FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA

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FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA
FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA ANÁLISE DOS
DISCURSOS DA DIVERSIDADE
MACHADO1, Fernanda de Camargo – UFSM – [email protected]
GT: Educação Especial / n.15
Agência Financiadora: Sem Financiamento
Inscrevendo o estudo
Toda prática pedagógica é interpelada por discursos produzidos e produtores de
significados. Muito mais do que saber quem é o sujeito pedagógico, torna-se
imprescindível discutir qual a correlação de forças que o constrói. Nesse sentido, as
representações culturais acerca de quem é o educando está intrinsecamente imbricada
com a prática de ensino.
Tal premissa é uma das vigas mestras que configura o terreno da educação de
surdos e, levando em conta a noção de que as representações tramadas na cultura
constituem identidades, torna-se necessário discutir acerca do que se fala, do que se
espera e, conseqüentemente, de como se educa um aluno surdo no contexto atual em
que a inclusão educacional é posicionada como paradigma hegemônico nos planos
governamentais. Nesse contexto, considera-se pertinente discutir também os processos
de formação docente que tentam dar conta de tais objetivos, bem como os significados
tramados em meio a esse enredo discursivo da diversidade.
Diante destas reflexões, é interessante problematizar as formações discursivas
que atravessam o Projeto Educar na Diversidade do governo federal, tendo em vista a
discussão acerca das representações sobre a surdez e os surdos. Ademais, é preciso que
se discuta a própria noção de diversidade que permeia o referido projeto, debatendo a
narração e a localização da cultura surda neste espaço discursivo.
Sendo assim, este trabalho se propõe a problematizar as reincidências
discursivas que constituem o surdo enquanto sujeito pedagógico nos processos de
formação docente. Isso se dá a partir da análise do projeto Educar na Diversidade,
entendido como um documento constituído e constituidor de representações.
É importante salientar desde já que a abordagem elegida para análise não
pretende de forma alguma tecer um juízo de valor, acusar ou apontar um caminho como
1
Graduada em Educação Especial – Habilitação Deficientes da Audiocomunicação – UFSM. Este
trabalho faz parte da pesquisa desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Educação Especial –
PPGE/UFSM, sob orientação da Profª Drª Márcia Lise Lunardi.
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o verdadeiro. O que pretende é problematizar a narração acerca do surdo no contexto de
diversidade, debatendo outras formas de representar este sujeito e constituir sua
educação.
O Material e a Opção Teórico-metodológica
Os textos abordados neste trabalho não podem ser entendidos fora da conjuntura
histórica, cultural e discursiva. É preciso, dessa forma, conhecer as múltiplas redes de
significados que desenham este documento e materializam sua produção, circulação e
consumo. Nesse sentido, é conveniente escavar algumas dessas narrativas, visto que
tecem as possibilidades de criação do Projeto Educar na Diversidade.
O cenário político no qual se localiza o texto deste projeto é marcado por
dispersões e continuidades, mas especialmente pela recorrência do discurso da inclusão
escolar. Tal enredo discursivo trafega com muita força no contexto mundial. Trata-se de
um conjunto de enunciados que constituem narrativas acerca da necessidade de oferecer
possibilidades de inserção educacional a todos os alunos na rede regular de ensino.
Este discurso emerge a partir de uma rede de saberes e poderes que constituem
verdades sobre direitos humanos, democracia, igualdade de oportunidades, em especial
com a Declaração Mundial dos Direitos Humanos, em 1948. Contudo, é nos anos 90 do
século XX que essas produções discursivas assumem caráter hegemônico. Com as
exigências
internacionais
tecidas
pelo
discurso
inclusivista,
vários
países
comprometem-se a estabelecer formas de combate à exclusão neste campo, em especial
no que se refere à escolarização de pessoas com necessidades especiais.
Para dar conta desta reconfiguração educacional, as instâncias governamentais,
representadas principalmente pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Secretaria de
Educação Especial (SEESP) – entre idas e vindas administrativas - tomam uma série de
medidas para trilhar o caminho da inclusão. Assim, além da legislação específica, tais
instâncias criaram materiais de informação e reorientaram o processo de formação de
professores.
Entre as medidas para reorientação, foi elaborado do Projeto Educar na
Diversidade, baseado numa experiência compartilhada entre os países do Mercosul. No
Brasil, trata-se de um projeto-piloto que teve início em julho de 2005, estendendo-se até
dezembro do ano seguinte. Ele integra um plano mais amplo do MEC/SEESP, o Projeto
Educação inclusiva: direito à diversidade, que tenciona expandir a política de inclusão,
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formando gestores, multiplicadores e docentes comprometidos com esta premissa em
todo território brasileiro. Para orientar a formação docente, foi elaborado um material de
estudos, que se configura no corpus empírico deste trabalho. Seu conteúdo foi
organizado em duzentas e sessenta e quatro páginas, divididas em quatro módulos2 e
organizados em oficinas.
É a partir desse material que se delineia este estudo, o qual não pretende criticar
ou julgar o projeto Educar na Diversidade. Ao fazer isto, estaria rompendo com a
matriz teórica, a qual não pretende separar o certo do errado, mas problematizar a
produção de significados e seus efeitos de verdade.
Assim, esta pesquisa examina quais os discursos que se conjugam no projeto em
questão e como constituem o sujeito escolar surdo neste cenário político em que a
diversidade permeia os processos de formação docente. Para tanto, elegeu-se a
perspectiva dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos em Educação como importantes
alicerces no seu enredamento conceitual.
Ao tratar da surdez pelo prisma dos Estudos Surdos em Educação, é impossível
não situá-lo na matriz teórica dos Estudos Culturais. Esse movimento intelectual teve
origem na década de 50, a partir da publicação dos trabalhos de autores provenientes da
classe operária inglesa, como Richard Hoggart e Raymond Willians. Tais estudiosos,
entre outros nomes, fundaram o Centre for Contemporacy Cultural Studies na
Universidade de Birminghan, na Grã-Bretanha, em 1964. É importante salientar que não
há uma linearidade nas produções deste campo de pesquisas, sendo atravessado por
perspectivas diversificadas, desde a marxista, a psicanalítica, a feminista e a pósestruturalista, sendo esta última a que interessa como alicerce desta pesquisa.
O terreno investigativo dos Estudos Culturais de vertente pós-estruturalista
trabalha num viés marcado pela constante inquietude e tem como base o movimento
intelectual pós-moderno. Nessa corrente conceitual, muito mais do que a crítica, buscase o que Alfredo Veiga-Neto chama de hipercrítica. Segundo ele:
Ao dispensar aquelas metanarrativas e ao assumir o caráter discursivo
da realidade, a crítica pós-estruturalista coloca tudo “sob suspeita”,
submetendo até ela mesma ao constante escrutínio daquilo que se diz
e pensa; assim sendo, trata-se de uma hipercrítica que amplia e
2
Módulo 1 – Educar na Diversidade; Módulo 2 – O Enfoque da Educação Inclusiva; Módulo 3 –
Construindo Escolas para a Diversidade; Módulo 4 – Aulas Inclusivas.
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radicaliza
a
ação
política.
Disso
resultam
conseqüências
epistemológicas e pedagógicas importantes, que podem contribuir
para novos entendimentos acerca de nossas práticas educacionais em
sala de aula, sem o que será mais difícil, senão impossível, alterá-las
no sentido de torná-las mais justas e produtivas. (VEIGA-NETO,
1996, p. 161)
O espaço de discussões dos Estudos Culturais não é passível de uma definição
essencial, em função do seu caráter cambiante. Por conta disso, trata-se de uma vertente
metodológica extremamente flexível, pautada na análise contextual com orientação
qualitativa. Dessa forma, permite a alquimia de diferentes métodos, que vão se
apresentando face às necessidades de uma pesquisa.
Para fundamentar seus debates, o paradigma dos Estudos Culturais toma
emprestado o conceito que introduz a noção de práticas. Essa noção dá caráter de
existência às coisas, atribuindo a elas significados. Trata-se da noção foucaultiana de
discurso, a qual embasa esta investigação. A escolha desta baliza conceitual se deve ao
fato de que
Foi com base em Foucault que se pôde compreender a escola como
uma eficiente dobradiça capaz de articular os poderes que aí circulam
com os saberes que a enformam e aí se ensinam, sejam eles
pedagógicos ou não. Por isso é no estudo da obra do filósofo que se
pode buscar algumas maneiras produtivas de pensar o presente, bem
como novas e poderosas ferramentas para tentar mudar o que se
considera ser preciso mudar. (VEIGA-NETO, 2005, p. 17)
Para este autor, muito mais do que saber o que é tal coisa, deve-se indagar por
que é concebida desta forma, ou melhor, de que forma foi produzida. Assim, Foucault
problematiza o caráter inventado das coisas. Para ele, discursos são “práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1995, p. 56).
Nesse sentido, as tramas de enunciados que formam o discurso apontam o que é
estabelecido como verdade num dado tempo e lugar, excluindo o certo do errado, o que
assinala uma vontade de verdade e, conseqüentemente, uma vontade de poder.
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Assim, segundo Foucault (1995), o processo discursivo é marcado por
contraposições e continuidades. Isso se dá em razão do caráter flutuante dos discursos,
visto que eles não são imóveis, mas atravessados por outros discursos também
transitórios. Esse intercruzamento é que dá ao sistema discursivo um aspecto de rede,
pois diferentes práticas de significação ora se tramam, ora se excluem no terreno
conflitivo do circuito cultural.
Sendo assim, a perspectiva dos Estudos Culturais, com base em Foucault,
propõe uma virada culturalista, ou seja, o rompimento da noção de cultura acadêmica
versus cultura popular. Com isso, não há supremacia entre culturas ou entre “a cultura”
e as “subculturas”, mas tudo é interpelado pelas instâncias culturais. Por isso, a arena
cultural é considerada um campo de tensão e luta política, em que se travam os embates
em torno do processo social de significação. Dessa forma, a cultura vai para além das
tradicionais compreensões de herança dos antepassados, como enfatiza Silva (2001, p.
133-134):
A cultura é um campo de produção de significados no qual diferentes
grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela
imposição de seus significados à sociedade mais ampla [...]. A cultura
é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter,
mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A
cultura é um jogo de poder.
É por isso que o campo discursivo está sempre sob tensão, pois determinados
discursos têm mais força em dados tempos e espaços culturais. Nesse sentido, quem é
autorizado a falar sobre tal coisa ou pessoa, tem o poder de atribuir sentido a ela,
produzindo-a. Dessa forma, o ato de narrar supõe sempre uma situação de poder, visto
que quem narra institui uma representação a respeito de quem é narrado.
Em suma, o discurso tem o poder de atribuir representação, posição, identidade,
alteridade, sendo mediado por atos lingüísticos. Dito de outra forma, a linguagem é uma
ponte entre o discurso e a representação que produz e assim se entrelaça o circuito
Discurso – Linguagem – Representação – Discurso. Esse processo envolve as práticas
de significação engendradas na cultura, pois as coisas e pessoas – bem como o local que
ocupam – não são algo natural, mas socialmente determinados.
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É nesse sentido que se busca subsídios que falem, não da surdez, mas da
invenção da surdez a partir das representações culturais. Para tanto, utiliza-se a
perspectiva dos Estudos Surdos em Educação. De acordo com Skliar (1998, p. 29),
Os Estudos Surdos abarcam pesquisas sobre as identidades, as línguas,
os projetos educacionais, as histórias, as artes, as comunidades e
culturas
surdas,
focalizados
e
entendidos
a
partir
de
um
posicionamento político que luta por uma nova “territorialidade”: um
espaço constituído pelas problematizações sobre a normalidade, pelos
embates com as assimetrias de poder e de saber, pelas diferenças
construídas histórica e socialmente.
Portanto, é a partir destas balizas teóricas que este trabalho se vale para
problematizar as representações sobre educação de surdos, formadas nos e pelos
discursos que cruzam o projeto Educar na Diversidade do governo Federal. Tal
documento é entendido muito além de um processo de formação docente, mas como um
espaço privilegiado de produção de representações, as quais não podem ser
compreendidas fora dos sistemas discursivos que forjam e de que são forjadas.
Para tanto, intenta-se mapear as recorrências discursivas que engendram a
constituição do escolar surdo no projeto em questão. Nesse sentido, utilizar-se-á
algumas ferramentas propostas por Foucault de forma fragmentada, sem a pretensão de
atribuir a este estudo um caráter linear, tendo em vista seu viés pós-estruturalista.
Assim, conceitos como discurso, representação cultural, relações de poder/saber serão
chamados de acordo com a necessidade no decorrer da análise.
Centralidade da inclusão e política da diversidade: o escolar surdo nesse
contexto
Discutir a formação profissional em qualquer nível implica discutir significados,
discursos, representações culturais que a engendram e a produzem. Em especial, os
processos de formação de educadores não podem ser entendidos fora da negociação
cotidiana que se estabelece no terreno cultural. Terreno este em que o saber autoriza a
produção, a disseminação e o posicionamento do que se narra como verdade, demarcado
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por regimes de poder. Com isso, poder e saber são correlatos, ou seja, fazem parte do
mesmo jogo à medida que um emana do outro.
O fato de esses significados serem negociados na cultura dá ao poder um caráter
flutuante, visto que diferentes discursos disputam lugares para seus significados no
cenário cultural. Todos querem instituir suas narrativas, todos disputam o exercício do
poder, sabendo que não se trata de um poder de reprimir, mas de criar, de produzir
sentidos. Sendo assim, o poder transita conforme as relações, nomeando a identidade
das coisas e das pessoas. Com isso, regula-se sua existência (das coisas e pessoas), seu
lugar, suas necessidades, sua educabilidade.
Daí o entendimento de que a formação docente, ao privilegiar saberes, não pode
ser compreendida fora dos sistemas de poder. Como em toda parte, na formação de
professores, há discursos implicados e, por conseqüência, fabricação de subjetividades.
A partir desta exposição inicial, traz-se alguns recortes do Material de Formação
Docente do Projeto Educar na Diversidade, os quais considera-se importantes para esta
problematização. Entre eles, salta aos olhos a recorrência do enredo discursivo da
inclusão educacional. Conforme o material analisado,
O movimento mundial em direção a sistemas educacionais inclusivos
indica uma nova visão de educação, que recupera seu caráter
democrático através da adoção do compromisso legal com a oferta de
Educação para Todos, na qual a diversidade deve ser entendida e
promovida como elemento enriquecedor da aprendizagem e
catalizador do desenvolvimento pessoal e social. (BRASIL, 2005, p.
58)
Sendo assim, o texto acima tece narrativas acerca do processo educacional
inclusivo como um paradigma atrelado à democracia, à igualdade de oportunidades e
aos direitos humanos, constituindo assim a grande bandeira sobre a qual se alicerça o
projeto Educar na Diversidade. Para Popkewitz (1998, p. 164), tratar de inclusão é fazer
referência a “uma noção que emergiu nos últimos tempos, construída a partir de
conceitos burgueses europeus de democracia e capitalismo e, mais recentemente, nos
EUA, a partir da administração pelo Estado das questões sociais, tais como as da
‘pobreza’.”
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No projeto analisado, o discurso da escola inclusiva fica visível em vários
trechos, como no recorte a seguir:
A transição para a inclusão nem sempre é plenamente entendida ou
bem-vinda quando as pessoas estão acostumadas a sistemas
discriminatórios ou quando os educadores se sentem inseguros quanto
à sua capacidade de responder à diversidade existente nas escolas. É
preciso, portanto, mobilizar opiniões a favor da inclusão e, assim que
possível dar início à construção consensual do conceito de inclusão
em cada realidade em particular. No Brasil, isto significa combater a
exclusão educacional de grupos vulneráveis, tais como, as pessoas
com deficiência, as crianças e jovens que vivem em situação de
extrema pobreza, as crianças trabalhadoras e aquelas que vivem nas
ruas, os rapazes e moças que se envolvem no tráfico de drogas, entre
outros. (BRASIL, 2005, p. 106)
Assim, a inclusão é produzida como a mais correta, a verdadeira, a melhor
maneira de combater toda forma de exclusão no espaço educacional. O contrário
significaria o preconceito, a discriminação, a marginalização. Institui-se assim um efeito
de legitimidade a este conjunto de enunciados, configurando-se no discurso oficial do
texto analisado.
Nesse sentido, Skliar traz o entendimento de Foucault sobre o tema. Foucault
afirma que “a inclusão não é o contrário da exclusão, e sim um mecanismo de poder
disciplinar que a substitui, que ocupa sua espacialidade, sendo ambas as figuras
igualmente mecanismos de controle” (SKLIAR, 2003, p. 96). Isso porque a exclusão é
uma estratégia que opera o distanciamento do indivíduo e a inclusão, por sua vez, tratase de um exercício de poder a partir do cuidado. Uma marginaliza; a outra torna visível.
Ambas narram, representam e, portanto, governam a alteridade, enunciando seu espaço
na dinâmica cultural, o que supõe poder. Sendo assim, embora aparentemente
diferentes, Inclusão/Exclusão compartilham a mesma função, ou seja, são medidas para
capturar, conhecer e administrar aqueles posicionados à margem da norma.
Lunardi (2003, p. 134) problematiza:
Para o discurso da inclusão e, então, para a Educação Especial, é um
risco os sujeitos deficientes não estarem ocupando um espaço nas
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escolas regulares; afinal, o fato de eles não estarem incluídos é um
risco para o seu desenvolvimento enquanto cidadãos, enquanto
sujeitos produtivos e úteis para o Estado. Estar excluído pode
significar, também, não estar na norma, o que resulta não estar
usufruindo certas seguridades que estariam à disposição dos sujeitos
incluídos...
Tal discurso é reincidente no projeto, o qual enuncia que os alunos considerados
vulneráveis “são identificados com o objetivo de apoiá-los de forma mais cuidadosa
para garantir sua participação nas atividades escolares e prevenir situações de risco de
exclusão” (BRASIL, 2005, p. 112).
Além disso, a palavra “diversidade” também é recorrente no contexto políticoeducacional brasileiro, nomeando não só este projeto, mas inúmeras ações políticoeducacionais
com
“enriquecimento”,
“flexibilidade”,
o
intuito
“aceitação”,
“valorização”,
de
promover
“respeito”,
a
inclusão.
“colaboração”,
“acolhimento”,
“ajuda”,
Significados
“atenção”,
como
“apoio”,
“conscientização”,
“contemplação” são ícones desta política da diversidade. (Brasil, 2005)
No documento em questão, a construção do conceito de diversidade como
natural e enriquecedora da cena educacional se processa em vários trechos, dos quais
cita-se:
O conceito de diversidade é inerente à educação inclusiva e evidencia
que cada educando possui uma maneira própria e específica de
absorver experiências e adquirir conhecimento, embora todas as
crianças apresentem necessidades básicas comuns de aprendizagem
(...) Isto quer dizer que as diferenças individuais – aptidões,
motivações, estilos de aprendizagem, interesses e experiências de vida
– são inerentes a cada ser humano e têm grande influência nos
processos de aprendizagem que são únicos para cada pessoa
(BRASIL, 2005, p. 60-61).
Em outras palavras: seríamos naturalmente diferentes e a diversidade
enriqueceria as relações humanas que, havendo tolerância, se tornariam harmônicas.
Tal ordem discursiva assume caráter de verdade com e a partir da conjuntura
internacional, em que a diversidade e a inclusão se configuram como balizas da
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globalização. Estar na arena global é um direito e quase um dever, ninguém pode estar
à margem deste local. O próprio projeto Educar na Diversidade posiciona o
“conhecimento dos avanços produzidos pela globalização” como uma das aptidões de
um bom docente, juntamente com a “reflexão”, o “trabalho em equipe” e a “atenção à
diversidade” (BRASIL, 2005, p. 23).
A este respeito, compartilha-se o entendimento de Silva (1999), que afirma
haver uma relação de co-produção entre globalização e diversidade. Sob o manto da
inclusão como atitude politicamente correta, o discurso da globalização encontra na
noção de diversidade uma estratégia neoliberal que cria um inventivo acordo de
igualdade, o que pode acabar encobrindo as diferenças.
Trata-se de uma tentativa de aproximar do pólo normal todos aqueles que estão
à margem, desconsiderando-se as correlações entre poder/saber imbricadas nesta
relação binária de estar dentro/fora. Dito de outra forma, antes de aproximar a todo
custo a outridade da curva da mesmidade, seria necessário problematizar seu
posicionamento na tangente como algo construído, não como algo neutro e natural.
Ademais, o terreno da cultura, em que se processam as narrativas sobre a
alteridade, está sempre sob tensão. Significa dizer que diferentes grupos forjam
múltiplos discursos que se confrontam, negociando significados. Desta forma, trata-se
de uma arena contestada e não estática e harmônica, como concebe o emaranhado
discursivo da inclusão.
Convém destacar ainda que, em alguns trechos, o texto em análise tece sentidos
que falam das diferenças como “peças” constituintes, formadoras da diversidade. Como
no fragmento que segue: “As escolas que adotam uma orientação inclusiva valorizam
as diferenças dos estudantes e a diversidade humana como recursos valiosos para o
desenvolvimento de todos na classe e também para o aperfeiçoamento docente”
(BRASIL, 2005, p. 57).
Bhabha (1998) aponta uma distinção interessante entre os termos diversidade e
diferença, ressaltando que o primeiro não ocupa o mesmo lócus representacional do
segundo. Destaca que a diversidade, entendida como variedade e aspecto de igualdade,
mascara as diferenças culturais, pois “o olhar dedicado às diferenças pelo véu da
diversidade as vê como falhas por trabalharem com o intuito de selar as lacunas da
diferença” (LUNARDI, 2003, p. 39).
Assim, esta estratégia de abarcar as diferenças, localizando-as junto ou, ao
menos, próximas da norma, incita aos seguintes questionamentos: Estar dentro significa
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estar sempre incluído? Aproximar e tolerar “exclui a exclusão?” O fato de ser ou estar
excluído é “culpa” dos diferentes ou das narrativas que os posicionam como diferentes?
Será que estas indagações não seriam importantes para os processos de formação
docente?
Seguindo este raciocínio, traz-se a contribuição de Silva (2000), que acredita ser
fundamental um mapeamento da construção política do outro, para que se compreenda
o processo de alterização dos sujeitos. Segundo ele, “antes de tolerar, respeitar e admitir
a diferença, é preciso explicar como ela é ativamente produzida” (p. 100).
Nesse contexto, é visível o quanto os processos culturais tramam significados
que inventam os indivíduos e os objetos no campo social, atribuindo-lhes sentidos de
acordo com a posição que lhes é dada no e pelo discurso. Sendo assim, a forma como
representamos as coisas e as pessoas não é natural, mas cultural.
Esta noção é trazida dos Estudos Culturais pelos Estudos Surdos para debater o
campo da surdez. Antes de saber o que é, deve-se problematizar como esta condição é
narrada. Por isso trata-se de uma questão cultural. Tal problematização é essencial para
entendimento do cenário político e cultural que permeia os indivíduos surdos. Isto
porque o pensamento pós-moderno opera o descentramento do sujeito, sua noção como
ser inacabado, composto por identidades abertas, contraditórias e indissociadas dos
processos discursivos que as constroem (Hall, 2000).
Dessa forma, o sujeito surdo é produzido em meio aos discursos que se
conjugam, tecendo sua constituição. Dessa forma, é possível entender o quanto a
alteridade surda é constituída em meio a relações hierárquicas e assimétricas de poder,
visto que os significados sobre os surdos são produzidos e administrados pelos dizeres
de quem exerce o poder de definir.
Nesse sentido, Skliar (1999) escreve que a deficiência foi inventada tendo como
parâmetro os valores da normalidade. Nesse contexto, a surdez é posicionada no espaço
da deficiência, sendo entendida como uma lacuna sensorial, já que o “normal”, para o
projeto moderno, é ouvir. Neste campo representacional, o surdo é considerado um
indivíduo em falta, passível de correção e, portanto, sujeito da Educação Especial.
Diante disso, o foco da discussão não está na deficiência, mas na produção
social desta. No caso da surdez, é justamente neste ponto que pode ser compreendida
como diferença política e experiência visual. Segundo Skliar (1999, p. 24),
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Ao compreender aos surdos como sujeitos visuais, nenhuma das
narrativas habituais sobre os surdos permanece encerrada na tradição
dos ouvidos incompletos e limitados. (...) Representar aos surdos
como sujeitos visuais, num sentido ontológico, permite reinterpretar
suas tradições comunitárias como construções históricas, culturais,
lingüísticas e não simplesmente como um efeito de supostos
mecanismos de compensação biológicos e/ou cognitivos.
De acordo com esta ótica, o campo da educação de surdos adquire outros
contornos. As práticas de significação da surdez e dos surdos se deslocam da alteridade
deficiente para se reconfigurar em alteridade surda. Isto porque outros dizeres sobre
estes sujeitos constituem narrativas que falam de uma cultura singular, de sua
comunicação por meio de outra língua (a língua de sinais), a partir de um outro canal
(espaço-manual).
Produz-se, então, um deslocamento epistemológico, constroem-se giros da
representação como aponta Wrigley (apud Skliar, 1999, p. 23):
Em vez de entender a surdez como uma exclusão e um isolamento no
mundo do silêncio, defini-la como uma experiência e uma
representação visual; em vez de representá-la através de formatos
médicos e terapêuticos, quebrar esta tradição por meio de concepções
sociais, lingüísticas e antropológicas; em vez de submeter aos surdos a
uma etiqueta de deficientes da linguagem, compreendê-los como
formando parte de uma minoria lingüística; em vez de afirmar que são
deficientes, dizer que estão localizados no discurso da deficiência.
É a partir deste embate discursivo que os surdos lutam pela circulação de suas
narrativas na cena cultural, significando a si mesmos como sujeitos que criam e
compartilham cotidianamente uma cultura visual (Wrigley, 1996). Essa narrativa forja
as múltiplas identidades surdas e institui a esfera política de sua diferença.
A partir da análise do projeto Educar na Diversidade, pode-se problematizar a
inscrição do escolar surdo no terreno da diversidade. Nesse documento, a surdez é
representada como mais uma categoria entre as necessidades educacionais especiais e,
portanto, localizada no contexto da inclusão. Um exemplo deste enunciado é a forma
como os surdos, juntamente com outros alunos, são localizados no terreno da educação
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especial. O material de formação docente recomenda a leitura de três histórias para
discutir a questão da pertinência cultural: a primeira trata de um menino com
dificuldades de aprendizagem, a segunda fala sobre um aluno surdo e a terceira narra
uma situação de estudantes que vivem longe da escola.
A narrativa representa o escolar surdo como um garoto que saiu de uma “escola
especial para crianças com deficiência auditiva” (BRASIL, 2005, p. 72) e foi
“acolhido” pela escola regular. Os professores, diante dessa situação, ficaram
inseguros, mas aceitaram a missão. No início, o aluno chorava e os docentes tinham
dúvida quanto à melhor forma de comunicação com ele. Para tentar dar conta dessa
questão, foi criada uma sala de apoio e, aos poucos, a comunidade local também passou
a se interessar pela língua de sinais, fazendo com que mais surdos fossem matriculados
na escola. Segundo Brasil (2005, p. 72), “A ajuda dos professores, de seus colegas de
classe, aliada ao apoio das famílias e à presença de intérpretes, resultou no êxito desta
experiência”.
A produção do surdo como sujeito pedagógico diverso o narra como um
indivíduo cultural, passível de ser incluído, já que as múltiplas culturas deveriam
conviver no mesmo espaço. Assim, o discurso da diversidade privilegia elementos
como a importância da língua de sinais, sua função como meio de acesso ao currículo
da escola regular, através de intérpretes (Brasil, 2005).
Entretanto, como ficariam os processos de aquisição desta língua no ambiente
escolar? Os intérpretes, professores especializados e/ou professores bilíngües, dariam
conta desta aquisição, caso o aluno surdo ainda não seja fluente em língua de sinais? Se
o surdo é um sujeito cultural, onde se localiza a comunidade e a cultura surda na sua
escolarização? Desta forma, o projeto Educar na Diversidade deixa de discutir questões
igualmente importantes ao se tratar de educação de surdos, tais como: a língua de sinais
como elemento de subjetivação, o papel da comunidade surda na aquisição da língua de
sinais, na construção identitária e na produção de uma cultura visual.
Assim, o projeto sobre o qual se debruça este trabalho, na tentativa de equiparar
todos os estudantes, acaba postulando a alteridade surda em relação ao ouvinte,
produzindo a representação do escolar surdo como um sujeito que deve ser incluído na
escola regular, desde que haja colaboração e uso da língua de sinais. Sendo assim, no
discurso da diversidade, estes sujeitos são nivelados sob a égide de uma pretensa
igualdade, o que reduz a discussão sobre a diferença política surda e a implicação desta
diferença na educação de surdos.
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(In)Conclusões
O Projeto Educar na Diversidade, enquanto subsídio teórico-prático para a
formação inicial, contínua e autoformação de professores para a inclusão, produz
sentidos sobre o estudante surdo, constituindo sua identidade. É por isso que, muito
mais do que subsidiar professores na identificação dos alunos e no planejamento
didático que respondam às suas necessidades, os processos de formação produzem estes
alunos.
A partir do mapeamento discursivo realizado neste trabalho, pôde-se analisar a
reincidência dos enunciados da inclusão escolar e a demarcação da escola regular como
o local adequado para a educação dos surdos. Dessa forma, tramam-se significados que
narram o surdo como sujeito educacional diverso, usuário da língua de sinais como
suporte para acessar o currículo da escola regular.
Porém, discursos sobre a surdez e os surdos emergem de outros lugares. Em
razão de tal virada epistemológica, produzem-se deslocamentos representacionais e,
com isso, abrem-se múltiplas possibilidades de contestação e produção de uma política
da diferença, que busca outras formas de narrar a alteridade surda e sua educação.
Nesse sentido, concorda-se com o comentário de Sá (2002, p. 12-13):
Urge que ultrapassemos a discussão sobre o uso da língua de sinais e
da língua oral, ou sobre os métodos de ensino, ou sobre os mais
recentes avanços da audiologia. É preciso ampliar a discussão para as
questões das identidades, das culturas, das etnias, dos gêneros, das
políticas, etc. Se os surdos têm que ser “incluídos” em algum lugar,
digo que devem sê-lo no lugar e no espaço dos debates.
Com isso, não se intenta de forma alguma tecer um juízo de valor sobre este
projeto. De igual modo, não se pretende apontar um caminho mais correto a seguir. Do
contrário, reitera-se o desejo de, por meio desta investigação, incitar ao debate das
inúmeras formas de representar a alteridade surda e sua educação, tendo consciência de
que na incompletude deste trabalho residem infindáveis e fecundas possibilidades de
questionamento.
15
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