultura Ed. Associados; Caxias do Sul: EDUCS, 2003. 49 que diferencia as posições citadas anteriormente? Se considerarmos uma articulação por esta via, podemos pensar a questão de ir além do pai apresentada nas duas formas do sujeito gozar, com o sintoma ou com o Sinthome. A primeira, o gozo fálico, parasitário, implicado na tentativa de suprir a inconsistência do Outro, remetendo a um além, à busca da completude em obediência ao imperativo de um gozo impossível. A segunda, o gozo mental, partindo da possibilidade de prescindir dos significantes do Outro, mas servir-se deles. Poderíamos dizer: prescindir daquilo que se impõe por meio desta voz, mas servindo-se do que é escutado para daí fazer Sinthome, responder não do lugar de obediência a uma ordem, mas de forma a fazer algo que, não por estar atrelado ao sentido, mas por ser necessário, produz um gozo irredutível, ou seja, com esta invenção fora do sentido, abrir a possibilidade de um gozo mental. Transformação do gozo que implica pensar não em leis, mas na lógica do Sinthome. 50 Peter Pan na Terra do Não Claudemir P. Flores1 “A autenticidade de uma coisa é o sumo de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde.” Walter Benjamin (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica) Quem aqui não conhece a história de Peter Pan, ilustre morador da Terra do Nunca. Peter, um menino que nunca irá crescer, e Pan, o deus grego dos bosques e vales, que aterroriza quem neles se arrisca. Pan origina a palavra pânico e, pelos latinos, é chamado de Fauno. A peça inglesa, escrita por J. M. Barrie em 1911, entrou para a psiquiatria moderna como nome de uma síndrome, a do adulto que se recusa a crescer: Síndrome de Peter Pan. Será possível o sujeito voluntariamente se opor ao desejo de crescer? O que poderá fazer essa criança Pã com esse adulto gancho? A história mostra uma espécie de infância fixa, na qual o personagem Peter Pan oscila nos lugares de filho e namorado da Wendy, uma mãe que ele arranjou para seu bando de meninos carentes. Mãe com a qual poderá namorar e brincar continuamente pelos bosques, num lugar puramente imaginário, sem cronologia. Reino de Pã, no qual Cronos não entra. Freud chamou de infantil um irredutível da infância, que fica recalcado no adulto e poderá retornar no sintoma, como um Real não simbolizado. Por outro lado, em ‘Sobre a psicopatologia da vida cotidiana’, Freud cita uma brincadeira como exemplo de ‘ato casual e sintomático’. Ou seja, ele nos mostra como uma brincadeira pode ser sintomática de um desejo recalcado. Porém, não só de recalque vivem os desejos. No texto ‘Os poetas e o devaneio’, Freud afirma que um destino da pulsão, que não passa pela repressão, é o da sublimação, presente também no fazer artístico. O poeta faz uso de suas fantasias para esculpir uma obra com palavras. Assim, esse fazer é tido por Freud como uma continuidade do brincar infantil, no qual o desejo não está recalcado. Nesse percurso freudiano acima resumido, estão descritos dois distintos caminhos dos desejos da infância: o recalque, com o consequente retorno no sintoma, ou a 1 Psicanalista Membro de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 51 sublimação, como continuidade no fazer artístico. O brincar, por sua vez, pela dependência do objeto-brinquedo, é típico da infância, possibilitando que a criança passe em ato o que, de outro modo, era sintoma. Haverá outro caminho? Poderá um sujeito não fazer arte nem fazer sintoma com o seu infantil? Poderá continuar brincando? A partir da escola inglesa, sobretudo com Melaine Klein e D. Winnicott, o brincar adquiriu importância fundamental na clínica com crianças. Winnicott, no seu livro ‘O brincar e a realidade’, nos diz que o psicanalista ‘tem que estar disponível para brincar’. O analista com crianças poderá ter que vir a brincar. Para tanto, precisa saber brincar como uma criança, não o sendo. A especificidade do desejo do analista, nesse caso, é fazer a criança. Para isso, é necessário saber brincar ali com aquela criança, na singularidade da demanda dela. Ou seja, inventar uma criança que já não é, fazendo criancionice. Em “Além do princípio do prazer”2, Freud nos diz que o brincar é determinado pelo principal desejo da criança, que é o de crescer e ser grande. Parece que o personagem principal da peça representa uma oposição declarada a esse desejo infantil descrito por Freud. A psicanálise permite outro endereçamento ao infantil. Se admitirmos que o saber brincar como uma criança é imprescindível ao analista que se autorizou a analisá-las, podemos dizer que tal analista é um Peter Pan que deixou a Terra do Nunca, sem que tenha deixado de brincar. Como sujeito, tendo sido analisante, esse analista pôde construir uma ética da psicanálise, tomando a posição ‘tudo, mas não isso’. Tudo, menos deixar de brincar, com isso fazendo sua entrada para a Terra do Não. Não ceder de seu desejo. Trabalhar brincando, ao invés de brincar de trabalhar. Para Winnicott, brincar é uma experiência. No livro já citado, ele nos diz que “brincar é fazer”3. Adotando essa definição, e situado na posição denominada por Lacan de desejo do analista, posso dizer que brincar ali como uma criança é um artifício, na medida em que esse fazer deixou de ser natural, sabendo manter sua naturalidade. Já o saber brincar ali com uma criança pode ser considerado sinthome de um analista, uma vez que este foi levado a fazer outra coisa com o gozo compulsivo de sua meninice, que se assim não fosse, restaria sintomático. Benjamim chamou de aura a autenticidade de uma obra de arte, pelo fato de ter sido produzida no aqui e agora, evento único que constitui sua singularidade 4 . A autenticidade de uma psicanálise – seja ela com crianças, jovens, adultos, idosos - é a de inventar uma análise a cada vez, diversa de todas as outras, única e irreprodutível. O oficiar um por um do psicanalista é um artifício, na medida em que faz aqui e agora outra coisa, algo inédito, com aquilo que está posto como dado. Podemos dizer que a aura de uma análise decorre do fato de ser obra de um analista, podendo disso dar testemunho. A título de epílogo, cito Inezinha B. Lied, que em seu texto ‘Artificiar’ afirma: FREUD,S. “Além do princípio do prazer” [1920]. In.: ESB. OC. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 3 WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro, Imago, 1975. - Playing and Reality. London, Tavistock, 1971. p.63 4 BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Disponível online em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/benjamin_reprodutibilidade_tecnica.pdf 2 52 “(...) para sair da produção em série, da massa, a via que se abre assume um caráter de insubordinação, de transgressão e de ‘violência’. Sim, fazer violência com a língua. 5” 5 LIED, I,B. “Artificiar”. In.: Atas Reunião Lacanoamericana de Psicanálise da Bahia. Vol 2. – Salvador, 1987. 53 Os nós e os nós Fabricio Antonio Raupp1 Lacan construiu a topologia no meio dos laços, entre diferentes nós. Usou fios, barbantes, papel, tesoura para trabalhar a questão do sujeito, pois para ele esta questão é topológica2. Nesse contexto Lacan trouxe a cadeia borromeana. A cadeia não veio como proposta de ilustrar as relações entre os registros Real, Simbólico e Imaginário, mas sim como proposta de criar essas relações. Essa nova dimensão estrutural abraçou uma palavra lacaniana usada para referenciar as relações entre os registros: a cadeia borromeana 3 . O uso dela é uma metáfora para falar do RSI atrelado às experiências clínicas. Opero os nós, na falta de outros recursos. Não cheguei a eles de imediato, mas eles me dão coisas, e coisas que, é precisamente caso de dizer, me amarram. Como chamar isso? Há uma dinâmica dos nós. De nada serve [sert], mas cerra [serre]. Enfim, pode cerrar, até mesmo servir. O que isso pode mesmo cerrar? Alguma coisa que supomos estar encaixada nesses nós. Se esses nós são pensados como tudo o que há de mais real, como ainda resta lugar para cerrar alguma coisa? É justamente o que supõe o fato de eu colocar aqui um ponto. Afinal de contas, não é impensável que esse ponto tenha a ver com a notação reduzida de uma corda que passaria aí e sairia do outro lado. 4 O uso dos nós possibilita trabalhar questões das relações entre os três registros. Em Freud, a relação entre o Simbólico e o Imaginário aparece de forma ambígua5. Com isso pode-se trazer a questão da crítica do verdadeiro. Lacan questiona o verdadeiro na medida em que o que é o verdadeiro é o verdadeiro do Real. Esse Real encontra-se entrelaçado com o verdadeiro. Por isso, usa-se o nó para falar deles. O verdadeiro nessa relação se autoperfura, pois seu uso criará sentido quando ele desliza e é sugado pela imagem do furo corporal de onde ele foi emitido. O uso dos nós e das superfícies possibilita trabalhar logicamente possíveis relações entre os elementos de uma estrutura. Psicanalista, Adjunto de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. CORRÊA, I. Da Tropologia à Topologia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. 3 GRANON-LAFONT, J. A Topologia de Jacques Lacan. Tradução autorizada da segunda edição francesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 4 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 79. 5 Idem, ibidem p. 76. 1 2 54 A representação espacial das superfícies põe em questão, e até mesmo para trabalhar, a concepção esquemática da estrutura. [...] A noção de espaço é aí fundamental. Os nós, em contrapartida, apoiam-se unicamente sobre a operação do corte. Nas superfícies, Lacan faz uso operatório do corte. E nisto ele inova. Este uso é essencial à topologia lacaniana a serviço da psicanálise: o corte dá conta do ato analítico, essencialmente a interpretação.6 A proposta de Lacan é mostrar o caso Joyce como um escape do que não estava amarrado. Ele usa a cadeia borromeana para mostrar isso. O recurso topológico o auxiliou no artifício da mostração. Os registros do Real e do Simbólico se apresentam enlaçados formando uma cadeia de Hopf, onde um registro atravessa o buraco do outro. E agora? Nó borromeano ou cadeia borromeana? Esse objeto, usado na topologia, é composto por uma nodulação de elos. Há diferentes formas de nós e de cadeias. Isso ocorre pelo número de elos que são usados e ainda de acordo com a forma de nodular os elos. “É preciso notar que é um abuso de linguagem que se fala em nó borromeano para designar este desenho de uma cadeia de três fios [ou elos].” 7Um nó seria formado por um único fio, com um percurso singular onde não seria simplificado a um anel. Entretanto, se há muitos fios pode-se falar em cadeia. Verifica-se na literatura que o uso de nó e cadeia tem a mesma proporção. Mas Lacan, no Seminário 23, embora use muito repetidamente o termo nó borromeo, também muito insistentemente, se corrige dizendo que não é nó borromeo e sim cadeia. Ao longo de seu ensino, o psicanalista Roberto Harari repete que nó é o olímpico, que se cruza atravessando o furo (ou buraco) da outra consistência (anel). Portanto, para ser borromeano tem de ser cadeia. Os elos constituintes da cadeia borromeana fazem entre eles um nó formando a cadeia, ou seja, uma forma de nodulação. Nela há uma singularidade, se cortar qualquer um dos seus anéis, todos se desligam. Considera-se essa a característica fundamental desse objeto. Podem-se usar infinitos anéis para constituir uma cadeia, mas em topologia geralmente usa-se a forma com três anéis e com menos frequência a forma com quatro anéis e, ainda, com intervenção de outros objetos para complementar os pensamentos analíticos. O uso da cadeia borromeana, constituída por três anéis, tem um sentido de mostrar o enlace dos registros psíquicos. Lacan pontua que “o caráter fundamental dessa utilização do nó é ilustrar a triplicidade que resulta de uma consistência que só é afetada pelo imaginário, de um furo como fundamental proveniente do simbólico, e de uma ex- 6 7 GRANON-LAFONT, J. Op. cit., p. 109. Idem, ibidem p. 126. 55 sistência que, por sua vez, pertence ao real e é inclusive sua característica fundamental” 8. Na qualidade de nó, digo cadeia, a borromeana se caracteriza por não transpassar o buraco, mas não só por isso. Também pelas relações que se pode fazer como entre enunciado e enunciação. Além disso, o artifício da mostração está vinculado ao sujeito pelo uso da linguagem 9 . São as falas do sujeito que possibilitam a transmissão das relações analíticas feitas como uso da cadeia borromeana. Usa-se o recurso da linguagem para mostrar o Real pela topologia, porém sem escapar do aforismo lacaniano não há metalinguagem. Por mais significantes que se possa usar não há possibilidade de preencher o buraco existente na fala. Mostra-se algo fazendo e mexendo nos objetos. Ao construir, recortar, furar, pode-se intervir da forma que for necessário. Entretanto, não se terá uma completude. O sujeito é termo da linguagem. Linguagem que não implica em conjunto fechado: se assim fosse teríamos aí todos os elementos da atividade do humano, e não precisaríamos ser representados (um significante representa o sujeito sim, mas, se somente se para outro significante). A linguagem é o conjunto de diferenças onde falta um significante. 10 A linguagem não tem a informação como fim. Se informar é o que se deseja com a linguagem, o que se pretende com a informação? Lacan fala da função humanizante da linguagem. Entretanto, ao passo que ela é simbolizada, viabiliza-se também uma dimensão mortal11. Isso implica que a palavra é a morte da coisa. Então, a coisa esvanece para a palavra existir. Mostram-se os objetos topológicos e fala-se sobre eles. Provavelmente por isso que Lacan utiliza a fala para mostrar a topologia e o seu uso. Os matemas e os nós são dois exemplos de estruturas onde aparece o discurso lógico matemático de Lacan. Através dos matemas, Lacan apresentou um modelo de linguagem articulada ao registro do simbólico. Os nós são estruturados essencialmente na lógica da topologia. Suas operações estão ligadas ao registro do Real. De acordo com Roudinesco “a elaboração do matema permite a Lacan centrar de novo sua interrogação sobre a questão da ciência no domínio da transmissão do saber psicanalítico” 12. A autora ainda comenta que “o mergulho no universo dos nós, ao contrário, tem por efeito destruir 8 LACAN, J. Op. cit., p. 36. VAPPEREAU, Jean-Michel. Nudo: La teoría del nudo esbozado por J. Lacan. Buenos Aires: Kliné, 2006. 10 CESAROTTO, O. (Org.). Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 19. 11 VANIER, A. Lacan. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. 12 ROUDINESCO, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia da Letras, 2008, p. 484. 9 56 o que o matema pretendia construir”13. Lacan acreditava que só poderia chegar ao Real, ainda que por pontos, através da ropologia, regido pelos nós, tranças, barbantes e toros. Isso foi idealizado pelo fascínio da história da descoberta do inconsciente freudiano. A cadeia não veio como proposta de ilustrar as relações entre os RSI, mas sim como proposta de criar essas relações. Lacan se ateve em nomear, escrever, formular e criar termos para falar das relações que os registros mantém entre si. Lacan comentou que os três elos vieram como um anel para o dedo. Essa nova dimensão estrutural abraçou as palavras lacanianas, usadas para referenciar as relações entre os registros RSI e a cadeia borromeana.14 A consistência dos três elos se suporta pelo Real do nó. Se há relação entre os registros isso acontece devido ao fato da existência, do furo e da consistência estarem dispostos na cadeia borromeana. Os registros RSI conservam-se ligados. Eles desempenham em três devido à adição do Imaginário aos outros dois registros. A tríade existe pela adição do Imaginário como terceiro15. A consistência refere-se ao Imaginário, pois a cadeia Borromeana só existe pela adição dos três. Entretanto, cada anel tem a sua consistência. Falar do Real é falar de algo do Imaginário e do Simbólico sempre na condição tríade. Na cadeia há dois anéis sobrepostos e livres e um terceiro que realiza a nodulação. Para Lacan, esse terceiro seria o anel que possibilita o ex-sistir. “Ex-sistir quer dizer, mais precisamente, se situar alhures, noutro lugar, se bem que a presença seja, no entanto, necessária aos outros dois como ponto de apoio, de escora de nodulação.” 16 A consistência e a existência estão em relação. Pode-se dizer que o existente gira em torno do consistente. A existência está ligada ao registro do Real, pois é ela quem apaga o sentido. O Real é aquilo que não pode ser simbolizado, o que está fora do sentido 17 . Lacan fala do furo como equivalendo ao Real, posteriormente fala como equivalendo ao Simbólico. O que se pode perceber é que Lacan distingue o furo da existência. O furo permite a passagem dos anéis, assim, possibilitando a consistência deles. Esse furo permite a nodulação dos registros. “Assim se definem e se resumem essas relações ou essas não-relações que mantêm entre si os três elos da cadeia borromeana. A 13 Idem, ibidem, p.485. GRANON-LAFONT, J. Op. cit. 15 LACAN, J. Seminario 22: R.S.I. (1975[1974]) Versión completa de la Escuela Freudiana de Buenos Aires. Inédito. 16 GRANON-LAFONT, J. Op. cit., p. 140. 17 LACAN, J. Op. cit. 14 57 consistência, como imaginária, a existência como real, e o furo como equivalente ao simbólico.”18 A topologia aborda as questões da existência, da consistência e do furo com o uso dos objetos topológicos. A mostração dos registros RSI é possível porque há topologia. São esses artifícios que fazem a ligação entre a teoria e as questões clínicas. 18 GRANON-LAFONT, J. Op. cit. p.143. 58 Tudo, mas não isso Inezinha Brandão Lied1 O fim de análise é quando se girou ao redor duas vezes; quer dizer, reencontrar aquilo do qual se está prisioneiro. Lacan, Seminário 25 A proposição topológica enuncia que o mesmo é o mesmo em seu absoluto diferenciar-se. Ou que a diferença é diferença em seu absoluto 'ser o mesmo'. E. Trías, Os limites do mundo. 1. INTRODUÇÃO "Tudo, mas não isso", essa era a posição de Sócrates, preferiu morrer, "aceitando" sua condenação, tomando cicuta, mas não como um ato "suicida melancólico" e sim porque não cedeu em seu desejo. Lacan toma a posição de Sócrates como uma posição singular e logo na primeira classe do Seminário 23, de 18 de novembro de 1975, anuncia: "o 'mas não isso' é o que introduzo como meu título deste ano como Sinthome". Vale marcar que o singular não é o particular, porque este se define pelo universal. Portanto, singular e particular, não são sinônimos ou equivalentes. Mas para chegar ao singular, é preciso transitar, via associação livre, entre uma serie de particulares. Sobre este ponto vejamos o que diz Harari: "De tal forma, sobrevém o encontro 'azaroso', que não é jamais com o verdadeiro [...] Assim se especifica um destino, já que o singular é o destino." 2 Ao início da sétima classe, de 17 de fevereiro de 1976, Lacan fala de sua busca marcando uma mudança em sua posição, pois aqui já não sustenta mais a posição inerente a frase que tomava de empréstimo a Picasso: eu não busco, encontro. Agora verifica que não é possível encontrar sem buscar e empreende sua busca, explicitando o que implica, para ele, o termo busca: "girar ao redor". Localizamos nesta referência uma crucial articulação com o fim de análise e com a topologia. Por quê? Porque a partir do Seminário 1 Analista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. HARARI, R. “No hay desenlace sin reanudación”. In: De que trata la clínica lacaniana? Buenos Aires: Catálogos, 1993. p.202. 2 59 23 a problemática do final de análise é recolocada, poderíamos dizer, inclusive, revitalizada com a topologia e a introdução da quarta consistência que amarra de maneira singular os três registros da experiência psíquica – Real, Simbólico e Imaginário. Precisamente nesta quarta consistência, radica a marca singular de cada um. A passagem da cadeia Borromea de 3 consistências para a cadeia Borromea de 4 consistências é fundamental, porque com esta proposta temos as três consistências, R, S, I (homogêneas) e mais uma que fará a diferença, a qual introduz o elemento diferencial, singularizante. É singular, portanto não se inclui na dialética geral-particular (universal-particular). A partir da obra de James Joyce e da função desta na vida do escritor irlandês, Lacan vai forjando o conceito de Sinthome, artificiando com a topologia e a arte. Em sua busca, Lacan encontra ...outro modo de colocar o fim de análise. 2. FIM DE ANÁLISE A questão do fim de análise implica um saber, mas não qualquer, se trata de um “saber-fazer-ali-com seu sintoma” 3 . Um saber enlaçado inventivamente a um fazer. Saber–fazer com seu destino, com a não-relação sexual, sustentando a dor de existir. A constelação inerente ao fim de análise é colocada por Lacan com relação ao luto – de um luto do que não existe, do irremediavelmente perdido sem sequer tê-lo tido. Tal luto guarda distância e é muito distinto do implicado em suportar a perda do que se crê ter tido. Em outras palavras, luto pela inconsistência do Outro; desse grande Outro que o neurótico crê consistente. Ao interrogar-se sobre a eficiência em nossa práxis, no Seminário 24, Lacan retoma as três identificações trabalhadas por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu, – identificação por amor ao pai, identificação histérica e identificação ao traço (einziger Zug) – e essa retomada sobre a identificação o leva a recolocar o tema do fim de análise – “a que se identifica alguém ao fim de análise?”4 Lacan trabalha esta questão para desmontar o entendimento de que o fim de análise conduz a identificação com o analista – ser como o analista – colocada em termos de uma idealização da identificação5 (Tal identificação ocorre mas não deve ser um alvo, LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédito. LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédito. 5 LACAN, J. Seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, 3ªedição. p. 257. 3 4 60 um objetivo procurado; ao contrário, a identificação com o analista é um momento da análise que deve ser atravessado para conduzir ao fim de análise. Ao descartar a identificação com o analista no fim de análise mostrando sua insuficiência, Lacan lança uma nova pergunta: poderia alguém se identificar com seu inconsciente? Logo responde dizendo que de forma alguma poderia ser assim, pois o inconsciente segue sendo o Outro. Se no inconsciente, se trata do Outro (Autre), se no inconsciente “resta o Outro”6 como ensina Lacan, e se uma análise deve obter a caída ou término da convicção da consistência desse Outro, “situando-o como uma criação a qual o neurótico amarra, inibe, sintomatiza sua vida, gozando do inconsciente que diz determiná-lo e impotentizá-lo” 7 , estamos ante a impossibilidade de fazer coincidir identificação com o inconsciente e fim de análise. Então, se ao fim de análise a identificação não é com o analista e nem tampouco com o inconsciente, reinstalamos a pergunta: com o que se identifica alguém no fim de análise? Seguindo o desenvolvimento do Seminário 24, Lacan responde de forma interrogativa: “isso seria, ou não, identificar-se tomando suas garantias, uma espécie de distância, identificar-se com seu Sinthome?”8 Seria então um novo tipo de identificação, com distância e garantias? Mas distância e garantias do quê? – Distância de seu sintoma agora processado por via de um artificiar, reinventado, no que for. Dessa forma seria possível pensar também distância com relação ao Outro, não mais consistente, mas agora inconsistente; não mais pleno, mas agora barrado, pois o Sinthome coloca um limite à demanda – o “tudo, mas não isso” socrático. É nesse limite, nessa impossibilidade de fazer mais concessões outorgadas ao Outro que Lacan vai situar a identificação com o Sinthome. Distância que possibilita garantias, por mínimas que sejam, de obtenção da pequena cota de liberdade de cada um, obtida já não pelo sujeito, mas pelo LOM (por homofonia com l’homme – o homem), caracterizado já não pelo saber que não se sabe – o do inconsciente – mas pelo “fato de saber”9, o saberfazer conforme o Seminário 23, que nos Seminários 24 e 25 será trabalhado em sua declinação ao saber-fazer-ali-com (savoir-y-faire-avec). LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédita. HARARI. R. Intraducción del Psicoanálisis. Acerca de L’insu…, de Lacan. Madri: Sintesis, 2004. p. 74. 8 LACAN, J. Seminário 24. L’insu. Classe de 16.11.76. Inédita 9 LACAN, J. Seminário 24. L’insu. Classe de 21.12.76. Inédita. 6 7 61 O Sinthome participa de uma condição originária – a do sintoma. É desta condição que advém o “saber-fazer-ali-com”. Com o quê? – Com o que deu lugar ao sintoma, provocando agora um efeito novo. Tal ordem de saber-fazer-ali-com implica o artifício. Este artificiar marca a identificação com o Sinthome. De tal forma identificar-se com o Sinthome aponta a ser “um com”, e não com a cisão, própria do sujeito dividido. Identificação com o que significa para cada um, esse o um desamarrado, totalmente só. Ao propor que o fim de análise se dá com uma identificação com o Sinthome, Lacan articula também como alvo do fim de análise, a passagem do não-ser ao ser, próprio de toda identificação: ser Um com o Sinthome. Crê no ser e não no sentido,10 posto que LOM não pergunta pelo sentido, não busca respostas, daí sua condição de inanalizável. Não importa o que faz ou porque o faz e sim que lhe é necessário fazer. Reiteramos que é nisso que reside a pequena cota de liberdade, suficiente para “gozar da vida”, “gozar do Outro, mentalmente”. Gozo da vida, gozo do ser. Para pensar a mencionada passagem do não-ser ao ser, implicada na identificação com o Sinthome, vamos tomar da filosofia platônica, o termo de poiésis (um substantivo que se forma do verbo poiein). Poiésis se define como causa que faz que o que não é chegue a ser (in Eugênio Trías), ou seja, consiste em fazer passar do não-ser ao ser. E não é a isso que nos referimos quando falamos que nossa práxis é poiética? É uma maneira de conceber a experiência da psicanálise como geradora de uma poiésis. Procurando avançar esta questão lançamos mão do conceito de Eros produtivo, conforme apresentado pelo filósofo espanhol Eugênio Trias em El artista y la ciudad: “A meio caminho entre o Desejo e a Ideia, aparece o platônico conceito de Eros produtivo, esse impulso que não se acalma com visões, senão com obras, nem com contemplações, senão através de ações [...] e não é casual que no Banquete, antes de definir a Eros, acuda Platão ao termo de Poiésis, ao que traduz genericamente como passagem do não-ser ao ser. [...] Isso significa que o impulso erótico só encontra sua culminação mediante um ato de produção ou criação de que resultam obras.”11. Claramente temos aqui a noção de um fazer, ao qual acrescentamos o saber, saber-fazer, do qual pode resultar “qualquer 10 11 HARARI, R. Qué sucede en el acto analítico? Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. TRÌAS, E. El artista y la ciudad. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976. p.42. 62 coisa” 12 , em sua condição necessária, poiética inventiva, mas não antecipável, não previsível. Mas, o que seriam obras neste contexto? "Qualquer objeto 'caído' como consequência de um trabalho, onde se 'libere', onde exploda, a poiética invenção da linguagem." 13 Esta é a via idônea para liberar, abrir o caminho para a invenção de significantes novos. 3. TUDO, MAS NÃO ISSO – solidão acolhedora O Sinthome é da ordem do necessário, porquanto não cessa de se escrever. É o “tudo, mas não isso”; sem “isso” o sujeito não pode viver, tal é a condição sinthomática, necessária para seguir vivendo. Impensável, insuportável a vida sem “isso”. O “mas não isso” da fórmula “não aponta a um “isso” fixado e identificável, senão que pensa uma dimensão de segredo, de necessária privacidade e separada da lógica fálica”14. Dimensão que tem a ver, como já o dissemos, com uma maneira de responder a demanda do Outro, colocando um limite – podes me pedir qualquer coisa, mas não isso – condição inegociável portanto, insubstituível, não metaforizável. Na neurose, tal limite não se apresenta, ao contrário, o neurótico responde prontamente a demanda do Outro, conforme determina o sintoma, marcando assim posições subjetivas distintas. Assim, o Sinthome em sua condição de intransitividade, se dá em hiância com o Outro. A posição subjetiva implicada no "tudo, mas não isso" é uma posição onde o sustentado é o peso decisivo da singularidade. Singularidade que, mediante um artifício permite demarcar do todo, da massa, colocando no mundo a marca própria de cada um. "Tudo, mas não isso", saber-fazer com seu destino, sustentando o peso decisivo da singularidade. Ser da falta e não da falta em ser. No Seminário 19 “...ou pire”, Lacan introduz a locução ‘Y a d’l’un’, ‘Há d’Um’. Trata-se de Um irredutível, derradeiro. Não é Um unificante, pois dele se participa como não-todo. Há d’Um, completamente só. Uniano. Unicidade e não unidade. A capacidade do analisante para estar só, como um dos indicadores sustentados por Winnicott para um 12 HARARI, E. Puede ser cualquier cosa? IN: REdTÓRICA N° 2. Publicación de Mayéutica Institución Psiconalítica. 13 HARARI, R Qué sucede en el acto analítico? Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. p.277. 14 HARARI, R. Cómo se llama James Joyce? Buenos Aires: Amorrortu, 1996. p.40. 63 fim de análise. Sustentar a solidão radical, o que não exclui outros e por isso não tem a ver com isolamento, mas sim com outra forma de gozar, um gozo mental. Poderíamos aqui adjetivar esta solidão como acolhedora – "solidão acolhedora" 15 - (Massimo Cacciari) Para concluir, destacamos que o saber-fazer-ali-com convoca três características relevantes do Sinthome, conforme propõe Harari: solidão, singularidade e artifício. A solidão, pelo fato de que não há lugar a respeito do Outro; “singularidade, pela invenção de um significante novo diferencial” e o artifício, pois seja o que for é “feito com arte”. 15 CACCIARI, M. Soledad acojedora. De Leopardi a Celan.Madri: Abada Editores, 2004. 64 O artifício do analista e os fins de análise na clínica com crianças Luana de Araújo Lima Vizentin1 Um primeiro convite é sempre uma aposta. O segundo, é sinal de valentia, renovada pela posição desde a qual um analista é convidado a trabalhar2 Neste Painel, escolhi compartilhar mais que respostas, questões. Possibilidades outras, de pensar a clínica psicanalítica desde a criança. Porque algumas respostas também me faltam e, por essa condição, provocam desejo desta clínica a qual também se impõe o meu artificiar. A escrita da clínica com crianças é tão antiga quanto a própria Psicanálise, mas muitos ainda se perguntam se é possível um analista sustentar-se nesse saber-fazer e ainda ancorá-lo como psicanalítico. Existiria, assim, uma clínica psicanalítica especialista de crianças, de adolescentes… e outra de adultos? Já respondendo que não, qual é a função do analista que também atende crianças? Para pensar a Psicanálise com crianças é necessário articular boa parte da teoria psicanalítica, posto que são uma e mesma coisa, mas pretendo delimitar-me por algumas pontas. Freud, Lacan, Harari e tantos outros analistas ensinam-nos, a cada re-leitura, que a Psicanálise faz, se faz com o sujeito do inconsciente. Se a Psicanálise trabalha com sujeitos e se um analista propõe-se a atender desde uma clínica com crianças, é possível falar de sujeito com pessoas de tão pouca idade? O que é um sujeito? O que é uma criança? Seria, a idade, ofertada por Cronos, a verdadeira senhora do inconsciente, determinante das condições de análise? Ou seria a limitação da fala, posto que se um analista pauta-se pelo que um analisante diz e se uma criatura não fala, seriam inanalisáveis aqueles que não falam? Quais são os critérios de analisabilidade? 1 Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. FLESLER, A. As intervenções do analista na análise de uma criança (2010). In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Porto Alegre/RS, n. 40, jan./jun. 2011 2 65 Em seu saber-fazer, um analista procura escutar qual é a posição do sujeito frente ao discurso do Outro, posto que o sujeito precisou ocupar um lugar no Outro. Antes de estruturar-se como sujeito, a criança carece responder no lugar de objeto ao desejo materno. Antes de ser sujeito de desejo, resta ser objeto do Desejo-da-Mãe. A partir dessa condição inicial, em que a criança ali-é-nada, necessária para vir-a-ser, cabe ao Nomedo-Pai intervir e provocar os efeitos de Lei. Pensar a criança como um lugar no Outro é pensar que um analista necessita escutar a criança do Outro, é verificar que lugar a criança ocupa para estes que a rodeiam. Dependendo de como a mãe submeteu-se à castração em seu Édipo e de como a criança está submetida ao desejo do Outro (primordial e substitutos) será possível atestar a constituição subjetiva de um infans, mesmo que a posteriori3. Ao considerar que lugar o Outro confere à criança enquanto objeto, um analista pode escutar como a criança está sendo atravessada na e pela linguagem e para qual caminho ela se dirige: 1) se para reconhecer que a mãe é castrada e seguir no desenvolvimento de uma neurose pelos efeitos da repressão; 2) que a mãe é, mas não é castrada, pois é prova viva do objeto materno (fetiche) ao qual está identificada, compelida à perversão via renegação da castração na mãe, ou ainda, 3) se a criança servese de objeto a em completude ao Outro e forclui a castração na mãe, realizando o fantasma materno e estruturando-se em uma psicose4. Ainda que a criança não fale, ela é falada. Deste modo, a clínica com crianças discorre nos mesmos pressupostos da nossa Psicanálise (freudo-lacaniana), embora reconheça-se o caráter singular em suas peculiaridades e especificidades por envolver o brincar, o infantil em constituição e a escuta do Outro no mais vivo oscilar dos três registros (Imaginário, Simbólico e Real). O lugar conferido ao brincar, ao desenhar e ao jogar na análise é de promotores de uma escuta, escuta de um texto que foi ou está sendo cifrado. E, por mais que o tratamento seja com a criança, é uma clínica que reflete, precisa e depende, sobretudo, do manejo transferencial com os pais que demandam, questionam ou mandam seus filhos ao analista. 3 LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In.: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369-370, 2003. 4 FLESLER, A. As intervenções do analista na análise de uma criança (2010). In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Porto Alegre/RS, n. 40, p. 18-30, jan./jun. 2011. 66 E, quanto ao brincar de um analista, este pode ser o seu Sinthome? Em Como se chama James Joyce?, Harari 5 reporta-nos a lição de Lacan que “alguém só é responsável na medida de seu savoir-faire” e “alguém que seja possuidor de um savoirfaire […] é alguém que sabe-fazer uma atividade com certa habilidade singularizadora”. Enquanto analistas, somos responsáveis porque confrontamo-nos com a imperatividade de responder em função do nosso saber-fazer. O savoir-faire implica, assim, em um fazer habilidoso, um fazer com destreza e responsabilidade. O savoir-faire erige-se, portanto, como um dos fins de análise. Pela via da identificação com o Sinthomem, o saber-fazer-ali-com implica na arte-manha de fazer daquilo que deu lugar ao sintoma, algo inovador, momento em que não há mais sujeito, mas LOM. Reside em um modo artificiador, um novo posicionar-se diante do Outro e na vida. E, por ser da ordem do artifício, o Sinthome pode ser qualquer coisa. Em uma passagem do Seminário 23, Lacan declara que, justamente, por aquilo que Joyce afirma em sua escrita, de modo pleno e especialmente artístico, é possível dizer que se tem um savoir-faire e que isso é o seu Sinthome. “Sinthoma tal que não há nada a fazer para analisá-lo”6, pois está desabonado do inconsciente, não pede interpretação. Diz ainda, Lacan7: “Não penso que a psicanálise seja um sinthoma. […] Penso que não se pode conceber o psicanalista de outra forma senão como um sinthoma […] Por isso a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele”. E, quanto à direção de uma análise com crianças, estariam apenas para o término das sessões em algum momento, mas não para um fim enquanto finalidade alcançável, sendo assim, análises inacabadas? Se, ao longo do processo analítico, escutam-se transformações estaríamos falando de que fins de análise? É fato que algumas crianças transformam coisas quando em análise e fazem algo com o sofrimento outrora trazido ao analista, mas de que se trata essa transformação? Algumas crianças passam do sintoma a um desejo sublimado e há ainda as que se retiram (e são retiradas) de uma posição exclusivamente objetal no Outro. Mas isso resultaria 5 HARARI, R. Como se chama James Joyce?: A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan (1943). Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2002. 6 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 122, 2007. 7 Idem, ibidem, p.131-132. 67 dizer que do lugar de objeto gozoso, algumas passam ao lugar de sujeito da enunciação? Há modificação na posição subjetiva? Entre o que se espera e o que realmente ocorre na constituição subjetiva, há sempre lacunas pelas quais um analista pode operar. É desde este entre-curso lógico que um analista pode remeter seu saber-fazer mesmo na mais tenra idade. Se a Psicanálise é feita caso-a-caso, com crianças não seria diferente: “as intervenções [de um analista] apontam a um só fim: que haja jogo do objeto [a] para que o sujeito possa existir”8, posto que é na hiância presença-ausência que nasce um sujeito. Autêntico é pensar que a direção de uma análise com criança ruma ao nascimento do sujeito. E, mesmo que de uma análise só é possível dizer ao seu término, resta-me a questão: Os fins de análise com crianças delimitar-se-ão às sublimações, ao confrontamento com a rocha viva da castração 9 ou poderão ir mais além, com transformação de gozos, atravessamento de fantasma, novação sinthomática10 11 Em uma clínica do infantil, para além da barreira cronológica e de estruturas legadas, o saber-fazer-ali-com de um analista apresenta-se para o sujeito da Psicanálise, mesmo que este ainda esteja por vir. E, quando o brincar faz parte do artifício de um analista, tem-se as provas de que ali ele põe em ato seu Sinthome. A clínica com sujeitos em constituição, ou mesmo com não-neuróticos já constituídos, é parte do ofício artificiado por alguns analistas que sabem-fazer produtivamente com essa clínica, sem questionar-se do que, como e com que (a-)sujeitos fazem, ao modo sinthomático e novador. E, se o Sinthome de um analista reverte-se em sua clínica como tal, o “saber, então, fazer-ali-com: disso somos responsáveis; essa é a nossa responsabilidade”12 esse é o nosso artifício inovador e singular. FLESLER, A. Os tempos do sujeito (2008). In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Porto Alegre/RS, n. 35, p. 178-192, jul./dez. 2008. 9 FREUD, S. “Análise terminável e interminável”. [1937]. In.: ESB. OC. Vol. XXIII, p. 223-270. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 10 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975-76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 11 LACAN, J. Seminário 15: O ato psicanalítico [1967-1968]. Porto Alegre: Escola de Estudos Psicanalíticos. Publicação para circulação interna. 12 HARARI, R. Como se chama James Joyce?: A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan [1943]. Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Campo Matêmico, p.126, 2002. 8 68 E : Diz-mensão do Sinthome em Joyce Marcio Bayestorff1 “Meu nome é Legião, pois somos muitos.”2 Assim respondeu o demônio que habitava o possesso de Gerasa no Evangelho de Marcos. Assim responderia o Eu, se pudesse fazê-lo. Como se chama James Joyce? Dois de seus nomes são Stéphane Mallarmé (1842 – 1898) e Lewis Carroll (1832 – 1898). Stéphane Mallarmé Lewis Carroll Figura 1 – Fotos de Mallarmé e Carrol. Mallarmé. Sua obra-prima é o poema naufrágio Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso (1897). Como o Finnegans Wake, é estruturado em uma circularidade na qual a última palavra remete à primeira relançando infinitamente o movimento. 1 2 Psicanalista, Participante da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. São Paulo: Editora Canção Nova, p. 1248, 2008. 69 Figura 2 – Página de Un Coup de Dés Jamais N’Abolirá Le Hasard3. “Temida e famosa é a obscuridade de sua lírica.”4 Hugh Kenner, que está no Seminário 23 como comentador de Joyce, nos diz: “The fragmenting of the aesthetic idea into allotropic images as first theorized by Mallarmé, was a discovery whose importance for the artist corresponds to that of nuclear fission for the physicist.” 5 Mallarmé, escrevia liberando o que chamava de “subdivisões prismáticas da Ideia” 6 , “convertendo a potencialidade infinita da linguagem no verdadeiro conteúdo de sua poesia” 7. NADA TERÁ TIDO LUGAR 3 Disponível em: http://www.wired.com/gadgetlab/2010/09/e-books-are-still-waiting-for-their-avantgarde/mallarme-coup-de-des-2/ (Acesso em 20/10/2013). 4 FRIEDRICH, H. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, p. 95, 1991. 5 KENNER, H. The Poetry of Ezra Pound apud Campos. Mallarmé. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 178, 1991. 6 MALLARMÉ, S. Prefácio a Um Lance de Dados. In Campos op. cit. p. 151. 7 FRIEDRICH, H. op. cit. p. 104. 70 SENÃO O LUGAR EXCETO TALVEZ UMA CONSTELAÇÃO fria de olvido e dessuetude não tanto que não enumere sobre alguma superfície vacante e superior o choque sucessivo sideralmente de um cálculo total em formação vigiando duvidando rolando brilhando e meditando antes de se deter em algum ponto último que o sagre Todo Pensamento Emite um Lance de Dados8 8 MALLARMÉ, S.Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso. In Campos op. cit. p. 170 – 173. 71 Sobre o “Lance de Dados”, Paul Valéry comentou: “Ele [Mallarmé] tentou, penso eu, elevar enfim uma página à potência do céu estrelado!” 9 Mallarmé, por sua vez, dizia: “Versos não se fazem com ideias, mas com palavras.”10 Lewis Carroll. O autor das Alices. Inventor da palavra-valise. Um dos mestres do nonsense. “Como sistema, o material manipulado pelo nonsense são as palavras. Um jogo de equilíbrio entre significados diversos e por isso [...] seu terreno mais fértil são os trocadilhos e palavras-valise”.11 “Em Carroll [...], o não-sentido se opõe à ausência de sentido, produzindo um excesso de sentido. É o que Deleuze entende por non-sense [...]”12 já que ao final esse excesso de sentido esvazia-se. Humpty Dumpty, exemplar da lógica nonsense em Carroll está misturado no Finnegans Wake e famosa é sua explicação do poema Jaguadarte. Figura 3 – Humpty Dumpty. 9 Disponível em: http://www.revistainvestigacoes.com.br/Volumes/Vol.23.N1/Investigacoes23N1_Marcio-Freire.pdf (Acesso em 20/10/2013). 10 FRIEDRICH, H. Op. Cit. p. 107. 11 UCHOA, L. Aventuras de Alice / Lewis Carroll. São Paulo. Editora Summus. p. 21, 1980. 12 UCHOA, L. Op. Cit. p. 24. 72 Humpty Dumpty nos diz que quando usa uma palavra “ela significa exatamente aquilo que ele quer que signifique... nem mais nem menos.”13. “Glória”, por exemplo, significa “argumento arrasador”. O primeiro verso do Jaguadarte é muito conhecido e ressoa amplamente o Finnegans Wake: Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramilvos Estavam minsicais as pintalouvas E os momirratos davam grilvos.14 Quanto à cadeia bo de três e quatro consistências, Lacan nos diz no Seminário 23: “Se, por um lado, o nó é abstrato, ele deve, entretanto, ser pensado e concebido como concreto”15 e disso vem, por um lado, que temos uma correspondência entre as operações na cadeia e no sujeito de maneira que temos de visualizar-entender-escutar um no outro e vice-versa. Figura 4 – Nó Borromeu. 13 UCHOA, Leite. Op. Cit. p. 196. CARROL, L. in UCHOA, Leite. Op. Cit. p. 147. 15 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 37, 2007. 14 73 A cadeia bo de três é o parlêtre, sujeito do inconsciente e padecente do malestar na cultura “cujo corpo”, diz Lacan, só tem estatuto respeitável, no sentido comum da palavra, graças a esse nó”.16 Com Lacan e Harari, ao longo do Seminário 23 e de Como se Chama James Joyce?, vemos como em Joyce há uma demissão paterna que é suprida na amarração. Harari: “a carência do pai provoca esse defeito de enlaçamento e determina, portanto, a chamada por Lacan, “compensação enlaçada”17. Esta se verifica mediante a introdução de um cerzido, de uma consistência – ou elemento – adicional. Reside aí, de acordo com essa primeira aproximação de Lacan, o Sinthome de Joyce: é esse fio artificiado, é o acréscimo cosido dessa forma, o que evita o desamarramento.” 18 “Em Joyce a supleção [...] já se escreve no nó falhado.”19 Figura 5 – O ego que corrige. Joyce, em mais de um sentido, existe por causa de seu Sinthome. Esta quarta consistência, esta capacidade de genuss e leistung, em Joyce, sabemos, corresponde à sua 16 LACAN, J. Op. Cit. p. 37. Com esta expressão Harari faz referência a Escritos “inspirados”: esquizofrenia (1931), texto de Lacan que antecede o Seminário 23 em 44/45 anos. 18 HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, p. 162, 2003. 19 HARARI, R. Op. Cit. p. 162. 17 74 escrita sobre a qual podemos dizer isto que Harari nos traz como sendo do Sinthome: “desfaz o sentido: gera enigmas; deixa stupéfaire.”20 Estupefação é uma palavra absolutamente adequada para dizer do que gera a escrita joyceana. O mesmo pode-se dizer da noção de Sinthome ligada a ela. Todo o ensino do último Lacan, segundo a periodização proposta por Harari, tem esse caráter surpreendente por causa das muitas novações postas em cena, mudanças violentas de paradigma, novos conceitos e noções ativadas a todo o momento. Saltos tão vertiginosos a ponto de acusarem Lacan de já não saber mais o que estava dizendo. 21 No entanto, o que presenciamos é um rigor extremado em que é necessário estar atento às palavras, aos sinais, às notações e ter presente eventuais dificuldades nas traduções e diferenças editoriais sendo que a desatenção a esses pontos pode sugerir caminhos equivocados ou mesmo dificuldades e obstáculos para trabalhar com as, já ásperas, particularidades do ensino de Lacan. Um exemplo do rigor extremo do ensino de Lacan, encontramos a partir da notação “Ee”. No Seminário 23 Lacan ativa esta notação, “Ee”, para tratar da escrita joyceana. O conteúdo que ela comporta torna-a central para o que a psicanálise pode dizer a partir de Joyce. É interessante, no entanto, que esta notação apareça uma única vez em todo o seminário. O que segue abaixo é uma imagem deste momento, exemplificado na versão dita “oficial” do Seminário 23 de Lacan: 20 21 HARARI, R. Op. Cit. p. 247. Conforme HARARI, R. Op. Cit. 75 Figura 6 – Imagem do Seminário 23 de Lacan mostrando a notação E e22. Lacan lê esta notação assim: “E índice e”. Em um ponto inicial do Seminário 23 Lacan especifica a leitura de S1 como S índice 1 com o que se poderia tentar reconhecer um funcionamento análogo entre um e outro conceito. Pois não é disso que se trata. Sobre “Ee” diz Lacan: “trata-se da enunciação e do enunciado. O enigma consiste na relação do grande E com o pequeno e. [...] É uma questão de enunciação. E a enunciação é o enigma elevado à potência da escrita.”23 Neste ponto é necessário atentar para o detalhe de que, assim como vista até agora, a notação “Ee” está em desacordo com o que o próprio Lacan diz em seguida: “elevado á potência”. Teria Lacan se enganado dessa maneira? É certo que não. E sendo assim temos que “elevado á potência” significa que em “E e” o índice está no lugar errado e que, assim como foi apresentada, constitui um erro conceitual posto em cena na versão “oficial” deste Seminário 23 e com consequências teóricas gravíssimas ao desencaminhar a direção deste conceito. A confirmação disto encontramos em Como se chama James Joyce? onde a perspicácia e atenção de Harari trazem o “e” pequeno sobrescrito, Ee, com o que ficam alinhadas a notação e o dito lacaniano e a operação matemática posta em cena, a potenciação, nos proporciona a apreensão correta da amplitude do conceito lacaniano. 22 23 LACAN, J. Op. Cit. p. 150. LACAN, J. Op. Cit. p. 150. (grifo nosso). 76 Figura 7 – Imagem de Como se Chama James Joyce? mostrando a notação Ee.24. Como ler Ee? Harari responde: “asseverando que se trata de uma enunciação à procura de seu enunciado. A enunciação, na concepção de Lacan, isto é, sua caracterização do sujeito daquela, abriga um dizer velado, um sem-sentido. Do mesmo modo que o enigma, não se entende. Antes, dá a entender um viés passível de ser lido nas entrelinhas, mas não evidente, porque seu sentido se subtrai.”25 “frente à mão escrevente no muro, o cryptoconchoidsiphonostomata em sua exprussiação; seu nascedouro fica além do herosdouro e o morredouro nos jardins do mouro, é o mais velhusko Kioske na plenínsula e a mais ingostiosa estalagem em Sant’Escolada; andou centenas de muitas mais milhas contadas por ruas e acendeu mil e uma luzes noturnas nos hectares da sua janela; seu imenso capute branco reveste quinze acres e seu pequeno cavalo brinco alcança dúzias de portos; lutuosa vela e funesto timão que rumaram para o Americaes; seus filhos os castilhos, suas filhas as antilhas, já são filhões; repulsou desde o berço os trovões aos milhões e falconeou cada relâmpago ao pago dos abismos; problema impessoal, enigma alocativo; ereto, é um veículo de arcanização na área, reclinado, é suprido de fluxo para a caliculação por Eblana; parte do todo como port a todabaleia; 26 Ou seja, cito Caetano Galindo: “Aqui, as palavras não significam fatos, coisas, ideias do mundo. Elas não têm referente.”27 Trata-se de “uma linguagem em que os signos não 24 25 HARARI, R. Op. Cit. p.137. HARARI, R. Op. Cit. p.137. 26 JOYCE, J. Finnicius Revém. Trad. de Donaldo Schüler. Cotia-SP: Atelie Editorial, Vol.3, p. 99, 1999. GALINDO, C. Finnegans Wake / Finnícius Revém. In Revista Cult. São Paulo: Editora Bregantini. nº 176, p. 29.Ano 16, 2010. 27 77 apontam para o mundo, para fora da linguagem, mas em que pedaços de signos, cacos, carregam fiapos de potencialidades semânticas que, somados, geram como que um feixe de possibilidades, sempre irredutível.”28 Traduzindo: Joyce provoca um curto-circuito na intersecção entre o imaginário e o simbólico (a lúnula que corresponde ao sentido na cadeia bo) fazendo o significante vacilar através de seu esvaziamento e potenciação simultâneos. É isso que temos condensado na notação E e na qual o índice marca o infinito das possibilidades do significante uma vez que aponta para a escrita, ou seja, temos o enigma elevado à potência de um índice infinito. A amplitude do horizonte que se abre é sideral. Agora tome-se isto tendo em consideração que o índice aqui aponta para a escrita joyceana apenas como exemplo! Ou seja, Lacan condensou um universo inteiro em E e (e é este o motivo da importância capital da filigrana da posição do índice) indo, inclusive, além de Joyce. Assim, com Ee, é gerado uma vertigem, um momento heimlich. A própria palavra heimlich como vertiginosa ao coincidir com seu contrário unheimlich. Neste momento em que surge o ominoso, podemos ler em Freud a irrupção do Real tal como proposto por Lacan. Em Freud 29 temos que das unheimlich irrompe quando algo reprimido emerge em algo familiar tornando-o estranho. Quero sublinhar justamente o instante branco, sem palavra, que ressoa no corpo, aquele instante cheio de it (nas palavras de Flávio de Carvalho em A Experiência no 2). Em Joyce o mesmo se dá, mas no sentido inverso, pois não é que algo emerge e sim que se subtrai. O sentido desaparecido por esvaziamento ou inflação desacomoda o significante no leito da relação sexual com o significado e essa suspensão deixa vislumbrar, um instante, o não encaixe. Uma fissura tem lugar e o significante não volta mais a ser o mesmo: foi des-mencionado. É o bastante para que algo trema, rearranje-se. Este é o paradigma joyceano. Neste desencaixe reside a natureza do enigma, no passo em falso do significante que fica solto, à procura do significado. Certa vez, como crítica, disseram a Joyce que seus jogos de palavras em Ulisses e Finnegans Wake eram triviais. Ele respondeu: “Sim, meus meios são algumas vezes triviais, e outras quadriviais.”30 Harari liga esta resposta à duas formas da educação 28 GALINDO, C. Op. Cit. p. 29. 29 FREUD, S. “O Estranho” [1919]. In.: ESB. OC. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 30 ELLMANN apud HARARI, R.. Op. Cit. p. 135. 78 na Antiguidade: o Trivium (referido à gramática, retórica e dialética) e ao Quadrivium (ligado à aritmética, geometria, música e astronomia). Do Trivium ao Quadrivium passamos, por conseguinte, do significante para a letra. Do escutado, para o escrito. Passagem que leva Joyce a ser alguém instalado na episteme do Quadrivium, já que nesta, a escrita é imprescindível porque constitui um pilar definitório, ineludível. Trata-se da mesma escrita que permite Joyce apanhar pedaços do Real; por meio dela, pode-se aceder a fragmentos pontuais de tal registro. Daí o recurso de Lacan à matemática, à topologia, e sua consideração de que a escrita sempre envolve uma referência ao nó e/ou cadeia. Pois bem, aqui “encontramos” Joyce. 31 Apesar da referência mais direta ao Finnegans Wake e a Ulisses, este paradigma joyceano opera já desde Dublinenses (nas finalizações dos contos) e no Retrato do Artista Quando Jovem (nas epifanias, por exemplo) – e aponto aqui para isto que Lacan sublinha no Retrato que é do artista, singular. Com isto temos invalidada uma linha de pensamento no sentido de que Joyce opera um esfacelamento progressivo da língua na sucessão de suas obras. Não. O paradigma está colocado desde o início. Ou, como está no próprio Finnegans Wake: “O grafo proteiforme é poliedro da escrita.”32 A escrita de Joyce é seu Sinthome. Este conceito, Sinthome (também simbolizado por ∑ no Seminário 23 de Lacan), pode ser elaborado, abordado de diversas maneiras, é pluridimensional. Uma destas dimensões, privilegiada pela relação do Sinthome com o simbólico, é mencionada por Lacan através de uma palavra-valise (a palavra-valise como o que lhe vai bem para seu ensino): diz-mensão. Embrulhados aqui vão “dizer” e “dimensão”, com o que temos “dimensão do dito”. O Sinthome de Joyce está nesta dimensão, mas com mais, ainda, uma volta com o que opera uma des-menção da diz-mensão que implode-explode o significante da mesma maneira que a experiência traumática (o trauma como irrupção do Real), da mesma maneira que a angústia ou o ato analítico. A des-menção em Joyce corresponde ao unheimlich freudiano. Freud define o unheimlich como uma subspécie do heimlich o qual corresponderia à diz-mensão (isso ignorando, por um instante, a vertigem da palavra heimlich). Pois bem, inicio este trabalho dizendo que pouco tenho a dizer exceto que o Sinthome em Joyce, sua escrita, revém através de uma enunciação (esta entendida como 31 32 HARARI, R. Op. Cit. p. 136. JOYCE, J. Op. cit. p. 19. 79 enigma elevado à potência da escrita, Ee) que opera uma des-menção do significante através da vacilação deste. Transpondo isto para a psicanálise, vemos que ganha importância ao termos em vista que o homem de que se ocupa a psicanálise, o homo sexual, só é pelo fato de falar e é por isso que em psicanálise trata-se de desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra. Freud nos ensina que o analista deve ser capaz de delirar, de sair da lira, o que o aproxima, segundo Harari, do poeta. A atenção dada por Lacan a Joyce passa por aí, pois na dimensão linguageira do inconsciente e da psicanálise está posto em cena a todo o momento o que Lacan sintetizou em Ee. Além do mais, todos nós, analistas ou analisantes, sabemos que não é sem efeito e nem algo pouco fazer vacilar, des-acomodar, des-cristalizar o significante. Como epígrafe deste trabalho, escolhi um trecho do Finnegans Wake: Husamenta: So’o ne retûha, itakuapegua pyahu, ohekáva mba’e vai ñe’ê porá apytépe, nde, rekéva ore pay javé há rekaru’yva rovy’a aja, nde ndekuaarekópe, hesakuaitépe eréva’ekue hosue jekuaaraê’ ne pore’yetépe, hesapyso, yváicha rehykuavova nde ytaku pupu Ari. Tyryrukue ha mba’e kaigue, ai péu rape, amo àrai yryvu oipotáre ne ã ha ha’ûvo chiã oúva grajasgui, mano sarambipa, mbokapu guasu javeguakuéra rehe téra ryrúgui oikópa tanimbu, opa teko ombokusugue tata rendy atyra marangatúva ojevy yvy timbo vevére. Oikopa tepoti ramo aga araka’eve oike’yva ne andai apyra’y yvytúre. (Ha aña retâ, Ha ja oúma ña ne re’ôngue ñoty! Ha mba’asy, asaîmba, ajavy che ñeha’â) reikyty kytyvérô zanahoria, rembo’i mbo’ivérô nabo, reipiro pirovérô papas, nembyesay sayvérô sevói rejuka jukayerô guéi remyangu’i ngh’ivérõ cancros, rejoso josovérô ka’avo, rehapy hetavérô jepe’a, ipukuve ne kuimbe. Ha hetave ty’ái ne rembi’u rykuépe, heta hetave tata nde aópe, iñandyve ha imbareteve, otimbo rory kyre’yve nde japepo pyahu irlandapegua. 33 33 Trata-se aqui de um trecho do Finnegans Wake traduzido para o Guarani por Sérgio Medeiros (disponível em http://gogobrazil.com/guarani.html [acesso em 20/10/2013]). O trecho citado aqui, cuja função é por em ato mais uma volta na vacilação do significante provocada por Joyce, em português, na tradução dos Irmãos Campos, fica: “Farejador de carniça, coveiro prematuro, perquiridor do ninho do mal seio de uma boa palavra, tu, que dormes em nossa vigília e jejuas para nosso júbilo, tu, com tua razão desloucada, predisseste preciso, um jofeta em tua própria ausência, cego ver tendo sobre tuas muitas escaldaduras, bolhas e queimaduras, purulentas úlceras e pústulas, pelos auspícios daquela nuvem corvo, tua sombra, e pelos augúrios de um palramento de gralhas, morte com todos os desastres, a dinamitização de colegas, a redução de registros a cinzas, o arrasamento de todos os impostumes pelas chamas, o retorno de um monte de longânimes polverulentos feitos a fezes, mas nunca entrou em tua obtrusa cabaça de vento (Oh inferno, evem nosso enterro! Oh peste, perdi a posta!) que quanto mais cenouras rales, quanto mais nabos piques, quanto mais batatas peles, quanto mais alho no teu olho, 80 Assim, dando uma volta com diferença, resta dizer que o título deste trabalho é: Ee: des-menção no ∑ em Joyce quanto mais carneiro esmoas, quanto mais verdura esmagues, tanto mais lenha queima, mais longa tua concha, mais suor na tua sopa, mais fogo na tua roupa, com mais graxa e mais força, - mais fumega a tua bela panela irlandesa. (In CAMPOS, Haroldo e Augusto. Panorama do Finnegans Wake.São Paulo: Editora Perspectiva. 1971. 81 Psicanálise pós-joyceana: algumas considerações Maurício Maliska1 A expressão psicanálise pós-joyceana presente no título deste artigo é tomada de empréstimo de Roberto Harari que a utiliza em alguns momentos de sua obra ao fazer referência a uma colocação de Lacan no escrito “Joyce, o Sintoma” 2 em que ele aponta para o ser pós-joyceano como uma forma de um saber fazer de modo inventivo alguma coisa produtiva com aquilo que era sintoma. Harari toma essa passagem como uma transmissão, no sentido de que ela aponta à direção da psicanálise no momento atual. De minha parte, a utilizo nesse artigo como uma referência ao que Lacan fez da psicanálise após Joyce, ou o que ele soube fazer com a psicanálise após Joyce. A expressão aponta para os efeitos da obra de Joyce sobre Lacan, a formulação do conceito de Sinthome3 e a pertinência teórica e clínica desse conceito para a psicanálise. Sinthome: a partir de Freud, Lacan não sem Joyce. Aurélio Souza, no prefácio à edição brasileira de Como se chama James Joyce4, comenta a aproximação que Lacan realiza entre a psicanálise e a religião, o que 1 Psicanalista, Membro e atual presidente da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 2 LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 560-566. 3 Esta expressão vem sendo traduzida/adaptada para o português pela Zahar Editora como sinthoma. Neste trabalho, será mantida a expressão utilizada por Lacan ao longo do Seminário 23, Sinthome, mantendo o francês arcaico. Esta posição deve-se em função de certo caráter intraduzível e inadaptável do termo, o que marca a própria singularidade da grafia para uma pertinência conceitual quanto ao real não simbolizado. Ademais, as articulações que Lacan estabelece a partir dos jogos homofônicos tornam-se ainda mais relevantes com a permanência do termo no seu estado original. 4 SOUZA, A. Prefácio à edição brasileira. In: HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003. p. 09-20. 82 já não é nenhuma novidade do mestre francês, pois em diversos textos ele estabelece várias relações entre esses campos. No Seminário 23 não é diferente, pois Lacan mostra certa heresia (héresie) que pode ser lida homofonicamente na língua francesa nas iniciais das palavras que compõe o nó borromeo (R.S.I.). O psicanalista Pedro Heliodoro Tavares5 mostra com muita propriedade a heresia de Lacan ao promover um quarto elemento no trinitário nó borromeo, rearticulando-o de modo herético a ultrapassar a trindade católica (o nó de três) para a introdução de um quarto laço que dará uma outra consistência ao nó borromeo, numa inventividade muito singular do mestre francês. A respeito da heresia, Lacan diz que Joyce é, como ele, um herético e aponta que a heresia pode ser entendida a partir da palavra latina, derivada do grego, haeresis, que designa heresia, mas também a ação de fazer uma escolha. Para Lacan, Joyce faz heresias com as palavras, mas também faz uma escolha ao tomar a via do Sinthome6. Hère também indica a expressão pauvre-hère, que quer dizer, pobre homem ou pobre diabo. O herege, portanto, pode ser um pobre diabo, mas que ao fazer a escolha pela via do Sinthome pode transformar essa pobreza em outra coisa. O herético, tal como Joyce, é um hère, um pobre diabo, mas através do Sinthome transforma sua pobreza em algo produtivo. O termo pobre diabo nos conduz a miséria neurótica de que falava Freud7. Ou seja, o neurótico é esse miserável, o hère (pobre diabo), que através da análise pode hereticamente sair da miséria neurótica do pobre diabo para uma escolha, a um hère sinthomático. Lacan também era um herege frente à psicanálise praticada sob a orientação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) ─ da qual foi excomungado por discordar de questões, sobretudo, técnicas 8 . A heresia de Lacan também está em seu ensino, através do nó borromeo, do R.S.I. (homófono a héresie) que faz uma heresia fonética ou faunética, como preferiu grafar. Essa última palavra, a faunética, diz respeito a uma palavra-valise de Lacan, em que se joga com a sonoridade das palavras ética, fonética e fauno. A fonética não se refere simplesmente aos fonemas da tradição linguística, mas aos sons advindos do canto materno. A voz da mãe vai marcar o sujeito 5 TAVARES, P. H. de M. B. O Sinthome como a heresia teórica de Lacan In: Ágora: estudos em teoria psicanalítica. Rio de janeiro, vol.13, n.1, pp. 35-49. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982010000100003>. Acesso em 08 jul.2013. 6 LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 16. 7 FREUD, S. “Estudos sobre a histeria” [1893-1895]. In.: ESB. OC. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 8 LACAN, J. Seminário11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 83 para além da linguagem, pois o que irá soar no sujeito constituirá sua singularidade, fazendo-o um ser falante. Trata-se, portanto, daquilo que Lacan9 chamou de lalangue dite maternelle. Ou seja, a lalangue10 não é um idioma, não é somente uma língua que o sujeito fala, mas uma língua que fala no sujeito, ali onde ele é balbuciado antes mesmo de ser falado. É interessante notar, parafraseando Harari 11, que esta fonética particular da mãe nos traz algo de uma ética singular que passa pelo fone, pela fonação ─ pelo som da língua. É uma língua muito singular e própria que não tem a ver com o idioma. A ética é a escuta dos sons, não mais dos significantes, uma ética socrática, diferente daquela do Seminário 712, em que a máxima repousava sobre o argumento do agir de acordo com o desejo. Aqui, trata-se de uma ética socrática que admite tudo menos isso, com base no dizer de Antígona 13que suportou tudo, menos o fato de não poder enterrar o seu irmão. Quanto ao Fauno, ele é uma divindade campestre, caprípede e cornuda que anda pelos campos a tocar sua flauta. Um ser desprovido das convenções humanas, imerso no poder de transe da música de sua flauta. É um deus entregue aos prazeres sonoros. O que está em jogo na palavra-valise faunética é a ética da fonética da lalangue e o Fauno como essa divindade musical, sonora e rítmica, que em outros termos vem a ser esse canto singular da mãe que se inscreve fazendo suas marcas sonoras, e que irá constituir o sujeito em uma outra articulação entre o simbólico e o real, apontando para o Sinthome ou o quarto nó na cadeia borromeana, o nó herético de Joyce. O Sin-thome A heresia de Lacan está, como foi dito, num movimento faunético, em que ele toma, por exemplo, sin-thome numa transliteração homofônica com saint-homme 9 LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 10 Esse termo, que iremos manter na sua escrita francesa, sem tradução, remete a lalangue dite maternelle, em que Lacan não se refere à língua enquanto idioma, mas uma língua específica, singular de cada sujeito, inscrita a partir dos restos fonemáticos do cantarolar e da lalação da mãe. Não é uma língua materna, mas a língua da mãe enquanto restos vocálicos, manhês, fragmentos de real, pedaços de sons. 11 HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003. 12 LACAN, J. Seminário 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 13 SÓFOCLES. Antígona. Trad. de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 1999. 84 (santo-homem) numa alusão ao também homófono Saint Thomas, Saint Thomas d’Aquin (São Thomas de Aquino). Nesse ponto, Lacan mostra uma relação entre James Joyce e São Thomas de Aquino, sobretudo, em função das epifanias14. O que se destaca do texto joyceano, sob esse aspecto, é sua relativa pobreza de metáforas. Finnegans Wake15, por exemplo, não apresenta ricas metáforas como é esperado em obras literárias ou de ficção. Isso marca o quanto se trata de uma obra que não está inscrita na clave do sentido, pois o objetivo de toda metáfora é produzir sentidos e neste ponto uma metáfora pode gerar tantos sentidos quanto um sintoma. Se o sintoma, na tradição lacaniana, é uma metáfora, ele produz sentido tal qual. Já no texto de Joyce, Lacan não escuta metáforas. O efeito da leitura desse texto não é de significação, mas sim de uma e(qui)vocação na medida em que desponta uma voz mais do que um significante, assim como também escuta uma (equi)vocação: outras vocações (marcada no prefixo equi). Ou seja, outras vozes num texto produzido na clave da polifonia. Nas palavras de Harari, em Joyce “aparecem antes resíduos metonímicos, restos de uma experiência extática, fragmentos despedaçados transladados para a escrita e que, em sua condição de pedaços, nos aniquilam ─ precisamente: nos sentimos invadidos por (um) nada.”16 Enfim, trata-se de epifanias por trazer de modo evocativo ou invocativo várias vozes, ecos de línguas que provocam um estado de êxito e gozo no leitor. Harari17 se refere à epifania como uma cobertura de voz sobre o olhar num certo tipo de manifestação espiritual. Os termos evocação e invocação remontam à voz, naquilo que ela é o qol ─ palavra hebraica para designar ao mesmo tempo voz e trovão. E aqui vê-se a influência de São Thomas de Aquino ─ que vem a ser o mesmo tufão descrito na passagem bíblica da manifestação espiritual dos Atos dos Apóstolos18 em que a epifania aparece como uma reação gozosa frente ao forte vento que enche de júbilo os apóstolos e esses começam a falar em línguas. 19 A epifania mostra um enlace entre o inconsciente e o real. O vocare 14 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 15 JOYCE, J. Finnicius Revém. Trad. de Donaldo Schüler. Cotia: Atelie Editorial, 1999. HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003, p. 86. 16 17 Idem, ibidem, p. 16. 18 BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990. Essa expressão designa a glossolalia, uma espécie de balbucio, em que o sujeito fala algo que parece ser uma língua, mas não é. Ela tem a entonação e a prosódia de uma língua qualquer, mas é totalmente desprovida de morfologia, sintaxe e semântica. 19 85 que produz epifanias é evacuado de sentido, pois os apóstolos, por exemplo, começaram a falar em línguas. De todo modo, há uma dimensão, dit-mention, dimansão do real como também mostrou Lacan no Seminário 2020. O real da dit-mention/dimansão é o campo da letra sonora e não mais do significante. James Joyce21 preza por um estatuto muito singular da palavra em sua obra. Não se trata da palavra no seu uso lexical, nem mesmo da palavra que dá sentido a um texto. Trata-se antes de um estatuto evocativo muito mais do que comunicativo. Essa evocação desperta a dimensão sonora da enunciação e não o sentido atrelado ao enunciado do texto. Por isso, a obra de Joyce ultrapassou a sua existência e “[...] não deixará de dar trabalho aos universitários”22 tal como ele próprio previu. Joyce não escreve um livro com conteúdo, algo para transmitir uma ideia, uma reflexão ou uma história qualquer, ou até mesmo, uma moral da história. Joyce escreve para transmitir algo que vai além da mensagem e toca num ponto intraduzido e introduzido por ele: a saber, a transmissão de uma forma estética através da articulação do som e do ritmo, não do som e do sentido, mas do ritmo e do som que compõe o texto joyceano. Trata-se de uma musicalidade particular que engendra um gozo estético. Algo do desejo pode ser transmitido através da polifonia e polirritmia vocal presente nos sons das línguas que compõe seu texto. Joyce não se preocupa com o conteúdo, mas com o estatuto do som em sua obra, algo que ultrapassa a mensagem para tocar naquilo que é o próprio real da língua. Ainda em relação ao saint-homme (santo-homem), homófono ao Sinthome, o que se destaca é o vocábulo homem. Neste sentido, as traduções adotadas por Harari 23 e Žižek24 parecem ser muito apropriadas, pois Sinthomem contém o vocábulo homem, da mesma forma que na versão castelhana do livro de Harari consta sinthombre. Cabe considerar que a tradução por sinthoma exclui a possibilidade de conter o vocábulo homem ou sua homofonia. Mas afinal, qual é a importância em se manter o vocábulo homem, uma vez que a psicanálise tradicionalmente trabalha com a noção de sujeito? Esse é um momento de guinada no ensino lacaniano, nessa virada vários conceitos são revisitados desde uma outra ordem, sem anular suas perspectivas originais. O sujeito do 20 LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 21 JOYCE, J. Op. cit. JOYCE apud LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 159. 23 HARARI, R. Op. cit 22 24 ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. 86 inconsciente, aquele dividido pelo efeito do significante remete a um inconsciente basicamente simbólico, em que o significante que incide sobre o sujeito, o divide entre aquilo que ele diz e aquilo que ele pensa ter dito. Pois bem, este sujeito da psicanálise, sujeito do sintoma inconsciente, sujeito que sofre e goza de seu sofrimento é colocado teoricamente lado a lado com o LOM ─ neologismo de Lacan25 para designar a homofonia francesa da palavra l’homme. Ao modo de Joyce, Lacan heleniza a psicanálise, traz a partícula LOM como puro som e letra de um significante que se perde. “LOM: em francês, isso diz exatamente o que quer dizer. Basta escrevê-lo foneticamente, o que lhe dá uma faunética.”26 O LOM remete ao traço unário, que fica perdido, não resta como uma letra morta, nem tão pouco entra na cadeia significante. O traço remete à letra que Lacan recupera nessa transliteração. O LOM está destituído de qualquer estruturação simbólica, pois não está disposto numa lógica fálica, desse modo, não há qualquer ideia de recalcamento em torno desse conceito. É preciso insistir que a constituição do sujeito se dá sobre a repressão e o sintoma surge como um substituto da satisfação pulsional. Já o que se passa no fim de análise, com o Sinthome, não é mais nada disso. Não que o sujeito deixe de operar como sujeito, mas paralelo a isso está algo inventivo que faz despontar o artifício, de um fazer com arte ao modo dos artesões. Isso não significa dizer que o analisante, no fim de análise, passa a ser um artista de ofício, mas sim que faz de seu ofício uma arte (artifício). “Dito de outra forma, o sujeito faz sua arte como um LOM ‘faber’. Um artífice que inventa sua arte através de um saber fazer com... (‘savoir-faire avec’) pedaços do real e com o saber inconsciente.”27 Esse homo faber é um homem fazedor, mas isso não significa que simplesmente faz, mas sim que há saber fazer. O destaque não é sobre o saber, ainda que este saber inconsciente seja fundamental, mas a importância está no efeito desse saber sobre o fazer do sujeito. Esse fazer motorizado pelo Sinthome não o coloca na via do sintoma. Neste sentido, há uma saída da miséria neurótica, pois o LOM não é o retorno do reprimido, nem mesmo as repetições e os fantasmas que compõe a estrutura do sujeito. 25 26 LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 560-566. Idem, ibidem, p. 560. 27 SOUZA, A. Op. cit., p. 20. 87 É uma outra forma de lidar com isso, e nessa outra forma o sujeito inventa, à sua maneira, com pontas e restos de real. Harari28 menciona que neste momento do ensino de Lacan não se trata mais da via da metáfora, uma vez que esta é sintomática, mas pela via do gozo. “Aqui estamos diante do ponto fundamental em Joyce: o de conseguir trabalhar com seu próprio gozo, unido à convicção a respeito da excepcionalidade de sua obra, à qual o mundo deveria reconhecimento.”29 Chega a brincar dizendo que Joyce goza com o joy (na língua inglesa) e jouissance (na língua francesa), para finalmente dizer que o gozo não é com o idioma, mas com a lalangue. Joyce conseguiu esse gozo, isso que Lacan tenta trazer para a psicanálise como podendo ser algo da intervenção analítica. Mais exatamente, Lacan 30 propõe o Sinthome como o fim de análise, em que a análise produz, como efeito, um analista Sinthome, ou seja, um analista que opera com o seu Sinthome, com sua maneira de inventar e isso produz um gozo inventivo, em que se goza da vida de um modo inventivo. Já não se trata mais daquele gozo fálico, próprio da sexualidade fálica, também não é o suposto gozo do/no Outro, nem mesmo o gozo do sentido do sintoma, mas um gozo do saber produzido na análise, um gozo produtivo do fazer. Lacan finaliza sua conferência Joyce, o sintoma fazendo, tal como no início do Seminário 23, referência e destaque aos dois mestres: de um lado Freud, pela paternidade da psicanálise; de outro, Joyce, pela maneira inventiva de trabalhar com as palavras, de um modo não lexical, fazendo-as soar ao pé da letra, ou seja, manejando pontas de real, de pura letra. Por fim, Lacan reconhece a genialidade desses senhores e tenta, a partir disso, (re)inventar a psicanálise, ao seu modo, sem imitações. Ao reconhecer e se servir-se do pai, Lacan foi além dele. Quanto ao gozo em Joyce, Lacan esclarece: Que Joyce tenha gozado por escrever Finnegans Wake, isso se percebe. [...] Ser pós-joyciano é sabê-lo. Só há despertar por meio desse gozo, [...] O extraordinário é que Joyce o tenha conseguido, não sem Freud (embora não baste que o tenha lido), mas sem recorrer à experiência da análise (que talvez o tivesse engodado com um fim medíocre). 31 28 HARARI, R. Op. cit. p. 93. 29 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 163. 30 Idem, ibidem. LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566. 31 88 Harari, em diversos momentos de sua obra 32 , retoma o significante pósjoyceano de Lacan e acentua que a psicanálise atual só pode ser pós-joyceana. Não por uma mera sequência temporal, mas porque Lacan ao se afirmar joyceano ou pósjoyceano, tal como já havia se afirmado freudiano, mostra suas origens ao reconhecer o pai e seu destino, ao apontar para o Sinthome em Joyce, propondo ser pós-joyceano. Lacan marca a sua filiação e, em relação à Joyce, mostra o quanto a sua psicanálise é afetada pela letra de Joyce e, desse mesmo modo, a psicanálise deve afetar seus praticantes para o despertar de uma outra forma de gozo. Para Lacan, o despertar não é tão somente aquele de Freud33 em relação ao sonho, onde o sujeito desperta para o inconsciente, enquanto a vigília é sonífera, mas o despertar para um outro modo de gozo, não somente o inconsciente. Para Lacan, nesse momento, importa o “gozo, não o inconsciente” 34 e, ao mesmo tempo, não sem Freud. A experiência de análise é o meio de despertar do engodo medíocre para o gozo da vida proporcionado pelo Sinthome. 32 HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003. HARARI, R. O Psicanalista, o que é isso? Carlos A. Remor, Inezinha Brandão Lied, Tânia V. Nöthen Mascarello (Orgs). Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008. 33 FREUD, S. “A interpretação dos sonhos” [1900]. In.: ESB. OC. Vol. VI e V. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 34 LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 162. 89 Angu de caroço Tahiana Pereira Brittes1 “O Real, aquele de que se trata no que é chamado de meu pensamento, é sempre um pedaço, um caroço. É com certeza, um caroço em torno do qual o pensamento divaga...”2 “Sendo o Real desprovido de sentido, não estou certo de que o sentido desse Real não poderia se esclarecer ao ser tomado por nada menos que um Sinthome.”3 No Seminário 23, Lacan propõe um estudo sobre “Le Sinthome” e nos aproxima um pouco mais deste tema passando por intenso estudo dos nós e do Real. A partir destas citações de Lacan, proponho algumas questões para este painel. Lacan4, postula que o Real é sem lei e sem ordem, que nele está foracluído o sentido. Ficar diante do Real é lidar justamente com esta impossibilidade de fazê-lo; lidar com o que há de intocável, inacessível. Assim, o articulável passa somente por pedaços do Real, pontas com os quais é possível fazer algo novo: Sinthome. Deste lugar de impossível e indizível, é insuportável falar do Real. Seu negativo é insuportável. E parece que fica um tanto difícil também falar de Sinthome, e aí por ser difícil o trajeto até ele. Parece-me denso o Seminário 23, e não só a mim... Seria essa densidade resposta a estes nãos tão expressamente colocados? (O não se poder acessar o Real, e o não ser fácil o trajeto para a contrução do Sinthome). Nesta passagem do significante à letra, do sintoma ao Sinthome, estaria também a dificuldade de se articular com tais caroços? O artifício analítico, ao lado do Sinthome, nomeia este painel. Lacan nos fala que a invenção do artifício analítico começa por ser a invenção do analista, com toda a 1 Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. LACAN, J.. Seminário 23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 119. 3 Idem, ibidem, p. 131. 4 Idem, ibidem, p. 133. 2 90 singularidade que isto implica. Invenção esta que começa no divã, em sua análise pessoal – à medida que a possibilidade de ser analista, está em quanto mais se é analisante. O início da experiência analítica, implica um artifício do Sujeito suposto Saber, na construção do sintoma. Mas durante a análise é preciso sair do trabalho com o Simbólico generalizado para o Real da linguagem. Inezinha Brandão Lied em “Linguaguem turbulenta linguagem”5, fala desta possibilidade do analisante se liberar do estrangulamento que decorre da metáfora que muitas vezes paralisa, para ter acesso a uma nova e outra condição – a de artífice, responsável por seu saber-fazer-ali-com. O savoir-faire, segundo Lacan6 é um fazer com arte, o artifício que dá à arte da qual se é capaz, um valor notável, porque não há Outro do Outro para operar o Juízo Final. Este saber-fazer é um artifício diante do sem sentido do Real, sobre o qual só se sabe ao fazer; isto não é da ordem do pensamento a este respeito, mas do fazer do analista. Daí, podemos pensar a passagem do analista sintoma a analista Sinthome, marcada por um saber-fazer-ali-com que toca o Real, mas que não está no lugar de um conhecimento enganoso, e sim de um fazer. O Sinthome o é à medida em que algo se difere com a invenção de significantes novos e ocupa assim um novo lugar, advém de modo inesperado, fora do repertório habitual do sujeito. Mas isto que é um novo arranjo feito a partir dos mesmos elementos é singular em cada um, e por este encontro que tem com o Real, também imprevisível. Como efeito de uma análise, caminhos singulares são possíveis: pequenos atravessamentos do fantasma; que advenha um sujeito advertido; advir um Sinthome para o sujeito... possibilidades singulares, de cada um. Tendo o Sinthome como identificação, o sujeito já não busca incansavelmente por uma interpretação, mas incansavelmente produz algo novo. Este fazer é um saberfazer-ali-com inegociável, livre de interpretação, “não há nada a fazer para analisá-lo”7. “O alvo da análise, sem dúvida é o artificiar do analisante” 8 , e este ato inventivo, tomará um caminho singular para cada analisante. Entre os possíveis caminhos, está o saber-fazer do analista Sinthome, que é suportado pelo sem sentido. Sabemos que LIED, Inezinha Brandão. “Linguaguem turbulenta linguagem”. In: Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, v. 4, n. 3, p. 267-278, set./dez. 2010. 6 LACAN, J.. Seminário 23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 59. 7 Idem, ibidem, p. 122. 8 LIED, Inezinha Brandão. “Artificiar”. In: Reunião Lacanoamericana de Psicanálise, Bahia, 1997. 5 91 Lacan9 afirma que não se pode conceber o psicanalista de outra forma senão como um Sinthome. Mas seria possível ser analista sem necessariamente ser um analista Sinthome? É importante não considerarmos um lugar de reciprocidade analista analisante. Pensar a partir dessa não reciprocidade nos responderia à questão: para caminhar em sua análise em direção ao Sinthome, um analisante precisaria estar em análise com um analista Sinthome? Sabemos que o Sinthome toca somente pontas do Real. E ainda que não haja aí possibilidade de intepretação, que haja uma nova relação com o Outro, e ainda que esta invenção seja irreversível, sabemos que não desaparece a condição do sujeito assujeitado – com algumas dores, sofrimentos, oscilações. Então, haveria por que continuar ou por que não continuar em análise ao se inventar o Sinthome? Começo minha fala fazendo referência ao insuportável do inalcançável, do indizível. Retomo que há algo de insuportável no Sinthome. Mas fico com as possibilidades destas pontas do Real, destes caroços do Lacan; e com o desejo de fazer algo com isso, algo novo (além de um angu). 9 LACAN, J.. Seminário23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131. 92 Tempos de Lacan, Fins de Análise Tania Nöthen Mascarello1 Nada está feito enquanto algo fique por fazer. R. Rolland, Músicos de hoje Saber fazer ali com seu sintoma, esse é o fim da análise. J. Lacan, Seminário 24 A temática do fim de análise implica uma proposta que vai muito além de uma precisão restrita ao momento final de um processo. Queremos dizer com isso que o modo segundo o qual concebemos esse tempo final encontra-se definindo a direção da análise desde o seu início. Aproveitando a polissemia própria do termo, podemos dizer que o fim enquanto meta, permitirá definir o fim enquanto término ou final. Lacan define de três modos, o fim de análise: 1) Atravessamento do fantasma; 2) Invenção do Sinthome: Saber-fazer-ali-com o que gerava o sintoma; 3) Passagem de analisante à analista. Trilharemos um percurso parcial, deixando para outra ocasião a passagem de analisante a analista. A preocupação de Lacan com este tema levou-o a diferentes propostas em diferentes tempos de seu ensino que tendem a situar a experiência de fim de análise como operações em que se aborda mais definidamente o Real, diante do qual Freud se detém. Conforme entendemos, as formulações lacanianas devem ser apreendidas a posteriori, no seio mesmo de seu itinerário teórico, cujo roteiro se especifica como diferencial ao periodizá-lo. Ou seja, é no momento de concluir que se introduz e se define a compreensão, fazendo ato, circunscrevendo o acontecimento. É fazendo cortes na obra de Lacan que é possível, a partir de seu momento de concluir, reinterpretar as formulações propostas em instantes e tempos “prévios”. Num primeiro corte, Lacan como bom freudiano, visava à interpretação dos sintomas, sua tessitura significante. O Outro marcado como consistente, s(A) – 1 Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. 93 significado do Outro – é a letra com que o escreve no grafo do desejo e o recurso da operatória do analista é a interpretação, é o trabalho com o equívoco, com a pontuação, com a escansão, com a metáfora. O analisante, ávido em sua ilusão de nutrir-se de sentidos faltantes ante o sofrimento que o limita em seus graus de liberdade, crê no Sujeito-suposto-ao-Saber como Outro consistente. Não somente crê nele, senão que goza dele. Goza a ponto de lançar o achado poiético de seu analista no circuito público sob a forma de: “Escutem só o que meu analista me interpretou! É sensacional!”. O gozo fálico da significação que o acompanha é o que define este corte do ensino de Lacan2. Diante disso, não podemos deixar de mencionar a questão freudiana da análise tanto como terminável quanto interminável. Esta conjunção nos leva a precisar que uma análise deve ser terminável, senão seria, por falha, interminável. Mas cessarem os encontros regulares entre analisante e analista implica que já não podemos falar de análise interminável? Não podemos deixar de lado que um dos obstáculos com que contamos em toda análise, derivado da própria constituição do sujeito, é a condição de irredutibilidade do que é submetido pela repressão primária. A constelação inesgotável de formações do inconsciente daí decorrente provê o forjamento de sonhos, atos-falhos, chistes e sintomas. Desde esta perspectiva, a análise se tornaria interminável, pois sempre haveria algo para analisar, sempre é possível adicionar mais do mesmo, mais sentidos. Este trabalho de análise privilegia o registro do Simbólico. Temos aqui uma evidência do que colocamos como palavras iniciais de nossa apresentação: o entrelaçamento entre o fim como objetivo e o fim como finalização. Se a direção da análise tem como objetivo centrar o trabalho nas formações do inconsciente, ela resultaria interminável. O ato psicanalítico nesta operação é o que testemunha a presença eficaz de uma ordem significante, ao mesmo tempo em que se eleva contra o muro congelado da metáfora3. Relança metonimicamente a cadeia associativa, instala a neurose de transferência, mas revela-se insuficiente para o próprio Freud. A recomendação de Lacan, ainda freudiano, é precisa: “Não engordar o sintoma de sentido”,4 e também que a direção da análise deve trabalhar para o atravessamento do fantasma, primeira proposta de Lacan que mencionamos como possível fim de análise. 2 HARARI, R. As dissipações do inconsciente. Porto Alegre: CMC Ed., 2003, p. 96. HARARI, R. Fantasma: fin del análisis? Buenos Aires: Nueva Visión, 1990, p. 65. 4 LACAN, J. “La tercera”. In: Intervenciones y textos. Buenos Aires: Manantial, 1991. 3 94 No tocante ao fantasma, segundo corte no ensino de Lacan, encontramos o recato, o pudor, a vergonha, concomitantes com a vigência do Outro não mais consistente. Se no sintoma temos o circuito público e o caráter deslizável, no fantasma temos privacidade e imobilismo. Articulado ao desejo sexual, explicitamente pulsionalizado, portanto, que alcança seu cumprimento no fantasma, condensa desejo sexual, gozo – principalmente autoerótico – e realidade. A realidade é fantasmática, diz Lacan 5 . A operatória na análise com respeito ao fantasma não é a interpretação e sim o atravessamento. Entende-se por atravessamento a geração de uma fenda, levando a um novo arcabouço da realidade, não mais tomada pela repetição da cena fantasmática. A operação de atravessamento do fantasma como uma fenda que se abre é representada por Roberto Harari pela punção [símbolo usado por Lacan na fórmula do fantasma: ($ ◊ a)], sendo atravessado por uma seta. Os sucessivos atravessamentos do fantasma, mediante as construções de seus axiomas, deverão possibilitar subtrair da realidade, a gozosa compulsão de destino característica da neurose. Marcamos no fantasma sua qualidade significante, incorporada por Lacan à metonímia da falta-em-ser. 6 A compulsão apassivadora dos diversos semblantes de espancamento através da evocação do fantasma, procura mascarar o vazio da falta no Outro. Como tamponamento do real, o fantasma tenta combater a dor de existir. O trabalho com o fantasma apresenta três caras: sua cara Simbólica é a do axioma; sua cara Imaginária é a da cena evocada no momento do gozo, emprestado pelo mito edipiano na maior parte das vezes; sua cara Real é pela articulação do sujeito com o objeto a. Ainda que o Fantasma não seja do Real, Lacan adverte que certamente podemos localizar no Real os efeitos de seu atravessamento. Por tocar o Real da pulsão, traz consigo a benéfica despersonalização imaginária, fulgurante e reversível, visto que logo outro sentido aparece em sua função obturadora. Entretanto, depois dessa experiência, o sujeito não é mais o mesmo, visto que se desprende, sem “liquidar o fantasma”, tanto da demanda do Outro, como do gozo ao qual estava capturado no marco do fantasma, determinantes de sua vida. Desta operação construção/atravessamento do fantasma, se produz um S1 não consistente, significante sem-sentido, marcando o saber no lugar da verdade. Ou seja, pela operação do discurso do analista se instala o que é denominado por 5 6 LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 10 de maio de 1972. Inédita HARARI, R. Fantasma: fin del análisis? Buenos Aires: Nueva Visión, 1990, p. 264-65. 95 Lacan de sujeito advertido ou de paranóia pós-analítica7, como posição subjetiva no fim da análise. Advertido de quê? De que a articulação com o Outro e de que as conjunções/disjunções com o objeto a não se liquidam, mas se transformam. Entendemos que estes dois cortes na obra de Lacan – freudianos em sua proposta lógica –, não dão conta com precisão do que é possível conseguir com o tratamento psicanalítico, ou seja, nem no tocante às transformações dos gozos, nem na modificação da posição subjetiva obtida no final da análise. Passemos então ao terceiro corte. Em seu momento de concluir, Lacan introduz a identificação com o Sinthome, acompanhado do gozo mental que lhe é próprio. A partir do que é considerado, retroativamente, insuficiente com os quatro discursos (Seminários 16 e 17), Lacan no Seminário 18, propõe um Discurso que não seria do semblante. Mas é no Seminário 19, ...ou pire (...ou pior), que ele começa a definir algo que parece destinado a não fazer laço social, rompendo com a definição de um significante um, S1, remetido de maneira incontornável ao Outro, ao Pai, propondo em seu lugar outra postulação: Há do Um. Ao envolver um terreno pré-discursivo, seu gozo não fica fisgado pelas parcialidades do corpo. Este “do Um”, forma partitiva, nem é um entre outros – posto que não se articula, não se historicisa, não se analisa –, nem o um da unidade, nem o um do sucessor (que se repete), nem é o um da pretensão do amor, nem é o um do traço unário da chamada identificação simbólica. É do Um-absolutamente-só, e nele cabe reconhecer, cabe isolar o elemento que garante sua própria consistência, podemos dizer a consistência do próprio gozo, como não redutível nem integrável ao equilíbrio de discurso algum. Neste caso, então, aí já não situamos o particular, mas sim o singular. Este campo do uniano (distinto do unário)8 é precisamente a alternativa para a divisão do sujeito. Dá conta de uma re-localização do saber, na medida em que, no fim da análise, dito saber toma posição em e a partir do Um, com a condição de ter-se esvaziado da crença no Sujeito-suposto-ao-Saber, própria do sujeito dividido, como posição subjetiva da neurose. Uma vez acontecido o novo posicionamento, sobrevém junto um cessar da demanda pelo sentido, pela resposta providencial à pergunta do sujeito 7 8 LACAN, J. Seminário 15: O ato psicanalítico. Aula de 20 de março de 1968. Inédita. LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 15 de março de 1972. Inédita. 96 sobre seu sofrimento. “A orientação do Real, no campo que me concerne, forclui o sentido”9. Vai tomando forma a identificação com dito núcleo irredutível, inassimilável, uniano, que não responde à dimensão simbólica do parlêtre, porque não se dirige ao Outro. É o que Lacan denomina de identificação com o Sinthome. Em consequência, já não busca a verdade – verité, senão a varité, isto é, a variedade da verdade.10 O aporte do singular dá lugar ao cessar do suspiro da autocompaixão (soupire): “trata-se disso ou, senão, seria pior”, ... ou pire. Isso nos remete a Sócrates, que ao colocar-se de acordo com um “tudo, mas não isso”11, firma um gozo não negociável nos discursos da vida comunicacional, uma vez que se separa da confusão neurótica entre a demanda do Outro e o desejo do sujeito. O não mais suspirar remete também a não mais queixar-se das falências imaginarizadas e rivalizantes do Nome-do-Pai, que o leva a gozar falicamente de seu estatuto falido, estagnando o sintoma. Em contrapartida, mediante o uniano, o gozo mental permite prescindir do Nome-do-Pai, porque o Sinthome consegue servir-se dele responsavelmente.12 Lacan marca assim o Sinthome, com um caráter ativo, realizador, de passagem ao ato esclarecido. O Um do Sinthome como operação, muda também sua concepção do saber. O Saber já não é mais textual ou referencial; já não remete, de modo dialético, à verdade, senão que resulta imbricado com o fazer, dando lugar ao conhecido conceito do saber-fazer-ali-com o que deu lugar ao sintoma13, sendo cada um responsável, daí em diante, de e por seu saber-fazer (ali-com). Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem e o sintoma é o que a língua cria – metáfora congelada – é o saber fazer ali com isso, que possibilita o Sinthome. Ao articular Sinthome e Real, Lacan abre para mais algumas questões: Já havia afirmado que “O Real forclui o sentido”, mas isso não lhe basta. Vai além, dizendo que o Sinthome é “desabonado do inconsciente”14. A partir destas afirmações questiona o 9 LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p, 117. LACAN, J. Seminário 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Aula de 19 de abril de 1977. Inédita. 11 LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 15. 12 LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 132. 13 LACAN, J. Seminário 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Aula de 15 de fevereiro de 1977. Inédita. 14 LACAN, J. “Joyce o sintoma”. In: Shakerpeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assirio & alvin, 1989, p. 143. 10 97 estatuto do sujeito – dividido, claro, e introduz o neologismo LOM 15, por homofonia com l’homme, o homem. Mas assim como o sintoma não é o Sinthome, o homem não é LOM. Não poderia sê-lo, porque não há substância para-todo-homem, por tratar-se do modo de identificar-se com o singular do gozo de cada um, suportando a fecunda solidão do Umabsolutamente-só, derivada do distanciar-se da identificação com o traço do Outro, sustentada até ali como núcleo do Ideal. Ao dar relevo ao singular do gozo, Lacan assinala o Como é possível para cada um, este arranjo singular, Sinthome, seja ele o que for, irreversível. O fazer de Joyce tem uma relação com joy, diz Lacan, ele gozava com um tipo de pun muito particular. Jogos com as palavras, seus engavetamentos, transliterações, Joyce vai inventando significantes novos que provocam o riso. Na análise se trata não de reduzir o gozo, senão de transformá-lo. Como efeito do trabalho analítico, o gozo fálico do sintoma, muda sua condição. Saber-fazer-ali-com transforma o gozo fálico em gozo mental. Muda a condição de gozar neuroticamente do significante em corpo para uma condição outra, gozar do corpo mesmo do significante, pois “do Outro se goza mentalmente” 16. Tal é o gozo da vida, tal é o gozo do ser (do Sinthome), tal é o gozo que não cabe “temperar”, tal é o gozo do saber produzindo-se no fazer, pois a invenção de significantes novos faz com o que já estava, um saber outro. Passar então do gozo fálico da neurose, traduzido em “não agüento mais viver assim” ao “gozo mental”, próprio do Sinthome, traduzido em “sem isso não posso viver”, marcando uma mudança radical na posição subjetiva diante da demanda do Outro. Passar do sintoma ao Sinthome requer, na análise, um duplo movimento pulsional: desamarrar a pulsão de morte para que, por meio dos cortes e separações, desate, rompa o equilíbrio obtido com o sintoma (no qual o analisante está bem adaptado), instalando um transitório e benéfico desequilíbrio, para que possa haver uma nova amarração, ou seja, para que a invenção tenha lugar. Lacan faz mostração disso pelos nós e cadeias borromeas. O analista, também demarcado com um “tudo, mas não isso”, deve inventar e sustentar como não negociável, o fato de trabalhar fazendo violência à linguagem 15 16 LACAN, J. Joyce o sintoma. In: Shakerpeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assirio & alvin, 1989. LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 8 de março de 1972. Inédita. 98 comunicativa, estropiando sua escuta, abrindo-se para a escuta de sentidos outros que não estavam, mediante o artifício do saber-fazer-ali-com. No ensino de Lacan vamos encontrar o Sinthome representado pela quarta consistência acrescentada na cadeia borromea de três consistências. Como assinalamos anteriormente, o trabalho com a pulsão de morte desfaz o equilíbrio homogêneo da trindade do nó borromeu constituído pelos registros do RSI. Ao se desamarrar o nó, a quarta consistência é que faz a re-amarração. Defendemos então uma clínica do heterogêneo, confirmada pelas palavras de Prigogine: “Longe do equilíbrio, a matéria se torna ‘ativa’. Explora, sem parar, novas possibilidades”. 99