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CINEMA
Qual a finalidade da vida? Para que serve
uma existência? O que é mais importante na
vida? Para que estamos aqui? Perguntas como
estas assombram a humanidade desde seus
primórdios e não foram poucos os estudiosos
que dedicaram suas vidas para tentar minimizar
a angústia que elas nos causam. Talvez uma
das melhores respostas a tais perguntas seja
dada pela Ética aristotélica, que afirma que
todas as coisas visam um Bem e que o Bem
supremo é a Felicidade. Idéia essa que também
é corroborada pela filosofia de Epicuro, que
enfatiza a importância de elementos como a
amizade e a busca do prazer nas coisas simples.
Certamente o pensamento filosófico marcou
profundamente o “espírito grego” (e de todos
os povos que tiveram contato com essa cultura),
tanto que podemos encontrar reflexos desse
pensamento clássico em obras modernas, como
no livro “Zorba, o Grego” de Nikos Kazantzakis,
tão brilhantemente adaptado para o cinema por
Michael Cacoyannis e estrelado por Anthony
Quinn e Alan Bates nos respectivos papéis dos
protagonistas Zorba e Basil. Trata-se de um
filme que enfatiza o lado humano da existência
e que preconiza a importância de valorizar e,
sobretudo, de participar com toda intensidade
da vida, a cada dia e a cada instante. É uma
obra que apresenta a vida como um prêmio a
ser desfrutado e não como um sacrifício a ser
suportado. Sendo assim, “Zorba, o Grego”
destaca-se como um dos clássicos da sétima
arte que, necessariamente, precisa ser assistido
por todos aqueles que de um modo ou de outro
se relacionam ou atuam em áreas como a
Filosofia, as Artes e as Ciências Humanas.
O filme em si já se apresenta como um
excelente exemplar da arte cinematográfica,
com ótimas interpretações, mesclas de cenas
que vão do humor ao drama e ênfase nos
aspectos emocionais (quase viscerais) dos
personagens. Entretanto, o que mais toca
a percepção do expectador são os diálogos
eloquentes, com um tom filosófico, grego,
trágico, pequenas “lições de vida”, entre os dois
personagens principais do filme, Zorba e Basil.
O expectador poderá tirar grande proveito para
sua vida pessoal se estiver atento ao conteúdo
e intensidade das falas desses personagens.
Um exemplo desses diálogos já aparece logo
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no início do filme. Basil, (um escritor inglês,
meio grego por parte de pai e herdeiro de uma
mina desativada localizada na ilha grega de
Creta), mostra-se desajeitado e contrariado
com o péssimo trabalho dos estivadores
gregos que embarcam sua mudança, debaixo
de chuva, em um navio que não zarpa devido
ao mau tempo. Assim que consegue despachar
sua mudança, Basil busca refúgio da chuva em
um saguão, onde outros passageiros também
aguardam a melhora do tempo e ali ocorre
A celebração da amizade
e do prazer em viver:
uma reflexão sobre o filme “Zorba, O Grego”
André Luiz Picolli da Silva
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seu encontro com Zorba. Esse se aproxima
de Basil e começa a interpelá-lo de um modo
debochado, inconveniente, chamando a
atenção de quem está ao redor, num modo
típico de agir de pessoas “menos cultas” ou
“menos educadas”...
Zorba - Você está viajando... para onde, se me
permite?
Basil - Creta.
Zorba - Vai ficar lá bastante tempo, não?
Basil - Como sabe?
Zorba - Eu o vi com as caixas, na chuva. Muito
engraçado... gostei de você... leve-me com
você, sim?
Basil - Levá-lo?... por quê?
Zorba - Por quê?... será que ninguém faz nada
sem perguntar “por quê?”... simplesmente por
fazer?... muito bem, leve-me como cozinheiro.
Sei fazer sopas.... gosta de sopa, não?
Basil - Bem...
Zorba - É claro que gosta. É inglês, não?
Basil - Meio inglês.
Zorba - Meio?
Basil - Meu pai era grego, mas nasci na
Inglaterra.
Zorba - Dá na mesma.
Basil - Você é cozinheiro?
Zorba - Se precisar de um, sou.
Basil - Eu quis dizer, que tipo de trabalho você
faz?
Zorba - Ouça, eu tenho mãos, pés, cabeça.
Eles trabalham. Quem sou eu para dizer o que
fazer?
Esse primeiro diálogo chama a atenção
pelo estilo despojado e de certo modo infantil
de Zorba, que deseja ir com Basil para Creta,
simplesmente porque “gostou dele” e fica
irritado quando questionado sobre o “por quê?”.
Esse primeiro diálogo também lembra o modo
ingênuo de ver o mundo, do protagonista do
clássico “O pequeno príncipe” de Antoine de
Saint-Exupéry, que também ficava indignado
quando o seu interlocutor expressava alguns
posicionamentos “sérios”, “maduros” ou
“adultos”. O que fica claro nesse primeiro
diálogo é que para se iniciar uma amizade com
alguém é necessário um elemento essencial:
“o gostar dessa pessoa” e “querer o seu bem”.
E para isso, não é prioritariamente necessário
o conhecimento de elementos racionais,
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como saber o que essa pessoa faz, quanto
dinheiro tem, onde estudou, onde mora, de
quem é filho etc. ou em outras palavras, uma
verdadeira amizade é algo essencialmente
emocional, está mais ligada mais ao “sentir”
do que ao “saber”. Isso nos faz refletir sobre
quantas vezes deixamos passar em nossas
vidas excelentes oportunidades de desfrutar
de amizades sinceras simplesmente por
sermos “racionais demais”. Zorba despreza
e critica o excesso de racionalidade, que faz
com que o homem corra o risco de passar sua
existência “refletindo sobre a vida” ao invés
de “viver”; isso fica evidente na última fala,
quando retruca a respeito de “qual trabalho
sabe realizar” e também fica evidenciado em
um diálogo seguinte:
Zorba – O que o senhor faz mesmo?
Basil – Eu? Bem, sou escritor.
Zorba – Desculpe, mas é o que parece mesmo...
o que escreve? Romances?
Basil – Não. Poesias, ensaios.
Zorba – O que é isso?
Basil – Ensaios? ...
Zorba – Não... você pensa muito, esse é o seu
problema. Gente esperta e merceeiros pensam
tudo. Eu se fosse você, olharia para mim e
diria... “Zorba, venha” ou “Zorba, não venha”.
Entretanto, para uma existência plena e
realmente intensa, além da amizade e de uma
relação mais emocional do que puramente
racional com a vida, outro elemento é
indispensável, a liberdade. Essa necessidade
é enfatizada ao longo de todo o filme como,
por exemplo, na cena subsequente. Assim que
Basil decide levar Zorba junto com ele, para
trabalhar na mina que era de sua família e que
estava desativada em Creta, eles dialogam:
Zorba – Senhor... é um homem de sorte.
Quando Zorba trabalha... nenhuma mina fica
parada.
Basil – Vai ser bom voltar ao trabalho...
Também vai ser bom para o vilarejo. Parece
que é pobre.
Zorba – Vamos fazer todos felizes.
Basil – E vamos nos divertir também. Vamos
nadar e beber vinho. E você tocará o santouri
(instrumento grego que Zorba carregava
consigo).
Zorba – (parecendo um pouco contrariado)
Vamos fazer um trato, ou não poderei ir... No
trabalho, você manda. Mas quando estivermos
brincando ou cantando, sou meu próprio dono.
Basil – Como assim?
Zorba – Quero ser livre. Você concorda?
Basil – Eu concordo.
O Garçom trás dois copos de rum que Zorba
havia pedido.
Zorba – Tome.
Basil – Mas eu não bebo rum.
Zorba – Desta vez, vai beber. Por que começar
com o pé errado?
Basil – Bem, Zorba, que Deus o abençoe.
Zorba – E o Diabo também, chefe!
Esse diálogo é extremamente interessante,
por evidenciar a condição, que embora
angustiante, é básica para a felicidade, ou seja,
a liberdade. Porém, o que Zorba defende não é
uma liberdade totalmente leviana, irresponsável,
ou ilimitada e é isso que se vê em sua fala “No
trabalho, você manda. Mas quando estivermos
brincando ou cantando, sou meu próprio dono”.
De certo modo, o que Zorba implicitamente
diz a Basil é que a realização pessoal, ou a
construção de algo realmente útil na vida só
ocorre por intermédio de uma amizade sincera
e para existir a amizade, é preciso que exista
a felicidade. Porém, para ser feliz, o primeiro
passo é ser livre e o segundo passo é não querer
escravizar ninguém, principalmente se essa
escravidão vier pelo prazer...
Talvez, por sua “herança grega” Zorba
saiba (inconscientemente) que a liberdade
plena é algo utópico na existência humana
(pois a vida é maior que o homem) e que
o preço da liberdade é a angústia. Assim,
de modo implícito, o personagem deixa
transparecer em suas atitudes que uma forma
sábia de se relacionar com “o preço que a
vida cobra do homem” é adaptar, é adequar
a felicidade e a liberdade humana (que são
limitadas) ao destino (o que a vida traz). Ou
usando uma linguagem mais próxima da
mitologia grega, “saber aproveitar aquilo que
os Deuses nos trazem” e, sobretudo, “honrar
a todos os Deuses” o do vinho (Dionísio), o
da música (Apolo), a da sabedoria (Atena), a
do amor (Afrodite), da família (Hera) e assim
por diante.
O filme todo é “recheado” de pequenas
lições morais direcionadas ao saber viver
aproveitando os pequenos momentos da vida
(que em geral são os melhores). Um exemplo
disso, é a cena na qual Zorba e Basil estão
jantando no hotel da madame francesa (que
era dona do hotel e há anos morava sozinha
no mesmo) e Zorba incita Basil a dançar e a
flertar com a Madame, num sentimento misto
de divertimento próprio e de elogio àquela
senhora que apresentava, por intermédio
de suas falas, uma nostalgia melancólica e
levemente entristecida, de quem já viveu
“entre lençóis de seda e renda verdadeira” e
que agora se encontrava sozinha, dirigindo
um hotel abandonado num pequeno vilarejo
esquecido em uma ilha grega...
Nessa perspectiva, o filme também
destaca elementos profundos da Psicologia,
explicitando interpretações quase freudianas
sobre a “natureza humana”. Isso ocorre,
em alguns momentos em que se expõem
elementos como a sexualidade e os desejos
inconscientes humanos, que acabam por reger
a vida consciente das pessoas, fazendo com
que estas ajam de determinadas maneiras
em suas vidas cotidianas. Tais elementos
são percebidos em alguns personagens, que
apresentam exacerbada “defesa da moral”,
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por meio da qual se comportam, de modo
preconceituoso, arbitrário e cruel.
Esses comportamentos são evidenciados
em algumas cenas como, por exemplo, quando a
jovem (e bela) viúva do vilarejo, debaixo de chuva,
vai buscar sua cabra (que havia fugido) e que os
homens, que estavam numa cantina, capturaram
e esconderam dentro da mesma. Após alguns
momentos de chacota e humilhação para com a
viúva que tentava em vão recuperar sua cabra,
mas era impedida pelos homens, Zorba (sob o
olhar contrariado dos homens presentes) pega e
devolve a cabra à viúva que vai embora debaixo
da chuva, mas com o guarda-chuva oferecido
por Basil e de algumas trocas de olhares. Depois
que a viúva se afasta e um jovem que estava na
cantina (e visivelmente apaixonado) corre atrás
dela, sendo repreendido pelo pai que permanece
na cantina, e que o chama de volta em vão, Zorba
e Basil travam o seguinte diálogo, ainda sob os
olhares contrariados, raivosos e angustiados dos
homens, pelo fato dos dois estrangeiros “terem
se metido em algo que não lhes dizia conta”.
Zorba – Olhe para Mavrandoni (o pai do jovem
que saiu correndo atrás da viúva)... Está
queimando por dentro.
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Basil – Por quê?
Zorba – Seu filho está apaixonado pela viúva...
Mas ela o desprezou... quanto mais ela o
despreza... mais ele a deseja. Veja... veja o rosto
de todos eles... todos a desejam. E a odeiam
porque não podem tê-la. Só um homem aqui...
pode.
Basil – Quem?
Zorba – Você.
Basil – Que bobagem.
Zorba – Vi seus olhos quando ela olhou para
você.
Basil – Zorba, não comece...
Nesse sentido, a evidência da sexualidade
como “motor primeiro da vida” não passa
despercebida no filme, bem como que a má
condução desta “força divina e humana”
como, por exemplo, pela repressão, pode levar
a estados de vida angustiantes e tristes como
o manifestado pelos homens na cantina. A
sexualidade no seu sentido mais amplo (tão bem
explorado pela Psicanálise) é o que impulsiona
o homem para a vida, pois é puro movimento,
é intensidade, é o que efetivamente dá sabor
à existência. Ao seu modo, é isso que Zorba
constantemente tenta evidenciar e que em
alguns momentos chega a até a explicar, como
quando ele e Basil passam na frente da casa da
viúva à qual Zorba queria que Basil tentasse
conquistar...
Zorba – Chefe!
Basil – Sim.
Zorba – Chefe, ouça. Vá lá e bata à porta. Diga:
“vim buscar meu guarda-chuva”... ela vai dizer
para entrar.
Basil – Não.
Zorba – Chefe... não me faça ficar bravo.
Basil – Não quero encrencas.
Zorba – Chefe, a vida é encrenca. Só a morte
é sossego... Estar vivo é procurar encrencas...
E então?
Basil – Não.
A sexualidade, sendo essa “força motriz”
responsável pelo movimento, possui um
aspecto criativo que geralmente é pouco
explorado por todos nós. No filme, isso é
sutilmente apresentado em alguns momentos
(embora muito provavelmente isso tenha
ocorrido de modo mais inconsciente do que
planejado), como, por exemplo, quando Zorba
teve a idéia de pegar as árvores do bosque
que pertenciam a um mosteiro próximo, para
usar como vigas na Mina. Zorba parecia meio
transtornado por estar tendo “idéias malucas”,
parecia estar “possuído por um gênio” que ao
mesmo tempo poderia ser benigno ou maligno,
ou, para utilizar uma expressão mais grega,
parecia possuído por um “Daimom”. Algum
tipo de divindade inspiradora, mas que causa
uma forte inquietação visceral, nos humores
do corpo, com um tom de lascívia; portanto,
algo profundamente criativo, luciférico, no
sentido mais clássico da palavra. Ou, em outros
termos, Zorba parecia estar completamente
tomado pela paixão. E não é a paixão que nos
torna excessivamente criativos e engenhosos?
Para obter a resposta a essa pergunta, basta
dar uma olhada em todas as “aventuras” dos
personagens da mitologia grega e teremos
uma idéia do poder criativo da paixão...
Basil – O que foi Zorba... desembuche logo.
Zorba – Chefe... confia em mim?
Basil – Sim, confio.
Zorba – E por quê?
Basil – Porque você é você.
Zorba – Mas não entende... Meu cérebro não
é normal... ele... ele me dá idéias malucas... Eu
posso arruiná-lo.
Basil – Eu quero arriscar.
Zorba – Diga isso de novo, chefe. Para me dar
coragem.
Basil – Eu quero arriscar.
Zorba – Chefe... chefe...
Basil – O que?
Zorba – Sabe dançar?
Basil – Dançar? Não, não.
Zorba – Então saia do caminho. Pode ser que
eu o derrube.
Zorba dança de uma forma demoníaca,
catártica. Seu rosto está transfigurado (digase de passagem, uma excelente interpretação
de Quinn) ele dança como se estivesse
“exorcizando seus demônios internos”, do
mesmo modo que devem ter sido as antigas
danças ritualísticas, não só nos tempos arcaicos
gregos com os cultos de Pã e das Ninfas (e
das demais divindades próximas à natureza),
mas também, de todas as divindades de
todos as culturas, em rituais que celebravam
os mistérios relacionados à “vida e à morte”.
Nesta cena, é interessante destacar que, em
sua dança, em sua expressão facial, Zorba faz
lembrar as Bacantes descritas por Eurípides,
realizando seus cultos desvairados em todo
monte Parnaso sob a influência de Dionísio.
Outro elemento interessante é o contraste das
expressões faciais de êxtase e exorcismo, de
Zorba e de assombro e perplexidade, de Basil,
que retratam, de forma majestosa, a dualidade
Apolínea e Dionisíaca presentes na tragédia
grega (e na vida) tão bem referenciada por
Nietzsche.
Zorba começa a dançar sozinho dentro
da casa e lentamente, alguns homens que
passavam com instrumentos, começam a se
aproximar e observar o que está acontecendo.
Aos poucos, começam a tocar e Zorba salta
para fora da casa e começa a dançar com os
outros gregos. Basil, aturdido com tudo o que
está acontecendo e sem conseguir encontrar
uma explicação racional para aquilo, manda
que todos parem e que vão embora. Os homens
obedecem, mas Zorba continua a dançar
sozinho, até cair no chão, exaurido e esgotado,
como se tivesse acabado de participar de
um ritual de autoflagelação. Então reinicia o
diálogo:
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Basil – Zorba, Zorba! Você está bem?
Zorba – Agora... agora, eu posso. Posso falar
de novo.
Basil – O que deu em você?
Zorba – Quando um homem está cheio... o que
pode fazer? Explodir? Quando meu filhinho,
Dimitri, morreu... Todos choraram... Eu? Eu
me levantei... e dancei. Eles disseram... “Zorba
está louco”. Mas foi a dança... só a dança que
fez a dor diminuir. Ele foi meu primeiro filho...
e só tinha três anos.... Quando estou feliz é a
mesma coisa.
Basil - Vamos entrar... você está ficando
resfriado.
Observando a fala de Zorba, “Quando
um homem está cheio... o que pode fazer?
Explodir?” somos levados a questionar: existe
uma maneira mais saudável de evitar uma
explosão (ou uma implosão) do que extravasar
o que se tem em excesso, seja dor ou alegria?
Provavelmente a resposta será não, porém
a duvida residirá sobre a “maneira correta”
de realizar esse extravasamento... o que “os
outros irão dizer” se realmente extravasarmos
o que estamos sentindo do jeito que estamos
sentindo? Será salutar ser autêntico? Ou além
do risco da explosão (ou da implosão) ainda
poderemos ser taxados de loucos?
Essa pequena, porém marcante cena
de Zorba nos faz notar que o que muitas
vezes pode ser entendido pela maioria - e
as vezes nós fazemos parte dessa maioria como manifestações de comportamentos
inadequados, cruéis ou insanos, podem ser,
na verdade, pequenos momentos de lucidez.
Extravasar é, por certo, uma das melhores
formas de exorcizar nossas dores internas e
talvez seja até o melhor remédio para isso; o
único problema é que quem extravasa está
sujeito ao julgamento moral daqueles que
não têm coragem (ou como diria Nietzsche,
não têm força) para fazer o mesmo. Portanto,
aquele que se atreve a extravasar pode acabar
pagando socialmente um preço alto pela sua
“lucidez”, como geralmente aconteceu ao longo
da história com todos os que foram realmente
autênticos. Entretanto, estar disposto a pagar
o preço por essa autenticidade pode ser um
indicativo de um comportamento ético para
consigo próprio e pode fazer com que o homem
18 TUCUNDUBA
evolua para uma condição moral mais elevada
de “entendimento do outro” e, sobretudo, do
respeito às diferenças, como pode ser observado
em outro momento do filme:
Zorba – Chefe, agora posso contar um segredo.
Nesses dias todos, não trabalhei nem dormi.
Sabe por quê? Por causa da viúva. Não me
entenda mal, sei que ela é boa demais prá
mim. Mas pensar que ela não tem ninguém...
era demais... muito bem, ria. Mas lembrese disso. Se uma mulher dorme sozinha, é
vergonha de todos os homens. Deus tem um
coração enorme... Mas tem um pecado que Ele
não perdoa... uma mulher chamar um homem
para a sua cama e ele não ir. Sei disso porque
um turco sábio me falou.
Basil – Um turco? E você, sendo grego,
acreditou nele? (A Grécia foi dominada pela
Turquia por vários séculos e só conseguiu
sua independência após várias e sangrentas
guerras por libertação).
Zorba – Vou me lavar...
Basil – Achei que os gregos e os turcos não se
falassem... que só lutassem. Não me diga que
nunca foi à guerra.
Zorba – Não gosto dessas conversas idiotas.
Basil – O que tem de idiota... em lutar por seu
país?
Zorba – Desculpe, chefe. Fala como um
professor. Pensa como um professor. Como
poderia entender?
Basil – Claro que posso.
Zorba – Com a cabeça, sim. Diz: “Isso é certo.
Isso é errado.” Mas quando fala... veja seus
braços... suas pernas, seu peito. São mudos.
Não dizem nada. Então como pode entender?
Basil – Está inventando desculpas. Não acredito
que se preocupe com seu país.
Zorba – Não fale assim comigo! Veja aqui, aqui e
aqui (Zorba abre a camisa e mostra o peito com
três marcas de ferimentos de balas). Nada nas
costas! Fiz coisas pelo meu país que o deixariam
arrepiado. Já matei, queimei vilarejos, violentei
mulheres. Por quê? Porque eram turcas, ou
búlgaras. Fui idiota a este ponto! Agora, olho
para um homem e digo: “ele é bom, ele é mau”.
Que me importa se é grego ou turco? Com a
idade, juro pelo pão que eu como... que até isso
parei de dizer. Bom ou mau, que diferença faz?
Todos terminam da mesma forma... ou seja,
alimentando os vermes.
De certa forma, o que realmente fascina no
filme é o modo como ele vai de um tema suave
(coloquial, corriqueiro) para um tema trágico e
volta a novamente ao suave com uma destreza
e uma poesia que impressiona e mostra que,
embora alguns eventos da vida sejam “leves”,
isso não significa que sejam menos profundos
do que os eventos “trágicos”. Nesse sentido,
o filme não é composto só de alegrias e nem
pretende ser uma versão grega de Polyana,
mostrando que a vida é uma maravilha e que o
único problema é que não sabemos aproveitála. Ao invés disso, o filme também explora o
lado torpe, mesquinho, invejoso, rancoroso e
“mal” do ser humano, que surge quando este
não deixa aflorar em sua existência o amor
e o prazer pela vida, tornando-se assim um
ser amargo e tristem por não ter coragem de
realizar as coisas que deseja, como alertam
os trabalhos de autores como Freud, Reich,
Deleuze e Nietzsche.
Tais manifestações de amargura, rancor
e tristeza são apresentadas em algumas
relações dos personagens (evidenciando bem
o aspecto negativo da “natureza humana”). Por
exemplo, quando Basil mente para a madame
francesa, dizendo que Zorba havia escrito
uma carta na qual dizia que queria se casar
com ela, quando, na verdade, na carta Zorba
estava se gabando de suas “peripécias” em um
bordel em outra cidade. Basil quando mentiu
ou “brincou” não revelando a verdade sobre
o que estava escrito, não agiu de uma forma
ingênua e pueril (um comportamento típico
que o personagem de Zorba representava),
mas agiu intencionalmente movido pela
raiva, rancor ou inveja, de não estar fazendo
o mesmo que Zorba, ou seja, entregando-se a
suas paixões. Agindo assim, Basil agiu de uma
forma maliciosa, o que acabou obviamente
ocasionando um “mal”.
Outro exemplo desse “aspecto obscuro
da natureza humana” (que muitos autores da
psicologia, psicanálise e filosofia preferem
representar como uma “natureza humana
distorcida”) é demonstrado pela execração
pública, com o apedrejamento e assassinato
por degolamento da jovem viúva, que havia
permitido que Basil dormisse com ela uma
TUCUNDUBA 19
noite em sua casa. A entrada de Basil na casa
da viúva foi vista por um homem da vila, que
logo tratou de contar aos demais e estes, no
mesmo instante, começaram infernizar o
jovem apaixonado e não correspondido por
ela. O jovem se suicidou. A viúva, obviamente,
não teve responsabilidade nenhuma sobre esse
suicídio, entretanto, todos os moradores da
vila (que na verdade estavam há anos vivendo
vidas reprimidas e cultivando internamente
suas “paixões tristes”), consideraram-na
responsável pela morte do jovem. A viúva
permanecendo viva representava uma ofensa
a todos os outros que não conseguiam ter
seus desejos realizados (e que nunca teriam,
simplesmente, por terem medo de se entregar
à vida), “não restando” assim alternativa, a não
ser a expiação.
A representação dramática do seu
assassinato em público, sob o “consentimento”
de todos os moradores da vila, ilustra bem uma
clássica perversão patológica da psicologia
das massas, que sempre consideram que o
“mal” está fora, no “outro” e que a melhor
forma de eliminar “o mal” é eliminando “o
outro”. Esse exemplo clássico de “natureza
humana distorcida”, evidenciada na ficção, é
facilmente encontrada ao longo da história da
humanidade como, por exemplo, na caça às
bruxas no período medieval ou no holocausto
durante a segunda grande guerra.
A cena do assassinato da viúva é uma cena
20 TUCUNDUBA
forte, na qual o diretor do filme fez diversas
tomadas fixando as expressões faciais de várias
das pessoas presentes no momento, buscando
captar as diversas emoções ali constantes.
A cena mostra a viúva literalmente sendo
sacrificada para que a ordem social pudesse
continuar existindo... ela foi apenas o bode
expiatório da frustração de todos os presentes.
A cena faz o espectador perguntar no fundo
de sua alma... não é isso que nós ainda hoje
fazemos? Agora não mais com facas em praças
públicas, mas com pensamentos, pequenos
chistes, e pequenos comentários maldosos
“entre amigos” sobre o “comportamento
desviante” de outras pessoas que decidem ser
autênticas?
Outro ponto do filme que impressiona
pela morbidez e por apresentar de modo “nu
e cru” a que ponto pode descer a mesquinhez
e a falta de valores de pessoas frustradas e
possuídas por “paixões tristes”, que não se
permitem viver a vida em toda intensidade
que ela se apresenta, é o momento da morte
da madame francesa. A pobre madame, ainda
moribunda e circundada apenas por Zorba
e Basil, vê entrar em seu quarto duas velhas
gregas carpideiras com rostos contorcidos
num misto de cobiça e espanto, semelhantes
a personagens de um quadro de Bosch.
Aquelas senhoras, personificando verdadeiras
“aves de mau agouro” estavam ali mais para
observar o que poderia ser surrupiado após a
morte da moribunda, do que para chorar por
aquele momento final, pois como todos na vila
sabiam, a madame não tinha herdeiros e, com
sua morte, todos os seus bens, apesar de serem
de pouquíssimo valor, iriam para o Estado.
A ganância, o querer sempre a mais,
o muito que nunca é suficiente, essa outra
distorção pérfida que nasce no coração
humano, muito provavelmente pelo medo do
abandono, da perda e da necessidade, que faz
com que o homem passe por cima de todos
os valores, querendo sempre levar vantagem
em qualquer situação, faz com que as pessoas
cometam atitudes bizarras e tragicômicas.
Um exemplo disso é dado na cena em que
os moradores da vila, após a confirmação da
morte da madame, começam a saquear seu
hotel e a levar qualquer coisa que pudesse ser
carregada, mesmo sem saber ao certo para
que aquilo que estava sendo roubado lhes
seria útil. O que fica evidenciado no filme é
que nesse ponto, quando se perde o sentindo
da existência, por exemplo, desrespeitando os
grandes mistérios (como a passagem da vida
para morte), o ser humano se animaliza...
Porém a poesia e a beleza de “Zorba, o
Grego” reside justamente no fato de não negar
a existência desse lado torpe do ser humano
(ou da humanidade). Assim, por não negar
essa existência, o filme não se torna (como
dito anteriormente) uma versão masculina
de Polyana, mas ao invés disso, reconhece a
existência desses elementos na nossa vida.
Nesse sentido, faz lembrar que a vida é mais
forte do que a mesquinhez de alguns (mesmo
que esses “alguns” seja toda a “massa”) e que,
mesmo com todas as agruras e desventuras, é
possível encontrar a felicidade em pequenas
coisas da vida (talvez, na verdade, as grandes
coisas) como a amizade, o trabalho, a dança,
os ideais, num garrafão de vinho, no sexo e,
de vez em quando, na total inexistência da
ruminação mental que realizamos sobre todas
as nossas ações no mundo...
Zorba é uma celebração à vida, à amizade
e ao prazer que se pode ter em estar vivo. É
uma tentativa de dizer que a vida existe para
ser vivida ao invés de somente observada e que
para ser vivida de modo adequado, é preciso
intensidade, paixão. É um chamado para
que se experimente tudo o que a existência
nos oferece e uma advertência de que,
nas aparências, as experiências podem ser
percebidas em aspecto bons ou ruins, mas que
em essência constituem um todo chamado
vida. Assim sendo, para finalizar, nada mais
adequado do que o último diálogo entre Basil
e Zorba, logo após a engenhoca montada por
Zorba (para fazer descer toras de madeira do
alto da montanha para servirem de vigas para
a mina) falhar, desmontando-se toda e quase
matando as pessoas que estavam ali assistindo
o espetáculo. Esse acontecimento inviabilizou
totalmente qualquer possibilidade de reativar
a mina e ficou evidente que a permanência
de Basil em Creta tinha chegado ao fim e que
ele, muito em breve, partiria de regresso ao
ambiente que lhe era mais favorável e familiar.
Zorba – Em quanto tempo, chefe?
Basil – Não sei... Alguns dias.
Zorba – O que vou fazer... sem sua
companhia?
Basil – Anime-se... Vamos nos ver novamente.
Zorba – Não. Vai embora e vai ficar lá. Com
seus livros... à sua saúde (Zorba levanta o copo
oferecendo um brinde).
Basil – À sua, Zorba.
Zorba – Que droga, chefe. Gosto muito de você
prá não dizer nada. Você tem tudo... menos
uma coisa: Loucura! Um homem precisa ser
um pouco louco, senão...
Basil – Senão?
Zorba – Ele nunca vai ousar e se soltar e ser
livre... está bravo comigo?
Basil – Ensine-me a dançar. Por favor?
Zorba – Dançar? Disse dançar? Venha cá meu
rapaz!
O filme termina com a clássica cena que
ficou eternizada no mundo de cinema que é a
de Zorba e Basil dançando sozinhos na praia.
Nessa última cena, Basil deixa claro que tudo
o que passaram na ilha não foi em vão e que
apesar de não conseguirem o seu principal
intento (e na vida geralmente é assim...) que
era reativar a mina, algo havia mudado naquele
homem tão britânico e comedido, que aquela
experiência o havia ensinado a não levar tudo
tão a sério e aproveitar mais as pequenas
maravilhas de cada instante, tudo isso
resumido numa simples, curta e emblemática
frase: “Zorba, ensine-me a dançar!!!”
TUCUNDUBA 21

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