A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO

Transcrição

A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO
A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO NOS FILMES
ESTADUNIDENSES DE HORROR
Murilo Toffanelli
DHI/LERR/ PIC-UEM
Solange Ramos de Andrade (Orientadora)
DHI/PPH/LERR-UEM
Universidade Estadual de Maringá
Resumo: Desde a primeira aparição do zumbi no cinema estadunidense em White
Zombie (1932) até o lançamento de A noite dos mortos vivos (1968) houve muitas
mudanças nas características do monstro. A que será analisada nesse texto
consiste na perda do caráter religioso do zumbi, que deixa de ser um morto que
voltou a vida para servir o feiticeiro vodou que o havia ressuscitado, e depois dos
anos de 1940 passa a ter forte ligação com a questão tecnológica. Para a análise
dessa mudança será empregada a ideia de Edgar Morin, de que o cinema além de
refletir a realidade, a comunica com o sonho do homem (MORIN, 1997); e também o
método de crítica externa e interna proposto por Marc Ferro (1976), no qual a crítica
externa atenta aos dados contidos na produção do filme, e a crítica interna trata das
informações contidas no próprio filme. Assim, o filme poderá ser entendido como um
sonho que traz as inquietações de uma época, e que para que haja o entendimento
dessas inquietações se faz necessário o estudo das diferentes condições
socioculturais das diferentes épocas em que esses filmes de zumbi, desde o
“religioso” até o “tecnológico”, foram produzidos.
Palavras-chaves: cinema de horror; zumbi religioso; zumbi tecnológico.
Introdução
O zumbi é uma figura recorrente no cinema de horror estadunidense. Suas
características foram mudando desde sua primeira aparição em 1932 no filme White
Zombie, no decorrer de todo o século XX, e ainda continuam a mudar no século XXI.
Porém, sua essência permanece, o zumbi sempre será um morto caminhando sobre
2343
a terra, junto com os vivos. E o objetivo deste texto é analisar, em especial, a perda
do caráter religioso do zumbi e sua então “laicização” em um recorte temporal que
vai desde o lançamento de White Zombie (1932) até o de A noite dos mortos vivos
(1968), que revolucionou a história do cinema de horror.
Na reflexão sobre essa mudança de características, de seu aspecto religioso
para o laico e tecnológico, entenderemos o zumbi como um reflexo do contexto
histórico da época de produção desses filmes, que entre a década de 1930 até ao
final da de 1960 mudou muito. Para a percepção dessas mudanças através dos
filmes se faz conveniente a metodologia proposta por Marc Ferro, de análise interna
e externa no filme. De forma que sejam estudados o enredo, personagens, cenários
e temática, nessa análise interna; e direção, produção, orçamento e as condições
políticas e socioculturais da época e do país em que foi lançado o filme, na análise
externa (FERRO, 1975).
E ainda, o filme será compreendido como um reflexo da realidade que se
comunica com o sonho do homem, o que tornará possível a observação das
inquietações do homem desses contextos históricos, já que assim como nos sonhos,
os filmes trazem por meio de símbolos as angústias e os desejos de uma época.
Segundo Edgar Morin, isso acontece através da participação afetiva, na qual o
espectador se projeta e identifica em todos os elementos do filme. Por conta de seu
estado de passividade física quanto os acontecimentos assistidos, o espectador
acaba interiorizando tais acontecimentos. (MORIN, 1997).
Dessa forma, é por meio dessa participação afetiva que ocorre a
transformação nas características dos zumbis e dos cenários dos filmes no decorrer
do tempo, pois o diretor do filme é um homem do mesmo contexto histórico que o do
espectador, e da mesma forma que o espectador “sonha” enquanto assiste o filme, o
diretor sonha para cria-lo. E para a percepção dessas transformações foram
elencados quatro filmes centrados na temática zumbi: White Zombie (1932); Plano 9
do espaço sideral (1958); Mortos que matam (1964); A noite dos mortos vivos
(1968). O critério dessa escolha consistiu na ideia de que esses filmes foram os mais
representativos e dotados de características de seus distintos contextos históricos, e
partiu da leitura de uma discussão também a respeito da presença do zumbi no
cinema, contida na obra 68: História e Cinema (GUADAGNIN; ALMEIDA, 2008, p.
220 – 221).
2344
Os filmes e seus contextos históricos
Nessa parte do texto serão apresentados os filmes, seus contextos históricos
e em seguida os possíveis reflexos dos contextos nos filmes, determinantes para a
transformação das características dos zumbis.
O primeiro filme a ser trabalhado será White Zombie (1932), dirigido por
Victor Halperin e produzido por seu irmão Edward Halperin, que inaugura a temática
do zumbi no cinema1. Resumidamente, o enredo do filme consiste na aventura do
casal de noivos estadunidenses Neil (John Harron) e Madeleine (Madge Bellamy) no
Haiti. Pretendiam se casar na mansão do banqueiro Charles Beaumont (Robert
Frazer), que os havia convidado. Mas na verdade Beaumont era apaixonado por
Madeleine e para consegui-la acaba recorrendo ao feiticeiro vodou Legendre (Bella
Lugosi). Esse feiticeiro transformava seus inimigos em zumbis para que servissem
de mão de obra em seu engenho de açúcar, e para dar conta ao pedido de
Beaumont transforma Madeleine em zumbi e a entrega (WHITE ZOMBIE, 1932).
No decorrer do filme Beaumont se arrepende de seu pedido e também
começa a ser transformado em zumbi por Legendre. Neil, amargurado com a perda
de sua noiva no dia de seu casamento, acaba descobrindo que Madeleine podia
estar sob o controle de Legendre. Junta força com o missionário Dr. Bruner (Joseph
Cawthorn) e se aventuram em busca do feiticeiro. Encontram sua fazenda e seu
engenho e confrontam sua legião de zumbis. Dr. Bruner havia descoberto, após uma
conversa com outro feiticeiro, que o controle dos zumbis estava diretamente ligado à
consciência de Legendre (WHITE ZOMBIE, 1932).
Por fim, Beaumont prestes a se transformar em zumbi de forma definitiva,
consegue empurrar Legendre de um desfiladeiro, também saltando em seguida.
Com a morte do feiticeiro, Madeleine volta a si e une-se novamente com seu noivo,
sob a proteção do missionário (WHITE ZOMBIE, 1932).
Levando em consideração o contexto histórico de 1932, um evento bastante
relevante para a reflexão do filme é a ocupação estadunidense do Haiti (1915-1934).
Segundo Vanessa Braga Matijascic, essa ocupação se deu principalmente por força
1
No cinema expressionista alemão, Gabinete do Dr. Caligari (1920) já traz uma personagem de
aspecto cadavérico que age inconscientemente a mando de um mestre. Mas nesse caso trata-se de
um hipnotizado, não de um zumbi conforme a mitologia do vodou haitiano.
2345
do expansionismo estadunidense, que também consistiu em uma estratégia para
evitar ocupação de qualquer potência europeia da região que pudesse restringir seu
livre acesso ao Canal do Panamá. Essa medida acabou sendo justificada como
intervenção humanitária para solidificação da estabilidade política haitiana
(MATIJASCIC, 2010, p.7).
Assim, foi mandado um grande número de fuzileiros-navais estadunidenses
para o Haiti e os Estados Unidos passou a possuir poder de veto sobre todas as
decisões do governo haitiano (MATIJASCIC, 2010, p.7-8). Várias irregularidades
foram registradas nesse período. Em 1920, James Weldon Johnson, representante
da NAACP2 mandado ao Haiti, registrou casos de trabalho escravo na construção de
estradas a mando dos fuzileiros-navais (JOHNSON, 1920, p.13-14). Além disso, a
ocupação estadunidense, segundo os autores haitianos Patrick Bellegarde-Smith e
Claudine Michel, enfrentou uma intensa resistência do vodou haitiano, que era um
fenômeno político-religioso com claro potencial revolucionário (BELLEGARDE-SMITH;
MICHEL, 2011, p.26).
Através do estudo do filme e do contexto é possível o estabelecimento de
relações que ligam elementos de um com o outro, especialmente na imagem do
zumbi. Relações que desembocam em críticas sociais mais pontuais podem ser
pensadas, como por exemplo, a transformação de haitianos em zumbis pelo
feiticeiro Legendre com os casos de escravidão denunciados por Johnson. Depois
de transformados em zumbis, serviam como mão-de-obra no engenho de açúcar do
feiticeiro. Nessa relação, os zumbis podem ser pensados como os haitianos
escravizados e Legendre como representação dos fuzileiros que os escravizavam.
Porém, a relação que mostra ser mais abrangente e produtiva é a da
influência da ocupação estadunidense do Haiti como um todo, nas características do
zumbi. Em White Zombie a explicação da origem dos zumbis remete a questão
religiosa, o que exige uma atenção especial ao vodou, extremamente influente no
Haiti. Narrativas sobre mortos-vivos estão presente em inúmeras mitologias, das
mais variadas culturas, cada uma com sua particularidade (FILHO; SUPPIA, 2011).
Mas é na mitologia vodou-haitiana que é apresentado:
2
Sigla original do inglês para “Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor”, uma
instituição estadunidense que luta pelos direitos civis das minorias, especialmente dos negros.
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[...] um cadáver animado mediante espíritos escravos, utilizado pelo bokor
(o sacerdote) para o seu benefício pessoal; ou então uma pessoa viva, em
transe hipnótico pela ação de poções e unguentos de origem animal ou
vegetal. [...] Caracterizado pelos seguintes signos: “caminha dando
guinadas, realiza ações físicas de forma mecânica, tem o olhar congelado e
desfocado, e fala com voz nasal” (FILHO; SUPPIA apud SARACINO, 2011,
p.276).
Assim, em 1932, dois anos antes do fim da ocupação do Haiti, uma produção
estadunidense traz um zumbi exatamente semelhante ao descrito pela mitologia
vodou-haitiana, tendo em vista que nada impedia os realizadores do filme
recorrerem a qualquer outra mitologia. É dessa forma que um contexto histórico
reflete em um filme. E da forma que esses contextos mudam, as discussões e as
preocupações passam a ser outras, o zumbi também muda. E isso será observado
na análise dos próximos filmes.
Plano 9 do Espaço Sideral (1958), dirigido por Ed Wood, começa com a
narração de uma história em que pilotos da aeronáutica haviam avistado discovoadores rondando um cemitério da Califórnia. No decorrer da história descobre-se
que uma dupla de alienígenas está levando um plano que consiste em ressuscitar os
mortos para formarem um exército destinado a conquistar as capitais do planeta
Terra. No decorrer do filme os alienígenas conseguem ressuscitar apenas três
mortos por meio de um eletrodo de longa distância que interage com a glândula
pineal e pituitária dos mortos (PLANO 9 [...], 1958).
O motivo da tentativa de execução do Plano 93 remete a preocupação
alienígena com a tendência destrutiva dos humanos, notada pela invenção de
máquinas de guerra e principalmente das bombas atômicas. Segundo os diálogos
do filme, esse plano consistia em uma medida preventiva para que os humanos, ao
avançarem em sua tecnologia bélica, não começassem a trabalhar com energia
solar, o que poderia resultar na destruição do universo (PLANO 9 [...], 1958).
No desfecho do filme, militares acabam invadindo a base dos alienígenas que
havia sido instalada no cemitério e explodindo-a, depois de terem destruído todos os
três zumbis (PLANO 9 [...], 1958).
3
“Plano 9” é o nome do tal plano de ressurreição dos mortos levado pelos alienígenas.
2347
Na análise de Plano 9 do espaço sideral (1958), é extremamente importante
observar que o filme foi rodado em plena Guerra Fria4. O recorte temporal que vai de
1953 a 1969, que engloba o filme em questão e também os próximos a serem
analisados, segundo a periodização da Guerra Fria pensada por Fred Halliday, foi
nomeado como período de antagonismo oscilatório. Essa fase da Guerra Fria foi
caracterizada por ressentimentos e tentativas de aproximação entre os EUA e URSS
(MUNHOZ apud HALLIDAY, 2004, p. 268). Foi marcada pela intensificação da
corrida armamentista, espacial e tecnológica, e por eventos como a crise dos
mísseis de 1962 e Guerra do Vietnã (1965-1975).
Segundo Fernando Vizcarra, as discussões dessa época, como a
bipolarização ideológica e política entre EUA e URSS; a ameaça nuclear;
degradação do meio ambiente; consequências negativas e a desilusão com a
tecnologia; tiveram extrema influência na produção dos filmes (VIZCARRA, 2003).
Um exemplo para essa afirmação encontra-se no filme em questão.
Apesar de ser considerado até hoje como o “pior filme de todos os tempos”,
por conta de seus efeitos especiais nem um pouco sofisticados, fruto de um baixo
orçamento5, Plano 9 do espaço sideral abrange a maioria das discussões da época
relacionadas à Guerra Fria. No filme há a presença de alienígenas preocupados com
o rumo tomado pela tecnologia terráquea, que além de estar destruindo o próprio
planeta Terra, pode atingir proporções e colocar em risco o próprio Universo.
Tudo isso, mais uma vez, pode ser interpretado como um reflexo da época na
produção do filme. Se feita a comparação do zumbi de Plano 9[...] com o de White
Zombie, observa-se que o morto-vivo que caminha entre os vivos não é mais obra
dos feitiços de um sacerdote vodou, mas é ressuscitado pela tecnologia
extraterrestre. Assim, pode-se pensar que a principal discussão da época não é
mais religiosa e mística, mas sim tecnológica.
Em Mortos que matam (1964), é a vez do medo das epidemias. Dirigido por
Ubaldo Ragona, foi baseado no livro Eu sou a lenda (1954) de Richard Matheson,
que também foi um dos roteiristas do filme. Tem em seu elenco o lendário ator do
cinema de horror em preto-e-branco, Vincent Price, interpretando o cientista Morgan.
4
termo que qualifica os conflitos envolvendo a União Soviética e os Estados Unidos após a conclusão
da Segunda Guerra Mundial (MUNHOZ, 2004, p.264)
5
A estimativa do orçamento, segundo o site IMDB, é de 60 mil dólares.
2348
Robert Morgan vive em um mundo apocalíptico tomado por vampiros-zumbis, como
aparentemente, o único sobrevivente humano, que tem sua vida resumida na caça
dessas criaturas (MORTOS QUE MATAM, 1964).
O trabalho de Morgan, antes da epidemia que transformou as pessoas em
vampiros, consistia em encontrar uma cura para tal. Segundo a história do filme, a
epidemia, causada por um vírus indestrutível, começou na Europa e se alastrou por
todo o mundo, despovoando todas as cidades (MORTOS QUE MATAM, 1964).
No decorrer do filme, através das lembranças de Morgan, é passado todo seu
drama. Além de a cidade ter sido despovoada aos poucos, também perdeu sua
esposa e filha. Porém, Morgan, em uma de suas caçadas, encontra Ruth Collins
(Franca Bettoia), outra sobrevivente. Depois de dar abrigo a ela, descobre que ela
está infectada, mas que toma vacinas de sangue desfibrinado, capaz de conter o
vírus (MORTOS QUE MATAM, 1964).
Morgan, que era imune ao vírus, por ter sido mordido por um morcego tempos
atrás, experimenta fazer uma transfusão de seu próprio sangue para Ruth. Com isso
os anticorpos de seu sangue passam a agir no organismo de Ruth e ela é curada.
Mas pouco antes da descoberta da cura, Ruth lhe conta que fazia parte de uma
equipe de sobreviventes, e que estes estavam vindo para matá-lo, porque muitos
dos “vampiros-zumbis” que ele havia caçado, na verdade eram outros sobreviventes.
A equipe chega, caça e mata Morgan, Porém a cura havia sido descoberta e havia
ficado sob a proteção de Ruth (MORTOS QUE MATAM, 1964).
Um evento bastante interessante para se pensar juntamente com o enredo do
filme, ocorrido dois anos antes de seu lançamento, foi a instalação de mísseis
soviéticos em Cuba, capazes de atingir todo o território estadunidense. Depois de
essas instalações terem sido descobertas pelos estadunidenses, ficou claro que se
não houvesse a retirada desses mísseis, uma guerra nuclear seria iminente (ÁVILA,
2012). Eric Hobsbawm definiu essa crise dos mísseis cubanos como um exercício de
força inteiramente supérfluo, que, por alguns dias deixou o mundo à beira de uma
guerra desnecessária (HOBSBAWM, 1995, p.227).
Apesar dessa guerra nuclear não ter se sucedido, todo o mundo ficou a beira
da destruição até que tais mísseis fossem desativados, pois cada um dos 42 mísseis
continham ogivas nucleares dez vezes mais poderosas que a bomba atômica
lançada sob Hiroshima e Nagasaki (ÁVILA, 2012). Esse trauma intensificou o medo
2349
da destruição mútua inevitável (MAD)6, e começou a aparecer nos filmes, como é o
caso de Mortos que matam, que apesar de não haver no enredo a questão da
ameaça nuclear, apresenta um mundo totalmente despovoado por uma epidemia,
com ares de apocalipse.
Além do mundo apocalíptico, reflexo de um contexto MAD, um objeto
importante a se analisar no filme, é a forma que os vampiros-zumbis são
representados. Fora o detalhe de que esses mortos-vivos falam e sugam sangue,
suas características são as mesmas do zumbi de George Romero, que aparecerão
em A noite dos mortos vivos. Agem em bandos, caminham lentamente e
cambaleando, e apresentam um forte aspecto cadavérico. Diferentemente de White
Zombie e Plano 9 do espaço sideral, os mortos não voltam a vida por intermédio de
um feiticeiro vodou, nem pela tecnologia extraterreste, mas por conta de um vírus,
ou seja, algo muito mais realista.
Já A noite dos mortos vivos (1968), dirigido por George Romero, foi o filme
que eternizou a imagem do zumbi, inspirando outros filmes, games e séries até os
dias de hoje. No filme, sem nenhuma explicação definitiva, os mortos começam a
levantar de seus túmulos e a perambularem pelas redondezas dos cemitérios,
representando um grande perigo aos humanos (A NOITE [...], 1968).
Todo o enredo do filme se desenvolve afastado da cidade. Começa em um
cemitério, onde Barbara (Judith O’Dea) acompanhada de seu irmão Johny (Russell
W. Streiner), que é atacado por um zumbi, logo após o avistá-lo. Durante sua fuga,
Barbara encontra-se com Ben (Duane Jones) e juntos fogem para uma cabana,
juntando-se com outros sobreviventes. Nessa cabana, existe uma terrível pressão
psicológica sob todo o grupo. As disputas por liderança são frequentes e o número
de zumbis que vão se aglomerando em volta da cabana só tende a aumentar (A
NOITE [...], 1968).
O rádio existente na cabana se mostra como uma importante personagem. É
através dele que os sobreviventes obtêm, durante todo o filme, notícias sobre esses
mortos que estão levantando de seus túmulos. Há apenas uma hipótese sobre a
causa desse fenômeno: um satélite carregado de altos índices de radiação, que
estava em uma missão espacial em Vênus, é abatido pela NASA. Sem explicações,
a radiação do satélite parece ativar áreas dos cérebros dos mortos que foram
6
Sigla em inglês para mutually assured destruction.
2350
enterrados recentemente, permitindo que levantem de seus túmulos e passem a
buscar instintivamente por carne humana (A NOITE [...], 1968).
No desfecho, depois da tentativa de uma fuga ser frustrada, os zumbis
conseguem invadir a cabana e devorar os sobreviventes, exceto Ben. Ao
amanhecer, passa a guarda nacional na cabana, avista Ben, confundem-no com um
zumbi e o matam (A NOITE [...], 1968).
Para a análise desse filme, é importante lembrar que em 1968, o mundo ainda
estava em contexto MAD, a Guerra do Vietnã (1965-1975) estava longe de chegar
ao fim; os movimentos feministas e dos negros eram intensos; e toda essa agitação
iria estourar na França, em Maio desse mesmo ano. E é em meio a toda essa
agitação que George Romero traz um filme com um negro e uma mulher de
protagonistas e com mortos, que, sem explicação exata, levantam de seu túmulo,
unicamente, em busca de carne humana (GUADAGNIN; ALMEIDA, 2008, p. 217232).
Assim como em Mortos que matam, A noite dos mortos vivos transmite um
forte ar apocalíptico, com paisagens desertas, e quando não, com zumbis
perambulando por todos os lados. E ainda, a vaga explicação que é dada a origem
dos zumbis, é embasada na queda do satélite com alto índice radioativo que estava
em missão no planeta Vênus. Com isso, observa-se que o medo atômico e a
discussão tecnológica ainda estão presentes no imaginário da época.
Na época de seu lançamento, foram pensadas várias possibilidades de
críticas contida no filme, como a volta dos mortos sendo uma alusão à volta dos
soldados mortos no Vietnã; o clima de extrema tensão e de desentendimento dentro
da cabana à decadência do núcleo e dos valores familiares; o protagonista negro
como uma alegoria a luta contra a segregação racial. Porém o próprio George
Romero, ao saber dessas discussões, assume que essas críticas não foram
intencionais, e que não tira suas legitimidades (FERRERO; ROAS, 2011).
Também existem elementos revolucionários para o cinema de horror em A
noite dos mortos vivos. Além do tabu da decomposição, que já havia sido quebrado
nas produções de horror europeias da Hammer films7, também é trabalhado o tabu
do canibalismo. As cenas em que os zumbis devoram os vivos, roendo seus ossos e
comendo suas vísceras, além de quebrar o tabu do canibalismo, traz a estética
7
Produtora independente britânica de filmes, especialmente, de horror.
2351
splatter/gore8 que viria a se tornar um subgênero dos filmes de horror, que
permanece até os dias de hoje, juntamente com o arquétipo de zumbi, que acabou
sendo formado após o lançamento desse filme (FILHO; SUPPIA, 2011).
Por fim, voltando às mudanças nas características dos zumbis, de um filme
para o outro, A noite dos mortos vivos juntamente com Mortos que matam, cuidaram
para que o zumbi fosse totalmente desvinculado do sagrado e que se tornasse um
zumbi laico, com anseios e instintos próprios (FILHO; SUPPIA, 2011). E, assim,
George Romero pode ser visto como um feiticeiro que conseguiu animar seus
zumbis através de todas as inquietações que viriam a estourar em Maio de 1968, um
mês após o fim das filmagens de seu filme.
Conclusão
Retomando a ideia de Morin, de que o cinema é o sonho do homem que
comunica com a realidade, é importante entender os diretores dos filmes também
como sonhadores, não apenas os espectadores. Da mesma forma que o espectador
projeta e identifica suas inquietações ao assistir um filme, o diretor faz o mesmo
exercício para construir um filme. Os zumbis, os cenários, o enredo e todos os
elementos dos filmes, consistem na simbolização de suas inquietações, originadas
segundo sua percepção de seu contexto histórico.
Assim como o homem não tem total controle de seus sonhos, o diretor não
tem de seus filmes. Muitas das reflexões tidas por espectadores e críticos a respeito
de um determinado filme podem não corresponder às intenções do diretor. Mas essa
não correspondência nem sempre é capaz de tirar a legitimidade de tais reflexões.
Um claro exemplo disso pode ser observado em A noite dos mortos vivos. O fato de
um ator negro ter sido o protagonista do filme fez muita gente pensar que, com isso,
Romero buscava trazer uma metáfora política e social referente à força dos
movimentos negros da época. Mas o próprio Romero revelou que só havia escolhido
Duane Jones para o papel por ele ter se mostrado o melhor ator (FERRERO; ROAS,
2011).
8
Cenas de violência extrema e explícita, caracterizada pelo grande apelo à exposição de sangue e
entranhas
2352
É essa falta de controle que um diretor tem sobre seu filme que permite que
ele seja algo atemporal. Nada impede, por exemplo, que através de todos esses
filmes trabalhados neste texto, sejam feitas relações de seus diferentes zumbis com
o homem e o contexto histórico do século XXI.
Referências
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momento
mais
perigoso
da
Guerra
Fria.
(Disponível
em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/ensaio-geral-do-fim.
Acessado em: 24/08/2014)
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1968, 1 disco, (1h 36min) DVD
PLAN 9 FROM OUTER SPACE (Plano 9 do espaço sideral). Direção de Edward D.
Wood Jr.. Roteiro de Edward D. Wood Jr.. Produzido por: Edward D. Wood Jr. 1958,
1 disco, (1h 19 min) DVD
2353
THE LAST MAN ON EARTH (Mortos que matam). Direção de Ubaldo Ragona.
Roteiro de William F. Leicester. Produzido por Robert L. Lippert. 1964, 1 disco, (1h
26 min) DVD
VIZCARRA, Fernando. El cine futurista y la memoria del porvenir. Estudios sobre
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WHITE ZOMBIE (Zumbi Branco). Direção de Victor Halperin. Roteiro de Garnett
Weston. Produzido por Edward Halperin. 1932, 1 disco, (1h 09 min) DVD
2354

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