Aspectos da saúde emocional de nossas crianças, sob o ponto de

Transcrição

Aspectos da saúde emocional de nossas crianças, sob o ponto de
Entrevista
Ouvidos atentos
às emoções
infantis
Cristina Ministerio é jornalista (Belo Horizonte – MG).
O belo-horizontino José Raimundo da Silva Lippi é dono de vasto currículo construído ao longo de
muito trabalho e dedicação, voltados,
principalmente, para o comportamento das crianças e o desenvolvimento
humano. Possui graduação em Medicina e especialização em Psiquiatria
da Infância e Adolescência e doutorado em Saúde da Criança e da Mulher.
O Dr. Lippi é considerado o introdutor, no Brasil, da Psiquiatria da Infância e Adolescência e um dos mais influentes psiquiatras da atualidade. Fez
carreira acadêmica no Departamento
de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG, onde
foi professor concursado, e no Departamento de Saúde Mental, como
professor convidado. Em São Paulo,
foi, também, professor colaborador
do Departamento de Medicina Legal,
Ética Médica, Medicina Social e do
Trabalho, da Faculdade de Medicina
da USP, onde trabalhou no Centro de
Estudos Relativos ao Abuso Sexual (Cearas). Participou da criação da
Associação Brasileira de Neurologia,
Psiquiatria Infantil e Profissões Afins
(Abenepi), no Guarujá (SP), presidindo a instituição por duas gestões. Em
Belo Horizonte, presidiu a Associação
Brasileira de Prevenção e Tratamento
das Ofensas Sexuais e o Ambulatório
Especial de Acolhimento e Tratamento de Famílias Incestuosas. Foi diretor
do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil (HNPI), hoje Cepai, instituição
pública de saúde.
O Dr. Lippi é membro emérito da Academia Mineira de Medicina
que lhe conferiu um prêmio por seu
trabalho frente à direção clínica do
Hospital Psiquiátrico Galba Velloso
(HGV). É, ainda,“Gente que faz”, segundo a Rede Globo, por estar à frente
de projetos sociais, como o da Favela
da Ventosa, na capital mineira. Autor
de oito livros e diversos trabalhos em
revistas nacionais e internacionais sobre a alma humana e o processo terapêutico, conferencista e presidente de
inúmeros congressos, o Dr. Raimundo
Lippi idealizou, também, o Instituto
de Desenvolvimento Humano Lippi,
“especializado no desenvolvimento
e formação de pessoas, profissionais,
equipes de trabalho e empresas que
desejam avanços de performance e
melhoria contínua”. Em sua clínica
particular, recebeu a revista AMAE
Educando para falar aos professores
sobre problemas que estão muito perto do ambiente escolar, ressaltando,
todavia, que “a resposta é a desgraça
da pergunta. Quando alguém pergunta
e tem a resposta, ele deixa de refletir
sobre o que estava querendo saber,
mas a sociedade funciona assim, com
as informações.”
AMAE Educando – De um
modo geral, como o senhor vê a saúde psicológica das nossas crianças?
Raimundo Lippi – Como eu
sempre vi. O que mudou foi o contexto em que elas vivem. As crianças de
30 anos passados não tinham videogames nem iPad. O meu netinho de
4 anos pega um iPad e faz o que ele
quer e eu sou do tempo da máquina
Olivetti. As crianças estão nascendo
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inisterio
Cristina M
mais estimuladas e, por isso, elas estão mais vivas, não mais inteligentes. Elas
estão
correspondendo mais
ao entorno delas. Antigamente,
quando um bebê
nascia,
levava
quatro a cinco dias
para o umbigo cair,
o olhinho não abria.
Hoje, eles nascem
já olhando para o
rosto da mãe, para o
que está acontecendo,
porque o cérebro foi
feito para captar seu
meio externo. Eu sou
de uma época em que
os bebês usavam cueidos
ro, todo enrolado, aquela
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peça durinha. Hoje, temos
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r.
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tornos do
dos trans
de soltar “os bichinhos”
para bater as pernas, rolar de lá para
a assistência à saúde piorou horrivelcá. Isso quer dizer que a sociedade, a
mente porque o modelo assistencial
pediatria, a neuropediatria, a neuromédico brasileiro é um caos. Não
psiquiatria infantil desenvolveram
só o do SUS, pois os planos de saúseus conhecimentos e, nós, profissiode são um SUS pago. Vamos a uma
nais da área da saúde da criança, estaemergência com a nossa carteirinha
mos muito mais munidos de recursos.
e temos de ficar em uma fila enorme,
Há pessoas que dizem que, por causa
mesmo pagando um absurdo. Antigado desenvolvimento, as crianças esmente, tínhamos o pediatra da famítão adoecendo mais. Não é isso. Elas
lia, o clínico da família, que visitavam
estão correspondendo aos estímulos
as casas. Hoje, há uma profissionalique o meio traz, mas a sua saúde vai
zação da indústria médica, mas um
depender do contexto em que elas
avanço tecnológico extraordinário da
vivem. Há famílias mais saudáveis e
medicina, que beneficia a todos nós,
famílias neuróticas, psicóticas, desorembora a assistência que esses proganizadas, incestuosas.
gressos poderiam permitir ao povo
lhe é negada. A saúde da criança está
AE – E a assistência médica
inserida nesse contexto.
a essas crianças, melhorou ou piorou?
AE – E as doenças antes ditas
RL – No meu ponto de vista,
de adultos, como depressão, ansie-
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dade, fobias, agora são doenças
infantis também?
RL – As crianças sempre
tiveram tais doenças, mas eram
mal diagnosticadas. Quando eu
comecei a estudar não existia
nada sobre o assunto. Como
poderia fazer um diagnóstico
quem não conhecia o assunto? Eu sou um dos introdutores da psiquiatria infantil
no país, publiquei o primeiro livro, no Brasil, sobre
depressão na infância. Os
colegas diziam: “Você
está ficando doido, criança não se deprime, psicanaliticamente não tem
uma estrutura mental
que comporte”. Hoje,
está comprovado que a
depressão não só existe na infância
como ela irá num progredir. Um adulto depressivo foi depressivo na infância ou sofreu algumas depressões desencadeadas por outros fatores, mas
não a depressão biológica, que vem lá
de trás. Existem crianças psicóticas,
existem neuroses na infância, com
nomes diferentes, há transtornos de
ansiedade, medos, fobias.
AE - É fato que o bullying
leva muitas delas aos consultórios
psiquiátricos?
RL – Muitas crianças já vieram
aqui por causa disso, mas eu tenho
ideias sobre o bullying completamente diferentes da maioria, das que estão nos jornais, nos livros. Dizem que
tem um abusador e uma vítima. Eu
vejo tudo isso diferente. Às vezes, a
vítima não é tão vítima assim, ela cria
situações para se vitimizar. Não existiria bullying por aquele que o pratica,
se não existisse aquele que o sofre e
alguns querem sofrer para poder acusar alguém. Então, temos casos de
bullying em que um é masoquista e o
outro é sádico. É uma relação perversa entre as pessoas. É como o marido que bate na mulher e ela não vai
à delegacia e, quando vai, é porque a
situação já ultrapassou o privado, o
vizinho viu, etc. Só condenar o outro
é muito pouco para resolver a questão.
Há muitas outras coisas que podem
ser feitas.
AE - E os alunos que assistem
a tudo e não interferem? Isso também não é saudável?
RL - É que alguns aceitam ser
palhaços e o público vai aplaudir.
Quando eu era menino, eu ia ao circo e via um palhaço correndo atrás do
outro com um pedaço de pau e todo
mundo ria. Isso acontece. É um pequeno circo em que os alunos apreciam aquela “covardia” e não fazem
nada. É um contexto de perversidade.
AE - E, no futuro, todos poderão sofrer problemas psicológicos
advindos dessa situação, inclusive
os que assistem?
RL – Sem dúvida nenhuma.
Quanto à situação dos que assistem é
diferente, porque, hoje, a gente vê um
assalto, as pessoas pedem socorro e
ninguém se move. É um momento em
que a sociedade funciona assim. Um
momento delicado onde um grupo
de ladrões mensaleiros, que já deveria estar preso, está protelando todo o
processo. E isso como exemplo para
as pessoas trabalhadoras, que pagam
seus impostos...
AE - O senhor concorda que
a hiperatividade tem sido diagnosticada, cada vez com mais frequência, como uma doença?
RL - Às vezes, é absolutamente
necessário e a ritalina ou o metilfenidato já têm mais de 50 anos de uso.
Nos EEUU, na Europa, se usa, mas
não da maneira como está acontecendo atualmente. Um bom médico, um
bom neurologista, neuropsiquiatra ou
psiquiatra de criança sabem diagnosticar e o remédio será igual “à água
na fervura”. Mas há crianças que, por
qualquer espirro que dão, por qualquer movimento na cadeira, porque
não são alunos bonzinhos, têm hiperatividade, têm transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade (TDAH).
É como se o remédio fosse o milagre
da sociedade moderna e fosse devolver a paz às escolas. Existe o quadro,
ele é catalogado nas classificações internacionais, na Organização Mundial
de Saúde e na Associação Psiquiatra
Americana e tem como ser diagnosticado. Mas, para diagnosticar, tem
que se saber e muita gente não sabe.
Por qualquer arrepio, já se dá o diagnóstico e o remédio. Vou repetir, o
remédio é fundamental no tratamento
do transtorno, mas ele tem de ser bem
diagnosticado.
AE - Mas como pode o professor ou o pai saberem a hora certa
de levar a criança para um diagnóstico?
RL – Quando ele não para em
lugar nenhum, não é só na escola. O
hiperativo não para em casa, também,
não para nem para ver televisão, para
comer. Não é que ele esteja fazendo
por mal. Este descontrole motor faz
parte da patologia. O que a escola está
querendo é que os meninos fiquem
sentadinhos, mas tem que se observar,
também, se a criança está com um
conflito familiar sério. A professora
olha e o aluno está desatento como se
estivesse viajando, então ela diz que
ele tem transtorno de déficit de atenção. Se a professora observa isso, claro que não cabe a ela falar que é um
transtorno e indicar a ritalina. É preciso uma equipe multidisciplinar preparada que possa avaliar essa criança.
Ela pode estar ocupando sua mente na
hora em que deveria estar prestando
atenção, porque tem uma epilepsia ou
um conflito emocional pela gravidade
do contexto em que está vivendo, ou
ela está sendo abusada sexualmente. Há muitas coisas que fazem uma
criança ficar com a cabecinha baixa e
não corresponder ao aprendizado com
a inteligência que ela tem. Não é tão
simples assim.
AE - Até porque aquele que se
isola tem problemas para se comunicar e não é hiperativo, também,
pode ter algum tipo de trantorno.
RL – Claro. É o que nós chamamos de fobia social. Existem as
pessoas muito inibidas, que não conseguem se comunicar com os coleguinhas, não conseguem olhar para
o rosto da professora. Os psiquiatras
infantis existem porque existem os
transtornos mentais na infância. Se
nós formos a uma classe, identificamos alguns deles.
AE - Que tipo de transtorno
emocional está mais relacionado ao
fracasso escolar?
RL – A patologia na aprendizagem escolar é muito vasta. São vários
os quadros que podem provocar uma
baixa de rendimento. Desses fatores
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há, por exemplo, a dislexia, a discalculia, a disortografia. São quadros que
a professora experiente detecta. Um
garoto que vai escrever f e escreve v,
troca sonoros por surdos. A professora diz “favela” e ele escreve “vafela”.
Hoje, há recursos profissionais especializados que se dedicam a recuperar
esses tipos de problemas, porque esses alunos irão mal na escola, porque
eles não conseguem seguir o aprendizado visual que lhes é dado. Existem,
também, inúmeras patologias mentais que dificultam o aprendizado. Há
criança fóbica, criança tímida. Quando a criança está em fracasso escolar,
a supervisora, a diretora e o corpo
docente devem se reunir e aplicar os
conhecimentos que eles têm e, hoje,
temos escolas fantásticas com pessoas
habilitadas que sabem o que estão fazendo. Quando todos os recursos utilizados não conseguirem ajudar, devem procurar uma equipe experiente,
porque não basta procurar qualquer
profissional, é preciso que ele tenha
experiência. Às vezes, a criança se
frustra porque foi ao médico, ao psicólogo, e não progrediu.
AE – A que o senhor atribui
os crescentes casos de indisciplina e
de desrespeito da criança pelas autoridades, inclusive pelos professores, por exemplo?
RL – Nós vivemos uma etapa
que eu denomino de psicologismo
danoso, pelo qual a sociedade passa
hoje. Em nome dos direitos humanos,
as pessoas têm direito a tudo, mesmo
não cumprindo com seus deveres. O
reflexo disso, e pode ser o início do
problema, é quando a criança não
recebe educação, pela família, e não
sabe ouvir um não. O não é uma pa-
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lavra terrível, mas não há crescimento
sem frustração. Renné Spitz, um grande pediatra francês, na década de 50,
na sua tese de doutorado, já dizia que
“sem frustração não há crescimento”.
Temos de dizer não na hora em que
o não é necessário. Agora, só dizer
não, não, não, também não é saudável. Educar é dar, à criança, o que ela
necessita, no momento que necessita
e não dar o que não necessita. Se o
aluno necessita do não, é preciso dar,
mas dizê-lo uma vez só e a palavra
tem de ser respeitada. Vejo pais que
dizem “não faça isso” uma, duas, três,
quatro vezes. A criança vai obedecer
como, se ela não aprendeu o que é
respeito? Há adolescentes que estudam em colégios de famílias de poder
aquisitivo elevado e que mandam os
professores calarem a boca dizendo
que eles são seus empregados, porque seus pais pagam o colégio. Eles
devem ter ouvido isso em algum lugar, eles aprenderam que as pessoas
são seus empregados. No meu tempo,
os alunos se levantavam quando os
professores entravam na sala de aula,
havia respeito pelo pai, pela mãe, pelo
avô, pelo tio. Hoje, há famílias que
não têm esse respeito e isso se estende
para a escola. Entretanto, infelizmente, também, há casos em que as famílias fazem o melhor que podem, mas
têm filhos que “descarrilham”. Isso já
é patologia mental.
AE – Qual é a escola menos
danosa para a saúde emocional dos
alunos: as escolas muito rígidas que
exigem uma performance perto da
perfeição, ou, ao contrário, as escolas muito permissivas onde faltam
cobranças?
RL – A escola ideal é muito
distante da real, mas seria aquela escola onde educar é dar a matéria que o
aluno necessita no período em que ele
necessita, e não dar matéria que ele
não necessita só para que a escola se
projete, mostrando os alunos que passam nos concursos. A criança precisa
mais de brincar do que de muita rigidez nas matérias, mas brincar aprendendo. Ela precisa aprender a fazer os
deveres do para casa todos os dias e
não fazer como algumas famílias que
acham que a escola é rígida e o filho
não faz o dever porque é muito longo. A criança precisa ter horário para
estudar, horário para brincar. Quanto
mais inteligente a criança, mais fantasiosa ela é e tem de ter tempo para
fantasiar, conversar sozinha, falar
com suas bonecas, consertar seus carrinhos, brincar com seus super-heróis,
além de fazer seu dever de casa.
AE – Depois de tantos anos
lutando para que crianças e adolescentes sejam mais felizes, alguma
coisa ainda o surpreende no exercício da sua profissão?
RL – O que mais me espanta
é o espanto das pessoas ao perceberem crianças com sintomas diferentes
e pessoas que condenam uma criança
por apresentarem problemas emocionais. Uma criança pode ser bonitinha,
precisar fazer um tratamento dentário, quebrar um dedinho e ser operada, pode ter problema cardíaco ou
ter asma, mas falou que ela tem uma
fobia, uma ansiedade oculta, angústia,
autismo, é um horror. A sociedade
tem fobia à doença mental. Nós precisamos ajudar a sociedade a descobrir
que não devemos nos espantar com
isso. Isso é comum na vida.