FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA
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FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA
FORMAÇÃO DOCENTE E EDUCAÇÃO DE SURDOS: UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS DA DIVERSIDADE MACHADO1, Fernanda de Camargo – UFSM – [email protected] GT: Educação Especial / n.15 Agência Financiadora: Sem Financiamento Inscrevendo o estudo Toda prática pedagógica é interpelada por discursos produzidos e produtores de significados. Muito mais do que saber quem é o sujeito pedagógico, torna-se imprescindível discutir qual a correlação de forças que o constrói. Nesse sentido, as representações culturais acerca de quem é o educando está intrinsecamente imbricada com a prática de ensino. Tal premissa é uma das vigas mestras que configura o terreno da educação de surdos e, levando em conta a noção de que as representações tramadas na cultura constituem identidades, torna-se necessário discutir acerca do que se fala, do que se espera e, conseqüentemente, de como se educa um aluno surdo no contexto atual em que a inclusão educacional é posicionada como paradigma hegemônico nos planos governamentais. Nesse contexto, considera-se pertinente discutir também os processos de formação docente que tentam dar conta de tais objetivos, bem como os significados tramados em meio a esse enredo discursivo da diversidade. Diante destas reflexões, é interessante problematizar as formações discursivas que atravessam o Projeto Educar na Diversidade do governo federal, tendo em vista a discussão acerca das representações sobre a surdez e os surdos. Ademais, é preciso que se discuta a própria noção de diversidade que permeia o referido projeto, debatendo a narração e a localização da cultura surda neste espaço discursivo. Sendo assim, este trabalho se propõe a problematizar as reincidências discursivas que constituem o surdo enquanto sujeito pedagógico nos processos de formação docente. Isso se dá a partir da análise do projeto Educar na Diversidade, entendido como um documento constituído e constituidor de representações. É importante salientar desde já que a abordagem elegida para análise não pretende de forma alguma tecer um juízo de valor, acusar ou apontar um caminho como 1 Graduada em Educação Especial – Habilitação Deficientes da Audiocomunicação – UFSM. Este trabalho faz parte da pesquisa desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Educação Especial – PPGE/UFSM, sob orientação da Profª Drª Márcia Lise Lunardi. 2 o verdadeiro. O que pretende é problematizar a narração acerca do surdo no contexto de diversidade, debatendo outras formas de representar este sujeito e constituir sua educação. O Material e a Opção Teórico-metodológica Os textos abordados neste trabalho não podem ser entendidos fora da conjuntura histórica, cultural e discursiva. É preciso, dessa forma, conhecer as múltiplas redes de significados que desenham este documento e materializam sua produção, circulação e consumo. Nesse sentido, é conveniente escavar algumas dessas narrativas, visto que tecem as possibilidades de criação do Projeto Educar na Diversidade. O cenário político no qual se localiza o texto deste projeto é marcado por dispersões e continuidades, mas especialmente pela recorrência do discurso da inclusão escolar. Tal enredo discursivo trafega com muita força no contexto mundial. Trata-se de um conjunto de enunciados que constituem narrativas acerca da necessidade de oferecer possibilidades de inserção educacional a todos os alunos na rede regular de ensino. Este discurso emerge a partir de uma rede de saberes e poderes que constituem verdades sobre direitos humanos, democracia, igualdade de oportunidades, em especial com a Declaração Mundial dos Direitos Humanos, em 1948. Contudo, é nos anos 90 do século XX que essas produções discursivas assumem caráter hegemônico. Com as exigências internacionais tecidas pelo discurso inclusivista, vários países comprometem-se a estabelecer formas de combate à exclusão neste campo, em especial no que se refere à escolarização de pessoas com necessidades especiais. Para dar conta desta reconfiguração educacional, as instâncias governamentais, representadas principalmente pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Secretaria de Educação Especial (SEESP) – entre idas e vindas administrativas - tomam uma série de medidas para trilhar o caminho da inclusão. Assim, além da legislação específica, tais instâncias criaram materiais de informação e reorientaram o processo de formação de professores. Entre as medidas para reorientação, foi elaborado do Projeto Educar na Diversidade, baseado numa experiência compartilhada entre os países do Mercosul. No Brasil, trata-se de um projeto-piloto que teve início em julho de 2005, estendendo-se até dezembro do ano seguinte. Ele integra um plano mais amplo do MEC/SEESP, o Projeto Educação inclusiva: direito à diversidade, que tenciona expandir a política de inclusão, 3 formando gestores, multiplicadores e docentes comprometidos com esta premissa em todo território brasileiro. Para orientar a formação docente, foi elaborado um material de estudos, que se configura no corpus empírico deste trabalho. Seu conteúdo foi organizado em duzentas e sessenta e quatro páginas, divididas em quatro módulos2 e organizados em oficinas. É a partir desse material que se delineia este estudo, o qual não pretende criticar ou julgar o projeto Educar na Diversidade. Ao fazer isto, estaria rompendo com a matriz teórica, a qual não pretende separar o certo do errado, mas problematizar a produção de significados e seus efeitos de verdade. Assim, esta pesquisa examina quais os discursos que se conjugam no projeto em questão e como constituem o sujeito escolar surdo neste cenário político em que a diversidade permeia os processos de formação docente. Para tanto, elegeu-se a perspectiva dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos em Educação como importantes alicerces no seu enredamento conceitual. Ao tratar da surdez pelo prisma dos Estudos Surdos em Educação, é impossível não situá-lo na matriz teórica dos Estudos Culturais. Esse movimento intelectual teve origem na década de 50, a partir da publicação dos trabalhos de autores provenientes da classe operária inglesa, como Richard Hoggart e Raymond Willians. Tais estudiosos, entre outros nomes, fundaram o Centre for Contemporacy Cultural Studies na Universidade de Birminghan, na Grã-Bretanha, em 1964. É importante salientar que não há uma linearidade nas produções deste campo de pesquisas, sendo atravessado por perspectivas diversificadas, desde a marxista, a psicanalítica, a feminista e a pósestruturalista, sendo esta última a que interessa como alicerce desta pesquisa. O terreno investigativo dos Estudos Culturais de vertente pós-estruturalista trabalha num viés marcado pela constante inquietude e tem como base o movimento intelectual pós-moderno. Nessa corrente conceitual, muito mais do que a crítica, buscase o que Alfredo Veiga-Neto chama de hipercrítica. Segundo ele: Ao dispensar aquelas metanarrativas e ao assumir o caráter discursivo da realidade, a crítica pós-estruturalista coloca tudo “sob suspeita”, submetendo até ela mesma ao constante escrutínio daquilo que se diz e pensa; assim sendo, trata-se de uma hipercrítica que amplia e 2 Módulo 1 – Educar na Diversidade; Módulo 2 – O Enfoque da Educação Inclusiva; Módulo 3 – Construindo Escolas para a Diversidade; Módulo 4 – Aulas Inclusivas. 4 radicaliza a ação política. Disso resultam conseqüências epistemológicas e pedagógicas importantes, que podem contribuir para novos entendimentos acerca de nossas práticas educacionais em sala de aula, sem o que será mais difícil, senão impossível, alterá-las no sentido de torná-las mais justas e produtivas. (VEIGA-NETO, 1996, p. 161) O espaço de discussões dos Estudos Culturais não é passível de uma definição essencial, em função do seu caráter cambiante. Por conta disso, trata-se de uma vertente metodológica extremamente flexível, pautada na análise contextual com orientação qualitativa. Dessa forma, permite a alquimia de diferentes métodos, que vão se apresentando face às necessidades de uma pesquisa. Para fundamentar seus debates, o paradigma dos Estudos Culturais toma emprestado o conceito que introduz a noção de práticas. Essa noção dá caráter de existência às coisas, atribuindo a elas significados. Trata-se da noção foucaultiana de discurso, a qual embasa esta investigação. A escolha desta baliza conceitual se deve ao fato de que Foi com base em Foucault que se pôde compreender a escola como uma eficiente dobradiça capaz de articular os poderes que aí circulam com os saberes que a enformam e aí se ensinam, sejam eles pedagógicos ou não. Por isso é no estudo da obra do filósofo que se pode buscar algumas maneiras produtivas de pensar o presente, bem como novas e poderosas ferramentas para tentar mudar o que se considera ser preciso mudar. (VEIGA-NETO, 2005, p. 17) Para este autor, muito mais do que saber o que é tal coisa, deve-se indagar por que é concebida desta forma, ou melhor, de que forma foi produzida. Assim, Foucault problematiza o caráter inventado das coisas. Para ele, discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1995, p. 56). Nesse sentido, as tramas de enunciados que formam o discurso apontam o que é estabelecido como verdade num dado tempo e lugar, excluindo o certo do errado, o que assinala uma vontade de verdade e, conseqüentemente, uma vontade de poder. 5 Assim, segundo Foucault (1995), o processo discursivo é marcado por contraposições e continuidades. Isso se dá em razão do caráter flutuante dos discursos, visto que eles não são imóveis, mas atravessados por outros discursos também transitórios. Esse intercruzamento é que dá ao sistema discursivo um aspecto de rede, pois diferentes práticas de significação ora se tramam, ora se excluem no terreno conflitivo do circuito cultural. Sendo assim, a perspectiva dos Estudos Culturais, com base em Foucault, propõe uma virada culturalista, ou seja, o rompimento da noção de cultura acadêmica versus cultura popular. Com isso, não há supremacia entre culturas ou entre “a cultura” e as “subculturas”, mas tudo é interpelado pelas instâncias culturais. Por isso, a arena cultural é considerada um campo de tensão e luta política, em que se travam os embates em torno do processo social de significação. Dessa forma, a cultura vai para além das tradicionais compreensões de herança dos antepassados, como enfatiza Silva (2001, p. 133-134): A cultura é um campo de produção de significados no qual diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla [...]. A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder. É por isso que o campo discursivo está sempre sob tensão, pois determinados discursos têm mais força em dados tempos e espaços culturais. Nesse sentido, quem é autorizado a falar sobre tal coisa ou pessoa, tem o poder de atribuir sentido a ela, produzindo-a. Dessa forma, o ato de narrar supõe sempre uma situação de poder, visto que quem narra institui uma representação a respeito de quem é narrado. Em suma, o discurso tem o poder de atribuir representação, posição, identidade, alteridade, sendo mediado por atos lingüísticos. Dito de outra forma, a linguagem é uma ponte entre o discurso e a representação que produz e assim se entrelaça o circuito Discurso – Linguagem – Representação – Discurso. Esse processo envolve as práticas de significação engendradas na cultura, pois as coisas e pessoas – bem como o local que ocupam – não são algo natural, mas socialmente determinados. 6 É nesse sentido que se busca subsídios que falem, não da surdez, mas da invenção da surdez a partir das representações culturais. Para tanto, utiliza-se a perspectiva dos Estudos Surdos em Educação. De acordo com Skliar (1998, p. 29), Os Estudos Surdos abarcam pesquisas sobre as identidades, as línguas, os projetos educacionais, as histórias, as artes, as comunidades e culturas surdas, focalizados e entendidos a partir de um posicionamento político que luta por uma nova “territorialidade”: um espaço constituído pelas problematizações sobre a normalidade, pelos embates com as assimetrias de poder e de saber, pelas diferenças construídas histórica e socialmente. Portanto, é a partir destas balizas teóricas que este trabalho se vale para problematizar as representações sobre educação de surdos, formadas nos e pelos discursos que cruzam o projeto Educar na Diversidade do governo Federal. Tal documento é entendido muito além de um processo de formação docente, mas como um espaço privilegiado de produção de representações, as quais não podem ser compreendidas fora dos sistemas discursivos que forjam e de que são forjadas. Para tanto, intenta-se mapear as recorrências discursivas que engendram a constituição do escolar surdo no projeto em questão. Nesse sentido, utilizar-se-á algumas ferramentas propostas por Foucault de forma fragmentada, sem a pretensão de atribuir a este estudo um caráter linear, tendo em vista seu viés pós-estruturalista. Assim, conceitos como discurso, representação cultural, relações de poder/saber serão chamados de acordo com a necessidade no decorrer da análise. Centralidade da inclusão e política da diversidade: o escolar surdo nesse contexto Discutir a formação profissional em qualquer nível implica discutir significados, discursos, representações culturais que a engendram e a produzem. Em especial, os processos de formação de educadores não podem ser entendidos fora da negociação cotidiana que se estabelece no terreno cultural. Terreno este em que o saber autoriza a produção, a disseminação e o posicionamento do que se narra como verdade, demarcado 7 por regimes de poder. Com isso, poder e saber são correlatos, ou seja, fazem parte do mesmo jogo à medida que um emana do outro. O fato de esses significados serem negociados na cultura dá ao poder um caráter flutuante, visto que diferentes discursos disputam lugares para seus significados no cenário cultural. Todos querem instituir suas narrativas, todos disputam o exercício do poder, sabendo que não se trata de um poder de reprimir, mas de criar, de produzir sentidos. Sendo assim, o poder transita conforme as relações, nomeando a identidade das coisas e das pessoas. Com isso, regula-se sua existência (das coisas e pessoas), seu lugar, suas necessidades, sua educabilidade. Daí o entendimento de que a formação docente, ao privilegiar saberes, não pode ser compreendida fora dos sistemas de poder. Como em toda parte, na formação de professores, há discursos implicados e, por conseqüência, fabricação de subjetividades. A partir desta exposição inicial, traz-se alguns recortes do Material de Formação Docente do Projeto Educar na Diversidade, os quais considera-se importantes para esta problematização. Entre eles, salta aos olhos a recorrência do enredo discursivo da inclusão educacional. Conforme o material analisado, O movimento mundial em direção a sistemas educacionais inclusivos indica uma nova visão de educação, que recupera seu caráter democrático através da adoção do compromisso legal com a oferta de Educação para Todos, na qual a diversidade deve ser entendida e promovida como elemento enriquecedor da aprendizagem e catalizador do desenvolvimento pessoal e social. (BRASIL, 2005, p. 58) Sendo assim, o texto acima tece narrativas acerca do processo educacional inclusivo como um paradigma atrelado à democracia, à igualdade de oportunidades e aos direitos humanos, constituindo assim a grande bandeira sobre a qual se alicerça o projeto Educar na Diversidade. Para Popkewitz (1998, p. 164), tratar de inclusão é fazer referência a “uma noção que emergiu nos últimos tempos, construída a partir de conceitos burgueses europeus de democracia e capitalismo e, mais recentemente, nos EUA, a partir da administração pelo Estado das questões sociais, tais como as da ‘pobreza’.” 8 No projeto analisado, o discurso da escola inclusiva fica visível em vários trechos, como no recorte a seguir: A transição para a inclusão nem sempre é plenamente entendida ou bem-vinda quando as pessoas estão acostumadas a sistemas discriminatórios ou quando os educadores se sentem inseguros quanto à sua capacidade de responder à diversidade existente nas escolas. É preciso, portanto, mobilizar opiniões a favor da inclusão e, assim que possível dar início à construção consensual do conceito de inclusão em cada realidade em particular. No Brasil, isto significa combater a exclusão educacional de grupos vulneráveis, tais como, as pessoas com deficiência, as crianças e jovens que vivem em situação de extrema pobreza, as crianças trabalhadoras e aquelas que vivem nas ruas, os rapazes e moças que se envolvem no tráfico de drogas, entre outros. (BRASIL, 2005, p. 106) Assim, a inclusão é produzida como a mais correta, a verdadeira, a melhor maneira de combater toda forma de exclusão no espaço educacional. O contrário significaria o preconceito, a discriminação, a marginalização. Institui-se assim um efeito de legitimidade a este conjunto de enunciados, configurando-se no discurso oficial do texto analisado. Nesse sentido, Skliar traz o entendimento de Foucault sobre o tema. Foucault afirma que “a inclusão não é o contrário da exclusão, e sim um mecanismo de poder disciplinar que a substitui, que ocupa sua espacialidade, sendo ambas as figuras igualmente mecanismos de controle” (SKLIAR, 2003, p. 96). Isso porque a exclusão é uma estratégia que opera o distanciamento do indivíduo e a inclusão, por sua vez, tratase de um exercício de poder a partir do cuidado. Uma marginaliza; a outra torna visível. Ambas narram, representam e, portanto, governam a alteridade, enunciando seu espaço na dinâmica cultural, o que supõe poder. Sendo assim, embora aparentemente diferentes, Inclusão/Exclusão compartilham a mesma função, ou seja, são medidas para capturar, conhecer e administrar aqueles posicionados à margem da norma. Lunardi (2003, p. 134) problematiza: Para o discurso da inclusão e, então, para a Educação Especial, é um risco os sujeitos deficientes não estarem ocupando um espaço nas 9 escolas regulares; afinal, o fato de eles não estarem incluídos é um risco para o seu desenvolvimento enquanto cidadãos, enquanto sujeitos produtivos e úteis para o Estado. Estar excluído pode significar, também, não estar na norma, o que resulta não estar usufruindo certas seguridades que estariam à disposição dos sujeitos incluídos... Tal discurso é reincidente no projeto, o qual enuncia que os alunos considerados vulneráveis “são identificados com o objetivo de apoiá-los de forma mais cuidadosa para garantir sua participação nas atividades escolares e prevenir situações de risco de exclusão” (BRASIL, 2005, p. 112). Além disso, a palavra “diversidade” também é recorrente no contexto políticoeducacional brasileiro, nomeando não só este projeto, mas inúmeras ações políticoeducacionais com “enriquecimento”, “flexibilidade”, o intuito “aceitação”, “valorização”, de promover “respeito”, a inclusão. “colaboração”, “acolhimento”, “ajuda”, Significados “atenção”, como “apoio”, “conscientização”, “contemplação” são ícones desta política da diversidade. (Brasil, 2005) No documento em questão, a construção do conceito de diversidade como natural e enriquecedora da cena educacional se processa em vários trechos, dos quais cita-se: O conceito de diversidade é inerente à educação inclusiva e evidencia que cada educando possui uma maneira própria e específica de absorver experiências e adquirir conhecimento, embora todas as crianças apresentem necessidades básicas comuns de aprendizagem (...) Isto quer dizer que as diferenças individuais – aptidões, motivações, estilos de aprendizagem, interesses e experiências de vida – são inerentes a cada ser humano e têm grande influência nos processos de aprendizagem que são únicos para cada pessoa (BRASIL, 2005, p. 60-61). Em outras palavras: seríamos naturalmente diferentes e a diversidade enriqueceria as relações humanas que, havendo tolerância, se tornariam harmônicas. Tal ordem discursiva assume caráter de verdade com e a partir da conjuntura internacional, em que a diversidade e a inclusão se configuram como balizas da 10 globalização. Estar na arena global é um direito e quase um dever, ninguém pode estar à margem deste local. O próprio projeto Educar na Diversidade posiciona o “conhecimento dos avanços produzidos pela globalização” como uma das aptidões de um bom docente, juntamente com a “reflexão”, o “trabalho em equipe” e a “atenção à diversidade” (BRASIL, 2005, p. 23). A este respeito, compartilha-se o entendimento de Silva (1999), que afirma haver uma relação de co-produção entre globalização e diversidade. Sob o manto da inclusão como atitude politicamente correta, o discurso da globalização encontra na noção de diversidade uma estratégia neoliberal que cria um inventivo acordo de igualdade, o que pode acabar encobrindo as diferenças. Trata-se de uma tentativa de aproximar do pólo normal todos aqueles que estão à margem, desconsiderando-se as correlações entre poder/saber imbricadas nesta relação binária de estar dentro/fora. Dito de outra forma, antes de aproximar a todo custo a outridade da curva da mesmidade, seria necessário problematizar seu posicionamento na tangente como algo construído, não como algo neutro e natural. Ademais, o terreno da cultura, em que se processam as narrativas sobre a alteridade, está sempre sob tensão. Significa dizer que diferentes grupos forjam múltiplos discursos que se confrontam, negociando significados. Desta forma, trata-se de uma arena contestada e não estática e harmônica, como concebe o emaranhado discursivo da inclusão. Convém destacar ainda que, em alguns trechos, o texto em análise tece sentidos que falam das diferenças como “peças” constituintes, formadoras da diversidade. Como no fragmento que segue: “As escolas que adotam uma orientação inclusiva valorizam as diferenças dos estudantes e a diversidade humana como recursos valiosos para o desenvolvimento de todos na classe e também para o aperfeiçoamento docente” (BRASIL, 2005, p. 57). Bhabha (1998) aponta uma distinção interessante entre os termos diversidade e diferença, ressaltando que o primeiro não ocupa o mesmo lócus representacional do segundo. Destaca que a diversidade, entendida como variedade e aspecto de igualdade, mascara as diferenças culturais, pois “o olhar dedicado às diferenças pelo véu da diversidade as vê como falhas por trabalharem com o intuito de selar as lacunas da diferença” (LUNARDI, 2003, p. 39). Assim, esta estratégia de abarcar as diferenças, localizando-as junto ou, ao menos, próximas da norma, incita aos seguintes questionamentos: Estar dentro significa 11 estar sempre incluído? Aproximar e tolerar “exclui a exclusão?” O fato de ser ou estar excluído é “culpa” dos diferentes ou das narrativas que os posicionam como diferentes? Será que estas indagações não seriam importantes para os processos de formação docente? Seguindo este raciocínio, traz-se a contribuição de Silva (2000), que acredita ser fundamental um mapeamento da construção política do outro, para que se compreenda o processo de alterização dos sujeitos. Segundo ele, “antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença, é preciso explicar como ela é ativamente produzida” (p. 100). Nesse contexto, é visível o quanto os processos culturais tramam significados que inventam os indivíduos e os objetos no campo social, atribuindo-lhes sentidos de acordo com a posição que lhes é dada no e pelo discurso. Sendo assim, a forma como representamos as coisas e as pessoas não é natural, mas cultural. Esta noção é trazida dos Estudos Culturais pelos Estudos Surdos para debater o campo da surdez. Antes de saber o que é, deve-se problematizar como esta condição é narrada. Por isso trata-se de uma questão cultural. Tal problematização é essencial para entendimento do cenário político e cultural que permeia os indivíduos surdos. Isto porque o pensamento pós-moderno opera o descentramento do sujeito, sua noção como ser inacabado, composto por identidades abertas, contraditórias e indissociadas dos processos discursivos que as constroem (Hall, 2000). Dessa forma, o sujeito surdo é produzido em meio aos discursos que se conjugam, tecendo sua constituição. Dessa forma, é possível entender o quanto a alteridade surda é constituída em meio a relações hierárquicas e assimétricas de poder, visto que os significados sobre os surdos são produzidos e administrados pelos dizeres de quem exerce o poder de definir. Nesse sentido, Skliar (1999) escreve que a deficiência foi inventada tendo como parâmetro os valores da normalidade. Nesse contexto, a surdez é posicionada no espaço da deficiência, sendo entendida como uma lacuna sensorial, já que o “normal”, para o projeto moderno, é ouvir. Neste campo representacional, o surdo é considerado um indivíduo em falta, passível de correção e, portanto, sujeito da Educação Especial. Diante disso, o foco da discussão não está na deficiência, mas na produção social desta. No caso da surdez, é justamente neste ponto que pode ser compreendida como diferença política e experiência visual. Segundo Skliar (1999, p. 24), 12 Ao compreender aos surdos como sujeitos visuais, nenhuma das narrativas habituais sobre os surdos permanece encerrada na tradição dos ouvidos incompletos e limitados. (...) Representar aos surdos como sujeitos visuais, num sentido ontológico, permite reinterpretar suas tradições comunitárias como construções históricas, culturais, lingüísticas e não simplesmente como um efeito de supostos mecanismos de compensação biológicos e/ou cognitivos. De acordo com esta ótica, o campo da educação de surdos adquire outros contornos. As práticas de significação da surdez e dos surdos se deslocam da alteridade deficiente para se reconfigurar em alteridade surda. Isto porque outros dizeres sobre estes sujeitos constituem narrativas que falam de uma cultura singular, de sua comunicação por meio de outra língua (a língua de sinais), a partir de um outro canal (espaço-manual). Produz-se, então, um deslocamento epistemológico, constroem-se giros da representação como aponta Wrigley (apud Skliar, 1999, p. 23): Em vez de entender a surdez como uma exclusão e um isolamento no mundo do silêncio, defini-la como uma experiência e uma representação visual; em vez de representá-la através de formatos médicos e terapêuticos, quebrar esta tradição por meio de concepções sociais, lingüísticas e antropológicas; em vez de submeter aos surdos a uma etiqueta de deficientes da linguagem, compreendê-los como formando parte de uma minoria lingüística; em vez de afirmar que são deficientes, dizer que estão localizados no discurso da deficiência. É a partir deste embate discursivo que os surdos lutam pela circulação de suas narrativas na cena cultural, significando a si mesmos como sujeitos que criam e compartilham cotidianamente uma cultura visual (Wrigley, 1996). Essa narrativa forja as múltiplas identidades surdas e institui a esfera política de sua diferença. A partir da análise do projeto Educar na Diversidade, pode-se problematizar a inscrição do escolar surdo no terreno da diversidade. Nesse documento, a surdez é representada como mais uma categoria entre as necessidades educacionais especiais e, portanto, localizada no contexto da inclusão. Um exemplo deste enunciado é a forma como os surdos, juntamente com outros alunos, são localizados no terreno da educação 13 especial. O material de formação docente recomenda a leitura de três histórias para discutir a questão da pertinência cultural: a primeira trata de um menino com dificuldades de aprendizagem, a segunda fala sobre um aluno surdo e a terceira narra uma situação de estudantes que vivem longe da escola. A narrativa representa o escolar surdo como um garoto que saiu de uma “escola especial para crianças com deficiência auditiva” (BRASIL, 2005, p. 72) e foi “acolhido” pela escola regular. Os professores, diante dessa situação, ficaram inseguros, mas aceitaram a missão. No início, o aluno chorava e os docentes tinham dúvida quanto à melhor forma de comunicação com ele. Para tentar dar conta dessa questão, foi criada uma sala de apoio e, aos poucos, a comunidade local também passou a se interessar pela língua de sinais, fazendo com que mais surdos fossem matriculados na escola. Segundo Brasil (2005, p. 72), “A ajuda dos professores, de seus colegas de classe, aliada ao apoio das famílias e à presença de intérpretes, resultou no êxito desta experiência”. A produção do surdo como sujeito pedagógico diverso o narra como um indivíduo cultural, passível de ser incluído, já que as múltiplas culturas deveriam conviver no mesmo espaço. Assim, o discurso da diversidade privilegia elementos como a importância da língua de sinais, sua função como meio de acesso ao currículo da escola regular, através de intérpretes (Brasil, 2005). Entretanto, como ficariam os processos de aquisição desta língua no ambiente escolar? Os intérpretes, professores especializados e/ou professores bilíngües, dariam conta desta aquisição, caso o aluno surdo ainda não seja fluente em língua de sinais? Se o surdo é um sujeito cultural, onde se localiza a comunidade e a cultura surda na sua escolarização? Desta forma, o projeto Educar na Diversidade deixa de discutir questões igualmente importantes ao se tratar de educação de surdos, tais como: a língua de sinais como elemento de subjetivação, o papel da comunidade surda na aquisição da língua de sinais, na construção identitária e na produção de uma cultura visual. Assim, o projeto sobre o qual se debruça este trabalho, na tentativa de equiparar todos os estudantes, acaba postulando a alteridade surda em relação ao ouvinte, produzindo a representação do escolar surdo como um sujeito que deve ser incluído na escola regular, desde que haja colaboração e uso da língua de sinais. Sendo assim, no discurso da diversidade, estes sujeitos são nivelados sob a égide de uma pretensa igualdade, o que reduz a discussão sobre a diferença política surda e a implicação desta diferença na educação de surdos. 14 (In)Conclusões O Projeto Educar na Diversidade, enquanto subsídio teórico-prático para a formação inicial, contínua e autoformação de professores para a inclusão, produz sentidos sobre o estudante surdo, constituindo sua identidade. É por isso que, muito mais do que subsidiar professores na identificação dos alunos e no planejamento didático que respondam às suas necessidades, os processos de formação produzem estes alunos. A partir do mapeamento discursivo realizado neste trabalho, pôde-se analisar a reincidência dos enunciados da inclusão escolar e a demarcação da escola regular como o local adequado para a educação dos surdos. Dessa forma, tramam-se significados que narram o surdo como sujeito educacional diverso, usuário da língua de sinais como suporte para acessar o currículo da escola regular. Porém, discursos sobre a surdez e os surdos emergem de outros lugares. Em razão de tal virada epistemológica, produzem-se deslocamentos representacionais e, com isso, abrem-se múltiplas possibilidades de contestação e produção de uma política da diferença, que busca outras formas de narrar a alteridade surda e sua educação. Nesse sentido, concorda-se com o comentário de Sá (2002, p. 12-13): Urge que ultrapassemos a discussão sobre o uso da língua de sinais e da língua oral, ou sobre os métodos de ensino, ou sobre os mais recentes avanços da audiologia. É preciso ampliar a discussão para as questões das identidades, das culturas, das etnias, dos gêneros, das políticas, etc. Se os surdos têm que ser “incluídos” em algum lugar, digo que devem sê-lo no lugar e no espaço dos debates. Com isso, não se intenta de forma alguma tecer um juízo de valor sobre este projeto. De igual modo, não se pretende apontar um caminho mais correto a seguir. Do contrário, reitera-se o desejo de, por meio desta investigação, incitar ao debate das inúmeras formas de representar a alteridade surda e sua educação, tendo consciência de que na incompletude deste trabalho residem infindáveis e fecundas possibilidades de questionamento. 15 Referências Bibliográficas: BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BRASIL. Educar na diversidade: material de formação docente / organização: Cynthia Duk. - Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, 2005. 266p. FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. LUNARDI, M. L. 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