vol. 13 - Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Transcrição

vol. 13 - Ministério Público do Estado de Minas Gerais
CIRCULAÇÃO NACIONAL
www.mp.mg.gov.br/dejure
13
Jul/Dez 2009
CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
Av. Álvares Cabral, 1740, 1º andar
Santo Agostinho, Belo Horizonte - MG
cep. 30.170-916
www.mp.mg.gov.br/dejure
[email protected]
Address: Av. Álvares Cabral, 1740, 1º andar
Santo Agostinho, Belo Horizonte - MG
cep. 30.170-916, Brazil
www.mp.mg.gov.br/dejure
[email protected]
(Contact: Alessandra de Souza Santos, Ms.)
De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Ministério
Público do Estado de Minas Gerais.
n. 13 (jul./dez. 2009). Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2009.
v.
Semestral.
ISSN: 1809-8487
Continuação de: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
O novo título mantém a seqüência numérica do título anterior.
1. Direito – Periódicos. I. Minas Gerais. Ministério Público.
CDU. 34
CDD. 342
Descritores / Main entry words: Direito, Ministério Público, Direito Coletivo, Direitos
Fundamentais, Neoconstitucionalismo, Multidisciplinariedade, Transdisciplinariedade
/ Law, Public Prosecution Service, Collective Rights, Fundamental Rights,
Neoconstitutionalism, Multidisciplinarity, Transdisciplinarity.
PEDE-SE PERMUTA
WE ASK FOR EXCHANGE
ON DEMANDE L’ÉCHANGE
MANN BITTET UM AUSTAUSCH
SI RIQUIERE LO SCAMBIO
PIDEJE CANJE
Foto da capa:
Escultura barroca em pedra-sabão representando a Justiça, cuja autoria
é atribuída ao português Antônio José da Silva Guimarães e datada como
anterior a 1840. Faz parte da obra que representa as quatro virtudes cardeais
– Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza – que se encontram na antiga
Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência de Ouro Preto.
Linha Teórica:
A Revista De Jure foi sistematizada dentro de uma nova filosofia pluralista transe multidisciplinar, permitindo o acesso à informação em diversas áreas do Direito
e de outras ciências. A revista destina-se aos operadores de Direito e sua linha
teórica segue, principalmente, o pós-positivismo jurídico no que é denominado
neoconstitucionalismo, valorizando a Constituição Federal de 1988 como centro
de irradiação do sistema e como fonte fundamental do próprio Direito nacional. O
neoconstitucionalismo é a denominação atribuída a uma nova forma de estudar,
interpretar e aplicar a Constituição de modo emancipado e desmistificado. A
finalidade é superar as barreiras impostas ao Estado Constitucional Democrático
de Direito pelo positivismo meramente legalista, gerador de bloqueios ilegítimos
ao projeto constitucional de transformação, com justiça, da realidade social.
A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.
Cover Photos and Design:
Baroque sculpture in steatite (soapstone) representing Justice – author supposed to
be the Portuguese Antônio José da Silva Guimarães; probably made before 1840. It is
part of the work that represents the four Virtues: Prudence, Justice, Temperance and
Strenght – located at the old Chamber and Prison in Vila Rica (current Ouro Preto –
Minas Gerais), current name of the building is Museum of Inconfidência of Ouro Preto.
Theoretical Profile:
The Journal De Jure was systematized according to a new philosophy pluralist,
trans- and multidisciplinar, allowing the access to information in many areas of
Law and of other Sciences. It is intended for law enforcement agents and its
theoretical grounds mainly follow the legal post-positivism doctrine, with a special
emphasis on the neoconstitutionalist approach. Neoconstitutionalism is a new
theory to study, interpret and enforce the Constitution, aiming at overcoming
barriers imposed to the lawful democratic states by the legal positivism,
which blocks the constitutional project of transformation of the social reality.
The responsibility for the content of the articles is solely of their respective authors.
De Jure - Revista Jurídica do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA
Procurador de Justiça Alceu José Torres Marques
DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida
ASSESSOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
Promotor de Justiça Emerson Felipe Dias Nogueira
SUPERINTENDENTE DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO
Fernando Soares Miranda
DIRETORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Alessandra de Souza Santos
EDITOR RESPONSÁVEL
Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida
CONSELHO EDITORIAL - CONSELHEIROS
Promotor de Justiça Adilson de Oliveira Nascimento
Promotor de Justiça Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho
Promotor de Justiça Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes
Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida
Procurador de Justiça João Cancio de Mello Junior
Promotor de Justiça Lélio Braga Calhau
Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo
Promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda
Promotor de Justiça Renato Franco de Almeida
CONSELHEIROS CONVIDADOS
Prof. Antônio Gidi (Houston University, USA)
Prof. Eduardo Ferrer Mac-Gregor (Universidad Nacional Autônoma de México, México)
Prof. Eduardo Martinez Alvarez (Universidad Del Museo Social Argentino, Argentina)
Prof. Juan Carlos Ferré Olivé (Universidad de Huelva, Espanha)
Prof. Mário Frota (Associação Portuguesa de Direito do Consumo, Portugal)
Prof. Michael Seigel (University of Florida, USA)
Ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Mininstro do STJ)
Prof. Aziz Tuffi Saliba (Fundação Universidade de Itaúna)
Prof. Humberto Theodoro Júnior (UFMG)
Prof. Juarez Estevam Xavier Tavares (Sub-Procurador-Geral da República, UERJ)
Prof. Luciano José Alvarenga (Fundação Comunitária e Cultural de João Monlevade - FUNCEC)
Prof. Luiz Flávio Gomes (Coordenador Rede LFG – São Paulo)
Prof. Luiz Manoel Gomes Júnior (Fund. Uni. de Itaúna, Consultor da ONU, Consultor do Ministério de Justiça)
Profª. Maria Garcia (PUC/SP)
Profª. Maria Tereza Aina Sadek (USP)
Prof. Mário Lúcio Quintão Soares (PUC/MG)
Profª. Miracy Barbosa de Sousa Gustin (UFMG)
Prof. Nelson Nery Junior (PUC/SP)
Prof. Nilo Batista (UERJ)
Prof. Ricardo Carneiro (Fundação João Pinheiro)
Profª. Rosânia Rodrigues de Sousa (Fundação João Pinheiro)
Prof. Rosemiro Pereira Leal (PUC/MG)
Promotor de Justiça Robson Renault Godinho (Estado do Rio de Janeiro)
Promotor de Justiça Emerson Garcia (Estado do Rio de Janeiro)
EDITORAÇÃO
Alessandra de Souza Santos
Fernando Soares Miranda
João Paulo de Carvalho Gavidia
Luciana Perpétua Corrêa
Luciano José Alvarenga
Paôla Bruna de Oliveira
Samuel Alvarenga Gonçalves
REVISÃO
Alessandra de Souza Santos
Dalvanôra Noronha Silva
Daniela Paula Alves Pena
Beatriz Garcia Pinto Coelho (estágio supervisionado)
Gabriela Nunes Gomes (estágio supervisionado)
CAPA
Alex Lanza (Foto da Estátua da Justiça)
João Paulo de Carvalho Gavidia (Arte)
PROJETO GRÁFICO / DIAGRAMAÇÃO
João Paulo de Carvalho Gavidia
TRADUÇÃO
Alessandra de Souza Santos
De Jure - Journal of the Public Prosecution
Office of the State of Minas Gerais
ATTORNEY-GENERAL
Minas Gerais State Prosecutor Alceu José Torres Marques
DIRECTOR OF THE CENTER OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT
Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida
ASSISTANT OF THE CENTER OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT
Minas Gerais State Prosecutor Emerson Felipe Dias Nogueira
SUPERINTENDENT OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT
Fernando Soares Miranda
DIRECTOR OF EDITORIAL PRODUCTION
Alessandra de Souza Santos
CHIEF EDITOR
Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida
EDITORIAL BOARD - MEMBERS OF THE EDITORIAL BOARD
Minas Gerais State Prosecutor Adilson de Oliveira Nascimento
Minas Gerais State Prosecutor Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho
Minas Gerais State Prosecutor Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes
Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida
Minas Gerais State Prosecutor João Cancio de Mello Junior
Minas Gerais State Prosecutor Lélio Braga Calhau
Minas Gerais State Prosecutor Marcelo Cunha de Araújo
Minas Gerais State Prosecutor Marcos Paulo de Souza Miranda
Minas Gerais State Prosecutor Renato Franco de Almeida
MEMBERS OF THE EDITORIAL BOARD –COLLABORATION AND REVIEW
Prof. Antônio Gidi (Houston University, USA)
Prof. Eduardo Ferrer Mac-Gregor (Universidad Nacional Autônoma de México, Mexico)
Prof. Eduardo Martinez Alvarez (Universidad Del Museo Social Argentino, Argentina)
Prof. Juan Carlos Ferré Olivé (Universidad de Huelva, Spain)
Prof. Mário Frota (Portuguese Association of Consummer Law, Portugal)
Prof. Michael Seigel (University of Florida, USA)
Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Minister of Brazilian Superior Court)
Prof. Aziz Tuffi Saliba (Fundação Universidade de Itaúna, Brazil)
Prof. Humberto Theodoro Júnior (UFMG, Brazil)
Prof. Juarez Estevam Xavier Tavares (Vice Attorney-General, UERJ, Brazil)
Prof. Luciano José Alvarenga (Fundação Comunitária e Cultural de João Monlevade - FUNCEC, Brazil)
Prof. Luiz Flávio Gomes (Coordinator of the LFG Co. – São Paulo, Brazil)
Prof. Luiz Manoel Gomes Júnior (Fund. Uni. de Itaúna, ONU Advisor, Brazilian Minister of Justice Advisor - Brazil)
Prof. Maria Garcia (PUC/SP - Brazil)
Prof. Maria Tereza Aina Sadek (USP – Brazil)
Prof. Mário Lúcio Quintão Soares (PUC/MG - Brazil)
Prof. Miracy Barbosa de Sousa Gustin (UFMG - Brazil)
Prof. Nelson Nery Junior (PUC/SP - Brazil)
Prof. Nilo Batista (UERJ - Brazil)
Prof. Ricardo Carneiro (Fundação João Pinheiro, Brazil)
Profª. Rosânia Rodrigues de Sousa (Fundação João Pinheiro, Brazil)
Prof. Rosemiro Pereira Leal (PUC/MG - Brazil)
Rio de Janeiro State Prosecutor Emerson Garcia
Rio de Janeiro State Prosecutor Robson Renault Godinho
EDITING
Alessandra de Souza Santos
Fernando Soares Miranda
João Paulo de Carvalho Gavidia
Luciana Perpétua Corrêa
Luciano José Alvarenga
Paôla Bruna de Oliveira
Samuel Alvarenga Gonçalves
PROOF READING
Alessandra de Souza Santos
Dalvanôra Noronha Silva
Daniela Paula Alves Pena
Beatriz Garcia Pinto Coelho (intern)
Gabriela Nunes Gomes (intern)
COVER
Alex Lanza (Photo of the Statue of Justice)
João Paulo de Carvalho Gavidia (Design)
GRAPHIC PROJECT AND DESIGN
João Paulo de Carvalho Gavidia
TRANSLATION
Alessandra de Souza Santos
Prefácio
C
hegamos ao número 13 da nossa
Revista De Jure – Revista Jurídica
do Ministério Público do Estado
de Minas Gerais, compartilhando os frutos
do nosso sucesso com nossos caríssimos
colaboradores e leitores!
A Revista De Jure apresenta nova forma de
submissão de artigos. A partir de agora, essa
etapa tornar-se-á eletrônica e será feita por
intermédio do sítio
www.mp.mg.gov.br/dejure.
Os
autores
deverão
inscrever-se em formulário
próprio
constante
do
sítio, enviando o arquivo
por upload. O novo sítio
exclusivo da revista traz
também todas as edições
produzidas, inclusive os
números já esgotados,
que foram digitalizados, as
normas de submissão e
informações gerais acerca
da revista.
ao Ministério Público do Estado de Minas
Gerais, com o fito de oxigenar a discussão
e a produção intelectual da Instituição
mineira!
Nesta edição, dentre outras preciosas
colaborações, a Revista De Jure aborda a
diversidade cultural derivada de processos
de imigração e suas conseqüências do
ponto de vista do sistema penal europeu,
sob a ótica do renomado
Prof. Juan Carlos Ferré
Olivé, da Espanha; aborda
ainda em sua seção de
Doutrina Internacional o
crime organizado do ponto de
vista da Criminologia, em um
estudo local sobre a máfia
russa, de autoria do ilustre
Prof. Miguel Ángel Núñez
Paz, da Espanha. A Profª.
Maria Coeli Simões Pires nos
brinda com um estudo sobre
a proteção ao patrimônio
cultural, abordando aspectos
conceituais e a valorização
da participação da sociedade
nas políticas públicas. Na
seção “Palestra”, a Promotora de Justiça
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick
brilhantemente discorre sobre o tema
"Improbidade Administrativa e Lesão ao
Patrimônio Cultural".
"O Conselho
Editorial conta com
diversos e notáveis
juristas convidados,
provenientes
de instituições
exógenas ao
Ministério Público."
Além disso, buscando
sempre aprimorar a qualidade de nossas
publicações, o Conselho Editorial priorizará
a publicação de artigos inéditos, para
cumprirmos o propósito vanguardista e
inovador da De Jure.
Outra novidade que, certamente, abrilhantará
ainda mais nosso Conselho Editorial é a
recente inclusão dos renomados juristas
e acadêmicos: Prof. Eduardo Martinez
Alvarez (Universidad Del Museo Social
Argentino, Argentina) e Prof. Luiz Manoel
Gomes Júnior (Fundação Universidade de
Itaúna, Consultor do Ministério da Justiça e
da ONU). O Conselho Editorial conta com
diversos e notáveis juristas convidados,
provenientes de instituições exógenas
O êxito de nossas edições se deve à
participação não somente dos membros
e servidores do Ministério Público mas
também de operadores do Direito externos
à Instituição, que contribuem sobremaneira
para um verdadeiro debate acadêmico das
mais variadas questões.
Gregório Assagra de Almeida
Diretor do CEAF
Colaboradores desta edição
ADIRSON ANTÔNIO GLÓRIO DE RAMOS
Major da Polícia Militar de Minas Gerais; Pósgraduado em Direito Público - FADIVALE; Pósgraduado em segurança pública - Fundação
João Pinheiro; Mestre em Direito Empresarial
- Universidade de Itaúna/MG; Professor da
UNIPACTO - Téofilo Otoni - MG
ADRIANO NAKASHIMA
Analista do Ministério Público
do Estado de Minas Gerais
ALMIR ALVES MOREIRA
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
ANTÔNIO HERMAN
DE VASCONCELLOS E BENJAMIN
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
CHARLEY TEIXEIRA CHAVES
Mestre em Direito Processual pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – PUC
MINAS; Especialista em Direito Processual pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC MINAS; Cursou e Cursa disciplina isolada de
Doutorado em Direito Processual pela PUC MINAS;
Ex-Assessor de Juiz do Poder Judiciário do Estado
de Minas Gerais (TJMG) e Advogado. Coordenador
de Pesquisa da FASPI. Professor do curso de PósGraduação Lato Sensu em Direito Civil e Processo
Civil da FIC. Autor de artigos publicados em obras
coletivas, revistas e periódicos especializados em
Direito. Sua experiência docente inclui a atuação
em diversas instituições, por exemplo, PUC MINAS,
Faculdade Novos Horizontes e FASPI.
http://lattes.cnpq.br/9540786558735514
ELAINE MARTINS PARISE
Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
FABIANA REZENDE CARVALHO
Advogada
Pós-graduada em Direito Processual
Pós-graduanda em Direito Constitucional
FÁDUA MARIA DRUMOND CHEQUER MAGNO
Mestranda em Direito pela Universidade de Itaúna;
Pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-MG
Professora da Faculdade de Direito da Universidade
de Itaúna – campus Almenara; Professora da
UNIPAC – campus Almenara; Servidora do TJMG
na comarca de Almenara
GUSTAVO LOPES PIRES DE SOUZA
Formado em Direito pela PUC/MG; Pós-Graduado
em Direito Civil e Processual Civil pela Unipac;
Membro dos Institutos Mineiro e Brasileiro de Direito
Desportivo; Agraciado com a medalha “Dom Serafim
Fernandes de Araújo” pela eficiência na atuação
jurídica; Jurista, Articulista, Advogado licenciado em
razão de função pública no TJMG; Professor de
matérias jurídicas no Megaconcursos, Faminas e
Analdo Jansen; Autor do Livro: “Estatuto do Torcedor:
A Evolução dos Direitos do Consumidor do Esporte”.
Alfstudio: Belo Horizonte: 2009, 96 p. ISBN. 978-8562749-02-5
HELI DE SOUZA MAIA
Mestrando
JARBAS SOARES JÚNIOR
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
Ex-Procurador-Geral de Justiça
JORGE PATRÍCIO DE MEDEIROS ALMEIDA FILHO
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
JUAN CARLOS FERRÉ OLIVÉ
Catedrático de Derecho Penal
Universidad de Huelva, Espanha
JULIANA BORGES REZENDE
Advogada
Bacharel em Direito - Faculdade Milton Campos
LEANDRO HENRIQUE SIMÕES GOULART
Bacharel em Direito – PUC/MG
Pós-graduado em Direito Processual – PUC/MG
Professor do Unicentro Newton Paiva
LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA); Pós-Graduado em Direito Civil pela
PUC/MG; Mestre em Direito Privado pela PUC/MG;
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM); Professor de Direito Processual Penal
do curso Praetorium BH/SAT; Membro do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)
LEONARDO SICA
Advogado; Doutor e Mestre em Direito Penal pela
USP; Diretor da Associação dos Advogados de
São Paulo; Coordenador da revista Ultima Ratio;
Professor convidado da Especialização em Direito
Penal Econômico da FGV/SP (GVlaw); Autor dos
livros Justiça Restaurativa e Mediação Penal (Lumen
Juris) e Direito Penal de Emergência e Alternativas à
Prisão (Revista dos Tribunais)
LUCIANA KÉLLEN SANTOS PEREIRA GUEDES
Promotora de Justiça do Ministério Público
do Estado de Minas Gerais
Pós-graduada em Ciências Penais pela PUC/MG
MAÍRA CARVALHO LUZ
Advogada
Integrante da Rede Nacional dos Advogados
e Advogadas Populares – RENAP
MARCOS PEREIRA ANJO COUTINHO
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
MARIA ANGÉLICA SAID
Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
MARIA DAS GRAÇAS TORRES DA PAZ
Doutora em Psicologia - Universidade de São Paulo
Pós-Doutora - Universidade Complutense de Madri
Universidade de Brasília/PSTO (professora colaboradora)
ICC Sul – Campus Darcy Ribeiro - Brasília, DF
Cep: 70910-900 - [email protected]
tel: (61) 33072625, ramal 201
MARIA ELMIRA EVANGELINA DO AMARAL DICK
Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais;
Promotora de Justiça da 17º Promotoria de Justiça
Especializada na Defesa do Patrimônio Público
de Belo Horizonte/MG; Bacharel em Direito pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/
SP; Coordenadora do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos
das Pessoas com Deficiência e Idosos- CAOPPDI;
Coordenadora Auxiliar da Promotoria Estadual de
Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas
Gerais; Co-autora da Cartilha sobre "Crimes de
Lavagem de Dinheiro - Noções Básicas quanto à
aplicação da Lei nº 9613/98". Belo Horizonte: CEAF/
MPMG, 2006; Coordenadora do Boletim Informativo
Eletrônico Mensal- CAOPPDI/MPMG; Especialista
em Direito Processual pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, 2004;
MARIA IRANEIDE OLINDA SANTORO FACCHINI
Procuradora Regional da República
do Estado de São Paulo
MATHEUS ADOLFO GOMES QUIRINO
Bacharel em Direito - Universidade Federal de
Minas Gerais; Pós-graduado em Direito Processual
- PUC/MG; Mestre em Direito de Empresa pela
Universidade de Itaúna; Ex-Procurador do Município
de Itabira; Advogado
MIGUEL ÁNGEL NÚÑEZ PAZ
Universidad de Huelva, Espanha
NORMÉLIA MIRANDA
Oficial do Ministério Público do Estado de Minas
Gerais; Graduada em Gestão Pública pelo Centro
Universitário Belo Horizonte – Uni-BH
E-mail: [email protected]
PLÍNIO LACERDA MARTINS
Professor de Direito do Consumidor
Mestre em Direito pela UGF
Promotor de Justiça
POLIANA CÍNTIA COSTA GUIMARAES
Analista do Ministério Público
do Estado de Minas Gerais
Pós-Graduada em Direito Processual
RENATO FRANCO DE ALMEIDA
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais;
Graduação em Direito - Faculdade de Direito
Cândido Mendes; Especialista em Direito Faculdade de Direito Vale do Rio Doce; Mestre em
Direito e Instituições Políticas - Fundação Mineira de
Educação e Cultura; Membro do Conselho Editorial
do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
ROSÂNIA RODRIGUES DE SOUSA
Pesquisadora plena - Fundação João Pinheiro (MG);
Professora da Escola de Governo da Fundação João
Pinheiro (MG); Mestre em Psicologia - Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG); Doutoranda em
Psicologia Social do Trabalho e das Organizações –
Universidade de Brasília (UnB)
[email protected]
SILVIA FONSECA SILVA
Advogada
Pós-graduanda em Processo Civil
Universidade Anhanguera-Uniderp
Apresentação
"A
liberdade
sem
o
essenciais. Nesse contexto, a “De
aprendizado
está
Jure” é uma importante ferramenta
sempre em perigo. O
de divulgação da produção técnicoaprendizado sem a liberdade é sempre
científica não somente em nível
em vão”. Sabiamente, John Fitzgerald
institucional mas também como
Kennedy proferiu essa célebre
instrumento fomentador de debates
frase em um de seus discursos. A
necessários para a compreensão
sociedade brasileira tem passado por
dessas transformações sociais. Seu
inúmeras transformações desde a
caráter pluralista, sua estruturação
Constituição de 1988, a
acadêmica,
amplitude
chamada “Constituição
temática
e
vocação
“... a 'De Jure' é interdisciplinar credenciam
cidadã”. Essa nova
uma importante a “De Jure” a esse
realidade reflete uma
busca
constante
papel.
ferramenta de
pela
liberdade
e
solidificação dos direitos
Segundo Henry David
divulgação da
fundamentais, como se
ensaísta, poeta
produção técnico- Thoreau,
pode depreender, por
e naturalista americano,
exemplo, do art. 3º da CF,
“livros são os carreadores
científica não
que estabelece, entre
da
civilização.
Sem
somente em nível os livros, a História é
outras
diretrizes, os
objetivos fundamentais
institucional ...” silenciosa, a Literatura
da República Federativa
é muda, a Ciência é
do Brasil, a construção
alijada, o pensamento e
de uma sociedade justa, livre e
a reflexão ficam inertes”.
solidária, a erradicação da pobreza e
a redução das desigualdades sociais.
Convido todos a colaborarem com
O Ministério Público está inserido
nossas publicações, pois “a leitura
nesse contexto de transformação
faz do homem um ser completo; a
social e seus novos desafios impõem
conversa faz dele um ser preparado,
e a escrita o torna preciso (Francis
mudanças fundamentais no seu perfil
Bacon).
institucional.
Para atingirmos esse novo paradigma
institucional, a formação continuada
dos membros do Ministério Público e
a dispersão desse conhecimento são
Um forte abraço a todos!
Alceu José Torres Marques
Procurador-Geral de Justiça
SUMÁRIO
1
ASSUNTOS GERAIS
Doutrina Internacional • 25
Doutrina Nacional • 63
Palestra • 124
Diálogo Multidisciplinar • 139
Diversidad cultural y sistema penal
25
Perspectiva criminológica de la criminalidad organizada:
una visión local de la mafia rusa
41
Juan Carlos Ferré Olivé
Miguel Ángel Núñez Paz
Aspectos processuais dos crimes de lavagem de dinheiro
63
Angelo Ansanelli Júnior
Classificação dos direitos: da summa divisio
clássica à summa divisio constitucionalizada
83
Heli de Souza Maia
Concurso de pessoas no infanticídio: por uma
melhor compreensão a partir do conceito
finalista de ação de Hans Welzel
102
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho
Improbidade administrativa e lesão ao patrimônio cultural
124
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick
Valores organizacionais e configurações de poder:
as organizações policiais mineiras em foco
139
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
• De Jure - Revista Jurídica MPMG
2
DIREITO PENAL
Artigo • 161
Jurisprudência • 186
Comentário à Jurisprudência • 189
A responsabilidade penal da pessoa jurídica: a
pessoa jurídica pode delinqüir?
161
Adirson Antônio Glório de Ramos
Jurisprudência - Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça.
Crime. Prefeito. Princípio. Insignificância. Não aplicabilidade.
186
Prisão preventiva para garantia da ordem econômica
189
Leonardo Sica
3
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Artigo • 201
Jurisprudência • 214
Comentário à Jurisprudência • 216
Transação penal e suspensão condicional do processo
ex officio: impossibilidade
Técnica • 227
201
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes
Jurisprudência - Informativo 402 do STJ, Competência.
Contravenção. Lei Maria da Penha. Não aplica a lei 9099/95.
214
Breves anotações sobre a atuação do judiciário e do
Ministério Público na repressão ao tráfico de drogas
216
José Fernando Marreiros Sarabando
Proposta de arquivamento
José Fernando Marreiros Sarabando
Revista Jurídica MPMG - De Jure •
227
4
DIREITO CIVIL
Artigo • 235
Jurisprudência • 259
Comentário à Jurisprudência • 261
235
A guarda compartilhada e a Lei nº 11.698/08
Leonardo Barreto Moreira Alves
Jurisprudência - Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça.
Possibilidade de penhorar bem de família para sanar dívida alimentícia.
259
A responsabilidade civil à luz do estatuto do
torcedor: clube punido por dano a torcedor
durante comemoração de gol
261
Gustavo Lopes Pires de Souza
5
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Artigo • 275
Jurisprudência • 292
Comentário à Jurisprudência • 295
Uma análise acerca da constitucionalidade
do art. 285-A do CPC em face dos princípios
do devido processo legal e do contraditório
Técnica • 301
275
Fádua Maria Drumond Chequer Magno
Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. Ministério
Público. Requisição. Informação diretamente. Banco. Relação de consumo.
292
Intervenção do Ministério Público nas ações expropriatórias
295
Silvia Fonseca Silva
Responsabilidade civil do estado: ilegitimidade
passiva do Ministério Público estadual
301
Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin
• De Jure - Revista Jurídica MPMG
6
DIREITO COLETIVO
Artigo • 311
Jurisprudência • 333
Comentário à Jurisprudência • 335
A proteção do consumidor nos contratos de telefonia
móvel e fixa e sua interpretação jurisprudencial
311
Plínio Lacerda Martins
Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça – Ação Civil Pública.
Prefeito. DL. N. 201/1967. Lei N. 8.429/1992. Ex- Prefeito. Foro de prerrogativa de
333
função. Ausência de notificação e demonstração do prejuízo.
Direito à educação. A concretização de um direito fundamental
em matéria de política pública, pela via da ACP
335
Fabiana Rezende Carvalho
7
DIREITO PROCESSUAL COLETIVO
Artigo • 349
Jurisprudência • 368
Comentário à Jurisprudência • 371
Ação popular ambiental e efetividade: análise
dos principais aspectos processuais
Técnica • 381
349
Poliana Cíntia Costa Guimaraes
Jurisprudência - Informativo 411 do Superior Tribunal da Justiça. ACP.
Improbidade. Somatório. Penas. Princípio da razoabilidade.
368
Averbação de reserva legal como condição para
retificação de registro imobiliário
371
Matheus Adolfo Gomes Quirino • Leandro Henrique Simões Goulart
Atendimento prioritário a idoso
Almir Alves Moreira
Revista Jurídica MPMG - De Jure •
381
8
DIREITO PÚBLICO CONSTITUCIONAL
Artigo • 399
Jurisprudência • 421
Comentário à Jurisprudência • 422
Princípios institutivos e informativos dos recursos
Técnica • 432
399
Charley Teixeira Chaves
Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. EDCL. Súmula
Vinculante. Eficácia. Impossibilidade de embargos de declaração adaptar a
decisão judicial à tese jurídica posteriormente consolidada nos tribunais.
421
Análise crítica à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
que considera inconstitucional a vedação da liberdade provisória
prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006
422
Adriano Nakashima
432
Ação direta de inconstitucionalidade
Elaine Martins Parise • Renato Franco de Almeida • Maria Angélica Said
9
DIREITO PÚBLICO INSTITUCIONAL
Artigo • 463
Jurisprudência • 469
Comentário à Jurisprudência • 471
Técnica • 474
A competência no art. 2º da lei de ação
pública – competência territorial absoluta
ou competência territorial funcional?
463
Jurisprudência - Informativo 549 do Supremo Tribunal Federal. Promotor:
Exercício de Atividade Político-Partidária. Possibilidade de Reeleição após
a EC 45/2004. Discussão sobre a existência de direito adquirido. Necessidade do cumprimento das condições de elegibilidade em cada eleição.
469
Desconsideração da personalidade jurídica e direito de família
471
Maíra Carvalho Luz
Juliana Borges Rezende
Ação direta de inconstitucionalidade: Emenda nº 16 da LOM
474
Jarbas Soares Júnior
• De Jure - Revista Jurídica MPMG
10
DIREITO PÚBLICO ADMINISTRATIVO
Artigo • 489
Jurisprudência • 512
Comentário à Jurisprudência • 514
A atuação do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais no combate aos crimes praticados
por agentes políticos municipais
Técnica • 524
489
Normélia Miranda
Jurisprudência - Informativo 401 do Superior Tribunal de Justiça –
Mudou o entendimento anterior sobre a natureza jurídica do direito a
ser nomeado. Antes era expectativa de direito. Atualmente o STJ
entende que se trata de direito subjetivo se passar nos limites das vagas.
512
Improbidade e o elemento subjetivo do agente público
514
Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini
Termo de ajustamento de conduta:
inquérito civil nº 006/2008
524
Marcos Pereira Anjo Coutinho
11
NORMAS DE PUBLICAÇÃO PARA OS AUTORES • WRITERS’ GUIDELINES
Português
537
English
541
Revista Jurídica MPMG - De Jure •
1
Doutrina Internacional • 25
Doutrina Nacional • 63
Palestra • 124
Diálogo Multidisciplinar • 139
Assuntos
Gerais
1
Doutrina Internacional
DIVERSIDAD CULTURAL Y SISTEMA PENAL
JUAN CARLOS FERRÉ OLIVÉ
Catedrático de Derecho Penal
Universidad de Huelva
ABSTRACT: The cultural diversity originated in migratory process has great
significance in the conformation of the european penal systems. The punishment
worsen when the crime is commited by ethnic, racial or religious reasons. And
some foreign customs, like the polygamy, are not acepted, maintaining their criminal
character. Another assumption of multiculturalism makes reference to the Criminal
Law applicable to the indigenous peoples in Latin America. The usual indigenous
Criminal Law must be respected, but demanding the total observance of the
fundamental Rights.
KEY WORDS: Cultural diversity; European penal systems; Ethnic, racial or religious
reasons.
RESUMEN: La diversidad cultural originada en procesos migratorios tiene gran
importancia en la conformación de los sistemas penales europeos. Las penas se
agravan cuando el delito se comete por motivos étnicos, raciales o religiosos. Y
algunas costumbres foráneas, como la poligamia, no son aceptadas, manteniendo
su carácter delictivo. Otro supuesto de multiculturalidad hace referencia al Derecho
penal aplicable a los pueblos indígenas en América Latina. Debe respetarse el
Derecho penal consuetudinario indígena pero exigiendo la plena observancia de los
Derechos fundamentales.
PALABRAS CLAVE: Diversidad cultural; Sistemas penales europeos; Motivos
étnicos, raciales o religiosos.
1. Aproximación
Uno de los fenómenos más complejos de nuestro tiempo - desde un punto de vista
jurídico y social – se encuentra en el modelo de convivencia multicultural que están
adoptando los seres humanos, producto de los procesos migratorios. Se puede
Juan Carlos Ferré Olivé •
25
hablar incluso del surgimiento de una nueva “civilización nómada”, en la que ya no se
trasladan sujetos individualizadamente sino familias y hasta pueblos casi completos,
lo que tiende a conformar modernas sociedades multiétnicas, multiculturales y
multirreligiosas1. Esta perspectiva plural es muy enriquecedora para la evolución
social pero puede resultar al mismo tiempo problemática, en cuanto fuente potencial
de conflictos de integración de los que se derivan consecuencias que conciernen al
mundo jurídico en general y al sistema penal en particular. En síntesis, los procesos
migratorios están incidiendo en cierta medida en el Derecho penal europeo. Sin
embargo, no podemos olvidar que en otras partes del mundo también existen
conflictos penales cuyo origen es la multiculturalidad, pero a diferencia de la situación
europea afectan a poblaciones poco propicias a la movilidad, que han padecido un
importante proceso histórico de colonización. Este es el caso del Derecho penal
aplicable a los pueblos indígenas de América Latina.
Podemos afirmar que a comienzos el siglo XXI prácticamente todos los Estados del
mundo son multiculturales. El problema se localiza en las formas de interrelación
entre estos modos de vida tan diversos, es decir, la tendencia a enfrentamientos y
desencuentros que puede llevar a situaciones de conflicto. El punto de partida es
el de la desigualdad entre culturas, que en ocasiones conduce al etnocentrismo, es
decir, como lo define el Diccionario de la Real Academia de la Lengua, “una tendencia
emocional que hace de la cultura propia el criterio exclusivo para interpretar los
comportamientos de otros grupos, razas o sociedades”. Por este motivo y como
principio aplicable a todas estas situaciones se hace necesario subrayar que ninguna
cultura es portadora de verdades absolutas2.
2. La multiculturalidad en Europa
El fenómeno contemporáneo de la multiculturalidad en Europa se relaciona
directamente con la fortaleza económica que se ha ido alcanzando a partir de 1945,
después de la Segunda Guerra Mundial, y fundamentalmente desde la creación
de la Comunidad Económica Europea, tras la firma del Tratado de Roma el 25 de
marzo de 1957. De aquella incipiente organización económica formada por seis
países se ha pasado a la actual Unión Europea integrada por 27 Estados, con
23 idiomas oficiales, y aproximadamente 500 millones de habitantes, muchos de
ellos extracomunitarios. Es evidente que una Europa económicamente poderosa e
inmersa en el proceso globalizador necesita la fuerza de trabajadores de todo el
mundo, familias completas que ven en estos procesos migratorios una esperanza
para mejorar su calidad de vida. En este contexto es ilusorio pensar en una “cultura
única” europea. En definitiva, hoy en Europa conviven muchas etnias, religiones y
civilizaciones, cuyo principal punto de encuentro debe ser el reconocimiento del ser
humano en su dignidad, con independencia de su pertenencia étnico- religiosa3.
1 Sobre el impacto del pluralismo étnico y religioso motivado por la inmigración en los ordenamientos
jurídicos contemporáneos, y la reaparición de las culturas nómadas, cfr. Dalla Torre, G. Pluralismo religioso, multietnicidad y bioderecho, en Medicina y Etica 2007/3, p.181 y sig.
2 Cfr. Bernardi, A. El Derecho penal ante la globalización y multiculturalismo, Revista Derecho y Proceso penal nº 8, 2002, p. 26.
3 Cfr. Dalla Torre, G. Pluralismo religioso, op. cit. p.186 y sig.
26
• Doutrina Internacional
Podemos afirmar que en principio todo aquel que se traslada debe adaptarse al
país de acogida, incluso renunciando parcialmente a sus hábitos y tradiciones. Pero
la integración no supone que deban asumirse todos los valores dominantes en el
lugar de destino. Se pretende la convivencia pacífica entre todos los grupos sociales
y culturales, sin olvidar que la migración humana es tan necesaria para los que
ofrecen como para los que reciben el trabajo. Esto supone que todos los grupos
implicados deben conciliar sus diferencias guiados por el diálogo y el principio de
tolerancia. Corresponde a cada Estado planificar la integración, salvaguardando los
distintos espacios culturales y sin olvidar en ningún momento que existe un auténtico
Derecho a la diversidad.
Como presupuesto básico debemos recordar que todos aquellos que pertenecen
a una minoría étnica, religiosa o lingüística son titulares del conjunto de Derechos
consagrados en la Declaración Universal de Derechos Humanos de Naciones Unidas
y demás instrumentos jurídicos internacionalmente vinculantes4. Sin embargo,
necesariamente deben existir limitaciones o restricciones a ciertas manifestaciones
culturales, pues algunas costumbres aceptadas en los países de origen pueden
ser totalmente incompatibles con el marco jurídico del país de acogida. Piénsese
en ciertas prácticas que son punibles para la cultura europea, como por ejemplo
la mutilación genital femenina que es habitual en distintos países africanos, o la
propensión a la poligamia, que es plenamente legal en algunas naciones asiáticas.
Como sostiene Bernardi, si bien en Europa las minorías poseen el reconocimiento
general de su derecho a la diversidad, este derecho puede ser fuente de conflictos,
por lo que existen límites que resultan de la propia Convención Europea de Derechos
Humanos y de los textos Constitucionales de los distintos Estados5. En consecuencia,
algunas libertades fundamentales pueden verse reducidas en base a criterios de
oportunidad, tratándose de medidas que resultan necesarias para salvaguardar
intereses generales en una sociedad democrática.
Una vez trazado este marco global, analizaremos algunos problemas penales que
plantea la multiculturalidad en Europa. Por una parte, la diversidad debe encontrarse
penalmente protegida de eventuales excesos y ataques. Uno de los motivos de
mayor preocupación es el de la violencia racista, que ha ido potenciando la aparición
en los distintos Estados de normas penales antidiscriminatorias. Así, por ejemplo, el
Código Penal español considera como circunstancia agravante genérica obrar con
finalidades excluyentes, es decir, “cometer el delito por motivos racistas, antisemitas
u otra clase de discriminación referente a la ideología, religión o creencias de la
víctima, la etnia, raza o nación a la que pertenezca, su sexo u orientación sexual, o
Así, el Pacto Internacional de Derechos económicos, sociales y culturales de la ONU de 1966, el Pacto
Internacional de Derechos Civiles y Políticos de la ONU de 1966, la Convención Europea de Derechos
Humanos de 4 de noviembre de 1950 y sus Protocolos adicionales.
5 Cfr. Bernardi, op. cit. P. 29 y sig.
4 Juan Carlos Ferré Olivé •
27
la enfermedad o minusvalía que padezca” (art. 22.4)6. Se trata de una regulación que
pretende impedir actos hostiles originados en motivos raciales, étnicos o religiosos,
aunque debe considerarse como un mero complemento de otras políticas de Estado
que tiendan a facilitar la integración de las minorías y a evitar, a través de distintos
medios preventivos, la aparición de brotes de violencia.
Por otra parte, la ancestral costumbre que existe en algunos países africanos de
practicar la mutilación genital femenina pretende encontrar amparo en motivos
sociológicos, sexuales o religiosos. UNICEF cifra en más de 100 millones las
mujeres actualmente vivas pertenecientes a 28 países que padecen la mutilación
del clítoris, lo que les genera problemas de salud irreversibles7. Evidentemente se
trata de una conducta punible, al menos en los Códigos penales europeos, a través
de distintas modalidades de lesiones corporales o como ha estructurado el Código
penal español, a través de la tipificación de una figura específica:”El que causara a
otro una mutilación genital en cualquiera de sus manifestaciones será castigado con
la pena de prisión de seis a doce años.. ”(art. 149.2)8. Sin embargo, se ha constatado
una práctica frecuente que consiste en enviar a las menores a los países de origen,
presuntamente para visitar a su familia, pero con la auténtica finalidad de practicar
allí la mutilación genital. Al ser en ese país una práctica permitida, la conducta de los
progenitores o tutores deviene impune. Para intentar impedir estos comportamientos
se han articulado importantes cambios legislativos. Así, en España se ha llevado
a cabo una modificación del Principio de Justicia Universal. En la actualidad, la
Ley Orgánica del Poder Judicial establece en su art. 23.4, letra h, la competencia
de los Tribunales españoles para juzgar los delitos relativos a la mutilación genital
femenina, siempre que los responsables se encuentren en España. En consecuencia,
la responsabilidad penal podrá recaer en los tutores, padres o responsables que
envíen dolosamente a las menores a sus países de origen consintiendo la práctica
de mutilaciones genitales.
La realidad cultural de los Estados en los que se admite la bigamia o poligamia
no provoca tantos problemas en Europa, dado que los sucesivos matrimonios no
suelen llevarse a cabo ante las autoridades europeas sino en los países de origen.
A diferencia de lo que ocurre en los casos de mutilación genital femenina, para los
supuestos de poligamia no suele preverse la aplicación extraterritorial de las normas
penales europeas y por lo tanto, al ser conductas legales en los países de origen
no podrá existir actuación penal alguna, con independencia de las consecuencias
jurídico- civiles de esos enlaces. En todo caso, si el segundo enlace se lleva a
cabo en un país europeo sin disolver el matrimonio anterior existirá responsabilidad
Cfr. más ampliamente, Laurenzo Copello, La discriminación en el Código Penal de 1995, Estudios
Penales y Criminológicos XIX, Santiago de Compostela, p. 279 y sig., Borja Jiménez, Violencia y criminalidad racista en Europa occidental: la Respuesta del Derecho Penal, Granada, 1999, passim, Dopico
Gómez Aller, Delitos cometidos por motivos discriminatorios: una aproximación desde los criterios de
legitimación de la pena, Revista General de Derecho Penal nº 4, 2005, p.1 y sig.
7 Cfr. los datos de UNICEF en www.unicef.org/spanish/protection/index_genitalmutilation.html.
8 En cuanto a los aspectos doctrinales de la persecución penal en España, puede verse Ropero Carrasco,
La mutilación genital femenina, La Ley, 1-12, 2001.
6 28
• Doutrina Internacional
penal, ya que los Códigos penales europeos sancionan contraer un matrimonio
ulterior conociendo que subsiste legalmente el anterior. En algunos supuestos
podrán presentarse situaciones de error sobre la vigencia del matrimonio anterior,
o incluso sobre el marco normativo que establece la prohibición, lo que puede tener
consecuencias jurídicas importantes en materia de error9.
Queda por último formular una breve referencia a una tesis en relativo auge en
Europa, que a mi entender guarda relación con la multiculturalidad. Me refiero a la
pretensión de crear un nuevo espacio punitivo conocido como “Derecho penal del
enemigo”. Debe atribuirse a Günther Jakobs el haber acuñado esta terminología
–con toda la carga ideológica que entraña- sentando las bases científicas para
defender y expandir este modelo10. Jakobs divide a los individuos que participan en
la sociedad en dos grupos: por un lado, los que colaboran con el funcionamiento del
orden jurídico, a quienes llama ciudadanos. Por otro lado, un grupo de sujetos que
habría degenerado, respecto a quienes no existen expectativas de cumplimiento
de sus deberes hacia la sociedad. Estos sujetos no colaboran con el orden jurídico
por diversos motivos (puede pensarse, por ejemplo, en delincuentes terroristas,
delincuentes profesionales o multirreincidentes). Todos ellos se han convertido en
enemigos de la sociedad, en “No Personas”, porque ponen en peligro la vigencia del
ordenamiento jurídico. Se propone para estos sujetos un tratamiento jurídico distinto,
en términos generales mucho más duro, sometiéndolos a una pérdida sustancial
de garantías penales y procesales. Según este planteamiento, sus conductas
deben “combatirse” con medidas especialmente asegurativas. Pero en esta lista de
enemigos o inadaptados pueden tener fácil cabida todos aquellos que pertenecen
a otra etnia, lengua, raza o religión. Considero que en última instancia el Derecho
penal del enemigo está basado en el etnocentrismo y en una pretendida superioridad
europea.
Debemos afirmar con rotundidad que el Derecho penal de enemigos es inadmisible
en un Estado de Derecho. El que se describe como Derecho penal del ciudadano,
con todo su marco garantista, es el único Derecho penal posible. Por supuesto que
planteamientos que pretenden distinguir ciudadanos y enemigos pueden encontrar
apoyo en grupos reducidos de científicos y legisladores. Pero no encuentro
argumentos de peso que permitan contrastar las palabras de Muñoz Conde: “Desde
luego, en un Estado de Derecho democrático y respetuoso de la dignidad del ser
humano, ni el enemigo, ni nadie puede ser nunca definido como no persona”11.
3. La multiculturalidad en América Latina
La colonialización de América Latina a partir de 1492 supuso para los originales
pobladores un cambio absoluto en todos los órdenes de la vida. Se modificaron
9 Cfr. Mir Puig, Matrimonios ilegales en el Código Penal, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
1974, III p. 433 y sig. , en particular p. 457 y sig.
10 Cfr. Jakobs y Cancio Meliá, Derecho penal del enemigo, 2ª. ed. Madrid, 2006, passim.
11 Cfr. Muñoz Conde, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo, 4ª. ed. Valencia, 2003, pp. 124.
Juan Carlos Ferré Olivé •
29
completamente las relaciones sociales, económicas, educativas y religiosas, que
fueron reemplazadas por una nueva cultura. A partir de entonces, el marco de
protección de los Derechos humanos de las comunidades indígenas ha estado
siempre bajo mínimos, y en algunos casos ha sido completamente violentado. En la
actualidad los indígenas son titulares sin duda alguna de todos los derechos que se
recogen en la Declaración Universal de Derechos humanos de Naciones Unidas, en
la Declaración Americana de Derechos y Deberes del hombre de la Organización de
Estados Americano (ambas de 1948) y en los instrumentos jurídicos internacionales
vinculantes suscritos en esta materia12. Pero este conjunto de disposiciones no puede
garantizan por el momento el goce pleno y efectivo de los Derechos humanos de los
pueblos indígenas. Ello se agrava en la medida en que ninguna de las mencionadas
normas ha contemplado reglas específicas para solventar la peculiar situación en
la que se encuentran estas comunidades. Como nos recuerda Stavenhagen, en
muchos países los indígenas son discriminados por motivos étnicos, raciales y de
género, no cuentan con un aceptable acceso a la Administración de Justicia ni tienen
participación política significativa. Además, se les suele negar la identidad cultural y
su civilización es frecuentemente menospreciada13.
Evidentemente son necesarios cambios importantes para lograr un completo
reconocimiento de los derechos fundamentales de los indígenas. En este sentido,
una vez admitidos sus derechos individuales más elementales, hay que destacar
que también poseen derechos colectivos como miembros de una comunidad de
orígenes ancestrales, que resultan imprescindibles para su supervivencia. Así,
cuentan con el derecho a la integridad cultural y a la identidad colectiva, a poseer su
propia lengua y religión, y en definitiva el derecho a ser diferentes. La coexistencia
de distintos sistemas sociales, siendo uno de ellos mayoritario o hegemónico,
refuerza la necesidad de que el sistema menos favorecido – en este caso el de las
comunidades indígenas – plantee el reconocimiento de la diversidad. Dado que el
Estado no garantiza plenamente sus derechos, es lógico que estas comunidades
reivindiquen la validez de sus propias normas y procedimientos, muchas de ellas
antiquísimas. Pero el camino de la afirmación de un genuino Derecho indígena en
materia penal es de por sí bastante complejo. Para empezar, debemos recordar
como tuvo lugar la histórica pérdida del ius puniendi.
En los siglos que siguieron al descubrimiento no puede hablarse de una influencia
del Derecho penal europeo, sino de una auténtica imposición del las normas
penales españolas y portuguesas en los nuevos territorios conquistados14. En
consecuencia, el ius puniendi que originariamente tenían las comunidades indígenas
Así, fundamentalmente el Pacto Internacional de Derechos económicos, sociales y culturales de la
ONU de 1966, el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos de la ONU de 1966, la Convención
Americana sobre Derechos humanos o “Pacto de San José de Costa Rica” de 1969 y La Convención contra la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes de la ONU de 1984.
13 Cfr. Stavenhagen, Los derechos de los pueblos indígenas: esperanzas, logros y reclamos, en AAVV,
Pueblos indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006, p. 24.
14 Cfr. Hurtado Pozo, El indígena ante el Derecho penal: el caso peruano, en AAVV, La ciencia penal en
el umbral del Siglo XXI, México, 2001, p. 32.
12 30
• Doutrina Internacional
fue expropiado por los colonizadores. El Derecho de estos últimos desplazó a las
normas de convivencia consuetudinarias por las que se regían las comunidades
indígenas hasta entonces. En la España del momento se cuestionaba si los indios
eran hombres libres o esclavos, lo que originó un gran debate teológico y jurídico en
la Universidad de Salamanca. Los indígenas contaron con la extraordinaria defensa
del padre Bartolomé de las Casas y en la discusión académica cobró gran relevancia
Francisco de Vitoria inspirador de una importante escuela de Derecho Internacional,
conocida como Escuela de Salamanca. Se llegó a la conclusión de que los indios
no eran esclavos ni seres inferiores: eran iguales a cualquier otro ser humano y
podían ser dueños de tierras y bienes. Sin embargo, la aplicación política posterior
de estas ideas se concretó en la consideración de que eran ciudadanos libres pero
no del todo, pues tenían una capacidad disminuida o limitada. Por ello, debían estar
sometidos a tutela (libertad tutelada) y trabajar en las llamadas “encomiendas”, que
estando ideadas para velar por su bienestar y formación, se convirtieron de hecho en
una sucesión de trabajos forzados. Este sistema beneficiaba económicamente a la
Corona, que necesitaba grandes sumas de dinero para poder sufragar sus guerras
en Europa. En este marco es evidente la pérdida de autogobierno que padecieron
estas sociedades y consecuentemente la imposibilidad de contar con un sistema
punitivo propio.
Pasados algunos siglos se produce la emancipación de las metrópolis, es decir,
los procesos de independencia que desmembraron las posesiones de España y
Portugal en múltiples Estados. Las nuevas autoridades recuperaron el ius puniendi,
retomando la plena libertad para dictar leyes penales. Sin embargo la independencia
en América Latina no supuso devolver a las comunidades indígenas sus derechos,
pues solamente provocó una emancipación al servicio de las elites políticas y
económicas. La nueva clase gobernante que asumió el poder era la representante
de la burguesía local, de los hijos de inmigrantes que habían hecho fortuna –criollosy de algunos europeos disidentes, que no pensaban de manera distinta que sus
antecesores respecto a los indígenas. En definitiva, los nuevos dirigentes añoraban
Europa y eso se vió reflejado en sus leyes. Por ese motivo siguieron manteniéndose
ligados intelectualmente a la península ibérica y al resto de Europa. La prueba más
evidente es que casi todos los Códigos penales del siglo XIX en América Latina se
inspiraron en las leyes españolas e italianas del momento, con pocas y puntuales
excepciones. Los gobernantes habían cambiado y compartían con los indígenas la
misma nacionalidad pero no los mismos derechos. En esta etapa no puede hablarse
de imposición sino de influencia normativa europea, aunque para muchos pueblos
indígenas el cambio político seguramente pasó bastante desapercibido. A lo largo
de la historia se debe destacar el desprecio hacia el indígena en América Latina
por parte de sus propios gobernantes, que en general los trataron como niños, más
concretamente como seres jurídicamente incapaces, incluso sometiéndolos en
ocasiones a la jurisdicción penal de menores. A principios del siglo XX encontramos
asombrosas pruebas de la terrible marginalidad en la que se hallaban aún los
indígenas. El Código Penal peruano de 1924 dividía a los seres humanos en tres
Juan Carlos Ferré Olivé •
31
categorías: sujetos civilizados, indígenas semicivilizados y salvajes15. Sin pretender
agotar los ejemplos, baste decir que existieron precedentes parecidos en Colombia,
Bolivia, Paraguay, etc.
La situación comienza a cambiar con las Convenciones Internacionales suscritas
en defensa los Derechos humanos a partir de la Segunda Guerra Mundial, pero
lo hace de una manera más efectiva paradójicamente a partir de una norma de
naturaleza laboral, el Convenio nº 169 sobre pueblos indígenas y tribales de la
Organización Internacional del Trabajo (1989). Este Convenio tiene en cuenta la
especial vulnerabilidad laboral de los indígenas, procurando facilitar su integración
en el ámbito del trabajo, mejorar sus condiciones de vida y los niveles de salud y
educación16. Sin embargo, su texto no se limita a atender los aspectos estrictamente
laborales, sino que asume otros temas de naturaleza penal17. Lo más destacado de
cara a los mecanismos de justicia indígena es que otorga derecho a resolver sus
conflictos aplicando sus propias normas, con sus procedimientos y ante sus tribunales,
“siempre que no sean incompatibles con los derechos fundamentales definidos
por el sistema jurídico nacional ni con los derechos humanos internacionalmente
reconocidos”. De esta forma el texto de la OIT se ha convertido en el principal
instrumento jurídico internacional con carácter vinculante en esta materia, aunque
por el momento sólo ha sido ratificado por una veintena de Estados. El problema es
bastante complejo pues no existe un único pueblo indígena sino que en toda América
hay miles de comunidades, contando cada una de ellas con sus propias costumbres
y peculiaridades. No se puede caer en el error de pretender dar el mismo tratamiento
legal a toda la población indígena18. Ello supone que existen comunidades que han
abandonado la costumbre de aplicar penas, confiando al sistema formalizado la
resolución de sus conflictos. En estos casos no se podrá hacer revivir un derecho
Cfr. Hurtado Pozo, El indígena.. op. cit. p. 36 y sig.
Sobre la génesis y contenido del Convenio, Cfr. GÓMEZ, El convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo, en AAVV, Pueblos Indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006.
17 Dice el Convenio OIT 169: Art. 8.1. Al aplicar la legislación nacional a los pueblos interesados
deberán tomarse debidamente en consideración sus costumbres o su derecho consuetudinario. 2. Dichos
pueblos deberán tener el derecho de conservar sus costumbres e instituciones propias, siempre que éstas
no sean incompatibles con los derechos fundamentales definidos por el sistema jurídico nacional ni con
los derechos humanos internacionalmente reconocidos. Siempre que sea necesario, deberán establecerse
procedimientos para solucionar los conflictos que puedan surgir en la aplicación de este principio. 3.
La aplicación de los párrafos 1 y 2 de este artículo no deberá impedir a los miembros de dichos pueblos
ejercer los derechos reconocidos a todos los ciudadanos del país y asumir las obligaciones correspondientes. Art. 9.1. En la medida en que ello sea compatible con el sistema jurídico nacional y con los
derechos humanos internacionalmente reconocidos, deberán respetarse los métodos a los que los pueblos interesados recurren tradicionalmente para la represión de los delitos cometidos por sus miembros.
2. Las autoridades y los tribunales llamados a pronunciarse sobre cuestiones penales deberán tener en
cuenta las costumbres de dichos pueblos en la materia. Artículo 10.1 Cuando se impongan sanciones
penales previstas por la legislación general a miembros de dichos pueblos deberán tenerse en cuenta sus
características económicas, sociales y culturales. 2. Deberá darse preferencia a tipos de sanción distintos
al encarcelamiento.
18 Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas dentro del derecho consuetudinario q’eqchi, en Revista Pena y
Estado nº 4, 1999, p. 17.
15 16 32
• Doutrina Internacional
consuetudinario ya desaparecido. Por el contrario, existen pueblos que mantienen
plenamente vigente un sistema sancionatorio basado en costumbres ancestrales.
Evidentemente será distinta la situación en los países que son signatarios del
Convenio 169 de la OIT respecto a los que no lo han suscrito o ratificado. En relación
a los países signatarios del Convenio, es necesario saber cuándo la actividad punitiva
ejercitada por las autoridades indígenas es conforme a la Constitución y las leyes. La
aplicación del Convenio exige que el derecho positivo establezca los parámetros de
compatibilidad con el sistema jurídico formalizado: la validez de los procedimientos y
el reconocimiento de las sentencias que evite el doble juzgamiento. En otras palabras,
las normas del Estado deben permitir expresamente a las comunidades indígenas
o campesinas el ejercicio de este ius puniendi19. Esto es lo que ha ocurrido con los
países andinos, concretamente Colombia, Perú, Bolivia, Ecuador y Venezuela, que se
declaran Estados multiétnicos y en consecuencia han consagrado en sus respectivas
constituciones un sistema jurídico dualista en el que, junto al marco normativo estatal
formalizado, convive el reconocimiento pleno del derecho consuetudinario indígena.
Por ello puede apreciarse que coexisten dos sistemas jurídicopenales20, aunque el
problema sea, lógicamente, compatibilizarlos21. Para poder hacerlo se debe contar
con normas de desarrollo. Así, por ejemplo, en el caso colombiano se recurre a la
Ley Estatutaria de la Administración de Justicia, que coloca dentro de la estructura
judicial una Jurisdicción de las comunidades indígenas, estableciendo en su artículo
12: [...]“Las autoridades de los territorios indígenas previstos en la Ley ejercen sus
funciones jurisdiccionales únicamente dentro del ámbito de su territorio y conforme
a sus propias normas y procedimientos los cuales no podrán ser contrarios a la
Constitución y las leyes”. Sin embargo, hay que tener presente lo que ha puesto de
manifiesto la Corte Constitucional colombiana, entendiendo que la responsabilidad
de las autoridades indígenas que ejercen funciones jurisdiccionales es igual a la
de un funcionario o empleado judicial, por lo que además de estar sometidos a
la Constitución y a las leyes “adquieren por igual la responsabilidad de respetar,
garantizar y velar por la salvaguarda de los derechos de las personas que intervienen
en el proceso, sin importar el sexo, la raza, el origen la lengua y la religión”22. En
19 Cfr. Ramírez, Diversidad cultural y sistema penal: necesidad de un abordaje interdisciplinario, en Revista Pena y Estado nº 4-1999, p. 71.
20 Cfr. Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento constitucional del derecho indígena y la jurisdicción especial
en los países andinos (Colombia, Perú, Bolivia, Ecuador), en Revista Pena y Estado nº 4, 1999, p. 129.
21 Dispone la Constitución política de la República de Colombia de 1991 en su artículo 246 “Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de
conformidad con sus propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrarios a la Constitución
y leyes de la República. La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el
sistema judicial nacional”. En sentido similar o con ligeras variaciones, cfr. el art. 171.III de la Constitución del Estado boliviano de 1994, el art. 191 de la Constitución Política del Estado de Ecuador de 1998,
el artículo 149 de la Constitución del Perú de 1993 y el artículo 260 de la Constitución de la República
Bolivariana de Venezuela de 1999. Pese a las previsiones del art. 63 de la Constitución de Paraguay de
1992, no parece existir en la práctica un sistema dualista. Cfr. Vera Viveros, Revista Pena y Estado nº 4,
1999, p. 258 y sig.
22 Cfr. Sentencia C 037-96 de la Corte Constitucional de Colombia. Debemos destacar que la Corte Cons-
Juan Carlos Ferré Olivé •
33
cualquier caso son las propias comunidades las que deciden qué representantes
concretos ejercen tareas jurisdiccionales.
En síntesis, el sistema que avala la Resolución 169 de la OIT es el de la coexistencia
de dos mecanismos punitivos: el formalizado, aplicable en la mayor parte del territorio
del Estado y creado por el Parlamento, y el comunitario que requiere normas de
compatibilidad y permite en determinados territorios la aplicación de un Derecho
penal indígena consuetudinario. Desde esta perspectiva se toma como fuente la
costumbre, pero no cualquier costumbre, sino aquella conforme a la Constitución y
a las leyes. Esto tendrá muchas consecuencias a la hora de dotar de garantías al
sistema punitivo.
Afirmar que la costumbre es fuente del Derecho penal para los pueblos indígenas
de América Latina exige preguntarnos por qué dicha costumbre es unánimemente
rechazada como fuente en los sistemas punitivos del resto del mundo. En este
sentido, hay que tener en cuenta que en la actualidad ni siquiera el derecho
anglosajón se rige por la costumbre en materia penal23. El argumento para excluir
la costumbre y la analogía siempre ha venido dado por los abusos y arbitrariedades
que pueden producirse, en cualquier tiempo y lugar, cuando se impone una pena.
Tal vez las comunidades indígenas reivindiquen el reconocimiento pleno de un
ius puniendi consuetudinario, asentado en la tradición y la historia, con el objetivo
político de lograr un mayor autogobierno o incluso pensando en sus integrantes a
título individual, para poder resocializarlos dentro de la comunidad. Pero es evidente
que los miembros de estas comunidades individualmente considerados no pueden
convertirse en instrumentos para ejercitar reivindicaciones políticas o asentar la
cultura, es decir, tienen pleno derecho a gozar de un completo marco garantista.
¿Por qué se rechaza que una secta religiosa, un grupo neonazi, una organización
sindical o un club de pensionistas cuenten con un sistema penal consuetudinario
que resuelva sus problemas cotidianos? En realidad, las comunidades indígenas
no se parecen en lo más mínimo a todos los colectivos enunciados. No constituyen
un grupo socialmente diferenciado sino auténticas naciones, que poseen raíces
étnicas y culturales históricamente consolidadas24. La admisión del Derecho penal
consuetudinario sólo se justifica porque las comunidades indígenas carecen de un
cuerpo normativo formalizado que regule su sistema punitivo, y el sistema formalizado
titucional de Colombia se ha convertido a través de una riquísima jurisprudencia en el tribunal que más
ha contribuido hasta el presente en la conciliación de un sistema penal consuetudinario indígena con otro
formalizado, respetando los Derechos fundamentales.
23 En el sistema norteamericano e incluso actualmente en el británico la materia penal no se rige por el
common law, sino que prevalece casi unánimemente el derecho legislado o statutory law. Dichas normas
están sistematizadas y por lo tanto son objeto de la interpretación jurídica. En todo el mundo anglosajón
puede afirmarse la vigencia de los principios fundamentales en materia penal, como legalidad, irretroactividad, etc. Cfr. Hendler, Derecho penal y procesal penal de los Estados Unidos, Buenos Aires, 1996,
passim.
24 Cfr. Binder, Proceso penal y diversidad cultural: el caso de las comunidades indígenas, en Justicia
Penal y Sociedad nº 3-4, Guatemala, 1993, p. 24.
34
• Doutrina Internacional
por el Estado, estructurado en torno a la Ley penal, en muchos casos resuelve
inapropiadamente sus conflictos. En síntesis, el sistema penal basado en la costumbre
se acepta en beneficio de los propios miembros de las comunidades indígenas, para
no perjudicar una posición ya de por sí muy desfavorable. Sin embargo existe una
limitación territorial, pues no es aceptable la pretensión de imponer el Derecho penal
consuetudinario indígena fuera de su jurisdicción, como por ejemplo cuando a través
de migraciones internas un nutrido número de miembros de la comunidad se asienta
en el extrarradio de las grandes ciudades25. En este caso la reinserción social debe
tener como referencia la gran ciudad y no los territorios indígenas.
La existencia de una Administración de justicia indígena supone una auténtica
demostración del respeto a la diversidad cultural y el pluralismo político. Simplemente
surgen dudas acerca de la creación por los propios jueces indígenas de los delitos
y las penas, porque este singular avance en el plano de la diversificación no puede
realizarse a costa del sacrificio de las garantías individuales de los miembros de la
comunidad. Puede haber justicia indígena en materia penal siempre que no implique
la imposición de penas inhumanas o degradantes, o se violenten los principios
constitucionales fundamentales como el de legalidad y culpabilidad que se han ido
consolidando a nivel mundial desde la Revolución Francesa de 1789. La costumbre da
lugar a un conjunto de reglas procedimentales, delitos y penas que combinadamente
pueden aproximarse a un sistema coherente y lógico26. Pero para que este sistema
posea legitimidad debe ser respetuoso con los Derechos humanos27.
Tanto la Convención 169 de la OIT como las normas estatales e internacionales
exigen el respeto a los principios que emanan de la Constitución y las leyes, lo que se
concreta esencialmente en la vigencia de los Derechos fundamentales. Desde esta
perspectiva podemos afirmar que una vez admitido el Derecho consuetudinario como
fuente del sistema punitivo no puede exigirse un marco de garantías idéntico al que
debe imperar en el Derecho penal formalizado. Sin embargo, ello no puede suponer
la desaparición completa de los principios fundamentales en materia penal, al menos
los principios de legalidad, de culpabilidad (responsabilidad subjetiva y personalidad
de las penas) y humanidad de las penas. Por ello nos resultan algo chocantes las
opiniones que sostienen que en el Derecho penal indígena los principios de legalidad
y culpabilidad “o no existen, o adquieren otra dimensión”28 .
Respecto al principio de legalidad, el punto de partida es la inexistencia de una ley
escrita, por lo que en ocasiones podremos estar ante una norma incierta. Se trata de
un derecho oral, lo que se ve de manera positiva por algunos investigadores, ya que
Nos describe esta situación Villavicencio, destacando que en el Perú se han registrado estos mecanismos extrajudiciales de resolución de conflictos al margen del Poder judicial. Cfr. Mecanismos alternativos
de solución de conflictos, en Revista Pena y Estado, nº 4, 1999, p. 116. Está a favor de la aplicación de la
ley penal indígena fuera de sus territorios Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento, op. cit. p.135.
26 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos sancionadores originarios de Latinoamérica, en AAVV,
Pueblos indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006, p. 664.
27 Cfr. Binder, Proceso penal.. op. cit. p. 26.
28 En este sentido, cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 672.
25 Juan Carlos Ferré Olivé •
35
esta característica le otorgaría dinamicidad y una especial flexibilidad29. Esta puede
ser una razón muy apropiada a la hora de normativizar acerca de bienes o herencias,
o para servir como instrumento integrador de la comunidad. Sin embargo, en materia
penal la costumbre reduce considerablemente la vigencia del principio de legalidad
pues obstaculiza la observancia de una ley cierta.
Respecto al principio de culpabilidad, éste exige la constatación de responsabilidad
subjetiva y la personalidad de las penas. Respecto a la responsabilidad subjetiva este
principio resulta claramente afectado. Como nos relata Ardito, puede ser considerado
delito el simple hecho de haber pisado un lugar sagrado, con independencia del
conocimiento o intención. Y puede llegar a sancionarse por igual el homicidio doloso
o el imprudente: solo importa el resultado producido30.
En cuanto al principio de personalidad de las penas, éstas se extienden en ocasiones
a terceras personas, normalmente la familia directa o los parientes del autor de los
hechos. Por ejemplo, la comunidad de indios aguarunas en el Perú permite que
cualquier pariente del fallecido pueda dar muerte a otro pariente del homicida,
consiguiendo así recuperar el equilibrio en la sociedad31.
El principio de humanidad de las penas está consagrado en todas las Declaraciones
Internacionales de Derechos humanos, y cuestiona muchas de las sanciones que
aplican las comunidades indígenas basándose en la costumbre. El sistema indígena
de penas es tan heterogéneo como el número de comunidades que las aplican. Esto
supone que muchas sanciones guardarán gran similitud con las penas del sistema
formalizado (amonestación, multas, pérdidas patrimoniales en general, pérdida de un
cargo comunal, trabajos comunales, expulsión del territorio, etc.). Otras penas serían
impensables para las culturas europeas, como por ejemplo sancionar un homicidio
poniendo a cargo del autor la sustitución de las responsabilidades del fallecido, hasta
que sus hijos alcancen la mayoría de edad32. En favor del sistema penal comunitario
se puede apuntar que las sanciones se ejecutan en el seno de la propia comunidad,
favoreciendo que el sujeto no se desocialice, lo que sin duda ocurre cuando debe
cumplir su pena en una prisión estatal33. Sin embargo, muchas de estas penas
poseen un carácter cruel o vejatorio. Fundamentalmente se trata de la pena de
muerte o sanciones corporales, que no pueden ser admitidas bajo ningún punto de
vista. Por ejemplo, aceptar que es conforme a Derecho que una comunidad indígena
aplique la Ley de Lynch34, mate a una persona a pedradas después de haber sido
Cfr. Ramírez, Diversidad cultural... op. cit. p. 71.
Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. Cit. p. 21.
31 Cfr. Villavicencio, Mecanismos alternativos, op. cit. p. 114.
32 Cfr. Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento.. op. cit. p. 134.
33 Cfr. Ramírez, Diversidad cultural, p. 74.
34 En Guatemala existen varios ejemplos recientes de linchamientos, que gozan de bastante respaldo entre
las comunidades indígenas. Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. cit. p. 24. Considera sin embargo que
estos delitos poco tienen que ver con el Derecho penal indígena, sino con la ineficacia del sistema judicial
que genera impunidad Sieder, Derecho consuetudinario y poder local en Guatemala, en Revista Pena y
29 30 36
• Doutrina Internacional
sentenciada en proceso informal por 218 comuneros35 o, sin llegar a matar, se golpee
o azote públicamente al condenado nos retrotrae varios siglos de cara al respeto de
los Derechos fundamentales. Como manifiesta Ardito “Esta identificación de justicia
con castigo, y de castigo con violencia física ha penetrado el tejido social, al punto
que, para muchas personas, los delincuentes deben morir, independientemente de
la gravedad del crimen que cometen”36. Al margen de la muerte, tampoco pueden
tolerarse las penas corporales. El cepo nocturno no sólo priva de la libertad, sino
que también humilla y degrada al ser humano. El baño de agua fría seguido de
ortigamiento genera picores, eczemas y una irritación generalizada37. En el Perú se
relata la actuación de las rondas campesinas, una especie de patrullas indígenas que
para salvaguardar los intereses comunales toman la justicia por su cuenta. Aunque
parece que ya están más controladas, relata Villavicencio cómo son sus sanciones.
“Inicialmente, los castigos físicos comprendían los denominados “pencazos” (azotes)
hasta la muerte del sujeto. También se aplica el “baño” (sujeto obligado a sumergirse
en un río o pozo en la noche o madrugada), la ronda obligatoria (en rondas vecinales)
y el trabajo comunal (en caminos, posta médica, etc.)38. Las penas corporales no
sólo son pura retribución, sino también una forma de tortura, y por lo tanto resultan
inadmisibles en cualquier tipo de sociedad y en todos sus términos prohibidas por la
Comunidad Internacional39.
Debemos reiterar que el cuerpo humano es intangible. Y si condenamos enérgicamente
las prácticas milenarias en África, basadas en la costumbre, según las cuales se
produce la mutilación genital femenina por motivos rituales o religiosos, también
debemos cuestionar que las comunidades indígenas de América se extralimiten con
sanciones de extrema crueldad, aunque respondan a las costumbres de culturas
ancestrales. Estas sanciones no persiguen otra cosa que la pura retribución, por lo
que no pueden cumplir finalidades preventivas de ninguna naturaleza. No considero
que esta finalidad resocializadora pueda extraerse del ilustrativo ejemplo que brinda
Emiliano Borja: “La misma pena de latigazos, que desde la perspectiva occidental
nos parece bárbara y cruel, cuando se aplica, cada golpe viene acompañado de un
consejo, para que se entienda que la sanción no es sólo castigo sino que también
está orientada a mejorar a las personas que han delinquido”40.
Estado, nº 4, 1999. Tal vez la responsabilidad sea compartida y fruto del fracaso de los dos sistemas.
35 Es el llamado caso Huancay de 1974 en el Perú, relatado por Villavicencio, Mecanismos alternativos,
op. cit. p. 111.
36 Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. cit. p. 24.
37 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 679.
38 Cfr. Villavicencio, Mecanismos alternativos, op. cit. p. 113.
39 Sólo a título de ejemplo diremos que la legislación española prohíbe la extradición de los delincuentes
“Cuando el Estado requirente no diera la garantía de que la persona reclamada de extradición no será
ejecutada o que no será sometida a penas que atenten a su integridad corporal o a tratos inhumanos o
degradantes” (art. 6º Ley 4/1985 de 21 de marzo, de extradición pasiva). Esto supone que en cada proceso
de extradición de un presunto delincuente miembro de una comunidad indígena el Estado solicitante deberá garantizar que no será juzgado por estas comunidades, ante la posible aplicación de penas corporales
por parte de la justicia indígena.
40 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 680.
Juan Carlos Ferré Olivé •
37
Por otra parte, debe existir el derecho a optar por la aplicación de la ley penal
comunitaria o la del sistema penal formalizado. Un miembro de la comunidad
que habite en su territorio pero no participe de todos sus valores, aunque si de
otros constitucionalmente válidos (creencias, vestimenta, religión, sexualidad,
alimentación y todo el espacio de libertad imaginable) podría recibir una sanción
penal comunitaria que violaría sus derechos fundamentales. Pensemos en la natural
rebeldía de los jóvenes, que quieren cambios en su vida, sin asumir las costumbres
sociales o religiosas de los mayores. Entiendo que no puede defenderse a ultranza
la obligatoriedad de la jurisdicción indígena, argumentando que no hacerlo supone
“un debilitamiento de la estructura comunal y la distorsión del reconocimiento
constitucional”41, o en general que es requerida para reforzar la identidad indígena. La
obligatoriedad basada en estas premisas supone instrumentalizar al individuo a favor
de los intereses de la comunidad, lo que es incompatible con las bases de un Estado
social de Derecho. Considero que también tienen posibilidad de optar las personas
no indígenas que cometen delitos dentro del territorio de las comunidades42.
El establecimiento de frenos al poder punitivo del Estado, la lucha del ciudadano
contra la opresión que se viene librando desde los tiempos de Beccaria parecen
desaparecer cuando se trata de restringir el poder punitivo de la comunidad
indígena. ¿Es que la justicia indígena es tan infalible que no necesita poner límites
a la arbitrariedad, tan propia de buena parte de los seres humanos? ¿Por qué
son imprescindibles los límites para el legislador y el juez oficiales, pero parecen
desaparecer para las autoridades indígenas? Entiendo que ante la imposibilidad de
constatar la vigencia plena de los principios de legalidad, culpabilidad y humanidad de
las penas debe concluirse que el derecho penal consuetudinario indígena, reconocido
y necesario pero limitadamente garantista, debe circunscribir su aplicación a faltas
o delitos leves que no pongan en peligro de manera irremediable las garantías y
derechos fundamentales de los propios indígenas. Ello es así porque todas las
disposiciones jurídicas aplicables (Convenio 169 de la OIT, textos constitucionales
y leyes) exigen un límite material al sistema penal indígena: no debe contradecir el
catálogo de Derechos fundamentales y Derechos humanos que están consagrados
en los Convenios internacionales, la Constitución y las Leyes. Entendemos que los
principios de legalidad, culpabilidad y humanidad de las penas se fundamentan en
este marco garantista básico y su eventual vulneración condiciona las competencias
penales de las comunidades indígenas43. Un argumento añadido aporta el ya
Así, Ramírez,. Diversidad cultural... op. cit. p. 73.
Considera que el Derecho consuetudinario indígena debe aplicarse obligatoriamente a los no indígenas
que delincan en sus territorios, para reforzar el Derecho indígena Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento..
op. cit. p. 134, argumentando que en muchas ocasiones estos delitos quedan impunes. Este razonamiento
supone, como ya hemos manifestado, una instrumentalización del ser humano poco compatible con el
Estado de Derecho.
43 Por el contrario, considera Yrigoyen Fajardo que ninguna constitución establece límites como los aquí
enunciados y por lo tanto la competencia penal indígena debe referirse a todas las materias susceptibles
de juzgamiento, incluyendo delitos graves. Cfr. Reconocimiento.. op. cit. p. 133
41 42 38
• Doutrina Internacional
mentado principio de humanidad de las penas. Si son intolerables todas las sanciones
corporales, las comunidades deberán eliminarlas completamente y recurrir a otro
tipo de penas: pecuniarias, privativas de derechos, expulsión, trabajo comunitario,
etc. Ante el temor a una disminución de garantías debe asegurarse un permanente
control de constitucionalidad, el derecho a obtener un juicio justo y a una defensa
con asistencia letrada.
Todas las situaciones tratadas hasta aquí toman como punto de partida la vigencia del
Convenio 169 de la OIT y la pertinente normativa estatal que de validez al Derecho
penal indígena consuetudinario. Pero, ¿qué ocurre cuando no se ha realizado
una transferencia formal del ius puniendi a favor de las comunidades indígenas?
44
Entendemos, como venimos manifestando a lo largo de esta exposición, que la
coexistencia de dos sistemas sancionatorios es beneficioso para las comunidades
y sus miembros individualmente considerados. De esta forma muchos conflictos
encontrarán una solución más justa. Sin embargo, es necesaria una regulación
legal proveniente del Estado que regule los parámetros de compatibilidad. Si esta
regulación no existe, la costumbre no puede convertirse en fuente del sistema
penal. En consecuencia, si fácticamente se establecieran penas no autorizadas los
responsables deberían sufrir las sanciones penales que correspondan a la entidad
de derechos violentados (detenciones ilegales, torturas, delitos patrimoniales, etc.).
En este caso la única exoneración de responsabilidad podría venir dada por la
apreciación de un error de prohibición culturalmente condicionado.
No podemos olvidar que existe un sistema punitivo basado en el Derecho Penal
formalizado, que también tiene como misión proteger y ,en su caso, sancionar a
personas pertenecientes a las etnias y comunidades indígenas. Este Derecho penal
será de aplicación parcial en los Estados que se han decantado por el dualismo
(coexistencia de un sistema penal formalizado y otro consuetudinario indígena), ya
que regirá fuera de los territorios indígenas, respecto a los no indígenas que cometan
delitos en dichos territorios y a las infracciones de mayor gravedad, que no podrán
ser enjuiciadas por los sistemas penales consuetudinarios hasta que garanticen
el pleno respeto a los Derechos fundamentales. En los Estados monistas, que no
han suscrito el Convenio 169 de la OIT ni han regulado internamente un Derecho
penal consuetudinario indígena solo estará vigente el Derecho penal formalizado.
En todos estos supuestos debemos destacar en primer lugar que el Estado debe
tutelar, a través del Derecho penal, los bienes jurídicos que afecten particularmente
a los indígenas, e incluso incrementar o agravar la pena de algunos delitos (contra la
vida o la salud, por ejemplo) cuando se aprecien motivaciones étnicas o raciales en
su perpetración. En segundo lugar, determinados elementos del delito, como el error
(de tipo o de prohibición: en este último caso el error culturalmente condicionado45)
Adviértase que la mayor parte de los países americanos que han ratificado esta Convención no han
establecido una regulación nacional al respecto (Así, por ejemplo, Argentina, Costa Rica, República Dominicana, Guatemala, Honduras, México etc.).
45 En Perú la modificación del artículo 15 del Código Penal exonera de responsabilidad criminal a quien
“por su cultura o costumbres comete un hecho penal sin poder comprender el carácter delictivo de su acto
o determinarse de acuerdo con esa comprensión” La intención del legislador fue regular el error de prohi44 Juan Carlos Ferré Olivé •
39
y las causas de justificación (los bienes defendibles en la legítima defensa) tienen
que contemplar las particularidades de la cultura indígena46. Por otra parte, debemos
tener en cuenta que la Convención 169 de la OIT indica que los jueces penales al
basar sus resoluciones deben tomar en consideración las costumbres de los pueblos
indígenas, sus características económicas, sociales y culturales, y que deberá darse
preferencia a cualquier sanción distinta al encarcelamiento (arts. 9 y 10). Por último,
el Principio ne bis in idem exige que una vez impuesta la sanción por parte de su
comunidad no pueda volver a imponerse íntegramente una pena estatal47. El Estado
debe arbitrar los medios para que de alguna forma la sanción indígena se descuente
de la pena o incluso ésta se haga desaparecer por completo, ya que el ciudadano no
puede resultar perjudicado por una falta de entendimiento entre el propio Estado y
los representantes de la comunidad, quienes se encuentran en puja por la titularidad
del ius puniendi.
Reiterando las ventajas que supone el recurso al Derecho comunitario indígena,
no puedo culminar este trabajo sin hacer una última reflexión. Es a primera vista
un sistema positivo para la comunidad, pues permite afianzarla como creadora
de normas y como titular de la Administración de Justicia. También beneficia a los
propios miembros de la comunidad, que recibirán penas más apropiadas para su
rehabilitación. Sin embargo, no está de más recordar que algunas de las sanciones
previstas, como las que extienden la pena a la familia (venganza de sangre) suponen
sólo una solución atávica o ancestral que ya aplicaban otras culturas hace cientos
de años, costumbres que fueron abandonadas con el avance social y el respeto por
los Derechos humanos. Lo mismo ha ocurrido recientemente con la desaparición
de las penas corporales o la pena de muerte, al menos en buena parte del mundo.
Conservar la tradición no puede suponer perpetuar la marginación, el atraso y el
olvido. Y el Derecho penal de un Estado social de Derecho tiene que ser sensible a
todos estos factores.
bición culturalmente condicionado, es decir, la situación de un sujeto normal que se equivoca respecto a
la norma penal aplicable por su cultura indígena. Lo regulado es otra cosa: se considera al indígena como
un inimputable por motivos culturales, lo que es bastante inapropiado. No está actuando por error, sino en
base a pautas culturales diferentes. Cfr. al respecto Hurtado Pozo, El indígena..op. cit. p. 40. Villavicencio, Mecanismos Alternativos, op. cit. p. 125.
46 Villavicencio nos indica que “la situación de escasez de recursos naturales originada en la pobreza del
suelo en el que habitan guarda relación con los infanticidios selectivos en grupos amazónicos aislados”.
Cfr. Mecanismos alternativos.. op. cit. p.114.
47 Cfr. Zaffaroni, Alagia, Slokar, Derecho Penal, Parte General. Buenos Aires, 2000, p.127.
40
• Doutrina Internacional
Doutrina Internacional
PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA DE LA CRIMINALIDAD ORGANIZADA: UNA
VISIÓN LOCAL DE LA MAFIA RUSA 1
PROF. DR. MIGUEL ÁNGEL NÚÑEZ PAZ
Universidad de Huelva
1. Introducción
1.1. Criminalidad organizada
Trataremos en principio de acercar algunos términos desde el lenguaje criminológico
para más adelante posibilitar el comentario en torno a estos, especialmente en relación
la legislación española tratando de aportar –finalmente y desde una orientación
criminológica– unas directrices político criminales de lucha contra este tipo de
delincuencia.
De manera precia, debemos aclarar que los términos delincuencia organizada y
delincuencia internacional, junto al de delincuencia extranjera, suelen confundirse en
el lenguaje ordinario. Con carácter general, podemos afirmar que no toda delincuencia
organizada es internacional, ni que toda la internacional es organizada, siendo también
esto válido para el concepto de delincuencia extranjera.
Con el término delincuencia organizada se define aquella delincuencia que, con
independencia de la nacionalidad de sus integrantes, presenta cierto nivel de
organización, tanto en su estructura de composición como en su funcionamiento,
sujetándose a unas reglas más o menos rígidas y con un número de componentes
variable2.
Mi profundo agradecimiento a: D. José Manuel Rufas Simón y Dña. Rebeca Pérez Fuentes, antiguos
alumnos de la Universidad de Salamanca -Criminología (CISE)- y miembros de las Fuerzas y Cuerpos de
Seguridad del Estado, quienes promovieron -con un excelente trabajo- la labor investigadora y policial.
2 Según el apartado 4 del artículo 282 bis del la Ley procesal-penal española (Ley de Enjuiciamiento Criminal), introducido por la Ley Orgánica 5/1999, de 13 de enero, que incorpora la figura del agente encubierto
como medio de investigación, se considerará DELINCUENCIA ORGANIZADA la asociación de tres o más
personas para realizar, de forma permanente o reiterada, conductas que tengan como fin cometer alguno o
algunos de los delitos siguientes:
a) Delito de secuestro de personas previsto en los artículos 164 a 166 del Código Penal. Español (CP).
1 Miguel Ángel Núñez Paz •
41
A su vez, como características generales de la llamada delincuencia organizada se
deben destacar:
a) Realizar la actividad por medio de un grupo o asociación criminal, es decir, a través
de dos o más individuos “confabulados” para delinquir, por lo que no cabe hablar de
delincuencia organizada ante comportamientos llevados a cabo por una sola persona
física.
b) Carácter estructurado, esto es, esta clase de delincuencia ha de realizarse por un
grupo “ordenadamente” distribuido con respecto a sus “actores” y “funciones”.
c) Carácter permanente y auto renovable, lo que significa que el grupo debe tener
vocación de continuidad.
d) Carácter jerarquizado, pues las relaciones orgánicas de estos grupos criminales
no se mueven en un plano horizontal, sino vertical. Existen “jefes” o “patrones”,
“lugartenientes”, miembros de base( llamados de “tropa”), etc.
e) Validez de la disciplina y la coacción con los propios miembros, lo que significa que los
infractores de las reglas de la organización son severamente castigados y el quebranto
de la “ley del silencio” puede acarrear incluso la muerte.
f) Utilización de toda clase de medios (legales e ilegales) frente a terceros, sirviéndose
de la ley cuando puedan sacarle provecho, e infringiéndola frontalmente cuando se
opone a sus propósitos.
g) Por último, en cuanto a sus objetivos, por lo general son de tipo económico, aunque
en ocasiones cabe la búsqueda de fines de intencionalidad sociopolítica, como en el
caso del terrorismo (aunque casi siempre hacen converger los propósitos económicos
y sociopolíticos).
A su vez, se suelen distinguir dentro de la delincuencia organizada tres formaciones:
grupo organizado, banda organizada y organización criminal.
Con la denominación grupo organizado se hace referencia a la asociación de delincuentes,
en número no determinado, pero más bien pequeño, en los que la unión es esporádica
para la comisión de uno o varios hechos delictivos proyectados. Suelen surgir en barriadas
de las grandes ciudades o por conocimientos que se hacen en las propias cárceles3.
b) Delitos relativos a la prostitución previstos en los artículos 187 a 189 CP.
c) Delitos contra el patrimonio y contra el orden socioeconómico – arts. 237, 243, 244, 248 y 301 CP.
d) Delitos contra los derechos de los trabajadores previstos en los artículos 312 y 313 CP.
e) Delitos de tráfico de especies de flora y fauna amenazada previstos en los artículos 332 y 334 CP.
f) Delito de tráfico de material nuclear y radioactivo previsto en el artículo 345 CP.
g) Delitos contra la salud pública previstos en los artículos 368 a 373 CP.
h) Delito de falsificación de moneda previsto en el artículo 386 CP.
i) Delito de tráfico y depósito de armas, municiones o explosivos previsto en los artículos 566 a 568 del CP.
j) Delitos de terrorismo previstos en los artículos 571 a 578 del Código Penal.
k) Delitos contra el Patrimonio Histórico previstos en el artículo 2.1.e) de la Ley Orgánica 12/1995, de 12 de
diciembre, de represión del contrabando.
3 El grupo organizado presenta las siguientes características:
a) Escaso nivel de organización.
b) Sus integrantes, en general, son jóvenes.
42
• Doutrina Internacional
La banda organizada presenta unas características coincidentes en algunos aspectos
con el grupo organizado, si bien aparece con niveles más altos de organización, con
una estabilidad más marcada en cuanto al tiempo de permanencia de sus miembros en
la misma y más cohesión entre ellos4.
La banda organizada podría considerarse una organización criminal que integra a
varios grupos organizados, con dirección única jerarquizada, que controla sus acciones,
a través de los jefes o responsables de estos grupos.
Aunque la finalidad delictiva sea única, desarrollan diferentes especialidades delictivas
para conseguir sus fines. Así, una banda dedicada a la defraudación a través de medios
de pago, puede disponer de grupos que se encargan de las sustracciones de carteras
para proveerse de documentos de identidad y tarjetas de crédito, otros encargados
de la falsificación, otros de la negociación fraudulenta en Bancos y oficinas de crédito
(pasadores), etc. Estos grupos, a veces desconocen quienes componen la dirección de
aquélla, dato que sólo es conocido por el jefe del mismo.
Por último, la denominación organización criminal, en la que se verían incluidas las
organizaciones “mafiosas”, integra a varias bandas organizadas.
Dentro de estas organizaciones criminales podemos incluir las “mafias” italianas (la
“Camorra”, la “Ndrangheta” y la mafia “siciliana”), las “triadas” o mafias chinas, los
“Boryokudan” (japonesas) y, hoy en día, también la mafia Rusa.
Sus características son coincidentes con las de la banda organizada, con diferencias en
el superior nivel de organización, número de componentes y variedades delictivas5.
c) Se trata de una delincuencia muy peligrosa, por falta de preparación ante situaciones difíciles y peligrosas
para ellos mismos.
d) Empleo de violencia innecesaria, como consecuencia de lo anterior.
4 Sus características son las siguientes:
a) Un fin delictivo único, referido a una sola especialidad delictiva, aunque presentan gran capacidad para
cambiar a modalidades criminales más propicias.
b) El nivel de organización es más definido que en el grupo, requiriéndose un “historial profesional”, conocido
a nivel policial o no, para formar parte de ella.
c) Sometimiento a códigos de conducta estrictos, para evitar delaciones y traiciones (a veces dan lugar a ajustes
de cuentas).
d) La estructura suele ser rígida y jerarquizada, tanto a niveles de dirección como de mandos intermedios, y al
igual que en el grupo, aparece un jefe o responsable de la misma con plenos poderes.
e) Sus miembros son generalmente extranjeros, aunque pueden admitir en su seno a delincuentes españoles.
f) Sólo utilizan la violencia cuando sea estrictamente necesaria.
5 Podríamos resumirlas en las siguientes:
a) Dirección única jerarquizada, pero con mayor número de responsables intermedios y disciplina rígida.
b) El beneficio nunca va a repartirse entre los ejecutores; éstos reciben ayuda económica por su trabajo o pertenencia, ayuda que se extiende a sus familiares en el caso de detención, así como asistencia jurídica.
c) Infraestructura capaz de realizar inversiones en negocios legales (lavado de dinero), para lo que cuentan con
expertos financieros y hombres libres de toda sospecha delictiva que puedan realizarlas.
Miguel Ángel Núñez Paz •
43
Respecto al concepto de Delincuencia internacional, hemos de señalar que este tipo de
delincuencia integra delincuentes con capacidad y posibilidad de operar en diferentes
países. Por ello pueden ser considerados delincuentes internacionales tanto los
nacionales como los extranjeros, aunque son estos últimos los que –en la práctica–
tengan esta consideración.
Individualmente considerados, estos delincuentes presentan grados de profesionalización
superior a la media de la delincuencia española, profesionalización que comprende una
eficacia en sus acciones delictivas, un conocimiento de la legalidad vigente que les
permite saber hasta donde puede llegar la actuación policial y en ocasiones la utilización
de procedimientos refinados y novedosos que incorporan nuevos “modus operandi” a
los archivos policiales.
Así pues, en definitiva, puede considerarse criminalidad organizada a toda forma
de organización criminal con estructura de empresa, que busca fines lucrativos y de
poder, cuyos miembros son reclutados por captación, y que recurre a la corrupción,
influencia y violencia para lograr el silencio y obediencia de sus miembros y de
terceros, alcanzando sus objetivos económicos para garantizar el medio de acción.
Suele gozar de una historia propia y una fuerte implantación sociocultural local,
aunque sus actividades se extiendan internacionalmente. Los conceptos clave que
definen y distinguen esta forma de delincuencia son:
 Actividad de grupo
 Autorrenovación: en cuanto que la estructura orgánica se mantiene
y evoluciona a pesar de las bajas individuales.
 Jerarquía
 Coacción: existen ciertas obligaciones o pautas internas de
comportamiento que tienden a fortalecer la solidaridad interna.
 Estructura: asimilable a cualquier forma de organización
empresarial.
 Medios: utilizan sus particulares métodos, entre los que destaca
especialmente la discreción, para evadir la justicia penal.
 Objetivos: el poder económico y, de forma secundaria pero
importante, el poder sociopolítico.
1.2. Líneas de actuación frente la delincuencia organizada
Naciones Unidas, en su octavo Congreso para la prevención del delito y tratamiento
del delincuente, celebrado en La Habana en 1991, propone las siguientes medidas
para combatir el crimen organizado.
d) Disponen de personas perteneciente a las grandes esferas del poder, al que corrompen para someterlo
a las directrices de la organización.
44
• Doutrina Internacional
1.2.1. A nivel nacional
a) Deben establecerse una serie de estrategias preventivas:
1. Sensibilización de la conciencia pública y movilización del apoyo popular.6
2. Desarrollo de las investigaciones sobre la estructura de la delincuencia organizada
y la evaluación de la eficacia de las medidas adoptadas para combatirla.
3. Promoción de programas detallados a fin de poner obstáculos a los delincuentes
en potencia, reducir las oportunidades de delinquir y hacer más visible el delito, así
como crear y dotar organismos que tengan como fin la lucha contra la corrupción7.
4. Aumento de la eficacia de los mecanismos de represión y de la justicia penal,
haciendo hincapié en la coordinación entre las distintas agencias implicadas.8
5. Mejora de la capacitación de policías y personal de la Administración de justicia
en especial en nuevas tecnologías y nuevos hallazgos sobre el desarrollo de la
delincuencia organizada.
6. Reconocimiento y apoyo a los países productores de drogas por sus esfuerzos en
la erradicación de la producción y elaboración ilícitas.
b) En el ámbito de la legislación penal:
7. Continuar con la promoción de la tipificación legal de nuevos delitos con respecto
al blanqueo de dinero y al fraude sistemático, así como el delito de abrir y cerrar
cuentas con nombre falso y los delitos informáticos.
8. Desarrollar la figura del decomiso del producto del delito.
c) En la esfera de la investigación penal:
9. Concentración de la atención en los nuevos métodos de investigación de delitos,
especialmente en las técnicas para seguir el rastro del dinero.
10. La interceptación de telecomunicaciones y uso de métodos de vigilancia
electrónicos son importantes y eficaces.
11. Desarrollo de programas para la protección de testigos contra las violencia e
intimidación, destacando las medidas destinadas a ocultar la identidad de los testigos
a la persona acusada y su abogado, la protección de personal y del alojamiento, los
cambios de domicilio y la ayuda monetaria.
d) Entre las actividades de represión y administración de la justicia penal:
12. Establecer un organismo interinstitucional expresamente encargado de hacer
Estrategia ésta que, si bien es correcta, resulta utópica en tanto que, en determinadas áreas -más desfavorecidas económicamente- la población se beneficia de la riqueza generada por este tipo de actividades.
7 En este caso resultarían evidentes los desequilibrios entre las capacidades de organización de las distintas políticas criminales de los diferentes países a la hora de configurar estas medidas.
8 En este sentido, sería necesario que los países estableciesen sus medidas de forma equilibrada con las
de los países del entorno, de modo que la desigualdad de aplicación no origine “paraísos criminales” en
aquellos con legislaciones menos severas.
6 Miguel Ángel Núñez Paz •
45
frente a la delincuencia organizada y aumentar las eficacia de los organismos
existentes, incluyendo cursos de especialización.
1.2.2. A nivel internacional
13. Desarrollar acuerdos de cooperación e intercambios de información más
eficaces
14. Tomar medidas para impedir que el dinero del delito organizado llegue al mercado
financiero legal.
15. Mayor control e identificación de vehículos de tierra, mar y aire que puedan
usarse en la distribución del tráfico ilícito.
16. Mayor apoyo a las actividades de investigación comparada y de obtención de
datos sobre la delincuencia organizada a escala transnacional, sus causas y sus
relaciones con la inestabilidad política y con otras formas de delincuencia, así como
sobre la prevención y control de este tipo de delincuencia.
2. Antecedentes históricos
2.1. Vorovskoi zakon
El significado del término vory v zakone9 podría interpretarse como “los ladrones
que obedecen el vorovskoi zakon –código de los ladrones-”. Estos vory v zakone
administran su propia justicia, vorovskaia spravedlivost, a través de un jurado interno
o corte –skhodka- que resuelve los conflictos en cuanto a la aplicación del citado
código.
Con respecto a sus orígenes en la Unión Soviética, no se encuentran referencias
específicas sobre ellos anteriores a la Revolución Bolchevique, aunque ya en la Rusia
de Pedro el Grande (1695-1725) el colectivo de los ladrones era muy numeroso y
sólo en Moscú operaban alrededor de 30.000, si bien no estaban organizados como
bandas. En este aspecto, se operó un profundo cambio en la segunda mitad del siglo
XVIII: los ladrones comenzaron a usar apodos o alias y a comunicarse mediante una
jerga, la fenia o fehnay, gestando el nacimiento de una estructura de bandas más o
menos organizada. Estas bandas refinaron esa estructura a principios del siglo XX
estableciendo una diferenciación y especificación de los liderazgos y roles.
Tras la caída del Zarismo propiciada por la Revolución de 1917, los opositores al
nuevo régimen establecido intentaron utilizar a los criminales para conseguir sus
propósitos. Algunos políticos tomaron el control y la dirección de bandas juveniles
-zhigani- y les marcaron una serie de normas, normas que en su conjunto forman el
germen de lo que se conoce como vorovskoi zakon.
9 De entre sus componentes un 33% es ruso, un 31% georgiano, un 8% armenio, un 6% azerbaijano y el
22 % restante está formado por uzbecos, ucranianos, kazacos, abkacianos. La mayoría de sus componentes son jóvenes (85.6 % entre 30 y 40 años).
46
• Doutrina Internacional
Hallar un compromiso en esta convivencia forzada y de conveniencia entre políticos
y delincuentes no era tarea fácil puesto que podían diferenciarse dos actitudes
distantes entre los propios criminales: algunos zhigani aspiraban a conseguir un
reconocimiento o estatus social, mientras que los ladrones en sí, siempre involucrados
en pequeños delitos, no tenían intención de cambiar su naturaleza.
En los años treinta, un gran número de ladrones se desmarcó de los zhigani y creó
grupos autónomos llamados urki, bajo el liderazgo de otros jefes. A partir de estos
conflictos, los zhigani crean el vorovskoi zakon, como elemento de unión y
diferenciación, por el que un ladrón está obligado a:
1. Renegar de sus familiares - madre, padre, hermanos, hermanas,
2. No establecer su propia familia –ni mujer, ni hijos-, lo que, sin embargo, no le quita
la posibilidad de tener una amante.
3. Nunca, bajo ninguna circunstancia, trabajar -no importa lo difícil que pueda resultar
ello-; vivir sólo de lo aportado por el crimen.
4. Ayudar a otros ladrones –con apoyo tanto moral como material-, apoyándose en
la comuna de ladrones.
5. Mantener en secreto la información acerca de los paraderos de los cómplices
(p.ej., guaridas, barrios, escondrijos, pisos francos, etc.).
6. En situaciones inevitables (p.ej., si un compañero está siendo investigado), asumir
la culpabilidad del crimen de otro; eso dará a la otra persona tiempo para poder
escapar.
7. Pedir que se convoque una investigación con el propósito de resolver disputas en
el caso de un conflicto entre el implicado y otro ladrón o entre otros dos ladrones.
8. Si fuera necesario, participar en las anteriormente citadas investigaciones.
9. Ejecutar el castigo al ladrón trasgresor en el modo que se decida en la
asamblea.
10. Nunca resistirse a llevar a cabo la decisión de castigar al ladrón ofensor que sea
encontrado culpable, con el castigo determinado por la asamblea..
11. Dominar la jerga de los ladrones (Fenia/Fehnay).
12. No jugar/apostar sin ser capaz de cubrir las pérdidas.
13. Enseñar el negocio a los jóvenes principiantes.
14. Tener, si es posible, informantes relacionados con el entorno de los ladrones.
15. No perder la capacidad de raciocinio al tomar alcohol.
16. No tener nada que ver con las Autoridades, especialmente con el ITU (Autoridad
de Trabajo Correccional), no participar en actividades públicas y no pertenecer a
ninguna organización de la comunidad.
17. No tomar armas al servicio de las autoridades; no servir en el Ejército.
18. Respetar las promesas hechas a otros ladrones.10
La situación anteriormente descrita presenta similitudes con lo ocurrido en Italia,
donde la Mafia y la Camorra asimilaron los estatutos utilizados por los Francmasones
y los Carbonari –miembros de una sociedad secreta patriótica italiana.
10 Cfr. Dantsik Sergeyevich Baldaev, Vladimir Kuz’mich Belko, Igor Mikhailovich Isupov, “Dictionary:
Prison, Camp, Blotnoi, Jargon (Speech and Graphic Portraits of Soviet Prisons)”.
Miguel Ángel Núñez Paz •
47
Dado que el vorovskoi zakon no permitía alistarse en las filas del ejército, la Segunda
Guerra Mundial provocó otro gran conflicto entre los vory v zakone: al ser llamados
a las armas, una parte se alistó en el ejército, mientras que otros mantuvieron su
promesa de no colaborar con el Estado, por lo que fueron encarcelados. Cuando
finalizó la guerra aquellos vori que habían abrazado la causa de Stalin intentaron
retornar a su antiguo entorno, pero fueron rechazados por traidores. El choque fue
inevitable y llegó a ser conocido como such’ya voina, guerra a los traidores llamados
suki, quienes decidieron adoptar un código autónomo y menos estricto que el
vorovskoi zakon, que permitía colaborar con las autoridades –el mismo Stalin se
valió de los suki para combatir a los enemigos del régimen en los gulags.
Hoy en día el vory v zakone constituye un tipo de “aristocracia criminal” con un sistema
de reclutamiento similar al usado en los años treinta, que se nutre de las cárceles,
y un modo de comportamiento que continúa adheridos a rígidas reglas. No existen
“Padrinos” al estilo de la Cosa Nostra, puesto que ningún líder de los clanes aceptaría
jamás ningún tipo de subordinación jerárquica; las únicas ocasiones en que las
grandes bandas unen sus fuerzas es en el caso de operaciones internacionales11.
Para los vory v zakone, el honor constituye un concepto fundamental y una valiosa
pertenencia, definida por Anton P. Chéjov al decir que “el honor no puede ser
quitado, sólo puede ser perdido”; esto es bien conocido por los ladrones, aunque
nunca hayan leído al gran autor ruso. El honor es una cualidad sometida al escrutinio
público y su valor se legitima por el grupo al que se pertenece, debido a lo cual, sólo
existe cuando es reconocido.
En Rusia, al igual que en otros países del mundo, ciertos matices del honor se
relacionan con la capacidad sexual: el marido traicionado es el símbolo del deshonor
por excelencia. Tanto es así, que la viuda de un miembro no puede volver a casarse,
puesto que supondría una deshonra para el fallecido. La masculinidad, como
expresión del honor, también se identifica con la capacidad de imponerse sobre los
demás, recurriendo a los métodos que sean necesarios, incluida la violencia. Así,
el recurrir a las autoridades de la justicia para resolver un conflicto estaría fuera de
lugar.
Existe una estrecha conexión entre honor, violencia y distribución de roles y recursos
en el vorovskoi zakon; aquel que insulta a un vor debe ser castigado y el asesinato
de un vor debe ser vengado.
Sólo aquellos que poseen esta cualidad, el honor, pueden ser vory v zakone, al igual
que ocurre con los miembros de la Mafia italiana.12
En 1992, Praga acogió varias cumbres mafiosas en las que se reunieron representantes de varias organizaciones criminales rusas con representantes de la mafia italiana y cárteles colombianos.
12 Este es el caso de Sasha, un jefe ruso perteneciente a esta elite criminal, que ingresó en prisión a los
16 años por un delito de robo y aumentó su condena por asesinar a otro joven de inferior categoría que le
había faltado al respeto.
11 48
• Doutrina Internacional
Últimamente, y en especial, tras la disgregación de la Unión Soviética, “honor” ha
pasado a ser sinónimo de abundancia, en tanto que la acumulación de capital,
independientemente del modo en que haya sido obtenido, sirve para conseguir
honor, poder y, consecuentemente, una posición de supremacía.
El honor camina íntimamente unido al silencio y en su código ese silencio es
grandeza y todo lo demás debilidad; aquel que rompe esta regla paga con la muerte.
Los “bajos fondos” de la Rusia prerrevolucionaria exigían a sus nuevos miembros
ser hombres de firmes costumbres e inquebrantable carácter, leales al grupo y a sus
compañeros, capaces de actuar mirando por sí mismos y sin perjudicar al resto; la
referencia a la obediencia ciega y al riguroso silencio es clara.
La jerarquía criminal en la extinta Unión Soviética se estructuraba en diversos
rangos:
-Los vory o pakhany: que tienen la obligación de difundir la ética y moral de los “bajos
fondos” y de establecer y mantener estrechas conexiones con los líderes de otras
asociaciones criminales.
-Los avtoritety: que, siendo similares a los vory, tienen menos influencia.
-Los deltcy: elementos marginales dedicados a crímenes fraudulentos y con buenos
contactos en los círculos financieros.
- Los kataly: que en cosaco significa literalmente “convicto” y que son los encargados
de las casas de juego.
-Los shesterki: literalmente “los números seis”, expresión que se refiere a su actitud
sumisa –reverencial, encorvada- hacia los jefes; realizan tareas de poca importancia
en nombre de los avtoritety.
Otros términos para determinar lo rangos inferiores son:
-Los muziki: hombres.
-Los pahany: chicos.
-Los obizenneye: literalmente, los ofendidos.
-Los opuscennye: literalmente, los desclasificados.
Especial atención merecen los smotryaschiy, que son supervisores que mantienen
el poder del vor en las distintas ciudades y controlan un “fondo de seguros” –el
obshchak u obochek-, que constituye una especie de fondo mutuo utilizado para
apoyo a las familias de miembros convictos, para preparación de nuevos crímenes,
corrupción de funcionarios y garantizar los préstamos de la usura.
Pero incluso entre los distintos vori existen diferencias substanciales y así, los
georgianos son totalmente diferentes de los rusos; para los primeros, la sangre
familiar es un vínculo esencial, algo que no ocurre con los segundos, cuyo nexo
común lo constituye únicamente el trabajo.13
Esta peculiaridad es característica asimismo de la ‘Ndragheta, organización mafiosa de Calabria, cuyas
familias han tendido a casar a los hijos con miembros de la misma familia mafiosa, en gran parte debido
13 Miguel Ángel Núñez Paz •
49
Después de la desintegración de la Unión Soviética, se han producido numerosos
cambios, por ejemplo, la estancia en prisión, que anteriormente, lejos de considerarse
una carga, se consideraba normal e incluso un honor desde el punto de vista de los
mas jóvenes, ha pasado a ser valorada como una “pérdida de tiempo”; la prohibición
de poseer una vivienda en propiedad de antaño ha evolucionado a la compra de
viviendas de lujo en el extranjero,... Hoy en día, muchos vory han fijado su residencia
en el extranjero (Estados Unidos, Francia, Alemania, Israel, Chipre,...), viviendo
inmersos entre grandes lujos.14
Hace unos años, tuvo lugar una cumbre de la mafia rusa en Viena, a fin de definir
las esferas de influencia en la Rusia post-perestroika; a ella asistieron Timofeev
desde Rusia, Mihas desde Austria, Yaponchick desde Estados Unidos y Petrik desde
Alemania, entre otros.
Este proceso de transición ha llevado a la muerte a importantes jefes mafiosos que
han vulnerado el vorovski zakon, al coparticipar en iniciativas estatales e intentar
establecer negocios en el extranjero, así como por la dura competencia establecida
en otros países.
Más de 30 vory v zakone importantes han sido asesinados en este proceso: Otari
Vitalievich Kvantrishvili (uno de los más importantes jefes de la mafia en Rusia),
Seghej Timofeev alias Silvestr, Vjaceslav Vinter alias Bobon, Serghej Sokolov, Sultan
Daudov (el único vor reconocido por la mafia chechena) y Mikhailovic Berazde alias
Scarface, un georgiano muy influyente en Moscú.
Otros elementos característicos de los vory v zakone son la jerga, los tatuajes y los
apodos.
La jerga criminal o fenia15 consta de cerca de diez mil palabras y expresiones, que
al carácter rural y la geografía accidentada de esta región del sur de Italia
14 Algunos miembros del poderoso clan Solntsevo se han establecido en Viena, donde compraron varios
restaurantes, hoteles, tiendas y ciertas lujosas casas en el centro de la ciudad.
15 LA “FENIA”:
Anasha
Hachís
Aka
Alias
Apparat
La Administración del Estado, (usado en la era soviética)
Apparatchick
Miembro de la Administración
Avtoritet
Líder de uno de los nuevos grupos con orientación comercial de la Mafiya
Baklany
Rufianes
Bandity
Palabra de uso común entre los policías para referirse a los matones
Bespredel
Desorden; literalmente “más allá de los límites”
Blat
Contactos en el lugar adecuado (viejo término soviético)
Blatnoi/blatnye
Término comodín usado por los matones para referirse a ellos mismos y a su modo de vida
Brat na pont
Engañar, timar
Bratski krug
“Círculo de los hermanos”, principal estructura interna de la mafiya, llamada también bratskaya semyorka (Hermandad de los Siete)
50
• Doutrina Internacional
incluyen una parte común a los diversos grupos y una parte que se utiliza en sectores
Brodyagi
Casta criminal situada inmediatamente por debajo de los vor, son líderes “en prácticas”; literalmente “vagabundos”
Byki
Guardaespaldas; literalmente “toros”
Chainik
Matón de cárcel; literalmente “tetera barata”, como las usadas en prisión
Choirs
Nombre dado a las bandas de San Petersburgo en el siglo XIX
Chorniye smoridiny Mote usado para denominar a los caucasianos (o chorniye, “negros”)
Dan
Tributos, tasas, impuestos,... cobrados por los extorsionadores
Fartsovchik
Denominación aparecida en los 80 para los tratantes del Mercado Negro, usualmente jóvenes, que operan en puestos montados en las esquinas de las calles
Gastralyor
Criminal “invitado”, proveniente de otras ciudades
Grokhnut
Disparar, matar,...; literalmente “hacer bang”
Kaif
Palabra centroasiática referida al “subidón” (por drogas)
Kalol
“Pico”, inyección de drogas
Kit’
“Pez gordo”, objetivo de un crimen,...; literalmente “ballena”
Klichka
Apodo, título
Krysha
Protección por parte de la Mafia; literalmente, “tejado”.
Lavit kaif
“Colocarse” (con drogas), el verbo kaifu’ se refiere a sentir placer al estar “colocado”
Lavrushniki
Otro mote para los caucasianos
Limoni/tri limona Un millón de rublos/tres millones de rublos
Loshadka
Metadona; literalmente “pequeño caballo”
Lunakhod
Coche-patrulla; literalmente “caminante lunar”
Mafiya
Término genérico usado en la antigua URSS desde los ‘70 para denominar a dirigentes de partidos acusados de corrupción, especuladores del Mercado negro o todos aquellos sectores de
la sociedad que no gustasen a quien lo usaba. Desde 1992, adquiere un significado adicional para describir
a aquellos grupos de empresarios criminales y funcionarios corruptos que tomaron relevante cariz en la
era post-soviética
Maslinichnii mak heroína; literalmente “aceite de amapola”
Ment
Policía
Moschenniki
Estafadores
Mussor
Policía; literalmente “basura”
Na narakh Entre rejas, en prisión
Na svobodye
Salido de prisión, en libertad
Nayekhat Asaltar, aplicar la presión de la banda, extorsionar; literalmente “encontrarse con, atropellar”
Nomenklatura
Son los miembros de la elite del sistema del Gobierno soviético, llamados así porque sus nombres aparecían en la Nomenklature o lista de los más leales funcionarios del partido, elegibles
para puestos superiores en el país o en el extranjero.
Obshchak
Ministerio del Interior
Opuschiny
Personas que han sido violadas en la cárcel; literalmente “ceños fruncidos”.
Panama
Empresa fantasma
Patsani
Chicos jóvenes/ guerreros que componen las bandas criminales
Pika
Cuchillo, palabra usada en toda la Unión Soviética
Poblatu
Uso de los contactos para obtener un favor o una posición
Po ponyatiyam
Modo de ofrecer servicios de seguridad, pacto entre caballeros.
Podkhod
Coronación de un vor; literalmente “propuesta”
Posadit’ na piku
Matar o herir con un cuchillo; literalmente “empalar en una estaca”
Prishit’
Asesinar; literalmente “coser”
Prishli mne kapustu Es lo que se dice a alguien que te debe dinero; literalmente “envíame la verdura”
Razboiniki
Guerreros de una banda
Razborka
Ajuste de cuentas, juicio
Sborschiki
Recaudadores que recogen las tasas de los comerciantes en los mercados
Miguel Ángel Núñez Paz •
51
específicos como son carteristas, extorsionador, estafadores, malversadores,
tratantes de antigüedades, traficantes de droga ... La jerga no sólo se usa como
instrumento de reconocimiento o tratamiento o en conversaciones privadas, sino
también para seleccionar el círculo de interlocutores.
Los tatuajes funcionan para los criminales como un documento acreditativo que les
permite identificar con quién se está tratando y cuál es su campo de actuación. De esta
manera, presentar tatuajes incorrectos, desautorizados o que no se corresponden
con el rango reconocido a esa persona está absolutamente prohibido, llegando a
castigarse con la muerte.
Uno de los grandes estudiosos del papel de los tatuajes entre los delincuentes rusos
es el criminólogo ruso Arkady G. Bronnikov, quien ha estudiado este fenómeno
durante treinta años en las cárceles de su país. Este autor ha constatado que, de
los treinta y cinco millones de personas que aproximadamente fueron encarceladas
desde mediados de los años sesenta, se tatuaron más de veintiocho millones –un
85%-. Bronnikov afirma que los tatuajes representan los galones de cada rango
criminal, desde las altas esferas hasta los más bajos niveles, constituyendo una
especie de pasaporte, de biografía, de “uniforme engalanado con las medallas
ganadas en el campo de batalla”, es decir, del pasado criminal del individuo.
Existe una constante presente: el tatuaje aparece siempre después de una frase y
se dibuja después de haber cometido el crimen.
Una vez descubierta su función, la policía los ha usado para identificar a los
delincuentes. Hoy en día, los tatuajes están cayendo en desuso, precisamente por
ese motivo y por discreción.
Sdelat kozyol
Shalit
Skhodka
Shpana
Sidet’
Stakan
Strelka
Suki
Tat
Telet chefir
Torpedo
Tsekhovik
Tusovka
Ubrat
Uryt
Vorovskoe blago
Vorovskoi mir
Vzyat
Zamochit
Zapodlo
Zhoglo
52
Convertirse en una cabra o clase más baja en prisión, esclavo homosexual
Hacer daño
Asamblea criminal, junta de vori
Grupo de matones
Estar en prisión; literalmente “estar sentado”
Medida de drogas; literalmente “vaso”
Reunión o cita, literalmente “pequeña flecha”
Chaqueteros, esquiroles, traidores; literalmente “putas”
Ladrón
Expresión usada en prisión para hacer té fuerte o no tener nada que hacer
Asesino a sueldo
Propietario de empresas del mercado negro de los bajos fondos
“Rebanada”, como la porción de la sociedad ocupada por los adolescentes y jóvenes mafiosos
Matar, devastar; literalmente “eliminar”
Asesinar; literalmente “enterrar”
Bienestar criminal, que todo vor debe defender
Mundo de los ladrones
Hostigar, robar; literalmente “coger”. En la jerga también significa sobornar
Matar de una paliza; literalmente “mearse en”
Negocios turbios, comercio de los bajos fondos
Cárcel
• Doutrina Internacional
3. Génesis
3.1. La caída de la Unión Soviética
Las primeras estructuras mafiosas rusas, como tales, surgen en los años ‘80 con
la “Perestroika” de Gorbachev, aprovechando el vacío legal de la transición del
Comunismo al Capitalismo. Así, las actividades delictivas de todo tipo, incluidas las
relativas al crimen organizado, son un fenómeno arraigado en dicho proceso de
privatización de la propiedad estatal.
Las fuerzas de mercado compiten con el Estado para hacerse con el control de las
actividades privadas. Junto con el establecimiento de la liberalización económica,
se desarrolla un creciente sector privado sumergido, así como el aumento de
participación de las elites burocráticas en dichas actividades ilegales.
Las reformas del gobierno Gorbachev conducentes a legalizar el derecho internacional
privado tan sólo aumentaron la brecha entre las leyes y la economía real. A pesar
de la intensa labor legislativa desarrollada por los reformadores, la gran velocidad
de desarrollo de la economía de mercado produjo un inmenso vacío legal. De esta
manera, el antiguo principio de actuación soviético de “Algo no permitido, se prohíbe”
fue sustituido por el de “Algo no prohibido, se permite”.
Un vacío legal puede producirse por ausencia de normas legales, o por su falta
de calidad, o por conflictos entre ellas o por su no entrada en vigor debido a un
pobremente organizado mecanismo estatal: todas estas características estaban
presentes en la Rusia post-soviética.
Dicho vacío legal era sumamente útil para el desarrollo de innumerables
combinaciones, mediante las cuales convertir los bienes públicos en riqueza privada,
que, en muchos de los casos, se transferían al extranjero.
En esa emergente inseguridad que producía el vacío legal y que beneficiaba las
actividades ilegales de ciertas estructuras delictivas, los hombres de negocios
reales llegaron a la conclusión de que necesitaban la protección (krysha) de dichas
estructuras para prosperar y competir con el resto: el pago a las mafias constituía
un mal menor .
Un informe del Ministerio de Asuntos Interiores ruso de 1993 indicaba que más de
5.000 grupos relacionados con el crimen organizado estaban actuando en Rusia,
comprendiendo cerca de 100.000 miembros dirigidos por unos 18.000; de esos 5.000,
las autoridades rusas estiman que sólo unos 300 tienen una estructura organizada
identificable.
En 1994, se realizó una encuesta en Rusia tomando como base la cuestión ¿quién
controla Rusia?, a la que un 23% respondió la mafia, un 22% dijo nadie, un 19% no
lo sabe y sólo el 14% respondió el Presidente Yeltsin.
Miguel Ángel Núñez Paz •
53
Posteriormente, en un informe sobre crimen organizado presentado al Presidente
Boris Yeltsin por el Centro Ruso de Análisis para las Políticas Sociales y Económicas,
se estimaba que un 80% de los bancos y empresas internacionales de las grandes
ciudades rusas se veían obligados a pagar entre un 10 y un 20% de sus ingresos al
crimen organizado.
En último termino, un informe realizado en 1995 por el Consejo de la Federación Rusa
reflejó ciertos parámetros indicadores de la situación por entonces preponderante en
Rusia:
- Respecto a las principales amenazas a la seguridad económica marcó, por orden
de importancia, la tasa de corrupción gubernamental, el declive del rendimiento
industrial y el crecimiento del crimen organizado.
- El coste del fraude debido a la corrupción de funcionarios entre 1993 y 1994 se
estimó en más de 100.000 millones de dólares.
- El crimen organizado controlaba aproximadamente el 40 % del P.I.B.
- Ese tipo de criminalidad implicaba a unas 41.000 entidades económicas, incluyendo
1.500 empresas estatales, 4.000 sociedades, 500 empresas conjuntas y 550
bancos.
- Unas 700 instituciones financieras y comerciales legales han sido creadas por
organizaciones delictivas con el propósito de blanquear dinero.
Es un hecho comprobado que el crimen organizado ruso se está infiltrando, a través
del uso de la extorsión, prácticamente en todos los ámbitos comerciales, utilizando
métodos que varían desde los secuestros, asesinatos y ataques a las familias hasta
la presión continuada sobre los funcionarios del Gobierno (en el período 1993-1994
la presión se centró fundamentalmente sobre banqueros dado que en ese momento
la mafia estaba intentando controlar el sistema financiero del país).
3.2. ¿Está el Gobierno ruso al servicio de la mafia?
En el aparato gubernamental ruso se ha establecido tal trama de corrupción que,
en mayor o menor grado, todo funcionario se ha visto implicado en este tipo de
prácticas. La realidad política de la Rusia actual excluye prácticamente cualquier
posibilidad de “no adulteración” de los funcionarios gubernamentales: un soborno
y/o relación con un grupo de delincuentes organizado poderoso son previo requisito
para ocupar todo cargo local o nacional.
El corrupto Gobierno ruso tiende a excluir a cualquier funcionario que no esté
dispuesto a formar parte de ese entramado, dado que:
- un funcionario limpio es visto como un peligro potencial por los colegas y superiores
inmersos en la corrupción, puesto que es muy poco probable que testifique sobre
determinadas actuaciones un cómplice de las mismas.
- reemplazando al funcionario limpio por uno corrupto, la autoridad que lo decide una
54
• Doutrina Internacional
importante cantidad de dinero e, incluso, pagos continuados por parte de la persona
elegida, quien considera estos pagos como el coste comercial de la posibilidad de
extraer una ganancia ilegal.
- el sistema mantiene la impunidad de los cargos de corrupción, escogiendo
periódicamente algunos funcionarios como víctimas propiciatorias que alivian la
tensión social y acallan las voces públicas.
Así, los esfuerzos por mantenerse como un solitario funcionario no corrupto en un
gobierno que lo es en su mayoría no son frecuentes y mucho menos fructíferos, en
tanto que:
- supondrían su propia condena
- le llevarían a sobrevivir con su sueldo oficial, un sueldo que ronda entre los 100 y
los 250 dólares al mes.
- en un país en el que setenta años de control comunista han destruido virtualmente
todo freno moral y religioso es difícil que alguien se plantee una lucha particular
contra el deterioro del sistema.
- la mayoría de los burócratas rusos habían tomado parte como funcionarios en el
anterior gobierno comunista, en el que la corrupción era ya frecuente.
De esta manera, cuando la Mafia está interesada en que se tome una decisión
específica, el funcionario se ve obligado a aceptar el soborno o a arriesgarse en un
país donde ninguna agencia puede ofrecerle protección contra la poderosa Mafia.
Con todo ello, la corrupción no constituye una práctica precisamente forzada en una
nación cuya renta media anual ronda los 2.500 dólares y donde aquella es una de
las oportunidades más lucrativas de ganarse la vida.
Además, la dirección política del país está profundamente interesada en la existencia
de la corrupción, dado que la cúpula se embolsa ingentes cantidades de dinero.
3.3. Actividades delictivas de la mafia rusa
 Fraude en los carburantes (aumento de volumen con aditivos, trucaje de
surtidores, engaños en el octanaje, uso de compañías tapadera, impago
de impuestos,...)
 Delitos con tarjetas de crédito y cheques (robo y uso posterior, falsificación,
manipulación de cajeros, falsificación de firmas,...)
 Fraudes en la inmigración (matrimonios con extranjeros para obtener
nacionalidad, lavado de dinero, obtención de visados, permisos de trabajo,
entrada de inmigrantes con empresas ficticias,...)
 Fraude en seguros médicos (facturas falsas, accidentes provocados y
supuestos para cobrar a empresas de seguros,...)
 Robo de coches de lujo
 Extorsión (a comerciantes, emigrantes, empresarios,...)
 Prostitución y trata de blancas
 Narcotráfico
Miguel Ángel Núñez Paz •
55










Blanqueo de dinero
Fraudes en la exportación/importación
Especulación monetaria
Malversación de la propiedad estatal
Asesinato a sueldo
Manipulación del sistema bancario
Espionaje industrial
Sobornos
Contrabando de metales preciosos, materias primas, armamento,...
Fraude en telecomunicaciones (llamadas en teléfonos móviles
duplicados,...)
4. La Mafia Rusa en España
El Juez Baltasar Garzón recogió en un informe realizado en 1999 que la presencia
de rusos para blanquear dinero en todo el arco mediterráneo crecía año a año, por lo
que era urgente adoptar medidas de seguridad en este sentido. Lo cierto es que no
existen trabajos sistematizados sobre esta organización fuera de ámbitos oficiales,
pero las informaciones sobre detenciones en suelo español de ciudadanos rusos
implicados en actividades delictivas en su país hacen plantear cuestiones tales
como cuáles son exactamente los negocios ilícitos de los grupos mafiosos rusos en
España y en qué zonas se han asentado principalmente.
Así, diversas noticias de prensa hacen referencia constante a las actuaciones
policiales que comienzan a llevarse a cabo fundamentalmente a partir del año 1996
y que ponen de manifiesto que el rastro de la mafia rusa puede seguirse en el litoral
mediterráneo, desde Levante –concretamente en Alicante- hasta Andalucía –donde
destaca la zona de Málaga-, así como en las Islas Canarias.
4.1. Málaga y Alicante
Las investigaciones desarrolladas por los grupos contra el crimen organizado de la
Comisaría de Policía de Málaga han puesto de relieve que jefes de la mafia rusa
están dirigiendo sus negocios desde España. Desde aquí supervisan sus cuentas en
los casinos de Moscú o trafican con armas con países como Libia y Perú y, a pesar
de que no han cometido delitos a gran escala en nuestro país, se ha comprobado que
en esta zona, junto con la de Alicante, están realizando inversiones multimillonarias
en los sectores hosteleros e inmobiliarios, en grandes operaciones de blanqueo de
dinero.16
Actualmente, está demostrado que los capos rusos están adquiriendo en la zona de
Málaga, y concretamente en las zonas colindantes de Marbella, hoteles, restaurantes,
viviendas de lujo y terrenos.
Uno de los ejemplos que sirve para ilustrar esta afirmación es la adquisición de urbanización de lujo en
las proximidades de Málaga, construida por financieros árabes que escrituraron cada chalet a nombre de
una sociedad distinta, aunque todas con sede en Luxemburgo. Posteriormente, un grupo ruso compró toda
la propiedad pagando 6.000 millones de pesetas.
16 56
• Doutrina Internacional
Por otro lado, las Fuerzas de Seguridad del Estado también han detectado en estos
últimos años un incremento del número de mujeres dedicadas a la prostitución
procedentes de los países de la antigua Unión Soviética y han descubierto que
existen organizaciones que surten los prostíbulos de España de “empleadas” para
sus locales. Durante el año de 1999, la Guardia Civil y el Cuerpo Nacional de Policía
detuvieron a más de un centenar de ciudadanas rusas en operaciones realizadas en
clubes de alterne.17
Una de las formas principales por las que se introduce a estas mujeres en España
se basa en el procedimiento legal: las chicas presentan un visado turístico por un
mes, que se consigue en el Consulado español de Moscú. Cada pasaje de ida y
vuelta, junto con el visado, cuesta unas 46.000 pts. La parte ilegal es que las chicas
no se dirigen al destino turístico, sino que entran en contacto con los encargados
de clubes de alterne, desde los que rotarán a diferentes zonas. En este sentido, la
prensa habla de que este tipo de locales puede llegar a pagar hasta un millón de pts
por mujer.
En Alicante, la presencia de colonias rusas, especialmente al Norte y Sur de la
provincia, ha estado siempre bajo sospecha. El blanqueo de grandes capitales y la
prostitución son, a juicio de las autoridades españolas, sus principales actividades
en esta zona. Concretamente, Torrevieja y La Zenia vivieron una efervescencia
constructora a partir de las inversiones, en metálico, de grupo rusos. La forma de
vida de estos grupos se caracteriza por ser muy poco propensa a la integración.
Generalmente, no mantienen contacto con los vecinos, no aprenden el idioma y
habitan en casas de lujo provistas de impresionantes medidas de seguridad.
Uno de los casos que más escándalo ha suscitado, y que merece la pena destacar
por su relevancia, ha sido el de Vladimir Putin. En marzo del año 2000, la revista
Novaya Gazeta denunciaba que desde el Ayuntamiento de San Petersburgo Vladimir
Putin autorizó, entre 1993 y 1996, una serie de créditos para construir un centro de
negocios y restaurar un monasterio, que finalmente fueron utilizados, a través de una
compañía denominada “Trust-20”, para adquirir 32 apartamentos en la urbanización
La Paloma, en Torrevieja.
4.2. Islas Canarias
La historia de la mafia rusa en esta zona se remonta a principios de la década de
los setenta. El territorio canario fue el primer territorio español donde se asentaron
los representantes de lo que todavía era la Unión Soviética, algo sorprendente, si
se tienen en cuenta las muy diferentes ideologías de ambos países y el hecho de
que no mantenían ningún tipo de relaciones diplomáticas. El motivo fue un proyecto
económico por el que se fundó una empresa mixta llamada Sovhispán, empresa que
convirtió a las Islas Canarias en una de las principales bases de la flota pesquera
17 “La mafia del blanqueo y la prostitución”, publicado en El Mundo, viernes, 24 de marzo de 2000.
Miguel Ángel Núñez Paz •
57
rusa en el Atlántico. Con ello España obtenía grandes beneficios de los pagos por
servicios portuarios y decenas de puestos de trabajo para los isleños.
Sin embargo, para los soviéticos, Sovhispán fue la cobertura oficial en España bajo
la que subyacía todo un entramado a disposición del servicio de inteligencia militar.
Todo el personal ruso de esta empresa, desde las secretarias hasta los directores,
pertenecía a los servicios secretos, si bien sólo unos pocos fueron investigados y
expulsados del país por parte de las autoridades españolas.
Las actividades de la flota rusa se centraban en interceptar las conversaciones de
la Armada española y otros países de la OTAN. Por otro lado, la situación de las
Islas convertía esta zona en una estratégica base para el tráfico de armas dirigido a
guerrillas marxistas y países del continente africano.
Con la caída del comunismo soviético este negocio perdió su identidad ideológica,
pero pasó a manos de las mafias rusas; actualmente, el negocio ilícito de armas
en esta zona se dirige esencialmente a los países africanos en conflicto –Angola,
Sierra Leona- y a los mismos grupos mafiosos establecidos en el archipiélago. Los
servicios de información de la Policía y de la guardia Civil han detectado una red de
tráfico ilegal dirigida por miembros asentados en el Sur de Tenerife que siguen los
mismos procedimientos: el armamento llega a Canarias a bordo de pesqueros rusos
que faenan en el banco sahariano y que, ocasionalmente recalan en los puertos para
operaciones de reparación, suministro y cambio de tripulaciones.
El dinero procedente de este tráfico ilícito se invierte, a su vez, en bienes inmobiliarios
y complejos turísticos en las islas.
Pero, el negocio inmobiliario no es nuevo para la mafia rusa en esta zona: en los
años ‘90 fueron los artífices de numerosos fraudes a sus compatriotas, relacionados
con el time-share –viviendas compartidas- y compra de viviendas de lujo. Las
agencias inmobiliarias desaparecieron a finales de esta década, cuando los clientes
denunciaron que los contratos de las casas por los que habían llegado a pagar hasta
100 millones de pesetas no eran sino contratos de alquiler por cinco años.
4.3. Actuación en España contra la criminalidad organizada
La legislación española no contempla expresamente la definición de delincuencia
organizada, por lo que ha de recurrirse a una definición policial y criminológica,
tomando como base el concepto utilizado en el marco de Interpol y del Grupo de
Trabajo de Drogas y Delincuencia Organizada del III Pilar de la Unión Europea,
que nos permite establecer las diferencias conceptuales necesarias para distinguir
a las organizaciones de tipo mafioso de otras estructuras delictivas menos
cohesionadas.
58
• Doutrina Internacional
En nuestra legislación, a fin de intentar esbozar una posible definición, ha de buscarse
una aproximación por vía de la Jurisprudencia, en base a sentencias del Tribunal
Supremo (relacionadas fundamentalmente con el delito de tráfico de drogas: SS. de
5-2-88, 20-10-88, 6-7-90, 18-4-91, 12-2-93, 17-3-93,...), la Ley 19/93 sobre medidas
de prevención del blanqueo de capitales y su posterior reglamento de 9-6-95, etc...
El Código Penal refleja un vacío en cuanto a la especificación concreta del tipo
delictivo de la organización criminal, que no queda plenamente cubierto por el
artículo 173.1 –“asociación ilícita que tuviera por objeto cometer algún delito o, que
después de constituida promueva su comisión”.
Las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado actúan sobre la criminalidad
organizada de dos formas complementarias:
1. una labor de análisis para diferenciar los delitos susceptibles de ser cometidos por
organizaciones criminales de los efectuados por otro tipo de delincuentes.
2. determinada ya la existencia de la organización, su ámbito de actuación y los
delitos en que pudiera implicada, la investigación correspondiente y la puesta a
disposición judicial de los presuntos delincuentes.
Con respecto a esa primera fase de evaluación y análisis, tiene fundamental
importancia el denominado “Cuestionario sobre delincuencia organizada”, basado en
la definición establecida por el Grupo de Trabajo de drogas y delincuencia organizada
de la Unión Europea. Este cuestionario marca once indicadores para establecer los
diferentes grados de organización criminal:
1º. Participación de más de dos personas
2º. Reparto de tareas
3º. Actuación por un período de tiempo prolongado o indefinido.
4º. Utilización de alguna forma de disciplina o control
5º. Sospecha racional de la comisión de delitos que, por sí solos o de forma global,
sean de importancia considerable.
6º. Operatividad a nivel interprovincial o internacional.
7º. Empleo de la violencia o la intimidación.
8º. Uso de estructuras comerciales o de negocio.
9º. Actividades de lavado de dinero.
10º. Uso de la influencia en la política, los medios de comunicación, las
administraciones públicas, las estructuras judiciales y policiales y en la economía.
11º. Búsqueda de beneficios o de poder.
Una respuesta afirmativa en todos estos indicadores nos llevaría a establecer que se
trata de criminalidad organizada, grado más alto de organización delictiva.
Miguel Ángel Núñez Paz •
59
5. Reflexión final
El desarrollo de la mafia rusa ha sido meteórico con respecto al de otras mafias.
Esto es así, por que los delincuentes que después formarían parte de dichas mafias
han tenido la posibilidad de observar el capitalismo desde su sistema antagonista.
Así, esta relativa neutralidad les ha permitido escrutar objetiva y “neutralmente” su
funcionamiento, ventajas y huecos legales. Si a este hecho añadimos la coyuntura
política y el consiguiente deterioro moral y ético que conllevó, el caldo de cultivo para
la proliferación de estos grupos estaba servido.
Otra cuestión es la dificultad para la lucha legal contra una mafia –o quizá deberíamos
hablar de muchas mafias- que supone un ejemplo de perfección en el desarrollo de
actividades ilegales sutilmente encuadradas en actividades legales.
Lo intrincado del entramado operativo de estas organizaciones hace más que ardua
la tarea de las llevar a su cúspide ante los Tribunales y conseguir aplicar la sentencia
que se corresponda con la índole de los delitos.
Por otro lado, sería muy interesante como materia de estudio, puesto que ya ha
quedado señalada la génesis y estructura de los mismos, la posible expansión a
nivel mundial de estos grupos. Zonas como EE.UU. y Canadá18 ya han sido tomadas,
pero la incursión en países como los latinoamericanos –con su tristemente conocida
indefensión legal- podría repetirse en todo el mundo. Quizá esta expansión dependa,
en última instancia, del cariz que tomen los acontecimientos políticos y sociales
en las naciones resultantes de la escisión de la antigua U.R.R.S. y de si estos les
obligarán o no a establecerse en paraísos fiscales.
Este podría ser el caso de España, donde las actividades se han centrado
esencialmente en los negocios inmobiliarios para el blanqueo de dinero, hasta que
determinadas detenciones y hechos delictivos alertaron de su presencia.
De todos modos, la falta de estudios sistemáticos no restringidos y las circunstancias
que rodean este tipo de delincuencia hacen que cualquier juicio que podamos
aventurar sea susceptible de ser rebatido, en tanto que no puede ser demostrado
fuera de los ámbitos oficiales.
En el caso de Canadá la falta de experiencias en el trato con mafias ha hecho que los grupos rusos,
presionados por la creciente persecución de sus actividades en EE.UU. y aprovechando el vacío legal
existente respecto a este tema, hayan comenzado a trasladar sus operaciones a este país.
18 60
• Doutrina Internacional
6. Bibliografia básica consultada
BRONNIKOV A. G. Special Dictionary of Criminal Jargon. Moscú, 1991.
FABIÁN CAPARRÓS, E. El delito de blanqueo de capitales. Cólex: Madrid, 1998.
GARRIDO V.; STANGELAND P.; REDONDO S. Principios de Criminología. Tirant lo
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GUTIERREZ-ALVIZ F. La Criminología
Universidad de Sevilla-UIMP, 1996.
Organizada ante la Justicia. Sevilla:
FERRÉ OLIVÉ, J. C.; ANARTE BOLALLOS, E. Delincuencia Organizada: Aspectos
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FERRÉ OLIVÉ, J. C. y otros. Cooperación policial y judicial en materia de Delitos
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FINCKENAUER J. O.; WARING E. J. Russian Mafia in America. Northeast University
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NÚÑEZ PAZ, M.A.; ALONSO PÉREZ, F. Nociones de Criminología. Cólex: Madrid,
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de la Mafia rusa. En SERTA, A.A.V.V. Homenaje a Alessandro Baratta. Salamanca:
Ed. Universidad de Salamanca, 2004 (versión en castellano de este artículo).
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SHABALIN, V. A. The American Mafia. 1971.
Miguel Ángel Núñez Paz •
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diciembre 1995.
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ZARAGOZA, J. Prevención y Represión del Blanqueo de Capitales. Consejo General
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OTROS:
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Telltale Tattoos in Russian Prisons, publicado en Natural History Magazine, noviembre
de 1993.
62
• Doutrina Internacional
Doutrina Nacional
ASPECTOS PROCESSUAIS DOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO
ANGELO ANSANELLI JÚNIOR
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
RESUMO: Primeiramente, abordamos a competência, discutindo quando os
processos dos crimes de lavagem de dinheiro tramitariam perante a Justiça estadual
e federal. Em seguida, tecemos considerações a respeito da independência do
processo do crime de lavagem de dinheiro em relação ao delito antecedente, bem
como da possibilidade de reunião dos processos para julgamento simultâneo. Após,
defendemos o teor do parágrafo 1º do art. 2º da Lei 9.613, ou seja, a possibilidade de
oferecimento de denúncia com o suporte mínimo probatório da existência do crime
antecedente. Defendemos, outrossim, a constitucionalidade da inaplicabilidade
do disposto no art. 366 do Código de Processo Penal no que tange aos crimes
de lavagem de dinheiro e entendemos que a vedação à liberdade provisória e ao
recurso em liberdade não viola o princípio da presunção de inocência. Finalmente,
analisamos a questão das medidas assecuratórias, sustentando inexistir a inversão
do ônus da prova.
PALAVRAS-CHAVE: Lavagem de dinheiro; competência; denúncia; liberdade
provisória; medidas assecuratórias.
ABSTRACT: First, one deals with competence, discussing when the case of money
laundrying would be judged in a federal or state court. Then, one considers the
independence of a money laundrying case in relation to the criminal records, as
well as the possibility of putting cases together for simultaneous judgement. After,
one supports the content of paragraph 1st , of the art. 2nd of the Law 9.613, in
other words, the possibility of prosecuting with a minimum evidence support of the
existance of criminal records. One defends, likewise, the constitutionality of the
inapplicability of the determination in the art. 366 of the penal code regarding money
laundrying crimes. One also understands that the prohibition of the release on own
rocognizance and of appellating in such a condition does not violate the principle of
presumption of innocence. Finally one analyses the warranty remedies, sustaining
that the the burden of proof does not exist.
Angelo Ansanelli Júnior •
63
KEY WORDS: Money laundry; competence; accusation; release on own recognizance;
measure.
SUMÁRIO: 1. Competência. 2. Independência do processo pelo crime de lavagem
em relação ao crime antecedente. 3. Denúncia. 4. A inaplicabilidade do art. 366 do
Código de Processo Penal. Conclusão. 5. Vedação à Liberdade Provisória e ao
recurso em liberdade. 6. Medidas assecuratórias e a inversão do ônus da prova. 7.
Conclusões. 8. Referências bibliográficas.
1. Competência
O art. 2º., em seu inciso III, alíneas “a” e “b” define as hipóteses de competência no
que concerne aos crimes de lavagem. Assim reza o dispositivo: “Art. 2º. O processo
e julgamento dos crimes previstos nesta lei: III – são de competência da Justiça
Federal: a) quando praticado contra o sistema financeiro e a ordem econômicofinanceira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas
entidades autárquicas ou empresas públicas; b) quando o crime antecedente for de
competência da Justiça Federal”.
O dispositivo elenca as hipóteses de competência da Justiça Federal (que encontra
respaldo no disposto no art. 109 da Constituição), sendo que, por exclusão, os
demais processos serão de competência da Justiça Estadual.
Luiz Flavio Gomes entende que a Justiça Federal sempre deterá a competência para
o processo dos crimes de lavagem de dinheiro. Argumenta o autor:
Considerando-se que o bem jurídico tutelado nessa novel
incriminação é exatamente a ordem socioeconômica e o
sistema financeiro, que é um bem jurídico supra-individual
(ou coletivo), conclui-se que todos os delitos de lavagem de
capitais afetam tal ordem econômico-financeira. Logo, todos
são de competência da Justiça Federal. (GOMES, 1998, p.
10)
Contudo, para refutar o argumento de Luiz Flavio Gomes, imperioso se faz
demonstrar que o bem jurídico tutelado pela lei em comento não pode ser a ordem
socioeconômica, vez que, como ensina Roberto Podval, “o bem jurídico não pode,
nem deve ser admitido de forma tão genérica, sob pena de, indiretamente, extinguirse a garantia que o bem jurídico oferece” (PODVAL, 1988, p. 213).
Esclarece Ângelo Roberto Ilha da Silva que os crimes contra o sistema financeiro
constituem espécies de infrações de competência da Justiça Federal em virtude da
previsão da própria lei de lavagem, bem como do disposto no art. 109, inciso VI da
Constituição, que fixa a competência da Justiça Federal “nos casos determinados
por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira”.
64
• Doutrina Nacional
Enfatiza o autor que:
[...] somente quando a própria lei prevê a competência da
Justiça Federal nessas duas últimas hipóteses é que tal se
dará. A guisa de exemplo, conclui, podemos referir que os
crimes previstos na Lei de Economia Popular, não obstante
afrontar a ordem econômica, são de competência da Justiça
Estadual (Lei 1.521/51), ao passo que os crimes contra
o sistema financeiro ficam sujeitos à jurisdição federal,
justamente por haver dispositivo expresso (lei 7.492/86, art.
26, caput). (SILVA, 2001B, p. 307)
Como bem colocado, nem todos os crimes que afetarem a ordem sócio-econômica
serão de competência da Justiça Federal, vez que, somente quando a própria lei
fizer tal previsão é que tal ocorrerá.
De outro lado, como consta do dispositivo, a competência será da Justiça Federal,
quando o crime antecedente também o for. O delito de tráfico de entorpecentes,
por exemplo, é de competência da Justiça Federal quando extravasar o território
nacional, consoante o disposto no art. 109, inciso V da Constituição (vez que é delito
que o Brasil, por tratado se obrigou a reprimir) e no art. 70 da lei 11.343, de 26 de
agosto de 2006 1. Assim, o tráfico internacional de entorpecentes é de competência
da Justiça Federal, sendo que o delito de lavagem dos valores obtidos com tal
atividade, por conseqüência, também será de competência da mesma justiça.
Questão controvertida referente ao delito de tráfico de entorpecentes, concerne à
hipótese de desclassificação do referido crime, quando se entender não possuir
o mesmo caráter transnacional, vez que tal decisão tem reflexos no que tange à
competência do delito de lavagem.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem entendido que, mesmo no caso de
desclassificação, em face do estatuído no art. 81 do Código de Processo Penal 2, a
competência continuará sendo da Justiça Federal. Em sentido contrário posicionamse o Superior Tribunal de Justiça 3 e o Supremo Tribunal Federal 4, para quem,
afastada a internacionalidade do tráfico, deve o processo ser remetido ao juízo
estadual. Esse último entendimento é o predominante, e, segundo pensamos, o
mais acertado, vez que se trata de hipótese de incompetência absoluta da Justiça
Federal.
Assim sendo, no caso de tramitarem perante a Justiça Federal, em conexão, os
1 Esse é o teor da Súmula 522 do STF: “salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a
competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados e processo e julgamento dos crimes
relativos a entorpecentes”.
2 TRF4, ACR 2003.70.02.010137-8, Oitava Turma, Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, pub. em 22/12/2004.
3 STJ – CC 15.532, Rel. Min. Edson Vidigal, 3ª Seção, DJU 3.6.1996.
4 STF – HC 74.479, Rel. Min. Carlos Veloso, 2ª Turma, DJU 28.2.1997.
Angelo Ansanelli Júnior •
65
processos pelos crimes de tráfico de entorpecentes e lavagem de dinheiro, havendo
desclassificação quanto àquele para esfera estadual, deverá a competência dos
processos ser declinada para a Justiça Estadual.
Aliás, é de se salientar que é possível que estejam em trâmite os processos pelo
delito antecedente e o de lavagem de dinheiro, sejam praticados pelo mesmo agente
ou não. Em face da conexão (material ou teleológica, prevista no art. 76, II do Código
de Processo Penal, ou a instrumental, prevista no art. 76, III do mesmo diploma
legal), haverá imperiosa necessidade de que os processos sejam reunidos para
julgamento simultâneo (simultaneus processus).
Ensina Rodolfo Tigre Maia que:
[...] existindo, pois, a possibilidade de conexão, entre os crimes
de lavagem de dinheiro e os ilícitos que o antecedem, ou ainda,
na simples hipótese de o crime anterior ser de competência
federal, esta alínea ‘b’ consagra o entendimento predominante
na jurisprudência no sentido de que a reunião dos processos
dar-se-á no âmbito da Justiça Federal (MAIA, 1999, p. 116)5.
O problema que se coloca, porém, é o rito a ser adotado. No que tange ao tráfico
de armas (inciso III do art. 1º.), cujos delitos estão previstos nos arts. 17 e 18 da lei
10.826/03, esclarece Marcelo Batlouni Mendroni que:
[...] sendo ambas modalidades de tráfico – comercialização
ilegal – , entende-se que, enquanto na forma do art. 17 as
condutas ocorrem dentro do território nacional, na forma do
art. 18, com conduta ‘de’ ou ‘para’ o exterior’. Na primeira, a
competência é das Justiças Estaduais, e no segundo caso, da
Justiça Federal. (MENDRONI, 2005, p. 44)
Quanto à extorsão mediante seqüestro, tem-se que, em princípio, o delito de lavagem
dos valores obtidos será de competência da Justiça Estadual, vez que, como ensina
Marco Antonio de Barros:
[...] sendo o dinheiro lavado proveniente de crime de extorsão
mediante seqüestro, cometido no território nacional e que
não guarde qualquer vínculo ou interesse internacional, será
competente para processar e julgar o crime de lavagem o Juiz
da comarca ou local dos fatos ou da apreensão dos bens,
direitos e valores que denotem a ocultação da ilicitude do
enriquecimento e patrimônio do acusado. (BARROS, 1998, p.
77)
Como anota Ângelo Roberto Ilha da Silva, “as infrações penais perpetradas contra
a Administração Pública dependerão de esta ser do âmbito da União, caso em que
5 Nesse sentido é a Súmula 52 do extinto TFR, reafirmada pela Súmula 122 do STJ.
66
• Doutrina Nacional
a competência será da Justiça Federal, ou se darem em face de Estado-Membro ou
Município, o que leva à competência da Justiça Estadual” (SILVA, 2001B, p. 308).
Assim, se o agente pratica um delito de peculato contra o patrimônio da União, ou
suas autarquias ou empresas públicas, e lava o dinheiro, a competência será da
Justiça Federal.
Questão interessante, é a que concerne à criação de Varas Especializadas para os
crimes de lavagem de dinheiro através de resoluções. O Conselho de Justiça Federal
baixou a resolução n. 314, em 12 de maio de 2003, determinando que os Tribunais
Regionais Federais criassem as Varas Especializadas. Os Tribunais Federais, por
sua vez, baixaram as resoluções, atendendo o comando administrativo do Conselho
de Justiça Federal.
Roberto Delmanto Junior, com quem concordamos, insurgiu-se contra a criação das
Varas Especializadas através das resoluções, sob o argumento de que tal só poderia
ocorrer através de lei formal, nos termos do art. 96, II, “d”, art. 105, § único, art.
62, § 1º., I, “b”da Constituição, e não por ato administrativo dos Tribunais. Desta
forma, sustenta o autor que as resoluções são inconstitucionais, por violarem os
princípios da legalidade, do devido processo legal e do juiz natural (art. 5º XXXVII)
(DELMANTO, 2006, p. 568).
2. Independência do processo pelo crime de lavagem em relação ao crime
antecedente
O art. 2º, inciso II da lei 9613/98, prescreve que “o processo e julgamento dos crimes
previstos nesta lei independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes
referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país”. A intenção do
legislador, como se denota pelo dispositivo transcrito, é a de assegurar a punição
do autor do crime de lavagem, de forma independente do resultado do processo do
crime antecedente.
Em comentários ao dispositivo supra, Guilherme de Souza Nucci afirma:
Não há necessidade de se concluir a apuração e eventual
punição dos autores do crime antecedente para que se
possa processar e julgar o delito de lavagem de dinheiro. O
importante é, ao menos, a prova da materialidade (prova da
existência) do crime antecedente. Portanto, se o processo
pelo crime antecedente estiver em andamento, considera-se
uma questão prejudicial homogênea, merecedora de gerar a
suspensão do processo pelo delito de lavagem até que outro
seja julgado. (NUCCI, 2006, p. 426)
Contudo, é de se ver que, conforme escólio de Rodolfo Tigre Maia:
[...] fica de fato patente a autonomia processual dos
delitos de lavagem, mas de modo algum resta coartada a
Angelo Ansanelli Júnior •
67
possibilidade de julgamento simultâneo destes com os crimes
antecedentes conexos, na óbvia hipótese em que tal reunião
seja objetivamente possível, qual seja, dentre outras situações
quando não for aplicável o art. 80 do Código de Processo
Penal. (MAIA, 1999, p. 112)
Embora a lei sugira a separação dos processos do crime antecedente e o de lavagem,
consoante autoriza o art. 80 do Estatuto Processual, é de se ver que não proíbe o
julgamento simultâneo dos referidos feitos. Aliás, segundo pensamos, tudo aconselha
a reunião dos processos, vez que, via de regra, a prova de um influenciará na do
outro, sendo hipótese de conexão instrumental (art. 76, III, do Código de Processo
Penal), sendo que a competência será definida pelo crime de maior pena (art. 78, II,
“a”, do mesmo diploma legal).
De se lembrar que o exemplo mais clássico de reunião de processos por conexão
instrumental é justamente os que envolvem os delitos antecedentes contra o
patrimônio (furto, roubo, estelionato) e o de receptação (delito ao qual se assemelha
o crime de lavagem de dinheiro).
Todavia, caso não seja possível a conexão, acreditamos que, dependendo
da hipótese, não será necessária a suspensão do feito do delito de lavagem de
capitais.
Isso porque, conforme texto expresso de lei, é indispensável apenas a prova da
materialidade do delito antecedente. Assim, havendo prova no processo pelo crime
antecedente de que realmente tal delito ocorreu (tráfico de entorpecentes, extorsão
mediante seqüestro, crime contra o sistema financeiro), estando apenas a se discutir
a autoria (ou outras questões como a prescrição, exclusão da culpabilidade), não
haverá necessidade de suspensão do processo por crime de lavagem, eis que
existente a prova da materialidade.
Contudo, estando a se discutir a própria existência do crime antecedente, em face
da prejudicialidade homogênea, entendemos ser viável a suspensão do processo
referente à lavagem de dinheiro, vez que este delito depende do antecedente, e,
assim, se evitar sentenças conflitantes e dispêndio de tempo e dinheiro público.
No caso de o delito antecedente ter sido praticado em outro país, conforme escólio
de Guilherme de Souza Nucci, “deve-se respeitar o princípio da dupla tipicidade (ser
crime tanto no Brasil quanto no exterior)” (NUCCI, 2006, p. 426).
Várias hipóteses podem ocorrer quanto ao processo pelo crime antecedente, caso
este já esteja sentenciado, o que impede, obviamente, a conexão (art. 82 do Código
de Processo Penal).
Caso tenha ocorrido sentença absolutória no processo pelo crime antecedente,
devemos analisar o motivo da absolvição. Consoante esclarece Lino Edmar de
68
• Doutrina Nacional
Menezes, não restará afastado o delito de lavagem de dinheiro, caso a absolvição do
processo pelo crime antecedente tenha se fulcrado em “falta de provas”, ou de não
ter prova de haver “o réu concorrido para o crime”, ou, ainda, por “não ser o réu o
autor”. Tal ocorrerá, porém, conforme ensina o autor, se a decisão absolutória estiver
fundamentada em “não ter havido o fato” (MENEZES, 2000).
Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Delmanto, contudo, acrescentam
mais três hipóteses que, uma vez configuradas, afastariam a possibilidade de
condenação pelo crime de lavagem. Segundo os autores, caso haja sentença
absolutória fundamentada no inciso III do art. 386 (não constituir o fato infração penal)
e (atualmente, em face da entrada em vigor da lei 11.690/08) no inciso VI, primeira
parte (existir circunstância que exclua o crime, ou seja, uma das excludentes de
ilicitude dos arts. 23, 24 e 25 do CP), ou tiver ocorrido a abolitio criminis do delito
antecedente, ou, ainda, a anistia em relação ao seu autor, “obviamente não poderá
haver condenação por crime de lavagem, uma vez que o crime antecedente integra
o próprio tipo do art. 1º. desta lei” (DELMANTO, 2006, p. 567).
Realmente, no caso de a sentença do processo do crime antecedente estiver
fundamentada na inexistência do fato, por este não constituir infração penal, ou pela
abolitio criminis, logicamente que tal decisão impedirá a propositura de ação penal em
face do crime de lavagem de dinheiro. Quanto à excludente de antijuridicidade, como
a mesma é um dos requisitos do crime, juntamente com a tipicidade, entendemos
que, ausente a ilicitude da conduta do tipo antecedente, afastado está o próprio crime
antecedente, o que ilide a possibilidade da condenação pelo delito de lavagem.
Lembra Lino Edmar de Menezes, finalmente, que, caso tenha ocorrido a extinção da
punibilidade do autor do crime antecedente, pela prescrição ou pela morte, tal não
impedirá o oferecimento de denúncia em face de algum beneficiário dos bens ilícitos
utilizados na sua atividade econômica ou financeira (MENEZES, 2000, p. 26).
3. Denúncia
O § 1º. do art. 2º. determina que “a denúncia será instruída com indícios suficientes
da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta lei,
ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime”. O legislador,
nesse dispositivo, corrobora sua intenção de que o autor do crime de lavagem seja
punido, independentemente do resultado do processo do crime antecedente.
O dispositivo é criticado por alguns, que sustentam a impossibilidade de oferecimento
da denúncia apenas com indícios suficientes da existência do crime antecedente,
havendo necessidade de comprovação da certeza da prática deste delito.
Desse sentir é a lição de Fábio Roberto D’Ávila:
Angelo Ansanelli Júnior •
69
Considerarmos que meros indícios da ocorrência do crime
antecedente, mesmo que atribuindo-lhes a inapreensível
característica de sérios, seriam suficientes para justificar
uma condenação criminal por crime de lavagem de dinheiro,
nos remonta às origens do Direito Penal, do Direito Penal
inquisitorial, despótico, autoritário, quando a mera suspeita
substituía a verdade no nefasto afã punitivo, seja qual fosse o
custo de tal procedimento. (D’ÁVILLA, 1999, p. 4)
De outro lado, em posição antagônica, outro setor da doutrina entende que não há
necessidade de prévia condenação pelo crime antecedente para a caracterização
do crime de lavagem. William Terra de Oliveira, partidário de tal corrente, afirma que
“em razão disso, não é exigida prova cabal dos delitos antecedentes (sentença penal
condenatória), bastando apenas indícios da prática das figuras mencionadas nos
incisos I a VII, para que se complete a tipicidade” (OLIVEIRA, 1998, p. 125).
Em que pese o brilhantismo dos que pensam de modo contrário, entendemos que a
segunda corrente não está em dissonância com os postulados do Estado Democrático
de Direito. De se salientar, primeiramente, que, para oferecimento de denúncia, deve o
Ministério Público narrar o fato, com todas as suas circunstâncias, qualificar seus autores,
classificar o delito e apresentar o rol de testemunhas (art. 41 do Código de Processo
Penal). Além das condições da ação (interesse, legitimidade e possibilidade jurídica),
deve estar presente, também, a justa causa, ou seja, “um lastro mínimo de prova que
deve fornecer arrimo à acusação”, que deve resultar do inquérito policial ou das peças de
informação, que devem acompanhar a acusação penal (JARDIM, 1998, p. 36).
Como já visto anteriormente, pode ocorrer que sequer tenha sido instaurado processo
pelo crime antecedente, em face da extinção da punibilidade pela prescrição, pela
morte do agente; ou tenha sido oferecida denúncia, e o agente absolvido.
É possível que, quando do oferecimento da denúncia, o Ministério Público possua
indícios da prática do crime antecedente, sendo que, no decorrer da instrução pelo
crime de lavagem, caberá ao Parquet o ônus de provar a tipicidade, que engloba a
prática do crime antecedente e o de lavagem, a antijuridicidade e a culpabilidade.
Como ensina Afrânio Silva Jardim:
[...] torna-se necessária ao regular o exercício da ação penal
a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não
é temerária, por isso que lastreada em um mínimo de prova.
Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios
de autoria, existência material do fato típico e alguma prova de
sua antijuridicidade e culpabilidade. (JARDIM, 1998, p. 216)
Assim, o que o legislador autoriza não é a instauração de um processo destituído de
qualquer fundamento. Ele exige a existência de indícios suficientes (leia-se suporte
probatório mínimo) da existência do crime antecedente. Tal expediente foi utilizado
70
• Doutrina Nacional
pelo legislador nos crimes dolosos contra a vida, vez que o art. 408 do Código de
Processo Penal exige, para o juízo de pronúncia, a existência de indícios de autoria
e prova da materialidade.
Desta forma, o que o legislador autorizou, foi a possibilidade de oferecimento de
denúncia com o suporte mínimo probatório da existência do crime antecedente,
que se consubstancia na justa causa. Obviamente que, se durante a instrução não
restar provada a tipicidade e a antijuridicidade do tipo antecedente (a culpabilidade
é dispensável, consoante o dispositivo), o agente, obrigatoriamente, deverá ser
absolvido da imputação do crime de lavagem.
Mesmo porque, como ensina Rodolfo Tigre Maia:
[...] as provas de qualquer natureza (circunstanciais,
testemunhais, documentais, periciais, etc.) acerca da
materialidade da infração penal, quando colhidas ou
certificadas em sede de inquisitiva, submetem-se sempre a um
contraditório diferido, sujeitando-se à possibilidade de crítica e
refutação pela defesa técnica do acusado na fase da instrução
judicial. (MAIA, 1999, p. 120)
Outra questão que suscita controvérsias, refere-se ao conceito de “indícios
suficientes”, exigido pelo dispositivo para o oferecimento da denúncia. Indício definese, no dizer de Mittermayer, “como um fato que está em relação tão íntima com
outro, que o Juiz chega um a outro por meio de uma conclusão muito natural” (apud
TOURINHO FILHO, 1995, p. 306).
E indícios suficientes, consoante ensinamento de Rodolfo Tigre Maia, “serão aqueles
que, independentemente de sua quantidade, quando sopesados à luz dos princípios
gerais de apreciação da prova em sede criminal, da experiência jurídica e das
especificidades da modalidade de ilícito a que se vinculam, produzem no julgador o
convencimento racional, explicitado fundamentadamente, de que determinado crime
tenha sido praticado” (MAIA, 1999, p. 120).
Destarte, tem-se que a denúncia oferecida pelo Ministério Público deverá conter
a exposição fática do crime de lavagem, incluindo os indícios suficientes do
crime antecedente, a qualificação dos autores, a classificação do delito e o rol de
testemunhas.
Uma observação que deve ser feita refere-se ao fato de o legislador dispensar a
comprovação da culpabilidade do tipo antecedente.
A isenção de pena significa ausência de culpabilidade, ou seja, que o acusado do
crime antecedente pode ter sido absolvido com base nas excludentes previstas no
art. 21 (erro de proibição), art. 22 (coação moral irresistível, e obediência hierárquica),
art. 26 (inimputabilidade) e embriaguez (art. 28) do Código Penal. Isso porque o
Angelo Ansanelli Júnior •
71
legislador pátrio adotou a teoria da acessoriedade limitada, que permite a punição
do partícipe, desde que o fato praticado pelo autor seja típico e antijurídico, a fim de
evitar a impunidade e estímulo para a prática do crime de lavagem.
4. A inaplicabilidade do art. 366 do Código de Processo Penal
O § 2º. do art. 2º. da lei determina que “no processo por crime previsto nesta lei, não
se aplica o disposto no art. 366 do Código de Processo Penal”.
Até a entrada em vigor da lei 9.271, de 14 de abril de 1996, que alterou a redação
do art. 366 do Código de Processo Penal, o Código determinava que, quando o réu
fosse citado por edital e não encontrado, devia ser-lhe nomeado um defensor e o
processo continuava até final sentença. O dispositivo foi modificado, passando a
estipular que, caso o réu fosse citado por edital e não encontrado, o processo seria
suspenso, com a conseqüente suspensão do prazo prescricional e decretação da
prisão preventiva.
A lei 9.613, consoante o dispositivo em comento, excepciona a atual regra geral
do Código, mantendo a sistemática adotada antes da alteração do estatuto
processual promovida pela lei de 9.271/96, suscitando controvérsias a respeito da
constitucionalidade da opção legislativa, sendo que vários doutrinadores insurgemse contra a previsão do modelo adotado pelo Código de Processo antes da alteração
promovida pela lei.
Assim é, que César Antonio da Silva afirma:
O dispositivo legal, ao vedar a aplicação do art. 366
do Código de Processo Penal, está viciado pelo signo
da inconstitucionalidade, porque suprime ao réu o real
conhecimento da acusação que lhe é imputada, violando o
princípio do contraditório, ao deixar de suspender o processo
quando citado por edital; o que equivale a dizer que o processo
segue à revelia, violando, por conseguinte, o disposto no art.
5º. § 2º. da Constituição Federal. (SILVA, 2003A, p. 139)
Além disso, Rodolfo Tigre Maia assevera que não houve restauração da revelia, vez
que esta foi revogada. Ensina o autor que:
[...] na medida em que a revelia não é mais expressamente
consignada na lei adjetiva como conseqüência da contumácia
do réu, como resulta da nova redação do art. 366 do Código de
Processo Penal, não bastava ao legislador pura e simplesmente
determinar a inaplicabilidade desse dispositivo legal. Era mister
restaurar expressamente a revelia como sanção aplicável ao
desatendimento do chamamento ficto nos processos referentes
aos crimes estudados. (MAIA, 1999, p. 124)
72
• Doutrina Nacional
Assim, como não houve repristinação expressa da revelia, para o autor, o dispositivo
seria inaplicável.
O terceiro questionamento refere-se à contradição entre o § 2º. do art. 2º., que reza
que o art. 366 do Código de Processo Penal não será aplicado, no que tange à
citação, e o § 3º. do art. 4º. da lei de lavagem, que determina a aplicação do mesmo
art. 366 do estatuto processual concernente à restituição dos bens apreendidos,
onde está consignada a necessidade de comparecimento pessoal do acusado para
a realização de tal restituição.
Luiz Flavio Gomes, um dos críticos da disposição, afirma que se trata de uma
contradição autofágica, questionando: “Como pode o legislador dizer no art. 2º. que
um tal dispositivo não é aplicável e logo em seguida, dois artigos depois, dizer que
esse mesmo preceito é aplicável ?” (GOMES, 1998B, p. 14). Concluindo, acrescenta
o autor que deve prevalecer o preceito que mais ampla a liberdade.
Em que pesem as críticas formuladas ao § 2º. em comento, entendemos que as
mesmas não procedem. Primeiramente, a inaplicabilidade do art. 366 do Código
de Processo Penal não está eivado de qualquer inconstitucionalidade. Isso porque,
embora o Brasil seja signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, é de se ver
que sempre se adotou no direito pátrio, até a entrada em vigor da lei 9.271, de
14 de abril de 1996, o sistema da citação editalícia, sem que fosse declarada sua
inconstitucionalidade.
Nesse sentido é a lição de Guilherme de Souza Nucci:
Lei especial afasta aplicação da lei geral. Foi opção de política
criminal nesse caso e deve ser respeitada, não adiantando
invocar conflitos e confusões legislativas para se expressar.
Note-se que, antes de 1996, por mais que se julgasse
importante julgar um réu citado por edital, em homenagem à
ampla defesa, tal medida nunca foi adotada. Foi necessária a
modificação do art. 366 do CPP para implantação da referida
suspensão. (NUCCI, 2006, p. 426)
Além disso, é de se ver que os autores dos crimes previstos na presente lei,
geralmente, são pessoas abastadas, que facilmente se dirigem para o exterior,
impossibilitando a persecução penal. Aduz Marcelo Batlouni Mendroni: “haverá forte
suspeita de que poderá enviar o dinheiro para o exterior e para lá viajar e fixar
residência – fazendo a justiça passar a depender de demoradas solicitações de
cumprimento de cartas rogatórias, fornecimento de dados e pedidos de extradições”
(MENDRONI, 2005, p. 117).
De se salientar que a intenção do legislador, muito mais do que aplicar a sanção
penal, consistente na pena privativa de liberdade, foi a de fazer com que ocorresse
o perdimento dos valores, bens ou direitos provenientes da lavagem de dinheiro
(art. 7º. inciso I) e interdição do exercício de determinados cargos (art. 7º. inciso
Angelo Ansanelli Júnior •
73
II). É muito mais eficaz, para o combate ao crime de lavagem, a apreensão dos
bens, do que a aplicação da pena privativa de liberdade. Ocorrendo a suspensão do
processo, prevista pelo art. 366 do Código, dificilmente se chegaria à sentença de
mérito, com a decretação do perdimento dos valores oriundos da lavagem ilícita, ou
da imposição da interdição de direitos.
O fato de constar no texto apenas vedação do art. 366 do Código de Processo
Penal, sem repristinação de sua redação anterior à Lei 9.271/96, não significa que
o dispositivo é inaplicável. Utilizando-se da interpretação lógica, tem-se que, se
não aplicado o referido dispositivo, obviamente resta apenas a opção da citação
editalícia, nomeação de advogado e prosseguimento do feito até final sentença.
Com base na interpretação teleológica, temos que a intenção do legislador foi a que
o processo prosseguisse, mesmo ante a ausência do acusado, pois dificilmente será
localizado, e, também, a fim de que sejam aplicados os efeitos da sentença, acima
mencionados.
Finalmente, a contradição entre o § 2º. do art. 2º. com o § 3º. do art. 4º. é muito mais
aparente do que real. Isso porque ambas as disposições referem-se a questões
distintas. Como explica José Paulo Baltazar Junior:
[...] o § 2º. afasta a aplicação do art. 366 em seu conjunto, ou
seja, mesmo que o acusado citado por edital não compareça
nem constitua advogado, ainda assim o processo não será
suspenso, mas prosseguirá mesmo sem a presença do
acusado. Já a do § 3º. do art. 4º., ao referir os ‘casos do
art. 366’, tem por escopo exigir a apresentação do acusado
para que possa pleitear a sua restituição. Nesta linha, os
dispositivos mencionados não só são compatíveis como são
complementares, na medida em que ambos tem por escopo
comprovar a real existência do acusado. (BALTAZAR JÚNIOR,
2000; JARDIM, 1999, p. 216)
Da mesma forma, Marcelo Batlouni Mendroni esclarece que “o dispositivo tampouco
é contraditório, já que o art. 4º., § 3º. da lei refere-se à segunda parte do 366,
caput do Código de Processo Penal, o qual diz respeito especificamente aos bens”
(MENDRONI, 2005, p. 118).
5. Vedação à Liberdade Provisória e ao recurso em liberdade
O art. 3º. da lei 9.613, torna defeso ao juiz a concessão de liberdade provisória
com ou sem fiança aos autores dos crimes de lavagem, e, ainda, prescreve que o
juiz decidirá, fundamentadamente, se o réu poderá apelar em liberdade. Disposição
similar constava do § 2º. do art. 2º. da Lei 8072/90 (lei dos crimes hediondos),
revogada pela Lei 11.464.
A vedação à concessão da liberdade provisória suscita controvérsias, vez que vários
doutrinadores entendem que tais disposições são inconstitucionais, sob o argumento
74
• Doutrina Nacional
de que o legislador, assim agindo, impede que o juiz avalie as circunstâncias de
cada caso concreto. Afirmam ainda, que só se pode impor a segregação provisória
aos acusados, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo
Penal, quais sejam, garantia da ordem pública, assegurar a aplicação da lei penal e
a instrução probatória, e, finalmente, a ordem econômica. Aduzem, outrossim, que a
proibição da concessão da liberdade provisória, sem motivação, viola os princípios
da culpabilidade e presunção de inocência.
Desse sentir é o posicionamento de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e
Fabio Delmanto:
O art. 5º., XLIII, de nossa Lei Maior, ao dispor que a lei
considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
de anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes
e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos [...] não vedou, nem poderia vedar, em absoluto,
a liberdade provisória, posto que isso significaria a volta da
prisão obrigatória. Por outro lado, interpretar que seu art. 5º.,
LXVI, autorizaria, implicitamente, que a lei ordinária pudesse
proibir por completo a liberdade provisória, e ainda para todo e
qualquer crime (ninguém será levado à prisão ou nela mantido
quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança),
não condiz com o espírito do art. 5º. [...] que cuida dos Direitos
e Garantias Fundamentais [...] há de ser interpretado de forma
a ampliar esses direitos e garantias, e não o contrário. Assim,
a disposição do art. 3º. mostra-se absolutamente inaceitável
em nosso ordenamento, restando violadas as garantias da
desconsideração prévia de culpabilidade (CR, art. 5º., LVII) e
da presunção de inocência (Pacto de San Jose da Costa Rica,
art. 8º., 2)” (DELMANTO et al., 2006, p. 576).
Contudo, é de se ver que, de outro lado, inúmeros doutrinadores defendem a opção
legislativa, sem acoimá-la de inconstitucionalidade.
Primeiramente, cabe salientar que a própria Constituição permite que o legislador faça
tal opção, vez que o art. 5º., inciso LXVI reza que “ninguém será levado à prisão ou nela
mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança”. Assim, quando
a lei permitir a concessão de liberdade provisória, deve fazê-lo o juiz, se presentes os
requisitos legais (art. 310, § único do Código de Processo Penal). A contrario sensu,
quando a lei vedar a liberdade provisória, está o legislador se utilizando do comando
constitucional para impedir o benefício.
Logicamente que existem limites para atuação do legislador, pois, do contrário, o mesmo
estaria autorizado a estabelecer a vedação em quaisquer crimes, de forma desnecessária.
Assim, há de se fazer interpretação da lei de forma sistemática, para saber se a opção
do legislador encontra fundamento. No caso em tela, como já colocamos anteriormente,
temos que os autores dos crimes de lavagem são pessoas abastadas, que facilmente
se evadem para o exterior, frustrando a aplicação da lei penal.
Angelo Ansanelli Júnior •
75
Em face dessa circunstância, e fulcrado no permissivo constitucional, o legislador
infraconstitucional vedou a concessão da liberdade provisória, a fim de evitar que
os autores dos crimes de lavagem empreendam fuga para outro país, assegurando,
desta forma, a aplicação da lei penal.
Marcelo Batlouni Mendroni, nesse diapasão, enfatiza que:
[...] principalmente por garantia da instrução criminal, não há
como se pensar em liberdade provisória, com ou sem fiança a
um suposto criminoso milionário fugitivo da justiça. [...] não se
pode deixar de consignar que quem se envolve com crimes da
natureza daqueles previstos na lei não costuma ter escrúpulos
e, abonado que seja ou esteja, faz com que o dinheiro compre
pessoas e destrua provas. (MENDRONI, 2005, p. 120)
Assevera Rodolfo Tigre Maia que: “não há que se cogitar de qualquer vulneração
do estado de inocência, eis que a compatibilização dos dois mandamentos
constitucionais envolvidos conduz a que a regra da ‘não-culpabilidade’ não afetou e
nem suprimiu a decretabilidade das diversas espécies que assume a prisão cautelar
em nosso Direito Positivo” (MAIA, 1999, p. 126).
Áureo Rogério Gil Braga, em estudo sobre o tema, argumenta que há necessidade
da vedação à liberdade provisória no caso em tela, em face da necessidade de
assegurar a ordem econômica, de forma a se combater a macro criminalidade.
Afirma que:
[...] os envolvidos fomentam a cultura da impunidade e denotam
um agir que configura o direcionamento das atividades de suas
empresas ao acometimento dos suscitados delitos, criando
quadrilhas [...] que agem numa mescla de atividades lícitas
e ilícitas, com grave comprometimento da ordem pública e
seus desdobramentos”. Concluindo, arremata o autor que
“nesta linha de entendimento, com o intuito de dar garantia à
ordem econômica, faz-se-, data vênia, imperiosa a segregação
provisória” (BRAGA, 2002).
No que tange ao recurso em liberdade, o legislador determina que a regra é a de
que o acusado seja mantido segregado para poder apelar; excepcionalmente, o juiz
poderá, fundamentadamente, conceder o direito de recorrer em liberdade.
César Antonio da Silva, embora entenda que o dispositivo represente um avanço em
relação ao art. 594 do Código de Processo Penal, enfatiza que o mesmo distante
ainda se encontra do ideal, isto é, “da preservação do estado de inocência, expresso
no inciso LVII do art. 5º. da Constituição, porque não é por se tratar de uma decisão
condenatória, apenas, que pode ser atribuído o status de condenado a alguém”
(SILVA, 2001A, p. 146).
76
• Doutrina Nacional
Contudo, ensina Rodolfo Tigre Maia:
[...] quanto à obrigatoriedade do recolhimento à prisão para
apelar, contida neste dispositivo, mais restritivo do que a regra
geral do Código de Processo Penal, entendeu o Supremo em
exegese do dispositivo análogo da lei de crimes hediondos,
que a fundamentação é de ser exigida quanto à decisão que
admite a liberdade para recorrer do decisum condenatório (lei
8.072/90, art. 2º., § 2º.), por caracterizar exceção, e não quanto
à que decreta a prisão, por consubstanciar a regra. (MAIA,
1999, p. 126)
Desta forma, não há impedimento para denegação do direito de recorrer em liberdade,
conquanto que o juiz esclareça os motivos que o levam a tomar tal medida.
6. Medidas assecuratórias e a inversão do ônus da prova
O legislador estipulou a forma com que deverão ser decretadas as medidas
assecuratórias nos delitos de lavagem de dinheiro no art. 4º. e §§. Prescreve o caput
do dispositivo: “Art. 4º. O Juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou
representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e
quatro horas), havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou
da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores do acusado,
ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta lei, procedendo-se na
forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-lei 3689, de 03 de outubro de 1941 – Código
de Processo Penal”.
Consoante magistério de Marcellus Polastri Lima:
[...] trata-se o seqüestro de verdadeira medida cautelar, sendo
cabível quando demonstrado que os bens adquiridos são
produtos do crime ou foram adquiridos com o proveito da prática
delituosa (fumus boni iuris). [...] para sua caracterização não se
indaga se a propriedade dos bens é controvertida, como no
processo civil, pois aqui, o que dá especificidade a esses bens
é terem sido adquiridos e pagos, com haveres obtidos por meio
criminosos. (LIMA, 2006, p. 257)
Assim, temos que, tanto o seqüestro quanto a apreensão dos bens são medidas de
natureza cautelar, cujo deferimento está sujeito à presença dos requisitos do fumus
boni iuris e do periculum in mora. O primeiro requisito, a fumaça do bom direito,
consubstancia-se nos indícios de que os valores, bens ou direitos são provenientes
de atividade ilícita, oriundos dos crimes de lavagem. Já o perigo da demora está
sempre ínsito na possibilidade de o agente utilizar de artifícios para se desfazer
dos bens, direitos e valores, comprometendo a comprovação da materialidade do
crime.
Angelo Ansanelli Júnior •
77
Preenchidos esses requisitos, o juiz decretará o seqüestro ou a apreensão dos bens,
direitos ou valores. Contudo, o legislador, ciente de que se tratam de medidas de
certa gravidade, e de forma ponderada, autorizou o levantamento dos referidos bens
em duas hipóteses: quando não proposta a ação penal no prazo de 120 (cento e vinte
dias), e quando for comprovada a licitude dos bens. Luiz Flavio Gomes acrescenta
uma terceira hipótese, que, embora não prevista na lei, decorre da lógica, ou seja,
no caso de o acusado ser absolvido ou ter declarada extinta a punibilidade (GOMES,
1998A).
O § 1º. do art. 4º., acima transcrito, determina que os bens, direitos ou valores sejam
levantados caso não proposta a ação penal no prazo de 120 dias. De outro lado, o
próprio caput do art. 4º., reza que serão aplicáveis o disposto nos arts. 125 a 144
do Código de Processo Penal, sendo que o art. 131 deste diploma legal estabelece
que o seqüestro será levantado em 60 (sessenta) dias, se não for intentada a ação
penal.
Em face disso, César Antonio da Silva sustenta:
Trata-se, assim, de menor prazo para levantamento do
seqüestro, não se harmonizando, por conseguinte, esse
dispositivo, nesse aspecto, com o disposto no § 1º. do art. 4º.
Por se tratar de medida extremamente violenta, justifica-se o
levantamento do seqüestro uma vez findo o prazo previsto no
art. 131 do Código de Processo Penal porque mais favorável
ao réu. (SILVA, 2001A, p. 141)
Com o devido respeito, ousamos discordar da conclusão supra. Embora o prazo
previsto no Código de Processo Penal seja menor do que a da lei de lavagem para
levantamento do seqüestro dos bens, é de se ver que o legislador, no dispositivo
em comento, excepcionou a regra geral do Código. Desta forma, não há como se
acolher a argumentação supra, data vênia.
As maiores discussões, porém, referem-se ao § 2º. do art. 4º. da lei, que autoriza
o levantamento do seqüestro ou apreensão dos bens, direitos ou valores quando
o autor comprovar a licitude da procedência dos mesmos. Alguns doutrinadores
defendem que há inversão do ônus da prova, o que violaria o princípio da presunção
de inocência. Roberto Delmanto et al chegam a afirmar que “ao assim estipular, o
legislador inverte o ônus da prova, submetendo o acusado a uma verdadeira probatio
diabólica” (DELMANTO et al., 2006, p. 579).
Marcelo Batlouni Mendroni, embora entenda que há a inversão do ônus, defende
a opção legislativa. Assevera que o princípio do devido processo legal pode não
estabelecer a presunção de inocência, o que ocorreria no caso em tela. Afirma o
autor:
[...] é exatamente entregar ao acusado o ônus de comprovar a
licitude dos bens. Quando comprovar, em qualquer momento
78
• Doutrina Nacional
processual, desde que compareça pessoalmente (§ 3º.), os
bens serão liberados. Se não comprovar, advindo sentença
condenatória, como efeito, será declarado o perdimento dos
bens em favor da União, nos estritos termos do inciso I, art. 7º.
da lei, em consonância com o art. 5º., XLVI, ‘b’ da Constituição
Federal (MENDRONI, 2005, p. 121).
Luiz Flavio Gomes, no mesmo sentido, afirma que o que o dispositivo quer dizer é
que “durante o curso do processo, tendo havido seqüestro ou apreensão de bens,
se o acusado, desde logo, já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente,
sem necessidade de se esperar a decisão final” (GOMES, 1998A, p. 11).
Conforme pensamos, não há violação de qualquer princípio constitucional, sendo
legítima a opção legislativa. Entendemos que, como acima colocado, para a
decretação das medidas de seqüestro ou apreensão de bens, haverá necessidade
de que estejam presentes os requisitos do fumus boni iuris e o periculum in mora, vez
se consubstanciam em medidas de natureza cautelar. Destarte, só serão decretadas
as medidas referidas se existirem indícios que autorizem a conclusão de que os
bens, valores ou direitos são provenientes da prática dos delitos da lei em comento.
De outro lado, também como ocorre nas medidas cautelares, cessado um dos
requisitos, a cautelar deve ser revogada. Assim, sobrevindo a ausência da fumaça
do bom direito ou do perigo da demora, impõe-se a revogação da medida, no caso,
o levantamento dos bens. O não oferecimento da denúncia no prazo de 120 dias
(§ 1º.) é indicativo da ausência do fumus boni iuris, motivo pelo qual admite-se o
levantamento dos bens.
Outra hipótese de cessação do fumus boni iuris, é a comprovação de que os bens,
valores ou direitos possuem procedência lícita. Desta forma, não há a inversão do
ônus da prova, como sustentado: há a necessidade da prova, a cargo do Ministério
Público, de que existem indícios de que os bens, valores ou direitos são oriundos
dos delitos de lavagem para a decretação do seqüestro; contudo, havendo provas,
oferecidas pelo indiciado ou acusado de que os bens são de procedência lícita,
comprova-se a ausência do requisito da fumaça do bom direito, e, por conseguinte,
a liberação dos bens.
Lembra César Antonio da Silva que:
[...] também o Código de Processo Penal, em seu art. 120, §
1º. manda o requerente produzir prova para restituição do bem
quando for duvidoso seu direito”. Por outro lado, continua o
autor, “o art. 130, I, ainda do mesmo diploma legal, estabelece
que o seqüestro também poderá ser embargado pelo acusado,
sob o fundamento de não terem os bens sido adquiridos com
os proventos da infração” (SILVA, 2001A, p. 142).
Angelo Ansanelli Júnior •
79
Temos que a sistemática da lei de lavagem, consoante o ensinamento supra, não
difere da do Código de Processo Penal.
Finalmente, o § 3º. do art. 4º. prescreve que “nenhum pedido de restituição será
conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar
a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores, nos casos
do art. 366 do Código de Processo Penal”.
Guilherme de Souza Nucci, embora criticando a redação do dispositivo, entende
que:
[...] se o acusado foi citado por edital e está ausente,
querendo seus bens de volta, o mínimo que se espera é
seu comparecimento pessoal em juízo para reclamar o que,
em tese, legitimamente lhe pertence. No entanto, se não faz
questão da devolução imediata, pode aguardar o final de
instrução. Se for absolvido, os bens serão automaticamente
liberados. Se o quiser antes do término da instrução, deve
buscá-los diretamente. (NUCCI, 2006, p. 428)
O legislador, ao estipular a necessidade de comparecimento pessoal do acusado
para o deferimento da restituição de bens, atendendo ao espírito do art. 2º., § 2º. da
lei, compele o mesmo a vir à juízo. Isso porque, como explica José Paulo Baltazar
Junior, “a exigência de comparecimento do acusado está ligada à própria natureza
do crime em questão, no qual é comum a utilização de laranjas ou testas-de-ferro,
bem como dos nomes de pessoas existentes” (BALTAZAR JÚNIOR, 2000).
7. Conclusões
Após análise dos institutos processuais da lei, podemos chegar às seguintes
conclusões:
1. A competência para os crimes de lavagem de dinheiro é definida em relação aos
tipos antecedentes. Serão de competência da justiça federal quando praticados
contra a ordem socioeconômica ou sistema financeiro nacional e houver previsão
legal a respeito, bem como quando o tipo antecedente também for de competência
da referida justiça.
2. O crime de lavagem é independente do tipo antecedente; contudo, no caso de os
processos de lavagem e do tipo antecedente estarem tramitando, os mesmos deverão
ser reunidos para julgamento conjunto, em face da conexão. A improcedência do
pedido da denúncia referente ao crime antecedente não impede a instauração de
processo pelo crime de lavagem, desde que o fundamento da sentença absolutória
seja a ausência de provas, o reconhecimento de excludente de culpabilidade, ou de
não ter prova de haver “o réu concorrido para o crime”, ou, ainda, por “não ser o réu
o autor”.
80
• Doutrina Nacional
3. A denúncia deverá ser instruída com indícios suficientes do crime antecedente,
sendo que tal previsão não viola qualquer princípio constitucional, vez que, o que
está a se exigir, é que exista justa causa a supedanear a prefacial acusatória.
4. A previsão da não incidência do art. 366 do Código de Processo Penal aos crimes
de lavagem de dinheiro não viola o princípio constitucional da ampla defesa, vez
que trata-se de opção legislativa, em virtude do fato da necessidade da sentença
condenatória nos crimes da lei em comento, para aplicação dos efeitos secundários
da sentença, como o perdimento dos bens e imposição de vedações.
5. A vedação da liberdade provisória não é inconstitucional, em face do disposto no
art. 5º., inciso LVII da Constituição, que admite os benefícios mencionados quando
a lei assim o admitir. Além disso, tal vedação justifica-se pelo fato de os autores
dos crimes de lavagem serem pessoas abastadas que, em liberdade, facilmente
influenciam na instrução probatória.
6. A necessidade de comprovação da licitude dos bens por parte do acusado ou
indiciado não viola o princípio da presunção de inocência, vez que as medidas de
seqüestro ou apreensão de bens só poderão ser deferidas quando existirem indícios
suficientes para adoção de tais medidas.
Finalizando, temos que a lei de lavagem de dinheiro, em que pesem as críticas, é
diploma legislativo que está em consonância com os postulados da Convenção de
Viena, sendo importante instrumento de combate aos crimes nela previstos, bem
como aos tipos antecedentes.
8. Referências bibliográficas
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82
• Doutrina Nacional
Doutrina Nacional
CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS: DA SUMMA DIVISIO
CLÁSSICA À SUMMA DIVISIO CONSTITUCIONALIZADA
HELI DE SOUZA MAIA
Mestrando
RESUMO: Desde a Antigüidade clássica romana, o Direito foi bipartido em
Direito privado e Direito público, sendo o primeiro relacionado aos interesses
dos particulares e o segundo, pertinente ao Estado. As relações horizontais, de
cooperação, associavam-se à esfera do privado e as relações de subordinação
eram afetas ao Direito público. No mundo medieval europeu, a descentralização
política e o conseqüente acúmulo de poder pelos senhores feudais provocaram a
quase completa eliminação da divisão, retomada posteriormente com a ascensão da
burguesia. O ideário liberal, entronizando o indivíduo, e a propriedade ressuscitaram
a summa divisio clássica, consolidando as esferas do público e do particular. Com o
Brasil não foi diferente, uma vez que se estabeleceu, desde tempos remotos, a visão
da dicotomia entre o Direito público e o Direito privado, tão cara ao Estado Liberal e
ao Estado Social. A emergência do Estado Democrático de Direito provocou o debate
sobre a permanência de um paradigma incoerente com a contemporaneidade social,
política e jurídica. Discussões sobre a constitucionalização do Direito civil tornamse freqüentes e emerge a defesa de uma nova summa divisio constitucionalizada,
sustentada e fundamentada pelo Professor Gregório Assagra de Almeida.
PALAVRAS-CHAVE: Summa divisio clássica; Direito Público; Direito Privado;
Summa divisio constitucionalizada.
ABSTRACT: Since the Roman Classical Antiquity Law has been bi-parted in Private
Law and Public Law. The horizontal relations, the cooperation ones, were related to
the private sphere and the subordination relations were related to the public sphere.
During the Middle Ages in Europe, political descentralization and the consequent
accumulation of power by the lords provoked the almost complete elimination of
division, later thrived with the rise of the bourgeuise. The liberal ideal worshiping the
individual and property brought back the classic summa divisio, thus consolidating the
public and private spheres. In Brazil it was not different, since there had been stablished
the dicotomy between public and private law, a notion so dear to the Liberal State
Heli de Souza Maia •
83
and to the Social State. The emergence of the Lawful Democratic State has provoked
the debate on the permanence of a paradigm which is incoherent with the social,
political and juridical contemporarity. Discussions on the constitutionalization of Civil
Law have become more frequent and, therefore, the defense of a new constitutional
summa divisio arises according to the model proposed by Prof. Gregório Assagra de
Almeida.
KEY WORDS: Classic Summa divisio; Public Law; Private Law; Constitutional
Summa divisio.
SUMÁRIO: 1. Considerações sobre direitos e interesses. 2. A summa divisio
clássica: origem, desenvolvimento e superação. 3. Critérios doutrinários sobre a
summa divisio. 4. Summa divisio constitucionalizada. 5. Considerações gerais. 6.
Referências bibliográficas.
1. Considerações sobre direitos e interesses
As palavras “interesse” e “direito” são plurívocas, permitindo inúmeras conceituações.
Na concepção de Ihering, o Direito compunha-se de um elemento substancial, que
é o fim prático do Direito, e de um elemento formal, que é a proteção pela via da
Justiça, sendo para ele, o Direito, um interesse juridicamente protegido1. Rodolfo de
Camargo Mancuso procura distingui-las, esclarecendo que:
Apresenta, ainda,
[...] os interesses legítimos são mais do que interesses simples,
mas menos do que direitos subjetivos. Os interesses simples
referem-se aos anseios, aspirações. Os direitos subjetivos
compreenderiam posições de vantagens, de prerrogativas
que, integrados à esfera patrimonial do indivíduo, recebem
do Estado tutela especial, inclusive no plano jurisdicional. Por
outro lado, os interesses legítimos, diversamente dos direitos
subjetivos, que recebem proteção máxima, receberiam uma
proteção limitada e, assim, não podem ser ignorados ou
preteridos.
[...] uma ordem escalonada de interesses no plano do Direito:
a) interesses individuais, suscetíveis de captação e fruição
pelo indivíduo isoladamente considerado; b) interesses
sociais como interesses pessoais de grupos concebidos
na condição de pessoa jurídica; c) interesses coletivos, os
Tércio Sampaio Ferraz Jr. assim se manifesta sobre o posicionamento de Ihering: “O convívio humano
revela conflitos de interesses. Alguns desses tornam-se juridicamente protegidos pelo ordenamento. O
interesse juridicamente protegido constitui o direito subjetivo. A teoria cobre os casos em que as outras
tinham dificuldade: loucos, crianças e nascituros têm interesses que antecedem ao próprio ordenamento,
o qual, para permitir a convivência da liberdade de um com a de outro, os harmoniza. [...] A concepção,
no entanto, é demasiado privatista, isto é, vê o problema apenas do ângulo do direito privado em que rege
o princípio da autonomia da vontade.” (FERRAZ JÚNIOR, 1998, 142).
1 84
• Doutrina Nacional
quais ultrapassariam as escalas anteriores, mas se limitam a
valores referentes a grupos sociais ou categorias definidas;
d) interesses gerais ou interesses públicos, na condição
de interesses pertinentes à coletividade representada pelo
Estado, os quais se exteriorizam em determinados padrões
estabelecidos (bem comum, segurança pública, etc.) e e) em
um grau mais elevado e mais abrangente do que interesses
públicos ou gerais estariam os interesses difusos, que são
interesses de conteúdo fluído, como a qualidade de vida”
(MANCUSO apud ALMEIDA, 2008, p. 370-371).
Para José Luis Bolzan Morais,
O interesse que revela ao mundo jurídico é aquele qualificado
pela assimilação normativa, ao passo que os demais
permanecem no plano fático, como vantagens almejadas por
alguém. Estes, por serem alheios ao plano jurídico-normativo,
não têm a possibilidade de serem exigidos pelo pretendente à
sua titularidade. (MORAIS apud ALMEIDA, 2008, p. 368-369).
2. A summa divisio clássica: origem, desenvolvimento e superação
As origens da summa divisio clássica devem ser buscadas na civilização romana
antiga2, pois lá está o marco inicial da divisão entre o Direito privado e o Direito
público, embora não se possa querer que se tenha na atualidade a mesma conotação
semântica atribuída aos dois vocábulos. Sua base é uma passagem do Digesto
(533 d.C), publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad
singolorum utilitatem (Direito público é aquele que diz respeito ao estado da coisa
romana, à polis ou civitas; privado, às utilidades dos particulares).
Na lição de Tércio Ferraz Sampaio Junior,
A esfera privada compreendia o reino da necessidade, a
atividade humana cujo objetivo era atender às exigências da
condição animal no homem: alimentar-se, repousar, procriar
etc. A necessidade coage o homem e obriga a exercer um tipo
de atividade para sobreviver. Esta atividade é o labor. O labor
distinguia-se do trabalho. Labor tinha a ver com o processo
ininterrupto de produção de bens de consumo (alimento, por
exemplo), isto é, aqueles bens que eram integrados no corpo
após sua produção e que não tinham uma permanência no
mundo: eram bens que pereciam. A produção destes bens
exigia instrumentos que se confundiam com o próprio corpo [...]
O lugar do labor era a casa [...] e a atividade correspondente
Segundo Joaquim Carlos Salgado, “No Estado Romano, a igualdade é completa somente no direito
privado em que tem sua existência, pois o direito privado é aquele em que a pessoa vale pela realidade
que ela se dá, a propriedade. O mundo do direito é assim um mundo contraditório entre o uno e a multiplicidade, entre a igualdade dos particulares no plano do direito privado e a sua desigualdade no plano do
direito público ou político.” (SALGADO, 1996, p. 184).
2 Heli de Souza Maia •
85
constituía a economia [...]. A casa era a sede da família e as
relações familiares eram baseadas nas diferenças: relação de
comando e de obediência, donde a idéia do pater famílias, do
pais, senhor de sua mulher, de seus filhos e de seus escravos.
Isto constituía a esfera privada. A palavra privado tinha aqui o
sentido de privus, do que é próprio, daquele âmbito em que o
homem, submetido às necessidades da natureza, buscava sua
utilidade no sentido de meios de sobrevivência. Neste espaço
não havia liberdade, pois todos, inclusive o senhor, estavam
sob a coação da necessidade. Libertar-se desta condição era
privilégio de alguns: os cidadãos (cives). [...] O cidadão exercia
sua atividade num outro âmbito: a polis, a cidade. Aí ele se
encontrava entre os seus iguais. Sua atividade própria era a
ação. [...] o terreno da ação era o do encontro dos homens
livres, que se governam. Daí a idéia de ação política, dominada
pela palavra, pelo discurso, pela busca dos critérios do bem
governar, das normas do direito. A vida política constituía a
esfera pública. Sendo das atividades, a mais característica
do ser humano, a ação permitiu a idéia de animal político.
(FERRAZ JÚNIOR, 1998, p. 127-128).
Considera-se, dessa forma, que o marco inicial de tal dicotomia – Direito público,
Direito privado – tenha raízes fincadas no Direito Romano, pois o Corpus Iuris Civilis
consagrava os termos ius publicum e ius privatum, bem como lex publica e lex
privata.
Irineu de Souza Oliveira teceu os seguintes comentários sobre a divisão romana do
Direito:
Preocuparam-se também os romanos em dividir o direito.
A primeira classificação foi apresentada pelo jurisconsulto
Ulpiano, que o separou em dois grandes ramos diferenciados
pelo critério finalístico ou teleológico, isto é, pelo fim a que
se destinam as normas de uma e de outra espécie. Ensina
Ulpiano: ‘Neste estudo, duas são as posições: a do público
e a do privado. O direito público é o que diz respeito à
organização do Estado romano; o privado é o que interessa
aos particulares’. [...]
Essa definição resultou dicotômica, também por influência de
uma corrente filosófica grega, defendida por Heráclito e Próculo,
segundo a qual tudo poderia ser explicado pelo princípio dos
pares opostos em que se decompunha o absoluto, ou seja:
se percebemos o frio, podemos conhecer o calor; se temos
idéia do que é o mal, saberemos avaliar o bem; se obtivermos
a noção do justo, poderemos identificar a justiça; e assim
sucessivamente.
De tal modo, dividindo-se o direito em duas partes contrárias,
ficará mais fácil entendê-lo e conceituá-lo, pois, em oposição,
uma das partes levará naturalmente ao conhecimento da outra.
(OLIVEIRA, 1998, p. 14).
86
• Doutrina Nacional
Sobre a clássica divisão, ensina Miguel Reale que:
[...] a primeira divisão que encontramos na história da Ciência do
Direito é a feita pelos romanos, entre Direito Público e Privado,
segundo o critério da utilidade pública ou particular da relação:
o primeiro diria respeito às coisas do Estado (publicum jus est
quod ad statum rei romanae speciat), enquanto que o segundo
seria pertinente ao interesse de cada um (privatum, quod ad
singulorum utilitatem spectat). (REALE, 2002, p. 339).
Como se sabe, o Império Romano do Ocidente começou a ruir já nos primeiros
séculos da Era Cristã, mas o ano de 476 é considerado o marco cronológico entre a
Idade Antiga e a Idade Média, afiançando o fato de que sua queda foi extremamente
significativa.
Deixando de existir o Império Romano, a sociedade medieval vai se moldando e
se organizando em feudos, onde o direito consuetudinário e localizado garantia
proteção a uns e poder a outros poucos, tudo através de uma teia de compromissos
e pactos. Vale recordar que a sociedade feudal era rigidamente hierarquizada,
estamental, e baseada em laços de vassalagem e servidão, com um poder político
central esfacelado e, portanto, residindo na pessoa do senhor feudal. Em decorrência
da descentralização territorial da vida social, econômica e política não existia uma
esfera pública propriamente dita, estando assim o interesse público submetido,
dependente das relações privadas.
Na baixa Idade Média, profundas alterações3 começam a afetar a sociedade, inclusive
o surgimento dos primeiros embriões de Estados Nacionais, que adotaram a forma
de Estados Absolutistas, onde o monarca incorporava e detinha em suas mãos
todos os poderes. Assim, a esfera pública autônoma passou a inexistir, residindo
nela o poder soberano, uno, absoluto e indiviso (ZAINAGHI, 2000, p. 132). O público
estava atrelado ao privado, ou seja, estava na dependência das relações privadas.
Eugênia Sales Wagner, distingue as relações público-privadas da Idade Antiga das
estabelecidas durante a Idade Média. Na opinião da autora,
O abismo que os antigos precisavam atravessar, ao transitarem
do espaço privado para o espaço público, e que era uma
passagem das trevas privadas para o esplendor público,
esteve presente, também, na Idade Média, ainda que um tal
abismo não fosse, aí, uma passagem da esfera familiar para a
esfera política [...]
As atividades componentes da vita activa estavam restritas,
na Idade Média, à esfera privada, que apresentava aspectos
Dentre tantas alterações significativas, merecem destaque o renascimento comercial, o renascimento
urbano e o início do processo de fortalecimento do poder na figura do rei. Não é objetivo deste trabalho
voltar-se à análise histórica deste momento, embora ele seja relevante – pois nele se alteram as relações
sociais, econômicas e políticas, o que acabará por refletir na divisão entre o direito público e privado.
3 Heli de Souza Maia •
87
distintos da esfera privada dos antigos. A justiça, diferentemente
daquela que era estabelecida pelo chefe de família, era
administrada na forma de leis pelo senhor feudal e as relações
humanas, por sua vez, encontravam-se ajustadas ao molde
familiar. (WAGNER, 2000, p. 162)
Simultaneamente ao processo de mudança política e social, a economia vai se
ancorando cada vez mais em uma nova forma de produzir, voltada para o mercado
e para a conseqüente geração de excedentes que possam atender a este mercado
em fase de expansão4. Nascia o capitalismo, como nova modalidade de organização
produtiva, ou, em uma leitura marxista, um novo modo de produção. Não dissociado
deste processo assiste-se também a uma relativa polarização de classes sociais,
tendo de um lado a burguesia e de outro o proletariado. O Estado nascente consolidou
os interesses e anseios dessa primeira classe social, ou seja, da burguesia.
A burguesia fortalecida a partir dos séculos precedentes encontra motivos para
atacar o Estado Absolutista, tendo o iluminismo dado o sustentáculo ideológico para
isso. As monarquias absolutistas, confundidas com o próprio Estado, passam a ser
vistas como inimigas das liberdades individuais, pois qualquer restrição ao individual
em favor do coletivo era tida como ilegítima (ZAINAGHI, 2000, p. 132).
Neste contexto histórico, movimentos pela afirmação da burguesia, pelas liberdades
individuais, pelo fim do mercantilismo, pela deposição das monarquias absolutas
e pela independência das colônias ganham força no cenário europeu e mundial.
Surge, também, a produção de inúmeros documentos que consagram esta nova
concepção, sendo exemplos contundentes a Declaração de Direitos da Virgínia,
Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão.
Ganham vida, ainda no final do século XVIII, as primeiras Constituições ditas liberais
e que tutelavam, primordialmente, os direitos fundamentais de primeira geração.
Sobre os direitos de primeira geração, afirmou Paulo Bonavides:
Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm
por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzemse como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma
subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são
direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.
[...] São por igual direitos que valorizam primeiro o homem4 Vale ressaltar que, entre a Baixa Idade Média e o início da Idade Moderna, há um período de transição,
em que ocorrem mudanças em torno da vida social, econômica, política e jurídica. Na avaliação de Michele Costa da Silveira, “Durante o séc. XIII até o séc. XVIII, a distinção entre direito público e direito
privado se esvanece, em razão de que a discussão que então predomina no Direito é a precedência do
direito natural em relação ao direito positivo, quando a comunhão até então existente entre indivíduo e
Estado é rompida, e são reconhecidos ao homem direitos naturais, inerentes e privados, inderrogáveis
pelo direito positivo ou pela autoridade civil.” (SILVEIRA, 2002, p. 26).
88
• Doutrina Nacional
singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da
sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade
civil, da linguagem jurídica mais usual. (BONAVIDES, 2003,
p. 563-564)
Os direitos de primeira geração são os concernentes à liberdade e vistos como
direitos negativos (não agir). Estão relacionados com os direitos civis e políticos,
com a liberdade de expressão religiosa e comercial. Acima de tudo, são direitos
individuais e frutos de um Estado Liberal. Sobre tais direitos, Edson Passeti e Salete
Oliveira assim se manifestaram:
O sentido do conceito de tolerância foi construído no início da
Modernidade a partir da consciência da diversidade humana.
Seu valor central é a liberdade de pensamento e expressão
e dele decorre uma idéia de igualdade restrita à esfera dos
direitos civis.
Sobre este fundamento axiológico, foi redigido o conjunto
dos direitos humanos contidos na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, de 1789. Em
seu primeiro artigo, os valores da liberdade e da igualdade
civil já estão claramente expressos: ‘Os homens nascem
e permanecem livres e iguais em direitos [...]’. E o segundo
artigo define como direitos naturais a liberdade, a propriedade,
a segurança e a resistência à opressão, e os identifica como
direitos civis e políticos. São justamente aqueles que garantiam
a cidadania e o poder à classe burguesa.
[...]
Como frisamos, o valor igualdade, de que fala a Declaração
de 1789, restringe-se à igualdade jurídica e civil, sem estendela à realidade sócio-econômica dos cidadãos. Esta idéia
de igualdade decorre do fato de os direitos humanos serem
concebidos a partir do valor liberdade e restrito a três domínios:
a liberdade de consciência, a liberdade de autodeterminação
e associação entre os indivíduos. Historicamente, direitos
civis e políticos ficaram conhecidos como direitos humanos
de primeira geração, ou simplesmente direitos de liberdade.
(PASSET; OLIVEIRA, 2005, p. 49).
Alcança relevo o movimento codificatório, objetivando assegurar o maior espaço
possível para a autonomia dos indivíduos, sobretudo na seara econômica, uma vez
que a dimensão econômica do homem é destacada na sociedade marcada pelo
liberalismo. E o Direito privado alcança o maior realce, com fortes cores positivistas,
norteado pelo rigor das formas e excessivo apego às normas escritas. Confiavase ao Direito privado a tarefa hercúlea de prever todas as possibilidades fáticas
em enunciados normativos reduzidos a uma codificação.5 Bom exemplo é o Código
5 “O século XIX foi o século das grandes codificações. Os modelos implantados nesta época, denominados códigos oitocentistas eram rígidos, fechados, estáticos e totalizantes. Constituíam-se de sistemas
impermeáveis às modificações econômicas e sociais que eram resultado do positivismo neutralizante,
liberal-individualista e do racionalismo que reinavam na época.” (ALMEIDA, 2007, p.2).
Heli de Souza Maia •
89
Napoleônico6, advindo com a crescente influência da burguesia e do espírito liberal,
sendo, portanto, fruto das doutrinas individualistas e voluntaristas. Nele o Direito civil
foi identificado com o próprio Código Civil. A dicotomia entre Direito privado e Direito
público era visível e palpável, pois ao primeiro se entregava a regulação das relações
estabelecidas entre os indivíduos e os assuntos referentes à capacidade, à família
e à propriedade, com fito de garantir o desenvolvimento das atividades econômicas.
Assumiu, assim, papel preponderante no ordenamento jurídico. Já ao segundo, ao
Direito público, ficava destinada a tutela dos interesses gerais e, mesmo assim, se
os efeitos de tais atos fossem uma exigência dos próprios indivíduos.
Considera-se modernidade7, ou tempos modernos, o período histórico que sucede
ao medieval e apresenta marcantes acontecimentos. A reforma protestante, por
exemplo, foi extremamente significativa, uma vez que pôs fim ao monopólio católico
do cristianismo e, além disso, foi o grande símbolo da liberdade.8 Outro fato histórico
marcante dessa fase da história é o iluminismo, também conhecido como Século
das Luzes e Ilustração. Em linhas gerais, duas idéias básicas foram comuns a
todos os pensadores iluministas: a razão, como único guia infalível para se chegar
ao conhecimento e à sabedoria e a crença de que o universo não é submetido a
interferências e vontades divinas, mas que é uma máquina comandada pelas
leis físicas que podem ser determinadas e estudadas. Dentre tantos pensadores
6 “Como se sabe, os códigos oitocentistas foram fruto de transformações revolucionárias e se antepunham
aos costumes e aos preconceitos que caracterizaram suas épocas e que justificaram as revoluções. Assim
se deu, também, com o mais famoso de todos eles, o Código Francês de 1804, de inspiração racionalista,
que pretendeu aprisionar, imutavelmente, normas completas, claras, de interpretação linear, e que não admitia a existência de lacunas ou de episódios não previstos, exatamente porque a sistematização abrangia
– ou pretendeu abranger – todos os problemas jurídicos que pudessem ser suscitados. Daí a sua pretensa
eternização.” (HIRONAKA, 2003, p.97).
7 Segundo Liszt Vieira (1997, p. 21-22) “A dicotomia universal-particular expressa no conflito Estado x
indivíduo do período moderno encontra suas raízes na filosofia medieval. De um lado, a escolástica de
Tomás de Aquino retoma a tradição aristotélica ao subordinar o particular ao universal concebido idealmente como um todo. De outro, a concepção nominalista de Guilherme de Occan substitui a preocupação
aristotélica com o geral pelas substâncias individuais. Só são reais os seres singulares designados por
nomes próprios. Os universais não tem existência real, pois o mundo não é um cosmo ordenado, mas um
agregado de individualidades isoladas que são a base da realidade.
O individualismo e o pragmatismo da cultura anglo-saxã derivariam da tradição nominalista, enquanto
nos países latinos, sobretudo na cultura ibérica, teria prevalecido a tradição neo-escolástica que suavizou
o individualismo moderno, temperando-o com ênfase no público, no Estado, no todo, em lugar do privado, do individuo, do particular.”
8 A liberdade religiosa deve ser relativizada, pois em diversos reinos, os súditos deviam seguir a religião
de seus monarcas. Afora isso, a inquisição impedia manifestações religiosas diferentes da católica em
diversos países, tendo encontrado maior influência em Portugal e Espanha.
90
• Doutrina Nacional
iluministas sobressaem Diderot9, Montesquieu10, Voltaire11, Rousseau12 e Adam Smith13.
Importante também foi a Revolução Francesa e seus desdobramentos. Pondo fim ao
absolutismo e ao mercantilismo, ela sepultou o Antigo Regime e inaugurou para o
mundo uma nova era, a era do Estado de Direito.
As idéias dominantes da razão iluminista são a ciência e a racionalidade, as liberdades
individuais, os direitos do cidadão, o jusracionalismo, a racionalização e a sistematização
do Direito, a primeira onda de codificação, o individualismo (a grande razão de ser do
Direito seria o próprio indivíduo), a concepção unitária e abstrata do sujeito de direito.
Denis Diderot era racionalista, defendia o liberalismo político e mostrava-se teísta. Foi atribuída a ele
a famosa frase: “Os homens só serão livres quando o último rei for enforcado com nas tripas do último
padre”, em uma clara condenação do absolutismo e da tentativa de domínio do pensamento pela Igreja.
“Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu,
e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de gozar dela logo que goze da razão... Todo outra autoridade (que a paterna) vem duma outra origem, que não é a da natureza. Examinando-a bem, sempre se fará
remontar a uma destas duas fontes: ou a força e a violência daquele que dela se apoderou; ou o consentimento daqueles que lhe são submetidos, por contrato celebrado ou suposto entre eles e a quem deferiram
a autoridade. O poder que se adquire pela violência não é mais que uma usurpação e não dura senão pelo
tempo por que a força daquele que comanda prevalece sobre a daqueles que obedecem [...]. O poder que
vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que tornem o seu uso legítimo útil à
sociedade, vantajoso para a República, e que o fixem e restrinjam entre limites; pois o homem não pode
nem deve dar-se inteiramente e sem reserva a outro homem.” (DIDEROT, 1997, p.22-23).
10 Montesquieu tornou-se conhecido principalmente por sua obra O espírito das leis, onde desenvolveu a
teoria da separação dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário.
11 Foi um árduo defensor das liberdades individuais (“Posso não concordar com uma só palavra do que
disseres, mas me baterei a vida toda pelo direito que tens de dizê-las.”) e contrário ao absolutismo e à
tirania da Igreja (“Se Deus criou o homem, o homem pagou-lhe na mesma moeda.”).
12 “Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é, em certo sentido, difícil de ser enquadrado entre os filósofos
iluministas. Naturalista, criticava aqueles que elevavam a razão à categoria de uma verdadeira deusa.
Enquanto Voltaire e Montesquieu expressavam os ideais da burguesia francesa, Rousseau representou o
pensamento das camadas populares da época. Exigia uma República e afirmava que a fonte de poder era o
próprio povo. Em seu livro Da origem da desigualdade entre os homens, Rousseau afirmava: ‘O primeiro
que concebeu a idéia de cercar uma parcela de terra e de dizer ‘isto é meu’, e que encontrou gente suficientemente ingênua que lhe desse crédito, este foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos
delitos, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a o gênero humano aquele que, arrancando
as estacas e enchendo os sulcos divisórios, gritasse: ‘cuidado, não dai crédito a esse trapaceiro, perecereis
se esqueceres que a terra pertence a todos’.
Rousseau, entretanto, apesar de considerar a aparição da propriedade privada um mal, reconhecia-a como
inevitável. A solução que propunha era a limitação da propriedade. ‘Para melhorar o estado social, é preciso que todos tenham o suficiente e que ninguém tenha demasiado’. Suas teorias teriam larga aceitação
entre a pequena burguesia (artesãos e camponeses) e as camadas de trabalhadores mais miseráveis que
sonhavam com um mundo onde todos fossem pequenos proprietários.
A principal obra de Rousseau foi O Contrato Social, onde advogava que a sociedade e o Estado nascem
segundo convênio entre as diversas pessoas, em benefício de seus interesses comuns. O poder, ou soberano, é o próprio povo. Rousseau assumia, dessa forma, o papel de crítico da ordem burguesa, antes mesmo
que ela se estruturasse definitivamente na França.” (MELLO, 1993, p.87-88).
13 Adam Smith é considerado o pai do liberalismo econômico. Em sua obra A riqueza das nações, defendeu a teoria de que a economia funcionava sozinha, sem intervenção do Estado, através de uma “mão
invisível”. Seu pensamento exerceu profunda influência nas doutrinas econômicas do século XX.
9 Heli de Souza Maia •
91
Na lição de Francisco Amaral:
Os postulados do Estado Moderno, ou de Direito são os
mesmos do direito privado, donde a conveniência de se
focalizar, agora, o Estado Liberal de Direito. Suas principais
características seriam:
a) o primado da lei, no sentido de que todos os poderes
derivam da lei, que é a realização da vontade popular.
Todos os poderes dela derivam porque a lei prevê e regula
comportamentos abstratos e gerais, válidos e obrigatórios
para todos, sem distinção, e perante a lei, todos seriam iguais
(igualdade formal);
b) divisão de poderes, legislativo, executivo e judiciário,
correspondentes a três momentos diversos do processo
normativo: formação, aplicação e execução das leis. Tal
separação representaria o resultado histórico da luta contra o
absolutismo dos reis, em nome dos direitos do povo, de modo
que só a vontade geral poderia produzir regras vinculantes
para todos, por meio do Parlamento. Os juízes, não tendo
investidura popular, não seriam representantes do povo, não
teriam assim, poder legislativo. Seriam, apenas, a boca da
lei e a sua decisão seria meramente silogística. E a própria
administração pública, o Estado em si, não pode agir senão de
modo conforme às leis. É o princípio da legalidade.
c) Generalidade e abstração das regras jurídicas.A condição
de aplicação das normas jurídicas compreenderia todas
as pessoas da comunidade (generalidade), não apenas
determinadas categorias sociais, e referir-se-ia a uma classe
infinita de ações (abstração), adequadas à hipótese de
aplicação, a chamada fattispecie;
d) Distinção entre direito público e direito privado, entendendose aquele como ‘o conjunto de normas com as quais o Estado
determina a própria estrutura organizativa e regula as relações
com os cidadãos’, as normas de direito privado teriam a
sua aplicação deixada à iniciativa individual, tendo assim o
particular a disponibilidade do processo, o que é hoje o princípio
dispositivo do processo civil. Além disso, as normas de direito
privado destinar-se-iam à tutela dos interesses particulares,
e não aos da coletividade; seriam dispositivas, no sentido de
que permitiriam ao particular dispor como lhe aprouvesse,
só se aplicando na falta de ‘expressa vontade contrária dos
interesses privados’. Seriam, também, derrogáveis. (AMARAL,
2003, p. 70-71).
Ao lado do Estado Liberal de Direito, ergue-se o Estado Social de Direito. Aquele
fora marcado pelo primado da lei, pela divisão de poderes, pela generalidade e
abstração das regras jurídicas, pela distinção entre Direito privado e Direito público,
pela racionalização da vida jurídica e pela subjetividade jurídica. Este outro, o Estado
Social de Direito, apresenta outras características, tais como: a) intervencionismo
92
• Doutrina Nacional
estatal na ordem social, ofertando serviços sociais, principalmente na área da
educação, saúde e previdência, através de uma bem-sucedida rede de proteção
social; b) respeito integral às liberdades fundamentais, como o direito de greve, de
locomoção e de expressão; c) direitos fundamentais ampliados para os campos
econômico, social e cultural; d) consecução do bem-estar social; e) igualdade
substancial e não meramente formal; f) solidariedade. Enfim, um Estado marcado
pela implementação dos direitos de terceira geração14 (incorporando, obviamente,
as outras duas gerações), sem abandonar a dicotomia Direito privado e Direito
público.
Na contemporaneidade, com tantas modificações, tantas transformações, com
tamanha complexidade e diversidade, é pacífico o entendimento sobre a insuficiência
da possibilidade de os modelos jurídicos tradicionais oferecerem respostas e servirem
de remédio aos males que afligem esta nova sociedade, mundializada, globalizada,
numa demonstração inequívoca de superação da summa divisio tradicional, como
demonstra Maria Celina B. Moraes:
Defronte de tantas alterações, direito privado e direito público
tiveram modificados seus significados originários: o direito
privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito
público não mais se inspira na subordinação do cidadão. A
divisão do direito, então, não pode permanecer ancorada
àqueles antigos conceitos e, de substancial – isto é, expressão
de duas realidades herméticas e opostas traduzidas pelo
binômio autoridade – liberdade – se transforma em distinção
meramente 'quantitativa': há institutos onde é prevalente
o interesse dos indivíduos, estando presente, contudo, o
interesse da coletividade; e institutos em que prevalece, em
termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre
funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses
individuais e existenciais dos cidadãos.
Mais: no Estado Democrático de Direito, delineado pela
Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu
definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de
construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de
erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é,
os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico
brasileiro, de modo que tal é o valor que conforma todos os
ramos do Direito. (MORAES, 1991, p. 4).
Sobre os direitos de terceira geração: “Na segunda metade do nosso século (XX), surgiram os chamados ‘direitos de terceira geração’. Trata-se dos direitos que tem como titular não o indivíduo, mas grupos
humanos como o povo, a nação, coletividades étnicas ou a própria humanidade. É o caso da autodeterminação dos povos, direito ao desenvolvimento, direito a paz, direito ao meio ambiente, etc. Na perspectiva
dos ‘novos movimentos sociais’, direitos de terceira geração seriam os relativos aos interesses difusos,
como direito ao meio ambiente e direito do consumidor, além dos direitos das mulheres, das crianças, das
minorias étnicas, dos jovens, anciãos etc.” (VIEIRA, 1997, p.23).
14 Heli de Souza Maia •
93
Dentre os aspectos relevantes, sobressaem: a) a incapacidade de dar respostas a questões
fundamentais como justiça social e o bem-comum; b) retorno ao irracionalismo, no sentido de
oposição à razão totalizadora; c) passagem do individualismo ao solidarismo; d) pluralismo
das fontes de Direito; e) individualização e concretude das normas; f) sociedade de risco;15 g)
superação do formalismo jurídico; h) constitucionalização do Direito privado;16 i) descodificação
do Direito civil;17 j) relativização da dicotomia Estado x sociedade e Direito público x Direito
privado; l) ampliação, consolidação e reconhecimento do terceiro setor;18 m) superação da
Para o Professor Pierpaolo Cruz Bottini, “A sociedade de risco é fruto do desenvolvimento do modelo
econômico que surge na Revolução Industrial, que organiza a produção de bens por meio de um sistema
de livre concorrência mercadológica. Este modelo econômico exige dos agentes produtores a busca por
inovações tecnológicas que permitam a produção e a distribuição de insumos em larga escala, sob pena
de perecimento por obsolescência. [...] A criação de novas técnicas de produção não é seguida pelo desenvolvimento de instrumentos de avaliação e medição dos potenciais resultados de sua aplicação. Do
descompasso entre surgimento de inovações científicas e o conhecimento das conseqüências de seu uso
surge a incerteza, a insegurança, que obrigam o ser humano a lidar com o risco sob uma nova perspectiva.
O risco, fator indispensável ao desenvolvimento econômico de livre mercado, passa a ocupar papel central no modelo de organização social. O risco torna-se figura crucial para a organização coletiva, passa a
compor o núcleo da atividade social, passa a ser sua essência. Surge a sociedade de riscos.” (BOTTINI,
2007; p. 33-34).
16 Segundo o Professor Luis Roberto Barroso a expressão constitucionalização do direito privado está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia,
com força normativa, por todo o sistema jurídico, pois os valores, os fins públicos e os comportamentos
contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de
todas as normas do direito infraconstitucional. (BARROSO, 2007).
17 Neste sentido, o Professor Gregório Assagra de Almeida ensina que “Em razão da grave crise resultante
da inadequação dos sistemas jurídicos implantados nos códigos civis clássicos e, pela mesma simetria,
nos códigos de processos civis como seus correspondentes naturais, houve a necessidade de criação dos
denominados microssistemas (polissistemas ou plurissistemas) ou estatutos especiais, também conhecidos como códigos setorizados.
Os sistemas de direito civil e de direito processual civil até então implantados, pela generalidade, pela
abstração e impermeabilidade às mudanças sociais, não respondiam bem aos anseios da sociedade massificada. Questões relacionadas não só ao consumidor, mas também à criança e ao adolescente, ao ambiente, aos portadores de necessidades especiais, aos idosos etc., ficavam à margem da tutela jurídica
adequada como garantia constitucional fundamental de um sistema jurídico justo e democrático.
15 [...]
Os sistemas auto-suficientes, impermeáveis às mudanças sociais, começam a ser abalados com a criação
cada vez mais incessante dos microssistemas como a expressão do particularismo jurídico necessário
para atender a peculiaridades de muitos direitos materiais, especialmente de cunho social. A própria idéia
clássica de legislação geral e abstrata teve de ser abandonada para uma concepção mais particularizada.”
(ALMEIDA, 2007, p. 29-30).
18 “O Terceiro Setor tem sido identificado com o conceito de sociedade civil. É formado pelas entidades
jurídicas não governamentais, sem finalidade lucrativa, objetivando o bem da coletividade. A natureza
jurídica deste setor ainda está em construção, havendo, por conseguinte, diversos conceitos para defini-lo,
uns o descrevem como sendo o setor solidário, outros como sendo setor coletivo, independente. Há quem
o classifique como integrante do Direito Social. Importa destacar o objetivo perseguido pelo Terceiro
Setor, composto por organizações ou instituições dotadas de autonomia, que apresentam como função e
objeto principal a atuação voluntária junto à sociedade civil, visando o seu aperfeiçoamento. Inquieta-se,
essencialmente, com os homens e a propagação da justiça social entre eles. Preocupa-se com o desenvolvimento humano e maior equilíbrio social. As entidades que integram o Terceiro Setor originaram-se a
94
• Doutrina Nacional
divisão de poderes na criação e aplicação do direito; n) superação da idéia de que o Direito é
um sistema de normas hierárquicas e axiomáticas; o) personalização do Direito civil19.
3. Critérios doutrinários sobre a summa divisio
O Professor Gregório Assagra de Almeida apresenta criticamente os seguintes
critérios teóricos sobre a summa divisio clássica, como segue:
[...] a summa divisio encontra fundamentação nos interesses
em jogo, ou seja, se o interesse for público, o direito é público,
e no lado oposto, se prevalecer o interesse privado, tratar-se-á
de direito privado20; (b) quanto à natureza jurídica das relações
estabelecidas pelos sujeitos, será público se houver uma
relação de autoridade (Estado) e de subordinação (cidadão) e,
ao contrário, a natureza jurídica será de direito privado, se as
relações forem horizontais;21 (c) a análise, segundo o critério
subjetivo, levará em conta o fato de que o direito público é
o que atua quando nas relações jurídicas está o Estado e
no direito privado, quando nas relações não está presente o
Estado; (d) quanto ao modo de proteção das normas de direito
público e de direito privado deve-se considerar que no primeiro
cabe ao Estado a função de garantir a reintegração da norma
se seu interesse for violada e no segundo cabe ao indivíduo
a atualização e defesa de seus interesses, se violados.
(ALMEIDA, 2007, p. 389).
partir dos movimentos sociais, que funcionam como interlocutores, e transformaram-se em importantes
instrumentos para a consecução de uma nova dinâmica social e democrática, em que as relações são
orientadas pelos laços de solidariedade entre os indivíduos, espírito voluntariado, consenso e anseio do
bem comum.” (SOUZA, 2008).
19 O Professor Francisco Amaral (1998, p. 147) explica: “Personalização do direito civil, no sentido de
crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria de direitos e de
princípio fundamental da Constituição Federal. O princípio da subjetividade jurídica do direito moderno,
expresso na figura do sujeito de direito como centro de atribuição de direitos e deveres, evolui para o
princípio do personalismo ético, da época contemporânea, segundo o qual todo ser humano é pessoa,
individual e concreta. O homem, porque é pessoa em sentido ético, é um valor em si mesmo”.
20 Analisando-se os critérios apresentados, não há como discordar das críticas devidamente fundamentadas e expressas pelo autor, que, em síntese, assim se manifesta: “Nota-se que todos os critérios apresentados são falhos e impedem uma tutela jurídica ampla, integral e irrestrita, própria do Estado Democrático
de Direito. Eles fundamentam-se no dualismo que separa Estado da Sociedade, hoje incompatível com
o novo paradigma do Estado Democrático de Direito e inconciliável com uma teoria dos direitos fundamentais integral, democrática e transformadora, como a inserida na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988. Nenhum dos critérios volta-se para a conjugação entre os planos da titularidade e da
proteção e efetivação dos direitos. Atualmente, o plano da efetivação dos direitos é o campo mais farto e
próprio para uma ciência jurídica, direcionada para a construção de uma dogmática crítica e transformadora.” (ALMEIDA, 2007, p. 389).
21 Nas palavras do Professor Luis Fernando Coelho, “A esta corrente filia-se uma plêiade de renomados
juristas, entre os quais Radbruch, Thon, Jellinek, [...] As relações de coordenação, cujos sujeitos estão
em pé de igualdade, são estabelecidas pelo direito privado; as de subordinação, em que um dos sujeitos
aparece revestido de autoridade ou imperium, constituem o âmbito do direito público.” (COELHO, 2004,
p. 92-93).
Heli de Souza Maia •
95
Já o Professor Luiz Fernando Coelho analisa a teoria do interesse (e tece críticas a
ela), conforme se vê:
A primeira (teoria do interesse) é derivada da distinção romana.
Seu fundamento é a contraposição real entre o interesse geral,
identificado com o do Estado, e o particular, considerados,
necessariamente opostos entre si, reflexo da oposição entre o
indivíduo e a coletividade.
[...]
Ora, saber, em determinada relação jurídica, se está em jogo
o interesse coletivo ou se é o individual que deve ser tutelado
depende muito mais do intérprete, do ponto de vista pessoal,
do que do conteúdo das normas e relações jurídicas.
Acresce que hoje em dia já não se identifica o interesse da
sociedade com o do Estado, pois ocorrem interesses coletivos
e difusos que muitas vezes são e devem ser exercidos contra o
interesse do Estado, ao menos de seus representantes.
[...]
Savigny e Sthal identificaram, no critério teleológico, a
prevalência das finalidades das regras de direito. O direito
público tem como fim o Estado e, no privado, o Estado é apenas
um meio para atingir o seu fim, os indivíduos; estes, em relação
ao direito público, são considerados, secundariamente, como
membros da organização social, ao contrário do privado, que
os considera individualmente.[...]
[...] alguns autores têm procurado estabelecer como critério
distintivo o tipo de conduta normativamente conceptualizada.
[...] Ora, em termos extremados, a existência interpessoal
é o reino do direito privado, que objetiva a relação de
interdependência dos sujeitos; a existência transpessoal é o
reino do direito público, com o fito de integrar o indivíduo na
sociedade. (COELHO, 2004, p. 90-91)22
Há ainda a corrente negativista cujo maior expoente foi Hans Kelsen, partindo-se da
premissa de que o sistema jurídico é inquebrantável, filiando-se desta forma a uma
concepção normativa finalista.
A corrente do Direito misto assegura que não há sustentação para a summa
divisio clássica, asseverando que, entre o Direito privado e o Direito público, está o
Direito misto, tutelando o interesse coletivo. Decerto que não representa alteração
substancial da tradicional classificação, não rompendo com suas amarras autoritárias
e liberalistas.
A obra continua a analisar as demais teorias citadas. A formalista está centrada em critérios baseados
na forma assumida pelas relações jurídicas, sendo o primeiro deles a natureza das relações jurídicas e o
segundo, o modo como as normas jurídicas se fazem valer.
22 96
• Doutrina Nacional
4. Summa divisio constitucionalizada
A sociedade brasileira conviveu durante longo período com a divisão entre o Direito
público e o Direito privado, seguindo tradição mundial e demonstra estar em seus
estertores finais. Já não se consegue imaginar o Direito bipartido nos moldes
tradicionais. O Direito tem sua gênese a partir de regras e princípios que, em última
análise, buscam a realização dos anseios da sociedade, ou seja, é um fenômeno
histórico em permanente evolução.
Sob a égide do Estado Liberal ou do Estado Social, aceitava-se a permanência da
summa divisio clássica, estabelecendo duas esferas, a do Direito público e a do Direito
privado. Com o Estado Democrático de Direito, ela não encontra mais condições de
permanecer no ordenamento. De acordo com Maria Celina B. de Moraes,
[...] a separação do direito em público e privado, nos termos em
que era posta pela doutrina tradicional, há de ser abandonada.
A partição, que sobrevive desde os romanos, não mais traduz
a realidade econômico-social, nem corresponde à lógica do
sistema, tendo chegado o momento de empreender a sua
reavaliação. (MORAIS, 1993, p. 25).
No Brasil, inequivocamente, a Constituição Federal de 1988 rompeu com a summa
divisio clássica ao dispor, no Capítulo I, Título II, sobre Os Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos. Os fundamentos constitucionais que sustentam a tese são
do Professor Gregório Assagra de Almeida (2008, p. 380). Ei-los, apresentados de
forma sucinta:
1. Há expressamente a previsão de ação popular e esta deve ser vista sob o prisma
de garantia constitucional fundamental, sendo inserida no rol dos direitos coletivos
fundamentais. Nas palavras de Paulo de Tarso Brandão,
[...] a ação popular é instrumento processual de cunho
constitucional, sendo, ao mesmo tempo, garantia constitucional
do cidadão. Salvo, portanto, alguns aspectos de procedimento
– não de processo -, não guarda qualquer identidade com o
Processo Civil.
Instrumento de defesa das liberdades públicas, eis a
comprovação do que foi dito anteriormente, ou seja, que se
trata de instrumento vocacionado à tutela de ‘novo’ direito.
Instrumento de patamar constitucional, eis a sua diferença
para o Processo Civil. Processo Constitucional, portanto. Seu
exercício, de outro prisma, constitui um direito fundamental.
(BRANDÃO, 2008, p. 376).
2. Funções institucionais do Ministério Público: promover o inquérito civil e a ação
civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos.
Heli de Souza Maia •
97
3. Em um Estado Democrático de Direito, não se separam os direitos do próprio
Estado de um lado e os direitos individuais e coletivos do outro. O dualismo próprio
do Estado Liberal não se coaduna com o atual modelo de Estado. A dicotomia
Estado e sociedade restou superada, relegando ao abandono, por sua vez, a divisão
tradicional entre Direito público e Direito privado. Indubitavelmente este fundamento
é basilar, próprio do modelo de Estado edificado pela Constituição da República e
adequado ao momento atual.
4. É imprescindível a aferição do Direito no plano da titularidade e da forma de sua
proteção e efetivação material, não se atendo à análise da natureza da norma jurídica
ou da relação jurídica ou da sua utilidade.
5. Considerações gerais
Procurou-se demonstrar, nas páginas anteriores, que a divisão entre Direito público
e Direito privado remonta, no mínimo, à civilização romana antiga, pois, para os
jurisconsultos romanos, o Direito público versava sobre o modo de ser do Estado
romano, enquanto o Direito privado versava sobre os interesses dos particulares. O
mundo medieval, com sua organização feudal marcada pela descentralização política
e uma forma peculiar de organização social, viu ficar adormecida a tradicional summa
divisio, pois os senhores feudais tomaram para si o que poderia ser o Direito público,
confundindo-o com o Direito privado. As lentas modificações operadas no feudalismo, a
partir do século XII, erigiram a sociedade chamada de moderna, que cronologicamente
vai de 1453 a 1789. Denominada de Antigo Regime, estava alicerçada no Absolutismo
e no Mercantilismo23. O monarca centralizava e controlava todos os poderes e, com
isso, possibilitou a criação de uma esfera autônoma do poder público. Na aurora do
liberalismo anunciada pelas revoluções burguesas, o poder público passou a ser visto
como inimigo e as declarações de direito e cartas constitucionais delas derivadas
registraram e consagraram os ideais liberais, os direitos de primeira geração e os
limites da ação do Estado, ampliando e resguardando a autonomia dos indivíduos e
os princípios da legalidade e da segurança jurídica. Ganham contornos importantes os
movimentos em prol da codificação que influenciam sobremaneira o Direito privado.
A divisão entre Direito público e Direito privado tornou-se consistente e consolidouse, mesmo sob a égide do Estado Democrático de Direito, que sucedeu ao Estado
Liberal e ao Estado Social.
A influência do mercantilismo foi tão intensa que se fez sentir nos séculos posteriores, como se depreende do fragmento: “O mercantilismo, segundo grande ciclo ideológico, a partir de 1450, consagraria
a nova ideologia. O comércio sem fronteiras criou os princípios que iriam formatar a nova ideologia
dominante. Os três séculos que se seguiram, ainda que pagando os tributos de transição ao romperem
com o aparato ideológico medieval, permitiram a renovação dos costumes, das artes e da ciência.Caíam
as barreiras da intolerância, ou pelo menos se abrandavam, favorecendo a eclosão de novos ideários,
formulações filosóficas, métodos científicos ainda que sob forte condicionamento religioso.O comércio
se internacionalizou em escala mundial, diferenciando dois grandes empreendimentos: o estatuto da conquista, e com ele o estabelecimento do sistema colonial, e uma nova estrutura para as relações comerciais.
O mercantilismo estabeleceu a era do comércio, do enriquecimento de nações e pessoas pela exploração
colonial e pelas trocas comerciais.” (VIEIRA; VIEIRA, 2004, p. 44-45).
23 98
• Doutrina Nacional
Entretanto, os dias atuais não comportam a divisão clássica, sendo oportuno acatar
a tese defendida pelo Professor Gregório Assagra de Almeida, no sentido de aceitar
a existência da nova summa divisio constitucionalizada: Direito coletivo e Direito
individual. O Texto Constitucional, como restou demonstrado alhures, expressamente
a recepcionou, abandonando de vez a dicotomia tradicional entre Direito público e
Direito privado. Inegavelmente a nova divisão é coerente com o Estado Democrático
de Direito, pois o dualismo Estado e sociedade está ultrapassado. A obra norteadora
e inspiradora deste trabalho – Direito material coletivo: superação da summa divisio
Direito público e Direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada –
propicia o entendimento e a confirmação de que no constitucionalismo democrático
pós-positivista, os direitos e garantias constitucionais fundamentais contêm valores
que devem irradiar todo o sistema jurídico, de tal forma que possibilite a vinculação
e orientação da atuação do legislador, seja constitucional ou infraconstitucional, do
administrador, de magistrados e de particulares. Por fim, “A nova summa divisio leva
em conta não só o plano da titularidade dos direitos, mas também e especialmente o
plano da proteção e da efetivação, que constitui o cenário capaz de fazer do Direito
instrumento de transformação com justiça da realidade social.” (ALMEIDA, 2008, p.
418).
6. Referências bibliográficas
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo
Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio
direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada.
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Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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Heli de Souza Maia •
101
Doutrina Nacional
CONCURSO DE PESSOAS NO INFANTICÍDIO: POR UMA MELHOR
COMPREENSÃO A PARTIR DO CONCEITO FINALISTA
DE AÇÃO DE HANS WELZEL
JORGE PATRÍCIO DE MEDEIROS ALMEIDA FILHO
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
RESUMO: É notória e declarada a lacuna doutrinária atual em face do estranhamento
teórico/dogmático no concurso de pessoas, decorrente mais especificamente da
aplicação/compreensão meramente textual do artigo 30 do Código Penal brasileiro.
O adormecimento da doutrina penal, no que tange uma melhor compreensão da
comunicabilidade de circunstâncias pessoais elementares do tipo, foi avaliado dentro
de uma digressão sobre o delito de infanticídio e sobre o conceito finalista de ação,
fornecendo tanto uma resposta ao concurso de pessoas no delito de infanticídio
quanto, ao fundo, uma nova compreensão do artigo 30 do Código Penal (CP).
PALAVRAS-CHAVE: Infanticídio; concurso de agente; comunicabilidade de
circunstâncias pessoais; conceito finalítico de ação.
ABSTRACT: The current doctrinary gap concerning the theoretical/dogmatic
approaches in concerted action is notorious. It is due to the merely textual enforcement/
understanding of the article 30 of the Brazilian Penal Code. This gap of the criminal
doctrine regarding a better understanding of the community of elementary personal
circumstances of the type of offense was evaluated in a digression about infanticide
and about the final concept of action, thus providing an answer to both concerted
action in infanticide and to the new understanding of the article 30 of the Penal
Code.
KEY WORDS: Infanticide; concerted action; community of personal circumstances;
final concept of action.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O infanticídio por uma perspectiva dogmática. 3. Homicídio
e infanticídio: uma questão de tipicidade. 4. Autoria, co-autoria e participação. 5.
Concurso de pessoas e infanticídio. 6. O artigo 30 do Código Penal brasileiro e o
102
• Doutrina Nacional
infanticídio: a proposta de Cezar Roberto Bitencort como incompreensão do próprio
conceito de concurso de pessoas. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito
interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para
mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo
a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma
atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos
pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos,
interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o
direito representa para nós: para as pessoas que queremos
ser e para a comunidade que pretendemos ter” (DWORKIN,
2000, p. 492).
O texto a seguir desenvolve-se por meio de um discurso digressivo básico para
que possa chegar tranquilamente ao entendimento de acadêmicos avançados,
profissionais do Judiciário e também de alunos que iniciam o estudo do Direito
Penal. Escrevo para estudantes, o que não diz respeito a um vínculo institucional,
mas, muito antes, a uma postura de abrir-se ao entendimento. A estética do escrito
fornecerá, contudo, opinião inovadora no quadro doutrinário pátrio, servindo de
provocação a futuros estudos em um nível mais avançado. Dedico estes escritos
aos meus bons alunos da Fundação Novos Horizontes, porque demonstram ser
boas pessoas e, assim, potencialmente bons profissionais do Direito, defensores
responsáveis de um projeto inacabado de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda
que tardia, que ruma à mira da igual consideração e respeito por todos no marco de
um Estado Democrático de Direito.
1. O infanticídio por uma perspectiva dogmática
Dentro da disposição positiva penal brasileira, o infanticídio é tipificado como “Matar,
sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”.
(BRASIL, 2007, p.53).
Dentre os elementos que integram o referido tipo penal, um assume posição de
destaque e centralidade dentro da sistemática da dogmática do Direito Penal: o
estado puerperal. Assim o é pelo fato de que o legislador de 1940 elegeu o referido
estado como distintivo entre infanticídio e homicídio, que se nota expresso na
exposição dos motivos do código de 1940:
O infanticídio é considerado um delictum exceptum quando
praticado pela parturiente sob a influência de estado puerperal.
Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério
acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
103
averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência
daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento
ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí, não há por que
distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra
a honóris causa (considerada pela lei vigente como razão
de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de
homicídio. (BRASIL, 2007, p.17)
Como visto, o que distingue o infanticídio do homicídio é basicamente, mas não
simplesmente, o estado puerperal.
Sem ainda adentrar muito nas variações, lingüísticas apenas, do estado puerperal,
vale ressaltar que, como elementar do delito de infanticídio este estado que afeta
a parturiente, em regra, pode ser visto segundo dois critérios: psicológico ou
fisiopsíquico.
O primeiro, historicamente ligado às gestações ilegítimas recebe também o nome
auto-explicativo de causa honoris, ou seja, causa de honra. Assim, encontrava-se em
estado puerperal, segundo este critério psicológico, a parturiente que se motivava
pelo ímpeto de resguardar o pudor ante a inevitável reprovação social que seria a
ela endereçada por causa do nascituro. Tendo como resultado de tal circunstância
angústia e extremo conflito íntimo sobre ética, moral e honra, a parturiente que, em
ato descompensado, desse cabo à vida do próprio filho, estaria sob o diagnóstico de
estado puerperal (PRADO, 2002a, p. 79).
A seguir, temos a definição de Beccaria como precedente contextualizado no séc.
XVII:
O infanticídio é, ainda, o efeito quase inevitável da terrível
alternativa em que se encontra uma desgraçada, que apenas
cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu aos esforços da violência.
De um lado a infâmia, de outro a morte de um ente incapaz
de avaliar a perda da existência: como não haveria de preferir
essa última alternativa, que a subtrai à vergonha, à miséria,
juntamente com o infeliz filhinho. (BECCARIA, 2002, p. 92).
O segundo critério, fisiopsíquico, abandona a causa honoris e firma-se na instabilidade
fisiopsíquica da parturiente. Ou seja, as questões referentes à ilegitimidade da
gestação não mais são determinantes, ou nem sequer relevantes, na tipificação do
infanticídio como delictum exceptum1.
Analisando a referida instabilidade (puerpério), agora fisiopsíquica, Roberson
Guimarães chega à seguinte conclusão:
Delictum exceptum: trata-se de delito autônomo; delito privilegiado (em relação ao delito de homicídio).
1 104
• Doutrina Nacional
A Associação Americana de Psiquiatria, em seu manual DSMIV (13), estabelece os critérios diagnósticos para uma entidade
nosológica denominada Transtorno de Estresse Agudo (TEA).
A característica essencial do TEA é o desenvolvimento de uma
ansiedade característica, sintomas dissociativos e outros, que
ocorrem dentro de até um mês após a exposição a um agente
estressor externo. Enquanto vivencia o evento traumático ou
logo após, o indivíduo tem pelo menos três dos seguintes
sintomas dissociativos: um sentimento subjetivo de anestesia;
distanciamento ou ausência de resposta emocional; redução
da consciência sobre aquilo que o cerca; desrealização;
despersonalização ou amnésia dissociativa. A perturbação dura
pelo menos dois dias e não persiste além de quatro semanas
após o evento traumático. (GUIMARÃES, 2008, p. 2).
Uma questão merece toda atenção: não configurado o referido estado puerperal,
não haverá que se falar em infanticídio e sim homicídio, como se nota da exposição
de motivos do Código Penal de 1940: “Fora daí, não há por que distinguir entre
infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honóris causa (considerada pela lei
vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de
homicídio”. (BRASIL, 2007, p. 17).
O legislador pátrio adotou como elementar do delito de infanticídio o critério
fisiopsíquico, mas não de forma absoluta e ilimitada. “Esta cláusula, como é óbvio,
não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica:
é preciso que fique averigüado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência
daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da
parturiente”.
Assim segue a jurisprudência do STJ: Homicídio e não infanticídio – TJSP: “Se
não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-nascido sob a
influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na figura típica de
homicídio” (RT 491/293).
Em última instância, pode-se dizer que o estado puerperal tipificará o delictum
exceptum de infanticídio quando gerar um quadro de pertubação fisiopsicológico
capaz de justificar um menor juízo de reprovabilidade da conduta do sujeito ativo do
delito, ficando a causa honoris entendida como apenas uma possível peculiaridade
do estado puerperal.2
Em decorrência da adoção do critério fisiopsicológico, a doutrina nacional vai acabar
por classificar o crime de infanticídio como crime próprio por apenas poder ser
praticado pela mãe contra o próprio filho. “Sujeito ativo do delito de infanticídio é
a mãe, que mata o próprio filho durante o parto ou logo após, sob a influência do
estado puerperal. Trata-se, portanto, de crime próprio”. (PRADO, 2002b, p. 80).
2 Seria o caso em que a parturiente, em decorrência do estado puerperal, crie aversão de cunho social à
própria cria.
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
105
Quanto ao tempo do delito, cumpre ainda ressaltar que sua determinação é
fundamental na configuração do delito em tela.
Quando falamos, em regra, de morte, falamos de morte intra-uterina, nascente
(imediatamente e imediatamente após o nascimento) ou extra-uterina.
Nesse sentido vai a dogmática penal determinando que, quando se tratar de morte
provocada de vida intra-uterina, estaremos diante das possibilidades do delito de
aborto (artigos 124 a 128 do CP); quando se tratar de morte provocada de vida extrauterina, estaremos diante das possibilidades do delito de homicídio (artigo 121, ou
até mesmo, excepcionalmente, lesão corporal seguida de morte – art.129, §3º, CP) e
quando se tratar de morte provocada de vida nascente – iniciado o trabalho de parto
e logo após sua realização – vamos ter 1º) se houver estado puerperal: infanticídio
e 2º) se não houver estado puerperal: homicídio, ou, como já referido, lesão corporal
seguida de morte, a depender da reconstrução probatória dos elementos subjetivos
necessários e indispensáveis ao juízo de tipicidade.
Portanto, o delito de infanticídio poderá ocorrer desde o início do trabalho de parto.
Com efeito, como salienta a melhor doutrina “[...] o nascimento normal começa,
medicamente, com o chamado período da dilatação (Eröffnungsperiode), continua
com o período de expulsão e, finalmente, termina com período pós-parto”. (PRADO,
2002b, p. 84).
Se o início do nascimento começa pelo período de dilatação, como exposto acima,
o término se dará com os atos pós-parto de separação da cria e aquietação da
parturiente.
Assim, podemos notar que o estado puerperal poderá em tese durar mais tempo que
o período de nascimento de sua cria, mas, segundo a legislação brasileira, apenas
justificará o delictum exceptum o atentado contra vida nascente, ou seja, durante
ou logo após o parto. Como conseqüência poderá haver a possibilidade, em tese
de, mesmo sob o efeito de estado puerperal, uma mãe matar seu filho e responder
por homicídio, desde que o tenha praticado tempos depois do parto realizado e as
circunstâncias objetivas da situação aquietadas.
Mais uma vez, recorremos às lições de Luiz Régis Prado (2002b, p. 84):
É possível que o fenômeno do parto – com suas dores, com
a perda de sangue e o esforço muscular que o acompanha
– produza na parturiente um estado de perturbação da
consciência. De conformidade com a orientação adotada
pela legislação penal brasileira, é esse estado puerperal que
fundamenta o infanticídio enquanto homicídio privilegiado.
106
• Doutrina Nacional
Assim, concluímos que o núcleo do tipo é matar; o sujeito ativo é a parturiente em
estado puerperal; o sujeito passivo é o próprio filho e o tempo do delito é aquele
durante ou logo após o parto.
Nesse sentido, não parece mais nebulosa a interpretação do tipo do artigo 123 do
Código Penal brasileiro quando descreve a conduta de infanticídio: “Infanticídio: Art.
123. Matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou
logo após. Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos” (BRASIL, 2007, p. 53).
2. Homicídio e infanticídio: uma questão de tipicidade
“Art. 121. Matar alguém. Pena seis a vinte anos – Tipo simples.”
Algumas condutas aparentemente são objeto de mais de um tipo penal. Um típico
exemplo é a semelhança entre as condutas descritas nos artigos 121 e 123 do Código
Penal brasileiro que têm como núcleo de tipo a conduta matar. Assim, formalmente, a
mãe infanticida também pratica o disposto no artigo 121, ou seja, ela mata alguém.
Mas tal coincidência de tipos é meramente aparente e, por isso mesmo, recebe
tratamento teórico-penal sob o título de conflito aparente de leis ou, no caso específico,
conflito aparente de tipos (PRADO, 2002a, p. 185). Antes da objetiva distinção entre
os referidos tipos, cabem algumas considerações sobre o tipo de homicídio.
Como observa Luiz Regis Prado (2002b, p. 43) “[...] o homicídio consiste na destruição
da vida humana alheia por outrem”.
Dispõe o Texto Constitucional que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” (BRASIL, 2007, p. 9), e assim sendo não há nem poderá haver nenhum
tipo de valoração em relação a tipos de vida, o que implica uma co-significação
indiferente a qualquer diferença. Assim, o mesmo desvalor que existe na morte de
uma pessoa da zona sul existe na morte de uma pessoa moribunda, paciente final ou
monstruosa (PRADO, 2002b, p. 44).
O que delimita a capacidade de ser sujeito passivo do delito de homicídio é o fato
de a vida em questão não mais estar dentro do útero, ou seja, ser pessoa nascente
ou nascida. Isso porque, se tratando de vida intra-uterina, em regra teremos o delito
de aborto, ao passo que, iniciadas as contrações que marcam o nascimento de uma
pessoa, iniciado será também o tempo do crime de homicídio.
O fim do tempo do delito de homicídio é, por conseguinte, a morte, tendo em vista
que não se mata alguém que já está morto, o que ensejaria a hipótese de crime
impossível não punível pelo Direito Penal. Isso porque o próprio Código disse que
“[...] não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta
impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime” (BRASIL, 2007, p. 37).
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
107
Quanto aos demais elementos do tipo de homicídio, cumprem ressaltar os subjetivos.
Os objetivos “matar” e “alguém” já foram, para o presente, suficientemente vistos.
Matar: destruir vida alheia; alguém: qualquer pessoa nascente ou nascida. O principal
elemento subjetivo do delito de homicídio é o dolo.
Luiz Regis Prado (2002b, p. 46) assim observa:
O tipo subjetivo é composto pelo dolo (direto ou eventual),
entendido como a consciência e a vontade de realização dos
elementos objetivos do tipo de injusto doloso (tipo de objetivo).
[...] o dolo é a vontade de realização e neste caso, vontade de
realização da morte de outrem, com base no conhecimento
dos elementos do tipo concorrentes no momento da prática
da ação e na previsão da realização dos demais elementos
do tipo, entre eles a relação de causalidade entre ação e
resultado.
O dolo, enquanto elemento subjetivo do tipo de homicídio, representa o desejo
final de realização, e aqui a redundância é necessária, do tipo desejado, ou seja,
homicídio e não lesão, dano, infanticídio ou qualquer outro tipo penal.
Voltando ao início deste capítulo, existem condutas que podem se adequar a mais
de um tipo, o que enseja o conflito aparente de normas. Assim sendo, quando é
que matar alguém será homicídio e quando é que matar alguém será infanticídio?
Antes, algumas considerações sobre o conflito aparente de leis, ou no caso, de tipos
penais.
O concurso de leis ou tipo se dá quando mais de uma norma tem incidência sobre
uma conduta, contudo, não se trata verdadeiramente de um conflito de normas, tendo
em vista que apenas uma delas será aplicável, o que quer dizer que o concurso
ou conflito é meramente aparente, porque na realidade apenas uma norma será
aplicada ao caso concreto posto em tela.
Existem alguns critérios para a resolução do problema. São eles: “[...] especialidade,
subsidiariedade e consunção” (PRADO, 2002a, p. 187). O presente trabalho utilizarse-á apenas do primeiro critério.
O referido doutrinador explana sobre o primeiro dos critérios no sentido de que
haverá uma derrogação no caso concreto da regra geral pela especial, isso graças às
“especializantes” (PRADO, 2002a, p. 188), que descrevem de forma mais detalhada
a conduta concreta que se pretende tipificar.
Todo elemento agregado à normatividade básica ensejará uma especialidade na
tipificação, isso se dá, por exemplo, nos delitos qualificados ou privilegiados ou
mesmo entre tipos distintos como homicídio e infanticídio (PRADO, 2002a, p. 188).
108
• Doutrina Nacional
Acima foi feita a seguinte indagação: “Assim sendo, quando é que matar alguém
será homicídio e quando é que matar alguém será infanticídio?”
Muito embora tanto o homicídio quanto o infanticídio tenham como núcleo matar
(matar alguém), resta a averiguação das já referidas “especializantes”. Aí estará a
diferença na prática de cada um destes delitos. Pode-se então concluir que, no caso
em tela, matar alguém será sempre homicídio, salvo quando forem constatadas as
seguintes especializantes: sujeito ativo mãe, influência de estado puerperal, durante
ou logo após o parto. Se estas especificantes forem detectadas na conduta do
sujeito que mata alguém, estar-se-á, portanto, diante da incidência do tipo do artigo
123 e não 121 do Código Penal brasileiro. Do mesmo modo, a falta de qualquer uma
das especificantes acarretaria falta de tipicidade em relação ao tipo do artigo 123 e
provavelmente a tipificação do artigo 121, no caso, tipo geral da prática de matar
alguém.
Nesse sentido, cola-se discussão, de caso concreto, exemplificativa de tentativa de
desqualificação (troca de tipificação da conduta praticada) do crime de homicídio
para infanticídio.
O próprio Relator esclarece em seu minucioso voto: que Ângela
Maria de Miranda, grávida, e prestes a dar a luz, no dia 05 de
junho de 2.003, na comunidade denominada Vieiras, Município
de Candeias, encontrava-se trabalhando na colheita de café,
naquela localidade, atividade que exercia junto com a sua
mãe, quando começou a sentir cólicas, dizendo ser cólicas nos
rins, sendo levada para casa e permanecendo lá sozinha até
às 16:00 horas, quando a sua mãe chegou. Neste momento, a
denunciada disse à mãe que iria à casinha do quintal alimentar
os coelhos, local em que deu a luz a uma criança do sexo
masculino. Em seguida, cortou o cordão umbilical da criança,
com uma faca colocando-a em uma pequena caixa ali existente,
e arremessando o corpo da criança em um talude de mais ou
menos cinco (05) metros de altura, que serve como depósito de
lixo.
Mais adiante, define o culto Relator: Lado outro, a tese da
desclassificação para o delito do artigo 123, do Código Penal,
não se apresenta de modo convincente nos autos, isto porque a
conduta da agente embora tenha ocorrido logo após o parto, não
há prova de que tenha agido sob perturbação psíquica, cujos
sintomas se manifestassem a ponto de diminuir a capacidade de
entendimento ou de auto- inibição da parturiente, circunstância
também exigida no tipo de infanticídio.
Assim o eminente Relator não reconhece o infanticídio tãosomente porque, apesar de reconhecer ter o fato ocorrido logo
após o parto, ou seja, durante o estado puerperal, não visualiza
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
109
prova de ter a recorrente agido sob perturbação psíquica, cujos
sintomas se manifestam a ponto de diminuir a capacidade de
entendimento ou de auto-inibição da parturiente.3
Não é objeto desta reprodução analisar a questão de prova, e sim constatar, também
pela jurisprudência, que, não sendo verificados os elementos especializantes do
delito de infanticídio tipificado, estará o delito de homicídio, tendo em vista que são
exatamente estes elementos especializantes objetivos e subjetivos que determinam
e resolvem o aparente conflito de normas penais incriminadoras.
3. Autoria, co-autoria e participação
“Dono do fato é quem o executa em forma finalista, sobre a base de sua decisão de
vontade” (Hans Welzel).
No que tange à autoria do delito, o Código Penal brasileiro de 1940, quando tratou do
concurso de pessoas4, adotou a teoria unitária nos termos da qual “[...] autor é todo
aquele que contribui de modo causal para a realização do fato punível” (PRADO,
2002A, p. 1395).
Ou seja, todo aquele de atua na relação causal é autor. Contudo, este critério
não parece perceber que pode haver graduações na realização de um delito que
é praticado por mais de uma pessoa. Não necessariamente todos que atuam em
um delito têm o mesmo grau de culpabilidade e não merecem o mesmo grau de
reprovação pela conduta realizada. Por isso mesmo o legislador ateve-se às críticas
doutrinárias e, mesmo optando pela teoria unitária, fez um tempero graduando a
responsabilidade penal pelo delito segundo a medida de culpabilidade.
Assim, muito embora haja um único delito em tela, a valoração negativa recairá de
forma individualizada, seguindo os preceitos constitucionais de individualização da
pena e também de proporcionalidade penal lato sensu.
3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA ESTADO DE MINAS GERAIS. Número do processo: 1.0120.03.9000217/002(1). Relator: Paulo Cézar Dias. Data do Julgamento: 17/05/2005. Data da Publicação: 02/08/2005.
4 TÍTULO IV
DO CONCURSO DE PESSOAS
Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste;
essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
Circunstâncias incomunicáveis
Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares
do crime.
Casos de impunibilidade.
Art. 31 - O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não
são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado. Brasil. Código e Constituição Federal.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38 - 39.
110
• Doutrina Nacional
Vale transcrever o discurso do legislador penal de 1940, quando diz:
Ao reformular o título IV, adotou-se a denominação ‘Do
concurso de Pessoas’ decerto mais abrangente, já que a coautoria não esgota as hipóteses do concursus delinquentium.
O Código de 1940 rompeu a tradição originária do Código
Criminal do Império, e adotou neste particular a teoria unitária
ou monística do Código penal italiano, como corolário da teoria
da equivalência das causas [...]. Sem completo retorno á
experiência passada, curva-se, contudo, o projeto aos críticos
dessa teoria, ao optar, na parte final do artigo 29, e em seus
dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria
da participação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência
pela doutrina, em face de decisões reconhecidamente injustas.
(BRASIL, 2007, p. 7).
Cabe conceituar agora, precisamente, a figura do autor.
Seguindo a doutrina de Luiz Régis Prado, “Tem-se como autor aquele que domina
finalmente a realização do tipo de injusto. Co-autor aquele que, de acordo com um
plano delitivo, presta contribuição independente, essencial à prática do delito - não
obrigatoriamente em sua execução. Na co-autoria, o domínio do fato é comum
a várias pessoas. Assim, todo co-autor (que é também autor) deve possuir o codomínio do fato – princípio da divisão do trabalho”. (PRADO, 2002a, p. 397).
Determinada a autoria5 e a co-autoria (enquanto autoria comum a mais de uma
pessoa), a participação pode ser então concebida como uma contribuição na prática
do delito sem que o participante tenha domínio final sobre a realização do delito.
“Entende-se por participação stricto sensu colaboração dolosa em um fato alheio.
É a contribuição dolosa – sem domínio do fato – em fato punível doloso de outrem”
(PRADO, 2002a, p. 399).
No que tange ao concurso de pessoas, tem-se identificado, em regra, os seguintes
requisitos entre os concorrentes: a) pluralidade de pessoas e de condutas; b)
relevância causal de cada conduta; c) liame subjetivo ou psicológico; d) identidade
do ilícito penal.
Maior relevância merece, neste exato momento, o conceito de conduta, já que o
concurso pressupõe uma pluralidade de condutas praticadas por uma pluralidade de
pessoas; neste momento será, por opção teórica, tomada como base a concepção
finalista de ação.
Hans Welzel parte do pressuposto de que toda a vida social é estruturada pelo
Aqui vale lembrar as lições de Hans Welzel: “A característica geral de autor: o domínio finalista do fato.
Dono do fato é quem o executa em forma finalista, sobre a base de sua decisão de vontade”. (WELZEL,
2003, p.158).
5 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
111
comportamento dos integrantes de uma dada comunidade (WELZEL, 2003, p. 76).
Esses entes poderiam então estipular fins e direcionar seu comportamento rumo ao
sucesso de sua ação finalisticamente orientada. O ato de colocar em movimento
uma relação causal segundo uma finalidade (WELZEL, 2003, p. 76) não apenas é o
que promove a funcionabilidade social como também é o primeiro elemento de uma
ação penalmente reprimida (WELZEL, 2003, p. 76).
Da mesma forma que as ações finalísticas movem positivamente as relações sociais
elas – ações finalísticas – lesam os valores ou os bens da comunidade. Mas o homem
não é apenas um ser que se dirige finalisticamente segundo sua possibilidade de
imaginar o futuro e desejá-lo. O homem também é, em segundo sentido, um ser
moral, ou seja, “[...] um ente moralmente responsável por suas ações” (WELZEL,
2003, p. 77).
Assim dirá Welzel: “O homem é pessoa no duplo sentido quando é um ser que atua
com finalidade, e quando é moralmente responsável por suas ações” (WELZEL,
2003, p. 77).
O resultado naturalístico de um dado comportamento é cego se não se presta à
investigação do elemento final. Assim, quando “A” mata “B”, não podemos, pelo
simples fato de aquele ter causado a morte deste, atribuir a “A” o delito de homicídio.
Isso porque uma ação penalmente relevante não é apenas uma ação causal e sim
uma exteriorização de finalidades e meios eleitos pelo homem para obtenção de um
resultado causado pelo seu agir exterior.
Vale muito ler as lições de Welzel:
A ação humana é o exercício da atividade finalista. A ação é,
portanto, um acontecer ‘finalista’ e não somente ‘causal’. ‘A
finalidade’ ou atividade finalística da ação se baseia em que
o homem, sobre a base de seu conhecimento causal, pode
prever em determinada escala as conseqüências possíveis
de uma atividade com vistas ao futuro, propor-se a objetivos
de índole diversa e dirigir sua atividade segundo um plano
tendente à obtenção desses objetivos. Sobre a base de seu
conhecimento causal prévio está em condições de administrar
os distintos atos de sua atividade, de tal forma que dirige
o acontecer causal exterior até o objetivo, portanto, uma
sobredeterminação de modo finalista. A finalidade é um
atuar dirigido conscientemente desde o objetivo, mas que é
a resultante dos componentes causais circunstancialmente
concorrentes. Por isso, graficamente falando, a finalidade é
‘vidente’; a causalidade é ‘cega’. (WELZEL, 2003, p. 79).
Dessa concepção finalista de Welzel, advêm algumas conseqüências fundamentais
(PRADO, 2002a, p. 252):
112
• Doutrina Nacional
a) A inclusão do dolo (sem a consciência da ilicitude) e da culpa nos tipos de injusto
(dolos/culposo). Ou seja, dolo e culpa são elementos subjetivos do tipo penal.
b) O conceito pessoal de injusto. O juízo de reprovação da conduta é tomado na
perspectiva da intenção do sujeito ativo do delito e em um segundo momento na
valoração do resultado alcançado.
c) A culpabilidade em sentido meramente normativo. Ou seja, restrita à exigibilidade
de conduta adversa e potencial conhecimento da ilicitude do fato.
Interessa neste momento tratar o dolo e a culpa como elementos do tipo penal.
Se alguém tem a intenção de matar outrem (finalidade), seja lá qual for o resultado
alcançado estaremos a falar do delito de homicídio, porque o dolo de matar do
agente é elementar do tipo de homicídio e não de outro delito. Assim, nessa mesma
hipótese, se este sujeito ativo apenas causa um corte na região do tórax da vítima,
por exemplo, não há que se falar em lesão corporal, porque faltaria à configuração
desta o elemento subjetivo do tipo, dolo de ofender a integridade física de outrem.
Outro exemplo se dará com o sujeito que, com o dolo de lesar, acaba por causar
a morte de outrem. Neste caso não responderá por homicídio, tendo em vista que
este não tinha o dolo de matar e sim o dolo específico de lesar a integridade física
de outrem, fato este que determina qual tipo de delito lhe será imputado. No caso,
pela especificidade do dolo pertencente ao tipo de lesão corporal, o sujeito ativo
responderia por lesão corporal seguida de morte.
Com estes exemplos, pretende-se mostrar que o dolo enquanto elemento do tipo
penal determina, em regra, qual será a tipificação da conduta em análise.
Volta-se então aos requisitos do concurso de pessoas: a) Pluralidade de pessoas e
de condutas (logicamente só há concurso se há mais de uma pessoa, tanto em coautoria ou participação); b) Relevância causal de cada conduta (toda conduta deve
influir ou contribuir na relação causal ou para o seu sucesso); c) Liame subjetivo ou
psicológico (consciência da pluralidade de sujeitos que concorrem para uma mesma
execução de delito); d) Identidade do ilícito penal (todos os participantes do delito
têm que seguir o mesmo iter criminis, ou seja, têm de caminhar para o mesmo delito,
seguindo seus elementos objetivos e subjetivos). (PRADO, 2002a, p. 394).
4. Concurso de agentes e infanticídio
Como já fora visto na exposição dogmática do tipo de infanticídio, o sujeito ativo
do delito referido é a mãe parturiente em estado puerperal, e este especializante
funciona como divisor de águas entre o infanticídio e o homicídio; questão que
poderá ficar um pouco complicada ao se tratar de concurso de pessoas. Mas isso
será visto um pouco mais à frente.
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
113
Este capítulo tem o intuito de indagar sobre as possíveis formas de concurso de
pessoas na prática do delito de infanticídio. Serão examinadas três hipóteses:6
a) a mãe e o terceiro realizam dolosamente o núcleo do tipo – matar;
b) a mãe mata o nascente ou recém-nascido e é ajudada pelo terceiro – partícipe;
c) o terceiro mata a criança, com a participação da mãe.
Questão “a” – primeiro caso
Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Brenda e seu namorado Peter,
insatisfeitos com a gravidez daquela, planejam dar cabo à vida do nascente logo
após o parto. O casal da pequena cidade do interior de Minas Gerais pretendia com
isso poder continuar a vida sem o peso que a responsabilidade de criação de uma
criança acarretaria.
Questão “a” – segundo caso
Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Peter, indignado com o nascimento
de seu filho, desabafa com um amigo que irá matar a referida cria assim que esta
nascer. Peter não só confessa suas intenções como a reafirma várias vezes dizendo
estar determinado a colocar sua finalidade em prática. Ao chegar em casa de noite,
percebe que sua esposa acabara de dar à luz e também que esta se encontra
insana e descompensada afogando o recém-nascido na banheira. De imediato
Peter aproveita-se da situação e empreende na realização de seu plano apertando o
pescoço do próprio filho que vem rapidamente a falecer.
Como pode ser observado, em ambos os exemplos é praticada a hipótese “a”: a mãe
e o terceiro realizam dolosamente o núcleo do tipo – matar.
Contudo, há de se observar que o primeiro e o segundo casos são distintos no que
se refere aos elementos subjetivos da conduta punível.
No primeiro caso, a conduta objetiva realizada foi “matar alguém”. Não havia os
elementos especializantes capazes de tipificar o delito de infanticídio, ou seja, em
momento nenhum foi cogitada ou provada a ocorrência do estado puerperal, o que
indica a tipificação do delito de homicídio. Não bastasse a tipificação do delito de
homicídio, ambos agentes – Brenda e Peter – atuaram diretamente na causa do
resultado morte.
Para as conclusões, vale lembrar o conceito de autor que fora adotado neste
trabalho:
Tem-se como autor aquele que domina finalmente a realização do tipo de injusto. Coautor aquele que, de acordo com um plano delitivo, presta contribuição independente,
6 Estas mesmas hipóteses foram levantadas por Luiz Regis Prado (2002b, p. 81).
114
• Doutrina Nacional
essencial à prática do delito - não obrigatoriamente em sua execução. Na co-autoria,
o domínio do fato é comum a várias pessoas. Assim, todo co-autor (que é também
autor) deve possuir o co-domínio do fato – princípio da divisão do trabalho. (PRADO,
2002a, p. 394).
Dessa maneira, na questão “a” – primeiro caso –, como ambos os sujeitos foram
autores do delito, há co-autoria no delito de homicídio. A conduta praticada é matar
alguém, os sujeitos ativos são Brenda e Peter e, por fim, o sujeito passivo é o filho
do casal.
No segundo caso, parece claro que Brenda estava sob a influência do estado
puerperal7, enquanto Peter aproveitou-se da situação para realizar o plano pessoal8
de não ter filhos. Nesse difícil caso, há um resultado objetivo comum, mas existem
especializantes e elementos objetivos diversos.
Levando em conta que dolo e culpa são elementos do tipo penal, resta perguntar: Quem
mata dolosamente, com a finalidade de manter a vida sem muitas responsabilidades,
realiza qual delito? Quem mata sob a influência de estado puerperal realiza qual
delito?
A primeira pergunta tem a lógica resposta homicídio e a segunda pergunta a lógica
resposta infanticídio, repisando conclusão alcançada em capítulo anterior deste
mesmo trabalho:
Pode-se então concluir que, no caso em tela, matar alguém será sempre homicídio,
salvo quando forem constatadas as seguintes especializantes: sujeito ativo mãe,
influência de estado puerperal, durante ou logo após o parto. Se estas especificantes
forem detectadas na conduta do sujeito que mata alguém estar-se-á, portanto, diante
da incidência do tipo do artigo 123 e não 121 do Código Penal brasileiro. Do mesmo
modo a falta de qualquer uma das especificantes acarretaria falta de tipicidade em
relação ao tipo do artigo 123 e provavelmente a tipificação do artigo 121, no caso tipo
geral da prática de matar alguém.
Neste sentido, não parece haver dificuldade em concluir que na Questão “a” –
segundo caso, Brenda pratica infanticídio e Peter pratica homicídio.
Contudo, neste ponto incide a questão mais problemática do tema: a comunicabilidade
das circunstâncias pessoais elementares do tipo. Assim diz o Código Penal
brasileiro:
“[...] Brenda, durante e logo após o próprio parto, em decorrência da perda de sangue, da força realizada
e do abalo psicológico que a totalidade da circunstância lhe causara [...]”.
8 “[...] realizando a pretensão de continuar sem filhos, acaba por junto com aquela colocar o recémnascido em um saco plástico e joga-lo em um riacho [...]”.
7 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
115
“Circunstâncias incomunicáveis
Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,
salvo quando elementares do crime.”
Tal dispositivo penal levaria a uma resposta diversa da previamente indicada.
O estado puerperal indiscutivelmente é elementar do tipo de infanticídio,9 já que
integra a estrutura objetiva do tipo. Assim sendo, haveria comunicação entre as
condutas dos co-autores da questão “a” – segundo caso.
Neste caso, os terceiros que praticassem infanticídio ou dele participassem
indiretamente responderiam por este tipo de delito se comprovada a condição
necessária em relação à mãe. Se ela responder por infanticídio, os demais
responderão por co-autoria ou participação em infanticídio. Caso não fique
comprovada a instabilidade puerperal em relação à mãe e esta responder por
homicídio, os demais responderão por co-autoria ou participação em homicídio. Esta
é a resposta dada á questão pela legislação penal, especificamente nos artigos 29,
30 e 31 do Código Penal brasileiro.
É forçoso reconhecer, tomando em conta os dispositivos penais acima referidos,
e junto com Luiz Régis Prado (2002a, p. 81) que, “[...] em face da legislação penal
pátria, responde pelo delito de infanticídio - e não pelo delito de homicídio – o terceiro
que executa o crime atendendo a pedido da mãe ou a ajuda a matar o próprio
filho”.
Neste prisma, no caso, questão “a” - segundo caso, a doutrina tem-se limitado à
literalidade do disposto no artigo 30 do Código Penal.
Assim, a doutrina tomada como referência daria à questão “a” – segundo caso,
resposta diversa da que será aqui prescrita.
Cada sujeito é indivíduo e, por isso, pratica delitos separados, salvo quando há liame
psicológico objetivo e subjetivo. Ou seja, têm os agentes em concurso de cumprirem
os elementos objetivos e subjetivos do delito em tela (matar, filho próprio, estado
puerperal, durante ou logo após o parto, dolo de praticar infanticídio10). Além disso,
deverá haver os requisitos do concurso de pessoas (requisitos entre os concorrentes:
a) pluralidade de pessoas e de condutas; b) relevância causal de cada conduta; c)
liame subjetivo ou psicológico; d) identidade do ilícito penal).
Ora, só pode haver liame subjetivo (uma perfeita ligação psicológica) entre os agentes
e, sobretudo, uma identidade do delito praticado, se houver identidade material nos
“Matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”.
Poderia ser alegado que não existe dolo de praticar infanticídio e sim de matar. Contudo, no infanticídio, o dolo, que é de matar, é formatado pela incidência do estado puerperal. Essa formatação faz toda a
diferença, tanto que justificou uma tipificação própria.
9 10 116
• Doutrina Nacional
elementos objetivos e subjetivos da conduta praticada. Só o cumprimento dessas
duas questões configurará a unidade de delito.
Assim, quando duas pessoas subtraem para si ou para outrem coisa alheia móvel
com o dolo específico do delito, poderá se falar que houve uma sincronia psicológica
e conseqüentemente, por aderirem (a)os mesmos elementos objetivos e subjetivos,
uma identidade no delito praticado.11
Na questão “a” – segundo caso, não há que se falar em identidade de delito, porque
não há identidade dos elementos objetivos e subjetivos do delito, portanto, também
não há um perfeito liame psicológico direcionado ao mesmo tipo penal. Brenda
queria praticar infanticídio (dolo viciado pelo estado puerperal), Peter queria realizar
homicídio (plano particular, preexistente, autônomo de não ter filho e apenas se
aproveitou da situação). Não se visualiza, nesse caso, uma co-autoria perfeita, e sim
uma espécie de autoria colateral imprópria.12
Atente-se para o fato de que caso diferente seria se o segundo autor, digamos,
comprasse a idéia do primeiro autor e atuasse movido pelos interesses subjetivos do
primeiro autor, ou seja, tomasse como próprio o estado do co-autor. Seria o caso de
Brenda pedir apoio a Peter que, ao participar da execução delitiva, assim o fizesse
com o interesse exclusivo de consumar a pretensão de Brenda e não a pretensão
própria (o que configuraria elemento subjetivo de delito distinto).
Depois de tanto falar sobre as hipóteses em que a mãe e o terceiro executam o
delito, cabe averiguar a segunda questão levantada: “A mãe mata o nascente ou
recém-nascido e é ajudada pelo terceiro – partícipe”.
Questão “b” – primeiro caso:
Brenda, sob a influência de estado puerperal, mata o próprio filho. Para a garantia de
tal ato precisou que Peter, seu namorado, após a prática, jogasse o produto do crime
em um riacho que passava naquelas imediações.
Questão “b” – segundo caso:
Brenda, movida por vaidades fúteis e questões de honra, mata o próprio filho. Para
a garantia de tal ato, precisou que Peter, seu namorado, após a prática, jogasse o
produto do crime em um riacho que passava naquelas imediações.
Na questão “b”, primeiro caso, as considerações são um pouco diferentes. O sujeito
contribui para a prática delitiva de um autor principal e sua conduta, mesmo que
O artigo 29, §2º, do Código Penal, comporta lógica idêntica.
Diz-se que na autoria colateral haveria contribuição para a prática de mesmo delito, contudo, sem
haver liame psicológico. Tratar-se-ia de falta de atuação conjunta; não há nessa hipótese atuação conjunta
consciente. Não é exatamente a possibilidade defendida no texto. O texto defende uma espécie de falso
consentimento, ou consentimento irreal.
11 12 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
117
preencha os requisitos do concurso, é acessória. Não há poder final sobre a ocorrência
e resultado do delito. Assim, Peter responderá pela participação em infanticídio por
dois motivos. Primeiro, porque não executa o delito e, segundo, porque a imputação
de sua conduta segue a principal (art. 30, CP).
E se Peter tivesse dolo de homicídio? Peter nem sequer iniciou a execução de sua
intimidade delinqüente. Abstém-se o Direito Penal.
Na questão “b”, segundo caso, Brenda não pratica infanticídio, e sim homicídio.
Como a participação de Peter é entendida como acessória, esta seguirá a imputação
principal de Brenda, e, portanto, responderá por participação no delito de homicídio
e Brenda responderá por homicídio.
Por último, cabe avaliar a seguinte questão: “O terceiro mata a criança, com a
participação da mãe”.
Questão “c”:
Brenda, sob a influência do estado puerperal, pede ao seu namorado, Peter, que
mate o próprio filho que acabara de nascer e Peter atende a tal pedido enquanto
Brenda apenas o assessora sem realizar a conduta típica.
Nesse caso, quem está em estado puerperal e possui a circunstância que gera toda a
dificuldade de análise na matéria (estado puerperal), não a executa nem tem domínio
final sobre a conduta típica, ou seja, não é autora. Já é entendimento firmado neste
caso que a conduta acessória segue a principal, não sendo admissível o contrário.
Assim, a conduta principal é a do autor que, nesse caso, pratica o homicídio, não
podendo ser beneficiado pela comunicação das circunstâncias pessoais do seu mero
partícipe, sob pena de inverter a ordem de determinação da unidade do acontecer
delitivo. Quer dizer então que, neste caso, pelo princípio da unidade do delito, a
partícipe que se encontra em estado puerperal será partícipe no delito de homicídio?
De modo nenhum. Para esta circunstância acredita-se ser adequado o disposto no
artigo 29, §2º, do CP quando diz: “Se algum dos concorrentes quis participar de
crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até
metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”
Contudo, é importante ressaltar que estamos falando de gestante partícipe,
possibilidade dificílima de ocorrer. Em regra, acredita-se mais provável a configuração
de autoria mediata, ou seja, situações onde a puérpera, mesmo sem executar a ação
delitiva, continua tendo domínio final sobre o fato, o que permitiria a comunicação da
elementar do infanticídio.
118
• Doutrina Nacional
5. O artigo 30 do Código Penal brasileiro e o infanticídio: a proposta de Cezar
Roberto Bitencourt como incompreensão do próprio conceito de concurso de
pessoas
Duas respeitáveis correntes marcam a discussão sobre a aplicação do art. 30 do CP
ao infanticídio.
De um lado, Roberto Lyra, Magalhães Noronha, Frederico Marques, Basileu Garcia,
Bento de Faria e Damásio de Jesus defendem a comunicabilidade da influência
do estado puerperal. De outro lado, Nélson Hungria, Heleno Cláudio Fragoso,
Galdino Siqueira, Aníbal Bruno e Salgado Martins defendem a não comunicabilidade
da referida influência. Esta última corrente “liderada” por Hungria baseou-se a
classificação do estado puerperal como sendo “personalíssima”, pretendendo assim
afastar a incidência do art. 30 do CP (à época, artigo 26).
Competente proposta veio oferecer o Professor Doutor Cezar Roberto Bitencourt,
trazendo novo fôlego aos debates.
O professor inicia dizendo que a comunicabilidade não é algo que possa estar em
questão, tendo em vista a clara e taxativa redação do art. 30: “Não se comunicam
as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do
crime.” Acrescenta Bitencourt ainda que o estado puerperal é elemento do tipo e
seria estéril defender o contrário, ou seja, sua não comunicabilidade (BITENCOURT,
2008, p.127).
Bitencourt diz que a justiça ou injustiça do tratamento jurídico correto não justifica
a negação da posição tomada e firmada pelo Código penal ao determinar a teoria
monística da ação prescrita no art. 29 do CP: “Quem, de qualquer modo, concorre
para o crime incide nas penas a este cominadas [...]”.
Assim o nobre professor conclui pela comunicabilidade do estado puerperal,
abrindo, contudo, uma luminosa ressalva: “Isso não quer dizer, contudo, que o
terceiro interveniente no ato da mãe de matar o próprio filho não possa concorrer,
eventualmente, para o crime de homicídio”. (BITENCOURT, 2008, p. 127).
De modo parecido com o que foi defendido neste texto, o professor conseguiu
identificar a hipótese em que um terceiro realiza, ainda que juntamente com a
infanticida, um plano próprio, ou seja, move-se por elementos anímicos próprios
do delito de homicídio não aderindo ou motivando-se pelos interesses ou estado
da infanticida, o que acarretaria a este sujeito uma imputação adequada aos seus
próprios e particulares desígnios, não compartilhados pela infanticida, ou seja, a
tipificação, para este terceiro, do delito de homicídio.
Ora, nesse caso, o terceiro age com dolo de matar alguém, age
com dolo de homicídio, que diríamos, é um dolo qualificado,
pois tinha a finalidade adicional de utilizar a puerpera como
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
119
instrumento para a obtenção do resultado efetivamente
pretendido, que era dar a morte ao nascente ou recém-nascido.
(BITENCOURT, 2008, p.128).
Em conseqüência desta acertada constatação, Bitencourt vai concluir que, para
manutenção da teoria monística da ação, a mãe teria sua conduta tipificada como
homicídio. Contudo, o estado puerperal no qual encontrava-se a mãe valeria como
“[...] causa especialíssima de redução de pena” firmada pelo parágrafo único do
art. 26 do CP: “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Essa redução de pena (de um a dois terços) que a mãe receberia por ter praticado
homicídio sob a influência de estado puerperal seria uma medida de justiça no trato
dado à questão, aplicando, para fechamento dessa, o art. 29, §2º, primeira parte, do
CP, por reconhecer na hipótese um desvio subjetivo de conduta.
A doutrina do eminente professor Bitencourt representa um avanço, entretanto
acredita-se ter passado despercebida de questão fundamental capaz de fornecer
uma melhor compreensão e tratamento da matéria.
Primeiramente, insta ressaltar que a proposta oferecida pelo professor só consegue
êxito à custa de um manejamento inconcebível na dogmática penal: o véu da “justiça”,
que falseia o juízo de tipicidade.
O juízo de tipicidade não pode ser manipulado à inspiração de respostas estranhas
à dogmática penal. No caso em tela, em que a mãe mata o próprio filho sob a
influência de estado puerperal durante ou logo após o parto, nunca poderá tipificarse o homicídio, porque a conduta já se adequou ao tipo de infanticídio em seus
elementos objetivos e subjetivos. Essa discussão é estéril. A alteração de tipicidade
é fraude contra a separação dos poderes. A legislação criou os elementos para o
tratamento da hipótese fática delitiva determinando sua classificação e trato como
infanticídio; isso não é negociável.
Quer dizer, então, que não poderá haver a possibilidade de duas pessoas que
matam alguém nascente ou recém-nascido responderem uma por homicídio e outra
por infanticídio? Isso não violaria a tão citada teoria da unidade da ação insculpida
no artigo 29 do CP? Sim para a primeira pergunta e não para a segunda, contudo a
discussão passa ao largo da manipulação do juízo de tipicidade.
Defende-se um tratamento capaz de respeitar o adequado juízo de tipicidade bem
como a proporcionalidade no trato penal individualizado dos sujeitos do delito e o
princípio da unidade da ação.
120
• Doutrina Nacional
Onde estaria a resposta? Ora, na própria compreensão do que efetivamente é o
concurso de pessoas. Observe-se o seguinte caso:
Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Peter, indignado com o nascimento
de seu filho, desabafa com um amigo que irá matar a referida cria assim que esta
nascer. Peter não só confessa suas intenções como a reafirma várias vezes dizendo
estar determinado a colocar sua finalidade em prática. Ao chegar em casa de
noite, percebe que sua esposa acabara de dar à luz e também que esta encontrase insana e descompensada afogando o recém-nascido na banheira. De imediato
Peter aproveita-se da situação e empreende na realização de seu plano, apertando
o pescoço do próprio filho que vem rapidamente a falecer.
Fica claro que Peter tem desígnios próprios, típicos do homicídio. Fica também
claro que sua esposa mata filho próprio logo após o parto, movida pela influência do
estado puerperal justificante da tipificação infanticídio.
Neste caso, ela (mãe) responderá por infanticídio e ele por homicídio sem violar a
unidade da ação justamente porque não há a incidência de concurso de pessoas na
hipótese, não havendo, portanto, que se falar na incidência do princípio da unidade
da ação. Unidade da ação é regra aplicável ao concurso de pessoas em sua forma
pura.
Tal princípio só obstou a avaliação do professor Bitencourt porque este despercebeu,
certamente por um piscar de olhos tendo em vista sua notória competência, que o
concurso de pessoas é formado também por elementos subjetivos indispensáveis a
sua configuração.
Para falarmos em concurso de pessoas, deveremos ter: a) pluralidade de pessoas e
de condutas; b) relevância causal de cada conduta; c) liame subjetivo ou psicológico;
d) identidade do ilícito penal.
As letras “c” e ”d” levam à conseqüência de que a pluralidade de agentes deve
ter uma comunhão de finalidade delitiva (identidade entre os elementos subjetivos
do tipo praticado). A ausência de tal compartilhamento de subjetividade impede em
definitivo a configuração do concurso.
Há um concurso perfeito, mesmo com partícipes, quando autores e partícipes
querem furtar um banco e repartir o dinheiro depois. Independente da posição que
ocupam, todos têm os elementos subjetivos do mesmo tipo penal. Todos trabalham
para subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel (o elemento subjetivo do
mesmo tipo está presente em todos os participantes). Isso é concurso de pessoas.
A teoria unitária da ação refere-se a casos como estes onde, efetivamente, mesmo
com a pluralidade de pessoas e ações diferentes, a soma das relações causais
e dos elementos subjetivos forma ação única fragmentada apenas por questões
pragmáticas.
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
121
Havendo diversidade de elementos subjetivos, haverá diversidade delitiva, não
havendo que se falar em concurso ou em princípio da unidade da ação. Como diria o
mestre alemão Welzel, causalidade sem finalidade é causalidade cega.
O professor Bitencourt (2008) sabe da importância dos elementos subjetivos do fato
e que eles determinam a tipificação da conduta, e assevera ser fundamental, no
entanto, a análise do elemento subjetivo que orientou a conduta do terceiro.
O professor também viu em exemplo de mesma ordem a divergência entre os
elementos subjetivos dos agentes. Nesse caso, o terceiro age com dolo de matar
alguém, age com dolo de homicídio, que diríamos, é um dolo qualificado, pois tinha
a finalidade adicional de utilizar a puerpera como instrumento para a obtenção do
resultado efetivamente pretendido, que era dar a morte ao nascente ou recémnascido (BITENCOURT, 2008).
Contudo, não fora notado que tal fator excluiria a incidência do concurso de pessoas
e, conseqüentemente, das regras a ele referentes.
Assim, parece completamente adequada à dogmática penal a possibilidade de, no
caso em tela, aceitar a responsabilização de Peter por homicídio e de sua esposa
por infanticídio, tendo em vista a desconfiguração do concurso de pessoas, evitando,
assim, toda indevida manipulação típica sugerida pelo nobre professor Bitencourt.
Neste caso parece mais adequada a configuração de autoria colateral que, pela
peculiaridade da questão poderia ser entendida como uma autoria colateral
imprópria.
6. Conclusão
Temos como dogma do Direito Penal brasileiro a comunicabilidade de circunstâncias
pessoais quando elementares do tipo, como expresso no art. 30 do CP: “Não se
comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando
elementares do crime.” Trata-se de regra inerente ao concurso de pessoas e só
neste caso aplicável.
Algumas situações geram uma estranheza típica (de justiça?), como ocorre com
o pai ou terceiro que, juntamente com a infanticida, mata alguém. Este terceiro
mesmo não estando sob a influência do estado puerperal poderia se beneficiar das
disposições do art. 30 do CP? Sim, quando houver concurso de pessoas e não,
quando não houver concurso de pessoas.
Havendo autoria colateral, ou seja, tratando-se de situação onde há pluralidade de
agentes, mas não há a configuração de um concurso perfeito não haverá a incidência
do art. 30 do CP. Isso se aplica não só ao infanticídio, mas a todas as potenciais
incidências do referido art. 30.
122
• Doutrina Nacional
Não havendo unidade subjetiva na prática do delito (identidade entre os elementos
subjetivos da conduta dos agentes em relação à figura típica desejada), não haverá
concurso e, conseqüentemente, não haverá aplicação do art. 30 do CP, sendo, então,
possível a responsabilização individualizada de agentes atuantes em um mesmo
fato sem que isso viole o princípio da unidade da ação.
O art. 30 só incide quando houver uma adesão do(s) terceiro(s) ao plano e nos
termos do plano psicológico do sujeito portador das condições pessoais previstas no
tipo penal a ser aplicado.
7. Referências bibliográficas
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret,
2002.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: dos crimes contra a pessoa.
Parte especial. v.2. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRASIL. Código e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
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WELZEL, Hans. Direito Penal. Tradução Afonso Celso Rezende. Campinas: Romana,
2003.
Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho •
123
Palestra
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E LESÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL
MARIA ELMIRA EVANGELINA DO AMARAL DICK
Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais
1. Improbidade administrativa. Conceito. Noções básicas.
O tema apresentado no IV Encontro Nacional do Patrimônio Cultural, em Ouro
Preto, em 13 de março de 2009, refere-se à Improbidade Administrativa e Lesão ao
Patrimônio Cultural.
A expressão improbidade administrativa está inserida em nosso texto constitucional
nos artigos 15, inciso V, que estabelece que a perda ou suspensão dos direitos
políticos somente pode ocorrer, dentre outros casos, na hipótese de improbidade
administrativa, nos termos do artigo 37, § 4º, do mesmo diploma normativo. E o artigo
37, § 4º, de nossa Carta Magna dispõe que os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas
em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
A improbidade administrativa pode ser entendida como equivalente jurídico de
corrupção e malversação administrativas, demonstrando “[...] o exercício da
função pública por seu agente com desconsideração aos princípios constitucionais
expressos e implícitos que regem a administração pública” (PAZZAGLINI FILHO,
2005, p. 17), com desrespeito, em resumo, aos princípios essenciais da legalidade
e da moralidade.
A concretização dessas condutas proibidas reflete a completa inversão das finalidades
administrativas pelo uso ilegal e imoral do poder público ou pela omissão indevida
de atuação funcional, com inobservância dolosa ou culposa das normas legais.
A improbidade administrativa dependerá da presença dos elementos subjetivos
consistentes no dolo e na culpa, configurando a desonestidade e a incompetência
no desempenho das atividades funcionais do agente público em qualquer esfera
estatal.
124
• Palestra
Ademais, como corolário da cidadania, exigem-se dos agentes políticos e públicos
não somente qualidades morais, impostas pela natureza do cargo, mas também
capacitação técnica e profissional para o desempenho de suas nobres e relevantes
funções, para o melhor servir a população destinatária desses serviços públicos.
Sabe-se que atualmente a corrupção é a maior mazela da sociedade brasileira e a
improbidade administrativa é vista como o ilícito civil, a face administrativa do ilícito
penal mencionado, retratando ilegalidades consubstanciadas em enriquecimento
ilícito e lesão ao erário. É também o verso civil do mau emprego do dinheiro público
desviado, o que caracteriza a lavagem de dinheiro dela decorrente, ou seja, advinda
da corrupção (artigo 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98).1 E, por isso, o combate à
improbidade administrativa, com a indisponibilidade de bens do agente quando
necessário, representa, enfim, o combate à própria corrupção e à impunidade.
Na obra acima citada, retiramos a definição de improbidade administrativa dada por
Wallace Paiva Martins Júnior (2001, p. 113):
Improbidade administrativa, em linhas gerais, significa servirse da função pública para angariar ou distribuir, em proveito
pessoal ou para outrem, vantagem ilegal ou imoral, de qualquer
natureza, e por qualquer modo, com violação aos princípios e
regras presidentes das atividades na Administração Pública,
menosprezando os valores do cargo e a relevância dos bens,
direitos, interesses e valores confiados à sua guarda, inclusive
por omissão, com ou sem prejuízo patrimonial. A partir desse
comportamento, desejado ou fruto de incúria, desprezo, falta
de precaução ou cuidado, revelam-se a nulidade do ato por
infringência aos princípios e regras, explícitos ou implícitos,
de boa administração e o desvio ético do agente público e do
beneficiário ou partícipe, demonstrando a inabilitação moral do
primeiro para o exercício de função pública.
Com vistas a normatizar o modelo constitucional de improbidade administrativa,
surgiu a lei da improbidade administrativa – Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992
–, tornando-se verdadeiro documento de defesa da probidade administrativa,
definindo o que se entende por ato de improbidade administrativa, quais seriam seus
sujeitos ativos e passivos, além de regulamentar a forma de punição de condutas,
apresentando rol de sanções que devem ser aplicadas aos autores dos atos de
improbidade administrativa.
Os sujeitos dos atos de improbidade administrativa estão elencados nos artigos
1º, 2º e 3º da Lei nº 8.429/92. O artigo 1º enumera os órgãos ou entidades que
podem ser prejudicados por ato de improbidade administrativa praticado por
agentes públicos, servidores ou empregados que integram seu quadro de pessoal,
devendo-se basicamente concluir que responderá por improbidade administrativa
todo agente público, servidor ou não, que exerce, ainda que transitoriamente e sem
1 Ver: (DICK et al., 2006).
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
125
remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra
forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades
mencionadas nos dispositivos da lei, além dos administradores, empregados e
contratados por entidades privadas que tenham recebido verbas públicas diretamente
ou sob a forma de incentivos fiscais. Deve-se ainda mencionar o terceiro, mesmo não
sendo agente público, que induz ou concorre para a prática de ato de improbidade
administrativa ou dele se beneficie de qualquer forma, com a comprovação de ter
usufruído da conduta espúria, que deverá ser também responsabilizado, ficando
sujeito a todas as sanções previstas na Lei nº 8.429/92, menos, é óbvio, à perda da
função pública caso não seja também agente público2.
Logo, há incidência da Lei nº 8.429/92 a todos aqueles que, mesmo não sendo
rigorosamente agentes públicos estejam em contato com o dinheiro público ou
se beneficiem, direta ou indiretamente, dos efeitos da improbidade administrativa,
culposa ou dolosamente3.
As normas dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92 contemplam as modalidades de
improbidade administrativa, apresentando uma relação meramente exemplificativa
do que se deve entender por essa conduta ilícita.
O artigo 9º enumera os atos que importam em enriquecimento ilícito consistente em
qualquer tipo de vantagem patrimonial obtida indevidamente em razão do exercício
de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas
no artigo 1º da Lei nº 8.429/92. A lei registra o comportamento imoral do agente
público ao desempenhar as atribuições relacionadas à sua função pública, auferindo
dolosamente vantagem patrimonial ilícita e, assim, enriquecendo-se. Vê-se essa
hipótese na utilização de bens públicos para fins privados bem como na utilização
de sua condição de agente público ou político, com a negociação das tarefas que
são inerentes ao cargo, para obtenção de vantagem indevida.
Poderíamos imaginar a exigência de propina para facilitar a aprovação de um projeto
na área cultural ou mesmo a ocorrência dessa aprovação, quando imprópria. A
essência desta normalização reside no enriquecimento ilícito do agente público ou
político, enriquecimento esse que ocorre em virtude do exercício funcional.
O artigo 10 relaciona os atos que importam dano ao erário, constituídos de qualquer
ação ou omissão, dolosa ou culposa, que ensejam perda patrimonial, desvio,
apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades
referidas no artigo 1º da Lei. Não há obtenção de vantagem patrimonial indevida para
o próprio agente, que na realidade atua para lesar o patrimônio público financeiro ou
facilitar a obtenção de ganho patrimonial indevido a terceiro. Há lesão ao erário, que
é o conteúdo econômico financeiro do patrimônio público.
2 3 Ver: (PAZZAGLINI FILHO, 2005. p. 26).
Ver: (OSÓRIO, 1997. p. 74).
126
• Palestra
Toda e qualquer despesa dissociada do interesse público causa lesão ao erário.
Essa hipótese existe, por exemplo, no caso do agente público que dispensa
indevidamente uma licitação para permitir o restauro de um bem cultural por uma
empresa privada que não possui notória especialização. Outros exemplos de lesão
ao erário seriam a contratação de um escritório para a elaboração de inventário com
vistas a tombamento sem a devida licitação e a nomeação de funcionários para
exercerem função em área cultural sem o prévio concurso público.
Nos casos de ausência tanto do enriquecimento ilícito do agente quanto de lesão ao
erário, há a incidência do artigo 11, que enumera os atos que importam violação aos
princípios da administração pública, consistentes em qualquer ação ou omissão que
viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições,
sendo certo que o preceito compreende a violação ou a lesão aos demais princípios
constitucionais expressos na Carta Magna. Não se exige aqui dolo ou culpa na
conduta do agente, bastando a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para
restar configurado o ato de improbidade (STJ – Resp 826.678/GO (2006/0031998-7)
– 2ª T. – Rel. Min. Castro Meira – DJU 23.10.2006) ou prejuízo ao patrimônio moral
da administração pública decorrente da ofensa aos princípios que regem os atos
administrativos, segundo artigo 21, inciso I, da Lei de Improbidade (TRF 4ª R. – AC
2002.71.10.010039-0- 3ª T. - Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
– DJU 03.10.2007). Entretanto, há autores que entendem necessária a presença do
dolo, da má-fé na ação ou omissão funcional.
O atendimento por agente público aos interesses privados de um colecionador de
obra de arte, ou a inserção de dados falsos, equivocados, em laudo técnico com
vistas a favorecer particular em detrimento do interesse público buscado em uma
ação civil pública que geram afronta aos princípios da legalidade, moralidade,
impessoalidade, lealdade, finalidade e eficácia.
Diante desse cenário, vê-se que as autoridades públicas devem se conduzir de
modo a garantir a preservação dos bens culturais materiais e imateriais existentes
nos locais onde atuam, garantia essa que requer não somente a integralidade do
bem em si como também a correta aplicação do dinheiro público e a observância dos
princípios constitucionais e administrativos que regem a matéria.
2. Bem cultural material
Logo, quanto ao bem cultural material, não se tem a possibilidade de realizar
obras que alterem significativamente o aspecto do bem protegido sem as prévias
e necessárias autorizações dos órgãos administrativos competentes em âmbito
federal, estadual e municipal, que seriam em Minas Gerais o IPHAN (artigos 17 e
18 do Decreto-Lei nº 25/37), o IEPHA (artigo 7º, inciso V, da Lei nº 11.726/94) e os
Conselhos Municipais do Patrimônio Cultural. Em Belo Horizonte, a Deliberação nº
106/2003.
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
127
E, dependendo do caso, há de se realizar audiência pública com as comunidades
que suportarão a obra, bem como há de se providenciar o estudo de impacto de
vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou
funcionamento a cargo do poder público municipal, segundo os artigos 36 e seguintes
da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade. O artigo 37 dispõe em seu inciso VII
que o EIV deverá contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento
quanto à paisagem urbana e patrimônio natural e cultural e, conforme artigo 38, não
substituirá a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto ambiental.
Como exemplo, pode-se citar a necessidade de propositura de ação civil pública
de responsabilização por ato de improbidade administrativa perante Vara Federal
da Seção Judiciária ou Vara da Fazenda Pública Estadual ou Municipal quando
ocorresse a realização de obras em área protegida por seu valor histórico e cultural
em desconformidade com as normas de proteção específicas. A edificação em área
tombada deve estrita obediência à fiscalização do IPHAN, em nível federal, a do
IEPHA/MG, em nível estadual, e a do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural
do Município de Belo Horizonte/MG, em sede municipal.
O empreendimento em conjunto ou local protegido por tombamentos em qualquer
esfera sem a prévia aprovação dos respectivos projetos arquitetônicos pelos órgãos
de defesa do patrimônio histórico, em níveis federal, estadual e/ou municipal,
configura a improbidade administrativa em virtude da imprescindível concordância
desses institutos para quaisquer intervenções pretendidas no entorno do local
protegido.
Se, ademais, não se acatar recomendação ministerial para paralisação das obras,
cabe ao Ministério Público ingressar com a competente ação por improbidade
administrativa em face da violação do princípio da legalidade, nos termos do artigo
11, caput, da Lei nº 8.429/92, e, por ferir também as normas concernentes às
alterações em bens tombados, em detrimento do patrimônio cultural brasileiro, com
pedido liminar de suspensão da realização da obra e pedido definitivo de demolição
da construção com retorno da edificação ao seu volume original, quando possível.
A falta de observância por desobediência à recomendação caracteriza a ocorrência
de dolo, ensejando providências por parte do Ministério Público. Vê-se igualmente a
ocorrência da deslealdade e da desonestidade em relação ao órgão da administração
pública que representa o requerido autorizador da obra indevida.
Em palestra proferida em 14 de junho de 2007, durante a Semana do Meio Ambiente,
promovida pelo Ministério Público de Minas Gerais, intitulada “Elaboração de
Planos Diretores em Cidades de Interesse Turístico e Improbidade Administrativa”,
discorremos sobre a imprescindibilidade de elaboração de plano diretor, nos termos
do artigo 41 do Estatuto da Cidade, que representará o fundamental instrumento
legal de política urbana.
O plano diretor será obrigatório para cidades integrantes de área de especial
interesse turístico (artigo 41, inciso IV, da Lei Federal nº 10.257/2001) e conterá
128
• Palestra
as delimitações das áreas nas quais poderão ser impostas as obrigações de
parcelamento e edificações compulsórias. Assim, o plano diretor é ato-condição para
que o município exerça o seu direito de impor as referidas obrigações urbanísticas,
que, ao serem observadas, revelarão o cumprimento da função social da propriedade
urbana, nos termos do artigo 182, § 2º, da Constituição Federal.
A lei municipal que veiculará o plano diretor deverá estar harmonizada com a lei
federal que traçou as diretrizes e normas gerais da política urbana. E, quanto ao
interesse turístico, há de se compatibilizar as condicionantes previstas no plano
diretor, obtidas basicamente pela garantia da participação popular, publicidade
e garantia de acesso, com as disposições já previstas em legislação urbanística
complementar, que fundamentarão as ações municipais de sustentabilidade da área
cultural.
O artigo 52 do Estatuto da Cidade contempla as hipóteses de improbidade
administrativa do prefeito e de outros agentes públicos envolvidos, que não
configuram, por si sós, condutas de improbidade administrativa, sendo necessária
a presença dos demais requisitos previstos na Lei nº 8.429/92 – requisitos básicos
– para a caracterização de ato de improbidade administrativa, por se amoldarem ao
seu conceito, importando em enriquecimento ilícito (artigo 9º), em prejuízo ao erário
(artigo 10) ou em violação aos princípios (artigo 11).
Outra hipótese de improbidade administrativa, em nosso entender, seria a não
observância do processo e dos efeitos do tombamento. Tombar é inventariar, arrolar,
registrar, colocando o bem móvel ou imóvel sob a guarda, proteção e conservação
do Estado (sem a transferência da propriedade), haja vista a presença do interesse
público, em virtude de sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, ou
existência de excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artísticocultural (artigo 1º, caput e § 2º, do Decreto-Lei nº 25/37). Impõem-se limitações
ao exercício de propriedade para a ocorrência da preservação do bem tombado.
Trata-se, pois, de ato declaratório (por declarar o anterior valor cultural de um bem)
e constitutivo (por criar as obrigações/condicionantes, em caráter erga omnes),
configurando ato soberano.
Após a identificação do valor cultural do bem, em processo de tombamento, com a
devida caracterização, tem-se a sua inscrição no livro de tombo respectivo (artigo
4º do Decreto-Lei nº 25/37), cumprindo-se as formalidades legais, bem como a
inscrição no registro imobiliário do ato de tombamento, necessária para a eficácia
com relação a terceiros.
Logo, com o tombamento efetivado por um órgão colegiado composto de
especialistas na área do patrimônio cultural, entendemos que o cancelamento não
pode ocorrer por ato unilateral e discricionário, motivado por propósitos políticos
do agente, estranhos aos méritos culturais. O interesse público para a preservação
do nosso patrimônio cultural prevalece sobre interesses outros de natureza privada
ou partidária, não podendo ocorrer o desfazimento por um ato individual, segundo
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
129
disposição prevista no artigo único do Decreto-Lei nº 3.866/41, que possibilita ao
Presidente da República cancelar o tombamento, e principalmente pelo fato de o
bem, com o tombamento, passar a apresentar uma finalidade difusa e coletiva, em
razão do reconhecimento do valor cultural a ele agregado.
Entende-se que esse Decreto-Lei nº 3.866/41 tornou-se inconstitucional em face da
atual Carta Magna, não só por não estar mencionada a atribuição de cancelamento de
tombamento entre as previstas para o Presidente da República mas também porque
tal cancelamento deveria ocorrer apenas por lei, cumprida a regularidade de seu
aspecto material e formal, a fim de tornar mais segura a proteção. O cancelamento
deve ser precedido, em nosso entender, de procedimento consistente em estudo
prévio acerca da comprovação da anterior inexistência da carga histórica do aludido
bem, o que tornaria ilegal o tombamento realizado. Deve-se também instaurar outro
procedimento administrativo para chamar os interessados/beneficiados com o
tombamento nesta discussão.
Mais do que pensar em anulação deste ato de cancelamento via ação civil pública
(artigo 5º, inciso II, da Lei nº 7.347/85) ou ação popular (artigo 5º, inciso LXXIII,
da Constituição Federal), existe na espécie um ato que decorre da transgressão
de princípio constitucional, notadamente, dos princípios da preservação e proteção
ao patrimônio cultural; da função sociocultural da propriedade e da fruição coletiva
(artigo 216 da Constituição Federal)4.
Sabe-se que a proteção ao patrimônio cultural é obrigação imposta ao poder público,
artigo 216, § 1º, e artigo 23, incisos II e III, da Constituição Federal, determinando
todos os entes federativos a esse cumprimento para segurar a integridade de
bens culturais, bens comuns do povo. É a comunidade a detentora dos direitos
sobre o patrimônio cultural, havendo, assim, a legitimidade do Ministério Público
para ingressar com ações que visem à preservação desse patrimônio. Assim, a
observânica das condicionantes dispostas em lei e no plano diretor trará à baila
o cumprimento da função sociocultural, (artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição
Federal) desse patrimônio específico, com o objetivo de protegê-lo para a presente
e as futuras gerações5. Nessa linha de pensamento, e com base no artigo 215,
caput, da Constituição Federal, deve-se garantir o conhecimento dos bens culturais
à coletividade, consistentes em visitas, informações e integralidade desses bens.
Diante dessas considerações, vê-se que o cancelamento unilateral de um tombamento,
com propósitos políticos e sem buscar a prevalência do interesse público-cultural,
gera a inobservância do artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, caracterizando o
desamparo ao patrimônio cultural brasileiro. Pode ensejar a responsabilização por
ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/92 por
transgressão a princípios constitucionais, ocasionando danos culturais:
4 5 Segundo relação principiológica de: (MIRANDA, 2006, p. 24-32).
Ver: (DICK, 2006).
130
• Palestra
DIREITO ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA –
PREFEITO – CONDUTAS QUE OCASIONARAM DANOS
AMBIENTAIS – INOBSERVÂNCIA DO ARTIGO 225 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CARACTERIZAÇÃO DE ATO
DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – APLICAÇÃO DA LEI
8.429/92 (TJMG – Apelação Cível nº 1.0107.06.999989-7/001
– comarca de Cambuquira – Órgão julgador: 4ª Cam. Cív. –
Rel. Audebert Delage – julgado em: 05/10/2006).
O procedimento de tombamento desenvolvido por um órgão colegiado, com
conhecimento específico na área cultural, não pode ser desfeito por um ato
unilateral, com base em conduta discricionária e arbitrária, em desrespeito absoluto
aos princípios constitucionais de proteção ao patrimônio cultural.
Desse modo, exemplificando, o desfazimento de um tombamento de uma via férrea
por um prefeito municipal, por decreto, para construção de uma estrada, muito
embora possa ser invocado o interesse público na construção da via rodoviária, não
pode ser considerado um ato legal por ter ocorrido a destruição de um patrimônio
com carga valorativa histórico-cultural, já proclamada em inventário e tombamento
anterior. A ausência de um procedimento que pudesse respaldar tal cancelamento,
e a ausência de discussão do tema em audiência pública com a participação da
comunidade envolvida, configura a lesividade do ato, que, como dito, deveria ser
efetivado pela via legal.
A retirada de todos os trilhos e dormentes originais agrediu de maneira irreparável
a própria cultura, não só pelo dano material causado como também pela destruição
dos valores coletivos concernentes ao desenvolvimento daquela comunidade, com
a exploração da ferrovia e advento de melhorias históricas e econômicas trazidas
pelo trem. Surge o dever de indenizar pelo fato danoso irreversível, configurando o
dano moral coletivo.
Se o procedimento de tombamento foi elaborado por um colegiado, entendemos que
o prefeito municipal, ao decretar o seu desfazimento, também é parte incompetente,
por haver a necessidade de se discutir com a comunidade qualquer alteração ou
suprimento no traçado da via férrea anteriormente protegida. Não caberia apenas a
anulação deste cancelamento do ato de tombamento, por lesivo ao patrimônio cultural,
mediante ação civil pública ou por ação popular, mas também a responsabilização
do agente político por ato de improbidade administrativa em face do desrespeito de
princípios constitucionais de preservação do patrimônio cultural, com a conseqüente
nulidade absoluta do ato administrativo e produção de efeitos ex tunc.
Registre-se, por oportuno, que a Lei Federal nº 11.483/2007 que dispõe sobre a
revitalização do setor ferroviário, em seu artigo 2º, inciso II, determina que “os bens
imóveis da extinta RFFSA ficam transferidos para a União, ressalvado o disposto nos
incisos I e IV do caput do art. 8º desta lei”. Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
131
artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua
guarda e manutenção, na qualidade de gestor do patrimônio ferroviário.
Da mesma maneira, deve-se refletir na responsabilização dos membros do Conselho
do Patrimônio Cultural. Os Conselhos podem ser consultivos (com responsabilidade
de julgar determinado assunto que lhes for apresentado), normativos (que tanto
reinterpretam as normas vigentes como também as criam), deliberativos (aos quais
compete o caráter decisório sobre as suas funções) e propositivos (que propõem
ações ao Poder Executivo). Segundo o Decreto nº 5.531/86, que aprovou o Regimento
Interno do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, dispõe
em seu artigo 2º, com alteração da Lei nº 7.430/98, a composição do Conselho, cujos
membros serão indicados pelos órgãos e entidades ali relacionados, tomando posse
perante o Prefeito Municipal. Dessa forma, poder-se-ia entender que há designação do
membro do Conselho do Patrimônio e, mesmo que não haja remuneração específica,
há exercício de função pública, devendo referido membro atuar e posicionar-se em
prol do patrimônio cultural e do interesse público, segundo artigo 216 da Constituição
da República. Não caberá atitude do membro para dar respaldo político-partidário a
ações de agentes hierarquicamente superiores ou com vistas a beneficiar terceiro,
sob pena de responsabilização por ato de improbidade administrativa. No mínimo,
ocorrerá violação a princípios constitucionais e administrativos.
Destacamos também o julgamento do processo nº 1.0461.04.016183-2/004(1),
relator Des. Wander Marotta, em 27/05/2008, que apresenta a seguinte ementa:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
– OFENSA A COISA JULGADA E AO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE – NECESSIDADE DA COMPROVAÇÃO,
PELO AUTOR, DO DOLO E DE CULPA, PRESSUPOSTO
AQUI ATENDIDO. – A Lei nº 8.429/92 é aplicável tanto aos
funcionários públicos quanto aos agentes políticos. – Os atos
de improbidade que violem os princípios da Administração
independem da efetiva constatação de dano ao patrimônio
público. – Presente a demonstração da má-fé por ato do agente
administrativo é procedente a sua condenação por improbidade
administrativa. – A coisa julgada material afigura-se como lei
entre as partes, porque já definitivamente analisada e julgada.
Sua violação, pelo agente político, caracteriza má-fé e a culpa
ou dolo na conduta narrada na inicial.
No caso em tela, a requerida, então prefeita municipal de Ouro Preto, autorizou a
concessão de alvarás e instalação de aparelhagem de som em desconformidade
com a sentença proferida nos autos da Ação Civil nº 461.00.000019-4, editando o
Decreto nº 41, que dispôs sobre a regulamentação do carnaval de 2004 na cidade
de Ouro Preto/MG.
Contudo, na sentença acima mencionada, o magistrado julgou parcialmente
procedente o pedido da ação civil pública proposta pelo Ministério Público, que
132
• Palestra
argumentava acerca da condenação da realização da festa de carnaval e o tráfico
indiscriminado no centro histórico, por colocar em risco o patrimônio histórico
e urbano. O magistrado determinou ao Município de Ouro Preto, então, que se
abstivesse de promover, cooperar, patrocinar, colocar ou autorizar a colocação
de aparelhagem de sons mecânicos dirigidos – tão-somente – para a realização
das festas carnavalescas em locais determinados; que se abstivesse de conceder
alvarás para funcionamento de comércio no período carnavalesco, com sonorização
mecânica externa, além, dentre outras ações, de manter livres e desimpedidas pelo
menos duas vias de acesso ao hospital municipal.
Viu-se que a prefeita desrespeitou decisão judicial transitada em julgado, tendo
deixado de observar o comando da sentença nos autos nº 0461.00.00019-4 e o
Decreto-Lei nº 25/37, agindo negligentemente, com culpa e desamparando bens
que fazem parte do patrimônio histórico e cultural do país, violando os princípios da
administração, que se enquadram no artigo 11 da Lei de Improbidade e independem
da efetiva comprovação de dano ao patrimônio público, desrespeitando também os
artigos 17, 18 e 20 do Decreto-Lei 25/37. Houve condenação da ré ao pagamento de
multa civil de 30 vezes o valor da remuneração por ela recebida à época da conduta,
proibição de contratação com o poder público e/ou receber benefícios fiscais ou
creditícios e suspensão de direitos políticos pelo prazo de 4 anos.
3. Bem cultural imaterial: topônimo
Dick (1990b p. 22) leciona que “[...] se a Toponímia situa-se como crônica de um
povo, gravando presente para o conhecimento das gerações futuras, o topônimo é o
instrumento desta projeção temporal [...]”.
Dentro desse estudo, apresenta-se como tópico analítico de bem cultural imaterial
a contextualização do topônimo inserido em seu seio social.
Segundo Dick (1990a, p. 1), “[...] desde os mais remotos tempos, o homem sempre
deu nome aos lugares. E o sentido desses denominativos é o ponto de partida para
investigações no campo da lingüística, geografia, antropologia, psicossociologia,
enfim, da cultura em geral [...]”.
A Toponímia, que é uma disciplina científica da ciência Onomástica, como estudo
lingüístico e histórico da origem dos topônimos (nomes próprios de lugar), visa
também à análise da estrutura do topônimo, revelando o registro da cultura e dos
valores dos lugares.
Ao designar tradicionalmente o nome próprio de lugar, o
topônimo, em sua formalização na nomenclatura onomástica,
liga-se ao acidente geográfico que identifica, com ele
constituindo um conjunto ou uma relação binômica, que se
pode seccionar para melhor se distinguirem os seus termos
formadores. (DICK, 1990a, p. 10).
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
133
[...] através das camadas onomásticas, revelam-se, numa
perspectiva globalizante, as feições características do local,
sejam as de ordem física quanto socioculturais. De tal modo,
esses aspectos se corporificam nos topônimos que se podem
mesmo, muitas vezes, estabelecer a correlação entre o nome
dos acidentes e o ambiente em que ele se acha inscrito. (DICK,
1990a, p. 35).
Considerando o topônimo como um patrimônio cultural imaterial, torna-se necessário
revelar o significado do que vem a ser o nome6. Existem duas maneiras práticas de
identificá-lo:
a) É constituição ou formação fonêmica, ou seja, a palavra é formada como outra
qualquer da língua, constituída de vogais e consoantes emitidas pelo aparelho
fonador e transmitidas ao cérebro por audição. Essa seria uma característica
fonético-fonológica, sem consideração significativa.
b) Para que ocorra comunicação interpessoal, porém, é necessário que os falantes
usem o mesmo código lingüístico, ou seja, tenham a mesma língua, para que
conheçam o significado das formas lingüísticas ou palavras emitidas.
A interação entre significante (expressão oral) e significado (sentido da forma emitida)
configura a semântica das línguas, permitindo o completar da comunicação entre os
indivíduos.
Os nomes ainda exercem, sem sombra de dúvida, um fascínio inexplicável sobre as
pessoas, trazendo em si a reminiscência da mística que sempre envolve a nomeação,
desde os primeiros tempos da Antiguidade Clássica.
Como está escrito no Evangelho de São João (1,1), “No princípio, era o Verbo e o
Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. No início era o Verbo, o Verbo habitou
entre nós e a Palavra foi formada.
Os antigos não revelavam o nome a estranhos para que seu portador não
sofresse danos irreparáveis, como “perda da alma”, que passava, daí em diante,
a pertencer àquele que conheceu o segredo do nome. Este pensamento também
estava instalado entre os Tupinambás do litoral brasileiro. Do antigo Egito vinha a
crença, perpassando por várias regiões até chegar a nós, de que o nome revelado
a estranhos era um caso perdido, pois com ele ia também a própria personalidade.
Isso porque, na prática, acreditavam que o homem era formado de três elementos:
corpo, alma (ou espírito) e nome. O nome era, assim, uma entidade que caminhava
por forças mágicas paralelamente ao corpo.
Da palavra comum da língua forma-se o nome das coisas, dos objetos, das pessoas,
6 DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral, aulas ministradas no Curso de Graduação e Pós-Graduação
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
134
• Palestra
dos lugares. E esse nome específico torna-se a marca identitária ou a identificação
personalíssima desse objeto que não pode mais ser alterado. Segundo Dick, se
há mudança ou trocas, permitindo-se a alteração, instala-se o caos social e a
comunicação ou o traço identificador das coisas e seres não existe mais.
O nome pessoal que antecede o de família – prenome – é imutável, conforme artigo
58 da Lei nº 6.015/73, e não pode ser trocado a partir do momento em que for inscrito
no registro público, a não ser na hipótese de causar problemas ao seu portador por
apresentar semelhança a formas pejorativas e deprimentes, resultar em cacofonia
ou gerar dubiedade de identificação sexual. Em outras palavras, o prenome pode ser
mudado quando for evidente o seu erro gráfico ou quando ocorrer exposição do seu
portador ao ridículo, nos termos do parágrafo único do artigo 58 da Lei nº 6.015/73.
Com os estrangeirismos pode ocorrer esse fenômeno, pois o usuário emprega o
nome muitas vezes por um gosto pessoal ou porque o som da palavra é diferente,
denotando sua origem não nacional. Há quem prefira essa forma de nomear distante
de nossas matrizes, mostrando preferências pelo uso do que vem de fora.
Ao escolher o nome de um filho, entre outros critérios, passa-se pelo critério de
nomes geracionais, que visam à conservação do nome de família; nomes da moda,
que são cíclicos, e nomes perenes, como os nomes bíblicos. Em razão da força
que o nome possui, pode-se querer transmitir ao homenageado as intenções das
características físicas do seu primeiro portador, ou as características psíquicas,
morais, de valores e condutas da personalidade envolvida.
Evidentemente, que a esta motivação inicial agregar-se-ão todos os valores,
comportamentos e condutas perseguidos e adotados vida a fora pela própria pessoa,
que poderá confirmar ou se distanciar do propósito inicial. De qualquer forma, o nome
será sempre a assinatura da pessoa e pertencerá ao seu patrimônio identitário, à
sua própria personalidade.
O mesmo ocorre com os nomes de lugares e logradouros públicos. À motivação
original, agregar-se-á o desenrolar da história que consolida e consagra a
denominação, fornecendo valores culturais a esta entidade onomástica. Desse
modo, impõe-se aos governantes a preservação dos topônimos consagrados, que
fazem parte do patrimônio coletivo daquela comunidade. Torna-se, assim, imperioso
combater o despreparo ou o oportunismo de prefeitos, vereadores, agentes que
destinam suas atividades à alteração de nomes de ruas e logradouros, concedendo
títulos à sua clientela7 e aos seus eleitores.
A Toponímia configura, portanto, valioso documento científico para resgatar a história
dos espaços urbanos e dos nomes dos acidentes geográficos. O referencial pode
ser maior que o próprio nome oficial. Em São Paulo, por exemplo, o nome “Ponte
Cidade Jardim” é o nome referencial, forte, conhecido e que, por ligar dois bairros
– Jardim Europa e Cidade Jardim – por cima do Rio Pinheiros, torna sem utilização
7 Ver: (TOLEDO, 2009, p. H 16).
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
135
popular, cotidiana, o posterior nome do homenageado “Engenheiro Roberto Rossi
Zúccolo”. Logo, a toponímia espontânea deve prevalecer sobre as denominações
concedidas por agentes públicos, à revelia da participação popular.
Em São Paulo, por iniciativa do então Vereador Arnaldo Madeira, houve a inclusão
da Toponímia na Lei Orgânica Municipal, relacionada com a identidade, a ação e
a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, para ser preservada
pelo município, em razão de seu valor histórico-cultural, nos termos do artigo 192,
parágrafo único, inciso VI, da referida lei, datada de 06 de abril de 1990.
No intuito de melhor disciplinar a matéria, temos ainda como exemplo as Leis
nº 7.133/96 e 6.916/95, do Município de Belo Horizonte, que regulamentam a
denominação dos próprios públicos, determinando a sua ocorrência por lei (artigo 1º
da Lei nº 7.133/96 e artigo 6º da Lei nº 6.916/95). O projeto de lei que visar a alteração
deverá estar instruído com abaixo-assinado firmado por pelo menos sessenta por
cento dos moradores da via a ser renominada (artigo 5º da Lei nº 7.133/96 e artigo
14, da Lei nº 6.916/95). Há ainda a Lei nº 14.454/2007, do Município de São Paulo,
que veda a denominação de via ou logradouro público com nome de pessoa viva
(artigo 2º), vedando também a alteração de denominação de próprios e obras de
arte municipais, cuja denominação já se consagrou tradicionalmente e se incorporou
na cultura da cidade (artigo 9º), mesmo que o nome não tenha sido objeto de ato de
autoridade competente (artigo 4º).
Vêem-se, assim, as buscas municipais para regulamentar as denominações e
possíveis alterações de nomenclatura de ruas e logradouros públicos, que se juntam
à Lei Federal nº 6.454/77.
4. Conclusão
Entende-se que não há a possibilidade de alterar ou mesmo nomear a denominação
pública a não ser que haja discussão com as bases, em audiência pública,
consultando-se a população diretamente interessada, na forma de plebiscito, em
razão da relevância sociocultural da matéria envolvida, que, assim, manifestará a
sua opinião, a ser expressa em lei posterior, se for o caso.
Tudo a impedir que ocorram alterações com propósitos político-partidários e para
fins de homenagens a apadrinhados políticos. O mesmo deve ser dito no tocante
à escolha do primeiro nome do lugar. A alteração unilateral por agente político,
sem discussão com as bases, não representa a prevalência da vontade popular
– detentora desse patrimônio onomástico – que muitas vezes reage com placas,
passeatas e discussões para manutenção ou retorno do nome tradicional. Como
exemplo, pode ser citado o caso de “Calambau”, que foi substituído por Presidente
Bernardes, distrito do Município de Piranga/MG.
Desse modo, caberá ao Ministério Público a propositura de ação civil pública para
se anular o nome arbitrário, sem origens históricas e sem respaldo comunitário,
136
• Palestra
para conservação do nome que retrate o referencial e o tradicional, presente no
coração do povo. Ora, havendo alteração para fins políticos, manobras populistas e
homenagens indevidas ter-se-á violação aos princípios administrativos da moralidade
e da impessoalidade, com lesão ao artigo 216 da Constituição Federal, tornando-se
pertinente a responsabilização por ato de improbidade administrativa dos agentes
envolvidos, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, em razão do prejuízo moral
vivenciado pela coletividade, detentora desse patrimônio onomástico. E, no caso de
comprovação de gastos ilícitos ao erário, amoldar-se-á a conduta ao disposto no
artigo 10 da Lei nº 8.429/92.
Em sites sobre a cidade de Ouro Preto, obteve-se a informação da existência de uma
denominação oficial paralela a uma denominação tradicional quanto à denominação
de ruas, mantendo-se no coração do povo o nome ditado pela tradição. Essa
divergência se dá uma vez que a troca dos nomes ocorre sem a prévia consulta
ao povo, que é o principal interessado na manutenção ou alteração do nome do
logradouro e também no próprio batismo inicial. Como exemplo, podemos apresentar
a seguinte relação, alcançadas em endereços eletrônicos:
Denominação Oficial a) Rua Conde de Bobadela
b) Rua Senador Rocha Lagoa
c) Praça Reinaldo Alves de Brito
d) Praça Silviano Brandão
e) Rua Alvarenga
f) Rua Cláudio de Lima
g) Rua Randolfo Bretãs
h) Rua Antônio de Albuquerque
i) Praça Barão do Rio Branco
j) Rua Conselheiro Quintiliano
k) Rua Cláudio Manoel
l) Rua Coronel Alves
m) Rua Henri Gorceix
n) Rua Salvador Trópia
o) Rua Carlos Tomaz
p) Rua Henrique Adeodato
q) Praça Cesário Alvim
r) Rua Dom Silvério
s) Rua Teixeira Amaral
t) Rua Donato da Fonseca
u) Rua Pandiá Calógeras
Denominação Tradicional
Rua Direita
Rua das Flores
Praça do Cinema
Largo da Alegria
Ruas das Cabeças
Beco dos Bois
Rua das Escadinhas
Rua da Glória
Praça do Circo
Lages
Rua do Ouvidor
Rua do Carmo
Rua Nova
Beco da Ferraria
Rua do Gibu
Cruz das Almas
Praça da Estação
Palácio Velho
Ladeira São José
Ponte Seca
Ladeira do Gambá
Acredita-se no impedimento da alteração dos nomes de centros históricos tombados,
já consagrados na cultura popular, como tutela ao meio ambiente cultural, não
havendo possibilidade de exame no caso concreto de conveniência política, sob
pena de se ferir princípios científicos acerca do tema, ligados à historicidade do
topônimo.
Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick •
137
Desse modo, o resgate e a preservação da Toponímia, assim como dos bens culturais
materiais, constituem uma observância do exercício da cidadania, que, segundo
artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal, fundamenta o Estado Democrático de
Direito, em clara conservação da cultura, da memória e da identidade dos povos,
conforme artigo 216 do mesmo diploma normativo. E o desrespeito a esses bens
pode ensejar a responsabilização por ato de improbidade administrativa, nos termos
anotados neste estudo.
Ouro Preto, 13 de março de 2009.
5. Referências bibliográficas
DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral e outro. Crime de Lavagem de Dinheiro.
Belo Horizonte: CEAF/MPMG, 2006a.
DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. I
Exposição de inclusão sociocultural promovida pela coordenadoria das Promotorias
de Justiça de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de Minas Gerais.
Revista MPMG Jurídico. Belo Horizonte, Ano 1, n. 4, p. 70-71, fev./mar. 2006b.
DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e Antroponímia no Brasil.
Coletânea de Estudos. 2. ed. São Paulo: São Paulo, 1990a.
______. A motivação Toponímica e a Realidade Brasileira. São Paulo: Arquivo do
Estado, 1990b.
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva,
2001.
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 1997.
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2005.
TOLEDO, Benedito Lima de. Desorientando São Paulo. In: São Paulo 455 anos de
O Estado de S. Paulo. São Paulo, 25 de janeiro de 2009. p. H 16.
138
• Palestra
Diálogo Multidisciplinar
VALORES ORGANIZACIONAIS E CONFIGURAÇÕES DE PODER: AS
ORGANIZAÇÕES POLICIAIS MINEIRAS EM FOCO
ROSÂNIA RODRIGUES DE SOUSA
Pesquisadora da Fundação João Pinheiro/MG
MARIA DAS GRAÇAS TORRES DA PAZ
Professora colaboradora da Universidade de Brasília/PSTO
RESUMO: O estudo das características culturais das organizações policiais contribui
para um maior conhecimento do funcionamento desse tipo de instituição. Assim, o
objetivo deste artigo é analisar o perfil cultural das organizações policiais em Minas
Gerais, quais sejam a Polícia Militar e a Polícia Civil, caracterizando-as a partir do
estudo de seus valores organizacionais e de suas configurações de poder. Para
isso, foram aplicadas escalas validadas a 300 policiais militares e a 190 policiais
civis da 1ª Região Integrada de Segurança Pública em Belo Horizonte. Os resultados
revelaram que o valor organizacional preponderante nas duas instituições é o valor
Conformidade. Por sua vez, a configuração de poder que mais caracteriza a Polícia
Civil, bem como a Militar, é a configuração Autocracia. Resultados da análise de
regressão múltipla hierárquica revelaram que 25% da configuração Arena Política,
na Polícia Civil é explicada pelo modelo formado pelos valores Preocupação com
a coletividade, Domínio, Autonomia/Autodeterminação, Tradição e Conformidade.
Os resultados foram discutidos e comparados entre as duas organizações policiais
mineiras. Sugestões para novas pesquisas foram propostas.
PALAVRAS-CHAVE: cultura organizacional; valores organizacionais; configurações
de poder; organizações policiais.
ABSTRACT: The study of the characteristics of the culture of police organizations
helps a better understanding of how this kind of organizations work. Therefore, the
main aim of this article is to analyse the cultural profile of the police organizations
in the State of Minas Gerais, Brazil, the Military Police and Civil Police, and to
characterize them by using their organizational values and their power configurations.
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
139
In order to characterize them, validated scales were used with 300 military police
officers and 190 civil police agents of the 1st Integrated Public Security Region in Belo
Horizonte, Minas Gerais. The results revealed that the ruling organizational value
in both organizations is the conformity value. Besides, the power configuration that
better characterizes the Military and Civil Polices is the configuration Autocracy. The
results of the analysis of the hierarchical multiple regression revealed that 25% of the
configuration Political Arena in Civil Police is explained by the model composed of the
values Concern about the society, Domain, Autonomy/autodetermination, Tradition
and Conformity. The results of both organizations were discussed and compared and
sugestions for further research were made.
KEY WORDS: organizational culture; organizational values; power configurations;
police organizations.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Método. 3. Resultados e discussão. 3.1. O perfil cultural
das polícias civil e militar. 3.2. Relação entre valores organizacionais e configurações
de poder. 3.3. Impacto dos valores organizacionais nas configurações de poder. 4.
Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O estudo da cultura das organizações é considerado uma preocupação ainda
recente, quando comparado a outros fenômenos mais investigados no mundo
organizacional. Talvez por isso há uma variedade de conceitos que tentam representar
de forma adequada os diferentes componentes da cultura bem como a interação
entre eles. Destacam-se Hosfstede (1980, p. 21), que define a cultura como “[...] a
programação coletiva da mente que diferencia os membros de um grupo humano de
outros”; Trompennars (1994, p.145), para o qual cultura é “[...] um sistema comum
de significados, que nos mostra a que devemos prestar atenção, como devemos
agir e o que devemos valorizar [...]”, e Schein (1990), um dos estudiosos mais
conhecidos e citados quando o tema é “cultura organizacional”, que define a cultura
organizacional como:
O conjunto de pressupostos básicos que um grupo inventou,
descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os
problemas de adaptação externa e integração interna e que
funcionaram bem o suficiente para serem considerados
válidos e ensinados a novos membros como forma correta
de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas.
(SCHEIN, 1990, p.109).
O modelo conceitual de cultura organizacional proposto por Schein (1990) é
dinâmico, podendo essa cultura ser apreendida por meio de diferentes níveis: 1 – os
artefatos visíveis, que são facilmente obtidos, mas difíceis de serem interpretados;
2 – os valores dizem muito sobre a cultura, já que orientam a vida da organização
140
• Diálogo Multidisciplinar
e direcionam o comportamento de seus membros e 3 – os pressupostos básicos
que estão localizados no nível mais profundo e de difícil acesso e tendem a ser
inconscientes.
Mais recentemente, Paz e Tamayo (2004) propuseram um modelo de análise do
perfil cultural das organizações, concebendo a cultura como formas de sentir, pensar
e agir compartilhadas nas organizações. O modelo tem como variáveis componentes
os valores organizacionais, as configurações de poder, os estilos de funcionamento
organizacional e os princípios de justiça como variáveis do núcleo da cultura e os
mitos, ritos e jogos de poder como variável no nível das práticas culturais. Para os
autores, traçar o perfil cultural de uma organização consiste em identificar aquelas
características que mais representam a sua identidade cultural. Considerando a
necessidade de demandas das organizações para a identificação desse perfil de
uma forma mais ágil, mas sem comprometer a qualidade da análise, o modelo se
baseia na abordagem quantitativa, com a aplicação de questionários em amostras
representativas da organização, construídos a partir de entrevistas e suporte teórico,
embora a identificação de mitos e ritos utilize a abordagem qualitativa de análise.
Os autores salientam que o perfil cultural da instituição pode ser levantado a partir
da análise de todas as variáveis propostas no modelo ou a partir de algumas delas,
caso desta pesquisa, que utilizou o modelo de Paz e Tamayo (2004) para traçar o
perfil cultural das organizações policiais mineiras.
No Brasil, em linhas gerais, o ciclo policial é realizado pelas polícias militar e civil.
As funções de patrulhamento ostensivo uniformizado e controle do trânsito são
atribuídas às polícias militares, enquanto às polícias civis atribuem-se as atividades
de investigação criminal e o exercício de polícia judiciária, no âmbito dos Estados e
do Distrito Federal. Nesse sentido, em Minas Gerais, o policiamento ostensivo é de
responsabilidade da Polícia Militar enquanto a polícia judiciária e investigativa fica a
cargo da Polícia Civil.
Se, por um lado, as polícias civis brasileiras se caracterizam por uma cultura jurídica,
por outro, as polícias militares, consideradas forças reservas do Exército brasileiro,
encaixam-se na cultura militar. Essas organizações estão passando por um processo
de integração em Belo Horizonte. A identificação dos seus perfis culturais pode
subsidiar a gestão da nova forma de organização do sistema de defesa, visando à
adoção de estratégias e procedimentos compatíveis com os padrões culturais mais
fundamentais das duas instituições.
Assim, no presente artigo, tem-se como primeiro objetivo analisar o perfil cultural das
organizações policiais em Minas Gerais, quais sejam a Polícia Militar e a Polícia Civil,
caracterizando-as a partir do modelo proposto por Paz e Tamayo (2004), dando ênfase
à identificação de seus valores organizacionais e de suas configurações de poder. O
segundo objetivo consiste em relacionar os valores organizacionais com as configurações
de poder. Para tanto, a seguir, faremos uma breve revisão de literatura sobre valores
organizacionais e configurações de poder que subsidiarão a análise empírica.
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
141
Os valores organizacionais – Os valores nas organizações funcionam como “guias”
que orientam a vida da instituição e o comportamento de seus empregados (PAZ e
TAMAYO, 2004). Os valores compartilhados entre os membros de uma organização,
segundo Tamayo (1998, p.58), têm como uma de suas das funções criar nessas
pessoas “[...] modelos mentais semelhantes relativos ao funcionamento e à missão
da organização”. Essa função, de acordo com o autor, visa impedir que percepções
da empresa, do comportamento organizacional e das tarefas a serem realizadas
afetem negativamente a organização.
De acordo com Freitas (1991), os valores constituem o coração da cultura, pois
estabelecem os padrões que devem ser alcançados na organização oferecendo uma
orientação diária ao comportamento dos empregados. Essa autora afirma, também,
que os valores são resistentes ao tempo e por isto mesmo são sempre enfatizados.
Neste sentido, pode-se dizer que os valores referem-se àquilo que é importante para
atingir o sucesso e que compõem a construção da identidade social da organização,
já que determinam, de forma parcial, o que ela é e a forma como ela se percebe.
Paz e Tamayo (2004) afirmam que os valores organizacionais, além de guiarem
o comportamento dos integrantes de uma organização, determinam como os
comportamentos serão julgados/avaliados, bem como os eventos da organização.
Eles são abordados através de oito valores: Realização; Conformidade; Domínio;
Bem-estar do empregado; Tradição; Competência; Autonomia e Ética Organizacional,
que se distribuem em três dimensões, expressas por eixos. Assim, o valor Bemestar organizacional avalia, segundo Tamayo (2005, p.203), “[...] a preocupação da
organização em construir um ambiente de trabalho prazeroso, com alta qualidade de
vida, bem-estar e satisfação do trabalhador”. O valor Prestígio está ligado à imagem
da organização perante a sociedade bem como à necessidade de ser conhecida
e admirada por todos. Já o valor Domínio está relacionado à preocupação com a
obtenção de lucros e com o domínio de mercado. O valor Autonomia expressa as
práticas da organização, voltadas para o estímulo da criatividade, do desafio e da
inovação no ambiente de trabalho. O valor Preocupação com a coletividade avalia,
por sua vez, a preocupação da organização em oferecer um ambiente de trabalho
justo, igualitário, sincero e honesto a seus funcionários. O valor Realização tem como
foco a valorização da competência do funcionário, enquanto o valor Conformidade
valoriza o respeito às normas da organização, a cortesia e as boas maneiras do
funcionário. Já o valor Tradição tem como objetivo manter a tradição e os costumes
na organização. A partir desses valores são traçadas as prioridades axiológicas das
organizações. O modelo de análise dos valores organizacionais se fundamentam
em Schwartz (1999), que propôs a teoria dos valores humanos, entendidos
como fatores motivacionais, os quais são dispostos em quatro eixos: “abertura a
mudança” (estimulação, autodeterminação, hedonismo) versus “conservadorismo”
(Conformidade e Tradição) e “autotranscendência” (universalismo e benevolência)
versus “autopromoção” (poder e realização), tendo sido desenvolvidos vários estudos
a partir de então. Pode-se dizer, enfim, que os valores organizacionais permitem
142
• Diálogo Multidisciplinar
predizer o funcionamento da instituição e o comportamento de seus empregados e
gestores. Por este motivo, são tão valiosos para as organizações.
No Brasil a ênfase sobre valores organizacionais se inicia com os estudos de
Álvaro Tamayo, proponente do construto valores organizacionais a partir da teoria
de Schwartz. Dentre esses estudos, destacam-se: o estudo de Gondim e Tamayo
(1996), que teve como objetivo identificar a hierarquia de valores da instituição
CNPq, de acordo com a percepção de seus funcionários; o de Tamayo (1998), que
verificou a relação entre comprometimento afetivo com valores organizacionais,
satisfação no trabalho e comportamento de cidadania organizacional; o de Mendes
e Tamayo (2001), que visou identificar as relações entre valores organizacionais e as
vivências de prazer-sofrimento no trabalho; o de Borges, Argolo e outros (2002), que
analisou a relação entre valores organizacionais e os níveis da síndrome de burnout
em três hospitais universitários do Rio Grande do Norte; o de Miguel e Teixeira
(2009), que objetivou verificar a relação entre valores organizacionais e a criação
do conhecimento; o de Mendonça e Tamayo (2005), que investigou relações entre
valores e retaliação organizacional. Como uma das relações ainda não estabelecida
é a relação entre valor organizacional e configurações de poder – segundo objetivo
deste trabalho – será explorada, a seguir, a literatura sobre poder organizacional.
O poder nas organizações – É inegável a permanente atualidade dos estudos sobre
o poder nas organizações. Considerando apenas a última década do século XX e
a primeira do século XXI, constata-se a diversidade de abordagens sobre o tema.
A título de exemplo, salientam-se, dentre outros, os seguintes estudiosos: Dwyer
(1991), que investigou como o humor se reflete nas relações e na distribuição de poder
nas organizações; Cotton (1994), que pesquisou o comportamento organizacional,
tendo a variável classe social como preditora do poder nas organizações; Clemente,
que relacionou os papéis da liderança com cultura e poder organizacional; McNulty
(1995), o qual identificou que o poder da administração é proporcionado por
fatores contextuais e culturais; Paz (1997), que relacionou estruturas de poder com
avaliação de desempenho nas organizações; Vargas (1998), que realizou um estudo
que identificou quais são os tipos de configurações que melhor representavam as
relações de poder presentes na Embrapa; Paz (1999), que investigou poder e justiça
organizacional; Bruins, Ellemers e De Gilder (1999), que investigaram a influência
do uso do poder e das competências dos superiores nas respostas avaliativas e
comportamentais dos subordinados.
No século XXI, esse interesse se mantém. Paz (2004) aborda poder e saúde
organizacional; Enns e Mc Farlin (2005) estudaram a influência, a fim de compreender
os processos mais usados pelos executivos para ganhar o apoio dos seus pares
na implantação de inovações; Zhang (2006) centrou-se no estudo da liderança
localizada na cúpula de uma empresa; Colarezzi, Spranger e Hechanova (2006)
estudaram as diferenças sexuais no poder e tentaram explicar a assimetria entre
homens e mulheres na ocupação de cargos de alta gerência; Spranger, Hechanova
e Schlegelmilch (2007) utilizaram abordagens políticas e contingenciais para
investigar os mecanismos de controle usados por multinacionais para gerir suas
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
143
sedes no estrangeiro, dentre outras. Não há como negar que um autor de destaque
no estudo do poder nas organizações é Mintzberg (1983, 1992), que constrói uma
teoria robusta de poder organizacional, definindo-o como a capacidade de afetar o
comportamento organizacional.
De acordo com Paz (2004), o foco da Teoria do Poder Organizacional de Mintzberg é
analizar o poder dentro e em torno das organizações, sendo que as configurações por
ele propostas podem ser empiricamente comprovadas. Para Paz e Tamayo (2004),
a teoria de Mintzberg parte da premissa de que o comportamento organizacional é
um jogo de poder em que vários jogadores, considerados influenciadores, procuram
controlar as ações organizacionais através da utilização das bases de poder e de
habilidades pessoais e vontade para investir energia na organização.
Mintzberg (1983) propõe uma tipologia das configurações de poder que é resultante
da interação entre: 1 – coalizões externas e internas da organização; 2 – os sistemas
de influência (autoridade, ideológico, especialista e político) e 3 – o sistema de
metas (sobrevivência, controle, eficiência, crescimento e metas ideológicas formais
e pessoais compartilhadas).
Os elementos básicos do poder, segundo esse mesmo autor, são os jogadores que
podem pertencer ou não à estrutura da organização, mas que tem a intenção de
exercer influência nos resultados organizacionais. Esses influenciadores utilizam
como meio de controle das decisões organizacionais a autoridade, a ideologia, a
especialidade ou perícia e a política. Ainda segundo o autor, pode haver relação
entre o sistema de poder interno da organização e o ambiente externo através dos
influenciadores que constituem coalizões que interagem, com o objetivo de adquirir
poder em relação à organização, formando, assim, a coalizão externa (CE) e a
coalizão interna (CI).
Compõem a coalizão externa (CE) diferentes grupos, tais como: proprietários,
associados, associações e públicos. Já a coalizão interna é formada pelos membros
da organização, que vivenciam seu cotidiano e são distribuídos em diferentes níveis
hierárquicos. Neste artigo serão consideradas as configurações de poder propostas
por Mintzberg (1983). A partir das configurações de poder, é possível identificar as
culturas organizacionais autocráticas, instrumentais, missionárias, meritocráticas,
autônomas e arenas políticas:
- Autocracia: aqui, o poder é concentrado no mais alto chefe da organização, que
define e maximiza as metas a serem atingidas.
- Instrumento: as organizações que têm esse tipo de configuração servem de
instrumento para o alcance de objetivos claramente estabelecidos por um indivíduo
ou um grupo de fora da instituição.
- Missionária: o grande influenciador neste tipo de configuração é a ideologia, que
mantém a coalizão passiva e favorece a forte identificação dos seus membros com
as metas e os objetivos ideológicos.
- Meritocracia: os especialistas têm o poder com base nas habilidades e no domínio
144
• Diálogo Multidisciplinar
de conhecimento e constituem os mais fortes influenciadores internos.
- Sistema Fechado: os próprios membros da organização, especialmente seus
administradores, são os grandes controladores das decisões organizacionais.
- Arena Política: essa configuração é típica de organizações em crise. Há o aumento
da atividade política e a diminuição das forças de integração.
No Brasil, alguns estudos sobre a dinâmica do poder nas organizações têm sido
desenvolvidos. Podemos citar: Paz (1997), que estabeleceu relações entre estruturas
de poder e avaliação de desempenho; Vargas (1998), que realizou um estudo em
que identificou quais são os tipos de configurações que melhor representavam as
relações de poder presentes na Embrapa; Martins e Paz (2000), que desenvolveram
uma pesquisa sobre as interações entre configurações de poder e comprometimento;
Paz, Mendes e Gabriel (2001), que relacionaram configurações de poder com estilos
de caráter nas organizações; Flausino e outros (2001), que construíram e validaram
um instrumento de bases de poder; Neiva e Paz (2004), Guimarães e Martins
(2008), que investigaram a relação existente entre a interação do trabalhador com
seu meio e com seus colegas de trabalho e como essa interação reflete no seu
comprometimento com a organização e com sua equipe de trabalho; Paz (2008),
que relacionou configurações com estresse nas organizações.
A investigação das variáveis valores organizacionais e das configurações de poder
no exterior e no Brasil têm-se intensificado, de forma que é justificável caracterizar o
perfil cultural das organizações policiais mineiras a partir delas e identificar o impacto
dos valores nas configurações de poder.
2. Método
Para atingir os objetivos propostos, foi realizada uma pesquisa com abordagem
quantitativa. Dois instrumentos foram utilizados para a coleta de dados. O primeiro
deles, o inventário de Perfil dos Valores Organizacionais (IPVO), construído e validado
por Oliveira e Tamayo (2004), composto de quarenta e oito itens que descrevem
características de organizações que servem como referentes para a identificação
dos valores e possibilitam o reconhecimento das prioridades axiológicas. Tratase de uma escala de seis níveis, que varia de um (é muito parecida com a minha
organização) até seis (não se parece com minha organização). Os itens medem os oito
valores já descritos: Realização, Conformidade, Domínio, Bem-estar do empregado,
Tradição, Realização, Autonomia e Preocupação com a coletividade, todos com
índices de precisão e confiabilidade satisfatórios, com alphas de cronbach acima de
0,70. O segundo instrumento de medida utilizado foi a Escala de Configuração de
Poder Organizacional, construída e validada por Paz & Neiva (2005), composta de
cinqüenta itens. É uma escala de cinco pontos, que varia de zero (não se aplica) até
quatro (totalmente aplicável). Os itens dessa escala avaliam seis configurações que
correspondem às configurações de poder de Mintzberg (1983). São elas: Autocracia,
Instrumento, Missionária, Meritocracia, Sistema Autônomo e Arena Política, todos
também com alphas de cronbach acima de 0,70. As escalas foram entregues aos
respondentes e preenchidas individualmente.
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
145
A população pesquisada corresponde aos policiais civis e militares, integrantes das
unidades operacionais de Belo Horizonte. Estas unidades (Companhias de Polícia
Militar e Delegacias de Polícia Civil) compõem as vinte e quatro Áreas Integradas
de Segurança Pública, que, por seu turno, compõem a 1ª Região Integrada de
Segurança Pública, na capital. Cerca de 3.000 policiais militares compõem o universo
da pesquisa, enquanto na Polícia Civil, são 1.000 policiais. A amostra estratificada
selecionada foi constituída de 300 policiais militares, entre oficiais e praças, bem
como 190 policiais civis, dentre delegados, escrivães e agentes de polícia que
responderam aos instrumentos da pesquisa.
Com relação aos participantes, verificou-se que a idade média dos policiais militares
é de 36 anos, enquanto a dos policiais civis é de 38 anos. O tempo médio de serviço
nas duas organizações é de 14 anos. Entre os participantes, na polícia militar,
dezessete (17) são do sexo feminino e duzentos e noventa e seis (296) são do
sexo masculino, sendo que quatro participantes não informaram o sexo. Na polícia
civil, do total de participantes, cinqüenta e cinco (55) são do sexo feminino e cento
e trinta (130) são do sexo masculino, cinco (5) não informaram o sexo. Dentre
os participantes, noventa e três (93) policiais militares ocupam cargo de chefia e
cento e noventa e oito (198) não ocupam. Na PM, nove (9) participantes não deram
essa informação. Na Polícia Civil, trinta e sete (37) participantes ocupam cargo de
chefia e cento e trinta e oito (138) não ocupam, sendo que quinze participantes não
informaram.
3. Resultados e discussão
3.1. O perfil cultural das polícias civil e militar
As respostas obtidas na aplicação dos dois instrumentos foram submetidas à análise
do SPSS (Statistical Package of Social Science, versão 14.0). Uma primeira análise
foi realizada no banco de dados, com o objetivo de verificar a existência de dados
faltosos, que foram substituídos por valores médios em função do pequeno número
de casos. Não foram identificados outliers. Também foi feita a inversão da escala
de valores e realizadas análises descritivas (freqüências, médias, desvio-padrão) e
correlações de Pearson. Para avaliar o impacto dos valores sobre as configurações
de poder, foram realizadas regressões lineares hierárquicas a partir das quais os
resultados foram interpretados.
As médias e os desvios-padrão obtidos com as respostas dos polícias civis e militares
ao instrumento de perfil dos valores organizacionais são apresentados na tabela 1.
146
• Diálogo Multidisciplinar
Tabela 1: Médias e desvio-padrão das amostras para os fatores relativos aos
valores organizacionais (PMMG/PCMG)
Fatores
Médias
Desvio-padrão
PMMG
PCMG
PMMG
PCMG
Realização
4,198 (5º)
3,130(5º)
1,03451
1,29644
Conformidade
5,005(1º)
4,253(1º)
0,77779
1,19203
Domínio
2,863(8º)
2,180(7º)
1,12390
0,97601
Bem-estar do
empregado
3,145(7º)
2,061(8º)
1,22637
1,10479
Tradição
4,508(3º)
3,746(2º)
0,79956
1,22167
Prestígio
4,645(2º)
3,483(3º)
1,03547
1,31406
Autonomia
3,628(6º)
2,633(6º)
1,03494
1,26019
3,156(4º)
1,02519
1,35221
Preocupação com
4,287(4º)
a Coletividade
Fonte: dados da pesquisa
As prioridades axiológicas das duas organizações são semelhantes. A análise
das médias dos fatores relativos aos valores organizacionais aponta que o valor
Conformidade obteve a maior média para ambas as organizações. O 2º valor no
ranking da PM é Prestígio, seguido de Tradição, ocorrendo a ordem inversa na PC. O
4º, 5º, e 6º valor no ranking das duas instituições são os mesmos, respectivamente:
Preocupação com a coletividade, Realização e Autonomia; O 7º valor da PM é Bemestar e o 8º, Domínio, ocorrendo a ordem inversa na PC em relação a esses dois
últimos valores do ranking.
Esses dados apontam que tanto na Polícia Militar quanto na Polícia Civil os
respondentes percebem como valor máximo da organização a Conformidade, que
enfatiza a obediência às regras do trabalho bem como aos superiores hierárquicos.
Porém, considerando que a escala de valores organizacionais é de 6 pontos (1 a 6 )
e que o ponto médio da escala é 3,5, podemos admitir que a percepção desse valor é
mais forte na PM que na PC. Não só em relação ao valor Conformidade mas também
em relação aos demais a força da percepção dos valores organizacionais é maior na
Polícia Militar que na Polícia Civil. O teste de diferença entre as médias dos valores
(Teste t pareado) foi calculado para cada uma das organizações, encontrandose diferenças significativas entre as médias de todos os valores. Pode-se então
considerar que as culturas organizacionais das Polícias Civil e Militar priorizam a
Conformidade. O comportamento organizacional é dinamizado por esse valor, que
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
147
é compartilhado pelos que fazem a organização, induzindo formas de sentir, pensar
e agir compatíveis com esse princípio orientador do comportamento organizacional.
No entanto, é importante destacar que, além da média do valor Conformidade na
PM ser maior que a da PC, também o desvio-padrão referente à média do valor
Conformidade na PM é menor que na PC. Dessa forma, pode-se assumir que há
maior força e maior homogeneidade de percepção desse valor na PM.
Considerando as prioridades axiológicas das duas polícias, poder-se-ia até admitir
que elas se assemelham, se o foco fosse apenas o ranking dos valores. Entretanto,
a diferença maior se deve ao nível de compartilhamento das percepções dos
respondentes. O desvio padrão das médias, indicador de compartilhamento das
percepções, que deve ter como valor máximo aceitável 20% da escala (DP = 1,20),
é ultrapassado apenas na média do valor Bem-estar do empregado na PM, ou seja,
há menor compartilhamento na percepção desse valor, retratando não ser um traço
característico dessa cultura organizacional, o que é reforçado também pela média (3,
14), que fica abaixo do ponto médio da escala (3,50). Considerando as médias acima
do ponto médio da escala e os desvios-padrão das médias de no máximo 1,20, podese admitir que o comportamento organizacional da PM é orientado por princípios de
Conformidade, Prestígio, Tradição, Preocupação com a coletividade, Realização e
Autodeterminação, com as prioridades axiológicas na ordem apresentada. O valor
Conformidade, no entanto, é o mais importante princípio orientador do comportamento
organizacional, o principal traço cultural da organização baseado em valores.
Com base no mesmo critério de um desvio-padrão da média de no máximo 1,20, na
PC o compartilhamento das percepções dos respondentes é menor. Com exceção
das médias dos valores organizacionais de Conformidade, Domínio e Bem-estar
do empregado, todas as demais médias ficaram com o desvio-padrão acima de
1,20. Esses dados revelam que os valores de Tradição, Realização, Prestígio,
Autodeterminação e Preocupação com a coletividade não constituem traços tão
marcantes da cultura da PC, o que também é confirmado pelas médias situadas
abaixo do ponto médio da escala para os valores anteriormente citados, com
exceção do valor Tradição, cuja média foi 3,74, numa escala de 6 pontos. Assim
sendo, pode-se considerar que o valor característico da cultura organizacional da
PC é o valor Conformidade, quando considerados o desvio-padrão e a média de
todos os valores.
A menor homogeneidade de percepção dos membros da PC em relação aos valores
pode ser melhor compreendida com os resultados obtidos sobre as configurações de
poder organizacional, cujas médias e respectivos desvios-padrão são apresentados
na tabela 2.
148
• Diálogo Multidisciplinar
Tabela 2: Médias e desvio-padrão da amostra para fatores relativos às Configurações
de Poder (PMMG/PCMG)
Fatores
Médias e classificação
Desvio-padrão
PMMG
PCMG
PMMG
PCMG
Autocracia
(1º) 2,744
(1º) 2,585
0,60008
0,62198
Instrumento
(4º) 2,002
(5º) 2,187
0,73439
0,92097
Missionária
(2º) 2,477
(3º) 2,227
0,52303
0,76808
Meritocracia
(5º) 2,085
(4º) 2,202
0,59496
0,68404
Sistema
Autônomo
(3º) 2,112
(6º) 1,826
0,54756
0,77555
Arena Política
(6º) 1,973
(2º) 2,272
0,67283
0,87066
Fonte: dados da pesquisa
Os dados da tabela 2 revelam que a configuração de poder predominante na PM
e na PC é a Autocracia. Considerando que o ponto médio da escala é 2, uma vez
que a escala de cinco pontos vai de 0 a 4, constata-se que essa configuração de
poder é muito percebida como característica da cultura organizacional na PM e
razoavelmente percebida como traço cultural da PC. A configuração de poder nos
indica como o poder se estrutura na organização para afetar o comportamento
organizacional. No caso das culturas autocráticas, o poder é centralizado na cúpula
da organização, que tem toda a autoridade formal, define e prioriza metas assim
como o suporte físico e psicossocial, enfim, controla todas as funções críticas e
centraliza os fluxos de informação.
Além de se revelar uma cultura autocrática, a PM também apresenta traços de
uma cultura missionária, tendo em vista que se volta para uma missão ideológica
que influencia a dinâmica organizacional, a de servir à comunidade. As médias e
os seus respectivos desvios-padrão, que, no caso da escala de cinco pontos, não
deve ultrapassar 1,0, são indicadores de que as duas configurações traçam o perfil
cultural da PM, mas, de fato, a característica cultural predominante é a Autocracia.
Como houve diferença significativa entre as médias das duas configurações ao nível
de 0,05, é possível fazer essa consideração.
Por seu turno, na Polícia Civil, a segunda configuração mais percebida foi Arena
Política. Esta configuração é representada por uma atividade política máxima, em
que predomina o conflito e prevalece a tentativa constante de satisfazer objetivos
individuais não atendidos e organizacionais, neste último caso quando há a percepção
de que os objetivos organizacionais estão sendo desviados. Essa configuração tem,
geralmente, um caráter temporário, podendo surgir em momentos de transição ou
como uma tentativa de realinhamento do poder. Talvez o reconhecimento dessa
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
149
configuração na organização se justifique, principalmente, a partir de 2003, quando
a coordenação das organizações policiais passa a ser incumbência da Secretaria de
Defesa Social, o que acarreta profundas mudanças no sistema de defesa do Estado,
especialmente na Polícia Civil.
Na realidade, a Arena Política não pode ser considerada um traço cultural, mas um
momento de crise, que pode redundar em mudança em certas características culturais
das organizações. Talvez, em função dessa crise, que nem é tão profunda, pois a
média da configuração é 2,27, portanto uma característica apenas razoavelmente
percebida pelos respondentes, é que há pouca homogeneidade e baixa intensidade
nas percepções relativas a alguns dos valores organizacionais. Em situação de crise
nem sempre há clareza em relação a determinados processos e procedimentos que
marcam o contexto de trabalho, especialmente se eles estão em transição. O teste
de diferença entre médias (teste t pareado) revelou diferenças significativas ao nível
de 0,05 entre as médias de Autocracia e Arena política na PC, o que nos leva a
crer que podemos considerar que essa organização tem uma cultura autocrática,
mas que se encontra em crise. Neste caso, é importante atentar para a terceira
configuração percebida pelos polícias civis que participaram da amostra, que é a
configuração Missionária. É possível que a Arena Política presente na PC esteja
revelando que a configuração Missionária pode estar se fortalecendo em detrimento
da configuração autocrática (ou o contrário pode ocorrer, um fortalecimento ainda
maior da Autocracia).
Como é claramente percebido nos resultados apresentados na tabela 2, todas as
configurações são identificadas nas duas organizações. Esse é um resultado possível
segundo a Mintzberg (1992), mas uma configuração normalmente é a prevalente.
Assim, pode-se considerar que as duas polícias são também culturas autocráticas.
Enfim, com base nos valores e nas configurações de poder organizacionais,
é adequado afirmar que o perfil cultural das organizações policiais de BH tem
como traços mais marcantes de suas identidades a Conformidade e a Autocracia,
embora se diferenciem em relação à força do compartilhamento dos valores e das
configurações de poder.
3.2. Relação entre valores organizacionais e configurações de poder
Além de caracterizar o perfil cultural das organizações policiais mineiras, um
segundo objetivo do artigo foi o de correlacionar as configurações de poder
organizacional com os valores organizacionais, o que ainda não havia sido feito
nas pesquisas publicadas, conforme retratado no levantamento de literatura. Para
verificar a existência de correlação entre a percepção de valores organizacionais e
as configurações de poder nas organizações pesquisadas, utilizou-se a correlação
bivariada de Pearson.
Na tabela 3 são apresentadas as correlações entre os oito valores e as seis
configurações de poder que integram as respectivas escalas. Na tabela, encontra-se
indicado o nível de significância das correlações (p).
150
• Diálogo Multidisciplinar
Tabela 3: Correlações entre as configurações de poder e os valores organizacionais
Realização
Conformidade
Domínio
Autocracia
Instrumento
Missionária
Meritocracia
Sistema
Autônomo
Arena
Política
0,022
-0,332**
0,424**
-0,097*
0,387**
-0,406**
0,122**
- 0,283**
0,313**
-0,195**
0,097*
-0,333**
0,060
0,021
0,132**
0,137**
0,257**
-0,028
Bem-estar do
empregado
- 0,056
-0,230**
0,341**
-0,056
0,417**
-0,290**
Tradição
0,261**
-0,023
0,137**
-0,010
0,035
Prestígio
0,035
-0,300**
0,375**
-0,127**
0,270**
-0,343**
Autonomia
(Autodeterminação)
- 0,035
-0,314**
0,429**
-0,067
0,460**
-0,383**
Preocupação com
a coletividade
- 0,011
-0,391**
0,438**
-0,157**
0,372**
-0,424**
*p< 0,05
-0,041
**p< 0,01
De acordo com a tabela 3, o valor organizacional de Realização tem sua correlação
mais alta (positiva) com a configuração de poder Missionária, seguida do Sistema
Autônomo, revelando que os policiais que percebem a sua organização como
missionária ou Sistema Autônomo são os que mais consideram que a organização
valoriza a competência do empregado. O valor Domínio tem sua correlação positiva
mais forte, embora baixa, com a configuração Sistema Autônomo, indicando que
os policiais que percebem a sua organização com essa configuração são os que
também a percebem como valorizadora do controle do ambiente externo, evitando
que pessoas desse contexto interfiram em suas decisões e ações. O valor Bemestar tem sua correlação mais alta (positiva) com a configuração Sistema Autônomo,
demonstrando que é nesta configuração de poder que o bem-estar dos empregados
é mais valorizado, conforme a percepção dos respondentes. O valor Tradição
está mais positivamente relacionado à configuração Autocracia, revelando que
os que mais vêem sua organização como autocracias também a percebem como
mantenedora dos costumes já arraigados e de suas tradições. O valor Autonomia
é mais percebido por aqueles que reconhecem a configuração de poder da sua
organização como uma configuração autônoma. Assim sendo, os que consideram
que a sua organização valoriza a criatividade, o desafio e a inovação no ambiente
de trabalho também consideram que sua organização evita o exercício de influência
de pessoas externas no seu contexto interno. Por fim, o valor Preocupação com a
coletividade teve sua correlação mais alta (positiva) com a configuração Missionária,
retratando que aqueles que percebem a sua organização valorizando a manutenção
de ambiente justo, igualitário, sincero e honesto para seus funcionários também
a percebem como ideologicamente comprometida com a missão de servir a
comunidade.
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
151
É interessante observar que todos os valores organizacionais se correlacionaram
positiva e significativamente com a configuração de poder Missionária e todos se
correlacionaram negativamente com a configuração Arena política. Tal resultado
talvez indique que a configuração Missionária é mais aberta à vivência de práticas
decorrentes de todos os tipos de valores organizacionais, enquanto na configuração
Arena Política ocorreria o contrário.
A análise das correlações entre valores e configurações de poder organizacionais,
a partir da percepção dos policiais civis e militares que compuseram as amostras
da PC e da PM de Belo Horizonte, reflete que as configurações com valores mais
consistentes e que orientam a vida organizacional são as configurações percebidas
como autocrática, missionária e autônoma. A configuração Autocracia é mais
orientada por valores de Conformidade; a configuração Missionária, por valores de
Preocupação com a coletividade e a configuração Sistema Autônomo, por valores
de Autonomia. As demais configurações retrataram correlações negativas com os
valores organizacionais.
3.3. Impacto dos valores organizacionais nas configurações de poder
Para testar o modelo dos valores organizacionais como variável preditiva das
configurações de poder, realizou-se a análise de regressão múltipla, utilizando-se
o método hierárquico. Não sendo identificada a ocorrência de multicolinearidade,
todos os valores e configurações de poder permaneceram como variáveis do modelo
de regressão. As variáveis demográficas entraram no primeiro bloco como variáveis
controladas e os valores, no segundo bloco. Foram feitas regressões para cada uma
das configurações de poder.
As análises revelaram que a variável preditora de Autocracia é o valor Tradição
(R²=.0,105 e Beta = 0,27). Tal resultado indica o baixo poder de predição dos valores
em relação à configuração autocrática, mas aponta que a Autocracia é mais percebida
por aqueles que consideraram a Tradição um princípio orientador do comportamento
da sua organização.
A configuração Instrumento tem como preditores os valores Preocupação com a
coletividade, Domínio, Tradição e Prestígio, sendo o poder de explicação do modelo
correspondente a R2=0,20. Neste modelo, o valor que melhor explica a configuração
Instrumento é Preocupação com a coletividade (Beta= - .38), seguido dos valores
Domínio (Beta= 0,20), Prestígio (Beta = -0,16) e Tradição(Beta= 0,13). Como o beta
dos valores Preocupação com a coletividade e Prestígio são negativos, concluise que, quanto mais os policiais vêem a sua organização com uma configuração
Instrumento, menos eles percebem os valores Preocupação com a coletividade
e Prestígio e mais percebem que a sua organização é orientada por valores de
Domínio e Tradição.
152
• Diálogo Multidisciplinar
Por sua vez, a percepção da configuração Missionária é explicada pelos valores
Preocupação com a coletividade (Beta= 0,26 e Autonomia (beta= 0,21) com R² = 0,20),
indicando que quanto mais se percebe a configuração Missionária, mais se percebem
os valores Preocupação com a coletividade e Autonomia.
Com relação à configuração Meritocracia, o modelo que tenta explicar a sua percepção
tem um poder preditivo muito baixo e é composto dos valores Domínio e Conformidade,
este último numa relação negativa (R2= 0,07).
A configuração Sistema Autônomo é explicada por um modelo composto dos valores
Autonomia, Conformidade (R2=0,19), com beta = 0,23 e -0,22, respectivamente. Podese concluir que, quanto mais os polícias percebem a sua organização como um sistema
autônomo, mais eles consideram que o valor Autonomia orienta o comportamento da
sua organização, ocorrendo o inverso com o valor Conformidade.
Por fim, a configuração Arena Política é explicada pelo modelo composto dos valores
Domínio (beta= 0,19), Autonomia (beta= 0,20) e Tradição (beta= 0,20), sendo o R²
= 0,23. Entende-se que quando a Arena Política é percebida como configuração de
poder da organização, menos se percebe o valor organizacional de Autonomia e mais
se considera a força de valores de Domínio e Tradição, talvez revelando o conflito
entre os que querem mudança e os que querem manter a sua organização sem muitas
transformações, evitando influências do contexto e tentando controlá-lo.
4. Conclusão
O presente estudo procurou caracterizar o perfil cultural das Polícias Civil e Militar a
partir dos valores e das configurações de poder organizacional e estabelecer relações
entre essas duas variáveis do núcleo da cultura das organizações.
Os resultados apontam que as organizações policiais têm em sua cultura como valor
principal a Conformidade, na percepção dos policiais civis e militares, apontando que o
comportamento organizacional é regido por regras e ações que impõem a aceitação e
sujeição dos indivíduos aos comandos organizacionais, incluindo os dos superiores.
Outro ponto já destacado refere-se àquilo que caracteriza uma organização policial,
quais sejam seus pilares básicos, que são a hierarquia e a disciplina. Nas organizações
policiais em geral há uma ênfase na obediência às regras de trabalho bem como ao
superior hierárquico. Na PMMG, além do valor Conformidade, destacam-se também
nessas culturas os valores Prestígio, Tradição e Preocupação com a coletividade, nessa
ordem, enquanto na PCMG foram percebidos os mesmos valores, apenas invertendo a
ordem de prioridade, isto é, Tradição, Prestígio e Preocupação com a coletividade. Esses
Valores apontam para questões importantes nas organizações pesquisadas. Se, por
um lado, os policiais militares se sentem pertencentes a uma organização de prestígio,
por outro, os policiais civis se percebem numa organização mais tradicionalista. Já o
valor Preocupação com a coletividade, que também é percebido pelas organizações
policiais, traz em seu bojo questões afetas à honestidade e ao tratamento igualitário
Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz
153
para todos. Pode-se dizer que este valor tem uma importância especial em se tratando
de uma organização policial, seja ela civil ou militar. A razão de existir desse tipo de
organização está relacionada com a possibilidade de proporcionar um ambiente
seguro na sua área de atuação, no caso específico de ambas as organizações, o
Estado de Minas Gerais. Assim, dentre outras coisas, espera-se que esse profissional
seja um cidadão justo, cortês e honesto, pois ele detém o uso exclusivo da força, que
lhe é dado pelo Estado, que é por eles representado. Esse tratamento justo deve
ser também o tratamento recebido pelo profissional no seu local de trabalho. Com
relação aos resultados verificados nos valores organizacionais que mais caracterizam
as polícias mineiras, pode-se destacar que, com relação à Polícia Civil, apenas o
valor Conformidade pode ser considerado muito estabelecido, já que se encontra
bem acima do ponto médio da escala. Por sua vez, o valor Tradição, que também
está localizado acima do ponto médio da escala, indica ser um valor estabelecido na
organização. Já na Polícia Militar, verificamos que apenas dois valores encontram-se
abaixo do ponto médio da escala e, dos que se encontram acima, apenas um está
estabelecido na média (Autonomia/Autodeterminação). Os demais, pode-se dizer,
estão completamente estabelecidos.
A configuração de poder que melhor caracteriza as culturas das Polícias Civil e
Militar, na percepção dos respondentes, é a configuração Autocracia. Destaca-se que,
embora em ambas as organizações os respondentes tenham percebido a presença
da configuração Autocracia, essa percepção se dá de forma mais homogênea na
PMMG (DP= 0,600) do que na Polícia Civil (DP= 0,622). Enquanto na PMMG a
segunda configuração mais percebida foi a configuração Missionária, na Polícia
Civil foi a configuração Arena Política. Essas diferenças de percepção em termos
de preponderância das configurações de poder talvez expressem os momentos
diferentes por que passam ambas as organizações policiais no Estado. Na Polícia
Militar, a presença da configuração Missionária talvez esteja relacionada a uma forte
identificação de seus membros com as metas e os objetivos estabelecidos pela polícia
de resultados. Por sua vez, na Polícia Civil, a percepção da configuração Arena
Política talvez seja reflexo do momento de mudanças substantivas por que passa
a organização em decorrência do processo de Integração da Gestão de Segurança
Pública no Estado. Essas mudanças acabam por impactar mais a Polícia Civil do que
a Polícia Militar trazendo, assim – é a nossa impressão – um aumento considerável da
atividade política (disputas entre diferentes forças internas da organização) resultando
na predominância do conflito e, conseqüentemente, na diminuição das forças de
integração.
Outra questão pode estar ligada ao fato de que nos últimos anos essas organizações
vêm passando por modificações consideráveis, seja em termos de estrutura de
trabalho como também na forma de trabalhar, considerando aí o processo de
integração por que passam as organizações do sistema de defesa social do Estado
o que, certamente impacta a maneira de se perceber a organização. Assim, embora
os dados obtidos possibilitem uma maior compreensão da cultura das organizações
policiais no Estado de Minas Gerais, levando a um maior conhecimento deste tipo de
organização, considera-se válido que outros trabalhos sejam desenvolvidos para que
154
• Diálogo Multidisciplinar
possam suprir as limitações de um modelo de análise de perfil cultural com abordagem
apenas quantitativa.
Quanto às correlações detectadas entre os valores organizacionais e as configurações
de poder, os resultados apresentaram-se lógicos do ponto vista teórico e também
refletem a realidade das organizações. Tomando como base as correlações mais
altas, pode-se dizer que houve correlações positivas entre configuração Autocracia e
o valor Tradição, Missionária e Preocupação com a coletividade, Sistema autônomo
e Autonomia, Meritocracia e Domínio; correlações negativas entre configuração
Instrumento e o valor Preocupação com a coletividade, Arena política e Preocupação
com a coletividade (esta configuração teve correlações negativas com todos os valores).
As configurações Missionária e Sistema autônomo parecem ser as culturas que mais
viabilizam a prática de todos os valores, conforme a percepção dessa amostra.
Conforme já foi demonstrado, os valores organizacionais não são fortes preditores
das configurações de poder. Embora concebidos como princípios orientadores
do comportamento organizacional, os valores não se caracterizaram mais
acentuadamente como tal em relação às configurações de poder. Talvez esse resultado
esteja retratando que os valores são abstrações difíceis de serem concretizadas num
instrumento de medida quantitativo. Mas também é adequado considerar que outros
tipos de valor, como o da cultura onde as organizações estão inseridas, ou os valores
típicos da profissão ou do trabalho, ou mesmo os valores pessoais e características
de personalidade comuns dos membros das organizações, tenham mais impacto
nas configurações de poder. Ainda é necessário considerar que, em sendo as duas
variáveis do mesmo nível organizacional, impactos de peso não podem ocorrer. Dessa
forma, mais estudos precisam ser desenvolvidos com outros fenômenos do mundo
organizacional como preditores das configurações.
Por fim, é importante ressaltar que os resultados obtidos com esta pesquisa não podem
ser generalizados, o que implicaria, em relação ao segundo objetivo da pesquisa de
estabelecer relações entre as configurações de poder e os valores organizacionais,
uma amostra composta por um número bem maior de organizações. Mas pode-se
dizer que, mesmo assim, este trabalho tenta preencher uma lacuna existente nos
estudos de valores e poder organizacional, já que até a presente data não se tem
conhecimento de trabalhos semelhantes na literatura científica.
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Artigo • 161
Jurisprudência • 186
Comentário à Jurisprudência • 189
Direito
Penal
2
Artigo
A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA – A PESSOA JURÍDICA
PODE DELINQÜIR?
ADIRSON ANTÔNIO GLÓRIO DE RAMOS
Major da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais
RESUMO: A responsabilidade penal da pessoa jurídica está ganhando novos
contornos, fazendo com que haja uma reconstrução da dogmática tradicional onde
as noções de ação e de culpabilidade foram construídas em torno da pessoa natural
tendo como ponto de partida o homem, excluindo-se a pessoa jurídica. Nesse
contexto, se destacam a corrente romano-germânica e a dos países filiados ao
Common Law, cujo antagonismo ou dualismo jurídico-criminal é relativizado a partir
da interação e auto-influência dos sistemas, fazendo com que o direito caminhe para
a plenificação da responsabilidade penal do ente coletivo, principalmente em face da
nova criminalidade, com destaque para os crimes econômicos e ambientais. Faz-se
mister operar uma verdadeira reconstrução do ponto de partida da dogmática atual,
tradicional, centrada no homem, para conceitos de ação e de culpabilidade ponto de
partida a sociedade e, não, o homem.
PALAVRAS-CHAVE: responsabilidade penal; Common Law; corrente romanogermânica.
ABSTRACT: The criminal liability of the legal entity is gaining new contours, and
thus re-building the traditional dogma in which the culpability and action notions were
based on the natural person (the legal entity is excluded). In this context, the RomanGermanic branch and the Common Law, whose antagonism or legal-criminal dualism
is relativized by means of the interaction and auto-influence of the systems, are
quite dettached from each other. Thus, Law steps towards thoroughness of criminal
liability of the collective entity, due to the new criminality, especially the economic
and environmental crimes. It is of the utmost importance to operate a real shift in
the current, traditional dogma, from its center in the man to the culpability and action
concepts centered in the society.
KEY WORDS: criminal liability; Common Law; Roman-Germanic branch.
Adirson Antônio Glório de Ramos •
161
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Antecedentes históricos. 2.1. Babilônia. 2.2. Índia.
2.3. Direito hebreu. 2.4. Direito romano. 2.5. Os glosadores. 2.6. Os canonistas.
2.7. Os pós-glosadores. 2.8. Direito muçulmano. 2.9. Direito francês. 2.10. Direito
português e brasileiro. 2.11. Contornos atuais. 3. Teorias da ficção, da realidade e
do status. 3.1. Teoria da ficção. 3.2. Teoria da realidade. 3.3. Teoria do status. 4. A
dogmática jurídico-penal. 4.1. Argumentos contrários à responsabilidade penal das
pessoas jurídicas. 4.2. Argumentos favoráveis à responsabilidade penal das pessoas
jurídicas. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A máxima expressada por meio do brocardo latino societas delinquere non potest (a
sociedade não pode delinqüir) prevaleceu soberana e majoritária por um longo tempo.
Entretanto, o pensamento humano evoluiu e com ele o Direito. Esse brocardo latino
foi assumido como um princípio na interpretação do direito penal, significando para a
tradição germânica que não se pode ou não se poderia responsabilizar penalmente
uma pessoa jurídica, uma vez que o juízo penal de condenação somente é afeto ao
indivíduo como pessoa física, o que foi reforçado com a distinção entre pessoa física
e pessoa jurídica (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 34).
Atualmente, o entendimento de que à sociedade era inaceitável a sua punibilidade
a título penal está ganhando novos contornos e juristas consagrados passam a
admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica, antes reservada às searas do
direito administrativo e do direito civil fazendo surgir um forte movimento com vistas
à responsabilização penal da pessoa jurídica, principalmente no âmbito dos delitos
econômicos e ecológicos. O tema é atual, bastando reportar à legislação estrangeira,
em especial a entrada em vigor do novo Código Penal francês, a partir de 1994,
quando se viu uma verdadeira responsabilidade das pessoas jurídicas ou morais.
Cabe ressaltar ainda o anteprojeto suíço, as propostas de lei belga e canadenses
em 1993 e a Recomendação 18 do Conselho Europeu ,de 1988. No Brasil, tem-se o
disposto no art. 173, § 5º, da Constituição Federal. Na Alemanha, doutrinariamente
foram publicadas, no período de 1993 a 1994, cinco monografias abordando o tema,
além do crescente número de artigos publicados em revistas jurídicas (TIEDEMANN,
1999, p. 25).
Sendo de ampla discussão na atualidade, a possibilidade de aplicação de sanções
penais às pessoas jurídicas encontra duas correntes antagônicas. Os países de
cultura jurídica romano-germânica, dentre os quais Alemanha, Itália, Espanha,
Bélgica, Grécia, Suécia e Suíça, em que o princípio societas delinquere non potest,
encontra-se fortemente sedimentado na doutrina, admite-se a punibilidade das
pessoas jurídicas apenas administrativa ou civilmente, apesar do amplo debate que
se tem travado em torno do assunto. Por outro lado, países como a França, Inglaterra,
Irlanda, Estados Unidos e Austrália, em suma, nos países de origem anglo-saxônica
em que vigora o Common Law, admite-se a punibilidade ou responsabilidade penal
da pessoa jurídica. Nesses países tem-se o princípio societas delinquere potest.
162
• Direito Penal
No entanto, esse antagonismo ou dualismo jurídico-criminal, é relativizado a partir
do momento em que os sistemas se interagem ou se auto-influenciam. A título
de exemplo, países de tradição romano-germânica como a Holanda, a França, a
Finlândia e Dinamarca vêm admitindo a responsabilidade penal da pessoa jurídica,
sendo relevante mencionar que alguns países europeus têm previsão legal para tal
tipo de responsabilidade.
Portanto, são duas as correntes que discutem a possibilidade de aplicar ou não
sanções penais às pessoas jurídicas. Nos países filiados ao sistema jurídico
romano-germânico, por sinal a maioria, vige o princípio de que a sociedade não pode
delinqüir, sendo inadmissível a sua punibilidade na seara penal, admitindo que ao
ente coletivo cabe a aplicação de sanção somente de cunho administrativo ou civil.
Por outro lado, nos países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências
vige o princípio do Common Law, admite-se a responsabilização penal da pessoa
jurídica (BITENCOURT,1999, p. 51).
No Brasil a discussão teve início praticamente com o advento da Constituição de
1988 (art. 173, § 5º, e art. 225, § 3º) e da lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998,
as quais diante de muita controvérsia possibilitam responsabilizar criminalmente
as pessoas jurídicas, o que em tese vai de encontro ao Direito alemão e italiano,
os quais influenciaram a legislação penal brasileira. Observa-se que no Direito
brasileiro a discussão em torno do tema também é divergente. Autores consagrados,
verdadeiros destaques revelados pela doutrina brasileira sustentam com veemência
a inconstitucionalidade da disposição contida no art. 3º da Lei nº 9.605/98, “[...]
contestando que a Lei Fundamental de 1988, em seus artigos 173, § 5º, e 255, §
6º, tenha autorizado a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, e enfatizam
que as pessoas morais (como gostam de designar os franceses) só se sujeitam a
sanções administrativas” (SOUZA, 2004, p. 26), dentre os quais elenca-se René
Ariel Dotti, Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior,Luiz Réges Prado e José
Cretella Júnor. Em oposição à tese pode-se relacionar publicistas de estirpe, dentre
os quais José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Pinto
Ferreira e ambientalistas como Paulo Afonso Leme Machado e Vladimir Passos de
Freitas (SOUZA, 2004, p. 26).
O art. 173, § 5º, da Constituição preconiza que “[...] a lei, sem prejuízo da
responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a
responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com a sua natureza,
nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia em
particular”, abrindo espaço para uma nova interpretação dogmática. Assim, a corrente
que contesta a tese de que a atual Constituição consagrou a responsabilidade penal
da pessoa jurídica baseada no dispositivo constitucional conclui que não há que se
confundir a responsabilidade da pessoa jurídica com a responsabilidade pessoal
de seus dirigentes, tendo a Constituição somente condicionado a responsabilidade
do ente coletivo à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza. Assim, a
responsabilidade penal continua a ser pessoal, nos termos do art 5º, inciso XLV, da
CF/88 (BITENCOURT, 1998, p. 68).
Adirson Antônio Glório de Ramos •
163
Sobre os sistemas penais, nos países cujos sistemas se baseiam nos princípios do
direito continental europeu está sedimentado o princípio societas delinquere non
potest sendo, portanto, inaceitável a responsabilização penal da pessoa jurídica,
admitindo-se somente a aplicação de sanções administrativas ou civis. Esse é o
sistema adotado pela maioria dos países da Europa e da América Latina. Ao contrário,
os países anglo-saxões e aqueles que receberam a influência do sistema admitem
a responsabilização das pessoas jurídicas na seara penal. As questões pertinentes
ao sujeito e à norma jurídica constituem o grande entrave para se admitir de forma
plena a responsabilização do ente coletivo, fazendo com que a corrente doutrinária
que se posiciona contrariamente ao instituto busque guarida na assertiva de que
segundo a atual dogmática penal, a ação e a culpabilidade, bem como a função e
a essência da pena são incompatíveis com a pessoa jurídica (BACIGALUPO,1998,
p. 29-30).
Nesse sentido, o tema adquire maior conflituosidade a partir do momento em que
enxergamos como princípio basilar do direito penal a culpabilidade, centrada na
imputabilidade, consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa,
argumento daqueles que se posicionam de forma contrária à responsabilidade penal
do ente coletivo, desprovido de vontade no sentido psicológico (SOUZA, 2004).
Assim, os argumentos “[...] para não se admitir a responsabilidade penal das pessoas
jurídicas resumem-se, basicamente, na incompatibilidade das pessoas jurídicas com
os institutos dogmáticos da ação, da culpabilidade e da função e natureza da própria
sanção penal” (BITENCOURT, 199, p. 52).
A sociedade moderna vive uma escalada crescente da criminalidade em que a
complexidade de formas e meios para se praticar um ato delituoso, seja no campo
ambiental, industrial, tráfico internacional de drogas, crimes econômicos e lavagem
ou branqueamento de dinheiro, conduz à dificuldade de se individualizar, para fins de
responsabilização penal, a pessoa física que praticou o ato com a devida consciência
da ilicitude do fato, levando-nos a crer que um novo direito penal, direcionado à
responsabilização penal da pessoa jurídica, possa ser uma das soluções para o
enfrentamento dessas modalidades criminosas.
Nesse sentido, a sociologia nos ensina que a pessoa jurídica ou moral faz com
que se crie um ambiente favorável, o qual incita as pessoas físicas ou materiais
a praticarem delitos em benefício do ente coletivo. Assim, surge a idéia de não
sancionar apenas a pessoa física, as quais podem ser trocadas ou substituídas por
outras, mas também a pessoa jurídica utilizada ou beneficiada com a prática do
ilícito, principalmente, num momento em que os delitos empresariais, ecológicos,
contra o consumidor e aqueles envolvendo o crime organizado adquirem relevo. E
não é por casualidade que o legislador europeu tem admitido, nos últimos 20 anos
do século passado, algumas exceções ao dogma societas delinquere non potest,
sobretudo em matéria fiscal e aduaneira. A realidade atual demonstra que a maior
parte dos delitos da empresa ou socioeconômicos são cometidos com a ajuda de
uma pessoa jurídica (TIEDEMANN, 1998, p. 27). Na prática jurídica, pode-se elencar
164
• Direito Penal
como relevantes, no que concerne à responsabilização penal da pessoa jurídica, os
delitos econômicos com destaque para os relacionados ao meio ambiente, perigos
do produto ou do serviço e perigo do transportador (terrestre, aéreo e marítimo), bem
como os delitos praticados no âmbito da empresa, relacionados à administração
desleal, contra a segurança coletiva, contra a propriedade intelectual e o delito fiscal
(BACIGALUPO, 1998, p. 27-28).
Assim, nota-se que o direito penal tradicional, em face dos delineamentos da
modernidade, mostra-se insuficiente perante as condutas ilícitas da pessoa jurídica.
Entretanto, não se pode responsabilizar penalmente a pessoa jurídica de forma
ampla e irrestrita, devendo-se ater a casos específicos e, nas situações em que o
ilícito for praticado por pessoas ligadas à empresa (empregados ou prepostos) em
benefício ou no interesse do ente coletivo e, por conseguinte, numa área perimetral
da sua atividade, valendo-se, principalmente, do poderio econômico da pessoa
jurídica, tendo como vítima a sociedade (SHECAIRA, 1998, p. 99-100).
2. Antecedentes históricos
Numa breve visão histórica, verifica-se que da Idade Antiga à Idade Média
predominaram as sanções coletivas impostas às tribos, comunas, cidades, vilas,
famílias, etc., havendo, contudo, uma certa oscilação, ora tendente ao individualismo,
ora ao coletivo. Num delineamento histórico do tema, cabe ressaltar que a maioria dos
ordenamentos jurídicos antigos e o Direito romano, principalmente, não conheciam,
a princípio, a figura da pessoa jurídica (BACIGALUPO, 1998, p. 42-43).
Observa-se que a evolução do pensamento, seja no campo social seja no filosófico,
reflete nos conceitos dogmáticos do Direito e, no direito penal, essa evolução
acarretou no reconhecimento da responsabilidade individual, ou seja da pessoa
física em detrimento da responsabilidade penal do ente coletivo (BITENCOURT,
1999, p. 52), sendo os conceitos construídos em torno do homem, pessoa natural,
como sujeito de direito.
2.1. Babilônia
O Direito da antiguidade adotou a forma de responsabilização coletiva em que cada
cidade ou vila tinha o seu próprio mundo ou regras jurídicas, caracterizando-se pelo
localismo (SHECAIRA, 1998). O Código de Hamurabi, escrito por volta de 1780 a.C.
preconizava em suas leis:
21 – Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado
à morte na frente do local do arrombamento e ser enterrado;
22 – Se estiver cometendo um roubo e for pego em flagrante,
então ele deverá ser condenado à morte;
23 – se o ladrão não for pego, então aquele que foi roubado
deve jurar a quantia de sua perda; então a comunidade em
cuja terra e em cujo domínio [for praticado o roubo] deve
compensá-lo pelos bens roubados;
Adirson Antônio Glório de Ramos •
165
24 se várias pessoas forem roubadas, então a comunidade
deverá pagar uma mina de prata a seus parentes.
Assim, nessa responsabilização coletiva, tem-se que a pena aplicada passava da
pessoa do condenado atingindo uma coletividade de pessoas (SHECAIRA, 1998),
ou seja, toda a comunidade, a qual deveria efetivar a indenização, uma vez que, não
sendo identificado o autor do roubo, há que se presumir que qualquer integrante da
comunidade possa ser o autor, advindo-se daí o entendimento da responsabilização
de toda a coletividade.
2.2. Índia
As legislações antigas tinham como características a influência da religião sobre as
leis, chegando até mesmo à confusão. Na Índia, destaca-se o Código de Manu, o
qual consagrava a aplicação da pena para além do condenado (SHECAIRA, 1998).
Nota-se que a pena de morte era prevista para os crimes de falso testemunho,
entretanto os seus efeitos ultrapassavam a pessoa do criminoso, atingindo toda a
sua família, inclusive a geração futura (o nascituro).
2.3. Direito hebreu
A lei hebraica estabelecia tratamento absolutamente igualitário aos culpados pela
prática do delito, independentemente da condição social, política ou religiosa,
observando-se, contudo, que tinha características baseadas no sagrado, no religioso.
Tem-se que a primeira punição coletiva surgiu com Adão e Eva em razão da prática
do pecado originário no Jardim do Éden (Gênesis, cap. 3, versículos 16-24). O
dilúvio, forma punitiva destinada àqueles que não cumpriram os mandamentos de
Deus é outra forma de punição coletiva (Gênesis, cap. 6, versículos 5-7). Havia
penas que atingiam até a quarta geração do condenado (Êxodo, cap. 34, versículo
7). Sodoma e Gomorra também são exemplo de penas coletivas na lei hebraica
(SHECAIRA, 1998, p. 61-62).
2.4. Direito romano
Mesmo reconhecendo alguns direitos subjetivos a alguns determinados agrupamentos
de pessoas, a pessoa jurídica dotada de personalidade, como é atualmente
concebida, não era conhecida no Direito romano. No entanto, já se distinguiam
direitos e obrigações desse agrupamento ou conjunto de pessoas (corporações –
universitas) e dos seus membros (singuli).
O município era considerado a universitas de maior importância, tendo Ulpiano
afirmado que o ato do coletor de impostos, ludibriando os munícipes ou contribuintes,
locupletando-se às custas do alheio por meio de cobranças indevidas (desvio ou
excesso de exação) poderia acarretar na responsabilização do município por meio
da actio de dolus malus. Assim, observa-se que no Direito romano, lato sensu, teve
início a formação do entendimento da responsabilidade delitiva da corporação,
166
• Direito Penal
considerada pura ficção, contudo ainda não se falava em responsabilidade penal.
Assim, em razão da sua natureza ficta, as pessoas coletivas não podiam ser
responsabilizadas criminalmente (SHECAIRA, p. 29, 1998).
2.5. Os glosadores
Os avanços econômicos, sociais e políticos do início da Idade Média fizeram
com que as corporações adquirissem maior importância, fomentando, por parte
dos glosadores, “[...] primeiros comentaristas do direito romano na Idade Média”
(SHECAIRA, p. 31, 1998), o debate inicial sobre o tema. Nessa época os Estados
começam a ser demandados em face dos excessos que cometiam contra a ordem
social. Mesmo conhecendo a figura da corporação como sendo a união de pessoas
titulares de direitos, os glosadores não formaram um conceito de pessoa jurídica,
entretanto admitiam a sua capacidade delitiva, quando por meio do conjunto de seus
membros praticava um ilícito. Assim, os glosadores admitiam a responsabilidade civil
e penal dessas corporações ou universitas.
Para os glosadores, a universitas não se constituía numa entidade distinta dos
seus integrantes, considerando-a ou identificando-a como sendo a totalidade de
seus membros. Os atos e vontade de seus membros eram coincidentes aos atos e
vontade da entidade e os ilícitos praticados pelos seus integrantes, quando agiam
em seu nome, eram considerados como infrações das coletividades (SHECAIRA,
1998, p. 31), passando a ser admitida a possibilidade de se responsabilizar penal
e criminalmente as pessoas coletivas. Conforme assevera Shecaira (p. 31, 1998):
“Essa conclusão aflorou não só devido à distorcida interpretação dos textos romanos,
mas também em face de, nesse período, serem numerosas as punições coletivas
aos municípios, ou cidades, a quem eram retirados os privilégios, destruídas as
fortificações, etc.”.
Na Idade Média, os glosadores limitaram-se a reconhecer à pessoa jurídica certos
direitos e a admitir sua capacidade delitiva em face da prática de uma ação delituosa
pela maioria de seus membros, acarretando assim, num delito próprio da corporação
(BACIGALUPO, 1998, p. 46). Para os glosadores, a universitas respondia por seus
atos nas searas cível e penal, sendo portanto, responsabilizada quando a ação era
tomada por decisão da totalidade de seus integrantes.
2.6. Os canonistas
Os canonistas, no período medieval, admitiram a responsabilização penal do ente
coletivo, entretanto, observa-se que o entendimento expressava o pensamento da
Igreja Católica e afirmavam que os direitos não pertenciam à pessoa física ou fiéis,
mas sim a Deus. A inspiração para tal afirmativa parece ter por base o trecho bíblico
de Romanos 13:1: “[...] todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque
não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram
por ele instituídas”. Assim, os canonistas elaboraram uma teoria que atendesse
aos interesses da Igreja, sustentando que os integrantes ou membros da entidade
Adirson Antônio Glório de Ramos •
167
religiosa não são os detentores de direitos, mas Deus, por meio de seu representante
na terra, surgindo nesse ponto a figura do Papa.
Os canonistas aceitam a capacidade jurídica da universitas elegendo a Igreja como
sendo a corporação de maior importância, contudo elaboram uma teoria com o
escopo de resguardar os interesses da Entidade e passam “[...] a sustentar que os
titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da comunidade religiosa,
mas Deus, na figura de seu representante terrestre” (BITENCOURT, 1999, p. 54),
o que veio “[...] cristalizar o conceito de instituição eclesiástica, distinto do conceito
de corporação adotado pelos glosadores, concebendo-a como pessoa sujeito de
direitos” (BITENCOURT, 1999, p. 54), por ficção, dotada de capacidade jurídica.
Essa corrente de pensamento não foi unânime, haja vista que encontrou no Papa
Inocêncio IV o principal opositor, ao preconizar que “[...] a pessoa jurídica era
uma entidade incorpórea, abstrata, não passando de uma ficção e, sendo assim,
incapaz por si mesma de querer e atuar” (SHECAIRA, 1998, p. 33), desprovida,
portanto, de capacidade delitiva criminal e que por ser sem alma, não poderia ser
excomungada.
A “[...] concepção de pessoa ficta foi adotada pelos decretos papais seguintes,
consagrada no Concílio de Lyon (1245) e na coleção de decretos de Jorge IX”
(BITENCOURT, 1999, p. 55), sendo os canonistas os “[...] pais espirituais da
moderna concepção de corporação”, cuja teoria carrega consigo a origem do dogma
societas delinquere non potest. A partir dos canonistas, “[...] a pessoa jurídica passa
a ser considerada uma pessoa ficta, cujo entendimento chega até nossos dias”
(BITENCOURT, 1999, p. 55), assemelhando a teoria elaborada pelos canonistas à
teoria da ficção do século XIX, concebida por Savigny.
Como os glosadores, os canonistas admitiam a prática de um delito por parte da
corporação desde que existisse uma ação conjunta de todos os seus membros.
Contudo, foram os canonistas os primeiros a distinguir claramente a universitas de
seus membros, diferenciando a responsabilidade do ente coletivo e das pessoas
físicas que a integram (BACIGALUPO, 1998, p. 51). Mas o entendimento no sentido
de permitir ou aceitar a responsabilização do ente coletivo volta a ganhar notoriedade
com “[...] a necessidade de punir certas corporações religiosas, cujo poderio se
tornara inquietante” (SHECAIRA, 1998, p. 33). O pensamento canonista prevaleceu
até fins do século XVIII, apesar dos pós-glosadores admitirem a capacidade delitiva
da pessoa ficta.
2.7. Pós-glosadores
Assim como os canonistas, os pós-glosadores admitiram a universitas como sendo
uma pessoa fictícia, contudo, entenderam ser ela capaz de praticar crimes. A
interpretação atribuída aos primeiros glosadores não foi interrompida, haja vista que
os pós-glosadores sofreram forte influência do direito canônico na concepção que
tinham da universitas. “Bártolo, o mais importante autor para esse estudo, passou a
dar um fundamento racional para a imputação às entidades coletivas do cometimento
168
• Direito Penal
de um crime. Para ele, se a entidade coletiva, filosoficamente, é uma ficção, ela é
uma realidade jurídica” (SHECAIRA, 1998, p. 32), sendo, portanto, capaz de querer
e atuar, tornando-se possível, juridicamente, imputar-lhe criminalmente uma conduta
ilícita.
Assim, as associações seriam penalizadas como cúmplices ou como autoras
principais dos atos delituosos, podendo a pena ser de natureza pecuniária, confisco,
perda de privilégios e direitos de associação e, para os delitos de maior gravidade,
poder-se-ia chegar à pena de dissolução, semelhante à pena de morte (SHECAIRA,
1998, p. 32). O delito praticado pela corporação seria considerado próprio quando
a ação estivesse relacionada (stricto sensu) com a atividade ou deveres do ente
coletivo, caso em que a corporação seria responsabilizada. No entanto, sendo o
delito impróprio, ou seja, naquele em que a ação somente pudesse ser concretizada
por meio de um representante, o responsável seria a pessoa física, desobrigando a
universitas de qualquer responsabilidade (BITENCOURT, 1999, p. 55).
No fim da Idade Média, em face da corrente iluminista e influência dos jusnaturalistas
(Direito natural), o autoritarismo do Estado e o poder de influência das corporações,
forçados pelos ideais de liberdade e conquistas democráticas da Revolução Francesa,
sofreram uma queda considerável, acarretando a modificação do pensamento, ou seja,
uma nova concepção filosófica do indivíduo, do Estado e da sociedade, passandose à aceitação somente da responsabilidade individual, tornando incompatível a
responsabilidade do ente coletivo. Nesse sentido, Bitencourt (1999, p. 55) afirma que
“[...] a responsabilidade coletiva é incompatível com a nova realidade de liberdade e
de autodeterminação do indivíduo e que representam conquistas democráticas da
Revolução Francesa”.
Observa-se que a consagração do princípio societas delinquere non potest teve
um cunho mais político do que jurídico, haja vista que a monarquia absoluta teve
necessidade de extirpar todo o poder político e os direitos daqueles que poderiam
competir com o Estado, bem como o Iluminismo, que admitia, segundo determinados
critérios, a limitação das liberdades do indivíduo pelo Estado, ensejando que fosse
desnecessária a responsabilização penal das corporações (BITENCOURT, 1999, p.
57).
2.8. Direito muçulmano
No direito muçulmano, também de tradição religiosa, a responsabilidade não poderia
ser considerada como sendo coletiva, haja vista que considerava a pessoa física
como sendo o principal responsável pela conduta delituosa e, portanto, quem
deveria ser punido, apesar da sua família contribuir de forma solidária para atenuar
a pena. Diante da prática de um crime de homicídio, por exemplo, a comunidade não
respondia com a imediata prisão do criminoso, haja vista que o patriarca da família
recebia a responsabilidade de procurar a família da vítima para realizar uma espécie
de composição. Por intermédio dessa composição, a família do autor indenizaria a
família da vítima, o que atenuava ou abrandava a reprovação prisional. O mesmo
Adirson Antônio Glório de Ramos •
169
ocorria quanto à prática de homicídios não intencionais ou culposos em que as
indenizações eram “[...] pagas pelo clã do causador da morte” (SHECAIRA, 1998,
p. 34).
Observa-se, portanto, que o cerceamento da liberdade não é a razão primeira da
pena, mas a busca pela indenização, sendo que a sanção ultrapassava o autor do
delito, haja vista que a família, uma espécie de instituição coletiva, por meio da
indenização à família da vítima poderia minimizar a reprimenda social e, até mesmo,
impedir a prisão do criminoso.
2.9. Direito francês
Na França, aplicavam-se penas coletivas para os crimes cometidos por comunidades.
Nota-se que o sistema vigorou até a Revolução Francesa, oportunidade em que a
responsabilidade passou a ser individual (SHECAIRA, 1998, p. 36). Tradicionalmente,
o Direito francês não admitia a responsabilidade penal da pessoa jurídica, entretanto,
com o advento do novo Código Penal francês, em 1º de março de 1994, passou-se a
admitir a sanção penal do ente coletivo, cabendo ressaltar que a Constituição do País
não coloca nenhum impedimento à aplicação de tal instituto. Assim, o ordenamento
jurídico francês permite a responsabilização penal das pessoas jurídicas de direito
público e de direito privado, exceto o Estado e as pessoas jurídicas que se encontram
em fase de liquidação, uma vez que a sanção penal se extingue com a liquidação
da empresa.
2.10. Direito português e brasileiro
No Direito português, apesar de admitir a aplicação de sanções às pessoas jurídicas,
não havia uma lei regulamentadora da responsabilidade penal dos entes coletivos.
Somente “[...] no século XVIII, por ocasião do Projeto de Código Criminal de 1789,
de autoria de Pascoal de Melo Freire” (SHECAIRA, 1998, p. 36) estabeleceu-se a
capacidade para delinqüir dos colégios, corporações e cidades e atribuiu a prática
do delito à universitas quando todos ou a maior parte de seus representantes o
cometerem, bem como “[...] ao falar das sedições ou tumultos, manda imputá-los
à cidade, sempre que esses crimes forem cometidos pela totalidade ou maioria de
seus cidadãos” (SHECAIRA, p. 37, 1998) penalizando-a com a privação de honras e
privilégios, além de sujeitá-la ou subordiná-la à cidade ou vila vizinha.
Com a Revolução Francesa e o pensamento iluminista, bem como com a Constituição
portuguesa de 1822, a pena no Direito português passa a ter o caráter pessoal, ou
seja, proporcional ao delito e não passando da pessoa do delinqüente, tornando
inaceitável a responsabilização penal da pessoa jurídica. “Na América do Sul, antes
do descobrimento, chegou-se a adotar a responsabilidade coletiva entre os povos
indígenas” (SHECAIRA, p. 37, 1998) dentre os quais o índio brasileiro, movido ou
impulsionado pela responsabilização coletiva da família, aldeia, clã ou tribo em face
da organização social existente. O Brasil, tendo sido descoberto pelos portugueses,
adota o direito penal das Ordenações e, assim como em Portugal, não havia que se
170
• Direito Penal
falar em responsabilização do ente coletivo. Shecaira (p. 39, 1998) afirma que:
Assim, pensamos que até 1988 não se pode falar em
responsabilidade da pessoa jurídica no direito brasileiro. Tal
conclusão decorre não só de um estudo sistemático das normas
penais em vigor no Brasil, mas da própria análise contextual do
sistema de produção aqui predominante, a partir da segunda
metade do século XIX, que consagrava o individualismo e as
idéias libertárias trazidas ao mundo de forma mais enfática
pela Revolução Francesa de 1789.
Somente em 1988, por meio do art. 173, § 5º, e art. 225, § 3º, da Constituição Federal
e da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, é que vamos encontrar a possibilidade
de responsabilização penal do ente coletivo. O artigo 173, § 5º, e art. 225, § 3º, da
Constituição Federal preconizam:
Art. 173 - Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos
em lei.
[...]
§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos
dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade
desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza,
nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e
contra a economia popular.
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
[...]
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas,
a sanções penais e administrativas, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.
A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, em
seu art. 3º define que:
Art. 3º - As pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta
lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão
de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão
colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único: a responsabilidade das pessoas jurídicas não
exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes
do mesmo fato.
Adirson Antônio Glório de Ramos •
171
Salienta-se que a nova lei ambiental estabeleceu em seu artigo 21 que as pessoas
jurídicas somente podem sofrer cumulativa ou alternativamente as penas de multa,
restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade. As penas restritivas de
direito são a suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária de
estabelecimento, obra ou atividade, proibição de contratar com o poder público, bem
como dele obter subsídios, subvenções ou doações (art. 22). Para as penas de
prestação de serviços à comunidade, o legislador estabeleceu como sendo aplicáveis
o custeio de programas e de projetos ambientais, execução de obras de recuperação
de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades
ambientais ou culturais públicas (art. 23).
Segundo a corrente doutrinária seguida por Robaldo (1999, p. 96), tais dispositivos
“[...] são de conteúdo administrativo e não penal, posto que não se compatibilizam com
a dogmática penal, em especial, quanto à culpabilidade, aos fins da pena e ao direito
penal mínimo, isto é, ao direito penal da ultima ratio”. Nesse sentido, principalmente
se levado em consideração o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, a
sua adoção não acarretará uma maior efetividade em termos práticos, haja vista que
os bens jurídicos a se proteger já estão devidamente tutelados pelo direito civil e
administrativo “[...] mais eficazes e de aplicabilidade menos burocráticas, enquanto a
responsabilidade física dos responsáveis pelas pessoas fictícias já existe no sistema
penal pátrio” (ROBALDO,1999, p. 96).
Observa-se que o advento da Constituição de 1988 e da Lei nº 9.605/98 não
pacificou o assunto na prática jurídica, haja vista que, na esteira do argumento de
que os mencionados dispositivos são de conteúdo administrativo e civil, não se
compatibilizando com os princípios da atual dogmática jurídico-penal, não autorizam
a responsabilização penal do ente coletivo. Assim, estabelece-se uma tensão entre os
que admitem que, a partir da Carta Magna de 1988 e da mencionada lei, cristalizouse no ordenamento jurídico pátrio a responsabilização penal do ente coletivo e os
que não admitem tal possibilidade, em face da dogmática penal, a qual foi construída
para a pessoa natural, dotada de vontade psicológica.
Abordando o assunto no campo prático, tem-se o exemplo de uma madeireira
envolvida num inquérito policial versando sobre a aquisição e transporte irregular
de toras de madeira, que, em tese, constitui o delito tipificado no art. 46 da Lei
nº 9.605/98, cuja pena é de detenção cumulativa com a multa. Nesse caso como
efetivar a sanção? Aplica-se a detenção e em seguida a substitui pela pena restritiva
de direitos ou multa? (ROBALDO, 1999, p. 102). Robaldo (p. 102, 1999) “[...] entende
que esta solução é inaplicável à espécie, posto que afronta o princípio da legalidade.
Em se tratando de responsabilidade física, tal não encontra nenhum óbice.”
2.11. Contornos atuais
Efetuada uma visão histórica do instituto da responsabilidade penal das pessoas
jurídicas, é relevante abordar a situação em que se encontra a discussão do
172
• Direito Penal
tema, uma vez que, tudo demonstra, o Direito caminha no sentido de plenificar a
responsabilidade penal do ente coletivo.
No final do século XIX e início do do século XX, a humanidade vivenciou um intenso
desenvolvimento da economia e, por conseguinte, do direito penal econômico, fazendo
com os juristas viessem a refletir com maior ênfase em torno da responsabilização
penal do ente coletivo. Essa reflexão, até de certa forma mais urgente, veio com a
crescente criminalidade moderna em que a utilização das pessoas jurídicas, muitas
criadas para encobrir condutas ilícitas, levando à necessidade de se penalizar tais
condutas. Essa necessidade de penalizar a conduta criminosa da pessoa jurídica
fortaleceu-se após a Primeira Grande Guerra, uma vez que o Estado tornou-se
mais intervencionista, agindo diretamente na economia, regulando a produção e
circulação de produtos e de serviços, bem como prevendo sanções mais graves nos
casos de violações das regras impostas e, em contrapartida, as empresas passaram
a ser as grandes violadoras das normas ou determinações estatais. Assim, “[...] o
reconhecimento da responsabilidade da pessoa jurídica passa a ter atenção dos
juristas continentais, não mais se circunscrevendo ao pensamento do Common Law”
(SHECAIRA, 1998, p. 42).
Numa rápida visão do mundo na atualidade, tem-se que a Inglaterra, anteriormente
sob a forte influência da teoria de Savigny não admitia a responsabilidade criminal
das pessoas jurídicas. Entretanto, atualmente o direito inglês admite a punição
das pessoas jurídicas com penas pecuniárias, dissolução, apreensão e limitação
de atividades, constituindo-se num dos modelos mais antigos de responsabilidade
penal das pessoas jurídicas, sendo firme a idéia da empresa como sujeito de direito
penal (BACIGALUPO, 1998, p. 330).
Nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Escócia e países do Common Law
vige o princípio societas delinquere potest. Na Holanda a legislação permite a
responsabilidade penal tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, podendose aplicar as penas de multa, confisco de objetos, publicidade da decisão judiciária,
retirada de certos objetos de circulação, paralisação total ou parcial das atividades
da empresa por um ano, o seqüestro de bens, a privação das vantagens obtidas com
a infração, a perda de incentivos e o pagamento de uma caução. Na Dinamarca não
há previsão legal para a responsabilização da pessoa jurídica, contudo leis esparsas
permitem a aplicação do instituto, sendo o Ministério Público o responsável (titular)
pelo início do processo (SHECAIRA, 1998, p. 42-65).
Em Portugal, a doutrina inclina-se com vistas a não admitir a responsabilidade
criminal da pessoa jurídica, contudo a jurisprudência tem admitido o instituto, desde
que haja prévia cominação legal. Na Áustria e no Japão aplica-se o instituto. Na
China, como nos demais países socialistas, a doutrina baseia-se no fato de que
as pessoas jurídicas têm uma natureza socialista cujos interesses são os mesmos
do Estado, motivo pelo qual não há que se imaginar a prática de um crime contra o
interesse comum, mas ocorrendo essa violação do interesse comum, a legislação
aceita a responsabilização do ente coletivo. (SHECAIRA, 1998, p. 42-65).
Adirson Antônio Glório de Ramos •
173
Na América Latina a regra é o princípio societas delinquere non potest, exceto
Cuba e México. O direito alemão não admite a responsabilização da pessoa
jurídica, firmando a doutrina no entendimento de que inexiste reprovação éticosocial de uma coletividade. Na Suíça a responsabilidade, sustentada tanto pela
doutrina quanto pela jurisprudência, é pessoal, admitindo sancionar o ente coletivo
apenas no plano do direito penal administrativo. Na Itália, por força de dispositivo
constitucional, a responsabilidade criminal é individual. Na Bélgica e na Espanha
vige a irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica (SHECAIRA, 1998, p. 42-65),
excluindo-se, portanto, qualquer possibilidade de sanção penal às pessoas jurídicas,
apesar de admitir-se a responsabilização do ente coletivo na seara administrativa.
O direito penal espanhol segue ancorado no princípio tradicional de que somente
as pessoas físicas podem cometer delitos e de que somente elas podem ser
sancionadas em sentido estrito (MIR PUIG,2004, p. 6).
Na Bélgica, apesar da intensa discussão do tema na doutrina jurídico-penal sobre a
possibilidade de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, a doutrina tradicional
segue firme no sentido de negar tal responsabilidade, sob o argumento de que
a pessoa jurídica é incapaz de manifestar o elemento moral da infração (dolo ou
culpa), sendo desprovida de capacidade de culpabilidade.
Na atualidade, os legisladores e a jurisprudência têm utilizado três modelos diferentes
para resolver a questão da responsabilização penal das pessoas jurídicas. O modelo
seguido pelos países do Common Law e que tem recebido a adesão de países
do Civil Law reconhece a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Um outro
modelo nega a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, o qual é seguido pela
maioria dos países da Europa continental. Uma terceira via ou modelo é o dominante
na Alemanha e outros países, os quais adotam uma posição intermediária, admitindo
que as pessoas jurídicas possam sofrer sanções na seara do chamado direito penal
administrativo, a qual consiste numa multa administrativa e, não penal.
3. Teorias da ficção, da realidade e do status
Dentre as teorias que tratam da natureza da pessoa jurídica, elenca-se as teorias da
ficção, da realidade e do status, por considerar-se serem as de maior relevo no que
concerne ao tema em estudo.
3.1 Teoria da ficção
Segundo a teoria da ficção, concebida por Savigny, só o homem é sujeito de direitos,
uma vez que sendo as pessoas jurídicas de existência fictícia, irreal e abstrata,
desprovida de vontade e de ação, são incapazes de delinqüir, impondo assim, a
concepção romanista e canônica.
A idéia central da argumentação funcionalista-utilitarista de Savigny é a de que só o
homem é capaz de ser sujeito de direitos. Contudo, o ordenamento jurídico modificou
174
• Direito Penal
esse princípio, seja para retirar essa capacidade, seja para ampliar tal capacidade
a entes fictícios, incapazes de vontade e que são representados como também
são representados os incapazes. A pessoa jurídica é uma criação artificial da lei
para exercer direitos patrimoniais, sendo tão somente sujeitos capazes a possuir
por serem ficticiamente criadas para o alcance de fins especiais. Savigny coloca
a pessoa.jurídica não como pessoa, mas como meios para certos fins jurídicos. A
existência ou o surgimento de uma pessoa jurídica está sujeito à autorização do
poder estatal, seja expresso ou tácito, o qual sob a afirmativa de que há um melhor
caminho para se chegar a um determinado fim poderia destruí-la por razões políticas
ou econômicas (interpretação funcional-utilitarista), mesmo que não tenha cometido
nenhum delito, mas em razão do interesse da coletividade.(CHAMON JÚNIOR,
2006, p. 120-122).
Savigny, discordando da corrente de Zacharie e Feuerbach, “[...] segundo a qual
uma vez que a existência da pessoa jurídica se deve a um privilégio concedido pelo
Estado, tal concessão se deu para um fim ‘justo’ e, uma vez cometido um delito,
a pessoa jurídica perderia sua personalidade e, desde este fato, não poderia ser
enquanto tal castigada” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 122), parte para explicar a
distinção entre o Direito Penal e o Direito Civil. O Direito Penal considera “[...] o
homem enquanto ser livre, ao contrário da pessoa jurídica que seria um ser abstrato
tão-somente capaz de possuir e que teria como fundamento as determinações
de um número de representantes que, de uma ficção, consideramos como sendo
suas próprias determinações” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 122), gerando efeitos
voluntaristas somente no campo do direito civil.
Savigny nega qualquer reconhecimento de uma capacidade delitual às pessoas
jurídicas, primeiro por um argumento teleológico – de que as pessoas jurídicas
são constituídas em face de certas finalidades –, bem como pelo fato de ser-lhes
reconhecida uma capacidade de direito restrita o que, para ele, não implica, em
momento algum, no reconhecimento de uma capacidade de agir: afinal, quem age são
os homens e individualmente devem responder pelos crimes praticados – ainda que
com reflexos cíveis no patrimônio da pessoa jurídica.
3.2 Teoria da realidade
A teoria da realidade, concebida por Gierke, baseia-se em entendimento antagônico
a Savigny, uma vez que considera a pessoa jurídica não como um ser artificial, criado
pelo Estado, mas um ente dotado de personalidade real, independente daqueles
que a integram. Assim, para Gierke a pessoa coletiva é dotada de vontade própria,
capacidade de ação e, portanto, possui capacidade delitiva. Seria uma realidade
própria de uma pessoa jurídica, diferente da pessoa natural, constituindo uma nova
fundamentação dogmática.
A teoria da realidade objetiva de Gierke também chamada orgânica ou da vontade
real, parte de base diametralmente oposta à da ficção. Pessoa não é somente o
homem, mas todos os entes dotados de existência real. Os seguidores da teoria
Adirson Antônio Glório de Ramos •
175
sustentam que as pessoas jurídicas são pessoas reais, dotadas de uma real vontade
coletiva, devendo ser equiparáveis, como seres sociais que são, às pessoas físicas
.(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 123-125), sendo, portanto, dotadas de corpo e alma,
podendo expressar a sua vontade.
3.3 Teoria do status
Segundo Jellinek a personalidade, “[...] ultrapassando qualquer leitura moral, seria
um status, uma relação do indivíduo com o Estado – em face do Estado – por este
concebida” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 125). “Como membro do Estado, o homem,
para Jellinek, ‘em geral’ seria sujeito de direito, seria pessoa, porque dotado de
capacidade para participar na tutela jurídica” .(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126). O
Estado cria a personalidade. “Enquanto Savigny compreende a personalidade do
indivíduo a partir de uma liberdade moral, Jellinek radicaliza o argumento positivista
e reduz sua verificação à concessão estatal” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126).
Como exemplo, o escravo, homem não dotado de personalidade, pois não é sujeito
de direitos, mas um sujeito de dever. A personalidade é um status que pode ser
ampliado ou diminuído conforme as leis ou atos que modifiquem o Direito. E isso
levaria a personalidades mais amplas entre os indivíduos, sem que seja ferido o
princípio constitucional da igualdade. Haveria desigualdade somente se, frente às
mesmas condições objetivas e subjetivas, um indivíduo tivesse sua personalidade
reconhecida como mais vasta que a de outrem .(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126).
Numa leitura de Jellinek, Chamon Júnior (2006, p. 127) afirma que:
Não somente os indivíduos podem ser sujeitos de direito,
enfim, dotados de personalidade enquanto capacidade de
poder ser titular de direitos (capacidade jurídica). Partindo
da noção de que cada sujeito de direitos deve possuir uma
vontade, e que o ordenamento jurídico pode também criar
organizações juridicamente reguladas, aprofunda no sentido
de que a vontade emanada de uma pluralidade de indivíduos
não se trataria de um “vínculo fictício”, mas formaria uma
unidade intrínseca.
Segundo o autor, Gierke é retrabalhado no sentido de interpretar o Estado tanto
como organismo quanto como pessoa, reconhecendo-se a sua personalidade no
mesmo momento em que “[...] o reconhecêssemos como dotado de uma vontade
unitária diversa das individuais que se refeririam aos súditos que constituiriam o
próprio Estado. Assim, o Estado, ao criar seu próprio ordenamento, se afirmaria
enquanto sujeito de direito”(destaques do autor) (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 127).
4. A dogmática jurídico-penal
Inicialmente cabe ressaltar que a grande resistência ou dificuldade para admitir de
forma pacífica, ou pelo menos com maior amplitude ou adesão, a responsabilização
penal da pessoa jurídica encontra-se nos conceitos de culpabilidade, centrada na
176
• Direito Penal
imputabilidade, consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa,
em suma, no próprio conceito de ação.
Portanto, o argumento daqueles que se posicionam de forma contrária à
responsabilidade penal do ente coletivo, por sinal, a maioria, é a assertiva de que
somente o ser humano ou pessoa natural é dotado de capacidade de ação e vontade
no sentido psicológico e que a culpabilidade está centrada numa reprovação éticomoral, que não pode ocorrer em relação às pessoas jurídicas e que o ente coletivo
não pode ser destinatário da sanção penal, em face da sua finalidade: preventiva e
retributiva.
Nessa linha doutrinária, as dificuldades da dogmática penal tradicional para acolher
a responsabilidade penal das pessoas jurídicas reside no conteúdo das noções
fundamentais da doutrina penal: ação, culpabilidade e capacidade penal. Tem-se
que a ação sempre estará ligada ou relacionada a um comportamento humano e
a culpabilidade ou culpa, adquire o significado de uma reprovação ética ou moral,
incompatível com a pessoa jurídica, as quais não podem ser destinatárias ou sujeitos
passivos de penas criminais, em face da sua finalidade preventiva e retributiva
(TIEDEMANN,1999, p. 36).
O primeiro ponto dogmático levantado por Tieldemann (1999, p. 36) é a capacidade
de agir criminosamente da pessoa jurídica. Argumenta o autor no sentido de que se
uma pessoa jurídica tem capacidade para contratar, torna-se sujeito de obrigações
e, assim, é ela quem pode violar as regras obrigacionais estabelecidas no contrato,
podendo, portanto agir criminosamente. Outro aspecto comentado pelo autor é o
fato de no direito econômico existirem ilícitos cuja prática é exclusiva da pessoa
jurídica, por exemplo, os crimes contra a livre concorrência. Os opositores da
responsabilidade penal do ente coletivo contra argumentam no sentido de que não
se pode imputar a ação de uma pessoa natural a pessoa moral, uma vez que a
punibilidade do agente somente pode recair sobre aquele que pratica a ação delituosa,
segundo características pessoais previstas no tipo legal. Contudo, há ordenamentos
jurídicos em que, inclusive o brasileiro, inserido na teoria do concurso de agentes
está o princípio da comunicabilidade das circunstâncias, o qual estabelece uma
solidariedade penal entre o agente pessoa física e a pessoa jurídica beneficiada
com a prática do crime. Assim, a pessoa jurídica tem vontade e capacidade de agir
e reagir por seus órgãos, sendo suas ações e omissões atos da pessoa jurídica,
possuidora de vontade própria, que na maioria das vezes, independe da vontade dos
seus dirigentes (política de empresa). Assim, as pessoas jurídicas têm capacidade
de vontade e de ação (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 90-91). O segundo ponto é a
capacidade de culpa da pessoa jurídica. Dissertando sobre o assunto, Araújo Júnior
(1999, p. 91 – 92) acentua que:
A admissão da capacidade de agir conduz, necessariamente,
à da capacidade de culpa. Podemos entretanto agregar que a
teoria do risco da empresa, conseqüente da culpa na própria
organização e atuação legitima a responsabilidade penal da
Adirson Antônio Glório de Ramos •
177
pessoa jurídica e justifica a atribuição a ela, cumulativa ou
isoladamente, do crime cometido por seus representantes em
proveito da empresa. É esta a teoria da vantagem econômica,
que fundamenta o juízo de reprovação pelo crime.
A corrente oposicionista baseia-se no fundamento moral da reprovabilidade,
afirmando que a pessoa moral não tem capacidade de responsabilidade moral e que
o juízo de reprovação sobre suas ações seria fundado em algo que o Direito Penal
tradicional não reconhece, ou seja, imputar a uma pessoa jurídica a culpa de uma
pessoa física. Nesse caso, a solução seria dada pelas teorias da co-participação e
da comunicabilidade das circunstâncias (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93).
Os opositores ainda apresentam o argumento de que as pessoas jurídicas não têm
capacidade para serem sujeitos passivos ou destinatárias de penas criminais, uma
vez que não são intimidáveis, por serem desprovidas de consciência e, portanto,
incapazes de sentir as conseqüências da pena, bastando, tão somente, penas de
caráter patrimonial ou pecuniário. Cabe salientar ainda que o ente coletivo não é
reeducável ou ressocializável, não havendo como proporcionar-lhe a integração
social.
Araújo Júnior (1999, p. 93) argumenta no sentido de que esta “[...] é uma estrutura de
pensamento antiga, que gerou uma dogmática clássica, dedutivo-ontológica, absoluta,
ahistórica, de caráter metafísico, alheia às realidades socioculturais do crime”, sendo
que o caráter retributivo e intimidativo da pena já não prospera perante o direito penal
moderno, o qual adotou um conceito funcional de prevenção geral e especial positiva.
Na atualidade, a concepção teórica do direito penal mudou, o qual não tem mais por
missão fazer justiça, compensando a culpa com a pena, num caráter meramente
metafísico ou teleológico. O direito penal atual tem por finalidade o funcionamento
da sociedade, por meio da adoção de um conceito funcional de prevenção geral e
especial positiva, abandonando a idéia de que o autor do delito precisa sofrer para
emendar-se ou arrepender-se. O direito penal tem por missão “[...] reforçar no âmbito
da cidadania a idéia de vigência, utilidade e importância, para a convivência social, da
norma violada pelo criminoso” (ARAÚJO JÚNIOR,1999, p. 94) e, para a consecução
de tal objetivo, pouco interessa se o violador da norma é uma pessoa natural ou
uma pessoa jurídica. O direito penal se baseia na culpabilidade que, por sua vez, é
centrada na imputabilidade, na consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de
conduta diversa. Nesse sentido, no que pertine à dogmática jurídico-penal, tem-se
argumentos contrários e a favor da responsabilização penal das pessoas jurídicas.
É evidente que uma pessoa jurídica não pode realizar propriamente nenhum dos
elementos que exige a dogmática da teoria geral do delito, da forma consagrada
nos países do Civil Law, haja vista que esta teoria vê o delito como sendo uma
conduta humana e a pessoa jurídica não pode realizar nenhuma conduta humana,
sequer pode atuar por si mesma. Sendo assim, a pessoa jurídica não pode agir com
voluntariedade e dolo. A teoria do delito, elaborada segundo os atuais contornos da
178
• Direito Penal
dogmática penal não é a única possível sob o um ponto de vista lógico. Do mesmo
modo que temos desenvolvido um conceito do delito como obra do homem ou da
pessoa física, podemos construir dentro de uma lógica possível, outro conceito de
delito recepcionando ou permitindo a imputação penal aos entes coletivos em razão
da atuação de determinadas pessoas físicas (MIR PUIG, 2004, p. 8).
É evidente que uma pessoa jurídica é uma criação do direito, sendo, portanto,
incapaz de atuar e agir por si mesma, uma vez que é desprovida de consciência e de
senso de responsabilidade, necessitando de uma pessoa física que aja e pense em
seu nome (MIR PUIG, 2004, p. 9 - 10). É o que ocorre com o recém-nascido e com
o absolutamente incapaz, por exemplo, legalmente representados, têm capacidade
jurídica sendo, portanto, detentores de direitos e de obrigações.
4.1 Argumentos contrários à responsabilidade penal das pessoas jurídicas
O estudo da função do direito penal é um dos fortes argumentos daqueles que se
opõem à responsabilização penal do ente coletivo. O direito penal tem função éticosocial, uma vez que visa a tutela dos valores ou bens jurídicos vitais da sociedade
e do indivíduo e preventiva, na medida em que protege o comportamento humano
daqueles que buscam a construção positiva da vida em sociedade, garantindo
segurança e estabilidade ético-social e, reage, valendo-se da pena, contra o
rompimento da ordem ou violação do ordenamento jurídico, o que na realidade, vai
limitar a liberdade do indivíduo na vida comunitária (BITENCOURT, 1999, p 57 –
58).
Forte argumento contrário reside no fato da pessoa jurídica não ter capacidade de
ação, sendo que todos os seus atos ou atividades, lícitas ou ilícitas, são realizadas
por intermédio de uma pessoa natural ou física, ou seja, para o direito penal somente
o homem é dotado de capacidade de ação. Tem-se que a doutrina penal adota a
teoria finalista da ação, a qual tem como principal criador Welzel e, conforme acentua
Jesus (1995, p. 205):
A ação é uma atividade final humana. Partindo disso, Welzel
afirma que a ação humana é o exercício da atividade finalista.
É, portanto, um acontecimento finalista não somente causal. A
finalidade, diz ele, ou atividade finalista da ação, se baseia em
que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento,
pode prever as conseqüências de sua conduta, propondo,
dessa forma, objetivos de distinta índole. Conhecendo a teoria
da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no
sentido de produzir determinados efeitos. A causalidade, pelo
contrário, não se encontra ordenada dessa maneira. Ela é
cega, enquanto a finalidade é vidente.
Assim, a ação é o comportamento voluntário, de conteúdo psicológico, com vistas
à produção de determinado fim, o qual abrange o objetivo ou fim que se pretende
alcançar, a escolha dos meios a serem empregados e as conseqüências secundárias.
Adirson Antônio Glório de Ramos •
179
Nesse sentido, Bitencourt (1999, p. 60) indaga como é possível sustentar que a
pessoa jurídica, um ente abstrato, fictício, desprovido de sentimentos, emoções
ou impulsos, possa ter vontade e consciência a ponto de antecipar mentalmente
o resultado pretendido, escolher os meios a serem empregados e aferir as
conseqüências secundárias de sua ação. Prossegue o autor afirmando que o crime
é uma ação humana, cuja autoria somente pode ser imputada ao ser vivo, nascido
de uma mulher, “[...] embora em tempos remotos tenham sido condenados, como
autores de crimes, animais, cadáveres e até estátuas.” Assim, “a capacidade de ação
e de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade
psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter” (BITENCOURT,
1999, p. 60, grifo nosso).
Consciência e vontade são elementos exclusivos da pessoa natural e, tecnicamente,
é praticamente impossível excluí-los quando se fala em ação, primeiro elemento
estrutural do crime, salvo se a pretensão for assumir deliberadamente a
responsabilidade objetiva, suprimindo o conceito de “Direito Penal como meio
de controle social formalizado” (BITENCOURT, 1999, p. 62). Conforme a teoria
normativa pura, a culpabilidade tem como elementos a imputabilidade, a possibilidade
de conhecimento do injusto ou potencial consciência da ilicitude, a exigibilidade de
conduta diversa, todos juízos puro de valor (JESUS, 1995, p. 403), excluindo-se
assim o fator psicológico. A consciência da ilicitude é excluída do dolo e incluída na
culpabilidade.
A partir do entendimento de que culpabilidade é a reprovabilidade do fato antijurídico
individual, Bitencourt (1999, p. 64) indaga “[...] como se poderá exigir que empresa
comercial ou industrial [uma pessoa jurídica] possa formar a ‘consciência da ilicitude’
da atividade que, através de seus diretores ou prepostos, desenvolverá” e que “[...]
nessas circunstâncias não seria razoável formular-se um juízo de reprovabilidade
em razão da ‘conduta’ de referida empresa que, por exemplo, contrarie a ordem
jurídica”.
Assim, ausentes a imputabilidade e a consciência da ilicitude, não há que se falar
em exigibilidade de conduta obediente ou em conformidade ao direito e, a ausência
de um dos elementos impede que se configure a culpabilidade e sem culpabilidade
não se admitirá, na seara do Direito Penal, a aplicação de pena, posto que nullum
crimen nulla poena sine culpabilidade (BITENCOURT, 1999, p. 64,). Assim, não
há como imaginar a aplicação da pena sem levar em consideração ou mensurar a
culpabilidade do agente em face das circunstâncias que o levaram a cometer o delito,
evidentemente, um ser humano ou pessoa natural, o qual manifesta a sua vontade
por meio de uma conduta ou comportamento positivo ou negativo (DELMANTO,
2002, p. 29). Delmanto (p.29, 2002) afirma:
Pessoa jurídica não comete crime; os seus administradores,
sócios-proprietários ou não, é que, através de e em seu nome,
podem perpetrar crimes contra o meio ambiente. Por outro
lado, além da violação do inafastavél e elementar primado da
180
• Direito Penal
culpabilidade ou reprovabilidade da conduta do ser humano
que é punido, há outro intransponível obstáculo à efetivação
da intenção do legislador constituinte: a ofensa ao principio da
responsabilidade pessoal, através do qual a pena não pode
passar da pessoa do condenado (CR/88, art. 5º, XLV).
Finalmente, os opositores argumentam que as penas privativas de liberdade são
inaplicáveis às pessoas jurídicas, por sinal, a mais elementar sanção aplicada pelo
direito penal às pessoas físicas.
4.2 Argumentos favoráveis à responsabilidade penal das pessoas jurídicas
A corrente dos doutrinadores que admitem a responsabilização penal da pessoa
jurídica afirma que o Código Penal brasileiro, em sua parte geral apresenta como
formas de punição as penas privativas de liberdade, as restritivas de direitos e multa
e que, nenhuma delas, aplicadas, deixa de atingir, direta ou indiretamente, terceiros.
Como exemplo, com a condenação a uma pena privativa de liberdade de um chefe de
família, sua mulher e filhos ficam privados do esteio do lar. Também seria atingida a
família de um motorista profissional que tivesse suspensa a autorização ou habilitação
para dirigir veículo. As penas pecuniárias atingiriam diretamente o patrimônio do
casal, o que não deixa de ser uma forma de atingir a esposa (SHECAIRA, 1998, p.
90).
Contra o argumento daqueles que afirmam que a pena de prisão é inaplicável às
pessoas jurídicas, tem-se que num Estado Democrático de Direito é função do
direito penal rever, de forma constante a função punitiva, criando critérios restritivos
da necessidade ou não de punir, pregando-se a desnecessidade da pena privativa
de liberdade, haja vista que a pena de prisão deve ser a ultima ratio, reservada
para os crimes de maior gravidade. Por outro lado, na seara do direito econômico e
do direito ecológico, âmbito em se defende a responsabilização do ente coletivo, a
pena de prisão é desnecessária e descabida, caso em que a pena de multa criminal,
dissolução, a perda de bens e proveitos ilicitamente obtidos, a injunção judiciária,
o fechamento da empresa, a publicação da sentença a expensas da condenada,
adquirem importância, uma vez que têm sido instrumento de repressão às pessoas
jurídicas (SHECAIRA, 1998, p. 91 - 92). Nesse sentido, Shecaira (1998, p. 91) afirma
que:
O tipo particular de agente que comete crimes econômicos,
que a criminologia moderna, a partir de Sutherland, batizou
de ‘crimes do colarinho branco’, não precisa de qualquer
‘ressocialização’, por se tratar de pessoa altamente
socializada, integrada ao corpo social e de boas qualificações
profissionais.
No que tange ao fato da pessoa jurídica ser incapaz de arrepender-se e de ser
intimidada, emendada ou reeducada por meio da pena, levanta-se o argumento de
que uma das principais funções ou objetivos da pena é reprovar a conduta ilícita,
Adirson Antônio Glório de Ramos •
181
validando o conceito de bem jurídico para o grupo social, tendo portanto, relevância
pública e não objetivos morais. Assim, é um contra-senso impor objetivos morais a
uma pessoa jurídica numa época em que já não se deve aplicar às pessoas físicas.
Argumenta ainda, que ao cometer um crime, o indivíduo deixa a sua condição
pessoal e passa a agir no interesse exclusivo do ente coletivo (SHECAIRA, 1998,
p. 92 - 93).
O argumento de que não há responsabilidade sem culpa e que a vontade é
inerente somente à pessoa física é rebatido pelo fato de se punir nas searas cível
e administrativa uma pessoa jurídica, que não tem consciência e nem vontade, por
exemplo, pela prática de um crime ecológico e não operacionalizar uma reprovação
na seara do direito penal. Assim, tem-se que a vontade da empresa é diferente da
vontade do ser humano, uma vez que resulta de sua própria formação surgida no
seio da sociedade que a legitima, contexto em que se reconhece “[...] que a empresa
tem vontade, uma vontade pragmática, que desloca a discussão do problema da
vontade individual para o plano metafísico” (SHECAIRA, 1998, p. 94), podendo-se
“[...] afirmar que a vontade da pessoa jurídica, executada por seres individuais, é
uma realidade, não uma ficção” (SHECAIRA, 1998, p. 95).
5. Conclusão
O Direito Penal, segundo a dogmática tradicional, traz conceitos incompatíveis com
a responsabilização penal da pessoa jurídica, haja vista que as noções de ação
ou conduta e de culpabilidade foram construídas de acordo com a pessoa natural,
pessoa humana ou física, excluindo-se a pessoa jurídica. A dogmática jurídicopenal concebeu o direito penal sob os seguintes paradigmas: o homem, o Direito, a
sociedade e a pena, sendo que os conceitos de ação e culpabilidade e a pena foram
construídos somente para o homem como sujeito de direito. Portanto, o ponto de
partida da dogmática atual é o homem.
A discussão em torno da responsabilidade penal das pessoas jurídicas continua
centrada nas questões de política criminal, na capacidade de ação, na capacidade
de culpabilidade, no problema da personalização das penas e nas penas que seriam
aplicadas ao entes coletivos (BACIGALUPO, 1998, p. 147), sendo que a resposta ou
solução deve ser buscada na configuração de um novo sujeito de direito e não na
função da pena do direito penal.
Em face da nova criminalidade que aflora no seio social, com destaque para o Direito
Econômico e Ambiental, tem-se forçado a adequação do sistema penal com vistas
a apresentar novas soluções diante dessa nova realidade. Nesse sentido, o Direito
Penal clássico deve ser reestruturado com o intuito de explicar ou solucionar os
delitos penais praticados pelas pessoas jurídicas, devendo-se ampliar o âmbito da
imputabilidade no intuito de buscar respostas para esses novos conflitos sociais.
No que tange à capacidade de ação, esta nova dogmática deve ser construída
no sentido de afastar o seu cunho psicológico, pois caso contrário não haverá
182
• Direito Penal
outra resposta, ou seja, da incapacidade de ação da pessoa jurídica. Em torno da
culpabilidade da pessoa jurídica duas linhas de pensamento se destacam. A primeira
delas tem optado por preservar o conceito tradicional e, ao mesmo tempo, busca
elaborar um conceito exclusivamente para as pessoas jurídicas. A outra linha de
pensamento busca elaborar um novo conceito de culpabilidade válido tanto para as
pessoas físicas quanto para as pessoas jurídicas.
Na realidade não se trata de simplesmente reformular os conceitos atuais, mas de
substituir os pressupostos fundantes do direito penal, ampliando o seu âmbito de
atuação de forma a bifurcá-lo em dois braços diferenciados. Um deles pertinente às
pessoas individuais ou naturais, conforme a atual dogmática e o outro, aplicável às
corporações ou pessoas jurídicas, construído segundo princípios distintos, alheios à
atual dogmática, rompendo com dogmas tradicionais, principalmente no que tange
ao conceito de pessoa, de modo que “[...] não existe um único conceito válido de
ação e um único conceito válido e verdadeiro de culpabilidade” (SANTOS, 1999, p.
112).
Assim, operar-se-ia uma verdadeira re-interpretação da legitimidade argumentativa
a partir da superação da compreensão do Direito e do conceito de ação, com vistas
a uma compreensão deontológica de imputação, reconhecendo o Direito como um
sistema de ação e saber aberto ao mundo da vida em que argumentos jurídicos
assumem um papel diferencial e determinante num discurso de aplicação do Direito,
ao contrário de argumentos éticos, morais e pragmáticos, os quais não são legítimos
para determinar uma decisão jurídica (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 153 – 182).
Não basta interpretar, estudar e decompor o texto legal, atendo-se às palavras e
ao sentido respectivo, é preciso ir além. Deve-se examinar as normas jurídicas em
seu conjunto e em relação à ciência deduzindo, assim, uma obra sistemática, um
todo orgânico, com o objetivo principal de descobrir e revelar o Direito, construindo,
recompondo e reconstruindo , compreendendo-a, “[...] achando o direito positivo,
lógico, aplicável à vida real” (MAXIMILIANO, 1981, p. 45), haja vista que não há
verdade absoluta, objetiva e indubitável, mas verdade relativa, reconstruída segundo
o sujeito que recompõe e aplica o Direito.
Uma reconstrução de forma a entender como sujeito de direito penal não quem
causou ou provocou o resultado, mas quem é competente para decidir, quem
tem o dever de (BACIGALUPO, 1998, p. 35), elaborando conceitos de ação e de
culpabilidade para a pessoa jurídica como sujeito de direito, tomando como ponto de
partida não o homem, mas a sociedade.
Adirson Antônio Glório de Ramos •
183
6. Referências bibliográficas
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legislação comparada e estado atual da doutrina. In: GOMES, Luís Flávio. (Coord.).
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Barcelona: Bosch, 1998.
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São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa
jurídica. In: GOMES, Luís Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica
e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma
reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris,
2006.
CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição de 1988. 3. ed. Rio de Janeiro:
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ROBALDO, José Carlos de Oliveira. A responsabilidade penal da pessoa
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184
• Direito Penal
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dos Tribunais, 1999.
Adirson Antônio Glório de Ramos •
185
Jurisprudência
Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça. Crime. Prefeito. Princípio.
Insignificância. Não aplicabilidade.
A Turma, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus por entender que a conduta
do prefeito que emitiu ordem de fornecimento de combustível (20 litros) a ser pago
pelo município para pessoa que não era funcionário público, nem estava realizando
qualquer serviço público e, ainda, conduzia veículo privado estaria tipificada no art.
1º, I, do DL n. 201/1967. O Min. Nilson Naves concedeu a ordem aplicando, ao
caso, o princípio da insignificância. Contudo o Relator entendeu que não se aplica
tal princípio quando há crime contra a Administração Pública, pois o que se busca
resguardar não é somente o ajuste patrimonial, mas a moral administrativa. HC
132.021-PB, Rel. Min. Celso Limongi, julgado em 20/10/2009.
Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça - Inconstitucionalidade. Tráfico.
Previsão que veda a substituição da pena.
A Sexta Turma do STJ suscitou a inconstitucionalidade da vedação à conversão das
penas privativas de liberdade em restritivas de direito prevista nos arts. 33, § 4º, e 44
da Lei n. 11.343/2006, referente aos crimes descritos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34
a 37 dessa mesma lei, Para tanto, alegava-se maltrato à dignidade humana (art. 1º,
III, da CF/1988) e ao princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, do mesmo
diploma), sem esquecer que o ponto central da pena é corrigir, reabilitar. Porém, a
Corte Especial, por maioria, rejeitou a declaração de inconstitucionalidade. Quanto à
dignidade humana, vê-se que os princípios constitucionais podem ser ponderados, e o
da defesa social, representado pela pena, justifica plenamente a privação temporária
da liberdade, porque é o instrumento de que se vale o Estado para garantir a própria
convivência social. É certo que o modo pelo qual a pena é cumprida (presídios
precários) pode afetar a dignidade humana, mas aí não se está mais no âmbito
legislativo, o único a interessar à arguição. Quanto ao princípio da individualização,
o referido art. 44 veda a conversão das penas, mas também explicita que aqueles
crimes são inafiançáveis e insusceptíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade
provisória, tudo a revelar os valores que a lei visa preservar. Anote-se que o art. 5º,
XLIII, da CF/1988 guarda estreita relação com aquela norma e a lógica nisso está
na relação entre a inafiançabilidade do tráfico e a vedação à conversibilidade da
pena, pois não há como justificar a necessidade de prisão antes da condenação
judicial, para, depois dela, substituí-la pela pena restritiva de direitos. Peca pelo
186
• Direito Penal
excesso o argumento de que, sem a substituição, haveria uma padronização da
pena. Se a lei permitisse ao juiz o arbítrio para substituir a pena nos casos de tráfico
de entorpecentes, o próprio art. 44 do CP seria inconstitucional ao excluir do regime
os crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Aquele artigo, ao
elencar as hipóteses excludentes do regime de substituição, tem suporte unicamente
no critério do legislador ordinário, porém a não conversibilidade das penas lastreiase na vontade do constituinte, que destacou a importância da repressão a esse crime
no art. 5º, XLIII e LI (esse último autoriza a extradição de brasileiro naturalizado
comprovadamente envolvido no tráfico de drogas). Assim, conclui-se que a adoção
da pena privativa de liberdade para a punição do crime de tráfico de entorpecente
não implica, ipso facto, o descumprimento da individualização da pena, pois só
tolhe uma de suas manifestações, visto que o juízo considerará outros fatores para
individualizá-la (conduta social, personalidade do agente, motivos, consequências
do crime etc.). Precedente citado do STF: HC 97.820-MG, DJe 1º/7/2009. Arguição
de Inconstitucionalidade no HC 120.353-SP, Rel. originário Min. Og Fernandes,
Rel. para acórdão Min. Ari Pargendler, julgada em 4/11/2009.
Informativo 552 do Supremo Tribunal Federal. Tráfico Ilícito de Entorpecentes
e Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritiva de Direitos. Crime
praticado antes da Lei n.º 11.343/06. Necessidade de analisa dos requisitos
para a substituição.
A Turma indeferiu habeas corpus em que condenado por tráfico de drogas (Lei
6.368/76, art. 12, caput) pleiteava a substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, bem como o cumprimento da pena em regime aberto. Entendeuse que a norma contida no art. 44, caput, da Lei 11.343/2006, ao expressamente
estabelecer a proibição da conversão almejada, apenas explicitou regra que era
implícita no sistema jurídico brasileiro quanto à incompatibilidade do regime legal
de tratamento em matéria de crimes hediondos e a eles equiparados com o regime
pertinente aos outros delitos. Salientou-se que a Lei 9.714/98 modificou a redação
do aludido art. 44 do CP — e assim ampliou os casos de substituição da pena
corporal por penas restritivas de direitos — mas não incidiu no âmbito do tratamento
legislativo referente aos crimes hediondos e a eles assemelhados, inclusive em
virtude da redação original contida no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, que contemplava
o regime integralmente fechado para o cumprimento da reprimenda corporal.
Desse modo, considerou-se não haver aplicação retroativa da regra contida no art.
44, caput, da Lei 11.343/2006, à espécie, uma vez que o sistema jurídico anterior
ao seu advento já não permitia a substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direito em relação aos delitos hediondos e equiparados. Concluiu-se
pela impossibilidade dessa substituição, mesmo no período anterior à edição da
Lei 11.343/2006. Mencionou-se que, ainda que se admitisse a referida conversão
nos crimes de tráfico de entorpecentes praticados na vigência da Lei 6.368/76, na
situação dos autos estaria ausente o requisito subjetivo (CP, art. 44, III), haja vista
serem desfavoráveis as circunstâncias judiciais do paciente, conforme afirmado
Jurisprudência •
187
pelas demais instâncias. Diante disso, reputou-se incabível também o acolhimento
da fixação do regime aberto para o cumprimento da pena. HC 97843/SP, rel. Min.
Ellen Gracie, 23.6.2009. (HC-97843)
Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Prescrição da pretensão
punitiva em perspectiva.
O Tribunal, após reconhecer a existência de repercussão geral no tema objeto
de recurso extraordinário interposto contra acórdão de Turma Recursal Criminal
do Estado do Rio Grande do Sul, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca
da inadmissibilidade de extinção da punibilidade em virtude da decretação da
prescrição da pretensão punitiva em perspectiva e deu provimento ao apelo extremo
do Ministério Público. Asseverou-se que tal orientação fora consolidada, de regra,
sob o fundamento de ausência de previsão legal da figura. Alguns precedentes
citados: RHC 98741/MA (DJE de 7.8.2009); AI 728423 AgR/SP (DJE de 19.6.2009);
Inq 2728/BA (DJE de 23.3.2009); HC 94338/PR (DJE de 17.4.2009); RHC 94757/SP
(DJE de 31.10.2008); RHC 88291/GO (DJE de 22.8.2008). RE 602527 QO/RS, rel.
Min. Cezar Peluso, 19.11.2009. (RE-602527)
188
• Direito Penal
Comentário à Jurisprudência
PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM ECONÔMICA
LEONARDO SICA
Advogado
Professor convidado da Especialização em Direito Penal Econômico da FGV/SP (GVlaw)
A inclusão da garantia da ordem econômica entre as hipóteses autorizadoras de
prisão preventiva trouxe diversos problemas, próprios da legislação casuística e
emergencial que marcou fortemente a última década do século XX, especialmente no
campo dos chamados “crimes econômicos”, área de notado avanço da intervenção
penal naquele período. Entre os problemas dessa “inovação”, podemos listar: (i) o
aumento das possibilidades de utilização da medida excepcional de força, tendendo
a descaracterizá-la como exceção e aproximá-la da “normalidade”; (ii) a utilização de
elemento contido nos próprios tipos penais para justificar medida cautelar, tornando
quase inevitável a antecipação da discussão de mérito, com indevido prejulgamento;
(iii) dificuldade em delimitar com precisão o significado da expressão “garantia de
ordem econômica”, permitindo a proliferação de decretos de prisão cautelar apoiados
em termos vagos e fórmulas genéricas e, logo, ilegais.
Portanto, garantia da ordem econômica, como fundamento de prisão preventiva, é
questão delicada ante a sua inevitável vinculação com o mérito do processo e a falta
de conceito inequívoco para o termo.
Considerando que a garantia da ordem econômica foi inserida no artigo 312 do CPP
pela Lei nº 8.884/94, cujos tipos cuidaram de indicar as condutas ofensivas à ordem
econômica – repetidas ou assemelhadas aos tipos penais inscritos no Capítulo
II da Lei nº 8.137/90 –, a definição conceitual da expressão deveria ser extraída
precipuamente da objetividade jurídica de ambas as leis (8.884/94 e Capítulo II da
8.137/90).
Vale dizer: a necessidade concreta da prisão preventiva para garantia da ordem
econômica deve ser obtida por meio de raciocínio silogístico, que tem como premissa
maior – e essencial – a imputação de condutas ofensivas à ordem econômica (por
imperativo lógico). Como premissa secundária, tem-se que só podem ser consideradas
como ofensivas à ordem econômica as condutas assim classificadas pela lei.
Leonardo Sica •
189
Para reforçar essa definição, recorremos à lição de Eros Grau (1990, p. 68-72): “A
ordem econômica deve ser considerada como parcela da ordem jurídica”. Logo, atos
praticados contra a ordem econômica são atos praticados contra a ordem jurídica,
nos exatos termos das categorias contidas e descritas pelas leis que a compõem.
Leis que devem ser rigorosamente aplicadas, especialmente quando os fatos estão
sendo tratados no campo jurídico-penal, no qual não se admitem interpretações
extensivas, por força de regra fundamental do Estado de Direito: as leis penais só
admitem interpretação taxativa e restritiva.
Contudo, essa orientação não tem sido observada nos tribunais, ao reverso, tem sido
frontalmente desprezada. Em prol da ampliação indiscriminada das possibilidades
de uso da medida extrema de força, alguns tribunais vêm recorrendo à manifesta
interpretação extensiva da categoria legal “crime contra a ordem econômica”.
Vejamos, por exemplo, decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região em que,
explicitamente, afastou-se a relação entre a tutela cautelar da ordem econômica e a
imputação de crimes contra a ordem econômica para manter-se a prisão preventiva
de acusados por crime de descaminho e formação de quadrilha:
[...] Com efeito, mostra-se, data venia, bastante pobre a
interpretação de que a prisão preventiva fundada na garantia da
ordem econômica só seria possível nos crimes expressamente
designados pela lei como ofensivos à ordem econômica.
Repita-se, porém, que mesmo aqueles que assim pensam,
certamente não hesitarão em admitir que os delitos de que
tratam os autos são capazes de ofender a ordem pública.
Dito isso, perde relevo a alegação de que não haveria risco
sistêmico à ordem econômica [...]. (Proc. 2007.03.00.097655-0,
HC 29865).
Pelos termos da decisão acima, a disciplina da prisão processual não estaria
submetida ao regime de estrita legalidade (!), pois, por meio de interpretação
judicial estaria a se admitir como ofensivos à ordem econômica crimes que a lei,
expressamente, não considera como tal. De certa forma, a mensagem contida nesse
entendimento despreza o princípio da reserva legal, ignora a atividade legislativa e
também a função delimitadora do bem jurídico, tudo por meio de raciocínio obtuso:
mesmo que o legislador não tenha classificado determinada conduta como ofensiva
à ordem econômica, o juiz poderia assim classificá-la com base em opinião pessoal
ou referência abstrata, tal como aquelas resumidas acima.
Prevalecendo essa orientação, poderíamos considerar desnecessário o artigo 170
da Constituição Federal, que traz a definição de ordem econômica:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humana e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
190
• Direito Penal
existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função
social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do
consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante
tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação; VII – redução das desigualdades sociais e regionais;
VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sob as Leis
brasiLeiras e que tenham sua sede e administração no país.
Portanto, os valores em que se funda a ordem econômica estão na Carta Magna: livre
iniciativa, controle do abuso econômico (redução das desigualdades) e valorização
do trabalho e da economia popular – conjunto axiológico do qual o legislador ordinário
deduziu os bens jurídicos dignos de tutela penal para criminalizar as condutas lesivas
àqueles, classificando-as de maneira taxativa e determinada, cumprindo, assim, as
exigências do princípio da legalidade.
Nesse sentido, a leitura do art. 170 evidencia que crimes como sonegação fiscal,
descaminho, corrupção e fraude à licitação, por exemplo, não podem ser tidos como
ofensivos àquela ordem.
Noutra oportunidade, a mesma Corte Federal ampliou o significado da expressão,
apartando-a do seu conteúdo legal para permitir manutenção de prisão cautelar
decretada sob divagações acerca da necessidade de proteção da ordem econômica,
tudo isso em processo que tratava de crimes contra a administração pública:
PROCESSUAL PENAL: HABEAS CORPUS. PRISÃO
PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS PREVISTOS NO
ARTIGO 312 DO CPP. DECISÃO SUFICIENTEMENTE
FUNDAMENTADA. CUSTÓDIA CAUTELAR NECESSÁRIA
PARA A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA
E [...] MAGNITUDE DA LESÃO SOFRIDA PELOS COFRES
PÚBLICOS. QUANTIA SUPERIOR A R$ 30 MILHÕES DE
REAIS.
[...]
II – Presentes os pressupostos exigidos, e estando
suficientemente fundamentada a decisão que expressamente
reconheceu a necessidade da prisão preventiva, para a garantia
da ordem pública, da ordem econômica e para assegurar a
aplicação da lei penal, nenhuma relevância tem as condições
pessoais do Paciente.
III – Não se justifica o tratamento diferenciado conferido
ao co-réu, cujo pedido liminar foi indeferido em virtude da
complexidade da organização criminosa, a grande magnitude
da lesão causada (montante superior a R$ 30 milhões) e o
‘desvalor’ da conduta, eis que o desfalque lesionou toda a
coletividade, aplicando o princípio in dúbio pro societate, sendo
Leonardo Sica •
191
necessária a manutenção da custódia cautelar a fim de evitar a
possibilidade de fuga [...]
IV – A segregação cautelar do Paciente se justifica como
garantia da ordem econômica, da ordem pública (HC
2003.03.0067497-6)
Além de recorrer ao (indevido) uso genérico da garantia da ordem econômica, a
decisão acima incorreu em outro vício comum: embaralhou os conceitos ordem
pública e ordem econômica.
Seguindo o raciocínio ilustrado nos dois precedentes acima, desvio de verbas
públicas, sonegação de impostos, descaminho, corrupção e outras situações têm
sido, indistintamente, relacionadas à necessidade de proteção da ordem econômica,
mercê do equívoco contido na idéia (extraída do senso comum) de que o risco à
ordem econômica derivaria da capacidade financeira do imputado, da magnitude
do suposto prejuízo financeiro ou do vulto dos valores financeiros envolvidos na
persecução criminal. Esse entendimento nega a constitucionalização do processo
penal e ignora o marco constitucional das leis penais.
Ao reverso, como mencionado no início, as hipóteses de efetivo risco à ordem
econômica derivam tão-somente de crimes específicos previstos nas Leis nº 8.137/90
(Capítulo II), nº 1.521/51 e nº 7.492/86, pois o Título VII da Constituição estabelece
o tratamento conjunto de ordem econômica e financeira.
Fora dessas hipóteses, não há como cogitar de prisão preventiva por garantia da
ordem econômica, mesmo que o caso concreto envolva grave lesão ao patrimônio
público ou particular. Portanto, prisão preventiva fundada nesse requisito e que
não inclua as condutas previstas no Capítulo II da Lei nº 8.137/90 ou nas Leis nº
1.521/52 e nº 7.492/86 é manifestamente ilegal, pois a tutela da ordem econômica
está normativamente circunscrita ao âmbito de incidência destas.
Nesse sentido é o entendimento de Mirabete:
[...] O art. 312 do CPP – no que diz respeito à garantia da
ordem econômica – só pode ser aplicado na prática de crime
que possa causar perturbação à ordem econômica, citandose, especificamente, os definidos na Lei n° 8.137, de 27-1290, entre os quais o de ‘elevar sem justa causa o preço de
bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado’
(art. 4°, VII, com redação dada pelo art. 85 da Lei nº 8.884),
na Lei nº 7.492, de 16-6-1986, que define os crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional e dá outras providências, e na Lei
nº 1.521, de 26-12-1952, que prevê crimes contra a economia
popular [...]. (MIRABETE, 2000, p. 694).
Ainda, considerando que a lesão ou ameaça à ordem econômica é elemento
ínsito de muitos daqueles tipos penais, há que se aplicar redobrado comedimento
na utilização da prisão cautelar para garantia da ordem econômica, pois, nessas
192
• Direito Penal
hipóteses, sempre haverá antecipação do mérito da causa, por mais lacônico que
seja o magistrado. Por isso, este breve estudo procura estabelecer critérios seguros
e objetivos, apoiados na dogmática penal e em precedentes jurisprudenciais
paradigmáticos sobre o tema.
Ao julgar habeas corpus referente à prisão preventiva decretada durante a célebre
Operação Farol da Colina, uma das maiores operações realizadas pela Polícia
Federal, o Pretório Excelso começou a delinear o sentido da garantia da ordem
econômica inscrita no art. 312 do CPP. É importante relembrar que naquele caso os
pacientes foram denunciados por crimes contra o sistema financeiro (evasão de divisas
e gestão fraudulenta), lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, apurando-se
movimentação de valores de mais de um bilhão de dólares (US$ 1,233.205.433.80,
conforme consta do v. acórdão), por meio de centenas de operações em contas em
nome de off shores.
Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal revogou ordem de prisão
preventiva, sob os seguintes fundamentos:
[...] O vulto da lesão estimada, por si só, não constitui
fundamento cautelar válido (cf. HC 82.909, Marco Aurélio, DJ
17.10.03); no entanto, é pertinente conjugar a magnitude da
lesão e a habitualidade criminosa, desde que ligadas a fatos
concretos que demonstrem ‘risco sistêmico’ à ordem pública
ou econômica [...]1.
Essa conclusão foi lançada com base em diversos precedentes da Corte Suprema,
principalmente o HC 80.717, julgado no Pleno e relatado pela Ministra Ellen Gracie,
cujos termos foram lembrados pelo Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, ao reiterar
enfaticamente que a garantia da ordem econômica, na leitura processual penal, só
se viabiliza quando a situação concreta implique risco à própria ordem pública:
[...] Se cuida de estabelecer uma presunção absoluta de abalo
da ordem pública pela só magnitude da lesão patrimonial
alegadamente resultante do crime, a sua inconstitucionalidade
é chapada. Com efeito.
Uma tal presunção teria por pressuposto lógico a afirmação
de responsabilidade do acusado pela lesão acarretada, o
que obviamente é repelido pela consagração constitucional
da garantia de que ‘ninguém será considerado culpado até
o trânsito em julgado da sentença penal condenatória’ [...].
idem.
Portanto, a inexistência de risco sistêmico à ordem econômica extraído de elementos
concretos contidos nos autos deslegitima qualquer decreto de prisão cautelar apoiado
nesse requisito. Sempre reiterando que para se chegar a tal conclusão é muito difícil
não avançar sobre a presunção de inocência, pois, no caso concreto, é possível
1 HC 86.758-8/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 02.05.2006, DJ 01.09.2006.
Leonardo Sica •
193
que a constatação do risco passe pela afirmação da ocorrência de condutas que,
adiante, deverão ser julgadas perante o mesmo Juízo.
No mesmo julgamento, o Ministro Cezar Peluso reforçou esse entendimento:
[...] em relação à magnitude da lesão como motivo autônomo
para decreto da prisão preventiva. De fato, Vossa Excelência
demonstrou bem que isso só seria lícito a partir do pressuposto
de que se presume ter havido lesão criminosa antes de julgada
a causa, em afronta direta, portanto, à garantia constitucional,
que não permite impor ao réu, enquanto pendente a causa
penal, nenhuma conseqüência danosa fundada ou vinculada
diretamente a um juízo definitivo de culpabilidade [...]. idem
Ainda naquele emblemático julgamento, o Ministro Marco Aurélio consignou outra
conclusão extremamente útil, ao analisar argumento idêntico àquele constante dos
precedentes do TRF da 3ª Região copiados ao início:
[...] Peço vênia ... para utilizar a mesma premissa de não
respaldar a magnitude da lesão, no tocante à custódia
preventiva, para utilizar esse mesmo argumento quanto ao
cometimento de outros crimes. A prática de outros delitos
deve ser questionada em processo próprio, sob pena de terse mesclagem, a meu ver, incompatível com a ordem jurídica,
sob pena de, tendo em vista atos de constrição que estão em
patamares diversos – da preventiva e possível condenação
definitiva –, chegar-se a sobreposição contrária ao próprio
Direito Penal.
Entendo que o fato de se ter levado em conta, não sei
objetivamente em qual época ou unidade de tempo, outras
práticas delituosas, sob pena de contrariar-se o princípio da
não-culpabilidade – creio que não havia, sequer, persecução
criminal quanto a eles – está a merecer glosa [...]. idem.
Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a mesma questão,
sendo que os pacientes estavam incursos em crime contra o sistema financeiro (gestão
fraudulenta) e contra a ordem tributária, de lavagem de dinheiro e de formação de
quadrilha em face de desvios estimados em US$ 200,000.000.00 (duzentos milhões
de dólares). Também restou revogada prisão preventiva determinada sob aqueles
fundamentos indevidos:
[...] A ordem econômica (item ‘ii’), por sua vez, também já foi
objeto de discussão no Plenário desta Corte como requisito
da prisão preventiva. No julgamento do HC nº 80.717-SP
(relatora para o acórdão Min. Ellen Gracie, DJ de 05.03.2004),
o Tribunal estabeleceu que o fundamento da ordem econômica
deveria se revestir de requisitos similares aos da garantia da
ordem pública.
194
• Direito Penal
Com relação à garantia da ordem econômica, observa-se que,
diferentemente do entendimento firmado por este Tribunal
no precedente referido, a magnitude da lesão provocada foi
invocada no decreto prisional como elemento autônomo para
a custódia cautelar. Assim, de igual modo, não vislumbro
fundamentação idônea da decretação da prisão preventiva
com base na garantia da ordem econômica [...]2. (grifo nosso).
Em outro acórdão, lavrado pelo Ministro Eros Grau, também professor de Direito
Econômico da Faculdade de Direito da USP, o Supremo Tribunal reafirmou que
a lesividade econômica da conduta, “[...] sendo própria do tipo penal, não pode
respaldar a prisão preventiva para garantia da ordem econômica (Precedente)”3.
Neste ponto, surge então outro limitador ao uso indiscriminado do requisito sob
estudo, pois:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTADA
EM FATOS LIGADOS INTRINSECAMENTE AO MÉRITO DAS
INVESTIGAÇÕES. IMPRESCINDIBILIDADE DA PRISÃO
DEMONSTRADA. AUSENTES OS REQUISITOS DO ART. 312
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: CONSTRANGIMENTO
ILEGAL CONFIGURADO. [...]
O decreto de prisão preventiva apóia-se em fatos ligados
intrinsecamente ao mérito das investigações, a ser apurado
em processo criminal sob rito ordinário, e não especificamente
a fatos que demonstrem a necessidade de prisão preventiva,
que, por natureza, é acauteladora e excepcional: configurado
constrangimento ilegal a ser sanado nesta ação de habeas
corpus.
Embora muito bem explicitada a decisão que decretou a prisão
cautelar, narrando o contexto em que a ordem se deu e os fatos
imputados às Pacientes, que, aliás, são de extrema gravidade,
é forçoso reconhecer que não parecem idôneos e suficientes
para justificar a segregação cautelar das mesmas.
Assim, considero comprovado o bom direito legalmente
estatuído a fundamentar a concessão da ordem pleiteada,
razão jurídica pela qual confirmo a liminar antes deferida
e concedo a ordem de habeas corpus especificamente
para anular o decreto de prisão preventiva relativamente às
Pacientes expedido no curso do Inquérito n. [...]4.
HC 85.615-2/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 03.03.06.
HC 85.519-9/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJ 17.03.2006.
4 STF, HC 89.970/RO; 1ª T.; Rel. Min. Cármen Lúcia; j. 05.06.2007.
2 3 Leonardo Sica •
195
Frise-se que foi revogada a prisão preventiva de pacientes acusados de formação
de quadrilha, crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, em face de
centenas de remessas para o exterior, realizadas por meio das famosas contas CC-5
durante o período ininterrupto de três anos.
O abalo da ordem econômica é condição que só pode ser bem avaliada sob a ótica
constitucional e a partir de um ponto de vista nacional, republicano. E, para isso, a
mais alta corte do País é o locus privilegiado para dirimirem-se as inquietudes que
a inclusão da expressão no artigo 312 do CPP trouxe aos operadores do Direito
Penal.
A análise dos precedentes do STF permite outra conclusão: a liberdade de diversas
pessoas acusadas de crimes graves e suspeitas de movimentar valores altíssimos
não trouxe nenhuma instabilidade à ordem econômica do País.
Se, nos casos acima mencionados, a liberdade dos acusados não acarretou nenhum
abalo à economia nacional, pode-se deduzir, com segurança, que em outros casos
similares ou menos graves não haverá como se utilizar da prisão preventiva sob
essa motivação. A conclusão é lógica: a segregação provisória de um cidadão,
raramente, poderá ser relacionada como medida essencial para assegurar a higidez
da economia nacional. Essa afirmação, embora pareça surpreendente, nada mais
faz do que reafirmar o caráter excepcional e extremo da prisão cautelar. Portanto:
(i) a prisão preventiva para garantia da ordem econômica tem como pressuposto
lógico e necessário a imputação da prática de crime contra a ordem econômica,
que, na nossa legislação, são somente aqueles previstos no Capítulo II da Lei nº
8.137/90, na Lei nº 1.521/51 e na Lei nº 7.496/86;
(ii) o critério acima deve ser sucedido da constatação da possibilidade de a liberdade
do agente causar risco sistêmico à ordem econômico-financeira, extraída de
elementos concretos trazidos aos autos, jamais de suposições ou conjecturas nesse
sentido;
(iii) a magnitude de valores desviados, apropriados ou sonegados não é elemento
idôneo para caracterizar o perigo à ordem econômica, além de ser questão cuja
análise deve ser reservada para o momento da verificação da culpabilidade.
196
• Direito Penal
Referências bibliográficas:
GRAU, Eros Roberto Contribuição para a interpretação crítica da ordem econômica
na Constituição de 1998. São Paulo: ed. USP, 1990.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2000.
Leonardo Sica •
197
3
Artigo • 201
Jurisprudência • 214
Comentário à Jurisprudência • 216
Técnica • 227
Direito
Processual
Penal
3
Artigo
TRANSAÇÃO PENAL E SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
EX OFFICIO: IMPOSSIBILIDADE
LUCIANA KÉLLEN SANTOS PEREIRA GUEDES
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado
de Minas Gerais
“O órgão do Ministério Público é independente no exercício
de suas funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer
que seja, somente devendo prestar contas de seus atos à
Constituição, às Leis e à sua consciência”. (RTJ 147/142).
RESUMO: Analisar a impossibilidade de aplicação da transação penal e da
suspensão condicional do processo pelo Magistrado ex officio, diante da dissensão
entre este e o Promotor de Justiça.
PALAVRAS-CHAVE: Transação penal ex officio; suspensão condicional do processo
ex officio; discricionariedade regrada; Direito público subjetivo; titularidade da ação
penal pública.
ABSTRACT: The present paper aims at analyzing the impossibility of the application
of criminal transaction and of the ex officio stay of proceedings by the magistrate,
when there is disagreement between the Magistrate and the Prosecutor.
KEY WORDS: Ex officio criminal transaction; ex officio stay of proceedings; regulated
discretionbaity; subjective public Law; incumbent of the prosecution.
SUMÁRIO: 1.
bibliográficas.
Introdução.
2.
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
Discussão.
3.
Conclusões.
4.
Referências
201
1. Introdução
Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal sofreram
mitigação com a regra introduzida no art. 98, inciso I, da Constituição da República e
pelas Leis 9.099/95 e 10.259/2001. Nas infrações penais de menor potencial ofensivo,
presentes os requisitos legais, poderá o Ministério Público propor transação penal
ao autor do fato para aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa, a ser
especificada na proposta. A possibilidade de transação penal regulamentada pelo
art. 76 da Lei 9.099/95 substitui, nesses delitos, o princípio da obrigatoriedade da
ação penal pública pelo da discricionariedade regrada.
O princípio da indisponibilidade da ação penal pública não se aplica aos delitos
de médio potencial ofensivo, uma vez que o artigo 89 da Lei 9.099/95 concede
ao Ministério Público, ao oferecer a denúncia, desde que presentes os requisitos
legais, propor a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, cuja
fluência acarretará a extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 89, §5º,
do diploma legal supracitado.
Como órgão que pertence à administração pública, o Ministério Público não tem
disponibilidade sobre os interesses públicos que defende, não podendo dispor da
persecução penal, salvo nos delitos regidos pela Lei 9.099/95.
No entanto, a polêmica surge quando o Promotor de Justiça não propõe ao autor
da infração, quando presentes os requisitos legais, a proposta de transação penal
ou de suspensão condicional do processo. Cabe, nesse caso, ao Juiz, de ofício,
propor a transação penal ou a suspensão condicional do processo? Trata-se de
direito público subjetivo do autor da infração? Trata-se de poder discricionário do
Ministério Público?
O presente artigo tem a finalidade de reforçar os princípios constitucionais da
independência funcional do Ministério Público e da exclusividade da iniciativa da
ação penal pública pelo Parquet e, principalmente, o perfil institucional e processual
desse órgão, garantindo, sobretudo, ao autor do fato ou acusado os benefícios
legais.
2. Discussão
Alguns admitem a possibilidade de o Magistrado aplicar de ofício as propostas
alternativas à condenação previstas nos arts. 76 e 89 da Lei 9.099/95, quando
do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, por se tratar de direito público
subjetivo do autor da infração, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos na
lei, para não cercear ao acusado os benefícios legais. Argumentam que o só fato
de o legislador dar ao Ministério Público a iniciativa da proposta, e de usar o verbo
poder, não altera a natureza do instituto, deixando de aplicar ao autor da infração
qualquer dispositivo penal benéfico de uma infração.
202
• Direito Processual Penal
Nesse sentido, Fernando da Costa Tourinho Filho (2007, p. 104) salienta que:
[...] não havendo apresentação da proposta, por mera
obstinação do Ministério Público, parece-nos que poderá
fazê-la o próprio Magistrado, porquanto o autor do fato tem
um direito público subjetivo no sentido de que se formule a
proposta, cabendo ao Juiz o dever de atendê-lo, por ser
indeclinável o exercício da atividade jurisdicional.
Continua, argumentando que:
[...] o Processo Penal, no nosso ordenamento, não é
eminentemente acusatório. A pedra de toque do processo
acusatório está na separação das funções do Acusador e do
Julgador. Desse modo o Juiz não poderia determinar, ex officio,
a produção de provas (vejam-se, a propósito, no CPP, dentre
outros, os arts. 156, 176, 209, 234, 241, 276, 407, 425). O que
deveria ser tarefa própria das partes foi permitido também ao
Juiz. Se nosso processo fosse eminentemente acusatório,
o Juiz não poderia conceder habeas corpus de ofício (visto
tratar-se de ação penal popular), não poderia decretar a prisão
preventiva sem provocação da parte acusadora (por tratar-se
de ação penal cautelar), não poderia requisitar instauração de
inquérito e tampouco ser destinatário de representação, não
poderia, de ofício, decretar o seqüestro de bens do indiciado
ou réu (arts. 126 e 132 do CPP), não poderia proceder de
ofício à verificação de falsidade documental (art. 147 do CPP).
(TOURINHO FILHO, 2007, p. 106).
Segundo Giacomolli citado por Tourinho Neto e Figueira Júnior (2002, p. 599), “[...]
na ausência do Ministério Público, desde que devidamente intimado, ou se presente
e não formular proposta, o juiz poderá propor a transação criminal, sob pena de
haver negativa de adequada jurisdição e negativa de um direito do acusado”.
Para Batista e Fux (2001, p. 321), a transação penal “[...] constitui direito subjetivo
do autor da infração, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos em lei. O só
fato do legislador dar ao Ministério Público a iniciativa da proposta, e de usar o verbo
poder, não altera a natureza do instituto”.
A Comissão Nacional de Interpretação da Lei 9.099/95, sob coordenação da Escola
Nacional da Magistratura, apesar de concluir que o Juiz não poderia substituir-se
à vontade do Ministério Público, por não existir processo e que a homologação da
transação nos termos do art. 76 da legislação referida representaria instauração de
processo penal ex officio, entende ser possível ao Magistrado aplicar de ofício a
suspensão condicional do processo.1
“Se o Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão condicional do processo
nos termos do art. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo” (conclusão décima terceira).
1 Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
203
Os Coordenadores dos Juizados Especiais Criminais também têm mantido firme o
posicionamento de que, ante a recusa infundada do Ministério Público, a proposta
deve ser feita pelo Juiz.2 Ocorre que tal posicionamento viola o Texto Constitucional
e a legislação infraconstitucional. As propostas de transação penal e de suspensão
condicional do processo não são direitos públicos subjetivos do infrator e sim
sucedâneos da titularidade da ação penal.
Promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei é uma das funções
institucionais do Ministério Público, prevista no inciso I do art. 129 da Constituição
da República, bem como no art. 100, §1º, do Código Penal e no art. 24 do Código de
Processo Penal. E, para que isso efetivamente ocorra, a Constituição estabeleceu
prerrogativas institucionais (CF, art. 127).
A transação penal e a suspensão condicional do processo apenas mitigam
os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública,
respectivamente, ao adotar a Lei 9.099/95 o princípio da discricionariedade regrada.
As propostas da transação penal e da suspensão condicional do processo são atos
privativos do Ministério Público, de acordo com os artigos 76 e 89 da referida Lei,
não podendo, assim, obrigar o Ministério Público a fazer as propostas, assim como
não se pode obrigá-lo a propor a ação penal.
A transação consiste em um acordo de vontades e esse acordo, é óbvio, deve se dar
entre as partes, ou seja, entre o dominus litis da ação penal e o autor do fato. Deve
o Juiz atuar como mediador, tendo em vista que o processo não existe ainda. Não
pode o Juiz desempenhar um papel próprio do Ministério Público, pois, se assim o
fizer, estará usurpando uma função exclusiva.
Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 386) afirma ser totalmente inadequada a
substituição do membro do Ministério Público pelo Magistrado, quando aquele se
recusa a oferecer a proposta, fazendo-o em seu lugar e homologando o que ele
mesmo, Magistrado, propôs ao autor do fato.
A transação é um acordo entre as partes – acusação e autor do fato –, sendo
imprescindível, assim, a sua participação, não podendo nenhuma delas ser alijada
desse processo de convergência de vontades por quem quer que seja, especialmente
pelo Magistrado. Do mesmo modo, não se pode obrigar o autor do fato a aceitar a
proposta, ainda que pareça ao Juiz mais favorável a ele do que a propositura de
ação penal (NUCCI, 2006, p. 387).
A aplicação, de ofício, da suspensão condicional da pena não pode ser equiparada
com a suspensão condicional do processo, como querem alguns autores (LOPES
apud NOGUEIRA, 1996, p. 88), por razões lógicas. Naquela, o Magistrado, ao aplicála, não está usurpando a função legal ao Ministério Público, porque a lei previu sua
aplicabilidade pelo Magistrado, nem dispondo da ação penal pública, cujo titular
2 Enunciado n. 6 do XVIII Encontro de Coordenadores de Juizados.
204
• Direito Processual Penal
exclusivo é o Parquet, porque terminada está a persecução penal. Na suspensão
condicional do processo não há condenação, não há sequer instrução, não podendo
o Juiz, que não é o titular da ação penal de ofício, concedê-la, retirando do Ministério
Público o exercício do direito de ação. Mesmo porque o direito de ação não se
esgota no impulso inicial, mas compreende o exercício de todos os direitos, poderes,
faculdades e ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo.3
O Juiz pode, de ofício, determinar a produção de provas, a requisição de instauração
de inquérito policial e ser destinatário de representação, entre outros, como
argumentado por Tourinho Filho. Isso, porém, não significa que o Juiz pode fazer
as vezes do Promotor de Justiça, propondo de ofício a suspensão condicional do
processo ou a transação penal contra a vontade do Ministério Público, retirando
deste o exercício do direito de ação, de que é titular exclusivo, segundo disposição
constitucional. Senão, vejamos: o poder de agir de ofício do Magistrado, previsto
em vários dispositivos do ordenamento jurídico, deve-se ao princípio da verdade
real, princípio informador do processo penal, que diz ter o Juiz o dever de investigar
como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal
constante dos autos.
Nenhum dos textos legais que confere ao Magistrado o agir de ofício confronta
com o princípio constitucional da iniciativa do Ministério Público de promover,
privativamente, a ação penal pública.
A transação penal e a suspensão condicional do processo são sucedâneas da ação
penal e a propositura de tais institutos equivale a dispor da ação penal pública, cujo
titular exclusivo é o Ministério Público.
Na fase da denúncia, vigora o princípio in dubio pro societate.
E, por fim, o texto legal não prevê a possibilidade de o Juiz, de ofício, propor a
suspensão condicional do processo, não podendo, assim, se a lei não distinguiu, o
interprete fazê-lo.
Ademais, “[...] as funções do Ministério Público só poderão ser exercidas por
integrantes da carreira [...]” (CF, art. 129, §2º). Grinover et al (2005, p. 154) salientam
que entendimento contrário “[...] faz tábula rasa do princípio da aplicação consensual
da pena e violenta a autonomia da vontade do acusador”.
Continuam dizendo que, como a sentença homologatória da transação penal é
resposta jurisdicional, se o Juiz aplicar de ofício tal benefício, haveria exercício de
jurisdição sem ação, estaria atribuindo-se ao Juiz “[...] poderes equivalentes aos da
movimentação ex officio da jurisdição, hoje proibida em nível constitucional para
ação penal pública (art. 129, I, CF) e banida pela própria Lei 9.099/95, que quis
3 Sobre conceito analítico de ação, ver: Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, cit.
254/255, n.156 apud (GRINOVER et al. 2005, p. 156).
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
205
revogar expressamente a Lei 4.611, de 02.04.1995” (GRINOVER; GOMES FILHO;
FERNANDES; GOMES, 2005, p. 154).
Afirmam ainda que “[...] mesmo para a transação posterior ao oferecimento da
denúncia, permitir que o juiz homologue uma transação, que elimina ou suspende o
processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o exercício do
direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos constitucionais.” (GRINOVER;
GOMES FILHO; FERNANDES; GOMES, 2005, p. 154).
Dessa forma, diante do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, deve o Juiz,
segundo entendimento majoritário, enviar os autos ao Procurador-Geral de Justiça,
aplicando analogicamente o art. 28 do Código de Processo Penal,4 cabendo ao
Chefe da Instituição decidir por concordar com o Juiz e, então propor a transação
ou a suspensão condicional do processo, designar outro órgão do Ministério Público
para fazê-la ou insistir em não formulá-las.
Essa solução se coaduna, segundo Grinover et al (2005), com os princípios
constitucionais do processo e com a preservação da autonomia de vontade.
Nesse sentido:
Transação penal homologada em audiência realizada sem a
presença do Ministério Público. Nulidade. Violação do art. 129,
I, da Constituição Federal. É da jurisprudência do Supremo
Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula
696 evidencia: HC 75.343, 12-11-97, Pertence, RTJ 177/1293
–, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério
Público, quer à suspensão condicional do processo, quer à
transação penal, está conectada estreitamente à titularidade
da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou
privativamente (CF, art. 129, I). Daí que a transação penal –
bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe
o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação
penal pública, é do Ministério Público. (STF - RE 468.161, Rel.
Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-3-06, DJ de 313-06).
Suspensão condicional do processo – Recusa do representante
do Ministério Público em fazer a proposta – Aplicação do art.
28 do CPP – Necessidade – “No caso de recusa, aplicandose analogicamente o art. 28 do CPP, é de se colher a palavra
definitiva da Chefia da Instituição, que, discordando de seu
representante, deverá nomear outro membro para a iniciativa
4 Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento
do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá
a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
206
• Direito Processual Penal
da proposta” (STJ – RHC 5.720 – Rel. Anselmo Santiago –
RJTACrim 36/571). No mesmo sentido: STJ – REsp. 190.592
– Rel. Félix Fischer – DJU 22.11.1999; STJ – HC 76.437/1 –
Rel. Octávio Gallotti – DJU 160-E:04, 04.08.1998; STJ – REsp
155.426 – Rel. Félix Fischer – RSTJ 109/300.
Juizado Especial Criminal – Suspensão do processo –
Oferecimento da proposta exclusivamente pelo Ministério
Público – Necessidade – “Em se tratando da Lei 9.099/95,
no que tange à suspensão condicional do processo, em
obediência aos princípios da discricionariedade regrada, cabe
exclusivamente ao Ministério Público a escolha da opção da
via relativa do direito, não cabendo a imposição de medidas
previstas pela nova lei sem a participação explícita do titular
da ação penal” (TACRIM-SP – AC 1035713 – Rel. Junqueira
Sangirardi).
Esse entendimento consolidou-se no Supremo Tribunal Federal, com a edição da
Súmula 696:
Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão
condicional do processo, mas se recusando o Promotor de
Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão
ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do
Código de Processo Penal.
Apesar de esta súmula tratar somente da suspensão condicional do processo, indica
também essa posição para a transação penal. “Ora, se já existindo ação penal em
andamento, não pode o Magistrado substituir-se ao promotor, a fim de propor a
suspensão condicional do processo, devendo valer-se do disposto no art. 28 do
CPP, é mais do que lógico não poder fazê-lo no âmbito da transação, quando a ação
penal inexiste” (NUCCI, 2006, p. 387).
Caso insista o Procurador-Geral em não formular a proposta de transação penal,
“[...] nada mais resta a fazer do que designar a audiência prevista na lei para o rito
sumaríssimo (art. 77 e ss.), o que também ocorrerá se se tratar de queixa-crime
e não quiser o querelante oferecer proposta de acordo penal” (GRINOVER et al.,
2005, p. 156).
Maria Lúcia Karam (2004) entende que uma objeção a tal posicionamento diz respeito
à impropriedade da aplicação analógica da regra do art. 28 do CPP neste caso. No
entanto, contradiz-se na própria fundamentação dizendo que esse dispositivo legal
“[...] institui um mecanismo de fiscalização e controle do princípio da obrigatoriedade
da ação penal condenatória de iniciativa do Ministério Público, assim visando
assegurar o efetivo exercício do poder do Estado de punir” (GRINOVER et al., 2005,
p. 171). Continua dizendo que “[...] já a recusa do Ministério Público em propor a
suspensão condicional do processo tem feição totalmente diversa, passando-se
dentro do processo, repercutindo sobre a situação jurídica do réu e, ao contrário
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
207
da hipótese tratada na invocada regra do art. 28 do CPP, envolvendo limitação ao
exercício do poder do Estado de punir” (GRINOVER et al., 2005, p. 172).
Ora, se a transação penal e a suspensão condicional do processo, mitigadores do
princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, são sucedâneos da ação penal,
diante da recusa do Promotor de Justiça em apresentar a proposta, é necessário que
o Juiz aplique também, nesse caso, a regra do art. 28 do CPP, como mecanismo de
fiscalização e controle acima referido, visando assegurar também o efetivo exercício
do poder do Estado de punir.
É nítida a semelhança entre a hipótese prevista no dispositivo referido (dissenso
entre o Promotor de Justiça e o Magistrado quanto ao arquivamento de inquérito
policial ou de peças de informação) e o dissenso entre o Promotor de Justiça e o
Magistrado em aplicar os institutos descarcerizadores previstos na Lei 9.099/95, pois
em ambos casos tratam de dispor ou de desistir da propositura da ação penal pública,
cujo titular exclusivo é o Ministério Público, segundo disposição constitucional.
Além do mais, a transação penal, assim como o arquivamento do inquérito policial
ou peças de informação não se enquadra na área de processo penal, caindo por
terra, assim, a alegação de Fernando da Costa Tourinho Filho de ser indeclinável
a atividade jurisdicional. A aplicação, de ofício, da transação penal equivaleria ao
exercício da jurisdição sem ação.
Aplicar o Magistrado, de ofício, propostas alternativas à condenação previstas nos
artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95 equivale a retirar do Ministério Público o exercício
da ação penal. Não é razoável ao Magistrado fazer as vezes do Ministério Público,
aplicando ex officio tais institutos contra a vontade do Parquet, diante de sua recusa
ou de seu silêncio, por ser este o titular da ação penal pública.
Neste sentido, é o entendimento de Júlio Fabbrini Mirabete (2002, p. 131):
Ao contrário do que se já tem afirmado, entendemos não
ser a transação penal prevista no art. 76 um direito público
subjetivo do autor do fato, de modo a possibilitar que seja
apresentada contra a vontade do Ministério Público, quer por
iniciativa do juiz, quer por requerimento do interessado. Tratase, aqui, do eventual exercício da pretensão punitiva, cabendo
exclusivamente ao Promotor de Justiça a titularidade do jus
persequendi in judicio, nos expressos termos do art. 129, I,
da Constituição Federal. A discricionariedade é a atribuição
ao agente público de uma margem de escolha, configurada
por uma pluralidade de soluções, todas válidas por estarem
adequadas ao ordenamento jurídico. Assim, o Poder Judiciário
só pode verificar a presença de condições legais que permitem
a opção por parte do Ministério Público, mas não fiscalizar a
oportunidade, o mérito da opção formulada pelo titular.
208
• Direito Processual Penal
Afirma ainda que:
[...] cabe somente ao Ministério Público a parcela da soberania
do Estado de promover a persecução criminal, verificando
se existem as condições necessárias para o início do devido
processo legal, vedando-se ao Poder Judiciário, fora dos
limites legais, discutir o mérito do ato discricionário do Parquet,
violando o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIII, da
Constituição Federal). (MIRABETE, 2002, p. 132).
Ademais, não é função do Ministério Público buscar condenação a qualquer custo,
nem privar de benefícios legais o acusado. Não é esse o compromisso a que está
obrigado como dominus litits da ação penal pública. Seu compromisso é com a
Justiça.
A respeito do assunto, escreveu Eugênio Pacelli de Oliveira (2004, p. 101):
Com efeito, o Ministério Público somente pode ser qualificado
como parte no processo penal do ponto de vista estritamente
formal ou processual. Parte, portanto, apenas e enquanto
ocupar a posição de autor, a sustentar pedido condenatório
em face de alguém. Mas, a partir daí, do oferecimento da
denúncia, a posição do Ministério Público, no que respeita
ao pedido, não é parcial, isto é, não se encontra vinculada
à pretensão punitiva. Muito ao contrário, e uma vez que
seja instaurado o contraditório e exercida a ampla defesa –
inexistentes na fase pré-processual, de formação da convicção
do parquet – o Ministério Público submete-se unicamente
ao Direito, podendo e devendo produzir prova inclusive no
interesse da defesa, se convencido da improcedência da
pretensão então deduzida ou mesmo se estiver em dúvida
quanto a ela. Nesse sentido, como visto, a sua atuação é
totalmente independente e, fundamentalmente, de custos
legis. É por isso que se pode afirmar que, quanto ao direito
material, o órgão estatal responsável pelo juízo acusatório é
imparcial; no plano processual, ele ocupará a posição de parte,
enquanto no exercício das faculdades e (no desincumbir-se
dos) ônus processuais atribuídos aos litigantes em qualquer
processo judicial. Parte, por fim, apenas quando definida como
aquele que demanda em seu próprio nome (ou em cujo nome
é demandada) a atuação duma vontade da lei e aquele em
face de quem essa atuação é demandada, na clássica lição de
Giuseppe Chiovenda.
Como órgão pertencente à administração, exerce atividade pública, devendo
pautar-se pelo princípio da legalidade. A intervenção penal do Ministério Público,
tanto no âmbito de sua função institucional como no plano processual, é a de órgão
imparcial. Sua posição é absolutamente imparcial, porque deve obediência somente
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
209
à Constituição e à legislação infraconstitucional. Tal posição advém das prerrogativas
e garantias institucionais que lhe foram atribuídas (CF, art.127), sobretudo a da
independência funcional.
Assim como no arquivamento do inquérito policial ou peças de informação, o controle
de atuação do Ministério Público, quando há dissenso entre o Promotor de Justiça e
o Magistrado quanto à propositura da transação penal ou suspensão condicional do
processo, num primeiro momento, será feito pelo Poder Judiciário que, discordando,
deverá submeter a questão ao Procurador-Geral, órgão de revisão.
Em face do princípio da independência funcional, da legalidade e da exclusividade
da iniciativa da ação penal pública, não pode o Magistrado substituir a vontade do
Promotor de Justiça diante da recusa deste em apresentar a proposta. Nem mesmo
diante do seu silêncio, como no caso de não comparecimento na audiência preliminar,
apesar de devidamente intimado ou no de oferecer a denúncia e silenciar sobre a
propositura da suspensão condicional do processo.
Mas é claro que a discricionariedade do titular da ação penal não pode ficar adstrita ao
subjetivismo de cada órgão de execução, devendo-se aplicar então, analogicamente,
a regra prevista no art. 28 do CPP, impondo-se, assim, o princípio constitucional da
unidade do Ministério Público para orientação de política criminal.
Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, no HC 75.343-MG, julgado em
12.11.1997, conforme mencionado no seguinte acórdão:
Suspensão condicional do processo – Artigo 89 da Lei 9.099/95
– Faculdade exclusiva do Ministério Público, a quem não pode
o Juiz substituir-se – Retroatividade – Encaminhamento dos
autos à Procuradoria-Geral de Justiça – Provimento do apelo
– É entendimento já consagrado em decisões jurisprudenciais
que a iniciativa de propor a suspensão condicional do processo,
na forma do art. 89 da Lei 9.099/95, é faculdade exclusiva do
Ministério Público, a quem compete privativamente promover
a ação penal pública (CF, art. 129, I), sendo vedado ao Juiz da
causa substituir-se aquele órgão. Assim, conforme já decidido,
inclusive no STF, em Sessão Plena, no HC 75.343-MG, ‘não
cabe ao Magistrado, ante recusa fundamentada do Ministério
Público, a requerimento de suspensão condicional do processo,
o exercício de tal faculdade, visto que não se trata de direito
subjetivo do réu, mas de ato discricionário do parquet’. Decidiu,
também, o Supremo, no mesmo julgamento, que, ‘na hipótese
do Promotor de Justiça recusar-se a fazer a proposta, o Juiz,
verificando presentes os requisitos objetivos para a suspensão
do processo, deverá, encaminhar os autos ao Procurador-Geral
de Justiça para que este se pronuncie sobre o oferecimento,
ou não, da proposta’, pois, ‘tendo o referido artigo a finalidade
de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal para
efeito de política criminal, impõe-se o princípio constitucional
210
• Direito Processual Penal
da unidade do Ministério Público para orientação de tal política
(CF, art. 127, §1º), não devendo essa discricionariedade ser
transferida ao subjetivismo de cada Promotor’ (TJRJ – AC
789/96 – Rel. Des. Índio B. Rocha).
3. Conclusões
As propostas de transação penal e de suspensão condicional do processo
constituem, nos termos da Lei 9.099/95, atos privativos do Ministério Público, pois
são sucedâneos da iniciativa em promover, privativamente, a ação penal pública
(CF, art. 129, inciso I).
Ambos os institutos tratam de atos consensuais, o que torna indispensável a
manifestação de ambas as partes, ou seja, o dominus litis da ação penal e o autor
do fato ou réu, sendo impossível a substituição deles pelo Magistrado, que, no caso
da transação penal, deve atuar como mediador.
A transação penal e a suspensão condicional do processo mitigam os princípios
da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, ao adotar a Lei
9.099/95 o princípio da discricionariedade regrada.
As propostas da transação penal e da suspensão condicional do processo são atos
privativos do Ministério Público, de acordo com os artigos 76 e 89 da referida Lei,
não se podendo obrigar, assim, o Ministério Público a fazer essas propostas ou a
oferecer a ação penal.
O texto legal não previu a possibilidade de o Juiz, de ofício, propor a transação penal
ou a suspensão condicional do processo. Assim, não pode o intérprete, onde a lei
não distinguiu, fazê-lo.
No sistema adotado, as propostas da transação penal e da suspensão condicional
do processo cabem ao Ministério Público, não sendo admitida ao defensor, ou ao
Juiz, sua proposição, caso o Parquet assim não faça. É totalmente desarrazoado
o Magistrado substituir o membro do Ministério Público quando este se recusa a
oferecer a proposta, fazendo-o em seu lugar e homologando o que ele mesmo,
Magistrado, propôs ao autor do fato.
Conforme previsão constitucional, as funções do Ministério Público só podem ser
exercidas por integrantes da carreira (CF, art. 129, §2º).
Diante do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, deve o Juiz, segundo
entendimento majoritário, enviar o termo circunstanciado de ocorrência ao
Procurador-Geral de Justiça, aplicando analogicamente o art. 28 do Código de
Processo Penal, cabendo ao Chefe da Instituição decidir-se por concordar ou
não com o Juiz, propondo a transação ou a suspensão condicional do processo,
designando outro órgão do Ministério Público para fazê-lo ou, ainda, insistir em não
formular essas propostas.
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
211
Entendimento contrário violaria a autonomia de vontade do titular da ação penal, o
princípio da independência funcional do Ministério Público e princípios constitucionais
processuais, como o da iniciativa de promover, privativamente, a ação penal
pública.
O Ministério Público na intervenção penal, tanto no âmbito de sua função institucional
quanto no plano processual, é órgão imparcial, pertencente à administração e suas
ações devem pautar-se pelo princípio da legalidade.
Em face dos princípios da legalidade e da independência funcional, deve o Ministério
Público obediência à Constituição e às leis, não podendo o Magistrado substituir
sua vontade, diante de sua recusa em propor os institutos descarcerizadores,
introduzidos no ordenamento jurídico pela Lei 9.099/95, por ser do Ministério Público
a exclusividade da titularidade da ação penal pública.
Em caso de dissenso entre Promotor de Justiça e Magistrado deve-se aplicar
analogicamente a regra do art. 28 do CPP, impondo, assim, o princípio constitucional
da unidade do Ministério Público para orientação de política criminal. Assim, a
discricionariedade do titular da ação penal não ficará adstrita ao subjetivismo de
cada Promotor de Justiça.
212
• Direito Processual Penal
4. Referências bibliográficas
BATISTA, Weber M.; FUX, Luiz. Juizados Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão
Condicional do Processo: a Lei 9.099/95 e a doutrina mais recente. Rio de Janeiro:
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Jurisprudencial. 7. ed. v. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005.
JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. 10.
ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.
KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
MACHADO, Agapito. Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal. São Paulo:
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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 1. ed.
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OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos
Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais
Criminais. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados
Especiais Federais Cíveis e Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes •
213
Jurisprudência
Informativo 402 do STJ, Competência. Contravenção. Lei Maria da Penha. Não
aplica a lei 9099/95.
No caso, o autor desferiu socos e tapas no rosto da declarante, porém sem deixar
lesões. Os juízos suscitante e suscitado enquadraram a conduta no art. 21 da Lei de
Contravenções Penais (vias de fato). Diante disso, a Seção conheceu do conflito para
declarar competente o juízo de Direito da Vara Criminal, e não o do Juizado Especial,
por entender ser inaplicável a Lei n. 9.099/1995 aos casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher, ainda que se trate de contravenção penal. Precedentes
citados: CC 104.128-MG, DJe 5/6/2009; CC 105.632-MG, DJe 30/6/2009, e CC
96.522-MG, DJe 19/12/2008. CC 104.020-MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, julgado em 12/8/2009.
Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal - Descumprimento de cláusula
de transação penal. Seguimento da ação penal.
O Tribunal, após reconhecer a existência de repercussão geral no tema objeto de
recurso extraordinário interposto contra acórdão da Turma Recursal do Estado do
Rio Grande do Sul, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da possibilidade
de propositura de ação penal quando descumpridas as cláusulas estabelecidas
em transação penal (Lei 9.099/95, art. 76) e negou provimento ao apelo extremo.
Aduziu-se que a homologação da transação penal não faz coisa julgada material
e, descumpridas suas cláusulas, retorna-se ao status quo ante, viabilizando-se ao
Ministério Público a continuidade da persecução penal. Precedentes citados: HC
88785/SP (DJU de 4.8.2006); HC 84976/SP (DJU de 23.3.2007) HC 79572/GO
(DJU de 22.2.2002); RE 581201/RS (DJE de 20.8.2008); RE 473041/RO (DJU de
16.5.2006); HC 86694 MC/SP (DJU de 11.10.2005); HC 86573/SP (DJU de 5.9.2005);
RE 268319/PR (DJU de 27.10.2000). RE 602072 QO/RS, rel. Min. Cezar Peluso,
19.11.2009. (RE-602072)
Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Gravação ambiental por um
dos interlocutores, prova lícita e admissível.
O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral no tema objeto
de recurso extraordinário interposto contra acórdão de Turma Recursal dos Juizados
214
• Direito Processual Penal
Especiais Cíveis e Criminais de Comarca do Estado do Rio de Janeiro, reafirmou
a jurisprudência da Corte acerca da admissibilidade do uso, como meio de prova,
de gravação ambiental realizada por um dos interlocutores, e deu provimento ao
apelo extremo da Defensoria Pública, para anular o processo desde o indeferimento
da prova admissível e ora admitida. Vencido o Min. Marco Aurélio que desprovia
o recurso, ao fundamento de que essa gravação, que seria camuflada, não se
coadunaria com os ares constitucionais, considerada a prova e também a boa-fé
que deveria haver nas relações humanas. Alguns precedentes citados: RE 402717/
PR (DJE de 13.2.2009); AI 578858 AgR/RS (DJE de 28.8.2009); AP 447/RS (DJE de
28.5.2009); AI 503617 AgR/PR (DJU de 4.3.2005); HC 75338/RJ (DJU de 25.9.98);
Inq 657/DF (DJU de 19.11.93); RE 212081/RO (DJU de 27.3.98). RE 583937 QO/RJ,
rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009. (RE-583937)
Jurisprudência •
215
Comentário à Jurisprudência
BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO E DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NA REPRESSÃO AO TRÁFICO DE DROGAS
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
A justificativa para este breve estudo, registra-se prefacialmente, é a de fornecer
subsídios, tão despretensiosos quanto meramente ilustrativos, para todos aqueles
que, por dever de ofício, vêem-se às voltas com a repressão (termo adequado, salvo
melhor entendimento, para referir-se à missão estatal corolária do jus puniendi)
ao tráfico de drogas, máxime no que toca ao momento específico da fixação das
reprimendas corporal e pecuniária, haja vista a amplitude de gradação entre os
limites mínimo e máximo das penas abstratamento cominadas ao delito em questão,
bem assim as causas especiais de aumento e de diminuição de pena, estipuladas
na vigente legislação antidrogas.
Em segundo lugar, mister se faz consignar que o histórico acadêmico deste autor
assim como a experiência profissional por ele acumulada – possui formação em
Biologia (nível superior), sendo oriundo da Polícia Civil de São Paulo (escrivão e
delegado de polícia, somados quase sete anos de atuação) e, no campo do Direito
Penal, realiza trabalho especializado na área de tóxicos há praticamente uma
década, sempre em nome do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (v.g.,
recursos ordinários e extraordinários, lato sensu), na qualidade de procurador
de justiça perante a 2ª Câmara Criminal do TJMG – constituem fatores que, sem
embargo de não o tornarem, de forma alguma, um expert no assunto, em linhas
gerais o credenciam a tal função.
A chamada Nova Lei de Drogas, a L.F. nº 11.343/06, que entrou em vigor em 8 de
outubro de 2006, expressamente revogou (art. 75) as antigas Lei de Entorpecentes
(L.F. nº 6.368/76) e Nova Lei de Tóxicos (L.F. nº 10.409/02), as quais possuíram
vigência conjunta entre as datas de 28 de fevereiro de 2002 até a entrada em vigor
da Nova Lei de Drogas (08.10.06).
De fato, a L.F nº 10.409/02, mercê de veto presidencial – que não foi derrubado
– ao capítulo que tratava das infrações penais, limitou-se a trazer para o mundo
jurídico, entre outras disposições, estas de cunho administrativo, novas regras, sob
216
• Direito Processual Penal
pena de nulidade, para o rito (instrução criminal) a ser imprimido nos processos dos
delitos referentes a tóxicos, estes, por sua vez, estipulados pela L.F. nº 6.368/76,
a qual também possuía eficácia quanto ao procedimento relativo à fase inquisitiva
(autuação do indiciado em flagrante delito, investigação, apreensões, perícias etc.).
A novel legislação, portanto, extinguiu a simbiose até então existente, instituindo
o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), prescrevendo
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários
e dependentes de drogas, estabelecendo normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito, bem como definindo crimes (art. 1º).
Para os objetivos da Nova Lei de Drogas, consideram-se como tais as substâncias
ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados legalmente ou
relacionados em listas periodicamente atualizadas pelo Poder Executivo da União
(norma penal em branco).
Malgrado não cuidar este trabalho dos usuários e nem dos dependentes de drogas
(os experimentadores ou consumidores eventuais não se tornam, necessariamente,
dependentes, como é de sabença geral), algumas considerações sobre o uso e a
dependência serão feitas, porém sempre visando à pessoa do traficante e ao crime
de tráfico, mormente na específica fase da dosimetria das penas, pois aqueles são,
como é curial, os consumidores das drogas adquiridas, guardadas, mantidas em
depósito, vendidas, produzidas, importadas, exportadas, remetidas, fabricadas,
preparadas, expostas à venda, oferecidas, transportadas, prescritas, ministradas,
entregues a consumo, trazidas consigo ou fornecidas pelos traficantes, ainda
que gratuitamente, mas sempre sem autorização legal ou em desacordo com as
determinações legais ou regulamentares (art. 33, caput).
Referidas condutas, em tais condições de irregularidade, também constituem tráfico
ilícito quando dizem respeito a matéria-prima, insumo ou produto químico destinado
à preparação de drogas, assim como o semeio, o cultivo ou a colheita de plantas
que constituam matéria-prima para o preparo de drogas (art. 33, § 1º, incisos I e II).
Idem quando se utiliza, para daquela forma se conduzir, local ou bem de qualquer
natureza de que se tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância,
ou, ainda, consente-se que outrem dele se utilize, onerosa ou gratuitamente (art. 33,
§ 1º, item III).
Por tráfico ilícito de drogas, portanto, não se faz mister o especial fim de agir do
comércio, bastando, para configurar o delito, que não se trate de aquisição ou posse
(guarda, depósito, transporte ou porte) para consumo pessoal (art. 28, caput).
O nomem juris tráfico, no entanto, não deixa de dar ensejo, principalmente intencional
– não desprovida a intenção, necessariamente, de alguma dose de má-fé –, a
interpretações que, a uma primeira e descurada análise, sugerem a necessidade
da figura de um comprador, de um adquirente, de um consumidor, já que por
José Fernando Marreiros Sarabando •
217
este vocábulo se tem, no léxico, a definição de mercancia, de trato mercantil, de
comércio.
Por tráfico ilícito de drogas se há de entender, todavia, segundo o conceito legal,
qualquer das condutas, perpetrada isolada ou cumulativamente, especificadas no
art. 33 da Nova Lei de Drogas, visto que alimentam, de alguma forma, o ciclo produtor
e disponibilizador das substâncias ou produtos capazes de causar dependência e,
ainda, que se vejam especificadas em lei ou em listas publicadas pelo Executivo da
União.
No momento exato da estipulação da resposta penal a ser aplicada em desfavor
do réu, finalmente, haverá a autoridade judiciária de levar na devida conta, dado
o gradiente das reprimendas disponíveis (cinco a quinze anos de reclusão, mais
multa de quinhentos a um mil e quinhentos dias-multa), assim como levadas em
conta as majorantes e minorantes, algo que é de suma importância para a melhor
prestação jurisdicional possível, em casos dessa natureza: o grau de nocividade da
droga apreendida, este a ser aquilatado em função das prováveis conseqüências
fisiológicas derivadas do seu consumo (alterações comportamentais instantâneas
ou posteriores, maior ou menor suscetibilidade de dependência física ou psíquica e,
por fim, viabilização de atos de violência, contra si ou contra terceiros, ocasionados
pelo próprio consumo ou pela abstinência).
Não se poderá ter no mesmo prato da balança, portanto, a maconha e o crack, a
cocaína comum, a heroína, o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), as anfetaminas
etc., substâncias essas de efeitos imediatos e futuros muito diferentes, atingindo,
primeiramente, o indivíduo e, ato contínuo, os que com ele convivem e as demais
pessoas que venham a manter com ele contato, acidental ou proposital.
Assunto, portanto, o tráfico de drogas, sem qualquer sombra de dúvida, de interesse
máximo da sociedade – daí porque configurado crime contra a saúde pública –,
porquanto é atingido não só o indivíduo consumidor, mas também, principalmente,
toda a coletividade que com ele tenha contato, ainda que não diretamente.
Ao Judiciário cabe, portanto, sopesar e fixar a reprimenda criminal disponível, levandose em conta as majorantes e as minorantes, as atenuantes e as agravantes, tudo
entre os seus respectivos patamares mínimos e máximos, justamente atendendo
às variantes de cada caso concreto, impondo pena maior às hipóteses de mais
grave lesividade ao bem jurídico tutelado – saúde pública – e, sob a mesma ótica,
sancionando menos rigorosamente as condutas de menor potencialidade ofensiva.
Na hipótese da cocaína tradicional, a pulverizada (pó), ou a petrificada (crack), esta
de efeitos físicos e psíquicos ainda mais deletérios, o recrudescimento das penas
corporal e pecuniária se impõe.
Com efeito, citando-se ensinamento jurisprudencial, que deve ser largamente
218
• Direito Processual Penal
difundido:
[...] a alta nocividade da cocaína está a exigir especial rigor
no combate ao seu tráfico, impondo-se, em conseqüência, a
aplicação aos traficantes de reprimendas penais de severidade
correspondente ao elevado risco que a nefanda mercancia
acarreta à saúde pública. (RJTJRS, vol. nº 130/154)
Já a maconha, por seu turno, também chamada de “droga social”, peculiariza-se por
se tratar da substância de menor poder entorpecente e causador de dependência
psíquica que existe, inferior, mesmo, à nicotina e ao álcool, estas de consumo e
comércio permitidos, ainda que dotado, este, de alguma restrição legal e regulamentar
(propaganda e venda a menores de 18 anos de idade).
A maconha, como é sabido, mercê de seus compostos canabinóides (canabinol,
canabidiol e tetrahidrocanabinol), também não causa dependência física (ao
contrário do álcool), mas apenas psíquica, como acima registrado, e, além disso,
acarreta apenas distúrbios leves de comportamento (muito diferente do que se dá
com a cocaína, por exemplo, especialmente em sua forma sólida, o temível crack,
o benzoil-metil-ecgonina, alcalóide que se obtém a partir do processamento de
folhas da Erytrhoxylon coca, planta de origem andina da qual se extrai a base para a
fabricação da cocaína), limitadas tais distorções a um efeito quase sempre calmante,
por vezes hilariante e estimulante do apetite por alimentos ricos em carboidratos
(gula por doces, a popular “larica”, no vocabulário dos seus incautos usuários).
Salvo melhor juízo não se tem registro, a propósito, de crimes graves cometidos sob
o efeito de maconha, ao contrário do álcool, da cocaína, da heroína (diacetilmorfina,
droga opióide natural ou sintética) etc.
A razão por que a maconha (melhor dizendo, os compostos canabinóides nela
freqüentemente presentes – mas não sempre, daí a importância fundamental do
laudo toxicológico definitivo para detecção desses compostos) continua figurando no
rol de substâncias de consumo e mercancia proibidos (substância proscrita) não é o
fato de causar dependência psíquica severa ou acarretar algum nível preocupante de
alteração comportamental no seu consumidor, pois, se simples assim fosse, o álcool
e a nicotina também teriam sido incluídos naquele rol (para pânico dos alcoólatras
e nicotinômanos).
Acontece, porém, que os usuários, geralmente jovens deprimidos, frustrados e
problemáticos (v.g., crises agudas ou crônicas de insatisfação psíquica), costumam
revelar-se ávidos por novas e mais estimulantes “experiências”, em termos de
intensidade ou de duração, acabando por se valerem da maconha como mera
servidão de passagem para drogas de potencial entorpecente maior (mais intensos
e mais duradouros efeitos), em sua ânsia de fuga virtual (de cunho meramente
psíquico) das por vezes invariavelmente incontornáveis adversidades da vida, para
as quais não possuem resistência suficiente, pelas mais diversas razões, mas, em
José Fernando Marreiros Sarabando •
219
suma, por conta de sua pouca experiência de vida.
É justamente esse uso da maconha, principalmente pelos adolescentes e
jovens adultos, como mera fase de transição para substâncias tóxicas de maior
potencialidade lesiva à saúde pública (cocaína, LSD etc.), em especial quando
apreendida em grande quantidade, que deve exigir de tantos quantos têm, por dever
profissional, de lidar com a repressão das drogas grande rigor e exemplar atuação
que sirva tanto para castigar quanto para desestimular o seu consumo, a título de
prevenção geral e especial.
É sabido, outrossim, que os efeitos da maconha são breves e pouco intensos, e que,
além disso, tendem a diminuir com o uso mais ou menos freqüente, razão adicional
por que os jovens partem, em seguida, em busca de drogas mais potentes.
Por outro lado, eis que o complexo fenômeno da abstinência também importa
mesmo que se trate tão-somente de maconha, pois, como se sabe, seus usuários
podem tanto entristecer-se como enfurecer-se, frustrar-se ou apenas mergulhar em
depressão, nada obstante a mencionada fúria ser, de fato, o efeito colateral menos
comum, menos intenso e menos duradouro.
Interessante, a esta altura, muito embora relativamente estranho a este trabalho, a
inserção de um enfático protesto contra toda e qualquer pretensão, de lege ferenda,
acerca da descriminalização, pura e simples, do uso de drogas, de forma que, a
par de alimentar financeiramente o tráfico, as conseqüências nefastas do mero
consumo de forma nenhuma que se limitam, singelamente, ao indivíduo consumidor,
mas atingem toda a sociedade em que ele se vê inserido, em especial a família,
os vizinhos, o círculo de amizades, e, da mesma forma, eventualmente também
pessoas a ele estranhas, as quais podem, por infortúnio, ser vítimas de atos de
violência, quase sempre derivados do desespero ou da ânsia naturais ao fenômeno
fisiológico da abstinência.
Deve sempre a resposta criminal, a propósito, na memorável lição do mui eminente
desembargador do TJMG, José Arthur de Carvalho Pereira, de saudosa memória,
situar-se na região de exato equilíbrio entre o máximo de satisfação para a sociedade
e o mínimo de aflição para o acusado, revelando-se, destarte, nada mais do que
suficiente aos fins preconizados pelo sancionamento penal (repressão do delito e
sua profilaxia, esta com alcance tanto individual, para o agente, como social).
A autoridade judiciária deve, então, a partir das circunstâncias presentes em cada
caso concreto, aplicar a pena definitiva que melhor reprima e previna o tráfico,
especialmente como medida de profilaxia, mas, sempre, reservando maior rigor à
lida com o crack, a cocaína em pó, o LSD, a heroína e as anfetaminas em geral (o
ecstasy, por exemplo, a droga tão em voga, hoje em dia, nas boates, principalmente
nos grandes centros urbanos), por sinal, nessa ordem.
Quanto à maconha, por sua vez, apenas a apreensão de grandes quantidades é que
220
• Direito Processual Penal
deve merecer o mesmo rigor, exatamente por figurar, como registrado anteriormente,
como a droga de menor potencial ofensivo, tanto à saúde individual como à saúde
pública.
Olvida-se, muitas vezes, de que se há de ter por norte, em resumo, nas decisões
judiciais, o grau de periculosidade não só do agente, mas, principalmente, da espécie
da droga envolvida, para o meio ambiente social, bem assim de sua quantidade, a
teor da claríssima dicção do dispositivo de número 42 da Nova Lei de Drogas, o qual
às expressas afirma, inclusive, que deverá predominar sobre o disposto, também
sobre fixação das reprimendas, no art. 59 do Código Penal.
Eis o disposto no art. 42 da L.F. nº 11.343/06: “O juiz, na fixação das penas,
considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a
natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta
social do agente.”
De fato, muito comum, na rotina forense e dos tribunais, é a fixação das penas
em seus respectivos patamares mínimos legais levando-se em conta somente
os favoráveis aspectos objetivos e subjetivos relacionados à pessoa do acusado,
principalmente a primariedade, relegando-se a um plano secundário, ou mesmo
esquecendo-se por completo, a natureza da substância entorpecente apreendida.
Equipara-se, em casos que tais, o traficante de maconha com o de cocaína, malgrado
a diversidade de perigo envolvido num e noutro agir.Não se pode permitir, todavia, a
reiteração de erros crassos como esse.
Há de se reservar a estipulação da reprimenda no seu menor limite legal (pena
mínima + decote máximo a título da minorante do art. 33, § 4º, da Nova Lei de Drogas,
vale dizer, um ano e oito meses de reclusão) apenas aos casos em que todas as
circunstâncias legais e judiciais sejam, sim, favoráveis ao réu, entretanto, sendo
indispensável, ainda, que a espécie da droga envolvida seja apenas a maconha
e, mesmo assim, em não expressiva quantidade, plenamente atendendo-se, dessa
forma, às finalidades maiores do sancionamento criminal.
Isso significa, em outras palavras, que o tráfico de cocaína, em pó ou em sua forma
mais temível, a petrificada (crack), não pode conduzir, jamais, ao apenamento do
réu no patamar mínimo legal, ainda que seja pequena a quantidade apreendida em
seu poder, pois são colocados em risco especialmente severo tanto o usuário como
a sociedade.
Em casos dessa natureza, portanto, há o magistrado de recusar-se à aplicação da
pena mínima (cinco anos de reclusão), bem assim em casos de configuração da
mencionada causa especial de redução de pena, à fixação de seu limite maior (dois
terços), reprimindo com maior rigor, pois, conduta que mais oferece perigo à saúde
José Fernando Marreiros Sarabando •
221
do usuário e põe em maior risco a segurança da coletividade.
Ainda a respeito da minorante do art. 33, § 4º, da N.L.D., há algumas considerações
incidentais a se fazer, porquanto muito importantes.
Em primeiro lugar, não há que se falar, no caso, em tipo penal autônomo, verdadeira
“figura privilegiada”, como preconizam alguns estudiosos do assunto, fenômeno
jurídico que somente ocorre com o § 3º do dispositivo em tela (chamado “tráfico de
drogas privilegiado” ou “tráfico entre amigos”), quando o imputável, sem objetivo
de lucro financeiro, oferece droga a pessoa amiga ou conhecida, para uso em
conjunto da substância (pena de detenção, de seis meses a um ano, mais multa
surpreendentemente elevada, tudo sem prejuízo das sanções previstas no art. 28,
que trata da aquisição ou posse para consumo próprio).
O art. 33, § 4º, da N.L.D., portanto, disciplina, exclusivamente, uma causa especial
de diminuição de pena, antiga aspiração, aliás, dos juristas pátrios, que sempre
defenderam a separação, clara e evidente, entre os traficantes iniciantes e os
profissionais quando da imposição das respostas penais.
Em segundo lugar, tendo em vista que a dicção da minorante é extremamente falha,
pois, para merecer o valioso benefício da redução de sua pena entre um sexto e dois
terços, o agente deve ser primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar às
atividades criminosas e nem integrar organização criminosa.
Ora, esses quatro requisitos não se completam, ao contrário, excluem-se mutuamente,
ambos os primeiros e ambos os últimos, nada obstante o que realmente pretendeu o
legislador, que foi o máximo rigor para com a reincidência e o crime organizado.
Exigindo o dispositivo mencionado, portanto, que, para o deferimento da minorante,
além da primariedade e dos bons antecedentes, não se dedique o réu às atividades
criminosas e nem integre organização criminosa, o que fez o legislador foi cunhar
uma “cláusula legal suicida”, vale dizer, uma norma que contém dois pressupostos
os quais, pela lógica mais do que pelo bom senso, revelam incompatibilidade
visceral com os outros pressupostos inseridos, anteriormente, no mesmo dispositivo,
tornando-se, por isso, os últimos requisitos, absolutamente desprezíveis.
Ora, se o acusado ostenta primariedade e bons antecedentes, de rigor que seja
beneficiado, automaticamente, com a causa especial de diminuição de pena em
questão, porquanto atendidos todos os seus requisitos realmente dotados de
efetividade jurídica.
De fato, se o réu é primário e de bons antecedentes, como poderá, então, dedicar-se
a atividades criminosas ou integrar organização criminosa?
Ainda que o próprio acusado admita, que confesse em detalhes absolutamente
verossímeis, ser integrante de uma feroz quadrilha, o tão-só fato de ostentar
222
• Direito Processual Penal
primariedade e bons antecedentes o dispensa, ipso facto et jure, dos dois requisitos
seguintes, todos contidos no art. 33, § 4º, da atual legislação antidrogas.
Demais disso, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência veda
que seja o réu considerado integrante de organização criminosa ou dedicado a
atividades criminosas apenas com base em possibilidades ou probabilidades, ainda
que altas essas probabilidades e mesmo que diante de sua própria confissão.
Mesmo raciocínio se aplica na hipótese de constar contra o réu condenações
criminais, mas encontrando-se as sentenças ainda pendentes de recursos, porquanto
ainda existente e válida, em sua plenitude, a vantagem legal da primariedade.
Sobre bons antecedentes, vale consignar en passant que a melhor doutrina e a
mais abalizada jurisprudência entendem, simplesmente, toda e qualquer situação
contrária à ostentação de “maus antecedentes”, esses significando apenas a
existência de eventuais sentenças penais condenatórias transitadas em julgado,
contudo alcançadas pelo lapso temporal depurador do art. 64, I, do Código Penal.
Quaisquer outras circunstâncias, a saber, anotações desabonadoras, inquéritos
em andamento, processos em andamento, boletins de ocorrência etc., não têm
o condão de constituir maus antecedentes, sob pena de se ferir, mortalmente, o
princípio constitucional da presunção do estado de inocência.
Há de se desprezar, pura e simplesmente, portanto, as duas exigências últimas do
dispositivo em questão, o § 4ª do art. 33 da N.L.D. (não dedicação às atividades
criminosas e a não integração em organização criminosa), pré-requisitos
absolutamente inócuos, valendo, para fins de se aferir a configuração, ou não,
da minorante, apenas os dois primeiros requisitos, isto é, primariedade e boa
antecedência.
Nessa esteira, em se tratando de incidência de causa especial de aumento de pena
(art. 40, Nova Lei de Drogas), por seu turno, a lida tão-só com a maconha deverá
fazer tender o juiz, desde que, obviamente, presentes todas as circunstâncias legais
e judiciais favoráveis ao réu, à estipulação do seu grau mínimo (um sexto), exceto
apenas se se tratar de expressiva quantidade apreendida, e, contrario sensu, não se
poderá fixar tal quantum nas hipóteses de drogas diversas.
Vale lembrar, por oportuno, que a Nova Lei de Drogas em duas oportunidades veda
a substituição da pena corporal por meras restrições de direitos, a chamada “pena
substitutiva” (vide arts. 33, § 4º, e 44).
Nas hipóteses, todavia, de réus que cometeram tráfico de drogas na vigência ainda
da legislação anterior, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça
vêm entendendo, agora já pacificamente, que têm eles direito à substituição, desde
que atendidos, casuisticamente, os critérios objetivos e subjetivos da atual redação
do art. 44 do Código Penal (muito embora sempre tenhamos defendido a tese de
José Fernando Marreiros Sarabando •
223
que os traficantes de drogas jamais ultrapassam o óbice do inciso III do dispositivo
em questão, que exige, em resumo, que haja indicações no sentido da suficiência
da pena substitutiva aos fins do sancionamento criminal, quais sejam a prevenção
geral e especial).
Quanto ao regime prisional, outrossim, recomenda-se o inicial fechado, dada a
especial periculosidade dos traficantes de droga para o meio ambiente social,
máxime porque, como é curial, não configura direito subjetivo do réu, exclusivamente
por conta da quantidade da pena privativa de liberdade, a imposição dos regimes
aberto ou semi-aberto de cumprimento (art. 33, CP).
A atuação do Parquet nas ações penais envolvendo o tráfico de drogas assume
relevância e exige zelo especial, porquanto instituição destinada, pela Carta Magna,
à defesa dos mais importantes interesses da sociedade, em linhas gerais, aqueles
indisponíveis.
Deverá o membro do Ministério Público, portanto, velar pela melhor prestação
jurisdicional possível, em cada caso concreto, lançando mão, sempre que necessário
ou conveniente, dos recursos processuais à sua disposição, para que ao final
prevaleça, sempre, o interesse da coletividade sobre o do indivíduo.
O problema todo, na realidade, concentra-se na elasticidade exagerada – somada
a uma generosidade que só seria compreensível em locais paradisíacos como
Shangri-lá – que alguns juristas procuram dar a determinados rigores introduzidos na
legislação penal, a qual já se destaca mundialmente, aliás, pela brandura excessiva,
como se não fôssemos uma sociedade permeada pela violência extrema, pela
certeza quase que total da impunidade, onde uma parcela tão ínfima dos crimes é
efetivamente reprimida via punição de seus autores, o que permite a conclusão de
que no Brasil o crime compensa e compensa muito.
Com efeito, incumbe a todos que militam na questão da repressão às drogas, bem
assim aos crimes hediondos em geral, um especial rigor, mormente no que tange à
interpretação da norma legal.
Não se há de permitir, via de exegese benevolente em demasia e à guisa de política
criminal, verdadeiro exercício de jus dare, missão constitucional do Poder Legislativo,
ao Judiciário, ao qual é cometido, por seu turno, tão-somente o jus discere.
Postar-se indiferente à interpretação literal e teleológica da Lei dos Crimes Hediondos,
a Lei Federal nº 8.072/90, buscando minúcias e filigranas nada razoáveis, é no
mínimo concorrer para a inviabilização do combate ao narcotráfico, frustrando a
intenção evidente que norteou o processo legislativo de 1976 e 1990, assim como
aos outros delitos especialmente graves ali discriminados.
Não se há mesmo de premiar os réus, registre-se, com benefícios fora dos limites do
razoável, valendo como bússola certa a especial gravidade de sua conduta delituosa,
224
• Direito Processual Penal
como ocorre, principalmente, com o tráfico de drogas.
É a excessiva liberalidade de alguns renomados juristas, não obstante a convicção
honesta destes em seus ideais libertários, que se presta a, se não estimular, no
mínimo contribuir de modo importante para a continuidade escancarada das terríveis
e maléficas ações do tráfico, que há tempos não mais vê, na resposta judiciária,
uma repressão suficiente para nem sequer abalar a ousadia e a arrogância de seus
truculentos integrantes.
Basta uma simples consulta às notícias veiculadas em jornais e revistas semanais
para ter uma idéia marcadamente pessimista acerca do temor – praticamente
nulo – que os traficantes nutrem pelo Poder Judiciário, quando deveriam, isto sim,
ter pelos juízes e tribunais não só respeito, mas também uma boa dose de temor
reverencial.
À Polícia não se pode atribuir maiores responsabilidades, numa análise isenta dessa
situação de quase total descontrole do Estado sobre as ações do tráfico, porquanto
bem, mal ou pessimamente, como seja, vem ela realizando prisões e mais prisões,
diuturnamente.
O Ministério Público, idem, muito embora também nele haja aqueles – e não são
poucos – que, românticos incuráveis por natureza, simplesmente não conseguem
enxergar na atuação criminal a missão que mais importa para a sociedade, preferindo,
ao invés, remanejar material humano e estrutura consideráveis para setores menos
vitais, pelo menos a curto prazo, como se dá com a defesa dos interesses difusos.
Estão no Judiciário, porém, reconheça-se, a maior parte dos intérpretes mais liberais,
em especial nas mais altas cortes de Justiça do País; estes, via exegese repleta de
romantismo e com inoportuna inspiração espiritualista, vêm acarretando modificações
estruturais naquilo que era intenção do legislador em recrudescer a resposta estatal
ao famigerado tráfico de drogas, a ponto de fazerem esses intérpretes letra morta
dos dispositivos penais verdadeiramente rigorosos.
Interpretações outras, por mais honestas e intimamente enraizadas que sejam,
encerram em si um pecado de proporções gigantescas: colocam a sociedade como
um todo em um plano absolutamente secundário, privilegiando-se o especial sobre
o geral, o indivíduo sobre o conjunto, o infrator penal em detrimento de inúmeras
pessoas lesadas em seu tão precioso bem jurídico, a saúde pública.
É chegada a hora de retroceder esse quadro de inversão de valores, máxime porque
os dados estatísticos não apontam para um recuo, ainda que tímido, do tráfico, mas,
ao contrário, deixam claro que os traficantes já possuem um poder de fogo e de
organização invejáveis a muito agrupamento guerrilheiro.
Ocorre, ainda, que o dinamismo que peculiariza o Direito não se coaduna com o
mero conformismo ou a confortável acomodação, sendo, ao contrário, o repercutir
José Fernando Marreiros Sarabando •
225
incessante das teses nos tribunais, principalmente nas cortes superiores, o fator que
exatamente dá ensejo à modificação dos entendimentos, ainda que esses até há
pouco estivessem solidamente enraizados nas mentes dos julgadores.
Em outras palavras é a persistência das teorias que traz as mudanças na bela e
constante evolução dos conceitos jurídicos, pari passu com as necessidades sociais
maiores. Assim é que tantas tendências foram superadas, tantos entendimentos
foram modificados.
Interpretar, por exemplo, no sentido de ser a vedação da pena substitutiva para
os condenados por crimes hediondos ou equiparados, uma violação ao preceito
constitucional que veda a imposição de penas cruéis, data vênia, constitui uma
elasticidade de raciocínio que exige nova reflexão sobre a matéria, tendo em vista que
francamente milita em desfavor exatamente de quem merece a maior consideração,
que é a sociedade.
A atuação no crime é a gênese do Ministério Público e, subseqüentemente, a razão
principal de sua esplendorosa evolução histórica, servindo de modelo, inclusive,
para outros países.
O tráfico de drogas, lado outro, é um dos maiores flagelos da humanidade, a cada
ano vencendo mais batalhas e ceifando mais vidas.
Incumbe aos membros do MP, portanto, um rigor absoluto no combate aos traficantes,
instrumentalizando o Judiciário com vistas a uma punição vigorosa, exemplar, ainda
que para isso tenha de se valer de todos os meios recursais disponíveis.
Somente se e quando as polícias, o MP e o Judiciário atuarem com energia e
com sinergia, é que a altamente lucrativa atividade do comércio ilegal das drogas
começará a sofrer revezes, duros e irreversíveis, os quais, a partir do momento em
que se tornarem constantes, submeterá o tráfico e os traficantes à autoridade efetiva
do Estado, até a sua tão sonhada extinção definitiva.
226
• Direito Processual Penal
Técnica
PROPOSTA DE ARQUIVAMENTO
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO CRIMINAL nº XX/XX - PJCCAP
INCIDÊNCIA PENAL: art. 1º, VII, do Dec.-Lei nº 201/67
COMARCA: Uberaba-MG
INVESTIGADO: XXXXXXXXX, prefeito municipal XXXXX
Eminente Desembargador Relator,
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por intermédio de
seu chefe, o Exmº Sr. Procurador-Geral de Justiça, mediante delegação expressa
de poderes ao procurador de justiça signatário desta peça, ex vi dos artigos 29,
inciso IX, da Lei Federal nº 8.625/93, e 69, XIII, da Lei Complementar-MG nº 34/94,
conforme ato de designação e delegação publicado no “Minas Gerais” / Caderno II
/ Diário da Justiça, edição de 14.01.2009, vem à ilustre presença de V. Exª, no bojo
dos autos do P.I.C. nº XX/XX, narrar e ao final propor, conforme se segue:
1 – segundo chegou ao conhecimento do Grupo Especial de Combate aos Crimes
Praticados por Agentes Políticos Municipais, que gozam de foro especial por
prerrogativa de função (criado pela Res. PGJ-MG nº 37/00), o prefeito municipal
XXXX, XXXX, não teria encaminhado ao Tribunal de Contas do Estado de Minas
Gerais, dentro do prazo regulamentar (31.07.2007), a prestação de contas referente
às aplicações dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB –, o
que caracterizaria, em princípio, o crime do art. 1º, inciso VII, do Dec.-Lei nº 201/67
(vide documentação de fls. 02-C/07-verso);
2 – instaurado o procedimento investigatório criminal em questão, por portaria (fls.
02-A/02-B), providenciou-se, para ilustração do feito, anexação de cópias da LF nº
11.494/07, regulamentadora do FUNDEB (art. 60 do ADCT), e da Instrução Normativa
nº 03/2007, a qual, no entanto, valeu por pouco tempo, tendo sido sucessivamente
José Fernando Marreiros Sarabando •
227
alterada, encontrando-se vigente, atualmente, a Instrução Normativa TCMG nº
13/2008, a qual complementa o tipo penal em referência (norma penal em branco);
3 – instado a manifestar-se, o alcaide investigado prestou prontos esclarecimentos
(fls. 24/40), informando que, não obstante o atraso, que teria sido totalmente
involuntário, as contas foram devidamente prestadas ao órgão do controle externo,
via SIDE, que é o meio eletrônico adequado para tal medida;
4 – mais documentação relativa aos fatos encontram-se às fls. 44/48 e 53/78;
5 – a Diretoria da Secretaria-Geral do TCMG confirmou, às fls. 82/84 do feito, que as
prestações de contas do município de Delta foram enviadas, realmente, à eg. Corte
de Contas, embora com registro de considerável atraso;
6 – foi imposta multa pessoal ao investigado, na forma regulamentar, tendo sido por
ele recolhida, devidamente (fls. 75 e 76);
7 – diante, pois, das informações e dos documentos apresentados, verifica-se
que não houve qualquer conduta, por parte do prefeito do município de XXX, que
constituísse uma irregularidade punível na esfera criminal, inexistindo nos autos
elementos aptos a ensejar o oferecimento de denúncia, portanto;
8 – isso porque, de uma forma ou de outra, as contas do exercício de 2007 acabaram
sendo, efetivamente, prestadas pelo investigado, embora com atraso, ao TCMG,
o que restou comprovado quantum satis nos autos, tendo o referido justificado a
extemporaneidade em razão de questões técnico-administrativas;
9 – é certo que o dispositivo penal em perspectiva, o art. 1º, item VII, do Dec.-Lei nº
201/67, prevê, como crime omissivo, a ausência de prestação de contas nos prazos
regulamentares, estes atualmente estipulados na Instrução Normativa TCMG nº
13/2008, tratando-se, pois, de uma norma penal em branco;
10 – ocorre, porém, que, talqualmente se dá com todos os chamados “crimes de
responsabilidade” (nomenclatura inexata, porém, registre-se, já que, conforme
várias vezes enunciado pelo STF, tratam-se os tipos penais do art. 1º do Dec.-Lei
nº 201/67 de crimes comuns, de competência, para conhecimento e julgamento,
do Poder Judiciário), para a caracterização da conduta em tela, mister se faz a
demonstração do dolo, vale dizer, prestadas as contas tardiamente, mas sem que
tal (intempestividade) se mostre fruto de intenção deliberada, por parte do chefe
do Executivo, de atrasar, de burlar a regulamentação expedida pelo órgão de
controle externo, descaracterizado está, ipso facto, o crime, restando, tão-somente,
a irregularidade sob o aspecto administrativo, sujeita, essa, à imposição de multa
pessoal (o que se deu in casu, aliás);
11 – vale consignar, a respeito do tema:
228
• Direito Processual Penal
Submeter o administrador às agruras e aos percalços de um processo criminal por
atos e fatos que mais se circunscrevem à órbita administrativa, como deslizes e
lapsos funcionais decorrentes de atraso na remessa de balancetes à Câmara
Municipal, ainda que concitado pelo órgão ministerial, não é medida justa e salutar
de política judiciária. (TJMT - Cs. Reuns. - AP - Rel. Des. Atahide Monteiro da Silva
– in RT 692/ 299).
A propósito, tem-se que a colenda 2ª Câmara Criminal do eg. TJMG teve oportunidade
de firmar o mesmo posicionamento, em decisão datada de 13/06/2002, proferida por
unanimidade de votos, por sinal, no processo crime de competência originária PCOCr nº 132.511-7, através da qual foi rejeitada denúncia, oferecida em caso análogo,
cuja ementa encontra-se redigida com o seguinte teor:
PROCESSO-CRIME DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA PREFEITO MUNICIPAL - ATRASO NA APRESENTAÇÃO DE
CONTAS - AUSÊNCIA DE DOLO - REJEIÇÃO DA DENÚNCIA
O mero atraso na apresentação de contas, devidamente
justificado, não dá ensejo à instauração de ação penal sob
a alegação de descumprimento de preceito previsto em lei
municipal, porque se extrai, com facilidade, ante a regularidade
das contas reconhecida pelo próprio Tribunal de Contas, que o
alcaide não agira com dolo. (TJMG - 2ª Câmara Criminal - PCO
nº 132.511-7 - Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro – in RT
806/609).
12 – Suporte jurisprudencial complementar, além do doutrinário de escol, pode ser
encontrado in RT 785/645, 798/660 etc.
Pelo exposto, apesar da tipicidade, a priori, da conduta omissiva do sr. XXX,
prefeito municipal de XX e embora seja a questão do dolo matéria de prova a
dever ser apreciada somente durante a instrução criminal, diante da decisão local
supra, que adentrou diretamente na prova dos autos, inócuo ou temerário se
tornaria o oferecimento de denúncia no caso concreto, uma vez que a ação penal
provavelmente seria obstada antes mesmo de seu início, a par de, ademais, não
haver sequer mínimos elementos, nos autos, que indiquem qualquer vestígio de
atitude intencional, por parte do mencionado alcaide.
No entanto, vale o registro de que aqui não se cogita de hipótese de proposta de
arquivamento por verificada atipicidade da conduta do investigado, tampouco extinção
da punibilidade do mesmo ou reconhecimento de qualquer causa justificadora,
situações em que configurada estaria, na decisão judicial que ora se propõe, a coisa
julgada material, ocasiões em que o mérito da ação é analisado.
Nessa linha pontificou o eminente ministro do Pretório Excelso, Cezar Peluso:
[...] a eficácia preclusiva da decisão de arquivamento de inquérito
policial depende da razão jurídica que, fundamentando-a, não
José Fernando Marreiros Sarabando •
229
admita desarquivamento nem pesquisa de novos elementos
de informação, o que se dá quando reconhecida atipicidade
da conduta ou pronunciada extinção da punibilidade. É que,
nesses casos, o ato de arquivamento do inquérito se reveste
da autoridade de coisa julgada material, donde a necessidade
de ser objeto de decisão do órgão judicial competente. (Pet.
N.º 3.297/MG, Pleno, rel. min. Cezar Peluso, j. 19.12.05, v.u.,
in D.J.U. de 17.02.06).
Assim, a V. Exª propõe o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por intermédio
de seu chefe, o Procurador-Geral de Justiça, mediante delegação de poderes ao
procurador infra assinado, o arquivamento do presente feito, forte nos arts. 3º, inciso
I, da LF nº 8.038/90, e 28 do CPP, decisão judicial que se espera, dados os seus
peculiares contornos, valha tão-só rebus sic stantibus, na esteira exata do art. 18 do
Código de Processo Penal, fazendo coisa julgada exclusivamente formal, porquanto
não imutável, em seus efeitos.
Belo Horizonte, 30 de novembro de 2006.
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça
(atuação por delegação do Procurador-Geral de Justiça)
230
• Direito Processual Penal
José Fernando Marreiros Sarabando •
231
4
Artigo • 235
Jurisprudência • 259
Comentário à Jurisprudência • 261
Direito
Civil
4
Artigo
A GUARDA COMPARTILHADA E A LEI Nº 11.698/08
“Quem ama cuida; cuida de si mesmo, da família, da
comunidade, do país – pode ser difícil, mas é de uma
assustadora simplicidade e não vejo outro caminho”. (Lya
Luft)
LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
RESUMO: Em síntese, o presente artigo pretende avaliar se o tratamento conferido
pela recente Lei nº 11.698/08 à guarda compartilhada atende ao princípio do melhor
interesse do menor.
PALAVRAS-CHAVE: Guarda compartilhada; melhor interesse do menor.
ABSTRACT: In summary, this article aims to evaluate whether the recent Law nº
11.698/08 effectively considers the principle of best interest of the child, regarding
shared custody.
KEY WORDS: Shared custody; best interest of the child.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A guarda unilateral e a síndrome da alienação parental.
3. A guarda compartilhada e o melhor interesse do menor. 4. A guarda compartilhada
e a necessidade da prática da mediação. 5. A guarda compartilhada e a Lei nº
11.698/08. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A Lei nº 11.698/08, de 13 de junho de 2008, veio a consagrar expressamente
no Código Civil brasileiro o tão elogiado instituto da guarda compartilhada. Não
obstante ele já fosse amplamente aceito pela doutrina e aplicado na prática pela
jurisprudência, certo é que o reconhecimento legislativo, como sói ocorrer, pacificou,
em definitivo, as discussões acerca da existência tal instituto.
Leonardo Barreto Moreira Alves •
235
Desse modo, a partir desse momento, as atenções da comunidade jurídica nacional
se voltam para a análise dos aspectos positivos e negativos do regramento dado pela
lei à guarda compartilhada. Nesse sentido, pode-se afirmar que, de um modo geral,
a nova lei vem sendo vista com bons olhos pelos operadores do Direito. Destarte,
parcela da doutrina civilista vem apontando graves falhas da novel legislação, as
quais implicariam a inviabilidade do uso dessa medida.
Nesse cenário, verifica-se que o ponto fulcral das críticas dirigidas à Lei nº 11.698/08
concentra-se no teor do atual artigo 1.584, § 2º, do Código Civil, segundo o qual
“Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada,
sempre que possível, a guarda compartilhada”. No entender de alguns autores, esse
dispositivo, ao estabelecer a guarda compartilhada como regra preferencial, quase
obrigatória do exercício do poder familiar após a dissolução do casamento/união
estável na hipótese de não haver acordo entre os genitores implicaria um franco
retrocesso no que tange à regra geral da guarda unilateral concedida a quem relevar
possuir melhores condições, outrora encontrada no antigo art. 1.584, parágrafo
único, do Codex, pois o litígio vivenciado pelos pais impossibilitaria por completo o
sucesso daquela modalidade de guarda.
O presente trabalho, indo em direção contrária ao posicionamento acima referido,
pretende demonstrar que o advento da Lei nº 11.698/08 deve ser efusivamente
comemorado. Não há que se olvidar que a legislação contém falhas, conforme será
apreciado ao longo deste texto, mas elas não comprometem o êxito da aplicação
da guarda compartilhada, que, sem dúvida alguma, é a forma de guarda que
melhor resguarda o interesse do menor, evitando-se os efeitos nefastos da guarda
unilateral, tais como a diminuição do contato do filho com o genitor não guardião
e, principalmente, o conhecido Fenômeno da Alienação Parental e a conseqüente
Síndrome da Alienação Parental.
Por isso, defende-se que a mudança da regra da guarda unilateral a quem relevar
possuir melhores condições (antigo art. 1.584, parágrafo único) para a da guarda
compartilhada (atual art. 1.584, § 2º) é altamente positiva, sendo o problema do litígio
entre os genitores do menor alhures apontado absolutamente contornável através
da prévia prática da mediação interdisciplinar, a qual se encontra expressamente
prevista no recente art. 1.584, § 3º, como ficará mais claro no desenvolvimento dos
próximos capítulos.
2. A guarda unilateral e a síndrome da alienação parental
Ab initio, cumpre fazer importante distinção entre os dois modelos de guarda
existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a guarda prevista no
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90) e aquela disciplinada
no Código Civil. A primeira é considerada como uma das espécies de colocação em
família substituta, ao lado da tutela e da adoção, pressupondo, portanto, a perda do
poder familiar, e deve ser aplicada como medida específica de proteção ao menor (art.
236
• Direito Civil
101, VIII, do ECA), estando disciplinada nos artigos 33 a 35 do ECA. Já a segunda
decorre de separação (judicial ou de corpos), divórcio ou dissolução da união estável
dos genitores do menor, integrando o poder familiar como especialização do seu
exercício, tendo o seu regramento nos artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil, no
Capítulo da Proteção da Pessoa dos Filhos.
No que tange à guarda prevista no Código Civil, objeto deste trabalho e que, por
isso mesmo, passamos a centrar nossa atenção, ela deve ser entendida como a
atribuição conferida a um dos pais separados, divorciados ou ex-conviventes de
união estável ou a ambos “dos encargos de cuidado, proteção, zelo e custódia do
filho” (LÔBO, 2008, p. 169).
Essa modalidade de guarda compreende duas outras espécies, a saber, a guarda
unilateral ou exclusiva ou uniparental e a guarda compartilhada (espécie esta a
ser trabalhada no capítulo seguinte), o que ficou muito claro na novel redação do
caput do art. 1.583, dada pela Lei nº 11.698/08, segundo a qual “[...] a guarda será
unilateral ou compartilhada”.
A guarda unilateral, como regra geral, é aquela exercida exclusivamente por um dos
genitores, decorrente de acordo estabelecido entre eles ou por determinação judicial,
se não for recomendável o exercício da guarda compartilhada. Excepcionalmente,
porém, a guarda unilateral pode ser atribuída a terceiros (levando-se em conta o
grau de parentesco e a relação de afinidade e afetividade), em atenção ao princípio
do melhor interesse do menor, quando os pais não demonstrem condições para
o exercício dessa vertente do poder familiar, a exemplo de “[...] pais viciados em
drogas, sem ocupação regular, com práticas de violência contra os filhos” (LÔBO,
2008, p. 173).
Nesse contexto, a Lei nº 11.698/08 inseriu no Código Civil importantes conceitos a
respeito da guarda unilateral. A partir dela, por exemplo, encontra-se no novel art.
1.583, § 1º, a regra de que “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um
só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) [...]”.
O recém-criado art. 1.583, § 2º, passou a estatuir que “A guarda unilateral será
atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente,
mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I – afeto nas relações
com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação”. Sobre
esse dispositivo, desde já é preciso ponderar que, para uma eficaz proteção ao
menor, somente é possível compreender os incisos nele referidos como meramente
exemplificativos, não havendo ainda qualquer tipo de ordem de preferência entre
eles.
Dando continuidade, o art. 1.583, § 3º, determina que “A guarda unilateral obriga o
pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos”. Já o art.
1.584, § 5º, estipula que “Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a
guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade
Leonardo Barreto Moreira Alves •
237
com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as
relações de afinidade e afetividade”.
Ainda em atenção ao princípio do melhor interesse do menor, para que não haja a
nefasta perda do contato dos filhos com o pai (gênero) não guardião, resguarda-se a
este último o direito (muito mais um dever, poder-dever, a chamada potestà do direito
italiano) de visitas e de convivência com o filho, direito este que deve ser fixado, por
acordo, pelos pais ou, na impossibilidade, por decisão judicial (art. 1.589 do Código
Civil).
Dissertando sobre o direito de visita, o brilhante Professor Paulo Luiz Netto Lôbo
leciona:
O direito de visita, interpretado em conformidade com a
Constituição (art. 227), é direito recíproco de pais e dos filhos à
convivência, de assegurar a companhia de uns com os outros,
independentemente da separação. Por isso, é mais correto
dizer direito à convivência, ou à companhia, ou ao contato
(permanente) do que direito de visita (episódica). O direito de
visita não se restringe a visitar o filho na residência do guardião
ou no local que este designe. Abrange o de ter o filho ‘em sua
companhia’ e o de fiscalizar sua manutenção e educação, como
prevê o art. 1.589 do Código Civil. O direito de ter o filho em
sua companhia é expressão do direito à convivência familiar,
que não pode ser restringido em regulamentação de visita.
Uma coisa é a visita, outra a companhia ou convivência. O
direito de visita, entendido como direito à companhia, é relação
de reciprocidade, não podendo ser imposto quando o filho não
o deseja, ou o repele [...]. (LÔBO, 2008, p. 174).
Nos dias de hoje, como é cediço, o critério norteador da fixação da guarda unilateral
(e também da guarda compartilhada, conforme será visto no capítulo seguinte) é
o melhor interesse do menor, já que a medida deve ser aplicada sempre em seu
benefício, por quem quer que seja.
Destarte, em uma análise histórica da matéria, verifica-se que nem sempre foi assim.
Nesse sentido, o Código Civil de 1916, como modo de valorizar a única forma de
família, a família matrimonial, impunha freios, desestímulos aos cônjuges quanto
à separação judicial, notadamente na separação-sanção, ao estabelecer graves
sanções ao tido como culpado pelo fim do relacionamento conjugal, dentre elas a
perda automática da guarda judicial dos filhos, dispondo no seu artigo 326 que “[...]
sendo desquite judicial, ficarão os filhos menores com o cônjuge inocente”. Além
disso, na hipótese de culpa de ambos os cônjuges, o art. 321 do Codex determinava
que a guarda seria exercida por terceira pessoa.
Desse modo, a legislação civil da época acabava estipulando uma verdadeira
sanção aos filhos do casal, pois aquele genitor em tese com melhores condições
para o exercício da guarda poderia ser dela privado se fosse tido como culpado pela
238
• Direito Civil
separação judicial e, o que é pior, se ambos os pais fossem considerados culpados,
os menores seriam privados da convivência diária com eles, ficando na companhia
de terceiros.
O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) tentou consertar essa distorção
e alterou a redação do Código Civil de 1916, que passou a regular a matéria da
seguinte forma: se ambos os cônjuges fossem culpados, ficariam em poder da
mãe os filhos menores, salvo se o juiz verificasse que de tal solução pudesse advir
prejuízo de ordem moral para eles (art. 326, parágrafo 1o); se fosse verificado que
não deveriam os filhos permanecer em poder da mãe nem do pai, o juiz deferiria
a sua guarda a pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos cônjuges,
ainda que não mantivesse relações sociais com os pais, a quem, entretanto, seria
assegurado o direito de visita (art. 326, parágrafo 2o); se houvesse motivos graves,
poderia o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente das
anteriores a situação deles para com os pais (art. 327, caput).
Apesar da tentativa, a legislação não extirpou a culpa da discussão da guarda judicial
na ação de separação judicial, o que prejudicava, sem dúvida alguma, os próprios
cônjuges enquanto pais e, principalmente, os seus filhos menores.
A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77), por sua vez, insistiu em manter in totum o critério
da culpa como definidor da guarda judicial dos filhos menores, ex vi da redação do
seu artigo 10, caput e parágrafos 1º e 2º.
Com efeito, hodiernamente, o Código Civil de 2002, em respeito à doutrina do
melhor interesse da criança (the best interest of the child), com muito acerto, afastou
por completo qualquer tipo de influência da culpa no direito de guarda judicial dos
filhos, pois, no seu art. 1.584, caput, com a redação anterior à edição da Lei nº
11.698/08, consagrou a regra geral segundo a qual “Decretada a separação judicial
ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será
ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”.
Com relação ao citado dispositivo, embora a Lei nº 11.698/08 tenha modificado o seu
teor, especialmente pelo que consta no atual art. 1.584, § 2º (“Quando não houver
acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que
possível, a guarda compartilhada”), o qual será detidamente apreciado no capítulo 3
deste trabalho, certo é que a leitura dos artigos 1.583 e 1.584 continua a evidenciar
que a intenção do legislador é de atender à doutrina do melhor interesse da criança,
ex vi do 1.583, parágrafos 2º e 5º, já transcritos alhures.
Outro dispositivo que reforça a aplicação dessa doutrina na atualidade é o art. 1.586
do Código, o qual estatui que “Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer
caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos
antecedentes a situação deles para com os pais”.
Leonardo Barreto Moreira Alves •
239
Complementando esse cenário, registre-se que a Lei nº 11.112/05, alterando o art.
1.121, II, do Código de Processo Civil, exigiu como requisito da petição inicial da
ação de separação consensual “[...] o acordo relativo à guarda dos filhos menores e
ao regime de visitas”.
Como visto, não há que se olvidar que, no exercício da guarda unilateral por um dos
genitores e, por conseqüência, do próprio direito de visita, a todo tempo deve ser
privilegiado o melhor interesse do menor, sob pena de alteração de tais medidas,
inclusive com a possibilidade de concessão da guarda em favor de terceiros.
Não obstante, há de se ressaltar que, no âmbito da guarda unilateral e do direito de
visita, há muito mais espaço para que um dos genitores, geralmente a mãe, utilize-se
dos seus próprios filhos como “arma”, instrumento de vingança e chantagem contra o
seu antigo consorte, atitude passional decorrente das inúmeras frustrações advindas
do fim do relacionamento amoroso, o que é altamente prejudicial à situação dos
menores, que acabam se distanciando deste segundo genitor, em virtude de uma
concepção distorcida acerca dele, a qual é fomentada, de inúmeras formas, pelo
primeiro, proporcionando graves abalos na formação psíquica de pessoas de tão
tenra idade, fenômeno que já foi alcunhado como Fenômeno da Alienação Parental,
responsável pela Síndrome da Alienação Parental (SAP ou PAS).
Discorrendo sobre esses temas com maestria, a Professora Giselle Câmara
Groeninga leciona:
Segundo Gardner: ‘A Síndrome da Alienação Parental é uma
das doenças que emerge quase que exclusivamente no
contexto das disputas pela guarda. Nesta doença, um dos
genitores (o alienador, o genitor alienante, o genitor PASindutor) empreende um programa de denegrir o outro genitor
(o genitor alienado, a vítima, o genitor denegrido). No entanto,
este não é simplesmente uma questão de ‘lavagem cerebral’
ou ‘programação’ na qual a criança contribui com seus próprios
elementos na campanha de denegrir. É esta combinação de
fatores que justificadamente garantem a designação de PAS [...].
Na PAS, os pólos dos impasses judiciais seriam compostos por
um genitor alienador e um genitor alienado. Como apontado no
início deste texto, seria fundamental considerar as contribuições
do contexto judicial para a instalação de dita síndrome, ou
Fenômeno de Alienação Parental, como se defende aqui ser
mais apropriado denominar [...]. O genitor alienante seria, em
geral, a mãe que costuma deter a guarda, e que a exerceria
de forma tirânica. Inegável é a grande influência que a mãe
exerce nos filhos pequenos, dada a natural seqüência de um
vínculo biológico para o psíquico e afetivo. O que se observa
é que há mães que utilizam sim de forma abusiva, consciente
e inconscientemente, o vínculo de dependência não só física,
mas, sobretudo, psíquica que a criança tem para com ela [...].
(GROENINGA, 2008, p. 122-123).
240
• Direito Civil
Acrescente-se que o Projeto de Lei nº 4.053/2008, de autoria do Deputado Federal
Régis de Oliveira (PSC/SP), que tramita no Congresso Nacional, dispondo sobre
a alienação parental, conceitua tal fenômeno, em seu art. 1º, caput, como “[...] a
interferência promovida por um dos genitores na formação psicológica da criança
para que repudie o outro, bem como atos que causem prejuízos ao estabelecimento
ou à manutenção de vínculo com este”, enquanto que, no parágrafo único desse
mesmo dispositivo, apresenta um rol meramente exemplificativo de hipóteses que
indicam a prática dessa conduta, a saber:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor
no exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício do poder familiar;
III - dificultar contato da criança com o outro genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de visita;
V - omitir deliberadamente ao outro genitor informações
pessoais relevantes sobre a criança, inclusive escolares,
médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra o outro genitor para
obstar ou dificultar seu convívio com a criança;
VII - mudar de domicilio para locais distantes, sem justificativa,
visando dificultar a convivência do outro genitor.
Ademais, não há dúvidas também de que o (pouco) contato dos menores com o
genitor não guardião através apenas de esporádicas visitas (geralmente semanais
ou quinzenais, nos finais de semana) não é medida recomendável para o
desenvolvimento da personalidade deles, sendo imperiosa uma maior participação
do genitor na educação e formação dos filhos.
Considerando esses empecilhos da guarda unilateral é que a doutrina civilista, há
tempos, em proteção ao melhor interesse do menor, já advogava a necessidade
de substituição de tal medida pela guarda compartilhada, tema a ser debatido no
capítulo vindouro.
3. A guarda compartilhada e o melhor interesse do menor
O instituto da guarda compartilhada, até bem pouco tempo, não era previsto
expressamente pelo ordenamento jurídico nacional, o que não impossibilitava a
sua aplicação na prática, a uma com base nas experiências do Direito Comparado
(principalmente na França – Código Civil francês, art. 373-2, na Espanha – Código
Civil espanhol, arts. 156, 159 e 160, em Portugal – Código Civil português, art.
1905º, em Cuba – Código de Família de Cuba, arts. 57 e 58 e no Uruguai – Código
Civil uruguaio, arts. 252 e 257) e, a duas, com fulcro em dispositivos já existentes
no ordenamento jurídico, especialmente no art. 229 da Constituição Federal (“Os
pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores [...]”) e nos artigos
1.579 (“O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos
filhos”), 1.632 (“A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não
Leonardo Barreto Moreira Alves •
241
alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros
cabe, de terem em sua companhia os segundos”) e 1.690, parágrafo único (“Os pais
devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens; havendo
divergência, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a solução necessária”) do
Código Civil brasileiro.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 1967, já teve a oportunidade de se
pronunciar, em termos genéricos, sobre a importância da guarda compartilhada, ex
vi do seguinte julgado:
O juiz, ao dirimir divergência entre pai e mãe, não se deve
restringir a regular visitas, estabelecendo limitados horários
em dia determinado da semana, o que representa medida
mínima. Preocupação do juiz, nesta ordenação, será propiciar
a manutenção das relações dos pais com os filhos. É preciso
fixar regras que não permitam que se desfaça a relação afetiva
entre pais e filho, entre mãe e filho. Em relação à guarda dos
filhos, em qualquer momento, o juiz pode ser chamado a
revisar a decisão, atento ao sistema legal. O que prepondera
é o interesse dos filhos, e não a pretensão do pai ou da mãe.
(RE 60.265-RJ).
Mais recentemente, em 2006, o enunciado nº 335 da IV Jornada de Direito Civil veio
a estatuir: “A guarda compartilhada deve ser estimulada, utilizando-se, sempre que
possível, da mediação e da orientação da equipe multidisciplinar”.
Apesar disso, não há que se olvidar que a recente Lei nº 11.698/08 é muito bemvinda, pois colocou por terra qualquer discussão sobre a possibilidade de aplicação
da guarda compartilhada, ao inserir expressamente tal instituto no ordenamento
jurídico pátrio, motivo pelo qual será apreciada com vagar em tópico próprio (capítulo
4).
A guarda compartilhada implica exercício conjunto, simultâneo e pleno do poder
familiar, afastando-se, portanto, a dicotomia entre guarda exclusiva, de um lado,
e direito de visita, do outro. A partir dessa medida, fixa-se o domicílio do menor na
residência preferencial de um dos genitores, mas ao outro é atribuído o dever de
continuar cumprindo intensamente o poder familiar, através da participação cotidiana
nas questões fundamentais da vida do seu filho, tais como estudo, saúde, esporte e
lazer, o que vem a descaracterizar a figura do “pai/mãe de fim-de-semana”.
É certo que a guarda compartilhada não elimina, por exemplo, a clássica obrigação
de pagamento de pensão alimentícia a ser assumida por um dos genitores. Não
obstante, ela visa essencialmente ampliar os horizontes da responsabilidade dos
pais, fomentando, em verdade, uma co-responsabilidade, uma pluralidade de
responsabilidades na educação do filho, enfim, uma colaboração igualitária na
condução dos destinos do menor.
242
• Direito Civil
Analisando com precisão cirúrgica esse fenômeno, a Professora Maria Berenice
Dias leciona:
Guarda conjunta ou compartilhada significa mais prerrogativas
aos pais, fazendo com que estejam presentes de forma mais
intensa na vida dos filhos. A participação no processo de
desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização de
responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização
de sentimentos. A proposta é manter os laços de afetividade,
minorando os efeitos que a separação sempre acarreta nos
filhos e conferindo aos pais o exercício da função parental
de forma igualitária. A finalidade é consagrar o direito da
criança e de seus dois genitores, colocando um freio na
irresponsabilidade provocada pela guarda individual [...].
(DIAS, 2006, p. 361-362).
Idêntico raciocínio possui a destacada Professora Ana Carolina Brochado Teixeira,
como se vê do trecho abaixo transcrito:
O que se constata é a presença marcante, no conceito ora
esboçado, da possibilidade do exercício conjunto da autoridade
parental, como aspecto definidor da guarda compartilhada, pois
que possibilita que os genitores compartilhem as decisões mais
relevantes da vida dos filhos [...]. A sagrada relação parental
é desatrelada da definição dos rumos da conjugalidade dos
pais, garantindo aos filhos a vinculação do laço afetivo com
ambos os genitores, mesmo após o esfacelamento da vida em
comum. Em verdade, o real mérito da guarda compartilhada
tem sido popularizar a discussão da co-participação parental
na vida dos filhos [...]. (TEIXEIRA, 2005, p. 110).
Como é cediço, inúmeros são os efeitos traumáticos provocados pela dissolução do
casamento/união estável no desenvolvimento psíquico dos filhos menores e um deles,
notadamente, é a perda de contato freqüente com um dos seus genitores. Nesse
sentido, verifica-se que a guarda compartilhada pretende evitar esse indesejado
distanciamento, incentivando, ao máximo, a manutenção dos laços afetivos entre os
envolvidos acima referidos, afinal de contas pai (gênero) não perde essa condição
após o fim do relacionamento amoroso mantido com o outro genitor (gênero) do seu
filho, nos termos do art. 1.632 do Código Civil.
Nesse contexto, impende esclarecer que a guarda compartilhada não pode jamais
ser confundida com a chamada guarda alternada: esta, não recomendável, tendo em
vista que tutela apenas os interesses dos pais, implica exercício unilateral do poder
familiar por período determinado, promovendo uma verdadeira divisão do menor,
que convive, por exemplo, quinze dias unicamente com o pai e outros quinze dias
unicamente com a mãe; aquela, por sua vez, altamente recomendável, pois tutela os
interesses do menor, consiste no exercício simultâneo do poder familiar, incentivando
a manutenção do vínculo afetivo do menor com o genitor com quem ele não reside.
Leonardo Barreto Moreira Alves •
243
Sobre a minoração dos efeitos da dissolução do casamento/união estável dos pais
com sua maior participação na vida dos filhos através da guarda compartilhada,
assevera Paulo Lôbo:
A guarda compartilhada é caracterizada pela manutenção
responsável e solidária dos direitos-deveres inerentes ao
poder familiar, minimizando-se os efeitos da separação dos
pais. Assim, preferencialmente, os pais permanecem com as
mesmas divisões de tarefas que mantinham quando conviviam,
acompanhando conjuntamente a formação e o desenvolvimento
do filho. Nesse sentido, na medida das possibilidades de cada
um, devem participar das atividades de estudos, de esporte
e de lazer do filho. O ponto mais importante é a convivência
compartilhada, pois o filho deve sentir-se ‘em casa’ tanto na
residência de um quanto na do outro. Em algumas experiências
bem-sucedidas de guarda compartilhada, mantêm-se quartos
e objetos pessoais do filho em ambas as residências, ainda
quando seus pais tenham constituído novas famílias. (LÔBO,
2008, p. 176).
De outro lado, a guarda compartilhada também tem o importante efeito de impedir
a ocorrência do Fenômeno da Alienação Parental e a conseqüente Síndrome
da Alienação Parental (capítulo 1), já que, em sendo o poder familiar exercido
conjuntamente, não há que se falar em utilização do menor por um dos genitores
como instrumento de chantagem e vingança contra o genitor que não convive com o
filho, situação típica da guarda unilateral ou exclusiva.
Com efeito, essas são justamente as duas grandes vantagens da guarda
compartilhada: o incremento da convivência do menor com ambos os genitores, não
obstante o fim do relacionamento amoroso entre aqueles, e a diminuição dos riscos
de ocorrência da Alienação Parental. Desse modo, constata-se que, em verdade, a
guarda compartilhada tem como objetivo final a concretização do princípio do melhor
interesse do menor (princípio garantidor da efetivação dos direitos fundamentais da
criança e do adolescente, tratando-se de uma franca materialização da teoria da
proteção integral – art. 227 da Constituição Federal e art. 1º do Estatuto da Criança
e do Adolescente), pois é medida que deve ser aplicada sempre e exclusivamente
em benefício do filho menor.
Comentando sobre o princípio do melhor interesse do menor como finalidade
precípua da guarda compartilhada, Rodrigo da Cunha Pereira pondera:
É comum vermos os filhos se tornam ‘moeda de troca’ dos pais
no processo judicial. A ordem jurídica começou a perceber a
necessidade de separar a figura conjugal da figura parental [...].
Muito pertinente, por isso, a discussão acerca do cabimento
da guarda compartilhada no ordenamento jurídico pátrio.
Este novo arranjo familiar atenderia aos Princípios do Melhor
244
• Direito Civil
Interesse do Menor? A guarda compartilhada é um modelo
novo, cuja proposta é a tomada conjunta de decisões mais
importantes em relação à vida do filho, mesmo após o término
da sociedade conjugal [...]. O que se garante é a continuidade
da convivência familiar, que é um direito fundamental da
criança e, por seu turno, um dever fundamental dos pais. A
convivência, neste ínterim, não assume apenas a faceta do
conviver e da coexistência, mas vai muito mais além, ou seja,
participar, interferir, limitar, educar. Estes deveres não se
rompem com o fim da conjugalidade, por força do art. 1.632
do Código Civil de 2002, por ser atributo inerente ao poder
familiar, que apenas se extingue com a maioridade ou a
emancipação do filho. Zelar pelo melhor interesse do menor,
portanto, é garantir que ele conviva o máximo possível com
ambos os genitores – desde que a convivência entre eles seja
saudável, ou seja, que não exista nada que os desabone [...].
(PEREIRA, 2006, p. 134-135).
Registre-se ainda que a guarda compartilhada, em atendendo ao princípio do melhor
interesse do menor, também atenderá a outro princípio deste decorrente, qual seja,
o princípio do direito à convivência familiar, insculpido no art. 227 da Carta Magna
Federal e nos artigos 4º e 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Acrescente-se que a guarda compartilhada vai também ao encontro de outros
princípios constitucionais essenciais, a saber, a igualdade entre cônjuges/
companheiros (art. 226, § 5º, c/c art. 226, § 3º), a paternidade responsável (art.
226, § 7º) e o planejamento familiar (art. 226, § 7º), este último fruto do princípio da
autonomia privada, o qual está consubstanciado no princípio da liberdade (art. 5º,
caput).
Como se vê, portanto, pelos benefícios por ela proporcionados e pela realização
de princípios constitucionais que ela promove, notadamente o princípio do melhor
interesse do menor, a guarda compartilhada deve ser tida como a regra geral na
fixação do exercício do poder familiar com a dissolução do casamento/união estável,
em prevalência sobre a guarda exclusiva ou unilateral.
Nesse trilhar, é bem verdade que não há sérias dificuldades na aplicação do instituto
quando há acordo entre os cônjuges/companheiros a esse respeito, o que é mais
comum na dissolução consensual do casamento/união estável. O problema que
atormenta parcela da doutrina civilista reside na aplicação da guarda compartilhada
quando não há acordo entre os pais sobre ela (fixação judicial, portanto), situação
freqüente nas ações litigiosas de dissolução do casamento/união estável, pois,
nesse caso, o conflito entre os genitores persistiria após tal ação de dissolução, o
que prejudicaria sobremaneira o exercício sadio da responsabilidade conjunta do
poder familiar.
A nosso ver, porém, esse problema é apenas aparente, sendo contornável pelo
incentivo da prática da mediação familiar, conforme será visto no capítulo seguinte.
Leonardo Barreto Moreira Alves •
245
4. A guarda compartilhada e a necessidade da prática da mediação
Em linhas gerais, a mediação, como uma das espécies de equivalentes jurisdicionais,
pode ser definida como a solução de conflitos não-estatal, onde um terceiro, o
mediador, profissional devidamente preparado, se coloca entre as partes e fomenta
uma solução autocomposta em que ambas saiam ganhando. Na mediação, portanto,
há uma solução do conflito apresentado sem a participação do ente estatal, mas sim
com a intervenção de um terceiro imparcial, o mediador, que visa essencialmente
promover um entendimento entre as partes envolvidas para que elas, por si
próprias, através da linguagem e do diálogo, construam uma real e efetiva resposta
ao problema vivenciado por elas. Nas palavras do Professor mineiro Walsir Edson
Rodrigues Júnior, a mediação é:
[...] o processo dinâmico que visa ao entendimento, buscando
desarmar as partes envolvidas no conflito. O mediador,
terceiro neutro e imparcial, tem a atribuição de mover as
partes da posição em que se encontram, fazendo-as chegar
a uma solução aceitável. A decisão é das partes, tão-somente
delas, pois o mediador não tem poder decisório nem influencia
diretamente na decisão das partes por meio de sugestões,
opiniões ou conselhos. (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 75).
Ressalte-se que a mediação não se confunde com outros equivalentes jurisdicionais
correlatos, quais sejam, a conciliação ou autocomposição e a arbitragem, já que
naquela o acordo de resolução da lide é obtido pelas partes, que não constroem
juntas uma solução para o conflito, apenas fazem concessões recíprocas para que
haja o término do embate, contando para isso com a interferência direta e constante
de um terceiro, o conciliador, e, nesta, a solução do conflito é promovida por um
terceiro eleito pelas partes, o árbitro, enquanto que na mediação tem-se a decisão
da causa a partir de um ajuste engendrado pelas próprias partes, embora ocorra a
participação de um terceiro, o mediador, que, diferente do conciliador, não sugere,
interfere, aconselha, mas tão-somente facilita a comunicação entre os envolvidos,
sem induzir as partes ao acordo.
Desse modo, um dos pontos fulcrais de distinção entre a mediação, a conciliação e a
arbitragem é justamente “[...] o grau de interferência do terceiro [...] na elaboração do
acordo” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 74). Como já afirmado alhures, o mediador
“[...] tem a atribuição de mover as partes da posição em que se encontram, fazendo-as
chegar a uma solução aceitável” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 75). O conciliador,
por sua vez, “[...] apesar de não decidir, influencia diretamente na decisão das partes
por intermédio de uma intervenção mais direta e objetiva. Para alcançar o objetivo
final, ou seja, o acordo, o conciliador induz, dá palpites e sugestões” (RODRIGUES
JÚNIOR, 2007, p. 75). O árbitro, de outro lado, é o terceiro que é eleito pelas partes
para que resolva o litígio relacionado a elas.
Além disso, outra marca de distinção entre a mediação, a conciliação e a arbitragem
246
• Direito Civil
é a responsabilidade das partes envolvidas. Esclarecendo com brilhantismo esse
critério, a Professora Águida Arruda Barbosa salienta:
A conciliação é um equivalente jurisdicional de alta tradição no
direito brasileiro, que pode ser definida como uma reorganização
lógica, no tocante aos direitos que cada parte acredita ter,
polarizando-os, eliminando os pontos incontroversos, para
delimitar o conflito e, com técnicas adequadas, em que o
conciliador visa corrigir as percepções recíprocas, aproxima as
partes em um espaço concreto. Neste equivalente jurisdicional,
o conciliador intervém com sugestões, alerta sobre as
possibilidades de perdas recíprocas das partes, sempre
conduzidas pelo jargão popular sistematizado pela expressão
‘melhor um mau acordo que uma boa demanda’. Em suma,
submetidas à conciliação, as partes admitem perder menos
num acordo, que num suposto sentenciamento desfavorável,
fundamentado na relação ganhador-perdedor. Na conciliação,
há negação do conflito, pois o objetivo a que se propõem as
partes é a celebração do acordo como uma forma de liberação
daquele constrangimento oriundo da litigiosidade, e, para tanto,
assumem compromisso mútuo, resultando em um consenso,
orientado pelo princípio da autonomia da vontade dos
litigantes. O que caracteriza esse equivalente jurisdicional é a
celebração de acordo. Já a mediação tem linguagem própria,
que representa o avesso da linguagem da conciliação e da
arbitragem, impondo-se estabelecer uma exata discriminação
para alcançar a compreensão do conceito destas importantes
alternativas de acesso à justiça [...]. Na mediação, o acordo
não é obrigatório como medida do sucesso ao acesso à justiça,
podendo ser uma atividade preventiva, portanto, anterior ao
conflito. Ademais, os mediandos podem perceber que, com a
recuperação da capacidade de se responsabilizar pelas próprias
escolhas, dêem outro significado à relação, transformando o
conflito ou impasse em que se encontram envolvidos. Resta,
assim, conceituar a arbitragem, na qual o elemento de solução
de conflito é externo às partes, que, no exercício da autonomia
da vontade, elegem uma terceira pessoa, neutra e imparcial –
o árbitro –, autorizando-o a tomar uma decisão que obrigará
os envolvidos no conflito. Em síntese, as partes submetem-se,
por vontade própria, à vontade de um terceiro, que exercerá a
função de juiz. (BARBOSA, 2004, p. 32-34).
De fato, na mediação há a prevalência da participação das partes na discussão do
caso prático, as quais, aliadas entre si e com o auxílio do mediador, constroem uma
solução do litígio que atende aos interesses de ambos os envolvidos, ou seja, sem
perdas, apenas há ganhos, o que é feito através da linguagem, da comunicação,
do diálogo, consagrando-se a dinâmica da intersubjetividade e ampliando-se a
humanização do acesso à Justiça, em atendimento à Teoria do Agir Comunicativo
de Habermas.
Leonardo Barreto Moreira Alves •
247
A esse respeito, novamente a Professora Águida Arruda Barbosa leciona:
A mediação, examinada sob a ótica da teoria da comunicação,
é um método fundamentado, teórica e tecnicamente, por meio
do qual uma terceira pessoa, neutra e especialmente treinada,
ensina os mediandos a despertar seus recursos pessoais
para que consigam transformar o conflito. Essa transformação
constitui oportunidade de construção de outras alternativas
para o enfrentamento ou a prevenção de conflitos. (BARBOSA,
2004, p. 33).
Nesse sentido, registre-se que a mediação funda-se em uma linguagem ternária, a
linguagem do diálogo, da pluralidade, da complexidade, de múltiplas possibilidades,
do reconhecimento da situação peculiar de cada parte envolvida, na qual prevalece,
portanto, a conjunção aditiva e ao revés da conjunção alternativa ou, típica da
linguagem binária, linguagem do sim ou não, do tudo ou nada, do culpado ou
inocente, do procedente ou improcedente, enfim, da imposição.
Nas palavras da Professora Águida Arruda Barbosa,
O pensamento ternário é próprio do mundo oriental, por
influência da cultura, da religião, dos usos e costumes.
Admite a criatividade humana, que é infinita, portanto,
abre-se a possibilidade de muitas alternativas, para uma
determinada situação, de acordo com os recursos pessoais
dos protagonistas. A superioridade do pensamento ternário é
evidente, pois muito mais afeito à natureza humana. Portanto,
seu exercício humaniza o homem [...]. O pensamento ternário,
ao incluir o terceiro, abre o tempo-espaço que contempla a
discussão, fundamentando-a no reconhecimento do valor do
outro, que se encontrava encoberto pela ausência do diálogo.
(BARBOSA, 2004, p. 35).
A mediação, noutro giro, implica a sugestão de uma pluralidade de soluções para
resolução do caso concreto (todas variáveis de acordo com a condição financeira
das partes e do mediador), haja vista a existência de um constante diálogo entre
os envolvidos. Em virtude deste método muito mais humanitário proposto pela
mediação, alcança-se uma maior aceitação da solução da lide encontrada pelas
partes, essencial para uma real pacificação do conflito, garantindo-se, portanto, que
o litígio não será mais retomado.
Nesse cenário, deve-se ressaltar que nas causas de família a mediação ganha
especial relevo, tendo em vista que nelas há uma maior dificuldade de se impor uma
solução, já que as relações familiares são sempre permeadas pelo desejo, aspecto
subjetivo que qualifica o litígio.
Comentando sobre esse fenômeno, o genial Rodrigo da Cunha Pereira pondera:
248
• Direito Civil
[...] Nas relações do Direito de Família o elo determinante é
o amor, o afeto, que está vinculado ao desejo, ao sujeito do
inconsciente [...]. Consumir objetos de desejo não significa
satisfazer o desejo, até porque sua fisiologia é querer sempre
mais. Daí a definição de Lacan: desejo é desejo de desejo. A
necessidade pode e deve ser satisfeita. A vontade, às vezes.
O desejo nunca. É que é impossível satisfazê-lo. Ele sempre
demandará outra satisfação [...]. A ilusão da completude
nos move em direção à realização dos desejos e à procura
de objetos que preencham o que falta em nós. O outro pode
significar apenas um objeto da nossa ilusão, de tamponamento
da incompletude. Quando o amor acaba, e esses restos vão
parar na Justiça, o litígio judicial muitas vezes significa apenas
uma maneira, ou uma dificuldade de não se deparar com o
desamparo. Assim, uma demanda judicial é também um
não querer deparar-se com o real do desamparo estrutural.
Essas noções trazidas pela Psicanálise emprestam ao campo
jurídico, particularmente ao Direito de Família, uma ampliação
e compreensão da estrutura do litígio e do funcionamento
dos atores e personagens da cena jurídica e judicial [...].
Nas relações jurídicas e judiciais o desejo, a vontade e a
necessidade se entrelaçam, confundem-se e podem provocar
injustiças. Por exemplo, em um pedido de pensão alimentícia a
discussão objetiva é entre a necessidade de quem vai receber
e a possibilidade de quem vai pagar. Entretanto, quando a
relação entre os sujeitos ali envolvidos está malresolvida,
a objetividade se desvirtua a partir de elementos e registros
inconscientes. Quem paga, sempre acha que está pagando
muito e quem recebe sempre acha que está recebendo
pouco. Se a necessidade é x, pensa-se que é x+y, como se
o y fosse um ‘mais’ para pagar um abandono, um desamor
ou uma traição. Paga-se ‘menos’ que a necessidade como
se esse menos fosse uma punição pelo fim da conjugalidade.
Vê-se aí que o desejo, o inconsciente interferem no direito,
no ‘dever-ser’, ao relativizar a necessidade, ou escamotear a
possibilidade, alterando assim o curso de uma discussão que
deveria ser apenas no campo da objetividade. O Judiciário e os
advogados tornam-se instrumentos da busca da realização de
um desejo inconsciente, cujo processo vem travestindo uma
outra cena, que é da ordem da subjetividade. Compreender
essa outra cena é não permitir ser instrumento de ilusão de
satisfação do desejo oculto, é barrar o gozo, o excesso [...].
(PEREIRA, 2006, p. 55-57).
Corroborando esse posicionamento, os Professores Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald assim dispõem:
Sem qualquer dúvida, a mediação é instrumento indicado para
os conflitos de Direito de Família, servindo para arrefecer os
ânimos das partes e, ao mesmo tempo, auxiliar à deliberação
Leonardo Barreto Moreira Alves •
249
de decisões mais justas e consentâneas com os valores
personalíssimos de cada um dos interessados [...]. Outrossim,
a variada carga de conflitos humanos (afetivos, sexuais,
emocionais...) que marca, particularmente, o Direito de Família
e, ao mesmo tempo, a proteção constitucional da privacidade
de cada uma das pessoas envolvidas, são argumentos fortes
para o uso da mediação familiar. Em determinados conflitos
(como relativos à guarda e visitação de filhos, v.g), a mediação
familiar se apresenta com resultados amplamente favoráveis
às partes e ao Judiciário, uma vez que ao indicar um perito
para ter contato com as partes o magistrado sairá da rigidez
da ciência jurídica e considerará ‘as partes como seres em
conflito, esvaziando a disputa inesgotável do perde/ganha.
(FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 23-24).
Arrematando, a Professora Fernanda Maria Dias de Araújo Lima afirma que:
A mediação se traduz na reconstrução de relações que se
desgastaram ao longo do tempo por discórdias e divergências de
opiniões, refazimento de laços, fomentação e amadurecimento
do diálogo entre as partes, valorização das partes envolvidas
no conflito, transformação de pontos divergentes em um ponto
comum, valorização do instituto da família, tutela de menores
normalmente colocados como objeto de disputa num conflito
entre pais. (LIMA, 2007, p. 27).
No que tange ao objeto específico deste trabalho, pode-se afirmar que, nas causas
envolvendo a guarda judicial, é sintomática a presença do desejo, sendo os filhos
geralmente utilizados por um dos genitores como instrumentos de chantagem, revolta
e vingança contra o outro, o que é altamente prejudicial aos menores, muitas vezes
vítimas do Fenômeno da Alienação Parental, conforme visto no capítulo 2.
Nessa linha de intelecção, Rodrigo da Cunha Pereira afirma que “[...] o litígio judicial
é uma história de degradação do outro. Mas, como isto é inconsciente, as partes,
na maioria das vezes, não percebem o mal que estão fazendo a si mesmas e
principalmente aos filhos” (PEREIRA, 2006, p. 57-58).
Arrefecendo o desejo, a mediação permite a construção de uma efetiva solução
racional para o litígio, evitando-se o ressurgimento da lide e o oferecimento de nova
demanda ao Poder Judiciário.
Dada esta sua importância, exige-se que ela seja bem feita, o que impõe a
necessidade da capacitação do mediador, além da realização dos trabalhos através
da interdisciplinaridade, principalmente com as áreas da Psicologia, da Psicanálise,
do Serviço Social, da Sociologia etc.
Ultimadas essas considerações, é preciso destacar que a prática da mediação se
faz absolutamente necessária para um eficaz exercício da guarda compartilhada,
250
• Direito Civil
precipuamente quando não há acordo entre pais sobre ela, cabendo a decisão ao
magistrado.
Ora, em sendo exigida na guarda compartilhada uma participação conjunta e
simultânea dos pais na educação dos filhos menores, a permanência do conflito
entre eles após a dissolução do relacionamento amoroso poderia, em tese, prejudicar
sobremaneira o sucesso desse instituto, violando, assim, o princípio do melhor
interesse do menor.
De fato, a priori, apresenta-se extremamente improvável a missão de promover o
compartilhamento do exercício do poder familiar entre pessoas que continuam em
conflito, sendo o convívio entre elas fonte de incremento desse mesmo conflito, o
que constitui um terreno fértil para o desenvolvimento do Fenômeno da Alienação
Parental, gerando a indesejada Síndrome da Alienação Parental. Diante disso, o
incentivo da guarda compartilhada, nessas condições, acabaria funcionando como
um meio de se promover a violação ao princípio do melhor interesse do menor.
Destarte, essa situação é contornável a partir da prática da mediação. O conflito
existente entre os pais, caso trabalhado pela mediação, pode não ser transferido
para os filhos, aliás, mais do que isso, pode ser definitivamente solucionado,
harmonizando o convívio familiar e proporcionando um saudável desenvolvimento
psíquico dos menores.
Assim, não obstante o passional conflito vivenciado pelos genitores, a mediação
deve despertar o diálogo, o respeito, a humanização, a solidariedade e a cooperação
entre eles, o que viabilizará o sucesso da guarda compartilhada. Em outras palavras,
pode-se afirmar que, em havendo litígio entre os pais dos menores, a mediação
deve ser encarada como uma etapa prévia necessária e obrigatória para a aplicação
da guarda compartilhada. Por conseqüência, somente na hipótese de insucesso da
mediação é que se deve evitar o uso da guarda compartilhada, apelando-se para a
via excepcional da guarda exclusiva ou unilateral, tudo, reitere-se, visando ao melhor
interesse da criança.
Em resumo, pelos benefícios por ela proporcionados, a guarda compartilhada deve
ser a regra geral do exercício do poder familiar após a dissolução do casamento/união
estável, mas, em não havendo acordo entre os pais acerca da guarda dos filhos por
força do prévio litígio de direito material existente entre eles, tal espécie de guarda,
para que seja viável e efetivamente atenda ao melhor interesse do menor, deve vir
precedida da prática da mediação familiar. Uma vez frustrada a mediação é que se
recomenda a fixação da guarda exclusiva, como medida, portanto, excepcional.
Como forma de aumentar as chances de êxito da mediação para a aplicação da
guarda compartilhada, repita-se, é preciso que a prática daquele instituto se dê de
forma multidisciplinar, recorrendo-se a conhecimentos extrajurídicos, notadamente
da Psicologia, da Psicanálise, do Serviço Social, da Sociologia etc., afinal o operador
do Direito (in casu, o magistrado) não possui conhecimentos técnicos suficientes para
Leonardo Barreto Moreira Alves •
251
a resolução de conflitos familiares tão passionais como o que aqui se comenta.
Corroborando todo o raciocínio esposado neste capítulo, Paulo Lôbo sintetiza:
Para o sucesso da guarda compartilhada é necessário o
trabalho conjunto do juiz e das equipes multidisciplinares das
Varas de Família, para o convencimento dos pais e para a
superação de seus conflitos. Sem um mínimo de entendimento
a guarda compartilhada pode não contemplar o melhor
interesse do filho [...]. O uso da mediação é valioso para o bom
resultado da guarda compartilhada, como tem demonstrado
sua aplicação no Brasil e no estrangeiro. Na mediação familiar
exitosa os pais, em sessões sucessivas com o mediador,
alcançam um grau satisfatório de consenso acerca do modo
como exercitarão em conjunto a guarda. O mediador nada
decide, pois não lhe compete julgar nem definir os direitos
de cada um, o que contribui para a solidez da transação
concluída pelos pais, com sua contribuição. Sob o ponto de
vista dos princípios constitucionais do melhor interesse da
criança e da convivência familiar, a guarda compartilhada é
indiscutivelmente a modalidade que melhor os realiza. (LÔBO,
2008, p. 177).
Registre-se novamente que o Enunciado nº 335 da IV Jornada de Direito Civil, em
2006, já consagrava expressamente esse entendimento, ao estipular que: “A guarda
compartilhada deve ser estimulada, utilizando-se, sempre que possível, da mediação
e da orientação de equipe interdisciplinar”.
É nesses termos que se defende neste trabalho que o advento da Lei nº 11.698/08
deve ser calorosamente comemorado pela comunidade jurídica nacional, conforme
será apreciado no capítulo seguinte.
5. A guarda compartilhada e a Lei Nº 11.698/08
Como já mencionado em trechos esparsos deste trabalho, a recente Lei nº 11.698/08
instituiu expressamente no ordenamento jurídico pátrio o instituto da guarda
compartilhada. Embora sancionada em 13 de junho de 2008 e publicada no Diário
Oficial da União em 16 de junho do mesmo ano, a referida lei somente entrou em
vigor no País 60 (sessenta) dias após a citada publicação, por força da vacatio legis
instituída no seu artigo 2º.
Neste capítulo, pretende-se analisar os dispositivos do Código Civil alterados por
esta lei para demonstrar que ela, embora contenha algumas falhas, deve ser muito
bem recebida pela comunidade jurídica nacional.
Primeiramente, a lei acrescenta o § 1º ao art. 1.583 do Codex, trazendo no seu bojo
o conceito de guarda compartilhada, nestes termos: “Compreende-se por [...] guarda
compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do
pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos
filhos comuns”.
252
• Direito Civil
Nota-se que o conceito alhures transcrito, praticamente em sua íntegra, vai de
encontro com o conceito já apresentado neste trabalho no capítulo 2. Não obstante,
o conceito legal possui uma falha que merece ser apontada, ainda que de passagem:
ele restringe o exercício da guarda compartilhada aos pais, vedando a utilização
deste instituto por outras pessoas que eventualmente venham a cuidar dos menores,
vedação esta que se distancia do conceito moderno de família, onde os vínculos
de parentesco são muito menos jurídicos, muito mais afetivos (parentesco sócioafetivo).
Nesse sentido, registre-se que o Professor Sérgio de Magalhães Filho (2008), em
artigo publicado na Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), noticia interessante caso julgado pela
Justiça paulista antes do advento da lei em que se permitiu o exercício compartilhado
da guarda entre a mãe e o tio materno e padrinho de um menor. Nesse mesmo
artigo, o autor registra a tendência da jurisprudência pátria de permitir que a guarda
compartilhada seja exercida também por terceiros, como se vê do aresto a seguir
reprisado:
GUARDA DE MENOR. PEDIDO FORMULADO PELO PAI.
MENOR COM 5 ANOS DE IDADE, QUE VIVE SOB A GUARDA
DE FATO DE UMA TIA. Interdição da mãe do menor, por
deficiência mental. Curadoria exercida pela irmã, guardiã de
fato do menor. Concessão da guarda do pai não recomendada.
Manutenção do menor junto à guardiã e à mãe. Solução que
melhor atende, no momento, aos interesses do menor. Ação
julgada procedente. Recurso provido. (TJSP, Apelação Cível
111.249-4, Relª. Zélia Maria Antunes Alves, j. 21.02.00).
A nosso sentir, para que não seja afastada a possibilidade de guarda compartilhada
ora em apreciação, não deve ser feita uma interpretação restritiva ou taxativa do
art. 1.583, § 1º, do Código Civil, mas sim extensiva; permitindo-se, portanto, a
participação de terceiros nesta modalidade de guarda, conforme já consagrado pela
jurisprudência. Com esse fim, o dispositivo em questão deve ser lido ao lado do
teor do art. 1.584, § 5º (antigo art. 1.584, parágrafo único), segundo o qual “Se
o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe,
deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida,
considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e
afetividade”.
Prosseguindo na análise da novel legislação, verifica-se que o art. 1.584 do Código
foi profundamente alterado por ela. Em um primeiro momento, afirma-se que a
guarda compartilhada (ou unilateral também) pode ser decretada por requerimento
consensual dos pais ou de qualquer deles (inciso I: “requerida, por consenso, pelo
pai e pela mãe, ou qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de
dissolução de união estável ou em medida cautelar”) ou ainda judicialmente (inciso
Leonardo Barreto Moreira Alves •
253
II: “decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão
da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe”).
Como já referido no capítulo 3, não há que se olvidar que a tarefa de aplicação da
guarda compartilhada torna-se muito mais fácil quando há consenso entre os pais
a respeito deste instituto. Para tanto, eles devem estar completamente cientes das
responsabilidades que irão cumular e, principalmente, dos benefícios que a medida
trará aos filhos menores. Atento a tudo isso, o art. 1.584, § 1º, passa a estatuir que
“Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda
compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos
genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas”.
O ponto nevrálgico da guarda compartilhada, pelo menos para parte da doutrina
civilista, diz respeito à aplicação da medida justamente quando não ocorrer o
consenso acima mencionado. Nesse trilhar, diante da existência prévia de litígio
entre os pais dos menores, não seria recomendável a fixação desta espécie de
guarda, sob pena não só de frustração da medida, mas, sobretudo, de violação do
melhor interesse dos filhos.
É com esse fundamento que parcela da doutrina vem criticando o teor do art. 1.584,
§ 2º, do Código Civil, que assim dispõe: “Quando não houver acordo entre a mãe
e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
compartilhada”.
No entender dessa corrente, tal dispositivo, ao estabelecer como regra geral a guarda
compartilhada na hipótese de inexistência de acordo entre os pais (por determinação
judicial, portanto), implicaria um franco retrocesso, pois o art. 1.584, em seu caput,
antes da alteração feita pela lei, determinava que, nesse caso, a guarda dos filhos
seria “[...] atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”, o que
resguardaria com mais eficiência o melhor interesse do menor.
Em resumo, seria um grave erro impor a guarda compartilhada como regra geral em
não havendo acordo entre os pais sobre ela, pois seria enorme o risco de frustração
dessa medida nessa hipótese, motivo pelo qual deveria ser mantida a regra geral
anterior, mais condizente com o princípio do melhor interesse do menor.
Destarte, o problema apontado por essa parcela da doutrina é apenas aparente.
De fato, a redação do art. 1.584, § 2º, do Código Civil é, sem dúvida nenhuma, a
maior inovação trazida pela Lei nº 11.698/08. Em verdade, tal dispositivo pretendeu
afastar a guarda unilateral (mesmo aquela exercida por “quem revelar melhores
condições”, como afirmava o antigo art. 1.584, parágrafo único) como regra geral,
substituindo-a pela guarda compartilhada.
Essa mudança da regra geral de estipulação da guarda judicial deve ser intensamente
comemorada, pois, como já visto ao longo deste trabalho, a guarda compartilhada,
254
• Direito Civil
por diversos motivos, é aquela medida que mais se coaduna com o princípio do
melhor interesse do menor.
A existência de litígio entre os pais não prejudicará o sucesso da guarda
compartilhada. Isso porque, conforme trabalhado no capítulo 3, para a aplicação
desta medida na referida hipótese, exige-se previamente a realização da mediação
interdisciplinar, meio altamente eficaz para resolução de conflitos familiares. Apenas
e tão-somente no caso de insucesso da mediação, algo que, na prática, se verifica
pouco provável, é que se recorrerá à medida excepcional da guarda unilateral, desde
que com os parâmetros definidos no art. 1.584, § 5º (será atribuída a quem revelar
compatibilidade com a natureza da medida), tudo em proteção ao melhor interesse
do menor.
É com esse raciocínio que deve ser lida a expressão “sempre que possível”, indicada
no art. 1.584, § 2º, ou seja, em caso de inexistência de acordo entre os pais sobre
a guarda do filho, valerá a regra geral da guarda compartilhada, sempre que a
mediação previamente feita conseguir semear terreno fértil para a sua consecução,
conseguir que o conflito existente entre os genitores, se não for solucionado, pelo
menos não interfira no cumprimento conjunto do poder familiar; em não acontecendo
tal êxito, aí sim a guarda compartilhada não será possível, devendo ser aplicada a
medida excepcional da guarda unilateral, com os ditames estipulados pelo já citado
§ 5º do art. 1.584.
Nesse sentido, vale a pena noticiar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
recentemente, já sob a égide da Lei nº 11.698/08, entendendo não haver harmonia
suficiente entre os pais que permitisse o sucesso da guarda compartilhada, exarou
a seguinte decisão:
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
DISSOLUÇÃO
DE
UNIÃO ESTÁVEL LITIGIOSA. PEDIDO DE GUARDA
COMPARTILHADA. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE
CONDIÇÕES PARA DECRETAÇÃO. A guarda compartilha
está prevista nos arts. 1583 e 1584 do Código Civil, com a
redação dada pela Lei 11.698/08, não podendo ser impositiva
na ausência de condições cabalmente demonstradas nos
autos sobre sua conveniência em prol dos interesses do
menor. Exige harmonia entre o casal, mesmo na separação,
condições favoráveis de atenção e apoio na formação
da criança e, sobremaneira, real disposição dos pais em
compartilhar a guarda como medida eficaz e necessária à
formação do filho, com vista a sua adaptação à separação
dos pais, com o mínimo de prejuízos ao filho. Ausente tal
demonstração nos autos, inviável sua decretação pelo
Juízo. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJRS
- Agravo de Instrumento nº 70025244955, Sétima Câmara
Cível, Relator: Andvré Luiz Planella Villarinho, Julgado em
24/09/2008, Publicado em 01/10/2008).
Leonardo Barreto Moreira Alves •
255
Retomando o raciocínio, constata-se que, com a finalidade de reforçar o
posicionamento ora exposto, o art. 1.584, § 3º, assevera que “Para estabelecer as
atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada,
o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em
orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar”. Assim, na hipótese do
art. 1.584, § 2º, antes da aplicação da guarda compartilhada, deve ser realizada
necessariamente a mediação interdisciplinar. A nosso ver, quando o dispositivo
afirma que o juiz poderá, na verdade, está a criar um poder-dever para ele, ou seja,
desde que imprescindível (caso do art. 1.584, § 2º), o magistrado tem o dever de
determinar a prática da mediação interdisciplinar, tanto assim que é possível a sua
atuação de ofício, sem qualquer tipo de violação ao princípio da inércia.
Aliás, por faltarem conhecimentos técnicos ao juiz para resolução de conflitos deste
jaez, não poderia ser outra a alternativa proposta pela lei a não ser impor a prática da
mediação interdisciplinar como etapa prévia da aplicação da guarda compartilhada
quando não houver acordo entre os pais sobre esta matéria.
Em síntese, é positiva a modificação patrocinada pela Lei nº 11.698/08 ao substituir
a regra geral da guarda unilateral a quem revelar melhores condições para exercê-la
(antigo art. 1.584, parágrafo único) pela guarda compartilhada (atual art. 1.584, § 2º),
por ser essa medida a que mais atende ao princípio do melhor interesse do menor.
Na hipótese de não haver acordo entre os pais sobre tal medida, ela será aplicada
“sempre que possível”, ou seja, sempre que for proveitosa a mediação interdisciplinar,
a qual deverá ser determinada pelo magistrado. Entretanto, se não houver sucesso
na mediação, será aplicada a medida excepcional da guarda unilateral, obviamente
a quem relevar compatibilidade com a natureza desta medida, nos termos do art.
1.584, § 5º, tudo em atenção ao melhor interesse do menor.
Embora a lei em análise deva ser comemorada pela comunidade jurídica nacional, ela
comete um grave erro ao determinar que o art. 1.584, § 4º, tenha a seguinte redação:
“A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda,
unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas
ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho”.
Ora, esse dispositivo fere de morte o princípio do melhor interesse do menor, pois se
preocupa muito mais em punir uma conduta irregular dos pais do menor, ignorando
que essa punição, na verdade, prejudicará sensivelmente o desenvolvimento do
filho, que perderá tempo precioso de convívio com seus genitores.
Concluindo, não obstante suas falhas, as quais devem ser apontadas para
aprimoramento da sua aplicação, a Lei nº 11.698/08, por tudo quanto discutido neste
trabalho, deve ser bem recebida pela comunidade jurídica nacional.
6. Considerações finais
Em resumo, não há motivos para se temer o advento da Lei nº 11.698/08, muito
antes pelo contrário, o reconhecimento expresso da guarda compartilhada pelo
256
• Direito Civil
ordenamento jurídico nacional vem a ampliar os esforços para a efetivação do
princípio do melhor interesse do menor, haja vista os seus naturais benefícios.
Nesse sentido, o risco de insucesso do uso deste instituto no caso de não existir
acordo entre os pais do menor a respeito dessa medida é apenas aparente, sendo
absolutamente contornável pela prévia prática da mediação interdisciplinar, conforme
permitido pelo recente art. 1.584, § 3º, do Código Civil.
Por conseqüência, é salutar que o art. 1.584, § 2º, estipule a guarda compartilhada
como regra geral, inclusive quando não houver acordo entre os pais do menor acerca
da guarda, sendo ela aplicável “sempre que possível”, ou seja, sempre que frutífera
a mediação familiar anteriormente realizada.
Não havendo sucesso na mediação, hipótese pouco provável, como vem se
constatando empiricamente, é que se deve recorrer à excepcional guarda
unilateral.
Por ora, as preocupações dos operadores do Direito não devem mais se voltar
à disciplina legal da guarda compartilhada, mas sim à sua efetivação na prática,
sendo imprescindível, para esse fim, o aprimoramento do instituto da mediação
familiar, daí porque cresce a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 505/07,
apresentado ao Congresso Nacional pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT/
BA) por sugestão do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que visa
implementá-lo, acrescentando um parágrafo 3º ao art. 1.571 do Código Civil, o qual
determinará que “na separação e no divórcio deverá o juiz incentivar a prática de
mediação familiar”.
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258
• Direito Civil
Jurisprudência
Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça. Possibilidade de penhorar
bem de família para sanar dívida alimentícia.
In casu, os recorrentes foram condenados a pagar indenização por danos materiais
a ser apurada em liquidação e por danos morais, além de pensão de um salário
mínimo, tudo em decorrência das lesões sofridas em acidente de trânsito ocasionado
por menor. É cediço que a pensão alimentícia está prevista expressamente no art.
3º, III, da Lei n. 8.009/1990 como hipótese de exceção à impenhorabilidade do bem
de família, e a jurisprudência deste Superior Tribunal preconiza a irrelevância da
origem dessa prestação se decorrente de relação familiar ou de ato ilícito. Dessa
forma, explica o Min. Relator que não configura exceção o crédito decorrente de
indenização por danos morais e materiais, desses valores não cuida o inciso III do
art. 3º da Lei n. 8.009/1990, que apenas se refere à pensão alimentícia, e o inciso VI
do mesmo dispositivo se restringe apenas à reparação como efeito da condenação
penal, e não cível. Na linha dos precedentes deste Superior Tribunal, a lei quis
distinguir o ilícito penal e o civil e só em relação ao primeiro cuidou de estabelecer
a exceção. Também aponta ter a proteção da impenhorabilidade do bem de família
quanto ao crédito decorrente de honorários advocatícios de sucumbência, pois não
consta do rol das exceções. Assim, concluiu que o único crédito que pode penhorar
o bem de família, no caso, é o decorrente da pensão mensal fixada na ação de
indenização. Logo restringiu a penhora do bem ao adimplemento do débito decorrente
da pensão mensal. Com esse entendimento, a Turma deu parcial provimento ao
recurso para julgar parcialmente procedentes os embargos do devedor e determinar
a penhora do imóvel sub judice ao montante correspondente às pensões mensais
inadimplidas. Precedentes citados: REsp 605.641-RS, DJ 29/11/2004; REsp 64.342PR, DJ 9/3/1998, e REsp 90.145-PR, DJ 26/8/1996. REsp 1.036.376-MG, Rel. Min.
Massami Uyeda, julgado em 10/11/2009.
Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça - Registro Civil. Retificação.
Mudança. Sexo.
A questão posta no REsp cinge-se à discussão sobre a possibilidade de retificar
registro civil no que concerne a prenome e a sexo, tendo em vista a realização
de cirurgia de transgenitalização. A Turma entendeu que, no caso, o transexual
operado, conforme laudo médico anexado aos autos, convicto de pertencer ao sexo
feminino, portando-se e vestindo-se como tal, fica exposto a situações vexatórias ao
ser chamado em público pelo nome masculino, visto que a intervenção cirúrgica, por
Jurisprudência •
259
si só, não é capaz de evitar constrangimentos. Assim, acentuou que a interpretação
conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal
para que o recorrente obtenha autorização judicial a fim de alterar seu prenome,
substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em
que vive, ou seja, o pretendido nome feminino. Ressaltou-se que não entender
juridicamente possível o pedido formulado na exordial, como fez o Tribunal a quo,
significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo
a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo,
assim, a sua integração na sociedade. Afirmou-se que se deter o julgador a uma
codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a possibilidade de dirimir a
controvérsia de forma satisfatória e justa, condicionando-a a uma atuação judicante
que não se apresenta como correta para promover a solução do caso concreto,
quando indubitável que, mesmo inexistente um expresso preceito legal sobre ele,
há que suprir as lacunas por meio dos processos de integração normativa, pois,
atuando o juiz supplendi causa, deve adotar a decisão que melhor se coadune
com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas.
Nesse contexto, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da
Constituição de 1988, especialmente os princípios da personalidade e da dignidade
da pessoa humana, e levando-se em consideração o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei
de Introdução ao Código Civil, decidiu-se autorizar a mudança de sexo de masculino
para feminino, que consta do registro de nascimento, adequando-se documentos, logo
facilitando a inserção social e profissional. Destacou-se que os documentos públicos
devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros
públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de
prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações feitas
decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Todavia,
tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar, nas
certidões do registro público competente, nenhuma referência de que a aludida
alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco de que ocorreu por motivo de
cirurgia de mudança de sexo, evitando, assim, a exposição do recorrente a situações
constrangedoras e discriminatórias. REsp 737.993-MG, Rel. Min. João Otávio de
Noronha, julgado em 10/11/2009 (ver Informativo n. 411).
260
• Direito Civil
Comentário à Jurisprudência
A RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO ESTATUTO DO TORCEDOR: CLUBE
PUNIDO POR DANO A TORCEDOR DURANTE COMEMORAÇÃO DE GOL
GUSTAVO LOPES PIRES DE SOUZA
Advogado licenciado em razão de função pública no TJMG
Professor de matérias jurídicas no Megaconcursos, Faminas e Analdo Jansen
1. Introdução
Filosófica e psicologicamente, o esporte é fator de extrema relevância para a fuga
das inquietudes da rotina de todo ser humano. Desde as mais antigas civilizações,
especialmente na Grécia, o desporto é utilizado como forma de demonstrar a
destreza e a força física dos competidores bem como o maior ou menor poder de
uma nação ou etnia.
Simultaneamente, evoluíram também as formas de disputas e organizações
esportivas. Esses acontecimentos no âmbito do desporto foram acompanhados pela
evolução de outros aspectos da vida humana – como as artes, as ciências e as
indústrias – e também pelo Direito.
O crescimento esportivo trouxe novidades e imensas modificações nas relações
entre competidores, entidades organizadoras e seus espectadores. E quando há um
inter-relacionamento entre diversos agentes, faz-se necessária a regulamentação
pelo ordenamento jurídico.
A legislação pátria acompanhou a evolução do esporte, regulamentando a proteção
dos direitos do torcedor.
Nesse esteio, em 15 de maio de 2003, foi promulgada a Lei nº 10.671, denominada
Estatuto do Torcedor, que disciplina os direitos e os deveres de uma determinada
categoria de consumidor.
Quando se fala em desporto no Brasil, naturalmente remonta-se, de forma imediata,
ao futebol, haja vista ser o esporte mais difundido no país e a este já ter “dado” cinco
Copas do Mundo (evento de maior visibilidade) e uma infinidade de outros títulos.
Gustavo Lopes Pires de Souza •
261
Não obstante, o Estatuto do Torcedor é aplicável a todo desporto profissional,
especialmente agora, quando o Rio de Janeiro foi escolhido para ser a sede das
Olimpíadas de 2016 e outras modalidades começaram a se tornar conhecidas e
populares.
Assim, o Estatuto do Torcedor traz importantíssimas normas e regulamentações ao
Direito Pátrio, uma vez que responde aos anseios dos desportistas e torcedores
brasileiros que desejam a prevalência da ética, da moralidade e da transparência no
desporto profissional, especialmente o futebol.
Ademais disso, cada vez mais cresce a apreciação e a prática de diversos outros
esportes, como o vôlei, a natação, o basquete, o tênis e vários outros ainda menos
difundidos, mas já muito apreciados.
O estatuto tem conteúdo moralizador e, desde sua entrada em vigor, foi severamente
criticado por alguns dirigentes esportivos.
A responsabilidade pela implementação do estatuto cabe às entidades que
administram o esporte (confederações, federações, ligas esportivas), aos clubes, ao
poder público e aos torcedores.
Quanto aos clubes de futebol, é desejável que se organizem como fizeram as
empresas quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor. Muitas delas
(os bons fornecedores) deram demonstração de civilidade e boa visão de mercado,
pois investiram no treinamento de funcionários, na melhoria de procedimentos e
qualidade de produtos e serviços, capacitaram-se para um melhor diálogo com os
consumidores e os seus órgãos e entidades representativas.
Ainda que algumas empresas deixem muito a desejar quanto aos direitos dos
consumidores, não ousam negar a importância do Código de Defesa do Consumidor,
tampouco se recusam a adotar iniciativas para sua implementação.
Espera-se que o mesmo ocorra não somente com os principais times de futebol
mas também com todos os Clubes e Entidades Organizadoras de Atividades
Esportivas. È importante que a imprensa e os próprios torcedores desafiem os
clubes a se pronunciarem sobre o dever ético, e agora também jurídico, de respeitar
o consumidor/torcedor.
O Estatuto do Torcedor trata, portanto, de lei que, a exemplo do Código de Defesa
do Consumidor, estende sua tutela protetora a uma grande parcela da sociedade. O
reconhecimento da relevância social de eventos públicos de caráter esportivo tem
gerado o surgimento de leis reguladoras em vários países do mundo.
Todos somos consumidores e não seria de se considerar inverossímil a assertiva de
que, no Brasil, todos somos torcedores. O costume de ir ao estádio torcer pelo time
262
• Direito Civil
de sua simpatia está, há muito, presente na vida do brasileiro: do mais rico ao mais
humilde.
Por esse motivo, a Lei nº 10.671/2003 confere oportunidade de conciliar a paixão
do torcedor brasileiro com o sentimento de cidadania, tão execrado nas décadas de
ditadura militar.
Como resposta aos clamores sociais, tivemos, há mais de
quatro anos, a promulgação da Lei nº 10.671/03, o ‘Estatuto
de Defesa do Torcedor – EDT’, uma espécie de Direito do
Consumidor aplicado aos eventos esportivos, permitindo
a qualquer pessoa reclamar indenização e punição aos
responsáveis por eventual lesão de direitos surgida em
decorrência de eventos esportivos, cuja origem pode estar
não só na falta de assentos numerados, banheiros impróprios,
assaltos nas imediações dos estádios e atos de vandalismo,
mas também na falta de organização na partida e na facilitação
de um resultado pelo árbitro. (CABEZÓN, 2006).
Pelo país afora os cidadãos começaram a conhecer o Estatuto do Torcedor e pleitear
judicialmente seus direitos e, em um desses casos, um torcedor gaúcho obteve o
direito a receber indenização em razão de lesões sofridas durante a comemoração
de um gol, durante uma partida de futebol.
2. Responsabilidade civil no Estatuto do Torcedor
O Estatuto do Torcedor regulamenta uma relação de consumo específica entre o
consumidor de atividade esportiva e seu fornecedor. Nesse esteio, o artigo 3º do
Estatuto do Torcedor define como fornecedores a Entidade Organizadora e o Clube
Mandante.
É importante diferenciar “clube com mando de jogo” e “clube/entidade responsável
pelo estádio”. O clube com mando de jogo é aquele que, pelas regras da competição,
deve receber o time adversário e organizar a partida (vender ingressos, captar a
renda), conforme define o art. 15.
Por exemplo, em partida de futebol entre Cruzeiro e Mamoré pelo campeonato
Mineiro, com mando do primeiro, os responsáveis seriam a Federação Mineira de
Futebol (organizadora) e o Cruzeiro.
Ressalte-se que sempre haverá um mandante. Ainda que o Cruzeiro jogue em
Ipatinga, se na tabela da competição constar que o jogo é de seu mando, ou
seja, sendo de sua competência organizar a partida, será desta agremiação a
responsabilidade.
No Capítulo IV, o Estatuto do Torcedor dispõe acerca da responsabilidade por
danos sofridos pelo torcedor nos eventos esportivos. Ademais, o art. 14 do Estatuto
Gustavo Lopes Pires de Souza •
263
determina que são responsáveis pela segurança do torcedor os clubes mandantes
e seus dirigentes. Nesse ponto, a lei traz valiosas inovações, na medida em que
desconsidera a personalidade jurídica das Entidades Esportivas e das Federações
ao conferir responsabilidade solidária aos dirigentes.
Como se sabe, a desconsideração da pessoa jurídica tem sido já há algum tempo
aplicada no Brasil. No entanto, até então somente ocorria em hipóteses excepcionais,
como prevê o art. 50 do Código Civil de 2002.
Desconsideração automática da personalidade jurídica, portanto, foi algo que, a
princípio, não cogitou a lei civil.
No entanto, no âmbito do Estatuto do Torcedor, como exposto, é possível desconsiderar
a Entidade e responsabilizar seus dirigentes, cuja definição é fornecida pelo art. 37,
§ 1º, do Estatuto1.
Por seu turno, o artigo 19 é claro e responsabiliza, solidária e objetivamente, o clube
com mando de jogo e a entidade responsável pela organização da competição
pelos danos ao torcedor ocorridos no estádio, desde que decorrentes de falha de
segurança ou da inobservância dos deveres previstos no Capítulo IV da Lei.
Art. 19. As entidades responsáveis pela organização
da competição, bem como seus dirigentes respondem
solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus
dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos
prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de
segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste
capítulo.
Por responsabilidade objetiva entende-se que o fornecedor é responsável (com
ou sem culpa) pela reparação de quaisquer danos causados aos torcedores por
defeitos decorrentes do fornecimento dos serviços, bem como pela ineficiência ou
inadequação de informações sobre o modo de usá-los, servi-los ou fruí-los.
Assim, independentemente de quem for responsável por “falhas de segurança” (do
clube, da entidade responsável pela organização da competição ou da polícia),
ocorrerá responsabilidade solidária (ambos respondem conjuntamente) e objetiva
do clube e da entidade responsável pela organização da competição.
Só assim se dará maior garantia de ressarcimento ao torcedor lesado, que, além de
poder acionar o Estado (caso a falha tenha sido da polícia), poderá acionar clube e
entidade responsável pela organização da competição.
Dessa forma, antes ou após o evento esportivo no local de sua realização,
independente se há relação com deveres do Mandante (art. 14) ou da Entidade
1 Presidente do Clube ou quem lhe faça as vezes.
264
• Direito Civil
Organizadora (art. 16), havendo dano e nexo de causalidade (vínculo entre o
dano e a realização do evento), a responsabilidade é do Mandante e a Entidade
Organizadora de maneira solidária (ambos respondem igualmente) e objetiva
(independe de culpa).
Apesar de ser dever do Estado tratar da Segurança Pública e da Responsável pelo
Estádio ou Ginásio cuidar de sua manutenção, segundo o Estatuto do Torcedor,
os responsáveis por danos sofridos pelo Torcedor são o Mandante, a Entidade
Organizadora e seus dirigentes.
O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar que, tendo
prestado o serviço, o defeito inexiste ou a culpa exclusiva do consumidor ou de
terceiro.
Portanto, em uma partida entre América/MG e Botafogo/RJ, no Mineirão, pelo
Campeonato Brasileiro, com mando do primeiro, a responsabilidade é do América/
MG e da CBF e não do Estado de Minas Gerais ou da ADEMG (autarquia responsável
pela administração do Mineirão).
A responsabilização solidária dos dirigentes traduz desconsideração da personalidade
jurídica dos clubes e das entidades, na esteira do que já prescreve a legislação
consumerista, não se tratando, portanto, necessariamente, de responsabilidade
criminal, o que não é afastado, sendo que, neste caso, deve ser comprovada a
culpa.
Assim, um bom exemplo de aplicação do Estatuto do Torcedor e de seu artigo
19 se deu em razão de desabamento de parte do Estádio da Fonte Nova, em 25
de novembro de 2007, na última partida do Bahia pela Série “C” do Campeonato
Brasileiro, quando nove pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Acertadamente,
a Justiça Desportiva (STJD) aplicou a pena de perda de mando de campo e, no
âmbito da Justiça Comum, o Presidente do Bahia, além de afastado do cargo, foi
indiciado por homicídio culposo.
Talvez a mais evidente falha dessa natureza seja a superlotação, que ocorre quando
se disponibilizam mais ingressos do que seria permitido, tendo em vista a capacidade
máxima do estádio, ou quando, muito embora se disponibilizem ingressos respeitando
aquele limite, permita-se a entrada clandestina de mais pessoas no ambiente. Tal
prática enseja a aplicação da sanção da perda do mando de jogo por no mínimo seis
meses (art. 23, § 2º).
A referida situação ocorreu na final do Brasileiro de 2000 entre Vasco e São Caetano,
em São Januário, quando, aos 23 minutos do primeiro tempo, a superlotação causou
a queda do alambrado. O saldo foi de 200 feridos. O então presidente do Vasco,
Eurico Miranda, tentou reiniciar a partida, mas o Governador do Rio de Janeiro, na
época Anthony Garotinho, determinou o cancelamento do jogo, que foi remarcado
para 18 de janeiro de 2001, no Maracanã.
Gustavo Lopes Pires de Souza •
265
Pior do que o incidente de São Januário foi o que ocorreu no Maracanã, na final
do Campeonato Brasileiro de 1992, entre Flamengo e Botafogo. Eram mais de
120 mil pessoas e a grade de proteção da arquibancada cedeu. Muitos torcedores
despencaram deixando quatro mortos e 101 feridos.
Realizadas as considerações acima, passa-se ao estudo do caso.
3. Jurisprudência em comento
A Primeira Turma Recursal do Juizado Especial de Porto Alegre, nos autos nº
71001592872, julgou ação movida contra o Grêmio de Foot-baal Porto Alegrense
em razão de lesões corporais sofridas durante tradicional comemoração da Torcida
do Grêmio, denominada “avalanche”, que consiste na descida rápida de degraus
(arquibancada), por parte de torcedores gremistas, em direção à mureta de segurança
do estádio, quando há efetivação de gols por parte do time.
Assim, estabeleceu-se o aresto.
Recurso Inominado: Primeira Turma Recursal
Cível
Nº 71001592872
Comarca de Porto Alegre
GREMIO FOOT-BALL PORTO ALEGRENSE: RECORRENTE
RAFAEL PACHECO RIBEIRO: RECORRIDO
MARIANA GAMBIM: RECORRIDO
LESÃO EM TORCEDORES. RESPONSABILIDADE DO
CLUBE DEMANDADO. CDC. TORCEDORes que sofrem
lesões corporais no interior de estádio de
futebol EM MOMENTO DE EUFORIA DA TORCIDA, EM
AÇÃO denominada “avalanche” (procedimento de
descida rápida de degraus da arquibancada em
direção a mureta de segurança no momento de
concretização de gols). CONDUTA DO CLUBE QUE
EVIDENCIA ADESÃO E ANUÊNCIA COM TAL PROCEDER.
DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO.
1. É responsável o Clube pela segurança dos torcedores que,
mediante pagamento de ingresso, deslocam-se ao estádio para
assistir a partida de futebol. Tal responsabilidade, tratando-se
de prejuízos causados pela falha na segurança, é objetiva,
nos moldes preceituados nos arts. 13, 14 e 17 do Estatuto
de Defesa do Torcedor, que diz com a responsabilidade da
entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e
de seus dirigentes.
2. Clube de futebol que incentiva tal prática, denominada
‘avalanche’, inclusive ao divulgar estar destinando espaço
físico em novo estádio a ser construído pelo clube (ARENA).
266
• Direito Civil
Informação extraída do site oficial do clube em entrevista
concedida pelo vice-presidente da entidade, onde denomina
a ‘avalanche’ como espetáculo a ser mantido. Em assim
procedendo a instituição futebolística não só adere a tal
proceder, mas acima de tudo o incentiva, de modo que deve
responder pela conduta lesiva ocasionada a seus torcedores
no momento da realização da referida comemoração. Dever
de reparar.
3. Acidente descrito na inicial e suas conseqüências (queda
nas arquibancadas com pisoteamento, e conseqüentes
escoriações) que restaram devidamente comprovadas nos
autos pelas prova testemunhal, documental e fotográfica
acostadas, não vingando a tese do demandado que a torcida
organizada está sempre localizada no mesmo local sendo
sua identificação de fácil percepção pelos autores. Prova
testemunhal carreada aos autos a demonstrar que os autores
não eram freqüentadores assíduos do estádio de futebol, não
podendo previamente identificar a localização das torcidas
organizadas. Autores desavisados e que foram surpreendidos
pelo proceder (avalanche) da torcida.
4. Danos morais, no caso concreto, que restaram comprovados.
Manutenção do quantum indenizatório que restou fixado em
R$ 6.000,00. Valor que atenta para a condição econômica
de ambas as partes e para o caráter pedagógico/punitivo da
medida.
SENTENÇA MANTIDA.
NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
No caso em tela, conforme estabelece o Estatuto do Torcedor, tem-se uma relação de
consumo entre o torcedor e os fornecedores: Grêmio (Clube Mandante) e a Entidade
Organizadora. Ademais, conforme determina o art. 19 do Estatuto do Torcedor, os
dirigentes respondem solidariamente.
Tratando-se de responsabilidade solidária, o Torcedor optou por propor ação somente
contra o Clube Mandante.
A Colenda Turma, acertadamente, manteve a decisão de 1ª instância e condenou o
Grêmio a indenizar o torcedor em razão das lesões corporais que sofreu.
No entanto, apesar disso, o d. acórdão merece algumas considerações, pois
inobserva algumas determinações do Estatuto do Torcedor.
Primeiramente, menciona que “É responsável o Clube pela segurança dos torcedores
que, mediante pagamento de ingresso, se deslocam ao estádio para assistir a partida
de futebol.”
No entanto, conforme estabelece o artigo 2º,2 o fornecedor não é responsável apenas
2 Art. 2º Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva
Gustavo Lopes Pires de Souza •
267
pela segurança de quem pague ingresso, mas pela de qualquer pessoa que aprecie,
apóie ou se associe a qualquer entidade de prática esportiva do País e acompanhe
a prática da modalidade esportiva.
Outro ponto que inobserva o Estatuto do Torcedor é o “item 2” do v. aresto, pois
fundamenta a decisão conferindo ao clube culpa pelo dano ao torcedor, uma vez que
incentiva a comemoração “avalanche”.
Ora, conforme já exposto, a responsabilidade independe de culpa, bastando se
comprovar o nexo de causalidade e o dano.
Percebe-se, portanto, que decidiu acertadamente a c. Primeira Turma Recursal
de Porto Alegre/RS. Entretanto, ela o fez sem aplicar acertadamente a Lei nº
10.671/2003, tendo em vista que não considerou o que dispõem os artigos 2º e 19
do citado Estatuto.
4. Conclusão
O Estatuto do Torcedor trouxe imensas inovações e novo paradigma para o desporto
Nacional, mas a aplicabilidade de uma lei depende da defesa de direitos reiterada
pelo cidadão. Por esse motivo, ainda há muito a ser implementado, muito a ser
melhorado.
Os organizadores de eventos esportivos e as entidades competidoras ainda não
atinaram na importância do torcedor e o conseqüente respeito por seus direitos. E
por isso ainda não foi atingida a situação ideal: que seja dado tudo que os torcedores
e esportistas necessitam.
No entanto, a promulgação do Estatuto do Torcedor trouxe imensa evolução, tal
como o direito à reparação do dano, como conquistado pelo torcedor no caso em
comento.
Entretanto, ainda é preciso mais, é indispensável que os responsáveis pelo desporto
nacional criem serviços de atendimento ao torcedor, nos moldes das grandes
empresas, e que os estágios, ginásios ou autódromos possuam mais segurança.
Precursor neste aspecto, o Internacional de Porto Alegre possui estruturado serviço
de atendimento ao torcedor. Não é por acaso que se tornou o time de futebol brasileiro
com maior número de sócios torcedores.
Em Minas Gerais, espetacular exemplo é o Minas Tênis Clube, conhecido
nacionalmente por suas equipes de vôlei, basquete, natação e futsal, que possui
do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva.
Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de
que trata o caput deste artigo.
268
• Direito Civil
uma ouvidoria para o torcedor não sócio, atitude que demonstra zelo para com o
torcedor, o que não foi ainda implementado pelos três grandes times de futebol da
capital mineira (América, Atlético e Cruzeiro).
Portanto, o Estatuto do Torcedor confere instrumentos hábeis a assegurar uma série
de direitos e proteções, cabendo à sociedade civil acionar o Judiciário e os órgãos
administrativos responsáveis no intuito de se efetivar a sua aplicabilidade.
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Gustavo Lopes Pires de Souza •
271
5
Artigo • 275
Jurisprudência • 292
Comentário à Jurisprudência • 295
Técnica • 301
Direito
Processual
Civil
5
Artigo
UMA ANÁLISE ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 285-A DO
CPC EM FACE DOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DO
CONTRADITÓRIO
FÁDUA MARIA DRUMOND CHEQUER MAGNO
Servidora do TJMG na comarca de Almenara
RESUMO: Considerando-se que a constitucionalidade ou não do art. 285-A do
Código de Processo Civil, introduzido pela Lei n° 11.277/2006, ocasiona a aplicação
ou não desse dispositivo no mundo jurídico, defendem-se aqui os argumentos da
corrente doutrinária que pugna pela sua inconstitucionalidade em face dos princípios
constitucionais e fundamentais do devido processo legal e do contraditório, na
medida em que restou demonstrado, no presente trabalho, a ofensa a tais princípios
através dos incontestáveis prejuízos processuais acarretados às partes envolvidas
na questão sub judice, em virtude desse julgamento in limine de ações repetitivas,
desde que improcedentes, em que a citação é dispensada quando tais ações tratam
de matéria de direito.
PALAVRAS-CHAVE: Artigo 285-A do CPC; julgamento in limine de ações repetitivas;
inconstitucionalidade; princípio do devido processo legal; princípio do contraditório.
ABSTRACT: The constitutionality or unconstitutionality of article 285-A of the Civil
Procedure Code, which became part of the code by virtue of law n.11277 of 2006,
may result in its validity or invalidality. This essay upholds the arguments put forward
by those who view the above mentioned article as unconstitutional based on the
fundamental and constitutional principles of the due process of law and of the
adversary system. The offence to such principles is demonstrated by undeniable
procedural losses to the parties involved in the sub judice matter, by virtue of in limine
judgments in repetitive claims which are dismissed and in which summons are not
required when such claims deal with matters of (substantial) law.
KEY WORDS: Article 285-A of the Civil Procedure Code. In limine judgment of
repetitive claims. Unconstitutionality. Due process of law principle. Adversary system
principle.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
275
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do julgamento in limine de ações repetitivas. 3.
Argumentos que sustentam a constitucionalidade do Art. 285-A do Código de Processo
Civil. 4. Da inconstitucionalidade do julgamento in limine de ações repetitivas. 5.
Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente artigo se destina a analisar a constitucionalidade do art. 285-A do Código
de Processo Civil à luz dos princípios fundamentais do devido processo legal e do
contraditório, dispositivo este advindo da última das fases reformistas do direito
processual que buscam maior celeridade e efetividade da prestação jurisdicional.
Através da linha metodológica dogmática – haja vista que será enfocado o tema da
constitucionalidade ou não do art. 285-A do CPC bem como as questões práticas
sobre o tema – e do raciocínio indutivo-dedutivo, buscar-se-á apontar os argumentos
de ambas as correntes doutrinárias e demonstrar a inconstitucionalidade do artigo
em questão.
2. Do julgamento in limine de ações repetitivas
O pacote de reformas do Código de Processo Civil ocorrido nos últimos tempos, e que
ainda não se esgotou, visa buscar a efetividade do processo, ou seja, propiciar uma
prestação jurisdicional capaz de satisfazer os anseios da coletividade de maneira
rápida, eficaz e justa, rompendo figuras e praxes atualmente incondizentes com a
garantia fundamental do devido processo legal em sua contemporânea concepção
de processo justo, efetivo e célere.
Ocorre, porém, que, dentre as mencionadas reformas, a última grande onda
renovatória do Direito Processual Civil trouxe consigo uma controvertida inovação
(controvertida em virtude do questionamento da constitucionalidade deste
dispositivo), qual seja, a introduzida pela Lei n° 11.277, de 7 de fevereiro de 2006,
que acrescentou ao Código de Processo Civil o art. 285-A.
Antes de se adentrar no objeto do presente estudo, necessária se faz a transcrição
do dispositivo legal em questão para uma melhor análise:
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente
de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de
total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser
dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o
teor da anteriormente prolatada.
§ 1°. Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo
de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o
prosseguimento da ação.
§ 2°. Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação
do réu para responder ao recurso.
276
• Direito Processual Civil
Tal inovação autoriza o juiz de primeiro grau, em “casos idênticos” e cuja matéria
controvertida seja “unicamente de direito”, a julgar liminarmente as ações
improcedentes, conforme sentença anteriormente proferida pelo juízo, sem a citação
do réu, que somente ocorrerá no segundo grau de jurisdição se houver a interposição
do recurso de apelação pelo autor.
Institui-se, assim, a “improcedência liminar” (ZABIN, 2007) ou a “sentença vinculativa
ou vinculante” (LIMA FILHO, 2006) ou a “sentença emprestada” (MEDINA, 2006) ou
a “sentença de improcedência prima facie” (SANTOS, 2006) ou o “julgamento superantecipado da lide” (BUENO, 2006) ou o “julgamento antecipado da lide inaudita altera
parte” (ALVIM; CABRAL, 2008) ou o “julgamento das ações repetitivas” (MARINONI;
ARENHART, 2007) ou, ainda, o “julgamento prima facie de improcedência das
demandas seriadas” (THEODORO JÚNIOR, 2007), etc.
Apesar das várias impropriedades da técnica legislativa como, por exemplo, a
inadequada localização do artigo, o emprego das imprecisas expressões “casos
idênticos” e “matéria controvertida”, o art. 285-A do Código de Processo Civil surgiu,
segundo Ernane Fidélis dos Santos (2006, p. 146), para facilitar o julgamento de
casos idênticos (entenda-se com “simples parecença”), em primeira instância, sem
ociosas repetições.
E embora, dessa forma, detenha o escopo de racionalizar e tornar a prestação
jurisdicional mais célere (em aparente consonância com o inciso LXXVIII da
Constituição da República1), questiona-se a constitucionalidade de tal dispositivo
sob diversos aspectos, principalmente no que tange ao princípio do contraditório e
do devido processo legal, que são os focos do presente trabalho.
3. Argumentos que sustentam a constitucionalidade do art. 285-A do Código
de Processo Civil
Na defesa da constitucionalidade do art. 285-A do Código de Processo Civil,
encontram-se renomados juristas deste País como Humberto Theodoro Júnior,
Luiz Fux, Ernane Fidélis dos Santos, J. E. Carreira Alvim, Luiz Guilherme Marinoni,
Vicente Greco Filho e Ada Pellegrini Grinover.
Primeiramente, trazem-se os argumentos de Humberto Theodoro Júnior (2007,
p.18) que diz que “[...] o julgamento liminar, nos moldes traçados pelo art. 285-A, não
agride o devido processo legal, no tocante às exigências do contraditório e ampla
defesa”, haja vista que:
A previsão de um juízo de retratação e do recurso de
apelação assegura ao autor, com a necessária adequação,
um contraditório suficiente para o amplo debate em torno da
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo
e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
1 Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
277
questão de direito enfrentada e solucionada in limine litis.
Do lado do réu, também, não se depara com restrições que
possam se considerar incompatíveis com o contraditório e
ampla defesa. Se o pedido do autor é rejeitado liminarmente e
o decisório transita em julgado, nenhum prejuízo terá suportado
o demandado, diante da proclamação judicial de inexistência
do direito subjetivo que contra este pretendeu exercitar o
demandante. Somente como vantajosa deve ser vista, para o
réu, a definitiva declaração de certeza negativa pronunciada
contra o autor.
Se o juiz retratar sua decisão liminar, o feito terá curso normal e
o réu usará livremente do direito de contestar a ação e produzir
elementos de defesa de que dispuser, dentro do procedimento
completo por que tramitará a causa. Se a hipótese for
de manutenção da sentença ao réu será assegurada a
participação no contraditório por meio das contra-razões da
apelação. (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 18).
Assim, segundo Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 19), “[...] ambas as partes
disporão de condições para exercer o contraditório, mesmo tendo sido a causa
submetida a uma sentença prolatada antes da citação do demandado”.
Nesse sentido, Ernane Fidélis dos Santos preceitua que:
[...] o dispositivo é perfeitamente aplicável, estando em
consonância com os princípios constitucionais do contraditório
e da ampla defesa, já que se trata de mera antecipação de
julgamento, de influência, na relação processual, de imediato,
sobre o autor, mas a ele permitindo-se o prosseguimento do feito
através de recurso. Para o réu, por outro lado, a improcedência
só lhe traz benefício, e o contraditório e a amplitude de sua
defesa, no caso de recurso, ficam resguardados, sem nenhum
prejuízo processual. (SANTOS, 2006, p. 145).
Na mesma direção, porém com outros argumentos, Luiz Fux (2008, p. 26) prega que
“[...] à luz da ratio essendi da bilateralidade da ação e do processo, inspirados num
processo cooperativo, mister concluir-se que a alteração conspira em favor de todos
os princípios ora assentados”, quais sejam, o do contraditório como consectário do
devido processo legal e o do prejuízo no tocante às nulidades.
Em consonância com Luiz Fux, Anderson Ricardo Fogaça também justifica a defesa
da constitucionalidade do artigo em questão com base no princípio do prejuízo no
tocante às nulidades, declarando que:
Não se poderá alegar eventual inconstitucionalidade do
dispositivo em comento por ofensa ao princípio do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa, na medida
em que o processo civil brasileiro é norteado pelo princípio do
prejuízo no tocante às nulidades, não as declarando se o ato
278
• Direito Processual Civil
não sacrificou o fim último do processo, que é a prestação da
tutela jurisdicional a quem tem o melhor direito, autor ou réu.
Como apenas será julgado in limine o processo no caso de
improcedência, não há que se falar em prejuízo ao requerido,
tampouco ao autor, o qual não terá que arcar com os custos do
processo, como a condenação nos honorários sucumbenciais.
(FOGAÇA, 2006, p. 4).
De forma bem concisa, J. E. Carreira Alvim e Luciana G. Carreira Alvim Cabral (2008,
p. 156) afirmam que a dispensa de citação “[...] só não infringe o princípio da ampla
defesa (CF, art. 5°, LV), porque o julgamento antecipado da lide, inaudita altera parte,
beneficia justamente aquele que deveria ser citado”. Por outro lado, preconizam a
adoção de um instituto semelhante, qual seja, a “sentença por afinidade”, que se
distingue da “sentença emprestada” (MEDINA, 2006) do art. 285-A do CPC, por se
aplicar às hipóteses de procedência e improcedência da ação bem como às questões
de direito e fáticas com prova pré-constituída, exigindo-se apenas a identidade de
pedido e da causa de pedir.
Marinoni e Arenhart também pouco argumentaram sobre a defendida posição da
constitucionalidade do art. 285-A do CPC. Afirmaram, contudo, que:
[...] é lamentável que se chegue a pensar na inconstitucionalidade
do art. 285-A. Somente muita desatenção pode permitir
imaginar que esta norma fere o direito de defesa. Por isto
mesmo, parece que afirmação de inconstitucionalidade do
art. 285-A tem mais a ver com a intenção de garantir alguma
reserva de mercado, já que é sabidamente interessante, do
ponto de vista financeiro, reproduzir, através de máquinas,
petições e recursos absolutamente iguais. (MARINONI;
ARENHART, 2007, p. 96).
Merece ainda especial destaque o argumento, trazido por Vicente Greco Filho, que
se refere à compatibilidade ou convivência dos princípios constitucionais:
Nenhuma norma ou princípio constitucional é absoluto, já
que deve compatibilizar-se com os demais. O contraditório, a
ampla defesa e o devido processo legal devem conviver com a
efetiva prestação jurisdicional, seriamente comprometida pela
multiplicação de demandas com a mesma tese jurídica e que
poderiam ser decididas rapidamente com o desafogo evidente
da Justiça. (GRECO FILHO, 2006, p. 81-82).
Para Nelson Nery Júnior (apud RIBEIRO, 2006), só haveria inconstitucionalidade se
o art. 285-A tivesse previsto a sua aplicação para julgamentos procedentes.
Cristiano Simão Miller complementa a presente exposição ao trazer à tona, dentre
outros pontos, a questão do contraditório a posteriori, também chamado de
“contraditório diferido”:
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
279
[...] não deve ser olvidado que o contraditório, na questão
em apreço, não foi desprezado. Como pode ser facilmente
constatado pela redação dos §§ 1º e 2º do art. 285-A, continua
garantida ao autor a interposição do recurso de apelação,
ocasião em que poderá o juiz retratar-se, determinando a
imediata citação do réu. E, ainda que a sentença seja mantida,
o réu será igualmente citado para responder ao recurso
interposto pelo autor, mantendo-se assim a possibilidade de
se travar o diálogo e a cooperação, em perfeita atenção ao
princípio do contraditório. Ter-se-á, com isso, a garantia do
debate no processo, com ambas as partes podendo influenciar
na formação do convencimento final do julgador – ainda que
tal debate se dê num momento posterior ao que normalmente
ocorre. (BATISTA apud MILLER, 2007, p.43).
E, por último, coadunando com o argumento de Miller, Ada Pellegrini Grinover
sustenta que:
[...] a nova disposição não infringe nem o devido processo
legal nem o contraditório, sendo este apenas diferido para o
momento posterior à prolação da sentença antecipada, quando
o autor pode recorrer e até o juiz pode rever sua decisão.
Quanto ao réu, ele é beneficiado pela decisão e poderá contraarrazoar o recurso e, se não houver recurso, será normalmente
cientificado da decisão favorável. (GRINOVER apud RIBEIRO,
2006).
Esses são alguns relevantes posicionamentos que defendem a não ofensa aos
princípios do devido processo legal e do contraditório e, portanto, a constitucionalidade
do dispositivo em tela, haja vista, entre outros argumentos, a ausência de prejuízos
às partes e o contraditório a posteriori ou “contraditório diferido” (BATISTA apud
MILLER, 2007).
4. Da inconstitucionalidade do julgamento in limine de ações repetitivas
Todavia, a despeito dos fundamentos apresentados pelos importantes doutrinadores
supracitados, identifica-se, com efeito, a inconstitucionalidade do art. 285-A fundada
na ofensa ao devido processo legal, tendo em vista que nem sequer há a instauração
de uma relação jurídica processual e, ainda, que se suprime uma série de atos e fases
processuais indispensáveis à formação do livre convencimento do juiz, havendo, por
conseguinte, a supressão de instância.
Segundo Ernane Fidélis dos Santos (2007, p. 31), “[...] a relação processual é
triangular, já que ela se forma, se desenvolve e se esgota, unindo os sujeitos do
processo entre si”. Sendo triangular a relação processual e sendo ela um ponto
de união entre sujeitos do processo, não se pode admitir a dispensa de citação
do réu no primeiro grau de jurisdição, sob pena de inexistência da própria relação
processual, um dos requisitos para um devido processo legal.
280
• Direito Processual Civil
Sendo assim, “[...] tem-se uma relação processual apenas na fase recursal, por não
ter havido citação na fase de cognição, e sido a sentença proferida inaudita altera
parte”. (ALVIM; CABRAL, 2008). Ademais, se não houver a citação do réu, se não
houver uma resistência à pretensão do autor, não há que se falar em lide, em matéria
controvertida.
Sobre a supressão dessa dialética processual e, conseqüentemente, dos princípios
fundamentais do devido processo legal e do contraditório, Daniel Francisco Mitidiero
expõe:
Tal dispositivo tem por desiderato racionalizar o serviço
judiciário, tornando-o mais eficiente.
Não nos parece, contudo, que o art. 285-A, CPC, participe
da ‘efetividade virtuosa’, a que a Constituição expressamente
empresta guarida. Parece-nos, antes, que esse expediente
de sumarização instrumental guarda relação justamente com
a outra face da efetividade, identificada outrora por Carlos
Alberto Alvaro de Oliveira como ‘efetividade perniciosa’, que
se encontra em aberto conflito com os direitos fundamentais
encartados em nosso formalismo processual.
Com efeito, a pretexto de agilizar o andamento dos feitos,
pretende o legislador sufocar o caráter dialético do processo, em
que o diálogo judiciário, pautado pelos direitos fundamentais,
propicia ambiente de excelência para reconstrução da ordem
jurídica e conseguinte obtenção de decisões justas. Aniquila-se
o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o
órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos. Substitui-se,
em suma, a acertada combinação de uma legitimação material
e processual das decisões judiciais por uma questionável
legitimação pela eficiência do aparato judiciário, que, de seu
turno, pode facilmente desembocar na supressão do caráter
axiológico e ético do processo e de sua vocação para ponto
de confluência de direitos fundamentais. (MITIDIERO, 2006,
p. 173).
Na esteira do pensamento de Mitidiero, Helena Abdo diz que:
[...] a pretexto de conferir maior agilidade e efetividade à
tramitação dos processos em primeiro grau de jurisdição,
esse novo ‘esquema’ aniquila por completo o caráter dualista
do processo, consagrado pela Constituição Federal por meio
das garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido
processo legal. (ABDO apud RIBEIRO, 2006).
Outrossim, quando o autor expõe a sua pretensão ao Estado-juiz, ele espera, com
base na garantia constitucional do devido processo legal e do contraditório, uma
completa análise da questão posta em juízo, com todos os seus argumentos e
contra-argumentos, e não apenas uma cognição sumária do direito.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
281
Nesse sentido, acrescenta ainda Daniel Francisco Mitidiero:
É lugar-comum observar a multifuncionalidade dos direitos
fundamentais. Dessa comezinha, mas extraordinária
impostação ressai que o direito fundamental ao contraditório
não se cinge mais a garantir tão-somente a bilateralidade da
instância, antes conferindo direito, tanto ao demandante como
ao demandado, de envidar argumentos para influenciar na
conformação da decisão judicial. É o que vem se consagrando
na doutrina, paulatinamente, como a dimensão ativa do
direito fundamental ao contraditório, consagrada à vista do
caráter fortemente problemático do direito contemporâneo,
constatação hoje igualmente corrente, e da complexidade do
ordenamento jurídico atual.
Nessa perspectiva, o contraditório deixa de ser um direito
fundamental que se cifra à esfera jurídica do demandado,
logrando pertinência a ambas as partes, abarcando, portanto e
evidentemente, inclusive, o demandante. A nosso juízo, o art.
285-A, CPC, está a ferir, justamente, o contraditório do autor, e
não o do réu. (MITIDIERO, 2007, p. 37).
Sob a ótica dos princípios do devido processo legal e do contraditório, há também, nos
trâmites ditados pelo art. 285-A do CPC, conforme já mencionado, uma supressão
de instância na hipótese de apelação da sentença, na medida em que se lança a
questão posta em juízo para a segunda instância sem que todos meios de defesa
tenham-se esgotado (de argumentos e provas), aliás, com somente uma exposição
inicial e unilateral de argumentos, não havendo, portanto, o adequado atendimento
do duplo grau de jurisdição e, conseqüentemente, dos referidos princípios.
A Ordem dos Advogados do Brasil, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) n° 3.695 interposta contra a Lei n° 11.277/2006, que acresce o artigo em
questão ao Código de Processo Civil, sustenta, dentre outros argumentos, que o
art. 285-A “[...] institui entre nós uma sentença vinculante, impeditiva do curso do
processo em primeiro grau”.2 Sustenta, ainda, citando o parecer de Paulo Medina,
que “[...] o devido processo é conspurcado, quando o feito tem seu curso abreviado
com fundamento em sentença, cuja publicidade é inexistente, que acaba por dar fim
ao processo sem examinar as alegações do autor, sem as rebater”.3 A referida ADI
traz também, em seu corpo, o seguinte argumento:
LUIZ GUILHERME MARINONI, advertindo para a
circunstância de que o processo jurisdicional ‘deve refletir
o Estado Democrático de Direito’, de que é uma espécie de
‘microcosmos’, assevera que a ‘idéia básica do processo deve
ser a de garantir aos interessados uma participação efetiva no
Trecho extraído da petição inicial da Ação de Direta de Inconstitucionalidade n° 3.695, proposta pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
3 Ibidem.
2 282
• Direito Processual Civil
procedimento que vai levar à edição do ato de poder, ou seja,
à decisão.’ ‘Participação, porém – acrescenta –, pressupõe
informação.’ Por isso, o devido processo legal requer a
conjugação dos princípios constitucionais do contraditório,
da publicidade e da motivação. ‘Tais princípios – conclui o
professor paranaense –, por óbvio, adquirem um roupagem
política, querendo dar ênfase à necessidade de uma efetiva
participação no processo.’
Ora, corresponde a esse modelo o processo que dá ao autor
a sensação de haver empreendido um vôo cego, quando
ajuíza uma ação deduzindo pretensão que o Juízo já estaria
deliberado a repetir, com apoio em decisão anterior que a parte
ignorava ou a que não pôde ter acesso. Terá faltado, nesse
contexto, ao autor, a indispensável informação; negou-se-lhe,
ademais, qualquer possibilidade de participação, no sentido de
poder influir sobre a sentença e a motivação dessa não refletiu
de nenhum modo as alegações expostas na petição inicial.4
Com relação, especificamente, ao contraditório, a ADI n° 3.695 traz consigo o trecho
abaixo retirado do parecer do jurista Paulo Medina:
A extinção prematura e precipitada do processo nas condições
admitidas pelo art. 285-A do Código de Processo Civil,
sacrifica, ainda, outro princípio constitucional – o princípio
do contraditório (Constituição, art. 5°, LV). Segundo esse
princípio, em sua acepção hodierna, não basta que às partes
se assegure bilateralidade de audiência ou ciência recíproca
dos atos que um e outro dos litigantes pratique no curso do
procedimento. O contraditório, como acentua JOSÉ LEBRE
DE FREITAS, implica fundamentalmente ‘uma garantia de
participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo
o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade,
influírem em todos os elementos (factos, provas, questões)
que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que
em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente
relevantes para a decisão.5
Englobando ambos os princípios, o do contraditório e o do devido processo legal,
Francisco das C. Lima Filho acertadamente assevera:
Em primeiro lugar, nos termos do que imperativamente disposto
no art. 5°, inciso LIV, do Texto Maior ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, ou
seja, um processo em que se garanta às partes o direito de
defesa entendido no mais amplo sentido que inclui não apenas
o réu, mas também o autor oportunidades para demonstrarem
de forma concreta a procedência de suas pretensões, vale
dizer: uma defesa efetiva e não apenas formal ou em outras
4 5 Ibidem.
Ibidem.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
283
palavras, um devido processo legal material.
Assim, muito mais do que uma garantia, o devido processo legal
é um super princípio norteador do ordenamento jurídico, que
visa albergar entre seus objetivos ensejar a qualquer pessoa,
litigante ou acusada, em processo judicial ou administrativo, o
contraditório e a ampla defesa, bem como os meios e recursos
a ela inerentes (art. 5°, LV, CF). (LIMA FILHO, 2006).
Sobreleva destacar, nos pensamentos de Mitidiero, de Lima Filho e de José de Lebre
de Freitas anteriormente expostos, a questão referente ao conceito amplo do direito
de defesa, de contraditório, assegurado tanto ao réu como também ao autor, enfim,
às partes. E, ao se dispensar a citação do réu e julgar o caso concreto nos moldes
do art. 285-A do CPC, estar-se-á cerceando o direito de defesa de ambas as partes
ainda que a sentença seja favorável ao réu, haja vista que não lhes serão concedidas
“[...] as oportunidades de expor argumentos e produzir provas a fim de poderem vir a
influenciar a formação do convencimento do juiz.” (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007).
Diante dessa amplitude do princípio do contraditório, Alberto Nogueira Júnior
demonstra, de forma bastante acertada, os incontestáveis prejuízos sofridos pelo
réu com relação à ofensa a tal princípio pelo artigo em tela:
Apelando o autor, e sendo mantida a sentença, apenas então o
réu será citado para impugnar a apelação, e, então, o recurso
subirá ao Tribunal.
Ora, ao julgar a apelação, o Tribunal poderá entender que não
havia a total improcedência apontada pelo juízo de primeira
instância, mas sim, parcial improcedência.
Sem que o apelado – que apenas tornou-se réu depois de
sentenciada a causa e intimado da respectiva apelação – tenha
podido exercer qualquer atividade processual, no sentido de
poder vir a influenciar na formação do convencimento do órgão
jurisdicional de primeira instância.
E o reconhecimento da parcial improcedência já será apto a
adquirir eficácia de coisa julgada material [...].
Mas poderá se dar, também, que o Tribunal entenda que a
ausência, total ou parcial, de improcedência, dependa de
dilação probatória – que, naturalmente, ainda não pôde ser
realizada.
E nesta hipótese, não poderá o Tribunal instaurar e presidir
essa atividade instrutória, ali mesmo, em segundo grau, em
que pese o disposto no art. 560, parágrafo único do CPC,
sendo evidente que o contrário implicaria em supressão de
instância.
Os autos deverão retornar, assim, à Vara de origem, podendo
até limitar-se ao Juízo de primeiro grau que proceda à atividade
instrutória, na forma de diligência.
E o réu se veria na mais completa impossibilidade de exercer
plenamente seu direito ao contraditório e à ampla defesa,
visto que não poderia contra-atacar, reconvindo; tampouco,
diante daquele âmbito restrito de cognição objetiva a ser
284
• Direito Processual Civil
exercida, teria oportunidade para opor quaisquer exceções ou
objeções.
Voltando os autos ao Tribunal – agora, com a atividade
probatória desenvolvida, a título de diligência, pelo Juízo
monocrático, o Tribunal poderá concluir, então, que realmente
o caso era de total improcedência; ou que era de parcial
procedência, ou de parcial improcedência, daria no mesmo; ou
de total procedência. (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007).
Fundamentado nas hipóteses acima, Nogueira Júnior (2007) sustenta que o réu/
apelado será juridicamente afetado, sem que tenha exercido plenamente a sua
defesa, na medida em que não poderá: ampliar a matéria objeto da decisão, reconvir,
oferecer pedido contraposto, alegar alguma das hipóteses do art. 269, inciso IV,
do CPC, excepcionar o juízo, nem aumentar a profundidade da cognição exercida,
através de uma atividade probatória delimitada pelas margens fixadas em sua
defesa, pois tal atividade se dará conforme os limites estabelecidos pelo Tribunal.
Em seguida, Nogueira Júnior continua a relatar os possíveis passos dessa ação
julgada nos moldes do art. 285-A do CPC e a analisá-los:
Mas os autos poderão também baixar para que o Juízo de
primeira instância proceda com o regular desenvolvimento do
processo.
Poderá se ter por contestada a ação, tendo-se em foco as
contra-razões de apelação oferecidas pelo réu-apelado,
tomando-se a resposta do réu, dada sob a forma daquelas
contra-razões, como se contestação fora?
Acredito que não, e não só porque há várias formas de o réu
responder ao pedido do autor, mas, principalmente, porque
quando daquela espécie de resposta que foram as contrarazões de apelado, o réu não poderia ter se manifestado
sobre coisa alguma além daquilo que consistiu no objeto da
apelação, o mérito, tal como circunscrito pelo autor e pela
sentença. (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007).
Para reforçar a série de prejuízos impostos ao réu, Alberto Nogueira Júnior
acrescenta:
Disse que o Tribunal, se entender que ainda não haveria a
total ou parcial improcedência, por falta de dilação probatória
suficiente, não poderia proceder a essa dilação, sob pena de
supressão de instância.
Com isto, o réu, que teve contra si julgado o mérito, acabará
em situação mais danosa do que o réu que, tendo sido citado
e tendo participado, ou não, do processo, teve proferida
sentença terminativa.
Isto porque, quanto às sentenças terminativas, o Tribunal
poderá passar ao julgamento do mérito propriamente dito, se
a causa encontrar-se ‘madura’, na forma do que dispõe o art.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
285
557, § 1º, do CPC.
Como justificar, então, que quando o juízo de primeiro grau
haja prolatado sentença terminativa, possa o Tribunal adentrar
o mérito, contudo, se o juízo monocrático houver proferido
sentença de mérito, então o Tribunal não poderia fazê-lo, por
supressão de instância ???
Que lógica há nisso? (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007).
Nogueira Júnior (2007) compara também o art. 285-A com o art. 557, caput e § 1°,
ambos do CPC, ao dizer que, no procedimento recursal ali estatuído, já existe a
figura do réu, o que não se dá na hipótese prevista do art. 285-A, fazendo, portanto,
“toda a diferença do mundo”. Adverte ainda o autor sobre o fato de que a decisão
preceituada pelo art. 285-A trata do mérito propriamente dito, na medida em que
declara a total improcedência da ação, fazendo, por conseguinte, coisa julgada
material.
Corroborando a defesa da inconstitucionalidade, Roberto B. Dias da Silva assevera
que “[...] o novo artigo 285-A é inconstitucional e fere o princípio da ampla defesa e
do devido processo legal, ainda que a sentença seja favorável ao réu”. (SILVA apud
SILVEIRA, 2006).
Para o autor, a situação é ainda pior, pois ele tem seu pedido sumariamente
analisado e julgado com base em sentença de outro caso análogo, não “idêntico”,
sendo impedido de exaurir toda a sua argumentação e, conseqüentemente, de influir
na decisão da sua questão, bem como sendo privado de uma completa análise do
caso e até mesmo da possibilidade de uma anuência por parte do réu.
Nesse diapasão, destaca Francisco das C. Lima Filho:
É claro que a parte autora tem o direito de vê a parte acionada
citada, pois esta sendo chamada ao processo além de poder
até mesmo concordar com o pedido, tem também o direito
constitucional de deduzir sua defesa e vê suas alegações
ouvidas e analisadas pelo Judiciário, até mesmo para o
autor possa se convencer da justiça e do acerto da decisão
a ser proferida, ainda que contrária aos seus interesses e
eventualmente baseada em outra sentença, o que não se
pode é subtrair das partes em nome da celeridade a garantia
constitucional do devido processo legal. (LIMA FILHO, 2006).
Reforçando tal pensamento, Andirá Cristina Cassoli Zabin (2007) diz que “[...] em
face da improcedência liminar, perde o autor tal direito, pois o Juiz sem citar o réu,
sem, portanto, conhecer de sua possível vontade de reconhecer o direito do autor,
nega de imediato”. Ademais,
[...] nada mais incompatível com o contraditório do que a
possibilidade de o litígio resolver-se por meio de sentença
transladada de outro processo, em que o autor não interveio.
286
• Direito Processual Civil
Porque, dessa forma, a lide estará sendo composta sem que
a parte prejudicada tenha podido discutir, previamente, os
elementos que influíram na motivação da sentença. Esta, no
caso, terá sido para o autor (e também para a parte contrária
em relação à qual o pedido fora formulado) res inter alios acta.
(MEDINA, 2006, p. 156).
Ressalte-se, outrossim, um dos argumentos do mestre Gregório Assagra de Almeida
(2008), retirado das suas preciosas lições em sala de aula, no tocante ao art. 285-A
do CPC:
Apesar da ‘matéria de direito’ ser, em tese, idêntica a outras
já julgadas, direito também é problema, é argumentação.
Cada caso concreto precisa ser analisado diante dos seus
elementos constitutivos. Os argumentos entre as demandas,
as julgadas e as não julgadas, poderão não ser os mesmos.
Não há somente um argumento jurídico, ainda mais em um
sistema democrático. (ALMEIDA, 2008).
E convém ainda apontar as valorosas contribuições de Luiz Rodrigues Wambier e
Teresa Arruda Alvim Wambier sobre este tema. Iniciam seus comentários dizendo
que “[...] resultam de reflexão desapaixonada a respeito desse dispositivo que cria
mais uma possibilidade, no sistema, de que o juiz decida liminarmente o mérito, sem
contraditório”. (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p.1). E complementam
afirmando que a escolha desse caminho pelo legislador (no sentido de optar
pela aceleração dos julgamentos a qualquer custo) esconde o péssimo vício de
tentar corrigir defeitos graves, estruturais, de causas profundas e históricas, com
expedientes paliativos e pontuais.
Sobre a relação entre a efetividade e o direito ao contraditório assim pensam e
questionam:
Evidentemente, todos nós concordamos com a existência do
princípio da efetividade da atividade do Estado. É consensual,
também, que esse princípio se aplica à prestação da tutela
jurisdicional. O que se põe em debate, neste momento, é
o custo de sua incidência. É de se perguntar: deve incidir a
qualquer custo? Ainda que isso significa afastar o direito ao
contraditório?? (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p.
9).
Com relação ao princípio do contraditório, corretamente, acrescentam e também
questionam:
O contraditório não pode ser visto como o princípio que pura e
simplesmente gera a necessidade de que haja resposta – de
que, se uma das partes se manifesta, a outra tem que ter a
chance de responder.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
287
Hoje se entende que o princípio do contraditório é mais do que
isso.
Por exemplo, envolve o juiz. E o que significa dizer-se que o
contraditório envolve o juiz?
Significa dizer que o diálogo havido entre as partes há que
se refletir na sentença. O juiz deve necessariamente fazer
referência aos argumentos das partes!
Não fosse assim, para que serviria a garantia do contraditório,
stricto sensu considerada?
As partes têm o direito à ampla defesa, mas não existe o
correlato dever de o juiz apreciar a argumentação das partes?
Evidentemente, a possibilidade de as partes agirem em
contraditório só tem sentido se houver um observador
imparcial.
O processo deve ser visto como um microcosmo, em que
a sociedade está representada pelo autor e pelo réu. No
processo, portanto, deve ser criado um ambiente democrático
e cooperativo. O juiz deve se nutrir dos argumentos das partes,
sempre! Neste caso, até para reforçar sua opinião. (WAMBIER,
Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p. 9-10).
Indagam ainda se valeria a pena impingir ao processo do século XXI um modelo
superado, enfraquecido pelo comprometimento de garantias fundamentais, se não
seria o art. 285-A mais uma demonstração eloqüente e lamentável da tentativa de
resolver os grandes problemas estruturais do País (inclusive do processo) pela via
negativa de fruição de garantias constitucionais e, ainda, se é justificável essa furiosa
investida do legislador de tornar o processo mais célere a qualquer custo.
E concluem suas anotações da seguinte forma:
Mas nem tudo pode ser encolhido no tempo, sem prejuízo.
O processo, por exemplo, não pode. Há procedimentos
que devem ser sim, respeitados, sob pena de fissura no
tecido constitucional, o que é ruim para todos, em qualquer
circunstância. Romper a ordem constitucional custa caro para
a Nação, e os reflexos dessa conduta desbordam para diversas
áreas da vida social.
Para encerrar estas anotações que visam a estimular o debate
em torno do art. 285 A, convém fazer referência, ainda que
breve, ao pensamento de Eduardo Couture, para quem ‘O
tempo se vinga de tudo o que é feito sem a sua colaboração’.
(WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p. 11).
Por último, não se pode deixar de enfatizar os célebres ensinamentos do mestre
Canotilho no tocante à essa questão da aceleração da Justiça:
A protecção jurídica através dos tribunais implica a garantia
de uma proteção eficaz e temporalmente adequada. Neste
sentido, ela engloba a exigência de uma apreciação, pelo juiz,
da matéria de facto e de direito, objecto do litígio ou da pretensão
288
• Direito Processual Civil
do particular, e a respectiva ‘resposta’ plasmada numa decisão
judicial vinculativa (em termos a regular pelas leis de processo).
O controlo judicial deve, pelo menos, em sede de primeira
instância, fixar as chamadas ‘matérias ou questões de facto’,
não se devendo configurar como um ‘tribunal de revista’ limitado
à apreciação das ‘questões’ e ‘vícios de direito’. Além disso, ao
demandante de uma protecção jurídica deve ser reconhecida a
possibilidade de, em tempo útil (‘adequação temporal’, ‘justiça
temporalmente adequada’), obter uma sentença executória
com força de caso julgado – ‘a justiça tardia eqüivale a
uma denegação da justiça’. Note-se que a exigência de um
processo sem dilações indevidas, ou seja, de uma prestação
judicial em tempo adequado, não significa necessariamente
‘justiça acelerada’. A ‘aceleração’ da protecção jurídica que se
traduza em diminuição de garantias processuais e materiais
(prazos de recurso, supressão de instâncias) pode conduzir a
uma justiça pronta, mas materialmente injusta. (CANOTILHO,
1999, p. 466-467).
Sendo assim, finaliza-se o presente trabalho através do importantíssimo alerta de
Canotilho e dos Wambier para o perigo da aceleração da proteção jurídica com a
supressão de garantias processuais (e materiais), que é o que, verdadeiramente, se
observa no art. 285-A do Código de Processo Civil brasileiro, principalmente com
relação aos princípios do devido processo legal e do contraditório.
5. Conclusão
Constata-se, portanto, que o novel art. 285-A do Código de Processo Civil brasileiro
não desfruta da constitucionalidade imprescindível para sua existência, aplicação e
permanência no sistema jurídico, haja vista que fere, entre outras coisas, o princípio
do devido processo legal e o do contraditório ao causar, conforme demonstrado,
irrefutáveis prejuízos às partes (especialmente com relação à ampla defesa dos
seus argumentos), ao processo (suprimindo fases e instância) e a uma efetiva
realização da justiça, pelo que deve ser declarado inconstitucional e expurgado da
práxis processual.
A busca de uma razoável duração do processo, de uma efetividade e celeridade
processual, não pode, como ocorreu com o art. 285-A do Código de Processo Civil,
sacrificar princípios constitucionais e fundamentais como o do devido processo legal
e o do contraditório.
Urge, assim, para uma prestação jurisdicional efetivamente justa, harmonizar a
necessidade de celeridade processual com todos os princípios constitucionais.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
289
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fagundescunha.org.br/amapar/revista/artigos/wambier_anotações.doc>.
Acesso
em: 27 fev. 2009.
ZABIN, Andirá Cristina Cassoli. Celeridade processual a qualquer custo: a
improcedência liminar – artigo 285-A do CPC. 2007. Disponível em: <http://sisnet.
aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/230807.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2008.
Fádua Maria Drumond Chequer Magno •
291
Jurisprudência
Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. Ministério Público. Requisição.
Informação diretamente. Banco. Relação de consumo.
É lícito ao MP requisitar da instituição financeira documentos e dados que não estão
protegidos pelo sigilo bancário e referentes a contrato de adesão, pois se está na
defesa dos usuários dos serviços e produtos por ela ofertados. Ressalte-se que esses
serviços e produtos são do gênero consumo. Precedentes citados: REsp 209.259DF, DJ 5/3/2001; REsp 207.310-DF, DJ 20/11/2000, e HC 5.287-DF, DJ 5/5/1997.
REsp 1.094.770-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 1º/9/2009.
Informativo 414 do Superior Tribunal de Justiça. ACP. Meio Ambiente. Discussão
sobre Litisconsórcio entre as pessoas que ocuparam a área irregularmente e o
ente público que tem a propriedade do terreno.
O MP estadual propôs ação civil pública (ACP) contra o município, em busca da
recuperação do meio ambiente danificado pela ocupação irregular da área. Busca,
também, a condenação de agente público municipal por ato de improbidade. A
municipalidade, por sua vez, alega a existência de litisconsórcio necessário com
os proprietários da área (a União e outros). Sucede que a ACP tem por único
objetivo obrigar o município a executar uma série de providências pelas quais é
responsável, não em razão de eventual propriedade, mas sim por suas atribuições
constitucionais. Assim, é irrelevante a discussão a respeito da propriedade da área,
pois descabida a alegação de que a sentença atingirá a esfera jurídica da União ou
de qualquer entidade autárquica federal. Daí não se verificarem os requisitos para
a formação do litisconsórcio (art. 46 e 47 do CPC), que deve considerar a natureza
da relação jurídica material. REsp 1.132.744-RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado
em 3/11/2009.
Informativo 557 do Supremo Tribunal Federal. Possibilidade de Reclamação
do Superior Tribunal de Justiça em virtude de decisão dos Juizados Especiais
Estaduais que contrariam decisões do Superior Tribunal de Justiça.
Não obstante salientando a inexistência de omissão a suprir, o Tribunal
292
• Direito Processual Civil
acolheu embargos de declaração opostos de acórdão do Plenário para prestar
esclarecimentos e determinar a comunicação à Presidência do STJ. Na espécie, o
acórdão embargado confirmara a jurisprudência fixada sobre a discriminação nas
contas telefônicas dos pulsos além da franquia, no sentido de se tratar de questão
infraconstitucional, e assentara a competência do Juizado Especial para processar e
julgar ação movida por usuário do serviço de telefonia móvel, dada a ausência tanto de
manifestação expressa de interesse jurídico ou econômico pela agência reguladora
(ANATEL) quanto de complexidade probatória. Asseverou-se, inicialmente, que,
após o julgamento do presente recurso extraordinário, e em decorrência de nova
regulamentação realizada pela ANATEL, na qual fora determinado o detalhamento
gratuito de todas as ligações, o STJ revogara o Enunciado 357 de sua Súmula (“a
pedido do assinante, que responderá pelos custos, é obrigatória, a partir de 1º de
janeiro de 2006, a discriminação de pulsos excedentes e ligações de telefone fixo
para celular.”). Explicou-se que, embora tivesse revogado a Súmula, ante a previsão
do ônus ao assinante, o STJ mantivera o entendimento em relação à obrigatoriedade
da discriminação de pulsos excedentes. Afirmou-se, no que tange à extensão
da aplicação da Súmula 357 do STJ, que o Supremo já se manifestou sobre o
importante papel exercido pelo STJ no exame da legislação infraconstitucional,
qual seja, a de uniformizar a interpretação das normas federais infraconstitucionais.
Registrou-se, em seguida, que, embora seja responsável pelo exame da legislação
infraconstitucional, o STJ não aprecia recurso especial contra decisão prolatada no
âmbito dos Juizados Especiais, sendo as querelas de pequeno valor submetidas
às Turmas Recursais, instância revisora. RE 571572 QO-ED/BA, rel. Min. Ellen
Gracie, 26.8.2009. (RE-571572)
Ressaltou-se que, já no âmbito da Justiça Federal, a uniformização da interpretação
da legislação infraconstitucional foi preservada com a criação da Turma de
Uniformização pela Lei 10.259/2001, a qual pode ser provocada quando a decisão
proferida pela Turma Recursal contrarie a jurisprudência dominante no STJ.
Caso a decisão da Turma de Uniformização afronte essa jurisprudência, caberá,
ainda, a provocação daquela Corte (Lei 10.259/2001, art. 14, § 1º). Observou-se,
entretanto, não existir previsão legal de órgão uniformizador da interpretação da
legislação federal para os Juizados Especiais Estaduais, fato que poderia ocasionar
a perpetuação de decisões divergentes da jurisprudência do STJ. Aduziu-se que
tal lacuna poderá ser suprida com a criação da Turma Nacional de Uniformização
da Jurisprudência, prevista no Projeto de Lei 16/2007, de iniciativa da Câmara dos
Deputados, o qual se encontra em trâmite no Senado Federal, mas que, enquanto
isso não ocorrer, a manutenção de decisões divergentes a respeito da interpretação
da legislação infraconstitucional federal, além de provocar insegurança jurídica,
promoverá uma prestação jurisdicional incompleta, por não haver outro meio eficaz
de sanar a situação. Tendo isso em conta, decidiu-se que, até que seja criado o
órgão que possa estender e fazer prevalecer a aplicação da jurisprudência do STJ,
em razão de sua função constitucional, da segurança jurídica e da devida prestação
jurisdicional, a lógica da organização do sistema judiciário nacional recomendaria
Jurisprudência •
293
fosse dada à reclamação prevista no art. 105, I, f, da CF amplitude suficiente à
solução desse impasse. Dessa forma, ante a ausência de outro órgão que possa
fazê-lo, o próprio STJ afastará a divergência com a sua jurisprudência, quando a
decisão vier a ser proferida no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais. Vencidos os
Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto que desproviam os embargos declaratórios.
Precedentes citado: AI 155684 AgR/SP (DJU de 29.4.94). RE 571572 QO-ED/BA,
rel. Min. Ellen Gracie, 26.8.2009. (RE-571572)
294
• Direito Processual Civil
Comentário à Jurisprudência
INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES EXPROPRIATÓRIAS
SILVIA FONSECA SILVA
Advogada
Pós-graduanda em Processo Civil na Universidade Anhanguera-Uniderp
1. Acórdão
Recurso Especial nº 857.942 - SP (2006/0064213-4)
Relator: Ministro Herman Benjamin
Recorrente: Companhia Comercial e Agrícola São Venâncio S/A
Advogado: Rosana Malatesta Pereira
Recorrido: Furnas Centrais Elétricas S/A
Advogado: Iycurgo Leite Neto e outro(s)
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO.
INTERESSE PÚBLICO. ART. 82, III, DO CPC. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL.
NÃO-COMPROVAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido
de que o interesse patrimonial da Fazenda Pública, por si só, não se identifica com
o interesse público para fins de intervenção do Ministério Público no processo,
nos termos do art. 82, III, do CPC. 2. A divergência jurisprudencial deve ser
comprovada, cabendo a quem recorre demonstrar as circunstâncias que identificam
ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fática e
jurídica entre eles. Indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos
acórdãos recorrido e paradigma, realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com
o intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente. O desrespeito a esses
requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/
STJ) impede o conhecimento do Recurso Especial, com base no art. 105, III, alínea
“c”, da Constituição Federal. 3. A revisão da verba honorária implica, como regra,
reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado em Recurso Especial (Súmula
7/STJ). Excepciona-se apenas a hipótese de valor irrisório ou exorbitante, o que não
se configura neste caso. 4. Recurso Especial não conhecido.
Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:
Silvia Fonseca Silva •
295
“A Turma, por unanimidade, não conheceu do recurso, nos termos do voto do (a)
Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana
Calmon, Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Data do julgamento: 15 de outubro de 2009.
2. Apresentação do caso
Inconformada com os termos do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal
da 3ª Região, a Companhia Comercial e Agrícola São Venâncio S/A, ora recorrente,
interpôs, perante o STJ, Recurso Especial em desfavor da Empresa Pública Federal,
Furnas Centrais Elétricas S/A, com fundamento no art.105, III, alíneas “a” e “c” da
Constituição Federal.
Em breve síntese, o STJ, no recurso especial, discute a incidência ou não dos
juros moratórios sobre os compensatórios nas ações expropriatórias (Súmula 102,
STJ). Segundo a recorrente, há divergência jurisprudencial quanto à aplicação da
Súmula 102 do STJ. Para ela, a não-incidência de juros moratórios sobre os juros
compensatórios nas ações expropriatórias fere o princípio constitucional da dupla
indenização.
O STJ, contudo, apesar dos argumentos apresentados pela recorrente, não conheceu
do Recurso Especial, sob o fundamento de que ela não atendeu os requisitos legais
e regimentais necessários à comprovação da divergência jurisprudencial (art.
541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/STJ). A recorrente, embora tenha
alegado divergência jurisprudencial quanto à aplicação da Súmula 102 do STJ, não
a comprovou.
Além do mais, entendeu o STJ que não pode a recorrente alegar direito decorrente
do teor da Súmula 102, uma vez que a adoção dessa súmula pelo STJ (30 de maio
de 1994) foi posterior à prolação da sentença (2 de março de 1994).
Incidentalmente, no julgamento deste Recurso Especial, o STJ discutiu ainda se,
na demanda expropriatória em questão, havia ou não interesse público para fins de
intervenção obrigatória no processo do Ministério Público.
A respeito disso, o STJ entendeu que, embora o caso dos autos trate de questão
patrimonial da Fazenda Pública (Furnas Centrais Elétricas S/A), não há interesse
público a justificar a intervenção obrigatória do Ministério Público no processo. É
pacífico, segundo o STJ, o entendimento de que o interesse patrimonial da Fazenda
Pública, por si só, não se identifica com o interesse público para fins de intervenção
do Ministério Público, nos termos do art. 82, inciso III, do CPC.
3. Comentários
O artigo 82 do CPC prevê hipóteses em que é obrigatória a intervenção do Ministério
Público no processo. Dentre as hipóteses previstas nesse artigo, estabelece o inciso
296
• Direito Processual Civil
III que é obrigatória a intervenção do Ministério Público quando estiver presente
na causa interesse público evidenciado pela natureza da lide ou pela qualidade da
parte.
É certo que a intervenção do Ministério Público no processo é obrigatória quando a
causa envolver interesse público. O problema está em definir corretamente o que é
interesse público que justifique a intervenção obrigatória do Ministério Público.
O termo interesse público é bastante amplo e sua aplicação gera graves equívocos.
Erroneamente, muitos entendem que interesse público é qualquer interesse do
Estado. Na tentativa de delimitar o termo interesse público, a doutrina, bem como a
jurisprudência, divide o interesse público em primário e secundário.
Interesse público primário, também denominado interesse público propriamente dito,
é o interesse do todo, de cada indivíduo como partícipe da sociedade. Nessa mesma
linha, entende Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 58): “O interesse público
deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os
indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros
da sociedade pelo simples fato de o serem.”
Logo, não há como dissociar o interesse público (primário ou propriamente dito)
do interesse das partes. Ao contrário do que muitos pensam, o interesse público
(primário ou propriamente dito) não é uma idéia autônoma, desvinculada do interesse
de cada uma das partes que compõe o todo social. O interesse público (primário ou
propriamente dito) é uma forma de manifestação do interesse das partes.
Pode-se afirmar, inclusive, que o interesse público (primário ou propriamente dito),
conjunto de interesses dos indivíduos como membros da coletividade, nem sempre
coincide com o interesse do Estado e das demais pessoas de direito público.
O Estado como pessoa jurídica possui interesses que não são exclusivamente
públicos, são os interesses públicos secundários. Segundo Celso Antônio Bandeira
de Mello (2007, p. 63):
Além de subjetivar interesses públicos, o Estado, tal como os
demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que,
pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com
todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente
do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses
públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas,
interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como
os interesses delas concebidos em suas meras individualidades,
se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não
são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado,
similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de
qualquer outro sujeito.
Silvia Fonseca Silva •
297
O Estado, porém, só poderá exercer seus interesses individuais (interesses públicos
secundários) se não ofender os interesses públicos primários. O Estado foi concebido
precipuamente para a realização de interesses públicos e não pode afrontá-los.
Assim, os interesses públicos secundários só poderão ser perseguidos pelo Estado
quando não violarem o interesse público.
Conforme preceitua Celso Antonio Bandeira de Mello, ao definir o que é interesse
público primário e secundário, deve também o aplicador do direito averiguar qual a
qualificação de determinado interesse trazido pela Constituição Federal e/ou pelas
normas infraconstitucionais. Saber o que é interesse público não é suficiente. É
também necessário saber qual delineamento dá o sistema normativo a determinado
interesse. Não basta que algumas pessoas, levando apenas em consideração a
definição do que é interesse público, considerem algo como tal, se a própria
Constituição Federal ou norma infraconstitucional assim não o fazem. A parte só terá
liberdade de definir o que configura ou não interesse público – baseando-se na sua
definição – quando a Constituição Federal bem como a norma infraconstitucional
forem omissas a respeito.
Definido os contornos do que seja interesse público, é importante perquirir o seguinte:
o termo interesse público utilizado na redação do inciso III do art. 82, que justifica
a intervenção obrigatória do Ministério Público no processo, tem qual significado?
Diz respeito ao interesse público primário ou também engloba interesse público
secundário?
É pacífico o entendimento segundo o qual o art. 82, inciso III, do CPC refere-se
tão-somente ao interesse público propriamente dito (primário). O Ministério Público,
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, conforme prevê
a Constituição Federal, tem como finalidade, entre outras, a proteção dos interesses
sociais. E assim atua quando intervém, como fiscal da lei, nos processos que
envolvem tais interesses.
No caso do julgamento em questão, de ação expropriatória restrita à discussão
do quantum indenizatório, é evidenciado interesse público primário que implique a
intervenção obrigatória do Ministério Público, conforme prevê o art. 82, inciso III, do
CPC? Não há consenso na doutrina nem na jurisprudência, já que nem a Constituição
Federal nem as normas infraconstitucionais expressamente se manifestam a
respeito.
Há, porém, a Lei Complementar nº 76/93 – que dispõe sobre o procedimento
especial de rito sumário para o processo de desapropriação de imóvel rural para fins
de reforma agrária – que estabelece, no art. 18, § 2º: “O Ministério Público Federal
intervirá, obrigatoriamente, após a manifestação das partes, antes de cada decisão
manifestada no processo, em qualquer instância”. (grifo nosso).
Excepcionadas as ações de desapropriação de imóvel rural para fins de reforma
agrária em que a lei expressamente diz que a intervenção do Ministério Público é
298
• Direito Processual Civil
obrigatória, o STJ entende que, nas demais ações expropriatórias que se restringem
à discussão do valor indenizatório, como é o caso do presente acórdão, em que não
há previsão legal se é ou não obrigatória a intervenção do Ministério Público, não há
interesse público a justificar a intervenção desse órgão. Logo, não há incidência do
art. 82, inciso III, do CPC.
No entanto, há doutrinadores (e também decisões jurisdicionais) que discordam
desse entendimento. Para eles, é obrigatória a intervenção do Ministério Público
nessas ações expropriatórias, mesmo que estas não sejam para fins de reforma
agrária.
Aqueles que entendem que nas ações expropriatórias restritas ao quantum
indenizatório há interesse público, entre eles o ilustre administrativista José dos
Santos Carvalho Filho, utilizam como fundamento o fato de a desapropriação
acarretar perda da propriedade, garantia constitucional.
Na linha de entendimento do STJ, quando atestada a responsabilidade do Estado, e
este se revela tendente ao adimplemento da respectiva indenização, fica na posição
de atendimento ao interesse público propriamente dito. Ao contrário, porém, quando
o Estado visa a evadir-se de sua obrigação a fim de minimizar os seus prejuízos
patrimoniais, persegue nítido interesse secundário, com o intuito de subtrair-se de
despesas.
Ao demonstrar interesse em pagar valor ínfimo nas desapropriações, o Estado
está resguardando o seu patrimônio, defendendo seus interesses individuais
(secundários), como qualquer outra pessoa jurídica assim o faria. Não se trata aqui
de interesse público primário do Estado.
Não podemos afirmar que nas ações expropriatórias restritivas ao quantum
indenizatório, como no caso em questão, há interesse público. O Estado, ao
tentar reduzir o valor da indenização, age perseguindo seus interesses individuais.
A intervenção do Ministério Público, portanto, não é obrigatória. Além do mais, o
Estado possui um corpo próprio de profissionais da advocacia da União habilitados
a empreender a defesa dos seus interesses públicos secundários.
Ademais, é atribuída ao Ministério Público, pela Constituição Federal, a proteção
de diversos direitos além do interesse público, entre eles, direitos individuais
indisponíveis, a ordem jurídica, o regime democrático etc. E entender ser obrigatória
a intervenção do Ministério Público em casos que há somente interesses individuais
da administração (interesse público secundário), como se afigura no caso em
questão, seria onerá-lo por demais em detrimento dos outros interesses cuja defesa
é constitucionalmente a ele incumbida.
Silvia Fonseca Silva •
299
4. Considerações finais
O art. 82, inciso III, quando prevê a intervenção obrigatória do Ministério Público,
refere-se a interesses públicos propriamente ditos, evidenciados pela natureza da
lide ou pela qualidade da parte. Causas que envolvem apenas interesses públicos
secundários não justificam a intervenção do Ministério Público. Entender o contrário
seria prejudicar as demais atribuições constitucionais da Instituição para prestigiar
interesses individuais do Estado (interesse público secundário) como pessoa jurídica.
Além do mais, o Estado possui profissionais da advocacia próprios para a defesa
desses interesses.
Entendeu o STJ, apesar das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, que, nas
ações expropriatórias que versem sobre o quantum indenizatório, ressalvadas as
ações de desapropriação para fins de reforma agrária, não há interesse público a
justificar a intervenção obrigatória do Ministério Público. Logo, não há aplicação do
art. 82, inciso III, do CPC. Pretender a administração pagar valor inferior ao que
requerido pelo expropriado significa agir no interesse do Estado como pessoa
jurídica.
Não é, portanto, verdadeira a afirmação que sempre haverá interesse público quando
a causa envolver patrimônio da Fazenda Pública. Existem interesses perseguidos
pelo Estado que estão além do interesse público propriamente dito. E quando isso
ocorrer, como no caso das ações expropriatórias limitadas a discussão do quantum
indenizatório, a intervenção do Ministério Público não será obrigatória.
5. Referências bibliográficas
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. 1. 16. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas,
2007.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008.
JUNIOR, Fredie Didier. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 11. ed. Salvador: Jus
Podivm, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual de Processo de Conhecimento. 6. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2007.
300
• Direito Processual Civil
Técnica
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ILEGITIMIDADE PASSIVA DO
MINSITÉRIO PÚBLICO ESTADUAL
ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS BENJAMIN
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº XX - AP (XXX)
RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN
RECORRENTE: ESTADO DO AMAPÁ
PROCURADOR: ORLANDO TEIXEIRA DE CAMPOS E OUTRO(S)
RECORRIDO: XXXXX
ADVOGADO: XXXXX
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DANO MORAL RECONHECIDO PELAS
INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA.
IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ.
1. Os Ministérios Públicos Estaduais não possuem personalidade jurídica própria,
sendo sua capacidade processual adstrita à defesa de prerrogativas institucionais,
concernentes à sua estrutura orgânica e funcionamento. São, portanto, partes
ilegítimas para figurar no pólo passivo de ação indenizatória.
2. O Tribunal de origem, com base no acervo probatório dos autos, reconheceu a
ocorrência de dano moral passível de indenização. A revisão desse entendimento
implica reexame de matéria fático-probatória, vedado pela Súmula 7/STJ.
3. Recurso Especial não provido.
Herman Benjamin •
301
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma,
por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a).
Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon,
Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 25 de agosto de 2009(data do julgamento).
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
Relator
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Trata-se de Recurso
Especial com fundamento no art. 105, III, “a” e “c”, da Constituição da República,
contra acórdão assim ementado (fls. 62-63, grifo no original):
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - Ação de indenização - Danos
materiais - Matéria decidida em outro processo -Coisa julgada
material - Configuração - Procurador de Estado - Investidura
sem concurso público - Irregularidade administrativa Existência de procuração nos autos - Validade das postulações
- Ministério Público Estadual - Ausência de personalidade
jurídica - Legitimação passiva do estado-membro - Aprovado
em concurso público - Certidão criminal de conteúdo proibido
- Indeferimento da nomeação - Equívocos dos agentes
estatais - Dano moral configurado - Reparação devida Responsabilidade da Administração - Verba indenizatória Quantum reparatório elevado - Mitigação - Vencidos autor e
réu - Sucumbência mínima inocorrente - Aplicação do art. 21,
caput, CPC - Honorários advocatícios - Arbitramento que não
reflete a realidade do feito e a atuação profissional - Majoração
- Beneficiário da justiça gratuita - Sucumbimento parcial Verbas sucumbenciais devidas - Compensação no recebimento
da verba indenizatória - 1) Se o pleito de reparação por danos
materiais já fora repelido em outra ação que, embora mais
ampla, também o continha e fundado na mesma causa de
pedir, cuja sentença já transitara em julgado, sua apreciação
meritória encontra obstáculo intransponível no instituto da coisa
julgada material - 2) A investidura no cargo de Procurador do
Estado sem prévia aprovação em concurso público, embora
afronte a lei, constitui irregularidade administrativa que não
invalida os atos por ele praticados e não caracteriza ausência
de capacidade postulatória, se regularmente constituídos nos
302
• Direito Processual Civil
autos para tal fim - 3) Salvo para defesa de seus interesses
institucionais - normalmente exercitada em sede de mandado
de segurança -, os Ministérios Públicos estaduais não dispõem
de personalidade jurídica e de capacidade processual, de
sorte que não ostentam legitimidade para residir em qualquer
dos pólos de ações ordinárias, nas quais deverão figurar
sempre os respectivos Estados-membros - 4) O fornecimento
de certidão criminal de conteúdo proibido, aliado à decisão
administrativa que, escorada no seu conteúdo, indefere
nomeação de aprovado em concurso público, são equívocos
dos agentes estatais aptos a provocar dissabores e abalo
psicológico no prejudicado e, conseqüentemente, dano moral,
por cuja reparação responde a Administração Pública, ex vi
do art. 37, § 6º c/c o art. 5º, inc. X, ambos da Constituição
Federal - 5) Arbitrada indenização por dano moral em valor
desproporcional, impõe-se sua redução para adequá-la à
realidade do processo - 6) Segundo o comando do art. 21,
caput, do Código de Processo Civil, no caso de sucumbimento
recíproco, as partes respondem pelo encargos encargos, na
medida do possível, nos percentuais em que ficaram vencidas,
aplicando-se a regra do parágrafo único do mesmo artigo,
somente na hipótese de sucumbência mínima de uma delas 7) Impõe-se a reforma da sentença, para majorar os honorários
de sucumbência, quando arbitrados em valor que não reflete a
realidade da causa e a atuação dos advogados no processo,
cuja remuneração, nos limites da lei, deve mostrar-se condigna
- 8) A parte que, embora beneficiária de gratuidade de justiça,
é aquinhoada com razoável verba indenizatória, deve arcar, de
imediato, com as despesas do processo e com os honorários
advocatícios de sua parcial sucumbência, descontando tais
verbas da indenização, considerando que esse desembolso,
em tal circunstância, não acarreta prejuízo a seu sustento ou
de sua família.
Os Embargos de Declaração foram acolhidos para fins de prequestionamento (fls.
81-86).
O recorrente alega que houve, além de divergência jurisprudencial, violação dos
seguintes dispositivos legais (fls.89-100):
a) art. 47 do Código de Processo Civil, uma vez que a natureza da causa exige a
inclusão no pólo passivo do Ministério Público do Estado do Amapá, tratando-se de
hipótese de litisconsórcio passivo necessário;
b) art. 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que
estabelece que o Ministério Público Estadual responde pelas despesas com pessoal
decorrentes de sentença judicial; e
c) art. 186 do Código Civil Brasileiro, uma vez que inexiste fato gerador de dano
moral.
Foram apresentadas as contra-razões (fls. 121-134).
O Tribunal de origem negou seguimento ao Recurso Especial (fls. 135-140), tendo
Herman Benjamin •
303
a parte recorrente interposto Agravo de Instrumento, ao qual dei provimento,
determinando sua conversão em Recurso Especial (fl. 164).
O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 161-162).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Cuida-se, originalmente,
de Ação de Indenização movida por XXXX contra o Estado do Amapá, pretendendo
pagamento a título de danos materiais e morais, tudo em conseqüência da emissão
de certidão negativa criminal onde constou o benefício do sursis.
Afirma o autor que, a despeito de haver sido aprovado em concurso público para
o cargo de Auxiliar Administrativo do Ministério Público Estadual e convocado em
24.9.1999, para apresentar documentos necessários à nomeação, este ato não se
efetivou em razão de a Procuradoria Geral de Justiça haver levado em consideração
uma certidão criminal, fornecida pelo Setor de Distribuição da Justiça Estadual,
em cujo teor constou a existência de processo no qual lhe fora concedido sursis
processual.
O Juízo de 1º grau, ao sentenciar (fl. 45-48), acolheu preliminar de coisa julgada no
tocante à reparação por danos materiais e rejeitou a de chamamento do Ministério
Público para integrar a lide como litisconsorte necessário e a de incapacidade
postulatória dos patronos do Estado. Quanto ao mérito, julgou o pedido parcialmente
procedente, condenando o réu ao pagamento de indenização por dano moral no valor
de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), acrescidos de juros moratórios incidentes
desde a data do evento. Em face da sucumbência recíproca, condenou as partes a
arcarem com 50% (cinqüenta por cento) das custas processuais e com os honorários
advocatícios, fixados em R$ 400,00 (quatrocentos reais) para cada causídico.
Ambas as partes apelaram ao Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, que assim
decidiu (fl. 74):
Ex positis, julgando prejudicado prejudicado o apelo do
réu, provejo parcialmente a remessa ex officio, improvejo a
apelação do autos e dou provimento à irresignação de sua
advogada, para, reformando a sentença: a) reduzir o valor
da indenização por dano moral, para R$ 15.000,00 (quinze
mil reais), acrescidos de juros moratórios e atualizados
monetariamente nos termos definidos na sentença; b) majorar
os honorários advocatícios de sucumbência dos patronos do
autor e do réu para R$ 2.000,00 (dois mil reais), a atualizados
monetariamente e acrescidos de juros moratórios de um por
cento (1%) ao mês a partir da sentença; c) determinar que o
autor pague os cinqüenta por cento das custas e despesas
do processo que lhe cabem, assim como os honorários dos
procuradores do réu ora arbitrados, com os devidos acréscimos,
304
• Direito Processual Civil
ao receber a indenização, cujos valores deverão ser desta
descontados e destinados aos respectivos pagamentos; e d)
isentar o réu do pagamento que lhe fora imposto de parcela
das custas processuais.
Irresignado, o Estado do Amapá interpôs o presente Recurso Especial, no qual
sustenta existir dissídio jurisprudencial e violação do art. 47 do Código de Processo
Civil; do art. 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000; e do art. 186 do Código Civil
Brasileiro.
Inicialmente, cinge-se a controvérsia ao reconhecimento da legitimidade do Ministério
Público do Estado do Amapá para figurar no pólo passivo de Ação de Indenização
ajuizada em desfavor do referido Estado.
Em relação aos arts. 47 do CPC e 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000
argumenta-se basicamente que, como a causa gera despesas de pessoal decorrente
de sentença judicial, se faz necessária a inclusão do Ministério Público do Estado
do Amapá no pólo passivo da demanda, constituindo-se hipótese de litisconsórcio
passivo necessário.
A tese defendida pelo recorrente não encontra amparo na jurisprudência desta
Corte.
Conforme bem consignado no acórdão recorrido, o STJ firmou o entendimento de
que os entes dotados apenas de personalidade juridiciária possuem legitimidade
jurídica para figurar na relação processual tão-somente na defesa de seus direitos
institucionais, concernentes à sua organização e funcionamento. Nas demais
hipóteses, a atuação em juízo desses órgãos é imputada às pessoas jurídicas de
Direito Público que eles integram.
À propósito, confiram-se os seguintes precedentes:
PROCESSUAL
CIVIL.
ASSEMBLÉIA
LEGISLATIVA.
LITISCONSÓRCIO. PÓLO PASSIVO. AÇÃO DE COBRANÇA.
ILEGITIMIDADE. PRECEDENTES. ÔNUS DA PROVA.
ART. 333, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
SÚMULA N.º 07 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
REEXAME DE PROVAS. PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N.os 282 e 356 DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
1. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido
de que a Assembléia Legislativa Estadual tem legitimidade
passiva tão-somente para a defesa de seus direitos institucionais,
assim entendidos sua organização e funcionamento. Tratando
os autos de ação ordinária de cobrança, patente a ilegitimidade
passiva da Assembléia Legislativa, sendo que, na espécie, a
legitimidade é apenas da Unidade Federativa, não ocorrendo
formação de litisconsórcio.
2. No que tange ao ônus da prova, a inversão do decidido,
como propugnado pelo Agravante, demandaria o reexame
Herman Benjamin •
305
do conjunto fático-probatório, providência sabidamente
incompatível com a via estreita do recurso especial. Incidência
da Súmula 07 desta Corte Superior de Justiça.
3. O entendimento pacificado nesta Egrégia Corte Superior é no
sentido de que a prescrição, mesmo se tratando de questão de
ordem pública, deve ser apreciada pela Corte a quo, para que
se configure o indispensável prequestionamento, viabilizador
do acesso à instância extraordinária. Incidência das Súmulas
n.os 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal.
4. Inexistindo qualquer fundamento apto a afastar as razões
consideradas no julgado ora agravado, deve ser a decisão
mantida por seus próprios fundamentos.
5. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no Ag 798218/AP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA
TURMA, julgado em 21/11/2006, DJ 05/02/2007 p. 347)
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA DE
PARCELAS REMUNERATÓRIAS DEVIDAS POR SERVIÇOS
PRESTADOS À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. PÓLO PASSIVO.
LEGITIMIDADE DO ESTADO DO AMAPÁ. ILEGITIMIDADE
DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA LOCAL. PRECEDENTES.
IMPROVIMENTO.
1. Esta Corte Superior de Justiça registra já o entendimento
no sentido de que a Assembléia Legislativa Estadual tem
legitimidade para figurar no pólo passivo de relação processual
tão-somente na defesa de seus direitos institucionais,
concernentes à sua organização e funcionamento.
2. Em se tratando de ação destinada à cobrança de parcelas
remuneratórias, devidas ao autor, por serviços prestados à
Assembléia Legislativa, resta afastada a sua legitimidade
passiva, atraindo, em conseqüência, a do Estado-membro.
3. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
4. Agravo regimental improvido.
(AgRg no Ag 388114/AP, Rel. Ministro HAMILTON
CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 04/10/2001, DJ
18/02/2002 p. 545)
Os Ministérios Públicos Estaduais não possuem personalidade jurídica própria,
sendo sua capacidade processual adstrita à defesa de interesses relativos à sua
estrutura orgânica.
In casu, cuida-se de ação indenizatória ajuizada contra o Estado do Amapá
objetivando reparação por danos morais e materiais. Assim, como a presente lide
extrapola a mera defesa das prerrogativas institucionais do órgão ministerial, patente
a ilegitimidade passiva do Ministério Público Estadual. Na espécie, apenas a Unidade
Federativa é legítima, não ocorrendo formação de litisconsórcio.
Outro não foi o entendimento do acórdão recorrido. Tem incidência, assim, o
enunciado 83 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça, verbis: “Não se conhece
306
• Direito Processual Civil
do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no
mesmo sentido da decisão recorrida”.
Por fim, verifico que a tese de violação do art. 186 do Código Civil Brasileiro não
enseja conhecimento. O recorrente afirma ser incabível indenização por dano moral
pelo fato de constar o benefício do sursis na certidão de antecedentes criminais,
exigida pelo Ministério Público para nomeação ao cargo para o qual o recorrido foi
aprovado em concurso público, uma vez que o episódio causou-lhe apenas meros
incômodos e aborrecimentos.
Por sua vez, o Tribunal a quo consignou:
No pertinente ao mérito, impõe-se realçar, desde logo, o acerto
da sentença na parcela em que concluiu pela obrigação do réu
de indenizar o autor pelos danos morais sofridos em razão dos
equívocos praticados pela Administração Pública Estadual.
[...]
É verdade que o autor, realmente, poderia ter perseguido
a retificação da certidão criminal antes de entregá-la ao
Setor Administrativo do Ministério Público. Todavia, essa
particularidade não exime a administração Pública de se
responsabilizar pelo equivocado proceder de seus agentes,
cujas condutas foram de indiscutível eficiência na provocação
de abalo psicológico à pessoa do autor. Primeiro, em razão
do evidente constrangimento decorrente do fato da certidão
criminal haver tornado pública informação que, a despeito
de verdadeira, deveria permanecer em sigilo, conforme
expressa previsão legal. Segundo, pelas agruras e transtornos
experimentados pelo mesmo nos quase cinco anos em que
buscou ver reconhecido seu sagrado e inconteste direito de
ser nomeado e empossado no cargo para o qual fora aprovado
em certame público.
Por isso, repiso, tenho como incensurável a sentença na parte
em que concluiu pela obrigação do réu em reparar o dano
moral sofrido pelo autor, inclusive no tocante à análise das
circunstâncias e dos fatores influenciáveis no arbitramento
da reparação, onde o ilustre subscritor da sentença se
esmerou, conforme se extrai dos seguintes trechos de sua
fundamentação, que a seguir destaco, aproveitando como
parte da motivação deste voto [...].
Desse modo, é inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca
afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido. Aplicação da
Súmula 7/STJ.
Com essas considerações, nego provimento ao Recurso Especial.
É como voto.
Herman Benjamin •
307
6
Artigo • 311
Jurisprudência • 333
Comentário à Jurisprudência • 335
Direito
Coletivo
6
Artigo
A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE TELEFONIA MÓVEL E
FIXA E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL
PLÍNIO LACERDA MARTINS
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
RESUMO: O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) afiança como direito
do consumidor a obtenção de serviços públicos com qualidade. As concessionárias,
operadoras do serviço de telefonia, como fornecedoras do serviço público, são
obrigadas a prestar um serviço de excelência ao consumidor, de forma adequada e
eficiente, buscando atender as necessidades dos consumidores, respeitando a sua
dignidade, sob pena de infringir o CDC. O presente artigo jurídico retrata a aplicação
do Código de Defesa do Consumidor aos serviços de telefonia, destacando as
reclamações do consumidor em razão das inúmeras práticas abusivas desenvolvidas
no mercado de telefonia, relacionados ao serviço de telefonia móvel (SMP), fixa
(STFC) e inclusive de TV a cabo. Este texto destaca que o desafio do presente século
está relacionado à qualidade do serviço de telefonia, abordando a interpretação dos
tribunais em relação ao Direito do consumidor através de demandas submetidas ao
Poder Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: Serviços de telefonia; aplicação CDC; práticas abusivas no
serviço de telefonia; reclamações de consumidores; Resolução Anatel e CDC.
ABSTRACT: The Brazilian Consumer Code disposes that it is a right of the
consumer to have the rendering of high quality public services. The grantees and
the network operators, as providers of public services have the duty of rendering
high quality service that meet the need of their consumers, in an adequate, efficient
way. The present juridical article deals with the enforcement of the Consumers Code
concerning telephone services, by pointing out the complaints of consumers due to
the many abusive practices developed in the telephone service market and related
to the rendering of cell phone services (SMP), fixed telephone services (STFC)
and cable TV services. The article emphasizes that the challenge of the present
century is related to the quality of the telephone service rendered and it analyses the
interpretation of Brazilian courts.
Plínio Lacerda Martins •
311
KEY WORDS: Telephone services; enforcement of the Consumer Code; abusive
practices in the rendering of telephone services; complaints of consumers; Resolution
of the Brazilian National Agency of Telecommunications (Anatel); Consumer Code.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve histórico. 3.Conceito. 4. Reclamações do serviço
de telefonia. 5. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao serviço de
telefonia. 6. Práticas abusivas no serviço de telefonia fixa. 7. Práticas abusivas no
serviço de telefonia móvel (SMP). 8. Práticas abusivas no serviço de tv a cabo. 9.
Referências bibliográficas.
1. Introdução
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informa que o Brasil já conta com
mais de 125 milhões de assinantes no serviço celular, denominado serviço móvel
pessoal (SMP), sendo que 80% são pré-pagos. Nos últimos meses, o Brasil ganhou
cerca de 24 milhões de novos assinantes, representando 23% de crescimento; no
entanto, esse crescimento não foi acompanhado de estrutura suficiente.
A cada minuto, verifica-se que os direitos do consumidor são desrespeitados nos
vários setores do mercado. Não obstante a tecnologia de ponta implementada
pelas operadoras do serviço telefônico, o consumidor continua sendo mal atendido,
inclusive nos chamados SACs – Serviços de Atendimento ao Consumidor pelo
telefone.
O grande desafio do presente século está relacionado à qualidade do serviço de
telefonia móvel e fixo. Nesse sentido, foi editado o Decreto Federal nº 6.523/2008,1
conhecido como “lei do SAC”, traçando normas relativas ao atendimento do
consumidor, em atenção à teoria da qualidade prevista na norma consumerista.
É cediço que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) erigiu de comando
constitucional, em busca do equilíbrio contratual entre fornecedor e consumidor, com
a missão de combater os inúmeros abusos praticados no mercado de consumo.
Ressalta-se que a lei do consumidor prevê que a Política Nacional das Relações
de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores,
o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo, atendidos, entre outros princípios, a melhoria
dos serviços públicos.2
Decreto nº 6.523 da Presidência da República, de 31 de julho de 2008, que entrou em vigor em 1º de
dezembro de 2008, complementado pela Portaria nº 2.014 do Ministério da Justiça, de 13 de outubro
de 2008 , estabelecendo o tempo máximo de atendimento. Ver nesse sentido também a Portaria 49 da
Secretaria de Direito Econômico, de 12 de março de 2009, que considera abusiva a recusa da entrega da
gravação das chamadas efetuadas para o serviço de atendimento ao consumidor.
2 Lei nº 8.078/90, art. 4º, VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos;
1 312
• Direito Coletivo
Em modo consoante, dispõe o art. 6º, X, do CDC como direito básico do consumidor:
“Art. 6º São direitos do consumidor: [...] X – a adequada e eficaz prestação dos
serviços públicos em geral”.
Registra-se, ainda, que o CDC, no art. 22, estabelece que “Os órgãos públicos, por si
ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros
e, quanto aos essenciais, contínuos.” (grifo nosso).
Assim, resta estampada a conclusão de que as concessionárias, operadoras
do serviço de telefonia móvel ou fixo, como fornecedoras do serviço público, são
obrigadas a prestar um serviço de excelência ao consumidor, vale dizer, possuem
um dever jurídico imposto pela lei do consumidor; mutatis mutandis, o consumidor
possui o direito subjetivo de obter a qualidade do serviço de telefonia, como um
serviço público essencial no mercado de consumo, devendo ser prestado de forma
adequada, eficiente, que busque atender as necessidades dos consumidores,
respeitando à sua dignidade, sob pena de infringir a norma de ordem pública e, ser
responsabilizado pelo dano causado ao consumidor.
O trabalho desenvolvido é fincado na Lei nº 9.472/97 – Lei Geral de Telecomunicações
(LGT) –, na Lei nº 8.977/85 – que regula o serviço de TV a cabo – e nas seguintes
resoluções da Anatel:
a) Resolução nº 477/2007 (serviço móvel pessoal – SMP);
b) Resolução nº 85/98 (alterada pela Resolução nº 426/2005) que regula o serviço
de telefonia fixa (STFC);
c) Resolução nº 460/2007 (portabilidade);
d) Resolução nº 488/2007 (que regula a TV por assinatura).
2. Breve histórico do serviço de telefonia no Brasil
Raquel Dias da Silveira leciona que, em 1939, a Companhia Telefônica Brasileira
(CTB) vinha conseguindo um atendimento razoável da demanda, “[...] só na cidade
do Rio de Janeiro já possuía instalados quase cem mil telefones, atingindo, em média,
5,81 telefones para cada 100 habitantes.” (SILVEIRA, 2003, p. 85), sendo que as
ligações interurbanas eram feitas via telefonista, com alto custo para o assinante.
A Constituição Federal de 1946 estabeleceu a pluralidade de competências para
a exploração da telefonia, dispondo como competência do Município a exploração
da telefonia local; do Estado, a telefonia intermunicipal; da União, a telefonia
interestadual e internacional.
O Código Brasileiro de Telecomunicações foi editado em 1962, surgindo, em 1965, a
Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel).
Plínio Lacerda Martins •
313
No ano de 1967, a Constituição Brasileira atribuiu à União competência exclusiva
para exploração dos serviços telefônicos, surgindo os benefícios do serviço de
Discagem Direta Internacional (DDI), sem telefonista, através da Telebras em 1972
e, em 1988, a Constituição da República atribuiu à União o monopólio federal da
exploração serviço de telefonia.
A Emenda Constitucional nº 8, editada em 1995, cessa o regime do monopólio com
exclusividade de concessão empresas estatais, estabelecendo a competição para
empresas privadas.
Em 1997, surge a Lei nº 9.472, denominada Lei Geral de Telecomunicações (GT),
com a finalidade de regular o serviço de telefonia fixa e móvel.
Com a flexibilização do monopólio estatal em 1998, foi inaugurada a privatização da
banda “B” de telefonia celular, oportunidade do lançamento da Resolução nº 85, com
tratamento específico para o serviço telefônico fixo comutativo (STFC).
No ano 2002, é criada a Resolução nº 316, regulando o serviço de telefonia celular
(SMP) e reafirmando a aplicação do CDC.
Em 2005, é editada a Resolução nº 426 para STFC, revogando, assim, a Resolução
nº 85 e, nos anos seguintes, são editadas a Resolução nº 488 (regulando o serviço
de TV por assinatura), a Resolução nº 460, implementando a portabilidade nas
prestadoras do STFC e do SMP (ano 2007) e a Resolução nº 477 para SMP,
derrogando, assim, a Resolução nº 316 (2008).
3. Conceito
O serviço de telefonia está relacionado à definição do que seja telecomunicação. A
Lei Geral de Telecomunicações, em seu art. 60, § 1º, define a telecomunicação como
sendo a “[...] transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios
ópticos ou qualquer outro processo eletromagnmético, de símbolos, caracteres,
sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza” concluindo
como conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicações.
Floriano Azevedo Marques Neto (2000) leciona que o serviço de telecomunicações
consiste em um transporte de coisas não físicas (dados, sinais, imagens, etc.) por
alguns meios que dão suporte a esta utilidade (fio, meio eletromagnético, ótico). A
definição é aberta e abrangente, devido ao fato de ser impossível fixar o conceito de
telecomunicações.
No escólio de Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (2008, p. 43), na definição
de telecomunicação, há três elementos distintos: um que trata do conteúdo ou
objeto da telecomunicação (símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons
ou informações de qualquer natureza); outro que trata do meio, ou forma, pelo qual
transita este conteúdo (por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro
314
• Direito Coletivo
processo eletromagnmético) e o terceiro que trata da definição do tipo de trânsito
(transmissão, emissão ou recepção).
Consigna-se que, em sede doutrinária, o tratamento jurídico do serviço de telefonia
é definido como sendo um espectro de radiodifusão, reconhecido como um bem
público administrado pela Agência Nacional de Telefonia (Anatel). É de conhecimento
notório que o Código Civil divide os bens públicos em bem dominical (que constitui
o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público), bem de uso comum do povo
(como os rios, estradas, ruas, praças) e bem de uso especial, que são aqueles
destinados a serviço da União, enquadrando o espectro de radiofreqüência com
bem de uso especial destinado à prestação do serviço de telecomunicações de
titularidade da União (vide art. 99 do Código Civil).
4. Reclamações do serviço de telefonia
Na sociedade de consumo, o serviço de telefonia tem sido campeão de reclamações
nos órgãos de defesa do consumidor. Com acerto, é possível afirmar que também
nos juizados especiais cíveis do nosso país os serviços de telefonia dominam as
demandas de ações propostas contras as operadoras do serviço telefônico. São
inúmeras as reclamações formuladas pelos consumidores, importando vício da
qualidade do serviço, práticas abusivas e até o vício de informação por parte da
operadora.
O Procon do Estado de São Paulo chegou até a realizar uma estatística envolvendo
as principais reclamações dos consumidores em face do serviço telefônico móvel.3
Destaca a estatística do Procon/SP que os consumidores não foram informados
pelas operadoras das novas regras do serviço móvel de telefonia, tomando ciência
através do veículo de comunicação, infringindo, assim, o dever de informação ao
consumidor, prejudicando as suas expectativas relacionadas ao serviço de telefonia
celular.
A pesquisa do Procon/SP apurou que 65,4% dos consumidores não tinham
ciência das novas regras do serviço de telefonia móvel que entraram em vigor em
fevereiro de 2008, sendo que, dentre os que tinham conhecimento delas, 76,98%
ficaram sabendo pela imprensa e apenas 5,66% através de comunicado da própria
operadora. A pesquisa registra, ainda, que 79,25% dos consumidores responderam
que acreditam que as mudanças garantem mais direito ao consumidor; todavia,
81,13% não acreditam que haverá uma fiscalização eficiente nesse sentido.
Em relação aos problemas do serviço telefônico, a estatística realça que 54,62%
dos consumidores entrevistados confirmam a ocorrência de problemas após
13/02/2008, data em que as novas regras entraram em vigor, revelando os principais
problemas:
3 Pesquisa do Procon – São Paulo realizada entre 07/04 a 27/04 de 2008 publicada no site do Procon/SP.
Disponível em: <http://www.procon.sp.gov.br/pdf/TEL_MOVEL_2008.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2009.
Plínio Lacerda Martins •
315
a) 22,46% – cobrança de desbloqueio do aparelho;
b) 17,15% – ausência de resposta da operadora (ou resposta não fundamentada);
c) 16,18% – imposição de fidelização e não ressarcimento, na forma e no prazo, de
valor cobrado indevidamente.
5. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao serviço de telefonia
Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos serviços de telefonia, reconhecendo
como autêntica relação de consumo firmada entre a operadora e o consumidor como
destinatário final.
O Ministro do STJ e doutrinador Herman Benjamin afirma em voto declarado:
As concessionárias de telefonia são, para todos os fins,
fornecedoras, e as suas prestações de serviço aos assinantesusuários (rectius, consumidores) caracterizam relação jurídica
de consumo, nos termos do Código de Defesa do Consumidor
- CDC. Os objetivos, princípios, direitos e obrigações previstos
no CDC aplicam-se integralmente aos serviços de telefonia,
fixa ou não.4
No mesmo sentido, o Ministro Jose Delgado afirma que “Infere-se do disposto
nos artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor, que a relação entre a
concessionária de serviço público, considerada como fornecedora e seus usuários é
indubitavelmente de consumo.”5
O art.5º da Lei Geral de Telecomunicações (LGT) estabelece que “Na disciplina das
relações econômicas no setor de telecomunicações observar-se-ão, em especial,
os princípios constitucionais da soberania nacional, função social da propriedade,
liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das
desigualdades regionais e sociais, repressão ao abuso do poder econômico e
continuidade do serviço prestado no regime público”.
A Resolução nº 426/2005 (STFC) da Anatel, que regula os serviços de telefonia
fixa, dispõe a aplicação do CDC: “Art. 78. Aplicam-se ao contrato de prestação de
STFC as regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8.078, de 1990, e
suas alterações, salvo hipótese de ser a norma regulamentar mais benéfica ao
consumidor”.6
4 O Ministro Herman Benjamin expressou posicionamento diverso do entendimento do STJ em seu voto
vencido fundamentando que a “[...] telefonia fixa residencial é típico contrato de consumo, na forma estipulada pelo Código de Defesa do Consumidor: há um consumidor-destinatário final (art. 2°, caput), há
um fornecedor (art. 3°, caput) e há um serviço de consumo (art. 3°, § 2°). Recurso Especial nº 1.006.892
– MG (2007/0271242-4), jul. 04.03.2008.
5 STJ. Recurso Especial nº 1.018.719 – MT (2007/0305667-8) Relator – Ministro José Delgado.
6 No mesmo sentido, a Resolução nº 85/98, no art. 51: “Aplicam-se ao contrato de prestação de STFC, no
316
• Direito Coletivo
Na mesma linha de pensamento, estabelece a Resolução nº 477/2007, que regula o
serviço móvel, estabelecendo a aplicação do CDC nos serviços de telefonia celular:
“Art. 9º Os direitos e deveres previstos neste Regulamento não excluem outros
previstos na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, na regulamentação aplicável
e nos contratos de prestação firmados com os Usuários do SMP”.
Mascarenhas (2008, p. 69) ensina que há distinção entre usuário e consumidor
do serviço de telecomunicações. Usuário do serviço de telecomunicações é todo
aquele que, de qualquer maneira, com ou sem contrato formal com uma operadora,
utiliza-se de um serviço de telecomunicações, enquanto consumidor do serviço
de telecomunicações é todo o usuário que utiliza os serviços na qualidade de
“destinatário final”, nos termos do art. 2º do CDC.
Fato curioso conteve o julgamento de uma empresa, provedora de acesso à internet,
que reclamava aplicação do Código do Consumidor, em face de uma operadora
de serviço telefônico, julgamento no qual era indagado se a empresa poderia ser
reconhecida como consumidora (trata-se de consumo ou insumo?).
O STJ dirimiu a controvérsia no aresto da lavra do Ministro Jorge Scartezzini,
afiançando que a empresa pode ser considerada consumidora, desde que seja
destinatária final. Inexiste relação de consumo quando a empresa é “consumidora
intermediária”.7
O Código de Defesa do Consumidor vem sendo aplicado amplamente nas demandas
entre consumidor e operadoras/comerciantes de telefonia, como, por exemplo, o
princípio da vinculação da oferta publicitária nas vendas de aparelhos telefônicos.
Registra o Tribunal de Justiça carioca o julgamento de uma oferta denominada
“Promoção do Dia dos Pais do ano de 2006”, através de anúncio veiculado em revista
que oferece telefone celular no plano pré-pago por determinado preço, quando, na
verdade, ocorreu um equívoco no tocante à modalidade do plano, que seria relativa
ao pós-pago. O consumidor resta impedido pela operadora de telefonia de adquirir
o telefone pelo preço veiculado. O Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação dos
arts. 30 e 35 do CDC, em decorrência da responsabilidade do risco-proveito do
empreendimento.8
Outra questão que impõe a aplicação do CDC é a da multa contratual. O STJ
reconheceu a aplicação da multa de 2% em vez de 10%, na forma do art. 52, § 1º, do
CDC, aos contratos de telefonia envolvendo o inadimplemento do consumidor, muito
embora o contrato não envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento.
Consigna o decisum do STJ, in verbis:
que couber, as regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 1990.”
7 STJ Resp 660026/ RJ (2004/0073295-7) - Relator Ministro Jorge Scartezzini – Quarta Turma jul.
03/05/2005.
8 TJRJ Apelação Cível n.2007.001.66114 - 18ª CC. Des. Cristina Tereza Gaulia – julg..08/01/08.
Plínio Lacerda Martins •
317
Aplica-se o disposto no art. 52, § 1º, do CDC (Lei n. 8.078/1990)
aos contratos de prestação de serviços de telefonia, uma vez
que há relação de consumo, logo incidirá o percentual de 2%
em decorrência de atraso no pagamento pela prestação dos
serviços telefônicos. A Portaria n. 127/1989 do Ministério das
Comunicações, a qual estabeleceu multa de 10% a ser cobrada
pelo inadimplemento de contas telefônicas, não pode sobreporse a uma lei ordinária, de interesse público e hierarquicamente
superior àquela. Assim, a Turma, ao prosseguir o julgamento,
negou provimento ao recurso.9
Finalizando, é direito básico do consumidor o acesso à informação do serviço
telefônico em atenção ao princípio da transparência máxima, previsto no art. 6º,
III, do CDC, não podendo o usuário estar obrigado ao pagamento do que não lhe
foi previamente informado, conforme disposto no art. 46 do CDC: “Os contratos
que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes
for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os
respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu
sentido e alcance.” A Lei nº 9.472/97, Lei Geral das Telecomunicações, estabelece,
no art. 3º, incisos IV e IX, que:
Art. 3º O usuário de serviços de telecomunicações tem direito:
IV - à informação adequada sobre as condições de prestação
de serviços, suas tarifas e preços.
[...]
IX - à reparação dos danos causados pela violação de seus
direitos.
6. Práticas abusivas no serviço de telefonia fixa (STFC)
São inúmeras as práticas abusivas no mercado de telefonia. Uma das práticas
rotineiras envolve a “venda casada”, repelida pela norma consumerista no art. 39, I,
do CDC. Assinala o CDC que é vedado ao fornecedor de serviço “[...] condicionar o
fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço
[...]”.
No mesmo entendimento, a Resolução nº 426/2005 da Anatel, que regula o serviço
de telefonia fixa, dispõe no art. 11, inciso XVIII, o direito do usuário de “[...] não
ser obrigado ou induzido a consumir serviços ou a adquirir bens ou equipamentos
que não sejam de seu interesse, bem como a não ser compelido a se submeter à
condição para recebimento do serviço, nos termos deste Regulamento”.
A prática da venda casada também é repelida pela Resolução nº 477/2007 que
regula o serviço da telefonia móvel (SMP), no art. 6º, XVIII, e art. 29.10
STJ REsp 436.224 - DF. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julg. em 18/12/2007.
Dispõe o art. 6º da Resolução nº 477/2007, no inciso XVIII: “[...] não ser obrigado a consumir serviços
9 10 318
• Direito Coletivo
A despeito da vedação, há registro de práticas de venda casada, como por exemplo,
a Ação Civil Pública proposta pelo O Ministério Público Federal com o intuito de
impedir que a empresa telefônica impusesse, ao usuário final, a contratação de um
provedor de acesso.11
A ação civil pública foi motivada pelos resultados de investigações a respeito de
venda casada, apurando que a TELESP/Telefônica exigia para se contratar o seu
serviço de acesso rápido de transmissão de dados (tecnologia ADSL, instalada na
própria linha telefônica do assinante – Speedy – Banda larga), a contratação de
serviço de acesso/conexão à internet (PCSI), por meio de um provedor. Na sentença,
o juiz impôs à empresa telefônica que não exigisse essa intermediação. O serviço de
acesso deveria ser oferecido diretamente por ela ao usuário final.12
Uma das práticas abusivas constatadas no nosso mercado de consumo pelo
serviço de telefonia é a ausência da cópia do contrato. Muito embora a Resolução
nº 426/2005 da Anatel consagre a cópia do contrato como direito do usuário, esse
direito é descumprido por parte das operadoras de telefonia. Dispõe a Resolução nº
426/2005, em seu art.11, inciso XXIII, que é direito do usuário “[...] receber cópia do
contrato de prestação de serviço, bem como do plano de serviço contratado, sem
qualquer ônus e independentemente de solicitação”. (grifo nosso).
Outro direito do consumidor que não é respeitado pelas operadoras de telefonia
é o de obter uma resposta eficiente a sua reclamação, fato esse registrado pelos
Procons como rotineiro, embora a Resolução nº 426/2005 prescreva como direito
do usuário o direito de “[...] de resposta eficiente e pronta às suas reclamações e
correspondências, pela Prestadora” (art. 11, inciso XII, Resolução nº 426/2005). O
mesmo se dá em relação ao direito do consumidor de obter atendimento pessoal
“[...] que lhe permita efetuar interação relativa à prestação do STFC, nos termos
da regulamentação, sendo vedada à substituição do atendimento pessoal pelo
oferecimento de auto-atendimento por telefone, correio eletrônico ou outras formas
similares” (art. 11, inciso XXV, Resolução nº 426/2005).
A cobrança da taxa de religação é outra prática considerada abusiva no serviço de
telefonia. Parafraseando o Ministro Jose Delgado, a taxa de religação é abusiva,
ou a adquirir bens ou equipamentos que não sejam de seu interesse”; O art. 29, da mesma Resolução
estabelece: “É vedado à prestadora condicionar a oferta do SMP ao consumo casado de qualquer outro
serviço ou facilidade, prestado por seu intermédio ou de suas coligadas, controladas ou controladora, ou
oferecer vantagens ao Usuário em virtude da fruição de serviços adicionais ao SMP, ainda que prestados
por terceiros.”
11 Nesse sentido, ver ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal
da 3ª Vara de Bauru. Processo 2007.61.08.010584-8.
12 Idem em relação ao tempo do chamado “Plano de Expansão” da Telerj, pois o consumidor pretendia
obter a prestação do serviço de telefonia, não a de subscrever ações. Ocorria verdadeira venda casada,
prática legalmente vedada pelo superveniente Código de Defesa do Consumidor.TJRJ. Agravo de Instrumento nº. 2008.002.12063 19 CC. Rel. Des. Denise Levy Tredler.
Plínio Lacerda Martins •
319
“[...] tendo o usuário os encargos legais para suprir a mora, não pode ser cobrada
a taxa de religação, por configurar-se esta como bis in idem contratual, de caráter
punitivo”.13 Nesse sentido, foi ajuizada ação civil pública em face da concessionária
de outro serviço público também essencial, como o do fornecimento de água
e esgoto, pleiteando a suspensão da cobrança da taxa de religação em caso de
inadimplemento, obtendo sentença favorável ao pedido, determinando a não
cobrança de serviço de religação e “[...] a devolução dos valores pagos, em dobro,
pelo período de até cinco anos antes da propositura da ação”.14
É freqüente a inclusão do nome do consumidor nos cadastros de restrição de
crédito, por débitos no serviço telefônico. Chegou-se inclusive a editar lei proibindo
as empresas prestadoras de serviços públicos de inscrever, nos bancos de
dados dos órgãos de proteção ao crédito, os usuários inadimplentes. No entanto,
o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou a
inconstitucionalidade da Lei estadual.15
Todavia, há abusividade no registro de lançamentos indevidos, como na hipótese
de falha na entrega da conta no endereço contratado. Esclarece o Ministro Sálvio
de Figueiredo que a inclusão do assinante nos cadastros de inadimplentes, que se
originou da negligência da prestadora no envio correto da fatura – inclusive em não
diligenciar por localizar o devedor, cujo endereço poderia ser obtido até mesmo por
telefone – , é uma prática abusiva.16
Também a inclusão indevida do nome do autor nos cadastros restritivos de crédito, sob
alegação de débito relativo à multa rescisória por determinado período envolvendo a
cláusula de fidelidade é outra prática abusiva.17
A prestadora de serviços de telefonia fixa de longa distância responde pela inclusão
indevida do nome do consumidor em órgão restritivo de crédito, por dívida referente
STJ Recurso Especial nº 1.018.719 - MT (2007/0305667-8) Relator – Ministro José Delgado.
TJ/RJ Apelação Cível 2006.001.39533. Relator Des. Gilberto Rego – 6 CC. Julg: 07/03/2007.
15 Lei nº 3.762/2002 do Estado do Rio de Janeiro, que proibia as empresas prestadoras de serviços públicos de inscrever nos bancos de dados dos órgãos de proteção ao crédito os usuários inadimplentes
residentes ou domiciliados no Estado do Rio de Janeiro. O TJRJ. Acolheu o voto do desembargador
Sylvio Capanema, que considerou um incentivo à inadimplência a não inclusão do devedor nos órgãos de
proteção ao crédito, reconhecendo a competência das Agências Reguladoras para organizar os respectivos
sistemas. O fundamento da inconstitucionalidade consiste na subtração dos agentes econômicos a informação sobre inadimplência, confrontando com a garantia constitucional do direito à informação, consubstanciada nos incisos XIV e XXXIII do art. 5º da CF invasão da seara de regulamentação específica
das atividades de competência da Agência Reguladora (Anatel), cujas normas admitem, expressamente, o
registro das inadimplências de serviços de telefonia nos cadastros de proteção ao crédito e ainda, invasão
a competência privativa da União sobre telecomunicações (Lei Federal 9.472/97).
16 STJ. Recurso Especial n° 327.420 – DF (2001/0065017-4) – Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ: 04/02/2002.
17 Nesse sentido, ver acórdão TJRJ Apelação cível n. 2008.001.09044 – 19 CC. Des. Denise Levy Tredler
- Julg: 25/03/2008.
13 14 320
• Direito Coletivo
à “má prestação de serviços” da operadora local no repasse das informações à
empresa central, alegando suposto uso de serviços telefônicos que o consumidor
não solicitou.18
A Resolução nº 426/2005 da Anatel estabelece, no art. 11, inciso XXIV, o direito do
usuário “à comunicação prévia da inclusão do nome do assinante em cadastros,
bancos de dados, fichas ou registros de inadimplentes, condicionado à manutenção
de seu cadastro atualizado junto à prestadora”, descrevendo a Resolução nº 477/2007
(SMP), no art. 51, § 3º, que é “vedada a inclusão de registro de débito do Usuário em
sistemas de proteção ao crédito antes da rescisão do Contrato de Prestação do SMP
prevista no inciso III deste artigo, podendo a Prestadora, após rescindido o contrato
de prestação de serviço, por inadimplência, incluir o registro de débito em sistemas
de proteção ao crédito, desde que notifique ao Usuário por escrito com antecedência
de 15 (quinze) dias”.
A cobrança dos débitos telefônicos pelas operadoras é outra prática rotineira
contrária ao ordenamento jurídico. O CDC estabelece que “Na cobrança de débitos,
o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”. (art. 42 do CDC.).
A Resolução nº 426/2005 estabelece o método da cobrança para que o consumidor
não seja exposto a qualquer tipo de constrangimento. O art. 93 da resolução em
comento afirma que a “prestadora deve apresentar a cobrança ao assinante no
prazo máximo de 60 (sessenta), 90 (noventa) e 150 (cento e cinqüenta) dias, para
as modalidades local, longa distância nacional e longa distância internacional,
respectivamente, contados a partir da efetiva prestação do serviço”, sendo que a
“cobrança de serviço prestado após os prazos estabelecidos neste artigo deve ocorrer
em fatura separada, sem acréscimo de encargos, e mediante negociação prévia
entre a prestadora e o assinante”(§ 1º, grifo nosso). Na negociação, a prestadora
deve parcelar os valores, no mínimo, pelo número de meses correspondentes ao
período de atraso na apresentação da cobrança (§ 2º), fato esse não obedecido
pelas operadoras, considerado como autêntica prática abusiva.
Finaliza o art. 93, § 3º, afirmando que a prestadora não pode suspender a prestação
do serviço ou impor qualquer restrição ao usuário em virtude de débitos apresentados
a ele fora dos prazos estabelecidos neste artigo, fato este também ignorado pelas
operadoras de telefonia.
Na repetição do indébito, a Resolução nº 426/2005 da Anatel optou pela concepção
objetiva ao invés da concepção subjetiva. A nosso ver, agiu com acerto a Resolução
da Anatel, atendendo, assim, a interpretação teleológica do CDC, muito embora a
jurisprudência vem adotando a concepção subjetiva, com fundamento inclusive na
Súmula 159 do STF.19
18 19 Ver aresto - STJ. REsp 790.992-RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2007.
Súmula 159 do STF “cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1531 do
Plínio Lacerda Martins •
321
O art. 42 do CDC estabelece que “O consumidor cobrado em quantia indevida tem
direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro ao que pagou em excesso,
acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”.
Na lição da doutrinadora gaúcha Cláudia Lima Marques, a interpretação objetiva
significa que engano justificável é o fator externo, ou seja, caso fortuito externo, não
podendo a empresa se eximir da responsabilidade pela cobrança indevida, alegando
ausência da culpa, já que a responsabilidade é objetiva.20
Da leitura da Resolução nº 426/2005, conclui-se que não há hipótese de “engano
justificável” a impedir a repetição do indébito a favor do consumidor, não constando na
referida resolução essa expressão, em atenção à teoria da qualidade, estabelecendo
o art. 98, in verbis: “A devolução de valores cobrados indevidamente, deve ocorrer no
próximo documento de cobrança ou outro meio indicado pelo usuário”, assegurando
ainda que o “usuário que efetuar pagamento de quantia cobrada indevidamente tem
direito à devolução de valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido
dos mesmos encargos aplicados pela prestadora aos valores pagos em atraso”
(Parágrafo único, grifo nosso).
A Resolução nº 477/2007, que regula o serviço móvel pessoal, também consagra a
concepção objetiva, ao consignar que a empresa de telefonia que cobra indevidamente
o valor deverá devolver em dobro em até 30 dias, após a contestação da cobrança
indevida (art. 71), prescrevendo que “os valores cobrados indevidamente devem
ser devolvidos em valor igual ao dobro do que foi pago em excesso, acrescidos de
correção monetária e juros legais (art.71, parágrafo único, grifo nosso).
Entre as inúmeras práticas abusivas do serviço de telefonia, realçamos a questão
da assinatura básica. A cobrança mensal de assinatura básica está amparada pelo
art. 93, VII, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), desde que
prevista no edital e no contrato de concessão.
A jurisprudência do STJ afirma que a “[...] tarifa mensal de assinatura básica,
incluindo o direito do consumidor a uma franquia de 90 pulsos, além de ser legal e
contratual, justifica-se pela necessidade de a concessionária manter disponibilizado,
de modo contínuo e ininterrupto, o serviço de telefonia ao assinante, o que lhe exige
dispêndios financeiros para garantir sua eficiência”.21 O STJ chegou inclusive a editar
a Súmula nº 356, que afiança: “É legítima a cobrança a tarifa básica pelo uso dos
serviços de telefonia fixa”.
Contudo, sustentamos o entendimento de que a assinatura básica é uma prática
abusiva, data venia da inteligência do STJ. Com habitual maestria, Herman
Código Civil”.
20 Recomendamos a leitura de Almeida (2005).
21 STJ entende legítima a cobrança de assinatura básica. Resp 911.802-RS, Rel. Min. José Delgado, julg.
24/10/2007.
322
• Direito Coletivo
Benjamin assevera que a assinatura básica viola o art. 39, I, do CDC, ao obrigar
o usuário a adquirir uma franquia de pulsos (a consumir), independentemente do
uso efetivo, condicionando, assim, o fornecimento do serviço, sem justa causa, a
limites quantitativos; infringe o CDC, pois constitui vantagem exagerada, uma vez
que “ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence” (art.
51, § 1º, I), notadamente os princípios do amplo acesso ao serviço, da garantia
de tarifas e preços razoáveis (art. 2º, I, da LGT) e da vedação da discriminação
(art. 3º, III, da LGT); mostra-se excessivamente onerosa (art. 51, § 1º, III, do CDC),
ao impor o pagamento de quantia considerável (cerca de 10% do salário-mínimo
só pela oferta do serviço) ao assinante que utiliza muito pouco o serviço público;
importa desequilíbrio na relação contratual (art. 51, § 1º, II, do CDC), já que, ao
mesmo tempo em que onera excessivamente o usuário, proporciona arrecadação
extraordinária às concessionárias (cerca de treze bilhões de reais por ano, conforme
consta da página eletrônica da Anatel).22
7. Práticas abusivas no serviço de telefonia móvel (SMP)
A publicidade enganosa é uma rotina comercializada livremente no mercado de
telefonia celular. Em Minas Gerais, o Ministério Público Mineiro chegou a ajuizar
Ação Coletiva com objetivo de repelir a prática abusiva relacionada a uma empresa
que veiculou no em jornal de grande circulação no Estado de Minas Gerais o seguinte
anúncio: “Deu a Louca no Ricardão”. O anúncio informava aos leitores que seriam
vendidos pela empresa celulares por R$ 29, 90, a saber, os aparelhos Nokia 2160 e
5120, fato esse que não ocorreu.23
Uma das práticas também rotineiras efetivadas pelas operadoras de telefonia
celular envolve o envio de mensagens não solicitadas para celulares, pelas quais o
consumidor paga quando tem de acessar sua caixa postal para ouvi-las; ou mesmo
publicidades veiculadas ao consumidor que aguarda na linha telefônica o atendimento
de suas solicitações, sendo vedado pelo art. 33, parágrafo único, do CDC.24
Outra prática abusiva executada pelas operadoras do serviço de telefonia móvel é
a exigência de boletim de ocorrência policial para proceder ao bloqueio de extravio
do aparelho celular. O consumidor que extraviou o aparelho celular, aflito com a
perda do aparelho, busca em sua operadora o pronto serviço do bloqueio, sendo
No voto proferido pelo Min. Benjamim, consta ainda que a cobrança da assinatura básica é ilegal, por
não estar prevista e autorizada pela LGT, havendo in casu afronta ao princípio da legalidade por parte
da Anatel ao prevê-la em resolução, fato este que não concordamos, em razão do art. 93, VII, da Lei nº
9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), autorizando, desde que prevista no edital e no contrato
de concessão. Recurso Especial nº 1.006.892 - MG (2007/0271242-4), jul. 04.03.2008.
23 Ação Civil Coletiva movida pelo Ministério Público do Estado De Minas Gerais contra Ricardo
Eletro Divinópolis Ltda, que condenando a empresa a pagar uma indenização de 50 salários mínimos.
TJMG. Apelação cível n° 1.0079.01.011207-0/001 – 11 CC. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant julg. 07.
06.2006.
24 Estabelece o art.33, parágrafo único, do CDC: “É proibida a publicidade de bens e serviços por telefone, quando a chamada for onerosa ao consumidor que origina”.
22 Plínio Lacerda Martins •
323
surpreendido com a prática da exigência da confecção do boletim de ocorrência
policial, sob pena de não ver concretizado o seu pedido de bloqueio.
Tal prática é considerada abusiva, motivando o Ministério Público a propor ação
civil pública contra operadoras em face da exigência, pois o extravio do aparelho
celular não constitui fato que enseja atuação policial a justificar a lavratura de boletim
de ocorrência, sendo irrazoável, com onerosidade excessiva para o consumidor,
ofendendo inclusive a sua boa-fé. O fato é completamente estranho à atividade
policial, tornando impertinente a lavratura de ocorrência na Polícia, caracterizando
prática de conduta abusiva, prevista no art. 39, V, do Código de Defesa do Consumidor,
mostrando-se excessivamente onerosa ao consumidor. 25
Outro abuso confirmado no mercado de consumo envolve a cláusula de fidelidade
prevista no contrato de adesão firmada com o consumidor.
Lamentavelmente, a Resolução nº 477/2007, que regula o serviço de telefonia
móvel, não extinguiu a “cláusula de fidelidade”, deixando de reconhecer como abuso
praticado pelas operadoras, limitando-se apenas a regulamentá-la.
A Resolução da Anatel consigna que a prestadora do serviço móvel pessoal “[...]
poderá oferecer benefícios aos seus Usuários e, em contrapartida, exigir que os
mesmos permaneçam vinculados à prestadora por um prazo mínimo”. Dispõe o art.
40 da Resolução nº 477/2007 que “A prestadora do Serviço Móvel Pessoal poderá
oferecer benefícios aos seus Usuários e, em contrapartida, exigir que os mesmos
permaneçam vinculados à prestadora por um prazo mínimo”. Os benefícios poderão
ser de dois tipos:
a) Aquisição de Estação Móvel, em que o preço cobrado pelo aparelho terá um valor
abaixo do que é praticado no mercado; ou
b) Pecuniário, em que a prestadora oferece vantagens ao Usuário, em forma de
preços de público mais acessível, durante todo o prazo de permanência (§ 1º).
A jurisprudência vem reconhecendo a legalidade da cláusula de fidelização constante
no contrato de telefonia celular em face do princípio da segurança jurídica do contrato,
considerada como cláusula penal, em razão da desistência do consumidor.
Assevera Letícia Sardas, citando Oswaldo Henrique Freixinho:
[...] analisando a natureza jurídica da multa oriunda da cláusula
de fidelidade, constante do contrato pactuado entre as partes
litigantes, acertadamente concluiu pela inexistência de
abusividade a justificar o acolhimento da pretensão deduzida
em juízo. É que, como cláusula penal, a referida multa nada
Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (Processo 2008.001.014003-1),
em face da operadora TIM, pela exigência de apresentação de Boletim de Ocorrência Policial para bloqueio.
25 324
• Direito Coletivo
mais é do que a pré-fixação dos danos sofridos pela empresa
com, relacionando ao investimento realizado em favor do
cliente, sendo, portanto, perfeitamente válida e eficaz.26
Todavia, as reclamações registradas por consumidores decorrem exatamente
do inadimplemento das operadoras em relação à qualidade do serviço prestado,
configurando quebra de contrato em decorrência do vício de qualidade do serviço,
razão da desistência do contrato pelo consumidor, correspondendo à cláusula de
fidelidade autêntica prisão ao serviço da telefonia.27
Estabelece o art. 51, IV, do CDC que são nulas de plano direito as cláusulas que
estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor
em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
Logo, a cláusula contratual que ofende o princípio da boa-fé objetiva é considerada
nula, pois o consumidor teve sua expectativa frustrada pelo abuso da confiança por
ele depositada.
Há contratos celebrados entre as empresas de telefonia e os usuários que possuem
previsão de um prazo de carência de 12 a 24 meses, dentro do qual a rescisão fica
subordinada ao pagamento de um valor, proporcional ao número de meses faltantes
para o seu término, o qual é cobrado mesmo em caso de roubo ou furto do aparelho
celular. Tendo havido o furto ou roubo do aparelho, o consumidor, que é a vítima, não
contribuiu culposamente para o extravio do aparelho, não sendo justa a cobrança da
“cláusula de fidelidade”.
Considerando que a cláusula penal varia em até 100% do valor total da obrigação,
mostrando-se excessiva para o consumidor, o juiz pode reduzi-la em razão da ofensa
aos princípios da razoabilidade e da boa-fé na relação contratual firmada.
Nesse sentido, foi ajuizada ação para coibir essa prática abusiva, sendo proferida
sentença julgando procedente o pedido, condenando a empresa de telefonia celular
a se abster de cobrar qualquer multa, tarifa, taxa ou valor por resolução de contrato
decorrente de força maior ou caso fortuito, especialmente em hipóteses de roubo
e furto do telefone celular, bem como a reduzir o valor constante da cláusula penal
dos seus contratos para equivalente a 3 meses de franquia; “Não há que se falar
em sanção contratual se não houve inexecução, mas tão somente esvaziamento
material do objeto do contrato, por caso fortuito ou força maior, especialmente no
caso de roubo ou furto comprovado por registro de ocorrência, restando a cobrança
da multa por rescisão ilegal e indevida”.28
Apelação Cível n.º 2008.001.18871 – TJRJ. Rel. Letícia Sardas.
Nesse sentido, ver apelação civil 2008.001.09044, do TJRJ da lavra da Des. Denise Levy Tredler, que
reconheceu a não aplicação da clausula de fidelidade por determinado período, havendo defeito no serviço
e ausência de culpa do consumidor. Aplicação do artigo 408 do Código Civil. Circunstâncias configuradoras de aborrecimento que ultrapassa a barreira da normalidade, atingindo direito da personalidade do
consumidor.
28 TJRJ 15 CC. Apelação cível nº 21.660/07. Rel. Desembargadora Helda Lima Meireles. Também foi
26 27 Plínio Lacerda Martins •
325
A cláusula de fidelidade também é considerada abusiva quando o consumidor requer
o cancelamento do contrato por ausência de sinal. Todavia, o reconhecimento da
abusividade e o conseqüente cancelamento da cláusula somente ocorrem na
Justiça. “Com efeito, revela-se absurda a pretensão das empresas prestadoras de
serviços que incluem nos contratos tal tipo de cláusula, impondo ao consumidor a
permanência injustificada como assinante durante determinado período de tempo,
ainda que o serviço prestado não tenha atendido a contento as expectativas do
contratante, como é o caso da presente hipótese”.29
A Resolução nº 477/2007 da Anatel prescreve em relação à desistência do benefício
que “O Usuário pode se desvincular a qualquer momento do benefício oferecido
pela prestadora”, deixando patente a possibilidade da cobrança da multa rescisória
(art. 40, §7º). Contudo, no caso de vício de qualidade do serviço atribuído à própria
operadora, a Resolução assegura a impossibilidade da cobrança em razão de
descumprimento de obrigação contratual. Entretanto, restam algumas indagações.
O ônus da prova em relação ao vício ou defeito no serviço telefonia é destinado ao
consumidor ou ao fornecedor? Quem possui o ônus da prova? O ônus é ope judicis
ou ope legis?
A própria Resolução nº 477/2007, no § 8º do art. 40, assim responde in verbis:
No caso de desistência dos benefícios por parte do Usuário
antes do prazo final estabelecido no instrumento contratual,
poderá existir multa de rescisão, justa e razoável, devendo ser
proporcional ao tempo restante para o término desse prazo
final, bem como ao valor do benefício oferecido, salvo se a
desistência for solicitada em razão de descumprimento de
obrigação contratual ou legal por parte da Prestadora cabendo
à Prestadora o ônus da prova da não procedência do alegado
pelo Usuário. (grifo nosso).
A Resolução da Anatel conclui, em relação à cláusula de fidelização, que o tempo
máximo para o prazo de permanência é de 12 (doze) meses, devendo a cláusula
contratual ser explícita, de maneira clara e inequívoca, no instrumento próprio
firmado entre a prestadora e o usuário (art. 40, § 9º e § 10).
O oferecimento de produtos por meio de “torpedos” é considerado uma prática abusiva,
pois, sempre que recebe um “torpedo”, o consumidor verifica o seu conteúdo para
conhecer o comunicado que lhe estão enviando. Se o torpedo contiver promoções
e campanhas publicitárias, os consumidores são necessariamente constrangidos a
ajuizada ACP para declarar abusiva a multa cobrada. fixação que deve consistir em um mês de franquia
do plano contratado pelo consumidor, pro rata, não podendo o valor ultrapassar o menor pagamento
mínimo mensal fixado para os planos de serviço pós-pago da tim celular na forma simples, mantidas as
demais condenações (TJRJ. 2005.001.31312 - apelação civel - 16 CC. Des. Siro Darlan de Oliveira – julg.
21/03/2006.
29 TJRJ 1ª CC. Apelação nº 33015/2008 Relator: Desembargador Ernani Klausner.
326
• Direito Coletivo
conhecê-las, mesmo que nelas não tenha qualquer interesse, razão inclusive de
ajuizamento de ação civil pública por parte do Ministério Público.30
Interessante que a própria Resolução da Anatel nº 477/2007 (SMP) estabelece como
direito do usuário o “[...] não recebimento de mensagem de cunho publicitário da
prestadora em sua Estação Móvel, salvo na hipótese de consentimento prévio.”(art.
6º, inciso XXIV).
A dificuldade de cancelamento da linha telefônica é outra prática abusiva apontada
pelos consumidores. Na ação proposta pelo Ministério Público Estadual, consta a
ocorrência de um consumidor que só conseguiu cancelar o serviço após decorridos 5
(cinco) meses, depois de diversas tentativas, o que retrata a dificuldade inadmissível
para o exercício de um direito, mantendo o consumidor vinculado contratualmente à
empresa de telefonia e obrigado ao pagamento das tarifas a empresa.31
As lojas das operadoras de telefonia celular, embora tenham autonomia para realizar
abertura de contas, mudança e transferência de planos, não possuem poderes
para proceder ao cancelamento da linha telefônica, dependendo de autorização
da “operadora central”, obrigando o consumidor a continuar pagando por serviço
pelo qual já manifestou o seu desinteresse. O mesmo acontece nos sites das
operadoras de telefonia celular, que contém ofertas de serviços, inexistindo o ícone
de cancelamento automático do serviço telefônico.
Apesar disso, a Resolução nº 477/2007, no seu art. 23, § 1º, estabelece que o
Contrato de Prestação do SMP pode ser rescindido e “A desativação da Estação
Móvel do Usuário, decorrente da rescisão do Contrato de Prestação do SMP deve
ser efetivada pela prestadora em até 24 (vinte e quatro) horas, a partir da solicitação,
sem ônus para o usuário”, afirmando ainda a Resolução da Anatel, no mesmo artigo,
§ 3º, que “No caso de rescisão a pedido do usuário, a prestadora deve informar
imediatamente número seqüencial de protocolo, com data e hora, que comprove
o pedido e efetuar a rescisão em até 24 (vinte e quatro) horas do recebimento
do pedido, independentemente da existência de débitos”, fato esse que tem sido
ignorado pelas operadoras.
Há também a ocorrência, no mercado de telefonia celular, de situações em que
o pedido de cancelamento só pode ser aceito após a quitação do débito. Sem
embargo, a operadora viola a Resolução da Anatel, que dispõe, no seu art. 23, que o
contrato de prestação do SMP pode ser rescindido a pedido do Usuário, a qualquer
tempo; sendo que, em seu § 9º, diz que “A prestadora não pode efetuar qualquer
cobrança referente a serviços prestados após decorridas 24 (vinte e quatro) horas da
30 Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público em face da TNL PCS S.A (“OI”) TJRJ. Apelação
cível nº 2008.001.196194-0. A Lei Estadual do Rio de Janeiro, nº 4.863/06 prevê que as operadoras de
telefonia celular facultarão aos seus clientes, por ocasião da contratação, a opção de receber ou não “torpedos” referentes a promoções e campanhas publicitárias.
31 Ação civil publica proposta pelo MPE em face da operadora TIM TJRJ. Apelação civil
2008001128078-0.
Plínio Lacerda Martins •
327
solicitação de rescisão, assumindo o ônus de eventuais encargos, inclusive perante
as demais prestadoras de serviços de telecomunicações”, considerando como “[...]
falta grave, punida nos termos da regulamentação, a retenção de qualquer pedido
de rescisão de contrato” (§ 11).
Outro fator de reclamação contra o serviço de telefonia móvel está relacionado à
questão dos celulares “pré-pagos”, envolvendo a estipulação de prazo de validade
para a utilização de créditos na modalidade pré-paga da telefonia celular. A extinção
de prazo de validade de cartões pré-pagos de telefonia móvel demonstra um
desequilíbrio para o consumidor que carece de auxílio.
O Procon chegou a registrar reclamação de consumidores contra prestadoras de
telefonia relativa à revalidação dos créditos vencidos quando o usuário inseria novos
créditos, nos cartões pré-pagos de telefonia móvel. Hodiernamente, esse fato está
superado, em razão da norma da Anatel estabelecendo que os créditos podem
estar sujeitos a prazo de validade, no entanto, “Sempre que o Usuário inserir novos
créditos a saldo existente, a prestadora deverá revalidar a totalidade do saldo de
crédito resultante pelo maior prazo, entre o prazo dos novos créditos inseridos e o
prazo restante do crédito anterior”(art. 62, §3º, da Resolução nº 477), prescrevendo
ainda que “No caso de inserção de novos créditos, antes do prazo previsto para
rescisão do contrato, os créditos não utilizados e com prazo de validade expirado
serão revalidados pelo mesmo prazo dos novos créditos adquiridos” (art. 62, § 4º).
Nos serviços telefônicos “pós-pagos”, a abusividade consiste em não repassar para
os meses subseqüentes os minutos de conversação pagos pelo consumidor e que
não foram efetivamente utilizados, como por exemplo, “plano 180 minutos”, sendo
que o consumidor utilizou somente 80 minutos.
Resta assim configurado o enriquecimento ilícito por parte da operadora de telefonia
celular, ao não repassar para os meses subseqüentes os minutos de conversação
pagos pelo consumidor e que não foram efetivamente utilizados.32
As práticas abusivas envolvem também os fabricantes de aparelhos celulares e as
operadoras de telefonia, consoante inúmeras reclamações sobre aparelhos com suas
funcionalidades bloqueadas, sobretudo com relação aos dispositivos que permitem
que o celular troque informações com outros celulares, computadores, entre outros
aparelhos eletrônicos, mecanismo conhecido como “bluetooth”. A ausência de
informação ao consumidor, vez que o bloqueio do “bluetooth” não foi informado na
oferta do produto, indica a existência de vício do produto por não atender às legítimas
expectativas do consumidor (artigo 18 do CDC).33
32 Foi ajuizada ACP pelo MPE em face da operadora VIVO, sendo pedido julgado procedente, determinando a empresa que cumule os minutos não utilizados pelo consumidor no plano pós-pago, para sua
utilização nos meses subseqüentes. Processo: 2008.001.011524-3 - Cartório da 4ª Vara Empresarial Rio
de Janeiro. Juíza Fernanda Galliza do Amaral. Jul. 30/01/2009. Ver tb. ação coletiva de consumo TJRJ
Apelação civil 2008.001.074012-5
33 Ação proposta contra a operadora VIVO, pelo fato de o fabricante de aparelhos celulares da mar-
328
• Direito Coletivo
A Resolução nº 477, no art. 72, indica que o Usuário deve ser informado sobre os
aspectos relativos às programações incluídas nas facilidades dos Planos de Serviço
e eventuais bloqueios na Estação Móvel ou na Central de Comutação e Controle,
antes de qualquer ato que indique adesão ao plano, devendo ainda ser informado
sobre a faculdade de alteração da programação das facilidades e dos bloqueios,
durante o prazo de carência do Plano de Serviço (§ 1º).
Em relação à cobrança do serviço de telefonia celular, a Resolução da Anatel prevê
a possibilidade em fatura separada, asseverando no dispositivo previsto no art. 45
que “A Prestadora deve apresentar ao Usuário a cobrança dos valores relativos aos
serviços prestados no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da
efetiva prestação do serviço”, sendo que a cobrança em prazo superior deve ocorrer
em fatura separada, sem acréscimo de encargos, e a forma de pagamento ser
objeto de negociação prévia entre a prestadora e o Usuário (§1º), devendo ofertar a
possibilidade de parcelamento dos valores pelo número de meses correspondentes
ao período de atraso na apresentação da cobrança (§2º), fato este não verificado,
razão das inúmeras reclamações nos órgãos de proteção ao consumidor.
8. Práticas abusivas no serviço de TV a cabo
O serviço de TV a cabo, conhecido como serviço de TV por assinatura, é um serviço
de telecomunicações, ainda que regido pela Lei nº 8.977/95, submete-se à regulação
da Agência de Telecomunicação.34 A própria Lei nº 8.977/95, no artigo 2º, define
que “O serviço de TV a CABO é o serviço de telecomunicações que consiste na
distribuição de sinais de vídeo e/ou áudio, a assinantes, mediante transporte por
meios físicos”.
A Anatel informa que atualmente existem, no País, quatro serviços diferentes de TV
por assinatura, regulamentados em função da tecnologia utilizada em sua operação:
Serviço de TV a Cabo, Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanais
(MMDS), Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura
via Satélite (DTH) e o Serviço Especial de TV por Assinatura (TVA).35
Uma das práticas abusivas constatadas no serviço de TV por assinatura envolve
a questão do ponto extra. Em Minas Gerais, o Procon estadual chegou a editar
a Nota Técnica nº 07/2005, reconhecendo como prática abusiva a cobrança por
ponto adicional de TV a cabo na residência do assinante, em virtude do princípio do
equilíbrio das relações de consumo.36
ca LG, operadas pela VIVO, encontravam-se com suas funcionalidades bloqueadas. A LG sustenta que
o bloqueio foi determinado pela operadora VIVO para restringir o acesso a conteúdos exclusivamente
fornecidos por esta, enquanto a VIVO afirma que a prática visa combater a pirataria. O bloqueio do
“bluetooth” deveria ser realizado de forma onerosa através da assistência técnica.TJRJ. Apelação civil.
Processo 2007.001.244703-4.
34 Conforme ensinamentos de Mascarenhas (2008, p. 47).
35 Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do#>.
36 Nota Técnica nº 07 do Procon Estadual de Minas Gerais traduzindo a ementa: em virtude do princípio
Plínio Lacerda Martins •
329
Inicialmente, a Norma Técnica define o que representa a terminologia “ponto extra”,
em diferenciação com o que se denomina “ponto escravo”, terminologia esta adotada
pelas concessionárias.37
A terminologia “ponto escravo” é empregada para definir um ponto de recepção do
sinal de radiodifusão que não seja autônomo, pois não existe possibilidade de se
alterar a programação através dele, sendo totalmente dependente do ponto principal.
Essa terminologia é utilizada para o ponto advindo do ato de se colocar um “divisor
de cabo” (spliter) após o decodificador de sinal, de maneira que sejam conectados
dois ou mais aparelhos de televisão.38 Quanto às conexões denominadas “ponto
escravo”, as concessionárias não impõem quaisquer restrições, inclusive esclarecem
ao consumidor que ele pode conectar aparelhos de TV após o decodificador.
Já a terminologia “ponto extra” – ou “ponto adicional” – é empregada para o ponto que
se encontra instalado na mesma dependência em que se está o ponto principal, mas
o sinal de radiodifusão é recebido de modo autônomo e simultâneo. Dessa maneira,
o ponto extra, quando conectado a um segundo aparelho de televisão, na mesma
dependência do usuário, permite que se acesse o sinal de radiodifusão de maneira
autônoma do ponto principal de modo que seja possível assistir simultaneamente a
programações distintas. O “ponto extra” pressupõe o regular acesso do assinante ao
serviço de TV a CABO e deve ser instalado dentro da dependência do usuário, para
fins iguais ao do ponto principal – lazer, sem finalidades comerciais.39
A norma técnica do Procon conclui que a prestação de serviço de TV a CABO,
através de cobrança de valores pelas concessionárias, tendo como fatos geradores a
instalação e a utilização de “pontos extras” (pontos adicionais), constitui uma prática
ilegal, tendo em vista que a política tarifária prevista na lei que o regulamenta não
contempla a possibilidade de que seja remunerado, bem como é prática abusiva,
em conformidade com o artigo 39, inciso V, da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de
Defesa do Consumidor). A referida norma afirma ainda que se houver no contrato
de prestação de serviços de TV a CABO cláusula de previsão de possibilidade
da cobrança, por parte das operadoras, de valores referentes à utilização pelo
assinante de “pontos extras”, ela será considerada cláusula nula de pleno direito,
do equilíbrio das relações de consumo, é prática abusiva a cobrança por ponto adicional de TV a CABO
na residência do assinante.
37 Conceito extraído da norma técnica do Procon Estadual de Minas Gerais, Norma Técnica nº 07/2005.
38 Dessa maneira, esclarece a nota técnica do procon, “verifica-se que há o ponto principal, no qual se
recebe o sinal codificado e se encontra o decodificador, permitindo a troca da programação, e um segundo
ponto (ou mais), que é/são denominado(s) “ponto escravo”. Assim, o aparelho de televisão conectado ao
“ponto escravo” não irá gerar uma programação que seja independente, ou seja, não se pode acompanhar
de maneira simultânea a programação no segundo televisor, mas tão-somente a programação que esteja
sendo veiculada no ponto principal. A programação a se assistir será a mesma em todas as conexões e
somente no ponto principal se consegue modificá-la. Cf. extraído da Norma Técnica, op cit.
39 Norma Técnica, op cit.
330
• Direito Coletivo
pois contempla uma prática abusiva, em conformidade com o artigo 51, inciso IV, da
Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
A Resolução nº 488 da Anatel é precisa ao determinar, em seu artigo 29, que o ponto
extra – ou o ponto de extensão – é direito do assinante sem nenhum tipo de ônus,
“[...] independentemente do Plano de Serviço contratado [...]”.
Contudo, o artigo 30 da mesma Resolução dispõe a possibilidade da cobrança
afirmando que a prestadora somente poderá cobrar, no que concerne ao ponto extra,
a instalação, a ativação e a manutenção de rede interna.
Ao nosso juízo, a cobrança pelo ponto extra constitui uma prática abusiva, malgrado
o fato de a Resolução da Anatel admitir a possibilidade da cobrança, envolvendo o
custo do gerenciamento do negócio ofertado ao consumidor.40
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2007.
40 Recentemente foi editada a Resolução nº 528 da Anatel, em 17 de abril de 2009, que confirma a proibição, em definitivo, da cobrança de ponto extra. Contudo, ABTA está questionando administrativamente
a nulidade da Resolução nº 528. Há uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Publico do Rio de
Janeiro, que conseguiu restabelecer a liminar anteriormente concedida, considerando o fato superveniente
que resulta da edição da Resolução nº 528/2009 da Anatel, considerando a decisão do juízo da 14ª Vara
Federal da Seção Judiciária de São Paulo, que teria suspendido a eficácia do art. 29 da Resolução nº
488/2008, como fundamento a necessidade de conhecer, com exatidão, o alcance da norma contida no art.
30 do mesmo diploma regulamentar. Processo nº 2005.001.161388-7.
Plínio Lacerda Martins •
331
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332
• Direito Coletivo
Jurisprudência
Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça – Ação Civil Pública. Prefeito.
DL. N. 201/1967. Lei N. 8.429/1992. Ex- Prefeito. Foro de prerrogativa de função.
Ausência de notificação e demonstração do prejuízo.
Cuida-se de ação civil pública (ACP) ajuizada contra ex-prefeito pela falta de
prestação de contas no prazo legal referente a recursos repassados pelo Ministério da
Previdência e Assistência Social. Nesse panorama, constata-se não haver qualquer
antinomia entre o DL n. 201/1967 (crimes de responsabilidade), que conduz o prefeito
ou vereador a um julgamento político, e a Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade
Administrativa - LIA), que os submete a julgamento pela via judicial pela prática
dos mesmos fatos. Note-se não se desconhecer que o STF, ao julgar reclamação,
afastou a aplicação da LIA a ministro de Estado, julgamento de efeito inter pars. Mas
lá também ficou claro que apenas as poucas autoridades com foro de prerrogativa de
função para o processo e julgamento por crime de responsabilidade, elencadas na
Carta Magna (arts. 52, I e II; 96, III; 102, I, c; 105, I, a, e 108, I, a, todos da CF/1988),
não estão sujeitas a julgamento também na Justiça cível comum pela prática da
improbidade administrativa. Assim, o julgamento, por esses atos de improbidade,
das autoridades excluídas da hipótese acima descrita, tal qual o prefeito, continua
sujeito ao juiz cível de primeira instância. Desinfluente, dessarte, a condenação do
ex-prefeito na esfera penal, pois, conforme precedente deste Superior Tribunal, isso
não lhe assegura o direito de não responder pelos mesmos fatos nas esferas civil e
administrativa. Por último, vê-se da leitura de precedentes que a falta da notificação
constante do art. 17, § 7º, da LIA não invalida os atos processuais posteriores, a
menos que ocorra efetivo prejuízo. No caso, houve a citação pessoal do réu, que não
apresentou contestação, e entendeu o juiz ser prescindível a referida notificação.
Portanto, sua falta não impediu o desenvolvimento regular do processo, pois houve
oportunidade de o réu apresentar defesa, a qual não foi aproveitada. Precedentes
citados do STF: Rcl 2.138-DF, DJe 18/4/2008; Rcl 4.767-CE, DJ 14/11/2006; HC
70.671-PI, DJ 19/5/1995; do STJ: EDcl no REsp 456.649-MG, DJ 20/11/2006; REsp
944.555-SC, DJe 20/4/2009; REsp 680.677-RS, DJ 2/2/2007; REsp 619.946-RS, DJ
2/8/2007, e REsp 799.339-RS, DJ 18/9/2006. REsp 1.034.511-CE, Rel. Min. Eliana
Calmon, julgado em 1º/9/2009.
Informativo 404 do Superior Tribunal de Justiça. Ação Civil Pública.
Possibilidade de atingir políticas públicas. Mínimo Existêncial, não pode ser
atingido pela reserva do possível.
Jurisprudência •
333
Trata-se, na origem, de ação civil pública (ACP) em que o MP pleiteia do Estado
o fornecimento de equipamento e materiais faltantes para hospital universitário.
A Turma entendeu que os direitos sociais não podem ficar condicionados à mera
vontade do administrador, sendo imprescindível que o Judiciário atue como órgão
controlador da atividade administrativa. Haveria uma distorção se se pensasse
que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido para garantir
os direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como empecilho à realização dos
direitos sociais, igualmente fundamentais. Uma correta interpretação daquele
princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser apenas no sentido de utilizálo quando a Administração atua dentro dos limites concedidos pela lei. Quando a
Administração extrapola os limites de sua competência e age sem sentido ou foge
da finalidade à qual estava vinculada, não se deve aplicar o referido princípio. Nesse
caso, encontra-se o Poder Judiciário autorizado a reconhecer que o Executivo não
cumpriu sua obrigação legal quando agrediu direitos difusos e coletivos, bem como a
corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada. Assim, a atuação do Poder
Judiciário no controle das políticas públicas não se faz de forma discriminada, pois
violaria o princípio da separação dos poderes. A interferência do Judiciário é legítima
quando a Administração Pública, de maneira clara e indubitável, viola direitos
fundamentais por meio da execução ou falta injustificada de programa de governo.
Quanto ao princípio da reserva do possível, ele não pode ser oposto ao princípio
do mínimo existencial. Somente depois de atingido o mínimo existencial é que se
pode cogitar da efetivação de outros gastos. Logo, se não há comprovação objetiva
da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho
jurídico para que o Judiciário ordene a inclusão de determinada política pública nos
planos orçamentários do ente político. A omissão injustificada da Administração em
efetivar as políticas públicas essenciais para a promoção de dignidade humana
não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois esse não é mero
departamento do Poder Executivo, mas sim poder que detém parcela de soberania
nacional. Assim, a Turma conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negou-lhe
provimento. Precedentes citados do STF: MC na ADPF 45-DF, DJ 4/5/2004; AgRg no
RE 595.595-SC, DJe 29/5/2009; do STJ: REsp 575.998-MG, DJ 16/11/2004, e REsp
429.570-GO, DJ 22/3/2004. REsp 1.041.197-MS, Rel. Min. Humberto Martins,
julgado em 25/8/2009.
334
• Direito Coletivo
Comentário à Jurisprudência
DIREITO À EDUCAÇÃO. A CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL
EM MATÉRIA DE POLÍTICA PÚBLICA, PELA VIA DA ACP
FABIANA REZENDE CARVALHO
Advogada
1. Acórdão
EMENTA:
AGRAVO
REGIMENTAL
NO
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CARÊNCIA
DE PROFESSORES. UNIDADES DE ENSINO PÚBLICO.
OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO
FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS.
205, 208, IV E 211, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos
indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem
o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado
pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da
Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo
fixou entendimento no sentido de que ‘[a] educação infantil,
por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não
se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações
meramente discricionárias da Administração Pública, nem
se subordina a razões de puro pragmatismo governamental
[...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo
e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas
públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário
determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente
nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento
dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em
caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia
e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura
constitucional’. Precedentes. Agravo regimental a que se nega
provimento
(RE 594018 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda
Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 DIVULG 06-08-2009
PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-11 PP-02360)
Fabiana Rezende Carvalho •
335
2. Síntese do caso
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reafirmou
entendimento no sentido de que educação é direito fundamental e indisponível; é
dever do Estado, cuja desídia acarreta afronta a texto expresso da Constituição
da República. Reafirmou, ainda, a possibilidade de implementação de políticas
públicas, em casos excepcionais, por meio de decisão judicial, sem que haja ofensa
à tripartição dos Poderes.
Trata-se de ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a
fim de pugnar o preenchimento do deficitário quadro de professores da rede estadual
de ensino na cidade de São Gonçalo, garantindo-se, assim, o direito constitucional
à educação. A ação foi proposta em desfavor do Estado do Rio de Janeiro, o qual
se defendeu alegando, principalmente, violação da harmonia dos Poderes, limitação
de recursos orçamentários bem como a observância ao princípio da reserva do
possível.
Na primeira instância, a ação foi julgada procedente para determinar o preenchimento
do quadro de professores, sob pena de multa diária. Em sede de apelação, o
Tribunal reverteu a decisão a quo, entendendo haver ingerência do Poder Judiciário
na seara de atribuições do Poder Executivo e impossibilidade de revisão do mérito
administrativo. Na sequência, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário,
tendo sido recebido pelo relator, ministro Eros Grau. O demandado insurgiu-se, via
agravo regimental, ensejando a prolação do acórdão em estudo.
A decisão exarada, agravo regimental interposto no RE 594018, reconheceu o direito
à educação como direito fundamental e suficiente para obrigar a diligência do Estado
no sentido de assegurá-la, afastando qualquer premissa de ofensa ao princípio da
separação dos Poderes.
O julgado em apreço cuidou de matéria constitucional de grande importância e relevo
ao desempenho diário das atribuições do Ministério Público, afirmando textualmente
o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. A problemática da concretização
dos direitos fundamentais e a implementação de políticas públicas, relativamente aos
limites traçados pela separação dos Poderes, travam batalhas judiciais fundadas em
argumentos do mais alto quilate, em ambas as posições. Todavia, encontrar a tutela
adequada a cada caso é tarefa árdua e constantemente enfrentada nos tribunais
pelos membros do Parquet.
3. Comentários
3.1. Os direitos fundamentais sociais
Os direitos fundamentais, consagrados de forma progressiva e sequencial,
promoveram e motivaram evolução do texto constitucional conforme as necessidades
do povo, em cada época.
336
• Direito Coletivo
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Estado, antes liberal e abstencionista,
vê-se em franca mudança de paradigmas. A sociedade, massificada pela política
liberal, passa a necessitar de prestações positivas do Estado, a fim de atenuar as
desigualdades e defender direitos mínimos à existência digna dos hipossuficientes.
De defensor das liberdades públicas, passa o Estado a protetor e garantidor dos
direitos fundamentais.
Surgem os direitos sociais e o modelo de Estado Social (Welfare State). Seu caráter
intervencionista exerceu forte influência sobre os ditames constitucionais, abrindo
espaço para a incorporação de normas de direitos fundamentais concretos (direitos
de segunda geração). O rol de direitos civis clássicos foi ampliado (direitos coletivos,
sociais, econômicos, direito ao trabalho, à seguridade social, à educação, à cultura,
ao lazer e à saúde, entre outros), dando vazão ao desenvolvimento de planos
diretivos e programáticos (implementáveis por meio de políticas públicas), aptos a
proporcionar o bem-estar social.
Na definição de Soares (2000, p. 89), “[...] os direitos fundamentais são, aqui,
conjunto de normas e princípios através dos quais o Estado implementa sua função
equilibradora e moderadora em face das desigualdades sociais”.
Nesse cenário, a Constituição da República de 1988 pode ser classificada como
uma Constituição Social (CUNHA, 2004, p. 68). Traduz, além dos aspectos de
índole político-institucional, normas consagradoras de direção, finalidades e deveres
específicos do Estado, de ordem social e econômica. “A dogmática dos direitos
fundamentais, em consonância com tais idéias, assume-se como política dos direitos
fundamentais processualmente concretizada ou a se concretizar pelo Estado de
prestações”, conforme os dizeres de Canotilho citado por Soares (2000, p.106).
Assim, o Estado compromete-se com o postulado da justiça social, com a
implementação de políticas públicas, para a efetivação dos direitos fundamentais. A
política de direitos fundamentais assume papel prioritário e principiológico.
3.2. A concretização dos direitos fundamentais
Na seara dos direitos fundamentais, especialmente os sociais, o apelo à prestação
material por parte do Estado determina a efetivação ou não dessas normas. Daí o
ponto de tantas discussões jurídicas doutrinárias. Entre elas, destaca-se a indagação
sobre qual seria o grau de vinculação dessas políticas públicas na efetivação dos
direitos fundamentais e, também, se seria possível a tutela jurisdicional para compelir
a concretização desses direitos.
A reflexão sobre o tema é recorrente nos tribunais e na doutrina. Diante da complexa
estrutura do Estado, haveria vários percalços e dificuldades para a implementação
dos direitos fundamentais, seja por falta de meios materiais, seja pela falta de recursos
Fabiana Rezende Carvalho •
337
financeiros. Esses são os argumentos mais comumente utilizados pela Fazenda
Pública para elidir a prioridade no atendimento de políticas públicas. Para tanto,
invoca a chamada cláusula da reserva do possível, que constitui teoria originária da
jurisprudência alemã (ALMEIDA, 2007, p. 59).
Ocorre que a teoria importada não se coaduna com a realidade fática de nosso país.
Lamentavelmente, sequer podemos afirmar que há êxito nas ações que se destinam
a suprir as necessidades mais prementes dos indivíduos. De acordo com a “reserva do
possível”, os direitos de prestação positiva estariam subordinados à disponibilidade
de recursos, inserindo-se a matéria na esfera do mérito administrativo.
Todavia, é preciso ter em mente que os direitos fundamentais representam
compromissos do Estado, devendo este operar em todas as suas esferas com bom
senso e objetividade na busca de seus fins, agindo de maneira prioritária, adequada
e tempestiva, o que, infelizmente, nem sempre se constata na prática.
A questão afeta contundentemente a concretização dos direitos fundamentais sociais.
As políticas públicas estariam à mercê da disponibilidade orçamentária? Não deveria
o orçamento ser gasto com as questões mais prementes? Não há orçamento ou
não há prioridade orçamentária para as políticas públicas relacionadas aos direitos
fundamentais? Parece o melhor entendimento, o que considera não ser dado ao
administrador eximir-se do seu legado constitucional sob a alegação de falta de
recursos financeiros, especialmente, quando estiver em risco a garantia de direitos
fundamentais. Na mesma linha são os ensinamentos do professor Gregório Assagra
de Almeida (2007, p. 60):
Não concordamos com a exigência da reserva do possível
nessa dimensão jurídica pertinente à alegação de previsão
orçamentária como condição para a implementação de
políticas públicas específicas via Poder Judiciário. Não há
na Constituição brasileira fundamento jurídico que impeça
a efetivação dos direitos sociais fundamentais com base
simplesmente na falta de previsão orçamentária. Ademais,
a situação do Brasil, em que a exclusão social é grave, não
admite qualquer transferência mecânica de concepção teórica
predominantemente na Alemanha ou em qualquer outro país
do denominado ‘Primeiro mundo’.
Quanto ao mérito administrativo, sustentamos que os atos administrativos
discricionários não estariam irrestritamente blindados do controle pelo Poder
Judiciário. Em regra, a liberdade existente na produção do ato discricionário
(oportunidade e conveniência) vincula-o – ao menos quanto à legalidade – à
razoabilidade e aos demais preceitos constitucionais. Ensejaria, pois, o respectivo
controle, a presença de vício de competência, legalidade, moralidade, finalidade,
desvio de poder ou no caso de omissão, quando esteja viciada a razoabilidade,
ainda que nos atos administrativos.
338
• Direito Coletivo
Alguns admistrativistas, apesar de admitir o controle judicial dos atos administrativos
quanto à legalidade, salientam ser impossível o controle do mérito administrativo – é
o caso de Maria Silvia Zanela di Pietro (2008, p. 206-207), Fernanda Marinela (2007,
p. 223) e Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 969). Para eles, não haveria
propriamente a revisão do mérito administrativo em si, pois a liberdade na decisão
do administrador continua preservada, mas sim verdadeiro controle de legalidade,
nesse caso, perfeitamente possível ao Poder Judiciário. Nesse compasso é a grande
contribuição do prof. Celso Antônio Bandeira de Mello ensinando que:
para o agente público não há “abracadabras”, justamente porque
o Judiciário pode comparecer sob apelo dos interessados, a
fim de confirmar comportamento pretensamente discricionário
ao plano da legitimidade e do respeito aos direitos e garantias
individuais.
Por certo, verifica-se a possibilidade de submissão do ato viciado ao crivo do
Judiciário, ainda que concebido pelo regime de oportunidade e conveniência, nas
hipóteses citadas. Na mesma linha é a lição do professor Alexandre de Moraes
(2009, p. 135-136), nos seguintes termos:
Mérito, portanto, do ato administrativo é o juízo de conveniência
e oportunidade, dentro da legalidade e moralidade, existente
nos atos discricionários.
Dessa forma, enquanto o ato administrativo vinculado somente
será analisado sob o amplo aspecto de legalidade, o ato
administrativo discricionário também deverá ser analisado por
seu aspecto meritório. [...] Assim, mesmo o ato administrativo
discricionário está vinculado ao império constitucional e legal,
pois, como muito bem ressaltado por Chevalier, ‘o objetivo do
Estado de Direito é limitar o poder do Estado pelo Direito’.
Ultrapassado o argumento de insuficiência orçamentária para escusa de efetivação
dos direitos fundamentais, urge enfrentar a questão da viabilização desses direitos
por decisão judicial.
No intuito de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, a própria Constituição
criou mecanismos para frear a má atuação e a omissão do poder público. Prova
disso é a previsão do mandado de injunção, da ação direta de inconstitucionalidade
por omissão e, entre outras, da ação civil pública (ACP). Tais mecanismos exercem
o controle da administração pública pela atuação do Poder Judiciário, com soluções
aplicáveis, nos termos da lei, a cada deslinde.
A adoção de providências para a implementação de políticas públicas, sob essa
análise, vincula-se não somente aos Poderes Executivo e Legislativo mas também
ao Poder Judiciário, responsável pela aplicação da lei e guarda dos preceitos
constitucionais. Nesse sentido, mais uma vez, é a notável referência feita pelo
professor Gregório Assagra de Almeida (2007), para dizer que “[...] a principal função
Fabiana Rezende Carvalho •
339
do Judiciário, sendo essa especificação funcional, é fazer cumprir a Constituição,
especialmente no plano dos direitos fundamentais sociais, em relação aos quais
estão intimamente ligados os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil”.
No mesmo sentido são os esclarecimentos do professor Dirley da Cunha Júnior
(2004, p. 331) acerca da efetivação dos direitos fundamentais:
No Brasil, sem dúvida alguma, o sistema jurídico autoriza o juiz
a efetivar diretamente as normas constitucionais, sobretudo
– aqui em particular – as normas constitucionais definidoras
de direitos fundamentais, de tal modo que ele pode, em caso
eventual lacuna ou omissão inconstitucional do poder público,
colmatá-la, supri-la, integrando-a por meio da analogia, dos
costumes, dos princípios gerais do direito (LICC, art. 4) e,
ainda e principalmente, através de uma interpretação criativa
que, no domínio de uma nova hermenêutica, isto é, de uma
hermenêutica constitucional, consiste em concretizar os
preceitos constitucionais, aplicando-os diretamente à realidade
social e vivenciando a Constituição.
Assim, a concretização dos direitos fundamentais, especialmente daqueles que
exigem uma prestação, será realizada, em regra, pelo Poder Executivo ou Legislativo,
observando a competência constitucional prevista. No entanto, a insuficiente
atuação do Estado na concretização desses direitos enseja a tutela jurisdicional.
Refutam-se as barreiras levantadas em nome da reserva do possível, a priori, como
inservível à realidade brasileira e às questões de mérito administrativo controláveis
pelo Judiciário quando houver vício de inconstitucionalidade em geral (repisa-se
legalidade, razoabilidade e outros).
3.3. O princípio da separação e a efetivação de direitos fundamentais por meio
de provimento jurisdicional
A clássica doutrina da separação de Poderes, trazida por Montesquieu, tem
experimentado uma releitura nos tempos modernos. Inspirado na obra de Aristóteles,
Montesquieu desenvolveu sua teoria com base na correspondência entre a divisão
funcional e a divisão orgânica dos Poderes. Para Montesquieu “[...] cada órgão exercia
somente a função que fosse típica”, atuando independente e autonomamente, como
lembra o prof. Pedro Lenza (2006, p. 222).
Hoje, a teoria da separação dos Poderes, especialmente na visão adotada pela
Constituição brasileira vigente, experimenta um flagrante abrandamento da sua
compreensão clássica. Tenderia a apresentar-se de forma relativa, permitindo a
interpenetração de atribuições. Para cada Poder, além do desempenho de suas
funções típicas, ou seja, predominantes, estaria a responsabilidade também de
funções atípicas de predominância de outro Poder, nos limites da Constituição.
340
• Direito Coletivo
Assim, a interferência de um Poder em outro é entendida como exercício de atividade
atípica nos sistemas de controle recíproco das funções estatais, relativizando a
noção original de independência dos Poderes.
Nesse terreno instala-se a competência do Poder Judiciário para concretizar as
normas de direitos fundamentais (§ 1º do art. 5º da CF/88), cumprir com os objetivos
fundamentais do Estado Democrático de Direito, reduzir as desigualdades sociais
(inciso III do art. 3º da CF/88) e exercer o controle judicial (art. 5º, LIV, da CF/88),
viabilizando, em parte, a sustentabilidade do sistema dos checks and balances.
Na decisão do Recurso Extraordinário nº 436.996, o ministro relator Celso de Mello
realçou a viabilidade de se executar políticas públicas por meio da atuação do
Poder Judiciário, ainda que de forma excepcional, com o respaldo da Constituição,
conforme trecho recortado abaixo:
Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas
públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário
determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente
nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento
de encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em
caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia
e a integridade de direitos sociais impregnados de estrutura
constitucional. (DJ 03-02-2006, Ementário 2.219).
Também do memorável julgamento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental – ADPF – nº 45 verifica-se a possibilidade de tutela jurisdicional em
matéria de políticas públicas, in litteris:
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal
Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo,
a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a
esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo
de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais
– que se identificam, enquanto direitos de segunda geração
[...] –, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou
negativa da constituição, comprometer, de modo inaceitável,
a integridade da própria ordem constitucional. (RTJ 185/794796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).
A inocorrência do desenvolvimento e da implementação de políticas públicas, que
caberia ao Poder Executivo, desafia, assim, a interferência do Poder Judiciário,
como medida compatível com a nova concepção da separação de Poderes, como
chama a atenção o ilustre magistrado Dirley da Cunha Júnior:
Fabiana Rezende Carvalho •
341
Uma nova leitura sobre o vetusto dogma da separação
de poderes, a fim de que ele não produza, com sua força
simbólica – como lamentavelmente vem produzindo -, um
efeito paralisante às reivindicações da sociedade moderna
incomparavelmente mais complexa do que aquela na qual foi
originalmente concebido. (CUNHA JR., 2004, p. 329-330).
Diante da nova perspectiva da “independência” dos poderes, não se vislumbra óbice
ao provimento jurisdicional consiste na implementação de políticas públicas para
satisfação de direitos fundamentais caso haja omissão constitucional.
3.4. O direito fundamental à educação
Sob a égide da então Constituição Cidadã de 1988, como já referenciado, contata-se
a previsão expressa acerca dos direitos sociais e, nesse rol, o direito fundamental à
educação. Previsto no artigo 205, o direito à educação destaca-se como um dos mais
importantes direitos ao desenvolvimento do país e da democracia, um eficiente meio
para a promoção de melhores condições de vida ao indivíduo e, consequentemente,
para a promoção da dignidade da pessoa humana.
Salutar é a apreciação do entendimento firmado pelo STF, no sentido de destacar
o direito à educação como direito fundamental, de caráter necessário e irretocável,
nos termos do acórdão, objeto do presente estudo, a saber: “[...] a educação é direito
fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar os meios que
viabilizem o seu exercício. A omissão administrativa impede que o Poder Público
cumpra integralmente dever a ele imposto pela própria Constituição do Brasil” (RE
nº 594.018-7, Rel. Ministro Eros Grau, DJ 03.02.06).
No mesmo julgado, o ministro relator Eros Grau fez alusão à decisão proferida no
RE nº. 436.996, sob relatoria no ministro Celso de Mello, no sentido de que a “[...]
educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não
se expõe, em processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias
da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo
governamental”. (DJ. 03.02.2006, Ementário 2.219).
Como um direito social, a educação destina-se à melhoria das condições de vida
dos indivíduos e realiza-se mediante prestações positivas do Estado. É, portanto,
expresso por meio de norma programática que impõe dever de agir ao poder público.
Nessa linha, as considerações do professor Kildare Gonçalves Carvalho (2009, p.
727):
342
• Direito Coletivo
São direitos de status positivos, já que permitem ao indivíduo
exigir determinada atuação ao Estado, com o objetivo de
melhorar suas condições de vida, garantindo os pressupostos
materiais para o exercício da liberdade. Envolvem a melhoria
de vida de vastas categorias da população, mediante a
instituição e execução de políticas públicas.
Educação é direito fundamental e impostergável e, sobre isso, não há assertiva
contrária. Todavia, é preciso ponderar que os direitos fundamentais não são direitos
absolutos. Tendo em vista a natureza principiológica dos direitos fundamentais,
permite-se certa relativização, viabilizando a própria convivência entre as liberdades
públicas. Desse modo, todas as vezes que a implementação de um direito fundamental
colidir com a de outro, a análise do caso concreto é a pauta necessária e prudente
para a solução do caso, segundo critérios de ponderação.
Fabiana Rezende Carvalho •
343
4. Considerações finais
A Constituição da República de 1988 traduz um modelo de Constituição moderna,
atualizada, agregadora de normas que se alicerçam na proteção da dignidade da
pessoa humana. Em seu complexo elenco de normas, sobreleva-se a unidade e não
a dissidência entre suas normas, uma vez que uma está a serviço da outra.
Os direitos fundamentais foram amplamente abarcados pelo texto constitucional
escrito, compreendendo-se até mesmo aqueles direitos que venham a incorporarse no ordenamento jurídico brasileiro por meio de tratados internacionais. Contudo,
não basta a norma escrita se não se encontra respaldo fático. Assim, o desafio do
constitucionalismo moderno é encampar a missão de tornar efetivas as normas
previstas pelo constituinte.
Nesse diapasão, verifica-se o provimento jurisdicional como solução válida para a
implementação dos direitos fundamentais, devendo ser analisada a cada caso a
premência do direito fundamental em conflito com outros direitos e tendo como diretriz
o viés valorativo da dignidade da pessoa humana e do princípio democrático.
À guisa do controle recíproco, o princípio da separação das Funções/Poderes
Estatais permite conferir legitimidade à jurisdição em matéria de políticas públicas,
em prol da concretização dos direitos fundamentais sociais. A revisão dos rígidos
paradigmas da divisão de Poderes dá lugar a importantes meios de efetividade das
normas constitucionais.
O Ministério Público, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
guardião e porta-voz dos interesses sociais, desempenha, no exercício das
suas atribuições conferidas pela Constituição de 1988, função indispensável na
fiscalização da lei e na defesa dos direitos sociais não implementados. Nesse
cenário, é reconhecido seu importante papel no postulado da concretização dos
direitos fundamentais.
“O progresso da democracia mede-se precisamente pela expansão dos direitos
fundamentais e pela sua afirmação em juízo. De modo que, os direitos humanos
fundamentais servem de parâmetro de aferição do grau de democracia de uma
sociedade” (SOARES, 2000, p. 141). Nessa linha, baseou-se o julgado ora apresentado
sob a perspectiva de democratização dos direitos fundamentais e reconhecimento
do meio adequado para a efetivação dos comandos constitucionais.
344
• Direito Coletivo
5. Referências bibliográficas
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. 1. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da
Constituição. Direito constitucional Positivo. 15. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Controle Judicial das omissões do poder público. 1. ed.
São Paulo: Saraiva, 2004.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 1991.
LENZA, Pedro. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Método, 2006.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 26. ed.
São Paulo: Malheiros, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 1. ed. São Paulo:
Atlas, 2002.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009.
SOARES, Mario Lúcio Quintão. Direitos Fundamentais e Direito Comunitário. 1. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
STF, Rel. Min. Celso de Mello, RE 436.996, 2ª T., DJ de 03.02.2006.
STF, Rel. Min. Eros Grau, AG REG no RE 594.018-7 /RJ, 2ª T., DJ de 7.12.2000.
Fabiana Rezende Carvalho •
345
7
Artigo • 349
Jurisprudência • 368
Comentário à Jurisprudência • 371
Técnica • 381
Direito
Processual
Coletivo
7
Artigo
AÇÃO POPULAR AMBIENTAL E EFETIVIDADE: ANÁLISE
DOS PRINCIPAIS ASPECTOS PROCESSUAIS
POLIANA CÍNTIA COSTA GUIMARAES
Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Pós-Graduada em Direito Processual
RESUMO: Todos os cidadãos têm o direito fundamental a um meio ambiente sadio
e equilibrado, bem como a obrigação de manter sua qualidade para as futuras
gerações. Com base nesta premissa, este trabalho estuda a ação popular como um
importante meio de tutela do meio ambiente pelo próprio cidadão, dando ênfase à sua
distinção da ação popular de defesa do erário, disciplinada pela Lei nº 4.717/65. São
analisados alguns aspectos processuais, importantes para a garantia de efetividade
da ação popular ambiental e seu reconhecimento como instituto distinto, dentre
eles a legitimidade ativa e passiva, requisitos, competência. Conclui-se que a ação
popular ambiental possui, na verdade, natureza jurídica de ação civil pública, na
medida em que a aplicação da Lei nº 7.347/85 lhe confere maior eficácia e garante
a efetividade da tutela do meio ambiente.
PALAVRAS-CHAVE: ação popular ambiental, aspectos processuais, natureza
jurídica, legitimidade, efetividade.
ABSTRACT: Every citizen has the fundamental right to a healthy and balanced
environment, as well as the obligation of keeping its quality to the next generations.
Based on this premise, this worksheet article studies the popular action as an important
vehicle for the citizen himself or herself to protect the environment, emphasizing its
distiction to the popular action in defense of the public treasury, disciplined by the
Law 4.717/65. One analyses some procedural aspects important to the guarantee of
the effectiveness of the environmental popular action and its acceptance as a distint
institution, amongst them, the capacity of standing to sue and the standing to be sued,
requirements, jurisdiction. One concludes that the environmental popular action has,
in reality, legal nature of class action in the proportion that the application of the Law
7.347/85 gives it greater efficiency and ensures the effectiveness of protection of the
environment.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
349
KEY WORDS: Environmental popular action; procedural aspects; juridical nature;
standing to sue capacity; effectiveness.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A efetividade da tutela jurisdicional. 3. A ação popular.
3.1 Origem constitucional. 3.2 Conceito e requisitos. 3.3 Ação popular e ação civil
pública. 4. A ação popular ambiental. 4.1 Primeiras abordagens. 4.2 Legitimidade. 4.3
Requisitos – ilegalidade e lesividade. 4.4 Competência. 4.5 Liminar. 4.6 Prescrição.
4.7 Apelação e efeito suspensivo. 5 Da inserção da ação popular no microssistema
de tutela coletiva. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O crescimento da potencialidade lesiva da atividade humana e a conhecida
incapacidade do Estado em tutelar a biodiversidade, conciliando desenvolvimento
econômico e preservação, fazem a sociedade emergir como grande protagonista na
possibilidade de uma efetiva tutela do meio ambiente.
O legislador constituinte, atento a essa tendência, estabeleceu uma atuação
conjunta entre o Poder Público e o povo, in verbis: “Art. 225. Todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (grifo nosso).
Assim, cabe à coletividade buscar a proteção jurisdicional dos direitos difusos de
ordem ambiental diante de dano ou ameaça de lesão ao meio ambiente, enquanto
ao Estado incumbe proporcionar os instrumentos adequados para a atuação dos
cidadãos nesta seara, propiciando o efetivo acesso à justiça em matéria ambiental.
A propósito, o acesso à justiça em matéria ambiental é objeto de relevante discussão,
diante das peculiaridades inerentes aos conflitos ambientais, que incidem sobre
interesses e direitos de natureza difusa, o que traz dificuldades no que se refere
à sua adequada organização, representação e defesa. Esta discussão passa,
necessariamente, pelo instituto da legitimação ativa para a propositura de ações
judiciais em defesa do meio ambiente e a necessidade de sua ampliação, para a
garantia do efetivo acesso à justiça.
A ação popular, um dos meios mais antigos de controle dos atos estatais pelo
cidadão, possui grande importância na tutela dos interesses da coletividade, como
a moralidade administrativa, o patrimônio público ou de entidade que o Estado
participe, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Esse instrumento
processual se destaca como um dos primeiros colocados à disposição do cidadão
para a tutela de bens e interesses comuns a toda a sociedade. No entanto, não vem
sendo efetivamente empregado, seja pela inidoneidade das regras processuais da
Lei nº 4.717/65, seja pelas barreiras de acesso à justiça.
350
• Direito Processual Coletivo
2. A efetividade da tutela jurisdicional
É de conhecimento ordinário que o direito de acesso à justiça, garantido pelo art.
5°, inciso XXXV, da Constituição da República (a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), não quer dizer apenas que todos têm
direito de ir a juízo, mas também que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional
ou à tutela jurisdicional efetiva (adequada e tempestiva). Nesse sentido:
O direito fundamental à efetividade do processo - que se
denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça
ou direito à ordem jurídica justa compreende, em suma,
não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas
também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma
decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano
dos fatos. (ZWASCKI apud SILVA, 2005).
Como ensina Marinoni (2004), o direito à tutela jurisdicional efetiva exige técnica
processual adequada (norma processual), instituição de procedimento capaz
de viabilizar a participação (p. ex., ações coletivas) e, por fim, a própria resposta
jurisdicional. Oportuno trazer a lição do processualista:
Note-se, em primeiro lugar, que o direito à tutela jurisdicional
efetiva tem relação com a possibilidade de participação, e por
isso pressupõe um direito à participação (o Teilhaberechte
dos alemães). Nessa linha, a necessidade de participação
fez Canotilho relacionar o procedimento coletivo com o direito
a um procedimento justo. Trata-se do procedimento capaz
de conferir a possibilidade de participação para a proteção
dos direitos fundamentais e para a reivindicação dos direitos
sociais.
Acontece que essa participação deve ser feita perante um
procedimento idôneo à proteção dos direitos, até mesmo porque
o direito à proteção não exige somente normas de conteúdo
material, mas igualmente normas processuais. Isso quer dizer
que o direito à proteção dos direitos fundamentais tem como
corolário o direito a pré-ordenação das técnicas adequadas à
efetividade da tutela jurisdicional, as quais não são mais do
que respostas do Estado ao seu dever de proteção.
Porém, o direito à tutela jurisdicional não só requer a
consideração dos direitos de participação e de edição de
técnicas processuais adequadas, como se dirige à obtenção
de uma prestação do juiz. Essa prestação do juiz, assim como
a lei, também pode significar, em alguns casos, concretização
do dever de proteção do Estado em face dos direitos
fundamentais. [...]
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
351
Entretanto, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva,
quando se dirige contra o juiz, não exige apenas a efetividade
da proteção dos direitos fundamentais, mas sim que a tutela
jurisdicional seja prestada de maneira efetiva para todos os
direitos. Tal direito fundamental, por isso mesmo, não requer
apenas técnicas e procedimentos adequados à tutela dos
direitos fundamentais, mas sim técnicas processuais idôneas
à efetiva tutela de quaisquer direitos. De modo que a resposta
do juiz não é apenas uma forma de se dar proteção aos direitos
fundamentais, mas sim uma maneira de se dar tutela efetiva
a toda e qualquer situação de direito substancial, inclusive
aos direitos fundamentais que não requerem proteção, mas
somente prestações fáticas do Estado (prestações em sentido
estrito ou prestações sociais).
Nessa linha de raciocínio, cumpre acrescentar que o jurisdicionado não é obrigado a
se contentar com um procedimento inidôneo à efetiva tutela de seu direito, já que este
não se resume à possibilidade de acesso a um procedimento legalmente instituído.
De fato, o direito à tutela jurisdicional não pode se restringir ao direito de igual acesso
ao procedimento estabelecido, ou ao conceito tradicional de acesso à justiça.
Assim, se o dever do legislador editar o procedimento idôneo for descumprido,
permanece, no caso concreto, o dever do juiz de prestar a tutela efetiva. Dessa
forma, tem ele o dever de interpretar a legislação à luz do direito fundamental à
efetividade da tutela jurisdicional.
Portanto, como propõe o mencionado doutrinador, o direito à tutela jurisdicional,
ainda que sem perder sua característica de direito de iguais oportunidades de acesso
à justiça, deve ser considerado como o direito à efetiva proteção do direito material,
do qual são devedores o legislador e o juiz.
Marinoni (2004, p. 198) acrescenta, ao tratar da essencialidade das normas
processuais para a efetivação de direitos fundamentais, que “[...] isso quer dizer
que o direito a proteção dos direitos fundamentais tem como corolário o direito a
preordenação das técnicas adequadas à efetividade da tutela jurisdicional, as quais
não são mais do que respostas do Estado ao seu dever de proteção”.
Tais considerações são pertinentes no presente estudo, tendo em vista que, para
a garantia de efetividade da tutela jurisdicional do meio ambiente através da ação
popular, é preciso reavaliar alguns aspectos processuais atinentes à ação popular
tradicional. Como se pretende demonstrar nas sessões seguintes, o procedimento da
Lei nº 4.717/65 mostra-se inidôneo à efetiva tutela do meio ambiente pelo cidadão,
através da ação popular.
352
• Direito Processual Coletivo
3. A ação popular
3. 1. Origem constitucional
O primeiro tratamento da ação popular no Brasil foi a Constituição do Império de
1824, que previu a sua utilização, por qualquer do povo, com a finalidade de reprimir
abusos de poder e prevaricação que juízes de direito e oficiais de justiça cometessem
no exercício do cargo. Assim dispunha: “Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e
concussão, haverá contra eles a ação popular, que poderá ser intentada dentro de
um ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo, guardada a ordem do
processo estabelecido na lei”.
Já a Constituição Republicana de 1891 não acolheu o instituto, nem mesmo em
seu caráter penal, como a anterior. Cumpre mencionar que o Código Civil de 1916,
também, não o previu expressamente. Foi a Constituição de 1934 a primeira a dar
guarida à ação popular, no inciso 38 do artigo 113, que previa: “[...] qualquer cidadão
será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos
lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”.
No entanto, com a duração efêmera da Constituição de 1934, a ação popular não
chegou a ser utilizada em virtude da falta de regulamentação. A Carta de 1937, por
sua vez, nem tratou do instituto. Já a Constituição de 1946 restabeleceu o remédio,
no artigo 141, § 38, de maneira mais ampla que na Constituição de 1934, uma vez
que protegia, além da União, Estados e Municípios, as entidades autárquicas e as
sociedades de economia mista.
A Constituição de 1967 manteve a ação popular no artigo 150, § 31, com a finalidade
específica da proteção patrimonial, mas sem relacionar as entidades cujo patrimônio
deveria ser protegido, usando o termo genérico patrimônio das entidades públicas.
Essa redação foi mantida pela Emenda Constitucional n.º 01/1969, no art. 153, §
31.
Apesar da previsão constitucional, a utilização da ação popular na defesa de direitos
difusos da coletividade não era muito constante. Segundo Meirelles (1987, p. 119),
em que pese a alusão à defesa do patrimônio, a conceituação era restrita, consistindo
na invalidação de atos ou contratos administrativos ilegais e lesivos do patrimônio
federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e
pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos.
Cumpre ressaltar que, ainda sob a égide da Constituição de 1946, a ação popular foi
regulamentada. A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, ampliou sua área de atuação
para fora do restrito círculo das lesões meramente pecuniárias. Das alterações
realizadas, destaca-se a que foi feita pela Lei n.º 6.513/77, que introduziu a atual
redação do § 1º do art. 1º, englobando no conceito de patrimônio público a proteção
dos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
353
O remédio constitucional em análise ganhou nova forma na Constituição de 1988,
que ampliou consideravelmente o campo de sua incidência protetiva, passando a
alcançar a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e
cultural.
3.2. Conceito e requisitos
Assim dispõe o artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição da República:
Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que
vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de
que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor,
salvo comprovada a má-fé, isento de custas judiciais e do ônus
da sucumbência.
Sobre o conceito tradicional de ação popular, é indispensável citar Meirelles (1987,
p. 114):
Ação popular é o meio constitucional posto à disposição de
qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos
administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do
patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias,
entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas
com dinheiros públicos. (grifo do autor).
Assim, a ação popular se apresenta como um remédio constitucional, através do
qual qualquer cidadão se investe de legitimidade para exercer um poder de natureza
essencialmente política, como manifestação direta da soberania popular (SILVA,
1998, p. 462). Através dessa garantia, o cidadão exercerá diretamente a função
fiscalizadora do Poder Público, visando à defesa dos interesses da coletividade. É o
que também ensina Moraes (2001, p. 192), ao dizer que a ação popular, assim como
o direito de sufrágio, direito de voto em eleições, plebiscitos e referendos, e ainda a
iniciativa popular de lei e o direito de organização e participação de partidos políticos,
constitui um meio de exercício da soberania popular.
É forçoso reconhecer o aspecto político da ação popular, na medida em que o cidadão
atua como fiscalizador dos atos do Poder Público. Os requisitos tradicionais da ação
popular, sem os quais não se viabiliza, são: 1 – condição de eleitor; 2 – ilegalidade
ou ilegitimidade do ato; 3 – lesividade. Faz-se mister apenas mencionar que há
divergência na doutrina e na jurisprudência acerca da necessidade da presença do
binômio ilegalidade-lesividade, sendo que para alguns basta um desses requisitos
para a propositura e procedência da ação popular.
Sobre a ação popular de defesa do meio ambiente, neste trabalho denominada ação
popular ambiental, esclareça-se, por ora, que possui características singulares, o
que enseja a necessidade de uma análise mais detida.
354
• Direito Processual Coletivo
3.3. Ação popular e ação civil pública
A Lei nº 7.347 passou a vigorar no Brasil em de 24 de julho de 1985. Mediante seus
dispositivos, salvaguardados na íntegra os que já constavam da Lei da Ação Popular,
com a qual não conflitua, propõem-se ações de responsabilidade por danos morais e
patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, bem como por infração à ordem
econômica, à economia popular e à ordem urbanística. Cumpre acrescentar que a
ação civil pública ambiental já existia desde a Lei nº 6.938/81, que trata da Política
Nacional do Meio Ambiente. Essa lei concedia ao Ministério Público legitimação
para a ação de responsabilidade civil contra o poluidor por danos causados ao meio
ambiente (art. 14, §1°). Sobre o assunto, Milaré (2001, p. 172) ensina:
A Lei 7.347/85 significou, sem dúvida, uma revolução na
ordem jurídica brasileira, já que o processo judicial deixou
de ser visto como mero instrumento de defesa de interesses
individuais para servir de efetivo mecanismo de participação
da sociedade na tutela de situações fático-jurídicas de
diferente natureza, vale dizer, daqueles conflitos que envolvem
interesses supraindividuais – difusos, coletivos e individuais
homogêneos.
Não pode ser olvidado, ainda, o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90,
inovadora ao prever a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos e
que, ao lado da Lei da Ação Civil Pública e de outros diplomas legais inerentes ao
direito coletivo, forma o “[...] microssistema processual coletivo” (DIDIER JUNIOR;
ZANETTI JUNIOR, 2007, p. 49). Assim, tanto a ação popular, cujo conceito já foi
analisado, quanto a ação civil pública são previstas na Constituição da República
como mecanismos de defesa dos interesses públicos. No entanto, distinguem-se em
pontos cruciais, a seguir relacionados sucintamente.
No que concerne à legitimidade ad causam, na ação popular cabe ao cidadão,
unicamente. Já na ação civil pública, são legitimados o Ministério Público, a União,
Estados e Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades
de economia mista e associações. Quanto ao objeto, na ação popular, buscase a nulidade ou anulação de ato lesivo ao patrimônio público em sentido lato, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural,
e a recomposição do status quo. Por sua vez, a ação civil pública visa à imposição
de dever de fazer ou não-fazer ao autor do dano moral ou patrimonial causados ao
meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico, ou à ordem econômica, à economia popular e à ordem
urbanística, e a qualquer outro interesse difuso. Sobre o assunto, ensina Almeida
(2007, p. 197, grifo do autor):
A primeira diferença está na legitimidade para agir, pois
somente o cidadão terá legitimidade para a propositura da
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
355
ação popular, com a ressalva do disposto no art. 16 da LAP. A
segunda encontra-se no plano do objeto material, que na ação
civil pública é amplo (art. 129, III, da CF), ao passo que o art.
5.°, LXXIII, da Constituição Federal estabelece de forma mais
restrita o objeto da ação popular (patrimônio público em sua
dimensão ambiental, cultural, histórica, moral e econômica).
Observa-se, assim, que o texto constitucional não estabelece
em relação à ação popular (art. 5.°, LXXIII, da CF), como faz
em relação à ação civil pública (art. 129, III, da CF), que ela
poderá ser promovida para a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos. Entretanto, não são essas duas ações constitucionais
excludentes; ao contrário, são elas concorrentes naquilo que
haja identidade quanto ao plano de seus objetos materiais.
Essa tese é confirmada pelo próprio art. 1.°, caput, da LACP.
É inegável que a ação civil pública é, atualmente, o instrumento mais utilizado na
defesa do meio ambiente e por muitos considerada como a melhor forma de defesa
dos interesses transindividuais. Contudo, tem o inconveniente de não conceder
legitimação ativa ao cidadão individualmente considerado, cabendo-lhe apenas
oferecer representação junto ao Ministério Público, órgão mais estruturado para
acionar o Judiciário, ou formar uma associação, que tem legitimidade para propor
a ação civil pública. A propósito, lembra Dinamarco (1994, p. 171) que são duas
as hipóteses de participação popular por meio do Poder Judiciário em demandas
coletivas: as ações populares, cuja legitimidade é do cidadão; e as ações civis
públicas propostas por associações.
4. A ação popular ambiental
4.1. Primeiras abordagens
A atribuição de legitimidade coletiva ao cidadão para a defesa do meio ambiente,
que é um interesse difuso, representou um grande avanço na garantia do exercício
da cidadania. Leite (2007) explica:
Com efeito, o artigo 225 da Constituição da República
Federativa do Brasil é extremamente aberta (sic), em sentido
democrático ambiental, pois exige o exercício da cidadania
participativa e com responsabilidade social ambiental. [...] Um
dos componentes do Estado Democrático Ambiental é o amplo
acesso à justiça, via tutela jurisdicional do meio ambiente.
Note-se que os meios judiciais são, de fato, o último recurso
contra a ameaça e a degradação ambiental. A sociedade atual
exige que as demandas ambientais sejam palco de discussão
na via judiciária, pois esta abertura resultará no exercício da
cidadania e, como conseqüência maior conscientização.
Conforme entendimento da doutrina, a Constituição da República previu, no art. 5°,
LXXIII, dois institutos completamente distintos: a ação popular para a defesa do
356
• Direito Processual Coletivo
erário, disciplinada pela Lei nº 4.717/65, e a ação popular ambiental, que abrange
a proteção do patrimônio histórico e cultural e o meio ambiente (GOMES JUNIOR).
No mesmo sentido, Silva (2006, p. 98) esclarece que “[...] a ação popular pode ser
utilizada para defesa de bens de natureza diferentes: natureza pública (patrimônio
público) e natureza difusa (meio ambiente)”.
O reconhecimento da ação popular ambiental como instituto distinto da ação
popular tradicional traz conseqüências relevantes. Nesse ponto, é preciso lembrar
que os conflitos jurídico-ambientais, por se referirem a interesses difusos e pelas
peculiaridades do dano ambiental (difícil reparação e valoração, dentre outros),
não podem ser eficazmente solucionados através dos institutos clássicos do direito
processual, incluindo a ação popular da Lei nº 4.717/65. É oportuno mencionar
o estudo de Mendes e Cavedon (2005) sobre as barreiras à propositura da ação
popular ambiental:
Grande problema para o efetivo uso da Ação Popular é que sua
estrutura não foi alterada, apesar da inclusão da possibilidade
de tutela dos interesses difusos de ordem ambiental, o que
certamente traz dificuldades na sua utilização por parte do
cidadão que pretenda defender o patrimônio ambiental da
coletividade através deste instrumento. Outro ponto que
dificulta sua utilização são as barreiras de Acesso à Justiça
que podem se colocar entre o cidadão e a efetiva propositura
da Ação Popular como, por exemplo, arcar sozinho com o ônus
econômico, material e psicológico do litígio, na maioria das
vezes contra atos do Poder Público, o que certamente lhe trará
os inconvenientes da exposição pública; a diferença econômica
e informativa do autor popular para com, geralmente, figurando
no pólo passivo, o Estado; etc.
Às barreiras de acesso à justiça em matéria ambiental acrescente-se a ausência
de vantagem pessoal ao titular da ação, em virtude da natureza difusa do direito
protegido, o que lhe causa desmotivação e desinteresse. Além disso, há o custo
e os riscos do processo, a morosidade da justiça, a dedicação de tempo à causa,
dentre outros. Tais apontamentos corroboram a necessidade de diferenciação entre
a ação popular ambiental e a tradicional, especialmente quanto a alguns aspectos
processuais, como se passa a analisar.
4.2. Legitimidade
4.2.1. Legitimidade ativa
O art. 1° da Lei nº 4.717/65 confere legitimidade ativa na ação popular apenas
ao cidadão. A Constituição de 1988 assim também dispôs (art. 5°, LXXIII). Sobre
o assunto, Silva (1998, p. 463) sustenta que o texto constitucional, quando diz
qualquer cidadão, acabou por restringir a legitimidade ativa na ação popular apenas
ao nacional no gozo dos direitos políticos, sendo vedada às pessoas jurídicas, aos
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
357
estrangeiros e aos partidos políticos1. Vale citar, no entanto, a posição de Almeida
(2007, p. 367), para quem o art. 1°, § 1°, da Lei nº 4.717/65, por estabelecer restrição
indevida à condição de cidadão para efeitos de legitimidade para o ajuizamento da
ação popular, não foi recepcionado pela Constituição Federal (art. 5°, LXXIII). Explica
o doutrinador:
A ação popular está dentro das garantias constitucionais
fundamentais (art. 5.°, LXXIII da CF), de sorte que, se a
Constituição não estabelece qualquer restrição à concepção de
cidadão, não é compatível qualquer interpretação restritiva. [...]
Destarte, todos os que devem ser respeitados na sua dignidade
de pessoa humana têm legitimidade ativa para o ajuizamento
de ação popular: o analfabeto que não se alistou; os maiores
de 70 (setenta) anos, cujo voto também é facultativo; os que
não estejam em dia com o serviço eleitoral; os presos, etc.
(grifo do autor).
Também é este o entendimento de Fiorillo (2005, p. 375):
[...] cidadão em nossa Carta Magna é a pessoa humana no
gozo pleno de seus direitos constitucionais e não única e
exclusivamente ‘nacional no gozo de seus direitos políticos’.
O cidadão brasileiro, portanto, possui igual dignidade social
independentemente da sua inserção econômica, social,
cultural e obviamente política.
Contudo, predomina o entendimento que só é legitimado para a ação popular o
cidadão eleitor, devendo o autor comprovar o exercício de seus direitos políticos.
Quanto à ação popular ambiental, há uma corrente doutrinária que apregoa a
extensão da legitimidade ativa, como estratégia de obter maior acesso à justiça para
a defesa do meio ambiente. Para Leite (2007), a cidadania foi ampliada, concedendo
até mesmo ao estrangeiro residente no país o direito subjetivo de propor a ação
popular ambiental. Fiorillo (2005, p. 375) leciona:
Dessa forma, sendo de todos os bens ambientais, nada mais
lógico que não só o eleitor quite com a Justiça Eleitoral, mas
todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País possam
ser rotulados cidadãos para fins de propositura da ação popular
ambiental [...]. Com isso denota-se que o destinatário do meio
ambiente ecologicamente equilibrado é toda a coletividade –
brasileiros e estrangeiros aqui residentes – independentemente
da condição de eleitor, de modo que, no tocante à proteção dos
bens e valores ambientais, o art. 1°, 3°, da Lei 4.717/65 não foi
recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Na verdade, seguindo o critério de diferenciação dos institutos, a ação popular da Lei
nº 4.717/65 tem natureza política, exigindo do autor o título de eleitor e a prova da
1 Súmula 365 do STF: Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular.
358
• Direito Processual Coletivo
regularidade com o serviço eleitoral. Já na ação popular ambiental, pela natureza do
bem tutelado, não deve prevalecer essa exigência. É razoável - e atende ao princípio
democrático - atribuir legitimidade a qualquer cidadão, assim entendido qualquer
integrante da população brasileira, até mesmo o estrangeiro residente no país.
4.2.2. Legitimidade passiva
Dispõe o art. 6º da Lei nº 4.717/65 que serão sujeitos passivos da ação popular as
pessoas públicas ou privadas em nome das quais o ato a ser anulado foi praticado,
inclusive as mencionadas no art. 1°, as autoridades, funcionários ou administradores
que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou
que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e os beneficiários diretos
dele. Trata-se, portanto, de um litisconsórcio passivo necessário, já que todos os
beneficiários do ato impugnado têm que ser citados. A conseqüência disto é que a
ausência de citação de parte necessária inquina de vício insanável a demanda, de
modo a tornar inexistente a sentença proferida (SILVA, 2006, p. 105).
Entretanto, na ação popular ambiental, cuja distinção com a ação popular de defesa
do patrimônio público tem se defendido, não há litisconsórcio passivo necessário.
Sustenta-se que o litisconsórcio será facultativo, uma vez que a responsabilidade, na
hipótese, é solidária, sendo que os efeitos da sentença atingirão igualmente todos os
réus. Outro fundamento é o conteúdo do art. 225, § 3°, da Constituição da República,
que deve ser interpretado no sentido de que não há obrigação de que a demanda
seja proposta contra todos os responsáveis, sob pena de inviabilizar o instituto.
Gomes Júnior e Santos Filho (2006, p. 286) explicam:
A disciplina prevista na Lei n. 4.717/65 foi elaborada, visando
ao processamento de uma Ação Popular cuja finalidade era
e é a proteção ao erário, não se justificando a sua incidência
quando o objeto perseguido é outro; na hipótese, proteger
o meio ambiente. Isso afasta, desde o início, a necessidade
de ajuizamento da Ação Popular Ambiental contra todos os
responsáveis pelo ato impugnado (art. 6° da Lei n. 4.717/65),
já que, em se tratando de dano ambiental a responsabilidade
é solidária, autorizando o ajuizamento contra apenas um
dos responsáveis, o que facilita tanto a propositura quanto o
processamento da demanda, sem os entraves existentes na
norma retro apontada.
Cumpre acrescentar, ainda, que, na esteira do raciocínio de Fiorillo, Rodrigues e
Nery2, podem ser legitimados passivos na ação popular ambiental todos aqueles
responsáveis pelo ato lesivo ao patrimônio ambiental, pessoas físicas, jurídicas ou
entes despersonalizados, sem os limites do art. 6° da Lei nº 4.717/65, já que sobre
estas pode recair o conceito de poluidor estabelecido pela Política Nacional do Meio
Ambiente e, ademais, não há vedação do texto constitucional quanto a esse tema.
2 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria de Andrade
apud ALMEIDA, 2007, p. 404.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
359
4.3. Requisitos - ilegalidade e lesividade
Já foi examinado que a ação popular é o instrumento constitucional à disposição
do cidadão para atacar ato ilegal e lesivo ao patrimônio público. Prevalece o
entendimento de que é necessária a presença desses dois elementos – ilegalidade
e lesividade – para a propositura dessa ação. Cumpre ressalvar que, a despeito da
cumulação dos citados requisitos, já foi superada a idéia de que a lesão deveria
ser econômica, ainda mais após a Constituição de 1988, que ampliou o objeto da
ação popular, passando a proteger o patrimônio histórico e cultural, o meio ambiente
e a moralidade administrativa. De qualquer modo, é imprescindível a conjugação
da lesividade, seja comprovada ou presumida (art. 4° da Lei nº 4.717/65) e da
ilegalidade, para a propositura da ação popular tradicional.
Contudo, mais uma vez a ação popular ambiental se distingue, porque se deve
entender que, nessa hipótese, basta a lesividade ao meio ambiente. O ato comissivo
ou omissivo não precisa ser ilegal, sendo suficiente a demonstração de que
causou dano ambiental (SILVA, 2006, p. 110). Ademais, é preciso considerar que a
responsabilidade por danos ao meio ambiente é objetiva, bastando que haja nexo
de causalidade entre a conduta e a degradação, não se exigindo a ilegalidade ou
ilicitude do ato. Silva (2003, p. 314), ao tratar da natureza da responsabilidade pelo
dano ambiental, lembra que “[...] não exonera, pois, o poluidor ou degradador a
prova de que sua atividade é normal e lícita”. Nas linhas seguintes, acrescenta:
Não libera o responsável nem mesmo a prova de que a
atividade foi licenciada de acordo com o respectivo processo
legal, já que as autorizações e licenças são outorgadas com
a inerente ressalva de direitos de terceiros; nem que exerce a
atividade poluidora dentro dos padrões fixados, pois isso não
exonera o agente de verificar, por si mesmo, se sua atividade
é ou não prejudicial, está ou não causando dano. (grifo do
autor)
Ora, não há razão para ignorar a regra da responsabilidade objetiva por dano ao
meio ambiente na ação popular ambiental, não se admitindo a licitude ou legalidade
da conduta ou do ato como excludente da obrigação de reparar a lesão. Como
decorrência lógica, a legalidade da conduta que degradou o meio ambiente não
pode ensejar o descabimento da ação popular ambiental.
4.4. Competência
A Lei da Ação Popular, no art. 5°, determina a competência em vista da origem do
ato impugnado. Assim, se uma autoridade federal cometeu ato lesivo ao patrimônio
público, será o juízo federal competente para processar e julgar a demanda. Contudo,
mais uma vez a Lei nº 4.717/65 não se mostra adequada à ação popular ambiental.
Nessa hipótese, deve ser aplicado o art. 2° da Lei da Ação Civil Pública – Lei nº
7.347/85, que atribui a competência ao juízo do local onde ocorreu ou deva ocorrer a
360
• Direito Processual Coletivo
lesão. Afinal, conforme já explicado, a Lei nº 4.717/65 foi prevista para a ocorrência
de lesão ao erário, bem de natureza pública, mas não metaindividual, como o meio
ambiente. Dessa forma, suas regras processuais não se coadunam com a natureza
difusa do bem tutelado através da ação popular. É o que sustenta Fiorillo (2005, p.
379):
A natureza jurídica do bem tutelado é que define o rito
procedimental a ser utilizado. Dessa forma, tratando-se de
meio ambiente, as regras de fixação de competência serão
orientadas pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de
Defesa do Consumidor, de maneira que será competente para
o julgamento da ação popular o juízo do local onde ocorreu
ou deva ocorrer o dano, independente de onde o ato teve sua
origem.
Gomes Júnior e Santos Filho (2006, p. 287), citando a doutrina de Motauri Ciocchetti
de Souza, ensina que:
A Ação Popular Ambiental, nos termos do art. 2° da Lei 7.347/85,
deverá ser ajuizada perante o órgão jurisdicional do local ‘onde
ocorrer o dano’, sendo hipótese de competência funcional, já
que ‘[...] possui melhores condições – quando em cotejo com
qualquer de seus pares – de exercer a função jurisdicional no
caso concreto, mercê de presumido conhecimento dos fatos e
maior facilidade na coleta e obtenção das provas necessárias
para deslindá-lo. [...]
Cabe, ainda, trazer a doutrina de Almeida (2007, p. 363-364) que assim distingue:
Caso a ação popular venha a ser ajuizada para a tutela do meio
ambiente, do patrimônio histórico ou cultural, entendemos que
deverá ser aplicado por analogia o disposto no art. 2° da LACP,
passando a competência a ser territorial-funcional (absoluta)
do juízo do local do dano, estadual ou federal, conforme
estejam presentes as hipóteses fixadoras da competência da
justiça federal previstas no art. 109 da CF.
Também é este o entendimento de Leite (2007). Destarte, o reconhecimento da
competência do local do dano ambiental para a propositura da ação popular é mais
um elemento que individualiza esse instrumento processual, contribuindo para a sua
diferenciação da ação popular de defesa do patrimônio público em sentido estrito e,
por outro lado, para a sua aproximação à ação civil pública.
4.5. Liminar
Neste tópico, é relevante mencionar que, quando houver pedido de liminar contra
o Poder Público, deve incidir a disposição do art. 2° da Lei nº 8.437/92, que dispõe
sobre a concessão de medidas liminares contra atos do poder público e prevê que,
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
361
no mandado de segurança coletivo e na ação civil pública, a liminar será concedida,
quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de
direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas. A regra
geral na ação popular é a não-aplicação do mencionado dispositivo, já que esta ação
é ajuizada em favor do ente público, atuando o autor popular em sua defesa e não
contra os seus interesses. Entretanto, tem aplicabilidade na ação popular ambiental,
por sua semelhança e, por que não dizer, equivalência, à ação civil pública. Pertinente
é destacar a seguinte ementa do TJMG, que adotou o entendimento esposado:
Agravo. Ação Popular. Alegação de desmatamento de área de
preservação permanente. Liminar. Necessidade de se ouvir a
Fazenda Pública antes da deliberação. Decisão parcialmente
reformada. Mesmo em se tratando de ação popular, ficando
o magistrado em estado de perplexidade ante as provas
apresentadas com a inicial, deverá se utilizar da faculdade
conferida pelo art. 2º da Lei 8.437/92, para só conceder a
liminar requerida após audiência do representante legal da
Pessoa Jurídica de Direito Público, que terá setenta e duas
horas para se manifestar sobre o pedido. 3
4.6. Prescrição
A despeito da natureza coletiva da ação popular e da regra de imprescritibilidade
dos bens coletivos, o legislador optou por estabelecer prazo para a sua propositura.
Assim, o art. 21 da Lei nº 4.717/65 prevê o prazo de cinco anos para a ação popular
nela disciplinada. No entanto, deve-se entender que a prescrição não atinge a ação
popular ambiental, em função da natureza do bem protegido. É o que ensina Silva
(2006, p. 117):
Entretanto, considerando que a sistemática processual
observada na ação popular em defesa do meio ambiente não
está prevista na Lei n. 4.717/65, também não se faz possível
aplicá-la em matéria de prescrição, até porque os bens tutelados
são imprescritíveis, tamanha sua importância para a sociedade
[...] Não é por outra razão que Hugo Nigro Mazzilli leciona: ‘[...]
a consciência jurídica indica a inexistência de direito adquirido
de degradar a natureza, da mesma forma, tem-se admitido
a imprescritibilidade da pretensão reparatória. Não se pode
formar direito adquirido de poluir, já que é o meio ambiente
patrimônio não só das gerações atuais como futuras’.4
De fato, é imprescritível a ação que visa à reparação do meio ambiente, como
entende a jurisprudência, a exemplo do TJMG: “A proteção ao meio ambiente, por
se tratar de um direito fundamental para preservação do planeta, pertencente à
3 4 TJMG, Agravo nº 1.0000.00.314437-5/000.
No mesmo sentido: (GOMES JÚNIOR; SANTOS FILHO, 2006, p. 289).
362
• Direito Processual Coletivo
humanidade e às gerações futuras, constitui matéria imprescritível”5, ou do STJ: “A
ação de reparação/recuperação ambiental é imprescritível.”6
4.7. Apelação e efeito suspensivo
Assim dispõe o art. 19 da Lei da Ação Popular: “Art. 19. A sentença que concluir pela
carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não
produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação
procedente caberá apelação, com efeito suspensivo.” Contudo, em se tratando de
ação popular ambiental, face à necessidade de reparação do dano ambiental, sob
pena de irreversibilidade, eventual recurso de apelação deverá ter efeito apenas
devolutivo. Nessa hipótese, incidirá a aplicação do art. 14 da Lei da Ação Civil
Pública, que determina que os recursos deverão ser recebidos somente no efeito
devolutivo, ressalvada a hipótese de dano irreparável à parte.
Como ensina Almeida (2007, p. 388), a regra do aludido art. 19 deve ser relativizada,
uma vez que foi elaborada diante de outro contexto político, jurídico e histórico.
Assim expõe o autor:
Assim, em sede de ação popular, entendemos que é mais
razoável aplicar o disposto no art. 14 da Lei 7.347/85 (LACP),
o qual estabelece o que, na ação civil pública, o juiz (leiase também o tribunal) poderá conferir efeito suspensivo aos
recursos, para evitar dano irreparável à parte. [...] O referido
art. 14 da LACP visa possibilitar a execução provisória das
decisões proferidas em sede de ação civil pública e, com
isso, garantir maior efetividade e eficácia aos provimentos
jurisdicionais nessa espécie de ação coletiva, atendendo,
assim, aos interesses magnos da sociedade. Como a ação
popular é ação constitucional de interesse social, o mais
razoável é aplicar-lhe, por analogia, o disposto no art. 14 da
LACP, especialmente quando a ação popular visa a tutelar o
meio ambiente ou o patrimônio público ou social. [...] É o que
ensina Cláudia Lima Marques ao afirmar que o diálogo das
fontes permite e conduz à aplicabilidade simultânea, coerente
e coordenada, das plúrimas fontes legislativas convergentes, o
que deve ser feito com a finalidade de proteção efetiva.
A seguinte ementa corrobora a interpretação ora esposada:
Ementa: Meio Ambiente. Danos causados por município,
em virtude do depósito de lixo que vem sendo efetuado, na
cabeceira de uma floresta de preservação permanente. Ação
popular. Procedência. Necessário é o imediato cumprimento
do ‘decisum’, sob pena de tornarem-se irreversíveis os danos
5 6 TJMG, Apelação Cível n.º 1.0035.04.032375-6/001.
STJ, REsp 647493/SC.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
363
referidos. Devido é o pagamento de custas e honorários
advocatícios, em sede de ação popular, por força do disposto
no art. 12, da Lei nº 4.717/65. Apelo provido. (TJMG, Apelação
Cível nº 000.232.382-2/00).
5. Da inserção da ação popular no microssistema de tutela coletiva
Na medida em que a tradicional visão individualista do processo se tornou insuficiente
e deficitária, houve a necessidade de estabelecimento de novas regras para a tutela
de determinados direitos. Surgiram, assim, os chamados microssistemas, formados
por leis especiais que regulam relações jurídicas específicas. É o que ocorre com
a tutela coletiva, que é regida por um microssistema composto por vários diplomas
legais - não apenas a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor
- que se intercomunicam. Interessa citar o ensinamento de Mazzei (2006, p. 409), que
defende a existência, no direito positivo brasileiro, de um microssistema processual
coletivo formado por diversas normas:
Pensamos, entretanto, que visão mais ampla há de ser
empregada, pois, apesar de o Código de Defesa do Consumidor
e da Lei da Ação Civil Pública terem, de fato, um status de
relevância maior (‘decorrente da natural aferição de possuírem
um âmbito de incidência de grade escala’), os demais diplomas
que formam o ‘microssistema da tutela de massa’ têm também
sua importância para o direito processual coletivo, implantando
a inteligência de suas regras naquilo que for útil e pertinente.
Neste sentido, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça7:
A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da
ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança
coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto
da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um
microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob
esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiamse.
Considerando que a ação popular compõe o microssistema de tutela coletiva,
é preciso deixar consignado que, a despeito da previsão do art. 22 da Lei nº
4.717/65, o Código de Processo Civil somente será aplicado de forma residual, ou
seja, se houver omissão a determinada norma, não se aplicará de plano o estatuto
processual civil, “[...] uma vez que o intérprete deverá, antecedentemente, aferir se
há paradigma legal dentro do conjunto de normas processuais do microssistema
coletivo” (MAZZEI, 2006, p. 411). A mesma conclusão se aplica ao se interpretar o
art. 19 da Lei da Ação Civil Pública. Assim, como concluíram Didier Junior e Zanetti
Júnior (2007, p. 51), os diplomas que tratam da tutela coletiva são intercambiantes
entre si, ou seja, “[...] apresentam uma ruptura com os modelos codificados anteriores
7 Recurso Especial n. 510.150-MA.
364
• Direito Processual Coletivo
que exigiam completude como requisito mínimo, aderindo a uma intertextualidade
intrasistemática”. Essas breves considerações dão suporte aos argumentos
sustentados no presente estudo, em especial nas situações em que se defendeu a
aplicação de regras da Lei da Ação Civil Pública na ação popular ambiental, que tem
natureza eminentemente coletiva.
6. Conclusão
O estudo da ação popular ambiental e de alguns de seus principais aspectos
processuais levou à conclusão de que esse instituto não tem a mesma natureza da
ação popular disciplinada pela Lei nº 4.717/65, devido aos bens jurídicos por elas
tutelados.
A ação popular é um instrumento que não vem sendo constantemente empregado,
em razão das mencionadas barreiras de acesso à justiça. Após a realização de
uma pesquisa junto ao site de alguns tribunais brasileiros, também se constatou a
escassez de ações populares ambientais, o que não surpreende. Afinal, enquanto se
entender que o instituto em tela não se diferencia da ação popular tradicional, e a ele
continuarem sendo aplicadas as regras da Lei nº 4.717/65, seu alcance será mesmo
ínfimo e não se efetivará a tutela do meio ambiente.
É preciso lembrar que a norma constitucional que garante o acesso à justiça o faz
tanto em relação aos direitos individuais quanto aos coletivos. Daí Didier Junior e
Janetti Junior (2007, p. 27) dizerem que a intenção do art. 5°, XXXV da Constituição
pode ser assim traduzida: “[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou afirmação de lesão a direito individual ou coletivo”.
Conforme estudado, a ação popular integra o microssistema de tutela coletiva, em
função da natureza dos direitos que protege. Dessa forma, é perfeitamente possível,
por exemplo, a incidência das regras da Lei da Ação Civil Pública, do Código de
Defesa do Consumidor, da Lei de Improbidade Administrativa, quando cabíveis, à
ação popular, em função da intercomunicação dos diplomas legais que integram o
microssistema coletivo. Tal assertiva se torna ainda mais relevante na ação popular
ambiental, cuja natureza tanto se aproxima à da ação civil pública. A aplicação
das regras deste último instituto àquele é o reconhecimento da necessidade de se
garantir a efetividade da tutela jurisdicional.
Em outras palavras, “[...] frente à natureza jurídica da Ação Popular Ambiental, é
de se aplicar a sistemática prevista na Lei nº 7.347/85 e não a Lei nº 4.717/65, sob
pena de se criarem embaraços indevidos à proteção do meio ambiente” (GOMES
JÚNIOR; SANTOS FILHO, 2006, p. 119).
Portanto, o tratamento da ação popular ambiental como instituto distinto da ação
popular regulada pela Lei nº 4.717/65, e a convicção de que sua natureza corresponde,
na verdade, à da ação civil pública, só que de titularidade do cidadão, permitirão o
alcance da efetividade da proteção do meio ambiente e o acesso à Justiça.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
365
7. Referências bibliográficas
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COSTA, Susana Henriques da. A participação popular nas escolhas públicas
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Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Processual: Grandes
Transformações da UNAMA – UVB – REDE LFG, 2008.
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MILARÉ, Édis. (Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo:
366
• Direito Processual Coletivo
Revista dos Tribunais, 2001.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
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SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. São Paulo:
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______. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
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célere. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6817>. Acesso
em: dez. 2007.
Poliana Cíntia Costa Guimaraes •
367
Jurisprudência
Informativo 411 do Superior Tribunal da Justiça. ACP. Improbidade. Somatório.
Penas. Princípio da razoabilidade.
Trata-se de REsp em que a irresignação cinge-se à possibilidade de soma das
penas de suspensão de direitos políticos impostas ao demandado, ora recorrido,
nos autos de três ações civis públicas (ACPs). Para o Min. Luiz Fux, voto vencedor,
a concomitância de sanções políticas por atos contemporâneos de improbidade
administrativa impõe a detração como consectário da razoabilidade do poder
sancionatório. A soma das sanções infringe esse critério constitucional, mercê de
sua ilogicidade jurídica. Ressaltou que os princípios constitucionais da razoabilidade
e da proporcionalidade, corolários do princípio da legalidade, são de observância
obrigatória na aplicação das medidas punitivas, como soem ser as sanções
encartadas na Lei n. 8.429/1992, por isso é da essência do poder sancionatório
do Estado a obediência aos referidos princípios. Assim, a sanção de suspensão
temporária dos direitos políticos, decorrente da procedência de ação civil de
improbidade administrativa ajuizada no juízo cível, estadual ou federal, somente
produz seus efeitos, para cancelamento da inscrição eleitoral do agente público,
após o trânsito em julgado do decisum, mediante instauração de procedimento
administrativo-eleitoral na Justiça Eleitoral. Consectariamente, o termo inicial para
a contagem da pena de suspensão de direitos políticos, independente do número
de condenações, é o trânsito em julgado da decisão à luz do que dispõe o art. 20
da Lei n. 8.429/1992. Com esses argumentos, entre outros, a Turma, ao prosseguir
o julgamento, por maioria, conheceu do recurso, mas lhe negou provimento. No
entendimento vencido do Min. Relator originário, tratando-se de sanções decorrentes
de processos distintos contra o mesmo agente ímprobo, as reprimendas impostas
pelos atos de improbidade devem dar-se de forma cumulativa, tendo como termo
inicial a data do mais antigo trânsito em julgado sob pena de diminuir a força decisória
das sentenças condenatórias ou de estimular a prática de atos de improbidade
administrativa. REsp 993.658-SC, Rel. originário Min. Francisco Falcão, Rel.
para o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 15/10/2009.
Ação Civil Pública. Improbidade. Depósito. Lixo. Área irregular.
A matéria versa sobre ação civil pública (ACP) de improbidade ajuizada pelo MP
estadual em desfavor de ex-prefeito, em razão de ter ordenado que o lixo coletado
368
• Direito Processual Coletivo
na cidade fosse depositado em área totalmente inadequada (situada nos fundos
de uma escola municipal e de uma fábrica de pescados), de modo que tal ato, por
acarretar grandes danos ao meio ambiente e à população das proximidades, reclama
a responsabilização do agente público. O Tribunal de origem rejeitou liminarmente
a ACP contra o prefeito que, a despeito de desatender a Lei estadual n. 1.117/1994
e o Código Florestal no que se refere ao adequado depósito de lixo urbano,
administrativamente age como todos os demais prefeitos em face da insuficiência
orçamentária das municipalidades e sob pena de malferir o princípio da razoabilidade.
Para o Min. Relator, o simples fato de os prefeitos anteriores ou de outros prefeitos
terem iniciado prática danosa ao meio ambiente não elide a responsabilização do
recorrido, que adotou, quando de sua gestão (autônoma em relação a todas as
outras), a mesma conduta (poluidora). Além disso, a mera alegação de que a verba
orçamentária das municipalidades seria insuficiente para viabilizar a adequação do
depósito de lixo às normas ambientais não tem o condão de afastar o interesse
do MP de propor demanda na qual se objetive a responsabilização do agente da
Administração Pública que atuou em desconformidade com a legislação protetora
do meio ambiente. O § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/1981 preceitua que, sem
obstar a aplicação das penalidades previstas naquele artigo, é o poluidor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados
ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade. Dessa forma, o MP da
União e os dos estados têm legitimidade para propor ação de responsabilidade civil
e criminal por danos causados ao ambiente. REsp 699.287-AC, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, julgado em 13/10/2009.
Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça – Legitimidade do Ministério
Público ajuizar ação civil pública na defesa de grande lista de clientes de
grandes administradoras que tem cláusulas abusivas no contrato de locação.
Trata-se de REsp em que o recorrente, MP estadual, pretende a nulidade de
cláusulas abusivas constantes de contratos de locação realizados com uma única
administradora do ramo imobiliário. Sustenta que o art. 82, I, do CDC, os arts. 1º, II
e IV, e 5° da Lei n. 7.347/1985 o legitimam a promover a ação civil pública (ACP),
tal como feito na hipótese em questão. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por
maioria, reafirmou o entendimento de não ser possível o ajuizamento de ACP para
postular direito individual que, apesar de indisponível, seja destituído do requisito da
homogeneidade, indicativo da dimensão coletiva que deve caracterizar os interesses
tutelados por meio de tais ações. Outrossim, segundo a jurisprudência deste Superior
Tribunal, o CDC não é aplicável aos contratos locatícios, os quais são regulados por
legislação própria. Assim, resta claro que o MP estadual não tem legitimidade para
propor ACP nesse caso. Para os votos vencidos, contudo, não há inconveniência
na propositura da ACP pelo MP estadual nessa hipótese, visto que se trata de uma
ação visando alcançar ao mesmo tempo a pluralidade de locatários potencialmente
vítimas de exploração. Ressaltou-se que as grandes administradoras têm uma
Jurisprudência •
369
carteira enorme de clientes, o contrato, em geral, é padronizado, basicamente, um
contrato de adesão. Portanto, a ACP teria a utilidade de possibilitar o exame em
uma única ação para dar lisura ou não às cláusulas postas no contrato. Precedentes
citados: REsp 984.430-RS, DJ 22/11/2007; REsp 294.759-RJ, DJe 9/12/2008; AgRg
no Ag 590.802-RS, DJ 14/8/2006; REsp 442.822-RS, DJ 13/10/2003; REsp 893.218RS, DJe 9/12/2008, e AgRg no Ag 660.449-MG, DJ 25/2/2008. REsp 605.295-MG,
Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 20/10/2009.
370
• Direito Processual Coletivo
Comentário à Jurisprudência
AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL COMO CONDIÇÃO PARA
RETIFICAÇÃO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO
MATHEUS ADOLFO GOMES QUIRINO
Advogado
LEANDRO HENRIQUE SIMÕES GOULART
Professor do Unicentro Newton Paiva.
1. Acórdão
Processo: REsp 831212 / MG RECURSO ESPECIAL 2006/0062192-7
Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI
Órgão Julgador: Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça
Data do Julgamento: 01/09/2009
Data da Publicação/Fonte: DJe 22/09/2009
Ementa
DIREITO AMBIENTAL. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA DE IMÓVEL,
FORMULADO POR PROPRIETÁRIO RURAL. OPOSIÇÃO DO MP, SOB
O FUNDAMENTO DE QUE SERIA NECESSÁRIO, ANTES, PROMOVER A
AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA FLORESTAL DISCIPLINADA PELA LEI
4.771/65. DISPENSA, PELO TRIBUNAL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO
PELO MP. PROVIMENTO.
- É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que a averbação da reserva
florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão,
desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei
4.771/65.
Recurso especial provido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA
TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso
especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Vasco
Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart
371
Della Giustina e Paulo Furtado votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausentes,
justificadamente, os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti.
2. Apresentação do caso
O presente acórdão julga Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do
Estado de Minas Gerais contra decisão proferida pelo Tribunal Justiça do Estado de
Minas Gerais em Ação de Retificação de Registro Público.
A Ação de Retificação de Registro Público foi proposta, com a anuência de seis
confrontantes do imóvel e requerendo a citação dos demais, sob a principal alegação
de que, após terem adquirido propriedade rural, os autores, procedendo à medição
do imóvel, constataram que sua área real seria de 347.00 HA (hectares), maior que
a constante do registro imobiliário, que informava tão-somente 35.40 HA (trinta e
cinco hectares e quatro décimos de hectare). Por esta razão, ingressaram em juízo
pleiteando a retificação do registro imobiliário para que dele constasse a área real
do imóvel.
O Ministério Público do Estado de Minas Gerais exarou parecer, ainda em primeira
instância, em que opinava pelo indeferimento do pedido de retificação por dois
motivos, quais fossem: primeiro, que a retificação implicaria aumento de quase dez
vezes sobre a área anteriormente constante da matrícula; segundo, por ausência de
averbação, na matrícula, de reserva florestal equivalente a 20% da área do imóvel.
O juízo singular acolheu o pedido de retificação, contrariando a orientação do
Ministério Público, que apelou.
No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o representante do MP/MG
pugnou pelo provimento do recurso apenas quanto ao segundo fundamento, relativo
à necessidade de averbação da reserva legal.
No entanto, a decisão publicada no acórdão também negou provimento ao recurso,
nos termos da seguinte ementa:
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - RETIFICAÇÃO DE REGISTRO
DE IMÓVEL - ALTERAÇÃO DE ÁREA - AUSÊNCIA DE
IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA - ADEQUAÇÃO DO
REGISTRO À SITUAÇÃO DE FATO PREEXISTENTE ADMISSIBILIDADE - AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL.
Comprovada a divergência para maior entre a área real do
imóvel e aquela lançada no assento do registro público,
aliado ao fato de inexistir impugnação fundamentada pelos
confrontantes, tem o proprietário direito à sua retificação, na
forma do art. 1.247 do Código Civil, e do artigos 212 e 213
da Lei de Registros Públicos. Descabe a pretensão ministerial
no tocante à averbação de reserva legal, com fundamento no
Código Florestal (art. 16), visto tratar-se de pedido incompatível
372
• Direito Processual Coletivo
com a natureza do procedimento retificatório, de jurisdição
voluntária (arts. 213, e §§ da Lei nº 6.015/73).
O Ministério Público mineiro interpôs Recurso Especial, cujas razões foram acolhidas,
nos termos da seguinte emenda:
DIREITO AMBIENTAL. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA
DE IMÓVEL, FORMULADO POR PROPRIETÁRIO RURAL.
OPOSIÇÃO DO MP, SOB O FUNDAMENTO DE QUE SERIA
NECESSÁRIO, ANTES, PROMOVER A AVERBAÇÃO DA
ÁREA DE RESERVA FLORESTAL DISCIPLINADA PELA
LEI 4.771/65. DISPENSA, PELO TRIBUNAL. RECURSO
ESPECIAL INTERPOSTO PELO MP. PROVIMENTO.
- É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que
a averbação da reserva florestal é condição para a prática
de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento
ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei
4.771/65.
Recurso especial provido.
É sobre esta decisão que passamos a tecer alguns comentários.
3. Comentários ao acórdão
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, de acolher as razões recursais apresentadas
pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais defendidas desde a primeira
instância, baseia-se, entre outros aspectos, na aplicação do Código Florestal.
Inobstante a discussão atualmente existente sobre a constitucionalidade ou não do
Código Florestal – matéria instigante que, entretanto, não é objeto desta análise, o
Tribunal Superior Infraconstitucional dá aplicabilidade à letra daquela Lei 4.771 de
15 de setembro de 1965, nascida sob a égide do estado militar, que expressamente
determina:
Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa,
ressalvadas as situadas em área de preservação permanente,
assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização
limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis
de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva
legal, no mínimo:
I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de
floresta localizada na Amazônia Legal;
II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em
área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no
mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento
na forma de compensação em outra área, desde que esteja
localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos
do § 7o deste artigo;
III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de
Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart
373
floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas
demais regiões do País; e
IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos
gerais localizada em qualquer região do País
[...]
§ 8º A área de reserva legal deve ser averbada à margem
da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis
competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos
casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento
ou de retificação da área, com as exceções previstas neste
Código.
No entanto, não é o Código Florestal a única norma que embasa o entendimento do
MP no sentido de ser exigida a averbação da área de reserva legal da propriedade
rural em registros imobiliários.
A própria Lei de Registros Públicos, Lei nº. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, trata
desta exigência de averbação da área de reserva legal, senão vejamos:
Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão
feitos. [...]
II - a averbação:
[...]
22. da reserva legal;
E a averbação da reserva legal, como exigido pela Lei de Registros Públicos, é
novidade incluída pela Lei 11.284, de 2 de março de 2006 que, dispondo acerca da
gestão de florestas públicas para a produção sustentável, institui o Serviço Florestal
Brasileiro – SFB, cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF e
altera legislação.
Apesar da novel redação trazida pela Lei da Gestão de Florestas Públicas à Lei de
Registros Públicos, e da redação do Código Florestal, tanto o juízo singular quanto o
do Tribunal de Justiça mineiro entenderam ser descabida a exigência da averbação,
visto que ela seria incompatível com a via eleita de jurisdição voluntária.
Os desembargadores do TJMG assim julgaram:
No tocante à alegação do Ministério Público quanto à
demarcação de reserva legal prevista no § 2º do artigo 16 do
Código Florestal, evidencio que o procedimento retificatório
não é a via adequada para tal discussão, vez que não se insere
nas hipóteses previstas no artigo 213 e §§, da Lei n. 6.015/73.
Nesse sentido, vale transcrever julgado do eg. Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo:
AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA – PEDIDO DE AVERBAÇÃO
DE RESERVA LEGAL DEFERIDO – INADEQUAÇÃO DA VIA
ELEITA PARA TAL FIM.
374
• Direito Processual Coletivo
Mesmo sendo induvidosa a legitimidade da atuação do
representante do Ministério Público nos procedimentos
retificatórios de registros públicos, ainda que se de natureza
não contenciosa (Código de Processo Civil, artigos 82, III, in
fine e 1.105, combinado com o artigo 84; LRP, artigo 213, §
3º), o certo é que a via retificatória indicada pelo artigo 213
e seus parágrafos da lei específica não é adequada para a
resolução de debate envolvendo a compulsoriedade, ou não,
da averbação da reserva legal a que alude o artigo 16, § 2º
do Código Florestal (TJSP, AI 128.699-4, 6ª CDPriv., Rel.
Des. ANTONIO CARLOS MARCATO, j. 21.10.1999). NEGO
PROVIMENTO AO RECURSO.
No entanto, o STJ reformou a decisão do TJMG, por entender que:
- É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que
a averbação da reserva florestal é condição para a prática
de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento
ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei
4.771/65.
Como apontado pela própria Ministra relatora, a discussão da lide cingia-se a
“estabelecer se o deferimento de pedido, formulado pelo proprietário, de retificação
de área de imóvel rural, pode ser condicionado à prévia averbação, na respectiva
matrícula, da reserva florestal estabelecida por lei”.
Há relevantes argumentos contrários à manutenção desta exigência, como a falta de
regulamentação de prazo para tal averbação, bem como a inexistência, nas palavras
da relatora, de “qualquer menção a que seja averbada a reserva como condição para
que se autorize a alienação, averbação ou desmembramento do imóvel”.
No entanto, conforme admitido no próprio voto, “é necessário interpretar
teleologicamente o referido art. 16 do Código Florestal para apurar, com os olhos
voltados a todo o sistema de preservação ambiental, se a pretensão formulada pelo
MP/MG merece guarida”.
A partir desta interpretação teleológica, apontada para a efetivação da proteção
ambiental, o julgado garante a proteção de direitos coletivos, ainda que em julgamento
de ação de jurisdição voluntária.
É patente que a proteção aos direitos metaindividuais deve ser garantida extra e
judicialmente, seja em ação de jurisdição voluntária ou não.
No entanto, as interpretações no sentido de conferir exigir a averbação de área de
reserva legal como condição sine qua non para alterações dos registros de imóveis
rurais são recentes, inobstante as alterações no Código Florestal a embasar este
requerimento tenham sido nele incluídas ainda em 2001, há quase uma década.
Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart
375
Esta exigência legal e esta nova interpretação dada pelo Superior Tribunal de
Justiça derivam, entre outras razões, da proteção aos Direitos Coletivos alçados ao
patamar de fundamentos constitucionais desde 1988. E, neste caso em exame, há
a colisão entre dois Direitos Fundamentais, quais sejam o Direito ao Meio Ambiente
Ecologicamente Equilibrado e o Direito à Propriedade, interdependentes como todos
os Direitos Fundamentais.
E nesta interdependência, a garantia à propriedade privada e o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado se equivalem, pois, nas palavras de Baracho
Jr. (2000, p. 243), “é equivocado considerar a existência de categorias de direitos
fundamentais, principalmente se isso tiver como conseqüência a possibilidade de,
no plano da validade, se excluir um em benefício do outro”.
Ainda na lição de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (2000, p. 244),
[...] as normas constitucionais que disciplinam a preservação,
recuperação e melhoria do meio ambiente são normas
informadas pelo paradigma do Estado Democrático de Direito,
em sua interdependência com outros direitos e garantias
a direitos fundamentais, como liberdade, propriedade e o
princípio da proteção judiciária. Formam um todo indivisível no
plano da validade jurídica.
É importante, entretanto, considerar que no paradigma
do Estado Democrático de Direito há uma multiplicidade
de direitos fundamentais, que são indivisíveis no plano da
validade jurídica, mas estão em constante tensão no plano da
aplicação.
E reconhecer tanto a indivisibilidade dos direitos fundamentais quanto o fato de que
eles colidem entre si no plano da aplicação prática nos ajuda-nos a evitar problemas
como os da exclusão de uns direitos fundamentais em favor de outros por razões
sociais, políticas ou econômicas, ou de prevalência absoluta de alguns argumentos,
desconsiderando-se direitos fundamentais individuais ou sociais.
Por representarem a essência de uma Constituição, os direitos fundamentais possuem
a máxima força principiológica, irradiando orientações para todo ordenamento
jurídico, vinculando a atuação e interpretação de todos os operadores do direito
e particulares. Para Gregório Assagra de Almeida (2006, p. 323), “as reformas no
legislativo, a atuação do executivo, do judiciário e até o comportamento do particular
devem obediência e respeito aos direitos fundamentais”.
Dentre outras, duas das principais características principiológicas dos direitos
fundamentais são a sua interpretação aberta e ampliativa e sua máxima força
irradiadora.
376
• Direito Processual Coletivo
Para Gregório Assagra de Almeida (2006, p. 323), a interpretação aberta e
ampliativa:
[...] possui dupla dimensão: uma, no sentido de que cada
direito fundamental, em si, merece interpretação aberta e
flexível, sempre ampliativa; outra, presente inclusive no § 2º,
do art. 5º, da CF/88, confere abertura à própria Constituição
como Lei Fundamental, no sentido de que o rol dos direitos
fundamentais não é exaustivo, constituindo-se em rol aberto
do tipo incorporativo.
Prossegue o doutrinador afirmando que (2006, p. 323)
[...] outra característica principiológica dos direitos
fundamentais, que se constitui como de extrema relevância, é
a da máxima força irradiadora e condutora do sistema jurídico
e do comportamento dos operadores jurídicos em geral e dos
particulares.
Desta feita, conclui Gregório Assagra de Almeida que (2006, p. 310)
Direitos Fundamentais são todos os direitos, individuais ou
coletivos, previstos expressa ou implicitamente em determinada
ordem jurídica e que representam os valores maiores nas
conquistas históricas dos indivíduos e das coletividades, os
quais giram em torno de um núcleo fundante do próprio Estado
Democrático de Direito, que é justamente o direito à vida e à
sua existência com dignidade.
E segue ensinando que (2006, p. 291)
[...] é com base na teoria dos direitos constitucionais
fundamentais, consagrada expressa ou implicitamente em
determinada ordem jurídica, que devem ser construídos os
modelos explicativos, vinculatórios da conduta do legislador,
do administrador, do juiz e até mesmo do particular, apesar
de nesta última hipótese haver discussão doutrinária e
jurisprudencial, principalmente no Direito Comparado.
Assim, conforme Sampaio (2003, p. 91),
Direitos Fundamentais não são apenas direitos no sentido
jusprivatista. São vinculações, mandados objetivos referidos
a aspirações, necessidades e interesses humanos que se
adscrevem ora como nítidos dispositivos de direitos subjetivos,
ora como enunciados de princípios e tarefas estatais (e às
vezes individuais e sociais) de hierarquia constitucional,
Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart
377
e que têm como uma de suas marcadas características a interdependência entre
estes direitos fundamentais, pois, conforme Almeida (2006, p. 291), “apesar da
autonomia conferida a cada um, há pontos de intersecções entre eles, objetivando o
alcance das finalidades para as quais eles existem”.
A solução encontrada pelo STJ é a conformação dos direitos fundamentais à
propriedade privada e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, aplicandose ao caso uma interpretação biocentrista do direito, ao condicionar o exercício do
direito de retificação do registro imobiliário – de cunho individual no caso em tela, de
aumento da área lançada no Cartório de Imóveis – ao cumprimento da exigência da
averbação da área de reserva legal – de feição notadamente de direito coletivo, pois
garante a proteção da área reservada de mata.
No entanto, parece-nos que em sua aplicação prática a decisão pode gerar dúvidas,
eis que se o registro imobiliário informa que a área é de 35.40 hectares, a medição
efetuada pelos autores recorridos atesta que a área real é de 347 hectares. Como,
segundo o STJ, a averbação da reserva legal é condição para a retificação do
registro, devendo ser realizada antes deste, surge um impasse: se os proprietários
averbarem a reserva legal de 20% sobre a área registrada, ela não será mais que
2% (dois por cento) do total real da fazenda; ao contrário, se averbarem a reserva
legal – sempre antes de retificarem a área no Cartório de Imóveis, por exigência do
decisum – de 20% sobre a área real, a parcela de reserva legal será maior que o
total da área registrada, razão pela qual o titular do cartório imobiliário não poderá
averbar tal ato.
4. Conclusão
Vimos, sem a profundidade que o tema merece, um louvável exemplo de boa
compatibilização entre o exercício do direito de propriedade, de cunho mais individual,
com o direito ao meio ambiente equilibrado, eminentemente coletivo.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, como proferida, não afasta a possibilidade
de exercício do direito do proprietário de retificar a área do imóvel no cartório de
registro imobiliário, mas sim condiciona o exercício desta prática ao cumprimento
prévio de exigências legais que protegem direitos metaindividuais constitucionalmente
garantidos.
Desta feita, a decisão comentada, de vincular qualquer modificação na matrícula
do imóvel à averbação da reserva legal no cartório imobiliário, parece-nos ajustada
com a melhor e mais moderna doutrina.
No entanto, também nos parece que faltou à decisão aclarar como e em qual
tamanho a área de reserva legal deveria ter sido anteriormente averbada para que
a retificação do registro imobiliário pudesse ser operada.
378
• Direito Processual Coletivo
5. Referências
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito coletivo brasileiro: autonomia metodológica
e superação da summa divisio direito público e direito privado pela summa divisio
constitucionalizada e relativizada direito coletivo e direito individual. 2006. 842 f.
Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder judiciário e reserva legal: análise de recentes
decisões do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v.
21, n. 6, p. 103-131, jan./mar. 2001.
______. Estaria revogado o artigo 2º do Código Florestal? Disponível em <http://
paulobessa.rcambiental.com.br/2009/10/estaria-revogado-o-artigo-2%C2%BA-docodigo-florestal/>. Acesso em 15 nov. 09.
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao
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BRANDÃO, Júlio Cezar Lima. Aspectos jurídicos das florestas de preservação
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Direito Ambiental, São Paulo, v. 6, n. 22, p. 114-146, abr./jun. 2001.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário
Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
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Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 1965. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/LEIS/L4771.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009.
______. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1973. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6015compilada.htm>. Acesso em:
14 nov. 2009.
______. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de
florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério
do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de
Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de
2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771,
de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de
Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart
379
dezembro de 1973; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 3 mar.
2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/ Lei/
L11284.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009.
LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1987.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e meio ambiente na perspectiva do direito
constitucional comparado. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY,
Afrânio. Princípios de direito ambiental na dimensão internacional e comparada.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
380
• Direito Processual Coletivo
Técnica
ATENDIMENTO PRIORITÁRIO A IDOSO
ALMIR ALVES MOREIRA
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
Recurso n.º 762/2008
Processo Administrativo n.º 253/2004
Comarca de Belo Horizonte
Recorrente : Banco Mercantil do Brasil S.A.
Recorrido: Procon Estadual
R E LAT Ó R I O
No dia 3 de setembro de 2004, o PROCON ESTADUAL fiscalizou a agência do
BANCO MERCANTIL DO BRASIL S.A. localizada na Rua Rio de Janeiro, n.º 680,
Município de Belo Horizonte, e lavrou auto de infração, nele consignando que teriam
sido constatadas as seguintes irregularidades:
a) o número de telefone da Central de Atendimento ao Público
do Banco Central do Brasil, embora informado por meio
de cartaz, não vinha acompanhado da observação de que
esse número se destinava ao atendimento a denúncias e
reclamações, descumprindo-se, destarte, o parágrafo único do
artigo 2º da Resolução BACEN n.º 2.878/2001;
b) não estava sendo observado o prazo de quinze minutos
para o atendimento do consumidor, com afronta ao artigo 1º da
Lei Estadual n.º 14.235/2002;
c) não se disponibilizavam assentos para os idosos nas
proximidades das filas de atendimento, desrespeitando-se o
artigo 71, §§ 3º e 4º, da Lei Federal n.º 10.741/2003;
d) não estava sendo assegurado ao portador de deficiência
física o efetivo acesso às dependências da agência bancária,
desrespeitando-se, com isso, o artigo 3º da Lei Estadual n.º
11.666/94;
Almir Alves Moreira •
381
e) não se mantinha cadeira de rodas à disposição do portador
de deficiência e do idoso, com violação do parágrafo 4º do
artigo 3º da Lei Estadual n.º 11.666/94, acrescido pela Lei
Estadual n.º 14.924/2003.
Instaurado o processo administrativo e assegurados o contraditório e a ampla defesa,
sobreveio a Decisão de fls. 62/76, que rejeitou a preliminar de inconstitucionalidade
das mencionadas leis estaduais e, no mérito, julgou configuradas as infrações
imputadas ao autuado, com exceção da descrita no item “c”, aplicando a ele a pena
de multa no valor de R$ 31.292,03 (trinta e um mil duzentos e noventa e dois reais
e três centavos).
Quanto à infração considerada não comprovada, Sua Excelência assentou:
[...] noto que houve um pecadilho do fiscal ao enquadrar como
infração a falta de assento nas proximidades da fila, exigência
esta que não consta do texto de lei.
Com efeito, o § 4º do artigo 71 da Lei 10.741/03 não exige a
instalação de assentos para as pessoas idosas que estejam na
fila, mas sim o atendimento preferencial destas, com reserva
de guichês devidamente identificados para esse fim.
Inconformado, o Banco Mercantil do Brasil S.A. recorreu para este Órgão Colegiado,
insistindo na tese de que as Leis Estaduais n.ºs 11.666/94 e 14.235/2002 são
manifestamente inconstitucionais, porquanto, no seu entender, elas tratam de matéria
da competência privativa da União, a quem cabe legislar sobre o funcionamento das
instituições financeiras. Alegou, ainda, que, no tocante à lei que fixa tempo para o
atendimento, “encontra-se amparado por segurança a ele concedida em processo
próprio para ver sustar os efeitos da referida lei”. De outro lado, asseverou:
[...] já fora assinado entre a Recorrente e o Ministério Público
do Estado de Minas Gerais, um Termo de Ajustamento de
Conduta, datado de 20 de novembro de 2007, dispondo sobre
todas estas matérias, especificamente sobre a acessibilidade
e tratamento de portadores de deficiência física e regras de
atendimento a clientes, inclusive prioritários.
Este termo que, como dito, fora assinado em 20 de novembro
de 2007, estabelece várias regras e procedimentos que
deverão ser adotados pelo Banco Recorrente sob pena
de multa, estabelecendo o prazo de 20 meses para a final
implementação das providências ali contidas.
Portanto, constata-se já existir, em data em muito anterior
à prolação da decisão guerreada, causa suspensiva de
punibilidade, verdadeira transação realizada entre o Recorrente
e o Estado de Minas Gerais através de sua Promotoria, razão
pela qual não é cabível a imposição de qualquer sanção sobre
os fatos aqui discutidos, a não ser que por descumprimento
dos termos constantes do TAC, quando ultrapassado o prazo
382
• Direito Processual Coletivo
previsto para cumprimento.
Por tal motivo é que fora solicitada a suspensão do presente
feito até final assinatura do TAC anteriormente referido, posto
que ambos os procedimentos guardam exata correlação
de matérias, não sendo admissível, dentro da garantia
constitucional do non bis in idem, dois procedimentos punitivos
sobre os mesmos fatos.
[...]
Tais fatos impedem, por conseqüência lógica inafastável, a
manutenção da decisão ora guerreada, vez que o Recorrente
ainda se encontra dentro do prazo concedido pelo Poder
Público para ajustamento de sua conduta e obediências as
largas disposições contidas no TAC anteriormente citado.
Por fim, afirmou que no interior da agência havia cartaz informando o telefone do
Banco Central do Brasil, cumprindo-se, assim, a exigência regulamentar.
Com esses argumentos, o recorrente requer a reforma da decisão hostilizada.
Eis, em síntese, os fatos.
À douta revisão.
Belo Horizonte, 10 de agosto de 2009.
ALMIR ALVES MOREIRA
PROCURADOR DE JUSTIÇA
Almir Alves Moreira •
383
Recurso n.º 762/2008
Processo Administrativo n.º 253/2004
Comarca de Belo Horizonte
Recorrente : Banco Mercantil do Brasil S.A.
Recorrido: Procon Estadual
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda a Junta Recursal do PROCON Estadual de Minas Gerais, na
conformidade da ata dos julgamentos, incorporando neste o relatório de fls., à
unanimidade de votos, CONFIRMAR A DECISÃO NA PARTE SUBMETIDA A
REEXAME E DAR PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO VOLUNTÁRIO, TÃO
SOMENTE PARA EXCLUIR A INFRAÇÃO RELACIONADA COM A AUSÊNCIA
DE RAMPAS DE ACESSO AO INTERIOR DA AGÊNCIA, RESULTADO QUE NÃO
ALTERA A SANÇÃO APLICADA.
Belo Horizonte, 19 de agosto de 2009.
ALMIR ALVES MOREIRA
Procurador de Justiça
VOTO
Inicialmente, impõe-se salientar que a decisão que considerou não configurada uma
das infrações representa, nessa parte, arquivamento do processo administrativo,
sujeitando-se, pois, ao reexame necessário, nos termos do artigo 23, parágrafo 5º,
da Lei Complementar n.º 61/2001 e do artigo 26 da Resolução PGJ n.º 68/2008.
Irrelevante o fato de o Julgador a quo não ter observado essa regra. Nada impede que
a Junta Recursal exerça a sua função revisora e, de ofício, aprecie os fundamentos
declinados para o arquivamento implícito.
Destarte, o decisum será analisado também no âmbito do reexame necessário.
REEXAME NECESSÁRIO
O item 3.1 do Formulário de Fiscalização n.º 12 tem o seguinte conteúdo:
3.1 O fornecedor proporciona atendimento prioritário ao idoso,
assim considerada a pessoa com idade igual ou superior a
60 (sessenta) anos, garantindo o fácil acesso aos assentos e
caixas, identificados com a destinação a idosos em local visível
e caracteres legíveis? (Lei nº 10.741/03, art. 71, §§ 3º e 4º).
Sim ( ) Não ( ) Se negativa a resposta: autuar e descrever a
ocorrência no CAMPO 04 do formulário.
384
• Direito Processual Coletivo
Ao responder a esse item, o agente do Procon assinalou a opção “não” e, a seguir,
no campo 04, consignou: “Proporciona atendimento prioritário ao idoso, mas não
disponibiliza assentos nas proximidades da fila dos guichês de caixa”. (fl. 6)
Pelo que compreendi do relato feito pelo fiscal, existiam assentos corretamente
identificados e destinados ao atendimento prioritário dos idosos, inclusive com as
informações necessárias ao fácil acesso, mas espalhados pelo interior da agência,
distantes da fila de atendimento.
Se estiver correta essa interpretação, há de se reconhecer que a hipótese, embora não
recomendasse a autuação – visto que a norma legal não define o local de instalação
dos assentos –, merece melhor análise e, quiçá, a edição de recomendação.
Explico.
O parágrafo 4º do artigo 71 da Lei Federal n.º 10.741/2003 dispõe que, para o
atendimento prioritário do idoso, será garantido a ele o fácil acesso aos assentos e
caixas, identificados com a destinação a idosos em local visível e caracteres legíveis.
Por sua vez, o parágrafo único, inciso I, do seu artigo 3º preceitua que a garantia de
prioridade compreende atendimento preferencial imediato e individualizado.
Portanto, atendimento prioritário é sinônimo de atendimento preferencial, que
garante ao idoso o direito de receber o serviço de forma ágil e fácil, sem se sujeitar a
filas comuns, porém com a utilização da mesma estrutura destinada ao atendimento
dos demais clientes. Não se exige estrutura específica com funcionários, caixas e
assentos exclusivos para tal finalidade. O idoso tem o direito de receber o atendimento
na primeira oportunidade, passando na frente dos clientes que não gozam dessa
garantia.
Pois bem. Se esse direito de preferência fosse efetivamente garantido, evidente que
não haveria necessidade de assentos destinados a idosos nas proximidades das filas
de atendimento, já que o tempo de espera seria só o necessário para a conclusão
dos serviços que estivessem sendo prestados. E o funcionário do caixa que primeiro
terminasse o atendimento chamaria o idoso para prestar-lhe os serviços.
Entretanto, a Resolução BACEN n.º 2.878/2001 confere algumas alternativas às
instituições financeiras como forma de garantir o atendimento prioritário ao idoso,
algumas, a meu ver, incompatíveis com a Lei Federal n.º 10.741/2003. São elas:
lugar privilegiado em filas, distribuição de senhas com numeração adequada ao
atendimento preferencial, guichê de caixa para atendimento exclusivo e implantação
de outro serviço de atendimento personalizado (art. 9º, I).
Sem adentrar a questão da compatibilidade de tal norma com a Lei Federal n.º
10.741/2003 – o que deverá ser objeto de estudo mais aprofundado –, fica claro que
a adoção de algumas dessas alternativas implicaria também o dever de a instituição
financeira instalar assentos preferenciais nos locais de atendimento. Afinal, destinar
Almir Alves Moreira •
385
guichê exclusivo para o atendimento das pessoas que têm direito de preferência
acaba gerando fila entre essas pessoas, obrigando-as a permanecer em pé durante
muito tempo, com os desconfortos naturais da espera.
De qualquer forma, esse entendimento estaria fundado em interpretação, pois,
conforme salientado, as normas que tratam do tema não identificam os locais em
que os assentos preferenciais devem ser instalados.
Não se pode, portanto, querer punir o autuado apenas porque os assentos foram
instalados em outros locais.
Diante dessa realidade, confirmo a decisão na parte submetida ao reexame
necessário.
RECURSO VOLUNTÁRIO
Importante ressaltar, de início, que não se confundem o Procon Estadual e a
Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência
e Idosos. Embora ambos sejam da estrutura do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, suas atribuições são distintas; e o fato de a referida Promotoria de
Justiça ter instaurado inquérito civil para apurar se o Banco Mercantil do Brasil S.A.
cumpria as normas que garantem direitos às pessoas portadoras de deficiência e
idosas não significa que o Procon, órgão administrativo detentor de poder de polícia,
esteja impedido de realizar fiscalização e de aplicar penalidades.
Ressalta-se, ainda, que o recorrente não fez prova da alegação de que celebrou
TAC com a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras
de Deficiência e Idosos sobre as questões que são tratadas neste processo
administrativo. E, ademais, ainda que tal ajuste tenha sido celebrado, essa iniciativa
não teria o condão de produzir efeitos retroativos a ponto de impedir o exercício do
poder de polícia do Procon em relação às infrações consumadas.
Em outras palavras: o termo de ajustamento de conduta eventualmente celebrado
com a Promotoria de Justiça tem por objetivo resolver o problema para o futuro,
sem prejudicar providências adotadas pelos órgãos de fiscalização e de defesa do
consumidor pertinentes a infrações anteriores.
De mais a mais, é bem provável que o referido termo de ajustamento – caso tenha
sido celebrado – disponha apenas sobre a implantação das obras necessárias à
adequação do prédio da agência bancária às normas do artigo 3º da Lei Estadual n.º
11.666/94, sem adentrar a questão referente ao tempo máximo para o atendimento do
cliente, porquanto essa é de interesse geral dos consumidores, e não exclusivamente
de pessoas portadoras de deficiência e idosas, fugindo, assim, da atribuição daquela
Promotoria.
386
• Direito Processual Coletivo
Com efeito, ad argumentandum, mesmo que o termo de ajustamento de conduta
exista e se admita que ele possa interferir na atuação do Procon, tal obstáculo ficaria
restrito ao objeto do ajuste, sem prejudicar o processo administrativo na parte em que
aborda as demais irregularidades noticiadas no auto de infração, inclusive porque
estas jamais exigiram providências complexas ou demoradas para que pudessem
ser sanadas.
Outro ponto suscitado pelo recorrente, e que merece abordagem inicial, diz respeito
à alegação de que ele estaria protegido por decisão judicial que suspendeu os efeitos
da lei estadual que fixa tempo para o atendimento do cliente.
Data venia, além de o recorrente não ter feito prova alguma da existência dessa
decisão, tudo indica que a alegação não tem pertinência com o caso dos autos. Na
peça de defesa juntada às fls. 08/10, ele afirmou que a ação judicial (mandado de
segurança) foi proposta contra lei municipal que tratou de tema idêntico, e não contra
a lei estadual.
De qualquer forma, ainda que seja verídica aquela afirmativa, há de se lembrar que
a relação jurídica estabelecida naquele processo se restringiu ao banco impetrante
e ao município que editou a lei impugnada, alicerçada em conflito individual, e,
consequentemente, a decisão ali proferida produziu efeitos inter parte, sem nenhuma
repercussão nas atividades do Procon Estadual.
Lembre-se, ademais, que eventual decisão favorável ao banco naquela ação não
tem o condão de também inibir a atuação do Procon, pois a discussão ali travada
teria por objeto ato normativo diverso daquele que embasou a lavratura do auto de
infração.
Feitas essas observações, rechaçarei, agora, a tese de inconstitucionalidade das
Leis Estaduais n.ºs 11.666/94 e 14.235/2002.
Antes, porém, convém esclarecer que os prestadores de serviços bancários se
sujeitam às normas consumeristas, tema, aliás, tornado incontroverso com o
julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (ADIN n.º 2.591-DF).
A Excelsa Corte, na sessão realizada no dia 7 de junho de 2006, ao analisar o §
2º do artigo 3º do CDC, considerou-o constitucional e assentou que as instituições
financeiras são, todas elas, alcançadas pelas normas do Código de Defesa do
Consumidor, salvo no que tange ao custo das operações ativas e à remuneração
das operações passivas praticadas na exploração da intermediação de dinheiro na
economia. Ou seja, excluídas as operações estritamente financeiras, os demais
serviços prestados pelos bancos envolvem relação de consumo, como, por exemplo,
acesso às agências bancárias, tempo de espera nas filas, consulta de saldo, obtenção
de extrato e outros serviços bancários destinados ao atendimento das necessidades
dos clientes e a contemplar o respeito à sua dignidade, saúde e segurança.
Almir Alves Moreira •
387
Acrescente-se, outrossim, que também o Superior Tribunal de Justiça tem decidido
reiteradamente que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições
financeiras, o que ensejou a edição da Súmula n.º 297.
Consequentemente, as normas de proteção ao consumidor – sejam elas federais,
estaduais ou municipais –, desde que não interfiram nas atividades financeiras dos
bancos, deverão ser respeitadas por essas instituições, porquanto a competência
para legislar sobre produção e consumo, sobre responsabilidade por danos ao
consumidor e sobre a proteção e integração social das pessoas portadoras de
deficiência e dos idosos foi deferida concorrentemente à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios (art. 24, V, VIII e XIV; e art. 30, I, da CF).
Com efeito, os legisladores estaduais mineiros – quando determinaram que nos
edifícios de uso público (aqueles que abrigam atividades que se caracterizam por
atendimento ao público) devem ser mantidas cadeiras de rodas para uso gratuito do
portador de deficiência e do idoso, com indicação obrigatória do local de sua retirada
(Lei n.º 11.666/94, art. 3º, § 4º), e que os clientes das instituições financeiras devem
ser atendidos no prazo máximo de quinze minutos, tempo controlado por meio de
senha (Lei n.º 14.235/2002, arts. 1º e 2º) – não invadiram matéria de competência
exclusiva da União, tampouco matéria afeta à atividade financeira. Apenas
estabeleceram normas para facilitar o atendimento geral e o acesso de pessoas com
necessidades especiais aos edifícios de uso público, matérias relacionadas com a
proteção do consumidor.
A propósito, o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais enfrentou a
questão e reconheceu a constitucionalidade dessas leis. Confiram-se os seguintes
arestos:
[...]
2. ART. 3°, § 4º, DA LEI ESTADUAL N° 11.666/94, (MANTER
NA AGÊNCIA CADEIRA DE RODAS PARA USO GRATUITO
DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA E DE IDOSO, BEM COMO
INDICAÇÃO DO LOCAL ONDE ESSA CADEIRA ESTIVER).
[...] o Executivo Estadual regulamentou a referida Lei Estadual
nº 11.666/1994, por meio do Decreto Estadual nº 43.926/2004.
Embora esta regulamentação do Poder Executivo somente
tenha entrado em vigor após a fiscalização realizada pelas
autoridades reputadas como coatoras, é razoável entender
que, nesta situação, não há impedimento a produção de
eficácia da norma do parágrafo 4º, do artigo 3º, pois nela
não há, expressamente, a norma jurídica que determine a
regulamentação. Com efeito, a norma ora impugnada neste
mandamus é de plena aplicabilidade por não conter nenhuma
situação que impeça sua eficácia jurídica. Além disso, a
observância do preceito normativo combatido, em verdade,
constitui-se na garantia de direitos fundamentais do indivíduo.
É a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento e princípio fundamental da República Federativa
388
• Direito Processual Coletivo
do Brasil, de cumprimento obrigatório por todos os entes
Federativos, conforme artigo 1º, inciso III, da CR/88.
3. Recurso parcialmente procedente. (Apelação n.º
1.0079.04.175850-3/001, Rel. Des. Brandão, j. 18.04.2006)
LEIS ESTADUAIS 11.666/94 e 14.235/02 – ATENDIMENTO
AO CLIENTE DE INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS –
COMPETÊNCIA
SUPLEMENTAR
DO
ESTADO
–
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL – CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR – CONSTITUCIONALIDADE – AUSÊNCIA
DE REGULAMENTAÇÃO PELO EXECUTIVO ESTADUAL –
IRRELEVÂNCIA.
1 - Os Estados têm competência suplementar para legislar
sobre normas de defesa do consumidor, a fim de atingir a
finalidade da Política Nacional da Relação de Consumo,
especificadamente no respeito à dignidade do consumidor.
2 – A lei prescinde de regulamentação, quando contém em seu
texto todos os elementos necessários à sua correta aplicação,
nada havendo a ser minudenciado ou especificado. (Apelação
n.º 1.0105.05.147756-7/001, Rel. Des. Manuel Saramago, j.
02.08.2007)
DIREITO DO CONSUMIDOR. LEI ESTADUAL 11.666/94.
EXIGÊNCIADE CADEIRADE RODAS EM ESTABELECIMENTO
BANCÁRIO. CONSTITUCIONALIDADE. PROTEÇÃO DO
CONSUMIDOR, DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA FÍSICA
E DO IDOSO. RESOLUÇÃO BACEN. COMPETÊNCIA
FISCALIZATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ORDEM
DENEGADA. APELO DESPROVIDO.
1. A Lei Estadual 11.666/94, que impõe aos estabelecimentos
de uso do público, entre os quais as agências bancárias,
disponibilizarem “cadeira de rodas para uso do portador de
deficiência física e do idoso”, não invade competência da
União para legislar sobre matéria financeira, vez que a regra
ali estabelecida é de proteção ao consumidor bem como ao
deficiente físico e idoso.
2. Para justificar a atuação do Ministério Público, um dos
órgãos incumbidos da proteção e defesa do consumidor, pouco
importa que a regra de proteção ao consumidor tenha sido
estabelecida por autarquia federal. O que importa é que se trate
de norma inserida no âmbito das relações de consumo entre o
impetrante e os usuários de seus serviços. (5ª Câmara Cível,
Apelação n.º 1.0317.04.045343-1/001, Rel. Des. Nepomuceno
Silva, j. 01.12.2005)
MANDADO DE SEGURANÇA – LEIS ESTADUAIS Nº
11.666/94 E Nº 14.235/02 – UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO
– REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA – USURPAÇÃO –
VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 21, XXIV, 22, 25, § 1º., E 192
DA CF, E ARTIGOS 9º, VIII, E 17 DA LEI Nº 4.595/64 E LEI
Nº 7.102/83 – INEXISTÊNCIA – AUSÊNCIA DE DIREITO
LÍQUIDO E CERTO – LEGALIDADE DO ATO. Não há falar
Almir Alves Moreira •
389
em arbitrariedade do ato impugnado quando este se encontra
amparado por lei de competência concorrente e suplementar
dos Estados, situação ensejadora da denegação da segurança,
vez que inexistente direito líquido e certo a ser protegido. (6ª
Câmara Cível, Apelação n.º 1.0071.04.018651-3/001, Rel.
Des. Edílson Fernandes, j. 11.12.2007)
Da mesma forma, o colendo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
ao apreciar incidente de inconstitucionalidade de leis municipal e estadual que
determinavam a disponibilização de cadeira de rodas para atendimento aos
idosos nas agências bancárias, considerou-as constitucionais, enfatizando que os
Estados e Municípios têm competência concorrente para legislar sobre assuntos de
interesse local, tais como o atendimento a idosos e deficientes nos estabelecimentos
bancários, o que não invade a competência da União, que diz respeito aos mercados
financeiros (Órgão Especial – Argüição de Inconstitucionalidade n.º 06/2005, Rel.
Des. Sylvio Capanema de Souza, j. 10.10.2005).
Também não destoam dessa orientação os seguintes precedentes de outros tribunais
pátrios:
APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA.
LEI MUNICIPAL. REGULAMENTANDO O TEMPO DE
ATENDIMENTO AOS CLIENTES NOS ESTABELECIMENTOS
BANCÁRIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA.
DEFESA DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO
PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA DE INTERESSE LOCAL.
DESPROVIMENTO DO RECURSO. A competência para dispor
sobre matéria relativa ao Sistema Financeiro e Econômico
pertence à União, mas somente no tocante à atividade fim,
exercida pelos bancos. Assim, não ofende direito líquido e certo
do Apelante a Lei Municipal que apenas defende os direitos
do consumidor, para melhor atendimento, restando, assim,
afastada a tese de invasão de competência legislativa federal.
(TJPR - Apelação Cível n.º 302.270-6, 17ª Câmara Cível, Rel.
Juiz Convocado Francisco Luiz Macedo Junior, j. 19.07.2006)
Constitucional. Consumidor. Mandado de Segurança. Ordem
concedida. Banco. Lei Municipal estabelecendo tempo máximo
para atendimento do público. Constitucionalidade. Precedentes
do STF. A jurisprudência do STF orienta-se no sentido da
validade de lei municipal, que estabelece prazo máximo
para o cliente esperar o atendimento em filas nas agências
bancárias. É que “a matéria não se confunde com a atinente
às atividades-fim das instituições bancárias”. Recurso provido.
(TJRJ, 13ª Câmara Cível, Apelação n.º 2005.001.32323, Rel.
Des. Nametala Machado Jorge, j. 19.04.2006)
Mandado de segurança – Fila em banco – A competência
para legislar sobre filas de espera em agência bancária é do
Município. Precedente do Egrégio Supremo Tribunal Federal.
Preliminares superadas. Recurso improvido. (TJSP, 2ª Câmara
390
• Direito Processual Coletivo
de Direito Público, Apelação n.º 213.332.5/1-00, Rel. Des.
Lineu Peinado, j. 07.02.2006)
O próprio Supremo Tribunal Federal – a quem compete dirimir, em definitivo, a
controvérsia que envolva constitucionalidade de normas – já deliberou a respeito do
tema, e reconheceu que o tempo máximo de espera na fila é assunto de interesse
local, podendo ser disciplinado, inclusive, em lei municipal.
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO.
CONSTITUCIONAL.
CONSUMIDOR. INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. ATENDIMENTO
AO PÚBLICO. FILA. TEMPO DE ESPERA. LEI MUNICIPAL.
NORMA DE INTERESSE LOCAL. LEGITIMIDADE. Lei
Municipal n. 4.188/01. Banco. Atendimento ao público e tempo
máximo de espera na fila. Matéria que não se confunde com
a atinente às atividades-fim das instituições bancárias. Matéria
de interesse local e de proteção ao consumidor. Competência
legislativa do Município. Recurso extraordinário conhecido
e provido. (RE n.º 432.789-SC, Rel. Min. Eros Grau, j.
14.06.2005)
RECURSO EXTRAORDINÁRIO – RAZÕES – HARMONIA
COM PRECEDENTE DO SUPREMO – EFEITO SUSPENSIVO.
A harmonia do inconformismo versado nas razões do recurso
com precedente do Supremo conduz ao empréstimo de eficácia
suspensiva ao extraordinário interposto. COMPETÊNCIA
NORMATIVA – MUNICÍPIO – BANCOS – FILAS – CÓDIGO
DO CONSUMIDOR. Tem-se como demonstrada a relevância
do pedido formulado e o risco de manter com plena eficácia o
quadro impugnado mediante o recurso extraordinário quando
sustentada a competência do Município para legislar sobre
o tempo de atendimento em agência bancária - precedente:
Recurso Extraordinário nº 432.789-9/SC, relatado pelo ministro
Eros Grau na Primeira Turma, com acórdão publicado no Diário
da Justiça de 7 de outubro de 2005. (AC-MC n.º 1124-SC, Rel.
Min. Marco Aurélio, j. 09.05.2006)
Destaque-se, ainda, que o fato de a Lei Federal n.º 10.098/2000 estabelecer norma
geral para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência,
assegurando-lhes prioridade de atendimento, não impede que o legislador estadual,
no exercício de sua competência concorrente (art. 24, XIV, CF), imponha obrigações
compatíveis com tal norma, conforme se infere do § 2º do artigo 24 da Constituição
Federal, que preceitua: “Art. 24 [...]. § 2º – A competência da União para legislar
sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados”.
E, para finalizar essa questão da constitucionalidade, anote-se que as mencionadas
leis estaduais guardam também compatibilidade com o princípio da isonomia.
Isso porque a Lei n.º 11.666/94, ao exigir a disponibilização de cadeira de rodas,
estende-se a todos os edifícios de uso público, não se resumindo àqueles ocupados
por instituições financeiras.
Almir Alves Moreira •
391
Por sua vez, no que tange à lei que dispõe sobre o tempo de atendimento a clientes
em estabelecimento bancário (Lei n.º 14.235/2002), dirigida exclusivamente a tais
entidades, justifica-se o tratamento diferenciado.
Afinal, não se pode esquecer que algumas das relações jurídicas que envolvem
consumidores e instituições financeiras não estão alicerçadas no princípio da oferta e
da procura e na liberdade de escolha. São impostas aos consumidores, sem que eles
possam optar por outra forma de solução dos seus interesses, como, por exemplo,
no caso dos aposentados e pensionistas, que obrigatoriamente devem comparecer
a uma já definida agência bancária para retirar seus proventos e pensões, e dos
servidores públicos ativos, que também se sujeitam às regras bancárias para receber
seus vencimentos. O mesmo ocorre em alguns pagamentos de despesas, quitadas
tão somente em agências bancárias, sem que o devedor tenha outra opção.
Sendo assim, um mínimo se deve exigir em contrapartida: o usuário do serviço
bancário não pode permanecer por horas nas filas de atendimento. E discordar disso
seria mais uma forma de prestigiar o poder econômico em prejuízo da população.
Como sabido, os que enfrentam filas não têm forças para, isoladamente, influenciar
mudanças em certas regras de mercado, mormente por não poderem, em algumas
circunstâncias, exercer o direito de opção.
Anote-se que o artigo 192 da Constituição Federal, ao dispor que o sistema financeiro
nacional deve ser estruturado de forma a servir aos interesses da coletividade, revela
que tal atividade não representa simples segmento da ordem econômica, sob a só
influência das regras da livre concorrência, liberdade do seu exercício e da oferta e
da procura. As instituições financeiras, dada sua importância para o desenvolvimento
do país, estão “vinculadas ao cumprimento de função social” (José Afonso da Silva.
Curso de direito constitucional positivo. RT, 7ª ed., p. 692).
É por isso que o serviço bancário – que é de relevância social – não pode ser
comparado com os setores da atividade estritamente privada, na qual a relação
entre fornecedor e consumidor é pautada primeiro pelas regras da economia, com
absoluta liberdade de escolha.
São essas peculiaridades que tornam as instituições financeiras desiguais dos
demais prestadores de serviços privados, pois, repita-se, as atividades bancárias são
exercidas em um contexto em que o princípio da oferta e da procura se apresenta
mitigado, inviabilizando a opção do usuário – mitigação que não se verifica nos
demais segmentos econômicos privados. Elas, as instituições financeiras, também
se distinguem dos prestadores de serviço público (saúde, seguridade social, justiça
etc.) por terem natureza econômica e finalidade lucrativa, o que legitima o tratamento
diferenciado.
Em caso análogo, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 432.789-9-SC
– ocasião em que foi analisada a constitucionalidade de lei que fixou o tempo de
permanência do usuário dos serviços bancários na fila –, o Ministro Marco Aurélio
assentou:
392
• Direito Processual Coletivo
Legislou-se, atentando para a demanda no próprio município,
a procura do estabelecimento bancário pelo munícipe, e
se observou o princípio da proporcionalidade. Não posso
comparar os bancos com a situação do INSS, em que as filas
são intermináveis, a pessoa tem de chegar de madrugada para,
talvez, naquele dia, de posse de uma senha, ser atendida. Aqui
não, aqui estamos no âmbito de uma atividade econômica que
os dados apontam como altamente lucrativa, e versou-se o
período máximo de permanência na fila, de quinze minutos,
devendo o banco precatar-se, colocar, mesmo diante da
automação dos serviços, gente para atender aos munícipes.
De fato, o princípio da isonomia, para ser tido como violado, reclama a constatação
de que houve tratamento desigual para pessoas ou situações iguais, hipótese que
não está presente no caso em exame.
Em suma, demonstrado que as mencionadas normas estaduais são constitucionais,
torna-se inquestionável a conclusão de que o autuado cometeu infração administrativa,
já que a agência bancária fiscalizada não atendia os clientes no prazo de quinze
minutos e não disponibilizava cadeira de rodas aos portadores de deficiência e
idosos.
No que tange à infração do parágrafo único do artigo 2º da Resolução BACEN n.º
2.878/2001, melhor sorte não assiste ao recorrente.
A mencionada resolução do Banco Central – que dispõe sobre procedimentos a
serem observados pelas instituições financeiras na contratação de operações e na
prestação de serviços aos clientes e ao público em geral – preceitua:
Art. 2º. [...]
Parágrafo único. As instituições referidas no caput devem
afixar, em suas dependências, em local e formato visíveis,
o numero do telefone da Central de Atendimento ao Público
do Banco Central do Brasil, acompanhado da observação
de que o mesmo se destina ao atendimento a denúncias e
reclamações, além do número do telefone relativo ao serviço
de mesma natureza, se por elas oferecido.
Tal ato normativo obriga as instituições financeiras a afixar em suas dependências,
em local e formato visíveis, o número de telefone da Central de Atendimento ao
Público do Banco Central do Brasil, acompanhado da observação de que esse
número se destina ao atendimento de denúncias e reclamações, obrigação que será
respeitada se os usuários dos serviços bancários puderem visualizar a informação e
compreenderem a sua finalidade. Não basta apenas divulgar o número do telefone
da Central de Atendimento ao Público do Banco Central do Brasil. Esse dado isolado,
sem esclarecimento de sua destinação, seria inútil. O usuário do serviço bancário
Almir Alves Moreira •
393
tem que saber que aquele telefone é destinado ao atendimento de denúncias e
reclamações, justamente para que ele possa exercer a defesa dos seus direitos.
Sendo certo que, in casu, o recorrente não cumpria integralmente tal obrigação
quando fiscalizado pelo Procon Estadual – fato, aliás, confessado na defesa de fls.
08/10 –, torna-se impossível isentá-lo de responsabilidade.
Finalmente, em relação à ausência de rampas de acesso à agência, penso que,
nessa parte, a decisão merece ser reformada.
Isso porque a Lei Estadual n.º 11.666/94 não estabeleceu prazo para a implementação
de medidas que garantissem a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade reduzida e, consequentemente, no que tange à execução das
obras arquitetônicas de adaptação, não se poderia, com base nela, exigir o imediato
cumprimento da obrigação.
A omissão foi suprida somente com o advento do Decreto Federal n.º 5.296, de 2 de
dezembro de 2004, que regulamentou lei que estabeleceu normas gerais e critérios
básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade reduzida (Lei Federal n.º 10.098/2000), também aplicável nos
âmbitos estadual e municipal.
Tal decreto definiu o prazo de trinta meses – contado de sua publicação – para que
os edifícios de uso público fizessem adaptações em sua estrutura de modo a garantir
a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida
(art. 19), prazo que se esgotou no mês de junho de 2007.
Ora, no caso em tela, a fiscalização realizada pelo Procon Estadual ocorreu no dia
3 de setembro de 2004, quando nem sequer havia se iniciado o prazo concedido e,
portanto, não havia como se atribuir ao fiscalizado a prática de infração.
Óbvio, porém, que tal ineficácia da lei estadual se restringe à reforma física dos
edifícios de uso público, não abarcando as obrigações inerentes às adaptações dos
móveis, porquanto, nesse ponto, como bem salientou o Desembargador mineiro
Jarbas Ladeira:
[...] o § 4º do art. 3º da lei estadual em comento não foi atingido
pelo decreto federal regulamentar, pois este concedeu prazo
apenas no que tange à realização de obras para construção e
adaptações arquitetônicas nas instalações físicas dos prédios
de acesso ao público, para que em tais locais se facilite a
locomoção e ingresso dos portadores de deficiência, não
havendo que se falar na observância de tal prazo no que tange
à colocação de cadeiras de rodas em locais públicos, vez que
tais objetos são móveis, de fácil aquisição e disponibilização,
não se confundindo com possíveis reformas a serem feitas nos
prédios, hipótese que requer dispensa de tempo e recursos
394
• Direito Processual Coletivo
razoáveis. Por tal motivo ocorreu a concessão de prazo
nesses casos, situação que não se justifica quanto à hipótese
de simples manutenção de cadeira de rodas para uso dos
clientes do Banco Impetrante. (TJMG – Apelação Cível n.º
1.0611.05.015252-3/001, j. 21.02.2006)
A propósito, a ementa desse acórdão foi assim redigida:
Apelação cível. Mandado de segurança para impedir autuação, pelo descumprimento
de lei estadual. Competência legislativa concorrente. Lei estadual que exige que os
bancos disponibilizem cadeira de rodas para uso gratuito do portador de deficiência
e do idoso. Conflito inexistente com as Leis Federais nº 10048/2000 e 10098/2000,
que outorgam o prazo de 30 meses, para o cumprimento das normas atinentes ao
acesso dos portadores de deficiência e dos idosos a prédios e locais abertos ao
público.
Conclusão
Pelo exposto, confirmo a decisão na parte submetida ao reexame necessário e, de
outro lado, dou parcial provimento ao recurso voluntário, tão somente para excluir a
infração relacionada com a ausência de rampas de acesso ao interior da agência,
resultado que não altera a sanção aplicada.
Belo Horizonte, 19 de agosto de 2009.
ALMIR ALVES MOREIRA
Procurador de Justiça
Almir Alves Moreira •
395
8
Artigo • 399
Jurisprudência • 421
Comentário à Jurisprudência • 422
Técnica • 432
Direito
Público
Constitucional
8
Artigo
PRINCÍPIOS INSTITUTIVOS E INFORMATIVOS DOS RECURSOS
CHARLEY TEIXEIRA CHAVES
Mestre pela PUC Minas, Coordenador de pesquisa da
FASPI e professor do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em
Direito Civil e Processo Civil da FIC
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apontar os princípios basilares interligados
aos recursos, bem como reestruturá-los dentro de uma visão constitucional. É feita,
assim, uma revisitação de alguns conceitos ainda obscuros por estarem ligados
a valores solipsistas. Passa-se pelo esclarecimento da importância dos princípios
como normas criadoras de regras comportamentais vinculativas e sua repercussão
para estruturalização de um recurso.
PALAVRAS-CHAVE: Recursos; princípios recursais.
ABSTRACT: This work objectives to point the main principles related to appeals in
the Brazilian Law as well as to organize them according to a constitutional point of
view. Therefore, one analyses concepts that are still obscure due to the fact that they
are related to solipsist values. Furthermore one clarifies the importance of principles
as norms that create behavioral binding rules and emphasizes their repercussion in
the structuralization of an appeal.
KEY WORDS: Appeals; reviewing principles.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípios fundamentais dos recursos. 2.1. Princípio
do duplo “grau” de “jurisdição”. 2.2. Princípio da taxatividade. 2.3. Princípio da
singularidade, ou unirrecorribilidade, ou unicidade. 2.4. Princípio da fungibilidade.
2.5. Princípio da proibição da reformatio in pejus. 2.6. Princípio da voluntariedade.
2.7. Princípio da lesividade do provimento. 2.8. Princípio da dupla conformidade ou
doppio conforme. 2.9. Princípio da consumação. 2.10. Princípio da variabilidade
dos recursos. 2.11. Princípio da complementaridade. 2.12. Princípio das decisões
juridicamente relevantes. 2.13. Princípio da dialogicidade ou dialeticidade. 2.14. A
distribuição dos recursos. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.
Charley Teixeira Chaves •
399
1. Introdução
A presente pesquisa pretende abordar os princípios institutivos e informativos que
fundamentam e regulam a utilização dos recursos. Os princípios serão apresentados
como norma jurídica de característica expansiva ou genérica, sem perder de vista os
limites condutores de interpretação e aplicação no caso concreto.
Os referidos princípios sempre foram compreendidos como elementos irradiadores
do ordenamento jurídico; um norteador da interpretação jurídica com finalidades
restritivas no campo da integralização da norma ou como função supletiva, no
caso de lacuna da lei. Outrora, aponta-se uma certa desvalorização dos princípios
abordados como meros auxiliadores da interpretação da norma jurídica. Consta da
legislação processual (procedimento) cível, no artigo 126 do Código de Processo
Civil (CPC) que em caso de lacuna (nom liquet), o julgador estará autorizado utilizar
“[...] a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Em sentido próximo,
encontra-se o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Percebe-se que
os princípios eram sempre colocados em terceiro lugar.
Coube ao pós-positivismo1 o tratamento adequado a todos os princípios, elevandoos à categoria de norma jurídica.
Os princípios são espécies do gênero norma. Não deixam de ser norma jurídica por
apresentar estrutura diversa das regras.
O princípio é a “[...] norma de justificação ou de fundamentação da regra jurídica”
(LEAL, 2004, p. 246), pois em “[...] resumo, de um princípio (ou princípios) poderão
nascer várias regras jurídicas de múltiplos conteúdos, mas, uma vez transformadas
em normas positivas (leis) identificam-se pelo conteúdo específico que as vincula ao
ramo do Direito correspondente.” (LEAL, 1995, p. 4)
A regra é a formalizadora que projeta e assegura a criação de direitos, isto é, norma
legal. Quanto aos princípios, sempre são estabelecidos pela lei, mas têm conteúdo
genérico e abrangente. Nas palavras de Rosemiro Pereira Leal (1995, p. 3) “[...] o
princípio encontra sua concreção (solidificação) nas regras jurídicas conseqüentes
e, estas, a seu turno, são fatores de embasamento do conteúdo da norma jurídica.”
Continua a explicação de Leal (1995, p. 3): “[...] o princípio sempre conterá um
sentido de validez genérica, sem perder a qualidade de gerar regras nas diversas
especialidades da Ciência Jurídica”.
Portanto, como explica Chaves (2004, p. 47), [...] “as Normas Constitucionais (leis +
princípios) são fontes jurisdicionais do direito e garantia das partes”. Porventura os
princípios não têm características secundárias ou terciárias, mas primárias por ser
norma jurídica. Ao interpretar uma regra descritiva de um comportamento, o princípio
1 Pós-positivistas, como Friedrich Muller, Dworkin, Alexy, Canotilho e outros. Cf. (LEAL, 2002, p. 37).
400
• Direito Público Constitucional
adequado será interpretado em conjunto com a regra específica ou, dependendo do
caso, antes da regra em face da hierarquia das normas.
Importante é a conceituação dos princípios como institutos, quando são denominados
“princípios institutivos”. Leal (2004, p. 220) explica que o instituto refere-se a um “[...]
agrupamento de princípios que guardam unidade ou afinidades de conteúdos lógicojurídicos no discurso legal.” E completa que instituição é um “[...] agrupamento de
institutos (s) e princípios (s) que guardam unidade ou afinidade de conteúdos lógicojurídicos no discurso legal.” Os princípios chamados de “princípios institutivos”,
presentes na Constituição, comportam desdobramentos e “[...] implicações teóricas
de conotações enciclopédicas”. (LEAL, 2004, p. 102).
Há princípios que são fruto de desdobramento dos princípios institutivos ou da
instituição, corolário da expansividade (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14) ou
redesdobramento do instituto. Significa dizer que a norma constitucional expande
toda sua vinculação ao ordenamento jurídico, pois dela se extrai toda principiologia
estruturante do Estado e das suas instituições. Se, por acaso, esse princípio dividirse em outros consectários com afinidade indissociável de conteúdo, será também
um princípio institutivo.
Em síntese, há princípios (institutos) que exteriorizam diversos outros princípios
(subprincípios). Portanto, quando se extraem de um princípio outros subprincípios,
estes recebem a característica de institutos. Sendo assim, existem os chamados
princípios informativos “[...] como variáveis lógico-jurídicos dos princípios institutivos”.
(LEAL, 2004, p. 105).2
Neste contexto, serão abordados alguns princípios como institutos e outros
como consectários destes, isto é, princípios informativos ou subprincípios. Para
exemplificar essa variação, basta verificar que o princípio da ampla defesa é um
princípio institutivo; dele decorrem outros princípios informativos, como o princípio
da oralidade e da publicidade.
Cabe ressalvar que não é nosso objetivo identificar, neste trabalho, todos os princípios
institutivos e informativos, tendo em vista que isso extrapolaria a finalidade deste
artigo; ademais, seria necessário um aprofundamento de diversos princípios para
seu enquadramento nos princípios institutivos, resultando num trabalho um pouco
mais denso e longo.
Após os contornos iniciais desenvolvidos, passa-se ao estudo dos princípios ligados
ao sistema recursal.
2 Em sentido diverso, Nelson Nery Júnior divide os princípios em informativos e em fundamentais. “Os informativos são considerados quase que como axiomas, pois prescindem de
maiores indagações e não necessitam ser demonstrados.” Os princípios fundamentais “são
aqueles sobre os quais o sistema jurídico pode fazer opção, considerando aspectos políticos
e ideológicos.” (2000, p. 34-35).
Charley Teixeira Chaves •
401
2. Princípios fundamentais dos recursos
Antes de abordar os princípios fundamentais dos recursos, torna-se importante
conceituar recurso. Defende-se recurso como um instituto garantido
constitucionalmente, decorrente do art. 5º, incisos XXXV e LV. (ROCHA, 2007, p.
253). Nas palavras de Leal, o “[...] recurso é instituto de garantia revisional exercitável na
estrutura procedimental, como forma de alongar ou ampliar o processo pela impugnação
das decisões nele proferidas e não meio de dar continuidade ao exercício do direito-deação que se exaure, em cada caso, com a propositura do procedimento”. (LEAL, 2004,
p. 192).
Em decorrência da base constitucional dos recursos, Rocha explica alguns pontos
que se extraem da visão constitucionalista dos recursos:
(a) o legislador não pode editar um texto suprimindo genericamente
o recurso;
(b) o legislador não pode criar obstáculos excessivos, formalistas
e desproporcionados, dificultando seu exercício;
(c) o acesso aos recursos instituídos só pode ser limitado em face
de outros direitos constitucionais, respeitado o princípio da
proporcionalidade;
(d) os membros do Judiciário devem interpretar e aplicar as normas
sobre recursos do modo mais favorável a sua admissão.
(ROCHA, 2007, p. 253).
Trata-se de limites constitucionais que expandem e condicionam as normas
infraconstitucionais que regulamentam as variações de procedimentos recursais.
Essa garantia revisional (recurso), porventura, tem amparo constitucional, sendo
permitidas às normas infraconstitucionais criarem uma diversidade de procedimentos
(variabilidade e expansividade) (ANOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14) para implementar
a previsão constitucional do direito ao recurso, dentro dos limites contidos na própria
Constituição.3
Assim, pode-se falar em Direito ao Recurso como procedimento de impugnação. Ex.:
apelação, agravo e embargos declaratórios. Do outro lado, em “[...] Direito de recorrer
que é direito material inviolável (constitucional, direito-garantia →incondicional)”.
(LEAL, 2004, p. 300).
2.1. Princípio do duplo “grau” de “jurisdição”
Antes de abordar as peculiaridades desse princípio, cabe destacar a impropriedade
da terminologia empregada. Primeiro, a jurisdição é sempre una, sendo incorreto
afirmar que exista um desdobramento dela. A jurisdição é o monopólio estatal para
3 Em sentido próximo defende (ROCHA, 2007, p. 253).
402
• Direito Público Constitucional
estabelecer o direito pré-dito, isto é, com base na lei popular, construída através de
seus representantes, em observância ao devido processo legislativo. Esse princípio,
denominado de duplo grau de jurisdição [sic], remete-nos à idéia de que existe uma
jurisdição de primeiro, segundo, terceiro e até quarto graus, o que não é verdade.
Nunes esclarece que “[...] essa diversidade não é possível, uma vez que a jurisdição
é una, qualquer que seja o conflito a se resolver, mesmo que seus órgãos, seus
graus e seus atos sejam plúrimos”. (NUNES, 2003, p. 106). Araken de Assis (2007,
p. 69) também alerta sobre a impropriedade terminológica da expressão duplo grau
e explica: “[...] entre nós, a jurisdição revela-se imune a graus. O direito brasileiro
adotou o princípio da unidade jurisdicional. A separação baseia-se na hierarquia, e
não na qualidade intrínseca do corpo julgador”.
Importante são os ensinamentos de Rosemiro Pereira Leal (2004, p. 235), os quais
apontam que “[...] a Jurisdição é UNA, por isso não é penal, civil, especial, comum
– o procedimento é que pode apresentar características variadas como penal, civil,
especial e o Processo é único para reger todos os Procedimentos”.
Cabe destacar que a jurisdição não é um simples meio do exercício do poder estatal,
mas um direito humano fundamental de movimentar o Estado para apreciar as lesões
ou ameaças a direitos. Nesse sentido, enfatiza Costa:
A consagração e a constitucionalização das instituições
processuais instigaram a reflexão jurídica no sentido de não
se admitir mais a jurisdição com meio do exercício do poder
estatal, mas, sim, como um direito fundamental de movimentar
incondicionalmente o Estado na apreciação das pretensões
levadas até ele. (COSTA, 2007, p. 44).
Outro ponto preocupante desse princípio do duplo grau está na idéia de que a
revisibilidade das decisões proferidas passará sempre por um órgão judicacional
hierarquicamente superior ao anterior, com julgadores mais experientes, mas nem
sempre isso ocorrerá. De acordo com alguns recursos (procedimentos recursais)
previstos em nosso ordenamento jurídico, a decisão hostilizada passará por uma
nova análise sem ser encaminhada a outro órgão judicacional hierarquicamente
superior. Têm-se como exemplos os recursos de embargos de declaração e embargos
infringentes que a decisão irresignada passa a ser revista pelo mesmo órgão julgador
que proferiu a decisão anterior, sendo que nos embargos infringentes terão uma
ampliação do número dos julgadores. Na competência originária de determinados
tribunais também não serão encaminhados para outro tribunal hierarquicamente
superior, porque não existe mais recurso ou porque o recurso será analisado pelo
próprio órgão jurisdicional.
Mais uma vez, a impropriedade da expressão duplo grau não se correlaciona
aos desdobramentos e vertentes teóricas dos recursos. Assim, uma expressão
aparentemente adequada para o princípio do duplo grau de jurisdição seria “duplo
Charley Teixeira Chaves •
403
juízo sobre o mérito”, como se referiu Nunes4, citando Luiz Guilherme Marinoni
ou, para nós, uma dupla decisão sobre um caminho processual percorrido, ainda
que incompleto ou ininteligível, isto é, dupla análise das decisões jurisdicionais
exaradas.
A necessidade da dupla análise das decisões processuais passa por diversos
fundamentos de ordem objetiva, subjetiva, error in judicando e error in procedendo;
não serão aqui abordadas, porém, todas elas. Percebe-se que o vício mais grave de
uma decisão que justificaria uma nova análise do mérito (dupla análise das decisões
jurisdicionais) seria a violação dos princípios constitucionais, tais como ampla
defesa, contraditório, isonomia, fundamentação das decisões, princípio da reserva
legal e direito a advogado.
Os princípios constitucionais institutivos são vinculativos e delimitativos do discurso
processual. Deve-se adotar um medium lingüístico para nortear a discursividade
procedimental, qual seja, a principiologia do processo para reger o debate sobre a
construção das decisões.
Os princípios do contraditório e da ampla defesa são faculdades e garantias
personalíssimas dos litigantes, tendo os juízes o dever de assegurá-los sem nenhuma
restrição. (LEAL, 2007, p. 265).
Para Dhenis Cruz Madeira, “[...] o logos decisional do provimento, em especial,
da sentença constitutiva, não cria direitos, porque esses só são criados com a
observância do devido processo legislativo”. E prossegue: “ [...] o julgador e as partes
não devem atuar apesar da lei, mas sim com a lei.” (MADEIRA, 2006, p. 142).
Sem a observância desses princípios constitucionais, a decisão se torna incompleta
à apreciação da matéria fática, ou porque as questões não foram submetidas ao
debate, ou porque foram mal apreciadas, ou porque nem sequer foram observadas
pelo julgador na decisão final.
Nunes (2003, p. 148) explica que “[...] o instituto do recurso, em face do perigo e da
possibilidade de um desenvolvimento incompleto da primeira instância, a permitir
uma mácula do contraditório e da ampla defesa, passa a ser indissociável de nosso
modelo constitucional de processo”.
A dupla análise das decisões jurisdicionais representa sempre uma vantagem, porque
não se pode desejar uma decisão rápida feita com o desprezo da principiologia
formadora e colaboradora da construção do provimento final, quais sejam, os
princípios constitucionais institutivos.
4 “O duplo grau poder-se-ia denominar, assim, como um ‘duplo juízo sobre o mérito’, de forma a permitir que para cada demanda sejam permitidas duas decisões válidas e completas proferidas por juízos
diversos”. (NUNES, 2003, p. 106).
404
• Direito Público Constitucional
Por outro lado, o certo que esse princípio (dupla análise das decisões jurisdicionais)
não se encontra expressamente consignado na CF/88, o que admitiria a possibilidade
de o legislador (o povo, através dos seus representantes) suprimir um ou alguns
dos seus recursos (procedimentos recursais). A própria CF/88, no seu art. 121, §3º,
estabelece que as decisões do TSE são irrecorríveis, com ressalva às matérias
constitucionais.
Entretanto, o Brasil ratificou (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992) a
Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de
San José da Costa Rica, em seu art. 8, n. 2, h, que assegurou o duplo juízo apenas ao
procedimento penal. Lembra Nelson Nery Júnior que “a garantia expressa no tratado
parece não alcançar o direito processual como um todo, donde é lícito concluir que
o duplo grau de jurisdição, como garantia constitucional absoluta, existe no âmbito
do direito processual penal, mas não no do direito processual civil ou do trabalho.”
(NERY JUNIOR, 2002 b, p.179). Poder-se-ia socorrer ao princípio da isonomia para
estender o efeito daquela norma também às matérias cíveis.
Miranda e Pizzol (2006, p. 8) afirmam que “[...] a previsão é implícita e decorre do
fato de a Magna Carta ter mencionado a existência de tribunais (art. 92 e seguintes
da Constituição Federal)”. Trata-se de uma atividade escalonada com competência
recursal prevista na CF/88.
Por outro lado, a necessidade da dupla análise das decisões jurisdicionais decorre
do devido processo legal (MIRANDA, 2006, p. 7) bem como dos princípios do
contraditório e da ampla defesa (LEAL, 2004, p. 191)5 quando não observados na
sua completude.
Mesmo na falta de recursos próprios pela ausência normativa ou pela supressão de
recursos (medida legislativa), restam-nos os denominados sucedâneos recursais6,
ações autônomas de impugnações que poderiam alcançar os objetivos análogos ao
esperado por um recurso. Basta citar o Mandado de Segurança ação constitucional
e o habeas corpus. Sempre que não existir na esfera da infraconstitucionalidade um
recurso próprio, o Mandado de Segurança surge como instrumento capaz de se opor
ao ato contestado.
Gregório Assagra de Almeida ressalta a importância da utilização do mandado
de segurança, em face da inexistência de recursos específicos para as decisões
interlocutórias, como acontece no processo penal:
Não podemos deixar de reconhecer que no campo do direito
processual penal a aplicabilidade do mandado de segurança,
atualmente, é bem mais ampla do que no direito processual
civil, até porque não há, no processo penal, a recorribilidade de
No mesmo sentido: NUNES, 2003, p. 149.
São requisitos para utilização das ações autônomas: ausência de recurso próprio, não ocorrência da
coisa julgada e requisitos próprios da ação utilizada.
5 6 Charley Teixeira Chaves •
405
todas as decisões interlocutórias. Ademais, o sistema recursal
nele previsto possui inúmeras deficiências que justificam o
alargamento do campo de incidência desse writ. (ALMEIDA,
2007, p. 516).
O que não pode existir é uma decisão que viole os próprios elementos que contribuem
para a formação da decisão jurisdicional; torna-se incompleta por desrespeitar os
princípios constitucionais, elementos de validade de qualquer espécie de decisão
democrática.
Por fim, apesar da possibilidade de um recurso ser analisado pelo próprio prolator
da decisão, o ideal é que a decisão seja analisada por um órgão colegiado e distinto
do anterior, por ser mais democrático um tribunal com formação variada, advindo
de juízes de carreira, de promotores (representantes do Ministério Público) e de
advogados (como acontece na regra do quinto constitucional, art. 94 da CF/88).
2.2. Princípio da taxatividade
O princípio da taxatividade está ligado ao princípio da reserva legal. Os recursos são
criados por lei, não permitindo que as partes criem ao seu bel-prazer um mecanismo
de irresignação (recurso). Também não são recursos os previstos nos regimentos
internos dos tribunais por não terem passado pelo devido processo legislativo. Cabe
destacar que é a lei que determina as formas de impugnação como recursos.
O rol de recursos é sempre legal, construído através do devido processo legislativo,
ainda mais que a iniciativa do projeto de lei é privativa da União, conforme art. 22,
I, da CF/88, isto é, para quem defende os recursos como matéria processual. Para
aqueles que defendem os recursos como procedimento, a competência para a
iniciativa do projeto de lei será concorrente entre a União, os Estados e o Distrito
Federal (art. 24, XI, da CF/88).
Outros mecanismos de irresignação são utilizados como se fossem recursos, apesar
de não serem legalmente constituídos para esse fim: os denominados sucedâneos
dos recursos, que acabam por fazer o papel dos próprios recursos com algumas
peculiaridades que os afastam do enquadramento legal dos recursos. O importante
é que seja utilizado na ausência de um recurso específico para irresignação da
matéria discutida, com exceção do pedido de reconsideração que pode ser manejado
antes do recurso próprio ou em conjunto com ele. Destaca-se que o pedido de
reconsideração não suspende ou interrompe o prazo para o recurso próprio do ato
hostilizado, nesse sentido realça Nery Júnior (2000, p. 69). O artigo 527, parágrafo
único, do CPC, redação dada pela Lei n. 11.187, de 2005, permite que o relator
reconsidere sua decisão, perceptível que o sistema procedimental Brasileiro adotou
a técnica da reconsideração, situação também prevista no art. 523, § 2º do CPC.
Por fim, podem-se citar outros exemplos de sucedâneos recursais: mandado de
segurança contra ato jurisdicional, habeas corpus e ação rescisória (Cf. NERY
JÚNIOR, 2000, p. 56-83).
406
• Direito Público Constitucional
2.3. Princípio da singularidade, ou unirrecorribilidade, ou unicidade
Esse princípio tem como objetivo uniformizar os recursos para configurarem um
mecanismo de impugnação próprio. Para cada decisão hostilizada, existirá um
recurso adequado próprio e sucessivo. Em outras palavras, não se admitem vários
recursos interpostos contra um ato decisório específico. Tem-se um recurso próprio
para irresignar cada matéria fustigada de forma sucessiva (um de cada vez) e nunca
acumulativa.
Como bem citado por Assis, o CPC de 1939, no seu art. 809, mesmo quando
admitia uma variabilidade de recursos dentro do prazo legal, vetava o uso de
mais de um recurso ao mesmo tempo. (ASSIS, 2007, p. 83). O CPC de 1973 não
adotou explicitamente esse princípio como o CPC anterior, mas estruturou os atos
decisórios no art. 162 separando adequadamente quais são passíveis, por exemplo,
de apelação e de agravo.
Assim, ficou determinado, pela leitura da norma processual infraconstitucional,
que, para cada ato decisório, existe apenas um mecanismo de impugnação; a
utilização errônea do recurso acarreta o não preenchimento de um dos requisitos de
admissibilidade dos recursos, qual seja, o cabimento. Portanto, os recursos foram
bem estruturados legalmente para não admitir mais de um recurso contra cada ato
de irresignação.
Nesse sentido manifestou o Superior Tribunal de Justiça (STJ):
STJ. AgRg no Ag 1013411 / RS AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO DE INSTRUMENTO 2008/0029923-0. Ministro
MASSAMI UYEDA (1129).-TERCEIRA TURMA. Dj. 01/10/2009.
DJe 27/10/2009.
Ementa:
AGRAVO
REGIMENTAL
PRINCÍPIO
DA
UNIRRECORRIBILIDADE – INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA
DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E AGRAVO REGIMENTAL
- IMPOSSIBILIDADE - AGRAVO NÃO CONHECIDO.
Em nossa opinião, a única exceção a esse princípio seria o próximo princípio
abordado. Com a nova redação do art. 498 do CPC dada pela Lei nº 10.352/2001,
manteve-se a coerência da unirrecorribilidade dos atos decisórios em relação
aos embargos infringentes. No caso, quando o dispositivo do acórdão contiver
julgamento por maioria de votos e julgamento unânime, têm-se duas decisões com
conteúdos diversos, susceptíveis simultaneamente de mais de dois recursos, recurso
extraordinário (RE) e/ou recurso especial (REsp) e embargos infringentes. Porém,
o “legislador” suspende o prazo de 15 dias, ou na verdade nem sequer começa a
contá-lo, para o RE e REsp, evitando, assim, a cumulação de dois recursos. O prazo
para os demais recursos iniciará da intimação da decisão dos embargos infringentes
ou quando transitar em julgado a decisão majoritária. A interposição dos embargos
Charley Teixeira Chaves •
407
da declaração interrompe o prazo dos demais recursos (art. 538 CPC)7. Mesmo
no caso de sucumbência recíproca, podem surgir de uma decisão dois recursos
distintos: um de apelação e outro de embargos de declaração. Tampouco há uma
exceção ao princípio em tela, pois os recursos atacam conteúdos distintos.
Outro ponto que aparenta ser uma exceção ao princípio tratado seria o caso do RE
e do REsp, que devem ser interpostos conjuntamente, ou seja, simultaneamente.
Na realidade, o princípio da singularidade permanece intacto, pois ainda para cada
decisão existe apenas um recurso próprio. No caso, os recursos extraordinário e
especial, apesar de serem manejados em conjunto, atacam conteúdos distintos. O
primeiro, a matéria constitucional (art. 102, III, CF/88), o segundo, a matéria federal
(art. 105, III, CF/88). São salutares os elucidamentos de Theodoro Júnior (2007,
p. 643): “[...] na previsão de interposição simultânea de recurso extraordinário e
de recurso especial contra o mesmo acórdão (art. 541), há apenas uma aparente
quebra do princípio da unirrecorribilidade, haja vista que cada um deles ataca partes
distintas do decisório impugnado”.
Ademais, quando conhecidos ambos os recursos, não são julgados ao mesmo
tempo. Os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Após o
julgamento do REsp, os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal (STF),
se o REsp não estiver prejudicado. No caso de o relator do STJ convencer-se que
o RE é prejudicial, a análise do REsp sobrestará o julgamento e remeterá os autos
ao STF, em decisão irrecorrível para as partes. No mesmo sentido, o relator do STF
poderá devolver os autos para o STJ, caso não considerar prejudicial o julgamento
primeiro do RE em face do REsp, obrigando o STJ julgar o REsp em primeiro lugar.
É um verdadeiro “vai e vem” dos recursos extraordinários (RE e REsp), conforme se
lê no art. 543 do CPC.
Por fim, cabe esclarecer que a terminologia utilizada para apresentar os recursos,
como recurso ordinário e extraordinário, é empregada no Brasil com conteúdos
distintos ao de outros sistemas como o português, o francês, o suíço e outros.
“O recurso ordinário é reservado para decisão não transitada em julgado e o
extraordinário contra aquela já transitada”. (LEAL, 2004, p. 193). Tecnicamente, todos
os recursos são ordinários por impugnarem as decisões ainda não transitadas em
julgado. Entretanto, no modelo brasileiro, são denominados de recurso extraordinário
aqueles que têm conteúdo de irresignação limitado, admitindo apenas discussões
sobre questões de direito e, ao contrário dos modelos estrangeiros citados, não
estão acobertados pela coisa julgada – trata-se do RE e do REsp.
2.4. Princípio da fungibilidade
Este princípio não se encontra mais previsto no CPC de 1973, porém foi muito utilizado
no ordenamento processual de 1939, previsto no art. 810. Admitia-se um recurso
7 No juizado especial (Lei nº 9.0099/95, arts. 50 e 83, §2º) a interposição dos embargos suspende o
prazo para o recurso.
408
• Direito Público Constitucional
no lugar de outro, sempre que não houvesse má-fé (observar o menor dos prazos
dentre os recursos aptos para impugnar a decisão) e não existisse erro grosseiro
quando da interposição do recurso. Na época foi necessária a utilização do princípio
da fungibilidade, tendo em vista a desorganização e impropriedade (ASSIS, 2007,
p. 87) legal para apresentar mecanismos adequados para impugnar as decisões. O
atual CPC simplificou os mecanismos de impugnação, estabelecendo um recurso
para cada modalidade de resignação, conforme se lê no art. 162 do CPC, facilitando
a vida dos operadores do direito.
Todavia, as impropriedades terminológicas se perpetuaram no ordenamento, a
simplicidade do CPC de 1973 não foi absoluta. Alguns dispositivos legais que se
referiam a “sentença” não coadunavam com a definição do art. 162, por tratarem
de uma decisão interlocutória, mas que recebeu a denominação de sentença. Por
exemplo, o art. 395 CPC, o indeferimento liminar da petição inicial da reconvenção
– art. 315 do CPC e art. 17 da Lei nº 1.060/1950.
Em face da complexidade de alguns dispositivos legais que se referem a alguns
atos como sentença em tese, pelo nome atribuído, o recurso adequado seria o da
apelação. No entanto, de acordo com a sistemática do CPC (art. 162 do CPC), o ato
seria uma decisão interlocutória passível de agravo. Restou uma dúvida objetiva;
houve a necessidade de ressuscitar o princípio da fungibilidade, no processo civil,
tendo como sustentáculo o princípio da instrumentalidade das formas (art. 250 do
CPC).
No processo penal há previsibilidade expressa no art. 579 do CPP. Como bem
explica Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2001, p. 39), “[...] há, nesse caso,
aproveitamento do recurso erroneamente interposto, mediante sua conversão no
adequado, em homenagem ao princípio de que o processo não deve sacrificar o
fundo pela forma”.
O requisito para a admissibilidade da fungibilidade, conforme entendimento
doutrinário (NUNES, 2003, p. 90), é a existência de dúvida objetiva que represente
uma divergência doutrinária e jurisprudencial sobre admissibilidade de um ou outro
recurso. Nery Júnior recepciona o requisito da fungibilidade, qual seja, dúvida
objetiva, e explica “com segurança, que configura erro grosseiro a interposição de
recurso errado, quando o correto se encontra indicado expressamente no texto de
lei.” Sintetizando, “em se tratando de erro grosseiro, não é possível aplicar-se a
fungibilidade, pois não seria razoável premiar-se o recorrente desidioso, que age
em desconformidade com as regras comezinhas do direito processual. Ao revés, se
o erro for escusável, não se caracterizando como grosseiro, a regra tem incidência
plena.”(2000, p. 135 e 140).
O STJ também reconheceu o requisito da dúvida objetiva para aplicação do Princípio
da fungibilidade:
Charley Teixeira Chaves •
409
EMENTA:
RECURSO ESPECIAL - ALÍNEAS “A” E “C” - PROCESSO
CIVIL - AÇÃO DE CONHECIMENTO - EXCLUSÃO DE
LITISCONSORTE PASSIVO - INDEFERIMENTO DA INICIAL
EM RELAÇÃO A UM DOS RÉUS - EXTINÇÃO DA AÇÃO E NÃO
DO PROCESSO - DECISÃO INTERLOCUTÓRIA - RECURSO
CABÍVEL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL.
É firme a orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido
de que o ato judicial que exclui litisconsorte passivo não
põe termo ao processo, mas somente à ação em relação a
um dos réus. Por essa razão, o recurso cabível é o agravo
de instrumento, e não apelação (cf. REsp n. 164.729⁄SP, rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 01.06.1998, REsp n.
219.132⁄RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 01.11.1999 e
REsp n. 14.878⁄SP, rel. para o acórdão Min. Eduardo Ribeiro,
DJU 16.03.1992, dentre outros).
Se inexiste dúvida objetiva acerca do recurso cabível, não se
admite a aplicação do princípio da fungibilidade recursal.
Recurso especial não conhecido
STJ, REsp 427786/RS 2002⁄0043014-5), 2ªT., Rel. Min.
Franciulli Netto, j. 15-4-2003. [Grifo nosso]
Quanto ao prazo para interposição do recurso, tem-se o entendimento de que deve
ser levado em conta o menor prazo dos recursos apontados como duvidosos. De
outro lado, entende-se que o prazo que deve ser observado é do recurso utilizado,
independentemente de ser menor ou não. “Desta forma, ocorrendo dúvida objetiva,
dever-se-á aceitar a aplicação do princípio da fungibilidade, mesmo que haja utilização
do prazo do recurso efetivamente interposto, o qual era tido pelo recorrente como o
correto”. (NUNES, 2003, p. 91).
2.5. Princípio da proibição da reformatio in pejus
O princípio da proibição da reformatio in pejus impede que o julgador profira uma
decisão piorando a sua situação já decidida. Caso a parte recorra sozinha, não
poderá ver sua situação piorar. Esse princípio está ligado ao fato do pedido que
delimita a atuação judicacional (correlação entre a decisão e o pedido); impede-se
que o julgador piore a situação daquele que recorre sozinho, recebendo uma decisão
pior do que já tinha, isto é, reforma para pior. Logicamente que este princípio não se
aplica às matérias de ordem pública que permitem aos julgadores reconhecerem de
ofício, a qualquer momento, como os pressupostos processuais, condições da ação
e requisitos de admissibilidade dos recursos, denominados de efeito translativo dos
recursos.
O exemplo extraído da obra Darlan Barroso é bem elucidativo – em se tratando
de matéria de ordem pública, a decisão do tribunal pode piorar a situação do
recorrente:
410
• Direito Público Constitucional
Seria o caso de, em primeira instância, o juiz ter condenado
o réu ao pagamento da quantia equivalente a dez salários
mínimos. Todavia, inconformado com a procedência parcial, o
autor apela da sentença para obter a elevação da condenação,
mantendo-se o réu conformado com sua condenação (não
recorre). Por sua vez, o tribunal entende que o autor é parte
ilegítima para a ação e acaba por extinguir o processo sem o
julgamento do mérito (cancelando a condenação que o autor
tinha em seu favor). (BARROSO, 2007, p. 15).
Esse princípio está ligado ao princípio da disponibilidade, que delimita a atuação
da atividade jurisdicional. A exceção ao princípio em análise é a matéria de ordem
pública. Como visto supra, não se fala em preclusão; o recurso transfere a análise
da matéria (ordem pública) – independentemente da alegação da parte – juntamente
com a irresignação da parte interessada, aos tribunais, que verificarão os recursos.
Portanto, o princípio ora estudado é abrandado pelo efeito translativo dos recursos.
O princípio da proibição da reformatio in pejus não se aplica ao tribunal do júri. Mesmo
que a primeira decisão fosse anulada, a soberania do tribunal popular não poderia
ser limitada, isto é, os novos julgadores que voltem a julgar a causa (GRINOVER;
GOMES FILHO; FERNANDES, 2001, p. 48).
Por fim, a Súmula 45 do STJ estabelece: “No reexame necessário, é defeso, ao
Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública.”
2.6. Princípio da voluntariedade
A impugnação feita através do recurso depende da manifestação de vontade das
partes. Trata-se da “vontade expressa e motivação de recorrer (induvidosa)” (LEAL,
2004, p. 302). O ordenamento apresenta alguns “recursos” [sic] que não preenchem
o requisito da voluntariedade, com a remessa necessária que erroneamente é
denominada de “recurso” ex offício. Tecnicamente, a remessa necessária (art.
475 do CPC) não se classifica como um recurso por lhe faltarem os elementos da
voluntariedade, da taxatividade e da dialeticidade. Na realidade, trata-se de uma
condição de eficácia da sentença, quando for proferida contra a União, o Estado,
o Distrito Federal, o Município e as respectivas autarquias e fundações de direito
público. A decisão proferida pelo juízo monocrático apenas se torna válida após
ser confirmada pelo tribunal ou órgão superior. Embora o ato esteja previsto em
lei, representa um descaso com a atuação do julgador que apreciou e prolatou a
primeira decisão, condicionando a eficácia da sua decisão a ratificação pelo tribunal,
como se fosse um mero parecerista. Pior: trata-se de uma proteção unilateral, em
nossa opinião, desnecessária e, ainda, violadora do princípio da isonomia. Não há
reciprocidade de tratamento, porque não ficaria condicionada, ao contrário do que
ocorre com o Estado, à confirmação da decisão quando o condenado fosse um
indivíduo (cidadão) que litigasse contra o Estado. Há, dessa forma, uma violação do
princípio da isonomia procedimental injustificável.
Charley Teixeira Chaves •
411
O fundamento da remessa necessária como condição de eficácia da decisão
anteriormente prolatada depende da confirmação do tribunal; representa mais um
resquício do princípio inquisitório no nosso ordenamento jurídico. Embora não seja
um recurso, através do reexame obrigatório, pode a decisão final ser modificada
inteira ou parcialmente (efeito translativo). (NERY JÚNIOR; NERY, 2002, p. 916).
Como o manejamento do recurso passa pela voluntariedade, a sua subsistência
também decorre desse princípio. Sendo assim, a parte que interpôs um recurso
poderá desistir do seu direito de recorrer (fato extintivo), independentemente da
aceitação da outra parte, a qualquer tempo, na sustentação oral, desde que seja
antes do julgamento do recurso (art. 501 do CPC).
Cabe lembrar que, no procedimento penal, o Ministério Público não é obrigado a
recorrer; entretanto, se optar por fazê-lo, não poderá desistir do recurso interposto
(art. 576 do CPP), tendo em vista o princípio da obrigatoriedade consectário da
reserva legal que imprime um dever legal na atuação do Representante Popular
Permanente8.
2.7. Princípio da lesividade do provimento
Este princípio se conecta a um dos requisitos de admissibilidade dos recursos,
qual seja, o do interesse em recorrer que se desdobra no binômio: adequação e
necessidade ou utilidade. De fato, o princípio ora estudado encontra-se ligado à
utilidade ou necessidade.
O interesse de recorrer – “adequação” – está ligado ao requisito de admissibilidade
dos recursos, qual seja, o cabimento, e também ao princípio da singularidade. Já o
que nos interessa, neste momento, é a necessidade (ou utilidade), que se relaciona
com o prejuízo decorrente do fato de a decisão não ter acatado o pedido da parte na
sua integralidade ou parcialidade.
Denomina-se de sucumbência o prejuízo sofrido pela parte quando a decisão
jurisdicional for contrária ao solicitado pela parte ou pelas partes, isto é, for vencido
totalmente ou parcialmente.
Não é qualquer decisão que se torna passível de ser impugnada pela via do recurso.
A parte, caso tenha interesse em recorrer, deve demonstrá-lo. Para tanto, o prejuízo
tem de ser visualizado por uma das partes, porventura sucumbente. A decisão
jurisdicional deve causar qualquer espécie de lesividade para parte, autorizando,
assim, o manejo do respectivo recurso.
O recurso deve ser útil e necessário. Nesse sentido Nunes explica três situações
decorrentes da sucumbência que podem ocorrer: [...] “sucumbência formal, quando
8 Ver: CHAVES, 2008.
412
• Direito Público Constitucional
o dispositivo da decisão diverge do que foi requerido pela parte; sucumbência
material, quando a decisão produz efeitos desfavoráveis às partes e/ou terceiros; ou
quando não se obtém tudo aquilo que se poderia obter com o processo”. (NUNES,
2003, p. 74).
No entanto, as formas de lesividade do provimento para autorizar a impugnação da
decisão pelo recurso podem apresentar outras maneiras. Miranda e Pizzol (2006,
p. 23) apontam “[...] o caso do embargante que requer a declaração do julgado.
Vencedor, na totalidade, poderá embargar em caso de omissão, obscuridade ou
contradição, mesmo não tendo, à primeira vista, qualquer prejuízo”. Percebe-se, no
caso do Ministério Público, a possibilidade de recorrer sem exigir qualquer prejuízo
para ele. Trata-se de uma legitimidade legal, que foge ou abranda o requisito do
interesse de recorrer.
2.8. Princípio da dupla conformidade ou doppio conforme
Este princípio impede a utilização de outro. Quando houver decisão que se conforme
com outra, fica obstaculizada a utilização de um outro recurso ordinário. Um exemplo
são os embargos infringentes, que exigem, além de a decisão ser majoritária,
de mérito, que a anterior tenha sido reformada. Se a segunda decisão, mesmo
majoritária, for pela manutenção ou conforme a primeira decisão, não caberá o
recurso de embargos infringentes.
Nesse sentido, pronuncia-se Nunes (2003, p. 102):
Consiste, numa acepção, na impossibilidade de cabimento de
recurso ordinário quando um determinado provimento já tiver
sido submetido à apreciação de outro órgão julgador mediante
a interposição de recurso que tenha confirmado a decisão,
ou seja, duas decisões coincidentes proferidas por órgãos
judiciais diversos.
Essa é a compreensão que se extrai do art. 530 do CPC: “Cabem embargos
infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação,
a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo
for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.”
2.9. Princípio da consumação
Este princípio decorre da preclusão, mais especificamente o da preclusão
consumativa, que não permite que um ato já realizado seja refeito pela parte. O art.
158 do CPC estabelece: “Os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais
ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou
a extinção de direitos processuais”.
Uma vez praticado o ato, ele se consumou. “Logo, interposto o recurso, extingue-se,
Charley Teixeira Chaves •
413
tout court, o direito de impugnar o provimento, não importa se admissível ou não”.
(ASSIS, 2007, p. 100).
A parte não pode modificar o ato realizado, independentemente se for correto
ou não. O ato, uma vez realizado, não pode ser refeito (a fim de ser corrigido ou
complementado), mesmo que dentro do prazo.
A exceção a este princípio será abordada abaixo, no item 2.11. Nunes (2003, p.
76) visualiza “[...] uma possível exceção à aplicação deste princípio poderia
ser vislumbrada na utilização do preceito do art. 500 do CPC de 1973, quanto à
interposição do recurso incidental, indevidamente denominado pela lei como recurso
adesivo”.
Verifica-se que surge a faculdade da utilização do “recurso adesivo” quando a parte
sucumbente não interpôs o recurso no prazo adequado, materializando a preclusão
temporal, e a outra parte interpôs o seu recurso (sucumbência recíproca). Ao recurso
interposto por qualquer um deles poderá aderir o recurso interposto pela outra parte,
ficando este subordinado ao recurso principal. O direito precluso da parte pode ser
novamente utilizado no prazo das contra-razões recursais, em peça distinta, através
do recurso incidental adesivo, sendo aderido ao principal.
2.10. Princípio da variabilidade dos recursos
Este princípio não mais existe em nosso ordenamento. O CPC de 1939, em seu
artigo 809, pugnava pela prática de vários atos ou recursos, desde que estando
dentro do prazo. Hoje predomina o princípio da consumação.
2.11. Princípio da complementaridade
Este princípio acaba por mitigar o princípio da consumação, pois se admite que o
recurso seja complementado mesmo que seu direito já tenha sido exercitado. Os
fundamentos da complementaridade dos recursos encontram-se nos princípios
do contraditório e da ampla defesa sempre que houver qualquer modificação na
decisão, como no caso de conhecimento e provimento dos embargos de declaração.
Quando a outra parte, também sucumbente, houver interposto o recurso de apelação,
poderá complementá-lo naquilo que foi modificado (integração da decisão obscura,
contraditória ou omissa) pelo julgador por força dos embargos manejados. Ainda
sobre a possibilidade de novo recurso, a nosso sentir, incabível. “Não poderá interpor
novo recurso, a menos que a decisão modificativa ou integrativa altere a natureza do
pronunciamento judicial, o que se nos afigura difícil de ocorrer.” (Cf. NERY JÚNIOR,
2000, p. 155)
Como explicam Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2001, p. 39), “[...] nesse caso
é evidente que a preclusão consumativa não opera, porque os fundamentos da
decisão só surgirão, em sua inteireza, com a integração ou complementação a que
os embargos de declaração deram margem”.
414
• Direito Público Constitucional
No procedimento penal, a situação apontada torna-se difícil de ser visualizada,
já que as razões recursais não vêm junto com a peça de interposição do recurso
(art. 578 c/c arts. 588 e 600 do CPP), ao contrário do que ocorre no procedimento
cível. Pode acontecer de as modificações na decisão por força dos embargos
ocorrerem no prazo para apresentar as razões recursais, não se falando, assim, em
complementaridade.
2.12. Princípio das decisões juridicamente relevantes
Algumas decisões não são passíveis de impugnação por recurso por não serem
consideradas juridicamente relevantes: são os denominados despachos (art. 504
do CPC). O artigo 162, § 3º, esclarece que “São despachos todos os demais atos
do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito
a lei não estabelece outra forma.” Os despachos são atos que não têm conteúdo
decisório. Destaca-se que não é o nome dado ao ato que é importante, mas sim
o seu conteúdo. Assim, se um ato praticado pelo juízo receber a titularização de
“despacho”, porém com conteúdo decisório, será passível de recurso.
Existem outras situações impostas por lei que, por não se tratarem de decisão
juridicamente relevante, obstaculizam momentaneamente o recurso. Trata-se das
decisões interlocutórias em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à
execução, manejadas por agravo de instrumento passível de recurso extraordinário.
De outro modo, o recurso especial ficará retido nos autos principais e somente será
processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a
decisão final ou para as contra-razões (art. 542, §3º do CPC).
O objetivo, pelo que se percebe, é evitar que os tribunais superiores analisem,
através do recurso, o conteúdo dos autos de um processo mais de uma vez, ou
seja, através de recursos que impugnem as decisões interlocutórias via agravo e o
processo principal.
Nunes (2003, p. 95) esclarece que “[...] existe, na atualidade, uma orientação
doutrinária de limitação dos recursos, com o objetivo de evitar a utilização de
recursos intermediários que dilatam o tempo de tramitação procedimental e propiciam
expedientes de chicana”.
Algumas justificativas dessa limitação são apresentadas como: a) a decisão apenas
ficou retida, podendo ser reiterada em momento futuro; b) a decisão interlocutória
recorrida poderá não influenciar na decisão final do processo principal, não causando
nenhum prejuízo para o recorrente (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 204) quando a
sentença lhe seja favorável.
O problema é quando, da análise de recurso então retido, demonstra-se a relevância
do seu conteúdo, o que pode provocar a cassação do ato impugnado, anulando todos
os atos praticados, ou seja, esse dispositivo (art. 542, §3º, do CPC) pode ampliar
Charley Teixeira Chaves •
415
ainda mais a morosidade do Judiciário, pois todos os atos serão refeitos, inclusive
a própria decisão monocrática prolatada. Trata-se de medida contraproducente.
A medida cautelar será o mecanismo processual para tentar destrancar o recurso
especial e extraordinário retido (art. 542, §3º, do CPC) mediante demonstração da
urgência (periculum in mora e fumus bonis juris) ou dano irreparável que poderia ser
provocado pela retenção desses recursos. A jurisprudência do STJ tem reconhecido
essa medida (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 204).
Muitas das vezes, pode ser prejudicial para as partes ficarem os recursos retidos
nos autos aguardando a interposição do recurso contra a decisão final do processo
principal, para só assim reiterarem as alegações da impugnação retida, no prazo
de interposição do recurso contra a decisão final. Cabe indagar: se o recurso
principal não for conhecido, pode o recurso obrigatoriamente retido ser processado
independentemente do recurso principal? Entendemos que sim. Não pode existir
duplo impedimento. O fato de o recurso principal não ser conhecido não impede
o conhecimento do recurso que ficou retido, desde que também apresente os
requisitos de admissibilidade comuns a qualquer recurso e também os peculiares ao
correspondente recurso (procedimento) utilizado.
Outro dispositivo que não se amolda como juridicamente relevante, impedido o seu
processamento de forma imediato é o disposto no art. 527, II, do CPC. Esse dispositivo
permite ao relator converter o agravo de instrumento em agravo retido, remetendo
os autos ao juiz da causa, sempre que não se tratar de decisão suscetível de causar
à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da
apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida. Antes da Lei nº
11.187/2005, da conversão do agravo de instrumento em retido, cabia um recurso.
Agora esse recurso foi suprimido. Dessa decisão não caberá nenhum recurso. Cabe
a parte interessada socorrer-se aos sucedâneos recursais, no caso, o mandado de
segurança ou pedido de reconsideração.
2.13. Princípio da dialogicidade ou dialeticidade
Esse princípio viabiliza a discursividade e a delimitação da transferência da matéria
que tenha sido alvo da impugnação pelo recurso. De um lado, o princípio em
tela permite a manifestação e insatisfação da decisão guerreada com os motivos
demonstrados, do outro, mostra-se encaixado no princípio do contraditório ao
possibilitar o conhecimento das razões recursais à outra parte, que poderá apresentar
suas contra-razões. Leal (2004, p. 302) explica que a “[...] dialeticidade (impõe):
apresentação de elementos claros, inteligíveis para obviar contraditório”.
Pode-se interligar esse princípio ao efeito devolutivo, leia-se: transferência da
matéria irresignada ao tribunal ou juízo (tantum devolutum quantum appelatum),
bem como ao requisito de admissibilidade dos recursos, qual seja, formal quando
se pedem os fundamentos de fato e de direito, na peça recursal (art. 514, II, CPC);
ao terceiro prejudicado deve demonstrar o nexo de interdependência entre o seu
interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial (art. 499,
416
• Direito Público Constitucional
§ 1º, CPC). É perceptível a importância deste princípio também para o juízo, visto
que “[...] as razões do recurso e as respectivas contra-razões são, assim, elementos
indispensáveis para que o tribunal possa examinar seu mérito. Sua falta acarreta o
não conhecimento”. (GRINOVER, 2001, p. 41).
2.14. A distribuição dos recursos
Não se trata de um princípio, mas sua finalidade é evitar que determinadas matérias
impugnadas sejam escolhidas ao bel-prazer do julgador. Nota-se que o art. 548
do CPC liga a distribuição a três princípios, a saber: publicidade, alternatividade
e sorteio. Na realidade a distribuição regida por aqueles princípios visa assegurar
a imparcialidade do juízo, não obstante ser também uma garantia das partes
interessadas para que sua matéria seja analisada de forma isenta. Impede também
que o julgador que conheceu em primeira instância venha novamente realizar o
julgamento da matéria (art. 134, III, CPC).
Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, foi acrescentado ao art. 93 da CF/88 o
inciso XV, que ficou com a seguinte redação: “[...] a distribuição de processos será
imediata, em todos os graus de jurisdição.” Assim, objetiva-se eliminar a morosidade
na distribuição e evitar qualquer limitação de processo por julgadores, bem como
permitir de imediato o conhecimento dos o(s) nome(s) do(s) julgadores(s).
3. Considerações finais
Cabe apontar que o recurso é um instituto democrático de testificação das decisões
jurisdicionais. A necessidade de rever as decisões liga-se ao próprio modelo
democrático que não permite que o conhecimento seja solipsista, mas construído
com os destinatários, aqueles que realmente sofrerão os resultados da decisão
jurisdicional.
Não se pode pensar que o recurso é um obstáculo ao rápido andamento do
procedimento, ainda mais quando a estrutura do Judiciário não acompanha o
crescimento populacional e, conseqüentemente, o aumento de conflito.
Perceptível é a precária falta de material humana (julgadores e funcionários) em face
dos litígios existentes. A criação de novas leis nem sempre resolve a questão social
e acaba proporcionando o problema da legitimidade das leis. O resultado é uma
inflação legislativa com critérios paliativos que não “cidadanizam” o povo, por não
incluí-lo nos critérios de sua formação (projeto de lei).
Não se pode mais olvidar, pelo princípio democrático, de que a formação do
conhecimento seja ainda solitária. Acreditar que todo conhecimento se exaure na
experiência pessoal ou interior de um sujeito, como se fosse uma mera reprodução
pessoal, é um erro que caminha por desconsiderar o outro como sujeito também de
direitos. Nota-se que a construção ou decisão é feita para seres humanos que se
voltaram para o mesmo construtor ou decididor que também é um ser humano.
Charley Teixeira Chaves •
417
Curial destacar que o conflito resistido representa um problema social de aceitação
e cumprimento voluntário das regras de condutas transformadas em leis que, muitas
das vezes, não refletem a realidade nem a pluralidade social. É um equívoco criar
meios paliativos como a redução ou eliminação de meios de impugnação das
decisões proferidas [sic], simplificação do procedimento, e/ou estabelecimento de
requisitos mais rigorosos para admitir uma segunda análise do que já foi proferido,
como se fosse o único problema a quantidade de processos. Esquece-se de que, por
trás da quantidade de processos, existem pessoas (seres humanos) que almejam
uma resolução do seu conflito. Na realidade, o caso posto ao julgador representa um
direito humano fundamental.
O Judiciário é necessário para reestruturar o comportamento desobedecido, desde
que isso seja feito democraticamente.
Qualquer provimento jurisdicional que não permitir a concretização dos elementos
democráticos, base de qualquer formação decisional (contraditório, ampla defesa,
isonomia e direito ao advogado), não será vista como democrática. O fato de o
legislador eliminar o procedimento recursal como principal causa da morosidade do
judiciário [sic] permite que outros mecanismos façam o mesmo, como é o caso dos
sucedâneos recursais, já que o recurso tem amparo constitucional decorrente do
princípio da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
No entanto, deve-se perguntar se uma decisão jurisdicional que não passou pela
principiologia constitucional estaria completa. Com certeza não; essa insuficiência
da decisão jurisdicional decorre da não observância dos princípios constitucionais.
O julgador, ciente da necessidade da observação das garantias principiológicas
constantes da Constituição, ao impulsionar como dever a testificação dos seus
julgados pelas partes interessadas, faz com que o processo comece a incluir o
destinatário da decisão jurisdicional no contexto da participação da esfera decisional.
A participação do afetado que sofrerá o resultado final do provimento jurisdicional,
apesar da decisão ser imperiosa, fortalece ou consubstancia sua validade por
reconhecer a participação do interessado como colaborador e também como
construtor e destinatário daquilo que ajudou a construir. Assim o reconhecimento
das decisões jurisdicionais se legitima pelo critério includente da participação.
4. Referências bibliográficas
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420
• Direito Público Constitucional
Jurisprudência
Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. EDCL. Súmula Vinculante.
Eficácia. Impossibilidade de embargos de declaração adaptar a decisão judicial
à tese jurídica posteriormente consolidada nos tribunais.
No caso, é inaplicável o entendimento consubstanciado em súmula vinculante editada
pelo STF, pois, ao tempo do julgamento do especial, ela não possuía eficácia, visto
que ainda não publicada (art. 103-A da CF/1988 e art. 2º da Lei n. 11.417/2006).
Ademais, ainda que presente a mudança de posição jurisprudencial, conforme
precedente, não é possível, em sede de embargos de declaração, conceder efeito
modificativo para adaptar a decisão judicial à tese jurídica posteriormente consolidada
pelos tribunais. Precedentes citados: EREsp 480.198-MG, DJ 1º/7/2004, e EDcl no
REsp 727.894-PE, DJ 8/5/2006. EDcl nos EDcl no REsp 917.745-RJ, Rel. Min.
Eliana Calmon, julgado em 1º/9/2009.
Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Fixação de subsídio de exgovernador. Equiparação ao subsídio dos Desembargadores do Tribunal de
Justiça.
A Turma decidiu remeter ao Plenário julgamento de recurso extraordinário interposto
pelo Estado do Piauí contra acórdão do tribunal de justiça local que concedera a
segurança para garantir aos ex-governadores daquela unidade federativa a percepção
de subsídio mensal e vitalício igual aos vencimentos do cargo de desembargador
do tribunal de justiça estadual, com base no art. 11 do ADCT (“Cada Assembléia
Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no
prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos
os princípios desta.”). RE 552154/PI, rel. Min. Gilmar Mendes, 17.11.2009. (RE552154)
Jurisprudência •
421
Comentário à Jurisprudência
ANÁLISE CRÍTICA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
QUE CONSIDERA INCONSTITUCIONAL A VEDAÇÃO DA LIBERDADE
PROVISÓRIA PREVISTA NO ART. 44 DA LEI Nº 11.343/2006
ADRIANO NAKASHIMA
Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Conforme consta nas notícias do site do Supremo Tribunal Federal, no dia 13 de
novembro de 2009, o Ministro Celso de Mello, deste Tribunal, ao analisar o pedido de
liminar no Habeas Corpus 101.261, concedeu a referida medida, sob o entendimento
de que a vedação da liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006
ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da
dignidade da pessoa humana.
Vejamos o que consta na notícia:
Presa preventivamente em Mato Grosso pela acusação de
tráfico de drogas, J.M.D. obteve liminar no Supremo Tribunal
Federal (STF) para aguardar em liberdade o julgamento de
seu processo. O decano da Corte, ministro Celso de Mello,
considerou inconstitucional manter a custódia dela com
base no dispositivo da Lei de Tóxicos que proíbe a liberdade
provisória nos crimes previstos na norma.
De acordo com o ministro, o artigo 44 da Lei nº 11.343/2006,
que proíbe ‘de modo abstrato e a priori’, a concessão de
liberdade provisória nos crimes de tráfico de entorpecentes,
é considerado inconstitucional por diversos ‘eminentes
penalistas’. Além disso, ressalta o decano, o STF já declarou
a inconstitucionalidade de um dispositivo virtualmente idêntico,
o artigo 21 da Lei nº 10.826/2003, que veda a concessão de
liberdade provisória para os acusados por porte ilegal de arma
de fogo.
A proibição ‘apriorística’ de concessão de liberdade provisória
não pode ser admitida, sustenta Celso de Mello, uma vez que
se revela ‘manifestamente incompatível com a presunção
de inocência e a garantia do due process (devido processo
422
• Direito Público Constitucional
legal), dentre outros princípios consagrados pela Constituição
da República, independentemente da gravidade objetiva do
delito’.
Além disso, revela o ministro, no curso de processos penais, o
Poder Público não pode agir ‘imoderadamente’, pois a atividade
estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, ‘acha-se
essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade’.
Natureza
O STF tem advertido que a natureza da infração penal não
se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação
cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução
criminal instaurada pelo Estado, lembra o ministro, alegando
ser inadequada a fundamentação da prisão com base no artigo
44 da Lei de Tóxicos. Principalmente, frisa o ministro, depois
de editada a Lei nº 11.464/2007, ‘que excluiu, da vedação
legal de concessão de liberdade provisória, todos os crimes
hediondos e os delitos a eles equiparados, como o tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins’.
Por fim, diz o ministro Celso de Mello, ‘também não se reveste
de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato
excepcional de privação cautelar da liberdade individual, a
alegação de que a paciente deveria ser mantida presa, ante
a imensa repercussão e o evidente clamor público e para
acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça’.
O ministro determinou a expedição de alvará de soltura em
favor de J.M.D., se ela não estiver presa por outro motivo,
para que aguarde, em liberdade, a decisão final do Supremo
no Habeas Corpus (HC) 101261, impetrado na Corte pela
Defensoria Pública da União (Habeas Corpus (HC) 100362MC/SP)1.
Cumpre ressaltar que o Ministro Celso de Mello vem reiteradamente considerando a
vedação da concessão da liberdade provisória nos crimes de tráfico de entorpecentes
e drogas afins inconstitucional.
Ementa: Habeas Corpus. Vedação legal absoluta, imposta
em caráter apriorístico, inibitória da concessão de liberdade
provisória nos crimes tipificados no art. 33, caput e § 1º, e nos arts.
34 a 37, todos da lei de drogas. Possível inconstitucionalidade
da regra legal vedatória (art. 44). Ofensa aos postulados
constitucionais da presunção de inocência, do due process of
law, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade.
O significado do princípio da proporcionalidade, visto sob a
1 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116058>.
Acesso em: 13 nov. 2009.
Adriano Nakashima •
423
perspectiva da ‘proibição do excesso’: fator de contenção
e conformação da própria atividade normativa do estado.
Precedente do supremo tribunal federal: ADI 3.112/DF (Estatuto
do Desarmamento, art. 21). Caráter extraordinário da privação
cautelar da liberdade individual. Não se decreta prisão cautelar,
sem que haja real necessidade de sua efetivação, sob pena de
ofensa ao status libertatis daquele que a sofre. Irrelevância,
para efeito de controle da legalidade do decreto de prisão
cautelar, de eventual reforço de argumentação acrescido por
tribunais de jurisdição superior. Precedentes. Medida cautelar
deferida.
Para uma análise crítica desses julgamentos, é importante destacar a previsão
constante no art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República Federativa do Brasil,
que prescreve que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei
admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Portanto, a contrario sensu, segundo o mandamento constitucional supracitado, a
prisão em flagrante, se decretada legalmente, poderá ser mantida quando a lei não
admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Impende acrescentar, ainda, que esta Constituição da República também considera
como sendo crime inafiançável a prática de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins. A propósito:
Art. 5º [...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis
de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como
crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
À luz dessas considerações, percebe-se que ficou a cargo da legislação
infraconstitucional disciplinar a possibilidade ou não de liberdade provisória sem
fiança para a prática de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
Nesse diapasão, o legislador ordinário, na Lei nº 11.343/2006, estabeleceu que “Os
crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis
e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a
conversão de suas penas em restritivas de direitos”.
No caso em tela, a legislação infraconstitucional, fazendo uma pré-ponderação
da liberdade dos agentes de crime de tráfico e da segurança pública, optou pela
proteção deste último interesse, criando uma regra vedando a liberdade provisória.
Sobre a pré-ponderação realizada pelo legislador, vejamos o ensinamento de Virgílio
Afonso da Silva:
424
• Direito Público Constitucional
O que há é simplesmente o produto de um sopesamento feito
pelo legislador, entre dois princípios que garantem direitos
fundamentais, e cujo resultado é uma regra de direito ordinário.
A relação entre a regra e um dos princípios não é, portanto,
uma relação de colisão, mas uma relação de restrição. A regra
é a expressão dessa restrição. Essa regra deve, portanto, ser
simplesmente aplicada por subsunção. (SILVA, 2009, p. 52).
Conforme nos ensina Anderson Schreiber, quando o legislador prevê uma regra de
prevalência não é possível ao juiz realizar novamente a ponderação de interesses,
mas apenas fazer um controle de validade:
O magistrado ou árbitro não há que proceder, nesta hipótese, à
ponderação entre os interesses conflitantes, porque a regra de
prevalência já vem determinada pelo legislador.
Pode-se, isto sim, proceder ao controle de validade da regra
e mesmo da adequação de seus resultados ao caso concreto,
especialmente quando a regra de prevalência vier estabelecida
por norma hierarquicamente inferior às normas que garantem
proteção àqueles interesses. (SCHREIBER, 2007, p. 158).
Portanto, cumpre neste presente trabalho realizar um controle de validade da
regra que prevê a vedação de liberdade provisória para os crimes de tráfico de
entorpecente.
Para o Ministro Celso de Melo, o legislador, ao proibir, prima face, a liberdade provisória
aos presos em flagrante pela suposta prática de crime de tráfico de entorpecente, agiu
de forma desarrazoada, sendo, por isso, tal vedação inconstitucional. Acrescentou,
ainda, que a tarefa de estabelecer a necessidade de tal prisão cautelar deve ficar a
cargo do juiz, mas não do legislador.
Daí a advertência de que a interdição legal in abstracto,
vedatória da concessão de liberdade provisória, como na
hipótese prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, incide
na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal
Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento,
considerados os múltiplos postulados constitucionais violados
por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode
substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de
situação configuradora da necessidade de utilização, em cada
situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal. O
Supremo Tribunal Federal, de outro lado, tem advertido que a
natureza da infração penal não se revela circunstância apta
a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis
daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo
Estado (Habeas Corpus 100.362-MC/SP).
Adriano Nakashima •
425
Todavia, data venia, em que pese ao entendimento adotado pelo Ministro Celso
de Mello, não há nenhuma inconstitucionalidade, in abstrato, na vedação legal da
concessão de liberdade provisória para os crimes de tráfico de drogas, tendo-se em
vista sua conformidade com a Constituição Federal.
Não é correto o entendimento de que a análise da necessidade da prisão cautelar
é tarefa exclusiva do Judiciário. Conforme já mencionado, a norma constitucional
determinou que a prisão em flagrante poderá ser mantida quando a lei não admitir a
liberdade provisória.
Trata-se, portanto, de uma norma constitucional que prevê a possibilidade de
limitação em seu âmbito de proteção, por meio de uma lei infraconstitucional.
Sobre as restrições aos direitos fundamentais estabelecidas por lei, vejamos o
ensinamento de Canotilho:
Quando nos preceitos constitucionais se prevê expressamente
a possibilidade de limitação dos direitos, liberdades e
garantias através de lei, fala-se em direitos sujeitos a reserva
de lei restritiva. Isto significa que a norma constitucional é
simultaneamente: (1) uma norma de garantia, porque reconhece
e garante um determinado âmbito de proteção ao direito
fundamental; (2) uma norma de autorização de restrições,
porque autoriza o legislador a estabelecer limites ao âmbito de
proteção constitucionalmente garantido. (CANOTILHO, 2003,
p. 1279).
Portanto, tendo-se em vista que foi o Poder Constituinte Originário quem autorizou
a lei infraconstitucional a restringir a liberdade do preso em flagrante, não há que se
em falar em inconstitucionalidade na vedação, prima face, da liberdade provisória.
Por outro lado, não é possível, no caso em tela, a utilização, por analogia, dos
fundamentos constantes na decisão que declarou a inconstitucionalidade da vedação
da concessão da liberdade provisória para os presos pela prática do crime de porte
de armas de fogo.
Afinal, segundo os próprios ditames constitucionais, o crime de tráfico de
entorpecentes, ao contrário do delito de porte de arma, constitui enorme gravidade.
Com efeito, verifica-se que a repressão ao tráfico de drogas é um dos grandes
objetivos da nossa Constituição. Nesse sentido, há na Constituição da República
várias normas constitucionais que visam à repressão da prática de tráfico de
drogas:
Art. 5º. XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os
426
• Direito Público Constitucional
mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se
omitirem;
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
através dos seguintes órgãos:
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente,
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira,
destina-se a:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº
19, de 1998)
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação
fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas
de competência;
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão
imediatamente expropriadas e especificamente destinadas
ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos
alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização
ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em
lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico
apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes
e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício
de instituições e pessoal especializados no tratamento e
recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de
atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do
crime de tráfico dessas substâncias.
Portanto, verifica-se que o crime de tráfico de entorpecentes foi considerado de
enorme gravidade, devendo, por isso, ser reprimido pelo poder público.
Cumpre ressaltar, ainda, que o fato de o art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ter vedado
a concessão da liberdade provisória para os presos pela prática de tráfico de
entorpecentes e drogas afins não tem o condão de desconfigurar a cautelaridade
da prisão provisória.
Com efeito, a lei foi clara ao prescrever que a vedação da liberdade provisória
somente alcança os presos em flagrante que possuem uma latente periculosidade
para a sociedade. Os presos em flagrante que não representarem nenhum risco
para ordem pública podem ser beneficiados com a liberdade provisória. É que, para
estes, existe a previsão de uma causa de diminuição de pena (§ 4º do art. 33 da Lei
nº 11.343/2006), que torna possível a concessão do referido benefício.
Dessa forma, inexistindo prova de que o preso em flagrante integra organização
criminosa ou de que ele se dedica à atividade criminosa e sendo ele primário e de
bons antecedentes, o Ministério Público deve denunciá-lo pela prática do crime de
tráfico minorado.
Adriano Nakashima •
427
Nesse sentido:
Em síntese, quanto às exigências legais para a aplicação
da redução da pena, cabe ao Ministério Público provar sua
ausência e não ao réu provar sua presença. Se não houver
provas de que o agente integra organização criminosa ou
que se dedica ao crime, não havendo provas de reincidência
nem de maus antecedentes, é porque o agente tem direito à
redução. (THUMS , 2008, p. 94).
Ao ser denunciado pela prática do crime previsto no art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/2006,
não existirá nenhuma vedação para a concessão da liberdade provisória, conforme
dispõe o art. 44 desta lei: “Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a
37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e
liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”.
Por outro lado, em se tratando de réu reincidente e de maus antecedentes, bem
como que integra organização criminosa ou se dedica a atividade criminosa, resta
insitamente demonstrada sua latente periculosidade, sendo necessária a manutenção
da prisão cautelar para garantir a ordem pública.
Sobre o assunto, vejamos o ensinamento da doutrina:
Aliás, o Supremo Tribunal Federal, apesar de rechaçar a
cautelaridade no que diz respeito à ordem pública simplesmente
em vista da gravidade do fato ou da violência empregada, tem
entendido que pode haver motivação quanto a este requisito,
havendo assim cautelaridade, quando esta ‘envolve, em linhas
gerais, as seguintes circunstâncias principais: a) necessidade
de resguardar a integridade física ou psíquica do paciente ou
de terceiros; b) objetivo de impedir a reiteração das práticas
criminosas, desde que lastreado em elementos concretos
expostos fundamentadamente no decreto de custódia
cautelar; e c) para assegurar a credibilidade das instituições
públicas, em especial o Poder Judiciário, no sentido da adoção
tempestiva de medida adequadas, eficazes e fundamentadas
quanto à visibilidade e transparência da implementação das
políticas públicas de persecução criminal’. (HC 89238/SP, rel.
Min. Gilmar Mendes, 29.5.2007).
[...]
O que não se justifica é a identificação da garantia da ordem
pública com o clamor social e a gravidade do crime, ou mesmo
o aumento da criminalidade, que são conceitos estranhos ao
processo e ao crime cometido, devendo ser considerada, sim,
a possibilidade de cometimento de outros crimes.
[...]
Aliás, o direito espanhol também permite a prisão para a
tutela da paz social, na forma do art. 503, § 2º, da Ley de
428
• Direito Público Constitucional
Enjuicimiente Criminal, considerando-se a paz social como
‘alarma social produzido pelo delito ou freqüência com que
se tem cometido fatos análogos’, e nem por isso se deixa
de reconhecer, naquele país, a natureza cautelar da prisão.
(LIMA, 2008, p. 372).
No Brasil, a jurisprudência, ao longo desses anos, tem se
mostrado ainda um pouco vacilante, embora já dê sinais de
ter optado pelo entendimento da noção de ordem pública
como risco ponderável da repetição da ação delituosa objeto
do processo, acompanhado do exame acerca da gravidade do
fato e de sua repercussão. (OLIVEIRA, 2008, p. 435).
Outro fator responsável pela repercussão social que a prática de
um crime adquire é a periculosidade (probabilidade de tornar a
cometer delitos) demonstrada pelo indiciado ou réu e apurada
pela análise de seus antecedentes e pela maneira de execução
do crime. Assim, é indiscutível que pode ser decretada a
prisão preventiva daquele que ostenta, por exemplo, péssimos
antecedentes, associando a isso a crueldade particular com
que executou o crime. (NUCCI, 2008, p. 606).
Farta é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a reiteração
criminosa e a participação em organização criminosa são fundamentos idôneos para
demonstrar a necessidade da prisão cautelar:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL
PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM
PÚBLICA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. PRIMARIEDADE E
BONS ANTECEDENTES. 1. Prisão preventiva para garantia
da ordem pública face à circunstância de o réu ser dado à
prática do tráfico de entorpecentes em concurso de pessoas.
Real possibilidade de reiteração criminosa, qual retratado pelo
Juiz, ao afirmar que o paciente fora preso outras vezes em
flagrante delito, voltando a delinqüir quando beneficiado com a
liberdade provisória. 2. Primariedade e bons antecedentes não
asseguram, por si só, o direito à liberdade provisória quando
há fundamento idôneo justificando a custódia cautelar. Ordem
indeferida. (HC 95602, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda
Turma, julgado em 16/09/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008
PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-07 PP-01616).
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL.
PRISÃO PREVENTIVA. DECISÃO FUNDAMENTADA NA
GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRESSUPOSTOS DO ART.
312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DEMONSTRAÇAO.
ORDEM DENEGADA. I - A decretação da prisão preventiva
baseada na garantia da ordem pública e na conveniência da
instrução criminal está devidamente fundamentada em fatos
concretos a justificar a segregação cautelar, em especial diante
da reiteração da conduta. II - Habeas corpus denegado. (HC
Adriano Nakashima •
429
94598, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira
Turma, julgado em 21/10/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008
PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-03 PP-00531).
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS.
PRISÃO PREVENTIVA. ORDEM PÚBLICA. FALTA DE
FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ORGANIZAÇÃO
CRIMINOSA ALTAMENTE ESTRUTURADA. TRÁFICO
DE ENTORPECENTES E OUTROS CRIMES GRAVES.
DENEGAÇÃO. 1. A questão de direito tratada neste writ diz
respeito à possível nulidade da decisão que decretou a prisão
preventiva do paciente por suposta ausência de fundamentação
idônea e adequada. 2. A denúncia imputa ao paciente e aos
co-réus terem se associado em quadrilha para a prática do
tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, na forma de uma
organização criminosa estrutura hierarquicamente com divisão
de tarefas e funções de seus membros. 3. No caso concreto,
há a noção de periculosidade concreta do paciente, acusado
de integrar a facção criminosa intitulada ‘PCC’ (Primeiro
Comando de Capital) que seria responsável por ataques
violentos ocorridos em maio de 2006 contra civis, unidades
prisionais, agências bancárias e veículos, em claro confronto
com as forças de segurança pública do Estado de São Paulo.
4. Registro que houve fundamentação idônea à manutenção
da prisão processual do paciente. Atentou-se, portanto, para o
disposto no art. 93, IX, da Constituição da República. A decisão
proferida pelo juiz de direito - que decretou a prisão preventiva observou estritamente o disposto no art. 1°, da Lei n° 9.034/95
e no art. 312, do CPP, eis que há elementos indicativos no
sentido de que as atividades criminosas eram realizadas de
modo reiterado, organizado e com alta poder ofensivo à ordem
pública. 5. A garantia da ordem pública é representada pelo
imperativo de se impedir a reiteração das práticas criminosas.
6. A regra do art. 7°, da Lei n° 9.034/95, consoante a qual não
será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos
agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na
organização criminosa, com efeito, revela-se coerente com
o disposto no art. 312, do CPP. 7. Habeas corpus denegado.
(HC 94739, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma,
julgado em 07/10/2008, DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC
14-11-2008 EMENT VOL-02341-03 PP-00442).
Portanto, não há que se falar em desrespeito ao princípio da proporcionalidade
no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, tendo-se em vista que seu objetivo é justamente
não conceder liberdade provisória a agentes de crimes reincidentes, de maus
antecedentes, que integram organização criminosa ou que se dedicam a atividades
criminosas.
Enfim, a vedação legal constante no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 tem como objetivo
impedir a reiteração das práticas criminosas, sendo, por isso, compatível com as
regras e os princípios constantes na Constituição da República Federativa do Brasil.
430
• Direito Público Constitucional
Referências bibliográficas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. v. 3. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão
dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007.
SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.
THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas: crimes, investigação e
processo. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008.
Adriano Nakashima •
431
Técnica
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
ELAINE MARTINS PARISE
Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
RENATO FRANCO DE ALMEIDA
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
MARIA ANGÉLICA SAID
Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
EXCELENTÍSSIMO PRESIDENTE DA CORTE SUPERIOR DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº XXX/XXX
RELATOR: DESEMBARGADOR KILDARE CARVALHO
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por sua Coordenadoria
de Controle de Constitucionalidade, no uso de suas atribuições constitucionais e
legais, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento no parágrafo único do
artigo 4º da Lei federal n.º 9.868/1999 e dos artigos 333 e 334 do Regimento Interno
desse Tribunal de Justiça, interpor AGRAVO contra a v. decisão monocrática que
apreciou e indeferiu pedido de liminar, e suspendeu o trâmite da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.º XXXX/XXX, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça,
fundamentando-se nas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.
Belo Horizonte, 12 de agosto de 2009.
ELAINE MARTINS PARISE
Procuradora de Justiça
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
432
• Direito Público Constitucional
RENATO FRANCO DE ALMEIDA
Promotor de Justiça
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
MARIA ANGÉLICA SAID
Promotora de Justiça
Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º XXX/XXX
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
AGRAVADOS: PREFEITO E CÂMARA MUNICIPAL DE XXXX
Egrégio Tribunal de Justiça,
Colenda Corte Superior,
Eminentes Desembargadores,
1. Exposição da demanda
O Procurador-Geral de Justiça ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
com pedido liminar em relação ao artigo 4º da Resolução Legislativa n.º 05, de 1º de
setembro de 2008, do Município de XXX, que fixa o subsídio dos Vereadores para a
legislatura 2009/2012, bem como confere a percepção de décimo terceiro salário a
esses agentes políticos eletivos.
Argumentando, em síntese, que os agentes políticos eletivos não podem, à luz dos
dispositivos constitucionais de regência, perceber quantia a título de décimo terceiro
subsídio, o Autor requereu o regular processamento da ADI e a declaração de
inconstitucionalidade do artigo 4º da Resolução Legislativa n.º 05, de 1º de setembro
de 2008, por ofensa aos artigos 31, caput; 165, § 1º e 179, todos da Constituição do
Estado.
Inicialmente, o Desembargador-Relator deferiu a cautelar, consoante decisão de fls.
42/43.
Notificado, o Prefeito do Município de XXX apresentou pedido de Reconsideração,
às fls. 55/63, sob a alegação de ilegitimidade do Requerente e incompetência
do Tribunal de Justiça para processar e julgar a ação, uma vez que, entende o
Requerido, cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar Ações Diretas de
Inconstitucionalidade cujos objetos ofendam dispositivos da Constituição Estadual,
de repetição obrigatória da Constituição da República.
Elaine Parise • Renato de Almeida • Maria Angélica Said
433
O Presidente da Câmara Municipal, ao prestar suas informações, às fls. 66/76,
requer a cassação da liminar e a improcedência do pedido, também sob a alegação
de incompetência do Tribunal de Justiça.
Após, o Relator determinou, à fl. 80, a retirada dos autos da pauta julgamento da e.
Corte Superior desse Tribunal, com o objetivo de analisar o pedido de Reconsideração
interposto pelo Município de XXX.
Conclusos os autos, o Relator reviu seu posicionamento, revogou a liminar pleiteada
e suspendeu o processamento da presente ADI até pronunciamento final do Supremo
Tribunal Federal nos autos da Reclamação n.º 7396/MG. (fl. 85/86)
Eis parte do teor da decisão monocrática:
Após uma nova minuciosa análise dos autos, aliado às recentes
manifestações proferidas por este Julgador e pelos demais
pares perante a Corte Superior, tenho que o provimento judicial
que deferiu o pedido cautelar na presente ação direta, de fato,
merece ser revisto. Com efeito, verifiquei o teor da decisão da
Reclamação n.º 7.396, da lavra do eminente Ministro Menezes
de (sic) Direito, do Supremo Tribunal Federal. Em seu bojo,
constata-se que restou suspenso decisum tomado no âmbito
deste egrégio Tribunal envolvendo matéria idêntica a de que
se trata, ao argumento de que o tema afronta a Constituição
Federal, e não a Constituição Estadual e, neste contexto, a
norma impugnada estaria fora do alcance dado ao controle
concentrado de inconstitucionalidade deste Tribunal de
Justiça.
[...]
Com estas considerações, atento à Reclamação n.º 7.396 do
colendo Supremo Tribunal Federal, reconsidero a decisão de
fls. 42/43-TJ, suspendendo não só a cautelar anteriormente
deferida, mas também o processo em si, até que se julgue a
referida ação perante a Instância Superior.
Como se demonstrará, a decisão monocrática, na parte em que suspendeu o regular
trâmite desta ação, merece ser reformada. Isso porque, data venia, a pretexto de
seguir o posicionamento esposado pelo Min. Menezes Direito naquela Reclamação,
fundamentou-se em decisão liminar, isolada e provisória, que não reflete o torrencial
e pacífico entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre os limites da jurisdição
constitucional estadual.
2. Da fundamentação
2.1 Da admissibilidade do agravo
O manejo do presente Agravo está revestido dos requisitos necessários ao deferimento
de seu processamento, bem como de seu conhecimento, pois se apresenta tempestivo
434
• Direito Público Constitucional
e constitui o recurso adequado a desafiar a decisão monocrática proferida, à luz do
que dispõe o parágrafo único do artigo 4º da Lei federal n.º 9.868/1999, aplicável,
subsidiariamente, à espécie, assim como dos artigos 333 e 334 do Regimento Interno
desse Tribunal de Justiça.
2.2 Reclamação proposta junto ao Supremo Tribunal Federal em face de
decisão liminar proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
não configura hipótese de suspensão de ADI ajuizada em face de diploma legal
de outro município
Foi determinada pelo eminente Desembargador-Relator a suspensão da presente
Ação Direta de Inconstitucionalidade até o pronunciamento final do Supremo
Tribunal Federal nos autos da Reclamação n.º 7.396MC/MG, que suspendeu os
efeitos da liminar concedida por esse Tribunal de Justiça nos autos da Ação Direta
de Inconstitucionalidade n.º XXX/XXX, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça em
face do § 2º do art. 1º e inciso II do artigo 2º da Lei n.º 9.627, de 09 de outubro de
2008, e dos artigos 3º e 4º da Lei n.º 9.676, de 30 de dezembro de 2008, ambas do
Município de Belo Horizonte-MG.
Não é demais lembrar que a decisão proferida pelo Ministro Menezes Direito é
isolada no âmbito da Suprema Corte e, de qualquer forma, não poderia ser invocada
para embasar a suspensão desta ADI, como veremos a seguir.
Releva inicialmente afirmar

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