le sinthome - Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica

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le sinthome - Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica
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LE SINTHOME
Uma publicação:
Membro de Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana
Convocante da Reunião Lacanoamericana de Psicanálise
CLINAMEN
Revista de Psicanálise
Publicação da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica
Editor
Yuri Disaró Amado
Conselho Editorial
Carlos Augusto Remor
Inezinha Brandão Lied
Jeanine Fialho
Tania Vanessa Nöthen Mascarello
Normatização
Aline Veiga Pereira Ribeiro Velho
Clara Ataíde Fonseca Carvalho
Djulia Justen
Fabrício Antônio Raupp
Tahiana Pereira Brittes
Projeto Gráfico e Capa
Yuri Disaró Amado
C641 Clinamen: Revista de Psicanálise / Maiêutica Florianópolis – Vol. 5,
n.5. (Dez. 2013) - Florianópolis: Maiêutica Florianópolis – Instituição
Psicanalítica, 2001Semestral
ISSN 1519-4620
1. Psicanálise _ Periódico.I. Maiêutica Florianópolis – Instituição
Psicanalítica. II. Le Sinthome.
SUMÁRIO
CDD 150.1
4
Índice
Apresentação desta edição ..............................................................................................7
Fausto e o Sinthome – Do único Deus Trinário ao Diabo a Quatro
(Pedro Heliodoro Tavares) ............................................................................................ 9
Comentário e questões para debate sobre a conferência: FAUSTO E O SINTHOME
(Tania Nöthen Mascarello)............................................................................................ 29
Eu e nós
(Alessandra do Couto Valentim) ..................................................................................... 32
O real da letra
(Ana Virginia Nion Rizzi May) ....................................................................................... 39
Nós não somos nós?
(CARLOS AUGUSTO MONGUILHOTT REMOR) ......................................................................... 43
O seminário 23 e o artifício analítico
(Clara A. Fonseca Carvalho)......................................................................................... 48
Peter Pan na Terra do Não
(Claudemir P. Flores) ................................................................................................... 51
Os nós e os nós
(Fabricio Antonio Raupp)............................................................................................. 54
Tudo, mas não isso
(Inezinha Brandão Lied) ............................................................................................... 59
O artifício do analista e os fins de análise na clínica com crianças
(Luana de Araújo Lima Vizentin) ..................................................................................... 65
Ee: Diz-mensão do Sinthome em Joyce
(Marcio Bayestorff) .................................................................................................... 69
Psicanálise pós-joyceana: algumas considerações
(Maurício Maliska) ...................................................................................................... 82
Angu de caroço
(Tahiana Pereira Brittes) ............................................................................................. 90
Tempos de Lacan, Fins de Análise
(Tania Nöthen Mascarello)............................................................................................ 93
5
6
Apresentação desta edição
É com satisfação que entrego aos leitores este número tão especial da Clinamen,
a revista de Psicanálise da Maiêutica Florianópolis. Após os longos anos de sua existência
acompanhando a trajetória da instituição, pela primeira vez ela se transforma em uma
revista eletrônica, formato com o qual esperamos poder divulgar seu conteúdo em um
âmbito muito mais amplo, alcançando um público que no passado esteve mais distante
do que se poderia ambicionar alcançar. Apostamos em um formato atualizado para
continuar desenvolvendo sua função em consonância com o que faz a Psicanálise, esse
saber que da mesma forma que soube-se inventar em uma época passada, continuou
gerando frutos exatamente por ter podido atualizar-se até os dias de hoje.
Nesta edição, selecionamos alguns dos trabalhos que marcaram o empenho
conjunto de maiêuticos que debruçaram-se ao longo do ano de 2013, sobre nosso tão
emaranhado tema institucional “Le Sinthome – O seminário 23 de Lacan”. Da Jornada
com a qual coroamos este ano de estudo focados em um tema comum, também incluímos
a conferência de Pedro Heliodoro Tavares, nosso convidado especial que tão bem marcou
sua passagem por esta instituição.
Agradeço a todos os que doaram seu esforço na realização desta revista, e desejo
a seus leitores que este número lhes propicie muitos novos enlaces, seja para sua atuação
clínica como psicanalistas, seja para continuar semeando dentro da cultura este saber tão
caro e singular que é a Psicanálise.
Yuri Disaró Amado
7
8
Fausto e o Sinthome – Do único
Deus Trinário ao Diabo a Quatro
Pedro Heliodoro Tavares1
“...der vilarbeide, hanføder sin egen Fader.”
[...que[m] se põe a trabalhar, dá a luz seu próprio pai]
Søren Kierkegaard - FrygtogBæven
Em diferentes trabalhos previamente publicados, procurei demonstrar como
o tema de Fausto se aproxima da Psicanálise de diversas maneiras: desde a construção da
empresa freudiana compreendida à luz da influência do “Fausto” de Goethe (obra literária
mais frequentemente citada em seus escritos); passando pelos objetos e conceitos
referentes à clínica psicanalítica em sua relação com a construção biográfico-ficcional,
pela repetição e pela nominação; o drama da identificação ante o pai cindido (Deus X
diabo); a relação do sujeito fáustico com o sujeito psicanalítico na busca por um saber
que espose a verdade, pela produção estética da beleza e pela transubstanciação subjetiva;
etc.
Porém, num sentido mais restrito, meu objetivo foi o de demonstrar as
consonâncias das produções de Fausto ou sobre Fausto com as articulações desenvolvidas
no “Seminário 23: Le Sinthome” de Jacques Lacan à luz da obra de James Joyce. Busquei
apontar a analogia do pacto de Fausto com a re-ligação concebida por Lacan a partir de
sua cadeia borromeana. Tendo por pressuposto as leituras de Roberto Harari sobre o
referido seminário, que enfatizam uma saída da relação ao pai enquanto sintoma, procurei
mostrar como Fausto nos aponta justamente a passagem da relação ao pai-sintoma para
1
Psicanalista e Germanista. Professor da Área de Alemão - Língua, Literatura e Tradução DLM - FFLCH
- USP. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (UNIVERSITÉ PARIS VII), bem como Doutor em Teoria
Literária(UFSC). Realizou Pós-Doutorado junto à PGET-UFSC investigando as traduções da obra de
Sigmund Freud. Coordena com Gilson Iannini a coleção “Obras Incompletas de Sigmund Freud” (Ed.
Autêntica), edição da qual é também o coordenador de tradução e revisor técnico. É autor dos livros
“Versões de Freud” (7Letras, 2011), “Fausto e a Psicanálise” (Annablume, 2012), “Freud &Schnitzler”
(Annablume, 2007) e coorganizador de “Tradução e Psicanálise” (7Letras, 2013).
9
um saber-fazer com o Nome-do-Pai (da ordem do Sinthome), que ao mesmo tempo
demonstra um prescindir e uma utilização. Afinal, como explicitamente coloca Lacan,
Por certo que supor o Nome-do-Pai é Deus. É por isso que a psicanálise, ao ser
bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai, à condição de
nos servirmos dele..2
Compreendendo-se o sintoma analítico como produto da falta, de uma falha
inscrita no psiquismo, a noção de Sinthome virá delimitar não uma busca de
tamponamento ou substituição metafórica, mas aquilo que Lacan chamará de supleção,
noção anteriormente atrelada à ausência paterna enquanto inscrição na psicose, mas que
vem merecer um estatuto especial a partir da aproximação da obra joyceana diante da
qual Lacan se questiona:
Seu desejo de ser um artista que ocupasse a todos, ou ao maior número de
pessoas possíveis em todo caso, a compensação deste fato, digamos, de seu pai
jamais ter sido para ele um pai? Que não somente não lhe tenha ensinado nada,
mas que negligenciou quase tudo a não ser da aproximação dos bons pais
(padres) jesuítas, a Igreja diplomática?3
É o que se processa na passagem de uma fantasia capturada no romance
familiar, o qual, uma vez processado e transfigurado em algo público, “desprende-se” tal
qual na noção de objeto a, desse sujeito. É nesse sentido que, quando tomarmos os nomes
de Fausto, entendam-se estes como os dos autores ou das personagens a partir deles
engendradas, podemos evidenciar como eles acabam fazendo do nome próprio, herdado
do pai-do-Nome, um nome comum a ser legado à cultura enquanto obra.
Não haveria aí algo como uma compensação dessa demissão paternal, desta
Verwerfung efetiva no fato de Joyce se sentir imperiosamente chamado? Essa
palavra que resulta de um tanto de coisas nisso que ele escreveu. Aí está o
motivo próprio pelo qual o nome é nele algo de estranho [...] O nome que lhe
é próprio, é isso que ele valoriza às custas do pai. É a esse nome que ele quis
que fosse feita a honra que ele mesmo recusou a quem quer que seja. 4
“Supposer le Nom-du-Père, certes, c’est Dieu. C’est en cela que la psychanalyse, en réussir, prouve que
le Nom-du-Père, on peut aussi bien s’en passer. On peut aussi bien s’en passer à condition de s’en servir.”
(LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p.136).
3
“Son désir d’être un artiste qui occuperait tout le monde, le plus de monde possible en tout cas, n’est-ce
pas exactement le compensatoire de ce fait que, disons, son père n’a jamais été pour lui un père ? Que non
seulement il ne lui a rien appris, mais qu’il a négligé à peu prés toutes choses, sauf á s’en reposer sur les
bons pères jésuites, l’Église diplomatique ?” (Idem, ibidem, p. 88)
4
“N’y a-t-il pas quelque chose comme une compensation de cette démission paternelle, de cette Verwerfung
de fait, dans le fait que Joyce se soit senti impérieusement appelé ? C’est mot qui résulte d’un tas de choses
2
10
Como afirma Nietzsche, “Quando não se teve um bom pai, é necessário
inventar um”5. E é justamente o que procuramos demonstrar como o que se processa pelas
escrituras dos Faustos: o engendrar ou parir o próprio pai para nos aproximarmos da
noção kierkegaardiana que serve de epígrafe. Mesmo que possa parecer uma constatação
supérflua, evidentemente que não se trata aqui do pai biológico, tão somente, mas de tudo
que tal categoria traz em si: a cultura (filiação clânica), a pátria (terra-pai - Vaterland), a
religião (Deus-pai). Do servir ao pai em sua (dele) maneira, passa-se ao servir-se do pai
à própria (do filho) maneira, a partir de uma nova aliança que subverte a servidão
voluntária ao pai absoluto.
É o que se verifica como traço de repetição nos vários Faustos (da literatura,
da música, do folclore, da mitologia...): o pacto. Fausto abandona a via comum da ligação
ao pai enquanto sintoma, ou seja, ao Deus-Pai em sua prévia organização trinitária (Pai Filho - Espírito Santo, sendo este último o elo sintomático), tal qual a dissolução que
Lacan demonstra em Joyce entre os três registros da experiência psíquica (Real Simbólico - Imaginário), para, a partir do que Mefisto representa, refazer esta ligação ao
seu próprio modo. Eis o que implica o quarto elemento, ou quarta atadura: o Sinthome
lacaniano ou o pacto fáustico com Mefistófeles.
Viso demonstrar essa hipótese não só nas consonâncias entre os temas como
também nas suas ressonâncias em diversas produções de diferentes épocas, mitos,
produções e autores a partir do nome Fausto. Essas consonâncias certamente se fazem em
relação à teoria da Influência de Harold Bloom, no que tange à produção literária, teoria
que cai-nos como uma luva para aliar o psicanalítico ao literário.
Eis a tese central de Bloom no que concerne a influência poética:
A influência poética – quando envolve dois poetas fortes, autênticos – sempre
se dá uma leitura distorcida do poema anterior, um ato de correção criativa que
é na verdade e necessariamente uma interpretação distorcida. A história da
influência poética frutífera, o que significa a principal tradição da poesia
ocidental desde o Renascimento, é uma história de angústia e caricatura
dans ce qu´il a écrit. C’est là le ressort propre par quoi le nom propre est chez lui quelque chose qui est
étrange. (...) Le nom qui lui est propre, c’est cela que Joyce valorise aux dépens du père. C’est à ce nom
qu’il a voulu que soit rendu l’hommage que lui-même a refusé à quiconque” (Idem, ibidem, p. 89).
5
NIETZSCHE apud BLOOM, Harold. A Angústia de Influência – Uma Teoria da Poesia. Trad. de Marcos
Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 1973 /1997, p. 104.
11
autossalvadora, de distorção, ou perverso e deliberado revisionismo, sem o
qual a poesia moderna não poderia existir. 6
Joyce, o modelo lacaniano, apesar da forte influência deixada pelo
catolicismo em sua formação e manifesta em sua produção, sobretudo no biográfico “A
Portrait of the Artist as a Young Man”7, não procurou ser o redentor (redeemer) do pai,
mas fez, antes, sua “caricatura autossalvadora”. Se num plano que ultrapassa o do pater
families Lacan aponta a supleção em relação a esse pai insuficiente, que melhor exemplo
de uma “caricatura autossalvadora” poderíamos apontar que aquilo que se celebrizou
como o maior romance do século XX: sua releitura da “Odisséia” de Homero; seu
“Ulysses”?
Aquilo que Bloom (o crítico literário, e não a personagem de Joyce) chama
de uma correção criativa, guarda perfeita consonância com a noção de supleção
lacaniana. Trata-se de uma disciplinada perversidade, de uma apropriação que sempre
envolve uma distorção. A “Apropriação [seria] de fato um fazer errado (e compreender
errado)”8. Porém, esse errar, há que se compreendê-lo em sua equivocidade. Não como
um engano ignorado do incauto (dupe), mas com o que etimologicamente o significante
errar traz de “apartar-se do caminho”, donde o vagar errante, que se atribui não só a
Joyce, mas também ao vagabundo Fausto histórico, o homem de Knittlingen que inspira
o mito literário. Pela mesma via da equivocidade, Lacan aponta este fazer errante com
o(s) Nome(s)-do-Pai (le[s] Nom[s]-du-Père) como legado, transformando-o em os nãoincautos erram (les non-dupes errent).
O Sinthome tem ligação inequívoca com que fazemos do legado paterno, a
referência que nos introduz na realidade da cultura através da transmissão de suas
insígnias; disso se trata no tão difundido conceito lacaniano de Nome-do-Pai. O Sinthome
é uma quarta consistência que vem perverter o estabelecido, desacomodando e desatando
suas estruturas prévias para propor uma nova articulação. É aí que entra o jogo
homofônico entre perversion (perversão) e père-version (pai-versão). Essa rearticulação
é uma nova tomada de posição diante do pai enquanto sintoma.
6
Idem, ibidem, p.80.
JOYCE, James. A Portrait of the Artist as a Young Man. Londres: Penguin, 1996.
8
BLOOM, Harold. A Angústia de Influência – Uma Teoria da Poesia. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de
Janeiro: Imago, 1973 /1997, p. 131.
7
12
Não é que sejam rompidos o Simbólico o Imaginário e o Real que define a
perversão, é que eles já são distintos, e devemos supor um quarto, que é o
Sinthome na ocasião, que se deve supor tetrádico, o que faz a ligação
borromeana, que perversão (perversion / père-version) só quer dizer versão em
relação ao pai, e que, em suma, o pai é um sintoma (symptôme) ou um
Sinthome, como vocês quiserem. A ex-sistencia do sintoma (symptôme) é o
que está implicado pela própria posição, aquela que supõe esta ligação – do
Imaginário, do Simbólico e do Real – enigmática. 9
Figura 1 - O Sinthome representado pela letra grega sigma (Σ),
como quarta consistência do nó Borromeo.
O Sinthome implica em tomar como diretriz a assertiva proferida no
monólogo inaugural do “Fausto” de Goethe:
Was du ererbt von deinen Vätern hast,
Erwib es, um es zu besitzen. 10
(O que de teus pais herdastes,
Conquista-o, para fazê-lo teu.)
Essa citação nada teria de estranho à Psicanálise. Celebrizou-se em seu seio
por ter sido o último, dentre tantos extratos do “Fausto” de Goethe na obra de Freud. Ela
“Ce n’est pas que soient rompus le Symbolique, l’Imaginaire et le Réel qui définit la perversion, c’est
qu’ils sont déjà distincts, de sorte qu’il en faut supposer un quatrième, qui est en l’occasion le Sinthome. Je
dis qu’il faut supposer tétradique ce que fait le lien borroméen – que perversion ne veut dire que version
vers le père – qu’en somme le père est un symptôme, ou un Sinthome, comme vous voudrez. Poser lien
énigmatique de l’imaginaire, du symbolique et su réel implique ou suppose l’ex-sistence du symptôme”
(LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p.8).
10
GOETHE, Johann Wolfgang von. Faust I und II. Colônia: Könemann, 1997, p. 682-3.
9
13
aparece na última página da última obra do psicanalista – “Abriss der Psychoanalyse”11,
uma obra que pretendia ser o apanhado geral, o compêndio, de toda a sua invenção, de
um modo que facilitasse a apropriação pela cultura, o que lhe aufere um caráter iniludível
de legado. Por certo, ao se tomar o jogo homonímico perversion – père-version não se
trata de induzir (o analisante, na experiência clínica à qual o termo originalmente se
refere) à perversão enquanto estrutura clínica. Isso seria, além de feito impossível, a
heresia despropositada, a vã blasfêmia. Trata-se antes de tomar dessa estrutura o seu modo
de negação em relação ao Nome-do-Pai.
Se, em textos tais como “Totem und Tabu” 12 ou “Die Zukunft einer
Illusion”13, Freud coloca, em sua concepção da natureza do sentimento religioso, a ligação
de culpa-dívida (Schuld) com uma imago paterna onisciente e onipotente, o lugar para o
pai-sintoma estará mais bem apresentado em seu breve “Eine Teufelsneurose im
Siebzehnten Jahrhundert”14.
Deixando claro, já de início, as fortes influências do mestre de sua juventude,
Jean-Martin Charcot, que apontava nos casos medievais de bruxaria as manifestações da
histeria em outros tempos, Freud seguirá semelhante caminho ao apontar uma leitura
psicanalítica de um caso de possessão demoníaca. Eis, para irmos diretamente ao ponto,
a concepção freudiana da dupla inscrição da imago paterna em sua forma religiosa:
Para começar, [sabemos] que Deus é um substituto paterno ou, mais
corretamente, que ele é um pai exaltado ou, ainda, que constitui a cópia de um
pai tal como é visto e experimentado na infância – pelos indivíduos em sua
própria infância, e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda
primitiva ou primeva. Posteriormente, na vida, o indivíduo vê seu pai como
algo diferente e menor. Porém, a imagem representativa que pertence à
infância é preservada e se funde com os traços da memória herdados do pai
primevo para formar a ideia que o indivíduo tem de Deus.15
FREUD, Sigmund. “Abriss der Psychoanalyse”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1940/ 2000.
11
FREUD, Sigmund. “Totem und Tabu” . In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am
Main: Fischer Verlag, 1912 / 1999.
13
FREUD, Sigmund. “Die Zukunft einer Illusion”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1927 / 1999.
14
FREUD, Sigmund. “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert”. In: Gesammelte Werke –
Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922 / 1999.
15
“Zunächst, dass Gott ein Vaterersatz ist oder richtiger: ein erhöhter Vater oder noch anders: ein Nachbild
des Vaters, wie man ihn in der Kindheit sah und erlebte, der Einzelne in seiner Kindheit und das
Menschengeschlecht in seiner Vorzeit als Vater der primitiven Urhorde. Später sah der Einzelne seinen
Vater anders und geringer, aber das kindliche Vorstellungsbild blieb erhalten und Verschmolz mit der
überlieferten Erinnerungsspur des Urvaters zur Gottesvorstellung des Einzelnen”. (Idem, ibidem, p. 331)
12
14
Como ele já adianta nesse trecho, em algum ponto adviria não só uma
subvaloração, mas também a ambivalência.
O problema não solucionado entre o anseio pelo pai, por um lado, e, por outro,
o medo dele e o desafio pelo filho, proporcionou-nos uma explicação de
importantes características da religião e de decisivas vicissitudes nela. [...]
Com respeito ao Demônio maligno, sabemos que ele é considerado como a
antítese de Deus, e, contudo, está muito próximo dele em sua natureza. [...] O
demônio mau da fé cristã – o diabo da Idade Média – foi, de acordo com a
mitologia cristã, ele próprio um anjo caído e de natureza semelhante a Deus.
Não é preciso muita perspicácia para adivinhar que Deus e o Demônio eram
originalmente idênticos – uma figura única posteriormente cindida em duas
figuras com atributos opostos.16
Serve-nos aqui essa ideia/representação do demônio-pai como o caído ou
talvez, anterior à ascese sagrada, que somente advém, no que se refere ao pai-totêmico,
após seu assassinato e a instituição da lei unificadora. Um pai ainda-não ou não-mais
sagrado, no que nos faz lembrar sua aparência pré-humana, identificada ao animal
totêmico (chifres, cornos e cauda) e que na imagem de Haizmann, do qual se trata no
texto de Freud, anterior à partilha dos sexos (demônio com pênis e mamas). Guarda-se
aqui a chave para a Unheimlichkeit, ou estranheza familiar, que denota esta imagem do
demoníaco, sobretudo na figuração híbrida (parte animal - parte humano) que lhe reserva
o cristianismo medieval. Lembrando a definição que Freud 17 empresta de Schelling:
‘“Unheimliche’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio
à luz”.
Teremos oportunidade de retomar à problemática do diabo como relacionado
a um Nome-do-Pai destituído de um lugar ideal, mas cabe introduzirmos a ideia que Freud
esboça em “Totem e Tabu”, do pai da horda como um pai-diabo. Como coloca Luisa de
Urtubeyem seu “Freud et le Diable”: “Ele não recalca suas pulsões (O diabo = a
personificação da vida pulsional), ele tem traços animais (como o diabo com sua cauda e
“Aus dem nicht zu Ende gekommenen Widerstreit von Vatersehnsucht einerseits, Angst und Sohnestrotz
anderseits haben wir uns wichtige Charaktere und entscheidende Schicksale der Religion erklärt. (...) Vom
bösen Dämon wissen wir, dass er als Widerpart Gottes gedacht ist und doch seiner Natur sehr nahe steht.
(…) Der böse Dämon des christlichen Glaubens, der Teufel des Mittelalters, war nach der christlichen
Mythologie selbst ein gefallener Engel und gottgleicher Natur. Es braucht nicht viel analytischen
Scharfsinn, um zu erraten, dass Gott und Teufel ursprünglich identisch waren, eine einzige Gestalt, die
später in zwei mit entgegengesetzten Eigenschaften zerlegt wurde” (Idem, ibidem, p. 331, grifo nosso).
16
FREUD, Sigmund. “Das Unheimliche”. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt
am Main: Fischer Verlag, 1919 / 1999.
17
15
seus chifres) e, além do mais, seu narcisismo não seria, afinal, uma característica
demoníaca (Lúcifer, a mais bela criatura)?” 18.
No que trazemos deste resto do pai oculto (heimlich) nas trevas em
contraposição ao pai Ideal, manifesta-se a noção de Spaltung freudiana concernente não
ao Eu, mas sim àquele que lhe serve de ideal enquanto alicerce para a constituição
subjetiva pelo campo do discurso, da figura que estaria na base da formação do supereu.
A boa heresia atribuída por Lacan a Joyce teria a ver com a aceitação da imago paterna,
porém não tão somente enquanto o ideal, lugar-comum e forma pasteurizada de concebêla. Joyce recorre ao pai fazendo-o figurar como sujeito titânico, exuberante, galante,
encantador, mas também quanto ao que esse tem de ímpio, de pobre-diabo, para poder
fazer com essa herança um artifício que lhe resulte proveitoso. Joyce se depara de maneira
iniludível com a castração deste Outro (A /) desde sua inscrição, mas, ao invés de negála pelo delírio (Psicose), pelo fetiche (Perversão) ou pelo recalque (Neurose), faz uso
disso em sua arte.
Trata-se do que deve ser conquistado a partir do que é imposto enquanto
carência. Algo que apontaria para o essencial do mito fáustico no que este preserva de
estrutural em suas versões: o comércio com o demônio. Não com o todo-poderoso
Lúcifer, belo e magnífico portador da luz, mas com o demônio bufo, rasteiro, vulgar e
escarninho, tal qual se caracteriza na figura de Mefistófeles, aquele que não ama a luz.
Segundo Thomas Mann, o nome desse demônio teria algo a ver com “mefítico”
(sulfuroso, pestilencial) “pois se trata de um tipo ignóbil, ignóbil em alto estilo, porém
com um sentido de humor dominando a sua sujidade”19. E é na escatologia que o humor
de Mefistófeles de Marlowe20 e Goethe se afinam com o de James Joyce, o qual dará a
seu primeiro livro publicado o nome “Chamber Music”, que alude tanto a sublime Música
de câmara quanto à escatológica e grotesca “música de quarto”, o som da urina contra o
urinol de metal (chamberpot).
“Il ne refoule pas ses pulsions (le diable = la personnification de la vie pulsionnelle), il a des traits
animaux (comme le diable avec sa queue et ses cornes) et de plus son narcisisme n’est-il pas une
caractéristique démoniaque (Lucifer, la plus belle créature)?” (URTUBEY, Luisa de. Freud et le Diable.
Paris: Presses Universitaires de France, 1983, p.99).
19
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo No Fausto de Goethe – Leitura do Poema, acompanhada da
transcriação em português das duas cenas finais da Segunda Parte. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 81.
20
MARLOWE, Christopher. Doutor Fausto – The Tragical History of the life and Death of Doctor Faustus
(Edição Bilingue). Trad. de J. Duarte e V. Ferreira. Sintra: Publicações Europa América, 2003.
18
16
O horror ao diabo, de fato, remete ao horror ao Real e ao que diz respeito à
ruptura com os sentidos. Isso guarda uma relação direta com a clínica psicanalítica, muito
mais próxima de Tanatos e do Real da ruptura, do esvaziamento que da superfetação de
sentidos proposta por determinadas correntes psicoterápicas. Como coloca Harari, nessa
aproximação do Real lacaniano à pulsão de morte freudiana, no fazer clínico: “Analýo,
quer dizer, ‘eu desato’. Por isso, não se trata em Psicanálise, de partir em pedaços, nem
de desfazer, mas de desatar, o que acontece devido à efetuação tanática” 21 . Trata-se,
portanto, de desatar para, assim, permitir um novo re-enlace. No “Seminário 23”, aliás,
Lacan deixa bastante clara esta relação entre Tanatos, a pulsão de morte, e seu Real:
A pulsão de morte é o real no que ele não pode ser pensado, senão como
impossível. Quer dizer, a cada vez que ele mostra a ponta de seu nariz, ele é
impensável. Abordar este impossível não poderia constituir uma esperança,
posto que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser pensada
é o fundamento do real.22
Freud, neste sentido era explícito: na análise não se opera “per via de porre”,
acrescentando sentidos aos que o paciente, em sua neurose, já porta em demasia, mas “per
via de tirare” auxiliando o paciente a “desfazer os nós”. Mefisto, ao se apresentar - com
a ironia analítica que lhe é característica - irá apontar a dubitável crença humana em sua
pretendida completude. Freud soube, aliás, identificar no demônio esta dimensão de real,
de um desejo oculto ou inexprimível, um horror unheimlich e sem nome que de algum
modo pede vazão pela ex-sistencia:
Os demônios nos são como desejos maus forcluídos (verworfene), derivados
de moções pulsionais que foram repudiadas e recalcadas (verdrängter). Nós
simplesmente eliminamos a projeção dessas entidades mentais para o mundo
externo, projeção esta que a Idade Média fazia; em vez disso, encarando-as
como tendo surgido na vida interna do paciente, onde têm sua morada23;24.
HARARI, Roberto. Como se Chama James Joyce – A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan.
Trad. de Francisco Settineri. Salvador / Rio de Janeiro: Agalma / Companhia de Freud, 2003, p. 288.
21
“La pulsion de mort c’est le réel en tant qu’il ne peut être pensé que comme impossible. C’est-à-dire que,
chaque fois qu’il montre le bout de son nez, il est impensable. Aborder à cet impossible ne saurait constituer
un espoir, puis que cet impensable, c’est la mort, dont c’est le fondement du réel qu’elle ne puisse être
pensée” (LACAN, J.. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris: Seuil, 1975/2003, p. 125).
23
“Die Dämonen sind uns böse, verworfene Wünsche, Abkömmlinge abgewiesener, verdrängter
Triebregungen. Wir lehnen bloß die Projektion in die äußere Welt ab, welche das Mittelalter mit diesen
Seelischen Wesen vornahm; wir lassen sie in Innenleben der Kranken, wo sie hausen, entstanden sein.”
24
FREUD, S. “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert“. In: Gesammelte Werke – Chronologisch
geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922 / 1999. p. 287.
22
17
O demoníaco foi tratado por Freud, como já nos referimos algumas vezes, em
seu texto sobre o caso Haizmann, aquele que teria feito um pacto fáustico com o demônio
para vencer uma inibição (incapacidade de trabalhar) após a morte do pai. Um ponto
curioso a ser pensado é o seguinte: como se poderia dar a representação desse que aqui
aproximamos do real por parte de alguém que tem a representação pictórica por ofício?
Afinal, Haizmann era pintor.
Freud, muito pouco dado às ilustrações, sempre privilegiando a palavra,
quando trata deste caso, faz questão de mostrar as duas representações que o pintor faz
do demônio em suas duas “aparições”.
Figura 1 - Primeira aparição do demônio segundo Ch. Haizmann25
Essas duas representações nos ajudam a entender a teoria de Freud do
demônio em sua relação com o pai cindido. Na primeira delas, como não é raro nas
diferentes versões de Fausto, ele aparece como bem trajado como um homem sedutor,
charmoso, encantador (em algumas versões luteranas, como um religioso católico). Luisa
de Urtubey26 (1983) em seu Freud et le Diable, dedica um capítulo justamente à tese da
representação do diabo como o Pai sedutor da histeria27.
Mas é digno de nota que esta primeira aparição, uma luminosa “figura
burguesa-citadina” (bürgliche Gestalt), manifestação de um Ideal, se veja ladeada de um
FREUD, Sigmund “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert“. In: Gesammelte Werke –
Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1922/1999.
25
26
URTUBEY, Luisa de. Freud et le Diable. Paris: Presses Universitaires de France, 1983.
Uturbey indica os aspectos do demoníaco presentes nos vários casos de histeria apresentados por FREUD
e BREUER dedicando especial atenção as alucinações de Katharina de Studien über Hysterie com o pai
sedutor com aparência de demônio. (p. 24-28)
27
18
cão negro. É essa, afinal, a primeira configuração (Gestalt) assumida por Mefistófeles
(schwarzer Puddel) para se aproximar de modo insuspeito de Fausto no drama de Goethe,
entre outros. Também em tantos outros Faustos, como no de Thomas Mann aparece este
cão coadjuvante Suso ou Kaschperl28. Se num primeiro plano aparece o gentil-homem
que poderia representar o elemento divino (god), seu inverso o espreita (dog)29.
A questão aqui é a seguinte: para a representação ideal deste pai-sintoma
substituto, na união de simbólico e imaginário a boa-forma (e aqui o termo da psicologia
da Gestalt não é por acaso) para a formação da figura, resta uma sombra a-significada.
De fato, a emergência de um real é o que se manifestará no segundo quadro, quando o
demônio volta a se manifestar como uma representação do irrepresentável. Aí não há mais
espaço para a separação organizadora de uma figura (bürgeliche Gestalt) e de um fundo
(o cão ignóbil), o real como disperso e indistinto aparece em seu puro horror.
Figura 2 - Segunda aparição do demônio segundo Ch. Haizmann
Aí temos o Real como aquilo que não faz accord – a-corps. Jogando com a
homofonia entre acordo e corpo no francês, Lacan nos remete a formação forçada do
imaginário no estádio do espelho, da passagem do corps morcelé a uma imagem
28
Nome de uma personagem do folclore alemão que se torna mediadora entre Fausto e Mefistófeles quando
incorporada às representações do drama de Fausto em teatro de marionetes em praça pública nas terras
germânicas a partir do século XVII.
29
Num trabalho que dedicamos às questões do nome e da nominação cabe esta observação: A curiosa
coincidência da grafia inglesa para cão (dog) com o oposto (leitura palíndromo) de Deus (god) não fica sem
consequências e é certamente uma das responsáveis pela ligação deste animal a figura do demoníaco nas
culturas anglo-germânicas.
19
apressada de uma totalidade apaziguadora. Mas o morcelé do real retorna nas formações
do inconsciente e aí o vemos bizarramente representado neste não-corpo, ou seja, nãohomem, não-mulher, não-humano, não-animal, não-Deus. Lembrando Milner e seu Les
Noms Indistincts: “Frente a S, que distingue, e a I, que liga, R é então o indistinto e o
disperso como tais.”30; 31 Nesta representação aparece algo que remete ao real do pai, esse
resto “varrido para debaixo do tapete” na formação do ideal que engendra o supereu. O
pai pré-edípico, que é indistinto em muitos aspectos:
- anterior ao assassinato e à lei unificadora que marca a passagem para a
cultura, é pré-totêmico, não é humano nem animal, nem sagrado nem profano
é non-sacer, não apartado de uma cadeia significante que ainda não existe;
- anterior a partilha dos sexos e a organização genital, mostra-se com pênis (ou
traços masculinos secundários, como a barba) e mamas, não que deva ser
compreendido como a mãe fálica, não barrada, mas como uma figura anterior
à dialética do falo e sua significação.
Numa análise, este elemento do horror se manifesta justamente quando algo
do real se apresenta em seu estado puro, disjunto do simbólico e do imaginário. Logo,
temos esta manifestação mefistofélica como a ruptura da boa-forma da trinitárioparanóide cadeia borromeana tão próxima do paradigma religioso do catolicismo.
No capítulo quinto de minha tese, em que procurei tratar da problemática dos
nomes e das nominações em Fausto, acabei por nomear o seu célebre deuteragonista
Mefisto, ou simplesmente o diabo ou demônio. Utilizei essa figura controversa para dar
conta da também controversa irrupção do Sinthome ou das nominações como a
responsável por uma reviravolta nas proposições assentadas da clínica psicanalítica.
Fausto, na obra de Valéry (Mon Faust), define seu destino como “faire et défaire et refaire
tous ces nœuds que sont les événements d’une vie” 32 ; 33 . E para isso - pensando aí
evidentemente os nós lacanianos - vimos que o pactário faz uso de seu companheiro, seu
Schwager, o demônio Mefisto. Nisso, aponto a quaternidade desatadora e reatadora que
rompe com a sequência harmônica e “ortopédica” pela irrupção do quarto elemento
dionisíaco. Isso, a irrupção do quarto elemento ou do número quatro como o caótico e
demoníaco, contrapondo-se ao religioso, ao trinitário regulado e ortodoxo, encontra-se
“Face à S qui distingue et à I qui lie, R est donc l’indistinct et l’disperse comme tels”.
MILNER, Jean-Claude. Les Noms Indistincts. Paris: Seuil, 1983. p. 9-10.
32
“Fazer e desfazer e refazer todos estes nós que são os acontecimentos de uma vida”.
33
VALÉRY, Paul. Mon Faust (Ébauches). Paris: Gallimard, 1946. p. 33.
30
31
20
nos vários Faustos da literatura, bem como na conhecida expressão brasileira “fazer o
diabo a quatro”, algo que se costuma dizer do que parece estapafúrdio, absurdo ou
simplesmente inusitado. Realmente, assim parecem ser compreendidas por muitos
leitores e psicanalistas as propostas do último Lacan.
Nas várias evocações de Fausto, aparece o número quatro, que mais
diretamente remete ao mundano (quatro elementos) em detrimento do divino (unotrinitário), na simbologia alquímica geralmente associada ao mito. Mas é, afinal, muito
disso que se trata no Sinthome: “dessacralizar” o pai e o sintoma a ele associado,
devolvendo ao mundano o que lhe pertence.
Já no inaugural Faustbuch do editor luterano Johann Spies está presente o
Regimento Quádruplo do inferno em seus pontos cardeais (Und sind unter ihnen vier
Regimente königlicher Regierung
34
)
35
. Belzebu seria o responsável pelo setor
setentrional; Belial, pelo meridional; Astaroth, pelo ocidental e Lúcifer, como é também
conhecido, seria o Príncipe do Oriente.
Na evocação do Doctor Faustus de Marlowe, primeiro fausto autoral, o drama se
inicia com o encantamento pelo tríplice nome de Jeová para chegar ao também tríplice
nome dos Deuses do Aqueronte, sendo Mefistófeles o quarto, disjunto e descontínuo em
relação aos outros três, a ser por eles enviado.
Sint mihi Dei Acherontis propitii, valeat numen triplex Jehovae, Ignei, Aerii,
Aquatici, Terrini, spiritus salvete: Orientis Princeps Lúcifer, Belzebub inferni
ardentis monarcha, et Demogorgon, propitiamos vos, ut appereat, et surgat
Mephostophilis.
(Que me sejam propícios os deuses do Aqueronte! Que me valha o nome
tríplice de Jeová ! Salve, espíritos do fogo, do ar, da água e da terra ! Lúcifer,
Príncipe do Oriente, Belzebu, monarca do ardente Inferno, e Demogorgon, nós
vos rogamos para que surja Mefistófeles e se manifest)36.
Marlowe parece “brincar com fogo” ao usar, em sua época, do nome de Jeová
entoado na sacra língua romana para que sua personagem evoque o demônio:
Quid tu moraris; per Jehovam, Gehennam, et consecratam aquam quam nunc
spargo ; signumque crucis quod nunc facio ; et per vota nostra ipse nunc surgat
nobis dicatus Mephostofiles.
“E está dividido entre eles em quatro regimentos o governo real”.
SPIES, Johann (Editor). Historia von D. Johann Fausten: Dem Weitbeschreybten Zauberer und
Schwarzkünstler. Stuttgart: Reclam, 1587 / 1992. p. 23.
36
MARLOWE, Christopher. Doutor Fausto: The Tragical History of the life and Death of Doctor
Faustus (Edição Bilingue). Sintra: Publicações Europa América, 2003. p. 45.
34
35
21
(Por que demoras? Por Jeová, Geena e a água benta que agora esparjo e pelo
sinal da cruz que agora faço, e pelos nossos votos, fazei que surja o próprio
Mefistófeles para nos servir)37.
O Diabo como “nascido do quatro” também está na invocação do Fausto de
Goethe. Eis o encantamento que usa para trazer Mefistófeles ao seu encontro:
Erst, zu begegnen dem Tiere,
Brauch’ ich den Spruch der Viere:
Salamander soll glühen
Undene sich winden,
Sylphe verschwinden.
Kobold sich mühen
(Primeiramente, para enfrentar a besta
Preciso da evocação dos quatro
Salamandra se abrase
Ondina se retorça
Silfo saia da toca
Gnomo apareça)38.
Aqui, Fausto procura extrair o demônio, Verworfenes Wesen (ente forcluído),
como a ele se refere, dos elementos mundanos, terrenos; respectivamente, do fogo, a
Salamandra; da água, Ondina; do ar, Silfo e da terra, o Gnomo (Kobold) 39. São quatro os
elementos do mundo material (Keines der Viere / Steck in dem Tiere40).
Essa associação do número quatro estará igualmente presente no Doktor
Faustus de Thomas Mann, conforme coloquei no Capítulo 7 de Fausto e a Psicanálise41,
em suas incursões pelo quadrado mágico de Dürer. Contudo, a questão central aqui não é
nenhum estudo de numerologia simbólica, mas sim o fato de que o mito de Fausto, feito
Literatura, dará voz a esse elemento reprimido ou recalcado, evitado, banido, ativamente
calado para além da trindade primordial (da divina, do triângulo edípico, das três
dimensões, das três pessoas do discurso (eu-tu-ele), etc.). Este Unheimliche parece,
porém, ter a melhor tradução, ou melhor expressão no único autor a que recorremos que,
em seu Fausto, justamente, prescindirá do demônio. Trata-se de Fernando Pessoa.
37
Idem; ibidem.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Faust I und II. Colônia: Könemann, 1997. p. 45.
39
FRANTZ, Évelyne; FRANTZ, Jean-Pierre. Avant Propos. In : GOETHE, J. W. Von, Faust I et II. Paris :
Larousse, 2004 .p.
40
“Nenhum dos quatro se encerra na besta.”
41
TAVARES, Pedro Heliodoro. Fausto e a Psicanálise: Sopros de Sinthome na forja do pactário. São
Paulo: Annablume/FAPESP, 2012.
38
22
De fato, no Fausto – Tragédia Subjectiva de Pessoa a personagem de Mefisto,
enquanto tal, inexiste. Será antes incorporada ao drama-monólogo do protagonistaepônimo. Entretanto, em outra obra do poeta português é que veremos a melhor expressão
do que seria dar vez e voz ao demônio. Trata-se de A Hora do Diabo, inicialmente
concebido em inglês como Devil’s Voice (A Voz do Diabo).
Num expediente que nos lembra a comparação feita com a “escuta” voltada
às histéricas, outrora tidas por possuídas, Pessoa, parece nesse escrito intentar dar voz ao
espírito mais caluniado que caluniador.
Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos
poetas – por natureza meus amigos – que me defendem me não têm defendido
bem. Um – um inglês chamado Milton – fez-me perder, com parceiros meus,
uma batalha indefinida que nunca se travou. Outro – um alemão chamado
Goethe – deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas, não
sou o que pensam. As igrejas abominam-me. Os crentes tremem no meu nome.
Mas tenho, quer queiram, quer não, um papel neste mundo. Nem sou o
revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação,
perdido porque não crio 42.
Paródia tanto da anunciação de Cristo quanto do Fausto, o Diabo aparece
fazendo às vezes de um anjo Gabriel que, por sua anunciação, pelo Verbo, irá fecundar a
Maria (espécie de Gretchen) da historieta. Maria o teria encontrado numa festa à fantasia,
caracterizado de Mefistófeles na versão oficial, ou de Fausto numa versão alternativa. O
número quatro também está ali presente: já grávida a re-fecundação do diabo se dará no
quarto mês de gestação (“A criança, um rapaz, nasceu cinco meses depois”)43. Com essa
re-fecundação, depreende-se que surge o atributo do gênio poético do rebento: “É o diabo
que verdadeiramente fecunda pelo Verbo o fruto de seu ventre, que o arranca à sua
condição de ser qualquer e o sagra poeta de gênio 44 ”. Ele próprio, o diabo, em sua
autoapologia, também se apresenta como poeta: “Sou naturalmente poeta porque sou a
verdade falando por engano”45”. Fernando Pessoa, em suma, confere ao diabo o papel
fecundante da inspiração do gênio poético.
Numa nota inédita, Pessoa esclarece seu objetivo com a historieta, que parece
ser o de mostrar um caráter inofensivo, num relato quase hagiográfico do diabo:
42
PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p. 56.
Idem, ibidem, p. 63.
44
Idem, ibidem, p. 29
45
Idem, ibidem, p. 29.
43
23
“considerar o diabo como o espírito do Bem, baseado no fato de que sempre que os
investigadores medievais alcançaram alguma verdade na ciência foram ameaçados de
morte pelos padres, que o consideravam mágicos e homens que tinham comércio com o
diabo 46 ”. Não seria nem o espírito do mal nem o grande Negador. Seria o Tanatos
indispensável à existência de Eros: “Tudo vive por que se opõe a alguma coisa, eu sou
aquele que a tudo se opõe47”. “Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas sim
o espírito que contraria48”. Ele segue esclarecendo que não contraria atos, muito pelo
contrário, nega ideias que paralisam.
Não é um criador para o homem, dele se apossando e agindo por obsessão,
mas o que propicia a ação no homem. “Sou o espírito que cria sem criar, cuja voz é um
fumo e cuja alma é um erro49”. Afirma-se senhor do que é fictício “Senhor absoluto do
interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é meu reino, o sonho
meu domínio. O que não tem peso nem medida isso é meu50”. Mas é aquele que tem
“peito” para afirmar e sustentar esta condição não sendo mais fictício que Deus ou o
Universo que sói chamar-se realidade: “Quantas vezes Deus me disse: ‘Meu irmão, não
sei quem sou’” [...] “Sou um pobre mito, minha senhora, e, o que é pior, um mito
inofensivo. Consola-me só o fato de que o universo – sim, esta coisa cheia de várias
formas de luzes e vidas – é um mito também51”. Vemos aí o claro eco do que diz Lacan
quanto ao savoir-faire atribuído ao Deus único e do qual se deve apossar o sujeito no que
toca ao Sinthome tal qual o artista, seu verdadeiro detentor: “Não foi Deus que cometeu
essa coisa que chamamos uni-verso. Imputamos a Deus o que é negócio do artista cujo
primeiro modelo é, como cada um sabe, o oleiro [...]” 52; 53.
Lacan menciona o “oleiro” demiurgo como o modelo para o artifício do
Sinthome, é aquele que é bem sucedido em fazer do um. Do que se atribui a um deus,
disso deve-se tornar o possuidor. O deus-oleiro, quanto aos elementos, toma o barro (terra
e água), molda-o e sopra em suas narinas o spiritus, o sopro (ar) vital. Mas, dos quatro,
46
Idem, ibidem, p. 13
PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p. 44.
48
Idem, ibidem, p. 53.
49
Idem, ibidem, p. 55.
50
Idem, ibidem, p. 58.
51
Idem, ibidem, p. 59.
52
“C’est pas Dieu qui a commis ce truc qu’on appelle l’Univers. On impute à Dieu ce qui est l’affaire de
l’artiste, dont le premier modèle est, comme chacun sait, le potier".
53
LACAN, J.. Joyce le Symptôme. In: Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris : Seuil, 1975/2003.
p. 64.
47
24
falta aí o fogo que aquece o sangue e o hálito. Esse fogo que é o elemento associado ao
diabo em sua morada e ao calor do ímpeto humano. Sem este quarto elemento, que
consome e destrói, não há criação possível.
Tal elemento não fica de fora no mito de Fausto que vem na trilha de tantas
personagens de diferentes mitologias ligadas a um artesão em especial: o ferreiro. “Em
várias mitologias, o ferreiro é um poderoso agente de transformação. Rebelde, ligado ao
ato prometéico do roubo do fogo e sua domação. Lúcifer torna-se semelhante aos
deuses.54”
Comentamos a respeito disso55 quando tratamos do “forjar” no mito de Fausto
e em seus predecessores em Prometeu e Hefesto, mas cabe aqui acrescentar o que diz o
mitólogo Mircea Eliade em seu Ferreiros e Alquimistas56 sobre o papel mítico desses
artesãos: “Sua técnica o tornou mestre dos quatro elementos e seus utensílios são
carregados de muitas significações simbólicas, de sentidos culturais e intensificadamente
sexuais”. Eliade apresenta “uma série de documentos relativos à função ritual da forja, ao
caráter ambivalente do ferreiro, às relações existentes entre magia, o domínio do fogo, o
ferreiro e as sociedades secretas”.
Jerusa Pires Ferreira, motivada ou não por questões de seu nome (ver grifo),
em seu estudo Fausto no Horizonte (1995) dedica atenção especial ao tema de Fausto
como ferreiro na Literatura de cordel no nordeste brasileiro. Nas inúmeras versões que
essa modalidade regional de Literatura elabora para a questão do pacto e do comércio
com o diabo, quem geralmente faz o papel do pactário é justamente a figura do ferreiro,
como um sujeito que talvez ilustre da melhor forma o que aqui procuramos explicitar
quanto à ideia de fazer uso e simultaneamente prescindir do Nome-do-Pai, nessa
modalidade “dessacralizada” que o artífice encontra no diabo.
As características de “pícaro e malandro” presentes nos Mefistos de origem
europeia estarão também presentes no diabo que se apresenta ao(s) ferrreiro(s), mas estes
últimos terão astúcia o suficiente para “lograr” o diabo, terminando por uma inversão de
54
FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo: Hucitec / Educ, 1995. p. 77.
TAVARES, Pedro Heliodoro. Fausto e a Psicanálise: Sopros de Sinthome na forja do pactário. São
Paulo: Annablume/FAPESP, 2012.
56
ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1979. p. 87.
55
25
posição. Ele, o ferreiro, saberá valer-se do diabo sem a ele ter que servir e se entregar,
mas saberá fazer uso do “fogo” por ele ofertado.
Nessas intervenções, o Ferreiro-Fausto vê-se geralmente entre o demônio e
algum santo (sobretudo Pedro) ou o próprio Cristo. Eliade de fato remarca essa
característica do ferreiro como uma espécie de iniciado, e, portanto, apartado dos demais
por uma série de tabus, já que tem contato com as divindades, independentemente de estas
terem um caráter, digamos, maléfico ou benigno. Geralmente, o ferreiro das histórias de
cordel sabe lançar mão de sua astúcia e perícia para fazer com que os deuses lhe sejam
propícios, fazendo-se favorecidos (Fazendo jus a etimologia no nome de nossa
personagem: faustus).
Nessa modalidade de Literatura, o cordel, em sua recorrência, o diabo pode
equivaler a qualquer Santo (sobretudo São Pedro, São Nicolau e Santo Eloi) como ao
próprio Cristo. Isso não seria uma invenção datada e localizada no nordeste brasileiro.
Ferreira bem lembra que “no folclore religioso da Idade Média, tanto Jesus como o diabo
revelam-se senhores do fogo57”, e uma das histórias mais emblemáticas da
forja como o símbolo da transformação alquímica, da extração do suprassumo de uma
matéria, está na anedota de Jesus Cristo, o ferreiro, mestre dos mestres (s/d) de Manuel
Almeida Filho58: Jesus “lança ao fogo que arde uma mulher velha, esposa ou sogra, e
forjando-a sobre a bigorna, transforma-a numa jovem de grande beleza”. Releitura
inequívoca do mito de Fausto com o seu rejuvenescimento e a busca do nobre e do belo
n’A Mulher (Gretchen/Helena), a anedota remete a esta condição de um saber-fazer-aícom (savoir-y-faire-avec).
Em seu O Triunfo da religião Lacan profetisa o que sugere o título, pois para
lidar com o horror do real sempre haverá a religião: “A religião é feita para isso, para
curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”59;60. É a máquina de
fazer sentido que se aciona quando o eu já não dá conta da tarefa: “Ela encontrará uma
correspondência de tudo com tudo. É, inclusive, sua função”61;62. Questão muito bem
57
FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo : Hucitec / Educ, 1995. p. 83.
ALMEIDA FILHO, Manuel. In.: FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no Horizonte. São Paulo: Hucitec;
Educ, 1995.
59
“La religion est faite pour ça, pour guérir les hommes, c’est-à-dire pour qu’ils ne s’aperçoivent pas de ce
qui ne vas pas”.
60
LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 87.
61
“Elcanle trouvera une correspondance de tout avec tout. C’est même as fonction.”
62
LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 82.
58
26
ilustrada por Fernando Pessoa, um de nossos autores de Fausto: “No fundo o homem
religioso é um hedonista. O instinto religioso geral é um instinto de prazer, de ter tudo
resolvido na vida. Deter-se só perante a verdade é doloroso para o homem. A Realidade
é muda e fria63”.
Mas se a rejeita como engodo, Lacan não se põe indiferente à religião e
propõe neste sentido a religião trinitária, o catolicismo, como a verdadeira, “a verdadeira
religião é a romana. Tentar colocar todas as religiões no mesmo saco e fazer o que se
chama de uma história das religiões é realmente horrível. Há uma verdadeira religião, é a
religião cristã” 64; 65. Esta é de fato a mais eficaz no sucesso deste engano em se tamponar
ou remendar o que o real desata com o nome de Deus. “O real, por pouco que a ciência
aí se meta, vai se estender, e a religião terá então muito mais razões ainda para apaziguar
os corações”66; 67.
A religião, diferentemente da ciência empírica, tem a seu favor a prerrogativa
do princípio tertuliano “credo quia absurdum” relegando ao Deus inapreensível e
inominável as respostas e os sentidos. Como coloca Angelos Silesius (apud Flusser),
nesse sentido, “Deus é um grande Nada, não o toca nenhum Aqui nem Agora, quanto
mais se O tenta agarrar, mais Ele te repele68. É inapreensível, mas serve de tapume e causa
para todos os buracos abertos pelo real, ou por qualquer dos outros dois registros em que
se irrompa a falha na trindade borromeana.
Tratando da falha, do desenlace das três consistências de real, simbólico e
imaginário, ou coloquemos simplesmente A, B e C, enumerando-as, pois de fato pouco
importa em qual delas esteja a primazia ou a ruptura surgida na vida ou numa análise,
começamos este artigo falando do Sinthome como a nominação que vem produzir este reatar. A quarta consistência religiosa o D que vem aparentemente reatar o A, B e C sabemos
63
PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.p. 50.
“La vraie religion c’est la romaine. Essayer de mettre toutes les religions dans le même sac et faire une
histoire des religions, c’est vraiment horrible. Il y a une vraie religion, c’est la religion chrétienne”.
65
LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 81.
66
“Le réel, pour peu que la science y mette du sien, va s’étendre, et la religion aura là beaucoup plus de
raisons encore d’apaiser les cœurs”
67
LACAN, J. Le Triomphe de la Religion précédé de Discours aux Catholiques. Paris: Seuil, 2005. p. 79.
68
“Gott ist ein lauter Nichts, Ihn rührt kein Nun noch Hier, je mehr du nach Ihn greifst, je mehr erwidert
Er dir”.
64
27
ser sempre e em tudo o D maiúsculo de Deus o único nome comum maiúsculo por aludir
a um nome próprio impronunciável ou inexistente69.
Sugerindo aqui Mefisto, o demônio, como um nome para este real que se
manifesta puro em sua desunião, propomos à quarta consistência sua representação por
um d minúsculo (em relação aos anteriores A, B e C) que virá reatar a cadeia de modo
singular e pouco harmonioso, mas que retira do inaudito um caráter sagrado e mágico
para apontá-lo nesse anteriormente nome próprio (grafado maiúsculo por sua distinção)
tornado agora um nome comum, re-associado à cadeia. Talvez aí resida a possibilidade
de fazer-se um nome a partir da associação com o elemento demoníaco em Fausto:
Encarando o horror demoníaco do real de frente e dele se servindo em nome próprio.
69
É o único caso, ao menos nas línguas latinas, em que se deve usar maiúscula em pronomes (Ele, Lhe, O,
Seu, Cujo) quando fazendo tal referência.
28
Comentário e questões para debate
sobre a conferência:
FAUSTO E O SINTHOME,
de Pedro Heliodoro Branco Tavares
Pela debatedora: Tania Nöthen Mascarello
O conferencista assume diretamente estabelecer uma articulação singular
entre os domínios da literatura e da psicanálise. Tratando-se dos significantes arte e
psicanálise, ou mesmo mais especificamente literatura e psicanálise, sem dúvida, rios de
tinta já foram vertidos a este respeito, mas certamente esta abordagem que Pedro
Heliodoro nos apresenta é absolutamente original. Dirigir o olhar para duas de suas
paixões, a literatura alemã desde o mito de Fausto de Goethe – mas não só, pois explora
o mito como invenção em vários autores – e a psicanálise, me parece mais um passo
absolutamente lógico na trajetória deste colega que acompanho já há algum tempo, e que
é marcada por agradáveis surpresas sempre muito originais e, se posso dizer, como um
efeito esperado.
O livro que dá origem às formulações desenvolvidas hoje na Conferência
mereceria um detido comentário, impossível neste momento. Mesmo assim, não posso
deixar de mencionar. Farei somente uma breve referência à estética apurada da
publicação, com um feliz detalhe da tela do importante pintor Catarinense e
florianopolitano, Rodrigo de Haro. Trata-se da tela Fausto e Mefisto, que convoca nosso
olhar na austeridade da capa em negro. Este feliz achado/procurado leva-nos a considerar
até mesmo neste detalhe de abertura, um pacto fáustico do autor com sua obra. Sobre o
que se encontra para além da capa, só posso recomendar a leitura. Ainda que o autor
afirme que o estilo tem funções teóricas que se sobrepõem às meramente estéticas, Pedro
não descuida de sua habitual elegância textual aliada à erudição e ao rigor teórico em suas
elaborações.
Abro um parêntesis para dizer que parece que tudo conspira a nosso favor, a
favor de nosso tema, Le Sinthome. Rodrigo de Haro é filho de Martinho de Haro, artista
ainda mais reverenciado que o filho. Ambos têm obra farta e reconhecida, mas de estilos
29
distintos. Rodrigo de Haro, ao inventar seu estilo, absolutamente singular, inovador, teria
ido além do Pai, prescindido do Nome-do-Pai, sabendo dele servir-se?
São questões como esta, talvez, que fazem do Seminário 23 de Lacan um tema
tão apaixonante, como está dito no argumento de nossas Jornadas – denso e apaixonante,
que nos lança enigmas. Mas afinal, o que é isso, o Sinthome? Ele nos permite alcançar
uma clínica do Real? Diz Lacan que a religião foi pensada para curar os homens, para que
não se dêem conta do que não anda. A primazia do Simbólico na clínica psicanalítica,
leva consigo este risco. Propõe então o sintoma como o que não anda, o único
verdadeiramente Real. Lacan entende o sintoma como uma necessária consequência do
amor reprimido ao Pai. Quando o amor eterno ao Pai é reduzido por voltar a ligar-se ao
inconsciente mediante a pulsão de morte e é transformado pelo trabalho analítico, pode
dar lugar a invenção do Sinthome.
Lacan apresenta James Joyce como o paradigma para suas formulações
apresentadas no Seminário 23 e estabelece mais uma vez a privilegiada relação da
psicanálise com a literatura. A partir do excepcional encontro de Lacan com Joyce e sua
singular escritura, marca insubstituível de seu saber-fazer, Lacan convida os psicanalistas
a romper com o léxico, com o sentido comum da linguagem cotidiana da comunicação.
Pedro Heliodoro, como acabamos de ouvir, a partir de Lacan foi buscar no mito de Fausto
os alicerces para suas proposições sobre o saber-fazer sinthomático.
Sem mais delongas, apresento algumas questões para iniciar o debate. Para
isso quero destacar um dos pontos centrais das idéias desenvolvidas na conferência,
repetindo as palavras de Pedro, que me provocaram muitas reflexões.
Cito nosso conferencista:
Fausto abandona a via comum da ligação ao pai enquanto sintoma, ou seja, ao
Deus-Pai em sua prévia organização trinitária (Pai - Filho – Espírito Santo,
sendo este último o elo sintomático). Isso, tal qual a dissolução que Lacan
demonstra em Joyce, entre os três registros da experiência psíquica (RealSimbólico-Imaginário), para, a partir do que Mefisto representa, refazer esta
ligação ao seu próprio modo. Eis o que implica o quarto elemento, ou quarta
atadura: o Sinthome lacaniano ou o pacto fáustico com Mefistófeles.
Gostaria que desenvolvesses um pouco mais o que te levou a equiparar
Sinthome e pacto fáustico.
Em outro lugar (“Subversão do sujeito e dialética do desejo”, Escritos, p. 8234) Lacan explora – a partir de Hegel –, o pacto que se instala entre o Senhor e o Escravo,
o que garante o avanço do Simbólico sobre o Imaginário, fazendo um corte na violência
da luta à morte por puro prestígio. Escravizado, o sujeito goza de trabalhar para o Senhor.
30
Este campo está configurado como o da produção. A questão é o que diferencia este pacto
com um amo diabólico, daquele campo da invenção e do registro do Real?
E ainda, se não fugir das tuas proposições, se chegaste a estabelecer o que
afasta os mitos de Fausto de serem tomados como diferentes versões do fantasma
originário da castração, da concepção que te norteia de se tratarem de singulares
Sinthomes dos diferentes autores que se inscrevem na lógica fáustica.
31
Eu e nós
Alessandra do Couto Valentim1
No Seminário 23, “O Sinthome” 2 , Lacan propõe que a correção do erro na
amarração da cadeia topológica de Joyce é feita através de seu Ego.
O que teria o Ego a ver com o Sinthome, e como poderia desempenhar a tarefa de
fazer-se consistência capaz de recuperar o Imaginário de volta a uma cadeia com dois
registros já atravessados um no outro (Real e Simbólico)?
A proposta seria pesquisar o Ego Joyceano, começando com o próprio vocábulo:
por que motivo, falando em Francês, Lacan usou o termo Ego e não Moi? Outro ponto de
interesse foi buscar o modo como o Ego de Joyce corrige topologicamente a cadeia
fazendo surgir o Sinthome.
Esse breve escrito tenta articular alguns recortes do livro de Roberto Harari,
“Como se chama James Joyce”3, com o capítulo 10 do Seminário 23 de Lacan4, “A escrita
do Ego”, mais o artigo de Freud “O Ego e o Id” 5.
O termo ego
Por que o próprio Lacan se referia ao Ego de Joyce por Ego e não por Moi ?
Moi, seria, em resumo, o conceito criado por Lacan para localizar a sede das
identificações. Tudo começou com a tradução do artigo original de Freud, “Das Ich und
das Es”, para o Inglês. Os ingleses decidiram adotar a palavra Ego, do Latim, para traduzir
o Ich freudiano, que, no Alemão, é o pronome pessoal da primeira pessoa do singular.
Essa solução não deu conta da amplitude do alcance teórico do conceito de Ich, o que
Lacan conseguiu resolver usando dois termos: Je e Moi. Je, que é o Eu em posição de
sujeito, sujeito da enunciação, Simbólico, correspondente à primeira pessoa do singular;
1
Psicanalista, adjunto da Maiêutica Florianópolis-Instituição Psicanalítica.
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
3
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador:
Ágalma e Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2002.
4
Idem 3
5
FREUD, S. “O Ego e o Id”. In: ESB. OC. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago. 2006.
2
32
e Moi, que corresponde à auto designação em posição de objeto, herdeiro da imagem
especular, correspondente à terceira pessoa do singular
Não se pode deixar de notar que na tradução para o Português a solução não foi
mais feliz que a dos ingleses, uma vez que adotamos um termo único para as duas
posições lacanianas: o Eu.
Causa surpresa ver Lacan, naquela altura de seu percurso, usar a palavra Ego, uma
vez que no decorrer da história da Psicanálise ela passou a ser mais que uma palavra,
englobando um pensar e fazer psicanalíticos completamente diferentes, aliás opostos, ao
que era o conceito proposto por Freud e Lacan. Segundo a interpretação dos ingleses era
preciso fortificar o Ego, torná-lo uma fortaleza. Isso foi levado ao seu expoente máximo
por essa linha da psicanálise e passou a definir uma Escola dedicada ao fortalecimento do
Ego: a Psicologia do Ego.
É difícil acreditar que Lacan poderia compactuar com a Escola da Psicologia do
Ego, a não ser que fosse como paródia ou ironia.
Harari encontra evidências dentro da obra de Joyce, para conjeturar sobre a
intencionalidade do uso que Lacan faz da palavra e do conceito de Ego no caso de Joyce 6.
Ocorria que Joyce reclamava de sua constante angústia econômica (um tema de sua pèreversion: o pai quebrado, pobre) e mencionava sua ambição: sua meta vital era dotar-se de
um mecenas, alguém que o sustentasse financeiramente. E como ele chamaria alguém
que alcançasse esse propósito? Assim o refere o próprio Joyce numa carta a seu irmão
Stanislaus: “Nessas circunstâncias eu talvez também fosse um EGOarca” 7. O sufixo -arca
(como em monarca, oligarca) denota um mando, um governo, nesse caso o mando do
Ego, seu próprio Ego.
Assim, a escrita é essencial ao Ego de Joyce pois, em poucas palavras, se ali o
Ego é quem manda, há o Ideal do Ego manifestando seu anseio explícito, apontando a via
do gozo. Ali o gozo está para além de qualquer demanda ao Outro, sua escrita é
ininteligível, e como diz Lacan, Stephen Dedalus, personagem do primeiro romance de
James Joyce: Retrato do Artista Quando Jovem, “é Joyce na medida em que decifra seu
próprio enigma”8 ele, ao mesmo tempo, faz enigma para outros.
6
HARARI, R. Como se chama James Joyce? (A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan). Salvador:
Ágalma e Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2002, p.305.
7
Idem
8
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p.67.
33
Papel do ego
Lacan afirma que o Ego de Joyce é diferente do nosso. No Seminário 23, “O
Sinthome” há algumas passagens nessa direção:
“Alguma coisa lhe aconteceu (a Joyce) e faz com que, nele, o que chamamos
correntemente de Ego, tenha um papel muito diferente do simples papel – que
imaginamos simples – que ele tem para o mais comum do que chamamos, de modo
apropriado, os mortais”9
“Porque Joyce é tão ilegível? (...) Talvez seja porque não evoca em nós simpatia
alguma. (...) Será que alguma coisa não poderia ser sugerida pelo fato de ele ter um Ego
de natureza bem diferente?”10
Que seria então essa diferença? Como é o nosso Ego, o do “mais comum dos
mortais”?
Em Freud, o Ego é uma organização coerente de processos mentais, produto do
contato da superfície do Id com o mundo exterior. No artigo O Ego e o Id11, entre outras
coisas, Freud diz que o Ego deriva das sensações corporais, da projeção mental da
superfície do corpo. O Ego seria um ego corporal12. Com funções como intermediar as
pulsões do Id com o Princípio da Realidade, proteger o sujeito (sede das pulsões de autoconservação) e tendo os comandos da ação motora, seria de se esperar que, durante uma
surra como aquela que Joyce recebe dos colegas, o Ego dos simples mortais
experimentasse uma variedade de sentimentos como desejo de fuga, raiva, ira, violência,
ódio pelos agressores, gozo, prazer.
Mas Joyce, após a surra, relata não ter sentimento algum pelos colegas.
Escorregamento do Imaginário: a surra
Joyce, adolescente, levou uma surra dos colegas. Buscada, ou não, através de
provocações, esse foi o momento que levou ao deslizamento do Imaginário para fora da
cadeia.
9
Idem 9, p.143.
Idem 9, p.147.
11
FREUD, S. “O Ego e o Id”. In: ESB. OC. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Vol. XIX.
12
Idem, p.39.
10
34
Recontando o fato, diz Joyce que durante a surra sentiu o corpo se soltar como
uma casca. Depois da surra, nas palavras de Lacan, “Só resta ao grande I (Imaginário)
cair fora. (...) Ele desliza, a relação Imaginária não acontece.”13
O Imaginário escapou, deslizou. Se escapou é porque não estava enlaçado
borromeanamente. Lembremos que a condição inicial para um enlace Borromeu é que
duas consistências estejam separadas, soltas uma em cima da outra, superpostas, deixando
a possibilidade para que venha uma terceira consistência e enode os três anéis
borromeanamente, fazendo-os permanecer em cadeia.
Uma vez em cadeia, esses três elementos podem ser soltos e reamarrados ad
infinitum pelo corte de qualquer um dos três elementos, enfim, por novas e dinâmicas
amarrações.
Em Joyce isso não acontece pois dois anéis não estão soltos. O Real já estava
cingido, seu buraco já atravessado pelo Simbólico. Topologicamente isso se chama
Enlace de Hopf. Trata-se de uma cadeia olímpica de dois elementos, onde um elo passa
por dentro do buraco do outro. Assim, em Joyce, a relação entre esses dois elementos,
Real e Simbólico, não é afetada por um terceiro elemento.
Figura 1 - Duas consistências separadas. Posição inicial que permite a formação do enlace Borromeu.
13
Idem 9, p.147.
35
Figura 2 - Enlace de Hopf. Posição inicial em Joyce.
Dessa forma, entende-se que não havia mesmo jeito do Imaginário entrar
borromeanamente na relação. Ele se ajeitou por ali mesmo, ficou precariamente perto do
Real e do Simbólico, apenas aparentemente funcional.
Assim, esses três elementos (R S I) em Joyce, não formavam uma cadeia, o
Imaginário estava só apoiado no Real e Simbólico.
Figura 3 - O Imaginário não está enodado
Pois bem, Joyce não odeia os colegas, não tem nenhum sentimento por eles. Não
houve gozo, mas uma relação de repugnância, asco de seu próprio corpo.
Segundo Harari, é uma ideia de si como corpo que tem peso de Ego para Joyce.
Ideia de si como “possuindo” um corpo, “tendo” um corpo, como quem tem um móvel.
E, naquele momento, um móvel asqueroso. Então, quando da surra, ele perde essa relação
com a imagem do corpo, perde essa imagem especular identificada com o Ego, i(a), fruto
36
daquela primeira identificação jubilosa, antecipatória, da criança que se vê no espelho
como um corpo inteiro e funcional.
Caindo essa imagem (pequeno i), cai também a consistência Imaginária, (grande
I). Harari chama essa circunstância de forclusão da imagem especular, enquanto
sustentação do Ego.
Amarração – ego como imagem especular: i(a)
Deixar-se cair é da operância do objeto a. Geralmente, na relação com a imagem
especular i(a), o sujeito tem de deixar cair de seu corpo (pequeno i) os objetos a. “Vão-se
os anéis, ficam os dedos.” Vão-se os objetos a, fica o (i).
No caso de Joyce, ocorre o contrário: o objeto a é que fica e o que se perde é a
imagem, (pequeno i), a qual arrasta consigo o Imaginário.
Quando o Ego tenta o resgate desse pequeno i, isso acontece no corpo, pois este
se inscreve no Imaginário. Joyce deixa cair o corpo como a uma casca. Nesse ponto a
reparação é imperativa pois ali Joyce passa a se relacionar com seu próprio corpo com
uma relação de asco. Conforme Harari, ali aparece o Ego como consistência a recapturar
o Imaginário desprendido, ou seja, o corpo desprendido14.
Passando pelo estádio do espelho, o que há para o sujeito é uma imagem do corpo
como todo, como inteiro. Não se interessar pelo que aconteceu a seu corpo, a sua imagem,
naquela ocasião, mostra como o Ego de Joyce tem uma função diferenciada. Talvez um
Ego Imaginário, narcísico? Parece plausível: o Narcisismo está presente no Sinthome. A
incidência narcísica no Sinthome pode ser expressa pela palavra-valise NARCISÁRIA; é
Narcisismo, é secundário e é necessário.
O Ego, fazendo uma correção diretamente ali onde havia o lapso, repara o
enodamento entre Real e Simbólico, e tem como consequência prender o Imaginário que
tinha caído fora. Em suma, a ação do Ego não pôde ser feita diretamente na consistência
Imaginária, foi feita no lapso entre Real e Simbólico.
14
Idem 7, p.308.
37
Figura 4 - Ego entre o Real (R) e o Simbólico (S) tem como efeito o enlace do Imaginário (I),
que assim pode permanecer em cadeia.
Assim, a cadeia é recomposta, mas não borromeanamente. O Ego corrige a relação
que não acontece, a relação Imaginária.
Sinthome
Não se deve confundir Ego com Sinthome.
Quando é o Sinthome “comum” que ata, aquele Sinthome que vem do sintoma,
então o enlace é Borromeu: qualquer um dos elementos que seja cortado desfaz todo o
enlace.
Em Joyce, a cadeia resultante não é do tipo Borromeu: o que há é um Ego que,
corrigindo a cadeia, simplesmente permite ao Imaginário operar pelo fato de permanecer
enodado, fazendo relação.
Assim, em se tratando de Sinthome, o quarto nó pode ser Borromeu ou não.
Quanto ao fazer analítico, em relação ao Sinthome, não há nada a fazer para
analisá-lo, naquele lugar há o alojamento de um gozo que produz um ponto de enlace
onde antes havia uma falha. Ali o sujeito frui de gozo mental. Joyce gozava ao propor
enigmas, queria que se ocupassem dele por trezentos anos. Aqui estamos.
38
O real da letra
Ana Virginia Nion Rizzi May1
A trajetória do Real, enquanto conceito passa por modificações. Modificações que
vão passando por diferentes conceituações, que são passíveis de mudanças a partir da
clínica.
Entendendo o real como corte, na medida que o corte é constitutivo e externo ao
discurso, quer dizer que algo o constitui e ao mesmo tempo algo que está fora dele. Esse
corte Lacan situa como Verwerfung, onde na experiência clínica trata-se de tocar em
pontas do Real.
Lacan a partir do seu retorno a Freud, retoma o conceito de Verwerfung traduzido
como rejeição em Freud e forclusão em Lacan - que reaparece no Real2 . O exemplo é a
alucinação que ocorre com o Homem dos Lobos quando alucina o dedo cortado3. O que
vem no Real alucinado é nesse caso um pedaço do corpo não simbolizado4. Por outro lado
está o recalque: Verdrangung situa o recalcado. Isto podemos ver no exemplo do
Esquecimento do Nome Próprio Signorelli, onde recalca Sig produzindo o sujeito
dividido e desloca para outros nomes porque ele estava ligado ao conteúdo de morte e
sexo.5
A partir do Seminário “O objeto da psicanálise”, Lacan elaborou uma outra maneira
de entender o Real: aliou a função da cadeia significante em relação à lógica. No
seminário “Mais, ainda”, o Real só se atinge por uma escrita definida como ciência do
Real: o impossível só pode ser discernido por uma modalidade lógica, é aquilo que deve
ser excluído para que o discurso adquira coerência lógica. Por isso é, então, o Real o que
“não para de não se escrever”.6
Psicanalista, membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.
LACAN, J. Seminário 3: As Psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 57.
3
FREUD, S. “Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos.” [1917-18]. In: ESB. OC. Vol. XVII. 4 ed. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. p. 109.
4
CONTÉ, C. O Real e o Sexual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 139.
5
FREUD, S. “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana.” [1901]. In: ESB. OC. Vol. VI. 4.ed. Rio de Janeiro:
Imago, 1987. p.22
6
LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda [1972-73]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 81
1
2
39
Este trabalho vai ao encontro do que Lacan situa no seminário XXIII, o Real
pautado desde outro prisma. A importância radica na passagem do inconsciente para
pulsão. Pulsão que se traduz em pedaços de Real, em pedaços de lalangue que emergem
dos cortes provocados pela Pulsão de morte 7 . O Real intervém de maneira crucial e
incisiva para destronar o significante como insígnia. Agora aponta a um traço fônico
aliado ao Real. Se antes era o sujeito o que representava um significante para outro
significante, agora o sujeito se representará no nonsens - sem sentido da voz pulsional,
resto vocálico, polifônico desabonado do inconsciente8.
Este seminário aborda o Real de outra maneira. A escrita de Joyce reporta ao Real
da letra. Lacan 9 se reporta à letra dizendo que “a escritura, a letra, está no Real, o
significante, no simbólico”.
Na obra de Joyce e, dando o acento em Finnegans Wake, incide aquilo que há de
mais inusitado, de inovador, dando voz ao mais real na emissão sonora, rompendo as
amarras da copulação entre o Imaginário e o Simbólico produtores de sentido, para
mergulhar no Real.
Se o significante é o que representa o sujeito para outro significante, o sujeito se
encontra entre, onde há pura divisão entre um e outro. O sujeito não é representado nem
pelo seu antecessor nem pelo seu sucessor, ele é entre um e outro. Deixa de lado
significante que remete a uma significação, quebra o elo das palavras com a imagem,
perde o laço que reporta ao narciso como à sua imagem e semelhança. Esta, está perdida.
Perde-se para encontrar um outro sentido, já não mais decorrente da teoria do significante.
Para Marc Darmon, o significante é pura diferença, a diferença entre dois
significantes10. A letra possibilita a carência de ambiguidade, de duplo sentido, porque
bane a duplicidade, ela traz a identidade com ela mesma. Quando se joga com o
significante se joga com o sentido. Enquanto a letra cai, parece que se desprende de
sentido. Ao cair no inconsciente faz substituições, jogos, cópulas, ela visa o gozo.
Trabalha para o gozo.
7
LIMA, M. N. Linguagem na Psicanálise. In: CLINAMEN, Florianópolis, n. 01, p. 61, 2001.
HARARI, R. Como se chama James Joyce? Salvador: Ágalma e Cia de Freud, 2003. p. 89.
9
LACAN, J. Lituraterra. Em Che vuoi? [1971-1986] In: Psicanálise e Cultura, Porto Alegre: Cooperativa
Cultural J. Lacan, ano 1. p 28.
10
DARMON, M. “Revenamento”. In: MELMAN, C. O Significante, a letra e o objeto. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2004. p.65
8
40
A ruptura entre objeto e gozo sofre diferentes destinos, Sinthome não é sublimação.
Sublimar é elevar o objeto à dignidade da coisa, ganhar um estatuto de supremacia, uma
promessa de um gozo. Guarda em última instância uma ligação com objeto, mesmo que
ele seja objeto perdido, há uma amarração do Imaginário que permite concatenar, fazer
elo. Há possibilidade de inventar um arranjo diferente, algo a mais que lhe muda sua
qualidade. O sujeito se faz e ao fazer-se se exprime naquilo que realiza.
Por outro lado, Sinthome é fazer suplência com a letra, com o Imaginário
reamarrado.
Se a sublimação consegue elevação do objeto para alcançar um gozo que conduz à
dignidade, o Sinthome alcança a L´âme-à-tiers, o espírito, a terceira, a matéria do real que
Lacan designa alma.11
Joyce faz letra, no Real da Coisa. Faz uma elaboração que lhe escapa ao sentido.
Se o significante é polifônico, o Real da letra não deixa dúvidas, aparece como algo
instransponível. Decompõe a língua, perde o arraigo da língua materna, utiliza várias
línguas diferentes, entrelaça-as, faz trocadilhos, corta, decompõe, pulveriza até degradar
o óbvio, o sentido entranhado, para chegar ao osso, ossoobjeto.12 Lacan o chama desta
maneira no seminário XXIII. Engendra a possibilidade de dar novos significados porque
quebra o sentido, aponta para um “curto-circuito de sentido” e desenraizando a filiação
da palavra, desterra a raiz, corta com toda a philia, entendida com ph - filiação que
guardava no seu cerne a evolução histórica. Rompe os traços que o ligavam com o
primordial.13
O signo guarda relação com o objeto. O signo representa com um nome o objeto.
Os signos carregam fonemas. A leitura do signo pode contar com a separação do objeto.
A letra é o Real, como uma borda cujo objeto se desprende pela introdução da linguagem.
Ela é estruturada e localizada no significante.
Sem presumir fazer uma análise aplicada, a maneira como o artista revela o contato
com o inconsciente é pertinente à sua estrutura. Joyce não era psicótico, mas as
deformações impostas pela censura para que o recalcado possa retornar não se
encontravam ao nível da estrutura neurótica onde o recalcado encontra seu destino através
GUERRA, A. M. “Sutilezas do tratamento do Real no final do ensino Lacaniano”. In: Saber Fazer com
o Real” .Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2009. P. 140.
12
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 141.
13
Idem, ibidem.
11
41
do sintoma, do ato falho, do sonho. Joyce não faz obstáculo, goza com os restos dos
trocadilhos, das palavras cruzadas, com as reminiscências vocálicas que velam o Real.
Lacan se pergunta se Joyce era louco.14 A “loucura” lhe permite adentrar em esferas
de outros sentidos. Os significantes cortam, pautam, delimitam o sujeito que é afetado
pelos significantes primordiais. Nem tudo é significável, o significante faz marca no
corpo, mas pelos sentidos adjudicados engana, diferente da angústia que é aquilo que não
engana. Não engana porque a angústia traz um Real que toca o sujeito.
Na escrita aparece um precipitado do significante. Precipitado que Lacan alude,
como se fosse um resto, algo que decanta, que se desaloja da sua matriz. Como fazer
menção de algo - em francês mention, aporta a mesma raiz mensonge: dizer algo que não
é necessariamente a verdade. Ao escrever, aponta para o dizer, diz porque mente, diz para
além do dito. Dizer mensongeando, escrever mentindo. Mentindo encontra o osso,
mentindo encontra o real.
Lacan prossegue em que a escrita, só se alude a ela escrevendo, mentindo porque
dribla a philia. A philia é do registro do Imaginário, do terreno da identificação. Ela cai,
desliza-se porque não há engate, a philia desloca desde uma raiz para outros descendentes,
quebra este saber philial.
O nó bó não pertence à lógica Aristotélica em que a verdade da verdade é outra
verdade, no nó bó a verdade da verdade é uma mentira. Porque para falar a verdade, por
exemplo, a verdade do melancólico: “sou um merda, não sirvo para nada” - tem que
adoecer para falar essa verdade. Para viver, precisamos do engano de que nos cremos
bons, de que fazemos o bem. Como aponta Harari em “Como se Chama James Joyce”,
para poder suportar a contradição inerente ao falante.15
O nó de Joyce se consegue escrever porque algo fez suplência: sua escrita. Nela
capta algo do Real, a verdade da verdade não como na lógica aristotélica, e sim, nos
mostra Lacan, a escrita Joyceana aponta para o Real, qual a medula, aquilo que sustenta
a carne, o osso, ossoobjeto, essa escrita que é letra.
14
15
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975 1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 141.
Idem 9, p. 89.
42
Nós não somos nós?
Carlos Augusto Monguilhott Remor1
Nada se sustenta só. Esta topologia, devido a sua
inserção matemática, está ligada a relações, a relações de
pura significância, ou seja, por que estes três termos são
três, vemos que a presença do terceiro estabelece, entre
esses outros dois uma relação. Isto é o que quer dizer o nó
borromeu.
Lacan
A antiga questão pelo ser é muito pregnante. O ser falante tem verdadeira obsessão
por ela: de tudo, quer saber “o que é isso?”
Esse fascínio é também a questão da identidade, tema central da psicologia, mas não
da psicanálise. Nas psicologias, se expressa nas formas ônticas, até as dirigidas a si mesmo,
como o “quem sou eu”, pela qual Lacan inicia o seminário das Identificações. 2
O título privilegia a forma negativa, já que a forma positiva não é a equivocação
própria do inconsciente. “Se há algo, [diz Harari], isso acontece porque se recorta sobre um
inexorável contexto de ausência”. 3 Daí também a questão do termo lacaniano da exsistência, ao contrário do existencialismo. Aparenta uma identidade, mas pela negativa, ou
seja somente aparência de identidade: “nós não somos nós?” A identidade é essa fórmula
matemática da igualdade, na qual é possível dizer que isto é aquilo; ou, que isto é isto, ou
ainda, que isto é assim. O “é” marca uma afirmação plena, rotunda, estável, aponta à
completude e à essência, não combina com a psicanálise. Lacan enfatiza a organização do
sujeito ao redor de um ou mais buracos4 diz que o inconsciente é ético, em contraposição ao
ôntico, exatamente pelo fato de não haver essência, mas sim de se sustentar na falta. De certa
forma, só podemos dizer o que o inconsciente não é, nunca o que é, motivo de tantas
Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.
LACAN, J. Seminário 9: A Identificação [1961-62]. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.
Publicação para circulação interna. p.17.
3
HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.51.
4
HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.51.
1
2
prescrições negativas por parte de Lacan.
Além disso, o título se constitui da forma negativa – “nós não somos nós” – tanto
quanto da forma interrogativa, ambas ao estilo das prescrições lacanianas e talvez até
freudianas também, ao contrário de uma ontologia do todo estável e essencialista. O primeiro
“nós” é tanto o pronome quanto o substantivo que designa o enlace. Igualmente o segundo
também é tanto um quanto outro. Assim, nós somos ou não esses nós borromeus? Claro que
não somos o próprio enlace – de novo a forma negativa – mas nos constituímos assim, pelos
enlaces, são eles que nos colocam nos lugares, tanto discursivos quanto estruturais, das
estruturas clínicas mesmo, posto que o Seminário 23, discute esse tema quanto ao ego de
Joyce, mas também quanto ao trevo, como mostra da psicose.
A crença na identidade é um imaginário social advindo de uma afirmação narcísica
do eu, que tenta se fazer um, procurando lutar contra a divisão, a partir da crença no um
unificante, no um da totalidade,5 marca a cristalização egóica da crença na inteireza do eu.
Após os anos 60, Lacan deslocou seus estudos em direção à topologia das superfícies
ou variedades bidimensionais. Embora bidimensionais na matemática, ele tratou estas
superfícies do seu modo habitual: de “importação do que lhe serve”. Na topologia lacaniana,
podemos ver também na consideração ao toro, mais do que a questão das superfícies. Esta
área estuda objetos como o toro, a banda de Móbeis, o crosscap, a garrafa de Klein e o nó
borromeu.
Quanto a nós, mais diria que temos características tóricas, Lacan diz que somos
tóricos, ao mostrar as operações topológicas com o toro. Contudo, podemos pensar que
estamos mais para cilíndricos, pois nossos buracos permitem as trocas com o mundo, o que
fica questionado nisso é o caráter de externo e interno.
Nesse ponto aparece o que mostram os enlaces borromeus, ou seja, a preservação do
buraco, já que no nó borromeu [Bô] não há atravessamento do buraco pelas outras
consistências para que todas fiquem amarradas. Essa preservação se traduz pelo fato de que
o enlace, ao não passar pelo buraco, mas sim pelo falso buraco, mantém aberto o buraco.
Assim, é o buraco que permite a sustentação do nó, mas sem que haja atravessamento através
dele, mantendo-o. O atravessamento do buraco, mais caracterizaria o Sintoma do que o
Sinthome, seria sua obstrução e não sua preservação. O buraco atravessado estaria, por assim
5
LACAN, J. A Identificação. Op. Cit. p.170.
44
dizer “ocupado”, daí as expressões de esburacar o sintoma, o fantasma...
Além disso, a condição Bô é a de três, no mínimo. Essa terceiridade, Lacan a refere
na paronomásia do que chamou moterialisme, ou seja, do materialismo da (mot) palavra,
seguido de outro jogo homofônico de l’âme-a-tiers, que soa como “a matéria”. Embora nada
fácil de traduzir, pois designa a alma em, ou a, ou de três, ou tudo isso em terceira instância. 6
Essa materialidade é o privilegiado no que concerne a alma, que não tem origem nem
substância, pois só se sustenta nesse ‘a três’ borromeu, como lógica ternária, nunca bivalente
ou bijetiva. Essa alma, que Lacan refere é a questão também da tradução do seele, de Freud,
que foi, para nós, traduzido por ‘mental’, mas ao qual Harari contesta que denota “do
intelecto” e critica pela alegação de que contém uma pretensão objetivante e intelectualista.
Afirma que assim, se há alma, esta não está por debaixo de nada, mas sim sustentada a três.
Descarta o psiquismo do falante como composto por estágios, níveis ou similares.7
Lacan privilegia o significante como o que representa o sujeito para outro
significante. O que o primeiro significante tem a ver com o segundo, nessa relação triádica?
– Trata-se de uma referência topológica borromea, na qual um primeiro registro enlaça o
segundo através do terceiro, ou seja, é de segunda ordem, nunca o registro é enlaçado por si
mesmo, nem pelo outro, mas pelo terceiro.
A Topologia é um ramo recente da Geometria 8 que se preocupa com o aspecto
qualitativo dos objetos e nesse sentido ela independe do número. Tamanho e forma não são
propriedades topológicas.
Os fios da cadeia borromea não são só fios, também conformam letras. Então, o
trabalho letrino de Joyce é a sua derrubada em ato, do olimpismo da palavra; é a mostra do
tênue laço borromeu capaz de unir as letras de uma palavra.
Nós, os falantes acreditamos no olimpismo da palavra, na legítima defesa da “boa”
sintaxe, do significado preciso. Pois Joyce e Lacan ensinam, sobre o borromeanismo da
palavra.
A relação entre os elementos compositivos de uma palavra é precária. Tais
elementos, pois, são movíveis, removíveis, cortáveis e – no dizer de Lacan – novamente
suturáveis mediante engates enroláveis (épissures). Por isso, a palavra é qualquer coisa,
6
HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.66.
HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004. p.67.
8
Ciência que investiga as formas e as dimensões dos seres matemáticos; as propriedades de um conjunto de
elementos que são invariantes sob determinados grupos de transformações.
7
45
menos uma unidade sólida, indissolúvel, perene.
Algumas diferenças entre o Sintoma e o Sinthome são fundamentais de se comparar.
Começando pelo Sintoma: este é remissivo, ou seja, trata-se da cadeia significante
em sua remissão do S1 ao S2, com seu retorno sobre o S1. O Sinthome não é remissivo, tratase da cadeia Bô, não remete de um ou outro, mesmo porque sua condição mínima é de três.
O Sintoma acaba por trazer um caráter de insuportabilidade ao sujeito, quanto ao
retorno do recalcado, enquanto o Sinthome, pelo contrário, mostra seu “avesso”, a
interversão topológica que resulta em que o insuportável seja a vida sem ele.
O Sintoma torna o sujeito passivo, embaraçado pela metáfora que exige decifração,
enquanto o Sinthome marca-se pela caráter ativisante, pela busca do que não se pode ficar
sem.
SINTOMA
Remissivo (S1 S2)
Cadeia olímpica
Insuportável
Recalque
Passivisante Embaraçoso
Metáfora
SINTHOME
Não remissivo
Cadeia Bô
Insuportável sem ele
Não recalque
Ativisante (parturiente que já
deu à luz – alívio
Tabela de autoria de Roberto Harari9
A clínica desenvolvida pela lógica borromea permite a Lacan conceber um tipo
diferente do da cadeia significante. A cadeia borromea implica em independência mútua dos
dois elos iniciais – apenas superpostos, e fazendo falso buraco entre eles,10 enquanto que a
cadeia significante se inscreve como olímpica, isto é, entrelaçada. É por isso que a borromea
indica uma mobilidade e uma autonomia do material do significante – ou seja, da letra. O
Sinthome se faz por um nó, a partir da preservação do buraco, e só o nó Bô preserva o buraco,
pela sua característica de não atravessamento, mantém a possibilidade de se fazer trocas. O
atravessamento fixa, a fixação é mais característica do sintoma.
Quebrada a inter-remissão significante, segundo Harari, cancela-se a concepção do
sujeito definida por seu intermédio. Por isso o “último Lacan” avança junto ao desabono do
9
10
HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis. Madrid: Síntesis, 2004
HARARI, R. Les noms de Joyce. Sur une lecture de Lacan, L´Harmattan, Paris, 1999, pp.25-26.
46
inconsciente e à lógica borromea não olímpica através da noção escrita como LOM.11 Uma
homofonia com l´homme, “o homem”.
Foi Freud que iniciou essa busca pelo sem sentido, pela proposição da associaçãolivre, primeiro passo na quebra da linguagem compreensivo/comunicativa.
Depois, Lacan afirma que o Real da língua é o Real do inconsciente, dado que a
estrutura do inconsciente, como linguagem, não é a linguagem comunicativa.
Os enlaces borromeus são os enlaces das palavras, as mots-valises que fazem
violência à linguagem estabelecida, para que o sujeito não entenda pelo que já sabe, já
conhece, re-conhece, ou seja, só ouve o que já sabe – cópula do gozo-sentido – jouissance,
contra o qual Lacan interpõe o sens blanc. Esse é a quebra que Lacan busca com os enlaces,
com essa materialidade da palavra, o moterialisme. Por isso, esse jogo com as palavras, os
sons, as letras, restos desse real do inconsciente, para quebrar a hipnose na qual o sujeito
procura sempre mais do mesmo, mais do conhecido, para reconhecer-se narcisicamente, em
espelho.
Daí seu artificiar, tanto com a fala quanto com os nós, para mostrar essa operação
com o que é Real do inconsciente. Eis o artifício joyceano que ensinou a Lacan esse caráter
lacaniano.
Toda essa operação se direciona para a quebra, o corte, a separação – análise. Para
fazer Sinthome é necessário ainda, outro passo. É para desfazer o nó olímpico, porque o
outro passo é a inclusão do outro nó, o do Sinthome.
LACAN, J. “Joyce le Symptôme”, AA.VV., Joyce et Paris. 1902 … 1920-1940 … 1975, PUL-CNRS,
Lille-Paris, 1979. p.13-16.
11
47
O seminário 23 e o artifício
analítico
Clara A. Fonseca Carvalho1
Lacan2 nos indica que o sintoma subsiste por estar articulado à linguagem,
sendo, portanto, possível que algo nele se modifique pela via da manipulação
interpretativa, pelo jogo com o sentido. Entretanto, considerando o sintoma em sua
vertente de gozo, coloca-se uma nova forma de pensar a direção da cura, fazendo-se
necessário uma clínica que possa, indo além da dimensão do Simbólico, dar acesso a
pontas de Real. Desta maneira, surge uma nova possibilidade de fim de análise: a
identificação com o Sinthome. A questão que proponho articular refere-se ao campo do
gozo, à transformação do gozo implicada no saber-fazer-ali-com aquilo que gerava o
sintoma. Partamos, então, de duas posições trabalhadas por Harari 3 para pensar as
posições ocupadas pelo sujeito no percurso de uma análise: por um lado, a posição de
Antígona, remetendo ao lugar do analisante; por outro lado, a posição de Sócrates, no
lugar de analista.
Antígona enfrenta a lei dos homens, comete um “delito santo”, um ato de
obediência cega à lei dos deuses, enquanto mandamento imutável e universal, apenas lhe
restando lamentar por seu infortúnio. Trata-se, aqui, do lugar de analisante, que padece
de seu sintoma, encontrando neste sua possibilidade de gozo, um gozo fálico, que
encarnando efeitos de linguagem, mantém o sujeito numa posição de vitimização
fantasmática. Destaca-se, em Antígona, seu sacrifício diante do imperativo divino, o que
nos possibilita pensar na posição do neurótico diante da lei insensata veiculada pelo
supereu, instância feroz e obscena que força o sujeito a gozar. O imperativo de gozo se
estabelece como uma exigência por um gozo pleno, que não conhece limites. Na medida
1
Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica.
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma, 1975-1976. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2007.
2
3
HARARI, R. Lo social y lo singular: de Antígona a Sócrates. In: ______. El Fetichismo de La Torpeza y
otros ensayos psicoanalíticos. Buenos Aires: Homo Sapiens, 2003.
48
em que o sujeito se mantém na posição de obediência a este mandato impossível de ser
cumprido, na busca por um gozo inalcançável, consegue encontrar apenas sofrimento e
destruição.
Sócrates, condenado a morte, não cede diante desta, sustenta sua posição de
forma tal que sua morte não é padecida à maneira de uma tragédia da qual é a vítima, mas
é uma morte pensada. Diferente de Antígona, em Sócrates fica marcada a singularidade.
Encontramos, aqui, uma referência ao Sinthome, ao fazer sem o qual o sujeito não pode
viver, que implica um gozo diferente, o gozo mental. É o “tudo, mas não isso” que marca
a ética do analista.
Lembremos que o analista se produz em sua análise, de forma que a partir de
seus sintomas padecidos, possa inventar-se enquanto Sinthome, sustentando um desejo
que não mais o desejo de ser desejado. A passagem de analisante a analista implica a
modificação da relação do sujeito com a demanda do Outro, o que viabiliza a
transformação do gozo fálico em gozo mental. Com o “mas não isso”, o Sinthome, afirmase uma possibilidade de sustentar uma ponta do Real, de forma que ao se subtrair da
demanda do Outro, se sustenta um fazer que não pede sentido ou significação. Aqui se
coloca a questão da responsabilidade, isto é, da resposta à demanda. “Assim, somos
responsáveis, porque nos confrontamos com a imperatividade de ter que dar resposta” 4, a
resposta requerida por vozes que interpelam o sujeito e das quais não se reconhece como
enunciador. Trata-se das falas impostas, sobre as quais Harari pontua que, enquanto
estruturas fônicas, podem ser sofridas como alucinações ou ser trabalhadas para, com o
que foi ouvido, fazer Sinthome, como ocorre com Joyce.
Encontramos nestas falas impostas a presença da voz como objeto a, o que
nos permite pensar uma articulação com o supereu. Gerez-Ambertín 5 ressalta que o
supereu se constitui a partir de resíduos verbais, é palavra desprendida do Outro, voz que
não se assimila, apenas se incorpora. Lacan, ao indicar o supereu como o objeto a voz,
coloca um real que se refere à intrusão do Outro pela via do imperativo de gozo. Colocase, então, a questão: podemos considerar que nas falas impostas se trata da voz tal como
esta opera no supereu, sendo a maneira do sujeito responder ao ser por ela interpelado o
4
HARARI, R. Como se chama James Joyce?: a partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan. Tradução
de Francisco Franke Settineri. Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Companhia de Freud, p.121, 2002.
5
GEREZ-AMBERTÍN, M. As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização.
São Paulo: Cultura Ed. Associados; Caxias do Sul: EDUCS, 2003.
49
que diferencia as posições citadas anteriormente? Se considerarmos uma articulação por
esta via, podemos pensar a questão de ir além do pai apresentada nas duas formas do
sujeito gozar, com o sintoma ou com o Sinthome. A primeira, o gozo fálico, parasitário,
implicado na tentativa de suprir a inconsistência do Outro, remetendo a um além, à busca
da completude em obediência ao imperativo de um gozo impossível. A segunda, o gozo
mental, partindo da possibilidade de prescindir dos significantes do Outro, mas servir-se
deles. Poderíamos dizer: prescindir daquilo que se impõe por meio desta voz, mas
servindo-se do que é escutado para daí fazer Sinthome, responder não do lugar de
obediência a uma ordem, mas de forma a fazer algo que, não por estar atrelado ao sentido,
mas por ser necessário, produz um gozo irredutível, ou seja, com esta invenção fora do
sentido, abrir a possibilidade de um gozo mental. Transformação do gozo que implica
pensar não em leis, mas na lógica do Sinthome.
50
Peter Pan na Terra do Não
Claudemir P. Flores1
“A autenticidade de uma coisa é o sumo de tudo
o que desde a origem nela é transmissível,
desde a sua duração material ao seu
testemunho histórico. Como este depende da
materialidade da obra, quando ela se esquiva
do homem através da reprodução, também o
testemunho se perde.”
Walter Benjamin (A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica)
Quem aqui não conhece a história de Peter Pan, ilustre morador da Terra do
Nunca. Peter, um menino que nunca irá crescer, e Pan, o deus grego dos bosques e vales,
que aterroriza quem neles se arrisca. Pan origina a palavra pânico e, pelos latinos, é
chamado de Fauno.
A peça inglesa, escrita por J. M. Barrie em 1911, entrou para a psiquiatria moderna
como nome de uma síndrome, a do adulto que se recusa a crescer: Síndrome de Peter Pan.
Será possível o sujeito voluntariamente se opor ao desejo de crescer? O que poderá fazer
essa criança Pã com esse adulto gancho?
A história mostra uma espécie de infância fixa, na qual o personagem Peter Pan
oscila nos lugares de filho e namorado da Wendy, uma mãe que ele arranjou para seu
bando de meninos carentes. Mãe com a qual poderá namorar e brincar continuamente
pelos bosques, num lugar puramente imaginário, sem cronologia. Reino de Pã, no qual
Cronos não entra.
Freud chamou de infantil um irredutível da infância, que fica recalcado no adulto
e poderá retornar no sintoma, como um Real não simbolizado. Por outro lado, em ‘Sobre
a psicopatologia da vida cotidiana’, Freud cita uma brincadeira como exemplo de ‘ato
casual e sintomático’. Ou seja, ele nos mostra como uma brincadeira pode ser sintomática
de um desejo recalcado. Porém, não só de recalque vivem os desejos.
No texto ‘Os poetas e o devaneio’, Freud afirma que um destino da pulsão, que
não passa pela repressão, é o da sublimação, presente também no fazer artístico. O poeta
faz uso de suas fantasias para esculpir uma obra com palavras. Assim, esse fazer é tido
por Freud como uma continuidade do brincar infantil, no qual o desejo não está recalcado.
Nesse percurso freudiano acima resumido, estão descritos dois distintos caminhos
dos desejos da infância: o recalque, com o consequente retorno no sintoma, ou a
1
Psicanalista Membro de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.
51
sublimação, como continuidade no fazer artístico. O brincar, por sua vez, pela
dependência do objeto-brinquedo, é típico da infância, possibilitando que a criança passe
em ato o que, de outro modo, era sintoma. Haverá outro caminho? Poderá um sujeito não
fazer arte nem fazer sintoma com o seu infantil? Poderá continuar brincando?
A partir da escola inglesa, sobretudo com Melaine Klein e D. Winnicott, o brincar
adquiriu importância fundamental na clínica com crianças. Winnicott, no seu livro ‘O
brincar e a realidade’, nos diz que o psicanalista ‘tem que estar disponível para brincar’.
O analista com crianças poderá ter que vir a brincar. Para tanto, precisa saber
brincar como uma criança, não o sendo. A especificidade do desejo do analista, nesse
caso, é fazer a criança. Para isso, é necessário saber brincar ali com aquela criança, na
singularidade da demanda dela. Ou seja, inventar uma criança que já não é, fazendo
criancionice.
Em “Além do princípio do prazer”2, Freud nos diz que o brincar é determinado
pelo principal desejo da criança, que é o de crescer e ser grande. Parece que o personagem
principal da peça representa uma oposição declarada a esse desejo infantil descrito por
Freud. A psicanálise permite outro endereçamento ao infantil. Se admitirmos que o saber
brincar como uma criança é imprescindível ao analista que se autorizou a analisá-las,
podemos dizer que tal analista é um Peter Pan que deixou a Terra do Nunca, sem que
tenha deixado de brincar.
Como sujeito, tendo sido analisante, esse analista pôde construir uma ética da
psicanálise, tomando a posição ‘tudo, mas não isso’. Tudo, menos deixar de brincar, com
isso fazendo sua entrada para a Terra do Não. Não ceder de seu desejo. Trabalhar
brincando, ao invés de brincar de trabalhar.
Para Winnicott, brincar é uma experiência. No livro já citado, ele nos diz que
“brincar é fazer”3. Adotando essa definição, e situado na posição denominada por Lacan
de desejo do analista, posso dizer que brincar ali como uma criança é um artifício, na
medida em que esse fazer deixou de ser natural, sabendo manter sua naturalidade. Já o
saber brincar ali com uma criança pode ser considerado sinthome de um analista, uma vez
que este foi levado a fazer outra coisa com o gozo compulsivo de sua meninice, que se
assim não fosse, restaria sintomático.
Benjamim chamou de aura a autenticidade de uma obra de arte, pelo fato de ter
sido produzida no aqui e agora, evento único que constitui sua singularidade 4 . A
autenticidade de uma psicanálise – seja ela com crianças, jovens, adultos, idosos - é a de
inventar uma análise a cada vez, diversa de todas as outras, única e irreprodutível. O
oficiar um por um do psicanalista é um artifício, na medida em que faz aqui e agora outra
coisa, algo inédito, com aquilo que está posto como dado. Podemos dizer que a aura de
uma análise decorre do fato de ser obra de um analista, podendo disso dar testemunho.
A título de epílogo, cito Inezinha B. Lied, que em seu texto ‘Artificiar’ afirma:
FREUD,S. “Além do princípio do prazer” [1920]. In.: ESB. OC. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
3
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre.
Rio de Janeiro, Imago, 1975. - Playing and Reality. London, Tavistock, 1971. p.63
4
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Disponível online em:
http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/benjamin_reprodutibilidade_tecnica.pdf
2
52
“(...) para sair da produção em série, da massa, a via que se abre assume um
caráter de insubordinação, de transgressão e de ‘violência’. Sim, fazer
violência com a língua. 5”
5
LIED, I,B. “Artificiar”. In.: Atas Reunião Lacanoamericana de Psicanálise da Bahia. Vol 2. –
Salvador, 1987.
53
Os nós e os nós
Fabricio Antonio Raupp1
Lacan construiu a topologia no meio dos laços, entre diferentes nós. Usou
fios, barbantes, papel, tesoura para trabalhar a questão do sujeito, pois para ele esta
questão é topológica2. Nesse contexto Lacan trouxe a cadeia borromeana. A cadeia não
veio como proposta de ilustrar as relações entre os registros Real, Simbólico e Imaginário,
mas sim como proposta de criar essas relações. Essa nova dimensão estrutural abraçou
uma palavra lacaniana usada para referenciar as relações entre os registros: a cadeia
borromeana 3 . O uso dela é uma metáfora para falar do RSI atrelado às experiências
clínicas.
Opero os nós, na falta de outros recursos. Não cheguei a eles de imediato, mas
eles me dão coisas, e coisas que, é precisamente caso de dizer, me amarram.
Como chamar isso? Há uma dinâmica dos nós. De nada serve [sert], mas cerra
[serre]. Enfim, pode cerrar, até mesmo servir. O que isso pode mesmo cerrar?
Alguma coisa que supomos estar encaixada nesses nós. Se esses nós são
pensados como tudo o que há de mais real, como ainda resta lugar para cerrar
alguma coisa? É justamente o que supõe o fato de eu colocar aqui um ponto.
Afinal de contas, não é impensável que esse ponto tenha a ver com a notação
reduzida de uma corda que passaria aí e sairia do outro lado. 4
O uso dos nós possibilita trabalhar questões das relações entre os três
registros. Em Freud, a relação entre o Simbólico e o Imaginário aparece de forma
ambígua5. Com isso pode-se trazer a questão da crítica do verdadeiro. Lacan questiona o
verdadeiro na medida em que o que é o verdadeiro é o verdadeiro do Real. Esse Real
encontra-se entrelaçado com o verdadeiro. Por isso, usa-se o nó para falar deles. O
verdadeiro nessa relação se autoperfura, pois seu uso criará sentido quando ele desliza e
é sugado pela imagem do furo corporal de onde ele foi emitido. O uso dos nós e das
superfícies possibilita trabalhar logicamente possíveis relações entre os elementos de uma
estrutura.
Psicanalista, Adjunto de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.
CORRÊA, I. Da Tropologia à Topologia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.
3
GRANON-LAFONT, J. A Topologia de Jacques Lacan. Tradução autorizada da segunda edição francesa.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
4
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 79.
5
Idem, ibidem p. 76.
1
2
54
A representação espacial das superfícies põe em questão, e até mesmo para
trabalhar, a concepção esquemática da estrutura. [...] A noção de espaço é aí
fundamental. Os nós, em contrapartida, apoiam-se unicamente sobre a
operação do corte. Nas superfícies, Lacan faz uso operatório do corte. E nisto
ele inova. Este uso é essencial à topologia lacaniana a serviço da psicanálise:
o corte dá conta do ato analítico, essencialmente a interpretação.6
A proposta de Lacan é mostrar o caso Joyce como um escape do que não
estava amarrado. Ele usa a cadeia borromeana para mostrar isso. O recurso topológico o
auxiliou no artifício da mostração. Os registros do Real e do Simbólico se apresentam
enlaçados formando uma cadeia de Hopf, onde um registro atravessa o buraco do outro.
E agora? Nó borromeano ou cadeia borromeana? Esse objeto, usado na
topologia, é composto por uma nodulação de elos. Há diferentes formas de nós e de
cadeias. Isso ocorre pelo número de elos que são usados e ainda de acordo com a forma
de nodular os elos. “É preciso notar que é um abuso de linguagem que se fala em nó
borromeano para designar este desenho de uma cadeia de três fios [ou elos].” 7Um nó
seria formado por um único fio, com um percurso singular onde não seria simplificado a
um anel. Entretanto, se há muitos fios pode-se falar em cadeia. Verifica-se na literatura
que o uso de nó e cadeia tem a mesma proporção. Mas Lacan, no Seminário 23, embora
use muito repetidamente o termo nó borromeo, também muito insistentemente, se corrige
dizendo que não é nó borromeo e sim cadeia. Ao longo de seu ensino, o psicanalista
Roberto Harari repete que nó é o olímpico, que se cruza atravessando o furo (ou buraco)
da outra consistência (anel). Portanto, para ser borromeano tem de ser cadeia.
Os elos constituintes da cadeia borromeana fazem entre eles um nó formando
a cadeia, ou seja, uma forma de nodulação. Nela há uma singularidade, se cortar qualquer
um dos seus anéis, todos se desligam. Considera-se essa a característica fundamental
desse objeto. Podem-se usar infinitos anéis para constituir uma cadeia, mas em topologia
geralmente usa-se a forma com três anéis e com menos frequência a forma com quatro
anéis e, ainda, com intervenção de outros objetos para complementar os pensamentos
analíticos.
O uso da cadeia borromeana, constituída por três anéis, tem um sentido de
mostrar o enlace dos registros psíquicos. Lacan pontua que “o caráter fundamental dessa
utilização do nó é ilustrar a triplicidade que resulta de uma consistência que só é afetada
pelo imaginário, de um furo como fundamental proveniente do simbólico, e de uma ex-
6
7
GRANON-LAFONT, J. Op. cit., p. 109.
Idem, ibidem p. 126.
55
sistência que, por sua vez, pertence ao real e é inclusive sua característica fundamental” 8.
Na qualidade de nó, digo cadeia, a borromeana se caracteriza por não transpassar o
buraco, mas não só por isso. Também pelas relações que se pode fazer como entre
enunciado e enunciação. Além disso, o artifício da mostração está vinculado ao sujeito
pelo uso da linguagem 9 . São as falas do sujeito que possibilitam a transmissão das
relações analíticas feitas como uso da cadeia borromeana.
Usa-se o recurso da linguagem para mostrar o Real pela topologia, porém sem
escapar do aforismo lacaniano não há metalinguagem. Por mais significantes que se possa
usar não há possibilidade de preencher o buraco existente na fala. Mostra-se algo fazendo
e mexendo nos objetos. Ao construir, recortar, furar, pode-se intervir da forma que for
necessário. Entretanto, não se terá uma completude.
O sujeito é termo da linguagem. Linguagem que não implica em conjunto
fechado: se assim fosse teríamos aí todos os elementos da atividade do
humano, e não precisaríamos ser representados (um significante representa o
sujeito sim, mas, se somente se para outro significante). A linguagem é o
conjunto de diferenças onde falta um significante. 10
A linguagem não tem a informação como fim. Se informar é o que se deseja
com a linguagem, o que se pretende com a informação? Lacan fala da função humanizante
da linguagem. Entretanto, ao passo que ela é simbolizada, viabiliza-se também uma
dimensão mortal11. Isso implica que a palavra é a morte da coisa. Então, a coisa esvanece
para a palavra existir. Mostram-se os objetos topológicos e fala-se sobre eles.
Provavelmente por isso que Lacan utiliza a fala para mostrar a topologia e o seu uso.
Os matemas e os nós são dois exemplos de estruturas onde aparece o discurso
lógico matemático de Lacan. Através dos matemas, Lacan apresentou um modelo de
linguagem articulada ao registro do simbólico. Os nós são estruturados essencialmente na
lógica da topologia. Suas operações estão ligadas ao registro do Real. De acordo com
Roudinesco “a elaboração do matema permite a Lacan centrar de novo sua interrogação
sobre a questão da ciência no domínio da transmissão do saber psicanalítico” 12. A autora
ainda comenta que “o mergulho no universo dos nós, ao contrário, tem por efeito destruir
8
LACAN, J. Op. cit., p. 36.
VAPPEREAU, Jean-Michel. Nudo: La teoría del nudo esbozado por J. Lacan. Buenos Aires: Kliné, 2006.
10
CESAROTTO, O. (Org.). Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 19.
11
VANIER, A. Lacan. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
12
ROUDINESCO, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São
Paulo: Companhia da Letras, 2008, p. 484.
9
56
o que o matema pretendia construir”13. Lacan acreditava que só poderia chegar ao Real,
ainda que por pontos, através da ropologia, regido pelos nós, tranças, barbantes e toros.
Isso foi idealizado pelo fascínio da história da descoberta do inconsciente freudiano.
A cadeia não veio como proposta de ilustrar as relações entre os RSI, mas sim
como proposta de criar essas relações. Lacan se ateve em nomear, escrever, formular e
criar termos para falar das relações que os registros mantém entre si. Lacan comentou que
os três elos vieram como um anel para o dedo. Essa nova dimensão estrutural abraçou as
palavras lacanianas, usadas para referenciar as relações entre os registros RSI e a cadeia
borromeana.14
A consistência dos três elos se suporta pelo Real do nó. Se há relação entre os
registros isso acontece devido ao fato da existência, do furo e da consistência estarem
dispostos na cadeia borromeana. Os registros RSI conservam-se ligados. Eles
desempenham em três devido à adição do Imaginário aos outros dois registros. A tríade
existe pela adição do Imaginário como terceiro15. A consistência refere-se ao Imaginário,
pois a cadeia Borromeana só existe pela adição dos três. Entretanto, cada anel tem a sua
consistência. Falar do Real é falar de algo do Imaginário e do Simbólico sempre na
condição tríade. Na cadeia há dois anéis sobrepostos e livres e um terceiro que realiza a
nodulação. Para Lacan, esse terceiro seria o anel que possibilita o ex-sistir. “Ex-sistir quer
dizer, mais precisamente, se situar alhures, noutro lugar, se bem que a presença seja, no
entanto, necessária aos outros dois como ponto de apoio, de escora de nodulação.” 16
A consistência e a existência estão em relação. Pode-se dizer que o existente
gira em torno do consistente. A existência está ligada ao registro do Real, pois é ela quem
apaga o sentido. O Real é aquilo que não pode ser simbolizado, o que está fora do
sentido 17 . Lacan fala do furo como equivalendo ao Real, posteriormente fala como
equivalendo ao Simbólico. O que se pode perceber é que Lacan distingue o furo da
existência. O furo permite a passagem dos anéis, assim, possibilitando a consistência
deles. Esse furo permite a nodulação dos registros. “Assim se definem e se resumem essas
relações ou essas não-relações que mantêm entre si os três elos da cadeia borromeana. A
13
Idem, ibidem, p.485.
GRANON-LAFONT, J. Op. cit.
15
LACAN, J. Seminario 22: R.S.I. (1975[1974]) Versión completa de la Escuela Freudiana de Buenos
Aires. Inédito.
16
GRANON-LAFONT, J. Op. cit., p. 140.
17
LACAN, J. Op. cit.
14
57
consistência, como imaginária, a existência como real, e o furo como equivalente ao
simbólico.”18 A topologia aborda as questões da existência, da consistência e do furo com
o uso dos objetos topológicos. A mostração dos registros RSI é possível porque há
topologia. São esses artifícios que fazem a ligação entre a teoria e as questões clínicas.
18
GRANON-LAFONT, J. Op. cit. p.143.
58
Tudo, mas não isso
Inezinha Brandão Lied1
O fim de análise é quando se girou ao redor duas vezes;
quer dizer, reencontrar aquilo do qual se está
prisioneiro.
Lacan, Seminário 25
A proposição topológica enuncia que o mesmo é o
mesmo em seu absoluto diferenciar-se. Ou que a
diferença é diferença em seu absoluto 'ser o mesmo'.
E. Trías, Os limites do mundo.
1. INTRODUÇÃO
"Tudo, mas não isso", essa era a posição de Sócrates, preferiu morrer, "aceitando"
sua condenação, tomando cicuta, mas não como um ato "suicida melancólico" e sim
porque não cedeu em seu desejo.
Lacan toma a posição de Sócrates como uma posição singular e logo na primeira
classe do Seminário 23, de 18 de novembro de 1975, anuncia: "o 'mas não isso' é o que
introduzo como meu título deste ano como Sinthome". Vale marcar que o singular não é
o particular, porque este se define pelo universal. Portanto, singular e particular, não são
sinônimos ou equivalentes. Mas para chegar ao singular, é preciso transitar, via
associação livre, entre uma serie de particulares. Sobre este ponto vejamos o que diz
Harari: "De tal forma, sobrevém o encontro 'azaroso', que não é jamais com o verdadeiro
[...] Assim se especifica um destino, já que o singular é o destino." 2
Ao início da sétima classe, de 17 de fevereiro de 1976, Lacan fala de sua busca
marcando uma mudança em sua posição, pois aqui já não sustenta mais a posição inerente
a frase que tomava de empréstimo a Picasso: eu não busco, encontro. Agora verifica que
não é possível encontrar sem buscar e empreende sua busca, explicitando o que implica,
para ele, o termo busca: "girar ao redor". Localizamos nesta referência uma crucial
articulação com o fim de análise e com a topologia. Por quê? Porque a partir do Seminário
1
Analista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica.
HARARI, R. “No hay desenlace sin reanudación”. In: De que trata la clínica lacaniana? Buenos Aires:
Catálogos, 1993. p.202.
2
59
23 a problemática do final de análise é recolocada, poderíamos dizer, inclusive,
revitalizada com a topologia e a introdução da quarta consistência que amarra de maneira
singular os três registros da experiência psíquica – Real, Simbólico e Imaginário.
Precisamente nesta quarta consistência, radica a marca singular de cada um. A passagem
da cadeia Borromea de 3 consistências para a cadeia Borromea de 4 consistências é
fundamental, porque com esta proposta temos as três consistências, R, S, I (homogêneas)
e mais uma que fará a diferença, a qual introduz o elemento diferencial, singularizante. É
singular, portanto não se inclui na dialética geral-particular (universal-particular).
A partir da obra de James Joyce e da função desta na vida do escritor irlandês,
Lacan vai forjando o conceito de Sinthome, artificiando com a topologia e a arte.
Em sua busca, Lacan encontra ...outro modo de colocar o fim de análise.
2. FIM DE ANÁLISE
A questão do fim de análise implica um saber, mas não qualquer, se trata de um
“saber-fazer-ali-com seu sintoma” 3 . Um saber enlaçado inventivamente a um fazer.
Saber–fazer com seu destino, com a não-relação sexual, sustentando a dor de existir.
A constelação inerente ao fim de análise é colocada por Lacan com relação ao
luto – de um luto do que não existe, do irremediavelmente perdido sem sequer tê-lo tido.
Tal luto guarda distância e é muito distinto do implicado em suportar a perda do que se
crê ter tido. Em outras palavras, luto pela inconsistência do Outro; desse grande Outro
que o neurótico crê consistente.
Ao interrogar-se sobre a eficiência em nossa práxis, no Seminário 24, Lacan
retoma as três identificações trabalhadas por Freud em Psicologia das Massas e Análise
do Eu, – identificação por amor ao pai, identificação histérica e identificação ao traço
(einziger Zug) – e essa retomada sobre a identificação o leva a recolocar o tema do fim de
análise – “a que se identifica alguém ao fim de análise?”4
Lacan trabalha esta questão para desmontar o entendimento de que o fim de
análise conduz a identificação com o analista – ser como o analista – colocada em termos
de uma idealização da identificação5 (Tal identificação ocorre mas não deve ser um alvo,
LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédito.
LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédito.
5
LACAN, J. Seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 1988, 3ªedição. p. 257.
3
4
60
um objetivo procurado; ao contrário, a identificação com o analista é um momento da
análise que deve ser atravessado para conduzir ao fim de análise.
Ao descartar a identificação com o analista no fim de análise mostrando sua
insuficiência, Lacan lança uma nova pergunta: poderia alguém se identificar com seu
inconsciente? Logo responde dizendo que de forma alguma poderia ser assim, pois o
inconsciente segue sendo o Outro. Se no inconsciente, se trata do Outro (Autre), se no
inconsciente “resta o Outro”6 como ensina Lacan, e se uma análise deve obter a caída ou
término da convicção da consistência desse Outro, “situando-o como uma criação a qual
o neurótico amarra, inibe, sintomatiza sua vida, gozando do inconsciente que diz
determiná-lo e impotentizá-lo” 7 , estamos ante a impossibilidade de fazer coincidir
identificação com o inconsciente e fim de análise.
Então, se ao fim de análise a identificação não é com o analista e nem tampouco
com o inconsciente, reinstalamos a pergunta: com o que se identifica alguém no fim de
análise? Seguindo o desenvolvimento do Seminário 24, Lacan responde de forma
interrogativa: “isso seria, ou não, identificar-se tomando suas garantias, uma espécie de
distância, identificar-se com seu Sinthome?”8
Seria então um novo tipo de identificação, com distância e garantias? Mas
distância e garantias do quê? – Distância de seu sintoma agora processado por via de um
artificiar, reinventado, no que for.
Dessa forma seria possível pensar também distância com relação ao Outro, não
mais consistente, mas agora inconsistente; não mais pleno, mas agora barrado, pois o
Sinthome coloca um limite à demanda – o “tudo, mas não isso” socrático. É nesse
limite, nessa impossibilidade de fazer mais concessões outorgadas ao Outro que Lacan
vai situar a identificação com o Sinthome. Distância que possibilita garantias, por
mínimas que sejam, de obtenção da pequena cota de liberdade de cada um, obtida já não
pelo sujeito, mas pelo LOM (por homofonia com l’homme – o homem), caracterizado já
não pelo saber que não se sabe – o do inconsciente – mas pelo “fato de saber”9, o saberfazer conforme o Seminário 23, que nos Seminários 24 e 25 será trabalhado em sua
declinação ao saber-fazer-ali-com (savoir-y-faire-avec).
LACAN, J. Seminário 24. L’insu... Classe de 16.11.76. Inédita.
HARARI. R. Intraducción del Psicoanálisis. Acerca de L’insu…, de Lacan. Madri: Sintesis, 2004. p.
74.
8
LACAN, J. Seminário 24. L’insu. Classe de 16.11.76. Inédita
9
LACAN, J. Seminário 24. L’insu. Classe de 21.12.76. Inédita.
6
7
61
O Sinthome participa de uma condição originária – a do sintoma. É desta condição
que advém o “saber-fazer-ali-com”. Com o quê? – Com o que deu lugar ao sintoma,
provocando agora um efeito novo. Tal ordem de saber-fazer-ali-com implica o artifício.
Este artificiar marca a identificação com o Sinthome.
De tal forma identificar-se com o Sinthome aponta a ser “um com”, e não com a
cisão, própria do sujeito dividido. Identificação com o que significa para cada um, esse o
um desamarrado, totalmente só.
Ao propor que o fim de análise se dá com uma identificação com o Sinthome,
Lacan articula também como alvo do fim de análise, a passagem do não-ser ao ser,
próprio de toda identificação: ser Um com o Sinthome. Crê no ser e não no sentido,10
posto que LOM não pergunta pelo sentido, não busca respostas, daí sua condição de
inanalizável. Não importa o que faz ou porque o faz e sim que lhe é necessário fazer.
Reiteramos que é nisso que reside a pequena cota de liberdade, suficiente para “gozar da
vida”, “gozar do Outro, mentalmente”. Gozo da vida, gozo do ser.
Para pensar a mencionada passagem do não-ser ao ser, implicada na identificação
com o Sinthome, vamos tomar da filosofia platônica, o termo de poiésis (um substantivo
que se forma do verbo poiein). Poiésis se define como causa que faz que o que não é
chegue a ser (in Eugênio Trías), ou seja, consiste em fazer passar do não-ser ao ser. E não
é a isso que nos referimos quando falamos que nossa práxis é poiética? É uma maneira
de conceber a experiência da psicanálise como geradora de uma poiésis.
Procurando avançar esta questão lançamos mão do conceito de Eros produtivo,
conforme apresentado pelo filósofo espanhol Eugênio Trias em El artista y la ciudad: “A
meio caminho entre o Desejo e a Ideia, aparece o platônico conceito de Eros produtivo,
esse impulso que não se acalma com visões, senão com obras, nem com contemplações,
senão através de ações [...] e não é casual que no Banquete, antes de definir a Eros, acuda
Platão ao termo de Poiésis, ao que traduz genericamente como passagem do não-ser ao
ser. [...] Isso significa que o impulso erótico só encontra sua culminação mediante um ato
de produção ou criação de que resultam obras.”11. Claramente temos aqui a noção de um
fazer, ao qual acrescentamos o saber, saber-fazer, do qual pode resultar “qualquer
10
11
HARARI, R. Qué sucede en el acto analítico? Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000.
TRÌAS, E. El artista y la ciudad. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976. p.42.
62
coisa” 12 , em sua condição necessária, poiética inventiva, mas não antecipável, não
previsível.
Mas, o que seriam obras neste contexto? "Qualquer objeto 'caído' como
consequência de um trabalho, onde se 'libere', onde exploda, a poiética invenção da
linguagem." 13 Esta é a via idônea para liberar, abrir o caminho para a invenção de
significantes novos.
3. TUDO, MAS NÃO ISSO – solidão acolhedora
O Sinthome é da ordem do necessário, porquanto não cessa de se escrever. É o
“tudo, mas não isso”; sem “isso” o sujeito não pode viver, tal é a condição sinthomática,
necessária para seguir vivendo. Impensável, insuportável a vida sem “isso”.
O “mas não isso” da fórmula “não aponta a um “isso” fixado e identificável, senão
que pensa uma dimensão de segredo, de necessária privacidade e separada da lógica
fálica”14. Dimensão que tem a ver, como já o dissemos, com uma maneira de responder
a demanda do Outro, colocando um limite – podes me pedir qualquer coisa, mas não isso
– condição inegociável portanto, insubstituível, não metaforizável. Na neurose, tal limite
não se apresenta, ao contrário, o neurótico responde prontamente a demanda do Outro,
conforme determina o sintoma, marcando assim posições subjetivas distintas.
Assim, o Sinthome em sua condição de intransitividade, se dá em hiância com o
Outro.
A posição subjetiva implicada no "tudo, mas não isso" é uma posição onde o
sustentado é o peso decisivo da singularidade. Singularidade que, mediante um artifício
permite demarcar do todo, da massa, colocando no mundo a marca própria de cada um.
"Tudo, mas não isso", saber-fazer com seu destino, sustentando o peso decisivo da
singularidade. Ser da falta e não da falta em ser.
No Seminário 19 “...ou pire”, Lacan introduz a locução ‘Y a d’l’un’, ‘Há d’Um’.
Trata-se de Um irredutível, derradeiro. Não é Um unificante, pois dele se participa como
não-todo. Há d’Um, completamente só. Uniano. Unicidade e não unidade. A capacidade
do analisante para estar só, como um dos indicadores sustentados por Winnicott para um
12
HARARI, E. Puede ser cualquier cosa? IN: REdTÓRICA N° 2. Publicación de Mayéutica Institución
Psiconalítica.
13
HARARI, R Qué sucede en el acto analítico? Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. p.277.
14
HARARI, R. Cómo se llama James Joyce? Buenos Aires: Amorrortu, 1996. p.40.
63
fim de análise. Sustentar a solidão radical, o que não exclui outros e por isso não tem a
ver com isolamento, mas sim com outra forma de gozar, um gozo mental. Poderíamos
aqui adjetivar esta solidão como acolhedora – "solidão acolhedora" 15 - (Massimo
Cacciari)
Para concluir, destacamos que o saber-fazer-ali-com convoca três características
relevantes do Sinthome, conforme propõe Harari: solidão, singularidade e artifício. A
solidão, pelo fato de que não há lugar a respeito do Outro; “singularidade, pela invenção
de um significante novo diferencial” e o artifício, pois seja o que for é “feito com arte”.
15
CACCIARI, M. Soledad acojedora. De Leopardi a Celan.Madri: Abada Editores, 2004.
64
O artifício do analista e os fins de
análise na clínica com crianças
Luana de Araújo Lima Vizentin1
Um primeiro convite é sempre uma aposta.
O segundo, é sinal de valentia, renovada pela posição desde a qual um
analista é convidado a trabalhar2
Neste Painel, escolhi compartilhar mais que respostas, questões.
Possibilidades outras, de pensar a clínica psicanalítica desde a criança. Porque algumas
respostas também me faltam e, por essa condição, provocam desejo desta clínica a qual
também se impõe o meu artificiar.
A escrita da clínica com crianças é tão antiga quanto a própria Psicanálise,
mas muitos ainda se perguntam se é possível um analista sustentar-se nesse saber-fazer e
ainda ancorá-lo como psicanalítico. Existiria, assim, uma clínica psicanalítica especialista
de crianças, de adolescentes… e outra de adultos? Já respondendo que não, qual é a
função do analista que também atende crianças? Para pensar a Psicanálise com crianças
é necessário articular boa parte da teoria psicanalítica, posto que são uma e mesma coisa,
mas pretendo delimitar-me por algumas pontas.
Freud, Lacan, Harari e tantos outros analistas ensinam-nos, a cada re-leitura,
que a Psicanálise faz, se faz com o sujeito do inconsciente. Se a Psicanálise trabalha com
sujeitos e se um analista propõe-se a atender desde uma clínica com crianças, é possível
falar de sujeito com pessoas de tão pouca idade? O que é um sujeito? O que é uma criança?
Seria, a idade, ofertada por Cronos, a verdadeira senhora do inconsciente, determinante
das condições de análise? Ou seria a limitação da fala, posto que se um analista pauta-se
pelo que um analisante diz e se uma criatura não fala, seriam inanalisáveis aqueles que
não falam? Quais são os critérios de analisabilidade?
1
Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica.
FLESLER, A. As intervenções do analista na análise de uma criança (2010). In: Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Porto Alegre/RS, n. 40, jan./jun. 2011
2
65
Em seu saber-fazer, um analista procura escutar qual é a posição do sujeito
frente ao discurso do Outro, posto que o sujeito precisou ocupar um lugar no Outro. Antes
de estruturar-se como sujeito, a criança carece responder no lugar de objeto ao desejo
materno. Antes de ser sujeito de desejo, resta ser objeto do Desejo-da-Mãe. A partir dessa
condição inicial, em que a criança ali-é-nada, necessária para vir-a-ser, cabe ao Nomedo-Pai intervir e provocar os efeitos de Lei.
Pensar a criança como um lugar no Outro é pensar que um analista necessita
escutar a criança do Outro, é verificar que lugar a criança ocupa para estes que a
rodeiam. Dependendo de como a mãe submeteu-se à castração em seu Édipo e de como
a criança está submetida ao desejo do Outro (primordial e substitutos) será possível atestar
a constituição subjetiva de um infans, mesmo que a posteriori3.
Ao considerar que lugar o Outro confere à criança enquanto objeto, um
analista pode escutar como a criança está sendo atravessada na e pela linguagem e para
qual caminho ela se dirige: 1) se para reconhecer que a mãe é castrada e seguir no
desenvolvimento de uma neurose pelos efeitos da repressão; 2) que a mãe é, mas não é
castrada, pois é prova viva do objeto materno (fetiche) ao qual está identificada,
compelida à perversão via renegação da castração na mãe, ou ainda, 3) se a criança servese de objeto a em completude ao Outro e forclui a castração na mãe, realizando o fantasma
materno e estruturando-se em uma psicose4.
Ainda que a criança não fale, ela é falada. Deste modo, a clínica com crianças
discorre nos mesmos pressupostos da nossa Psicanálise (freudo-lacaniana), embora
reconheça-se o caráter singular em suas peculiaridades e especificidades por envolver o
brincar, o infantil em constituição e a escuta do Outro no mais vivo oscilar dos três
registros (Imaginário, Simbólico e Real). O lugar conferido ao brincar, ao desenhar e ao
jogar na análise é de promotores de uma escuta, escuta de um texto que foi ou está sendo
cifrado. E, por mais que o tratamento seja com a criança, é uma clínica que reflete, precisa
e depende, sobretudo, do manejo transferencial com os pais que demandam, questionam
ou mandam seus filhos ao analista.
3
LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In.: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369-370, 2003.
4
FLESLER, A. As intervenções do analista na análise de uma criança (2010). In: Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Porto Alegre/RS, n. 40, p. 18-30, jan./jun. 2011.
66
E, quanto ao brincar de um analista, este pode ser o seu Sinthome? Em Como
se chama James Joyce?, Harari 5 reporta-nos a lição de Lacan que “alguém só é
responsável na medida de seu savoir-faire” e “alguém que seja possuidor de um savoirfaire […] é alguém que sabe-fazer uma atividade com certa habilidade singularizadora”.
Enquanto analistas, somos responsáveis porque confrontamo-nos com a imperatividade
de responder em função do nosso saber-fazer.
O savoir-faire implica, assim, em um fazer habilidoso, um fazer com destreza
e responsabilidade. O savoir-faire erige-se, portanto, como um dos fins de análise. Pela
via da identificação com o Sinthomem, o saber-fazer-ali-com implica na arte-manha de
fazer daquilo que deu lugar ao sintoma, algo inovador, momento em que não há mais
sujeito, mas LOM. Reside em um modo artificiador, um novo posicionar-se diante do
Outro e na vida.
E, por ser da ordem do artifício, o Sinthome pode ser qualquer coisa. Em uma
passagem do Seminário 23, Lacan declara que, justamente, por aquilo que Joyce afirma
em sua escrita, de modo pleno e especialmente artístico, é possível dizer que se tem um
savoir-faire e que isso é o seu Sinthome. “Sinthoma tal que não há nada a fazer para
analisá-lo”6, pois está desabonado do inconsciente, não pede interpretação. Diz ainda,
Lacan7: “Não penso que a psicanálise seja um sinthoma. […] Penso que não se pode
conceber o psicanalista de outra forma senão como um sinthoma […] Por isso a
psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai.
Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele”.
E, quanto à direção de uma análise com crianças, estariam apenas para o
término das sessões em algum momento, mas não para um fim enquanto finalidade
alcançável, sendo assim, análises inacabadas? Se, ao longo do processo analítico,
escutam-se transformações estaríamos falando de que fins de análise?
É fato que algumas crianças transformam coisas quando em análise e fazem
algo com o sofrimento outrora trazido ao analista, mas de que se trata essa transformação?
Algumas crianças passam do sintoma a um desejo sublimado e há ainda as que se retiram
(e são retiradas) de uma posição exclusivamente objetal no Outro. Mas isso resultaria
5
HARARI, R. Como se chama James Joyce?: A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan (1943).
Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2002.
6
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 122, 2007.
7
Idem, ibidem, p.131-132.
67
dizer que do lugar de objeto gozoso, algumas passam ao lugar de sujeito da enunciação?
Há modificação na posição subjetiva?
Entre o que se espera e o que realmente ocorre na constituição subjetiva, há
sempre lacunas pelas quais um analista pode operar. É desde este entre-curso lógico que
um analista pode remeter seu saber-fazer mesmo na mais tenra idade. Se a Psicanálise é
feita caso-a-caso, com crianças não seria diferente: “as intervenções [de um analista]
apontam a um só fim: que haja jogo do objeto [a] para que o sujeito possa existir”8, posto
que é na hiância presença-ausência que nasce um sujeito.
Autêntico é pensar que a direção de uma análise com criança ruma ao
nascimento do sujeito. E, mesmo que de uma análise só é possível dizer ao seu término,
resta-me a questão: Os fins de análise com crianças delimitar-se-ão às sublimações, ao
confrontamento com a rocha viva da castração 9 ou poderão ir mais além, com
transformação de gozos, atravessamento de fantasma, novação sinthomática10 11
Em uma clínica do infantil, para além da barreira cronológica e de estruturas
legadas, o saber-fazer-ali-com de um analista apresenta-se para o sujeito da Psicanálise,
mesmo que este ainda esteja por vir. E, quando o brincar faz parte do artifício de um
analista, tem-se as provas de que ali ele põe em ato seu Sinthome. A clínica com sujeitos
em constituição, ou mesmo com não-neuróticos já constituídos, é parte do ofício
artificiado por alguns analistas que sabem-fazer produtivamente com essa clínica, sem
questionar-se do que, como e com que (a-)sujeitos fazem, ao modo sinthomático e
novador. E, se o Sinthome de um analista reverte-se em sua clínica como tal, o “saber,
então, fazer-ali-com: disso somos responsáveis; essa é a nossa responsabilidade”12 esse é
o nosso artifício inovador e singular.
FLESLER, A. Os tempos do sujeito (2008). In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre –
APPOA. Porto Alegre/RS, n. 35, p. 178-192, jul./dez. 2008.
9
FREUD, S. “Análise terminável e interminável”. [1937]. In.: ESB. OC. Vol. XXIII, p. 223-270. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
10
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975-76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
11
LACAN, J. Seminário 15: O ato psicanalítico [1967-1968]. Porto Alegre: Escola de Estudos
Psicanalíticos. Publicação para circulação interna.
12
HARARI, R. Como se chama James Joyce?: A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan [1943].
Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Campo Matêmico, p.126, 2002.
8
68
E : Diz-mensão do Sinthome em Joyce
Marcio Bayestorff1
“Meu nome é Legião, pois somos muitos.”2 Assim respondeu o demônio que
habitava o possesso de Gerasa no Evangelho de Marcos. Assim responderia o Eu, se
pudesse fazê-lo. Como se chama James Joyce? Dois de seus nomes são Stéphane
Mallarmé (1842 – 1898) e Lewis Carroll (1832 – 1898).
Stéphane Mallarmé
Lewis Carroll
Figura 1 – Fotos de Mallarmé e Carrol.
Mallarmé. Sua obra-prima é o poema naufrágio Um Lance de Dados Jamais
Abolirá o Acaso (1897). Como o Finnegans Wake, é estruturado em uma circularidade na
qual a última palavra remete à primeira relançando infinitamente o movimento.
1
2
Psicanalista, Participante da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica.
Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. São Paulo: Editora Canção Nova, p. 1248, 2008.
69
Figura 2 – Página de Un Coup de Dés Jamais N’Abolirá Le Hasard3.
“Temida e famosa é a obscuridade de sua lírica.”4 Hugh Kenner, que está no
Seminário 23 como comentador de Joyce, nos diz: “The fragmenting of the aesthetic idea
into allotropic images as first theorized by Mallarmé, was a discovery whose importance
for the artist corresponds to that of nuclear fission for the physicist.” 5 Mallarmé, escrevia
liberando o que chamava de “subdivisões prismáticas da Ideia” 6 , “convertendo a
potencialidade infinita da linguagem no verdadeiro conteúdo de sua poesia” 7.
NADA
TERÁ TIDO LUGAR
3
Disponível em: http://www.wired.com/gadgetlab/2010/09/e-books-are-still-waiting-for-their-avantgarde/mallarme-coup-de-des-2/ (Acesso em 20/10/2013).
4
FRIEDRICH, H. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, p. 95, 1991.
5
KENNER, H. The Poetry of Ezra Pound apud Campos. Mallarmé. São Paulo: Editora Perspectiva, p.
178, 1991.
6
MALLARMÉ, S. Prefácio a Um Lance de Dados. In Campos op. cit. p. 151.
7
FRIEDRICH, H. op. cit. p. 104.
70
SENÃO O LUGAR
EXCETO
TALVEZ
UMA CONSTELAÇÃO
fria de olvido e dessuetude
não tanto
que não enumere
sobre alguma superfície vacante e superior
o choque sucessivo
sideralmente
de um cálculo total em formação
vigiando
duvidando
rolando
brilhando e meditando
antes de se deter
em algum ponto último que o sagre
Todo Pensamento Emite um Lance de Dados8
8
MALLARMÉ, S.Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso. In Campos op. cit. p. 170 – 173.
71
Sobre o “Lance de Dados”, Paul Valéry comentou: “Ele [Mallarmé] tentou,
penso eu, elevar enfim uma página à potência do céu estrelado!” 9 Mallarmé, por sua vez,
dizia: “Versos não se fazem com ideias, mas com palavras.”10
Lewis Carroll. O autor das Alices. Inventor da palavra-valise. Um dos mestres
do nonsense. “Como sistema, o material manipulado pelo nonsense são as palavras. Um
jogo de equilíbrio entre significados diversos e por isso [...] seu terreno mais fértil são os
trocadilhos e palavras-valise”.11 “Em Carroll [...], o não-sentido se opõe à ausência de
sentido, produzindo um excesso de sentido. É o que Deleuze entende por non-sense [...]”12
já que ao final esse excesso de sentido esvazia-se. Humpty Dumpty, exemplar da lógica
nonsense em Carroll está misturado no Finnegans Wake e famosa é sua explicação do
poema Jaguadarte.
Figura 3 – Humpty Dumpty.
9
Disponível em:
http://www.revistainvestigacoes.com.br/Volumes/Vol.23.N1/Investigacoes23N1_Marcio-Freire.pdf
(Acesso em 20/10/2013).
10
FRIEDRICH, H. Op. Cit. p. 107.
11
UCHOA, L. Aventuras de Alice / Lewis Carroll. São Paulo. Editora Summus. p. 21, 1980.
12
UCHOA, L. Op. Cit. p. 24.
72
Humpty Dumpty nos diz que quando usa uma palavra “ela significa
exatamente aquilo que ele quer que signifique... nem mais nem menos.”13. “Glória”, por
exemplo, significa “argumento arrasador”. O primeiro verso do Jaguadarte é muito
conhecido e ressoa amplamente o Finnegans Wake:
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos
Estavam minsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.14
Quanto à cadeia bo de três e quatro consistências, Lacan nos diz no Seminário
23: “Se, por um lado, o nó é abstrato, ele deve, entretanto, ser pensado e concebido como
concreto”15 e disso vem, por um lado, que temos uma correspondência entre as operações
na cadeia e no sujeito de maneira que temos de visualizar-entender-escutar um no outro
e vice-versa.
Figura 4 – Nó Borromeu.
13
UCHOA, Leite. Op. Cit. p. 196.
CARROL, L. in UCHOA, Leite. Op. Cit. p. 147.
15
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 37, 2007.
14
73
A cadeia bo de três é o parlêtre, sujeito do inconsciente e padecente do malestar na cultura “cujo corpo”, diz Lacan, só tem estatuto respeitável, no sentido comum
da palavra, graças a esse nó”.16
Com Lacan e Harari, ao longo do Seminário 23 e de Como se Chama James
Joyce?, vemos como em Joyce há uma demissão paterna que é suprida na amarração.
Harari: “a carência do pai provoca esse defeito de enlaçamento e determina, portanto, a
chamada por Lacan, “compensação enlaçada”17. Esta se verifica mediante a introdução
de um cerzido, de uma consistência – ou elemento – adicional. Reside aí, de acordo com
essa primeira aproximação de Lacan, o Sinthome de Joyce: é esse fio artificiado, é o
acréscimo cosido dessa forma, o que evita o desamarramento.” 18 “Em Joyce a supleção
[...] já se escreve no nó falhado.”19
Figura 5 – O ego que corrige.
Joyce, em mais de um sentido, existe por causa de seu Sinthome. Esta quarta
consistência, esta capacidade de genuss e leistung, em Joyce, sabemos, corresponde à sua
16
LACAN, J. Op. Cit. p. 37.
Com esta expressão Harari faz referência a Escritos “inspirados”: esquizofrenia (1931), texto de Lacan
que antecede o Seminário 23 em 44/45 anos.
18
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e
Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, p. 162, 2003.
19
HARARI, R. Op. Cit. p. 162.
17
74
escrita sobre a qual podemos dizer isto que Harari nos traz como sendo do Sinthome:
“desfaz o sentido: gera enigmas; deixa stupéfaire.”20
Estupefação é uma palavra absolutamente adequada para dizer do que gera a
escrita joyceana. O mesmo pode-se dizer da noção de Sinthome ligada a ela. Todo o
ensino do último Lacan, segundo a periodização proposta por Harari, tem esse caráter
surpreendente por causa das muitas novações postas em cena, mudanças violentas de
paradigma, novos conceitos e noções ativadas a todo o momento. Saltos tão vertiginosos
a ponto de acusarem Lacan de já não saber mais o que estava dizendo. 21 No entanto, o
que presenciamos é um rigor extremado em que é necessário estar atento às palavras, aos
sinais, às notações e ter presente eventuais dificuldades nas traduções e diferenças
editoriais sendo que a desatenção a esses pontos pode sugerir caminhos equivocados ou
mesmo dificuldades e obstáculos para trabalhar com as, já ásperas, particularidades do
ensino de Lacan. Um exemplo do rigor extremo do ensino de Lacan, encontramos a partir
da notação “Ee”.
No Seminário 23 Lacan ativa esta notação, “Ee”, para tratar da escrita
joyceana. O conteúdo que ela comporta torna-a central para o que a psicanálise pode dizer
a partir de Joyce. É interessante, no entanto, que esta notação apareça uma única vez em
todo o seminário. O que segue abaixo é uma imagem deste momento, exemplificado na
versão dita “oficial” do Seminário 23 de Lacan:
20
21
HARARI, R. Op. Cit. p. 247.
Conforme HARARI, R. Op. Cit.
75
Figura 6 – Imagem do Seminário 23 de Lacan mostrando a notação E e22.
Lacan lê esta notação assim: “E índice e”. Em um ponto inicial do Seminário 23
Lacan especifica a leitura de S1 como S índice 1 com o que se poderia tentar reconhecer um
funcionamento análogo entre um e outro conceito. Pois não é disso que se trata.
Sobre “Ee” diz Lacan: “trata-se da enunciação e do enunciado. O enigma consiste na
relação do grande E com o pequeno e. [...] É uma questão de enunciação. E a enunciação é o
enigma elevado à potência da escrita.”23 Neste ponto é necessário atentar para o detalhe de que,
assim como vista até agora, a notação “Ee” está em desacordo com o que o próprio Lacan diz em
seguida: “elevado á potência”. Teria Lacan se enganado dessa maneira? É certo que não. E sendo
assim temos que “elevado á potência” significa que em “E e” o índice está no lugar errado e que,
assim como foi apresentada, constitui um erro conceitual posto em cena na versão “oficial” deste
Seminário 23 e com consequências teóricas gravíssimas ao desencaminhar a direção deste
conceito. A confirmação disto encontramos em Como se chama James Joyce? onde a perspicácia
e atenção de Harari trazem o “e” pequeno sobrescrito, Ee, com o que ficam alinhadas a notação e
o dito lacaniano e a operação matemática posta em cena, a potenciação, nos proporciona a
apreensão correta da amplitude do conceito lacaniano.
22
23
LACAN, J. Op. Cit. p. 150.
LACAN, J. Op. Cit. p. 150. (grifo nosso).
76
Figura 7 – Imagem de Como se Chama James Joyce? mostrando a notação Ee.24.
Como ler Ee? Harari responde: “asseverando que se trata de uma enunciação
à procura de seu enunciado. A enunciação, na concepção de Lacan, isto é, sua
caracterização do sujeito daquela, abriga um dizer velado, um sem-sentido. Do mesmo
modo que o enigma, não se entende. Antes, dá a entender um viés passível de ser lido nas
entrelinhas, mas não evidente, porque seu sentido se subtrai.”25 “frente à mão escrevente
no muro, o cryptoconchoidsiphonostomata em sua exprussiação; seu nascedouro fica
além do herosdouro e o morredouro nos jardins do mouro, é o mais velhusko Kioske na
plenínsula e a mais ingostiosa estalagem em Sant’Escolada; andou centenas de muitas
mais milhas contadas por ruas e acendeu mil e uma luzes noturnas nos hectares da sua
janela; seu imenso capute branco reveste quinze acres e seu pequeno cavalo brinco
alcança dúzias de portos; lutuosa vela e funesto timão que rumaram para o Americaes;
seus filhos os castilhos, suas filhas as antilhas, já são filhões; repulsou desde o berço os
trovões aos milhões e falconeou cada relâmpago ao pago dos abismos; problema
impessoal, enigma alocativo; ereto, é um veículo de arcanização na área, reclinado, é
suprido de fluxo para a caliculação por Eblana; parte do todo como port a todabaleia; 26
Ou seja, cito Caetano Galindo: “Aqui, as palavras não significam fatos, coisas, ideias do
mundo. Elas não têm referente.”27 Trata-se de “uma linguagem em que os signos não
24
25
HARARI, R. Op. Cit. p.137.
HARARI, R. Op. Cit. p.137.
26
JOYCE, J. Finnicius Revém. Trad. de Donaldo Schüler. Cotia-SP: Atelie Editorial, Vol.3, p. 99, 1999.
GALINDO, C. Finnegans Wake / Finnícius Revém. In Revista Cult. São Paulo: Editora Bregantini. nº
176, p. 29.Ano 16, 2010.
27
77
apontam para o mundo, para fora da linguagem, mas em que pedaços de signos, cacos,
carregam fiapos de potencialidades semânticas que, somados, geram como que um feixe
de possibilidades, sempre irredutível.”28 Traduzindo: Joyce provoca um curto-circuito na
intersecção entre o imaginário e o simbólico (a lúnula que corresponde ao sentido na
cadeia bo) fazendo o significante vacilar através de seu esvaziamento e potenciação
simultâneos. É isso que temos condensado na notação E e na qual o índice marca o infinito
das possibilidades do significante uma vez que aponta para a escrita, ou seja, temos o
enigma elevado à potência de um índice infinito. A amplitude do horizonte que se abre é
sideral. Agora tome-se isto tendo em consideração que o índice aqui aponta para a escrita
joyceana apenas como exemplo! Ou seja, Lacan condensou um universo inteiro em E e (e
é este o motivo da importância capital da filigrana da posição do índice) indo, inclusive,
além de Joyce. Assim, com Ee, é gerado uma vertigem, um momento heimlich. A própria
palavra heimlich como vertiginosa ao coincidir com seu contrário unheimlich. Neste
momento em que surge o ominoso, podemos ler em Freud a irrupção do Real tal como
proposto por Lacan. Em Freud 29 temos que das unheimlich irrompe quando algo
reprimido emerge em algo familiar tornando-o estranho. Quero sublinhar justamente o
instante branco, sem palavra, que ressoa no corpo, aquele instante cheio de it (nas palavras
de Flávio de Carvalho em A Experiência no 2). Em Joyce o mesmo se dá, mas no sentido
inverso, pois não é que algo emerge e sim que se subtrai. O sentido desaparecido por
esvaziamento ou inflação desacomoda o significante no leito da relação sexual com o
significado e essa suspensão deixa vislumbrar, um instante, o não encaixe. Uma fissura
tem lugar e o significante não volta mais a ser o mesmo: foi des-mencionado. É o bastante
para que algo trema, rearranje-se. Este é o paradigma joyceano. Neste desencaixe reside
a natureza do enigma, no passo em falso do significante que fica solto, à procura do
significado.
Certa vez, como crítica, disseram a Joyce que seus jogos de palavras em
Ulisses e Finnegans Wake eram triviais. Ele respondeu: “Sim, meus meios são algumas
vezes triviais, e outras quadriviais.”30 Harari liga esta resposta à duas formas da educação
28
GALINDO, C. Op. Cit. p. 29.
29
FREUD, S. “O Estranho” [1919]. In.: ESB. OC. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
30
ELLMANN apud HARARI, R.. Op. Cit. p. 135.
78
na Antiguidade: o Trivium (referido à gramática, retórica e dialética) e ao Quadrivium
(ligado à aritmética, geometria, música e astronomia).
Do Trivium ao Quadrivium passamos, por conseguinte, do significante para a
letra. Do escutado, para o escrito. Passagem que leva Joyce a ser alguém
instalado na episteme do Quadrivium, já que nesta, a escrita é imprescindível
porque constitui um pilar definitório, ineludível. Trata-se da mesma escrita que
permite Joyce apanhar pedaços do Real; por meio dela, pode-se aceder a
fragmentos pontuais de tal registro. Daí o recurso de Lacan à matemática, à
topologia, e sua consideração de que a escrita sempre envolve uma referência
ao nó e/ou cadeia. Pois bem, aqui “encontramos” Joyce. 31
Apesar da referência mais direta ao Finnegans Wake e a Ulisses, este
paradigma joyceano opera já desde Dublinenses (nas finalizações dos contos) e no
Retrato do Artista Quando Jovem (nas epifanias, por exemplo) – e aponto aqui para isto
que Lacan sublinha no Retrato que é do artista, singular. Com isto temos invalidada uma
linha de pensamento no sentido de que Joyce opera um esfacelamento progressivo da
língua na sucessão de suas obras. Não. O paradigma está colocado desde o início. Ou,
como está no próprio Finnegans Wake: “O grafo proteiforme é poliedro da escrita.”32
A escrita de Joyce é seu Sinthome. Este conceito, Sinthome (também
simbolizado por ∑ no Seminário 23 de Lacan), pode ser elaborado, abordado de diversas
maneiras, é pluridimensional. Uma destas dimensões, privilegiada pela relação do
Sinthome com o simbólico, é mencionada por Lacan através de uma palavra-valise (a
palavra-valise como o que lhe vai bem para seu ensino): diz-mensão. Embrulhados aqui
vão “dizer” e “dimensão”, com o que temos “dimensão do dito”. O Sinthome de Joyce
está nesta dimensão, mas com mais, ainda, uma volta com o que opera uma des-menção
da diz-mensão que implode-explode o significante da mesma maneira que a experiência
traumática (o trauma como irrupção do Real), da mesma maneira que a angústia ou o ato
analítico. A des-menção em Joyce corresponde ao unheimlich freudiano. Freud define o
unheimlich como uma subspécie do heimlich o qual corresponderia à diz-mensão (isso
ignorando, por um instante, a vertigem da palavra heimlich).
Pois bem, inicio este trabalho dizendo que pouco tenho a dizer exceto que o
Sinthome em Joyce, sua escrita, revém através de uma enunciação (esta entendida como
31
32
HARARI, R. Op. Cit. p. 136.
JOYCE, J. Op. cit. p. 19.
79
enigma elevado à potência da escrita, Ee) que opera uma des-menção do significante
através da vacilação deste. Transpondo isto para a psicanálise, vemos que ganha
importância ao termos em vista que o homem de que se ocupa a psicanálise, o homo
sexual, só é pelo fato de falar e é por isso que em psicanálise trata-se de desfazer pela
palavra o que foi feito pela palavra. Freud nos ensina que o analista deve ser capaz de
delirar, de sair da lira, o que o aproxima, segundo Harari, do poeta. A atenção dada por
Lacan a Joyce passa por aí, pois na dimensão linguageira do inconsciente e da psicanálise
está posto em cena a todo o momento o que Lacan sintetizou em Ee. Além do mais, todos
nós, analistas ou analisantes, sabemos que não é sem efeito e nem algo pouco fazer
vacilar, des-acomodar, des-cristalizar o significante.
Como epígrafe deste trabalho, escolhi um trecho do Finnegans Wake:
Husamenta: So’o ne retûha, itakuapegua pyahu, ohekáva mba’e vai ñe’ê porá
apytépe, nde, rekéva ore pay javé há rekaru’yva rovy’a aja, nde ndekuaarekópe,
hesakuaitépe eréva’ekue hosue jekuaaraê’ ne pore’yetépe, hesapyso, yváicha
rehykuavova nde ytaku pupu Ari. Tyryrukue ha mba’e kaigue, ai péu rape, amo àrai yryvu
oipotáre ne ã ha ha’ûvo chiã oúva grajasgui, mano sarambipa, mbokapu guasu
javeguakuéra rehe téra ryrúgui oikópa tanimbu, opa teko ombokusugue tata rendy atyra
marangatúva ojevy yvy timbo vevére. Oikopa tepoti ramo aga araka’eve oike’yva ne
andai apyra’y yvytúre. (Ha aña retâ, Ha ja oúma ña ne re’ôngue ñoty! Ha mba’asy,
asaîmba, ajavy che ñeha’â) reikyty kytyvérô zanahoria, rembo’i mbo’ivérô nabo, reipiro
pirovérô papas, nembyesay sayvérô sevói rejuka jukayerô guéi remyangu’i ngh’ivérõ
cancros, rejoso josovérô ka’avo, rehapy hetavérô jepe’a, ipukuve ne kuimbe. Ha hetave
ty’ái ne rembi’u rykuépe, heta hetave tata nde aópe, iñandyve ha imbareteve, otimbo rory
kyre’yve nde japepo pyahu irlandapegua. 33
33
Trata-se aqui de um trecho do Finnegans Wake traduzido para o Guarani por Sérgio Medeiros
(disponível em http://gogobrazil.com/guarani.html [acesso em 20/10/2013]). O trecho citado aqui, cuja
função é por em ato mais uma volta na vacilação do significante provocada por Joyce, em português, na
tradução dos Irmãos Campos, fica: “Farejador de carniça, coveiro prematuro, perquiridor do ninho do
mal seio de uma boa palavra, tu, que dormes em nossa vigília e jejuas para nosso júbilo, tu, com tua
razão desloucada, predisseste preciso, um jofeta em tua própria ausência, cego ver tendo sobre tuas
muitas escaldaduras, bolhas e queimaduras, purulentas úlceras e pústulas, pelos auspícios daquela
nuvem corvo, tua sombra, e pelos augúrios de um palramento de gralhas, morte com todos os desastres,
a dinamitização de colegas, a redução de registros a cinzas, o arrasamento de todos os impostumes pelas
chamas, o retorno de um monte de longânimes polverulentos feitos a fezes, mas nunca entrou em tua
obtrusa cabaça de vento (Oh inferno, evem nosso enterro! Oh peste, perdi a posta!) que quanto mais
cenouras rales, quanto mais nabos piques, quanto mais batatas peles, quanto mais alho no teu olho,
80
Assim, dando uma volta com diferença, resta dizer que o título deste trabalho
é:
Ee: des-menção no ∑ em Joyce
quanto mais carneiro esmoas, quanto mais verdura esmagues, tanto mais lenha queima, mais longa tua
concha, mais suor na tua sopa, mais fogo na tua roupa, com mais graxa e mais força, - mais fumega a
tua bela panela irlandesa. (In CAMPOS, Haroldo e Augusto. Panorama do Finnegans Wake.São Paulo:
Editora Perspectiva. 1971.
81
Psicanálise pós-joyceana: algumas
considerações
Maurício Maliska1
A expressão psicanálise pós-joyceana presente no título deste artigo é tomada
de empréstimo de Roberto Harari que a utiliza em alguns momentos de sua obra ao fazer
referência a uma colocação de Lacan no escrito “Joyce, o Sintoma” 2 em que ele aponta
para o ser pós-joyceano como uma forma de um saber fazer de modo inventivo alguma
coisa produtiva com aquilo que era sintoma. Harari toma essa passagem como uma
transmissão, no sentido de que ela aponta à direção da psicanálise no momento atual. De
minha parte, a utilizo nesse artigo como uma referência ao que Lacan fez da psicanálise
após Joyce, ou o que ele soube fazer com a psicanálise após Joyce. A expressão aponta
para os efeitos da obra de Joyce sobre Lacan, a formulação do conceito de Sinthome3 e a
pertinência teórica e clínica desse conceito para a psicanálise.
Sinthome: a partir de Freud, Lacan não sem Joyce.
Aurélio Souza, no prefácio à edição brasileira de Como se chama James
Joyce4, comenta a aproximação que Lacan realiza entre a psicanálise e a religião, o que
1
Psicanalista, Membro e atual presidente da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.
2
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 560-566.
3
Esta expressão vem sendo traduzida/adaptada para o português pela Zahar Editora como sinthoma. Neste
trabalho, será mantida a expressão utilizada por Lacan ao longo do Seminário 23, Sinthome, mantendo o
francês arcaico. Esta posição deve-se em função de certo caráter intraduzível e inadaptável do termo, o que
marca a própria singularidade da grafia para uma pertinência conceitual quanto ao real não simbolizado.
Ademais, as articulações que Lacan estabelece a partir dos jogos homofônicos tornam-se ainda mais
relevantes com a permanência do termo no seu estado original.
4
SOUZA, A. Prefácio à edição brasileira. In: HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do
Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003. p.
09-20.
82
já não é nenhuma novidade do mestre francês, pois em diversos textos ele estabelece
várias relações entre esses campos. No Seminário 23 não é diferente, pois Lacan mostra
certa heresia (héresie) que pode ser lida homofonicamente na língua francesa nas iniciais
das palavras que compõe o nó borromeo (R.S.I.). O psicanalista Pedro Heliodoro Tavares5
mostra com muita propriedade a heresia de Lacan ao promover um quarto elemento no
trinitário nó borromeo, rearticulando-o de modo herético a ultrapassar a trindade católica
(o nó de três) para a introdução de um quarto laço que dará uma outra consistência ao nó
borromeo, numa inventividade muito singular do mestre francês.
A respeito da heresia, Lacan diz que Joyce é, como ele, um herético e aponta
que a heresia pode ser entendida a partir da palavra latina, derivada do grego, haeresis,
que designa heresia, mas também a ação de fazer uma escolha. Para Lacan, Joyce faz
heresias com as palavras, mas também faz uma escolha ao tomar a via do Sinthome6. Hère
também indica a expressão pauvre-hère, que quer dizer, pobre homem ou pobre diabo. O
herege, portanto, pode ser um pobre diabo, mas que ao fazer a escolha pela via do
Sinthome pode transformar essa pobreza em outra coisa. O herético, tal como Joyce, é um
hère, um pobre diabo, mas através do Sinthome transforma sua pobreza em algo
produtivo. O termo pobre diabo nos conduz a miséria neurótica de que falava Freud7. Ou
seja, o neurótico é esse miserável, o hère (pobre diabo), que através da análise pode
hereticamente sair da miséria neurótica do pobre diabo para uma escolha, a um hère
sinthomático.
Lacan também era um herege frente à psicanálise praticada sob a orientação
da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) ─ da qual foi excomungado por
discordar de questões, sobretudo, técnicas 8 . A heresia de Lacan também está em seu
ensino, através do nó borromeo, do R.S.I. (homófono a héresie) que faz uma heresia
fonética ou faunética, como preferiu grafar. Essa última palavra, a faunética, diz respeito
a uma palavra-valise de Lacan, em que se joga com a sonoridade das palavras ética,
fonética e fauno. A fonética não se refere simplesmente aos fonemas da tradição
linguística, mas aos sons advindos do canto materno. A voz da mãe vai marcar o sujeito
5
TAVARES, P. H. de M. B. O Sinthome como a heresia teórica de Lacan In: Ágora: estudos em teoria
psicanalítica.
Rio
de
janeiro,
vol.13,
n.1,
pp.
35-49.
Disponível
em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982010000100003>. Acesso em 08 jul.2013.
6
LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 16.
7
FREUD, S. “Estudos sobre a histeria” [1893-1895]. In.: ESB. OC. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
8
LACAN, J. Seminário11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988.
83
para além da linguagem, pois o que irá soar no sujeito constituirá sua singularidade,
fazendo-o um ser falante. Trata-se, portanto, daquilo que Lacan9 chamou de lalangue dite
maternelle. Ou seja, a lalangue10 não é um idioma, não é somente uma língua que o
sujeito fala, mas uma língua que fala no sujeito, ali onde ele é balbuciado antes mesmo
de ser falado.
É interessante notar, parafraseando Harari 11, que esta fonética particular da
mãe nos traz algo de uma ética singular que passa pelo fone, pela fonação ─ pelo som da
língua. É uma língua muito singular e própria que não tem a ver com o idioma. A ética é
a escuta dos sons, não mais dos significantes, uma ética socrática, diferente daquela do
Seminário 712, em que a máxima repousava sobre o argumento do agir de acordo com o
desejo. Aqui, trata-se de uma ética socrática que admite tudo menos isso, com base no
dizer de Antígona 13que suportou tudo, menos o fato de não poder enterrar o seu irmão.
Quanto ao Fauno, ele é uma divindade campestre, caprípede e cornuda que anda pelos
campos a tocar sua flauta. Um ser desprovido das convenções humanas, imerso no poder
de transe da música de sua flauta. É um deus entregue aos prazeres sonoros. O que está
em jogo na palavra-valise faunética é a ética da fonética da lalangue e o Fauno como essa
divindade musical, sonora e rítmica, que em outros termos vem a ser esse canto singular
da mãe que se inscreve fazendo suas marcas sonoras, e que irá constituir o sujeito em uma
outra articulação entre o simbólico e o real, apontando para o Sinthome ou o quarto nó na
cadeia borromeana, o nó herético de Joyce.
O Sin-thome
A heresia de Lacan está, como foi dito, num movimento faunético, em que
ele toma, por exemplo, sin-thome numa transliteração homofônica com saint-homme
9
LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
10
Esse termo, que iremos manter na sua escrita francesa, sem tradução, remete a lalangue dite maternelle,
em que Lacan não se refere à língua enquanto idioma, mas uma língua específica, singular de cada sujeito,
inscrita a partir dos restos fonemáticos do cantarolar e da lalação da mãe. Não é uma língua materna, mas
a língua da mãe enquanto restos vocálicos, manhês, fragmentos de real, pedaços de sons.
11
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e
Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003.
12
LACAN, J. Seminário 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
13
SÓFOCLES. Antígona. Trad. de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 1999.
84
(santo-homem) numa alusão ao também homófono Saint Thomas, Saint Thomas d’Aquin
(São Thomas de Aquino). Nesse ponto, Lacan mostra uma relação entre James Joyce e
São Thomas de Aquino, sobretudo, em função das epifanias14. O que se destaca do texto
joyceano, sob esse aspecto, é sua relativa pobreza de metáforas. Finnegans Wake15, por
exemplo, não apresenta ricas metáforas como é esperado em obras literárias ou de ficção.
Isso marca o quanto se trata de uma obra que não está inscrita na clave do sentido, pois o
objetivo de toda metáfora é produzir sentidos e neste ponto uma metáfora pode gerar
tantos sentidos quanto um sintoma. Se o sintoma, na tradição lacaniana, é uma metáfora,
ele produz sentido tal qual. Já no texto de Joyce, Lacan não escuta metáforas. O efeito da
leitura desse texto não é de significação, mas sim de uma e(qui)vocação na medida em
que desponta uma voz mais do que um significante, assim como também escuta uma
(equi)vocação: outras vocações (marcada no prefixo equi). Ou seja, outras vozes num
texto produzido na clave da polifonia. Nas palavras de Harari, em Joyce “aparecem antes
resíduos metonímicos, restos de uma experiência extática, fragmentos despedaçados
transladados para a escrita e que, em sua condição de pedaços, nos aniquilam ─
precisamente: nos sentimos invadidos por (um) nada.”16 Enfim, trata-se de epifanias por
trazer de modo evocativo ou invocativo várias vozes, ecos de línguas que provocam um
estado de êxito e gozo no leitor. Harari17 se refere à epifania como uma cobertura de voz
sobre o olhar num certo tipo de manifestação espiritual.
Os termos evocação e invocação remontam à voz, naquilo que ela é o qol ─
palavra hebraica para designar ao mesmo tempo voz e trovão. E aqui vê-se a influência
de São Thomas de Aquino ─ que vem a ser o mesmo tufão descrito na passagem bíblica
da manifestação espiritual dos Atos dos Apóstolos18 em que a epifania aparece como uma
reação gozosa frente ao forte vento que enche de júbilo os apóstolos e esses começam a
falar em línguas. 19 A epifania mostra um enlace entre o inconsciente e o real. O vocare
14
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.
15
JOYCE, J. Finnicius Revém. Trad. de Donaldo Schüler. Cotia: Atelie Editorial, 1999.
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e
Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003, p. 86.
16
17
Idem, ibidem, p. 16.
18
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
Essa expressão designa a glossolalia, uma espécie de balbucio, em que o sujeito fala algo que parece ser
uma língua, mas não é. Ela tem a entonação e a prosódia de uma língua qualquer, mas é totalmente
desprovida de morfologia, sintaxe e semântica.
19
85
que produz epifanias é evacuado de sentido, pois os apóstolos, por exemplo, começaram
a falar em línguas. De todo modo, há uma dimensão, dit-mention, dimansão do real como
também mostrou Lacan no Seminário 2020. O real da dit-mention/dimansão é o campo da
letra sonora e não mais do significante.
James Joyce21 preza por um estatuto muito singular da palavra em sua obra.
Não se trata da palavra no seu uso lexical, nem mesmo da palavra que dá sentido a um
texto. Trata-se antes de um estatuto evocativo muito mais do que comunicativo. Essa
evocação desperta a dimensão sonora da enunciação e não o sentido atrelado ao enunciado
do texto. Por isso, a obra de Joyce ultrapassou a sua existência e “[...] não deixará de dar
trabalho aos universitários”22 tal como ele próprio previu. Joyce não escreve um livro
com conteúdo, algo para transmitir uma ideia, uma reflexão ou uma história qualquer, ou
até mesmo, uma moral da história. Joyce escreve para transmitir algo que vai além da
mensagem e toca num ponto intraduzido e introduzido por ele: a saber, a transmissão de
uma forma estética através da articulação do som e do ritmo, não do som e do sentido,
mas do ritmo e do som que compõe o texto joyceano. Trata-se de uma musicalidade
particular que engendra um gozo estético. Algo do desejo pode ser transmitido através da
polifonia e polirritmia vocal presente nos sons das línguas que compõe seu texto. Joyce
não se preocupa com o conteúdo, mas com o estatuto do som em sua obra, algo que
ultrapassa a mensagem para tocar naquilo que é o próprio real da língua.
Ainda em relação ao saint-homme (santo-homem), homófono ao Sinthome, o
que se destaca é o vocábulo homem. Neste sentido, as traduções adotadas por Harari 23 e
Žižek24 parecem ser muito apropriadas, pois Sinthomem contém o vocábulo homem, da
mesma forma que na versão castelhana do livro de Harari consta sinthombre. Cabe
considerar que a tradução por sinthoma exclui a possibilidade de conter o vocábulo
homem ou sua homofonia. Mas afinal, qual é a importância em se manter o vocábulo
homem, uma vez que a psicanálise tradicionalmente trabalha com a noção de sujeito? Esse
é um momento de guinada no ensino lacaniano, nessa virada vários conceitos são
revisitados desde uma outra ordem, sem anular suas perspectivas originais. O sujeito do
20
LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
21
JOYCE, J. Op. cit.
JOYCE apud LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 159.
23
HARARI, R. Op. cit
22
24
ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
86
inconsciente, aquele dividido pelo efeito do significante remete a um inconsciente
basicamente simbólico, em que o significante que incide sobre o sujeito, o divide entre
aquilo que ele diz e aquilo que ele pensa ter dito. Pois bem, este sujeito da psicanálise,
sujeito do sintoma inconsciente, sujeito que sofre e goza de seu sofrimento é colocado
teoricamente lado a lado com o LOM ─ neologismo de Lacan25 para designar a homofonia
francesa da palavra l’homme. Ao modo de Joyce, Lacan heleniza a psicanálise, traz a
partícula LOM como puro som e letra de um significante que se perde. “LOM: em francês,
isso diz exatamente o que quer dizer. Basta escrevê-lo foneticamente, o que lhe dá uma
faunética.”26
O LOM remete ao traço unário, que fica perdido, não resta como uma letra
morta, nem tão pouco entra na cadeia significante. O traço remete à letra que Lacan
recupera nessa transliteração. O LOM está destituído de qualquer estruturação simbólica,
pois não está disposto numa lógica fálica, desse modo, não há qualquer ideia de
recalcamento em torno desse conceito. É preciso insistir que a constituição do sujeito se
dá sobre a repressão e o sintoma surge como um substituto da satisfação pulsional. Já o
que se passa no fim de análise, com o Sinthome, não é mais nada disso. Não que o sujeito
deixe de operar como sujeito, mas paralelo a isso está algo inventivo que faz despontar o
artifício, de um fazer com arte ao modo dos artesões. Isso não significa dizer que o
analisante, no fim de análise, passa a ser um artista de ofício, mas sim que faz de seu
ofício uma arte (artifício). “Dito de outra forma, o sujeito faz sua arte como um LOM
‘faber’. Um artífice que inventa sua arte através de um saber fazer com... (‘savoir-faire
avec’) pedaços do real e com o saber inconsciente.”27
Esse homo faber é um homem fazedor, mas isso não significa que
simplesmente faz, mas sim que há saber fazer. O destaque não é sobre o saber, ainda que
este saber inconsciente seja fundamental, mas a importância está no efeito desse saber
sobre o fazer do sujeito. Esse fazer motorizado pelo Sinthome não o coloca na via do
sintoma. Neste sentido, há uma saída da miséria neurótica, pois o LOM não é o retorno
do reprimido, nem mesmo as repetições e os fantasmas que compõe a estrutura do sujeito.
25
26
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 560-566.
Idem, ibidem, p. 560.
27
SOUZA, A. Op. cit., p. 20.
87
É uma outra forma de lidar com isso, e nessa outra forma o sujeito inventa, à sua maneira,
com pontas e restos de real.
Harari28 menciona que neste momento do ensino de Lacan não se trata mais
da via da metáfora, uma vez que esta é sintomática, mas pela via do gozo. “Aqui estamos
diante do ponto fundamental em Joyce: o de conseguir trabalhar com seu próprio gozo,
unido à convicção a respeito da excepcionalidade de sua obra, à qual o mundo deveria
reconhecimento.”29 Chega a brincar dizendo que Joyce goza com o joy (na língua inglesa)
e jouissance (na língua francesa), para finalmente dizer que o gozo não é com o idioma,
mas com a lalangue. Joyce conseguiu esse gozo, isso que Lacan tenta trazer para a
psicanálise como podendo ser algo da intervenção analítica. Mais exatamente, Lacan 30
propõe o Sinthome como o fim de análise, em que a análise produz, como efeito, um
analista Sinthome, ou seja, um analista que opera com o seu Sinthome, com sua maneira
de inventar e isso produz um gozo inventivo, em que se goza da vida de um modo
inventivo. Já não se trata mais daquele gozo fálico, próprio da sexualidade fálica, também
não é o suposto gozo do/no Outro, nem mesmo o gozo do sentido do sintoma, mas um
gozo do saber produzido na análise, um gozo produtivo do fazer.
Lacan finaliza sua conferência Joyce, o sintoma fazendo, tal como no início
do Seminário 23, referência e destaque aos dois mestres: de um lado Freud, pela
paternidade da psicanálise; de outro, Joyce, pela maneira inventiva de trabalhar com as
palavras, de um modo não lexical, fazendo-as soar ao pé da letra, ou seja, manejando
pontas de real, de pura letra. Por fim, Lacan reconhece a genialidade desses senhores e
tenta, a partir disso, (re)inventar a psicanálise, ao seu modo, sem imitações. Ao
reconhecer e se servir-se do pai, Lacan foi além dele. Quanto ao gozo em Joyce, Lacan
esclarece:
Que Joyce tenha gozado por escrever Finnegans Wake, isso se percebe. [...]
Ser pós-joyciano é sabê-lo. Só há despertar por meio desse gozo, [...] O
extraordinário é que Joyce o tenha conseguido, não sem Freud (embora não
baste que o tenha lido), mas sem recorrer à experiência da análise (que talvez
o tivesse engodado com um fim medíocre). 31
28
HARARI, R. Op. cit. p. 93.
29
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 163.
30
Idem, ibidem.
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566.
31
88
Harari, em diversos momentos de sua obra 32 , retoma o significante pósjoyceano de Lacan e acentua que a psicanálise atual só pode ser pós-joyceana. Não por
uma mera sequência temporal, mas porque Lacan ao se afirmar joyceano ou pósjoyceano, tal como já havia se afirmado freudiano, mostra suas origens ao reconhecer o
pai e seu destino, ao apontar para o Sinthome em Joyce, propondo ser pós-joyceano. Lacan
marca a sua filiação e, em relação à Joyce, mostra o quanto a sua psicanálise é afetada
pela letra de Joyce e, desse mesmo modo, a psicanálise deve afetar seus praticantes para
o despertar de uma outra forma de gozo. Para Lacan, o despertar não é tão somente aquele
de Freud33 em relação ao sonho, onde o sujeito desperta para o inconsciente, enquanto a
vigília é sonífera, mas o despertar para um outro modo de gozo, não somente o
inconsciente. Para Lacan, nesse momento, importa o “gozo, não o inconsciente” 34 e, ao
mesmo tempo, não sem Freud. A experiência de análise é o meio de despertar do engodo
medíocre para o gozo da vida proporcionado pelo Sinthome.
32
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e
Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2003. HARARI, R. O Psicanalista, o que é isso? Carlos
A. Remor, Inezinha Brandão Lied, Tânia V. Nöthen Mascarello (Orgs). Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.
33
FREUD, S. “A interpretação dos sonhos” [1900]. In.: ESB. OC. Vol. VI e V. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
34
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 162.
89
Angu de caroço
Tahiana Pereira Brittes1
“O Real, aquele de que se trata no que é chamado de
meu pensamento, é sempre um pedaço, um caroço. É com
certeza, um caroço em torno do qual o pensamento
divaga...”2
“Sendo o Real desprovido de sentido, não estou certo de
que o sentido desse Real não poderia se esclarecer ao ser
tomado por nada menos que um Sinthome.”3
No Seminário 23, Lacan propõe um estudo sobre “Le Sinthome” e nos
aproxima um pouco mais deste tema passando por intenso estudo dos nós e do Real. A
partir destas citações de Lacan, proponho algumas questões para este painel.
Lacan4, postula que o Real é sem lei e sem ordem, que nele está foracluído o
sentido. Ficar diante do Real é lidar justamente com esta impossibilidade de fazê-lo; lidar
com o que há de intocável, inacessível. Assim, o articulável passa somente por pedaços
do Real, pontas com os quais é possível fazer algo novo: Sinthome.
Deste lugar de impossível e indizível, é insuportável falar do Real. Seu
negativo é insuportável. E parece que fica um tanto difícil também falar de Sinthome, e
aí por ser difícil o trajeto até ele.
Parece-me denso o Seminário 23, e não só a mim... Seria essa densidade
resposta a estes nãos tão expressamente colocados? (O não se poder acessar o Real, e o
não ser fácil o trajeto para a contrução do Sinthome). Nesta passagem do significante à
letra, do sintoma ao Sinthome, estaria também a dificuldade de se articular com tais
caroços?
O artifício analítico, ao lado do Sinthome, nomeia este painel. Lacan nos fala
que a invenção do artifício analítico começa por ser a invenção do analista, com toda a
1
Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica.
LACAN, J.. Seminário 23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 119.
3
Idem, ibidem, p. 131.
4
Idem, ibidem, p. 133.
2
90
singularidade que isto implica. Invenção esta que começa no divã, em sua análise pessoal
– à medida que a possibilidade de ser analista, está em quanto mais se é analisante.
O início da experiência analítica, implica um artifício do Sujeito suposto
Saber, na construção do sintoma. Mas durante a análise é preciso sair do trabalho com o
Simbólico generalizado para o Real da linguagem. Inezinha Brandão Lied em
“Linguaguem turbulenta linguagem”5, fala desta possibilidade do analisante se liberar do
estrangulamento que decorre da metáfora que muitas vezes paralisa, para ter acesso a uma
nova e outra condição – a de artífice, responsável por seu saber-fazer-ali-com.
O savoir-faire, segundo Lacan6 é um fazer com arte, o artifício que dá à arte
da qual se é capaz, um valor notável, porque não há Outro do Outro para operar o Juízo
Final. Este saber-fazer é um artifício diante do sem sentido do Real, sobre o qual só se
sabe ao fazer; isto não é da ordem do pensamento a este respeito, mas do fazer do analista.
Daí, podemos pensar a passagem do analista sintoma a analista Sinthome, marcada por
um saber-fazer-ali-com que toca o Real, mas que não está no lugar de um conhecimento
enganoso, e sim de um fazer.
O Sinthome o é à medida em que algo se difere com a invenção de
significantes novos e ocupa assim um novo lugar, advém de modo inesperado, fora do
repertório habitual do sujeito. Mas isto que é um novo arranjo feito a partir dos mesmos
elementos é singular em cada um, e por este encontro que tem com o Real, também
imprevisível.
Como efeito de uma análise, caminhos singulares são possíveis: pequenos
atravessamentos do fantasma; que advenha um sujeito advertido; advir um Sinthome para
o sujeito... possibilidades singulares, de cada um.
Tendo o Sinthome como identificação, o sujeito já não busca incansavelmente
por uma interpretação, mas incansavelmente produz algo novo. Este fazer é um saberfazer-ali-com inegociável, livre de interpretação, “não há nada a fazer para analisá-lo”7.
“O alvo da análise, sem dúvida é o artificiar do analisante” 8 , e este ato
inventivo, tomará um caminho singular para cada analisante. Entre os possíveis caminhos,
está o saber-fazer do analista Sinthome, que é suportado pelo sem sentido. Sabemos que
LIED, Inezinha Brandão. “Linguaguem turbulenta linguagem”. In: Linguagens - Revista de Letras,
Artes e Comunicação, Blumenau, v. 4, n. 3, p. 267-278, set./dez. 2010.
6
LACAN, J.. Seminário 23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 59.
7
Idem, ibidem, p. 122.
8
LIED, Inezinha Brandão. “Artificiar”. In: Reunião Lacanoamericana de Psicanálise, Bahia, 1997.
5
91
Lacan9 afirma que não se pode conceber o psicanalista de outra forma senão como um
Sinthome. Mas seria possível ser analista sem necessariamente ser um analista Sinthome?
É importante não considerarmos um lugar de reciprocidade analista analisante. Pensar a partir dessa não reciprocidade nos responderia à questão: para
caminhar em sua análise em direção ao Sinthome, um analisante precisaria estar em
análise com um analista Sinthome?
Sabemos que o Sinthome toca somente pontas do Real. E ainda que não haja
aí possibilidade de intepretação, que haja uma nova relação com o Outro, e ainda que esta
invenção seja irreversível, sabemos que não desaparece a condição do sujeito assujeitado
– com algumas dores, sofrimentos, oscilações. Então, haveria por que continuar ou por
que não continuar em análise ao se inventar o Sinthome?
Começo minha fala fazendo referência ao insuportável do inalcançável, do
indizível. Retomo que há algo de insuportável no Sinthome. Mas fico com as
possibilidades destas pontas do Real, destes caroços do Lacan; e com o desejo de fazer
algo com isso, algo novo (além de um angu).
9
LACAN, J.. Seminário23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131.
92
Tempos de Lacan, Fins de Análise
Tania Nöthen Mascarello1
Nada está feito enquanto algo fique por fazer.
R. Rolland, Músicos de hoje
Saber fazer ali com seu sintoma, esse é o fim da
análise.
J. Lacan, Seminário 24
A temática do fim de análise implica uma proposta que vai muito além de
uma precisão restrita ao momento final de um processo. Queremos dizer com isso que o
modo segundo o qual concebemos esse tempo final encontra-se definindo a direção da
análise desde o seu início. Aproveitando a polissemia própria do termo, podemos dizer
que o fim enquanto meta, permitirá definir o fim enquanto término ou final.
Lacan define de três modos, o fim de análise:
1) Atravessamento do fantasma;
2) Invenção do Sinthome: Saber-fazer-ali-com o que gerava o sintoma;
3) Passagem de analisante à analista.
Trilharemos um percurso parcial, deixando para outra ocasião a passagem de
analisante a analista.
A preocupação de Lacan com este tema levou-o a diferentes propostas em
diferentes tempos de seu ensino que tendem a situar a experiência de fim de análise como
operações em que se aborda mais definidamente o Real, diante do qual Freud se detém.
Conforme entendemos, as formulações lacanianas devem ser apreendidas a posteriori, no
seio mesmo de seu itinerário teórico, cujo roteiro se especifica como diferencial ao
periodizá-lo. Ou seja, é no momento de concluir que se introduz e se define a
compreensão, fazendo ato, circunscrevendo o acontecimento. É fazendo cortes na obra
de Lacan que é possível, a partir de seu momento de concluir, reinterpretar as formulações
propostas em instantes e tempos “prévios”.
Num primeiro corte, Lacan como bom freudiano, visava à interpretação dos
sintomas, sua tessitura significante. O Outro marcado como consistente, s(A) –
1
Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica.
93
significado do Outro – é a letra com que o escreve no grafo do desejo e o recurso da
operatória do analista é a interpretação, é o trabalho com o equívoco, com a pontuação,
com a escansão, com a metáfora. O analisante, ávido em sua ilusão de nutrir-se de
sentidos faltantes ante o sofrimento que o limita em seus graus de liberdade, crê no
Sujeito-suposto-ao-Saber como Outro consistente. Não somente crê nele, senão que goza
dele. Goza a ponto de lançar o achado poiético de seu analista no circuito público sob a
forma de: “Escutem só o que meu analista me interpretou! É sensacional!”. O gozo fálico
da significação que o acompanha é o que define este corte do ensino de Lacan2.
Diante disso, não podemos deixar de mencionar a questão freudiana da
análise tanto como terminável quanto interminável. Esta conjunção nos leva a precisar
que uma análise deve ser terminável, senão seria, por falha, interminável. Mas cessarem
os encontros regulares entre analisante e analista implica que já não podemos falar de
análise interminável?
Não podemos deixar de lado que um dos obstáculos com que contamos em
toda análise, derivado da própria constituição do sujeito, é a condição de irredutibilidade
do que é submetido pela repressão primária. A constelação inesgotável de formações do
inconsciente daí decorrente provê o forjamento de sonhos, atos-falhos, chistes e sintomas.
Desde esta perspectiva, a análise se tornaria interminável, pois sempre haveria algo para
analisar, sempre é possível adicionar mais do mesmo, mais sentidos. Este trabalho de
análise privilegia o registro do Simbólico.
Temos aqui uma evidência do que colocamos como palavras iniciais de nossa
apresentação: o entrelaçamento entre o fim como objetivo e o fim como finalização. Se a
direção da análise tem como objetivo centrar o trabalho nas formações do inconsciente,
ela resultaria interminável. O ato psicanalítico nesta operação é o que testemunha a
presença eficaz de uma ordem significante, ao mesmo tempo em que se eleva contra o
muro congelado da metáfora3. Relança metonimicamente a cadeia associativa, instala a
neurose de transferência, mas revela-se insuficiente para o próprio Freud. A
recomendação de Lacan, ainda freudiano, é precisa: “Não engordar o sintoma de
sentido”,4 e também que a direção da análise deve trabalhar para o atravessamento do
fantasma, primeira proposta de Lacan que mencionamos como possível fim de análise.
2
HARARI, R. As dissipações do inconsciente. Porto Alegre: CMC Ed., 2003, p. 96.
HARARI, R. Fantasma: fin del análisis? Buenos Aires: Nueva Visión, 1990, p. 65.
4
LACAN, J. “La tercera”. In: Intervenciones y textos. Buenos Aires: Manantial, 1991.
3
94
No tocante ao fantasma, segundo corte no ensino de Lacan, encontramos o
recato, o pudor, a vergonha, concomitantes com a vigência do Outro não mais consistente.
Se no sintoma temos o circuito público e o caráter deslizável, no fantasma temos
privacidade e imobilismo. Articulado ao desejo sexual, explicitamente pulsionalizado,
portanto, que alcança seu cumprimento no fantasma, condensa desejo sexual, gozo –
principalmente autoerótico – e realidade. A realidade é fantasmática, diz Lacan 5 . A
operatória na análise com respeito ao fantasma não é a interpretação e sim o
atravessamento. Entende-se por atravessamento a geração de uma fenda, levando a um
novo arcabouço da realidade, não mais tomada pela repetição da cena fantasmática. A
operação de atravessamento do fantasma como uma fenda que se abre é representada por
Roberto Harari pela punção [símbolo usado por Lacan na fórmula do fantasma: ($ ◊ a)],
sendo atravessado por uma seta. Os sucessivos atravessamentos do fantasma, mediante
as construções de seus axiomas, deverão possibilitar subtrair da realidade, a gozosa
compulsão de destino característica da neurose. Marcamos no fantasma sua qualidade
significante, incorporada por Lacan à metonímia da falta-em-ser. 6 A compulsão
apassivadora dos diversos semblantes de espancamento através da evocação do fantasma,
procura mascarar o vazio da falta no Outro. Como tamponamento do real, o fantasma
tenta combater a dor de existir.
O trabalho com o fantasma apresenta três caras: sua cara Simbólica é a do
axioma; sua cara Imaginária é a da cena evocada no momento do gozo, emprestado pelo
mito edipiano na maior parte das vezes; sua cara Real é pela articulação do sujeito com o
objeto a. Ainda que o Fantasma não seja do Real, Lacan adverte que certamente podemos
localizar no Real os efeitos de seu atravessamento. Por tocar o Real da pulsão, traz
consigo a benéfica despersonalização imaginária, fulgurante e reversível, visto que logo
outro sentido aparece em sua função obturadora. Entretanto, depois dessa experiência, o
sujeito não é mais o mesmo, visto que se desprende, sem “liquidar o fantasma”, tanto da
demanda do Outro, como do gozo ao qual estava capturado no marco do fantasma,
determinantes de sua vida. Desta operação construção/atravessamento do fantasma, se
produz um S1 não consistente, significante sem-sentido, marcando o saber no lugar da
verdade. Ou seja, pela operação do discurso do analista se instala o que é denominado por
5
6
LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 10 de maio de 1972. Inédita
HARARI, R. Fantasma: fin del análisis? Buenos Aires: Nueva Visión, 1990, p. 264-65.
95
Lacan de sujeito advertido ou de paranóia pós-analítica7, como posição subjetiva no fim
da análise. Advertido de quê? De que a articulação com o Outro e de que as
conjunções/disjunções com o objeto a não se liquidam, mas se transformam.
Entendemos que estes dois cortes na obra de Lacan – freudianos em sua
proposta lógica –, não dão conta com precisão do que é possível conseguir com o
tratamento psicanalítico, ou seja, nem no tocante às transformações dos gozos, nem na
modificação da posição subjetiva obtida no final da análise. Passemos então ao terceiro
corte. Em seu momento de concluir, Lacan introduz a identificação com o Sinthome,
acompanhado do gozo mental que lhe é próprio.
A partir do que é considerado, retroativamente, insuficiente com os quatro
discursos (Seminários 16 e 17), Lacan no Seminário 18, propõe um Discurso que não
seria do semblante. Mas é no Seminário 19, ...ou pire (...ou pior), que ele começa a
definir algo que parece destinado a não fazer laço social, rompendo com a definição de
um significante um, S1, remetido de maneira incontornável ao Outro, ao Pai, propondo
em seu lugar outra postulação: Há do Um. Ao envolver um terreno pré-discursivo, seu
gozo não fica fisgado pelas parcialidades do corpo.
Este “do Um”, forma partitiva, nem é um entre outros – posto que não se
articula, não se historicisa, não se analisa –, nem o um da unidade, nem o um do sucessor
(que se repete), nem é o um da pretensão do amor, nem é o um do traço unário da chamada
identificação simbólica. É do Um-absolutamente-só, e nele cabe reconhecer, cabe isolar
o elemento que garante sua própria consistência, podemos dizer a consistência do próprio
gozo, como não redutível nem integrável ao equilíbrio de discurso algum. Neste caso,
então, aí já não situamos o particular, mas sim o singular.
Este campo do uniano (distinto do unário)8 é precisamente a alternativa para
a divisão do sujeito. Dá conta de uma re-localização do saber, na medida em que, no fim
da análise, dito saber toma posição em e a partir do Um, com a condição de ter-se
esvaziado da crença no Sujeito-suposto-ao-Saber, própria do sujeito dividido, como
posição subjetiva da neurose. Uma vez acontecido o novo posicionamento, sobrevém
junto um cessar da demanda pelo sentido, pela resposta providencial à pergunta do sujeito
7
8
LACAN, J. Seminário 15: O ato psicanalítico. Aula de 20 de março de 1968. Inédita.
LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 15 de março de 1972. Inédita.
96
sobre seu sofrimento. “A orientação do Real, no campo que me concerne, forclui o
sentido”9.
Vai tomando forma a identificação com dito núcleo irredutível, inassimilável,
uniano, que não responde à dimensão simbólica do parlêtre, porque não se dirige ao
Outro. É o que Lacan denomina de identificação com o Sinthome. Em consequência, já
não busca a verdade – verité, senão a varité, isto é, a variedade da verdade.10
O aporte do singular dá lugar ao cessar do suspiro da autocompaixão
(soupire): “trata-se disso ou, senão, seria pior”, ... ou pire. Isso nos remete a Sócrates, que
ao colocar-se de acordo com um “tudo, mas não isso”11, firma um gozo não negociável
nos discursos da vida comunicacional, uma vez que se separa da confusão neurótica entre
a demanda do Outro e o desejo do sujeito. O não mais suspirar remete também a não mais
queixar-se das falências imaginarizadas e rivalizantes do Nome-do-Pai, que o leva a gozar
falicamente de seu estatuto falido, estagnando o sintoma. Em contrapartida, mediante o
uniano, o gozo mental permite prescindir do Nome-do-Pai, porque o Sinthome consegue
servir-se dele responsavelmente.12
Lacan marca assim o Sinthome, com um caráter ativo, realizador, de
passagem ao ato esclarecido. O Um do Sinthome como operação, muda também sua
concepção do saber. O Saber já não é mais textual ou referencial; já não remete, de modo
dialético, à verdade, senão que resulta imbricado com o fazer, dando lugar ao conhecido
conceito do saber-fazer-ali-com o que deu lugar ao sintoma13, sendo cada um responsável,
daí em diante, de e por seu saber-fazer (ali-com). Se o inconsciente é estruturado como
uma linguagem e o sintoma é o que a língua cria – metáfora congelada – é o saber fazer
ali com isso, que possibilita o Sinthome.
Ao articular Sinthome e Real, Lacan abre para mais algumas questões: Já
havia afirmado que “O Real forclui o sentido”, mas isso não lhe basta. Vai além, dizendo
que o Sinthome é “desabonado do inconsciente”14. A partir destas afirmações questiona o
9
LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p, 117.
LACAN, J. Seminário 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Aula de 19 de abril de 1977.
Inédita.
11
LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 15.
12
LACAN, J. Seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 132.
13
LACAN, J. Seminário 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Aula de 15 de fevereiro de
1977. Inédita.
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LACAN, J. “Joyce o sintoma”. In: Shakerpeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assirio & alvin,
1989, p. 143.
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estatuto do sujeito – dividido, claro, e introduz o neologismo LOM 15, por homofonia com
l’homme, o homem. Mas assim como o sintoma não é o Sinthome, o homem não é LOM.
Não poderia sê-lo, porque não há substância para-todo-homem, por tratar-se do modo de
identificar-se com o singular do gozo de cada um, suportando a fecunda solidão do Umabsolutamente-só, derivada do distanciar-se da identificação com o traço do Outro,
sustentada até ali como núcleo do Ideal.
Ao dar relevo ao singular do gozo, Lacan assinala o Como é possível para
cada um, este arranjo singular, Sinthome, seja ele o que for, irreversível. O fazer de Joyce
tem uma relação com joy, diz Lacan, ele gozava com um tipo de pun muito particular.
Jogos com as palavras, seus engavetamentos, transliterações, Joyce vai inventando
significantes novos que provocam o riso. Na análise se trata não de reduzir o gozo, senão
de transformá-lo. Como efeito do trabalho analítico, o gozo fálico do sintoma, muda sua
condição. Saber-fazer-ali-com transforma o gozo fálico em gozo mental. Muda a
condição de gozar neuroticamente do significante em corpo para uma condição outra,
gozar do corpo mesmo do significante, pois “do Outro se goza mentalmente” 16. Tal é o
gozo da vida, tal é o gozo do ser (do Sinthome), tal é o gozo que não cabe “temperar”, tal
é o gozo do saber produzindo-se no fazer, pois a invenção de significantes novos faz com
o que já estava, um saber outro. Passar então do gozo fálico da neurose, traduzido em
“não agüento mais viver assim” ao “gozo mental”, próprio do Sinthome, traduzido em
“sem isso não posso viver”, marcando uma mudança radical na posição subjetiva diante
da demanda do Outro.
Passar do sintoma ao Sinthome requer, na análise, um duplo movimento
pulsional: desamarrar a pulsão de morte para que, por meio dos cortes e separações,
desate, rompa o equilíbrio obtido com o sintoma (no qual o analisante está bem adaptado),
instalando um transitório e benéfico desequilíbrio, para que possa haver uma nova
amarração, ou seja, para que a invenção tenha lugar. Lacan faz mostração disso pelos nós
e cadeias borromeas.
O analista, também demarcado com um “tudo, mas não isso”, deve inventar
e sustentar como não negociável, o fato de trabalhar fazendo violência à linguagem
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LACAN, J. Joyce o sintoma. In: Shakerpeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assirio & alvin, 1989.
LACAN, J. Seminário 19: …Ou pire. Aula de 8 de março de 1972. Inédita.
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comunicativa, estropiando sua escuta, abrindo-se para a escuta de sentidos outros que não
estavam, mediante o artifício do saber-fazer-ali-com.
No ensino de Lacan vamos encontrar o Sinthome representado pela quarta
consistência acrescentada na cadeia borromea de três consistências. Como assinalamos
anteriormente, o trabalho com a pulsão de morte desfaz o equilíbrio homogêneo da
trindade do nó borromeu constituído pelos registros do RSI. Ao se desamarrar o nó, a
quarta consistência é que faz a re-amarração. Defendemos então uma clínica do
heterogêneo, confirmada pelas palavras de Prigogine: “Longe do equilíbrio, a matéria se
torna ‘ativa’. Explora, sem parar, novas possibilidades”.
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