O compromisso ético do novo romance brasileiro: a óptica surreal

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O compromisso ético do novo romance brasileiro: a óptica surreal
O compromisso ético do novo romance brasileiro: a óptica surreal
em
Estorvo de Chico Buarque.
Anne Sletsjøe
Universidade de Oslo
A publicação de Estorvo pelo distinto cantor e escritor Chico Buarque de Hollanda em 1990,
fez-se um evento publicitário fora do comum tanto no Brasil como no estrangeiro. A obra,
que era o primeiro romance escrito pelo autor, foi logo traduzida para vários idiomas. Filmado
em 1999 por Ruy Guerra, Estorvo foi também homenageado no festival de Cannes no ano
seguinte, sendo comparado pelos críticos com O Processo de Kafka, entre outros títulos
famosos da literatura ocidental.1
A história individual dum “estorvo”
Na página a seguir ao rosto do livro há uma “definição” da palavra estorvo da parte do autor,
que lhe dá os seguintes sinónimos: estorvar, distúrbio, perturbação, torvação, turva,
torvelinho, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor,
estropiar, estrupício, estrovenga, e (outra vez) estorvo.2 Com excepção à palavra inicial, não
há convergência directa entre as definições dos dicionários da língua portuguesa e a definição
autoral acima citada. É, por isso, natural considerar esta como descritiva do universo
dramático apresentado no romance. Tal como a lista de sinónimos autorais acaba por fazer,
também o romance faz, do ponto de vista estrutural, um movimento circular, visto que os
diferentes capítulos finais até um certo ponto se tornam repetições dramáticas – às vezes
repetições inversivas – de capítulos anteriores. No decorrer da história estorvo terá vários
sentidos: significará, sobretudo, embaraço, obstáculo (que são, aliás, os sinónimos oferecidos
pelo dicionário Aurélio), e um sujeito que não presta para nada, que só atrapalha.
A história dramática apresenta-se ao leitor por um protagonista que, na primeira
pessoa do presente, nos informa das suas vagabundagens por uma cidade anónima (facilmente
identificada como o Rio de Janeiro) e os arredores desta – um procedimento logo distraído, ou
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desviado, por obstáculos concretos e imaginários. Sabemos do passado do protagonista
através das suas reflecções e memórias, especialmente dos últimos cinco anos deste (dos quais
os quatro e meio primeiros representam os seus anos de casado). O período “revisto” pela
memória caracteriza-se por uma insociabilidade cada vez maior. O divórcio, que aconteceu
seis meses antes do “agora” dramático da história, foi provocado sobretudo pela progressiva
retirada e isolação do protagonista que acabou por já não sair mais do apartamento, trancando-se nele muito contente, andando nu, pensando na mulher em vez de estar com ela, falar com
ela, pensando na vida em vez de vivê-la. Também conta muito o facto de ele passar a viver às
custas da mulher – como depois viveria às custas da irmã que, por sua vez, vive às custas do
seu marido novo-rico num condomínio de luxo, numa casa vigiada por guardas armados e
pastores alemães.
Ao começar a história, o protagonista oscila entre uma – rara – actuação própria
comparativamente determinada, isto é: o comportamento de um sujeito, e os reflexos
medrosos dum fugitivo que gradualmente se torna vítima, o objecto, da manipulação de
outros sujeitos – desconhecidos e brutais. Este processo alienador pode tanto resultar da
degradação social de que é vítima o protagonista, como pode, segundo tudo indica, ser a causa
da mesma. Seguimos o protagonista – inominado, como também o são os outros personagens
que entram neste universo dramático – durante uns três/quatro dias, e podemos observar como
lhe é difícil, ou até impossível, distinguir bem entre realidade e alucinação.
O “estorvo económico-social”
No decorrer caótico e bizarro da história recontada, o protagonista vai três vezes de ida e volta
entre a cidade e “o sítio” – a (outrora) idílica propriedade rústica familiar localizada nas
montanhas perto da cidade. Já na primeira ida repara num dos outros passageiros:
A meu lado sentou-se um sujeito magro, de camisa quadriculada, que eu já havia
visto encostado numa coluna. Estamos ombro a ombro no mesmo banco, e eu não
posso ver direito a sua cara. (Estorvo: 23)
O sítio representa actualmente o campo de guerra tanto interior como exterior do
protagonista; repleto de memórias da infância, encontra-se agora cercado por inimigos. No
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seu estado de abandono actual, sim porque faz cinco anos que nenhum membro da família lá
vai, o sítio é vigiado pelo antigo caseiro que lá vive junto com 25 crianças selvagens. Embora
o protagonista conheça cada palmo dele, o sítio revisitado depois de cinco anos manifesta-selhe como uma terra incógnita: familiar e inacessível e estranha ao mesmo tempo, ocupada e
explorada pelos outros (os contraventores), e invadida às escondidas todas as noites por uma
gente miserável e clandestina. O protagonista descobre que são leprosos, instalados num
camping provisório dentro do sítio, que vêm roubar frutas do velho bananal. O idílo da
infância, onde o protagonista tem o seu quarto e onde continua a ser “o patrãozinho” do velho
caseiro, tem-se tornado um lugar extremamente perigoso, dominado pelos “outros”, “os de
fora” – “os gêmeos” e o seu chefe, o “ex-pugilista”. É uma propriedade cujo valor já diminuiu
tanto que o sogro deseja vendê-la.
Cada vez que vai ao sítio, o protagonista é roubado (roubam-no as crianças e os
leprosos, sem que ele faça nada para impedi-lo) e maltratado (batem nele repetidas vezes e
brutalmente os novos “donos” do sítio). Mesmo assim é ali que, semi-intencionalmente, vai
vender as jóias roubadas. Jóias estas que acabam sendo tomadas dele à surra. No dia seguinte
entregam-no o pagamento: uma mala cheia – e cheirosa – de maconha, e mandam-no embora.
Depois de várias tentativas disparatadas de encontar um lugar seguro para a mala de maconha,
que naquele momento representa todos os seus recursos económicos, o protagonista acaba por
perdê-la depois de cair violentamente numa escada. Vários incidentes desastrosos mais tarde,
encontra-se outra vez em casa da irmã. A irmã está, no entanto, de viagem, porque a casa
supervigiada acaba de ser roubada (dão-se agora conta das jóias desaparecidas), ela, violada.
Aparecerá lá um delegado de polícia, amigo do sogro, para tratar do assunto, e para
deliberar sobre a vigilância. Mais uma vez a impressão visual causa consternação ao narrador:
Não lembro se o conheço da televisão, de fotos nos jornais, de capas de revistas,
mas sei que se trata de um homem famoso; alguém que as pessoas encontram e
olham em dois tempos, porque no primeiro a pele parece falsa, e é a fama. (Estorvo:
126)
O delegado acaba por levar consigo o protagonista, o qual todos parecem (justamente)
suspeitar do roubo das jóias. Vão para o sítio confrontar “os outros”; é o delegado quem vai,
pessoalmente, comandar a diligência aquela noite. O delegado, que obviamente conhece
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bem “os outros”, informa o chefe deles, o ex-pugilista, da identidade do protagonista, que se
trata, efectivamente, do antigo dono.3
Depois de descobrir as jóias, o delegado mete-as nas próprias bolsas e mata vários
membros da banda criminosa. O protagonista foge, de pé descalço, para tomar o autocarro,
onde pela terceira vez reconhece o sujeito magro de camisa quadriculada:
Avistá-lo ali, não sei por que, enche-me de um sentimento semelhante a uma
gratidão. Sigo correndo ao seu encontro, de braços abertos, mas ele interpreta mal;
encolhe os ombros e puxa uma faca de dentro da calça. […] Estou a um palmo
daquele rosto comprido, sua boca escancarada, e já não tenho certeza de conhecê-lo.
Na verdade, conheço-o apenas pela camisa quadriculada, e é a camisa que abraço
com força, e agarro e esgarço. Recebo a lâmina inteira na minha carne […].
(Estorvo:139-40)
É o estorvo individual-físico final.
Da observação visual ao surreal
Antes desse fim dramático e possivelmente fatal, a história do nosso protagonista oferece
vários (outros) exemplos da sua experiência alucinada; é sempre a observação visual que
serve de base às reflecções dele, seja nas suas observações “normais”, seja nas variantes
ópticas mais esquesitas e distorcidas. Junto com a observação predominantemente visual vem
também a preocupação com o espaço – o espaço interno (psicológico e temporal), mas
sobretudo o externo, que também se observa como terrenos rememorados (o sítio, as ruas e os
bairros da cidade). São as experiências visuais que, excepcionalmente, também o fazem reagir
e actuar, como na cena inicial do livro, aquela que provoca todos os eventos subsequentes,
forçando o protagonista a deixar o seu mundo fechado – o apartamento alugado:
Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito
através do olho mágico. [...] Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço
aquele rosto de um tempo distante e confuso. [...] Procuro imaginar aquele homem
escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é
sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. (Estorvo: 11)
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É um desconhecido disfarçado por uma barba tão sólida que parece anterior ao rosto, e
que lhe torna irreconhecível:
E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu
julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do
rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu
melhor disfarce, para mim. (Estorvo: 11-12)
A sensação do incómodo, e, pouco a pouco, do medo, é o que lhe incita à acção
imprevista e desacostumada:
Não posso dormir com a imagem daquele homem fixo na minha porta. Volto ao
olho mágico. Hei de surpreender uma imprudência dele, uma impaciência que o
denuncie, que me permita ligar o gesto à pessoa. (Estorvo: 12)
Passada esta confusão inicial o protagonista já é capaz de fazer uma avaliação que lhe parece
lógica da situação em que se encontra, se bem que se trate, em comparação com o real óptico,
duma irrealidade evidente:
Agora me parece claro que ele está me vendo o tempo todo. Através do olho
mágico ao contrário, me vê como se eu fosse um homem côncavo. Assim ele me
viu chegar, grudar o olho no buraco e tentar decifrá-lo, me viu fugir em câmera
lenta, os movimentos largos, me viu voltar com a fisionomia contraída e ver que ele
me vê e me conhece melhor do que eu a ele. (ibid.)
O protagonista não quer, ou já não é capaz, de lidar com indivíduos autênticos e
tridimencionais; só sabe lidar com homens anónimos, disfarçados atrás de máscaras
autoimpostas ou imaginadas:
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Porque eu sei apenas que ele não é o que pretende aparentar [...]. E ele me conhece
o suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a
porta para alguém que de fato quisesse entrar. (ibid.)
É grande a resistência do protagonista à memória pessoal. É uma resistência passiva,
que parece fundada mais numa experiência de abandono, ou da sensação, justa ou
injusta, de ser traído; foge psicologicamente da identificação alheia, que lhe pudesse
levar tanto a um compromisso reconhecido, como a uma obrigação pessoal:
E é nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a
esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve
comigo, mas que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a
cabeça e saiu do meu campo de visão [...]. (Estorvo:12)
“Sair do meu campo de visão” é, aliás, uma fórmula várias vezes repetida pelo protagonista,
que, no embaraço que se encontra aqui na cena inicial, logo tenta livrar-se, passado algum
tempo, da presença assustadora do sujeito importuno, fugindo do prédio. A mudança dum
comportamento essencialmente defensivo a uma tomada de posição activa, se bem que
evasiva e desorganizada, vai, como mostram as citações em cima, de mãos dadas com a
deslocação focal do real distorcido/imaginado ao surreal: À reentrada do sujeito no prédio, o
protagonista consegue escapar dele e conclui: “Não preciso olhar o sexto andar para saber que
ele me vigia da minha janela.” (Estorvo:14) Quer dizer que, dentro do contexto da realidade
vivida pelo protagonista, o sujeito desconhecido se encontra “agora” dentro do apartamento
do sexto andar. Não se trata de nenhuma alucinação ou imaginação da parte do protagonista;
houve, deveras, um câmbio de localização/posição tanto dramática como física entre os dois.
É um facto que, devido às circunstâncias físicas descritas, não tem explicação lógica. O
protagonista altamente perturbado sabe disso, e já não precisa, como foi mostrado, comproválo pela vista.
Do surreal ao fantástico
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Outra experiência ainda mais alarmante: Na segunda ida ao sítio o protagonista encontra-se
sentado dentro do autocarro ao pé dum homem corpulento que vai descambando em cima dele
em cada curva da estrada:
Vou reclamar, vou cutucar seu braço, mas quando olho as mãos do indivíduo, as
mãos do indivíduo são de cera. Juro que parecem de cera aquelas mãos [...] Olho
para o rosto dele, e é feito da mesma cera [...] e tem uma expressão que é de quem
não vai mais para lugar nenhum. (Estorvo:66)
Assustado por se ver sentado ao pé dum defunto que se mexe no assento como uma
boneca de trapos de acordo com as freadas e os saltos do autocarro – se bem que mais
ninguém se dê conta deste facto – o protagonista já não pode mais:
Salto do ônibus, dou quatro passos na relva, viro-me de repente e vejo a cabeça do
morto no centro da janela, olhando fixo para mim. O ônibus demora a partir, e não
consigo escapar do morto. Ando na relva para lá e para cá, e para qualquer lado que
eu vá o morto me olha de frente, mesmo sem virar o rosto, parecendo um locutor de
telejornal, mudo. O ônibus parte devagar, e agora a cabeça do morto vai girando
para trás, sempre olhando para mim, como se o seu pescoço fosse uma rosca.
(Estorvo: 67)
Neste encontro com o surreal, o protagonista baseia-se incrédulo na observação detalhada dos
seus próprios olhos. Não põe em dúvida a sua observação, nem sabe explicá-la.
É um facto repetidamente observado no texto, que grande parte das reflecções e
observações do protagonista se nos transmitem no futuro do indicativo; da descrição dum
fenómeno ou dum incidente o protagonista-narrador passará à descrição imaginária e
detalhada daquilo que depois acontecerá. Várias vezes prevê cursos alternativos dos
acontecimentos futuros e imaginados – uma violação evidente de qualquer reprodução
realista. São, no entanto, tão extensos e dramáticos os excursos futuros, e fica o leitor de vez
em quando tão confuso a respeito do “verdadeiro” decorrer dramático, que não é capaz de
logo determinar o que realmente passou com o protagonista. Em outros poucos casos, de que
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são exemplos as duas cenas acima citadas, casos que são, no essencial, narrados no presente
do indicativo, descreve--se o desenrolar dum processo do real àquilo que, pelo menos na voz
corrente, já não o é. O leitor opta, junto com o protagonista, por uma explicação irreal ou
surreal, simplesmente por não encontrar uma alternativa válida; os incidentes em questão
parecem não ter explicação lógica dentro do universo descrito, sendo, portanto, exemplos do
fantástico, segundo o define Tzvetan Todorov.4
Enquanto carácter marginalizado e desalinhado o nosso “estorvo” tem medo tanto da
polícia como de outros representantes do poder civil ou clandestino, incapaz de se opor à
autoridade e à violência excercidas. Por isso entra, repetidas vezes, e sem resistência
nenhuma, em carros estranhos, a comando de homens desconhecidos. A sua única acção
activa e premeditada é o roubo das jóias da irmã, durante uma grande festa; assim passa de
parasita a ladrão. Também este acto é, no entanto, desligado da própria vontade:
Repartir as jóias entre os quatro bolsos do meu jeans é um gesto rápido como um
reflexo. Um ato tão silencioso e obscuro que nem eu mesmo testemunho. Um ato
impensado, um ato tão manual que pode se esquecer. Que pode se negar, um ato
que pode não ter sido. (Estorvo: 61)
Durante os acontecimentos referidos por ele o protagonista estupefacto também não diz
palavra; se reage, mesmo naqueles momentos mais dramáticos, perigosos e absurdos, reage
fisicamente, evadindo-se. Há só uma única exepção numa cena dramática no fim do livro:
Encaro o delegado e digo ´agora chega´, mas a voz sai tão débil que eu mesmo mal
escuto. Talvez ele escute, pois abana a cabeça e sai do meu campo de visão.
(Estorvo:139)
Fora disso o protagonista mantém-se silencioso e passivo como um sonâmbulo; até parece um
deficiente mental – ou um toxicómano adepto. Não há, no entanto, nada que, do ponto de
vista explicativo, justifique a última alternativa. Resta-nos portanto somente a opção sócio-psicológica.
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A óptica ”paraxial”
O facto de se tratar dum texto, cujos elementos irreais parecem originar-se em primeiro lugar
da situação sócio-psicológica individual, indicaria, todavia, outra aproximação ao fantástico
como a mais proveitosa; refiro-me ao estudo de Rosemary Jackson, Fantasy: the literature of
subversion, de 1981. Partindo do estudo de Todorov – criticado pela autora por não considerar
suficientemente as implicações sociais e políticas das formas literárias em questão, o alvo de
Jackson é tentar focar a política (“the politics”), e não somente a poética (“the poetics”), do
moderno fantástico. Segundo Jackson ,
The topography of the modern fantastic suggests a preoccupation with problems of
vision and visibility, for it is structured around spectral imagery: it is remarkable
how many fantasies introduce mirrors, glasses, reflections, portraits, eyes – which
see things myopically, or distortedly, as out of focus – to effect a transformation of
the familiar into the unfamiliar. (Jackson 1981:43)
Estorvo tem, de facto, inúmeros exemplos disto; por exemplo, ao chegar ao
condomínio, o protagonista descreve a casa da irmã desta maneira:
A casa da minha irmã é uma pirâmide de vidro [...] As poucas paredes interiores de
alvenaria foram projetadas de modo que quem entrasse no jardim poderia ver o
oceano e as ilhas ao fundo, através da casa. (Estorvo:14-15)
Às vezes até se combinam e se problematizam ironicamente os diferentes efeitos ópticos,
disfarçando a obscuridade moral e a brutalidade pela aparente translucidez social. Mais uma
vez a descrição trata da casa do cunhado mafioso:
Fazia tempo que não vinha aqui de noite, e quando vi à distância a nova iluminação
do condomínio, pensei que fosse uma filmagem. Um aparato de holofotes azula os
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paralelepípedos, devassa as árvores por baixo das copas e ofusca a vista de quem
chega. (Estorvo: 53)
Entre os pontos de vista mais pertinentes para o romance de Chico Buarque, distingue-se o
conceito introduzido por Jackson para definir, ou localizar, 5 o fantástico – o paraxis:
In a secularized culture, desire for otherness is not displaced into alternative regions
of heaven or hell, but is directed towards the absent areas of this world,
transforming it into something ´other´ than the familiar, comfortable one. Instead of
an alternative order, it creates ´alterity´, this world re-placed and dis-located. A
useful term for understanding and expressing this process of transformation and
deformation is ´paraxis´. (Jackson 1981:19)
O protagonista de Estorvo vadia por uma paisagem psicológica e urbana onde a realidade se
disfarça sob máscaras de ordem vária, e onde as imagens se distorcem ou se fragmentam por
reflectores e espectros. São sempre as imagens fragmentadas a representarem a percepção
mais fiel e adequada do mundo observado. O fantasiar do protagonista com a própria irmã, é
um bom exemplo onde se concretiza o fenómeno das imagens fragmentadas e o processo de
as reunir opticamente numa só imagem totalizante:
Minha irmã estará debaixo do chuveiro, num banheiro que eu não conhecia, e que
seria uma pirâmide forrada de espelhos. Numa só mirada seria possível ver minha
irmã de todos os ângulos. E a visão seria tão instantânea que todas as imagens dela
se fundiriam na retina de quem visse. E ver tanto dela ao mesmo tempo, de frente e
de dorso e de lado e de baixo numa imagem só, talvez fosse como nada ver, mas
seria tê-la visto absoluta. (Estorvo: 83)
A alienação do protagonista toca até à fisionomia própria, como neste exemplo significante da
entrada dele dum banco, onde mais uma vez o espelho tem uma função instrumental:
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Olho para o outro lado e encaro a vidraça que, com a luz fria do banco e uma
coluna por trás, virou espelho. Eu não olhava o espelho há tanto tempo que ele me
toma por outra pessoa. (Estorvo:101)
O desejo – inarticulado e possivelmente subconsciente – de proximidade humana observa-se,
no entanto, na sequência do “professor”, um homem completamente desconhecido com quem
topa o protagonista nos fundos duma escola, e que durante horas o segue como uma sombra
confortante. Formam, ao que parece, uma aliança psicológica mútua, até que de repente o
“professor” entra num shopping e desaparece. O protagonista passa a procurar aflitamente o
seu mudo alter ego. Afinal, o outro consegue “voltar para casa” – o manicómio.6 O
acolhimento caloroso da parte do enfermeiro faz com que esta cena se torne o paralelo
positivo da última cena do romance aqui já referida: a do abraço fatal do sujeito magro de
camisa quadriculada.
Estorvo – o exemplo duma realidade e duma temporalidade deslocadas
Segundo Jackson,
The paraxial area could be taken to represent the spectral region of the
fantastic, whose imaginary world is neither entirely ´real´ (object), nor
entirely ´unreal´ (image), but is located somewhere indeterminately between
the two. (Ibid.)
A situação do indivíduo entre passado e futuro, a entender como a observação intelectual e a
experiência sentimental da passsagem do tempo, são tópicos existenciais que em Estorvo se
manifestam, tematicamente, não somente pelo emprego dos diferentes tempos verbais, como
também pela equiparação mental directa dos planos temporais da história narrada. Ao lembrar
o seu amigo no sítio cinco anos atrás, o protagonista preocupa-se com o facto de já não se
recordar dos pés do amigo. Reflectindo exasperadamente, as suas rememorações visuais
convertem-se gradualmente numa espécie de ”memória interactiva”, assim estando também o
passado ao alcance deste visual criativo, cujo papel fundamental já foi identificado na
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observação do decorrer dramático do presente.7 Do deliberar do protagonista sobre as duas
versões do passado, o leitor entende que a verdadeira, a versão que representa o real, é aquela
da memória visual transformada:
Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa
ver depois por algum viés da lembrança. Talvez dar órbita de hoje aos olhos
daquele dia. E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho
da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro da água turva,
impossíveis de julgar. (Estorvo: 77)
O compromisso ético do romance de Chico Buarque
Se bem que pareçam vários dos meios e relações sociais descritos (como, por exemplo, os
episódios das crianças selvagens e dos leprosos) necessariamente surreais aos olhos duma
leitora escandinava – aquilo que inicialmente se apresenta em Estorvo como a descrição
verídica duns poucos dias da vida dum indivíduo desarraigado da alta burguesia, um
derrotado que acaba de se fazer vagabundo e criminoso, torna-se gradualmente num
psicodrama. – O protagonista vive um pesadelo em pleno dia, um pesadelo em que o
progressivo desequilíbrio mental e físico dele choca com a violência impessoal e até
desintencionada da sociedade que o cerca, até que ele se encontra, na última cena, às portas
da morte.
Seja qual for a óptica aplicada – a surreal, a fantástica ou a paraxial – caberá ao leitor
determinar, ou re-definir ao longo da leitura, qual será a siginificação predominante da
palavra estorvo no caso da obra em questão: se o termo-chave duma versão brasileira da
história da alienação do homem moderno; se o diagnóstico duma sociedade violenta e caótica,
uma sociedade em desequilíbrio social. É, todavia, indiscutível a inscrição que faz o autor da
sua obra na tradição do fantástico literário moderno. Ficará, no entanto, para outra ocasião
discutir, dentro do contexto do romance de Chico Buarque, como, no fundo, entender a
função do elemento fantástico neste caso, e como identificar aquilo que Jackson qualifica de
“alterity” – se algo temido por inteiro ou se algo subconscientemente desejado pelo seu
protagonsta cismativo e confuso, para que outra vez faça sentido a sua vida e se acabe o
sentimento de alienação que tanto o atormenta:
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Sinto que, ao cruzar a cancela, não estarei entrando em algum lugar, mas saindo
de todos os outros. Dali avisto o vale e seus limites, mas ainda assim é como se o
vale cercasse o mundo e eu agora entrasse num lado de fora. Após a besta
hesitação, percebo que é esse mesmo o meu desejo. Piso o chão do sítio e caio fora.
Piso o chão do sítio, e para me garantir decido fechar a cancela atrás de mim.
(Estorvo: 24)
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Bibliografia
Hollanda, C.B. de 1991. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras
Todorov, T. 1973. The Fantastic. A Structural Approach to a Literary Genre.
Cleveland/London: The Press of Cave Western Reserve University. [Tradução do original
Introduction à la littérature fantastique. 1970: Editions du Seuil]
Jackson, R. 1981. Fantasy. The literature of subversion. London & New York: Methuen.
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1
Quanto ao impacto que teve a obra escrita nos leitores brasileiros e na inteligência brasileira, é difícil saber qual
foi. As referências a teses e a estudos sobre ela são escassas.
2
A definição da mesma palavra no Dicionário de sinónimos da Porto Editora é outra: Estorvo: atalho,
atranquilho, baixio, barbilho, barranco, contrariedade, contraste, contratempo, desaviamento, desvio, dificuldade,
dique, embaraço, embargo, empecilho, empeço, entulho, estorva, estorvamento, estorvilho, estrovo,
impedimento, imporém, incómodo, inconveniência, interrupção, nô, óbice, obstáculo, oposição, peguilho, peia,
pejamento, pejo, pespego, rémora, resistência, tolheita, torva, trapeira, tropeço, travança.
3
Informa-nos este último sobre o seu adversário: “É conduzido ao táxi e senta-se comigo no banco traseiro. O
delegado trata-o por colega, e apresenta-me como proprietário do sítio, como parte prejudicada e como cidadão
queixoso. Ele aperta a minha mão com força, chacoalhando-a demoradamente, como se me encontrasse pela
primeira vez. Mas eu o reconheço pelo nariz achatado de ex-pugilista.” (Estorvo:132)
4
Uma obra fantástica deve, segundo as teorias de Todorov, responder às seguintes exigências: “The fantastic
requires the fulfilment of three conditions. First, the text must oblige the reader to consider the world of the
characters as a world of living persons and to hesitate between a natural and a supernatural explanation of the
events described. Second, this hesitation may also be experienced by a character; thus the reader´s role is so to
speak entrusted to a character, and at the same time the hesitation is represented, it becomes one of the themes of
the work […]. Third, the reader must adopt a certain attitude with regard to the text: he will reject allegorical as
well as ´poetic´ interpretations. These three requirements do not have an equal value. The first and the third
actually constitute the genre; the second may not be fulfilled. Nonetheless, most examples satisfy all three
conditions.” Todorov [1970] 1973:33.
5
“This signifies par-axis, that which lies on either side of the principle axis, that which lies alongside the main
body. Paraxis is a telling notion in relation to the place, or space, of the fantastic, for it implies an inextricable
link to the main body of the ´real´ which it shades and threatens. The term paraxis is also a technical one
employed in optics. A paraxial region is an area in which light rays seem to unite at a point after refraction. In
this area, object and image seem to collide, but in fact neither object nor reconstituted image genuinely reside
there: nothing does.” (Jackson 1981:19)
6 “Saio espiando outras vitrines. Ao pé da escada rolante, emparelho com o professor que vinha descendo da
sobreloja. Mas ele já não acerta o passo comigo; pára quando eu ando, anda quando eu paro, entra e sai duma
papelaria de porta giratória. Na calçada em frente ao shopping, vejo estacionar uma camionete branca com
vidros brancos, trazendo no capô a inscrição “aicnâlubma”, e nas portas ´Senatório Dr. Berdoch´. Um enfermeiro
grande desce sorrindo e abrindo os braços para o professor.” (Estorvo: 109)
7 “No dia em que ele fez esse gesto eu não achei nada, e na certa não tinha nada que achar. Mas hoje, além do
gesto, descubro um brilho em seus olhos que me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele
olhava, mas na minha lembrança não entra o horizonte, e os olhos brilham por brilhar. [...] Provavelmente se
sentindo lembrado, tira longo proveito da situação. Traga um cigarro, que na lembrança anterior nem existia, e
fica se deixando olhar, como um ator de perfil. Que se vira para mim de repente, querendo me surpreender, com
um brilho nos olhos que me incomoda de novo. E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés.”
(Estorvo: 76-77)

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