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Carnaval em Terras de Caboclo:
Saber e “Cultura” no Maracatu de Baque Solto
Suiá Omim Arruda de Castro Chaves
1
RESUMO
O presente artigo apresenta as categorias de saber e “cultura” tal como elaboradas pelas
pessoas que brincam Maracatu de Baque Solto. As noções de “cultura” e saber ganham
destaque quando são discutidas em relação às diversas transformações ocorridas no Maracatu
nas últimas décadas. A noção de passado, para os conhecedores de maracatu, demarca um
território privilegiado para pensar a constituição do Maracatu como “cultura”; as atribuições na
hierarquia das posições e as relações em torno do saber do Maracatu. De brincadeira maligna
a ícone da identidade pernambucana, o Maracatu torna-se um caso instigante para pensar o
processo de espetacularização de um ritual de carnaval realizado e vivido por trabalhadores da
cana de açúcar.
Palavras-chave: carnaval, saber, "cultura", maracatu
ABSTRACT
This article introduces the categories of knowledge and “culture” from the perspective
of the people who “play” and perform the Maracatu de Baque Solto. The notions of “culture”
and knowledge gain relevance when discussed in relation to the several changes that took
place in the Maracatu during the last decades. For the experts on Maracatu, the notions of the
past outline the boundaries of a privileged territory, where it is possible to think of the very
constitution of the Maracatu as “culture”; the roles and attributions assigned, and the
relations around the knowledge of Maracatu. From a malicious dance to an identity icon of
Pernambuco, the Maracatu became an instigating case to observe the process in which this
carnival rite danced by sugar cane workers turned into a spectacular performance.
Keywords: carnival, knowledge, "culture", maracatu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Doutoranda em antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ, é mestre em antropologia social pelo PPGAS/MN/UFRJ e
graduou-se em Ciências Sociais no IFCS/UFRJ. Este artigo se baseia na dissertação de mestrado (Chaves, 2008)
defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/ UFRJ. O apoio financeiro
concedido pela CAPES e pelo PPGAS possibilitou a realização da pesquisa.
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I. Introdução
A palavra Maracatu2 nomeia duas brincadeiras distintas e presentes no múltiplo
carnaval pernambucano: o Maracatu de Baque Virado ou Maracatu Nação e o Maracatu de
Baque Solto ou Maracatu Rural. A Zona da Mata Norte de Pernambuco reúne um conjunto
variado de brincadeiras e ritmos, que fazem parte do ciclo anual de divertimentos dos
moradores da região: Ciranda, Mamulengo, Coco, Repente, Cavalo-Marinho, Maracatu de
Baque Solto, entre outros. No calendário regional, as festas natalinas, carnavalescas e juninas
são as que mais mobilizam a população.
A maior parte dos grupos de Maracatus de Baque Solto3 se concentra nas cidades e nos
municípios da Mata Norte e, em menor número, há sedes na Zona Metropolitana. Os
participantes dos Maracatus que habitam a Mata Norte são, em sua maioria, trabalhadores
sazonais no corte da cana-de-açúcar e moram na rua, como são chamadas as cidades da
região.
O presente artigo aborda a noção de passado
4
nas narrativas de Maracatu como um
território privilegiado para pensar a constituição do Maracatu como “cultura”,
5
as atribuições
de posição e reconhecimento e as relações em torno do saber do Maracatu. A primeira parte
do artigo apresenta o universo cosmológico da brincadeira. A segunda parte enfoca a
problemática contemporânea do saber no Maracatu.
II. Deus e o diabo em terras de caboclo
Na região, se costuma dizer pareia quando se forma um par. Nestes grupos em que
minha pesquisa se concentrou, o Maracatu e o Cavalo-Marinho formam uma pareia. O universo
compartilhado por essas brincadeiras compõe muitos vínculos e diálogos entre esses dois
mundos. Além das duas brincadeiras trazerem referências em comum (personagens, locais,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Mario de Andrade (1982) atribui a raiz linguística da palavra ao tronco ameríndio, devido à semelhança com fonemas
guaranis. “Maracá é o instrumento ameríndio, de percussão, conhecidíssimo. Catu em tupi quer dizer bonito.
D’abbeville (285,188 face), que grafava bastante mal as vozes ameríndias, cita o nome do morubixaba Maracapu
(Maracapou) que diz significar “som de maracá”. Podia-se assim lembrar a formação Maracá-catu, donde Maracatu,
fundidas as duas sílabas cá. E ainda outra interpretação é lembrável. Marã, indica T.Sampaio (260, 309), como “a
guerra, a confusão, a desordem, a revolução”. Donde Marãcàtú e posteriormente Maracàtú, por assimilação, isto é,
guerra bonita, a briga bonita, a briga de enfeite, invocando o cortejo real festivo mas guerreiro.” (Andrade, 1982:137,
138).
3
No ano de 2007, havia 104 grupos registrados na Associação de Maracatus de Baque Solto. O Maracatu de Crianças
e o de Mulheres, ambos de Nazaré da Mata, não são filiados.
4
Todas as palavras em itálico são categorias nativas.
5
Seguindo a sugestão metodológica de Manuela Carneiro da Cunha (2009), utilizo o termo cultura entre aspas para
realçar a apropriação nativa desta categoria.
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estética visual), elas compartilham muitos de seus participantes. A proximidade destas duas
brincadeiras traz um universo comum e cria uma relação de complementaridade e oposição.
O Cavalo-Marinho aparece como uma festa criada por Deus, que celebra, entre outras
coisas, o nascimento de Cristo, a alegria, a graça, a beleza. Já o Maracatu, a brincadeira
carnavalesca, é considerado uma festa inventada pelo diabo numa tentativa de pegar Cristo.
Lida com o lado maligno da vida, o perigo, a rivalidade declarada, a canalização de maus
sentimentos, uma espécie de obstrução religiosa. A sequência temporal em que as festas
acontecem, o Cavalo-Marinho no período natalino, até o dia de reis, e o Maracatu durante o
Carnaval, sugere um “modelo estrutural” (Lévi-Strauss, 1967) da celebração regional: a
brincadeira de Deus e a brincadeira do diabo.
Essa pareia sugere uma cosmologia comum, em que a vinculação do Maracatu com a
figura do diabo está estruturalmente oposta à atribuição do Cavalo-Marinho como brincadeira
6
de Deus. José Borba, falecido Mateus, atribuía a criação do Cavalo-Marinho ao tempo em que
os homens surgiram na terra e aqui viviam infelizes e dispersos. “Por compaixão, Deus teria
decidido colocar uma beleza entre eles, inventando o Cavalo-Marinho e colocando-o no fundo
do mar. Diante de um animal tão bonito, o homem não resiste e, então, o traz para a terra. Na
terra, o Cavalo-Marinho imediatamente se transforma em brincadeira e passa a existir com o
sentido de fazer os homens felizes” (Acselrad, 2002:40).
O diabo, numa roda de Cavalo-Marinho, só chega até a beirada, por medo da rabeca e
do baje,7 instrumentos musicais que, quando tocados, remetem à imagem da cruz que
afastaria da roda coisas negativas. “Cabe a essa interpretação, a justificativa da preferência de
alguns brincadores, de uma por outra, que envolveria também a diferença entre o caráter
descontrolado do desejo que desencadeia a vontade de brincar Maracatu em relação àquele,
um pouco menos violento, responsável pela vontade de brincar Cavalo-Marinho” (Acselrad,
2002:39, 40).
A ideia de sorte é outro aspecto de oposição nas duas brincadeiras. No Cavalo-Marinho,
o coletivo assegura sorte para os brincadores8 – “quem não brinca está desprotegido”
(Acselrad, 2002:40) – o diabo só chega até a beirada da roda, supondo-se que quem está
dentro da roda está com sorte. No Maracatu, quem está brincando precisa ter respeito, estar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
A figura do Mateu – ao lado da Catirina e da Burra – aparece nas inúmeras versões do mito e do rito de morte e
ressurreição do boi (Andrade, 1982; Cavalcanti, 2006). Os personagens do boi estão presentes em diversas
brincadeiras e folguedos de norte a sul do Brasil. No Maracatu de Baque Solto, o trio corre bem na frente do cortejo,
anuncia e abre espaço para o cortejo passar. Estes personagens são o espaço do “riso” e da comicidade ficando
justamente “fora” do desenho nuclear do Maracatu ao redor da bandeira. Além disto, a palhaçada destes personagens
contrasta com o comportamento sério dos demais personagens (caboclos de lança, caboclos de pena, baianas, entre
outros).
7
O Banco do Cavalo-Marinho é formado por quatro instrumentos: rabeca, baje (reco-reco), pandeiro e o mineiro
(ganzá).
8
Categoria nativa para quem brinca Cavalo-Marinho. No Maracatu, não ouvi referência às pessoas que brincam como
brincadores, mas sim como maracatuzeiros ou folgazões.
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com o corpo fechado, pois quem toma parte no Maracatu está mais vulnerável aos maus
sentimentos, ao desmantelo.9 “Porque carnaval é muito pesado, muito pesado mesmo. Rola
muita inveja, olho grande. Se um caboclo tem inveja de outro e você não tá bem preparado,
acabou-se”, diz Fabinho, caboclo de lança.
Acselrad (2002) fala sobre o cuidado como categoria primordial no Cavalo-Marinho, por
tratar-se de uma brincadeira que gera um vínculo coletivo ou compartilhamento de algo que
merece respeito.
“O cuidado é orientado por dois juízos de valor considerados referenciais
bastante populares nesta região: o desmantelo e a consonância”. O desmantelo se associa ao
descuido, à desagregação, e a consonância, à atenção e ao cuidado (idem:36)
No Maracatu, “todo cuidado é pouco, pois no carnaval está todo mundo aberto pra
tudo”, conta Fabinho. Para não desmantelar é necessário que todos estejam bem protegidos
num momento tão especial. O carnaval é um período festivo, particularmente privilegiado para
pensar a possibilidade do “mundo de cabeça para baixo”, uma ruptura da vida cotidiana, a
inversão da ordem, uma ocasião de êxtase e libertação, o dilema de permanecer e mudar, a
possibilidade de renascimento e renovação (Bakthin, 2002; Burke, 1999; DaMatta, 1979;
Cavalcanti, 1995).
Considerando os aspectos universalizantes do carnaval, a ideia aqui é pensar a festa do
ponto de vista das pessoas que brincam, fazem e narram o Maracatu. À luz da sugestão de
Cavalcanti (2006), a respeito de um uso flexível e etnográfico dos conceitos de mito, rito e
figuração como distintivos, procuro refletir sobre diferentes planos de existência dos fatos na
brincadeira do Maracatu, sem perder de vista, como nos lembra Mauss (2003), a natureza
integrada do homem e suas produções (Cavalcanti, 2006:74).
Durante todo o tempo em que estive no campo,
10
escutei inúmeras referências à
relação do Maracatu com o diabo. Esta relação se expressa no plano mítico, em que o diabo
aparece como o criador do Maracatu e, na dimensão ritual, em que o diabo faz parte do
calço
11
do carnaval, a preparação espiritual.
Maracatu não pertence a Deus não. Maracatu pertence ao diabo. O diabo foi quem fez o
Maracatu. Fez uma festa de três dias. O Maracatu começou assim: o diabo passou e viu
Nosso Senhor dando a medicina aos doutores, que vive nos hospitais e posto de saúde.
Quando chegou à terra dele [do diabo], que tinha o patrão dele, [disse]: “eu vi o senhor do
povo dando a medicina aos doutores e eu achei bonito. O que a gente faz?“. Ele disse:
“Vamo fazer uma festa de três dias. Faz a festa e vai chamar ele [NS]. Em cada beco de rua
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9
O desmantelo é uma categoria usada na região para designar o descontrole, o erro, o azar, a desagregação, a
desafinação.
10
A pesquisa teve início em 2004, quando brinquei o carnaval com o Maracatu Leão de Ouro de Condado. Em 2006,
permaneci três meses e meio na região, sendo meus principais interlocutores integrantes dos Maracatus: o Leão de
Ouro de Condado e o Estrela de Ouro de Aliança (Ponto de Cultura).
11
A preparação espiritual realizada pelos caboclos de lança pode ser feita individualmente (através de banhos de
descarrego, defumação de objetos, como a lança, a gola, o cravo) ou pode-se fazer o calço com alguma mãe ou pai de
santo (através de práticas e rituais estabelecidos pelos especialistas, como o preparo do cravo, e outros objetos). A
ideia é que o caboclo que brinca calçado apresenta uma proteção espiritual reforçada.
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a gente bota dois vigias. “[o Diabo]: “A gente vai fazer uma festa de 3 dias o Senhor vai?”.
Ele [o Senhor] disse: “vou”. Em todos os 3 dias Nosso Senhor foi: no domingo, na segunda e
na terça, quando foi na quarta ele [o Diabo] chegou: “cadê você eu não lhe vi”. Em cada
beco de rua tinham botado dois vigias pra pegar Nosso Senhor, mas não tinha podido pegar.
Eles atentaram Nosso Senhor da quarta feira da cinzas até a sexta feira da paixão, botaram
os judeus pra pegar Nosso Senhor na virada e pegou, né? Quando foi domingo de páscoa
fizeram Maracatu, fizeram carnaval, pra ver se Nosso Senhor tava aqui na terra. Aí ficou o
Maracatu (Martelo, caboclo de lança).
Essa narrativa atribui a criação do Maracatu a uma tentativa do diabo de enganar
Nosso Senhor, trazendo-o para a terra. Inicia-se no domingo de carnaval e termina no
domingo de Páscoa.12 Os caboclos de lança seriam os judeus perseguindo Cristo por todo o
período da Quaresma. E no domingo de Páscoa, eles fazem o carnaval e comemoram o
sucesso da perseguição. Essa dimensão temporal apresenta uma inversão no calendário
cristão e, portanto, no sentido dominante de carnaval. Os três dias de carnaval do Maracatu
são narrados como a representação da perseguição a Cristo (um momento de grande
seriedade, respeito, abstinência sexual) e a Páscoa, mais especificamente o domingo, é vivida
como a situação de comemoração pela morte de Cristo (momento em que os caboclos
efetivamente fazem carnaval: “não têm um compromisso, é só farra e bebedeira”).
Consequentemente, inverte-se o ciclo anual nos domínios do Carnaval e da Quaresma.
Quando eles acabaram com Cristo, eles não voltaram pra casa. É como a cabocaria da
Páscoa, os caboclos que estão brincando [representam] a volta dos judeus, quando acabaram
com Cristo. Quem gosta brinca mais, é mais folia de bebida. Não é que eles são os judeus,
eles tão representando o que fizeram com Cristo. Na quarta de cinzas não passou o carnaval?
Naquelas [próximas] sete semanas é respeito. Ai chegou a Páscoa (Biu Alexandre, dono do
Maracatu Leão de Ouro de Condado).
Essa narrativa de “onde o Maracatu partiu” me foi contada por pessoas de uma geração
de mais de 60 anos: Martelo, Biu Alexandre e Seu Mané Silva.
13
Os três moradores de
Condado relataram o mito de origem do Maracatu, revelando o valor do conhecimento dessa
explicação como algo que poucas pessoas sabem.
O conteúdo das narrativas trata do Maracatu como uma invenção do diabo, que teria
permanecido na terra entre os escravos, nas senzalas de engenhos. Como conta Biu
Alexandre:
Na época que Cristo sofreu, num foram os judeus quem ajudiou com Cristo? Então, é a
apresentação que o Maracatu faz hoje. Tem muita gente que não entende que é isso. Depois
que se brinca o Maracatu, tem a 4ª feira de cinzas, que foi quando o povo judeu começou
perseguindo Cristo. Teve sete semanas eles perseguindo Cristo. É que não é tanto bem
assim, porque Maracatu pertence aos escravos. Do tempo de Cristo, foram as sete semanas
perseguindo Cristo, é o que o Maracatu representa.
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12
Sobre a oposição cosmológica entre carnaval e Quaresma, ver Burke, 1999; Cavalcanti, 1995; Baroja, 1979.
Brincou de caboclo de lança por muitos anos. Quando o entrevistei em 2006, não exercia mais nenhuma atividade
em Maracatu e recentemente soube que faleceu.
13
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A perseguição a Cristo teria o Maracatu “a serviço do diabo”, na perseguição e na
crucificação. As lanças dos caboclos seriam as armas da perseguição (para furar, ferir e
crucificar). “O carnaval foi partido dos judeus fazendo judiação com Jesus Cristo. Aquelas
flechas de caboclo de Maracatu, aquilo é da parte do judeu, [que saem] furando ele, pregando
ele na cruz” (Mané Silva, ex-caboclo de lança).
Os carnavais antigos são narrados como um grande enfrentamento: quando dois
grupos de Maracatu se encontravam no meio do caminho, eles tinham que passar pelo ritual
de encruzamento de bandeiras, uma maneira de os Maracatus passarem um por dentro do
outro, simbolizando um acordo de paz, de forma que cada grupo seguisse o seu caminho. Se
um dos grupos se recusasse a encruzar as bandeiras, a guerra estava anunciada.
O encruzamento é descrito como um momento de grande perigo, um entrelaçamento
de partes rivais, em que os dois Maracatus ficam numa posição vulnerável, pois se coloca em
risco a bandeira. Uma das principais consequências do ritual de encruzamento, segundo os
maracatuzeiros, era justamente a guerra, visto que o maior desejo de um Maracatu é furar a
bandeira do outro.
Porque todos os caboclos torcem pela bandeira do Maracatu. A bandeira representa isso.
Comparando mal, que a bandeira passa às vezes de Cristo. Porque todos os caboclos só é
pra defender a bandeira. A vontade era furar bandeira. Era tudo pela bandeira (Biu
Alexandre, dono do Maracatu Leão de Ouro).
A bandeira seria o elemento síntese do conjunto do Maracatu. Se a bandeira é furada
ou rasgada, o Maracatu fica arruinado, desmantelado, ele não é mais um Maracatu. A
organização espacial confere à bandeira um lugar de máxima proteção: o miolo do Maracatu,
que é rodeado de caboclos de lança. Biu Alexandre sugere que a bandeira “passa às vezes de
Cristo” e precisa ser protegida ferozmente. Essa posição conferida à bandeira dá a ideia de
que, em cada Maracatu, Cristo “se esconde” na bandeira. Deste modo, a perseguição seria
direcionada à bandeira do outro Maracatu, o inimigo.
O diabo é um personagem fascinante na literatura ocidental. As várias faces desse
personagem, que está em cena há pelo menos um milênio, do cômico medieval ao maligno
romântico, compõem uma figura complexa e misteriosa. É um personagem que protagoniza
muitas histórias contadas no interior: em cada encruzilhada, à meia-noite no canavial, nos
vapores da usina. No universo dos cordéis nordestinos, o diabo também é um personagem
bastante presente. Na literatura ocidental, a disputa entre Deus e diabo, o bem e o mal,
encontra na história de Fausto um marco desse personagem. Desde o final do século XVI,
popularizou-se na Europa através de diversas representações teatrais sobre a história de
Fausto, meio mago, meio cientista – considerado, na época, um charlatão. A história de
Fausto, por exemplo, coloca em relação Deus, o diabo e o homem, articulados numa disputa
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ligada ao conhecimento como poder (a religião, a magia, a ciência, a experiência). A ideia
“knowledge is power” (Chartier, 2003:150), que se insinua nas muitas versões literárias das
aventuras do Doutor Fausto, nos serve aqui de inspiração para pensar as transversalidades do
saber-poder nas narrativas míticas do Maracatu, articuladas nas elaborações nativas da
atualidade agonística da brincadeira.
Semelhante ao personagem de Fausto, cujos anseios o levaram a vender sua alma, o
homem que brincava de caboclo, das narrativas de Maracatu, fazia um contrato com o
demônio em busca da superação dos limites humanos. Através da supressão da ordem
dominante – o poder de Deus – torna-se poderoso e sábio para manipular sua força de forma
maligna. A figura do diabo no Maracatu se vincula à inconformidade com os limites (terrestres,
corporais, naturais), tendo como guia a expressão da rivalidade. A disputa pelo poder
14
torna-
se aqui o nosso foco, na medida em que a própria investigação do que está em jogo nessa
disputa configura-se como um elo das narrativas de origem e dos enfrentamentos
contemporâneos dos Maracatus de Baque Solto.
Brincar de caboclo, no passado, era se aliar ao demônio e seus domínios em busca de
uma vivência poderosa do confronto. A violência física é identificada como motivadora dos
carnavais antigos, “a diversão era brigar”, e o pacto com o demônio, “o calço de antigamente”,
era uma maneira de preparar o caboclo para a briga, para ele poder “sair no pau sem levar a
pior”. O pau, ou a lança, ou a guiada do caboclo constitui a arma que, por um lado, protege a
sua bandeira e, por outro, ataca a bandeira do Maracatu rival. A guiada, a lança do caboclo, é
um objeto que traz em si um problema espiritual para o Maracatu:
Maracatu, Maracatu, quem fez Maracatu foi o diabo, pra trair Nosso Senhor. Olha, o Maracatu
é tão atravessado que a gente pega, corta um pau numa mata e faz a ponta do pé do pau. A
ponta da guiada é feita do pé do pau. Só anda com o pé pra riba. Se a gente fizer uma casa e
botar a ponta do pé pra riba depois ninguém mora. Porque ninguém mora, só fica tudo é
doente. Enquanto não tirar aquele cabo, é gente doente dentro de casa direto. Porque é
negócio de enguiço, a mesma coisa é o Maracatu. Agora, hoje, todo mundo brinca, mas no
tempo que eu era menino não era pra todo mundo brincar, não. Porque só era de barulho, só
andava de pés. Saía no domingo de carnaval e tinha uma coisa, não passava de meia-noite
pra chegar em casa, não. Se passasse de meia-noite, o cabra se encontrava com o Maracatu
do diabo no caminho. E tinha que brigar e tinha que encruzar. Pra brincar de caboclo, o cabra
tinha que ser macho, um cabra dum cacete. Mas era pra brigar quando se encontrava, pra
modo de cruzar a bandeira. Se contava no tempo que eu era menino.15
A metáfora usada por Martelo para explicar o enguiço do Maracatu é a casa de pau-apique, feita de troncos de madeira preenchida com barro, tipo de moradia muito comum na
região. Ele explica que se a casa for construída com o pé do pau pra cima, isto é, fixada no
chão na direção inversa ao crescimento da árvore, aquela moradia fica com um enguiço, um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
A palavra poder é aqui utilizada na medida em que possibilita tornar inteligível alguns valores, sentimentos e
atitudes ligados ao saber do Maracatu.
15
Entrevista com Martelo realizada por Tatiana Gentile. Condado, 2006.
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comprometimento espiritual, que prejudica a saúde das pessoas que habitam a casa. De
acordo com Martelo, a guiada do caboclo é feita com o pé do pau propositalmente trabalhado
para ser a ponta da lança, que o caboclo carrega apontando para cima. Seguindo esta lógica, o
Maracatu seria uma brincadeira enguiçada por princípio, associado à coisa ruim, a energias
baixas e sentimentos cruéis. Martelo aponta para esta dimensão maligna do Maracatu,
contrastando o brinquedo do tempo em que era menino, em que “o cabra tinha que ser
macho” para brincar, com o Maracatu de hoje, em que “todo mundo brinca”.
A noção de enguiço nos traz a ideia de um ritual que lida com o lado sombrio, violento
e maléfico. Numa disputa entre Deus e o diabo, o Maracatu aparece como brincadeira do
diabo, anticristã que, numa acepção moralizante da experiência religiosa, estaria a serviço do
mal, lidando com a malignidade do mundo, propagando a violência. Estes elementos em muito
se assemelham aos rituais pertencentes ao mundo da jurema no Recife, especialmente os
“cultos de esquerda” tal como descritos por Carvalho (2003).
Entre os maracatuzeiros é predominante a familiaridade com uma religiosidade baseada
num catolicismo popular politeísta, chamado genericamente de catimbó, xangô (versão
pernambucana do candomblé, dito tradicional) ou jurema (torés, culto semelhante ao que se
chama macumba quimbanda, umbanda). No interior, há vários centros espíritas que realizam
toques (festas, giras, cultos) “que introduzem entidades várias além dos orixás, tais como
caboclos, mestres, exus, pretos velhos, pombagiras” (idem: 88).
Embora muitos neguem ter uma relação direta com essas casas ou centros, quase
todos
os
meus
interlocutores
afirmam
que,
no
passado,
quem
brincava
Maracatu
necessariamente estava ligado a uma religiosidade, muito próxima aos chamados “cultos de
esquerda” da jurema. “Só brincava homem e homem que soubesse respeitar.”
Antigamente tinha mais respeito. Sabe o que era o respeito? Porque muita gente brincava
pro Pata [Diabo], então era o calço dele era o Pata. Você sabe o que é a Pata? Então vou
explicar, a Pata era: ele negociava com o bicho preto, eles faziam um contrato, eles se
contratavam. Antigamente uma mulher num brincava, os meninos não brincavam, as
baianas era baiano, homem vestido de mulher. Hoje é diferente, hoje tudo se modificou.
Hoje ninguém brinca pro Pata, porque ninguém quer se contratar com o bicho preto. Eu
mesmo num quero. Mas antigamente era contrato. Então fazia contrato de 7 anos, de 14,
de 21, só era ímpar. Então, quando terminava o contrato, fazia outro. [O contrato] era se
entregar ao demônio. Para brincar de caboclo, eles se entregavam ao demônio. E naquele
dia [em que o sétimo ano se completava], o demônio vinha buscar ele. Antigamente o
pessoal era mais maligno, era para fazer malignidade no mundo. Aqui, Condado, era terra
de caboclo ruim, a gente passou num lugar que os caboclos se encontravam, os
maracatuzeiros se encontravam lá. Os caboclos que iam se encontravam, tocaiavam. A
gente passou lá no Bringa, [o cemitério] de Itaquitinga, lá eles esperavam um pelo outro.
Ali morreu muito caboclo. Eles esperavam para brigar com os caboclos de outro Maracatu.
Brigar, matar, morrer (Biu Alexandre, dono de Maracatu Leão de Ouro).
Biu Alexandre chama de Pata, alegando que não gosta de falar o nome dele, do diabo.
O contrato mencionado por Biu Alexandre traz a ideia de que a proteção do caboclo que fazia o
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calço era uma forma de “ficar com o diabo” e poder fazer de tudo, brigar, matar sem nada lhe
acontecer. O contrato com o demônio é narrado como uma forma de se preparar para a
diversão daqueles dias: brigar, lutar, matar ou morrer, mas com respeito.
O respeito é considerado essencial para a brincadeira dar certo, para o brinquedo não
se desmantelar. Respeitar, como diz Biu Alexandre, é entender o Maracatu. A demonstração
do respeito se dá primeiramente com o resguardo sexual, “ficar afastado de mulher” antes e
durante o carnaval, para manter o corpo fechado. Os rituais de respeito, no Maracatu, estão
ligados ao segredo, um tipo de preparação espiritual:
O apito é o segredo, segredo da sambada [disputa poética entre dois mestres de
Maracatu]. Chegando o carnaval, ninguém pode pegar naquele apito, só o mestre. Não
pode deixar ele num canto, ele tá preparado para tudo. Todo o segredo do mestre tá no
apito. Quando a mãe de santo calça, vem todo aquele segredo na bola do apito. Se
bobear, não canta nada, se alguém pegar, desmantela, pode até acabar o Maracatu, todo
cuidado é pouco (Mestre Negoinho, poeta de Maracatu).
A interdição do contato sexual é a principal forma de respeito, tendo um caráter
inquestionável entre os maracatuzeiros. O corpo carnavalesco do Maracatu parece manter a
sua força, entre outros segredos, através do controle dos fluidos vitais.16 A importância dos
fluidos vitais, no universo do Maracatu, se mostra também na proibição da presença das
mulheres, como elemento perturbador, não só pela interdição sexual, mas por conta da
menstruação, já que o sangue, quando não é ritualmente oferecido às entidades, deixa o
“corpo aberto”.
A proximidade com a morte também estabelece um vínculo de sangue: “dar o sangue
ao demônio como os caboclos antigos faziam” é visto como um compromisso que transcende o
plano da vida, numa aliança de sangue e fluido vital com o “porteiro do inferno”. O caboclo
assume, no pacto, uma liberdade (poder) para matar em vida e um aprisionamento infernal na
morte. Diante da possibilidade da morte, o caboclo reúne todas as forças e os fluidos vitais
para lutar. Tanto o oferecimento do sangue quanto a retenção do sêmen garantem a
concentração da sua força.
A força e o poder adquiridos através do contrato com o demônio são narrados em
fascinantes histórias sobre os caboclos velhos, em performances sobrenaturais:17 pular a
janela de costas “com o surrão
18
e tudo”, saltar para dentro do miolo de um Maracatu rival
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Serve-nos aqui a ideia de técnica, no sentido que Mauss (2003:407) lhe atribui: “um ato tradicionalmente eficaz (e
vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico)”.
17
! Uma das histórias mais famosas na região é a do caboclo João de Mônica, que desapareceu depois do 21º carnaval
do contrato com o diabo. Conta-se que o diabo veio buscá-lo, pois ele não refez o contrato pra brincar o carnaval no
22º ano. “Ele só fazia tudo encarnado (vermelho): chapéu, gola, tudo”, diz Martelo.!
18
O surrão é um grande chocalho de metal usado pelo caboclo de lança. A própria palavra surrão indica o ato de
surrar, bater. O saber bater o surrão está associado ao som produzido pelo movimento do corpo que carrega o surrão,
a habilidade com que ele manobra, anda, corre, luta, dança, maneja a guiada (lança), balança a cabeça (com o
pesado chapéu), engana, faz graça, mostra sua beleza.
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para furar a bandeira, brigar de lança com vários caboclos sem ficar com arranhão, passar os
três dias de carnaval “cortando pelos engenhos a pé” com o surrão nas costas.
Que nem antigamente, que o povo fazia calço para isso mesmo, para pular a janela de
costas, para encontrar o camarada dele e meter-lhe o cacete, bater pau um com outro e
até se matar e furar uns aos outros. Às vezes ele pegava uma briga com o amigo dele,
antes do carnaval, aí guardava aquilo ali tudinho, para pegar durante o carnaval, ia
descontar só na semana de carnaval. Agora não tem mais isso, não, até porque os
Maracatus agora são cheios de meninos, ninguém quer botar as crianças em bico de pau.
Mas, antigamente, a diversão era brigar. Desconta a mágoa de São João no Carnaval
(Aguinaldo, caboclo de lança e puxador de cordão).
As inúmeras práticas ligadas à preparação espiritual, como o contrato, o calço, os
banhos de descarrego, inspiram a ideia do carnaval como um ritual de guerra. A violência
religiosa, operando como fronteira dos conflitos interpessoais, é analisada no livro Guerra de
Orixá, através das mútuas agressões simbólicas e físicas entre diversos integrantes de um
grupo de umbanda (Maggie (1979) apud Carvalho, 2003).
O caboclo de lança é descrito num tal estado de braveza e êxtase que, ao encontrar
qualquer pessoa pela frente, seja seu próprio pai ou mãe, ele enfrenta. Esse espírito diabólico
do caboclo, no carnaval, pode ser aproximado ao tipo de relação agonística a que Aguinaldo se
refere: “desconta a mágoa do São João, no Carnaval”.
Para Martelo, um dos caboclos mais antigos e que ainda brinca no Maracatu, “caboclo
de verdade é aquele que já foi no inferno”. Ele é conhecido na região por saber muitas
histórias de Maracatu e há quem diga que ele é uma “prova viva”, isto é, um caboclo que
efetivamente fez o contrato.19
Essas histórias antigas de Maracatu circunscrevem uma noção da diversão carnavalesca
associada à violência, bebedeira, brutalidade, masculinidade. As Três Vendas,20 local conhecido
na Zona da Mata Norte pela convivência, bebedeira e briga da cabocaria, têm histórias
famosas que expressam essa forma de diversão dos caboclos antigos. As Três Vendas foram
tema de uma música do grupo pernambucano Mestre Ambrósio:21
Bebeu cana nas três vendas
Engoliu cobra coral
Não vá lá mano
Que os cabra pega você
E a cana já tá cortada
Nem tem pro’onde se esconder
Vadeia mano
Escuta o que eu digo a tu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
“Existia, antigamente, que quem brincava um ano, tinha que brincar sete [...] Isso é bem antigo, há muito tempo,
no tempo que Maracatu andava a pé, há uns 60, 80, 90 anos atrás. E hoje existe uma prova viva disso, que é um tal
de Martelo lá de Condado, ele foi um dos caras que fez o pacto com o demônio.” !
20
As três vendas ficavam em Chã de Camará, no município de Aliança, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Eram três
armazéns muito próximos, localizados neste sítio pertencente a Mestre Batista, famoso dono de Maracatu e CavaloMarinho. Atualmente, há apenas uma das vendas.
21
“As Três Vendas” é a faixa 7 do primeiro disco do Mestre Ambrósio, música e letra de Siba.
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Melhor tá no teu terreiro
Sambando Maracatu
Bebeu cana nas três vendas
Engoliu cobra coral
Pra ir lá mano
Escuta o que eu digo a você
Beber com a cabocaria
Muito macho tem de ser
Pra pegar na cobra viva
Matar com o dente e comer
Vou chamar minhas cobrinha
Do tronco do jurema
Surucucu, cascavé,
Salamanta, jiricoá22
Bebeu canas nas três vendas
Engoliu cobra coral
A letra mostra uma sociabilidade dos caboclos maracatuzeiros, vista na bebedeira da
cana, estimulando a exaltação de uma masculinidade marcadamente agressiva, que se
apresenta através da imagem do homem que come uma cobra viva.23
Há muitas histórias recorrentes sobre os carnavais antigos que demonstram essa
atuação violenta das pessoas que brincavam. Conta-se, por exemplo, que os caboclos
roubavam baianas de outros Maracatus que estivessem desacompanhadas. Baianas que,
embora fossem homens vestidos de mulher, não tinham como lutar com um lanceiro e viam-se
obrigados a brincar no Maracatu rival. Diz-se que, por causa disso, os caboclos passaram a ter
que buscar as baianas em casa para tentar evitar o roubo. E, mesmo assim, era capaz de um
grupo maior de caboclos querer roubar as baianas. Há referências também a um tipo de
trabalho espiritual que se fazia para criar a ilusão de um grupo de três caboclos levando
baianas parecer, aos olhos de outros caboclos, um grupo de 30 caboclos, intimidando um
possível ataque.
As sambadas pé-de-parede – a disputa poética de dois mestres – também são descritas
como eventos que podiam acabar “manchando o terreiro de sangue”. Na disputa de dois
mestres, as torcidas exaltadas se provocavam, até o ponto em que “embolava tudo” e no fim
havia mestre morto, gente ferida, instrumentos destroçados. O cemitério da cidade de
Itaquitinga é narrado como o cenário de muitas mortes de Maracatu. Os caboclos dirigiam-se
para o cemitério dos Bringa para bater pau, e ouve-se dizer até que alguns eram “enterrados
lá de surrão e tudo”.
Outra recorrente narrativa é sobre uma bebida tomada pelos caboclos, o azougue, uma
mistura de cachaça, pólvora, limão e ervas, que deixaria os caboclos ligados, agitados,
azougados. A ênfase na preparação para o carnaval, na construção de um corpo invencível,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Linha tradicional de catimbó.!
Peter Burke (2000:219) descreve os carnavais europeus tradicionais através de características como: ênfase na
bebida e na violência, composição de sociedades carnavalescas dominadas por adultos do sexo masculino,
interpretadas por ele como rituais de afirmação da masculinidade.
22
23
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com privações e controle do corpo durante esse período, tem motivação na ideia de êxtase,
sacrifício e flagelo do corpo. Um contraponto às performances dos caboclos antigos são as
chamadas “demandas” da umbanda, ou “provas de fogo”.24
Através da imagem de uma guerra generalizada – violência, descontrole, descarga de
emoções – essa simbólica da diabólica do carnaval dos antigos constitui uma ruptura com a
ordem, com a vida social, num plano de destruição radical. A festa como agenciamento da
agressividade, evidenciando um caráter anticristão, logo profundamente cristão, já que, “ao
negar seus símbolos, usa o mesmo universo mítico”, descrevendo não só uma inversão da
ordem, como uma intenção de “assustar chocar, infundir o medo, através de uma simbólica do
imaginário dominante” (Carvalho, 2003:98, 99).
O passado aparece, nesses discursos, como uma forma de atribuir sentido ao respeito,
às práticas espirituais e aos rituais presentes no Maracatu atual, acionando um fundamento à
noção de carnaval desses Maracatus.
Porque Maracatu... no interior, a turma diz que quem brinca Maracatu tem pacto com
demônio, é amaldiçoado. Tem gente que diz que dá no pai, dá na mãe. Essa história eu já
tinha escutado desde criança: tem que amaldiçoar o pai, amaldiçoar a mãe. A turma
falava que, antigamente, caboclo pulava a janela de costas, fazia todo o ritual, fazia pacto
com o diabo para brincar aquela quantidade de anos. Depois sumia, ou o diabo vinha
carregar. Amaldiçoava o pai, a mãe. [Como assim?) Quando botava arrumação25 não
conhecia mais ninguém e se tivesse na frente, matava... Por isso que não respeita nem
pai, nem mãe, se tivesse na frente, passava por cima. Aquela época era uma época bem
mais religiosa que essa, porque hoje qualquer pessoa, até um cara bicado, pega
arrumação e brinca de caboclo, mas naquele tempo, não. Tinha um resguardo maior,
viviam pra aquilo ali mesmo, aquilo ali era outra coisa.... Ainda tem, ainda existe isso. Do
respeito. Respeitavam mais, você botou aquilo ali tá pro que der e o que vier. Morria por
aquilo ali. Quem brinca de caboclo, eles não dizem, mas um quer ser melhor que o outro.
E quando um caboclo arreia guiada pro outro, tá procurando confusão. E o outro não quer
ficar por baixo. Aí é a hora de dizer que é melhor é agora. Ninguém fala, faz (Fabinho,
caboclo de lança).
O tempo passado é um território privilegiado para se discorrer sobre assuntos pesados
que carregam tantos preconceitos de uma sociedade da qual hoje o Maracatu faz parte. Não se
trata aqui de construir uma versão do processo histórico de espetacularização da brincadeira,
mas investigar como é identificada a ruptura que, do ponto de vista nativo, delimita o tempo
passado, demonstrando que estes assuntos pesados não foram totalmente excluídos do
processo de espetacularização, embora as brigas tenham sido proibidas neste novo contexto.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
“Colocar a mão no azeite de dendê fervendo para ver se está mesmo com o santo” (Maggie [1975] apud Carvalho,
2003).
25
Arrumação é como se denomina a indumentária do caboclo de lança. Ela é constituída de surrão (chocalho), gola,
chapéu, lança. A arrumação completa pesa aproximadamente 25kg.
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Depois que a “cultura” olhou, viu de perto aquela situação, depois que Mestre Salustiano
viu, aí abriu uma lei que a gente não pode fazer essas coisas. Se tiver briga, o Maracatu
pode ficar sem brincar um ano ou dois. Há uns 25 anos atrás, desmanchava o brinquedo
todo por causa de briga. Aí, depois, Manel Salu arrumou e foi bom26 (Inácio, caboclo de
pena).
Antigamente, só quem dava valor era quem brincava. Se existia cultura, ninguém sabia.
Hoje a gente sabe que tudo na vida era “cultura”: Cavalo-Marinho, Maracatu, cantador de
Coco, Xangô. Tudo era cultura, mas não existia. Hoje a cultura descobriu tudo, que tudo
é “cultura” (Biu Alexandre, dono do Maracatu Leão de Ouro).
As atribuições de valor trazem, para a investigação, um plano relevante no qual opera
uma rede de reciprocidades. O reconhecimento, por parte da cultura oficial de um “valor
cultural” na brincadeira, é dado através da decodificação do Maracatu e uma consequente
recodificação, de maneira que se transforme em “cultura”, do ponto de vista nativo. A
circularidade entre essas noções inventa valores, estabelecendo rupturas simbólicas. Como na
fala de Biu Alexandre, o valor que os maracatuzeiros davam ao que faziam é visto, pelo outro,
como cultura, se ele se comportar como tal, especialmente rivalizando segundo um código
dominante comum, o código da cultura e não mais o da violência. O Maracatu se
reterritorializa27 como brincadeira, folguedo, enquanto valor singular inventado, por meio de
uma contrainvenção do que é cultura para a “cultura” (Wagner, 2010).
Nesta nova configuração, o que se vê é a confluência de um saber dominado pelos
conhecedores e do respeito a certas regras e tabus que devem ser seguidos por todos os
participantes, com o processo de transformação do Maracatu em “cultura”. Se, por um lado, a
espetacularização pacificou o Maracatu, por outro, certos códigos e tabus relacionados ao
tempo passado são atualizados nesta nova configuração da brincadeira.
Manuela Carneiro da Cunha, numa discussão recente e conceitualmente próxima a esta,
afirma que, do ponto de vista da apropriação nativa do conceito de cultura, trata-se da
aquisição de algo que os nativos já possuíam:
Na linguagem marxista, é como se eles já tivessem “cultura em si” ainda que talvez não
tivessem “cultura para si”. De todo modo, não resta dúvida de que a maioria deles
adquiriu essa última espécie de “cultura”, a “cultura para si”, e pode agora exibi-la diante
do mundo. Entretanto, como vários antropólogos apontaram desde o final dos anos 1960
[...], essa é uma faca de dois gumes, já que obriga seus possuidores a demonstrar
performaticamente a “sua cultura” (2009:313).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
A Associação de Maracatus de Baque Solto é frequentemente identificada como responsável pelo fim das brigas e o
controle da violência entre os Maracatus que se encontravam no carnaval. Fundada em 1990, em Aliança, na Mata
Norte, por 13 dirigentes, tem como seus principais articuladores mestre Salustiano, mestre Batista, Biu Hermenegildo.
27
! “O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os ‘territorializa’. O território é um produto de
uma territorialização dos meios e dos ritmos” (Deleuze & Guattari, 2002:120).!
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O que ocorre no Maracatu é precisamente esse processo. Sua especificidade recai sobre
uma nova atualização do princípio agonístico da brincadeira. Se antes ele estava baseado na
violência e na força física, agora assume uma ênfase estética e simbólica, cujo auge é a
competição entre os diversos grupos de Maracatu, realizada durante o carnaval, pela
Federação Carnavalesca de Pernambuco. Essa “faca de dois gumes” não pode, é claro, ser
levada ao pé da letra, pois a violência física, embora não esteja mais no centro da disputa,
tampouco desapareceu por completo da brincadeira, sendo sempre uma possibilidade
eminente. No tópico seguinte exploro as transformações e as ressignificações ocorridas
durante esse processo de passagem do Maracatu da guerra para o Maracatu da “cultura”.
III. O Saber e o Segredo
Até mesmo a criançada
hoje já não sente medo
De ver caboclo rochedo
De surrão gola e de guiada
Ela fica é encantada
Com o brilho da fantasia
O toque da bateria
Agita adulto e criança
Maracatu virou dança
Pra criançada hoje em dia
Mestre Antonio Roberto, autor deste samba em dez linhas,28 sintetiza bem os principais
contrastes do Maracatu do Passado com a contemporaneidade. A partir dos seus versos,
trataremos de algumas questões que se destacam neste processo de transformação do
Maracatu em “cultura”: a participação de mulheres e crianças, a relação com o dinheiro e a
preparação individual e coletiva para o carnaval. Estas questões trazem à tona relações de
saber-poder e acionam noções nativas como respeito, interesse, amor e desmantelo.
Os versos da epígrafe demonstram como o Maracatu deixou de ser uma brincadeira
temida pelas crianças, que atualmente tomam parte da festa. O mesmo ocorre com as
mulheres. A participação das mulheres e das crianças no Maracatu é um dos aspectos que
demarcam uma ruptura: a passagem da guerra para um espetáculo.
29
A presença das
mulheres coloca ainda outras problemáticas relativas à proibição do contato sexual durante o
carnaval.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Maracatu do Passado é o título deste samba que nos serve de epígrafe. É a faixa 2 do CD de Antonio Roberto, na
coleção Poetas da Mata Norte.
29
A Federação Carnavalesca de Pernambuco (FCP) teve um papel fundamental nas modificações do Maracatu,
exigindo a presença de mulheres e crianças com o objetivo de pacificar a brincadeira.
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No ano de 2006, o Maracatu Estrela de Ouro reuniu aproximadamente 100 integrantes;
a divisão entre os integrantes nos veículos que conduziam o grupo durante os três dias de
carnaval era a seguinte: havia um ônibus para os homens e outro para as mulheres. Na escola
municipal, em Recife, que hospedou o Maracatu durante o carnaval, com comida e dormida,
também havia uma separação: as mulheres dormiam no andar de cima e os homens no andar
de baixo. Este contato entre homens e mulheres é evitado, sempre que possível, na
organização espacial do Maracatu durante o carnaval.
A proibição das relações sexuais – que se inicia antes do carnaval (o tempo varia de
Maracatu para Maracatu, de pessoa para pessoa: 1 mês, 15 dias, 7 dias) e se estende até a
quarta-feira de cinzas – é um princípio do Maracatu, confirmado por absolutamente todas as
pessoas com quem conversei. O resguardo sexual é uma questão de respeito ao Maracatu,
associado ao saber.
Teve um ano, quando eu brincava no Piaba [de Ouro], com Mestre Salustiano, que uma
baiana fez um negócio errado lá e a gente ficou pagando pato. Quase todo mundo
adoeceu, porque ela fez coisa errada. Ninguém pode dormir junto. Porque o que
acontece: adoece baiana, adoece folgazão, qualquer coisa aparece no Maracatu. A gente
não quer mandar em ninguém, a gente avisa. Quem não sabe, não sabe, mas aqui no
interior todo mundo sabe disso. Porque alguma coisa acontece no Maracatu, pode
acontecer até com a própria pessoa, mas não acontece com a própria pessoa, acontece
com os outros. Eu mesmo, eu não tô brincando, mas eu dormi aqui no chão. Porque a
gente tem que procurar o lugar da gente, mesmo se alguém lá fora não respeitar, a gente
tem que respeitar e ainda paga o pato. [...] Quando se respeita, ninguém adoece, quer
dizer, do meu conhecimento, né? (Biu Alexandre).
O contato entre os sexos masculino e feminino é um tabu no Maracatu, é algo que
perturba o equilíbrio da brincadeira, vai contra o princípio de ordem do carnaval. Visto que
nesta separação, neste sacrifício reside uma força, as pessoas que estão brincando devem
controlar sentimentos e ações que possam prejudicar o coletivo e, fatalmente, ajudar o
inimigo.
O Maracatu, tal como se encontra atualmente, traz no corpo da brincadeira muitas
mulheres, o que complexifica ainda mais esta questão, já que a mulher é uma rival que está
no interior da própria brincadeira. A mulher como “gênero fisicamente ausente, mas
simbolicamente
onipresente
em
negativo”
problemática contemporânea do Maracatu.
(Wacquant,
2003:87)
nos
conduz
a
esta
30
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Conta-se que a primeira mulher que brincou num Maracatu era uma mãe de santo, que preparava espiritualmente o
brinquedo de João Lianda, em 1965. Ela brincou com a boneca que é a madrinha do Maracatu, que precisa de
cuidados que ajudem a manter a harmonia coletiva. Joabe conta que, “quando os outros Maracatus viram que era
mais bonito botar uma mulher de dama do passo, todos começaram a botar”. Mas, ressalta, que muitas mulheres não
tinham preparo para brincar Maracatu por não saberem lidar com aquilo.
!
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Além do resguardo sexual e da separação de espaços femininos e masculinos, há uma
recomendação de que as mulheres não toquem nos objetos, nas fantasias e também no corpo
dos caboclos. Esta recomendação é ainda maior quando se trata da esposa, da namorada etc.
O respeito pela brincadeira é uma maneira de manter o corpo fechado e não
enfraquecer o coletivo, pois as consequências de uma má conduta podem recair sobre outra
pessoa mais fraca, que esteja menos preparada. Os conhecedores do Maracatu costumam
dizer que as mulheres não têm compromisso com o Maracatu, que elas não respeitam, pois
não acontece nada com elas, “acontece com o cabra”. As atribuições dos infortúnios
carnavalescos trazem o elemento feminino como base de “acusações”.
As tentativas de coerção são visíveis ao longo do carnaval: o controle social das ações
individuais, as chamadas de atenção dos mais velhos sobre as meninas (adolescentes) que
brincam. Neste plano é que se distingue quem conhece e respeita a brincadeira.
***
Em alguns anos atrás
Maracatu se encontrava
Com outros sempre brigava
Mas hoje não brigam mais
Acharam um caminho de paz
E de muita boa vontade
Porque hoje na verdade
O que vale é fantasia
Talento e sabedoria
Perfeição e qualidade
O processo de espetacularização e profissionalização dos Maracatus, como revela uma
vez mais o poeta Antonio Roberto, traz um deslocamento do eixo de expressão da rivalidade
entre os grupos. A disputa é identificada como uma das principais pulsões do Maracatu, seja
no enfrentamento físico (dos caboclos), na batalha poética (entre mestres de Maracatu), ou na
beleza do Maracatu (na plasticidade, na dança, nos gestos).
Neste sentido, o passado marca um tempo em que a força e a braveza do caboclo era o
que o qualificava como melhor do que o outro. A arrumação do passado é frequentemente
descrita como feia e mal cheirosa: “um chucaiozinho de Mateu, com duas correias de couro
fedido”. Essa passagem de uma brincadeira que “só era de barulho” para um espetáculo visual
de cores, brilhos e movimentos tem no próprio referencial da luz elétrica um significante da
visualidade.
Se, no passado, a maior qualidade agonística de um Maracatu era identificada na
braveza – “o pessoal fazia intriga no meio do ano e guardava pro carnaval” – nos tempos
atuais, a busca dos grupos gira em torno da beleza e da plasticidade. Biu Alexandre compara o
Maracatu dos dias de hoje com uma festa leve, como um aniversário: “Carnaval hoje é como
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um aniversário. Aquela quantidade de amigo, aniversario é aquilo, não tem nenhuma
confusão”.
Nosso carnaval de 20 anos atrás era violento, só saía para desmantelar os outros.
Antigamente, um caboclo num saía sozinho, porque tinha caboclo de outro Maracatu
esperando. Hoje, a vingança é na arrumação, de fazer um caboclo mais bonito que o
deles (Inácio, caboclo de pena).
O Maracatu, tal como se encontra hoje, é considerado uma brincadeira onde todo
mundo brinca, mulheres, crianças, gente que está atrás de dinheiro, ou simplesmente quem
quer “aparecer cheio de boniteza e brilho no carnaval”. Assim, não existe restrição para
quem brinca Maracatu, como Biu Alexandre me disse: “para brincar, é só querer”.
A ideia aqui é a cultura valorizando a beleza do Maracatu, o espetáculo.
A
brincadeira, na linguagem atual, reveste suas armas nos termos da “cultura”, isto é, no que
se pode comprar com o dinheiro. O reconhecimento da sociedade é visto, pelos
maracatuzeiros como um olhar diferente sobre aquilo que eles faziam, como fica claro numa
conversa entre caboclos de lança, puxadores de cordão:
Martim: Esse negócio de folclore começou de um tempo pra cá. Eu nem me lembro o
tempo.
Aguinaldo: Esse negócio, quem descobriu isso aí foi esses povos de fora, isso é com
vocês.
O dinheiro é considerado pelos maracatuzeiros como uma das mudanças trazidas pela
“cultura”, para o Maracatu: “Dinheiro tem valor agora, antigamente dinheiro não tinha valor”,
diz Martim, contando que quem brincava no passado não esperava ganhar “um troco” depois
do carnaval.
!“Hoje muita gente brinca por amor... mas por amor ao dinheiro e não por amor à
brincadeira”, afirma Biu Alexandre, ressaltando o valor do dinheiro como uma maneira de
medir o interesse e o amor da pessoa pela brincadeira. Se a pessoa brinca por amor à
brincadeira, ela brinca até sem ganhar nada. Se a pessoa gosta daquilo de verdade, investe
seu próprio dinheiro, para fazer ou melhorar sua arrumação: “não fica só pegando arrumação
de sede”.
Se Carnaval é da parte do satanás, eu acho que já foi, não é mais. Aqueles tempos
atrasados, eu ouvia pessoa velha falar: fulano vai pra mata, faz um negócio pra fazer
assim: vai ali pedir ao satanás pra brincar tantos anos de carnaval. Dá o sangue ao
satanás, um dedo, um braço, uma perna, um olho. Tudo isso eu ouvia cabra velho dizer.
Que caboclo véio fazia aquilo ali. E conseguia aquilo através do satanás. Hoje não, hoje
mudou muito. É que nem seu Martim e pai falou pra você. O cara saía daqui e ia pra
Nazaré a pé, ia pra Aliança a pé, pra Timbaúba a pé. Não tinha passarela, não tinha esse
negócio de prefeituras fazendo aquela festa nas cidades. Era pesquisando, como um
caboclo sai, pedindo um trocado. Hoje toda cidade aqui no Pernambuco tem carnaval.
Hoje todo mundo corre atrás... mas é do dinheiro (Aguinaldo, caboclo de lança).
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***
Maracatu de Outrora
Passava por desespero
O brinquedo do terreiro
Brigava com o de fora
Só que está sendo agora
muito mais civilizado
Depois de modernizado
Ninguém briga com ninguém
Que a modernidade vem
Dando apagão no passado.
“Brincar Maracatu é muito fácil, o negócio é entender Maracatu”, diz Biu Alexandre. E o
que é entender Maracatu? O que sabem as pessoas que entendem Maracatu? Diante destas
perguntas, a primeira coisa que aprendi é que quem sabe não diz. O saber está relacionado a
um segredo e a uma entrega. Como formula o músico de Maracatu Joabe: “Maracatu é
mistério, é muito difícil de entender. Tem que se entregar de corpo e alma, virar um amante
de MBS”.
Se “hoje todo mundo brinca”, a alusão ao passado, ao respeito, qualifica quem conhece
Maracatu. O respeito é uma noção nativa, que demonstra a consciência de quem brinca, do
que se faz no Maracatu, da profundidade daquele mundo. “Agora como é entender o Maracatu:
primeira coisa o respeito. No Maracatu se a pessoa é casada, não pode nem dormir junto com
a mulher. Ele tem que respeitar aquela brincadeira. É porque muita gente não respeita, às
vezes dá até certo desmantelo”.
Antigamente, a nação do Maracatu saía na rua. Se o homem em casa deitasse com a
mulher, acontecia um monte de desavença no Maracatu, isso é real. Por isso que muito
Maracatu acabou em merda, todo mundo deu disenteria. Aconteceu de Maracatu se
perder dentro de uma cidade, da qual ele era de lá, e não conseguir sair pra outra cidade.
As pessoas acham que isso é coisa da cabeça do povo, mas não é, essa é a realidade do
nosso povo. Hoje, tem muito maracatuzeiro que vai fazer coisa pro outro Maracatu não
sair, porque é mais bonito do que ele. E se der um vacilo, qualquer coisa acontece.
Acontece de o carro quebrar, do mestre adoecer, acontece muito do mestre ficar rouco,
não cantar nada. Pra todos os efeitos, ainda existe o respeito (Joabe, instrumentista).
Quem toma parte num Maracatu está sujeito ao perigo, ao azar, ao desmantelo. Não
somente o carnaval é considerado um período em que “tem muita coisa-ruim solta”, como
também, para agravar, quem está brincando no Maracatu é muito visado, “está cheio de brilho
e boniteza”. Quem brinca no Maracatu deve estar com o corpo fechado para não se tornar alvo
de inveja, do olhado, enfim, dos sentimentos negativos, dos quais o carnaval parece ser um
forte catalisador.
Como diz Seu Luiz, um mestre de caboclo:
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um caboclo que pega uma arrumação é um caboclo, né? É um caboclo, mas falta muito
pra ser um caboclo. Tendo umas pessoas que sabem o que é Maracatu, brincar Maracatu
é muito fácil. O negócio é ter uma experiência de um caboclo, aí é que são elas.
Essa ideia de que, para ser caboclo, não basta simplesmente botar uma arrumação, mas
saber ser caboclo inclui sempre uma moral de “dizer que não sabe”. No interior se diz que
“quem é bom, o povo é quem fala”. O saber está ligado ao segredo. Quem sabe guarda.
O saber é definidor das posições e das responsabilidades dentro do Maracatu,
especialmente em se tratando dos caboclos, que são os protetores do Maracatu como um todo.
E como já foi dito, o carnaval é um momento de grande intensidade dos maus sentimentos,
como a inveja, o mau olhado.31 O respeito dinamiza uma noção de responsabilidade individual,
que assegura o equilíbrio espiritual do coletivo. O esquema de coerção e autocontrole se revela
na tentativa de estabelecer a sorte, isto é, de afastar o desmantelo.
O calço é conhecido pelo povo de Maracatu como uma preparação espiritual, a busca de
uma força externa para brincar o carnaval protegido. O ritual de feitura do calço é descrito de
formas variadas, sendo uma prática utilizada ainda hoje para fechar o corpo no período do
carnaval. Entre as formas mais mencionados de fechar o corpo estão os preparos individuais:
banhos de descarrego, defumar a arrumação, acender vela.
O calço propriamente é considerado como preparação que precisa ser feita por um
especialista, um pai de santo ou uma mãe de santo. No caso dos caboclos, o calço seria um
preparo no cravo; no caso dos mestres, um preparo no apito ou na bengala.
O cravo é a chave do corpo do caboclo. Pra fechar o corpo, ele leva o cravo pra casa de
macumba, pra calçar. O mestre leva a bengala. Quando você veste aquela arrumação,
você não é mais você, você é um caboclo de lança, uma entidade de Maracatu. A pessoa
não reconhece mais as feições, você fica incansável, brinca sem parar. Maracatu hoje
virou um bloco, uma diversão. Poucas pessoas estão ali por causa da religião
O segredo parece ser uma fórmula mágica, coletiva ou individual, que tanto pode ser
falada como tocada. Se o segredo for revelado, o Maracatu desmantela. Se alguém toca no
segredo (o apito do mestre ou o cravo do caboclo), também desmantela. Mesmo que o
segredo tenha sido bem guardado, se alguém desrespeitar, desmantela. O segredo do
Maracatu também é sua força. Cito uma conversa entre Aguinaldo (caboclo de lança) e Amaro
(baiana):
Aguinaldo: o dono de Maracatu tem segredos, tem coisa que ele não pode dizer. Eu
mesmo que não sou dono tenho coisa. Tem coisa que ele guarda com ele até morrer.
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! O trabalho de Malinowski (1978) nos inspira aqui na medida em que uma das dimensões centrais do kula é a
rivalidade entre os parceiros e a magia é utilizada para assegurar o bom desempenho, assim como as análises de
Mauss (2003) sobre o potlatch.!
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Tem coisa que só sabe quem é de Maracatu. Porque se vira fuxico, é fácil outro Maracatu
saber. Dono de Maracatu nenhum conta seu segredo, pois o outro pode tentar acabar
com ele e a brincadeira.
Amaro: É quase que nem candomblé, que também tem segredo. Eu levanto meu
terreiro, faço um filho de santo, mas tem coisa que eu não ensino a ele, o ponto de
matar. Um dia ele pode ter ódio de mim e me matar: ele vai usar o segredo.
Esta e outras conversas me levaram à ideia de que, “quase que nem candomblé”, há
uma iniciação no Maracatu. Que os segredos do Maracatu dizem respeito ao saber, ao
fundamento. Não se pode deixar escapar o saber do Maracatu, pois ele constitui uma força
que, caso fique fora do controle dos seus guardiões, torna-se um ponto fraco. Este saber, no
entanto, não está ao alcance de qualquer pessoa que brinque no Maracatu. Muito pelo
contrário, os que sabem devem tornar-se merecedores através do próprio caminho de busca
do saber.
No plano coletivo, o Maracatu parece necessitar de um preparo para estar protegido de
qualquer problema que possa desmantelar o grupo: seja por motivo de doença ou bebedeira
em excesso de algum integrante; seja por uma apresentação malfeita; seja pelo fato de o
mestre não dar conta da improvisação dos versos; seja porque os músicos ou o terno não
estão aprumados; ou porque outro grupo faz mandinga. O dono do Maracatu deve se
responsabilizar pela preparação do Maracatu como um todo: consultar uma mãe de santo,
jogar búzios e fazer o que for necessário para botar o Maracatu. Botar o Maracatu refere-se a
um esforço (trabalho) do dono do Maracatu para colocar o brinquedo na rua. Mas é muito
usual ouvir este verbo em relação aos brincantes: “fulano tem que saber a hora de botar o
caboclo”, que expressa uma habilidade do brincante em se deixar ser possuído pelo
personagem e também ter controle sobre ele.
A preparação espiritual, no plano individual, transmite a ideia de que o maracatuzeiro
precisa construir um novo corpo para brincar o carnaval. Um corpo espiritualmente imunizado
à doença, ao insucesso numa briga, à ressaca e ao cansaço depois do carnaval.
O carnaval na Zona da Mata dá a ideia de que uma espécie de espírito maracatuzeiro
possui os folgazões e os faz terem disposição para uma verdadeira peregrinação. Desta forma,
os maracatuzeiros passam três dias e três noites viajando por estradas esburacadas,
apresentando o brinquedo sob sol fortíssimo e sob o sereno da madrugada, dormindo cerca de
três horas, bebendo muito (grande parte, apesar de alguns donos proibirem a bebida) e, ainda
assim, motivados pela certeza de que, se nenhum deslize espiritual for cometido, não ficarão
doentes e muito menos cansados. É como se, mesmo forçando ao máximo os limites do corpo,
ele não cedesse, pois está sustentado por uma força espiritual. Essa força espiritual é, em
alguns casos, um espírito encostado, que acompanha e protege o caboclo.
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O carnaval parece ser uma espécie de prova de resistência. Mesmo sendo uma grande
diversão, tem um sabor de sacrifício. Neste plano é que parece acontecer a simbólica de uma
guerra, tendo os caboclos de lança nas trincheiras, como também uma batalha com o próprio
corpo, em que o maracatuzeiro luta com sua resistência física, com a exaustão mental, indo
até os últimos limites do corpo e da saúde pelo carnaval.
Eu, no carnaval, sou uma coisa. Eu aqui tô em mim mesmo, no carnaval, eu tenho uma
companhia comigo. Só no pintar da cara a gente se sente... Isso aí eu aprendi com meu
tio: se você é caboclo de Maracatu e tem aquele clima pra carnaval e no domingo de
carnaval, depois que você se vestir, você for pintar sua cara, no espelho, e depois de
pintar a cara não vê outra cara encostada, você não tá preparado pra brincar o carnaval.
Quer dizer que você é aquela companhia que botaram em você pra brincar. Depois que tô
no espelho e me pinto, a minha família reconhece que eu tô diferente, que eu mudei. Meu
sangue se some. Dá uma evolução no corpo. Chega na terça-feira, tomo um banho de
mato cheiroso, troco de roupa e tô novo.32
Nas várias conexões dos modos de conhecimento do Maracatu com as religiões afrobrasileiras, uma noção que nos parece central é a ideia de uma concepção ontológica
carnavalesca. Tal como no candomblé, a concepção ontológica central é o caminho entre o
“não-ser” do homem (não-iniciado) e o “ser” pleno dos orixás ou caboclos, podendo ser
pensado e construído como uma “continuidade que poderia ser percorrida por aqueles que,
ingressando no culto, passam por todos os rituais e aceitam todas as obrigações” (Goldman,
2003:14).
Como sugere Goldman, o caminho entre o “ser” e o “não-ser” é “uma estrada aberta e
cheia de idas e vindas, de perigos, que se acentuam ao longo do percurso. [...] nesse sentido
a possessão aparece como um clarão fugaz e passageiro dessa realização do ser” (idem).
As narrativas do passado sugerem que nos tempos antigos os integrantes do Maracatu
eram, em sua grande maioria, preparados espiritualmente para a vivência plena e religiosa do
carnaval. Fica a imagem de grupos exclusivamente masculinos, “cabras machos” que estavam
dispostos a tudo pela brincadeira. Atualmente, com o processo de transformação do Maracatu
em “cultura”, os grupos passaram a ser mais heterogêneos, permitindo a participação de
mulheres, crianças e homossexuais (que por principio não poderiam fazer parte do conjunto,
segundo pressupostos religiosos) e mesmo de homens que brincam “só por esporte”, isto é,
que não têm “um conhecimento em Maracatu”. O Maracatu pacificado torna-se mais flexível e,
neste sentido, menos religioso. No entanto, certas prescrições e tabus continuam sendo
praticados, transmitidos e ensinados pelos conhecedores do Maracatu como uma garantia de
que a brincadeira esteja espiritualmente protegida.
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Preferi nesta fala específica preservar a identidade do meu informante.
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IV. O Fim do Ciclo: o Carnaval de Páscoa
Chuva forte da manhã. Escuta-se o bater do surrão de caboclos que andam na rua. Um
caboclo passa na porta da casa. Clécia, filha de Aguinaldo, comenta: “parece até véspera
de Carnaval”. É sábado de Aleluia. Quando saímos na rua, avistamos catitas brincando,
fazendo graça com as pessoas.
Aguinaldo: “Semana Santa aqui tem gente que só come uma vez por dia, não toma
banho e não namora”. Eu indagando: “como no carnaval?”. E ele responde: “é, quase que
nem carnaval”.
Na manhã seguinte, domingo de Páscoa, dez caboclos de Condado, entre eles
participantes do Leão e do Estrela, lotam duas kombis para Itaquitinga. Todos na
expectativa da surpresa que fariam para Seu Baixa, dono do Maracatu Leão da Mata de
Itaquitinga. Bel, o caboclo que estava organizando o carnaval de Páscoa, havia
combinado com os tocadores do terno do Maracatu de seu Baixa.
O Maracatu da Páscoa, composto apenas de terno e caboclos, manobrou algumas vezes
na frente da sede do Leão da Mata, surpreendendo Baixa e sua mulher, que logo trataram
de improvisar um almoço para o pessoal.
Na volta de Itaquitinga para Condado, as duas kombis que vieram cheias, uma voltou
vazia e a outra com espaço sobrando. A maior parte dos caboclos ficou por lá tomando
bicada e brincando o carnaval de Páscoa com surrão nas costas. Na mesma noite,
Aguinaldo e eu, que voltamos na kombi semivazia, tivemos notícias do bando de caboclo
bicado, que não queria deixar os bares fecharem, sambando Maracatu. Como Fabinho nos
contou depois, a cabocaria de Páscoa foi caminhando por todo o trecho, de Itaquitinga até
Condado, parando nas biroscas, botando um CD de Maracatu para sambar e tomar
bicada. Afinal, é na Páscoa que a cabocaria faz o carnaval.
Na pequena retomada de uma questão a respeito da dimensão ritual do brincar
Maracatu, cito este trecho do meu diário de campo. Se cosmologicamente a oposição
carnaval/quaresma é ritualmente vivida através de valores dominantes dos festejos nas ideias
de finitude do corpo / resguardo, o riso / a reserva, a matéria / o espírito etc., essas oposições
operam contrariamente nos valores do Maracatu.
O carnaval como é feito e narrado pelos maracatuzeiros, desde a guerra até o
espetáculo, é pensado como uma atividade séria que exige respeito, que vai bem com a ideia
de profissionalismo. A Páscoa é o momento em que o caboclo pode fazer carnaval, brincar
livremente, descontraído, sem obrigação, não se preocupando com desmantelo. O domínio do
riso, tão celebrado por Bakthin, está presente na Páscoa do Maracatu, numa ideia
“carnavalizante” do carnaval do Maracatu.
Muito além do carnaval como uma festa do diabo, ou “a serviço do diabo” ou antiCristo, a festa é vivida como uma experiência religiosa de outras ordens, ainda que fortemente
conectada à simbologia cristã, em seus infindáveis processos criativos. A superposição de
níveis em que a brincadeira do Maracatu é plenamente vivida se revela na experiência de
saber-ser.
Um último esforço se faz no sentido de trazer para a dimensão da atualidade a
brincadeira vivida no corpo, na dança, na poesia, na música, na preparação, como a
constituinte do saber e da experiência individual e coletiva que mobiliza toda a produção do
que se chama Maracatu.
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Vejo a tradição como um gosto compartilhado, que cria uma linhagem ao longo do tempo.
O Maracatu tem sua tradição, o rock tem sua tradição. [...] Não gosto do termo
“contemporâneo” como oposição a “tradição”. Ele é usado geralmente para reforçar
preconceitos contra coisas consideradas arcaicas ou primárias. Minha música e minhas
letras estão profundamente ligadas ao meu tempo. Mesmo porque não tenho a menor
preocupação com a preservação ou a manutenção de nada. Faço Maracatu porque ele
está vivo, e as pessoas da minha terra gostam dele porque gostam, e não para preserválo. [...] Se ele acabar um dia, é porque não conseguiu se adaptar. O Maracatu sobreviveu
porque foi pra cidade, teve contato com a TV e o rádio, seus poetas tiveram alfabetização
e ampliaram seus temas. Se a tradição dá o passo à frente, acompanhando o mundo, ela
segue viva. Se não, não adianta gravar, fazer livro, registrar, defender... (Siba, músico,
compositor e mestre de Maracatu e Ciranda).
Vejo nestes espaços em que o Maracatu é criado – cantado, vivido, sambado, sabido –
a “expressão social total” da atualidade da brincadeira na região: “pois a atualidade não tem
esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será justamente uma nova atualidade”.33
Referências bibliográficas
ACSELRAD, Maria. “Viva Pareia” A Arte da brincadeira ou a beleza da safadeza – uma
abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação de mestrado defendida
no PPGSA /UFRJ, 2002.
ANDRADE, Mário de (org. Oneyda Alvarenga). Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia, 1982.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e do Renascimento. São Paulo, Brasília:
Hucitec, 1999.
BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
CARVALHO, José Jorge de. Violência e caos na experiência religiosa. In: MOURA, Carlos
Eugênio Marcondes de (org.). As senhoras do Pássaro da Noite: Escritos sobre a religião dos
Orixás V. São Paulo: Edusp, 2003.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores do desfile. Rio
de Janeiro: Funarte / Ed. UFRJ, 1995.
________. Tema e variante do mito: sobre a morte e a ressurreição do boi. Mana, Rio de
Janeiro, v. 12, n. 1, p. 69-104, 2006.
CHARTIER, Pierre (org. Bernadette Bricout; trad. Lelia Oliveira Benoit). O olhar de Orfeu. Os
mitos literários do Ocidente. São Paulo: Companhia da Letras, 2003.
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Trecho do romance A Paixão segundo GH, de Clarice Lispector.
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CHAVES, Suiá Omim. Carnaval em Terras de Caboclo: uma etnografia sobre Maracatus de
Baque Solto. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional /UFRJ, 2008.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify,
2009.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo:
Ed.34, 2002.
GOLDMAN, Marcio. Classificações e Transformações: Série Estrutura e Devir no Candomblé,
2003. A primeira versão deste texto foi apresentada na mesa de leituras de Durkheim e
Mauss: Antropologia e Sociologia em diálogo do “Seminário Formas Primitivas de Classificação,
Cem anos depois” (mimeo).
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2002.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
-Data de recebimento: 19/05/2010
Data da aprovação: 19/10/2010
PARA CITAR ESSE ARTIGO
CHAVES, Suiá Omim Arruda de Castro. Carnaval em Terras de Caboclo: Saber e “Cultura” no
Maracatu de Baque Solto. Enfoques - revista dos alunos do PPGSA-UFRJ, v.10(1), maio
2011. Online. pp. 91-114. http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/~enfoques/

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