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TENDÊNCIAS DE EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DA
ÁGUA
PAULO CANELAS DE CASTRO1
1. Universidade de Macau, [email protected] ; +853.88224091
RESUMO
O Direito Internacional da Água tem vindo a conhecer profunda evolução desde meados
da década de 90 do século XX. Numerosos sinais evidenciam esta ebulição normativa:
desde a celebração de numerosas convenções internacionais, quer ao nível global e
regional, quer ao nível de bacias particulares, até à resolução de litígios por tribunais
internacionais, passando ainda por um número invulgar de conferências e respectivas
resoluções, que colocam a matéria da água em lugar cimeiro da agenda internacional
global. Por de lá tais sinais, importa captar as principais tendências desta evolução
normativa. Três avultam: a tendência para esverdejar ou ambientar o direito internacional
da água; a tendência para tornar o direito internacional da água mais inclusivo e o
humanizar; e a tendência para o conformar de modo mais sensível a uma lógica
económica, que passa, desde logo, por admitir que a água é também um bem económico,
a par de bem ambiental e social. No processo, o direito internacional da água vai-se
fazendo mais integrado com outros campos do direito internacional contemporâneo e
captando os reptos que a vida internacional lhe coloca, conformando igualmente
respostas mais adequadas à contemporânea crise global da água.
Palavras-chave: Ambientalização; crise global da água; Direito Internacional da Água;
economicização; humanização; tendências de evolução.
1
1. INTRODUÇÃO
Após várias décadas num estado anémico, correspondente ao período em que se
procurou codificá-lo, num esforço essencialmente empreendido pela Comissão de Direito
Internacional1 2 - e caracterizado por um debate, que se poderia dizer esquizofrénico,
sobre a prevalência de dois princípios3 de partilha da água, simplisticamente tidos como
em conflito (os princípios do uso equitativo e razoável dos cursos de água e a obrigação
de não causar dano também conhecido como princípio do não dano) -, o Direito
Internacional da Água tem vindo a conhecer considerável desenvolvimento normativo
nas duas últimas décadas.
Este desenvolvimento normativo é apreensível em múltiplos sinais ou indícios. Em
primeiro lugar, nos esforços frenéticos de feitura de Direito: nomeadamente, aqueles que
se traduzem na adopção de numerosos tratados nos diversos âmbitos da sociedade
internacional4; mas também nos da não menos significativa normatividade relativa, soft
1
Foi a delegação da Finlândia que, no quadro do Sexto Comité das Nações Unidas, tomou a iniciativa de propor a
inclusão, na agenda da reunião da Assembleia Geral de 1970, de um assunto intitulado “Desenvolvimento Progressivo
e codificação das regras de Direito Internacional relativas aos cursos de água internacionais. Na sequência deste
passo, em Dezembro do mesmo ano, a Assembleia Geral adopta a Resolução 2669 (XXV), através da qual solicita à
Comissão de Direito Internacional que “empreenda o estudo do direito dos usos diversos da navegação dos cursos de
água internacionais com vista ao seu desenvolvimento progressivo e codificação“ (para. 5). A realização desta tarefa
tomou quase três décadas. Conduziu ao Projecto de Artigos sobre o direito dos usos diversos da navegação dos
cursos de água internacionais, adoptado na 43a. sessão da Comissão de Direito Internacional, em 1991. Após receber
comentários dos Estados, a Comissão procedeu a uma segunda leitura do Projecto de Artigos, o que eventualmente
permitiu a sua adopção pela Assembleia Geral em 1997 (cf. Draft Articles on the Law of the Non-navigational Uses of
International Watercourses, UN Doc A/ CN.4/ L.493 and Add. 1; ILC, “The Law of the Non-navigational Uses of
International Watercourses. Draft Articles and Commentaries thereto Adopted by the Drafting Committee on Second
Reading”, Yearbook of the International Law Commission, II (1994)). Tal Projecto de Artigos resultou mais tarde na
Convenção das Nações Unidas sobre o direito dos usos diversos da navegação dos cursos de água internacionais,
que foi adoptada pela Assembleia Geral em 21 de Maio de 1997. Vide A. Tanzi e M. Arcari, The United Nations
Convention on the Law of International Watercourses: A Framework for Sharing. London, Kluwer, 2001 e S. McCaffrey,
The Law of International Watercourses – Non-navigational Uses. Oxford, Oxford University Press, 2nd ed., 2007.
2
Antes do esforço da Comissão de Direito Internacional, tal cuidado já havia feito com que a Associação de Direito
Internacional tivesse adoptado, em 1966, as Regras sobre os Usos das Águas dos Rios Internacionais, conhecidas
como “Regras de Helsínquia”. Estas Regras versam tanto sobre a navegação como sobre os usos diversos da
navegação dos rios internacionais. Vide International Law Association, Report of the Fifty-second Conference. London,
International Law Association, 1967. Veja-se também E. Manner e V.-M. Metsalampi (eds.), The Work of the
International Law Association on the Law of International Water Resources. Helsinki, Finnish Branch of the
International Law Association, 1988; S. Bogdanovic, International Law of Water Resources: Contribution of the ILA
(1954-2000). London: Kluwer, 2001.
3
Quanto à compreensão destes princípios previamente à adopção da Convenção das Nações Unidas sobre os
Cursos de Água Internacionais, veja-se, por exemplo, L. Caflisch, “‘Sic utere tuo ut alienum non laedas’: regle
prioritaire ou élément servant a mesurer le droit de participation équitable et raisonnable à l’utilisation d’un cours d’eau
international?”, in A. von Ziegler (ed.), Internationales Recht auf See und Binnengewaesser. Festschrift fuer Walter
Mueller, Zuerich: Schulthess, 1993, pp. 27-47.
4
Mencionando apenas uns quantos, a nível regional: a Convenção de Helsínquia de 1992 sobre a Protecção e o Uso
2
law5, empreendidos por tantas organizações ou conferências internacionais, que, neste
período, conseguiram elevar as questões da água à agenda global internacional. Mas
também nos vários conflitos internacionais6 em que a água é invocada como o tema
dos Cursos de Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, a Convenção de Espoo de 1991 sobre a Avaliação de
Impacte Ambiental num Contexto Transfronteiriço, o Protocolo de Londres de 1999 sobre Água e Saúde, o Protocolo
de 2003 sobre Responsabilidade Civil e Indemnização de Danos Causados pelos Efeitos Transfronteiriços de
Acidentes Industriais em Águas Transfronteiriças, Protocolo de 1995 sobre Sistemas de Cursos de Água Partilhados
na Comunidade de Desenvolvimento da África Austral e o seu Protocolo Revisto de 2000 sobre Cursos de Água
Partilhados na Comunidade de Desenvolvimento da África Austral; e, a um nível local ou de bacia particular: a
Convenção do Danúbio de 1994 sobre Cooperação para a Protecção e o Uso Sustentável do Rio Danúbio, os acordos
de 1994 para o Mosela e o Escalda, revistos em 2002, o Acordo de 1998 entre Portugal e a Espanha sobre
Cooperação para a Protecção e o Uso Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, bem como
o Protocolo Revisto à Convenção, de 2008, a Convenção de 1999 sobre a Protecção do Reno, o Acordo de 1995
sobre a Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio Mekong, o Acordo Tripartido Provisório de
2002 entre Moçambique, África do Sul e Swazilândia para a Cooperação na Protecção e Utilização Sustentável dos
Recursos Hídricos dos Cursos de Água do Incomati e do Maputo, a Carta da Água do Rio Senegal de 2002, o
Protocolo de 2003 para o Aproveitamento Sustentável da Bacia do Lago Victoria. Quanto à relação e às interacções
entre instrumentos universal, regionais e locais, vide L. Boisson de Chazournes, Freshwater and International Law:
The Interplay between Universal, Regional and Basin Perspectives, Paris, UNESCO, United Nations World Water
Assessment Programme, 2009; L. Boisson de Chazournes, Fresh Water in International Law, Oxford, Oxford University
Press, 2015, pp. 48-53.
5
Em 2003, a Comissão de Direito Internacional abordou o tema do Direito aplicável aos recursos hídricos
subterrâneos transfronteiriços e, em 2008, adoptou o Projecto de Artigos sobre o Direito dos Aquíferos
Transfronteiriços: UN Doc A/CN.4/L.724 (29 May 2008). Vide International Law Commission, Report of the International
Law Commission – Fifty-eighth session, UN Doc A/61/10 (11 August 2006), pp. 183-245; International Law
Commission, Report of the International Law Commission – Sixtieth session, UN Doc A/63/10 (8 August 2008); S.
McCaffrey, “The International Law Commission Adopts Draft Articles on Transboundary Aquifers”, American Journal of
International Law, 103 (2), 2009; K. Mechlem, “Moving Ahead in Protecting Freshwater Resources: The International
Law Commission’s Draft Articles on Transboundary Aquifers”, Leiden Journal of International Law, 22 (4), 2009.
Prosseguindo este contributo, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 66/104 , de 31 de
Janeiro de 2012, intitulada “o Direito dos aquíferos transfronteiriços”, veio encorajar “os Estados preocupados a fazer
os acordos bilaterais ou regionais apropriados à boa gestão dos seus aquíferos transfronteiriços, levando em conta as
disposições do Projecto de Artigos anexo à Resolução 63/124”.
6
Para apenas mencionar alguns, veja-se, a respeito do Tribunal Internacional de Justiça: Certain Activities carried out
in the Border Area (Costa Rica v Nicaragua), Provisional Measures, ICJ Order of 8 March 2011; Dispute Regarding
Navigational and Related Rights (Costa Rica v Nicaragua), Judgment, ICJ Reports 2009; Frontier Dispute (Benin/Niger),
Judgment, ICJ Reports 2005; Frontier Dispute (Burkina Faso/Niger), Judgment of 16 April 2013; Gabcikovo-Nagymaros
Project (Hungary v Slovakia), Judgment, ICJ Reports 1977; Kasikili/Sedudu Island (Botswana v Namibia), Judgment,
ICJ Reports 1999; Land and Maritime Boundary between Cameroon and Nigeria (Cameroon v Nigeria: Equatorial
Guinea intervening), Judgment, ICJ Reports 2002; Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay), Provisional
Measures, Order of 13 July 2006, ICJ Reports 2006; Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay),
Provisional Measures, Order of 23 January 2007, ICJ Reports 2007; Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v
Uruguay), Judgment, ICJ Reports 2010; a respeito do Tribunal Permanente de Arbitragem: Case concerning the audit
of accounts between the Netherlands and France in application of the Protocol of 25 September 1991 Additional to the
3
principal, bem como o inédito conjunto de decisões judiciais que buscam fundamento e
casus decidendi na água e no Direito Internacional da Água.
Acresce que este desenvolvimento normativo febril é de carácter muito diversificado.
Espelhando tendências que tinham estado na origem do desenvolvimento do mais lato
Direito Internacional, nas últimas sete décadas, e que haviam levado um seu lídimo cultor
a proclamar, com percuciência, que o Direito Internacional estaria doravante a viver a
sua hora pós-ontológica 7 , parece possível arguir que tal progresso se tem vindo a
alimentar do cruzamento do, tradicionalmente algo impermeável, campo do direito
internacional da água com outros ramos do Direito Internacional. Esta tendência genérica
para que o corpus iuris do Direito Internacional da água construa pontes com outros
ramos do Direito Internacional – e, muito em especial, com o Direito internacional do
ambiente, o Direito internacional dos direitos humanos e o Direito internacional
económico – pode assim apreender-se, sumariamente, em três “amizades” substanciais
ou em três “propensões” ou opções axiológicas ou teleológicas do Direito internacional
da água mais recente: uma opção pela “naturalização” ou “ ambientalização” ou ainda
“ esverdejamento” do Direito internacional da água; uma tendência para a “humanização”
do Direito internacional da água, ou, mais amplamente, para o tornar mais inclusivo; e,
mais recentemente, uma tendência para olhar para a água e para o Direito internacional
que dela cuida de um ângulo mais consciamente económico.
2. A AMBIENTALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DA ÁGUA
A ambientalização do Direito Internacional da Água passa, em primeiro lugar, pela
apreensão normativa da realidade dos corpos de água, tal como ela efectivamente se
revela: nas suas múltiplas interconexões e complexidade unitária – de águas
subterrâneas não confinadas com águas superficiais8, de cursos de água com outros
biótipos e ecossistemas9, com a massa terrestre10 bem como com águas marinhas11.
Convention for the Protection of the Rhine from Pollution by Chlorides of 3 December 1976 (Netherlands/France),
Arbitral Award 2004; Indus Waters Kishenganga Arbitration (Pakistan v India), Order on Interim Measures 2011; Indus
Waters Kishenganga Arbitration (Pakistan v India), Partial Award 2013; a respeito do Tribunal de Justiça da União
Europeia: Case 21/76 Handelskwekerij Bier v Mines de Potasse d’ Alsace SA [1976] ECR 1735; Case C-36/98 Spain v
Council of the European Union [2001] ECR I 00779; Case C-266/99 Commission of the European Communities v
French Republic [2001] ECR I-2000; Case C-32/05 Commission of the European Communities v Grand Duchy of
Luxembourg [ 2006] ECR I-11349.
7
T. M. Franck, Fairness in International Law and Institutions, Oxford, 1995, p.5.
8
A própria noção de curso de água, bem como outras noções nucleares destes regimes, compreende e integra
diferentes tipos de águas, bem assim como outros elementos. Por outro lado, exclui águas confinadas e outros
elementos que melhor cabem na noção de bacia hidrográfica ou noções similares, o que leva vários Autores a criticar
a sua escolha: vide S.M.A.Salman, “Evolution and Context of International Water Resources Law”, in S.M.A. Salman e
L. Boisson de Chazournes (eds.), Les ressources en eau et le droit international, pp. 66-68 e E. Brown Weiss, “The
Evolution of International Water Law”, Recueil des cours de l’academie de Droit international, p. 222, que afirma que “A
Convenção das Nações Unidas, sobre Cursos de Água, de 1997, tem várias deficiências de uma perspectiva da
ciência hidrológica”.
9
10
Por exemplo, na Convenção das Nações Unidas, sobre Cursos de Água, artigo 20.
A noção de bacia hidrográfica apreende melhor estas relações. Conquanto por vezes utilizada em instrumentos
regionais (v.g., africanos, vide M. Kamto, “Le droit international des ressources en eau continentales africaines”,
4
Vários instrumentos jurídicos advogam que as bacias de drenagem ou outros conceitos
igualmente integrativos valham como a melhor unidade de gestão da água 12 . Tal
facilitaria a emergência de uma disciplina jurídica mais realista ou eficaz: um regime
jurídico em que o aproveitamento de águas não seja o único objectivo perseguido, mas
em que, pelo contrario, o aproveitamento de águas seja equacionado com o objectivo da
protecção da água13; um regime em que, por isso, só o desenvolvimento sustentável é
lícito. É assim que os assuntos da protecção do ambiente, da qualidade da água e da luta
contra as diversas formas de poluição se tornam temáticas fundamentais da nova
disciplina jurídico-internacional da água14. Harmonicamente, alarga-se também o âmbito
das obrigações que tal regime abriga: para além de obrigações de mitigação e
minimização ou redução e controle do dano15 – de riscos, mesmo16–, há agora também
obrigações de prevenção de impactos, de precaução17. Assim se explica também a
Annuaire français de droit international, 1990, pp. 855-871; veja-se também a Directiva Quadro da Água, no contexto
regional europeu) e locais, não foi retida na Convenção das Nações Unidas sobre Cursos de Água, onde pelo contrário
prevaleceram sensibilidades soberanas de Estados. Veja-se S. Paquerot, Eau douce: La nécéssaire refondation du
droit international, Sainte-Foy (Québec): Presses de l’Université du Québec, 2005, p. 6; J. Sohnle, Le droit international
des ressources en eau douce: solidarité contre souveraineté, Paris, La documentation française, 2002, p. 35.
11
V.g., na Convenção das Nações Unidas, artigo 23, que implica o reconhecimento de que a poluição de origem
telúrica também é fonte de poluição marítima.
12
Por exemplo, a Convenção Luso-Espanhola de 1998.
13
É o que explicitamente se reflecte, por exemplo, na própria designação de convenções como a Convenção do
Danúbio de 1994, a Convenção Luso-Espanhola de 1998, o Acordo Provisório Tripartido relativo aos cursos de água
Incomati e Maputo. Seguindo uma estratégia normativa diferente, a Convenção das Nações Unidas sobre Cursos de
Água de 1997, reconhece a protecção do curso de água como uma componente da utilização equitativa e razoável – e
daí os artigos 5, 6 (a) e (f). Acresce que a Convenção das Nações Unidas sobre Cursos de Água codifica um número
de obrigações de cooperação que auxiliam à prevenção ou mitigação de dano ambiental. E a Parte IV da Convenção
também é dedicada à protecção, preservação e gestão dos ecossistemas ribeirinhos. No plano regional, por aqui
passa a diferença substancial que intercorre entre o Protocolo Revisto da SADC, de 2000, e o primeiro Protocolo sobre
Cursos de Água Partilhados, adoptado em 1995: v.g., os objectivos arrolados no artigo 2 de desenvolvimento e gestão
sustentável, integrado e ambientalmente são.
14
Assim é, mais até, na Europa e na América do Norte, por vezes como resposta a catástrofes decorrentes de
acidentes industriais. Vide A. Kiss, “Tchernobâle ou la pollution accidentelle du Rhin par des produits chimiques”,
Annuaire français de droit international, 33(1), 1987, pp. 719-727.
15
V.g., Artigo 21 da Convenção das Nações Unidas sobre Cursos de Água.
16
É este um dos factores da precaução. Vide L. Boisson de Chazournes, “Precaution in International Law: Reflection
on its Composite Nature” e G.-J. Martin, “ Le concept de risque et la protection de l’environnement: évolution parallèle
ou fertilisation croisée?”, in M. Prieur (ed.), Les hommes et l’ environnement, en hommage à Alexandre Kiss. Paris:
Frison-Roche, 1998, pp. 451-460.
17
Por exemplo, o critério para as obrigações de diligência devida para prevenir, reduzir e controlar poluição, também
existentes na Convenção das Nações Unidas sobre Cursos de Água, foi elevado, no Projecto de Artigos sobre o
Direito dos Aquíferos Transfronteiriços de 2008, por uma disposição, o artigo 12, que requer que os Estados adoptem
uma abordagem de precaução. O princípio da precaução também figura de modo destacado na Convenção de
Helsínquia (artigo 2 (5)(b)) e subjaz a todo o regime do Protocolo UNECE a Convenção de Helsínquia, sobre Água e
Saúde, de 1999. No plano local, pode-se detectá-lo em tratados de bacia como a Convenção Luso-Espanhola de 1998
e os acordos revistos do Mosela e do Escalda de 2002. O princípio é também mencionado no julgamento do caso Pulp
5
consagração de deveres procedimentais, desde o de notificar medidas planeadas até ao
de realizar consultas e negociar18, ou desde obrigações simples de acesso a informação
até a um dever genérico de realização de avaliações de impacte, ambiental como
estratégico19, às vezes até ex post20. Esta perspectiva mais ampla torna-se tanto mais
necessária quanto se reconheça a relevância crucial da água na condição
contemporânea de escassez e alterações climáticas. Ambos os reconhecimentos exigem
acções e medidas21 de mais ampla e cíclica referência temporal. Tais progressos estão
em linha com o conceito de gestão integrada dos recursos hídricos, tal como definido
pela Parceria Global da Água (Global Water Partnership) e baseado na Declaração de
Dublin de 1992 sobre Água e Desenvolvimento Sustentável.
3. A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DA ÁGUA
O Direito Internacional da Água tem também vindo a evidenciar uma tendência para
incluir mais personae jurídicas no círculo dos sujeitos jurídicos participantes.
Esta tendência diz respeito, em primeiro lugar, aos sujeitos tradicionais, os Estados, os
Estados ribeirinhos. Crescentemente, verifica-se que o novo Direito internacional da
água advoga que todos os Estados ribeirinhos de um particular curso de água participem
na disciplina jurídica correspondente22, assim contribuindo também, agora a este nível,
para que o dito Direito seja realista, corresponda à realidade, e, assim, se possa revelar
mais eficaz. Acresce que algumas vezes também apela à participação de Estados
costeiros adjacentes aos ribeirinhos 23 , o que constitui mais um desenvolvimento
normativo que, de novo, exprime uma atenção particular à realidade natural e à dinâmica
efectiva dos impactes.
Em segundo lugar, o mais novo Direito Internacional da Água também diz respeito a
organizações internacionais e a instituições de estrutura e funções muito diferentes24 25.
Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay), Judgment, ICJ Reports 2010, paragrafo 164.
18
Vide Parte III da Convenção das Nações Unidas.
19
Tanto o artigo 12 da Convenção das Nações Unidas como o artigo 15 do Projecto de Artigos sobre o Direito dos
Aquíferos Transfronteiriços prevêem que a obrigação de notificação de medidas planeadas deve ser acompanhada
inter alia pelos resultados de avaliações de impacte ambiental. Há aliás um nexo entre a obrigação de fornecer
informação e as avaliações de impactes: é o que demonstra a afirmação, pelo Tribunal Internacional de Justiça, no
caso Pulp Mills, de que a informação transmitida deve incluir uma avaliação de impacte ambiental completa que
analise os efeitos de uma medida planeada no ambiente e que a notificação deve “ter lugar antes que o Estado em
causa tenha decidido sobre a viabilidade do plano, tomando em conta a avaliação de impacte ambiental apresentada”
(Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay), Judgment, ICJ Reports 2010, para 120.
20
Já tal se tinha indicado no caso Gabcikovo-Nagymaros e assim foi dito explicitamente no caso Pulp Mills on the
River Uruguay (Argentina v Uruguay), Judgment, ICJ Reports 2010, para 205: uma vez iniciadas operações no quadro
de um projecto, tem que se empreender a monitorização contínua dos seus efeitos no ambiente.
21
Como estratégias de adaptação destinadas a fazer face aos impactes das alterações climáticas. Vide artigo 4 (1)(e)
da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, de 9 de Maio de 1992, UNTS 1771 (1994).
22
Vide artigo 3 da Convenção das Nações Unidas.
23
Vide artigo 9 da Convenção de Helsínquia.
24
Para um esforço de tipologia, vide L. Caflisch, “Regles generales du droit des cours d’eau internationaux”, Recueil
des Cours de l’ Académie de La Haye, 219 (1989/VII), pp. 196-202. Contudo, L. Boisson de Chazournes, “The Role of
Diplomatic Means of Solving Water Disputes: A Special Emphasis on Institutional Mechanisms”, in The PCA/Peace
6
A sua constituição ou revivificação26 reflecte a compreensão da necessidade de que os
Estados cooperem para gerir recursos hídricos partilhados através de territórios vários27.
A sua existência facilita a ocorrência recorrente de diálogo entre os Estados ribeirinhos
sobre as actividades que cada um se propõe desenvolver na sua jurisdição,
particularmente a respeito da partilha de direitos e benefícios associados ao
aproveitamento de águas partilhadas, bem como à prevenção, redução e controle de
riscos de danos. Muito em particular, dão azo a um processo institucional de
comunicação, feito de actos procedimentais diferentes que possibilitam a avaliação dos
efeitos de medidas planeadas ou existentes ou de projectos28. Por fim, também facilitam
a realização de actividades conjuntas.
Muito em especial, verifica-se que diversos instrumentos jurídicos29 recomendam que se
criem ou se aproveite a experiência de comissões de cursos de água ou de rios30, no
esforço diuturno de aplicação, mas também de desenvolvimento, dos regimes jurídicos
primários31. Em alguns casos, as organizações ou comissões internacionais também são
chamadas a complementar a acção dos Estados (prestando assistência financeira e
técnica32), ou como instâncias de prevenção e resolução de litígios33)34.
Palace Papers, Resolution of International Water Disputes, vol. 5, The Hague, Kluwer, 2003, pp. 91-110 sublinha a
emergência de uma tendência para a sua harmonização, parcialmente induzida por convenções global e regionais que
promovem a criação de organizações e comissões de bacia.
25
Embora o âmbito da cooperação nestas organizações e comissões fosse estreito durante o século XIX, ele veio a
ser alargado no século XX, em paralelo com o movimento de crescente e mais diversificado uso dos rios internacionais.
O elenco das competências destas organizações e comissões também se tornou mais vasto. Se, de início, a sua
atribuição principal era regular a navegação, o âmbito alargou-se por forma a englobar outras actividades como a
produção de energia, irrigação, actividades de recreio e de protecção ambiental e ainda incluir funções como as de
obtenção de informação e sua disseminação, regulação pela adopção de standards e directivas, a promoção e
execução de actividades operacionais conjuntas, a facilitação de discussões eventualmente conducentes a adopção
de outros instrumentos jurídicos. Veja-se, de modo exemplar, a Convenção Luso-Espanhola, artigo 10.
26
Quanto a primeiras experiências institucionais, veja-se J.P. Chamberlain, The Regime of the International River:
Danube and Rhine, New York, Columbia University, 1923 ; J. Blociszewski, “Le régime international du Danube”,
Recueil des Cours de l’ Académie de La Haye, 11 (1926/I), pp. 253-340; C.-A.Colliard, “Evolution et aspects actuels du
régime juridique des fleuves internationaux”, Recueil des Cours de l’ Académie de La Haye, 125, 1968/III, pp. 417-431;
S. McCaffrey, The Law of International Watercourses – Non-Navigational Uses, pp. 173-174.
27
De modo idêntico, Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay), Judgment, ICJ Reports 2010, para 81.
28
A sua importância é sublinhada no julgamento do Caso Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v Uruguay),
parágrafos 115 e 119.
29
Tais progressos jurídicos e institucionais também foram pedidos por associações científicas: veja-se, por exemplo,
Instituto de Direito Internacional, “Resolution on the International Regulations regarding the Use of International
Watercourses”, de 1911.
30
Vide artigo da Directiva Quadro da Água da UE, de 2000.
31
Esta função de plataforma para a aplicação e o desenvolvimento está claramente reflectida na designação da
comissão Luso-Espanhola instituída pelo acordo de 1998. Veja-se também o artigo 10 do Acordo Luso-Espanhol, que
devota atenção particular ao potencial legiferante da comissão.
32
Vide L. Boisson de Chazournes, “Technical and Financial Assistance”, in D. Bodansky, J. Brunnée, e E. Hey (eds.),
The Oxford Handbook of International Environmental Law (Oxford: Oxford University Press, 2007), pp. 947-973 e,
especificamente sobre água, L. Boisson de Chazournes, Fresh Water in International Law, Oxford, Oxford University
7
Estas organizações e instituições constituem por vezes também plataformas para a
intervenção de outros agentes não governamentais, tal como as ONG ambientais, as de
protecção de direitos humanos ou de busca de melhor governação, mas também
comunidades epistémicas, empresas e indivíduos que, assim, através das primeiras, tem
forma de exprimir as suas preocupações, queixas, interesses, fornecer informação ou
saber e que, simultaneamente assim adquirem estatuto jurídico nos processos de
decisão, deliberação ou julgamento das múltiplas questões em que se analisa a gestão
da água35 36.
Este movimento atinge o clímax quando o Direito Internacional da Água prossegue
claramente o objectivo da sua humanização – o que acontece, em primeiro lugar, quando
consagra direitos procedimentais de acesso a informação 37 , participação em
deliberações e decisões administrativas sobre matéria ambiental, bem como no recurso
judicial contra tais decisões, e direitos de participação em avaliações de impactes, bem
como nas acima mencionadas plataformas institucionais sobre questões de água. A
Convenção de Aarhus de 1998 sobre acesso a informação, participação pública nas
decisões e acesso a justiça em matéria ambiental38, no quadro da UNECE, destaca-se,
em tal contexto problemático, como ilustração principal39 40.
A humanização do Direito Internacional da Água evidencia-se, de seguida, na adopção
de um direito humano à água e ao saneamento41, o que corresponde à satisfação das
mais básicas necessidades humanas42 43 e ultrapassa lacuna gritante ao nível da Carta
Press, 2015, pp. 190-193.
33
A Convenção das Nações Unidas de 1997 sublinha tal função no seu artigo 33(2). Para além dela, também outros
acordos de bacia, como o Acordo Luso-Espanhol de 1998 e o Tratado sobre Águas Fronteiriças de 1909 entre os
Estados Unidos e o Canada (artigo IX) igualmente cometem tal função a comissão correspondente, geralmente
ligando-a aos objectivos do regime em causa.
34
Para tanto, a personalidade jurídico-internacional de uma comissão de rio pode constituir valor acrescentado,
particularmente no relacionamento com terceiros. Vide artigo 11 do Acordo sobre a Cooperação para o aproveitamento
sustentável da bacia do Rio Mekong, de 1995, que expressamente prevê: “O quadro institucional de cooperação na
bacia do rio Mekong (…) terá o estatuto de um organismo internacional, incluindo [poderes para] adoptar acordos e
obrigações com o doador ou a comunidade internacional”.
35
Vide Mekong River Commission for Sustainable Development, Public Participation in the Lower Mekong Basin
(Vientiane: Mekong River Commission, 2005).
36
Os secretariados destas instituições desempenham frequentemente papel crucial.
37
V.g., P.H. Sand, “Information Disclosure as an Instrument of Environmental Governance”, Heidelberg Journal of
International Law, 2, 2003.
38
Vide S.T. McAllister, “The Convention on Access to Information, Public Participation in Decision-Making, and Access
to Justice in Environmental Matters”, Colorado Journal of International Environmental Law and Policy, 187, 1998 .
39
Vide United Nations Economic Commission for Europe, The Aarhus Convention: An Implementation Guide, New
York: United Nations, 2000.
40
De igual modo, no contexto africano, a Convenção Africana sobre Conservação da Natureza e Recursos Naturais.
41
Cf. C. de Albuquerque, “Water and Sanitation are Human Rights: Why does it Matters?”, in L. Boisson de
Chazournes, C. Leb e M. Tignino (eds.), International Law and Freshwater: The Multiple Challenges, Cheltenham,
Edward Elgar, 2013.
42
A consideração de necessidades humanas no desenvolvimento do Direito internacional da Água e anterior ao
reconhecimento do direito humano à água. Em particular, há disposições nucleares tanto na Convenção das Nações
8
Internacional dos Direitos Humanos. Iniciado com o Comentário Geral n°15 ao Pacto
Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, da autoria do Conselho
Económico e Social44, o processo de consolidação45 de tal duplo direito ganhou vigor em
Unidas como no Projecto de Artigos sobre Aquíferos transfronteiriços da Comissão de Direito Internacional que elegem
esta consideração das necessidades humanas como parâmetro de relevo das soluções normativas consagradas: é
este o caso na aplicação dos princípios da utilização equitativa e razoável e do não dano, bem como do dever de
notificar medidas planeadas. Acresce que nos termos do artigo 10 da Convenção das Nações Unidas e da declaração
interpretativa da mesma, o critério das necessidades humanas vitais é reconhecido como justificando prioridade de
utilização. De modo ligeiramente diverso, o artigo 5(2) do Projecto de Artigos sobre Aquíferos Transfronteiriços elege
as necessidades humanas vitais como um dos critérios a ter em conta na determinação do carácter equitativo e
razoável de uma utilização. Mas as Regras sobre Recursos Hídricos da Associação de Direito Internacional, de 2004,
também conhecidas como Regras de Berlim, consagram uma noção ainda mais abrangente da noção de
necessidades humanas: o artigo 3 (20) relaciona “necessidades humanas vitais” com “águas usadas para a imediata
sobrevivência humana, incluindo para beber, cozinhar, e necessidades de higiene, bem como a água necessária para
o imediato sustento de um lar”. Esta tendência é aprofundada por instrumentos regionais e locais, como,
respectivamente, o Protocolo sobre Água e Saúde à Convenção de Helsínquia de 199,2 bem como as Cartas do
Senegal e do Níger para além da Carta da Água para a Bacia do Lago Chade. Acresce que o critério das
necessidades humanas também fez caminho ao nível do julgamento de litígios da água, como o demonstra o Caso
Kasikili/Sedudu (Botswana v Namibia), Judgment, ICJ Reports 1999, 1045, paragrafo 102, no qual o Tribunal Mundial
reconhece que as relações sócio-económicas entre os povos dos Estados ribeirinhos de uma mesma massa de água
têm que ser preservadas e encorajadas, tendo impacte nas questões de delimitação de rios. Já antes, o tribunal
arbitral no caso do Lago Lanoux Case (1957) 12 RIAA 281, paragrafo 8, havia também afirmado que “a unidade de
uma bacia apenas e sancionada ao nível jurídico na medida em que corresponda a realidades humanas. A água, que
por natureza constitui um bem fungível, pode ser objecto de uma restituição que não altere as suas qualidades
relativamente a necessidades humanas. Um transvasamento com restituição, tal como aquele previsto pelo projecto
Francês, não altera um estado de coisas organizado tendo em vista as necessidades da vida social”.
43
É importante ver que o direito humano à água e ao saneamento se liga à satisfação de necessidades pessoais e
domésticas, e assim a certos usos privilegiados de água, em particular aqueles que se relacionam com os usos do lar
e pessoais. Não contende pois com o espectro de todos os outros usos, ai incluindo os usos industriais, agrícolas, de
pesca, navegação, usos hidroeléctricos ou os usos respeitantes a protecção do ambiente, independentemente da
relação estreita entre eles. A natureza de direito fundamental empresta a este direito o seu estatuto objectivo prioritário
– tal como o faz o direito internacional dos cursos de água com uma disposição como o artigo 10 da Convenção das
Nações Unidas de 1997.
44
Comentário Geral No.15 (2002) do Conselho Económico e Social, “The Right to Water”, UN Doc E/C.12/2002/11 de
20 de Janeiro de 2010.
45
Outros marcos limiares neste caminho, mesmo anteriores ao Comentário Geral No. 15, são o Plano de Ação de
Mar del Plata, das Nações Unidas, de 1977, a Declaração de Dublin sobre Água e Desenvolvimento Sustentável de
1992 e a Agenda 21. Também tratados internacionais contribuem para definir aspectos ou beneficiários deste direito:
em particular, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres (artigo 14 (2),
a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 24 (2)), a Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência
(artigo 28 (2a)). Também merecedores de nota são o Projecto de Directrizes para a Realização do Direito de
Fornecimento de Água de Beber e Saneamento adoptado pela Subcomissão para a Promoção e Protecção de Direitos
Humanos em 2005. Para além de instrumentos de direitos humanos, também os relativos ao direito dos cursos de
água internacionais contribuíram para a emergência do direito: em particular, o Protocolo sobre Água e Saúde, a Carta
9
2010, com a adopção de resoluções sobre a matéria por parte da Assembleia Geral das
Nações Unidas 46 e do Conselho dos Direitos Humanos 47 . Pelo essencial, estes
documentos 48 enraízam este direito 49 de conteúdo multifacetado 50 no espaço dos
direitos económicos, sociais e culturais -, o que equivale a apresenta-los como direitos de
realização progressiva51 . Acresce que, de tal qualificação, também resulta um certo
número de obrigações sequenciais para os Estados, nomeadamente obrigações de
respeito, protecção e realização52. Entre outros deveres, assim é que os Estados são
chamados a desenvolver actividade reguladora complementar. Também de tal resulta
que o direito humano a água não impede o Estado de perceber pagamento pelos
da Água do Rio Senegal, a Carta da Água da Bacia do Níger e a Carta da Agua do Rio Chad.
46
Resolução 64/292 da Assembleia Geral das Nações Unidas, “The Human Right to water and sanitation”, UN Doc
A/Res/64/292 , de 3 de Agosto de 2010.
47
Resolução 15/L.14 do Conselho dos Direitos Humanos, “Human rights and access to safe drinking water and
sanitation”, UN Doc A/HRC/15/L.14 de 24 de Setembro de 2010.
48
Para lá das diferenças conceptuais e mesmo interpretativas entre os diversos instrumentos normativos,
relativamente ao âmbito jurídico do direito, seu conteúdo, campo de aplicação e aplicação (vide L. Caflisch, “Le droit à
l’eau – Un droit de l’homme internationalement protégé?”, Actes du Colloque de la Société française pour le droit
international – L’eau en droit international (Paris: Pédone, 2011), pp. 392-394), todos eles reconhecem a importância
deste direito e partilham visão ou objectivo geral: o de alcançar o acesso a água segura para o ser humano e o de
obtenção de acesso a sistemas de saneamento. Eis o que mobilizou juridicamente e politicamente diferentes actores e
constituiu o quadro para se procurar a efectiva aplicação e realização deste direito, uma tarefa ingente vistas as
realidades neste domínio (vide WHO e UNICEF, Progress of Sanitation and Drinking Water: 2010 Update (Geneva:
WHO e UNICEF, 2010). A este ultimo respeito, certas iniciativas sobressaem pelo que contribuem para o avanço do
supramencionado objectivo geral: nomeadamente, a decisão do Conselho dos Direitos Humanos em 2008 (por
intermédio da Resolução 7/22) de nomear Perito Independente para a questão dos direitos humanos relativos ao
acesso a água de beber e saneamento, que, em 2011, (através da Resolução 16/2) se tornou o Relator Especial sobre
o Direito a água de beber segura e saneamento – definiu o direito à água e os relatórios do Relator Especial auxiliaram
a refinar o seu conteúdo (cf. C. de Albuquerque, On the Right Track: Good Practices in Realising the Rights to Water
and Sanitation, 2012); assim também imprecações do Conselho dos Direitos Humanos aos Estados para a aplicação
deste direito.
49
Enquanto alguns instrumentos formulam este direito como direito autónomo, outros há que o ligam a outros direitos
e chegam mesmo a fazê-lo derivar deles: por exemplo, ligam-no ao direito a vida e apresentam-no como pré-requisito
para a realização de todos os direitos humanos (v.g., Resolução 64/292 da Assembleia Geral), o direito a um nível de
vida adequado e o direito ao mais elevado nível alcançável de saúde física e mental bem como o direito à vida e
dignidade humana (Resolução 15/L.14 do Conselho dos Direitos Humanos). Também o Comentário Geral No. 15
deduz o direito humano à água do direito a um nível de vida adequado e considera que está “indissociavelmente
relacionado com o direito ao mais elevado nível alcançável de saúde e aos direitos a alojamento e a alimentação
adequados”.
50
Invocam-se a este respeito as notas de acesso equitativo, qualidade, disponibilidade, acessibilidade (económica).
Cf. C. Albuquerque, “Water and Sanitation as Human Rights”, in Conseil d. Etat, L’eau et son droit , Paris: Conseil
d’etat, Rapport publique, 2010,, pp. 483-484.
51
Vide artigo 2 (1) do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e S.M.A. Salman e S.
McInerney-Lankford, The Human Right to Water. Legal and Policy Dimensions, Washington, The World Bank, 2004, pp.
28-31.
52
Idem, a pp. 67-68.
10
serviços prestados. Acresce que tal decorrência vale não só para o Estado mas também
para aqueles outros atores que crescentemente intervêm na oferta de serviços de água
ou de tratamento de resíduos53, já que este direito humano à água se entende como
neutro relativamente ao modelo económico adoptado pelo Estado a respeito desses
serviços públicos vitais, e que se tornam necessários investimentos volumosos para que
a proclamação deste direito se torne realidade vivida. A mera evocação destes
problemas, bem sublinha que o interface entre este direito humano à água e uma gestão
da água crescentemente orientada por considerações de natureza económica, constitui,
indubitavelmente, uma das áreas principais de desenvolvimento do Direito Internacional
da Água, mas também de necessária clarificação do Direito.
4. A INTEGRAÇÃO DA ECONOMIA E DAS SUAS DISCIPLINAS
O terceiro vector de renovação do Direito Internacional da Água contende com a
integração da economia e das suas disciplinas. O ponto de partida deste movimento é
paralelo aos que dizem respeito às supramencionadas tendências de evolução deste
corpo de regras: para além de ser assumida como bem ambiental e pólo de habilitação
jurídica de diverso conspecto de atores e sobretudo fundamento de reconhecimento de
um direito humano a ela dirigido, a água é também, mais e mais, apreendida como bem
económico e objecto de comércio e relações económicas.
Tal desenvolvimento é propiciado por vários factores: a consciência difusa da escassez
da água e da sua desigual distribuição, conducente a uma crescente demanda do
recurso, bem como uma crescente capacidade de dele dispor no espaço e no tempo.
Esses desenvolvimentos levam depois a elucubrações sobre se a água ou o serviço do
seu fornecimento não ganharia em ver-se impor um preço “racionalizante” e sobre se não
há mérito em comerciar água em grandes quantidades, para além de a transportar
através de espaços grandes, levando a de zonas “ricas em água” para zonas “pobres em
água”, bem como colhê-la do meio natural e engarrafá-la e vendê-la num mercado
crescente de “produtos” de água. De igual modo, uma corrente aparentemente crescente
de reflexão jurídica devota-se à ponderação dos méritos e deméritos da aplicação do
direito internacional do comércio54 bem como do direito internacional dos investimentos55,
para além das instituições correspondentes, às operações da água relevantes e à análise
das consequências de tal rumo de actuação.
Mais especificamente, esta reflexão jurídica, fundamentalmente criativa ou inovadora,
questiona-se, em primeiro lugar, a respeito do comércio de água em grosso, se a algo de
particular no bem água que justifique, se não mesmo que imponha a derrogação dos
princípios que regem o comercio internacional (princípios como os da nação mais
favorecida, da não discriminação) ou que, pelo contrário, obriguem Estados ricos em
53
Mais amplamente, estabelecendo uma relação entre a luta por este direito e a ascensão de novos actores na cena
internacional e a sua pretensão para tratar a água como bem público global e por uma governação global da água,
vide F. Coulée, “Rapport général – Du droit international de l’eau à la reconnaissance internationale d’un droit à l’eau:
Les enjeux”, in Société francaise pour le droit international, Colloque d’Orleans. L’eau en droit international, Paris,
Pédone, 2011, pp. 37-38.
54
Desde logo, dos acordos da OMC, do GATT e do GATS.
55
Esta aqui em causa, a miríade de acordos regionais e os BITs (acrónimo da fórmula, em Inglês, para tratados
bilaterais de investimento - bilateral investment treaties).
11
água a exportar abundantemente os seus recursos hídricos. Outra linha de inquérito é a
que, partindo da hipótese de que o regime do GATT é aplicável, se pergunta qual será a
margem de manobra que resta a um Estado exportador determinado a seguir uma
abordagem de precaução na gestão dos seus recursos hídricos: ou ainda, se, na
prossecução das suas políticas de protecção ambiental ou de pendor social, um tal
Estado pode colher conforto bastante nas cláusulas excepcionantes do Artigo XX do
GATT ou se é razoável depender dos mecanismos de resolução de litígios da OMC na
prossecução das mesmas políticas.
Já no que respeita à água e aos serviços de tratamento de resíduos, bem como ao GATS
e às estratégias de liberalização de mercados, as principais perguntas versam sobre a
possibilidade de salvaguardar serviços públicos de água no movimento geral de abertura
do mercado a fornecedores de serviços estrangeiros, nomeadamente as, não raro muito
poderosas, empresas multinacionais, desejosas de fornecer tais serviços segundo
princípios de lucro económico. Também se afigura relevante definir o âmbito dos poderes
de regulação de um Estado empenhado em prosseguir o interesse público.
Em articulação substancial com tal debate, ainda que não nos termos dos instrumentos
jurídicos em causa, aparecem as discussões resultantes do reconhecimento
aparentemente crescente da crise financeira do Estado. Em causa está uma reflexão
sobre o envolvimento do Estado e as prioridades do seu envolvimento na economia.
Avalia-se também de uma propensão para o Estado partir em busca de capacidade
técnica e recursos financeiros, através de formas várias de privatização de serviços de
água, que antes eram axiomaticamente tidos como públicos. Como se atenta na
crescente abertura a investimento directo estrangeiro, com o que isso implica de
protecção de tais capitais pelo corpo de regras do Direito Internacional dos investimentos
e dos seus mecanismos de resolução de litígios (- não raro arreigados em arbitragem
internacional). Apesar da sua grande proximidade, enquanto que o debate anterior, da
liberalização do mercado internacional, diz respeito sistemático aos instrumentos do
Direito da OMC, este último, da abertura a privados, antes tem sede sistemática nas
centenas de acordos regionais e bilaterais de investimento, em razão da falta da
dimensão investimento nos acordos da OMC.
A principal questão que se debate respeita aos poderes regulatórios do Estado anfitrião
perante as obrigações internacionais de protecção de investimentos. O esforço em causa
é o de alcançar o equilíbrio correcto entre, de um lado, os poderes que procuram a
protecção do interesse público e que servem obrigações correspondentes, como as
obrigações correspectivas do direito humano à água ou as obrigações de protecção do
ambiente, e, do outro lado, as obrigações dirigidas à protecção dos investimentos
internacionais.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Nestas tendências de evolução, o Direito Internacional da Água revela claro esforço de
relevar os reptos que coloca uma nova realidade, marcada pela escassez global da água.
Para tanto, intenta captar a água na condição complexa dos múltiplos interesses que
induz ou move – ambientalização, humanização, economicização, são, neste caso,
vectores de uma comum via de redefinição do Direito regulador da água, que é, no
conjunto, um caminho de maior complexidade. Tais orientações não são, contudo,
desprovidas de contradições, de potencial de colisão – como acontece, em especial,
entre as vias da ambientalização e humanização, de um lado, e da economicização, do
12
outro lado. Tal sublinha um outro desafio maior que se coloca a este novel Direito da
Água: o de conseguir promover uma aplicação harmoniosa das suas linhas de evolução,
de ser um Direito integrador, holístico. As suas opções cardinais são-no para objectivos
que são comuns a este corpus iuris; e são animadas por valores igualmente comuns,
valores que os novos princípios que transporta, normativamente consolidam. Um tal
programa normativo equivale, naturalmente, a uma revolução silenciosa, a uma mudança
de paradigmas relativamente ao clássico Direito Internacional da Água, dos usos e das
partilhas. Não será por isso fácil a sua prossecução, nem livre de inconsequências. É até
expectável que actores “velhos” resistam às inovações que promete. Ainda assim, os
sinais de mudança que se acumulam ao nível da sua criação e, sobretudo, o facto de se
poderem apreender tanto ao nível global, regional e local, mas também a sua crescente
institucionalização, que passa até por uma até há pouco impensável judicialização,
parecem indiciar uma consistência relevante. Conjuntamente com uma nova atitude dos
práticos deste Direito, podem estar reunidas as condições da sua desejável eficácia.
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