territórios de maioria afrodescendente

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territórios de maioria afrodescendente
TERRITÓRIOS DE MAIORIA AFRODESCENDENTE:
Segregação Urbana, Cultura e Produção da Pobreza
da População Negra nas Cidades Brasileiras
Henrique Cunha Jr.*
Maria Estela Rocha Ramos**
Resumo
A situação social econômica e cultural da população afrodescendente tem sido tratada como
um denominador comum da pobreza das áreas periféricas das cidades brasileiras. No
entanto, entendemos que trata-se de um problema de caráter específico e que merece
considerações sociais, históricas e urbanas específicas. As relações sociais contidas na rede
de relações envolvendo a população afrodescendente e eurodescendente brasileira fazem
parte de um capítulo da história brasileira inserido na dominação ocidental e na produção
do racismo brasileiro. Racismo definido no campo das relações históricas como um sistema
de dominação e de desqualificação social da população afrodescendente e não o racismo
definido como sistema de ódio entre as raças. Diríamos como um racismo sem raça e de
representações sociais de dominação com processos de desqualificações que são multifocais,
abrangendo a cultura, a população, o espaço urbano e todas as relações institucionais e
sociais desta população.
Focalizamos as relações de produção da pobreza da população afrodescendente partindo da
história do pós-abolição, da produção social da desqualificação para o trabalho capitalista e
da constituição de espaços urbanos dependentes de políticas públicas de segregação
espacial.
Não estamos interessados apenas na produção da pobreza isolada do protagonismo social e
das lutas e conquistas destas populações. Trabalhamos a partir da realidade vivida por esta
população, com enfoque histórico, das constatações da ocupação de espaços urbanos e das
transformações das cidades brasileiras, principalmente em Salvador e Recife. Neste sentido
procuramos compreender a produção da cultura como a força das identidades e dos sentidos
que esta cultura tem nas relações sociais da sociedade local e nacional.
Tratamos o enfoque teórico com base na afrodescendência e na produção de territórios de
maioria afrodescendente, tendo como base a dinâmica da produção do espaço urbano e da
história sociológica.
Palavras-chave: afrodescendência,
afrodescendentes
cultura
negra,
pobreza
urbana,
territórios
Introdução
A sociedade brasileira apresenta desigualdades sociais profundas, inseridas num processo
histórico brasileiro de exclusão social que inicia desde o período escravista, com a própria
escravidão que durou quase quatro séculos, e que permanece nos dias atuais. As imposições
*
Professor Titular da Universidade Federal do Ceará / Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD Brasil)
Email: [email protected]
**
Arquiteta e Mestre em Urbanismo / Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD Brasil)
E-mail: [email protected]
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de pobreza, no entanto, não se reduzem apenas à concentrações de renda. A questão passa
pela dominação geopolítica e histórica entre europeus e não-europeus, isto é, são reveladas
pelas relações entre brancos e negros. Dado um racismo sem raça e de representações sociais
de dominação que ocorre no Brasil, este é facilmente detectável nas formas como ocorrem as
relações de produção entre as regiões que compõem o Sul e as regiões que compõem o Norte
do país. Dos investimentos federais referentes à implantação da República, destacamos os
planejamentos das cidades, entendendo o espaço urbano um eficiente suporte físico que
reflete as relações de negociações, acordos e conflitos, poder e dominação, dado por um
urbano que apresenta um caráter geopolítico de micro e macro estruturas, etnicamente
determinadas.
Assim, à medida que o país passava do estado imperial ao estado republicano, o Brasil assume
um projeto de nação que renega a população negra, aplicando diversas frentes de atuação
contrárias aos interesses desta população. Sucintamente, destacamos alguns destes fatores: no
plano ideológico, colaboraram neste processo as representações sociais associadas às teorias
raciais “científicas” que projetaram a construção de uma consciência nacional de inferioridade
dos negros e de superioridade dos brancos. Temos, ainda, os ideais do pensamento pautado no
positivismo, liberalismo e universalismo, partindo dos princípios civilizatórios eurocêntricos.
Na prática, este pensamento culminou na expulsão das populações negras dos centros urbanos
através das remodelações urbanas modernizadoras que buscavam uma imagem metropolitana
de uma urbanidade refinada à moda européia. Estas transformações radicais nos centros
urbanos foram justificadas pelas práticas eugênicas chamadas de higienistas, relegando a
população negra, habitante dos cortiços e casas de cômodo das áreas centrais às áreas mais
distantes dos centros urbanos e/ou a áreas desprovidas de infra-estrutura e equipamentos
públicos (RAMOS, 2007).
Ao se pensar em mediações contra a pobreza, entendemos que um dos quesitos das
desigualdades sociais que incidem no Brasil, principalmente sobre a população negra, parte
do espaço urbano, não só pela oferta desigual de serviços públicos que incidem sobre os
territórios ocupados pelas populações negras (principalmente infra-estrutura urbana), mas
também pela forma como o espaço urbano é pensado ideologicamente, projetado e construído,
afastado das formas culturais de apropriação e produção do espaço urbano por estas
populações.
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Estes territórios “negros”, ocupados majoritariamente por população negra ou que são
norteados pela dinâmica sócio-cultural desta população, são conceitualmente denominados de
territórios de maioria afrodescendente, revelando-se no espaço geográfico como base dos
processos de construção das identidades e das relações históricas e sociais das populações
negras (CUNHA JR., 2001; 2007).
É pertinente informar que há uma estimativa de que 70% da população negra residam em
áreas “informais” como as favelas, ocupações ou invasões (PAIXÃO, 2003) e em moradias
autoconstruídas, imprimindo aí suas inscrições históricas e sócio-culturais na organização
destes territórios, uma vez que estes territórios afrodescendentes são fundamentados pela
“lógica da necessidade” e pela lógica cultural.
Esta lógica peculiar, embasada pelos princípios filosóficos e civilizatórios de matriz africana,
aparece na utilização dos interstícios urbanos das cidades (espaços resultantes das segregações
urbanas). Estes princípios projetados nos territórios afrodescendentes configuram diversas
formas de organização espacial, tanto nos seus espaços internos das moradias, quanto nos
espaços externos, constituindo espaços coletivos semi-públicos (espaços construídos
coletivamente) possibilitados por negociações acordadas entre os moradores, vizinhos e
familiares.
Neste ínterim, explicitamos algumas instituições e relações sociais e culturais que se
estabelecem nestes espaços semi-públicos das vilas, avenidas, passagens e becos, cantos e
esquinas destes territórios: famílias matriarcais, relações de compadrio, respeito pela
experiência dos mais velhos, a existência e a relação com o plano metafísico, a valorização da
coletividade, a vinculação com o território, entre outras, legitimando efetivamente a formação
de identidades.
Entendemos esta força das identidades como produção da cultura que se revela pelo
protagonismo social e das lutas e conquistas das populações negras, evidenciadas por estas
formas de sociabilidade de compartilhar o território nas suas formas de produção e
apropriação do espaço urbano pela população negra, criando verdadeiras cidades que foram
surgindo paralelamente ao tecido urbano oficial, dando início aos territórios de maioria
afrodescendente.
No entanto, estas formas peculiares são processadas pelo Estado e por grupos sociais das
elites econômicas e de poder como uma desqualificação social, que foge ao planejamento
hegemônico das cidades.
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Nas cidades brasileiras, a tônica espacial dominante prima pelo individualismo e determina
padrões de ocupação, de uso e de comportamentos que passam por uma estética e imagem
eurocêntricas e trata o espaço urbano a partir de referências tecnicistas e formais, excluindo
possibilidades de modos de vida particulares, empurrando estas populações para estágios de
exclusão social.
Esta exclusão que impede ou dificulta o acesso às infra-estruturas urbanas e às condições de
melhoria de vida, também não reconhece as possibilidades do espaço urbano atuar como
instâncias educativas que se tornam referências positivas na formação cotidiana dos
indivíduos, complementando a educação informal ao longo da vida, em que a maior parte
desta aprendizagem ocorre de forma casual e coletiva, permeada das referências históricas e
sócio-culturais locais. O espaço, além de suporte físico das vivências, é vivido afetivamente,
carregado simbolicamente de significados:
O processo formador do indivíduo está situado na consciência de si,
do seu entorno, da sua localidade (CUNHA Jr., 2001)
Além da desqualificação social propiciada pelas condições do espaço urbano como fator
importante da produção das desigualdades submetidas aos afrodescendentes, há também a
desqualificação social dada pela falta de qualificação profissional. Temos atualmente
discursos conectando a pobreza urbana e a falta de emprego, estando estes concentrados em
torno da qualificação profissional. Temos que, no início do século passado, para as
necessidades técnicas e profissionais da época, a população afrodescendente detinha todas as
qualificações profissionais de um país que entrava em processos de industrialização.
Entretanto, ocorre que a base técnica e tecnológica da sociedade foi se modificando e,
possivelmente, a população afrodescendente não pôde acompanhar a mudança em relação à
qualificação necessária das profissões. Neste sentido, seria importante analisarmos o porquê
deste descompasso técnico e tecnológico. A distribuição espacial das possibilidades de
formação profissional nas cidades do país ao longo do século passado é um ponto de reflexão
para pensarmos tal desajuste (CUNHA JR., 2007).
2. De onde falamos
Partindo das experiências das populações negras demarcadas pelas memórias e vivências da
vida cotidianas e práticas culturais coletivas dos territórios afrodescendentes. Assim, trazemos
uma proposta de rupturas conceituais, históricas e políticas nas abordagens sobre o espaço
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urbano e das áreas de maioria afrodescendente. Falamos no âmbito da cultura, de uma
perspectiva particular dos lugares de descendentes de africanos. Falamos dos lugares
marcados pelas heranças africanas e não de um outro lugar qualquer, genérico e inespecífico.
Falamos dos lugares que moramos e das experiências sociais que nos cercam.
Inserindo um enfoque conceitual que traz nova perspectivas: a forma de como falamos e o
lugar de onde falamos, utilizamos o conceito da Afrodescendência que tem por base a história
e os processos de formação de identidade afrodescendente. As populações resultantes de
imigrações forçadas devido ao sistema de produção do escravismo criminoso têm uma
história em comum no Brasil. São originárias de um território de formação histórica e cultural
comum que é o continente africano, a história e a cultura africanas. Esta população estabelece
novas relações sociais e sofre as transformações condicionadas, de certa maneira, pelo sistema
escravista e depois pelo capitalismo racista. Nestes processos sociais produzem novas
identidades que resultam de uma origem comum e de uma história de contornos comuns.
Afrodescendência é um conceito de base étnica dado pela história sociológica dessas
populações. Os contornos desta identidade afrodescendente são de natureza política e cultural.
Este conceito visa substituir o conceito de raça biológica ou social dado às dificuldades que os
conceitos relativos à raça têm produzido para a humanidade. Os racismos são produtos do uso
do conceito de raça. É estrutural ao racismo a manutenção do conceito de raça como
demarcador das diferenças entre os seres humanos. Devido aos prejuízos sociais constantes
causados pelo uso do conceito de raça e ao fato de este estar sempre referido à cor da pele ou
por outros demarcadores biológicos, que elimina ou relativiza a importância da história, é que
não mais utilizamos o conceito de raça sócia, como construção teórica de natureza histórica, é
que utilizamos o conceito de Afrodescendência (CUNHA Jr., 2001).
Deste modo, podemos expor a resistência política e o protagonismo social e histórico das
populações negras. Detectamos que a pobreza material se mostra característica, dados pelas
desigualdades sociais impostas a estes territórios. No entanto, a riqueza das histórias de vidas
que encontramos entre os moradores não provém da relação com esta pobreza e sim com
valores éticos e morais provenientes dos princípios cilizatórios africanos. A saga histórica de
grupos negros está nas realizações sociais, sobre uma base cultural delineada por desejos
individuais e coletivos, dada pela história, pela cultura, pela proximidade e pelo
pertencimento a um lugar.
3. Territórios de maioria afrodescendente
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Conceitualmente definimos territórios de maioria afrodescendente como aqueles espaços
urbanos habitados pela parcela maior de população afrodescendente que se conformam
histórica e socialmente a partir do processo da política de dominação e do desenvolvimento
das culturas de base africanas (CUNHA JR., 2001).
Seguimos os nossos estudos destes territórios por um método de embasamento históricosociológico, analisando as pessoas, os grupos, as famílias, a cultura, as memórias, enfim, as
vivências da vida real e não da vida idealizada, estilizada. Nos territórios afrodescendentes, os
espaços urbanos não constituem espaços aleatórios, indiferente ou abstratos. São territórios
urbanos produzidos socialmente, estando presentes através das histórias e memórias coletivas
e vinculados a uma realidade concreta vivida cotidianamente, onde se é possível identificar o
caráter simbólico dos espaços impregnados de afetos, sensações e lembranças.
As afrodescendências estão presentes nas memórias urbanas refletidas em nosso imaginário
social, alimentadas pelas manifestações afrodescendentes presentes no cotidiano das nossas
cidades, compondo suas próprias estéticas.
Trazendo algumas formas das expressões urbanas das manifestações culturais que ocorrem
em territórios afrodescendentes, facilmente encontradas em cidades como Salvador e Recife,
temos as danças como o maracatu, a congada, o reisado, as festas e cortejos religiosos,
práticas da arte dos despachos, as feiras e mercados informais, os serviços ambulantes como
as profissões de rua como os sapateiros, os barbeiros e trançadeiras, artistas e artesãos, as
lavagens de largo, definidos por comportamentos particulares no espaço público, entre outras,
constituindo um conjunto de repertórios culturais que se processam nos territórios
afrodescendentes (Figuras 01, 02 e 03).
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Fig. 01 - Cortejo da Vila Operária na Liberdade, onde as mães-de-santo se preparam para
lavar a vila
com água de cheiro, enquanto cantam.
Fig. 02 e 03 - Imagens dos moradores no Cortejo da Vila Operária na Liberdade, em Salvador
Fonte: Fotos dos autores
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Estas manifestações afrodescendentes produzem sujeitos de uma história social, em que o
individuo é responsável pela sua atuação, na realização de si e da coletividade, mantendo
interatividade e vínculo a estes territórios (RAMOS, 2007b). Além das manifestações
culturais esporádicas que propiciam vivenciar e de visões de mundo particulares, há as
dimensões das rotinas cotidianas (Figuras 04, 05, 06, 07 e 08).
Fig. 06 - Ebó
Fig. 04 - Baiana de acarajé
Fonte: Internet
Fig. 05 - Trançadeiras
Fig. 07 e 08 - Moradores utilizando as calçadas de forma lúdica
Nesta valorização das afrodescendências e de suas memórias no espaço urbano através das
evidências das vivências como forma de realização urbana dos afrodescendentes, em suas
práticas e nos territórios urbanos produzidos por suas populações, pode-se pensar e propor
cidades mais tangíveis às realizações urbanas concernentes aos diversos grupos sociais negros
como forma de combate às desigualdades sociais e à pobreza, incorporando estes modus vivendi
nas políticas públicas que atuam sobre o espaço urbano, ao reverso das históricas políticas
públicas de desafricanização dos espaços urbanos brasileiros.
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4. Para concluir
A desqualificação social da população negra ocorre por diferentes nuances. Uma delas está
contida nas políticas públicas nos territórios de maioria afrodescendente, onde são impostas
condições da precarização da vida coletiva. É ainda como reflexo do estigma da escravidão e
de um racismo corporativo que o poder público tem tomado a postura de abandono aos bairros
negros.
Em busca de fazer uma leitura de cidade que não considere somente as referências de análise
eurocêntricas (eixo greco-romano/europeu), mas um estudo do urbano que parte dos
princípios sociais africanos, entendidos aqui como reveladores da cultura afrodescendente
desenvolvida em seu processo histórico brasileiro, encontramos formas de apropriação do
espaço particulares que são reveladas pelas memórias, experiências e vivências urbanas
afrodescendentes.
Estes espaços não configuram um lugar qualquer, genérico e inespecífico. Demarcam
especificidades culturais e históricas que são orientados por princípios sociais africanos
regendo os territórios afrodescendentes, promovendo sobre o espaço o senso de coletividade,
conformando territórios de sociabilidade cotidiana construídos coletivamente através de
práticas sociais que permanecem ou se renovam entre os afrodescendentes, sendo elementos
fundamentais para a realização da população negra.
Para nosso entendimento, trazer a afrodescendência, enquanto conceito e método, torna-se
complementar (e fundamental) para se compreender as cidades brasileiras. No entanto, o
urbanismo tem em suas proposições, na sua forma hegemônica, inibir tais presenças e
promover um apagamento desta memória urbana, ou confrontá-la como folclorização.
Apesar destes fatores históricos, compreendemos um protagonismo histórico e cultural dos
afrodescendentes que se revela através de formas de apropriação e produção de partes da
cidade, expressando formas peculiares de resistência ao controle da cultura dominante.
A produção do espaço urbano formal está fundada em propostas formuladas que visam mudar
ou desvalorizar estas apropriações e experiências do urbano, deprimindo vivências que fogem
a um modelo-padrão dominante de comportamentos, de sociabilidades e de relações espaciais.
Temos a proposta de integrar estas práticas sociais, apropriação e produção do urbano pela
população negra, como valores de um conhecimento social, aos valores do conhecimento
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formal (acadêmico, científico ou institucional) e incorporar este conhecimento social
acumulado à produção do espaço urbano.
Entendemos que a realização das especificidades culturais no espaço urbano é essencial para a
produção de identidades e para a auto-afirmação dos grupos sociais, assumindo o sentido de
qualificação social para o enfrentamento dos processos de subordinação e subalternização, em
busca de emancipação sócio-econômica, sobretudo para os afrodescendentes.
Referências Bibliográficas
CUNHA JR., Henrique. Africanidades, Afrodescendência e Educação. Revista Educação em
Debate, Ano 23, V. 2 - Nº. 42, Fortaleza: FACED/UFC, 2001. p. 05-15.
___________________ Afrodescendência e Espaço Urbano. In: CUNHA Jr., H.; RAMOS,
M. E. R. (orgs.). Espaço Urbano e Afrodescendência. Fortaleza: UFC Edições, 2007.
PAIXÃO, Marcelo. Desenvolvimento Humano e Relações Raciais. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
RAMOS, Maria Estela Rocha. Origens da segregação espacial da população
afrodescendente em cidades brasileiras. In: CUNHA Jr., H.; RAMOS, M. E. R. (orgs.).
Espaço Urbano e Afrodescendência. Fortaleza: UFC Edições, 2007. (a)
_____________ Território Afrodescendente: Leitura de cidade através do bairro da
Liberdade, Salvador (Bahia). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo. Salvador: PP-GAU/UFBA, 2007. (b)
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INTERVENÇÃO FEMININA NA LUTA CONTRA A POBREZA
estudo realizado junto de comerciantes informais da cidade de
Maputo – Moçambique
Por Sónia Frias1
1. Introdução
No mundo pobre e em particular nas cidades, as mulheres tornam-se hoje, cada vez mais
participantes economicamente, agindo no mundo do trabalho para além da esfera doméstica, e
contribuindo de forma muito evidente para a sobrevivência familiar.
Este é um fenómeno relativamente recente e nalguns países resultou muito directamente dos
modelos de descolonização enquanto noutros foi acelerado pela aplicação dos Structural
Adjustment Programs (SAPs).
O grupo de mulheres que estudei em Maputo, a capital de Moçambique, não são excepção no
que respeita à dinâmica deste processo.
Grande parte delas – sobretudo das mais velhas – transferiram-se para Maputo nos anos que
se seguiram á independência e foram com o tempo aprendo a adaptar-se à vida e às estruturas
da cidade. São por isso de origem camponesa e esse facto espelha-se nalgumas das suas
opções e atitudes ainda que noutras se note uma clara adaptação ao mundo urbano.
Todas vendem. Vendas nas ruas, pelo chão as mais pobres e nos mercados informais aquelas
com mais experiência e empreendedorismo.
Sabem explicar que o envolvimento mais marcante das mulheres em negócios informais
aconteceu em dois momentos distintos da história recente do país. O primeiro em finais da
década de 1970 e o segundo em finais da década de 1980.
Em finais de setenta, assistia-se a uma ruptura na gestão das estruturas produtivas e a uma
quebra continuada da produção agrícola que afectava o país e em especial os núcleos urbanos.
A falência no fornecimento de víveres afectava particularmente as cidades, sobretudo a
capital, situada no sul do país, longe das principais Cooperativas agrícolas.
Por essa altura a cidade começou a ressentir-se da falta de alimentos e a insegurança alimentar
tornava-se numa ameaça séria sobretudo para as famílias mais pobres.
1
Professora Auxiliar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade Técnica de Lisboa. email: só[email protected]
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Em 1987, mantendo-se a guerra e agravando-se cada vez mais as dificuldades que o governo
enfrentava no tocante à gestão política e económica do país, acaba por ser implementado um
SAP. Se dez anos antes o que faltava à população de Maputo eram bens alimentares, agora
faltava dinheiro. Consequência da aplicação das medidas de ajustamento foram um pouco por
toda a África as privatizações, o desemprego (sobretudo urbano), e reduções várias no âmbito
das estruturas e programas de apoio social aos mais carenciados.
Em qualquer destes momentos, as mulheres, confrontadas com a incerteza da fome,
inventaram soluções inesperadas num esforço para garantirem a sobrevivência e a qualidade
de vida das suas famílias sobretudo a dos filhos. Urgia por isso encontrar uma solução rápida
e eficaz. Entre uma pequena cultura de quintal e uma rede de conhecimentos bem colocados
politicamente, algumas mulheres conseguiam aceder esporadicamente a alguns produtos que
cozinhavam e posteriormente vendiam, discretamente, num circuito de vizinhança. Contudo,
dada a escassez desses produtos, esta era claramente uma estratégia de curto prazo.
Rapidamente as mulheres se viram na necessidade de pensar em alternativas.
Muitas tinham uma rede de parentes camponeses a residir em aldeias próximas de Maputo e
apesar da guerra e de todo um conjunto de outras dificuldades que lhe acresciam (e sobre as
quais nos deteremos adiante), algumas cedo se propuseram sair da cidade e procurar auxílio
junto desses familiares. Levavam-lhes produtos da cidade – querosene, cobertores, fósforos que trocavam por produção da machamba (horta).
Começou deste modo a tomar contornos muito definidos o comércio informal propriamente
dito. Mais tarde muitas mulheres começaram a alargar a sua rede de fornecedores para além
da parentela. Ao dominarem melhor a dinâmica dos negócios passaram a fornecer-se em
províncias mais distantes onde encontravam uma maior variedade de produtos, a preços mais
convenientes. Desta forma deixavam de depender tão estreitamente do apoio da família
camponesa, atenuando-se laços de responsabilidades reforçadas por via desta reaproximação.
Posteriormente, um segmento destas vendedeiras começou a especializar-se no comércio de
outros produtos que compravam já não noutras províncias de Moçambique, mas nos países
vizinhos.
Ainda em franco desenvolvimento, o comércio de produtos alimentares mantém-se até
ao presente como um negócio do foro feminino. Os homens que em Maputo começam hoje a
aderir aos negócios informais, escolhem, por uma questão de separação de lugares de género,
trabalhar com outros produtos.
Durante muito tempo, as actividades das mulheres foram praticadas de forma muito
dissimulada. Era importante, e elas sabiam-no, manter este seu empreendedorismo muito
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discreto, desconhecido dos seus marido e se possível da família mais alargada e mesmo da
vizinhança.
A fim de evitarem o confronto familiar, por um lado, e de esconderem o desrespeito que, por
meio das suas actividades sentiam exibir pela ordem tradicional relativa aos lugares e papéis
de homens e mulheres, fizeram da casa, em especial das cozinhas, a cobertura perfeita para os
primeiros negócios, crucial na estratégia para manterem as suas actividades invisíveis e
silenciosas.
Partindo de um conjunto de saberes e competências domésticas, a compra de alimentos e o
processamento de comida – tradicional e culturalmente tidos como parte integrante das
competências femininas - e usando a descrição do lar, geralmente concebido como um
universo muito restrito, castrador da intervenção e da criatividade, um lugar que condiciona
as mulheres a um conjunto de comportamentos altamente padronizados e rotineiros e onde
não há espaço para a reflexão e a construção de saberes, as vendedeiras que conhecemos,
acabaram, em tempos de crise, por se revelar profundamente criativas e competentes.
Numa análise retrospectiva, reconhecemos os esforços que em Moçambique a
Frelimo2 tentou empreender nos campos do combate ao tribalismo, ao tradicionalismo, tanto
quanto ao nivelamento socio-cultural das populações, da emancipação das mulheres ou mais
concretamente a respeito da igualdade de direitos de homens e mulheres. Apesar dos ventos
de mudança proclamados pela subida ao poder, de um partido de perfil socialista, na prática a
realização dessa mudança apresentou-se quase inexistente porque foi difícil de assumir e de se
realizar e a organização social manteve-se orientada segundo as normas tradicionais, quer no
mundo do trabalho, quer ao nível das relações familiares, nomeadamente ao nível das relações
de casal.
Os primeiros negócios: as primeiras dificuldades
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O Partido que assumiu o governo após a independência.
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Com o tempo e o desenvolvimento dos negócios a o fluxo de entradas e saídas da cidade, as
ausências cada vez mais prolongadas – se de início as mulheres se esforçavam para ir e vir ao
campo no mesmo dia, com o tempo, a confiança o treino e a ambição que iam adquirindo na
realização negocial – aumentava o número de negociantes que, em busca de melhores
oportunidades de negócio, se deslocava a pontos cada vez mais distantes da cidade, facto que
começou a dificultar as viagens de ida e volta no mesmo dia.
Ausentes de suas casas por mais de um dia, os pretextos de que se socorriam para justificarem
junto dos maridos e familiares próximos as suas ausências acabavam por limitar-se e a acção
das mulheres acabou necessariamente por ir tomando visibilidade.
Uma grande maioria dos homens não conseguiu tolerar a ideia de que as suas mulheres se
dedicavam ao comércio e auferiam a partir daí um rendimento próprio.
Na realidade, por ocasião das primeiras suspeitas a respeito das sucessivas ausências das
mulheres, e perante a forma dissimulada como elas se organizavam, quase todos os maridos (e
a própria sociedade) assumiram que as mulheres se dedicavam à prestação de favores sexuais
a outros homens com o fim de conseguirem obter os produtos e o dinheiro que faltavam em
casa. As prolongadas ausências das mulheres, assim como o sucesso que têm conseguido
obter, desde cedo orientaram mais o imaginário para o campo da aventura e transgressão do
que do trabalho e do esforço.
O desemprego, ao remeter muitos destes homens para uma condição de vazio ocupacional,
acabou por criar-lhes um vasto conjunto de problemas. Se pensarmos que, actualmente, o
trabalho é também, um poderoso factor de integração e inclusão social, um desempregado,
sobretudo se se mantiver nessa situação durante um intervalo de tempo relativamente
duradoiro (como é o caso dos homens em questão), para além de se ver economicamente
limitado, pode acabar também por se ir assumindo pessoal e socialmente excluído, até mesmo
marginalizado por não conseguir preencher um dos requisitos necessários para que seja
reconhecido como um indivíduo de valor e participante num mundo – o do trabalho - que
aprendeu a entender como peça fundamental do processo de realização dos homens.
É por isso compreensível que em Maputo como em qualquer cidade europeia, o desemprego
de longa duração possa actualmente constituir-se para além de um factor de desintegração
económica, também um factor de desintegração psicológica, social e cultural.
2. Empowerment e mudança
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Em poucos anos pelo seu engenho e o seu empenho este grupo de mulheres acabou
por conseguir um elevado grau de sucesso nos seus empreendimentos. A quebra no
fornecimento de bens alimentares à cidade tornava o tráfico de produtos da terra uma
actividade particularmente bem sucedida.
Este fenómeno tomou tal relevância que hoje, em Maputo, tal como acontecerá em
muitas outras grandes cidades africanas a intervenção feminina na economia (ainda que
paralela) já se pode considerar uma vantagem em termos de mudança.
Na verdade, num número crescente de casos, em Maputo, uma substancial fatia dos
rendimentos familiares são hoje garantidos pelas mulheres, dado que o desemprego masculino
e os salários muitos baixos não permitem que os homens, que apesar de tudo continuam
estatisticamente a constituir o maior número de indivíduos com empregos formais, continuem
de facto a chefiar, em termos económicos e decisórios o agregado familiar.
Por via dos seus empreendimentos um bom número destas mulheres acabou por conseguir
alguma autonomia económica por relação aos homens, em especial aos seus maridos ou aos
pais o que acaba por ter consequências práticas em termos do desafio que se põe à
perpetuação impoluta da ordem tradicional e das práticas costumeiras, nomeadamente no que
respeita , como já referimos, aos lugares e responsabilidades sociais de homens e mulheres.
Embora a política das unidades domésticas possa ser relativamente calma nas
comunidades rurais, torna-se mais agitada com a urbanização porque o controlo da
comunidade tradicional sobre o comportamento das mulheres se torna menos rígido e porque
as mulheres começam a contar como força de trabalho.
As mudanças que neste âmbito já se começaram a fazer sentir, tendem a alterar a
perspectiva das relações entre os géneros, nomeadamente as tradicionais de dependência das
mulheres por relação aos homens, assim como a perspectiva sobre o valor dos laços de
afinidade e obrigações entre homens e mulheres mas sobretudo e nos casos que pudemos
observar em Maputo, mesmo entre as famílias e até ao nível da própria estrutura comunitária.
Custos da Sobrevivência e do Sucesso
Neste texto não procuramos explorar o fenómeno económico em que se constitui a
economia informal em si, mas alguns dos novos fenómenos sociais que têm vindo a desenharse, fruto do seu significativo desenvolvimento.
De entre esses fenómenos, as questões relativas aos estatutos e poderes de homens e mulheres
nas sociedades, nomeadamente nas sociedades em desenvolvimento, apresentam-se como
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algumas das mais interessantes, muito em especial no que concerne à composição dos
tradicionais puzzles relativos às diferenças entre os sexos.
No ambiente em que agora estas pessoas viviam, a cidade, a organização familiar e mesmo
social exige novas lógicas de atitude e de acção e as mulheres perante a crise e as dificuldades
a ela inerentes, sentiram-se forçadas a agir para além dos seus lugares, o que na prática
implicou que começassem por desafiar o modelo tradicionalista de acção, limitador e
desadequado ao momento.
A nossa reflexão projecta-nos para a ideia de que se a economia informal foi uma semente de
mudança no que se refere às questões relativas aos lugares sociais das mulheres, mas o
ambiente urbano foi mais do que isso, foi o terreno especialmente adequado à frutificação e
desenvolvimento dessa semente.
Hoje o nosso grupo de mulheres continua a lidar com muitas dificuldades no que respeita às
questões relacionadas com a sobrevivência familiar. Continuam ligadas a um padrão de
valores muito claro sobre o lugar e as responsabilidades de cada elemento no seio de uma
família, confessam contudo já não terem a disponibilidade de outrora para lidar com regras de
parentesco rígidas e com a intervenção constante dos mais velhos das famílias dos maridos 3
na gestão do seu núcleo familiar mais restrito.
Têm consciência de que a sua vida mudou. A cidade tem nisso um papel implacável. A
necessidade de trabalhar e uma nova consciência da sociedade e do mundo dificulta-lhes cada
vez mais a manutenção de um modelo de vida mais tradicional que ainda resiste, em especial,
no campo, mas com o qual os ritmos e a organização urbana não se compadecem.
As famílias
Este desencontro sobre responsabilidades e actividades de mulheres e homens tem tido
sérios impactos ao nível das relações de casal e da desestruturação de famílias.
Logo que começámos o nosso trabalho no terreno apercebemo-nos por exemplo de que um
elevado número mulheres vendedeiras nos mercados, não têm marido, vivem em regra com os
filhos que ficam a seu cargo.
Este facto, tem vindo a avolumar o número de famílias monoparentais e tem contribuído
indubitavelmente para a visibilidade de um fenómeno, o das Famílias Chefiadas por
Mulheres (FCMs), fenómeno que tem vindo a preocupar o governo e que requer esforços no
que toca à reflexão sobre políticas de apoio a estes núcleos familiares.
3
No sul de Moçambique predomina a organização familiar de base patriaracal.
17
As FCMs, são famílias identificadas (tal como acontece um pouco por todo o mundo)
como um dos grupos sociais mais vulneráveis dado que são famílias cuja sobrevivência e
manutenção dependem de uma mulher, normalmente a mãe, que é também a fonte principal
de apoio económico.
O número de FCMs em muitos países da África subsariana, parece estar continuamente a
aumentar (Handa et al. 1999), e segundo indicam os dados de vários organismos, o maior
número de mulheres chefes de família são mulheres solteiras, seguindo-se depois as viúvas e
as mulheres casadas sobretudo aquelas cujos maridos emigraram por motivos de trabalho.
São raros os trabalhos que fazem referência a mulheres separadas ou divorciadas.
É certo que parte avultada dos estudos existentes sobre esta questão se relaciona, na maioria
dos países, com o êxodo masculino e como é óbvio com o seu impacto em ambiente rural.
Em Moçambique, as razões que a maioria dos autores reconhecem para o aumento das FCMs,
ligam-se ainda actualmente à guerra e à emigração dos homens que saem à procura trabalho
para as minas da África do Sul, parecendo não se dar ainda importância de relevo à migração
das populações para as cidades, nomeadamente para a cidade capital.
A guerra, terá deixado um número substancial de viúvas, mas a emigração de moçambicanos
para trabalhar nas minas do país vizinho4, tem vindo, ao longo das últimas décadas, a ser
fortemente refreada pelas autoridades sul-africanas no seguimento da implementação de
políticas restritivas da imigração.
Esse facto tem levado a uma significativa redução da emigração masculina 5 para a África do
Sul, e terá de certa forma redireccionado, pelo menos alguma margem desse fluxo migratório
para Maputo, persistindo por isso uma elevada percentagem de mulheres a chefiar famílias em
meio rural.
Em meio urbano, a situação toma um perfil algo diferente.
O número de mulheres solteiras, casadas e viúvas parece ser, em termos proporcionais, menor
do que no campo, e o número de separadas e de divorciadas aparenta, pelo contrário, ser
bastante maior.
Vejamos alguns dos factores que se pode conceber terem alguma influência nesta situação:
4
A emigração de mão-de-obra masculina de Moçambique para as minas da África do Sul foi durante várias
décadas uma realidade. O fenómeno tornou-se de tal forma importante que, para além dos impactos económicos
que implicou, chegou também a tomar contornos sócio-culturais particularmente interessantes passando a ser
considerado não um ritual mas certamente uma marca de passagem dos jovens que partem rapazes e regressam
homens adultos.
5
Os emigrantes moçambicanos para as minas eram maioritariamente oriundos das províncias de Maputo e Gaza,
as províncias do sul do país.
18
•
a falta de empregos ou de subsídios sociais, o que limita económica e socialmente muitos
homens e afecta a sua auto-estima uma vez que, sem possibilidades de, por meio de um
trabalho remunerado conseguirem cumprir algumas das funções de chefes de família,
passam a sentir-se desprezados e feridos na sua virilidade, tornando-se ao que parece,
incapazes de reagir de outra forma que não a de procurarem conforto na inércia, no
consumo de álcool ou na violência doméstica;
•
o crescente envolvimento das mulheres no mundo do sector informal e as consequências
desse envolvimento ao nível da sua consciencialização sobre o aumento do seu poder
económico, da sua autonomia, uma maior autoconfiança.
Desta forma e extrapolando a partir da situação das vendedeiras com quem trabalhámos,
temos que, pelo menos nos últimos anos e ao contrário do que parece registar-se em meio
rural, muitas das FCMs na cidade, começam a ser chefiadas por um crescente número
mulheres separadas ou divorciadas. Se a intervenção das mulheres no campo dos negócios
tem vindo, segundo elas próprias defendem, a ser cada vez mais estimulada pela necessidade
económica, o facto é que essa intervenção começa a transformar a estrutura de algum modelo
social (para além da económica) de uma cidade e uma sociedade ainda fortemente ruralizadas
mas já inquestionavelmente em transição.
Um dos preços dessa transição espelha-se no aumento do número de separações e
divórcios, de famílias chefiadas por mulheres, de famílias fragmentadas e de mães solteiras,
uma vez que, o valor e a importância que sobretudo as mulheres mais novas parece darem ao
facto de terem um marido, é cada vez menor.
Os filhos continuam a constituir-se para elas num bem procurado e insubstituível, mas
a sua capacidade para manterem uma aliança matrimonial segundo os moldes em que a
maioria dos homens insiste em assumir, parece estar a baixar.
3. Mães e filhos
Dada a mudança operada nas vidas das mulheres em estudo – o ganho de autonomia
económica e pessoal, os novos saberes e os novos poderes - poderia esperar-se que, também
às suas ambições para os filhos e para as filhas, se tivessem alterado por relação à tradição.
19
A par com as alterações que se verificaram nas suas vidas desde que se passaram a
dedicar aos negócios, e da noção que o desenvolvimento desses negócios lhes terá
proporcionado sobre a importância de se saber ler, escrever e contar para se vingar na vida, e
mais ainda, sobre o valor das habilitações escolares no que concerne ao acesso a um emprego
formal, teoricamente mais bem pago, e socialmente mais bem visto, seria lógico pensar-se
que, pelo menos a maioria destas mulheres demonstrasse grande empenho na instrução dos
filhos.
Na prática, verifica-se de facto que a maioria das mães em questão, tem consciência da
importância de mandarem os filhos à escola, mas também pudemos verificar que as taxas de
abandono escolar são elevadíssimas, seja entre rapazes como entre as raparigas, sendo no
entanto, e como é mais comum em contextos de pobreza, claramente mais elevadas entre as
raparigas, e que as mães não exercem realmente grande pressão para que os filhos prossigam
os estudos.
As razões do elevado abandono escolar feminino, prendem-se numa grande maioria de
casos com situações de gravidezes precoces.
A influência do meio urbano não parece ter neste caso, efeitos particulares por relação
ao tradicional entendimento e vivência da sexualidade que, ao que tudo indica continua, tal
como no campo, a ser muito livre e pacificamente tolerada.
As próprias mães parece aceitarem que seja quase inevitável que uma jovem
adolescente, com doze, catorze anos, acabe por relacionar-se com rapazes da sua idade ou
mesmo com jovens adultos e que acabe assim, naturalmente, por engravidar.
Embora haja raparigas que abandonem a escola pelo simples facto de não quererem
continuar a estudar, o facto é que uma grande maioria delas abandona a escola quando sabe
que está grávida. Mesmo as que abandonam a escola sem que a razão se prenda com uma
gravidez, têm fortes probabilidades de engravidar também precocemente.
Uma vez em casa, as jovens, comprometem-se a ocupar-se das tarefas do lar e a cuidar
dos irmãos mais pequenos quando estes existam.
São poucas, aquelas que aceitam passar a trabalhar com as mães nos mercados. Na realidade a
maioria das mulheres confessou-nos que, os seus filhos e filhas têm normalmente vergonha do
facto de as mães serem vendedeiras, uma actividade que consideram socialmente
desprestigiante e muito estigmatizada.
20
Na verdade, as vendedeiras, mesmo em caso de muito trabalho e necessidade, raramente
contam com a colaboração das filhas ou dos filhos. Nem sequer lhes requerem essa ajuda. Em
regra é mais fácil que contratem alguma rapariga oriunda de famílias mais pobres para as
ajudarem.
Nas vozes destas mães, os filhos e filhas são vítimas da conjuntura: do insuficiente
acompanhamento materno; do desinteresse e atitude dos pais; da desintegração familiar
(quando se referem ao facto de serem separadas, divorciadas ou viúvas); da violência social,
da falta de empregos.
A brevidade com que muitas falam das actividades em que se ocupam os filhos
durante o dia, trai de algum modo o seu desconforto (e eventualmente um sentimento de culpa
ou até de incapacidade para agir), quando sabem que, na sua maioria os seus filhos passam
demasiado tempo sozinhos e sem qualquer vigilância, e que por isso, sobretudo os rapazes,
passam horas a gingar (a deambular) pelas ruas, podendo tornar-se assim presas fáceis nas
teias da marginalidade.
A maior parte das nossas entrevistadas teme que os filhos se envolvam em pequenos
bandos de criminosos, e que se transformem em ninjas, o nome dado aos jovens marginais
(rapazes), àqueles que preferem roubar a trabalhar e que para além dos assaltos e de outra
violência que possam exercer, se revelam também indivíduos sem quaisquer valores, que não
respeitam nem regras, nem pessoas, sejam elas mulheres, crianças ou os mais velhos.
Qualquer mãe tem vergonha de ter um filho ninja, no entanto, se algum dos seus
filhos se transforma num marginal, ela atribui pesarosamente a culpa, à História do presente.
Conclusões
A pesquisa indica que os esforços assumidos pela maioria daquelas que mais cedo se
dedicaram a estas actividades, fizeram numa primeira fase parte de uma estratégia de
segurança alimentar mas que, mais recentemente, tem acabado por dar outros frutos tornandose, mais clara e especificamente numa estratégia de geração e aumento de recursos próprios,
afinal num verdadeiro instrumento de empowerment pessoal e social. Apesar de todo este
sucesso, pudémos aferir que não deixam de lidar com um conjunto de dificuldades pessoais
muito específicas, relacionadas com a solidão, com íntimos sentimentos de culpa pelo desafio
á ordem costumeira, com o desrespeito social e com a falta de reconhecimento do seu esforço
por parte dos familiares (em especial dos maridos e dos filhos).
21
As dificuldades por que passaram deram-lhes no entanto uma nova ideia da dimensão
do mundo e, de alguma forma até, o orgulho de verem reconhecido o valor, em termos do
impacte social, que as suas actividades acabaram por ter no presente.
Haverá certamente outras implicações com efeitos a considerar a médio e a longo
prazo.
Em termos de trabalho competirão com os homens, e poderá desta forma, vir talvez a ser
activado todo um conjunto de oportunidades de que usufruirão não apenas para as famílias
mas para a própria sociedade que, ganhará um cada vez maior número de elementos treinados,
para outros projectos de mudança.
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23
Investigação acerca dos fatores potencialmente causadores da elevação da pobreza na
América do Sul no período 1980 – 2002: uma proposta metodológica
Prof. Dr. Adilson Marques Gennari6
1. Introdução:
6
Professor do Departamento de Economia da UNESP Campus de Araraquara e Coordenador do GPHEC. Este
trabalho foi apresentado no Colóquio Internacional (Des)envolvimento contra a pobreza e obteve o apoio
financeiro da Fundação para o Desenvolvimento da UNESP – FUNDUNESP e contou com a generosa
hospitalidade dos organizadores para hospedar os membros pesquisadores estudantes do GPHEC.
24
O objetivo deste ensaio é apresentar a proposta metodológica do GPHEC 7 sobre os
determinantes da pobreza na América do Sul. Trata-se, portanto, do resultado de estudos
preliminares sobre a pobreza que redundou na elaboração de uma hipótese de trabalho, ou
mais precisamente, de uma proposta metodológica para abordar a complexa questão dos
determinantes da pobreza na América do Sul na história econômica contemporânea.
A relevância social da questão vem ganhando nova dimensão e significado, na medida
em que poderá tornar-se elemento central nos debates sobre integração regional no âmbito da
recém criada (05/2008) União das Nações Sul-Americanas – UNASUL.
2. América do Sul
TABELA I
AMÉRICA DO SUL: população. Est. 2006
Países
População
Est. 2006
01. Argentina
39,1
02. Bolívia
9,4
03. Brasil
188,9
04. Chile
16,5
05. Colômbia
46,3
06. Equador
13,4
07. Guiana
0,8
08. Paraguai
6,3
09. Peru
28,4
10. Suriname
0,5
11. Uruguai
3,5
12. Venezuela
27,2
Total:
380.3
Fonte: a) Atlas National Geographic, p. 16.
A América do Sul estende-se do istmo do Panamá até o estreito de Drake, ao sul. É
composto por 12 países independentes e 2 colônias (Ilhas Malvinas e Guiana Francesa),
conforme quadro abaixo. Possui uma população total de 380 milhões de habitantes em seus
17,8 milhões de km².
TABELA II
AMÉRICA DO SUL: PIB estimativa 2004
Países
PIB US$
milhões
7
Grupo de Pesquisa em História Econômica e Social Contemporânea – GPHEC da Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP Campus de Araraquara. www.fclar.unesp.br/grupos/gphec
25
01. Argentina
153.014
02. Bolívia
8.773
03. Brasil
596.000
04. Chile
94.105
05. Colômbia
97.718
06. Equador
30.282
07. Guiana
786
08. Paraguai
7.343
09. Peru
68.637
10. Suriname
3.136
11. Uruguai
13.215
12. Venezuela
110.104
Total:
1.183.113
Fonte: a) Atlas National Geographic, p. 16. b) PIB do Brasil, fonte IBGE.
A maior densidade populacional encontra-se no Equador com 47 habitantes por km²e a
menor encontra-se nas Ilhas Malvinas com apenas 0,25 hab./km².No que tange aos idiomas
utilizados pelas populações do subcontinente, verificamos uma enorme gama de idiomas e
dialetos. Temos o espanhol, o português, o francês, o holandês, o inglês, o guarani (Paraguai),
o crioulo (Guiana Francesa), o javanês (Suriname), o quíchua (Peru entre outros), o aimará
(Bolívia) guaicuru (Argentina) e vários idiomas indígenas (Brasil entre outros).
3. Pobreza
O conceito de “pobreza” define a parte da população que vive com uma renda entre
um a dois dólares por dia. Segundo a CEPAL (2006), o enfoque utilizado para estimar a
pobreza consiste em classificar como “pobre” uma pessoa quando sua renda é inferior a da
linha da pobreza. O equivalente mensal em dólares das linhas da pobreza mais recentes varia
entre 45 e 157 dólares nas áreas urbanas, e entre 32 e 98 dólares nas áreas rurais.
Segundo Estenssoro (2003: 81), “as análises sobre a pobreza distinguem geralmente
entre a pobreza absoluta e a pobreza relativa. A pobreza relativa (desigualdade) diz respeito
a unidades de análise que são pobres em relação a outras unidades mais ricas. Já a pobreza
absoluta caracteriza exclusivamente a situação da unidade analisada, sem haver comparações.
Assim, pobreza absoluta existe quando a vida dos envolvidos se vê afetada por carências
físicas ou sócio-culturais (...) Pobres são então aqueles que não podem satisfazer suas
necessidades materiais ou sócio-culturais mínimas ou fundamentias.”
Na avaliação do Banco Mundial (2001) a pobreza está associada principalmente a três
fatores: localização numa área pobre; baixa escolaridade e família numerosa. Tanto o Banco
26
Mundial quanto o BID adotam a perspectiva do rendimento, ou seja, a pobreza é definida
quando um ser humano se encontra abaixo da linha da pobreza. O Banco Mundial estabelece
como linha da pobreza o rendimento de US$ 1 por dia por pessoa. Já o BID entende que a
linha da pobreza está situada em US$ 2 por dia por pessoa. A CEPAL, entretanto, possui uma
abordagem mais ampla, na medida em que considera a pobreza como a privação de diversos
elementos que inclui educação, saúde, alimentação, serviços e inserção no mercado de
trabalho. O PNUD também possui uma abordagem bastante ampla reconhecendo em seu
conceito de pobreza até moradia e situação de saúde, ou seja, o PNUD examina a totalidade
das condições que permite a um individuo e sua família participarem da sociedade sem
privações e sem necessidades.
A América Latina foi palco de grandes transformações sócio-econômicas no período
recente. Tais mudanças foram impulsionadas, de um lado, pela mutação no padrão de
desenvolvimento do capitalismo mundial, denominada por globalização ou mundialização do
capital, e, de outro lado, pelas medidas de ajuste estrutural e propostas do consenso de
Washington, implementadas, em menor ou maior grau, em todos os países da América Latina
a partir dos anos 1980.
O panorama social da América latina na virada do século é complexo. Quase metade
da população vive em condições de pobreza. Em 2000, por exemplo, a América Latina
possuía uma população estimada em 516 milhões de habitantes dos quais aproximadamente
215 milhões estavam em situação de pobreza. Certamente a concentração da renda é um
importante agravante da pobreza. O coeficiente de Gini é geralmente aceito como medida de
concentração de renda. Os dados da tabela III, apresentados pela CEPAL para alguns países
da América do Sul, demonstram que a situação social desfavorável de alguns países é
agravada por uma realidade de altos índices de concentração de renda. Até 2002, podemos
identificar o Brasil e a Bolívia, como os países mais problemáticos neste quesito, cujo grau de
concentração de renda é classificado como “muito alto”. A maior parte dos países se
encontram na estratificação alta e média de concentração de renda. A exceção honrosa fica
apenas para o Uruguai.
TABELA III
AMÉRICA DO SUL: COEFICIENTE DE GINI DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA:
2000-2002 (países selecionados)
PAIS
ÍNDICE DE GINI
ESTRATIFICAÇÃO
27
Brasil
0,639
Bolívia
0,614
Argentina
0,578
Paraguai
0,570
Colômbia
0,569
Chile
0,559
Peru
0,525
Equador
0,513
Venezuela (Rep. Bol.) 0,500
Uruguai
0,455
Fonte: CEPAL. Panorama Social de América Latina 2006.
Muito alto
Muito alto
Alto
Alto
Alto
Alto
Alto
Médio
Médio
Baixo
As transformações experimentadas pelo mundo todo no final do século passado foram
impulsionadas, em parte, por pressões exercidas pelos novos sujeitos sociais. Se de um lado, a
classe trabalhadora se viu diante de novos desafios tanto organizacionais quanto da própria
pauta de luta, os empresários, por seu turno, mudaram o ambiente na medida em que as novas
corporações ganharam características totalmente novas. Dito de outro modo, as reformas
neoliberais que varreram o mundo tiveram como um de seus determinantes as novas
exigências e necessidades das novas corporações de escopo (Braga, 1997) e exigem um
ambiente econômico e político que contenha abertura de mercados, desregulamentação das
relações do trabalho, flexibilização institucional, estabilidade cambial, etc.
O chamado mundo do trabalho sofreu profundo abalo na virada do século e a elevação
nos níveis de desemprego e informalização das relações trabalhistas certamente tiveram um
papel relevante no que tange à evolução da pobreza. Com efeito, as forças racionalizadoras,
liberadas pela chamada terceira revolução industrial, são mais intensas do que as forças
geradoras de emprego. Os dados para a América Latina são enfáticos nesse sentido. Conforme
a tabela IV, se em 1990 a taxa de desemprego era de 6,2%, em 2002 atingia a taxa de 10,7%.
As mudanças não foram apenas quantitativas, mas também assumiram um caráter qualitativo
no sentido de mudar o perfil do mercado de trabalho. Segundo o relatório da CEPAL (2007:
130), “el proceso de globalización y transformación productiva en curso desde hace algunas
décadas no solo ha supuesto una reorganización profunda de los sistemas productivos, la
estructura ocupacional y los mercados de trabajo a escala mundial, sino que ha planteado
nuevos e importantes desafios para la investigación y el diseño de politicas em el ámbito del
empleo.” Um indicador das profundas transformações é sem duvido o percentual de
trabalhadores assalariados com contrato formal. Segundo os dados da CEPAL, se em 1990
havia 46,7% de trabalhadores formais, em 2002 este percentual decaiu para 41,7%, ou seja,
menos da metade dos trabalhadores latino-americanos possuem o estatuto de trabalhadores
28
formais com amplas conseqüências no âmbito dos diretos e da cidadania. No que tange ao
desemprego, com exceção da Bolívia e do Peru, todos os demais países experimentaram
elevações expressivas nos níveis de desemprego.
Outro aspecto relevante do rol de reformas é sem dúvida o processo de privatizações
que ocorreu em todo o continente latino-americano, pois impactaram, em alguns países,
diretamente no nível de emprego. Segundo Chesnays (1995: 9) “o movimento de
centralização e concentração vem se desenvolvendo há mais de dez anos de um modo sem
precedentes, impulsionado pelas exigências da concorrência aos grupos mais fortes no sentido
de arrebatar das firmas absorvidas suas fatias de mercado e reestruturar e ‘racionalizar’ suas
capacidades produtivas, sendo favorecidos e facilitados pelas políticas de liberalização, de
desregulamentação e de privatização”.
Segundo o relatório do NPP/EAESP/NPP (2001: 15), “foi na Inglaterra que as
privatizações se tornaram a espinha dorsal da reforma do Estado. Logo depois que assumiu a
chefia do governo britânico, Mrs Thatcher submeteu o Estado inglês a um rigoroso regime de
emagrecimento, iniciado com a dispensa de parte do funcionalismo inglês e que desembocou
num ambicioso programa de privatizações.”
TABELA IV
AMÉRICA LATINA: TAXA DE DESEMPREGO (países selecionados)
PAÍS
ANO
%
ANO
%
Argentina
1990
6,0
2002
18,0
Bolívia
1989
9,4
2002
6,6
Brasil
1990
4,5
2001
10,9
Chile
1990
8,8
2000
11,0
Colômbia
1991
9,4
2002
17,6
Equador
1990
6,2
2002
9,2
Paraguay
1990
6,4
2000
11,7
Peru
1997
10,3
2001
7,3
Uruguai
1990
9,2
2002
17,2
Venezuela (RB) 1990
9,9
2002
16,4
América Latina 1990
6,2
2002
10,7
Elaborado a partir de CEPAL: panorama social 2006, pp. 116, 126, 131, 132
29
A política econômica adotada pelo governo da Primeira Ministra Margareth Thatcher
caracterizou-se por uma agenda que tinha no seu centro a abolição dos controles sobre os
fluxos de capitais financeiros, somada à contração da emissão monetária, aumento das taxas
de juros, corte dos gastos públicos, amplo programa de privatizações, além do fim de
restrições às importações e das reformas nas relações de trabalho. Tais medidas rapidamente
ganharam o caráter de paradigma.
A sociedade latino-americana vem experimentando, desde pelo menos meados dos
anos oitenta, algumas mudanças profundas, representadas de um lado pela abertura política, e
de outro, pela crise econômica, oriunda fundamentalmente do esgotamento do padrão de
financiamento da acumulação e de mudanças estruturais. Se somarmos a esse legado, três
questões fundamentais como: a) transformação estrutural por que passava o capitalismo,
(Ianni, 1992; Piore & Sabel, 1984) relacionada à terceira revolução tecnológica
(microeletrônica, informática, robótica, novos materiais, novas energias, etc); b) a quasehegemonia do ideário neoliberal na Europa e nos Estados Unidos, (Sader, 1995) e c) a
derrocada do socialismo real, simbolizada pela queda do muro de Berlim (Kurz, 1992);
teremos um quadro representativo dos dilemas e mudanças que sacudiram a América Latina
na virada do século.
Na América Latina o ideário neoliberal encontrou sua mais acabada expressão e
sistematização no encontro realizado em novembro de 1989 na capital dos Estados Unidos,
como “consenso de Washington”. Segundo Anderson (1995), é fundamental ressaltar que a
globalização recente do capitalismo implicou, entre outras coisas, a implementação de um
conjunto de medidas e de recomendações de política econômica e de política externa
semelhantes em quase todos os países do mundo. Dentro desse conjunto de medidas, as mais
relevantes incidiram sobre os seguintes aspectos: a) disciplina fiscal; b) priorização dos gastos
públicos no sentido de combate ao déficit; c) reforma tributária; d) liberalização financeira; e)
flexibilização do regime cambial; f) abertura comercial; g) estímulo ao investimento direto
estrangeiro; h) privatização; i) desregulamentação das relações de trabalho e j) regulação da
propriedade intelectual.
A política de estabilização, reconhecida pelos Governos como aspecto mais importante
no curto prazo, e na medida em que tem na âncora cambial seu aspecto decisivo, tornou
deliberadamente a política externa e toda a política governamental refém dos ingressos do
capital financeiro internacional. Assim, os países da América Latina adotaram o chamado
programa de ajuste estrutural que surgiu no início dos anos 1980. Segundo Mora-Alfaro
(2007:19), “um programa de ajuste estrutural é a condição imposta pelo FMI e pelo Banco
30
Mundial a um país para outorgar-lhe respaldo financeiro destinado a enfrentar um grave
problema de pagamentos internacionais. Trata-se de uma receita única e de pretensa validez
universal aplicada independente da situação particular de cada país. (...) Os programas de
ajuste estrutural compreendem medidas estabilizadoras, que reduzem a demanda, e de
medidas estruturais, que atuam sobre a oferta. Tenta corrigir o déficits excessivos do setor
público e da balança de pagamentos.”
Na avaliação de Chesnays (1995: 16), “com exceção de um pequeno número de
‘novos países industrializados’ que haviam alcançado, antes de 1980, um grau de
desenvolvimento suficiente para se adaptar (...) aos novos ritmos da produtividade do trabalho
(...) os países em desenvolvimento já não são mais, como na época ‘clássica’ do imperialismo,
países subordinados, reservatórios de matérias-primas ou de mão-de-obra barata (...) Eles já
não oferecem nenhum interesse.” Entretanto, todo o processo de desenvolvimento capitalista,
de investimentos diretos estrangeiros, de fusões e aquisições e de privatizações, apontam no
sentido de que alguns países da América Latina, com destaque para o Brasil, o México e a
Argentina são exemplos tais de exceções.
No Brasil, a abrupta política de abertura comercial e desregulamentação financeira
abriu caminho para uma mudança na estrutura da economia. Tal processo foi seguido de
maneira cambiante pelo Governo Itamar Franco e aprofundado pelo Governo Fernando
Henrique Cardoso até o final da década de 1990. Segundo Gonçalves (1999: 134), no governo
FHC é que se constata, pela primeira vez na história econômica recente do país, um nítido e
forte processo de desnacionalização, que vem acompanhado da perda de posição relativa,
tanto das empresas estatais quanto das empresas privadas nacionais.
Para a análise expressada pelo PNUD, “a inevitabilidade da globalização, isto é, de
uma expansão e aprofundamento dos fluxos internacionais de comércio, finanças e
informação, num mercado global único e integrado, não significa que este processo esteja
conduzindo ao melhor resultado em termos de crescimento e desenvolvimento humano,
principalmente se observarmos que ele ocorre de maneira discriminatória e prejudicial para os
países pobres.” (Estenssoro, 2003: 126)
Na nova configuração histórica do capitalismo, as categorias desenvolvimento e
subdesenvolvimento ganham novos significados. É possível supor que a visão clássica de
Celso Furtado, relacionada à heterogeneidades estruturais tenha sido abalada pelo avanço
atual do capitalismo na periferia. Sem embargo, no atual capitalismo mundializado,
subdesenvolvimento pode significar, entre outras coisas, superpopulação relativa explosiva;
crescimento desmesurado da chamada hiper-periferia das grandes cidades, que se expressa em
31
desenfreado crescimento das favelas; crescimento da violência organizada; e por fim, de
índices extravagantes de pobreza e de indigência.
Os dados da tabela V sobre o panorama social dão conta de que o total de pobres da
América Latina cresceu sistematicamente de 1980 até 2002, passando de 135 milhões para
221 milhões, tendo apenas revertido a tendência em 2004, quando o número de pobres caiu
para 217 milhões. Já o número de indigentes saltou de um total de 62,4 milhões em 1980 para
97,4 milhões em 2002. Em números relativos à população, a pobreza cresceu de 40,5% em
1980 para 44,0% em 2002 e a parte da população indigente saltou de 18,6% para 19,4%.
TABELA V
AMÉRICA LATINA: POPULAÇÃO TOTAL POBRE E INDIGENTE
1980-2004 (milhões)
ANO
POBRES
INDIGENTES
1980
135,9
62,4
1990
200,2
93,4
1997
203,8
88,8
1999
211,4
89,4
2002
221,4
97,4
2004
217,4
87,6
Fonte: Relatório da CEPAL: Panorama Social de América Latina 2006.Nações Unidas, 2007,
p.60.
4. Proposta metodológica:
É preciso lançar mão das reflexões e das variáveis macroeconômicas organizadas pelo
economista inglês John M. Keynes para dar início à construção de um experimento científico
em ciências sociais capaz de apresentar uma hipótese sobre os fatores determinantes da
variação da pobreza na América do Sul.
Para a construção de tal experimento é preciso indagar e identificar quais as variáveis
que determinam a variação da pobreza, ou seja, levantar uma hipótese sobre os fatores
causadores da pobreza na América do Sul. É plausível supor que a variação da pobreza (Pb)
está associada à variação da renda (Y) e da variação na qualidade de vida da população (Qv),
ou seja:
∆Pb = ∆Y + ∆Qv,
Isto posto, é preciso saber o que determina a variação da renda (∆Y) e a variação da
qualidade de vida da população (∆Qv) para tecer uma reflexão sobre a variação da pobreza.
Temos de antemão que supor que a variação da qualidade de vida está fortemente associada à
variação dos gastos sociais (G). Falta saber quais os fatores que determinam a variação da
renda (Y) da população.
32
A teoria econômica keynesiana foi sistematizada por Paul Samuelson de modo a tornála de fácil visualização e até de fácil utilização para a reflexão. Desse modo, a determinação
da renda (Y) é geralmente associada à seguinte formulação: A variação da renda (∆Y) é
determinada pelo Consumo (C), mais o investimento (I), mais os gastos do governo (G), mais
as exportações (X), menos as importações (M), ou seja:
∆Y ⇐ ∆(C + I + G + X – M)
A fórmula acima, que é geralmente aceita nas ciências econômicas e sociais,
estabelece quais as variáveis que determinam a variação da renda, que é a variável
fundamental, na nossa hipótese, para se determinar a variação da pobreza. Cabe, então,
identificar quais as determinações dos itens C, I, G, X e M para então termos uma primeira
aproximação ao nosso problema.
É razoável supor, que a variável consumo (C) da classe trabalhadora é determinada
pela variação dos salários (w) e dos benefícios sociais (Bs), ou seja, é possível supor, que a
renda e a sorte dos membros da classe trabalhadora está fortemente associada aos salários
pagos (massa de salários) e aos benefícios sociais existentes que compõe uma espécie de
salários indiretos (moradia, educação, saúde, previdência, etc), ou seja,
C ⇐ W + Bs,
Vamos supor também que os W e os Bs são determinados fortemente pelo
nível de emprego (N) e a luta de classes ou lutas sociais travadas pelos trabalhadores e o
“povo” em geral para elevar suas conquistas e assim melhorar suas condições de vida. Desse
modo, chegamos à fomulação, que merece destaque, de que os salários W e os benefícios
sociais Bs são determinados por N e pelo estado das lutas sociais, portanto:
C ⇐ N, lutas sociais (Ls),
Depois de verificarmos a variável consumo (C), vamos lançar um olhar para a próxima
variável da nossa primeira fórmula, o investimento (I) para lançar hipótese sobre suas
determinações. Como é de conhecimento geral, na teoria keynesiana o investimento (I), ou o
gasto dos capitalistas, é determinado pela relação entre as variações da taxa de juros (i) e da
chamada eficiência marginal do capital (EMK), [ou lucro (l`)]. A variável poupança (S) é
também de relevância no caso de se saber a ∆I, e no caso dos países da América do Sul, é
preciso considerar a poupança externa, ou seja, os investimentos externos, os empréstimos
etc, que gerarão remunerações com impactos que abordaremos mais adiante. No momento
vamos supor que os juros (i), a poupança (S) e a FBK, ao determinarem o nível de
investimento (I) terão um impacto forte na determinação do nível de emprego (N). É preciso
33
considerar também que as variáveis i, S e o l`, dependem da política econômica adotada, que
por sua vez depende do tipo de governo, enfim da complexa esfera da política, que aqui esta
identificada como lutas sociais (Ls). Neste quesito, é possível chegar às mesmas
considerações se migrarmos para o campo do marxismo, onde os lucros, juros (e também a
renda da terra) são formas de manifestação do excedente econômico, ou mais-valia, que é
determinada pela taxa de exploração da força de trabalho (mais-valia sobre capital variável
m/v), que por sua vez é determinado pela luta de classes. Assim, por diversos caminhos
possíveis, chegamos à formulação de que a determinação do investimento (I), está fortemente
associada luta social (Ls). Desse modo, a idéia elaborada por Karl Marx sobre a relação do
excedente econômico com as lutas sociais ajuda a compreender o aspecto da hipótese ora em
construção: a ∆Y depende essencialmente da ∆I e este tem forte influência das lutas sociais,
na medida em que, as mesmas interferem na determinação do excedente econômico, ou seja:
∆I ⇐ ∆Ls
Passemos agora para a variável relativa aos gastos públicos (G). Vamos supor que os
gastos públicos estão associados à variação da arrecadação e ao tipo de governo, mais
precisamente, às políticas sociais imprimidas pelos governos, que determinará o volume de
gastos em educação, saúde, previdência, habitação, etc, ou seja, os benefícios sociais (Bs)
existentes a disposição da população. Assim, os gastos sociais (G) tornam-se uma variável
fundamental para se aferir a variação da pobreza.
As exportações (X), por seu turno, são determinadas, entre outros aspectos, pela
política cambial, pela política externa adotada, pela produtividade do trabalho e pela situação
do ciclo econômico. E as importações (M) são associadas ao grau de abertura econômica
M/PIB, do crescimento econômico, das tarifas alfandegárias, etc. Assim temos que o saldo da
balança comercial é de grande importância, pois, termos um fluxo de renda positivo ou
negativo que rebaterá necessariamente na variação da pobreza (∆Pb) de um país ou região.
Chegamos então a um momento em que podemos separar o que está nas pontas das
cadeias de determinação da explanação acima, ou seja, o nível de emprego (N), as lutas
sociais (Ls), os gastos sociais ou gastos do governo (G) e a balança comercial (∆BC). Assim,
se analisarmos a variação das quatro variáveis, teremos um indicador, no sentido de análise,
da variação da pobreza (∆Pb). Então, pode-se formular a hipótese provisória de que a variação
da pobreza depende da variação do nível de emprego, das lutas sociais, da variação dos gastos
sociais e da variação da balança comercial e chegamos à formulação que sintetiza nossa
hipótese preliminar:
34
∆Pb ⇐ ∆N, ∆Ls, ∆Gs, ∆BC,
ou seja, se analisarmos as variações de N, Ls, Gs e BC, teremos um indicativo da variação da
pobreza (Pb).
Nossa hipótese estaria apresentada e completa se nossa análise fosse recair sobre os
“países desenvolvidos”. Segundo a visão clássica de Celso Furtado, é sempre salutar a busca
de inovações ou adaptações da macroeconomia para os países não-desenvolvidos. Portanto, é
preciso ousar e adequar a fórmula elaborada a partir de Keynes para a realidade da América
Latina. Países da América Latina são exportadores líquidos de capitais na forma de remessas
de juros (i), de lucros (l`), royalties (r), direitos de assistência técnica (dat), etc. Deste modo,
são historicamente, ou estruturalmente, deficitários na conta de serviços. Portanto, é preciso
incluir a conta de serviços no cálculo. Desse modo, temos:
∆Y ⇐ ∆[C + I + G + X – M ± l` ± i ± r ± (dat)],
Sendo [+ X – M ± l` ± i ± r ± (dat)] o saldo do Balanço em Transações Correntes (BTC),
temos finalmente:
∆Y ⇐ ∆[C + I + G + (± BTC)],
para países subdesenvolvidos, emergentes ou outra designação equivalente.
Assim, chegamos finalmente a nossa hipótese de trabalho de que a variação do nível
de emprego (N), das lutas sociais (Ls), dos gastos sociais (Gs) e do saldo do balanço em
transações correntes (BTC), determinam a variação da pobreza (Pb). Portanto, ao pesquisar a
variação dos mesmos, chegaremos finalmente à determinação dos fatores determinantes da
variação, ou elevação, da pobreza no período considerado, ou:
∆Pb ⇔ ∆N, ∆Ls, ∆Gs, ∆BTC.
Concluindo, é plausível supor que ao analisar as variáveis nível de emprego, lutas
sociais, gastos sociais e resultados do balanço em transações correntes, e, depois confrontá-las
com a evolução dos índices de pobreza, poderemos confirmar nossa hipótese sobre os fatores
determinantes da evolução da pobreza nos países da América do Sul.
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DOENÇAS DA POBREZA E SANEAMENTO AMBIENTAL NA MICRORREGIÃO
SALINAS/TAIOBEIRAS (MG)
Samuel do Carmo LIMA
Maria Araci MAGALHÃES
Natália Oliveira SANTOS
Marina Lelis RIBEIRO
Marco Túlio MARTINS
Resumo
A ausência do saneamento ambiental tende a acarretar a disseminação das doenças que estão
associadas ao abastecimento deficiente de água, condições precárias de moradia, falta ou
ineficiência de esgotamento sanitário. São diversas as doenças adquiridas pelo ser humano
devido às condições ambientais e sócio-econômicas deficitárias, conhecidas como doenças
negligenciáveis ou doenças da pobreza. Dentre estas podem-se destacar as doenças de
transmissão hídrica e as transmitidas por inseto vetor. O objetivo deste trabalho é analisar o
saneamento ambiental dos municípios, condições socioeconômicas das populações, e verificar
as ações de saúde pública relativas ao controle da esquistossomose, além de outras
verminoses na microrregião Salinas/Taiobeiras - MG, norte de Minas Gerais, composta por 16
municípios. Os dados de exames coprológicos para detecção de Schistossoma mansoni e de
outros parasitas, no período de 2000 a 2007, foram obtidos junto à Gerência Regional de
39
Saúde de Montes Claros. Os dados referentes ao saneamento ambiental foram retirados do
SIAB (sistema de informação de atenção básica) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística) organizados em tabelas, gráficos e mapas, utilizando-se o TABWIN, ferramenta
de espacialização de dados, disponível no DATASUS/MS. A precariedade do saneamento
ambiental e a falta de higiene constituem risco para a saúde da população. Os municípios mais
carentes de saneamento ambiental, redes de abastecimento de água tratada (Curral de Dentro,
Ninheira e Montezuma), de esgotamento sanitário (Taiobeiras, Rio Pardo de Minas, Vargem
Grande do Rio Pardo e Ninheira) e coleta de lixo (Padre Carvalho, Santa Cruz de Salinas,
Ninheira e Novorizonte) são os que possuem maiores incidências de verminoses. Assim, para o
estabelecimento de medidas preventivas e de controle, faz-se necessário compreender os fatores
sócio-ambientais que as propiciam e as perpetuam, mas principalmente, que os governos
municipal, estadual e federal tomem como prioridade a saúde pública, investindo mais recursos na
prevenção e no saneamento ambiental.
Palavras chave: Saneamento Ambiental, Doenças, Pobreza, Microrregião Salinas/Taiobeiras
Abstract:
The absence of the environmental sanitation can to cause the dissemination of the diseases
that are associates to the deficient water supplying, precarious conditions of housing, lack or
inefficient sanitary exhaustion. The diseases acquired for human because of deficit ambient
and partner-economic conditions are known as neglected poverty or diseases of poverty. The
Neglected diseases are a group of tropical infections which are especially endemic in poor
populations. Among them, those wich have hydric transmission or transmited by a vector
insect can be highlighted. The purpose of this study is to analyze the environmental sanitation
of the cities, socioeconomic conditions of the population and to verify the gestures of public
health for the control of schistosomiasis and other micro worm in Salinas / Taiobeiras - MG,
north of Minas Gerais, composed of 16 municipalities. The data of tests for detection of
coprologics Schistossoma mansoni and other worm, within the period of 2000 to 2007, were
obtained from the Regional Health Management of Montes Claros. The data on environmental
sanitation were withdrawn from the SIAB (information system of basic care) and from the
IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistic) organized in tables, graphs and maps,
using the TABWIN, tool for spatial data, available on DATASUS / MS. The precariousness
of environmental sanitation and the lack of hygiene consist in a risk to the health of the
population. The municipalities of poor environmental sanitation, supply networks of treated
water (Curral de Dentro, Ninheira and Montezuma), basic sanitation (Taiobeiras, Rio Pardo
de Minas, Vargem Grande and the Rio Pardo Ninheira) and garbage collect (Padre Carvalho,
Santa Cruz de Salinas, Ninheira and Novorizonte) are those that have more impact of
schistosomiasis worm. Thus, for the establishment of preventive measures and control, it is
necessary to understand the socio-environmental factors that provide and perpetuate, but
mainly, that the municipal, state and federal governments take as a priority public health,
investing more resources in the prevention and environmental sanitation.
Key words: environmental sanitation, diseases, Poverty, Salinas/Taiobeiras Microregion
1. INTRODUÇÃO
O abastecimento deficiente de água, condições precárias de moradia, falta de
esgotamento sanitário podem ser a causa de muitas doenças. Dentre estas, pode-se destacar as
doenças de transmissão hídrica e as transmitidas por inseto vetor, conhecidas como doenças
negligenciáveis ou doenças da pobreza. Tais doenças caracterizam-se por assolarem a parcela
40
menos favorecida de uma população. São provocadas, geralmente, pela falta ou ineficiência
dos serviços básicos de saúde e falta de saneamento ambiental.
Conforme o artigo 42 - do código de saúde do Estado de Minas Gerais (1999),
saneamento ambiental é o conjunto de ações, serviços e obras que objetivam garantir a
salubridade ambiental por meio do abastecimento de água, coleta de lixo, tratamento e
disposição adequada dos esgotamentos sanitários, drenagem de águas pluviais, controle de
animais vetores, hospedeiros, reservatórios e sinantrópicos, dentre outras medidas.
O presente trabalho tem por objetivo identificar às doenças da pobreza, o saneamento
ambiental, as condições socioeconômicas das populações, bem como as ações de saúde
pública relativas ao controle dessas doenças na microrregião Salinas/Taiobeiras - MG, norte
de Minas Gerais.
2 MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se um levantamento bibliográfico para obtenção do embasamento teórico do
assunto e conhecimento da área de estudo. A pesquisa bibliográfica ajudou a contextualizar o
assunto, em seus aspectos gerais e naquilo que orientasse as definições metodológicas para a
pesquisa, principalmente em trabalhos já elaborados na área de estudo e cujos conteúdos
estivessem diretamente relacionados à pesquisa proposta. Neste sentido, foram consultadas
bibliografias variadas, tabelas e mapas elaborados pela da Superintendência de Epidemiologia
- MG, DATASUS, dentre outros.
Os dados referentes à microrregião Salinas/Taiobeiras - MG foram obtidos junto à
Gerência Regional de Saúde de Montes Claros - MG e referem-se aos exames coprológicos,
para detecção de Schistossoma mansoni e de outros agentes etiológicos, no período de 2000 a
2007, realizados pelos municípios dessa microrregião sendo disponibilizados em meio digital.
Inicialmente, foram convertidos para o Excel, organizados e tabulados para a elaboração de
gráficos e mapas, utilizando-se a ferramenta de espacialização de dados TABWIN, de uso
gratuito, disponível no site do DATASUS/MS. Os dados referentes ao saneamento ambiental
foram retirados do SIAB (sistema de informação de atenção básica) e do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) organizados em tabelas e analisados.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
41
3.1 Caracterização da Microrregião e Localização
A constituição federal de 1988 normatiza, no artigo 198, o SUS (Sistema Único de
Saúde), “[...] as ações de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem
um sistema único” Pereira, (2007). Tendo como norteadores os princípios da universalização,
da eqüidade e da integralidade, desenvolve o processo de regionalização da saúde, com base
em políticas públicas organizadas para o atendimento nos níveis municipal, microrregional e
macrorregional.
Conforme o PDR (Plano Diretor de Regionalização), o estado de Minas Gerais utiliza
a categoria região vista como o espaço para organização de redes assistenciais de serviços
segundo níveis de atenção à saúde, ou seja, com perfis de oferta de serviços diferenciados e
distribuídos, demográfica e espacialmente, de acordo com os diferentes níveis de
incorporação tecnológica (ambulatorial e hospitalar) níveis municipal, microrregional e
macrorregional. Malachias (2005).
Neste espaço territorial, encontram-se municípios que são polarizados por outros em
função da sua infra-estrutura de atendimento instalada. Segundo Pereira, (2007) [...] podemos
identificar uma hierarquização dos serviços de saúde no Norte de Minas, a posição de Montes
Claros como Macro Pólo Regional é justificada pela variedade e oferta de serviços de maior
complexidade. Montes Claros-MG exerce influência como pólo de atração macrorregional
para a microrregião Salinas, tendo o município de Salinas-MG como pólo microrregional.
Os pólos microrregionais exercem força de atração na demanda por serviços do nível
da atenção secundária, ofertando alguns poucos procedimentos de Alta Complexidade
Tecnológica, que necessitam maior proximidade do usuário e ainda oferta vários
procedimentos de Média Complexidade, Malachias (2005).
A microrregião de Salinas está inserida na mesorregião Norte de Minas, com
população em torno de 211.158 habitantes, estimada em 2006 pelo IBGE e encontra-se
dividida em dezesseis municípios, possuindo uma área total de 17.837,277 Km2 (cf. figura 1).
A microrregião é drenada pelas bacias hidrográficas dos Rios Jequitinhonha e Pardo,
as quais estão localizadas nas porções nordeste de Minas Gerais e possui grande quantidade
de córregos e ribeirões, na sua maioria de vazão temporária, devido às estiagens.
42
Figura 1: Localização da Microrregião de Saúde Salinas/Taiobeiras – MG
A microrregião Salinas-Taiobeiras possui clima tropical e semi-árido, predominante
quente por quase todos os meses do ano. Caracteriza-se por um período de seca marcante no
inverno, com chuvas mal distribuídas. O verão, por sua vez, é marcado por chuvas torrenciais
e espaçadas. A microrregião apresenta solos férteis e riquezas minerais, sua vegetação oscila
do cerrado à caatinga e pequenas áreas de florestas.
A microrregião de Saúde Salinas/Taiobeiras-MG é composta por 16 municípios:
Berizal, Curral de Dentro, Fruta de Leite, Indaiabira, Montezuma, Ninheira, Novorizonte,
Padre Carvalho, Rio Pardo de Minas, Rubelita, Salinas, Santa Cruz de Salinas, Santo Antônio
do Retiro, São João do Paraíso, Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo. O município de
Salinas exerce polarização sobre outros municípios da microrregião por sua capacidade
instalada e potencial de equipamentos urbanos e de fixação de recursos humanos
especializados. Na área da saúde, apresenta capacidade histórica, atual e potencial de absorção
de fluxos populacionais gerados pela demanda por serviços médico-assistenciais.
Há uma carência de hospitais na região. Somente 4 municípios possuem leitos
hospitalares para internação: Taiobeiras (82), Salinas (81) e São João do Paraíso (58) e Rio
Pardo de Minas (42 leitos). Em cinco municípios há aparelhos de raio x: Montezuma, Rio
Pardo de Minas, Salinas, São João do Paraíso e Taiobeiras. Há aparelho de ultra-som em três
43
municípios: Salinas, São João do Paraíso e Taiobeiras. Em 6 municípios há aparelhos de
eletro-cardiograma e eletro-encefalograma: Ninheira, Rio Pardo de Minas, Salinas, São João
do Paraíso e Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela 1).
Tabela 1
Equipamentos e Serviços de Saúde nos municípios da microrregião de Salinas/Taiobeiras, 2005
Número de Estabelecimento
Ultras
Morb.
Raio
Estabelecime
s com
Leitos
Eletro H.
X
ntos
Internações
som
2007
Municípios
Públic Privad
Públic Privad
Público Privado
Total Total Total Total
o
o
o
o
Berizal
3
0
0
0
0
0
0
0
0
8
Curral de Dentro
3
0
0
0
0
0
0
0
0
12
Fruta de Leite
3
0
0
0
0
0
0
0
0
11
Indaiabira
6
0
0
0
0
0
0
0
0
12
Montezuma
3
0
0
0
0
0
0
1
0
6
Ninheira
4
0
0
0
0
0
0
0
1
11
Novorizonte
5
0
0
0
0
0
0
0
0
10
Padre Carvalho
2
0
0
0
0
0
0
0
0
13
Rio Pardo de Minas 12
1
0
1
0
42
0
1
2
63
Rubelita
8
0
0
0
0
0
0
0
1
12
Salinas
14
6
1
1
53
28
1
3
3
100
Santa Cruz de
1
1
0
0
0
0
0
0
0
8
Salinas
Santo Antônio do
5
0
0
0
0
0
0
0
0
10
Retiro
São João do Paraíso
7
1
1
0
0
58
1
2
3
40
Taiobeiras
15
2
1
0
82
0
1
2
3
64
Vargem Grande do
3
0
0
0
0
0
0
0
2
6
Rio Pardo
Fonte:IBGE,Assistência Médica Sanitária, 2005 Malha Municipal digital do Brasil: Situação
2005, Rio de Janeiro, 2006
3.2 As doenças da Pobreza na Microrregião de Salinas
Existe uma grande diversidade de doenças infecciosas, causadas por parasitas, agentes
etiológicos vivos, adquiridos em algum momento pelos hospedeiros a partir do meio ambiente
externo. Sabroza, et.al. (1989). As doenças infecciosas são marcadores de processos
ecológicos que participam ao menos duas populações, a do hospedeiro e a do parasita
(Anderson & May, 1982 apud Sabroza, et.al. 1989).
44
Com relação às doenças infecciosas, percebe-se que cada grupo social adquire a
doença e a elimina de acordo com sua condição fisiológica, comportamental e financeira.
Dessa forma, o risco de o indivíduo adquirir a doença e falecer, depende, na maioria das
vezes, da posição econômica que o mesmo ocupa na sociedade, ou seja, o patógeno, ao
encontrar um organismo debilitado por carências nutricionais, encontra maiores
possibilidades de proliferação do que num indivíduo saudável.
As possibilidades de
tratamento para um indivíduo de maior poder aquisitivo são maiores, por poder pagar planos
de saúde, tratamentos particulares, especializados e sem delongas, facilitam o controle da
doença. Nesse sentido, explica-se o fato de as doenças infecciosas serem caracterizadas como
doenças da pobreza. Pode-se, ainda, reconhecer que para essas populações mais pobres, os
riscos ambientais são maiores, pela insalubridade e falta de saneamento ambiental nos locais
de moradia.
O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) foi criado originalmente para medir o
nível de desenvolvimento humano dos países a partir de indicadores de educação
(alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (esperança de vida ao nascer) e renda (PIB
per capita). O índice varia de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento
humano total) (PNUD,2003).
Os municípios com índices entre 0,500 e 0,799 são considerados de médio
desenvolvimento humano; na microrregião de estudo todos os municípios estão dentro desta
categoria. Somente Salinas e Taiobeiras apresentam um IDH superior a média da
microrregião que é de 0,646, conforme figura 2 (PNUD 2000).
O PIB expressa o valor monetário global dos bens e serviços finais produzidos em
determinado território e em um período de tempo específico. O PIB per capita da
microrregião é R$2.509,35 (IBGE/2003), muito baixo, comparável ao dos estados mais
pobres do nordeste brasileiro (cf. Figura 3).
45
Figura 2 - Índice de Desenvolvimento Humano de Minas Gerais, 2000 (PNUD 2000)
Alta renda
██ + R$ 18.000
██ + R$ 16.000
██ + R$ 14.000
Média renda
██ + R$ 12.000
██ + R$ 10.000
██ + R$ 8.000
Baixa renda
██ + R$ 6.000
██ + R$ 4.000
██ + R$ 2.000
46
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_estados_do_Brasil_por_PIB_per_capita
Figura 3 - PIB per capita dos Estados Brasileiros
Ainda assim, esta referência econômica é muito abstrata, porque desconsidera a
dimensão da distribuição da renda gerada, não captando as desigualdades sociais do espaço
territorial. A pobreza na região pode ser muito maior que a expressa por esse índice, que
representa melhor as tendências econômicas do que o nível de bem-estar social da população.
As políticas públicas para a saúde são criadas com vistas a propiciar maior acesso da
população ao atendimento da saúde, procurando minimizar as desigualdades existentes. Para
tanto, são criadas as normatizações nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Atendendo as normatizações da secretaria de saúde do Estado de Minas Gerais no que
concerne ao plano de controle da esquistossomose e outras verminoses, foram realizados
exames coprológicos na microrregião de saúde Salinas. O método utilizado para avaliação de
Schistossoma mansoni, dentre outros parasitas, foi Kato-Katz, que é um método
qualiquantitativo, muito usado para o diagnóstico de helmintos.
Pode-se identificar em grande parte da população examinada na microrregião, as
verminoses causadas por parasitas como a ascaris lumbricóides, ancylostoma, schistossoma
mansoni, taenia saginata, taenia solium, denotando, dessa forma, os baixos níveis de
qualidade de vida, bem como serviços de saneamento ambiental, pois estes proliferam em
ambientes de baixos índices higiênicos.
Popularmente conhecida como lombriga, a ascaridíase é uma parasitose causada pelo
verme nemátode ascaris lumbricóides. A contaminação por esse parasita ocorre através do
consumo de alimentos e água que estejam contaminados por seus ovos. A pobreza aumenta a
suscetibilidade às doenças. A falta de água potável, nesse caso específico, propicia a
disseminação dessa verminose. Sendo assim, cabem intervenções públicas destinadas à
redução da miséria e expansão da cidadania.
Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população,
constatou-se a infecção pelo parasita da ascaridíase, com exceção de Rubelita, que somente
realizou exames em 2007, porém sem infecção. De 2001 a 2004, os municípios que
apareceram com maior prevalência foram Berizal, Ninheira, Novorizonte, São João do
Paraíso e Vargem Grande do Rio Pardo, com mais de 2% de prevalência de ascaridíase.
Ressalta-se o Município de Berizal em 2002 que teve prevalência de 12,5%. Desses
municípios, somente Ninheira e Vargem Grande do Rio Pardo permaneceram nesta condição
no período de 2005 a 2007, sendo que este último teve uma prevalência de 29,3%, em 2006.
47
Os municípios de Salinas e Montezuma não realizaram os exames cropológicos, senão em
2007 e apresentaram alta prevalência para ascaridíase, 5,6% e 8,7% respectivamente.
Tabela 2
Prevalência de casos de ascaridíase na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004
Municípios
2001
P
P.E.
Berizal
4.040
Indaiabira
7.505
Montezuma
6.577
Ninheira
9.435
Novorizonte
4.678
Rio Pardo de Minas
27.233
Rubelita
10.209
Salinas
36.915
Santa Cruz de Salinas
4.843
Santo Antônio do Retiro 6.736
São João do Paraíso
21.082
Taiobeiras
27.815 5877
Vargem Grande do Rio
4.540 916
Pardo
%
0,3
0,9
2002
P
P.E.
4.087
8
7.558 1100
6.583
9.477 803
4.724
27.534 1144
10.241
37.073
4.878 36
6.803
21.196 2029
27.534 5444
4.596 1115
%
12,5
0,5
9,7
1,2
0
4,6
0,5
2,3
2003
P
P.E.
4.144 1782
7.629 2117
6.606
9.534 642
4.776 47
27.674 1597
10.256
37.234
4.909 2040
6.876
21.278 2544
27.674 1102
4.666 1154
%
1,0
0,8
2,0
8,5
2,0
0,4
1,4
0,5
1,3
P
4.196
7.688
6.609
9.588
4.828
27.812
10.281
37.395
4.945
6.944
21.362
27.812
4.730
2004
P.E.
1090
3855
1989
92
2169
1306
2544
1445
608
Tabela 3
Prevalência de casos de Ascaridíase na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007
Municípios
2005
P
P.E.
Berizal
4.321 1695
Indaiabira
7.831 2292
Montezuma
6,620
Ninheira
9.718 2331
Novorizonte
4.949
Rio Pardo de Minas
28.124 7392
Rubelita
10.318
Salinas
37.765
Santa Cruz de Salinas
5.025
Santo Antônio do Retiro 7.097
São João do Paraíso
21.550 4158
Taiobeiras
28.124
Vargem Grande do Rio
4.882 1002
Pardo
%
0,1
1,3
3,0
2,8
0,3
1,2
2006
P
P.E.
4.388 1022
7.906 3075
6.637
9.781 2545
5.007 2873
28.287 5313
10.341
37.956
5.062 1347
7.180 145
21.652 2628
28.287 3309
4.958 1740
%
1,1
1,0
2,4
0,1
1,1
1,2
1,9
2,0
0,0
29,3
2007
P
P.E.
4.451 1700
7.979 3020
6.651 2453
9.845 1316
5.069 609
28.445 4525
10.362 585
38.141 1846
5.098 1316
7.259 1402
21.751 1321
28.445 5580
5.032 1603
%
0,7
0,9
8,7
7,1
0,0
1,0
0,0
5,6
0,9
0,2
1,5
0,3
1,0
48
%
0,1
1,0
0,2
1,0
0,7
0,0
3,2
0,1
5,2
A ancilostomose, também conhecida por amarelão, é causada por vermes Nematódeos
de espécies: Necator americanus e Ancylostoma duodenale. As formas adultas desses
parasitas instalam-se no aparelho digestivo humano, e fixam-se na porção que compreende o
intestino delgado, nutrindo-se de sangue do hospedeiro e causando um tipo de anemia,
(FONSECA 2008) conhecida por Anemia ancilostomótica. (MASPES &TAMIGAKI 1981).
Essa doença é transmitida através da penetração de larvas infectantes na pele de um
indivíduo em contato com ambientes suscetíveis, principalmente o solo, contendo fezes
contaminadas por ovos que eclodem e desenvolvem as larvas. A ancilostomíase também é
comum na microrregião Salinas e suscita o debate sobre as interfaces entre condições de vida,
pobreza e saúde.
Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população e
constatou-se infecção pelo parasita da ancilostomose, com exceção de Santo Antônio do
Retiro, que realizou exames em 2006 e 2007 e Rubelita, que somente realizou em 2007.
De 2001 a 2004, os municípios com maior prevalência foram Berizal, Indaiabira,
Ninheira, Novorizonte, Rio Pardo de Minas, São João do Paraíso, Taiobeiras, Vargem
Grande do Rio Pardo, com mais de 2% de prevalência de ancilostomose. Desses,
somente Berizal, Novorizonte, Taiobeiras, Vargem Grande do Rio Pardo tiveram queda
na prevalência de ancilostomose no período de 2005 a 2007. O município de Salinas,
que realizou exames somente em 2007, teve alta prevalência de ancilostomose, 10,2%.
Destaca-se o município de Ninheira que baixou seu índice significativamente de 15,8 em
2005 para 0,2% em 2007.
Tabela 4
Prevalência de casos de Ancilostomose na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004
Municípios
Berizal
Indaiabira
Montezuma
Ninheira
Novorizonte
Rio Pardo de Minas
Rubelita
Salinas
2001
2002
2003
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E.
4.040
- 4.087
8 12,5 4.144 1782
7.505
- 7.558 1100 1,2 7.629 2117
6.577
- 6.583
- 6.606
9.435
- 9.477 803 16,6 9.534 642
4.678
- 4.724
- 4.776 47
27.233
- 27.534 1144 8,1 27.674 1597
10.209
- 10.241
- 10.256
36.915
- 37.073
- 37.234
-
%
1,7
0,8
2,8
2,1
4,3
-
2004
P
P.E.
4.196 1090
7.688 3855
6.609
9.588 1989
4.828 92
27.812 2169
10.281
37.395
49
%
0,8
2,1
0,0
0,0
5,0
-
Rio Pardo de Minas
Santo Antônio do Retiro
São João do Paraíso
Taiobeiras
Vargem Grande do Rio
Pardo
4.843
6.736
21.082
27.815 5877 3,4
4.540 916 7,5
4.878 36 0,0 4.909
6.803
- 6.876
21.196 2029 14,2 21.278
27.534 5444 2,8 27.674
4.596 1115 4,8 4.666
2040
2544
1102
1154
0,3
13,9
9,7
2,9
4.945
6.944
21.362
27.812
4.730
1306
2544
1445
608
Tabela 5
Prevalência de casos de Ancilostomose na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007
Municípios
2005
P
P.E.
Berizal
4.321 1695
Indaiabira
7.831 2292
Montezuma
6,620
Ninheira
9.718 2331
Novorizonte
4.949
Rio Pardo de Minas
28.124 7392
Rubelita
10.318
Salinas
37.765
Santa Cruz de Salinas
5.025
Santo Antônio do Retiro 7.097
São João do Paraíso
21.550 4158
Taiobeiras
28.124
Vargem Grande do Rio 4.882 1002
Pardo
%
0,3
4,6
15,8
5,2
1,2
0,9
2006
P
P.E.
4.388 1022
7.906 3075
6.637
9.781 2545
5.007 2873
28.287 5313
10.341
37.956
5.062 1347
7.180 145
21.652 2628
28.287 3309
4.958 1740
%
1,3
2,5
13,5
0,06
7,3
0,0
0,0
4,9
0,0
0,6
2007
P
P.E.
4.451 1700
7.979 3020
6.651 2453
9.845 1316
5.069 609
28.445 4525
10.362 585
38.141 1846
5.098 1316
7.259 1402
21.751 1321
28.445 5580
5.032 1603
%
2,0
1,5
5,7
0,2
0,0
3,0
0,0
10,2
0,0
0,0
3,3
0,1
0,0
A esquistossomose mansônica é uma doença transmissível causada pelo parasita
(Schistossoma mansoni) e é provocada através do contato entre o molusco infectado pelo
parasita e o homem. A sua expansão é facilitada por movimentos migratórios, obras de
irrigação, barragens, condições de vida precária da população, hábitos higiênicos
inadequados, acesso de um modo geral às águas contaminadas.
Os estudos relativos aos dados de esquistossomose na microrregião de Salinas-MG
evidenciam tratar-se de área endêmica, contudo, a situação epidemiológica da
esquistossomose na microrregião tem melhorado nos últimos anos, com índices de
prevalência cada vez menores. Registra-se o fato de alguns municípios estarem deixando de
cumprir as metas pactuadas no Programa de Controle da Esquistossomose, não realizando os
inquéritos coprológicos nem as medidas profiláticas, ou realizando-as em população menor
que seria necessária.
50
20,0
6,3
5,7
6,1
Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população
constatou-se infecção pelo parasita Schistossoma mansoni, o que confirma ser essa uma
região endêmica de esquistossomose. De 2001 a 2004, foram realizados exames em todos os
municípios, com exceção de Rubelita, Salinas e Santo Antônio do Retiro. Todos apresentaram
índices acima de 2%, exceto Novorizonte e Rio Pardo de Minas que em 2004 apresentaram
0,0 e 0,9%, respectivamente. Somente Rio Pardo de Minas, Taiobeiras e Vargem Grande do
Rio Pardo tiveram queda na prevalência de esquistossomose no período de 2005 a 2007. Os
municípios de Salinas e Montezuma realizaram os exames coprológicos apenas em 2007, o
primeiro com índice de 6,3% (alto) e o segundo com índice de 1,1% (baixo).
Tabela 6
Prevalência de casos de Esquistossomose na população da microrregião
de Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004
Municípios
2001
2002
2003
2004
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E.
Berizal
4.040
- 4.087
8 37,2 4.144 1782 8,4 4.196 1090
Indaiabira
7.505
- 7.558 1100 5,7 7.629 2117 4,6 7.688 3855
Montezuma
6.577
- 6.583
- 6.606
- 6.609
Ninheira
9.435
- 9.477 803 11,7 9.534 642 5,7 9.588 1989
Novorizonte
4.678
- 4.724
- 4.776 47 6,3 4.828 92
Rio Pardo de Minas
27.233
- 27.534 1144 5,0 27.674 1597 3,7 27.812 2169
Rubelita
10.209
- 10.241
- 10.256
- 10.281
Salinas
36.915
- 37.073
- 37.234
- 37.395
Santa Cruz de Salinas 4.843
- 4.878 36 5,6 4.909 2040 7,5 4.945 1306
Santo Antônio do
6.736
- 6.803
- 6.876
- 6.944
Retiro
São João do Paraíso
21.082
- 21.196 2029 17,8 21.278 2544 9,4 21.362 2544
Taiobeiras
27.815 5877 2,1 27.534 5444 2,3 27.674 1102 2,0 27.812 1445
Vargem Grande do
4.540 916 6,6 4.596 1115 4,8 4.666 1154 2,4 4.730 608
Rio Pardo
%
4,2
5,0
16,4
0,0
0,9
9,2
8,2
4,0
1,6
Tabela 7
Prevalência de casos de Esquistossomose na população da microrregião
de Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007
Municípios
Berizal
Indaiabira
Montezuma
2005
2006
2007
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E. %
4.321 1695 3,6 4.388 1022 7,7 4.451 1700 5,6
7.831 2292 4,7 7.906 3075 2,9 7.979 3020 2,9
6,620
- 6.637
- 6.651 2453 1,1
51
Ninheira
Novorizonte
Rio Pardo de Minas
Rubelita
Salinas
Santa Cruz de Salinas
Santo Antônio do
Retiro
São João do Paraíso
Taiobeiras
Vargem Grande do
Rio Pardo
9.718 2331 8,7 9.781 2545 7,9
4.949
- 5.007 2873 1,0
28.124 7392 0,6 28.287 5313 1,7
10.318
- 10.341
37.765
- 37.956
5.025
- 5.062 1347 6,0
7.097
- 7.180 145 10,3
9.845
5.069
28.445
10.362
38.141
5.098
7.259
1316
609
4525
585
1846
1316
1402
6,3
0,5
0,3
1,0
6,5
5,7
13,0
21.550 4158 4,4 21.652 2628 3,5 21.751 1321 5,7
28.124
- 28.287 3309 1,2 28.445 5580 1,1
4.882 1002 1,5 4.958 1740 1,0 5.032 1603 1,9
A teníase é adquirida por Taenia saginata, ingerindo carne de bovino crua ou mal
cozida, infectada pelo Cysticercus bovis. A teníase por Taenia solium é adquirida pela
ingestão de carne de suíno crua ou mal cozida, infectada pelo Cysticercus cellulosae. A
cisticercose humana é adquirida pela ingestão acidental de ovos viáveis da Taenia solium
(HAIDA et. al. 2007)
Na microrregião Salinas é comum a criação de porcos caipiras e existem rebanhos
contaminados, tornando-se relativamente fácil encontrar pessoas que adquiriram essa
verminose. As complicações orgânicas advindas dessa doença causam transtornos
neurológicos irreparáveis como, por exemplo, a epilepsia, devido ao limitado acesso aos
cuidados de saúde, informação, saneamento e alimentação adequada.
Tabela 8
Prevalência de casos de Teníase na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004
Municípios
2001
2002
2003
2004
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E. %
P
P.E.
Berizal
4.040
- 4.087
8 0,0 4.144 1782 0,8 4.196 1090
Indaiabira
7.505
- 7.558 1100 0,2 7.629 2117 0,4 7.688 3855
Montezuma
6.577
- 6.583
- 6.606
- 6.609
Ninheira
9.435
- 9.477 803 1,2 9.534 642 0,0 9.588 1989
Novorizonte
4.678
- 4.724
- 4.776 47 6,3 4.828 92
Rio Pardo de Minas
27.233
- 27.534 1144 0,2 27.674 1597 0,1 27.812 20169
Rubelita
10.209
- 10.241
- 10.256
- 10.281
Salinas
36.915
- 37.073
- 37.234
- 37.395
Santa Cruz de Salinas 4.843
- 4.878 36 0,0 4.909 2040 0,0 4.945 1306
Santo Antônio do
6.736
- 6.803
- 6.876
- 6.944
Retiro
São João do Paraíso
21.082
- 21.196 2029 0,2 21.278 2544 0,2 21.362 2544
Taiobeiras
27.815 5877 0,1 27.534 5444 0,1 27.674 1102 0,2 27.812 1445
%
0,2
0,2
0,05
0,0
0,4
1,2
-
52
0,3
0,1
Vargem Grande do
Rio Pardo
4.540
916 0,6 4.596 1115 0,8 4.666 1154 0,3 4.730
608
0,3
Tabela 9
Prevalência de casos de Teníase na população da microrregião de
Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007
Municípios
2005
P
P.E.
Berizal
4.321 1695
Indaiabira
7.831 2292
Montezuma
6,620
Ninheira
9.718 2331
Novorizonte
4.949
Rio Pardo de Minas
28.124 7392
Rubelita
10.318
Salinas
37.765
Santa Cruz de Salinas 5.025
Santo Antônio do
7.097
Retiro
São João do Paraíso
21.550 4158
Taiobeiras
28.124
Vargem Grande do
4.882 1002
Rio Pardo
%
0,5
0,2
0,2
0,8
-
2006
P
P.E.
4.388 1022
7.906 3075
6.637
9.781 2545
5.007 2873
28.287 5313
10.341
37.956
5.062 1347
7.180 145
%
0,9
0,3
0,2
0,0
0,9
0,0
0,9
2007
P
P.E.
4.451 1700
7.979 3020
6.651 2453
9.845 1316
5.069 609
28.445 4525
10.362 585
38.141 1846
5.098 1316
7.259 1402
%
0,6
0,2
2,8
0,6
0,0
0,5
0,0
0,1
0,1
0,2
0,7 21.652 2628 2,6 21.751 1321 1,1
- 28.287 3309 0,0 28.445 5580 0,03
0,6 4.958 1740 0,0 5.032 1603 0,1
No período de 2001 a 2004, não foram realizados exames apenas nos municípios de
Montezuma, Salinas, e Santo Antônio do Retiro. Neste período, somente Novorizonte
apresentou alto índice de teníase, acima de 2% em 2003. No período de 2005 a 2007, somente
dois municípios apresentaram prevalência de teníase acima de 2,0%. São João do Paraíso,
com 2,6% em 2006 e Montezuma com 2,8, em 2007.
1.3 Saneamento Ambiental na Microrregião de SalinasTaiobeiras
A economia clássica deu ênfase ao papel da acumulação de capital no
desenvolvimento econômico e pouca atenção aos aspectos humanos e sociais. Uma grande
proporção da população que vive em regiões mais pobres ou em áreas pobres de regiões mais
ricas está mais suscetível a doenças e a morte prematura. A concepção de que as doenças
podem ser um entrave ao crescimento econômico, não leva em consideração que a pobreza é
também o resultado de um desenvolvimento desigual (PRATA 1994)
53
Com o inicio da produção industrial, o remanejamento populacional trouxe boa parte
da população do campo para a cidade, impulsionando assim o processo da urbanização, que
por sua vez demanda criação de infra-estrutura adequada que suporte a nova realidade.
Entretanto, a infra-estrutura das cidades já não comporta a quantidade de pessoas, e seus lixos
gerados pelo consumo inconsciente de bens, que na maioria das situações, nem sempre são
necessários. Com isso, o risco de aquisição de doenças infecciosas e parasitárias é ainda
maior, pela disseminação e proliferação de agentes etiológicos, causadas pela má manutenção
dos lixos dos esgotos e do abastecimento de água. Essas doenças atingem, geralmente, a
parcela mais pobre da sociedade que vive nas periferias das cidades, na maioria das vezes
negligenciadas pelas políticas públicas, tanto na questão estrutural de saneamento ambiental,
quanto na questão do acesso à saúde e à educação de qualidade.
Para o estabelecimento de medidas preventivas e de controle dessas doenças, que
atingem os mais pobres, faz-se necessário compreender a sua geografia, os fatores sócioambientais que as propiciam e as perpetuam. Também, é necessário que os governos
municipal, estadual e federal tomem como prioridade a saúde pública, investindo mais
recursos na prevenção e no saneamento ambiental. A precariedade do saneamento ambiental e
a falta de higiene constituem-se risco para a saúde da população.
Na microrregião de Salinas/Taiobeiras, os municípios são carentes de saneamento
ambiental. Em 2000, os mais carentes de redes de abastecimento de água tratada eram Curral
de Dentro, Ninheira e Montezuma. Os mais carentes de redes de esgoto sanitário eram
Taiobeiras, Rio Pardo de Minas, Vargem Grande do Rio Pardo e Ninheira; e os mais carentes
de coleta de lixo eram Padre Carvalho, Santa Cruz de Salinas, Ninheira e Novorizonte.
Em termos de abastecimento de água, dois municípios apresentaram índices menores
que 30%; sete municípios encontram-se entre 31 e 60%. Os melhores indicadores de
abastecimento de água, com índices superiores a 60%, eram os municípios de Berizal,
Novorizonte, Padre carvalho, Salinas, Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela
10).
Nove municípios apresentavam coleta de lixo para menos de 30% de sua população;
seis municípios coletavam para 31 a 60% da população e somente Taiobeiras coletava o lixo
de mais de 60% da população. No que tange à rede de esgoto instalada, quatro municípios não
disponibilizaram os índices; os demais apresentaram índices inferiores a 16,5% e somente
Salinas possuía rede de esgoto instalada acima de 40% (cf. Tabela 10).
54
Nota-se, por esses dados, a precariedade de sistemas de saneamento ambiental e de
políticas públicas para a região. Isto também pode ser visto pelo IDH dos municípios em
2000. Sete municípios possuíam IDH abaixo de 6, nove municípios tinham índices entre 6 e 7
e nenhum município atingia índice maior que 7 (cf. Tabela 10).
Tabela 10
Estruturas de saneamento ambiental e IDH dos municípios da microrregião de
Salinas/Taiobeiras, em 2000
Coleta de
Rede de água
Rede de esgoto
Municípios
Lixo
IDH
(%)
(%)
(%)
Berizal
78,7
41,8
16,4
0,599
Curral de Dentro
28,3
42,6
0,597
Fruta de Leite
56,1
22,7
0,586
Indaiabira
48
19,7
12,9
0,571
Montezuma
31
27
18
0,589
Ninheira
29,1
12,9
0,6
0,604
Novorizonte
64,2
14,7
0,648
Padre Carvalho
70,6
4,8
0,618
Rio Pardo de Minas
41,5
35,2
0,2
0,633
Rubelita
40,8
27,3
5,9
0,660
Salinas
73,7
57,0
43,3
0,699
Santa Cruz de Salinas
43,1
12,1
4,7
0,599
Santo Antônio do Retiro
45,3
19,6
16,4
0,601
São João do Paraíso
50,3
38,3
0,8
0,644
Taiobeiras
76,0
70,7
0,1
0,699
Vargem Grande do Rio
63,7
30,1
0,4
0,598
Pardo
Fonte: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/2000
Em 2007, com relação ao abastecimento de água tratada, apenas cinco municípios
realizavam atendimento de mais de 70% de suas populações: Padre Carvalho (97,1%),
Taiobeiras (82,9%), Berizal (81,0%), Salinas (77,0%), Rubelita (74,7%). Cinco municípios
realizavam atendimento com água tratada de 50 a 70% de suas populações: São João do
Paraíso (69,5%), Vargem Grande do Rio Pardo (61,7%), Santo Antônio do Retiro (61,5%),
Novorizonte (55,6%) e Montezuma (52,6%); enquanto seis municípios realizavam
atendimento de menos de 50% de suas populações: Curral de Dentro, Fruta de Leite,
Indaiabira, Ninheira, Rio Pardo de Minas, Rio Pardo de Minas e Santa Cruz de Salinas (cf.
Tabela 11).
Com relação à coleta de lixo, somente dois municípios atingiram mais de 70% de
atendimento à população: Taiobeiras (83,6%) e Berizal (74,6%).
. Cinco municípios
55
atendiam entre 50 e 70% de suas populações: São João do Paraíso (64,8%), Salinas (63,0%),
Rubelita (61,1%), Curral de Dentro (58,8%) e Padre Carvalho (56,6%). Nove municípios
continuavam a ter menos que 50% de suas populações atendidas com coleta de lixo: Fruta de
Leite, Indaiabira, Montezuma, Ninheira, Novorizonte, Rio Pardo de Minas, Santa Cruz de
Salinas, Santo Antônio do Retiro, Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela 11).
Tabela 11
Estruturas de saneamento ambiental e IDH dos municípios da microrregião de
Salinas/Taiobeiras, em 2007
Rede de
Coleta de
Rede de
Municípios
água
Lixo
esgoto
IDH
(%)
(%)
(%)
Berizal
81,0
74,6
21,0
0,599
Curral de Dentro
21,8
58,8
7,3
0,597
Fruta de Leite
41,9
25,0
0,4
0,586
Indaiabira
39,3
29,8
16,3
0,571
Montezuma
52,6
36,2
26,9
0,589
Ninheira
48,0
21,1
3,8
0,604
Novorizonte
55,6
21,1
1,4
0,648
Padre Carvalho
97,1
56,6
0,9
Rio Pardo de Minas
37,5
36,9
0,03
0,633
Rubelita
74,7
61,1
53,9
0,660
Salinas
77,0
63,0
57,0
0,699
Santa Cruz de Salinas
47,8
29,7
18,5
0,599
Santo Antônio do Retiro
61,5
22,0
25,0
0,601
São João do Paraíso
69,5
64,8
0,9
0,644
Taiobeiras
82,9
83,6
0,0
0,699
Vargem Grande do Rio
61,7
44,7
0,5
0,598
Pardo
Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB
http://www.datasus.gov.br/siab/siab.htm, acesso em 01/08/2008
Parece que rede coletora de esgotos não é prioridade nesses municípios. Talvez por ser
uma das infra-estruturas de saneamento ambiental mais caras, somente dois municípios
possuíam mais que 50% de suas populações atendidas com rede de esgotos: Salinas (57,0%) e
Rubelita (53,9%). Dois municípios atendiam em torno de 25%: Montezuma (26,9%), Santo
Antônio do Retiro (25,0%). Berizal atendia a 21%, Curral de Dentro atende a 7,3% e os
demais menos de 5%.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
56
Se entendermos que saúde não é apenas a ausência da doença, mas qualidade de vida
em todos os aspectos, podemos ter certeza de que em saúde pública isto se relaciona
diretamente às políticas públicas, o que realmente falta nos municípios da microrregião de
Salinas/Taiobeiras, no Norte de Minas Gerais.
A transição epidemiológica ainda não chegou ao Norte de Minas. Continua-se a
morrer de doenças infecciosas e parasitárias. A condição de pobreza da maioria da população,
aliada à grande carência de equipamentos de atendimento à saúde e a falta de saneamento
ambiental estabelecem as condições que determinam uma grande prevalência de doenças
infecciosas e parasitárias, também chamadas doenças da pobreza.
A população mais pobre da microrregião de Salinas/Taiobeiras adoece e morre
desassistida, por falta de sistemas de atenção à saúde mais eficientes e por falta de
saneamento ambiental. Em todos os 16 municípios constatou-se infecção por ascaridíase,
ancilostomose, teníase e esquistossomose na população, o que confirma ser essa uma região
endêmica para essas verminoses. Certamente, para atenuar esta situação, será preciso mais do
que investimentos nos sistemas de atenção à saúde, que são muito precários na região; ainda,
mais do que implantação de sistemas de saneamento ambiental, será preciso dar dignidade
humana a essas populações, elevando o seu nível de vida, por uma melhor distribuição de
renda, com maior acesso à educação. Tudo isso se espera de governos comprometidos com
programas sociais, mas também de uma sociedade mobilizada, lutando por justiça social.
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57
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Agricultores: lavouras do saber, lavouras da vida ou um processo de produção da
superação da pobreza via produção do saber apropriado. 8
Rosana Vieira Ramos
Professora do Departamento de Educação da UFLA
8
Este trabalho é parte da pesquisa para efeito de doutoramento realizado no Depto de Administração
Economia/UFLA,/MG.
59
Introdução: Esse trabalho apresenta uma (possível) análise da experiência de
produção e apropriação do saber de senso comum e do conhecimento científico vivida por
agricultores no município de Poço Fundo/MG. O trabalho de campo decorreu de uma estreita
convivência com os agricultores em sua residência, lavouras, reuniões e assembléias da
Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo e da Cooperativa de Agricultores
Familiares de Poço Fundo e região. Trata-se de uma abordagem de pesquisa qualitativa de
caráter etnográfica considerando-se os estudos de Malinowski (1978), Abarello et al (1997),
Lüdke e Marli (1986), Fazenda (1989); Geertz(2001) entre outros. A pesquisa buscou revelar
a dinâmica central e os temas geradores do saber apropriado por esses agricultores.
O terreno da construção teórico-prática:
O saber dos agricultores em foco contém o saber de experiência dos pais e
antepassados e, também, parte de experiências produzidas pelo conhecimento científico.
Partimos da proposição de Freire (1992) que pondera o seguinte:
“Saber só de experiências feito’, como diz Camões, é exatamente o saber de senso
comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum, como se o
mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico”i.
Com Santos (2001, 2002, 2003) consideramos a separação existente entre o saber de
senso comum e o conhecimento científico; uma separação imposta pela a ciência. Esse autor
pergunta: como se pode romper com esta separação? Em seus estudos, vislumbra uma
possível união entre saber de senso comum e conhecimento científico o que dá sustentação às
elaborações constantes nesse trabalho. Assim, nosso objetivo geral é analisar o processo de
produção do saber apropriado por agricultores nas relações sociais e culturais que se vinculam
ao saber de senso comum e o conhecimento científico. Especificamente, buscamos: (1)
analisar o processo de produção e organização do senso comum na cultura camponesa,
identificando as práticas apropriadas; (2) analisar as relações de produção do saber dos
60
agricultores em suas experimentações, avaliações e apropriação do conhecimento científico;
(3) estabelecer relações entre o saber apropriado e a de superação da pobreza.
Os agricultores fizeram, e permanecem fazendo, dois importantes aprendizados: um é
a experimentação, avaliação – adoção ou negação – criação, recriação ou adaptação do saber
camponês e do conhecimento científico; outro, ocorreu quando romperam com uma
possibilidade (um destino?) de pobreza e exclusão e transformaram suas condições de vida e
trabalho em vida digna e trabalho digno. Encontram-se inseridos no mercado internacional
como exportadores de café orgânicoii e café convencional sem agrotóxico. São conhecidos e
visitados por outros agricultores, por pesquisadores, visitantes nacionais e estrangeiros.
Originalmente os frutos do saber camponês, que não foi apagado, voltam como lições
que podem ser afirmadas ou negadas. Mas não deixam de ser fundamentos do saber produzido
hoje. Temos como premissa a proposição de que o saber camponês é o saber de senso comum
“fundante” nesse processo. E que, pela via do questionamento e da adoção seletiva do
conhecimento científico o saber camponês se manteve traduzindo um modo de viver e fazer
gerado na observação cotidiana da natureza, na recriação da tradição familiar e comunitária e
na apropriação de parte do conhecimento científico.
Esse saber produziu indagações e curiosidades singulares, experimentações e
observações próprias. Lidou com situações-limite iii e soluções construídas. Em sua produção
foram realizados: estudos com temáticas geradas na necessidade cotidiana; encontros entre
agricultores e com pessoas de referência de dentro e de fora do grupo; troca de experiências.
Além disso, os agricultores valeram-se de vários instrumentos de acesso ao conhecimento
científico, tais como: livros, revistas, televisão, computadores e Internet. E, ainda, contaram
com a presença de pesquisadores e estudantes de universidades e institutos de pesquisa,
técnicos de ONG e de certificadoras. Viagens internacionais de intercâmbio também fazem
parte desta trajetória de construção do saber.
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Se existe apropriação do conhecimento científico na produção do saber desses
agricultores, perguntamos: como se deu essa apropriação? Como usam o conhecimento
científico a seu favor? Como negam o conhecimento científico considerado inadequado?
Como misturam o saber camponês e o conhecimento científico? Entendemos que as
relações entre senso comum e conhecimento científico são dialógicas. Contém um
movimento que passa por observação e experimentação, configurando-se no ir-e-vir, de
ser e se fazer no cotidiano. Essa dinâmica gera o que estamos denominando de saber
apropriado. Apropriado no sentido de terem tomado posse, de fazerem seu o saber de
experiência feito e o conhecimento científico. Apropriado, também, porque adequado
aos seus interesses e modos de viver na sociedade. É esse processo que inspira a
realização desse estudo. A seguir, trazemos as contribuições teóricas sobre senso comum
e conhecimento científico para dar conta dessa compreensão
Senso comum e conhecimento científico: aproximações possíveis na cultura camponesa
No percurso teórico realizado para compreendermos o que é saber apropriado
conceituar “senso comum” e “conhecimento científico” adotamos Paulo Freire (1981, 1985,
1992) ao entender que o saber de senso comum é o “saber de experiência feito” e que, este,
contém a possibilidade de sua própria superação pela via da práxis social. Com Santos (2001,
2002, 2003) enfatizamos que se trata de um saber de senso comum que ao se aproximar do
conhecimento científico torna-se um saber de senso comum “novo, prático esclarecido ou
emancipatório”. Já, Moscovici e Hewstone (1984), tratam senso comum como “saber de
primeira mão”, que se transforma na aproximação do conhecimento científico.
Em uma outra vertente desse percurso teórico, cabe uma oura pergunta: o que é
ciência? Santos (2003, p. 15) destaca que a ciência moderna tem na racionalidade uma de suas
determinantes; assim, “[...] conhecer significa quantificar. As qualidades intrínsecas do
objeto são desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que
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eventualmente se podem traduzir”. Assim “rigor nas medições”, as quantidades, revelam o
objeto do conhecimento. Nesse paradigma, o método é a vida, e a vida é racionalidade.
Dividir, classificar, definir regularidades ou relações sistemáticas entre o que se separou
significa conhecer e fazer ciência.
Para Moscovivi (1984), a ciência é elucidação, é sistematização, serve para refinar o
senso comum, transforma pela razão o que foi acumulado pela tradição. Entretanto, de
acordo com Santos (2003, p. 16)
[...] o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum. É que,
enquanto o senso comum, que se traduz no conhecimento prático, a causa e a
intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da causa formal obtémse com a expulsão da intenção.
A esse rompimento, o autor denomina de primeira ruptura epistemológica, ou
aquela que funda a ciência. Além dessa, propõe uma segunda ruptura epistemológica,
que é segundo ele, a ruptura da ruptura, ou a aproximação da ciência com o senso
comum. Em suas palavras [...] a dupla ruptura procede de um trabalho de
transformação tanto do senso comum como da ciência, (SANTOS,2002, p. 45).
Analisando a relação entre senso comum e ciência, Moscovici & Hewstone
(1984) falam da geração de uma epistemologia popular que tem como objeto de estudo
particular o senso comum, um dos focos desse estudo. Interessa-nos compreender como o
homem comum se faz sábio amador, segundo Moscovici & Hewstone (1984); considerando,
nesse caso, os agricultores de Poço Fundo. São esses os sujeitos que no cotidiano buscam
fazer aproximações do senso comum com a ciência. Para isso, passamos a considera-los
usando a noção de cultura e, nela, a especificidade da cultura camponesa como dimensão
fundante do processo de produção do saber apropriado.
Construindo o conceito de cultura, Chauí (2003) discute a relação entre cultura
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popular e ciência. Sendo a ciência e o conhecimento científico associados à cultura de elite, a
autora problematiza esta dicotomia e também coloca em questão o prestígio adquirido pela
ciência, vista como discurso competente. Apoiados nessa autora, é possível considerar as lutas
decorrentes das desigualdades geradas pela legitimação da ciência como discurso competente
que, simultaneamente, produz a incompetência do saber popular. A perspectiva de Chauí
(2003), na qual a cultura é avessa à unificação, permite a compreensão do saber popular como
discurso competente, em que pesem análises que subtraem legitimidade desse saber.
Ao se fazer, fazendo o mundo, os sujeitos sociais fazem cultura. É o que entende Freire
(1980, p.54), em sua análise de processo, quando afirma: “a cultura só é enquanto está sendo.
Só permanece porque muda. Ou, talvez, dizendo melhor: a cultura só dura no jogo
contraditório da permanência e da mudança”. Tratamos, ao modo de Freire (2001), a cultura
como um “que fazer global”, a partir do saber de experiência feito, que se supera na ação de
criação e recriação do mundo. Para ele, o mundo é ato criado pela práxis humana. É produto
do trabalho do saber ou da cultura, no sentido original de cultivar (plantar, fazer “agricultura”) e no sentido histórico de relação de luta e exploração, além de ser também
possibilidade de solidariedade e reciprocidade nos diferentes modos de estar-no-mundo e
fazer-o-mundo.
Buscamos perceber os processos a partir de diferentes combinações de relações tecidas
entre os sujeitos, designadamente a forma como eles criam e recriam o saber vivido em
experiências e práticas cotidianas, nas respostas dadas a “situações-limite”iv – conceito usado
por Freire (1983; 1992; 2002), ao se referir às situações em que os sujeitos sociais se
defrontam com obstáculos impostos pela realidade diante dos quais podem se submeter ou
subverter. Ao subverterem superam o obstáculo.
O inacabamento do mundo nos permite a criação, a re-criação e o inusitado, a
permanência e a mudança. Freire (1979, 1981, 1985, 1992, 2003) ancoram esta discussão e
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orientam a análise do vivido e transformado pelos agricultores de Poço Fundo
Nesse contexto, os estudos de Brandão (1980, 1986 e 1999) e de Woortmann e
Woortmann (1997) fundamentam a análise da cultura camponesa, situando-a no processo de
produção do saber camponês.
Em seus estudos, Brandão (1980, 1986, 1999) observa que a prática da reciprocidade
que ocorre na relação do ser humano com a natureza, vitalizando um ciclo de dar-receberretribuir é parte do processo de produção do saber camponês. Nesta relação, criador e criatura,
ao cultivar a terra e produzir cultivos, o agricultor produz também cultura e sua própria
reprodução como sujeito.
Nesta direção, segundo Woortmann e Woortmann (1997), há uma relação entre a
produção da cultura como ação recíproca do ser humano que aprende atuando na natureza e a
natureza que ensina quando observada e cultivada.
Esses autores, ao tratarem a categoria “natureza e saber sobre a natureza”, tecem
vinculações entre a ação humana expressa no trabalho do saber que se funda no trabalho das
idéias. O trabalho sobre a natureza é informado, antecipadamente, por um “trabalho das
idéias, o trabalho do saber, acumulado e em constante processo de atualização”
(WOORTMANN e WOORTMANN, 1997, p. 36)
Ainda, segundo, Woortmann e Woortmann (1997), há uma diferença importante entre
agricultura camponesa e agricultura capitalista, moderna. Essa última pretende “corrigir” a
natureza que está errada: “corrige o solo”; faz adaptação das plantas e animais ao solo, ao
clima; não respeita as combinações de plantas e os ciclos naturais, tendendo a colocar as
demandas do mercado acima dos limites da natureza. Para os camponeses, a natureza ensina e
está correta, o trabalho do ser humano sobre a natureza é, para eles, aprender com a natureza,
sobre sua diversidade, seus diferentes tempos e ciclos, sobre o tipo de terra e as plantas que
dali nascem, animais que ali crescem, suas combinações, oposições e complementaridades.
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Relações geradoras do saber apropriado
Paulo Freire (2003) destaca a importância da temática na produção do
conhecimento. A temática é contextual e não deve ser vista como fragmentos ou
unidades isoladas. Nesse estudo, buscamos localizar os “temas” e “palavras geradoras”
na convivência com os agricultores. No momento da pesquisa exploratória, foram
recolhidos os temas que geraram as questões norteadoras das entrevistas, conversas e
temas que geraram as categorias de análise utilizadas.
Na produção do saber dos agricultores e agricultoras os contextos, as práticas e os
conteúdos estão imbricados, indissociáveis. São intenção e gesto, trabalho das idéias e
trabalho das mãos, pés e sentimentos, valores e ações correlatas, incompletude que
busca o “aprendizado eterno” no cotidiano. Estamos tratando de um saber que é e está
sendo gerado com raízes na terra, na família, na história de organização da comunidade,
da associação e da cooperativa, na produção e exportação do café diferenciado e, no
projeto de sociedade almejada.
Com quem aprenderam? Perguntamos. Não há um professor “específico”, um lugar
determinado, uma situação pontual de produção do saber. Pessoas, situações, formas de
organização são referências importantes nesse processo, afirmam os agricultores. Porém,
destacam com primazia o aprendizado que ocorre na relação de produção do saber existente
de agricultor para agricultor, o aprendizado com a terra, a planta, o fruto colhido e o produto
vendido. Esses, não são conteúdos estanques, pelo contrário, contém dinâmicas de relações
construídas e práticas de produção do saber que são elementos constitutivos do saber ora
analisado. A metodologia da produção do saber se funda na troca de experiência entre
agricultores, na observação e na experimentação. Seu Raimundo fala do aprendizado do
agricultor com outro agricultor: “Aqui não é competição, se a gente aprendeu alguma coisa a
gente passa aquilo adiante, se a gente aprende e guarda para si não vai ajudar nada, se
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agente passa adiante aquilo vai dar muito fruto”
Essa fala é expressão do que estamos denominando de relações sociais horizontais
no processo de produção do saber apropriado. Essas relações são dialógicas, ocorrem em
um duplo movimento que singulariza a troca. Tomé, diz que “são várias pessoas,
juntando vários conhecimentos, juntando várias experiências praticadas por pessoas e
chegamos onde nós estamos hoje – em um projeto bastante avançado nesse sistema de
produção”. Os pioneiros abriram caminho como costuma-se dizer: não havia
“tecnologia”, “uma fórmula pronta” para o sistema de produção orgânica, a “pesquisa de
universidade ainda é pobre nesta dimensão orgânica”, ponderam eles. Muitos consideram
que aprenderam sozinhos, observando e experimentando, estabelecendo uma relação
estreita de acompanhamento às ações e reações ocorridas entre a ação humana, a
dinâmica da terra, da planta e o fruto colhido. Aprender “sozinho” não estanca o
processo de ação compartilhada, associada, cooperada, vivida nos espaços de
organização na associação e da cooperativa – os grupos de bairro, as reuniões de
primeiro domingo do mês, e nas assembléias.
No processo de produzir o saber apropriado usam o “método” da observação
permanente. Nela, vão de reconhecendo dos indicadores apresentados pela terra e pela planta.
Observam “pesquisam”, como dizem ;“palmo a palmo” de terra, planta por planta, situação
por situação onde “cada caso é um caso”. Dos dados colhidos nesta observação decidem o
que fazer, como fazer e já sabem porque fazer. Aprenderam, o porquê fazer, fazendo a relação
entre o observado e os resultados, fazendo experimentações. Tais experimentações podem
estar sendo feitas em sua lavoura, ou na lavoura do vizinho; a troca de experiências possibilita
o ensaio, o risco trocado. Cada agricultor, porém, não escapa do risco particular, porque como
eles mesmos afirmam. “Cada caso é um caso”. Essa dinâmica ganhou corpo e se transformou
em um processo de produção do saber que vem sendo apropriado por cada agricultor e pelo
67
conjunto deles.
A terra e a planta: temas geradores do saber
Eles afirmam: que aprendem com a terra e com a planta. A planta principal focalizada
é o cafeeiro. O café é fruto enquanto vinculado ao “consumo só para o gasto”, cultivado na
temporalidade da agricultura camponesa. Passa a ser fruto e produto na temporalidade da
agricultura sem agrotóxico é, quando o café passa a ser mercadoria e passa a “comprar tudo’.
Consideramos que práticas da agricultura camponesa permanecem mas, nelas são agregadas,
seletivamente, práticas da agricultura moderna (ou convencional?), e práticas da agricultura
orgânica.
A terra, ainda, é o “reino” que produz os frutos da “libertação”, nela a
comunidade se faz. E comunidade significa “laço de luta, laço de solidariedade, laço
político” que o “estrangeiro” não consegue compreender ou traduzir, mas quando
compreende valoriza e assim a noção de comunidade se transforma em valor agregado
ao produto “re-significando” as relações que semearam, cultivaram, colheram e
comercializaram o produto café vendido no mercado (dito) justo ou fair trade. Esse
mercado vem conferir, via inspeção e certificação, se os vínculos e práticas das relações
de produção são familiares, solidárias e de cooperação, de inclusão de mulheres, justiça
e preservação ambiental.
A terra produz os frutos do trabalho, do suor. Mas a terra também é produzida,
no sentido de melhoramento da fertilidade; eles dizem: “nos estamos melhorando nossa
terra” A terra orgânica é viva, é terra familiar, local e planetária; preservada. Sendo
viva, a terra nutre a planta, significando equilíbrio ou desequilíbrio. É diferente da terra
na agricultura convencional que “usa a terra apenas como substrato para manter a
planta em pé”, constitui, portanto, uma ruptura que produz a diferença da agricultura
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sem agrotóxico e orgânica da agricultura convencional que corrige a terra e usa
“veneno” para controlar pragas, doenças e plantas consideradas indesejáveis e
daninhas. Da terra depende a saúde da planta, do fruto, o alimento do produtor e
consumidor. Dela depende a vida.
“Uma coisa que não pode sair da mão do pequeno é o pedacinho de terra”, diz Seu
Raimundo. Terra também é “coisa”, matéria concreta, bem e mercadoria que é
negociada de preferência entre parentes e, em último caso, com “gente de fora”. Como
bem ou patrimônio, está na “mão do pequeno” produtor e, por ser pequena, é um
“pedacinho” transforma o proprietário em “pequeno” também. Esse “pequeno” se torna
“grande” no processo de conquista da capacidade produtiva, na força da organização e
no projeto de preservação da terra-planeta. Mas, em Poço Fundo “não tem latifúndio”,
“não tem fazendeiro”. Os maiores proprietários têm até 100 hectares de terra, os
“pequenos” têm entre 2 e 40 hectares de terra.
Terra expressa uma teia de relações sociais. As relações de parceria no uso da terra são
baseadas nas relações de parentesco ou de propriedade da terra. Os pais criam os mais
variados arranjos para garantir a permanência dos filhos na terra. As famílias têm parcelas de
terra próximas ou distantes da residência, em parceria com os filhos e parentes ou com outros
proprietários de terra. Há acordos verbais, acordos registrados na associação, parceria de 50%,
“a meia”, 30%, 40%, “o patrão (dono da terra) entra só com a terra, o parceiro forma o
cafezal e divide a colheita” segundo o acordado na parceria. O “pequeno” produtor é
proprietário, é “patrão temporário” quando contrata pessoal para a colheita e pode fazer
parcerias no uso de sua terra. A parceria é um contrato que ocorre dentro ou fora da família,
pode ser um contrato necessário quando a terra do pai ainda não foi dividida entre os filhos
quando o agricultor pode expandir sua área plantada, mas não pode comprar outra área de
terra ou ainda quando ele não é proprietário de terra há nisso, um aprendizado.
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Os filhos, futuros herdeiros, podem viver, construir sua casa na terra do pai quando
ainda não se deu a partilha do patrimônio, nesse caso ocorre doação de terra de pai para filho
ou filha. O pai pode ainda “separar um cafezinho”, separar uma pequena área de lavoura de
café, para o filho pequeno, adolescente ou jovem. Os filhos maiores cedo começam a assumir
serviço na lavoura do pai ou naquela designada como “sua” lavoura, para aprender a cuidar,
“tomar gosto” pela lavoura e como força de trabalho familiar, ou força que “ajuda” diria,
Woortmann e Woortmann (1997). Dependendo da idade e do tempo disponível porque a
escola é prioridade em relação ao trabalho na lavoura. O pai pode, ainda, comprar terra para o
filho “que se casou, logo precisam de mais terra para sustentar duas famílias”. O pai assume
a responsabilidade de “sustentar” a ampliação da família; retorna o valor da família extensa,
típica da agricultura camponesa.
Conhecer a terra pelo olhar, pelo toque, pela observação das plantas que nascem
espontaneamente, pelos “bichos” que se encontram dentro e fora da terra, pela florada do café
e pela qualidade do produto – estas são outras lições que podemos descrever. Altitude e
fertilidade adequadas foram herança do planeta terra no lugar onde se encontram as lavouras
desses agricultores; a fertilidade da terra oscila na balança do cuidado ou “des-cuidado” do
agricultor, o não uso agrotóxico e uso de adubo químico. A altitude poderá vir a ser prejuízo
se o aquecimento global alterar o clima local. Prevenidos, já discutem esse assunto e fazem os
primeiros ensaios de sombreamento do café. Já experimentaram leguminosas, como árvores
“boas para sombreamento”; mas esta é uma introdução de conhecimento de “fora” para
dentro; uma prática de experimentação. A leguminosa serve também para adubação verde. Do
trabalho de observação verificam que as plantas do lugar como jacarandá, gema de ovo, ipê e
pereira dão sombra e protegem a “planta” – o cafeeiro.
O saber de senso comum não dispensa, como fiel da balança, a análise técnica do solo
feita em laboratório. Eles fizeram cursos e aprenderam a fazer interpretação destas análises de
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análise de solo. Ensinam e orientam os “companheiros”. Nitrogênio, fósforo e potássio – NPK
– são apenas três elementos químicos importantes para a nutrição. Existem, dizem eles, de 17
a 42 nutrientes importantes para a planta. Adubo 20-05-20 é o “pacote” que alimenta a planta
com apenas três nutrientes. Mas, além de necessidades nutricionais diferentes, as
características da terra apresentam grandes variações; Pedro diz: é preciso “pesquisar o
tempo inteiro [...] tentando descobrir a diferença de uma planta para outra, de uma terra
para outra”, a terra do sol nascente é diferente da terra do poente, terra do lombo do morro é
diferente da grotinha, a primeira é fraca, a outra é fértil. Pedro continua ensinando: “isto vé
diferente do trabalho com agricultura convencional [...] “já é um pacote: os mesmos tratos
que usa em uma lavoura daqui é receitado pra outras regiões do país” e, crítico conclui:
“isso é enganação, porque a terra, a distancia de alguns metros, ela muda completamente”.
Não é preciso ser agrônomo, ou técnico, mas é preciso “ter bom senso” e muita capacidade de
observação para definir o quê fazer. A adoção da análise de solo é uma apropriação do
conhecimento científico, os resultados são usados em combinação com outros indicadores da
fertilidade do solo resultantes do saber de senso comum. Solo argiloso, retenção de água,
quantidade de matéria orgânica, terra compactada, terra não compactada, tipo de vegetação
“que vai saindo’, cor da terra – são sinais que permitem uma outra análise e interpretação.
Esta é uma “sabedoria da natureza”. Observando, o agricultor aprende. Existem plantas que
indicam “terra boa” e plantas que melhoram a terra. No lugar de terra fraca, Pedro ensina
semear mamona, deixar o pé ficar criado, depois cortar, picar e jogar no meio da “rua” [entre
as fileiras do café] serve para “arrebentar o solo”, “guachuma”, sai quando a terra está
compactada, “terra dura”,lugar de pisoteio de gado. Ela tem raiz dura, concorre com o café
destruindo a lavoura.
Lucas ensina a “ver” e analisar o solo observando-se o aparecimento de plantas como
caruru, picão, orapronobre, fazendeiro, cerralha, itapueraba aparecem, “entram na lavoura”, é
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sinal de terra boa, fértil; se aparecem quachuma e quabeira, ao contrário, é sinal de terra com
deficiência nutricional. Minhoca, todo mundo sabe-só dá em terra “saudável”- adubo químico
e agrotóxico combatem a minhoca. O estado de conservação do solo também é reconhecido –
basta “olhar”. Desse olhar, do acompanhamento sistemático e do trato no tempo adequado
pode-se, por exemplo, evitar erosão da terra. Os tempos da chuva ou da seca são tempos que
exigem práticas distintas de cultivo e cuidado com a terra. A capina não pode deixar a “terra
muito limpa”, ou seja: há também um termo adequado para a capina.
Animais como tatu e outros bichos, que retornam, porque antes haviam desaparecido,
são bem-vindos, porque anunciam a vitalidade e a diversidade contida na terra “feita” pelo
saber que faz dela reserva de valor econômico, social, cultural e ecológico.
A terra produzida é aquela em que os agricultores estão estabilizando a fertilidade da
terra. É mescla de terra camponesa cultivada desde os tempos dos avós sem “veneno” e terra
convertida; é a terra viva, saudável. Fruto do trabalho do saber e do fazer dos agricultores e
agriculturas associados. Lugar de plantar e arrancar saberes que implicam conservação e
mudança de práticas costumeiras e práticas introduzidas experimentadas e repetidas, negadas
e criadas, recriadas. Eles asseguram: “nós fazemos nossa terra”. Terra feita no cotidiano e ao
longo dos anos. Esse saber é ato articulado, aprendido nas relações familiares, nas relações de
vizinhança, dos agricultores entre si, suas organizações e relações com o mundo. Esta terra é
terra que ensina, é dádiva. A estreita relação entre a terra, a planta e o fruto retribuem a ação
dos homens e mulheres que na compreensão desta dádiva se vinculam a ela – a terra - na
prática da reciprocidade.
Observação e experimentação fazem dos agricultores aprendizes com esta terra. Nela
nascem e crescem as plantas que também ensinam. Esta terra nessas mãos deixa de ser
substrato físico e, passa a ser o lugar do equilíbrio biológico possível, resgatado por mãos
humanas.
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A terra produzida é pesquisada, por eles, palmo a palmo, planta por planta, ano a ano;
dando-se a conhecer por aqueles que escolheram compartilhar a vida com ela. É natureza,
“coisa de Deus”, é “sagrada”, “cuidada” vai ficar para os filhos, os netos, é presente e futuro
– conservada não vai ser esgotada. Seu valor é econômico, cultural, social e ecológico. Mas
de que adianta dinheiro, riquezas? Muitos se perguntam. Seu fruto tem valor maior, é
universal, não é só local é internacional, assegura qualidade de vida para quem produz e para
quem consome. É lavoura acompanhada pela presença constante do “agri-cultor” – aquele
que cultiva a terra – e lê todos os seus sinais: desde a beleza das plantas às manifestações de
desnutrição e doença.
“A planta mesmo ensina a gente”, afirma Sr. Filipe. A planta é outro tema gerador do
saber apropriado. Segundo eles, a planta, nesse caso o café, até se parece com os seres
humanos, mal nutrida, com fome, adoece. A convivência com plantas espontâneas, que
nascem à volta da planta principal, indica as condições de fertilidade ou deficiências de
fertilidade da terra. Essas são plantas espontâneas, e não são daninhas; são indicadoras: dão
sinais sobre a situação da terra, ensinam; são interpretadas. Não são eliminadas com
defensivos, são manejadas; podem servir de cobertura verde para o solo em determinados
períodos do ano, ou são cortadas com enxadas ou roçadeira e servem de cobertura morta,
cobrindo a terra protegendo-a do impacto do sol ou chuva, contribuindo para o aumento da
vida no solo ou ainda, podem ser incorporadas ao solo enriquecendo-o. São amigas, não
inimigas como são tratadas na agricultura convencional na qual são eliminadas com “veneno”.
Os pássaros que retornam, espalham sementes e povoam a terra multiplicando as
plantas, naturais do lugar e as plantas que vieram de lugares outros para se transformarem em
adubação verde, sombreamento, corretivo do solo ou cuidados com a fertilidade para que a
terra se mantenha equilibrada ou mesmo para a recuperação de terras desgastadas.
Existe uma relação estreita entre a planta e a terra. É o que podemos ver na fala de
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Filipe, quando ele faz vinculações entre aspectos da terra e da planta que “ensinam”. A
“medida” da qualidade da terra é conhecida pelos agricultores, também, por esta observação.
Os indicadores observados vão do tamanho da planta que é correspondido pelo tamanho do
“sistema radicular”, explicam Tomé, Thiago e Dona Emília, ou seja: “da mesma forma que
ela cresce para baixo ela cresce para cima”. Além disto, acompanham “o comportamento
ímpar” da reação da planta ao ambiente. Plantas “deitadas” dão sinal de terra compactada,
onde o sistema radicular não consegue descer.
A presença de pulgão manifesta falta ou excesso de algum nutriente. A diversificação
de plantas favorece o desenvolvimento equilibrado da planta, ela ensina de maneira “sábia” o
que está faltando ou sobrando, basta o ser humano, também de maneira “sábia”, agir segundo
os sinais que a planta apresenta. O conceito de plantas daninhas – vindo do conhecimento
científico - foi totalmente alterado, elas são plantas indicadoras da situação da terra, elas
chegam a “dizer” o “que está faltando ou sobrando e onde nós devemos agir”, afirmam eles.
Pragas e doenças também ganham novo sentido quando tratados com tanta
proximidade. Ferrugem e bicho-mineiro são típicos do cafeeiro e aqui não são combatidas de
forma direta com aplicação de qualquer defensivo, são “tratadas” de forma indireta, através
da planta equilibrada. O pé de café “saudável” convive com o bicho mineiro e a ferrugem,
esses sim, ainda vistos como “praga” adquirida “de fora”, do café convencional, podem
causar dano econômico, mas a forma de tratá-lo muda - do “combate” para a convivência. O
trabalho nesse caso, muda de foco, os agricultores deixam de focalizar as “pragas e doenças”
e focalizam a nutrição e o equilíbrio da planta, decorrente do equilíbrio da terra. Nos casos
graves o café pode ser “banhado”, eles fazem os mais variados “banhos” naturais ou
industrializados, orgânicos. Lucas fala do cuidado preventivo com relação à ferrugem, usando
hidróxido de cobre, em “banho de contato”. Outras doenças são conhecidas como ácaro,
cigarrinha e, “phoma”. Mas não se faz controle das doenças pelo combate, elas são vistas
74
como sinais, uma forma de “avaliação” indicativa do quê deve ser feito.
Se para esse agricultor, existem, no mínimo, 17 nutrientes diferentes necessários ao
equilíbrio da relação existente entre a terra e planta; a falta de um deles, a falta combinada de
um ou mais, ou por outro lado o excesso implica em sintomas diferentes. Cada nutriente
“mostra a planta de uma forma”, por exemplo: a “carência de zinco provoca folhas
compridas retorcidas com nódulos muito perto o que atrapalha radicalmente a produção.
Carência de fósforo, “aparece a rama apical muito dura e armada”, fósforo é nutriente do
sistema radicular, se esse não está se desenvolvendo bem , a “planta não puxa” nutrientes,
fica “emperreada”. Se a terra está com “ph baixo pode provocar requeima da planta, é o
excesso de alumínio que queima as boquinhas das raízes” e, diz ele: “assim por diante”,
como quem afirma, de novo que “cada caso é um caso”.
A cor da planta também é interpretada: café amarelado tem deficiência de boro, de
zinco, explica Thiago. Além disso, há sinais no corpo da planta: a “guia fica mais curta” isto
implicará em produção desigual. Mas além de nutrientes, a planta precisa também de “trato”,
uma planta amarela pode estar faltando adubo, mas também pode estar faltando capina.
“Mudou a folha pode saber que está com problema. A gente aprende com a planta”, como já
afirmou Filipe. A cor e a beleza da planta não só encantam, mas são sinais “levados em
consideração”: planta está sadia e equilibrada. Uma planta dependente de nutrientes químicos
pode significar, também, um agricultor dependente, considerando-se a situação daqueles que
usam adubo e insumo das indústrias agro-químicas. “Independência” em relação a estas
multinacionais é uma bandeira de luta desses agricultores.
Além da cor, a situação da planta é analisada, também pelo tamanho da folha, pelo
comportamento, podemos dizer; “se retraída”, “folhas fechadas” – “sintomas de fome, de
necessidade de nutrientes”. Quando se vê na folha “vigor, folha aberta, escura, cor bonita”
se pode afirmar a “saúde” da planta. Matheus, Paulovi e Dona Emília relacionam a “saúde” da
75
planta ao processo de saúde do ser humano. A planta “é como a gente”, saudável se bem
nutrida ou doente, “fraca”, mal nutrida; alimento em excesso causa congestão e outras
complicações; é preciso saber a medida adequada.
Eles fazem um estudo minucioso, um acompanhamento detalhado e permanente.
Nesses “experimentos”, cada variedade de café é avaliada, isso define também o tipo de
manejo – às vezes é preciso roçar, outras, capinar, outras ainda, é preciso “entrar com o
subsolador”. Tomé,continua dizendo: “necessariamente, você tem que estar movimentando
esse tipo de solo, então é um estudo mesmo que é feito”. Trata-se de um processo de
apropriação do conhecimento científico que é desenvolvido pela observação permanente e
pela experimentação intencionada, estudada.
O SABER APROPRIADO: lições que mudaram a situação de pobreza
Os agricultores sujeitos da produção do saber apropriado viveram e vivem um
processo de permanente aprendizado que gesta e torna vivo esse saber. Trata-se de um
processo aproximação e ruptura, repetição com observação e experimentação, criação,
recriação; adotação total ou parcial, ruptura ou negação total ou parcial do saber de senso
comum e do conhecimento científico.
Como vimos, são temas geradores das relações que produzem o saber apropriado: os
sujeitos e suas relações sociais, a terra, a planta, o fruto e o produto..
As mudanças produzidas na vida desses agricultores revelam uma saída da condição de
pobreza, isolamento no local, desvalorização do produto de seu trabalho, como vimos nas
descrições e análises do Diagnostico (1994) para o acesso à condição de vida digna, expansão
de sua sociabilidade reforçando laços e vínculos locais que garantem a solidariedade e
reciprocidade interna à família, ampliada em suas organizações de grupos de bairro, grupos de
representação política, comercial e troca de experiências que se articulam nos níveis local,
nacional e internacional.
Na relação com a natureza, essa é compreendida como meio ambiente em que os
mesmos se incluem ora como atores, ora como observadores contempladores, observadores
participantes, ora como experimentadores, “pesquisadores” – sujeitos ativos. Esta relação se
faz, não pela subordinação e domínio da natureza pelos seres humanos, mas pela respeitosa
relação em que os últimos podem aprender com a natureza de forma interativa.
As situações-limite: pobreza, desvalorização dos produtos da agricultora familiar,
adoção da tecnologia de produção do café orgânico e sem agrotóxico, a fragilidade da
76
associação – no início “ “choveu e ventou”- quase fecharam as portas, a produção orgânica
sem mercado diferenciado, a inserção no mercado internacional, a certificação e a exportação
do produto são experiências de superação do limite. Foram ou ainda são ponto de inflexão,
ponto de mudança.
No Brasil e no mundo, as mudanças ocorridas em Poço Fundo podem ser vistas como
mudanças locais, parciais, conquistas localizadas e limitadas, mas são mudanças reais, lutas
demarcadas dentro de limites reais e possíveis, movidas pelo propósito de conquistas maiores,
planetárias, tendo em vistas as novas gerações, a humanidade. São um exercício possível,
visível, reconhecido nas lavouras do saber: lavoura da vidas. Onde há colheita dos frutos do
trabalho da família, da comunidade, das organizações, do café exportado. Trata-se de um
processo vivido no presente e de um devir intencional e um modo de se colocar a caminho.
Ser por estar sendo, conforme Freire.
Transparência e simplicidade, intenção e gesto fundados, no saber de senso comum
traduzido no saber de experiência feito, podem ser atribuídos a uma dimensão do saber
apropriado, mas esse apresenta grande densidade e multiplicidade de formas práticas, que
descrevemos de maneira parcelar nesse trabalho.
Procuram a teoria no interior da prática (do saber de camponês) e a prática de teoria
(do conhecimento científico) articulando diferentes dimensões do ato de conhecer que costura
momentos distintos ou complementares entre adoção e adaptação; ruptura e criação (ou recriação). Em cada uma dessas dinâmicas, ou em todas elas, vai se dando a validação dos
resultados do saber experimentado para que se realize a apropriação desse saber. Tal
apropriação não se estanca finalizada, é inacabada. Se enraíza nos princípios da ética da vida
saudável e do planeta preservado - para as gerações do presente e do futuro. O futuro é devir,
mas não é frouxa promessa daqueles que esperam o que virá; é fruto plantado no presente
para ser colhido depois da floração, no tempo adequado da maturação; é fruto cultivado hoje
com muito cuidado e muito trabalho. Dão prova e reafirmam em falas, práticas e relações
entre si, com o meio ambiente e com os “outros” – “de dentro” e “de fora” – parceiros ou
não; que não é mais possível acreditar que os seres humanos ocupam um lugar tão
privilegiado no planeta que possam fazer dele o que quiserem; ensinam uma epistemologia
fundada no entendimento dos seres humanos como parte do meio ambiente e em complexa
relação de interdependência. Nesta, é maior a dependência do humano em relação à natureza,
tal dependência é vista como valor e não como ameaça. Assim, o reino vegetal, animal e
mineral ensinam ao “reino” humano a coabitação no planeta em relação de interdependência.
77
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Notas:
i
Do livro Pedagogia dos Sonhos Possíveis (2001, p. 232) organizado por Ana Maria Araújo
Freire, composto de entrevistas concedidas por Paulo Freire, em diferentes momentos de sua
vida (sem grifos no original).
ii
Café orgânico está sendo discutido dentro do que se compreende por produção orgânica
definida pela Instrução Normativa nº 7 do Ministério da Agricultura e do Abastecimento,
Brasil/1999, ou seja: considera-se como produção orgânica agropecuária e industrial aquela
em que se adota tecnologias que buscam otimizar o uso de recursos naturais, sociais,
econômicos e culturais. Objetiva a auto-sustentabilidade, a maximização de benefícios
sociais, a minimização do uso de energias não renováveis, a eliminação do uso do agrotóxico
e outros insumos artificiais tóxicos, organismos geneticamente modificados, radiações
ionizantes, dentre outros. Prioriza a preservação da saúde humana e ambiental. Estes entre
outros, critérios normativos mais importantes, são exigidos e controlados de acordo com esta
normativa em todos os processos de produção, embalagem, armazenamento, transporte e
comercialização.
iii
Conceito usado por Freire (1983; 1992; 2002), explicitado mais adiante.
iv
Ver explicitação na interpretação de Vasconcelos e Brito (2006, p.179).
v
A entrevista com Márcia Martins, agrônoma, autora de uma tese de doutorado, realizada em
Poço Fundo, citada nesta pesquisa é aqui considerada como dado “testemunho” deste e de
outros achados do que estamos chamando de saber apropriado por estes agricultores.
vi
Paulo, 43 anos de idade. Bairro Barreiro. Casado. Tem dois filhos ( 15 e 17 anos de idade).
Produz café orgânico e sat.( “aproximadamente”30.000 pés de café).Terra própria: 50 ha.
82
TRABALHO INFORMAL E HETEROGENEIDADE NA RMBH E MUNICÍPIO DE
MONTES CLAROS: APROFUNDAMENTO OU ALTERNATIVA EM RELAÇÃO À
POBREZA?9
FERREIRA, Maria da Luz A.10
O texto tem como objetivos analisar quais são as motivações que leva os trabalhadores a
ingressarem e permanecerem exercendo atividades informais. A estratégia metodológica
utilizadas foi a análise dos dados da pesquisa “Desigualdades Sociais, Qualidade de Vida e
Participação Política, pesquisa por amostragem probabilística da Região Metropolitana de
Belo Horizonte e do Município de Montes Claros, em comparação internacional, e dos dados
9
Este texto ampara no IV capitulo da minha tese “Trabalho Informal e Cidadania: heterogeneidade social e
relações de gênero” defendida no doutorado em Ciências Humanas (Sociologia e Política) da UFMG em 2007.
10
Professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UNIMONTES e Faculdades Santo
Agostinho.
83
de seis grupos focais realizados em Montes Claros, sobre a temática do trabalho informal.
Foram analisadas variáveis como: sexo, escolaridade, estado civil e renda. Os resultados
apontam que o setor informal comporta uma heterogeneidade, já que é composto tanto por
trabalhadores que estão nele inseridos, tanto por sobrevivência, quanto por alternativa de vida,
podendo ao mesmo tempo contribuir para o aprofundamento da pobreza como também ser
uma alternativa de trabalho em relação a mesma.
1. Introdução
Tem sido recorrente nas análises dentro da Sociologia do Trabalho o aumento do
setor informal (Rivero, 2000; Cacciamali, 1999; Vasconcellos, 1994; Pamplona, 2001). Além
das discussões dentro da literatura, pode-se observar no cotidiano das cidades um grande
número de pessoas exercendo atividades informais. Este texto tem como objetivos analisar
quais foram as motivações que leva um grupo de pessoas a ingressarem em atividades
informais. Objetiva ainda investigar se o trabalho informal tem contribuído para o
aprofundamento da pobreza, ou se tem se – devido a grande heterogeneidade que marca o
setor – tornado uma alternativa para amenizar a mesma.
A metodologia utilizada compõe-se da combinação da metodologia quantitativa e da
metodologia qualitativa. Assim foram utilizados dados dos surveys realizados na Região
Metropolitana de Belo Horizonte e do Município de Montes Claros em 2005, e de grupos
focais realizados em Montes Claros, em 2007 sobre a temática supracitada.
Na realização da pesquisa quantitativa11 foi utilizada para a seleção dos entrevistados a
amostragem probabilística por conglomerado, cuja amostra foi composta de 1520 indivíduos,
sendo 1122 RMBH e 398 no Município de Montes Claros.
11
No tratamento dos dados quantitativos obtivemos a colaboração dos professores José Jorge Santana do
departamento de ciências exatas e Sheyla Borges do departamento de Ciências Sociais os quais agradecemos.
84
Na parte qualitativa, foram utilizados depoimentos de 06 grupos focais 12 realizados com
homens e mulheres com idades até 30 anos e acima de 50 anos, cujo objetivo foi captar como
estes colaboradores avaliam as suas atividades no setor informal.
2. O Setor Informal: Enfoques na Literatura Brasileira
As primeiras tentativas de conceituação do setor informal iniciaram-se no final dos
anos 60 e inicio dos anos 7013. A partir desse momento, foi inaugurada uma terminologia que
situava a informalidade como parte da estrutura econômica, ou seja, pertencente à estrutura
produtiva onde se localizariam as atividades de pequeno porte, contrária às atividades
formais, que são compostas de empresas de grande porte (Pamplona, 2001).
Destacam-se na literatura brasileira duas vertentes analíticas: por um lado, os autores
que defendem a perspectiva econômica que partem do pressuposto de que o aumento do setor
informal é um fenômeno estrutural do modo de produção capitalista. Associam-no à
concepção marxista e identificam os integrantes do setor informal como aqueles pertencentes
ao exército industrial de reserva, que, apesar de estarem em idade e condição ativa,
encontram-se disponíveis no mercado para serem explorados pelo capital. Neste contexto, os
trabalhadores informais, perante a dificuldade de conseguirem emprego no setor formal,
seriam obrigados - para sobreviver - a sujeitar-se a qualquer tipo de atividade. (Cacciamalli,
1999; Fuentes, 1998; Malaguti, 2000). Por outro lado, a abordagem de cunho social, que
considera as formas de organização informal da produção uma escolha consciente para a
maior parte dos componentes deste tipo de atividade. Dentre os autores que privilegiam esta
vertente, destacam-se Vasconcellos (1994), Vidal (1996), Martins & Dombrowski (1996),
Siqueira (1997), Reinecke (1999), Nunes (1999) e Rivero (2000).
12
Para Morgan (1997), o grupo focal é uma derivação da dinâmica de grupo, ou seja, aproveitamento
metodológico do grupo, cujo objetivo de realização é trazer a tona os processos que os grupos vivem a partir de
sua própria dinâmica do grupo, de modo a revelar toda a problemática da interação social.Quanto à utilização o
autor esclarece que o grupo focal tem sido utilizado: 1)Como principal fonte de dados; 2) Como fonte
suplementar de dados, quando combinado com survey. Pode também ser utilizado como pré-teste de um
questionário; 3)Como uma combinação de métodos sem hierarquia. Em relação à composição, os grupos focais
podem ser: 1)Homogêneos: as pessoas são semelhantes e têm uma relação semelhante com o tópico que está
sendo discutido. Grupos compostos do mesmo modo. 2)Segmentados: sexo, raça idade etc. 3) Mistos: é preciso
ter cuidado porque dependendo do assunto, as pessoas não se misturam, ex: classe.
13
Neste período, técnicos da Organização Internacional do Trabalho realizaram duas pesquisas sobre a
temática da informalidade: uma na África, sobre o Quênia, e outra na República Dominicana. Quem
primeiro utilizou o conceito foi Keith Hart, em 1971, a partir dos resultados da pesquisa realizada no
Quênia. Além destes, destacam-se também estudos realizados pelo Programa Regional Del Emprego para
a América Latina Y el Caribe – PREALC.
85
Geralmente esses autores consideram que os trabalhadores, ao optarem pela
informalidade, o fazem de forma racional, calculando algumas vantagens como possibilidade
de auferir ganhos maiores do que recebiam no mercado formal, flexibilidade da jornada,
acesso contínuo a parcela dos rendimentos, inexistência de chefia e possibilidade de ascensão
social. O ingresso no setor informal costuma acontecer, na maioria das vezes, depois de saída
voluntária do mercado formal.
3. Trabalho Informal e Heterogeneidade na RMBH e Município de Montes Mlaros:
aprofundamento ou alternativa em relação à pobreza?
3.1 Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais
Na análise por sexo, o Gráfico 1 mostra que, do total de trabalhadores informais
do Município de Montes Claros, 46,2% são mulheres e 53,8% são homens. Na RMBH,
45,8% são do sexo feminino e 54,2% são do sexo masculino. Apesar da semelhança dos
percentuais, quando comparados ao conjunto da população, observam-se diferenças, já
que, em Belo Horizonte, 53% da população é constituída de mulheres e 47% de homens.
Em Montes Claros, 52% são do sexo feminino e 48% são do sexo masculino14.
56
54
52
50
48
46
44
42
40
54,2
45,8
53,8
46,2
M ulher
RM BH
Hom e m
M onte s Claros
GRÁFICO 1 – Sexo dos trabalhadores informais (%)
Fonte: RMBHH e Município de Montes Claros – 2005
Com relação à faixa etária, observa-se pela Tabela 1 que a maior parcela dos
trabalhadores informais concentra-se na faixa entre 31 e 49 anos, tanto na RMBH quanto no
Município de Montes Claros, encontrando-se percentuais de 47,7% e 43,5%, respectivamente.
14
Dados disponíveis em Sistemas de Indicadores Urbanos, 2000. www.sistemadeindicadoresurbano.br. Data do
acesso 10 de agosto/2007.
86
Já a faixa de 18 a 30 anos representa 30% e 37,7% dos pesquisados nas referidas cidades,
respectivamente. Na faixa de idade de 50 anos ou mais, encontramos 22,3% dos pesquisados
na RMBH e 18,8% no Município de Montes Claros. Os dados revelam, portanto, que não há
grande discrepância na composição etária dos trabalhadores informais nas duas cidades.
Embora exista uma variação nos percentuais, a variável apresenta o mesmo comportamento
no que diz respeito à distribuição dos trabalhadores em cada uma das categorias estabelecidas
por faixa de idade15.
Tabela 1 - Idade dos trabalhadores informais
Idade
RMBH
Freq
%
18 a 30 anos
115
30
31 a 49 anos
183
47,7
50 anos ou mais
86
22,3
Total
384
100
Fonte: RMBH e Município de Montes Claros – 2005
Montes Claros
Freq
%
55
37,7
63
43,5
27
18,8
145
100
O levantamento do perfil dos trabalhadores informais levou em consideração o
fato de terem ou não filhos. A grande maioria dos entrevistados, tanto da Região
Metropolitana de Belo Horizonte quanto do Município de Montes Claros, tem filhos. As
porcentagens são de 70,7% e 73,5%, respectivamente, que têm filhos, e 29,3% e 26,5%
que não têm filhos, como demonstrado na Tabela 2.
Tabela 2 – Trabalhadores informais quanto à caracterização familiar (com ou sem
filhos).
Possui
RMBH
Montes Claros
Freq
%
Freq
%
filhos
Sim
271
70,7
107
73,5
Não
112
29,3
38
26,5
Total
384
100
145
100
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005
Quanto ao número de filhos, os dados do Gráfico 2 mostram que a maior
porcentagem se verifica nos que têm de três a cinco (25,5% dos trabalhadores da RMBH
e 47% dos de Montes Claros). Dos que declararam ter mais de cinco filhos, a
porcentagem é relativamente baixa (3,5% na RMBH e 7% em Montes Claros).
15
A pesquisa se endereçou à população de 18 anos e mais.
87
47
50
38
40
30
29.3
25
18
20
27
23.7
25.5
10
3.5
7
0
Ne nhum
Dois
RM BH
M ais de
cinco
M ontes Claros
GRÁFICO 2 –
Quantidade de
filhos dos
trabalhadores
informais (%)
Fonte: Pesquisa
da RMBH e
Município de
Montes Claros 2005
Direcionando nossa análise para o estado civil dos trabalhadores informais,
verificamos, pelos dados da Tabela 3, que a maioria, tanto na Região Metropolitana de
Belo Horizonte, quanto em Montes Claros (MOC), é de trabalhadores casados (45,3% e
48,7%, respectivamente).
Na RMBH, 29% declararam ser solteiros e, em Montes
Claros, 28,4%. As pessoas que vivem em união estável são 14,6% na RMBH e 13,5% em
Montes Claros. A tabela mostra ainda que 7% (RMBH) e 6% (MOC) são divorciados e
há uma pequena parcela de viúvos (4,2% e 3,5%, respectivamente).
Tabela 3 – Estado civil dos trabalhadores informais
RMBH
Montes Claros
Freq
%
Freq
%
Solteiro (a)
111
29
41
28,4
Casado (a)
174
45,3
71
48,7
União estável
56
14,6
20
13,5
Divorciado (a)
27
7
9
6
Viúvo (a)
16
4,2
5
3,5
Total
384
100
145
100
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005
Estado Civil
Embora a maternidade ou paternidade não esteja necessariamente relacionada
ao casamento e/ou ao fato de se morar junto (em união estável), a família nuclear,
composta por pai, mãe e filhos, é responsável por 70,7% das ocorrências de filhos na
RMBH e 73,5% em MOC.
88
56,7
60
50
20
,9
16,4
16,8
5,7
4,3
2,
1
10
16
20
,4
30
25
,7
34
,9
40
0
M enos 1 a 3 SM M ais de M ais de M ais de
de 1 SM
3 a 5 SM 5 a 10
10 SM
SM
RM BH
M onte s Claros
GRÁFICO 3 – Renda mensal dos trabalhadores informais em salários mínimos (%)
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005
Considerando a variável renda mensal dos trabalhadores informais, o Gráfico 3
mostra que a maior parcela desses trabalhadores se encontra nas faixas entre um e três
salários mínimos (34,9% dos entrevistados da RMBH e 56,7% dos de Montes Claros). O
gráfico aponta ainda que 20,4% e 16,4%, respectivamente na RMBH e em MOC,
recebem o equivalente a mais de três e menos de cinco salários mínimos, e 16,9% e
16,8% recebem mais de cinco até 10 salários mínimos. Considera-se, então, que não
existe uma grande diferença ao compararmos os trabalhadores da RMBH e de MOC,
nas faixas entre três e cinco e mais de cinco até 10 salários mínimos. Entretanto, quando
comparamos o percentual de trabalhadores que recebem acima do valor de 10 salários
mínimos, percebe-se que este segmento está mais presente na RMBH (25,7% dos
trabalhadores informais) do que em Montes Claros, onde apenas 5,7% estão nessa faixa
de rendimentos. Vale ressaltar que, no universo investigado, há também os
trabalhadores com renda mensal muito baixa, equivalente a menos de um salário
mínimo, mas estes são minoria, representando 2,1% e 4,3% na RMBH e em Montes
Claros, respectivamente. Isso corrobora a discussão feita na seção anterior, de que o
setor informal é heterogêneo, ou seja, comporta tanto pessoas movidas pela estratégia de
sobrevivência, quanto aquelas movidas pela alternativa de vida.
A consideração da escolaridade dos entrevistados torna-se necessária para uma
melhor compreensão da realidade de suas vidas. À medida que se tem uma escolaridade
89
maior, há teoricamente mais chances na vida, em geral, e no mercado de trabalho em
particular. O Gráfico 4 mostra que, na RMBH, os trabalhadores informais têm uma
escolaridade variada, com maior concentração no ensino fundamental incompleto
(35,6%). Os que completaram o ensino fundamental perfazem o percentual de 8,8%, e a
faixa de escolaridade de ensino médio compreende 23,2% que completaram esse nível de
ensino e 5,3% que não o completaram (largaram os estudos ou ainda estão cursando o
nível médio). O índice de pessoas com ensino superior é de 25,5%, e os trabalhadores
sem escolaridade são 1,5% do total dos entrevistados.
35,6
40
35
30
25
36,8
40
35
25,5
24
30
23,2
25
20
20
15
10,9
15
8,8
5,3
10
16,3
1,5
5
5,9
6,1
10
5
0
0
Não
Fund. Inc
estudou
Fund.
Com.
Médio
inc.
Médio
com.
Superior
Não
Fund. Inc
estudou
Fund.
Com.
Médio
inc.
Médio
com.
Superior
GRÁFICO 4 – Grau de escolaridade dos
trabalhadores informais da RMBH (%)
GRÁFICO 5– Grau de escolaridade dos
trabalhadores informais de Montes Claros
(%)
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros – 2005
Em Montes Claros, pelos dados do Gráfico 5, percebe-se que a maior parcela das
pessoas que exercem atividades informais está concentrada nível de escolaridade do ensino
médio completo (36,8%), seguida pelos que declaram ter o nível fundamental incompleto
(24%) e pelos que têm ensino superior ou mais (16,3%). O gráfico atesta que 10,9% dos
trabalhadores concluíram o ensino fundamental, 6,6% não completaram o ensino médio e
5,9% não estudaram.
3.2 O trabalho informal na RMBH e em Montes Claros: estratégia de sobrevivência ou
alternativa de vida?
Pressupondo-se que na Região Metropolitana de Belo Horizonte e em Montes
Claros, como em quase todos os centros urbanos do país, a informalidade é
90
caracterizada pela heterogeneidade, ou seja, o “determinismo” econômico dos
trabalhadores que se encontram na classificação “estratégia de sobrevivência”, a
abordagem social será relacionada aos trabalhadores componentes da categoria
“alternativa de vida”, ou seja, aquelas pessoas que, mesmo tendo oportunidade de estar
no setor formal, preferiram a informalidade, ou que levam em conta outros fatores, não
só a sobrevivência, para ingressarem e permanecerem nesse setor. Contudo, faz-se
conveniente relembrar que, por ser o setor tão heterogêneo, na maioria das vezes, do
ponto de vista empírico, fica difícil traçar uma linha diferenciadora entre a estratégia de
sobrevivência e a alternativa de vida.
3.2.1 O que dizem os dados dos surveys da RMBH e de Montes Claros
A estratégia analítica adotada pretende verificar os motivos que levam as pessoas a
exercerem atividades informais e estabelecer algumas comparações entre trabalhadores do
setor formal e trabalhadores do setor informal. Assim, escolhemos duas variáveis que
possibilitam a comparação entre os referidos setores.
A primeira variável empregada para comparação é a renda média mensal, segundo a forma
de trabalho. Os dados do Gráfico 6 mostram que trabalhadores do setor formal têm, em
média, rendimentos superiores aos dos trabalhadores informais. Do total dos entrevistados,
44% da ocupação formal e 34,8% da ocupação informal declararam receber renda
correspondente a mais de um e menos de três salários mínimos. Na faixa correspondente a
mais de três até cinco salários mínimos, encontramos 23,8% das pessoas que exercem
atividades formalizadas e 20,4% das que exercem atividades informais. Entre aqueles que
recebem o equivalente a mais de cinco até 10 salários mínimos, encontramos 18,8% dos
trabalhadores formais e 16,9% dos informais. A exceção fica por conta da faixa
equivalente a mais de 10 salários mínimos, onde o gráfico supracitado aponta que 25% dos
trabalhadores informais e 11% dos formais estão inseridos nessa faixa salarial.
Os dados explicitam que, embora, na maioria das vezes algumas pessoas estejam inseridas
no setor informal, elas são movidas pela estratégia de sobrevivência. Mas, na maior faixa
de rendimento (equivalente a mais de 10 salários mínimos), verifica-se que o percentual de
pessoas formalmente ocupadas (11%) é inferior ao percentual observado para os
trabalhadores informais (25%). Isto sugere que algumas pessoas se inserem no setor
informal movidas pela alternativa de vida.
91
A pesquisa revela que não há grande discrepância de rendimentos entre os trabalhadores
ocupados formalmente e informalmente. Ocorre que, à medida que a renda aumenta, como
no caso das faixas de mais de três até cinco e mais de cinco até 10 salários mínimos, os
percentuais ficam mais próximos. Entre os que têm renda equivalente a mais de 10
salários, os trabalhadores informais são maioria em relação aos formais, confirmando o que
foi discutido anteriormente, isto é, a heterogeneidade que é característica inerente da
informalidade.
44
45
40
34,8
35
30
25
20,4
25,6
23,8
18,8
16,9
20
11
15
10
5
2,2 2,5
0
M e nos
de 1 SM
1 a 3 SM M ais de 3 M ais de 5 M ais de
a 5 SM
a 10 SM
10 SM
Ocupação inform al
Ocupação form al
GRÁFICO 6 – Renda média mensal em salários mínimos segundo forma de ocupação em
Belo Horizonte (%)
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005
Analisando a renda média mensal, por ocupação, no Município de Montes Claros,
observamos pelo Gráfico 7 que, dos que recebem rendimentos entre um e três salários
mínimos, 56,5% estão ocupados informalmente e 64,6% estão no mercado formal. Também
entre aqueles que têm rendimentos equivalentes a mais de três até cinco salários mínimos, a
porcentagem de trabalhadores formais é maior (20% no mercado formal e 16,3% no mercado
informal). Entretanto, os dados apontam um aspecto interessante nas faixas de mais de cinco
até 10 salários mínimos e mais de 10 salários mínimos: nessas faixas, a tendência é aumentar
a porcentagem de pessoas que exercem atividades informais, pois 17,1% dos trabalhadores
informais e 10,8% formais declararam receber o equivalente a mais de cinco até 10 salários
mínimos e 5,7% dos informais e 1,4% dos formais têm rendimentos superiores a 10 salários
mínimos, a exemplo do que ocorre em Belo Horizonte.
92
Entretanto, não se pode deixar de considerar que, ao exercer atividades informais, os
seus componentes têm apenas aquele rendimento, perdendo alguns benefícios que são
garantidos no mercado formal, como férias, 13º salário, vale-transporte, etc.
64,6
70
56,9
60
50
40
30
16,3
20
10
4,1
20
17,1
3,1
10,8
5,7
1,5
0
M e nos
de 1 SM
1 a 3 SM M ais de 3 M ais de 5 M ais de
a 5 SM
a 10 SM
10 SM
Ocupação inform al
Ocupação form al
GRÁFICO 7 – Renda média mensal em salários mínimos dos trabalhadores segundo forma de
ocupação em Montes Claros (%)
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005
Os dados dos Gráficos 6 e 7 possibilitam duas hipóteses: 1) provavelmente os
trabalhadores informais que têm renda média acima de cinco salários mínimos são pequenos
empresários e exercem atividades formais e informais; 2) a maior parcela dos trabalhadores
está concentrada na faixa de rendimentos entre um e três salários mínimos, evidenciando que,
qualquer que seja a cidade, uma grande parcela de pessoas está percebendo rendimentos
muito baixos.
Tabela 4 – Jornada de trabalho semanal segundo a forma de trabalho
Cidade
RMBH
Jornada de trabalho semanal
Mais de 20 a Mais de 40
Até 20 horas
Total
40 horas
horas
ocupação
F
%
F
%
F
%
F
%
Informal
50
15,5 149 40,8 164 43,7 363
100
Formal
11
3,8
97
30,9 205 65,3 313
100
Tipo de
Montes Claros
Informal
18
13,3
49
36,3
68
50,4
135
100
93
Formal
2
2,7
17
23
55
Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros – 2005
74,3
74
100
A segunda variável refere-se às horas semanais de trabalho. Observa-se, na Tabela 4,
que a parcela de trabalhadores informais apresenta-se maior que os trabalhadores formais, na
jornada de trabalho de até 20 horas: 3,8% no mercado formal e 15,5% no informal, na
RMBH, e 2,7% (formal) e 13,3% (informal) em Montes Claros. Essa tendência também foi
verificada entre os que têm uma jornada de mais de 20 a 40 horas, em que o percentual de
trabalhadores informais é maior do que o de formais, tanto em Belo Horizonte (40,8% e
30,9%), quanto em Montes Claros (36,3% e 23%).
Entretanto, quando a jornada de trabalho aumenta, tende a aumentar a proporção de
pessoas que exercem atividades formais em relação àquelas que exercem atividades informais
(43,7% e 65,3% para os trabalhadores da RMBH e 50,4% e 74,3%, respectivamente, para
Montes Claros).
Uma possível explicação para o fato de os trabalhadores formais serem maioria na
faixa de jornada de mais de 40 horas semanais pode ser encontrada na Consolidação das
Leis de Trabalho (CLT), que regulamenta a jornada de trabalho formal em 44 horas
semanais.
Embora concordemos com os pesquisadores de que nesta área não é possível traçar,
do ponto de vista empírico, uma linha diferenciadora entre a estratégia de sobrevivência e a
alternativa de vida, ficou comprovado empiricamente que não há muita diferença nos padrões
de consumo das pessoas que estão na informalidade em relação àquelas que estão na
formalidade. Talvez a diferenciação que favoreça os componentes do mercado formal seja o
fato de este assegurar uma série de direitos (aposentadoria por tempo de serviço, férias,
décimo terceiro salário, entre outros), que não são garantidos aos trabalhadores do setor
informal.
3.3 Vantagens e desvantagens do trabalho informal: a visão dos sujeitos
Quando questionada sobre os motivos que a levaram a escolher um trabalho sem
carteira assinada, em vez de trabalhar no mercado formal, obtivemos a seguinte
resposta de uma colaboradora:
A vantagem de trabalhar informalmente é que você pode fazer seu horário. De
manhã toma conta da casa e a tarde sai pra vender. O horário quem faz é você. E,
94
dependendo também de quando você começa a trabalhar, as pessoas começam a
te conhecer e vão até a sua casa. Então, tem essa vantagem, às vezes você atende
suas clientes em sua casa. O horário quem faz é você, se você quiser ganhar mais,
você vai trabalhar mais; se achar que esse mês está fraco pode descansar mais.
Não é como no trabalho formal, porque a pessoa, querendo ou não, tem que ir.
(Colaboradora 29 - casada, 25 anos – ensino fundamental completo).
A flexibilidade do horário é considerada como uma vantagem pela Colaboradora
29, tanto em relação à organização do processo de trabalho em si, mas,
fundamentalmente, devido à possibilidade de conciliar as atividades informais
(vendedora) com as suas responsabilidades com a casa. Nesse contexto, por não ter que
cumprir um horário rígido, ela considerou essa flexibilidade como uma vantagem, pela
condição de “decidir” o horário em que vai trabalhar na casa ou na rua.
No meu caso mesmo, você tem possibilidade de ter melhores salários, você
tem possibilidade de fazer sua jornada de trabalho, escolher qual horário você
quer trabalhar, tem a questão da especialização, você se preocupa mais em se
especializar, se preocupa mais em estudar, e eu acho que quando você está no
mercado de trabalho formal você é pago pra fazer determinado serviço, muitas
vezes você não tem a oportunidade de estar exercendo outras funções. No mercado
informal não, você tem que se desdobrar, fazer de tudo um pouco, isso eu vejo
como positivo. (Colaborador 24 – solteiro, 29 anos – ensino superior completo).
Este aspecto foi considerado por quase todos os componentes dos grupos focais.
Além deste, outros elementos foram apontados pelos colaboradores como vantagens no
setor informal em relação ao mercado formal: o fato de a renda auferida no setor
informal ser mais alta do que aquela obtida exercendo a mesma função e se submetendo
às regras da formalidade, como o cumprimento de horários, a existência de um patrão,
entre outros. O fato de a informalidade não oferecer qualquer tipo de garantia legal
para aqueles que nela estão inseridos faz com que eles tenham que utilizar a
criatividade, sempre buscando aperfeiçoar-se para o desempenho de suas atividades
profissionais. Portanto, essa situação de incerteza em relação ao futuro foi considerada
como um elemento motivador para a busca de especialização constante, sobretudo no
ramo de prestação de serviços. Neste, especialmente para quem está no ramo da
informática, há necessidade de atualização constante para acompanhar as exigências
e/ou demandas do mercado, como considerou o Colaborador 24.
Entretanto, o setor informal é composto tanto por pessoas que estão inseridas por
“opção”, como também por aquelas que foram “obrigadas” a ingressar nesse tipo de
95
atividade, para garantir a sobrevivência. Assim, considerando essa heterogeneidade,
foram citadas, também, algumas desvantagens no exercício de atividades informais.
A desvantagem que leva a gente a ficar inseguro. É um compromisso que a
gente não pode fazer, é uma coisa muito insegura, eu não sei se amanhã a minha
condição física, se eu vou conseguir tirar aquele tanto que eu fiz o compromisso. A
gente fica com medo de fazer uma dívida. Às vezes a gente tem a necessidade de
fazer a dívida, mas fica inseguro, porque a gente não tem certeza do que vai tirar.
No mês que vem de repente acontece uma surpresa e a gente fica sem saber.
(Colaboradora 35 – solteira, 22 anos – ensino médio incompleto).
Pela fala da Colaboradora 35, fica clara a situação de risco que caracteriza as
atividades informais. Ela destaca a insegurança como uma desvantagem e cita duas
razões: a primeira é que, na condição de trabalhadora informal, ela não tem tanta
facilidade para fazer qualquer tipo de financiamento 16 e/ou crediário, já que os
estabelecimentos bancários e comerciais exigem comprovação de renda. As pessoas com
contrato de trabalho formal não enfrentariam esse tipo de dificuldade. A segunda razão
apontada por ela é em relação ao total do rendimento a ser auferido com o trabalho.
Pode haver um mês em que ela tenha um rendimento que dê para arcar com
compromissos e/ou despesas contraídas, mas em outro mês a situação pode ser diferente.
É interessante observar pelo depoimento, em que pese a algumas vantagens contidas em
outras falas, que a maior desvantagem do trabalho informal é não ter qualquer tipo de
segurança, portanto, não poder contar com uma renda todo mês, por exemplo.
A única vantagem de trabalhar é chegar ao final do mês e ter o seu dinheirinho.
Informalmente pra mim é horrível, porque minha coluna é terrível Eu fico sentada
fazendo unha, quando eu levanto, na verdade eu não levanto, eu fico encurvada,
então eu sinto que quando eu estou fazendo unha eu estou só agravando a minha
coluna. Então tem coisas que você faz que mexem com o seu ego. Quando estou
fazendo unha, por exemplo, eu penso que já estou com 57 anos e olha só o que eu
posso fazer. Outras vezes você faz e não fica recompensada, puxa vida “eu poderia
ter feito melhor”, mas a vista não deixou, a coluna não deixou. Na verdade, aí
algumas pessoas vão e elogiam, enchem o seu ego, essa é uma recompensa, mas
recompensa mesmo só o dinheirinho. Porque na verdade, a verdade é a seguinte, eu
não gosto de trabalhar. Eu trabalho porque eu preciso, porque quando eu tinha, eu
já tive uma condição financeira melhor, eu era só dona de casa, nunca fui madame,
mas sempre fui dona de casa. Nunca achei tempo ocioso um problema, sempre fui
ótima companhia pra mim mesma. A única vantagem que eu vejo em trabalhar é
poder ganhar meu dinheiro, é só isso. (Colaboradora 16 – divorciada, 57 anos –
ensino médio completo).
16
Apenas alguns bancos, como o Banco de Nordeste, têm algumas modalidades de crédito exclusivas para as
pessoas que estão inseridas no setor informal.
96
A fala da Colaboradora 16 deixa transparecer toda a sua angústia, pois ela já teve
um emprego no mercado formal, onde trabalhou por vários anos, e, depois, quando foi
excluída, já com idade avançada, não conseguiu reingressar. Assim, o setor informal foi
uma saída, já que não teve alternativa de trabalho para garantir a sobrevivência.
Portanto, a fala dela se encaixa na tese defendida por Hirata e Humphrey (1989) de que
“nos períodos de crise, um declínio do emprego formal seja acompanhado pelo
crescimento do trabalho por conta própria e sem carteira assinada” (p.71). A fala da
colaboradora permite-nos acreditar que, quando as mulheres saem do emprego formal,
elas têm maior dificuldade de retorno.
Um desdobramento interessante das falas acima é que, ao considerarem a
situação de incerteza e insegurança do setor informal, as pessoas chamam para si a
responsabilidade com o resultado. Apesar de entenderem que a informalidade é
caracterizada por vantagens como possibilidade de auferir renda maior, controle sobre o
horário e o processo de trabalho, etc., ao mesmo tempo se colocam como subordinadas a
elas mesmas, na medida em que o fato de trabalharem mais ou menos vai ter
conseqüências que terão que ser assumidas. Ao contrário, as pessoas que estão inseridas
no mercado formal são subordinadas a várias regras, mas não têm “responsabilidade”
com o provimento do seu salário, pois suas funções são de produção, e a função de
administração (salários) é exercida pelo patrão.
3.4 O trabalho informal: o sentido da “escolha”
Observa-se pelas falas que não existe um consenso em relação ao ingresso no
setor informal, o que confirma a característica de heterogeneidade apontada pela
revisão da literatura. Na realidade, essas falas configuram duas situações de ingresso:
em primeiro lugar, identificamos alguns que declararam terem sido forçados a ingressar
nesse tipo de atividade, por falta de oportunidade de trabalho no setor formal. Dentre os
fatores alegados para essa exclusão podemos destacar - a partir de algumas falas - o
aumento do desemprego, a baixa escolaridade e a idade avançada. Portanto, falta de
qualificação e de escolaridade limita a competitividade no mercado formal;
conseqüentemente, empurra as pessoas para a informalidade. E se isso acontece até para
97
quem é jovem, a situação fica mais grave para as pessoas que estão próximas da terceira
idade.
Na verdade, não foi uma opção, foi mais forçado. Como eu moro de aluguel, a
gente tinha que completar a renda lá em casa. Eu fiquei por muito tempo,
coloquei muito currículo, mas discordo quando dizem que quando a gente está no
meio não é mais fácil. Eu trabalhei oito anos de carteira assinada e nem por isso
eu arrumei outro emprego. (Colaboradora 27 - casada, 21 anos – ensino médio
completo).
O depoimento da Colaboradora 27 mostra que o seu ingresso no setor informal
foi em decorrência da sua exclusão do setor formal. Ela alega o fato de ter que
contribuir com a renda familiar como a principal razão do seu ingresso na
informalidade. A sua fala denota toda a insegurança que é característica da atividade
informal, bem como a sua falta de qualificação profissional para competir em igualdade
de condições com outras pessoas no mercado formal.
Eu estou não por escolha, a vida inteira eu fui auxiliar de contabilidade,
trabalhei regularmente em um escritório de contabilidade, mas há alguns meses
que eu fiquei desempregada e permaneço desempregada porque tem uma coisa
esquisita que está acontecendo hoje, os jovens não têm oportunidade porque não
têm experiência, aos 40 você já é velha e aos 50? Porque eu estou com 57. Aí o
meu problema é agregado ao fato de eu ter muita experiência e quando você tem
experiência você precisa de uma faixa salarial melhor, a experiência e o excesso
de idade. (Colaboradora 16 – divorciada, 57 anos – ensino médio completo).
A fala da colaboradora mostra que tanto a idade avançada quanto a falta de
qualificação são fatores que limitaram as chances de reingresso no mercado formal. Ela
tem o curso técnico em contabilidade e exerceu a profissão por vários anos, mas não
continuou o seu processo de qualificação. Quando perdeu seu emprego no mercado formal
não conseguiu outro emprego. Um aspecto interessante que deve ser ressaltado é que a
colaboradora traz consigo, junto com a falta de esperança, a consciência de que, além da
falta de qualificação, o fator idade é limitador para algumas pessoas, tanto as mais velhas,
como ela, que já tem 57 anos, “que tem muita experiência”, quanto os mais jovens, “que
têm pouca experiência”. Ou seja, o mercado não absorve os jovens e tampouco absorve as
pessoas mais velhas, fenômeno já observado na literatura sobre o tema. O ingresso no setor
informal se configurou como uma estratégia de sobrevivência para a colaboradora, na
medida em que ela declarou não ter tido alternativa para garantir o seu sustento básico
senão ingressar no mercado informal.
98
Eu acho que, na condição em que me encontro hoje, foi mesmo, como se diz,
obrigação. Não é uma escolha, se tivesse como, se você pudesse conciliar esse
serviço nosso com a carteira assinada, seria excelente pra nós.Você trabalhar em
casa, fazer seu serviço com a carteira assinada seria pra nós o mundo perfeito, você
está abrangendo tudo. Você está pegando família, pegando tudo. E não tem aquela
problemática toda de sair de casa e deixar pra trás, chegar à noite. Igual a nós que
temos marido, infelizmente, às vezes devido à criação, a mulher tem sempre que ser
submissa ao marido. Se a humanidade exige e nós queremos dar, mesmo mandando,
( igual sou eu que mando), isso é realidade. Você pode estar trabalhando lá fora, a
sua cabeça realmente está na sua casa. E se houver uma oportunidade, uma chance
pra nós de conciliar serviço de casa, esse trabalho informal com a carteirinha
assinada, seria perfeito. (Colaboradora 10 – casada, 57 anos, ensino médio
completo).
Estes depoimentos comprovam que o ingresso desses trabalhadores no exercício de
atividades informais não se deu em função de uma escolha, ao contrário, foi em função da
sobrevivência. Essas pessoas perderam seus empregos no mercado formal e, como não
encontraram outro emprego, foram obrigadas a entrar na informalidade, como forma de
garantir o sustento para elas e suas famílias. Outro elemento importante é que o setor
informal é de fácil acesso e não demanda maior especialização. Contudo, apesar de certa
resignação com a atividade atual, percebe-se que essas pessoas acalentam o desejo de
algum dia ser absorvidas por postos de trabalho do mercado formal.
A segunda configuração é justamente o inverso desta: são pessoas que, mesmo tendo a
oportunidade de ingressar no trabalho formal, optaram por trabalhar no setor informal.
Assim, a exclusão (perda do emprego formal) ou a auto-exclusão (saída voluntária) foram
às motivações que impulsionaram esse grupo de pessoas a ingressar no setor informal. Os
depoimentos sugerem que, de um modo geral, os trabalhadores têm uma visão positiva do
trabalho exercido, pois não cogitam deixar essa atividade para ingressar em outra
formalizada. Portanto, o que se percebe é uma forte valorização do trabalho informal como
fator definidor de ingresso e/ou permanência nesse setor.
Eu já fiz de tudo: já vendi, já fui pedreiro, mas o que eu gosto mesmo é de pintar.
Eu acho que essa é a minha vocação. É o que eu gosto e é a minha vocação. Eu
consegui o meu primeiro emprego sozinho, trabalhei numa firma sem ser fichado.
Eu preferi trabalhar a estudar, por isso eu tenho a quarta série. Depois eu fiz cursos
por correspondência, aqueles do Instituto Universal Brasileiro, mas também não
deu certo porque os materiais eram muito caros, tive que largar também. Aí, eu
arrumei um trabalho informal porque eu ganhava muito mais. O mercado informal
dava mais lucro do que o mercado formal. Aí, eu fui tomando mais gosto pela
99
pintura, mas eu optei pela pintura porque eu ganhava mais. (Colaborador 3 – 54
anos – ensino fundamental completo).
No depoimento do Colaborador 3, nota-se que sua opção foi em função de sua
falta de qualificação, já que ele não teve oportunidade de estudar, mas aprendeu a
pintar e fez da pintura a sua escolha de trabalho. Ele se insere na motivação “estratégia
de vida”, não por ter racionalmente optado pelo trabalho informal, abandonando o
mercado formal, mas por ter tido sorte de escolher uma função dentro da construção
civil que ainda é muito valorizada na cidade. Assim, embora ele declare que não teve
qualificação profissional para competir no mercado formal, se considerarmos as suas
condições - falta de estudo e idade avançada -, ele tem uma renda razoável em
comparação com as faixas salariais encontradas na cidade.
Bem, eu posso estar dividindo minha vida em etapas. Porque quando eu era
mais novo eu tinha um sonho de trabalhar de carteira assinada, assim na fase dos
15, 16 anos, quando realmente eu tive a oportunidade de trabalhar no mercado de
trabalho formal. Aí eu comecei a fazer assim como se fosse um contrapeso, medir
as vantagens e as desvantagens. . No meu caso, assim, eu comecei a ver que
ganharia mais trabalhando no mercado informal e felizmente eu sempre gostei.
No meu caso específico, eu sempre tive a oportunidade de crescer muito rápido no
serviço. Eu acredito assim e por isso eu passei a acreditar que o mercado informal
acaba te dando mais oportunidades de estar crescendo dentro da empresa. Com 16
anos eu tive a oportunidade de ser gerente de um supermercado Meu patrão até
chegou pra mim, eu lembro até hoje, falando assim, eu posso assinar a sua
carteira, só que com carteira seu salário vai ser xis, se você trabalhar de forma
assim, sem nenhum contrato, você vai ganhar mais, vai trabalhar mais, lógico,
né?! Mas só que você vai ter um rendimento maior, seu serviço também vai ser
mais flexível. (Colaborador 24 – 29 anos – ensino superior completo).
Dois fatores devem ser observados para analisar as visões positivas desses
colaboradores sobre a escolha pelo ingresso no setor informal. Por um lado, a renda auferida
no trabalho atual, já que ambos apontam que têm rendimentos superiores aos que receberiam
no mercado formal; por outro lado, o desejo de autonomia profissional. A possibilidade de
definir racionalmente o seu crescimento e/ou aperfeiçoamento profissional constitui fator
impulsionador da escolha por esse tipo de trabalho.
Ao considerarmos elementos como independência financeira e autonomia, o exercício
de atividades informais não pode ser correlacionado aos impedimentos do mercado formal,
em decorrência de a pessoa ter sido excluída deste. Ao contrário, o ingresso foi motivado pelo
desejo de autonomia profissional, tanto em termos da possibilidade de receber maiores
rendimentos, quanto do desejo de crescer profissionalmente, porque essas pessoas
100
vislumbram no setor informal, até por não haver outros tipos de garantia - que, certamente,
estariam presentes no mercado formal -, um impulso para estar sempre “correndo atrás”.
Além desse conjunto de razões que motivaram a escolha pela informalidade,
apontaram como motivos: a possibilidade de flexibilizar a jornada de trabalho, objetivando ter
mais tempo para se dedicar ao estudo, por exemplo, e também a dificuldade de lidar com as
regras da formalidade.
Eu já tive oportunidade de trabalhar em vários lugares de carteira assinada, só
que no meu caso é diferente do que eles falaram, porque eu já tive a oportunidade
de ter um salário maior trabalhando de carteira assinada, só que eu não quis
porque a jornada de trabalho era muito extensa e ia atrapalhar meus estudos.
(Colaborador 22 – 22 anos – ensino superior completo).
É interessante observar, a partir dos depoimentos dos Colaboradores 19 e 22, que a
atividade que desenvolvem, na atualidade, não é a primeira experiência de trabalho, pois
passaram por outros tipos de trabalho e deixaram “voluntariamente” esse trabalho para
ingressar na informalidade. Eles estão nessas atividades por diversas razões, denotando assim
certo espírito empreendedor, representado pela autonomia e liberdade que, em tese, são
características inerentes ao setor informal. Para esses colaboradores, a possibilidade de
autonomia, mesmo que fictícia, compensa a falta de algumas garantias que teriam no mercado
formal. Assim, ao fazerem essa opção, fizeram valer os seus projetos individuais, pois a
“autonomia decorrente da flexibilidade de que os agentes dispõem sobre o tipo e o tempo do
trabalho que realizam permite que eles reelaborem suas experiências, tanto através de
determinações recebidas, como em função daquilo que eles consideram desejo e vontade”
(Vidal, 1996, p.117). O depoimento abaixo é bastante profícuo para corroborar essas
afirmações.
Bem, no meu caso eu tive a oportunidade também de trabalhar com carteira
assinada, eu queria experiência, mas eu não gostei, não pelo salário, mas pela
mesmice, você não tinha a oportunidade de ser criativo, fazer alguma coisa
diferente, você não tinha essa oportunidade, e eu odeio regras. Então eu achei que
trabalhando informalmente eu tinha alternativas, eu poderia fazer alguma coisa, e
exige mais de você, você tem mais vontade de correr atrás, de criar alguma coisa,
um produto ou alguma coisa assim. Então, graças a Deus, eu escolhi essa área,
porque se eu estivesse trabalhando na área em que eu tive oportunidade hoje eu não
estaria aqui fazendo faculdade. Nessa experiência que eu tive, eu comecei a
acomodar, então, depois que eu saí, eu falei, puxa vida, eu fiquei esse tempo todo aí
eu achei melhor informalmente, pra não acomodar, porque senão eu ficaria lá até
hoje, não teria produzido nada. Então, eu sou informal por opção. (Colaborador 19
– 24 anos – ensino médio completo).
101
Essas declarações sugerem que, para esses colaboradores, a busca de autonomia
aparece como uma estratégia que visa responder ao aumento de rendimentos, à
flexibilidade de horários e, conseqüentemente, à não subordinação a patrões, como
fatores que motivaram o ingresso e permanência no setor informal. Entretanto, em seus
depoimentos, não se percebem as inseguranças e angústias comumente presentes nas
análises das atividades informais: o que levam em conta é, justamente, uma motivação
para sair da rotina, da mesmice, para não se acomodar. Assim, o ingresso não é pautado
pela subordinação à lógica do mercado (sobrevivência), mas se torna uma alternativa de
vida.
4. Considerações Finais
A guisa de conclusão podemos considerar que o setor informal se caracteriza por uma
heterogeneidade, que comporta pessoas que estão inseridas devido a exclusão do setor formal
e pela incapacidade de ser reabsorvido no mesmo. Estas atividades contribuem para o
aprofundamento da situação de pobreza que estes indivíduos se encontram, como também
pessoas que exercem atividades informais movidas por outros aspectos, como flexibilidade de
horários, ser o próprio “patrão”, possibilidade de auferir maiores rendimentos.
Enfim, constatamos pelo exame da literatura sobre a temática e pela análise dos dados
empíricos que – pela heterogeneidade que marca o setor informal – este não pode ser um fator
responsável pelo agravamento da pobreza, pois se uma parcela dos seus componentes – que
pode até ser maioria – estão nele por estratégia de sobrevivência, pela exclusão dos postos de
trabalho formal, existem também aqueles que poderiam estar no setor formal, mas que
optaram por trabalharem na informalidade. Assim ao mesmo tempo em que o setor informal
contribui para agravar a situação de pobreza, ele também pode se tornar uma alternativa
eficiente de combate a mesma, na medida em que – como foi comprovado pelos dados
empíricos – existem pessoas que recebem um rendimento maior no setor informal do que
receberiam se estivessem no setor formal.
5. Referências
CACCIAMALI, Maria Cristina. Informalidade contemporânea na América Latina. Rio de
Janeiro. IPEA, 1999.
102
FERREIRA, Maria da Luz A. Trabalho Informal e Cidadania: heterogeneidade social e
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Ciências Humanas (Sociologia e Política), da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007
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vendedores ambulantes de alimentação em Brasília. Dissertação de Mestrado.
Departamento de Sociologia/Universidade de Brasília. Brasília, 1996.
103
A EVASÃO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL
E SUA ASSOCIAÇÃO COM A POBREZA17
Maria Elizete Gonçalves♣
Eduardo L.G. Rios-Neto♦
Cibele Comini César*
Palavras-chave: evasão; ensino fundamental.
RESUMO
17
Trabalho apresentado no Colóquio Internacional (Des) envolvimentos contra a pobreza - mediações teóricas,
técnicas e políticas, realizado em Montes Claros - MG, de 21 a 23 de agosto de 2008.

Unimontes/Cedeplar.

Cedeplar/UFMG.
* Cedeplar/UFMG.
104
Na literatura internacional tem havido um consenso que a falta de acesso à escola, a evasão e
a repetência constituem três grandes problemas enfrentados pelos sistemas educacionais
contemporâneos. São problemas que atingem, sobretudo, as primeiras séries do ensino
fundamental, principalmente nas escolas dos países menos desenvolvidos. No Brasil, o
problema do acesso à escola, nesse nível de ensino, está prestes a ser solucionado. Contudo, o
país ainda tem taxas de repetência e de evasão que estão entre as mais altas do mundo. Esse
artigo visa a identificação e análise dos determinantes da probabilidade de ocorrência de um
desses eventos: a evasão escolar. Foram utilizadas bases de dados longitudinais (fruto de uma
parceria firmada entre o Cedeplar e o INEP), além do Censo Escolar de 1999. O método
utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A coorte de alunos foi
acompanhada desde sua matrícula na 4ª série em 1999 até 2003, quando deveria concluir a 8ª
série. São alunos matriculados em algumas escolas situadas em alguns estados das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ou seja, regiões brasileiras que apresentam os piores
indicadores educacionais. Através dos modelos estimados, verificou-se que os fatores
relacionados à escola têm pequeno impacto sobre a evasão. Ao contrário, o background
familiar, mensurado pelo nível socioeconômico, teve um papel mais significativo. Esse
resultado condiz com uma conclusão presente no Relatório da Unesco (2008). Segundo o
Relatório, mesmo as boas escolas, se localizadas nos países em desenvolvimento, são
incapazes de reter o aluno na escola, caso ele esteja submetido a uma situação de extrema
pobreza. Os resultados obtidos permitem inferir que a saída do aluno do sistema escolar está
fortemente associada à sua inserção no mercado de trabalho, evidenciando a necessidade de
políticas públicas de combate à pobreza e, consequentemente, de políticas educacionais que
favoreçam a permanência do aluno na escola. Mais especificamente, permanência com
promoção nas sucessivas séries.
1. Introdução
É consensual, na literatura internacional, que a falta de acesso à escola, a evasão e a
repetência constituem três grandes problemas enfrentados pelos sistemas educacionais
contemporâneos. Esses problemas atingem, sobretudo, as primeiras séries da educação
fundamental dos diversos países, principalmente daqueles menos desenvolvidos.
No Brasil, o problema do acesso à escola, no ensino fundamental, está em vias de ser
solucionado. Em 2006 a taxa de escolarização para as crianças de 7 a 14 anos correspondeu a
aproximadamente 98% (PNAD, 2006). Contudo, o país ainda tem taxas de repetência e
evasão que estão entre as mais altas do mundo. Nesse artigo, ênfase é dada à evasão escolar,
cuja taxa nacional equivaleu a 6,8% em 2003.
O desenvolvimento desse artigo baseou-se na análise da trajetória escolar de uma
coorte de alunos matriculados na 4ª série do ensino fundamental, em 1999, pertencentes a
escolas situadas nas áreas urbanas de microrregiões localizadas em alguns estados das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Ou seja, o estudo abrange escolas das regiões que
105
apresentam os piores indicadores educacionais do país. Os alunos foram acompanhados até
2003, ano em que deveriam concluir a 8ª série.
Os principais objetivos do estudo são a identificação e análise dos determinantes da
probabilidade de ocorrência da evasão, entre a 4ª e a 8ª série. A suposição é que alunos com
baixo nível socioeconômico possuem maior probabilidade de evadir do sistema escolar, uma
vez que precisam entrar na força de trabalho mais precocemente para complementar a renda
domiciliar.
Foram utilizados os bancos de dados “Avaliação de desempenho: fatores associados” e
Ficha Histórico Escolar, ou “Ficha B”, frutos de uma parceria firmada entre o CEDEPLAR e
o INEP; além do Censo Escolar de 1999.
O método analítico utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A
estimação dos modelos se baseou na Função de Produção Educacional - FPE – cuja
especificação indica que o desempenho do aluno é uma função dos insumos familiares, dos
insumos acumulativos das escolas/pares e de outros insumos relevantes, além da sua
habilidade natural.
Diferentemente das variáveis-resposta comumente utilizadas (resultados de testes
aplicados), o resultado educacional foi medido pela variável evasão escolar. Outra inovação
relacionada à estrutura formal da FPE refere-se à estrutura dos dados existentes. Devido à
estrutura hierárquica dos dados educacionais foram estimados modelos logísticos hierárquicos
longitudinais de três níveis: nível 1, intra-alunos; nível 2, inter-alunos e; nível 3, entre escolas.
No primeiro nível, a variável-resposta é uma função do tempo (série) associado à ocorrência
do evento e de fatores relacionados aos alunos, que mudam ao longo do tempo; no segundo,
das características fixas dos alunos e, no terceiro, dos fatores relacionados às escolas. Um dos
méritos desses modelos é que eles permitem verificar como as variáveis num determinado
nível afetam as variáveis nos demais níveis.
Nessa investigação, ainda que a análise realizada para a coorte não contemple o ensino
fundamental na sua totalidade, pois as séries estudadas variam da 4ª a 8ª, a expectativa é que
os resultados obtidos contribuam efetivamente para um melhor direcionamento das políticas
educacionais (públicas ou internas às escolas) no sentido de se reduzir a ocorrência desse
evento no sistema educacional brasileiro.
Esse artigo está organizado em cinco seções. A primeira, essa parte introdutória. Na
segunda, são feitas algumas considerações sobre a evasão escolar no ensino fundamental
106
brasileiro. Na terceira é apresentada a metodologia de análise e dados. A quarta contempla os
resultados e discussão e, a última, as considerações finais.
2. Evasão escolar no ensino fundamental brasileiro: algumas considerações
Muitos estudos têm apontado que a falta de acesso à escola, a repetência e a evasão
são
alguns
dos
principais
problemas
enfrentados
pelos
sistemas
educacionais
contemporâneos. Estes problemas afetam, principalmente, os alunos matriculados nas
primeiras séries do ensino fundamental e que freqüentam escolas localizadas nos países em
desenvolvimento (sobretudo nas áreas rurais).
No Brasil, o Censo Demográfico de 2000 apontou para uma tendência à
universalização no acesso à escola, para o ensino fundamental. Os dados censitários
mostraram uma cobertura de quase 95% para as crianças de 7 a 14 anos. Dados mais recentes
(PNAD, 2006) mostraram que a taxa de escolarização18 para os estudantes desse grupo etário
equivaleu a quase 98%.
Considerando que a questão do acesso à escola está em vias de ser solucionado, nos
últimos anos a atenção dos pesquisadores brasileiros tem sido direcionada basicamente para
os problemas da repetência e da evasão.
COSTA-RIBEIRO (1993), analisando dados dos censos escolares para a década de 80,
percebeu que havia uma grande distorção entre a população na faixa etária de 7 a 14 anos e a
população matriculada no ensino fundamental. Em algumas séries, existiam mais alunos
matriculados do que o total de crianças na idade correspondente à série.
Posteriormente, utilizando dados das Pesquisas Nacionais de Amostragem por
Domicílios (PNAD’s), alguns autores (KLEIN, 1995; FLETCHER, 1997) constataram que o
problema apontado por Costa-Ribeiro estava associado à repetência, que retinha as crianças
na escola. Estes autores, através do modelo Profluxo (desenvolvido para o cálculo de taxas de
transição para as sucessivas séries), perceberam um outro importante aspecto: a evasão
escolar estava fortemente associada à reprovação, no sentido de que após sucessivas
reprovações as crianças abandonavam a escola.
É consenso que as taxas de repetência estão relacionadas à baixa qualidade do ensino.
Nesse sentido, alguns estudos têm focado esse problema tão acentuado no sistema de ensino
brasileiro.
O trabalho desenvolvido por SOUZA (2001) centra-se na questão da baixa qualidade
do ensino, expressa pelas altas taxas de repetência e evasão. Seu estudo é restrito ao estado de
São Paulo. Ela refere-se às políticas adotadas a partir de meados da década de 80 no estado,
entre elas, a implementação do ciclo básico, ou promoção automática.
18
A taxa de escolarização corresponde à percentagem de estudantes de um determinado grupo etário em relação
à população do mesmo grupo etário.
107
A autora desenvolve seu trabalho abordando o polêmico debate relacionado à
incompetência do professor, estudando a perspectiva dos professores com relação a ações de
uma educação continuada. Questiona a ênfase dada ao argumento da incompetência do
professor como principal explicação para o mau desempenho do sistema educacional.
Segundo o argumento, a principal estratégia a ser adotada para melhorar a qualidade do
ensino é aumentar a competência dos professores através de programas de educação
continuada.
Ela contesta o pensamento dominante, considerando que a educação do professor não
pode ser tomada como a única causa da baixa qualidade do ensino no país. Argumenta que
são necessárias condições de trabalho adequadas para o desenvolvimento do trabalho de
magistério, além da reformulação de planos de carreira dos professores e salários decentes.
Destaca também que devem ser considerados outros importantes fatores como a pobreza, o
desemprego, o sistema de habitação e saúde, entre outros.
A qualidade do ensino tem sido mensurada, principalmente, através de testes
padronizados de rendimento ou através do desempenho escolar do aluno. Neste contexto, nos
anos recentes tem crescido o número de estudos, no país, analisando o desempenho
acadêmico dos alunos matriculados no ensino fundamental (entre eles, RIOS-NETO, CÉSAR
e RIANI, 2002; MACEDO, 2004; RIANI, 2005; PEREIRA, 2006).
Nesse estudo, ênfase é dada ao problema da evasão escolar. O GRÁF. 1 mostra o
comportamento das taxas de evasão ao longo das séries do ensino fundamental, para o ano de
2003.
Observa-se que as taxas aumentam gradativamente ao longo das séries, sendo mais
elevadas na última série do ensino fundamental. Os valores mínimo e máximo para esse
indicador são 1% e 12,5% respectivamente, sendo a taxa total igual a 6,8%.
GRÁFICO 1
Taxas de evasão por séries, ensino fundamental: Brasil, 2003.
108
15,0
12,0
9,0
6,0
3,0
8ª série
7ª série
6ª série
5ª série
4ª série
3ª série
2ª série
1ª série
Total
0,0
Fonte: MEC/INEP, 2003.
O relatório da UNESCO (2008), baseado em dados educacionais para o ano de 2005,
destaca que as causas da evasão são múltiplas e complexas, abrangendo situações específicas
dos diversos países, fatores particulares do aluno e o nível das redes de ensino. Entre os
problemas das redes de ensino, são citados a falta de recursos e de segurança nas escolas, o
excesso de alunos nas salas de aula e a falta de qualificação dos professores. Foi relatado que
nos países em desenvolvimento, mesmo as escolas bem equipadas são incapazes de evitar a
evasão, se o aluno estiver submetido a uma situação de pobreza ou miséria. Mas foi frisado
que diante dos problemas enfrentados pelo aluno (pessoais, familiares, financeiros, de
trabalho) as escolas podem evitar sua saída do sistema ao dar-lhe o apoio necessário para lidar
com as dificuldades externas à sala de aula.
2.1 A evasão escolar na coorte sob estudo: algumas questões
Nesse artigo, a principal pretensão é identificar, através da estimação de modelos
hierárquicos longitudinais, os principais fatores explicativos da ocorrência da evasão entre a
4ª e a 8ª série, na coorte sob estudo. Pretende-se verificar até que ponto esses fatores
contribuem para um melhor entendimento do problema, no ensino fundamental. Os seguintes
questionamentos podem ser levantados:
i)
Em que medida a probabilidade de evasão para um aluno específico é
afetada pela proficiência dos seus colegas de escola?
109
ii)
Na identificação dos determinantes da ocorrência do evento de interesse,
são consideradas variáveis associadas à trajetória escolar passada e
contemporânea do aluno. Em que medida tais variáveis contribuem para
aumentar ou reduzir a probabilidade de ocorrência do evento?
iii)
Entre as variáveis relacionadas ao background familiar e à escola, quais
são mais importantes para reduzir a probabilidade de saída do aluno do
sistema escolar?
iv)
Qual o efeito do contexto socioeconômico regional sobre a ocorrência da
evasão no ensino fundamental?
Uma importante contribuição desse artigo está relacionada às respostas às questões
levantadas.
3. Metodologia e dados
O desenvolvimento desse artigo baseou-se no acompanhamento de uma coorte de
alunos matriculados na 4ª série do ensino fundamental, em 1999. Essa coorte foi
acompanhada até 2003, ano em que os alunos deveriam concluir a 8ª série. Esses alunos
pertenciam à escolas situadas nas áreas urbanas de microrregiões localizadas em alguns
estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Ou seja, o estudo abrange
escolas das regiões que apresentam os piores indicadores educacionais do país.
3.1 Metodologia
O método analítico utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A
estimação dos modelos se baseou na Função de Produção Educacional - FPE – cuja
especificação indica que o desempenho do aluno é uma função dos insumos familiares, dos
insumos acumulativos das escolas/pares e de outros insumos relevantes, além da sua
habilidade natural. A especificação do modelo é apresentada na sequência.
3.1.1 Especificação do modelo incondicional
Os modelos de regressão hierárquicos partem do pressuposto que há uma estrutura
hierárquica nos dados. Cada um dos níveis, na estrutura hierárquica, é representado por um
sub-modelo, que expressa o relacionamento entre as variáveis dentro de um determinado
110
nível, além de especificar como as variáveis num nível influenciam os relacionamentos que
ocorrem noutros níveis.
Nesse artigo, os modelos hierárquicos estimados são logísticos, sendo que a variávelresposta refere-se à probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental. Para
modelar essa probabilidade, foi utilizado o valor “1” para denotar a ocorrência do evento e o
valor “0” caso contrário.
Para verificar a dimensão da variação entre as escolas na probabilidade de evasão num
determinado ano letivo t, inicialmente os modelos de nível 1 e 2 foram estimados sem a
inclusão de covariáveis.
O modelo de nível 1 foi assim especificado:
η
ij
= β 0j
(1)
No nível 2 a equação correspondente é:
β
0j
=γ
00
+ u0j
(2)
A substituição de (2) em (1) resulta em:
η
ij
= γ
00
+ u0j
(3)
Sendo:
i
= 1, 2, ... , I unidades de nível 1 (alunos);
η
ij
γ
00
j = 1, 2, ... , J unidades de nível 2 (escolas);
= o log da chance de sucesso (ocorrência do evento) para o aluno i, na escola j;
= o parâmetro da parte fixa do modelo, que corresponde ao log-odds médio de evasão
entre as escolas;
u 0 j = o efeito aleatório relacionado ao nível 2 (das escolas).
Através da estimação do modelo incondicional é possível estimar a variabilidade
relacionada com cada um dos níveis. No modelo logístico, cujos erros aleatórios seguem uma
distribuição binomial, a variância do nível 1 não é constante. Em geral, considera-se o valor
π2/3 = 3.2919. Nesse caso, o coeficiente de correlação intra-níveis, é assim calculado:
uoj
uoj + (π 2 / 3)
(4)
Parte dessa variabilidade pode ser explicada através da inclusão de covariáveis nos
diferentes níveis.
19
Ver: Snijders e Boske (1999).
111
No caso específico desse artigo, as equações anteriores foram estendidas para
incorporar três níveis, que refletem a estrutura de dependência existente nos dados
longitudinais utilizados. O nível intra-alunos (nível 1) refere-se às mudanças relacionadas ao
aluno, ocorridas ao longo do período. Nesse nível, a dependência entre as observações ocorre
em função do mesmo aluno ser medido “n” vezes ao longo do estudo. O nível inter-alunos
(nível 2) possibilita verificar quais mudanças individuais ao longo do tempo diferem entre os
alunos em função de suas características fixas. Nessa estrutura hierárquica, os fatores intraalunos estão aninhados nos fatores inter-alunos. Como os alunos estão aninhados dentro das
escolas, tem-se um terceiro nível relacionado aos fatores. Novas especificações são
apresentadas com a inclusão das variáveis nesses níveis.
3.1.2
Especificação do modelo condicional
A trajetória temporal da evasão pode ser descrita pela equação de nível 1 abaixo:
η ij = β 0 j + β 1 j S ij
(5)
Como estudos têm apontado que em geral a evasão acontece após uma ou sucessivas
reprovações na série, é conveniente incluir na regressão uma variável referente ao resultado
escolar obtido pelo aluno no ano anterior à ocorrência do evento. A variável aprovação foi
incluída na regressão, para fins de controle. A equação resultante tem o seguinte formato:
η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij
(6)
Nesse nível são incluídas também as variáveis relacionadas aos alunos que explicam a
variação em η ij . O vetor das variáveis que variam ao longo do tempo foi denominado X.
Com a inclusão desse vetor, tem-se a presente equação:
η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij + β 3 j X ij
(7)
Os coeficientes β 0 j , β 1 j , β 2 j , β 3 j neste modelo de nível 1 tornam-se as
variáveis-resposta nas equações para o nível 2.
O pressuposto é que o intercepto, o parâmetro da trajetória temporal e o parâmetro
relacionado ao vetor de variáveis que variam ao longo do tempo variam entre os alunos, em
função das suas características fixas. Denotando-se o vetor com as características fixas de Z, o
modelo de nível 2 é assim re-especificado:
η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij + β 3 j X ij + β 4 j Z ij
(8)
Ao incluir os fatores associados à escola, cada coeficiente “β” da equação (8) torna-se
uma variável-resposta no modelo de nível 3. Esse modelo, que contém um vetor com as
variáveis de nível 3 permite verificar o efeito dos fatores escolares sobre a evasão. Tem-se o
seguinte modelo final:
112
η ij = γ 00 + γ 01W j + γ 10 Sij + γ 20 Aij + γ 30 X ij + γ 40 Z ij +
γ 11SijW j + γ 21 AijW j + γ 31 X ijW j + γ 41Z ijW j + uoj +
u1 j Sij + u 2 j Aij + u3 j X ij + u 4 j Z ij
(9)
O logaritmo da chance de sucesso para o aluno i e o valor previsto da probabilidade
são, respectivamente:
 ϕ ij
η ij = log
 1 − ϕ ij





e
ϕ ij =
1
1 + exp{ − η
ij
}
(10)
Importante ressaltar que a estimação dos modelos de regressão foi feita através do
software MLWIN, versão 1.1.
3.2 Dados e variáveis
Três foram as bases de dados utilizadas: i)
“Avaliação de desempenho: fatores
associados”; ii) Ficha Histórico Escolar, ou “Ficha B” e; iii) Censo Escolar de 1999. As duas
primeiras são frutos de uma parceria firmada entre o CEDEPLAR e o INEP.
As variáveis inseridas nas regressões são listadas a seguir.
3.2.1 Variáveis incluídas na modelagem econométrica
Variável-resposta
A variável-resposta foi mensurada ao nível do aluno. Ela mede a probabilidade do
aluno evadir do sistema escolar entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental, no período de
1999 a 2003, para as escolas das UF’s da amostra. Na modelagem dessa probabilidade,
utilizou-se o valor “1” caso o evento tenha ocorrido e “0” caso contrário.
Covariáveis
Nível 1
a) Série: série relacionada à evasão. Foram considerados os seguintes biênios: 1999/2000;
2000/2001; 2001/2002 e 2002/200320. Observou-se se o aluno evadiu no segundo ano de cada
biênio e a série cursada no primeiro ano do biênio. Assim, a última série relacionada à evasão
foi a 7ª.
20
Considerou-se evadido o aluno que não efetuou sua matrícula na escola num determinado ano letivo entre
1999 e 2003, não retornando no(s) ano(s) seguinte(s). Como 1999 foi o ano-base, todos os alunos se
matricularam nas escolas, nesse ano. Assim, a evasão na coorte só foi verificada a partir de 2000. Como a
ocorrência do evento num ano está associada a um resultado escolar ocorrido no ano anterior (aprovação,
reprovação, afastamento por abandono), o evento foi considerado como de fluxo; daí, a construção dos biênios
para modelar a série cursada.
113
b) Trabalho: variável indicadora igual a “1” se o aluno trabalhou entre 1999 e 2002 e igual a
“0” caso contrário.
c) Aprovação: variável indicadora com valor igual a 1 se o aluno foi aprovado na série
cursada antes da ocorrência do evento e valor igual a 0, caso contrário.
Nível 2
a) Sexo: variável indicadora, assumindo os valores “1” e “0”, para mulheres e homens
respectivamente, e cuja categoria omitida é o sexo masculino.
b) Cor: foram criadas duas categorias: branca/amarela e outras (mulato, negro e indígena). A
categoria omitida, que assume o valor “0” é outras.
c) Repetência: variável indicadora que assumiu o valor “1” se o aluno repetiu alguma série
antes da 4ª e “0” caso contrário.
d) Nível socioeconômico - NSE: Foram construídos dois indicadores (método homals), a
partir da posse dos seguintes bens duráveis: rádio, televisão a cores, vídeo-cassete, geladeira,
freezer, máquina de lavar, aspirador de pó e automóvel. Além disso, considerou-se a
existência (ou não) de empregada doméstica no domicílio.
1) Ind. NSE_1: Esse indicador se destaca por mostrar uma relação positiva entre a posse de
bens duráveis/empregada e a primeira dimensão.
2) Ind. NSE_2: Esse indicador é caracterizado por apresentar uma relação forte e negativa
entre não posse dos bens básicos (rádio, tv e geladeira) e a segunda dimensão.
Nível 3
a) Estrutura básica: foram construídos dois indicadores, a partir das variáveis que indicam a
existência ou não dos itens: quadra, laboratório de informática, sala de tv/vídeo e biblioteca.
1) Ind. Estrutura_1: Indicador caracterizado por mostrar uma relação negativa entre a
existência dos itens na escola e a primeira dimensão.
2) Ind. Estrutura_2: A existência de laboratório de informática na escola é o componente de
maior poder explicativo nesse indicador.
b) Sistema de segurança: dois indicadores foram construídos a partir dos itens: existência de
vigia (turno integral), controle de entrada de estranhos e sistema de proteção contra incêndio.
1) Ind.Segurança_1: Esse indicador se caracteriza por apresentar uma relação negativa mais
forte entre a existência dos itens listados e a primeira dimensão.
2) Ind.Segurança_2: O componente de maior poder explicativo nesse indicador é a existência
de sistema de proteção contra incêndio na escola.
114
c) Escolaridade dos professores: Variável contínua referente total de professores com nível
superior no ensino fundamental, na escola.
d) Matrículas de alunos na 4ª série: Variável contínua referente total de matrículas efetivadas
4ª série (ano-base), nas escolas da amostra.
e) Matrículas de alunos promovidos da 3ª para a 4ª série: Variável contínua referente total de
matrículas de alunos promovidos da 3ª para a 4ª série (ano-base1999), nas escolas da amostra.
f) Proficiência média da escola: foi calculada a proficiência média da escola (média dos testes
padronizados de português e matemática), para os anos de 1999 a 2002. Variável contínua,
referente ano t-1, associada à ocorrência do evento no ano t.
g) Total de salas: Variável contínua referente total de salas existentes na escola.
h) Região: foram construídas variáveis indicadoras para as regiões Norte (escolas do Pará e de
Rondônia), Nordeste (escolas de Pernambuco e de Sergipe) e Centro-Oeste (escolas de Goiás
e do Mato Grosso do Sul), sendo a categoria omitida a região Nordeste.
4. Resultados e discussão
4.1 Aspectos descritivos
Entre 1999 e 2003 houve uma redução expressiva dos alunos da coorte. Na tabela
seguinte, consta o total de alunos matriculados por ano e série, além dos casos de evasão e
transferência. A idéia é mostrar o fluxo de alunos entre 1999 e 2003, explicitando os fatores
que resultaram na redução da coorte no período.
TABELA 1
Fluxo de alunos segundo matrículas, evasão e transferências, 1999 a 2003
115
SÉRIE/ANO
4ª série
5ª série
6ª série
7ª série
8ª série
Matrículas
Evadidos (não matric.)
Transferidos
Evadidos + transferidos
1999
10562
0
0
0
0
10562
2000
737
8197
0
0
0
8934
2001
72
1274
5875
0
0
7221
2002
8
268
1075
4452
0
5803
2003
0
44
245
806
3393
4488
0
1230
1230
398
1298
1696
416
1142
1558
276
1001
1277
313
1115
1428
Fonte: Ficha B – CEDEPLAR/INEP 1999/2003.
Em 1999 a coorte inicial era composta por 10.562 alunos. Em 2003 pode ser
constatado que a coorte tinha apenas 4.488 alunos. Os dados evidenciam que a redução da
coorte no período deveu-se ao grande número de casos de transferência e evasão. Verifica-se
que a maior parte das transferências aconteceu nas séries iniciais (4ª e 5ª), sendo que a
ocorrência da evasão foi mais significativa em 2001. Na TAB. 2 é apresentada a distribuição
percentual de alunos segundo a situação de evasão.
TABELA 2
Distribuição percentual de alunos, segundo a situação de evasão,
entre a 4ª e 8ª série, por UF’s, 1999 a 2003
Situação aluno / UF
não evadido
evadido aprovado
evadido reprovado
evadido por abandono
Total
PE
72,68
18,03
8,67
0,62
2412
SE
77,34
17,83
4,73
0,11
931
MS
97,71
1,53
0,66
0,10
1967
GO
92,28
5,50
1,89
0,32
1853
PA
87,26
8,76
3,85
0,13
2339
RO
95,47
3,11
1,32
0,09
1060
Total
86,71
9,19
3,83
0,27
10562
Fonte: Ficha B - CEDEPLAR/INEP 1999/2003.
Na última coluna da tabela constata-se que, do total de alunos presentes durante todo o
período, considerando-se a totalidade das escolas, aproximadamente 13% evadiram entre a 4ª
e a 8ª série do ensino fundamental. A maioria dos casos de evasão foi verificada nas escolas
das UF’s da região Nordeste. Em contrapartida, os menores percentuais de evasão foram
observados entre os alunos das escolas do Mato Grosso do Sul e de Rondônia.
De acordo com KLEIN (1995) o aluno pode evadir, no ano t+1, após aprovação,
reprovação ou afastamento por abandono na série k, no ano t. Pela tabela acima, observa-se
que o percentual de evadidos aprovados foi superior ao percentual de evadidos reprovados em
todas as UF’s. Esse resultado requer uma análise mais aprofundada sobre os determinantes da
evasão escolar. Em geral, espera-se que a maioria dos casos de evasão ocorra após a
reprovação numa determinada série, fato não observado entre os alunos da coorte analisada.
116
No GRÁF. 2 são apresentadas as séries com o maior registro de evasão, no período.
A visualização gráfica revela um padrão de evasão diferenciado nas diversas séries e UF’s.
Observa-se que o maior percentual de evasões ocorreu na 5ª série, para a totalidade dos alunos
das UF’s. O estado do Mato Grosso do Sul se destacou por apresentar a maior porcentagem de
casos, nessa série. A próxima série com o maior percentual de casos foi a 6ª. Esse percentual
foi mais significativo na região Nordeste e no estado de Rondônia.
GRÁFICO 2
Evasão por séries, segundo UF’s, 1999 a 2003
60,00
50,00
40,00
30,00
20,00
10,00
0,00
PE
4ª série
SE
5ª série
MS
GO
6ª série
PA
7ª série
RO
8ª série
Fonte: Ficha B - CEDEPLAR/INEP 1999/2003.
Os resultados dos modelos estimados são apresentados a seguir.
4.2 Probabilidades de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental
Na identificação dos determinantes da probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série
do ensino fundamental, foram consideradas variáveis de alunos fixas e variáveis no tempo
(característica típica de dados longitudinais), além das variáveis de escola. O ponto de partida
é a estimação do modelo incondicional, especificado na TAB. 3. As estimativas relacionadas
aos coeficientes intra-níveis indicam que a variabilidade entre as escolas é elevada, sendo um
pouco menor em relação à variabilidade existente entre os alunos dentro das escolas. Na TAB.
4 são apresentados os resultados para os modelos estimados.
TABELA 3
Resultado do modelo incondicional, para a probabilidade de evasão
entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental.
117
Parâmetro
Estimativa
Desvio-padrão
% variabilidade
atribuída aos níveis
* Efeito fixo
Intercepto: β1j
-3.181
0.124
* Efeitos aleatórios
Entre escolas: vij
2.117
0.267
39.15
Inter-alunos: uij
3.242
0.166
49.63
Intra-alunos: e0ij
1.000
0.000
Fonte: Elaboração própria. Fonte de dados básicos: CEDEPLAR (2005) e Censo Escolar de
1999.
TABELA 4
Modelos estimados para a probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino
fundamental, para alunos das escolas selecionadas (Ficha B), segundo a Série*.
Modelo 1
Modelo 2
Modelo 3
Modelo 4
Coef.
d.p
Coef.
d.p
Coef.
d.p
Coef.
d.p
* Efeitos fixos
Intercepto
- 0.13 -1.875* 0.169
-1.788* 0.17
- 1.395
0.980*
5
7 1.651*
4ª série
- 0.02 -0.202* 0.099
-0.266* 0.09 -0.116 0.220
2.244*
1
9
5ª série
- 0.01 -0.270* 0.106
-0.313* 0.10 -0.179 0.146
0.618*
6
7
6ª série
- 0.01 -0.642* 0.126
-0.657* 0.12
- 0.144
0.345*
5
6 0.559*
7ª série
0.000 0.00
0.000 0.000
0.000 0.00
0.000 0.000
0
0
Aprovação
-1.448* 0.078
-1.439* 0.08
- 0.086
0 1.410*
Trabalho
0.201* 0.084 0.144*** 0.08 0.165* 0.098
8
**
Cor
-0.062 0.07 -0.036 0.077
0
Sexo
-0.140** 0.06
- 0.075
9 0.149*
*
Indicador NSE_1
-0.016 0.03 -0.015 0.037
cm
5
Indicador NSE_2
-0.062** 0.02
- 0.031
cm
8 0.064*
*
Repetência antes
0.115*** 0.07
0.071 0.076
4ª
1
Ind.Segur_escola
0.108 0.122
1
Ind.Segur_
- 0.121
escola2
0.333*
Ind.
0.156 0.124
Estrut_escola1
118
Ind.
Estrut_escola2
Matrículas 4ª
série
Matríc.4ª
promov.
Professor nív.
Sup.
Qtde. salas
Norte
Centro-Oeste
Nordeste
Profic.média
escola
* Efeito
aleatório
Entre escolas: v1k
2.353
Inter-alunos: u1jk
21.187
Intra-alunos: e0ijk
0.068
0.31
6
0.31
3
0.00
1
-
2.560
0.317
2.470
0.000
0.000
0.315
0.827
0.008
0.808
0.30
8
0.16
9
0.00
9
-
0.025
0.108
0.006
0.009
-0.005
0.009
0.020*
**
0.032
1.445*
1.817*
0.000
0.007
0.012
1.310
0.195
0.000
0.000
0.905
0.009
0.027
0.303
0.302
0.022
Coef.cor entre
41.69
43.76
42.88
28.48
escolas
Coef.cor inter86.56
alunos
Fonte: Elaboração própria. Fonte de dados básicos: CEDEPLAR (2005) e Censo Escolar de
1999.
* Número de escolas (N) = 151; Número de alunos (N) = 9.671.
Importante frisar que na análise descritiva foi observado que a maioria dos casos de
evasão na coorte aconteceu após a aprovação na série anterior. Para checar esse aspecto dos
dados, foram especificados modelos controlando-se pela aprovação na série cursada no ano
letivo anterior. Assim, é possível fazer um importante diagnóstico sobre o comportamento do
evento ao longo do período.
Os modelos 1 e 2 incluem as variáveis de nível 1. No modelo 1 evidencia-se que a
probabilidade de ocorrência da evasão é menor nas séries iniciais em relação à 7ª série, apesar
do único coeficiente significativo ser o associado à 6ª série.
No modelo 2 foram incluídas as variáveis relacionadas ao aluno que variam no tempo
(aprovação e trabalho). O coeficiente da variável de controle aprovação aponta para uma
correlação forte e negativa entre aprovação e evasão. Esse comportamento está de acordo com
119
as expectativas, porém, contradiz os resultados apresentados na análise descritiva. Conforme
esperado, há uma associação positiva e significativa entre a variável trabalho e a evasão.
Os fatores associados ao aluno, que são fixos no tempo, foram acrescentados no
terceiro modelo (nível 2). Diante dessa inclusão, a principal alteração ocorrida em relação ao
modelo anterior foi a redução da significância estatística da variável trabalho. Como esperado
a priori, as meninas apresentaram uma menor probabilidade de evadir da escola, em relação
aos meninos. Caso o aluno tenha repetido alguma série antes da 4ª, maior essa probabilidade.
Apenas um dos indicadores de nível socioeconômico, o índice NSE_2, teve seu coeficiente
significativo. Esse resultado indica que alunos cujas famílias são desprovidas dos bens básicos
(rádio, tv e geladeira) apresentam uma maior probabilidade de saírem do sistema escolar.
Com a inclusão dos fatores escolares no quarto modelo (nível 3), as variáveis
anteriormente incluídas mantiveram a significância estatística, sendo que a única exceção foi
verificada para a repetência anterior à 4ª série, que tornou-se estatisticamente insignificante.
Pode ser constatado que entre os fatores diretamente relacionados às escolas, apenas o
indicador associado ao sistema de segurança existente (índice de segurança 2) e a escolaridade
do professor (nível superior) foram relevantes para explicar a probabilidade da evasão.O
componente de maior poder explicativo nesse indicador é a existência de sistema de proteção
contra incêndio. Em geral, escolas com menos recursos não são dotadas desse sistema, o que
permite inferir que a sua existência está relacionada às melhores escolas. As estimativas para
as indicadoras regionais mostram que o contexto socioeconômico da região em que a escola
está inserida influencia fortemente a decisão do aluno quanto à permanência ou não na escola.
Nesse modelo foi incluída também a proficiência média da escola, cujo coeficiente não teve
significância estatística.
Observando-se os valores da parte inferior da tabela, admite-se a existência do efeito
aleatório para o intercepto de todos os modelos, comprovado por sua significância estatística.
Portanto, há variabilidade significativa entre as escolas no que se refere à probabilidade de
evasão dos alunos. Nota-se que essa variabilidade foi reduzida no último modelo em função,
basicamente, dos fatores escolares. Deve ser ressaltado que no modelo incondicional e no
primeiro modelo estimado a parte aleatória inter-alunos era altamente expressiva. Com a
inclusão das variáveis que variam ao longo do tempo, a variabilidade atribuída a esse nível
tornou-se insignificante.
Foi testada a presença de efeito aleatório para o nível socioeconômico familiar, porém,
verificou-se que o efeito dessa variável sobre a ocorrência da evasão é o mesmo nas diferentes
escolas. Daí, manteve-se o coeficiente como tendo apenas uma parte fixa. O comportamento
120
da evasão ao longo das séries pode ser melhor visualizado no gráfico seguinte, elaborado com
base nas probabilidades estimadas.
GRÁFICO 3
Probabilidades estimadas de evasão entre a 4ª e a 8ª série, segundo a série cursada,
para os alunos das escolas da amostra (Ficha B)
18,00
16,00
14,00
12,00
10,00
8,00
6,00
4,00
2,00
7ª série
6ª série
5ª série
4ª série
0,00
Fonte: Tabela 4.
Pode ser constatado, pelo formato da curva, que a probabilidade de evasão aumenta
ligeiramente entre a 4ª e a 5ª série, decresce substancialmente na 6ª, sendo bem mais elevada
após a conclusão da 7ª série. Esse resultado pode estar sugerindo uma associação mais forte
entre evasão e mercado de trabalho, pois nas séries finais do ensino fundamental o aluno tem
uma idade relativamente mais avançada, fato que favorece sua inserção nesse mercado.
5. Considerações finais
Os dados revelaram que foi elevado o percentual de evadidos na coorte.
Diferentemente do que foi verificado para o país, em que as taxas de evasão aumentaram
gradativamente ao longo das séries, na análise descritiva foi visto que os percentuais de casos
registrados oscilaram bastante entre a 4ª e a 8ª série.
Com a estimação dos modelos pretendeu-se identificar, entre as diversas variáveis,
aquelas mais fortemente relacionadas à ocorrência da evasão. Mais especificamente,
pretendeu-se responder aos questionamentos feitos na parte inicial desse artigo. A discussão
seguinte é baseada nas respostas à tais questões.
121
Foram levantadas quatro questões. A primeira refere-se ao efeito da proficiência média
da escola sobre a ocorrência da evasão. Os resultados revelaram que o desempenho dos
colegas da escola não teve nenhum efeito sobre a ocorrência do evento para um aluno
específico.
A segunda questão está associada à influência (positiva ou negativa) das variáveis
associadas à trajetória escolar passada e contemporânea do aluno sobre a probabilidade de
ocorrência do evento. As variáveis consideradas foram a repetência antes da 4ª série e a
situação de trabalho do aluno (se ele trabalhou em algum ano letivo entre 1999 e 2002). Essa
investigação explicitou, no primeiro caso, que a trajetória escolar passada do aluno não está
dissociada da sua trajetória escolar corrente. Era de se esperar que se o aluno tivesse repetido
algum ano letivo antes da efetivação da sua matrícula na 4ª série, maior a sua probabilidade de
evadir entre a 4ª e a 8ª série, uma vez que estudos têm mostrado o impacto negativo da
repetência nas séries iniciais sobre o resultado escolar futuro. Contudo, essa expectativa não
foi confirmada. No segundo caso, foi constatada a influência negativa do trabalho sobre o
resultado escolar. Caso o aluno tenha trabalhado em algum ano letivo entre 1999 e 2002,
menor a sua probabilidade de permanência na escola, revelando a dificuldade em se conciliar
trabalho e estudo. Importante lembrar que os alunos das escolas amostradas estudavam no
turno diurno.
O terceiro ponto levantado referiu-se à importância dos fatores de background familiar
e escolares para a redução da probabilidade de evasão. Com base nos modelos estimados, é
possível afirmar que o background familiar, mensurado pelo nível socioeconômico, teve um
peso determinante sobre a evasão. Alunos cujas famílias não tinham nem os bens duráveis
básicos na sua residência estavam mais sujeitos a sair do sistema escolar. Os resultados
obtidos permitem associar esta saída à participação em atividades laborativas. Ou seja, a
situação socioeconômica da família está fortemente relacionada à evasão escolar. Foi
verificado que os fatores escolares tiveram pouco efeito sobre a ocorrência do evento. Os
dados mostraram que ainda que o aluno esteja matriculado numa boa escola, sua
probabilidade de evadir do sistema escolar é mais fortemente afetada por sua situação
socioeconômica. Esse resultado observado para a coorte confirma conclusão presente no
relatório da UNESCO (2008) sobre a evasão, para as escolas localizadas nos países em
desenvolvimento. Segundo o relatório, mesmo as escolas bem estruturadas desses países não
conseguem reter o aluno, caso ele esteja submetido a uma situação de pobreza.
122
O último questionamento referiu-se ao efeito do contexto socioeconômico regional
sobre a ocorrência da evasão no ensino fundamental. Verificou-se que o ambiente
socioeconômico da região em que a escola está inserida tem forte impacto sobre o
acontecimento do evento. A probabilidade de evasão é bem maior para os alunos matriculados
em escolas da região Nordeste, em relação às demais regiões analisadas. Mais uma vez, esse
aspecto evidenciado pelas regressões mostra que o evento ocorre com maior probabilidade
nas regiões mais pobres.
Acredita-se não ser pretensioso afirmar que este artigo contribuiu de forma efetiva
para o melhor entendimento do evento em questão, mediante o uso de dados e técnica
longitudinal. Enquanto a análise descritiva revelou que a evasão na coorte aconteceu na
maioria das vezes após a aprovação do aluno numa série, a análise de trajetória revelou que se
o aluno é aprovado a cada série sucessiva, menor sua probabilidade de evadir da escola.
Além disso, com base nos dados descritivos, poder-se-ia supor que a evasão é bem mais
elevada nas séries iniciais, entre a 4ª e a 8ª. Contudo, no acompanhamento da coorte ao longo
dos cinco anos percebeu-se que, ao se controlar pela aprovação, a tendência é que a
probabilidade do aluno evadir do sistema escolar seja maior após a conclusão da 7ª série.
Esses resultados confirmam a importância de um estudo longitudinal para os dados
educacionais.
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125
POLÍTICAS SOCIAIS, POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL: A PERSPECTIVA DOS
DIREITOS DO HOMEM E DA AÇÃO POLÍTICA.
Luci Helena Silva Martins
21
Introdução
Culpados pela ausência, por serem pobres, o debate que referenda as representações
sobre a pobreza no Brasil – tal como está colocado no imaginário local e em parte das
análises das ciências sociais e nas políticas de enfrentamento da pobreza – avalia que esses
cidadãos não participam como devem, não se organizam, são tutelados, não reivindicam,
não atuam ou exercem cidadania social, econômica ou política, além de estarem privados
de uma rica vida cultural, ainda que não raro sejam os que mais autênticos a produzam.
O círculo vicioso onde o pobre é colocado, como parte de um imaginário que
despoja a pobreza da dimensão da ética e da justiça (TELLES, 1992), é alimentado pelos
políticos profissionais que utilizam deste cenário como bandeira para as próximas
candidaturas e reeleições. É um círculo vicioso fundado na desigualdade econômica, na
massificação cultural e na sub-cidadania social e política, cuja origem, causas e
conseqüências remontam ao projeto da modernidade que, no Brasil, enraizou-se desde os
tempos coloniais.
E a culpa, já se ouviu, é porque não temos povo. Há uma tendência a relacionar
democracia e cultura política: o Brasil não seria suficientemente democrático porque não
tem povo. O que nunca teve é considerado culpado pela ausência, como se o Estado não
tivesse responsabilidade nesse cenário, ao ser eficiente no propósito de apartar
21
Professora do Departamento de Política e Ciências Sociais da Unimontes, do curso de Serviço Social e
PPGDS. Coordenadora do Observatório Social: Cidadania e Direitos Humanos e do Laboratório de Tecnologias
Sociais e de Metodologias de Redes (FAPEMIG)
126
coletividades das instâncias deliberativas.
A questão, nesta pesquisa, esteve, portanto, assim equacionada. Teoricamente ou
cientificamente os conceitos ou tipologias nem sempre respondem ou coincidem com a
realidade histórica local. Em termos históricos e políticos, as instituições “propriamente
políticas” tutelaram a pobreza e dizem-se condicionadas por determinismos estruturais,
inibidas que estão na sua capacidade de ação política, sendo esta a posição a assolar,
também, as ciências sociais e as entidades representativas das coletividades, como os
sindicatos, partidos ou instituições públicas.
Afora as minorias, e de raros sujeitos políticos ativos no campo da ética, presentes
nos partidos, sindicatos e associações profissionais, integrados à rede movimentalista da
sociedade civil, formada por iniciativas plurais, a grande maioria dos partidos e sindicatos
burocratizou-se, atuando sem projetos de reformas estruturais ou alternativas políticas para
o conjunto social. As greves são raro instrumento de luta social ou organização política, e
não se questiona mais, nos espaços públicos em cena, a hierarquia social, as diferenças
salariais, a subordinação dos trabalhadores manuais, homens e mulheres, ao trabalho e ao
emprego, o que demonstra uma insensibilidade moral neutralizada, i.e, faltam recursos
éticos, na sociedade industrial. A idéia de que o trabalho dignifica, qualquer trabalho,
neutraliza questionar as diferenças, o salário mínimo, as desvantagens, e os locais em que
cada qual está disposto na hierarquia social.
Todo esse quadro Hannah Arendt (1983, p. 13) já sugeria quando falava das
contradições de uma “sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única
atividade que lhes resta”. Na sociedade moderna e funcional a luta pelo trabalho e não
contra o trabalho tornou-se a alternativa proposta pelos teóricos em geral, e pelos líderes
políticos e sindicais, o que no limite legitima a sobrevivência pautada na luta pelo trabalho,
regra que permite a manutenção da sociedade capitalista, da livre concorrência do mercado
127
e seus laços sistêmicos com o estado burocrático e patrimonialista.
Os pobres, indigentes ou miseráveis, fazem parte desse quadro como o aglomerado
dos sem-teto, sem-terra, sem títulos para governar, sem escolaridade, oportunidades, lazer,
saúde ou trabalho. São a parcela-dos-sem-parcela, como os identifica o filósofo Jacques
Rancière (1996), apartados do poder da fala, do dissenso e da política.
No Brasil, a questão da pobreza também se liga à discriminação racial. Dados
regularmente divulgados pelo IBGE e IPEA mostram que a pobreza brasileira é
majoritariamente negra. Junto de brancos pobres, os afro-descendentes ocupam os lugares
mais discriminados pela sociedade e as estatísticas os identificam nos presídios, nas
chacinas de indigentes das grandes cidades, nas famílias chefiadas por mulheres, negras,
pardas ou brancas pobres, nas filas dos serviços sociais públicos ou de desempregados.
Esses sujeitos negados estariam presos ao mundo da necessidade, incapazes que são de
ação política, quando, desempregados ou em situação de risco, necessariamente voltam-se
para a busca da sobrevivência, transformados que estão em homo laborans. Ainda assim,
como sugere H. Arendt, são tênues (e obscuros) os limites entre a necessidade e a
liberdade. Muitos desses sujeitos negados, vivendo nesse limite entre privação, miséria e
indigência, conseguem se erguer como sujeitos políticos, organizando formas de poder
alternativo, por meio de centros comunitários e de projetos associativos ou voluntários,
solidários entre si, auto-organizando a si e aos seus, superando inclusive divisões,
nacionalidades e identidades.
Nesse artigo sugerimos que o que nos preocupa não são os pobres, e sim o fato de
que os pobres não sairão da pobreza, enquanto nossos países forem tão injustos. O justo
não é deixar que pobres, negros, índios ou mulheres resolvam sozinhos os problemas
criados por uma cultura política autoritária e problemática. Isso seria o individualismo em
estado puro e se, nessa pesquisa, relativizamos o método marxista, como adiante
128
explicaremos os motivos, tampouco validamos o individualismo no sentido neoliberal do
termo.
Ação Política, Neoliberalismo e (In) Justiça Social
Confluindo com processos de democratização, o neoliberalismo é força negativa e
violenta que impede as conquistas sociais, duramente conquistadas em países dependentes.
Construído como ideologia a ser principalmente exercida em países em desenvolvimento ou
dependentes, o neoliberalismo permite que os países centrais continuem exercendo
protecionismo de seus mercados, como se estivem em condições de igualdade num presente
em que não se reconhece os danos causados por imperialismo, colonialismo e
neocolonialismo. Processos muito atuais permitem que alianças entre potências estrangeiras,
multinacionais e governos locais explorem as riquezas naturais dos povos e países pobres,
expulsando “os pobres” de suas regiões, colocando-os em situação de risco, exclusão, guerra
civil, vulnerabilidade e pobreza extrema.
Mundialmente enfraquecendo as lutas sindicais e as conquistas sociais, o
neoliberalismo quis se legitimar como mundialmente superior ao estado interventor.
Acentuando as desigualdades sociais, nos anos 90, há uma revisão do estado neoliberal e a
proposta de uma terceira via, nem interventora, nem neoliberal, “melhor”, dirão seus
defensores, do que as duas formas anteriores, ora keynesiana, ora neoliberal. Tudo isso dentro
da forma democrática de governo. O que está em jogo são disputas por significados. Quem
deve garantir direitos e cidadania? A resposta preferencial do Estado e da sociedade: em geral,
o trabalho. A política ou as políticas sociais perdem lugar em detrimento da economia e do
mercado.
129
De acordo com H. Arendt, com o advento da modernidade, espaços públicos e espaços
privados passaram a constituir o social, e a dimensão do social inferiorizou a política, inibindo
também a reflexividade. A autora demonstra que o espaço público e o espaço privado estão na
origem da constituição do social e ambos protegem dimensões importantes da condição
humana. Diz a autora que o advento do cristianismo, e a ascensão da república romana,
engoliram a política e permitiram a ascensão do social, na sua dimensão privada. Quando o
homem político grego é traduzido para o latino homem social, restou a submissão, a
subordinação do mesmo diante da unidade do templo cristão.
Há um momento histórico em que essa experiência generalizada do UM leva ao
totalitarismo, experiência sem precedentes na história da humanidade, atualizada agora como
“totalitarismo neoliberal” (OLIVEIRA, 1999). A violência e a ausência de reflexividade
resultaram no sentimento e no dever da Unidade, e na sentença de não pertencimento, de não
reconhecimento ao outro do direito à existência.
Hannah Arendt (1983,1993) explica que quando o homem político grego foi traduzido
para o homem social no idioma latino, adveio com isso a ascensão do social sobre o político.
O social uniformizou a todos, e impôs a submissão do homem político ao indivíduo em face
com Deus, subordinado ao templo, símbolo da unidade cristã. O cidadão já não é mais
chamado para participar da elaboração da Lei, no contexto da pólis grega ou do que dela
poderia evoluir. A ética cristã difere da ética grega no sentido de que a primeira abrange o
conhecimento e atuação sobre a vida pública, e a segunda faz o indivíduo voltar-se para
dentro de si, para se ver com Deus. Essa passagem subordina a política à unidade do social e à
autoridade do templo cristão, sendo que a pólis perde a dimensão simbólica da democracia.
130
Louis Dumont (1985) faz uma bela reconstrução da gênese do individualismo
moderno e explica que o individualismo opera uma revolução no indivíduo-fora-domundo para o indivíduo-no-mundo. São séculos de espera para esse indivíduo encarnarse na história, participando dos processos de construção do presente e futuro. Contudo,
o mesmo individualismo permite a superexposição do ego, com a dimensão privada se
impondo ao social, e o espaço público também é tomado pelo personalismo e
individualismo.
De acordo com Max Weber, a ética cristã, protestante, conflui com a do trabalho
e impulsiona o individualismo cristão e o capitalismo. Com isso, novamente a
superexposição do ego, a vitória dos capacitados, escolhidos pelo dedo de Deus.
Segundo H. Arendt (1983), a ação política é o que diferencia os homens dos
animais. Implica na liberdade, no diálogo, no pluralismo e na interação entre os homens.
Para essa autora, a política é um dos princípios da democracia. Um país
autoritário/totalitário pode matar a fome, permitir acesso à educação e a outros direitos
civis, o que permite pensar que todos os direitos podem ser concedidos de cima para
baixo, menos o direito político, de ação política. Esse direito supõe contrapor-se ao
Estado, limitando-o, controlando-o e dirigindo-o, no sentido de determinar os gastos e
investimentos públicos.
131
O Estado moderno, como sabemos, ocupa o lugar da pólis grega e da unidade do
templo cristão. Revolução do sujeito, não impede uma superioridade da burocracia estatal.
Argumentando sobre as vantagens da mão invisível do mercado, o estado moderno nasce
liberal, e assim o é, em geral, mas observadas as particularidades de cada país, até meados
da crise de 29. O estado interventor (Vargas no Brasil) interpela o modelo liberal, e o
modifica, estabelecendo uma aliança entre capital e trabalho de forma que se organize a
acumulação capitalista. Sustenta-se assim até meados de 1970, momento de formação e
consolidação do capitalismo global. Essa ascensão do estado moderno permitiu ao mesmo
tempo, a concentração de meios de controle da opinião pública e dos significados que
permitiriam estabilizar o capitalismo e a centralidade do trabalho.
É sabido que as ciências sociais surgem para dar explicações e proporem
metodologias concretas para o desenvolvimento dos sistemas sociais e políticos. A teoria
crítica como modelo de investigação sugere atenção para os significados em disputa nos
tempos de globalização. Participando desta disputa, nossos autores sugerem que a ação
política está intimamente ligada à defesa dos direitos humanos. A ação instrumental do
Estado, visando poder e lucro, não é necessariamente a política desejada. Sendo assim,
importa reconhecer que a política não é exclusiva do Estado: é anterior a ele e está
disseminada na sociedade, desde que democrática. A relação estado e sociedade supõe,
portanto, reconhecer que a sociedade não é una, deve-se superar a ilusão da unidade, que
dissolveria nela as diferenças, a pluralidade, a fragmentação e a heterogeneidade dos
processos de socialização e igualmente o reconhecimento mútuo de direitos, e do direito a
ter direitos (LEFORT, 1987, p. 68).
132
A ação, por sua vez, está disseminada aonde quer que se defendam os direitos, de
ir e vir, de morar, de viver sua sexualidade em liberdade, de opinar, de ler, de imprimir,
de exercer a profissão, sobre o próprio corpo, de ter oportunidades de educação, saúde,
acesso ao mercado de trabalho, à terra, a um meio ambiente saudável, aos MCM, aos
espaços de organização política, como associações autônomas, sindicatos e partidos.
O que está em jogo, contudo, na democracia são disputas por significados que
possam garantir o controle sobre o social, em detrimento de outros que questionem o
ordenamento social e o lugar ocupado por cada qual nesse sistema injusto. Em geral, as
disputas são por poder, que envolvem recursos, ora de interpretação, ora naturais ou
financeiros, por vezes, não renováveis e escassos.
È notável que os espaços públicos comportam essa disputa por significados.
Quem os impõe geralmente ocupa o lugar vazio do poder democrático: o Estado ou a
mídia. Esses atores definem a forma democrática permissível à sociedade
contemporânea. Alguns significados se impõem a outros, a depender da qualidade da
representação política e do controle social exercido pela vontade popular, por meio da
opinião pública.
Já o neoliberalismo foi construído como ideologia a ser, principalmente, exercida
em países dependentes, pois os países centrais continuam exercendo protecionismo de
seus mercados, e nesse debate, pouco se fala da responsabilidade dos países ricos sobre
as tragédias que se abatem sobre os países e povos em histórica desvantagem. A culpa é
sempre do perdedor e do mais fraco, como se essa fraqueza não fosse resultado da força
do outro. O problema também se dá pela interiorização da culpa pelos povos oprimidos
que, de tão massificados, passam a acreditar que têm menos, que podem menos, que
foram feitos para sofrer.
133
O que está em jogo são disputas por significados. O estado policial e a ética do
trabalho em geral são as respostas para os problemas sociais.
O reconhecimento de que não há trabalho para todos, levou alguns estados
modernos a administrar políticas de bem-estar social, uma delas, a RMI, Renda Mínima de
Inserção, política francesa que desvincula salário e cidadania.
A atualidade da crise política tenciona a centralidade do Estado e do Trabalho,
enquanto pólos reguladores da sociedade. Há com o neoliberalismo, o retorno à
centralidade do mercado, como pólo regulatório, sendo que o Estado abdica do papel de
interventor. Por outro lado, a dinâmica da acumulação capitalista enfraquece estados
nações, acirrando os conflitos internos e a generalização da violência, acentuando o que
Arendt chama de “banalidade do mal”. Tudo isso levam à crise do estado democrático de
direito.
Os teóricos da sociedade e da política passam a construir modelos de democracia
abertos à evolução dos valores éticos. Significados como democracia deliberativa propõem
a radicalização da política, por meio de fóruns, assembléias, OPs, conselhos, contudo, esses
significados circulam tanto na fala dos movimentos sociais, quanto na fala de técnicos do
FMI, que não obstante suas medidas autoritárias, citam esses mesmos teóricos da esquerda
democrática.
Os direitos sociais
134
Alguns teóricos da política ressaltam a importância da Revolução Democrática
operada na consciência dos homens e na estruturação da lei, provocada pelas
Declarações dos Direitos do Homem. (Lefort, 1987, 51-55). Lefort critica Marx por não
perceber que a Revolução burguesa (democrática) instaurou um novo princípio ao
contrapor ao poder do Estado, um limite, o dos direitos. Marx considerava-os simples
mostra do individualismo burguês. O Estado de Direito, de acordo com Lefort (1987, p.
56) “sempre implicou uma possibilidade de oposição ao poder”, contraponto histórico
ao Direito do Estado.
A Concepção de Direitos. Para nossos autores, direitos são a linguagem que
organiza o social. A gramática que nos liga ao Outro. (...) “são também uma forma de
dizer de mundo, de formalizar suas experiências e o jogo das relações humanas”
(TELLES, 1998, p. 45). Nesse sentido, sugere Vera Telles: “A palavra que diz o direito e
se pronuncia sobre a ordem do mundo pode ou está sendo reinventada e reelaborada” .
Direitos são históricos e devem ser compreendidos a partir da palavra que os
pronuncia. Dependem da dimensão ética alcançada pela sociedade. São um dos
princípios geradores da democracia, o fundamento político do sistema. (LEFORT, 1987,
p. 57). Não se dissociam da consciência dos direitos, de sua institucionalização, e da luta
para garanti-los.
Mas, quais os limites dos Direitos do Homem? Do que dependem? Nossos autores
sugerem que os direitos dependem da consciência dos direitos e de sua institucionalização.
(LEFORT, 1987, p. 57). Não dependem somente do Estado, mas da palavra que os
pronuncia, dos sujeitos que os defendem. (ARENDT, 1993) Do reconhecimento público da
alteridade (direitos à igualdade e à diferença). Do respeito à privacidade e a liberdade de
escolha e de interpretação.
135
Os direitos necessitam do espaço público para obterem reconhecimento. Por isso
as chamadas minorias (são poucos os que de fato se organizam, expressando a
consciência dos direitos), os negros, os trabalhadores, os sem terra, as mulheres, os
indígenas, homossexuais e ambientalistas expõem demandas generalizadas, vão ao
público para denunciar um dano e serem reconhecidos pela lei e pela sociedade. Não
basta a lei, os direitos devem ser instituídos como uma forma de reconhecer aos homens
a justiça, a igualdade no acesso aos bens necessários para a vida, e ao respeito à
igualdade e à diferença no âmbito do social.
Queremos chamar a atenção para a pobreza, diferença vista como natureza, do
mesmo nível que a diferença entre brancos e negros, ou entre homem e mulher. O
argumento é que sempre teve pobres. O que justifica pensar nisso como uma injustiça
social?
Há uma via de interpretação que relaciona o espaço público e espaço privado com a
constituição do social. Em países injustos não há essa diferenciação entre público e
privado. A lógica do privado invadiu o espaço publico. Por exemplo, a família, durante
séculos, foi considerada espaço privado, movido pela lógica despótica (o déspota era o pai).
No Brasil, o privatismo da família foi levado ao âmbito público, o poder foi dividido entre
as famílias de proprietários: negros e mulheres em geral não acessaram o poder público,
mas mulheres e mesmo crianças proprietárias de escravos exerciam seu poder, sob forma
de maldade, no âmbito privado. Os escravos conseguiram fazer uma abstração teórica e
recorreram ao Estado (a Lei) para se proteger contra o arbítrio dos donos. (CHALHOUB,
2002)
136
A questão do Estado, portanto, é posterior a política. A cidadania desde os gregos se
define pela participação do cidadão na forma de governo, mas a política vem antes da lei. A
forma democrática é, por sua vez, a única que aceita a existência dos conflitos, lutas e
demandas heterogêneas da sociedade. Na democracia, o lugar do soberano está sempre
vazio, por natureza.
A construção democrática é, portanto, a única que supõe a legitimidade dos conflitos
sociais, por não submetê-los a vontade única de um estado ditatorial, ou de um mercado
totalitário, cuja regra é transformar cidadãos em consumidores ou em restos humanos, sem
comida ou água potável, vivendo de dejetos ou em condições de insalubridade. Regime do
consenso e do dissenso, em si conflituoso, a democracia vem perdendo para o mercado
capitalista. O mercado impõe diretrizes que impedem a construção democrática. Para
Francisco de Oliveira (1999), com o neoliberalismo, há uma colonização do espaço público,
descrito como “totalitarismo neoliberal”. Essa colonização age pela destituição da fala, pela
anulação da política, pela neutralização das diferenças e da injustiça social.
Conclusões
137
Parece impossível pensar numa sociedade complexa sem mercado e estado.
Contudo, a dificuldade está em relacionar liberdade de mercado e direitos humanos. O
desafio está em relacionar Estado, cidadania e pluralismo. Quem tensiona essa
discussão, ponto norteador da teoria política tanto antiga quanto contemporânea, são os
atores da sociedade civil que, a partir dos anos 60, manifestaram-se contra os regimes
autoritários e/ou totalitários, iniciando o renascimento das lutas sociais e a resistência
dos movimentos sociais diante das experiências de autoritarismo, totalitarismo e
ditadura tanto na Europa (Polônia, França, Praga) quanto na América do Sul.
Cohen e Arato, discípulos de Habermas, e Leonardo Avritzer (2000, 1994), no
Brasil, atualizam esse debate em torno do conceito de sociedade civil, para dar conta de
experiências históricas que possibilitariam articular o ideal das esquerdas, ao integrar os
movimentos sociais, as ações autogestionárias, como formas de ação direta, ao status de
ação política legítima, ainda que estas não alcancem poder deliberativo, ou decisório −
status almejado por aqueles teóricos.
Importante ressaltar que os autores dessa vertente viram nos anos 80 e 90, a
possibilidade de elevar o ideal da esquerda, reescrevendo a teoria social a partir da
integração dos acontecimentos históricos do século XX, pondo à prova a teoria
considerada guia e norte da esquerda de vanguarda, marxista. Há um reconhecimento
explícito de que o ideal da revolução foi solapado pelas experiências do socialismo real,
denominado por H. Arendt de sistema totalitário. Somente com a reinvenção do espaço
público, com a inclusão de atores plurais e heterogêneos, poderemos unir novamente o
ideal das esquerdas, e retomar utopias de solidariedade entre os povos, superando
modelos que aceitem o autoritarismo social, a violência generalizada, a apropriação do
público, a pobreza naturalizada.
138
São desafios que nos obrigam a trazer de volta o ideal da república, que só
poderá ser democrática (BIGNOTTO, 2000).
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TELLES, V. Cidadania inexistente: incivilidade e trabalho.SãoPaulo: USP, Tese de
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POBREZA, POLÍTICA E DISCURSO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER
EPISTÊMICO DOS POBRES
140
ANELITO DE OLIVEIRA
PPGDS/UNIMONTES
“Vidas que são como se não tivessem
existido, vidas que só sobrevivem do
choque com um poder que não quis senão
aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las”.
Michel Foucault, 1977
1.
Antes de mais nada, até mesmo para fazer jus ao tema desta comunicação, gostaria de situar
meu próprio discurso, colaborando, na medida do possível, para uma recepção adequada ao
problema que enuncia. Trata-se de um discurso fomentado no espaço das ciências humanas,
mas não no seu centro. Fomentado na sua periferia, que é também o seu limite, ali onde a
“epistème” que orienta esse espaço entra em crise. Não é um discurso totalmente das ciências
humanas, de acordo com a classificação das agências públicas encarregadas de regular a
pesquisa no Brasil, mas um discurso que emerge de um campo anexado às ciências humanas,
um território, um fragmento de espaço, que, para muitos, figura como um adereço das
ciências humanas, uma “mais valia” humana, digamos. Emerge, esse discurso, do campo das
letras. Todavia, situar este discurso nesse campo, embora denuncie já sua difícil situação
científica, não é suficiente para quem o pronuncia na pós-Modernidade, como sintoma
assumido de esgotamento do projeto discursivo da Modernidade. No indiano Homi Bhabha
(1998) e no brasileiro Silviano Santiago (1978), ambos marcados pela experiência da
141
“estrangeiridade”, põe-se em relevo a complexidade dessa situação, que se traduz,
objetivamente, na invenção de novos conceitos, capazes de alargar o campo das letras, como o
de “interstício” e o de “entrelugar”, que anunciam um modo no mínimo instigante de
compreensão, respectivamente, da relação com a tradição colonialista e da condição
sociocultural latino-americana. São autores ligados às letras, como se sabe, formados pelas
letras, mas o que produzem não pode ser enquadrado nesse campo apenas, não pode ser
reduzido a uma disciplina. Tampouco pode ser enquadrado tranqüilamente noutro campo
abrangido pelas ciências humanas e sociais: a filosofia, a história, a sociologia etc. Trata-se de
uma produção que extravasa, ao mesmo tempo, o campo natural dos seus autores e os campos
afins. Por si só, essa produção acusa, inicialmente, uma discórdia interior, há muito colocada
na área de letras, informa-nos que o objeto desse campo não são apenas as literaturas e as
línguas ou as literaturas como literaturas e as línguas como as línguas, enquanto dimensões
fechadas em si mesmas. Dessa forma, informa-nos, essa produção, que literaturas e línguas
constituem, para esses autores, mais algo como um “objeto aqui”, aquilo que Lacan entendia
por “símbolo”, o que deve ser submetido à análise objetiva.
Aos olhos de um “letrólogo”, como se poderia chamar, de modo brincante, o estudioso das
letras, o que se apresenta a cada passo ou simultaneamente – e solicita problematização – tem
um aspecto triádico: é código, mímesis e estilo. Ou seja: é uma língua, um artefato literário ou
um artefato estético, dimensões que se definem a partir de um critério social, não pessoal.
Uma língua é um código fertilizado e consolidado por uma comunidade; um texto literário é
uma representação, uma mimetização, uma imitação, de tipos e ações que se encontram num
determinado tempo e lugar, uma “suprassunção”, lembrando o termo de Kant, uma elevação,
tornada possível, animada, por aquilo que constitui seu fundamento social; uma arte – teatral,
pictórica, musical, fílmica etc – consiste na estilização daquilo que é experienciado numa
determinada
coletividade,
às
vezes
pela
coletividade
também,
consciente
ou
142
inconscientemente, mas, de todo modo, sempre em relação com uma coletividade. A este fato
se deve o encanto provocado em multidões, ontem como hoje, tanto pelo teatro de um
Shakespeare quanto pelo artesanato do Jequitinhonha. A arte – nunca é demais recordar,
porque tanto se esquece – é um instante de singularização de uma experiência que não
pertence apenas a um indivíduo, a um artista, mas a toda uma comunidade, a um grupo de
indivíduos que compartilham visões comuns sobre a “vie quotidienne”, recorrendo aqui ao
conceito de Henri Lefebvre tão produtivo na análise empreendida pela americana Kristin
Ross num livro que elucida, de maneira surpreendente, a relação entre literatura e sociedade
na Comuna de Paris, na França dos idos de 1870. A arte enuncia, portanto, algo que pertence
a um grupo de indivíduos que se identificam com determinados modos de viver, praticam
determinados ritos, cultivam determinados costumes, existem segundo algumas verdades
comuns. Estas especificações justificam a demarcação de espaço, pelas agências de pesquisa,
no campo das letras, uma divisão do que, para os observadores em geral, seria a mesma coisa,
passível de ser operacionalizada cientificamente por qualquer especialista em lingüística,
literatura ou artes. Todavia, para Capes e CNPq, por exemplo, a pesquisa sobre línguas cabe
ao lingüista e a pesquisa sobre literaturas e artes cabe aos titulados nessas áreas, o que acabou
resultando numa fértil interdisciplinaridade, num intercâmbio entre pesquisadores das duas
áreas. Na margem das ciências humanas e das letras, onde se encontram, distingue-os o malestar na ciência, especialmente em face da vontade de verdade socrática de que ainda se
reveste a idéia de ciência até nas humanidades em crise.
2.
143
Que a ciência, um discurso da certeza, é necessária, não há dúvida, mas é igualmente
necessária uma ciência da ciência, um discurso sobre o processo de conhecer que culminou no
conhecimento que se nos apresenta como científico na sociedade contemporânea. É o que
transparece em trabalhos fertilizados às margens das ciências humanas, diretamente devotados
à teoria do conhecimento, como os de Derrida, de Boaventura de Sousa Santos, Terry
Eagleton e Milton Santos. Elejo, como ponto de partida para estas considerações sobre uma
relação que me parece altamente inquietante neste novo século – a relação entre pobreza,
política e discurso –, um autor seminal, a quem devemos – inclusive vários dos aqui citados –
uma insubordinação fundamental ao poder da ciência, à ciência enquanto exercício de poder,
uma atitude anticientificizante. Essa atitude mostra, sobretudo, que o científico não é
cientificizante, no sentido de que não constitui uma cega apologia da ciência, tampouco, claro,
do objeto que procura compreender. Refiro-me a Michel Foucault (2006: 203-222). Num
ensaio de 1977, “La vie des hommes infâmes” [“A vida dos homens infames”], Foucault se
empenha em trazer à lume algumas vidas que foram alijadas da sociedade francesa em seu
tempo, meados dos séculos XVII e XVIII. Vidas consideradas nocivas ao “corpus” social,
portadoras de “enfermidades” que poderiam “contaminar” a todos e, no limite, arruinar a
sociedade. Entre essas “enfermidades”, encontra-se a agiotagem, implicando o logro
financeiro: um indivíduo porta um mal que consiste em cobrar caro pelo dinheiro que vende,
com todos os “ingredientes” de pressão inerentes, de certa forma, às relações capitalistas. Não
pode, em função disso, viver em sociedade, e, por conseguinte, a ciência, digo: o discurso
produzido na academia naquele contexto, não dá notícia sobre esse indivíduo, silencia-se
sobre sua existência. Ao fazê-lo, esse discurso denuncia sua posição política conservadora,
comprometida com a ordem social estabelecida, comprometida com o modo como se exerce o
poder nessa ordem.
144
O limite desse discurso, o ponto em que ele esbarra, é já, portanto, sua política, cuja feição
autoritária entra em contradição, obviamente, com o senso crítico que constituiria o
fundamento da racionalidade moderna. Como se sabe, a criticidade a toda prova seria, de
acordo com uma das fontes do pensamento filosófico moderno – as “Meditationes” de René
Descartes (1991: 155-224) – um atestado de esforço de neutralidade do sujeito cognoscente.
O silêncio sobre os “infames” diz que, para a ciência daquele tempo e lugar, não era mais a
verdade que estava em questão, mas exatamente a suspensão da verdade em favor da
conveniência, estratégia peculiar à política, questão cara a Hannah Arendt. E é à medida que é
a política vem ao caso, que é de política que se trata, que o poder se apresenta como fim. Aos
olhos de Foucault, de fato, a penalização dos homens que nada valiam, consistindo antes de
mais nada em proclamar sua invalidade, fundamento de sua exclusão, relacionava-se,
sobretudo, com o poder. O que diziam, seu discurso, afrontava o poder, eram infâmias contra
o poder instituído na esfera pública, regulador dos micropoderes que performavam aquela
sociedade. Não diziam, seu discurso, não era, portanto, qualquer coisa, uma gratuidade, algo
desprovido de “logos”. Não é qualquer coisa, obviamente, que desconcerta o poder, mas
especialmente aquilo que constitui um saber, que porta uma determinada ordem de idéias, que
configura um “logos”, um discurso. Assim o é porque, ainda pensando na esteira de Foucault
(2000), estamos numa sociedade de discurso, porque a sociedade moderna é uma sociedade de
discurso, estruturada pelo discurso.
Nessa sociedade, o discurso é uma senha de acesso a todos os lugares, especialmente aqueles
mais privilegiados economicamente, de tal forma que os sem-discurso estão automaticamente
excluídos, impedidos de acessar aquilo que lhes seria, aprioristicamente, de direito,
constituindo, portanto, aquela comunidade dos “sem parcela” que Jacques Rancière entende
como a comunidade fadada a fazer política, a forçar uma divisão mais justa dos bens sociais.
Mas, por outro lado, nada significa que os com-discurso estejam automaticamente incluídos
porque os discursos, numa mesma sociedade, não têm, claro, o mesmo valor, uns valem mais
que outros. Tal valor se define pelo grau de verdade, considerada em relação à ordem social:
certos discursos são considerados mais verdadeiros que outros porque estão de acordo com a
ordem social vigente. São fiéis a essa ordem no que diz respeito, precisamente, à atenção
àquilo que Foucault considera como uma das condições de possibilidade do discurso: a
interdição, o silêncio sobre certas dimensões da realidade. Calam sobre aquilo que essa ordem
cala, comportam-se, portanto, de maneira que convém a essa ordem. Aqueles que se
comportam de maneira inconveniente, falando o que não convém à ordem social estabelecida,
145
são automaticamente desvalorizados, estigmatizados como pouco verdadeiros ou mesmo
mentirosos, infames. Daí o paradoxo: ter discurso, ter “logos”, não significa ter lugar, estar
incluído, numa sociedade do discurso como a brasileira, nem ontem nem hoje.
Avermelhados, escravizados, bestializados, trabalhadores, descamisados, bolsistas – são
algumas das designações da coletividade pobre ao longo da história do país. E não há dúvida
que, dos primeiros índios avistados por Caminha (1977: 88) – “afeiçam deles he seerem
pardos maneira dauermelhados” – aos beneficiários das bolsas do Governo Lula, o Brasil
avançou no sentido de superar a pobreza material incongruente com sua enorme riqueza
natural. Pobreza que, como já está bastante claro, nunca foi resultante do modo de vida da
maioria dos brasileiros, limitados que são no que diz respeito à exploração do seu meio
ambiente, mas exclusivamente do modo injusto de gerir, pelas elites socioeconômicas, toda a
gama de recursos naturais com que o país foi agraciado. Como conseqüência direta dessa
injustiça, destaca-se a má distribuição da renda oriunda desses recursos, de tal forma que
aqueles que produziam e produzem nunca foram – e continuam não sendo – devidamente
recompensados, chegando mesmo a ser impossibilitados de comer um pouco do que plantam.
A permanência dessa injustiça é que torna mais prudente dizer que o país avançou no sentido
de superar a pobreza do que dizer, de modo entusiasmado, que o país já superou a pobreza
material. Como se sabe, ainda são cerca de 50 milhões de brasileiros sobrevivendo na pobreza
material, e, a exemplo de todas as outras épocas na história do país, não se trata de uma massa
inerte, mas de uma força oculta que abala a superfície republicana, afigurando-se-lhe uma
espécie de trauma. De fato, a pobreza material brasileira é, fundamentalmente, a contraparte
da República estabelecida em 1889, um problema aguçado pela abolição “pro forma” da
escravatura e para o qual os idealistas republicanos não deram uma solução, deixando-a a
cargo do porvir.
146
3.
Discurso fundamentado no liberalismo, em termos políticos, e no positivismo, em termos
filosóficos, é, até certo ponto, óbvio que o republicanismo daquele fim de século XIX não se
inquietasse seriamente com a pobreza material, dando-lhe um estatuto de antagonismo social
insuportável com os supostos novos tempos, num país pós-monarquista. Inquietar-se com essa
pobreza, com a indigência dos ex-escravos exposta pelas ruas de cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo, com tanta gente sobrevivendo em condições subumanas, significaria aceitar que
as idéias realmente estavam “fora do lugar”, conforme a célebre expressão de Roberto
Schwarz, crítico de literatura que, imbuído de referenciais sociológicos e estéticos, logrou
excelentes resultados ao analisar o período a partir da obra de Machado de Assis. Significaria,
no mínimo, relativizar a primazia absolutizante das idéias em face da realidade social e, por
conseguinte, o reconhecimento do teor complexo dessa realidade, uma complexidade que
tinha no seu âmago, como seu motor, a conversão de coisas em pessoas, de objetos em
sujeitos, como se pode entender a passagem da condição de escravo para liberto. Operar essa
complexidade exigiria, claro, um esquema teórico rigoroso capaz de, na hermenêutica da
realidade, ir muito além das simplificações do positivismo e do liberalismo, compreendendo
não os efeitos dos efeitos, mas as causas dos efeitos e os efeitos das causas, o que implicaria,
necessariamente, uma ultrapassagem da ordem do visível, da superfície em que se estrutura o
discurso republicano. Ultrapassando essa ordem, o discurso republicano encontraria a pobreza
material, sua contraparte, aquilo que, pensando em Freud, pode-se tratar como “recalcado”.
De fins do século XIX para cá, não tem sido poucos os esforços para trazer à tona a pobreza
material para o centro do “logos” que ordena a dinâmica social brasileira, para o centro do
discurso que modula as ações dos diversos sujeitos, para o interior, pode-se dizer ainda, da
máquina de produção da racionalidade cotidiana. Tiveram lugar, esses esforços, e continuam
147
tendo, nas letras, na sociologia, na história, na antropologia etc e, mais importante que elencar
seus responsáveis, é tentar compreender por que a pobreza material, sob a qual se encontra
parte tão expressiva da população, ainda é algo deslocado nesse “logos” ordenador do social,
não totalmente abarcado por esse “logos”. Deslocado no sentido de que não atua, de modo
decisivo, na conformação desse “logos”. Natural seria, em face desses esforços, que esse
“logos”, ecoado pelo Estado brasileiro através de suas políticas públicas, não tratasse a
pobreza material como um corpo estranho, como algo a ser extirpado em nome do
desenvolvimento social, mas como parte integrante do seu “corpus”. Com esse tratamento, o
“logos” oficial revela, sobretudo, que não assimilou devidamente as contribuições de um
Joaquim Nabuco, um Euclides da Cunha, um Gilberto Freyre e um Josué de Castro, nas quais
é evidente o “poder simbólico”, para usar o conceito de Bourdieu, dos pobres. Tal poder
consiste numa riqueza imaterial, contraponto contundente à pobreza material, que o “logos”
oficial resiste em reconhecer como algo legítimo, uma racionalidade outra, mas igualmente
racional.
Esse reconhecimento significaria, em primeiro lugar, uma confirmação, pelo Estado, de uma
verdade estarrecedora, sempre evitada: a da existência de dois países no Brasil, um real,
cultivado por pessoas – pobres, em sua maioria - e outro oficial, ostentado pelo discurso de
alguns – ricos, em sua maioria. Assim, em nome de uma unidade meramente discursiva, o
Estado opta, historicamente, por continuar operando com as simplificações teórico-políticas
que embasaram a instauração da República no país. A reversão desse processo é fundamental
à medida que fere, naturalmente, a questão identitária, que, conforme a elucidação de
Heidegger, está imbricada na noção de comunidade: identidade se define como aquilo que é
comum a um determinado grupo de pessoas. Não há o pobre, isoladamente, nem aqui nem
alhures; há os pobres, que vivem sob determinadas condições materiais e imateriais, donde
resulta todo um saber, todo um conjunto de tradições, modos de ser e estar no mundo que
148
constituem, nos muitos territórios espalhados pelo espaço brasileiro, seu poder epistêmico.
Separados a partir de critério étnico, de gênero e classe social, esses pobres se irmanam sob a
tarja genérica da pobreza, que, de fato, acaba se lhes afigurando como a grande “parede”, o
grande obstáculo, comumente intransponível, na sociedade brasileira. Sua experiência da
pobreza não resulta, de um modo geral, em silêncio: são os mais falantes, fazem o carnaval
diário no país. Todavia, seu poder simbólico é utilizado objetivamente, desde o início do
projeto republicano no país, para referendar o poder real das elites políticas e econômicas.
Converter esse poder simbólico em poder real, a ser exercido na instância pública, é tarefa que
exige a participação da Universidade, enquanto instituição que tem como missão o
esclarecimento, uma missão que, no bom sentido, está interligada à defesa da humanidade.
Neste caso, trata-se de defender a sempre ameaçada humanidade dos pobres.
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