Ronnie Marmo
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Ronnie Marmo
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Igor Bergamo Anjos Gomes (In)Visibilidade? o negro nas telenovelas São Luís 2015 1 IGOR BERGAMO ANJOS GOMES (In)Visibilidade? o negro nas telenovelas Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da UFMA, para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Beserra Coelho São Luís 2015 2 Gomes, Igor Bergamo Anjos (In)Visibilidade? O negro nas telenovelas / Igor Bergamo Anjos Gomes. – São Luís, 2015. 268f. Orientadora: Prof a. Dra. Elizabeth Bessera Coelho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de PósGraduação em Ciências Sociais, 2015. 1. Personagens negros 2. Telenovelas 3. Visibilidade/invisibilidade I. Título CDU 316.722 3 IGOR BERGAMO ANJOS GOMES (In)Visibilidade? o negro nas telenovelas Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da UFMA, para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Aprovada em____/______/ 2015 BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Prof. Dra. Elizabeth Beserra Coelho (Orientadora) Universidade Federal do Maranhão _______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva. Universidade Federal do Maranhão __________________________________________________ Prof. Dra. Maria Do Socorro Sousa de Araújo Universidade Federal do Maranhão __________________________________________________ Prof. Dr. Ramon Luis de Santana Alcântara Universidade Federal do Maranhão __________________________________________________ Prof. Dra. Cíndia Brustolin Universidade Federal do Maranhão 4 AGRADECIMENTOS A conclusão do curso de doutorado em Ciências Sociais materializa uma grande alegria em minha vida e a realização de um grande sonho, que certamente viabilizará outros. Reconheço que esta não concretiza uma vitória apenas individual, mas de uma coletividade de pessoas que estiveram ao meu lado como parceiras ao longo de minha trajetória. Por isso eu agradeço a Deus por seu amor para comigo, pela força que sempre me deu e pelas pessoas maravilhosas que colocou em minha vida. Agradeço a minha família, na pessoa de minha mãe Ramona, que depois de mim é a pessoa mais empolgada com minha tese e meu doutoramento, ao meu pai Perpétuo, minha irmã Mariana e meu cunhado Guilherme, pelo apoio, amor e compreensão incondicional ao longo desta e de outras jornadas. Agradeço a minha querida Professora Elizabeth Coelho, por ter aceito o convite para ser minha orientadora. Agradeço-lhe por ser, desde que a conheci em 2005, uma referencia profissional e de ser humano para mim. Penso que palavras não são suficientes para expressar minha admiração, minha gratidão à minha orientadora pelo carinho e acolhimento e pela forma como me mostrou os caminhos para construção deste trabalho. Agradeço ao meu colega de trabalho Thiago Lima, pela amizade desde os tempos da graduação em geografia-UFMA, pelas aprendizagens teórico-metodológicas que compartilha comigo, pela ajuda prestimosa no tocante a revisão do texto da tese. Agradeço a professora Socorro Araujo por sua solicitude para comigo desde os tempos em que era aluno de graduação no curso de serviço social da UFMA, pelas contribuições ao meu trabalho dadas por ocasião da qualificação do projeto e da tese. Agradeço aos professores do doutorado em Ciências Sociais da UFMA, em especial ao professor Carlos Benedito, “Carlão”, o primeiro a me receber nas Ciências Sociais, como meu orientador no mestrado, sendo parceiro na construção da dissertação que foi o ponto de partida do projeto que resultou na presente tese. Agradeço, também, aos professores Horácio Antunes e Sandra Nascimento pelo aprendizado que me propiciaram ao longo das disciplinas que cursei sob a condução destes no mestrado e doutorado. Agradeço, também, as minhas colegas de turma no doutorado, Katia Núbia, Anne Nava e Juciana Sampaio e aos amigos do grupo de estudos Estado Multicultural e Políticas Públicas pela convivência e cooperação acadêmica. 5 Agradeço aos professores Ramon Luis de Santana Alcântara e Cíndia Brustolin por terem aceitado o convite para compor a banca de avaliação da tese, e pelas preciosas contribuições feitas ao meu trabalho. Agradeço a todos os meus colegas do Departamento de Geociências da UFMA, pela compressão no tocante a redução de minha carga horária para que eu pudesse cursar o doutorado. Agradeço, em especial, aos professores Irecer Portela, Juarez Diniz, Roberta Figueiredo, Juarez Mota, Marcelino Farias e Ediléia Dutra Pereira e Samarone Marinho, que ocuparam a Coordenação do curso de Geografia e Chefia do Departamento do qual faço parte como docente na UFMA, por cooperarem para que meus horários fossem redimensionados, para viabilizar o alcance de minha titulação. Agradeço a minha ex-professora e atual colega de trabalho Zulimar Márita Ribeiro Rodrigues pela torcida e ajuda no tocante a disciplina Direito Ambiental que cursei do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambiente do qual é coordenadora. Agradeço aos meus colegas de departamento Maria da Glória e Márcio Celeri, pelo apoio presencial no dia da defesa da tese. Agradeço a todas minhas queridas professoras do curso de Serviço Social da UFMA e também aquelas a quem conheci na coordenação, departamento, ou mesmo nos corredores. Além de minhas eternas mestras, são referenciais na minha formação política e exercício profissional. Não poderia deixar de citar os nomes das professoras: Amparo Barros, Jacinta Silva, Maria Eunice Damasceno, Célia Martins Soares e Silvany Magali. Agradeço, também a amizade e parceria dos meus amigos, afilhados a quem chamo carinhosamente de “base aliada”. Não poderia deixar de citar Sandra Caldas, Celso Cutrim, Robinson Castro, Rodolfo Prata Naza, Alex Andrade, Alessandra Oliveira, Phelipe Almeida , Helena Araujo, Bruno Gutiez, Tieta do Agreste, João José Soares, Marcia Ninfabebê, Janselmo Mello, Janaina Haickel, Pedro Costa, Paloma Costa, Augusto Mendes, Aline Haickel, Diogo Azoubel, Fátima Acioly, Pedro Ximenes, Patricia Ximenes, Joanyr Filgueira, Joaninha Castro, Rafael Cordeiro, Elizabeth Haickel, Jocilene Silva, Taline Shineider, Luana Lima, Gustavo Santos e a querida Amanda Marfree “um anjo que caiu nas nossas vidas este ano”. 6 RESUMO A presente tese analisa a presença de personagens negros em 68 telenovelas produzidas pela Rede Globo de Televisão entre os anos de 2001 a 2013, tendo por objeto a compreensão da produção social da diferença no tocante a significação da idéia de sujeito negro. O processo de investigação, ancorado em uma etnografia destas telenovelas, apontou que os folhetins produzidos dentro dos marcos temporais estabelecidos pela pesquisa, sob a “ameaça simbólica” da proposição das cotas raciais na mídia, passaram a implementar um aumento quantitativo no tocante a presença de personagens nos enredos das tramas em questão. O percurso investigativo indicou que as propostas de personagens negros nos folhetins em questão reproduziram estereótipos sobre o negro, orientados por uma racionalidade referenciada nas relações coloniais. As categorias analíticas Colonialidade do Poder e do Saber (Mignolo, 2003) e os esquemas analíticos propostos pelos autores pós-coloniais Bhabha (1998) e Spivak (2010) instrumentalizaram a identificação de que, no tocante a inserção de personagens negros em telenovelas, uma maior quantidade, pode não assegurar uma maior visibilidade nos enredos, bem como a presença de personagens negros pode não resultar diretamente em uma maior participação nas tramas, o que desestabiliza a equação de que ausência seria igual a invisibilidade e presença igual a visibilidade. Palavras-Chave: Personagens Negros, Telenovelas, Visibilidade/Invisibilidade. 7 ABSTRACT This thesis analyzes the presence of Black characters in 68 soap opera produced by Rede Globo de Televisão between the years 2001 to 2013, having by object the social differences production understanding, regarding the significance of Black person Idea. The research process, anchored in these soap operas ethnography, pointed out that the serials produced within the timeframes established by the researchunder the "symbolic threat" of the racial quotas in the media proposition, began to implement a quantitative increase regarding the Black characters presence in the plots of the soap operas in question .Investigative route indicated that proposals for black characters in these serials in question reproduced stereotypes about black people, guided by a rationality referenced in colonial relations .The analytical categories Coloniality of Power and Knowledge ( Mignolo , 2003) and the analytical frameworks proposed by authors postcolonial Bhabha (1998) and Spivak (2010) instrumentalised the identification that, as regards the inclusion of black characters in soap operas ,greater quantity can not ensure greater visibility to the plots, and the presence of black characters can not lead directly to greater participation in the plots ,which destabilizes the equation that absence would equal invisibility and presence equal visibility. Keywords : Black Characters , Soap Operas , Visibility / Invisibility 8 LISTA DE FOTOS FOTO 01 - Atriz Ruth de Souza, na novela A Cabana do Pai Tomás em 1969.............50 FOTO 02 - Atriz Tais Araújo na novela Xica da Silva..................................................51 FOTO 03 - Ricardo Linhares...........................................................................................66 FOTO 04 – Benedito Ruy Barbosa..................................................................................67 FOTO 05 - Walther Negrão.............................................................................................68 FOTO 06 - Euclydes Marinho.........................................................................................71 FOTO 07 - Alcides Nogueira..........................................................................................71 FOTO 08 - Mário Prata...................................................................................................74 FOTO 09 - Walcyr Carrasco...........................................................................................76 FOTO 10 - Antonio Calmon............................................................................................77 FOTO 11 - Glória Perez..................................................................................................79 FOTO 12 - Miguel Falabela............................................................................................80 FOTO 13 - Silvio de Abreu.............................................................................................82 FOTO 14 - Gilberto Braga...............................................................................................83 FOTO 15 - Aguinaldo Silva............................................................................................86 FOTO 16 - João Emanuel de Carneiro............................................................................92 FOTO 17 - Manoel Carlos..............................................................................................95 FOTO 18 - Personagem Baltazar...................................................................................101 FOTO 19 - Personagem Eneida.....................................................................................103 FOTO 20 - Personagens Ramon e Dalila......................................................................104 FOTO 21 - Personagem Alex.......................................................................................105 FOTO 22 - Personagem Seth e Daniel..........................................................................105 FOTO 23 - Personagens Verbena, Antônio e Deolinda................................................106 FOTO 24 - Personagens Jacques e Clotilde..................................................................107 FOTO 25 - Personagem Adriano...................................................................................107 FOTO 26 - Personagens Lorena, Matias e Maria..........................................................108 FOTO 27 - Personagens Ináia, Jacques e Félix.............................................................109 FOTO 28 - Personagens Laerte e Ináia.........................................................................109 FOTO 29 - Personagem Judith......................................................................................110 FOTO 30 - Personagens Eron, Jayminho e Niko..........................................................111 FOTO 31 - Personagens Paco e Preta ..........................................................................112 FOTO 32 - Personagens Rai e Preta.............................................................................113 9 FOTO 33 - Personagem Dôdo.......................................................................................113 FOTO 34 - Personagens Felipe e Preta.........................................................................114 FOTO 35 - Protagonistas Brancos da novela Cobras e Lagartos.................................115 FOTO 36 - Personagens Ramires e Shirley...................................................................115 FOTO 37 - Personagens Kika e Foguinho.....................................................................116 FOTO 38 - Personagens Foguinho e Duda ...................................................................116 FOTO 39 - Personagens Foguinho e Ellen....................................................................117 FOTO 40 - Personagens Tarsicio, Rose, Regina, Francisco e Glória...........................118 FOTO 41 - Personagens Rose e Gustavo......................................................................119 FOTO 42 - Personagens Emanuelle, Tião e Rose.........................................................119 FOTO 43 – Personagens Glória e Nuno.......................................................................120 FOTO 44 – Personagens Euridice e Tarsicio................................................................120 FOTO 45 - Personagens Miguel e Rose........................................................................120 FOTO 46 - Personagens Pericles, Bené e Ernestina......................................................121 FOTO 47 - Personagens Edith, Sandra, Helena, Paulo e Laércio.................................122 FOTO 48 - Personagens Benê e Sandra........................................................................123 FOTO 49 - Personagens André e Helena......................................................................124 FOTO 50 - Personagens Helena e Marcos....................................................................124 FOTO 51 - Personagens Helena, Marcos e Luciana.....................................................124 FOTO 52 - Personagens Helena e Tereza.....................................................................125 FOTO 53 - Personagens Rafaela e Helena....................................................................126 FOTO 54 - Personagens Helena, Bruno e Marcos........................................................126 FOTO 55 - Personagens Alice, Ellen, Helena e Ariane................................................127 FOTO 56 - Personagens Cida, Rosário e Penha............................................................128 FOTO 57 - Personagens Marcos e Penha......................................................................128 FOTO 58 - Personagens Patrick e Penha.......................................................................129 FOTO 59 - Personagens Alana, Elano e Penha.............................................................129 FOTO 60 - Personagens Ignácio e Dinha......................................................................130 FOTO 61 – Personagens Zé Maria e Isabel...................................................................131 FOTO 62 – Personagens Albertino e Isabel..................................................................131 FOTO 63 – Personagens Elias, Zé Maria e Isabel.........................................................132 FOTO 64 – Personagens Isabel, Afonso e Berenice....................................................132 FOTO 65 – Personagens Berenice, Olavo, Vilmar, Zenaide e Elias............................133 FOTO 66 - Personagens Zé Maria e Carniço................................................................133 10 FOTO 67- Personagem Chico.......................................................................................133 FOTO 68 – Personagens Etelvina e Jurema..................................................................134 FOTO 69 – Personagens Etelvina e Percival.................................................................134 FOTO 70 - Personagens Nanda e Tito...........................................................................137 FOTO 71 - Personagens Carlinhos e Zilda....................................................................137 FOTO 72 - Personagem Ritinha....................................................................................138 FOTO 73- Personagens Cemil, Mônica e Alberto. ......................................................139 FOTO 74 - Personagens Sarita e Alberto......................................................................139 FOTO 75 - Personagens Diva e Marisol.......................................................................140 FOTO 76 - Personagem Deusa......................................................................................140 FOTO 77 - Personagens Deusa, Diva e Grace Kelly....................................................141 FOTO 78 - Personagens Taluda e Herondi. .................................................................141 FOTO 79 - Personagens Semíramis e Belarmino..........................................................142 FOTO 80 – Capa da Trilha Sonora Internacional da novela Paraíso Tropical............143 FOTO 81 - Personagens Bebel e Olavo.........................................................................143 FOTO 82 - Personagem Evaldo.....................................................................................144 FOTO 83 - Personagem Eloisa......................................................................................145 FOTO 84 - Personagens Evaldo e Eloisa após “banho de loja” ...................................145 FOTO 85 - Personagens Tatiana e Ivan.........................................................................145 FOTO 86 - Personagens Ivone e Daniel. ......................................................................146 FOTO 87 - Personagem Claúdio...................................................................................146 FOTO 88 - Personagens Dr. Castanho e Suellen...........................................................147 FOTO 89 - Personagem Vanúbia. ................................................................................148 FOTO 90 - Personagens Delzuite e Pescoço. ...............................................................148 FOTO 91 - Personagens Clóvis e Diva. .......................................................................149 FOTO 92 - Personagem Sheila......................................................................................149 FOTO 93 - Personagem Sidney.....................................................................................150 FOTO 94 - Personagens Julinha e Élcio........................................................................150 FOTO 95 - Personagens Islene, Feitosa e Diva.............................................................151 FOTO 96 - Personagem Dalva e Farinha......................................................................153 FOTO 97 - Atriz Negra representando Nossa Senhora Aparecida................................153 FOTO 98 - Personagens Caco e Láis.............................................................................154 FOTO 99 - Personagem Esmeralda ..............................................................................155 FOTO 100 - Personagem Mãe Ricardina......................................................................156 11 FOTO 101 - Personagem Selminha Aluada .................................................................156 FOTO 102 - Personagens Mãe Ricardina e Rufino ......................................................157 FOTO 103 - Capa da trilha sonora da novela Duas Caras............................................158 FOTO 104 - Personagens Evilásio e Júlia ....................................................................159 FOTO 105 - Personagens Misael e Claudine ...............................................................159 FOTO 106 - Personagens Sabrina e Barretinho ...........................................................160 FOTO 107 - Personagens Solange e Claudius ..............................................................161 FOTO 108 - Personagens Morena/Condessa e Apolo ..................................................161 FOTO 109 - Personagem Andréia Bijou ......................................................................162 FOTO 110 - Personagem Setembrina/Mãe Bina ..........................................................162 FOTO 111 - Personagem Rudolf...................................................................................163 FOTO 112 - Personagens Leonardo, Dagmar e Leandro..............................................165 FOTO 113 - Personagens Edvaldo e Glória .................................................................165 FOTO 114 - Personagens Jacaré e Janaína....................................................................165 FOTO 115- Personagens Sylvie e Jacaré......................................................................166 FOTO 116 - Personagens Vanusa e Rosemary.............................................................168 FOTO 117- Personagem Pedrão/Godzila......................................................................169 FOTO 118 - Personagem Àghata e Barão.....................................................................171 FOTO 119 - Personagens Damião e Galego.................................................................172 FOTO 120 - Personagens Rei Augusto e Maria Cesária...............................................172 FOTO 121 - Personagens Tibungo, Amáia e Maria Cesária. .......................................173 FOTO 122 - Personagens Virginia/Bá e Sinhá Moça....................................................177 FOTO 123 - Personagem Fulgêncio e Justino...............................................................178 FOTO 124 - Personagens Adelaide e José Coutinho. ..................................................178 FOTO 125- Capitão do Mato. .......................................................................................179 FOTO 126 - Personagens Das Dores e Tobi. ...............................................................180 FOTO 127 - Personagem Cleusinha..............................................................................181 FOTO 128 - Personagens Antero e Candinha...............................................................181 FOTO 129 - Personagem Zacarias................................................................................182 FOTO 130 - Personagens Rosário e Cosme..................................................................183 FOTO 131 - Personagens Selma e Mauricio.................................................................184 FOTO 132 - Personagens Selma, Beto, Beleza, Jóia, Mauricio e Verinha...................185 FOTO 133 - Personagens Inácia e Darlene...................................................................186 FOTO 134 - Personagens Hélio e Sabina......................................................................186 12 FOTO 135 - Personagem Abílio....................................................................................187 FOTO 136 - Personagens Olivia e Clarice....................................................................187 FOTO 137 - Personagens Jovelina e Eunice.................................................................188 FOTO 138 - Personagem Emiliano...............................................................................188 FOTO 139 - Personagem Adonir. .................................................................................189 FOTO 140- Personagens Alice e Adonir.......................................................................189 FOTO 141 - Personagem Zulma...................................................................................190 FOTO 142 - Personagem Bike-Boy..............................................................................190 FOTO 143 - Personagem Baiana...................................................................................191 FOTO 144 - Personagem Charles Muller......................................................................191 FOTO 145 - Personagem Rush......................................................................................192 FOTO 146 - Personagem Abigail/Biga.........................................................................192 FOTO 147 - Personagens Rosário e Floriano................................................................193 FOTO 148 - Personagens Cidinha e Soldado Brasil.....................................................194 FOTO 149 - Personagens Iraci e Ana. ..........................................................................194 FOTO 150 – Personagens Max e Cícero/Cirso............................................................195 FOTO 151 – Personagens Safira, Esmeralda, Ametista e Pérola. ................................196 FOTO 152 - Personagens René e Nancy. .....................................................................197 FOTO 153 - Personagens Marretta e Max. ...................................................................197 FOTO 154 - Personagens Juliano e Quirino. ................................................................198 FOTO 155 - Personagens Nicole, Wiliam, Quirino e Doralice.....................................198 FOTO 156 - Personagem Sheila. ..................................................................................199 FOTO 157 - Personagens Ademir, Cema e Maico........................................................200 FOTO 158 - Personagens Wall e Eliseu........................................................................200 FOTO 159 - Personagem Lourenço. .............................................................................200 FOTO 160 - Personagens Amendoin, Candê e Cridinho..............................................201 FOTO 161 - Personagem Amendoin.............................................................................201 FOTO 162 - Personagens Noronha e Saulo...................................................................202 FOTO 163 - Personagens Mauro e Noronha.................................................................202 FOTO 164 - Personagem Cigano..................................................................................203 FOTO 165 - Personagem Maikel Jackson.....................................................................204 FOTO 166 - Personagens Lady Daiane e ShaoLin........................................................204 FOTO 167 - Personagens Rita e Constatino..................................................................204 FOTO 168 - Personagens Deusa e Albieri....................................................................208 13 FOTO 169 - Personagens Deusa e Léo.........................................................................209 FOTO 170 - Personagem Mocinha com o neto Léo quando Criança. .........................210 FOTO 171 - Personagem Dalva....................................................................................210 FOTO 172 - Personagem Dona Jura. ............................................................................211 FOTO 173 - Personagem Tião.......................................................................................211 FOTO 174 - Personagem Lucas....................................................................................213 FOTO 175 - Personagens Pimenta e Joana...................................................................214 FOTO 176 - Personagens Elvira, Moacir e Joana.........................................................214 FOTO 177 - Personagens Bruno e Teresa.....................................................................216 FOTO 178 - Personagens Palmira e Salvador...............................................................216 FOTO 179 - Personagem Tadeu....................................................................................217 FOTO 180 - Personagem Darlene com seus filhos negros............................................217 FOTO 181 - Personagens Comandante e Vladimir.......................................................218 FOTO 182 - Capas das Trilhas Sonoras de Insensato Coração....................................219 FOTO 183 - Personagens André, Carol e o filho do Casal...........................................219 FOTO 184 - Personagens Leila e André.......................................................................220 FOTO 185 - Personagens Gregório e André.................................................................220 FOTO 186 - Personagens André, Carol e Raul.............................................................221 FOTO 187 - Personagens Gabino, Fabiola e Milton.....................................................221 FOTO 188 - Personagens Negros na novela Mulheres Apaixonadas...........................223 FOTO 189 - Personagens Dra. Myrna e Júlia...............................................................224 FOTO 190-Personagens Dra. Myrna e Heraldinho.......................................................225 FOTO 191 - Personagem Tita Bicalho..........................................................................225 FOTO 192 - Personagem Romildo Rosa.......................................................................226 FOTO 193 - Personagem Didu .....................................................................................227 FOTO 194 - Personagem Alicia....................................................................................227 FOTO 195 - Personagem Zezé......................................................................................230 FOTO 196 - Personagem Silas......................................................................................231 FOTO 197 - Personagem Herculano.............................................................................231 FOTO 198 - Personagem Jonas.....................................................................................232 FOTO 199 - Personagem Luz da Silva..........................................................................232 FOTO 200 - Personagens Tosca e Fladson...................................................................235 FOTO 201 - Personagens Fladson e Dagmar................................................................235 FOTO 202 - Personagem Isaltino..................................................................................236 14 FOTO 203 - Personagem Dionísia................................................................................236 FOTO 204 - Personagens Anastácia/Latoya e Jurema/Whitney...................................237 FOTO 205 - Personagem Índia......................................................................................239 FOTO 206 - Personagem Violeta..................................................................................240 FOTO 207 - Personagens Dedé e Natália......................................................................242 FOTO 208 - Personagem Gilda.....................................................................................242 FOTO 209 - Personagem Selma....................................................................................243 FOTO 210 - Personagens Gabriela, Angélica, Selma e Lucas......................................244 FOTO 211 - Personagem Pinhão...................................................................................245 FOTO 212 - Personagem Vicente e Benta. ..................................................................246 FOTO 213 - Personagem Berenice................................................................................247 FOTO 214 - Personagem Milena...................................................................................247 FOTO 215 - Personagens Milena e Nicholas................................................................248 FOTO 216 - Personagens Ada, Magali e Aluísio..........................................................248 FOTO 217 - Personagens Lidia, Oséas e Tiago............................................................250 FOTO 218 - Personagem Bento....................................................................................250 FOTO 219 - Personagens Janice e Roney. ...................................................................251 15 LISTA DE QUADROS QUADRO 01 - O quantitativo cronológico de personagens Negros nas Telenovelas exibidas pela Rede Globo de 2001 a 2013......................................................................48 QUADRO 02 - Novelas Protagonizadas por Atores negros............................................53 QUADRO 03 - Novelas com núcleo/número significativo de personagens negros (mais de sete atores negros........................................................................................................55 QUADRO 04 - Presença de personagens negros em telenovelas das 21 horas..............56 QUADRO 05 – Novelas com Apenas um Personagem Negro.......................................57 QUADRO 06 - Autoria das Telenovelas.........................................................................59 QUADRO 07 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Carlos Lombardi produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................65 QUADRO 08 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Benedito Ruy Barbosa produzidas de 2001 a 2013................................................................................68 QUADRO 09 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Walther Negrão produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................69 QUADRO 10 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Ana Maria Moretzsohn produzidas de 2001 a 2013..........................................................................69 QUADRO 11 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Maria Adelaide Amaral produzidas de 2001 a 2013.................................................................................73 QUADRO 12 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Elizabeth Jim.........74 QUADRO 13 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Walcyr Carrasco produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................76 QUADRO 14 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Antonio Calmon produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................78 QUADRO 15 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Glória Perez Produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................78 QUADRO 16 - Quantidade de personagens negros Novelas de Miguel Falabela produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................81 QUADRO 17 - Novelas de Silvio de Abreu produzidas de 2001 a 2013.......................81 QUADRO 18 - Quantidade de Negros Nas Novelas de Gilberto Braga produzidas de 2001 a 2013.....................................................................................................................85 QUADRO 19 - Novelas de Aguinaldo Silva Produzidas de 2001 a 2013......................87 16 QUADRO 20 - Quantidade de Personagens negros nas Novelas de João Emanuel de Carneiro...........................................................................................................................92 QUADRO 21 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Duca Rachid e Thelma Guedes produzidas de 2001 a 2013....................................................................93 QUADRO 22 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Manoel Carlos...............................................................................................................................95 17 LISTA DE SIGLAS CIDAN – Centro Brasileiro de Documentação e Informação do Artista Negro EUA – Estados Unidos da América IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBOPE - Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa GTI - Grupo de Trabalho Interministerial MPR - Movimento pelas Reparações OIT - Organização Internacional do Trabalho ONU - Organização das Nações Unidas PFL/MA – Partido da Frente Liberal / Maranhão PT/RS - Partido dos Trabalhadores/ Rio Grande do Sul SBT – Sistema Brasileiro de Televisão TVE - Televisão Educadora 18 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................20 1.1 Trajetória Metodológica.........................................................................................37 2 COTAS RACIAIS NA MIDIA: propostas e repercussões......................................40 2.1 Estatuto da Igualdade Racial e cotas nos produtos midiáticos...........................43 2.2 A “Ameaça Simbólica” das Cotas Raciais nas Telenovelas.................................46 3 QUEM CONSTRÓI O NEGRO NAS TELENOVELAS?......................................58 3.1 A proposta das “cotas raciais” ameaça a quem?..................................................61 3.2 A “Ameaça Simbólica” redimensionando a construção do personagem negro...............................................................................................................................69 3.2.1 As cotas raciais protagonizam o protagonismo negro?..........................................91 4 PRESENÇA NEGRA NAS TELENOVELAS: (in)visibilidade?...........................97 4.1 Personagens negros “para inglês ver”...................................................................99 4.2 Reinventando o protagonista negro?...................................................................111 5 QUE INTERRACIALIDADE É ESSA?.................................................................136 6 NOVAS NOVELAS, VELHOS PERSONAGENS NEGROS.............................175 7 NOVOS PERSONAGENS NEGROS EM CENA?...............................................207 8 TUDO ACABA EM DISCRIMINAÇÃO RACIAL?...........................................234 9 À GUISA DE CONCLUSÃO: (in)visibilidade negra nas telenovelas.....................................................................................................................252 REFERÊNCIAS........................................................................................................262 19 1 INTRODUÇÃO Sempre tive como hobby assistir televisão. Desde muito pequeno as telenovelas já eram meus programas prediletos. Em minhas brincadeiras infantis, gostava de imitar os personagens e situações que assistia nos folhetins. Tenho uma memória excelente, então seguramente posso afirmar que minha aproximação com o contexto das telenovelas se iniciou ainda na infância. As primeiras lembranças de telenovelas que tenho remontam aos meus dois anos de idade, quando já as assistia na companhia dos meus pais. Quando me dei conta da diferença entre negros e brancos ao sofrer uma situação de racismo na escola em que estuda aos seis anos de idade, me percebi enquanto negro, e identifiquei que pessoas negras como eu, praticamente não estavam presentes nos enredos das telenovelas e, quando apareciam, o faziam em papeis subalternos, figurando como empregados ou escravos em novelas de época, enunciados em posição de total submissão a pessoas brancas, ou envoltos em trama de marginalidade e criminalidade. A forma como eram enunciados os personagens negros nas tramas causava um mal estar e fazia com que eu não quisesse me identificar com estes. Havia, da minha parte, uma recusa sistemática daquelas propostas de sujeitos negros que me eram apresentadas pelos folhetins. Encantado com os programas de televisão, quando criança sonhava em ser ator de novelas. Mas, fui percebendo que eram poucos os negros presentes nos enredos e eu também não queria encenar nas novelas a proposta de personagens que via atores negros desempenhando nos folhetins. Quando ingressei na universidade, minha trajetória de vida me levou a me posicionar como pesquisador interessado nas diferenças étnicoraciais no Brasil. O contato com o instrumental analítico das ciências sociais jogou novas luzes nas formas como me foram apresentadas as idéias sobre diferenças entre negros e brancos. Como foi através das telenovelas que tive os primeiros contatos com as formas de significação da diferença entre negros e brancos, decidi encaminhar meus estudos de mestrado e doutorado construindo objetos teóricos que pudessem ter como recorte empírico o universo das telenovelas. Diante do exposto, apresento como tese de doutorado a análise intitulada: “(In)Visibilidade? O negro nas telenovelas”, como um esforço de construção de uma discussão sobre a presença de personagens negros na dinâmica midiático-cultural brasileira, na modalidade específica das telenovelas. Busquei construir um objeto centrado na produção social das diferenças, no tocante as significações da idéia de 20 sujeito negro. A pesquisa utilizou como campo empírico a presença de personagens e atores/atrizes negros em telenovelas brasileiras, produzidas e exibidas pela Rede Globo de Televisão, no período compreendido entre os anos de 2001 a 2013. O recorte do campo empírico sobre os folhetins da Rede Globo de Televisão deve-se ao fato desta emissora ser a única, dentre as demais no Brasil, que veiculou ininterruptamente telenovelas com exibição diária, de segunda a sábado, em 03 horários fixos (18, 19 e 21 horas), oferecendo assim bases lineares para uma observação e comparação sistemática. De acordo com dados do IBOPE (2005), as telenovelas da citada emissora figuram entre os produtos midiáticos que obtém a maior audiência no país e, por conseguinte, recebem atenção não só por parte do público telespectador, mas também por parte de outros setores da imprensa e da política. Demarco meu entendimento de que a Rede Globo não é a porta voz da mídia brasileira, mas apenas uma expressão ou um segmento desta. O percurso investigativo deste estudo será instrumentalizado, principalmente, pelas lentes teóricas dos estudos acerca da Colonialidade do Poder e do Saber (MIGNOLO, 2003; BHABHA, 1998; SPIVAK, 2010). Para analisar a presença de negros nas telenovelas, inicialmente parti de uma investigação sobre a participação de atores negros nos enredos, para num segundo momento analisar os personagens vividos por estes atores. Nogueira (1996) aponta que no Brasil a definição de um negro se materializa pelos sinais diacríticos (cor da pele, traços físicos e espessura de cabelos). Assim, segui estes encaminhamentos para demarcar um ator negro, e também para classificar um personagem negro: primeiramente traços fenotípicos que socialmente emblematizam um sujeito como negro e, secundariamente, os vínculos familiares e/ou a auto-atribuição etno-racial feita pelo ator/personagem. A análise dos dados coletados através da investigação que realizei junto aos folhetins reforçou a premissa que localizei no trabalho dissertativo e novamente apontou que atores/atrizes negros encenam personagens negros. Esta representação é ancorada em observância aos traços fenotípicos do ator /atriz que deram contorno a condição de negro/negra do personagem, ou por vínculos familiares que este personagem desenvolve na trama com outros negros e que indicaram sua condição de negro/negra. A única exceção que encontrei, resulta da fluidez de possibilidades de classificação étnico-racial decorrentes da experiência da mestiçagem no Brasil e concretiza-se na figura da atriz Thais Garayp, que foi enunciada como negra em diversos folhetins, mas quando teve seus cabelos manipulados e foi apresentada com vínculos familiares com determinados 21 personagens, figurou como a índia Iraci na novela Desejo Proibido (Rede Globo, 18hrs, 2007), como a indiana Ana no folhetim Caminho das Indias (Rede Globo, 21hrs, 2009) e como a empresária circense branca Terê em Araguaia (Rede Globo, 18hrs, 2010). O percurso investigativo que empreendi apontou que, primordialmente, a imagem de um ator negro define a idéia do que seria um personagem negro em uma telenovela. Para Silva (2001), a noção de imagem se localiza em uma perspectiva denominada “realista”, ou seja, a imagem capta a realidade e a cristaliza. Logo, a imagem concebida como reflexo, sugere uma relação de passividade com a “realidade”, limitando-se a reproduzi-la. A imagem é concebida, também como expressão de uma visão estática do processo de significação. Ou seja, a imagem é concebida como registro, visto que vai refletir um contexto. Assim esta imagem pode apontar para um contexto construído e de certa forma legitimado pelo registro, pela intencionalidade da referida representação. Assim, considero que um personagem negro, utiliza-se da imagem do ator negro para ser enunciado como negro. Considero que a noção de imagem está diretamente relacionada aos mecanismos de representação, que por sua vez institui a idéia de que um personagem que ganhará vida por intermédio de um ator. Fundamentado em Bourdieu (1980), compreendo a representação como um processo de significação que por sua vez, consiste em elaboração subjetiva que é produzida nos domínios da linguagem, dos discursos, da cultura, das disputas pelo poder, das lutas de classificação e hierarquização, pelas formas de fazer ver e fazer crer, de viabilizar o conhecer e o reconhecer e de instituir um modelo legítimo das divisões do mundo social. Considero relevante pontuar que a construção da idéia de negro não remete a um processo biológico, antes aponta para um sujeito emblematizado pela cor da pele (predominantemente escura), que foi construído politicamente pelo Discurso Colonial, e pelos “saberes oficiais” por ele instituídos. Bhabha (1998, p. 125) categoriza como “saberes oficiais” as expressões de conhecimento e teorias de natureza pseudo científica, tipológica, legal, administrativa e eugênica, perpetradas pelo Discurso Colonial. Segundo Babha (1998, p.111) o alvo do discurso colonial é justificar e legitimar as práticas coloniais em seus diversos desdobramentos. Para isso, este discurso busca domesticar o colonizado definindo-o como uma população de tipos degenerados que têm no primado racial sua marca emblemática. Para Babha (1998, p.123), o discurso colonial permite o estabelecimento espontâneo da idéia da diferença, percebida entre os 22 sujeitos como algo visível e natural. É neste estágio que os signos culturais são definidos com o propósito de inferiorizar e segregar o outro. E, como reação a esta segregação, o colonizado mobiliza a estratégia da mimetização, que se efetiva na mímica que faz da imagem e discurso do colonizador, que funciona como uma imitação estratégica que faz com o objetivo de ser aceito/igualado. Considero que o discurso colonial pode se travestir em muitas ideologias e estratégias para seguir atualizado no âmago das instituições sociais no Brasil, dentre elas a mídia. A presente análise consiste em uma ampliação da pesquisa que iniciei por ocasião da construção da dissertação de mestrado, denominada “A Ameaça Simbólica das Cotas Raciais na Mídia Brasileira: o negro na telenovela”. A pesquisa que desenvolvi no mestrado apontou que a aprovação do projeto de cotas na mídia pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, no final de maio de 2001, repercutiu significativamente sobre os espaços midiáticos. Afinal, foi a primeira vez que houve um indicativo de institucionalização de uma política para enfrentar a problemática do racismo na mídia brasileira. Entendo que este cenário desencadeou um debate nos espaços sociais midiáticos sobre as ações afirmativas, o que contribui para aumentar a presença de personagens negros em telenovelas, programas e comerciais, representados por atores/atrizes negros. Considero que a possibilidade da institucionalização das cotas desencadeou a preocupação de autores e diretores de telenovelas em assegurar minimamente a presença de personagens e atores/atrizes negros nos enredos. Esta pesquisa indicou que o “aumento” da presença de atores negros em telenovelas se deveu a “ameaça simbólica” da possibilidade de aprovação da política de cotas no senado federal. Para autores e produtores de televisão, a aprovação do Estatuto Social da Igualdade Racial, representaria uma ameaça ao padrão vigente de escalação de elenco das telenovelas que pouco escalava atores/atrizes negros. Aponto que o debate em torno das cotas em telenovelas legitimou a necessidade de discussões acerca da exclusão midiática do negro e, em consonância com a ação organizada do Movimento Negro, acabou “ameaçando simbolicamente” a produção de telenovelas no país, desde sua divulgação pela mídia em 2001. A etnografia que empreendi, por ocasião do trabalho dissertativo, foi realizada focando como campo empírico as telenovelas veiculadas na faixa de horário das 19 e 21 horas, exibidas, pela Rede Globo, em um recorte temporal compreendido entre os anos de 2001 a 2008. A interpretação dos dados indicou a tendência da ampliação quantitativa da presença de atores/atrizes negros nos elencos dos folhetins, o que diretamente materializou uma 23 maior quantidade de personagens negros nos folhetins produzidos no período demarcado pelo percurso investigativo. Considero que este aumento foi resultante das discussões em torno das cotas raciais. Estas discussões problematizam a necessidade da intervenção do Estado para arrefecer as desigualdades entre negros e brancos no país. O resultado do trabalho dissertativo apontou que a proposição das cotas raciais no segmento específico da mídia televisiva desencadeou uma preocupação por parte das emissoras, autores e diretores de telenovelas em assegurar uma presença mínima de atores/atrizes negros em cada folhetim, após o ano de 2001. Autores como Araújo (2000) e D’Adesky (2001), são enfáticos ao apontar, que antes desta data, diversas telenovelas, produzidas entre as décadas de 60, 70, 80 e 90 no Brasil, sem negros no elenco, e com enredos sem a presença de personagens negros. Parto da noção de telenovela como um produto midiático de natureza audiovisual produzido e exibido por emissoras de televisão, e que tem por característica fundamental apresentar um enredo, constituído por uma trama que vai se desenrolando ao longo de vários dias de exibição. Esta exibição diária recebe o nome de capítulo. A história contada por uma telenovela materializa o seu enredo. No Brasil a telenovela recebe também os nomes de “novela” e “folhetim”. O formato telenovela no Brasil remonta a chegada da televisão nesse país. Xaiver (2014) destaca que em 1951, um ano depois da inauguração da televisão no Brasil, a TV Tupi levou ao ar sua primeira telenovela, Sua Vida me Pertence (TV Tupi, 20hrs, 1951). Esta trama era composta por 15 capítulos, e foi exibida somente nos dias de terças e quintas feiras. Como neste período inexistia a tecnologia do vídeo-tape, a novela era produzida ao vivo, funcionando como um teatro teledivisionado. Já sob o signo do advento do recurso do vídeo-tape, que permitia a gravação e posteriormente a exibição de um programa televisivo, a TV Excelsior lançou, em 1963, a primeira telenovela diária brasileira, o folhetim 2-4599 Ocupado (TV Excelsior, 19:30hrs, 1963). De 1964 a 1968, as emissoras Excelsior, Tupi, Record e Globo passaram a produzir telenovelas, folhetins que preservavam a estrutura narrativa peculiar das novelas radio-fônicas e o modelo audiovisual de telenovelas mexicanas, cubanas e argentinas. A partir de 1969, as emissoras de televisão brasileira passaram a produzir telenovelas constituídas por enredos que objetivavam retratar o cotidiano da população brasileira. Entretanto, o recurso utilizado para promover esta aclimatação constou na produção de tramas compostas de estórias unicamente de personagens 24 brancos. As raríssimas presenças de personagens negros figuravam lastreadas pelo histórico da escravidão negra no Brasil, materializando a inserção de atores/atrizes negros em papeis de empregados ou escravos. A primeira emissora a investir neste modelo foi a TV Tupi. Posteriormente a Globo adotou esta mesma estratégia de tentar “nacionalizar” culturalmente os folhetins, retratando um Brasil quase sem sujeitos negros. A Rede Globo, atenta a aceitação do público telespectador da telenovela, que atraia anunciantes dispostos a investir em sua programação, elencou a novela como carro-chefe de sua programação. Instituiu um determinado padrão de produção de qualidade áudio visual de telenovelas, que acredito ter sido o motivo desta emissora ter conseguido não apenas a liderança no segmento, como também ter se consolidado como a maior emissora do país, obtendo igualmente reconhecimento internacional. Este padrão próprio, de produzir os folhetins, obteve consagração no Brasil e no exterior, ainda nos anos 70, quando muitas novelas passaram a ser vendidas para serem exibidas em outros países. Nas décadas seguintes, a produção de novelas foi aperfeiçoada. Este processo demandou a ampliação das equipes técnicas, exigindo também a contratação de pesquisadores e colaboradores, o que possibilitou um aumento na quantidade e no tamanho dos capítulos, uma complexificação dos enredos, que passaram a apresentar um número maior de personagens. Entretanto, esta ampliação no número de personagens não viabilizou um aumento da presença de personagens negros nos folhetins. Os personagens negros nas telenovelas produzidas década de 70 e 80, por diferentes emissoras no Brasil, eram restritos a papeis de empregados domésticos ou aos raríssimos casos em que as tramas abordavam a questão do racismo e/ou casamento interraciais. A presença numericamente expressiva de personagens negros fica restrita a tramas épicas que focavam o contexto da escravidão negra no país. Segundo Globo (2010), a ossatura de uma telenovela é construída e assinada pelo autor (dramaturgo), mas este precisa firmar uma parceria com um diretor de arte/produção. É por meio desta parceria que o enredo desenhado pelo autor é expresso através de imagens e cenas. O diretor de telenovela fica com a responsabilidade de coordenar as equipes de produção e elenco, viabilizar a gravação das cenas e tomar decisões de natureza administrativa como a gestão de recursos financeiros, de modo a viabilizar a confecção do produto audiovisual que é a telenovela, seguindo rigorosamente prazos e dotação orçamentária. Em alguns folhetins, a autoria pode ser partilhada por dois ou mais autores, ou contar com a“supervisão”de outro autor, que 25 poderá figurar como co-autor. Não existe uma metodologia unívoca entre os autores no processo de construção de uma telenovela. Alguns optam por escrever desde a escaleta (rascunho de capítulo) ao texto final sozinhos, delegando aos colaboradores a tarefa da criação de diálogos. Outros optam por coordenar o trabalho de um ou uma equipe de colaboradores na produção da escaleta, e se dedicam com mais afinco à redação dos diálogos dos personagens. Há ainda novelistas que preferem concentrar todas as etapas do trabalho, optando por escrever o capítulo por inteiro. Em alguns casos, uma equipe de pesquisadores fica responsável pela apuração de temas específicos, como questões jurídicas ou médicas a serem abordadas por meio do enredo dos folhetins. As novelas nascem de uma sinopse, que por sua vez concretiza o texto que apresenta as tramas principais e secundárias dos personagens e faz a projeção destas ao longo do desenrolar dos capítulos. A sinopse pode ser proposta originalmente pelo dramaturgo, a partir de um argumento apresentado pelo autor, ou pode também ser resultado de uma proposta temática feita pela emissora (GLOBO, 2010). O enredo de uma telenovela é constituído por uma trama que mobiliza diversos personagens. Entretanto a narrativa designa o(s) protagonista(s) e o(s) antagonista(s), sendo que os demais personagens desenvolvem uma história que preserva interface com a trama central que foca os protagonistas/antagonistas. Os capítulos são compostos por cenas intercaladas do núcleo de personagens que, geralmente, permanecem nos mesmos cenários. Nem todos os personagens aparecem em todos os capítulos. A exibição de um capítulo de uma novela é descontinuada por intervalos comerciais. Para Machado (2000), a novela concretiza um dos modelos de narrativa seriada que desenvolve um enredo, contando a história dos personagens por meio de ganchos de um capítulo para outro. Estrategicamente sempre deixam a expectativa de um desfecho para um capitulo seguinte, de modo a despertar a curiosidade do telespectador, para que este permaneça interessado na trama, assegurando assim a audiência, que interessa diretamente aos anunciantes que patrocinam a telenovela. A Rede Globo de Televisão, desde a década de 70, produz e veicula, ininterruptamente telenovelas com exibição diária de segunda a sábado, em 03 horários fixos (18, 19, 20/21 horas). Os folhetins ficam em média de seis a sete meses no ar. As novelas exibidas no horário das 22 ou 23 horas não são fixas na grade de programação da emissora. São exibidas de segunda a sexta, ou de terça a sexta feira, e compostas por uma quantidade menor de capítulos. 26 Os folhetins exibidos na faixa de horário das 18 horas priorizam o gênero romance. Foram inicialmente idealizados como um espaço para promover a adaptação de obras literárias clássicas brasileiras ao formato de telenovela e sua ênfase recai sobre tramas ambientadas em épocas passadas. Quando as tramas são contemporâneas abordam prioritariamente a temática de romances proibidos, enredos situados em contextos rurais, regionais e/ou cidades fictícias. Desde a década de 80 o espaço das 18 horas também tem sido utilizado para produção de novelas remakes, que consistem em regravações de uma telenovela já exibida, por meio da atualização dos diálogos aos dias contemporâneos. Nos folhetins produzidos neste horário, a presença de personagens negros, quando viabilizada, se processa enunciada pelo discurso colonial, rigidamente matizada pelos contornos da dita “história oficial” do Brasil, que valoriza a contribuição dos sujeitos brancos, omitindo a contribuição e a relevância do sujeito negro. O horário das 19 horas tem sido marcado por folhetins mais ágeis, que exploram o gênero comédia, por meio de contextos cotidianos, humor, enredos que exploram o lúdico, o fantasioso e a ficção cientifica. Considero que esta é a faixa de horário que apresenta folhetins mais heterogêneos e neles é raríssima presença de personagens negros. Quando se processa a presença negra, ocorre no que considero ser possível denominar de “papel de negro”, ou seja, constituem personagens que figuram na trama como empregados domésticos ou rurais, ou apresentando a idéia de sujeito/sujeita negra pelo viés da hipersexualidade ou da criminalidade. Já o horário das 20 horas foi sendo, ao longo das décadas, redimensionado para as 21 horas, com o objetivo de dar mais espaço para o telejornalismo nacional e local, que são exibidos após a veiculação do folhetim das 19 horas e antes da exibição da trama que vai ao ar as 21 horas. Os folhetins exibidos nesta última faixa de horário abordam temáticas peculiares do cotidiano de brasileiros, com personagens brancos, em quase sua totalidade, mesmo em diferentes contextos sócio-econômicos. Exploram, geralmente, o gênero drama. Segundo dados do IBOPE (2005) os folhetins das 21 horas são, desde os anos 70, os que obtêm a maior audiência. Para Xavier (2014), a telenovela é no Brasil o maior produto de arte popular da televisão, figurando ladeada pelo futebol e pelo carnaval como um fenômeno cultural que atrai, cativa e fideliza o público telespectador. Araújo (2000) empreendeu uma pesquisa sobre todas as telenovelas produzidas no Brasil de 1963 a 1997 e identificou que estes folhetins negavam o contexto da diversidade étnico-racial no país. Dos mais de 530 folhetins que etnografou, embora em sua totalidade apresentassem tramas 27 ambientadas no Brasil, não retratavam o contingente populacional que é formado predominantemente por negros e mestiços. O diretor de telenovelas Herval Hossano, quando questionado por Araujo (2000) sobre os motivos da ausência do negro nos folhetins nacionais, argumentou que as razões que impedem o negro de participar de produtos midiáticos como a telenovela eram de natureza econômica, ou seja, o mesmo motivo que teoricamente também afastaria pessoas pobres. Para Hossano, o negro não foi inserido nas tramas por causa de razões econômicas, que impedem aspirantes a atores negros de se preparar profissionalmente para atuar nos folhetins. Considero que a argumentação de natureza econômica para justificar a ausência do negro na telenovela, proposta por Hossano, desnuda minimamente a ponta de um iceberg que fica encoberto por intencionalidades corporativistas. Penso que a questão da ausência do negro na telenovela está referenciada na produção social da diferença entre negro e o branco. Neste sentido, a compreensão deste processo exige a aportagem de uma discussão que situe histórica e politicamente a formação sócio-cultural do Brasil. O processo de expansão ultramarina, empreendido pelos europeus em meados século XVI, com vistas à conquista de novas fontes de matéria prima, bem como novos mercados consumidores, foi constituído e ancorado na produção de uma proposta de racionalidade que elencou a Europa como centro da história mundial e, por conseqüência, transformou todas as demais culturas em sua periferia, instituindo assim, o paradigma Eurocêntrico que se travestiu dos ideais de universalidade e mundialidade (DUSSEL, 2002). A experiência colonial desenvolvida no Brasil, a partir do século XVI, pode ser entendida como mais uma estratégia de propagação do projeto de mundo da modernidade, iniciado em 1492, com a expansão ultramarina dos povos europeus. Para Mignolo (2005, p. 75) a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada desta. Para esse autor, a modernidade e a colonialidade são as duas faces de uma mesma moeda. Neste horizonte, o sistema colonial coloca-se como o passaporte para que outras culturas, transformadas em periferia da Europa, pudessem acessar a perspectiva da Modernidade e conseguir, assim, uma emancipação, uma saída da condição de atraso, por meio de uma adesão ao ideário, projeto, visão de mundo referenciado em valores europeus. Assim, as culturas alvo deste processo passaram a experienciar relações coloniais, termo que localizo como indicativo da vigência do padrão de regulamentação instituído por intermédio da colonização por europeus. Esse processo não teve 28 desdobramentos apenas políticos e religiosos, mas sobretudo, epistemológicos, atrelados a colonialidadedo poder e do saber e a conseqüente constituição de sujeitos e saberes subalternos (MIGNOLO, 2005). A colonialidade, em sua dimensão política e epistemológica, pressupôs a criação de um outro, entendido como um ser intrinsecamente desqualificado, como um sujeito portador de características inferiores e, por isso, disponível para ser apenas usado e expropriado. Dussel (2002) considera que a experiência da colonialidade no continente americano foi subsidiada pela agressiva violência material e simbólica expressas no mito sacrificial de outros povos categorizados como inferiores. Segundo Mignolo (2003), a expansão colonialista ocidental desencadeada no século XVI, não teve apenas um caráter econômico e religioso, mas oportunizou também a expansão de formas hegemônicas de conhecimento que moldaram a própria concepção de religião e de economia. Foi a propagação de um conceito representacional de conhecimento e cognição que se legitimou como hegemonia epistêmica, política e ética. Configuradas pela lógica colonial/moderna, as relações coloniais instauraram e naturalizaram uma forma de conceber o mundo a partir da cosmovisão eurocêntrica e este processo de colonização se legitimou subalternizando e animalizando as representações e visões de mundo dos povos colonizados. Mignolo enfatiza a afirmação de Darcy Ribeiro, de que os povos colonizados, despojados de suas riquezas e do fruto de seu trabalho sob o jugo da dominação colonial, teriam sofrido a degradação de assumir que a sua imagem era um mero reflexo da cosmovisão européia, que considerava os povos colonizados como biologicamente inferiores porque eram negros, ameríndios ou mestiços. Este processo foi instituído pela classificação e, posteriormente, pela demarcação de um posicionamento fixo dos sujeitos no interior das relações coloniais. E, também, pela criação do conceito de raça, no contexto do que Santos (2005) nominou de alteridade colonial. Adepto do mesmo entendimento, Quijano (2005) argumenta que as relações coloniais propõem padrões de poder que são constituídos por duas formas de diferenciação, a primeira instituída pela categorização das diferenças entre conquistadores e conquistados, ao passo que a segunda é ancorada, rigidamente, na idéia de raça, segundo a qual uma suposta distinção na estrutura anátomo-biológica outorga a uns uma posição natural de inferioridade em relação ao outro. Para Quijano (2005) as relações sociais ancoradas na ideia de raça, como resultado direto das relações coloniais, propiciou a formação de identidades que até 29 então não existiam. Assim, a colonialidade, enquanto um padrão de organização e regulamentação social instaurou e cristalizou as categorias índio, negro, mestiço, branco, e atuou intensamente também no redimensionamento de outras como português, espanhol, e posteriormente europeu, termos que fora das relações coloniais, somente sinalizavam a procedência geográfica, ou a nacionalidade de um sujeito. Com o advento do colonialismo, estes termos adquiriram um conteúdo ancorado em uma significação predominantemente racial. Assim, o termo raça passou a designar o status de cada sujeito ou grupo no interior das relações coloniais. Quijano (2005) afirma que a idéia de raça concretizava uma abstração fora da perspectiva da colonialidade, bem como uma invenção que não tinha relação com a dimensão biológica, sendo que somente a partir do século XVI, por meio da experiência colonial, foi estabelecida a fusão entre cor e raça. O processo de construção social do sujeito branco apresenta uma diferença estrutural com relação ao sujeito negro, pois, historicamente foi introjetada no negro uma idéia de inferioridade, ao passo que ao branco europeu, enquanto descendente do colonizador, foi atribuído o ideal de ser o modelo universal da humanidade. Balandier (1976) argumenta que em contextos passiveis de serem classificados como de “situação colonial” o colonizador constituiu regras escritas em matéria racial, que atuam impedindo o colonizado de poder avaliar e se perceber autonomamente. Fundamentado em Bhabha (1998) procuro perceber como é mobilizado o discurso colonial no tocante a viabilizar a representação do outro, não europeu, instituindo divisões e classificações binárias expressas pela dicotomia eu/outro, bem como a pavimentação da diferença alicerçada em estereótipos. Este discurso elenca o padrão europeu, branco, católico, masculino, cristão, capitalista, heterossexual e adulto como referência que orienta a decodificação imediata das diferenças e institucionaliza como apropriada a rejeição dos sujeitos que são interpretados e classificados como desiguais. Aciono a categoria “sujeito subalterno” (SPIVAK, 2010), como um recurso para compreender os sujeitos negros que integram grupos classificados como inferiores, pelos padrões hegemônicos coloniais nas esferas materiais e simbólicas. As relações construídas entre negros e brancos no Brasil nasceram e vivem sob o signo das relações coloniais, sendo fortemente referenciadas no processo histórico da escravidão negra, e pela inexistência de ações que garantissem a integração social dos negros, enquanto 30 descendentes de africanos no cenário pós-abolição e, por isso, sofreram processos de exclusão de diferentes ordens. A abolição da escravidão no Brasil pode ser interpretada como uma estratégia de abandono do negro, mormente em face ao estimulo às migrações européias, como forma de embranquecimento da população. No Brasil, as relações coloniais não foram alteradas com a proclamação da independência com relação a Portugal, em 1822. Este acontecimento apenas estancou formalmente vínculos administrativos diretos, ficando a posição da perspectiva Européia resguardada. Nesse sentido, países que viveram a experiência de terem sido colônias e hoje são ditos emancipados, não podem ser considerados pós-coloniais. Problematizo que o prefixo “pós” pode sugerir transcendência ou superação e induzir ao ingênuo entendimento de que as relações coloniais foram suplantadas. No Brasil, as relações coloniais alicerçam as instituições sociais e cunharam as diretrizes que orientam relações sociais e a legitimação da noção de raça, com suposta referencia biológica, emblematizada pela cor da pele e/ou traços fenotípicos, de modo a viabilizar a produção social da diferença entre brancos, negros e índios enquanto indicativos da posição em que estes figuravam nas relações coloniais (colonizador x colonizados/escravos). Os produtos midiáticos e as telenovelas são representativos do apagamento do negro na cultura brasileira. Atuam como instrumentais discursivos que naturalizam a estratégia do embranquecimento, invisibilizando o negro, excluindo sua participação ou, em alguns casos, inserindo-o sob a lógica colonial, que essencializa uma posição subalterna e inferior da idéia de sujeito negro que tem por lastro a posição deste no sistema escravista. O discurso colonial pode se travestir em muitas estratégias para seguir atualizado no interior das instituições sociais no Brasil, dentre elas a mídia. Os produtos midiáticos brasileiros, em especial as telenovelas, refletem especificidades que permitem estabelecer uma relação coma “Situação Colonial” (BALANDIER, 1976). Santos (2002), ao analisar a invenção do Ser Negro (2002) no contexto colonial brasileiro, pontua que o imaginário social do país introjetou uma imagem do negro enquanto resultado de preconceitos e atos discriminatórios, calçada em estratificações e tipificações comportamentais. Essa imagem dá pistas para problematizar a forma como o sujeito negro é representado nos produtos midiáticos brasileiros, como a telenovela: 31 (...) A perseguição aos africanos que eram símbolos de barbárie, de decadência cultural e de inferioridade era retratada nos jornais da época de forma corriqueira entre uma e outra notícia. Lidas e relidas com certa freqüência, essas notícias, em vez de informar a população, disseminavam teorias racistas. Do escravo, artigo vendido ou comprado, ao marginal negro não havia muito espaço. O negro será retratado nos jornais: nas seções científicas, como objeto de estudo ou comprovação das teorias racistas; na seção de notícias, ora assassino, ora fugitivo, ora como um ser incapaz de viver em sociedade cometendo graves erros por ignorância, ora por suas práticas de feitiçaria ou canibalismo, ora por sua degeneração moral; na seção de anúncios, como mercadoria que se compra ou vende, procurada ou encontrada; na seção de contas, como um semi-homem com características pouco civilizadas. Não podemos nos esquecer das seções policiais e dos obituários, em que a figura do negro era uma constante: é aquele que mata e também aquele que morre de forma quase sempre violenta (SANTOS, 2002, p.134). Bhabha (1998) sinaliza que, em contextos sociais dotadas de passado colonial, as identidades são construídas na diferença e se (re) configuram a partir do cruzamento das experiências individuais com os contextos locais, com as instituições sociais configuradas sob a égide das relações coloniais. A perspectiva proposta pelo paradigma da colonialidade do poder e do saber e a conseqüente constituição de sujeitos e saberes subalternos permite o entendimento de que, como resultado da experiência colonial no Brasil, produtos midiáticos culturais como a telenovela, operam a lógica colonial no sentido de negar, encobrir o negro, e quando o exibem primam pela estigmatização ou a estereotipação do sujeito negro, circunscrevendo-o nos horizontes da criminalização, animalização, patologização e folclorização. Neste sentido, o estereótipo pode ser compreendido como uma imagem simplificada, construída através de generalizações sobre um grupo, não levando em conta as diferenças presentes no interior dessa coletividade. A prática de construção do estereótipo pode promover a redução, a essencialização e a naturalização das diferenças. Fernandes (2009) sugere que a analise dos estereótipos que conceituam e circunscrevem a identidade do sujeito negro precede a investigação de uma temática correlata: a estigmatização do negro. Nas relações coloniais são produzidas expressões de estereotipação e estigmatização sobre o negro, e estes são permanentemente acionados e reificados pelos saberes oficiais, pelos produtos midiáticos e em especial por intermédio das telenovelas, que terminam por atuar como instrumentos para legitimar e retroalimentar a subalternização do colonizado negro. 32 A imagem estereotipada dos personagens negros nas telenovelas é elaborada a partir de um processo de estigmatização da idéia de sujeito negro. Susman (1994) define estigma como qualquer traço persistente de um sujeito ou grupo, que evoca respostas negativas ou punitivas. Condições consideradas incapacitantes são estigmatizantes na medida em que evocam respostas negativas ou punitivas. Assim, o ato de “estigmatizar” indica tomar qualquer marca diferencial de um sujeito e reduzi-lo a esta característica. Ou seja, estigmatizar é atribuir um rótulo a um sujeito, tomando como sinais emblemáticos, elementos como a gordura ou magreza, a cor da pele, a estatura, o comportamento, a situação econômica ou geográfica, enfim, qualquer traço que expresse alteridade frente aos padrões considerados "normais". Para Goffman (1994), o estigma refere-se a uma situação em que o sujeito está inabilitado para a aceitação social plena e configura-se como algo externo a este. O autor considera que os discriminadores procuram fazer com que o sujeito estigmatizado seja descredenciado o tempo todo. O objetivo é submetê-lo, constantemente, à prova, no afã de fazer com que seja legitimada sua inferioridade, inviabilizando sua atuação e sua inserção efetiva em um grupo social, ou em uma instituição. Goffman (1994) afirma que este é o procedimento que oportuniza a configuração das condições de deterioração da identidade da vítima de estigmatização, a partir da qual se facilita a manipulação de seu comportamento, atitude e sentimentos, potencializando mecanismos de exclusão. O autor entende que um dos aspectos mais perversos do processo de estigmatização é o que se refere à sua legitimação por parte do próprio discriminado. As telenovelas brasileiras têm seus enredos construídos seguindo um padrão orientado pelas relações coloniais. Grande parte das propostas de presença de personagens negros se efetiva no reforço à idéia de subalternidade do negro, que por sua vez é determinada pela demarcação do estigma da cor da pele, que localiza estes sujeitos como inferiores, devendo portando posicionar-se socialmente em uma posição desprivilegiada em relação aos sujeitos brancos. Tavares (2004, p.03) afirma que o processo de estigmatização a que foram submetidos os negros no Brasil, foi o elemento que consolidou sua exclusão midiática, o que, em termos mais amplos, significaria apagamento, negação e invisibilidade. Logo, o tratamento dispensado pela mídia aos personagens negros, em especial pelas telenovelas, contribui para sua invisibilidade ou pela representação carregada de estereotipia e estigma. 33 Araújo (2000) afirma que nos anos 1970, os dramaturgos Janete Clair, Jorge de Andrade e Dias Gomes já escreviam folhetins com a presença de personagens negros. Porém, nenhum deles chegou a ser protagonista ou antagonista.Eram personagens que tinham pouco espaço nos enredos. O maior destaque fica por conta da telenovela Pecado Capital (Rede Globo, 20hrs, 1975), de autoria de Janete Clair, na qual o ator negro Milton Gonçalves, interpretou um psiquiatra formado em Harvard. Segundo Araújo (2000), esse foi o primeiro sucesso de crítica e de público para um personagem representado por um ator negro inserido na classe média. Segundo o referido autor, nesta década, algumas telenovelas retrataram romances inter-racias. Os folhetins e programas da TV Tupi usavam a presença do negro nos espaços da marginalidade ou da comédia. Já as novelas da Rede Globo que abordaram massivamente o contexto da escravidão, como Escrava Isaura (Rede Globo, 18hrs 1976) de Gilberto Braga e Sinhá Moça (Rede Globo, 18hrs, 1986) de Benedito Ruy Barbosa, retrataram os escravos como passivos e submissos e legitimaram o branco como um benevolente herói e bem-feitor dos negros. Nas décadas de 1980 e 1990, a presença de personagens e atores/atrizes negros ficou um pouco mais frequente no segmento das novelas regionalistas (tramas cujos enredos não se desenvolvem em capitais ou centros urbanos) e como empregados domésticos. Lima (2000) considera que as telenovelas brasileiras, produzidas de 1975 a 1988, retroalimentavam a imagem do negro como um sujeito humilde, em condição social subalterna, pobre e com baixa instrução. A mulher negra foi retratada com forte apelo sexual. A autora polemiza que quando um destes estereótipos não se fazia presente, o negro era apresentado como um sujeito exótico, inserido em um mundo que pertence ao branco. Araújo (2000) categorizou como “padrão de estética sueca” a interpretação feita por atrizes brancas das personagens negras/mulatas dos romances de Jorge Amado, que foram adaptadas em enredos de telenovelas como Gabriela (Rede Globo, 22hrs, 1975), Dona Flor e seus Dois Maridos (Rede Globo, 22hrs, 1976), Tieta (Rede Globo, 20hrs, 1989). Destaco que a versão produzida em 2012 da novela Gabriela (Rede Globo, 23hrs, 2012), nova adaptação do original de Jorge Amado, assinada pelo novelista Walcyr Carrasco, apresentou a atriz branca Juliana Paes interpretando a personagem título Gabriela. Para isso esta atriz branca recebia forte maquiagem e se submetia a tratamentos de bronzeamento artificial para ficar mais próxima ao fenótipo negro/mulato, idealizado no romance original de Jorge Amado. 34 Construo meu argumento problematizando que a tendência de ampliação do quantitativo da presença de atores/atrizes negros em telenovelas pode ter como objetivo o descredenciamento do projeto de cotas, deslegitimando sua necessidade. São apontadas supostas falhas no projeto como, por exemplo, a ausência da inclusão das populações indígenas e, também, comparações com a experiência norte-americana do sistema de cotas. Parto do pressuposto de que a ausência de negros em telenovelas pode ser lida como uma estratégia de invisibilidade. Por conseguinte, a presença de atores/atrizes negros (presença esta quantitativamente maior do que nas décadas anteriores) poderia significar um indicativo de visibilidade. Nesse sentido, a visibilidade seria viabilizada por um enunciado, uma apresentação, que materializaria a caracterização e construção do personagem no enredo da telenovela. No entanto, coloco em questão a “qualidade” e a “intencionalidade” desta presença do negro nos folhetins. Como o processo de construção do personagem negro em uma telenovela é feito por meio do discurso colonial, problematizo que esta proposta de presença pode não alterar a condição do negro como silenciado/invisibilizado enquanto sujeito subalterno neste contexto. Considero que a telenovela, enquanto produto midiático, segue a lógica imposta pelos saberes oficiais e seus discursos no campo da história e biologia. Neste horizonte, demarco que os folhetins e seus enredos atuam como elementos representativos da dinâmica sócio-cultural do Brasil. As estratégias de visibilidade/invisibilidade de personagens e atores/atrizes negros em telenovelas fornecem enunciados, que podem indicar seu status enquanto colonizado, de modo a reverberar o discurso colonial, ou seja, as relações coloniais podem ser legitimadas mesmo no contexto de significativa visibilidade de negros em um folhetim, por intermédio das formas como estes são situados, retratados, ignorados, ou inseridos nas telenovelas. Spivak (2010) indica, já a partir do próprio título de sua obra “Pode o subalterno falar?”, a intenção de sua análise, pois o título original em língua inglesa, “can the subaltern speak?”, ao optar por utilizar o verbo modal “can” ao invés de “may”, sugere a possibilidade da interpretação de que houve a intencionalidade de questionar não apenas se o subalterno pode, no sentido de ter permissão, mas se pode no sentido de ser capaz, de saber falar, de conseguir falar, sugerindo assim que seria algo surpreendente, o subalterno ser capaz de falar, mesmo quando lhe fosse permitido. Partindo desta problematização, situo o entendimento de que o personagem negro de uma telenovela é 35 construído pela articulação de variadas formas de linguagem. Neste horizonte, considero que o enredo de uma novela, em suas imagens, discursos, bem como a presença e a relação entre os personagens concretiza uma expressão de enunciado, ou nos termos de Spivak (2010), a “fala”. Fundamentado em Babha (1998) considero ser possível o subalterno falar e ser ouvido em um terceiro espaço, o entre-lugar, que efetivaria o palco de outra possibilidade de linguagem, que pode inclusive se sobressair ao discurso colonial. Babha (1998) refere-se a existência de uma ambigüidade na aparente fixidez nas relações coloniais das instituições coloniais como a mídia e, por meio desta análise, estendo essa percepção para as telenovelas brasileiras. O autor sinaliza que o contato entre colonizado e colonizador pode sediar formas hibridas de expressão, nas quais o híbrido, pensado pelo autor como produto resultante desta interação, pode efetivar um lócus de construção de uma oposição subversiva. Assim uma presença quantativamente ampliada de negros em telenovelas brasileiras poderia resultar em um indicativo, ou uma estratégia de resistência à diferença colonial e aos seus desdobramentos, propondo um redimensionamento de alguns valores, normas e ideais instituídos pela colonialidade do poder e do saber. Assim, direcionei esta investigação para a compreensão da proposta de negro que está sendo apresentada pelos personagens inseridos nas telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a 2013. Meu objetivo é discutir a produção social da diferença, no tocante a construção de sujeito negro quando os folhetins passam a apresentar uma maior quantidade de personagens e personagens negros nos enredos. Busquei estar atento à armadilha de fazer uma análise positivada deste aumento. A noção de pensamento liminar, cunhada por Mignolo (2003) me ajudou a problematizar os contextos que são constitutivos e que estão subjacentes ao cenário de ampliação da presença de negros nas tramas. O pensamento liminar é construído “nas e a partir das margens” (MIGNOLO, 2003, p.30), e instaura-se nas fraturas da colonialidade, orientando uma interlocução dos saberes hegemônicos, com e a partir de lógicas e saberes subalternizados no curso das relações coloniais. Assim, atua pavimentando um espaço que permite o reconhecimento da diferença colonial, viabilizando que sujeitos, imagens, vozes e discursos silenciados pelas relações coloniais construam espaços de resistência e também de enunciação, como os contextos de resistência negra constituídos em torno da ameaça simbólica das cotas raciais, bem como o indicativo da ampliação quantitativa da presença de atores/personagens negros nas telenovelas. 36 1.1 Trajetória Metodológica A investigação que subsidiou essa tese foi empreendida sob o signo da epistemologia multicultural proposta por Semprini (1999), que é alicerçada em quatro pilares: o primeiro entende a realidade como uma construção na qual não existe realidade social descolada dos sujeitos sociais que a criam, das teorias que a abordam e da linguagem que permite sua descrição e comunicação; o segundo considera que as interpretações são subjetivas, de modo que a realidade se constitui em uma série de enunciados cujo sentido e estatuto referencial são influenciados pelas condições de enunciação e, também, pela identidade e posição do seu emissor e receptor; o terceiro concebe que os valores são relativos; o quarto compreende que o conhecimento é um fenômeno político, ou seja, o conhecimento não brota da relação entre um enunciado e uma determinada condição do mundo, mas de uma atividade constituinte, cabendo observar os mecanismos e modalidades desta última e as condições concretas onde surge, as relações de força que estabelece, os sistemas de interesse aos quais serve e os grupos que institui ou marginaliza. O processo de pesquisa exigiu um esforço contínuo de construção e reconstrução dos procedimentos teórico-metodológicos, de acordo com as demandas emergentes ao longo do percurso da investigação. Para conduzir a investigação acerca da presença de negros em telenovelas da Rede Globo, fiz uma etnografia densa, conforme sugerida por Geertz (1989), compreendendo que minha descrição etnográfica consiste em uma interpretação que resulta da articulação de minha vivência pessoal, na qual me percebo como um sujeito negro, com formação acadêmica alinhada aos Estudos da Colonialidade, o que me instrumentalizou para a construção de um entendimento de que no Brasil ainda estão vigentes as relações coloniais. Etnografei o enredo dos 68 folhetins veiculados nas faixas de horário das 18, 19 e 21 horas, produzidos e exibidos no período compreendido entre 2001 a 2013. A etnografia feita sobre as telenovelas foi iniciada por ocasião do trabalho dissertativo, no qual fiz uma investigação sobre a presença de negros em telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a 2008, veiculadas na faixa de horário das 19 e 21 horas. Para identificar quantitativamente os personagens negros nos folhetins, utilizei o critério socialmente acionado no Brasil para reconhecer o sujeito negro que consiste 37 predominantemente na detecção da cor da pele (escura), e secundariamente a observância de sinais diacríticos como tipologia de cabelos e traços antropomórficos. No trabalho da tese redimensionei meu foco de estudo para a presença de personagens negros nos enredos dos folhetins, assim estendi o recorte sobre todos os folhetins, exibidos nas três faixas de horários da emissora (18, 19, e 21horas). Meu esforço em encampar um número maior de novelas objetivou poder problematizar as propostas de personagens negros apresentadas por uma variedade maior de folhetins, que por sua vez eram assinados por diferentes autores. A etnografia sobre os folhetins foi feita por faixa de horário de exibição destes. Os veiculados às 21 horas, acompanho assiduamente, como telespectador, e desde 2001 comecei a rascunhar num caderno a quantidade de personagens negros e como estes figuram nas tramas. Algumas novelas das 18 e 19 horas assisti no portal da Rede Globo, por meio de vídeos postados no Youtube.com, Dalymotion.com e/ou baixei capítulos ou cenas compactadas de personagens negros em programas de compartilhamento de arquivos na internet. Consegui a sinopse das novelas, a descrição e fotos dos personagens negros nos portais Memoriaglobo.com e teledramaturgia.com. Também utilizei como fonte de pesquisa meu acervo pessoal de folhetins gravados, matérias de jornais e revistas que abordam a temática das telenovelas ou dramaturgos brasileiros, bem como documentos legais sobre a temática das cotas raciais no país. Analisei qualitativamente a inserção de negros nos enredos das telenovelas a partir da perspectiva do que Bhabha (1998) chama de “deslocar a imagem”, na qual, considerando o Discurso Colonial, constituído pelas relações coloniais, tentei deslocar o ponto de intervenção (análise e reflexão acerca dos discursos e imagens) da imediata classificação destas como positivas e negativas, para uma análise atenta aos processos de subjetivação, estabelecidos pela vigência de relações coloniais. Considerei a advertência feita por Bhabha, acerca da necessidade de se redimensionar a linguagem puramente ocular da imagem, para uma linguagem constituída por possibilidades de identificações ou representações sociais e políticas. Como estratégia metodológica, identifiquei, sistematizei, analisei e classifiquei a presença de personagens e atores ou atrizes negros em telenovelas em quadros sinópticos de duas naturezas: uma de perspectiva quantitativa, na qual mapeei os folhetins e apontei quantos personagens e atores/atrizes negros apresentam, organizando por ano de exibição, horário e demarcação do autor da telenovela. Numa perspectiva 38 qualitativa busquei articular marcadores que estão escalonados na composição do enunciado que constrói e insere os personagens negros nos folhetins, caracterizando o(s) autor(e) das telenovelas, especificando seu padrão costumeiro de recorte do contexto social que ambienta as tramas, buscando situar a eventual existência de personagens negros, localizando quem era(m) estes(s) personagem(ns), que ator ou atriz os representava; que papel(is) desempenhava(m) na trama, qual (is) era(m) sua(s) profissão(ões), que núcleo do enredo fazia(m) parte, com quais outros personagens interagia(m) na trama, etc. O resultado desse exercício está exposto na presente tese, que foi organizada de modo a encadear o percurso analítico partindo de uma caracterização em torno da proposição e repercussão, no contexto das telenovelas, da proposição das cotas raciais na mídia. Num segundo momento, apresenta uma caracterização do perfil dos autores que escrevem as telenovelas. Em seguida, a discussão atinge a presença de personagens negros nos folhetins, num esforço de problematizar como são enunciados nas tramas, escalonei a idéia de (in)visibilidade e tentei mapear a presença negras nos folhetins sistematizados a partir da forma como estes são enunciados nos enredos e os organizei nos eixos temáticos: hiperssexualidade, fetiche interracial, mestiçagem, subserviência, marginalidade, vulnerabilidade, discriminação racial, negação ou afirmação da diferença entre negros e brancos. 39 2 COTAS RACIAIS NA MÍDIA: propostas e repercussões Em 1995, por ocasião da Marcha “Zumbi pela Cidadania e pela Vida”, em homenagem aos 300 anos de morte de Zumbi dos Palmares, foi pela primeira vez proposto um indicativo de projeto que abordava a institucionalização de um sistema de reserva de cotas raciais na mídia brasileira. Neste evento, ativistas do Movimento Negro e lideranças sindicais expuseram, ao congresso nacional e ao então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, suas idéias e sugestões relacionadas ao enfrentamento das problemáticas vivenciadas pelos negros no país. Os militantes na referida marcha reivindicavam ações direcionadas ao enfrentamento à discriminação de cunho racial sofrida pelos negros no Brasil. Como resultado desta mobilização, o então presidente da república anunciou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial-GTI, que produziu um documento de 72 páginas que constava a apresentação de propostas com vistas à promoção da “inclusão” social dos negros no Brasil. O documento elaborado ainda em 1995, indicava a apresentação de um Projeto de Lei que dispunha pela instituição de um sistema de reserva de cotas para negros, este projeto foi encaminhado pelo Movimento Negro pelas Reparações (MPR), e posteriormente proposto pelo então Deputado Paulo Paim (PT/RS). Dentre outros pontos, o referido projeto de lei defendia uma reserva de cotas mínima de 20% para resguardar a presença de negros no mercado audiovisual (programas de televisão, novelas, seriados e filmes), e de 40% em campanhas publicitárias. À época de sua proposição, o projeto de cotas raciais na mídia não foi alvo de destaque por parte da imprensa nacional, sendo vetado em 1998. Entretanto, em 1999 a então deputada Nice Lobão (PFL-MA) elaborou e submeteu à apreciação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal um Projeto de Lei das Cotas (PL 73/1999) que apresentava dispositivos que instituíam como compulsória a reserva de vagas para negros em vestibulares, concursos públicos e empresas privadas. Em 2000, como passaporte para que o Brasil participasse da Terceira Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia, e Intolerância Correlata, realizada em Durban na África do Sul, em Agosto de 2001, foi elaborado pelo Governo Federal do Brasil um corpo de propostas a serem apresentadas no evento. Nesse bojo estava um novo Projeto de Lei de Cotas (3.198/2000), proposto pelo então Deputado Paulo Paim, e o Estatuto Social da Igualdade Racial, em favor dos 40 que sofriam preconceito ou discriminação racial em função de sua etnia, raça e/ou cor, e que objetivava a criação de políticas afirmativas para indivíduos em condições desfavoráveis de competição. Desta feita, o Projeto Paim propunha ações afirmativas mais abrangentes, expressas sob a forma de indenizações, reserva de cotas em concursos públicos, vestibulares, produtos midiáticos, empresas privadas, iniciativas que reforçavam a criminalização e o combate ao racismo, bem como programas que promovessem a igualdade racial. O projeto preconizava que Estado brasileiro deveria indenizar cada negro ou pardo enquanto descendente de escravo por meio de um sistema de reserva de cotas, como mecanismo de reparação de danos morais e materiais, decorrentes da operacionalização da escravidão negra no país. Assim, o documento em referência, prezava pela ampliação das propostas contidas no Projeto de Lei de Cotas (PL 73/1999) apresentado em 1999, utilizando como público alvo, sujeitos passíveis de serem categorizados como afrodescendentes, sendo que o acesso a esta categoria, seria permitido pelo intermédio do enquadramento de seus fenótipos como pretos ou pardos, ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE. O autor do projeto defendia que o descumprimento do sistema de reserva de cotas pelas instituições públicas e privadas, acarretaria a necessidade da aplicação de multa e/ou prestação de serviços à comunidade. A política de cotas para negros consiste em uma ação afirmativa. Para Guimarães (2005, p. 153), a expressão ação afirmativa refere-se a programas de políticas públicas ordenadas pelo executivo ou legislativo, ou implementados por empresas privadas, voltados para assegurar o acesso de membros de minorias raciais, étnicas, sexuais, ou religiosas, a escolas, contratos públicos e postos de trabalho, visando uma reparação por uma injustiça passada, e com caráter de ação reparatória. Guimarães (2005, p.159) enfatiza que políticas afirmativas visam corrigir, e não eliminar, mecanismos de seleção por mérito, e garantir o respeito à liberdade e à vontade individual. Paulo Paim (2000) argumentava que como 48% dos brasileiros são negros, quase metade dos artistas, figurantes, repórteres, apresentadores e locutores deveriam ser afrodescendentes. Assim, as cotas na mídia objetivavam arrefecer esta distorção. Paim propunha as cotas na mídia, não apenas para ampliar o mercado de trabalho dos artistas negros, mas por considerar que a população telespectadora, especificamente as 41 crianças negras, necessitava de referenciais simbólicos próprios (anjos, fadas, heróis negros) e símbolos da cultura africana. O projeto Paim foi proposto no Senado em 2003, em sua primeira versão, pelo seu autor, na ocasião senador (PT-RS), como o Estatuto Social da Igualdade Racial. Sobre a questão da reserva de cotas nos produtos midiáticos, o artigo 24, 25, 26 do capitulo VII, do Estatuto Social da Igualdade Racial elencava as seguintes propostas: Art. 24. As emissoras de televisão, as agências de publicidade, os produtores de material publicitário e o Poder Público deverão assegurar a participação de artistas Afrodescendentes em filmes, programas e peças publicitárias, de conformidade com as disposições desta Lei. § 1º. São pessoas Afrodescendentes, para os efeitos desta Lei, as que se enquadrarem como pretos ou pardos, ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). § 2º. Os filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão deverão apresentar imagens de pessoas Afrodescendentes em proporção não inferior a vinte e cinco por cento do número total de atores e figurantes. § 3º Para a determinação da proporção de que trata o artigo 18 e seus parágrafos, será considerada a totalidade dos programas veiculados entre a abertura e o encerramento da programação diária, ou no período compreendido entre a zero hora e as vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos. § 4º. As peças publicitárias destinadas à veiculação nas emissoras de televisão e em salas cinematográficas deverão apresentar imagens de pessoas Afrodescendentes em proporção não inferior a quarenta por centro do número total de atores e figurantes. § 5º Os órgãos e entidades da administração direta, autárquica ou fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, ficam obrigados a incluir cláusulas de participação de artista Afrodescendentes, em proporção não inferior a quarenta por cento do número total de artistas e figurantes, nos contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer outras peças de caráter publicitário. § 6º Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação, produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado. § 7º Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a diversidade de raça, sexo e idade na equipe vinculada ao projeto ou serviço contratado. § 8º A autoridade contratante poderá, se considerar necessário para garantir a prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria e expedição de certificado por órgão do Poder Público. Art. 25. A desobediência às disposições desta Lei constitui infração sujeita à pena de multa e prestação de serviço à comunidade, através de atividades de promoção da não-discriminação racial. 42 Art. 26. Constitui crime a veiculação, em rede de computadores, de informações ou mensagens que induzam ou incitem a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (grifos meus) Considero pertinente destacar que o projeto em referência, dispõe em seu segundo e quarto incisos um resguardo de percentual de participação de afrodescendentes que se limita à dimensão quantitativa, não dispondo sobre a dimensão qualitativa desta participação, ou seja, acerca do modo como estes afrodescendentes (negros e pardos) participariam e seriam enunciados nos programas de televisão, filmes e peças publicitárias. Como proposta das medidas a serem implementadas pelo Estado Brasileiro quanto signatário de compromissos assumidos na Conferencia de Durban em 2001, o projeto de cotas foi aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara no final de maio de 2001, e esta aprovação repercutiu significativamente na mídia, mormente nos produtos midiáticos televisivos. A repercussão se deu em função de ser a primeira vez que era constituído um indicativo de institucionalização de uma política para intervir na questão da “quantidade” da presença de negros na mídia. 2.1 Estatuto da Igualdade Racial e Cotas nos Produtos Midiáticos Após tramitar por mais de sete anos no congresso nacional, um substitutivo do Estatuto em foco foi sancionado pelo presidente Luis Ignácio Lula da Silva, em 2010, e foi inserido no texto constitucional como a lei 12.288/10, sendo lançado no Diário Oficial de 21 de julho de 2010. O Senado aprovou o texto final do Estatuto Social da Igualdade Racial, com a supressão integral de quatro artigos e a incorporação de 11 emendas de redação. A proposta foi alvo de severas alterações ao curso de sua tramitação Câmara e no Senado. O texto aprovado é constituído de 65 artigos que rezam, genericamente, no sentido de que sejam implementadas políticas e programas sociais de valorização dos negros, visando promover a correção de desigualdades históricas relativas às oportunidades e aos direitos dos descendentes de escravos, no país. Entretanto, a lei não faz qualquer recomendação ou indicação de como efetivar tais políticas. Foram suprimidas as propostas iniciais contidas no projeto, que apontavam o sistema de 43 reserva de cotas raciais em concursos públicos, universidades, campanhas políticas e nos produtos midiáticos, como estratégias para viabilizar a inserção social de negros. A lei sancionada dispõe pelo entendimento de que discriminação racial constitui toda e qualquer ação de exclusão, distinção, restrição ou preferência alicerçada em descendência, etnia, cor, raça. Tipifica tais práticas como crime passível de penalidades de reclusão de até cinco anos. Dispõe pelo direito dos negros de acesso a saúde, lazer, trabalho, educação, cultura, esporte, relações de trabalho. Assegura proteção aos direitos das comunidades descendentes de quilombolas, rezando pelo respeito às religiões de matrizes africanas. Institui, ainda, penalidades como reclusão de até cinco anos, para quem coibir, por preconceito étnico-racial, promoção funcional de pessoa negra em contextos de relações de trabalho seja no público ou privado. O documento em referencia toma a categoria desigualdade racial enquanto indicativa de toda e qualquer “situação injustificada de diferenciação de acesso ou fruição de bens, serviços e oportunidades nas áreas pública e privada em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional e étnica”. A lei 12.288/10 apresenta em seu VI capítulo, que é nomeado de “Meios de Comunicação”, disposições acerca dos produtos midiáticos: Art. 43. A produção veiculada pelos órgãos de comunicação valorizará a herança cultural e a participação da população negra na história do País. Art. 44. Na produção de filmes e programas destinados à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas, deverá ser adotada a prática de conferir oportunidades de emprego para atores, figurantes e técnicos negros, sendo vedada toda e qualquer discriminação de natureza política, ideológica, étnica ou artística. Parágrafo único. A exigência disposta no caput não se aplica aos filmes e programas que abordem especificidades de grupos étnicos determinados. Art. 45. Aplica-se à produção de peças publicitárias destinadas à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas o disposto no art. 44. Art. 46. Os órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica ou fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia mista federais deverão incluir cláusulas de participação de artistas negros nos contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer outras peças de caráter publicitário. § 1o Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação, produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado. § 2o Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a diversidade étnica, de sexo e de idade na equipe vinculada ao projeto ou serviço contratado. 44 § 3o A autoridade contratante poderá, se considerar necessário para garantir a prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria por órgão do poder público federal. § 4o A exigência disposta no caput não se aplica às produções publicitárias quando abordarem especificidades de grupos étnicos determinados.(grifos meus) De redação curta, a Lei 12.288/10 esboça a necessidade do estimulo à participação de sujeitos negros em produtos midiáticos, como uma disposição a ser seguida. Entretanto, é categórica ao relativizar que se a produção for sobre um grupo étnico especifico, a indicação de inserir negros fica dispensada. A este respeito, chamo a atenção para o fato de que os produtos midiáticos, como as telenovelas são obras artísticas, e não documentários jornalísticos. No campo especifico das telenovelas, considero que a lei 12.288/10, ao não dispor pela indicação de que sejam produzidos enredos que contemplem a retratação da trajetória de negros e negras, acaba referendando o atual paradigma de produção do enredo dos folhetins, marcados pelo padrão do discurso colonial, que predominantemente prima por contar histórias e retratar como protagonistas personagens brancos. Uma breve etnografia feita em telenovelas brasileiras produzidas 1963 a 2013, com suas tramas situadas no Brasil, ambientadas em outra época, indica que estes folhetins somente contam como protagonistas a saga de italianos, portugueses, espanhóis ou alemães, ou seja, abordam grupos étnicos específicos. A lei 12.288/10 não interfere nesta “preferência” dos autores em selecionar como protagonista a história de povos europeus, excluindo assim do epicentro da narrativa a trajetória de outros grupos étnicos como índios, povos orientais e negros. Os quatro artigos do capítulo que abordam a questão da mídia e comunicação do Estatuto da Igualdade Racial são sintéticos e resumidos, indicando que os órgãos de comunicação devem valorizar a herança cultural e participação negra na história do país. Entretanto, não dispõem de nenhum dispositivo que garanta, oriente ou fiscalize como esta valorização seria promovida, abrindo assim margem para o descompromisso na sua efetivação. A retirada do sistema de reserva de participação de 20% de negros dificulta a efetividade e o alcance do estatuto. As supressões que sofreu o Estatuto da Igualdade Racial foram seguramente resultantes de pressões de representantes de diversos segmentos da mídia brasileira, resistentes ao sistema de reserva de cotas, que asseguraria a presença de negros nos produtos midiáticos brasileiros. 45 2.2 A “Ameaça Simbólica” das Cotas Raciais nas telenovelas A aprovação do projeto de cotas na mídia pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, no final de maio de 2001, repercutiu significativamente sobre os espaços midiáticos. Afinal, foi a primeira vez que houve um indicativo de institucionalização de uma política para enfrentar a problemática do racismo na mídia brasileira. Este cenário desencadeou um debate nos produtos midiáticos sobre as ações afirmativas, que contribuiu para aumentar a presença de negros em telenovelas, programas e comerciais. Ou seja, considero que a possibilidade da institucionalização das cotas, desencadeou a preocupação de autores e diretores de telenovelas em assegurar, minimamente, a presença do negro nos enredos. A possibilidade de aprovação da política de cotas no senado federal significou para alguns autores e produtores de televisão uma ameaça a liberdade de escalação de elenco das telenovelas. Antes da proposição da política de cotas, não havia nenhuma preocupação de autores e diretores de telenovelas em assegurar a presença de um núcleo negro em cada folhetim ou mesmo a presença de atores/atrizes e personagens negros. Embora o substitutivo do projeto de cotas, aprovado em 2010, tenha excluído a proposta do sistema de reserva de cotas, o debate constituído ao redor do projeto em foco colocou em cena a questão da exclusão do negro nas telenovelas. O debate alcançou uma dimensão propositiva, e possibilitou um indicativo de ampliação da presença de negro nos enredos. Antes deste período haviam sido produzidas diversas novelas no Brasil que não tinham nenhum ator/atriz negros/negras no elenco. Araújo (2000) relata que em um universo de 98 telenovelas brasileiras produzidas nas décadas de 80 e 90 (excetuando-se as que tiveram como temática a escravidão negra), não encontrou, em 28 delas, nenhum personagem ou ator/personagem negro, e em 29 delas o quantitativo de negro era inferior a 10% do elenco. Meu argumento é que as telenovelas produzidas a partir de 2001, ou seja, sob o signo da proposição da política de cotas, passaram a expressar, por parte dos autores e diretores, uma preocupação em assegurar minimamente a presença do negro. A ausência de um núcleo negro, ou pelo menos um personagem negro passou a ser questionado. Este foi o caso da telenovela Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013), que estreou sem nenhum ator negro no elenco, mas ao longo da novela alguns atores negros foram escalados. 46 Paulo Paim (2004), autor do projeto de cotas na mídia, pontua que o debate sobre as ações afirmativas contribuiu para aumentar a presença de atores negros em telenovelas, programas e comerciais, destacando como exemplo, a novela Da Cor do Pecado (Rede Globo 19hrs, 2004), protagonizada pela atriz negra Taís Araújo. Paim também aponta outras novelas que tiveram negros ocupando posição de destaque no enredo, no contexto das discussões das cotas raciais na mídia. A pesquisa que empreendi analisando telenovelas da Rede Globo, exibidas de 2001 a 2013, indicou não só a tendência da ampliação de número de personagens negros (Quadro 01) em comparação com as telenovelas das décadas anteriores, como também que a presença do núcleo negro passou a ter mais destaque no enredo da trama. E, em alguns casos, não mais ocupando papeis tradicionalmente outorgados a negros como empregados domésticos, serviçais, pessoas em situação de marginalidade e vulnerabilidade social. Apenas 01 das 68 novelas exibidas pela Rede Globo nos horários das 18, 19 e 21 horas, neste estudo analisadas, não tiveram a presença do negro em seus enredos. Considero relevante destacar a cobrança feita por internautas em redes sociais e movimentos sociais ligados à causa negra, após 2001, que se fizeram vigilantes a muitas telenovelas, como foi o caso da articulação e movimentação em torno da novela Amor à vida (Rede Globo, 21hrs, 2013). 47 QUADRO 01- O QUANTITATIVO CRONOLÓGICO DE PERSONAGENS NEGROS NAS TELENOVELAS EXIBIDAS PELA REDEGLOBO DE 2001 A 2013 Novela Ano Horário Personagens Protagonista Autor Negros negro/negra Um Anjo 2001 19hrs 2 Antônio Calmon Caiu do Céu A Padroeira 2001 18hrs 9 Walcyr Carrasco Estrela Guia 2001 18hrs 0 Ana Maria Moretzsohn Porto dos 2001 21hrs 4 Aguinaldo Silva Milagres O clone 2001 21hrs 8 Gloria Perez As filhas da 2001 19hrs 2 Silvio De Abreu Mãe O Beijo do 2002 19hrs 3 Antônio Calmon Vampiro Coração de 2002 18hrs 1 Emanoel Jacobina Estudante Desejos de Mulher Esperança 2002 19hrs 2 Euclydes Marinho 2002 21hrs 5 Sabor da Paixão Mulheres Apaixonadas Agora que São Elas Kubanacan 2002 18hrs 3 Benedito Ruy Barbosa e Walcyr Carrasco Ana Maria Moretzsohn 2003 21hrs 8 Manoel Carlos 2003 18hrs 3 Ricardo Linhares 2003 19hrs 1 Carlos Lombardi Chocolate com Pimenta Celebridades Como uma onda 2004 2003 18hrs 6 Walcyr Carrasco 2003 2004 21hrs 19hrs 6 5 Walter Negrão 2004 19hrs 7 2004 18hrs 4 Edmara Barbosa e Edilene Barbosa Começar de Novo Senhora do Destino A lua me disse Alma Gêmea América BangBang Sinhá Moça Belíssima Cobras e Lagartos Páginas da Vida O profeta 2004 19hrs 11 Antônio Calmon e Elizabeth Jim 2004 21hrs 6 Aguinaldo Silva 2005 19hrs 7 Miguel Falabela 2005 18hrs 4 Walcyr Carrasco 2005 2005 2006 2006 2006 21hrs 19hrs 18hrs 21hrs 19hrs 6 6 17 6 4 Glória Perez Mário Prata EdmaraBarbosa e Edilene Barbosa Silvio de Abreu João Emanuel de Carneiro 2006 21hrs 8 Manoel Carlos 2006 18hrs 5 Duda Rachid,Thelma Guedes Pé na Jaca 2006 19hrs 1 Carlos Lombardi Da cor do pecado Cabloca 1 2 João Emanuel de Carneiro 48 Paraíso Tropical Eterna Magia Sete Pecados Desejo Proibido 2007 21hrs 9 Gilberto Braga 2007 18hrs 2 Elizabeth Jhin 2007 2007 19hrs 19hrs 9 5 Walcyr Carrasco Walter Negrão Duas Caras Beleza Pura 2007 2008 21hrs 19hrs 20 1 Aguinaldo Silva AndreáMaltorolli Ciranda de Pedra A Favorita 2008 18hrs 5 Alcides Nogueira 2008 21hrs 4 João Emanuel de Carneiro Três Irmãs Negócio da China Caminho das Índias Paraíso Caras e Bocas Viver a Vida Cama de Gato Tempos Modernos Escrito nas Estrelas Passione 2008 2008 19hrs 18hrs 5 3 Antônio Calmon Miguel Falabela 2009 21hrs 6 Glória Perez 2009 2009 18hrs 19hrs 9 7 Benedito Ruy Barbosa Walcyr Carrasco 2009 2009 21hrs 18hrs 9 8 2010 19hrs 6 Bosco Brasil 2010 18hrs 5 Elizabeth Jhin 2010 21 hrs 2 Silvio de Abreu Ti TiTi Araguaia 2010 2010 19hrs 18 hrs 3 9 MariaAdelaide Amaral Walter Negrão Insensato Coração Morde e Assopra Cordel Encantado Fina Estampa A vida da Gente Aquele Beijo Amor Eterno Amor Avenida Brasil 2011 21 hrs 6 Gilberto Braga 2011 19hrs 5 Walcyr Carrasco 2011 18hrs 5 Duca Rachid e Thelma Guedes 2011 21 hrs 7 Aguinaldo Silva 2011 18hrs 3 Lícia Manso e Marcos Bernstein 2011 19 hrs 10 Miguel Falabela, 2012 18hrs 3 Elizabeth jhin 2012 21 hrs João Emanuel de Carneiro Cheias de Charme Lado a Lado 2012 19hrs 4( apenas 2 que apareciam ) 10 1 Filipe Miguez e Izabel de Oliveira 2012 18hrs 14 2 João Ximenes Lage e Claúdia Lage Guerra dos Sexos 2012 19hrs 1 1 1 Manoel Carlos Duca Rachid eThelma Guedes Silvio de Abreu 49 Salve Jorge Flor doCaribe Sangue Bom Amor à Vida 2012 2013 21hrs 18hrs 7 4 Gloria Perez Walter Negrão 2013 2013 19hrs 21hrs 7 3 fixos, que ingressaram após o 2 mês da novela e 5(participação restrita a poucos capítulos) Maria Adelaide Amaral e VicentVillari Walcyr Carrasco Fonte: Gomes, 2015. O quadro exposto indica um aumento quantitativo no tocante a presença de personagens negros nos folhetins. Esta inserção ocorreu em números proporcionalmente inferiores ao quantitativo sugerido pelas cotas raciais e parece ter relação direta com o debate que vinha se constituindo acerca da necessidade das cotas raciais na mídia. Dos primórdios da telenovela brasileira na década de 1960, até o ano 2000, apenas duas novelas tinham sido protagonizadas por personagens negros, Araújo (2000) aponta que, em 1969, a novela Cabana do Pai Tomás (Rede Globo, 19hrs, 1969), estreou protagonizada pela atriz negra Ruth de Souza interpretando a personagem Tia Cloé, que era esposa do personagem título Pai Tomás (Sérgio Cardoso). Ao longo da novela o personagem Tia Clóe foi perdendo espaço na trama, porque outras atrizes brancas se sentiam desprestigiadas pelo fato da atriz negra Ruth de Souza figurar como a protagonista do folhetim. Araújo (2000) afirma ainda, que o autor negro Bráulio Pedroso foi despedido da TV Globo nos anos 70, quando, preparava a sinopse da novela Preto no Branco, que tinha o projeto de ter o primeiro protagonista negro de uma telenovela. Foto 01- Atriz Ruth de Souza, na novela A Cabana do Pai Tomás em 1969. Fonte: memoriaglobo.com, 2014. 50 Em 1996, outra atriz negra protagonizou um folhetim brasileiro, Táis Araújo, interpretou a personagem Xica, o papel título do folhetim denominado Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996). A trama foi produzida pela Rede Manchete, teve muito boa aceitação no Brasil, chegando a ser vendida para outros países. A novela era assinada pelo autor Walcyr Carrasco, que utilizava o pseudônimo de Adamo Angel. Com a falência da Rede Manchete, os direitos autorais da novela foram comprados pela emissora SBT(Sistema Brasileiro de Televisão), que reexibiu a novela em 2005. Foto 02- Atriz Tais Araújo na novela Xica da Silva. Fonte:Tv Manchete, 1997. Diferentemente do contexto exposto pela pesquisa de Araújo (2000), que encontrou apenas duas novelas protagonizadas por negros no período de 1969 a 1997, dentre as 68 produzidas e exibidas pela Rede Globo de 2001 a 2013, seis foram protagonizadas por atores negros, algumas inclusive apresentaram um par de personagens negros como protagonistas (Quadro 02). Estas novelas foram produzidas no período compreendido entre os anos de 2004 a 2012, enquanto resultado de duas tendências, a primeira residia na ameaça da possibilidade da aprovação das cotas raciais na mídia pelo legislativo brasileiro e a segunda consistiu na tendência de autores estreantes de apostar em elementos novos no processo de composição da narrativa da trama da telenovela como apresentar protagonistas negros. Destaco que em um universo de dezenas de atores negros no Brasil, as seis telenovelas aqui citadas trouxeram os mesmos três atores negros (Tais Araújo, Camila Pitanga e Lazaro Ramos) que se revezaram enquanto protagonistas nas tramas em questão. Aqui penso ser possível estabelecer uma interface com contexto da discussão da experiência brasileira com as relações coloniais. Costa (2008) relata o episódio em que no baile da corte, no contexto do Brasil imperial, a Princesa Isabel, dançava com 51 um negro, como uma estratégia para sugerir igualdade racial, bem como demonstrar bondade e benevolência por parte da elite branca. Considero que esta proposta de ampliação do numero de folhetins protagonizados pelos mesmos atores negros pode ser classificada com o que Grosfogoguel (2007) chama de tokens, modelminority, ou vitrines simbólicas, que materializam espaços ocupados por minorias sociais, que funcionam dando uma maquiagem multicultural e multirracial ao modelo hegemônico branco da mídia, cotidianamente marcada pela colonialidade do poder. Este cenário sinaliza algumas intencionalidades, sendo que a principal aponta para um movimento de resistência dos autores novelistas à institucionalização das cotas, por considerar que tal iniciativa colocaria cerceamentos na liberdade de criação artística, ao engessar pelo sistema de cotas a configuração étnica de um percentual do quadro de personagens do elenco. 52 Quadro 02-Novelas Protagonizadas por Atores/Personagens Negros Novela Ano Horário Protagonista negro Ator/atriz protagonista Autor Da Cor do Pecado Cobras e Lagartos 2004 19hrs 01 Thais Araújo 2006 19hrs 02 Thais Araújo e Lazaro Ramos João Emanuel de Carneiro João Emanuel de Carneiro Viver a Vida 2009 21hrs 01 Thais Araújo Manoel Carlos Cama de Gato 2009 18hrs 01 Camila Pitanga Duca Rachid e Thelma Guedes Cheias de Charme 2012 19hrs 01 Thais Araújo Filipe Miguez e Izabel de Oliveira Lado a Lado 2012 18hrs 02 Lazaro Ramos e Camila Pitanga João Ximenes Lage e Claúdia Lage Fonte: Gomes, 2015. Estas seis telenovelas que apostaram em apresentar protagonista(s) negro(s), indicam terem encampado a “ameaça simbólica” para além dos domínios da esfera quantitativa, pois este contexto aponta para uma ampliação qualitativa da presença de negros nas tramas. Mesmo em novelas nas quais os negros não eram os protagonistas, foi possível identificar um aumento da presença de personagens negros nos folhetins, chegando a um quantitativo de até 20 negros no elenco, como foi o caso da novela Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2008). Outro destaque que faço é relativo à constituição, nas tramas, dos núcleos negros, assegurando quando o folhetim tem em seu elenco um quantitativo de sete ou mais personagens negros (Quadro 03). No período abarcado pela minha pesquisa, foi possível destacar, em muitos produtos midiáticos, como comerciais e programas de televisão e telenovelas, a presença de um ou dois participantes negros. Com exemplo destaco o programa Big Brother Brasil1, exibido em temporadas anuais pela Rede Globo, desde o ano de 2001, seleciona em todas as edições dois participantes negros: um homem negro, com perfil atlético e uma mulher negra com um perfil de típica mulata brasileira, de formas corporais avantajadas. Dentre os demais participantes brancos, ocasionalmente eram selecionados participantes com perfis corporais mais ecléticos. O autor novelista Walcyr Carrasco (2007) argumentou que os motivos pelos quais os atores negros estavam ganhando destaque nos enredos dos folhetins, em tramas 1 Programa de entretenimento na modalidade Reality show, no qual 12 participantes são expostos a situações variadas, monitorados por câmeras 24 horas por dia 53 que apresentavam famílias de classe média, mocinhas, vilões e anjos negros, era resultado da preocupação da teledramaturgia brasileira em retratar cada vez mais realisticamente a sociedade. Segundo o autor; “Os negros estão em um momento de grandes conquistas, nada mais natural que isso se reflita na televisão”. Ao longo das três primeiras décadas da telenovela brasileira, excetuando as tramas que retratam a temática da escravidão negra, em 160 folhetins localizei apenas 10 com um núcleo composto por personagens negros, fixos no enredo, do início ao fim de sua exibição2. Já no contexto dos folhetins produzidos de 2001 a 2013, por mim etnografados, dos 68 analisados, em 53 encontrei a presença de um núcleo constituído por negros. A ampliação significativa do número de atores negros nos folhetins brasileiros e seus personagens negros como protagonistas das tramas, após o ano de 2001, foram foco de diversas matérias de programas de televisão, periódicos impressos e online. Em 2005, um texto do Jornal Folha de São Paulo, datado de 20 de fevereiro, trazia uma reportagem central, com o sugestivo título: “Excluídos invadem o horário nobre”. O título do artigo, ao utilizar o termo “invadem” para nominar o processo de ampliação da participação de negros nos folhetins, sugere que as novelas que integram a faixa de horário nobre, não seriam o lugar dos excluído (os negros). No tocante ao texto da reportagem, a discussão era estabelecida pelo diálogo entre três antropólogos estudiosos da mídia ou telenovela. Os pesquisadores emitiram suas interpretações sobre o aumento da presença de negros em telenovelas considerando três novelas em exibição por diferentes emissoras (Rede Globo, SBT e Record). Edmilson Felipe, o primeiro a argumentar, afirmou que a imagem dos grupos negros naquele momento era menos caricatural do que a retratada uma década antes, mas ainda havia estereótipos. Já para José Jorge Carvalho, a proposta de inclusão racial operacionalizada nas novelas tinha perfil conservador e não-revolucionário, pois isolava o núcleo negro dos demais personagens dos folhetins. A última a opinar, a pesquisadora Eliana Oliveira, referiu-se à existência de um movimento de alteração nos elencos das novelas, que ainda considerava tímido e não contemplava os negros do Brasil. A pesquisadora afirmou:“Os 2 Foram elas Vidas em Conflito (Tv Excelsior, 20hrs, 1969), A Cabana do Pai Thomás, (Rede Globo, 19hrs, 1969), Corpo a Corpo (Rede Globo, 20hs, 1984), Mandala (Rede Globo, 22 hrs, 1987), Araponga (Rede Globo, 22hrs, 1990), Felicidade (Rede Globo, 1991), Renascer (Rede Globo, 21hrs, 1993), Fera Ferida (Rede Globo, 21hrs, 1994), Pátria Minha (Rede Globo, 21hrs, 1994), A Próxima Vítima (Rede Globo, 21hrs, 1995). 54 papéis dos negros são sempre inferiores, de submissão, há grandes talentos, é preciso observar a diversidade”(FOLHA, 2005). Quadro 03-Novelas com núcleo/número significativo de personagens negros (mais de sete atores negros) Novela Ano Horário Numero de atores Autor negros A Padroeira 2001 18hrs 9 Walcyr Carrasco O clone Mulheres Apaixonadas Da cor do pecado Começar de Novo A lua me disse 2001 2003 21hrs 21hrs 2004 19hrs 8 8 (de 75 fixos do elenco) 7 Gloria Perez Manoel Carlos 2004 19hrs 11 2005 19hrs 7 Sinhá Moça 2006 18hrs 17 Páginas da Vida 2006 21hrs 8 Edmara Barbosa e Edilene Barbosa Manoel Carlos Paraíso Tropical 2007 21hrs 9 Gilberto Braga Sete Pecados Duas Caras Paraíso Caras e Bocas 2007 2007 2009 2009 19hrs 21hrs 18hrs 19hrs 7 20 9 8 Walcyr Carrasco Aguinaldo Silva Benedito Ruy Barbosa Walcyr Carrasco Viver a Vida Cama de Gato 2009 2009 21hrs 18hrs 9 8 Araguaia Fina Estampa Aquele Beijo Cheias de Charme Lado a Lado 2010 2011 2011 2012 18 hrs 21 hrs 19 hrs 19hrs 9 7 10 10 2012 18hrs 14 Salve Jorge 2012 21hrs 7 Manoel Carlos Duca Rachid eThelma Guedes Walter Negrão Aguinaldo Silva Miguel Falabela, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira João Ximenes Lage e Claúdia Lage Gloria Perez Sangue Bom 2013 19hrs 7 João Emanuel de Carneiro Antônio Calmon e Elizabeth Jhin Miguel Falabela MariaAdelaide Amaral e VicentVillari Fonte: Gomes, 2015. O aumento numérico da presença de personagens negros em telenovelas a partir de 2001, foi observado em todas as faixas de horários das telenovelas analisadas (18hrs, 19hrs e 21hrs). Porém, esta ampliação quantitativa não foi linear e não se manteve estável de um folhetim para o outro. Também, observei que não foi continua, dentre os folhetins escritos por um mesmo autor novelista. Folhetins que apresentaram protagonistas ou antagonistas negros não tiveram necessariamente um quantitativo numérico significativo de outros personagens negros. 55 Entre os anos de 2003 a 2013, nenhuma telenovela da Rede Globo foi produzida sem a presença de personagens negros. Neste período, estava muito em voga, na mídia, a discussão acerca da questão das cotas raciais e a novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004), protagonizada pela atriz negra Táis Araújo, estava gerando muitos repercussão por trazer uma protagonista negra em uma telenovela global contemporânea. Este folhetim foi bem recebido pelo público, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística-IBOPE (2005). Desde a exibição da novela A Viagem (Rede Globo, 19hrs, 1994) a Rede Globo não cativava a audiência de tão grande número de telespectadores no horário das 19 horas. As duas novelas que sucederam Da Cor do Pecado em sua faixa de horário de exibição, Começar De Novo (Rede Globo, 19hrs, 2004) e A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005), seguiram a tendência de contar com presença de atores/personagens negros tendo significativo destaque na trama, embora não fossem protagonistas. Outra questão que destaco como significativa para reflexão, é que todas as telenovelas exibidas na faixa de horário das 21 horas tiveram em suas tramas a presença de pelo menos dois personagens negros. Os folhetins deste horário, por alcançar maior audiência, têm maior repercussão junto ao público telespectador (Quadro 04). Quadro 04- Presença de personagens negros em telenovelas das 21 horas Novela Ano Quantidade negros Porto dos Milagres 2001 04 O Clone 2001 08 Esperança 2002 05 Mulheres Apaixonadas 2003 08 Celebridades 2003 06 Senhora do Destino 2004 06 América 2005 06 Belíssima 2005 06 Páginas da Vida 2006 08 Paraíso Tropical 2007 08 Duas Caras 2007 20 A Favorita 2008 04 Caminho das Ìndias 2009 06 Viver a Vida 2009 09 Passione 2010 02 Insensato Coração 2011 06 Fina Estampa 2011 07 Avenida Brasil 2012 04 (02 fixos) Salve Jorge 2012 07 Amor à Vida 2013 03(02 fixos) Fonte: Gomes, 2015. 56 A etnografia que fiz sobre os enredos de novelas apontou que alguns folhetins que apresentaram uma quantidade significativa de personagens negros, estes não representaram papeis de destaque na trama central do folhetim. Pontuo paradoxalmente que, mesmo neste contexto temporal de aumento numérico da presença do negro em telenovelas, das 68 telenovelas analisadas, unicamente no folhetim Estrela Guia (Rede Globo, 18hrs, 2002) não encontrei nenhum personagem negro, e em cinco telenovelas foram produzidas com apenas um personagem negro (Quadro 05). Quadro 05-Novelas com apenas um personagem negro Novela Coração Estudante Kubanacan Ano 2002 Horário 18hrs Personagens?negros 1 2003 19hrs 1 Pé na Jaa 2006 19hrs 1 Beleza Pura 2008 19hrs 1 Guerra dos Sexos 2012 19hrs 1 de Autor Emanoel Jacobina Carlos Lombardi Carlos Lombardi Andrea Maltorolli Silvio de Abreu Fonte:Gomes, 2015. Igualmente penso ser significativo situar que alguns folhetins veiculados na faixa de horário das 18 e 19 horas, produzidos no período recortado pela pesquisa, apresentaram apenas um personagem negro (Quadro 05) e, ainda assim, com limitada carga dramatúrgica. Este contexto aponta para a premissa de que alguns autores novelistas como veteranos Silvio de Abreu e Carlos Lombardi, bem como aqueles que assinaram seu primeiro folhetim a partir de 2001 como Emanoel Jacobina e Andrea Maltorolli ficaram indiferentes a ameaça simbólica das cotas raciais. 57 3 QUEM CONSTRÓI O NEGRO NAS TELENOVELAS? O esquema analítico mobilizado neste estudo me permitiu construir, por meio da análise das telenovelas, o argumento de que cada autor das novelas, ou conjunto de autores (no caso das novelas escritas por mais de um autor), possui um estilo de narrativa e construção dos enredos característico dos folhetins de sua autoria. Estes reproduzem, em alguns casos com uma significativa linearidade e continuidade, determinadas propostas de negros e negras, que podem ser analisadas sob a perspectiva da diferença colonial e do pensamento liminar (MIGNOLO, 2003). Tonon (2004) aponta a existência de um compromisso entre aqueles que produzem novelas (autor, emissora, diretores, elenco) e os telespectadores. Estes últimos, embora desconheçam as técnicas utilizadas para a realização de uma telenovela, podem decodificar as construções arquetípicas, os estilos, a linguagem e a construção estética apresentadas. O autor destaca, ainda, o repertório compartilhado, que pode materializar um contrato de leitura que existe, independentemente do entendimento e da negociação de sentidos que cada receptor, ou cada grupo social fará da recepção da telenovela. A este respeito, Lopes, Borelli e Resende (2002, p. 368) complementam o debate argumentando: O uso da telenovela depende da dimensão simbólica configurada por cada grupo e cada sujeito, as lógicas dos usos superam os limites de classe social e respondem a demandas próprias do universo psíquico, do gênero, da geração e do perfil ideológico. Entretanto, independentemente do sentido construído por cada grupo ou pessoa, observamos um repertório compartilhado, uma espécie de agenda de temas comuns considerados importantes para todas as famílias. A telenovela coloca modelos de comportamentos por meio de personagens que apresenta, e tais personagens servem para o debate, a interpretação, a crítica, a projeção ou a rejeição do público. Barbosa (2005) entende que o autor de uma telenovela contempla as situações do cotidiano e as representa por intermédio da ficção. Assim, se efetiva o processo de criação de personagens, seus discursos, imagem, gestuário, comportamentos e o contexto social no qual se encontra inserido como sujeito e enquanto autor de novelas. A composição dos enredos seria, nessa perspectiva, uma interpretação do novelista a um dado contexto. Barbosa (2005) considera que o dramaturgo, ao dimensionar os elementos ficcionais, não está apenas contando uma história, antes está expressando e representando ao seu público, por meio do enredo do folhetim, ainda que de que forma às vezes subliminar, tácita, ou implícita, sua particular 58 visão de mundo, seu partidarismo acerca de determinadas questões, constituindo assim um mecanismo significativo de formação de opinião. Identifiquei, no período compreendido de 2001 a 2013, um aumento quantitativo do número de atores negros escalados nos folhetins nacionais, presença materializada na inserção de mais personagens negros. Minha argumentação fundamenta-se na premissa de que grande parte dos novelistas passaram a inserir personagens negros, influenciados pela “ameaça simbólica” das cotas raciais, em termos quantitativos e qualitativos. A questão que pretendo compreender é o que esta presença de personagens negros pode significar e que ideia de sujeito negro está sendo construída e veiculada por intermédio destes personagens. Assim, direcionei o percurso investigativo para a caracterização que cada dramaturgo faz do negro, no afã de analisar qual (is) proposta(s) de sujeito (s) negro (s) estes estão construindo em suas tramas. Os 68 folhetins produzidas no período investigado foram assinados por 31 autores novelistas. Em sua grande maioria, tiveram autoria individual, conforme pode ser observado no quadro a seguir. Quadro 06 - Autoria das Telenovelas Autoria individual João Emanuel de Carneiro, Aguinaldo Silva, Glória Perez, Gilberto Braga, Silvio de Abreu, Manoel Carlos, Miguel Falabela, Antonio Calmon, Walcyr Carrasco, Euclydes Marinho, Alcides Nogueira, Mário Prata, Ricardo Linhares, Walther Negrão, Ana Maria Moretzsohn, João Emanuel Jacobina, Benedito Ruy Barbosa, Elizabeth Jhin, AndreáMaltorolli, Bosco Brasil e Maria Adelaide Amaral Fonte: Gomes, 2015. Autoria compartilhada Lícia Manso e Marcos Bernstein, Duda Rachid e Thelma Guedes, Edmara e Edilene Barbosa, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, João Ximenes e Cláudia Lage No esforço de minimamente traçar o perfil destes novelistas, busquei informações e fotos no portal Memoriaglobo.com e no site teledramaturgia.com, por serem estas fontes documentais lastreadas e alimentadas pela emissora que produz os folhetins. Apresentam informações sobre cada autor, de forma diferenciada, especialmente se o novelista for veterano no oficio de roteirizar folhetim. Por isso, em alguns momentos apresento dados bem sucintos sobre um determinado autor e em outros o texto consegue ser mais detalhista apresentando inclusive fotos do novelista. 59 Uma breve análise me permitiu identificar, por intermédio do critério socialmente utilizado no Brasil para definir o sujeito negro (traços fenotípicos, predominantemente cor da pele e tipo de cabelo) 3, que a totalidade dos autores das telenovelas etnografadas seriam classificados como brancos. Incluo nessa classificação, inclusive, o autor Aguinaldo Silva, que se afirma como negro, porém não possui traços antropomórficos que o levariam a ser reconhecido enquanto negro no Brasil. Faço essa classificação fundamentado em Oracy Nogueira (1996), que afirma que no contexto brasileiro a definição racial é ordenada por sinais diacríticos e não por origem/ascendência. Dos 31 novelistas pesquisados, a única estrangeira (Maria Adelaide Amaral) é portuguesa, apenas é um é nordestino (Aguinaldo Silva), dois são oriundos da região norte do Brasil (Glória Perez e Antonio Calmon), dois são mineiros (Mario Prata e Elizabeth Jhin), e todos os demais nasceram nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. No tocante a faixa etária, dois apenas dois nasceram na década de 30, onze na década de 40, quatro na década de 50, onze na década de 60, e quatro na década de 70. De acordo com as informações disponibilizadas nos portais citados, a maioria possui formação superior, com exceção de cinco. Grande parte cursou jornalismo e/ou atuou na área de comunicação social, mesmo não tendo esta graduação. Os demais estudaram Letras, História, Direito, Artes Cênicas e Economia. Procurei mapear algumas intencionalidades que podem ancorar o processo de elaboração dos enredos, bem como empreendi o esforço de tentar qualificar os personagens negros nas telenovelas investigadas. A necessidade de qualificar a visibilidade permitida aos personagens nos folhetins produzidos a partir de 2001, direcionou o fio condutor da presente discussão para o questionamento: que imagem de negro está sendo veiculada no contexto em que ocorre um aumento da sua presença nos folhetins? Fundamentado em Bhabha (1998), empreendi o esforço de tentar deslocar a linguagem ocular da imagem (que figura como visível e audível) para compreender os significados veiculados por esta imagem. Bhabha (1998) considera que o discurso 3 Oracy Nogueira (1996) apontou que no Brasil, o preconceito de marca elege o fenótipo (a aparência racial) como critério para a discriminação. São construídas várias gradações classificatórias que consideram não só as nuances da cor – “preto”, “mulato”, “mulato claro”, “escuro”, “pardo”, “branco” – como traços fisionômicos como nariz, lábios, cor dos olhos, tipo de cabelo. 60 colonial desempenha um papel imprescindível no tocante a manutenção do processo de dominação e produção de estereotipia. O autor enfatiza que o discurso colonial tem um caráter ambíguo, pois se por um lado um dos seus efeitos se materializa no fato de que os estereótipos funcionam como estratégias para oprimir e subalternizar os colonizados, por outro lado são capazes de “encantar” e “enlouquecer” os colonizadores. Para Bhabha (1998), o processo de significação do colonizado no discurso colonial se corporifica para além do binarismo de opor o bem ao mal, autorizando o exercício de poder sobre o colonizado, mas também alcança um território subjetivo de expectativas, imagens, fantasias, sonhos, mitos, aspirações e exigências ao colonizador. Segundo Bhabha (1998, p.125) o ato de estereotipar não se restringe unicamente a estabelecer uma falsa imagem que passa a ser o alvo de práticas discriminatórias. Este efetiva, sobretudo, um arcabouço textual ambivalente com a relação de saberes oficiais e ao discurso colonial, que por sua vez naturaliza a idéia de diferença racial. Esse autor propõe que o processo de análise acerca dos estereótipos deve tentar superar a tentação da superficial interpretação das imagens/enunciados como positivas ou negativas. Antes, o exercício é tentar problematizar os processos de subjetivação que os constituem. Adverte, ainda, que o processo de estereotipação impetrado pelo discurso colonial não se limita ao estabelecimento de uma imagem forjada e falaciosa, que se torna o alvo de práticas de discriminação negativas. Trata-se de um processo discursivo mais complexo e, sobretudo, ambivalente, que abarca e perpassa os horizontes da projeção, introjeção, estratégias, metáforas e metonímias, descolamentos, sobredeterminação, culpa, agressividade, mascaramento e cisão de saberes oficiais e fantasmagóricos para assim constituir posicionalidades e oposicionalidades (BHABHA, 1998). Como as telenovelas brasileiras são feitas por brancos, para agradar principalmente a telespectadores brancos, nestes folhetins os negros são construídos a partir de uma racionalidade colonial. Os enredos das telenovelas encampam as eventuais armadilhas da apropriação da ideia de negro pelo processo de assimilação colonial, no qual os saberes oficiais e os produtos midiáticos, como as telenovelas, atuam para que seja instaurado como verdade o que é dito pelo discurso colonial. Este processo faz com que a ideia de negro, construída pelas relações coloniais, seja enunciada nos folhetins e fique legitimada e naturalizada, constituindo assim a possibilidade de se ouvir “a voz do colonizador/branco no subalterno/negro”. 61 Spivak (2010) identifica que em um contexto de subalternidade, quem é detentor da permissão de falar, tem também o poder de subjetivar a si mesmo e aos outros, classificados como subalternos. A autora é enfática ao afirmar que toda e qualquer representação do subalterno está atravessada por construções hierárquicas dos grupos dominantes. Mostra-se cética quanto a possibilidade do subalterno se subjetivar autonomamente. Aponta que o espaço da enunciação, ou seja, da fala, da produção dos discursos é o lócus onde é produzida a subjetividade. Para Spivak, a condição do subalterno é marcada pelo silenciamento. O subalterno não fala porque o enunciado pertence a quem tem a propriedade da linguagem em múltiplas formas de expressão do poder. De igual forma, não existem ouvidos nem olhos solícitos ao diálogo com o subalterno, pois os códigos lingüísticos não lhe pertencem. O colonizador, por meio do discurso colonial, constitui uma imagem fixa para o seu “outro”, por meio dos estereótipos que funcionam para configurar a identidade do outro e legitimá-lo como diferente, propondo como verdade uma interpretação do outro que seria constituída por elementos empíricos e naturais e que por isso não carece ser validada. Assim, o discurso colonial constrói este negro. O negro tem sido apresentado nas telenovelas, quase sempre, como sujeito colonizado/subalterno, a quem não é dada a oportunidade de significar, negar, propor, protagonizar a produção de sua subjetividade. Embora os folhetins contem com a presença de personagens negros, são produzidos por autores brancos e são dirigidos para um público idealmente branco. A luz do instrumental desenhado por Spivak (2010), observo que os folhetins da Rede Globo de televisão, que foram analisados, concretizam telenovelas de brancos, compostas por enredos que retratam personagens brancos e negros, direcionados a um público que entende o sujeito branco como uma referencia neutra e universal. O enredo das telenovelas e a construção de cada personagem enquanto uma prática ou processo discursivo demanda atenção no tocante ao momento do produzir, emitir, assistir, interpretar, que são permeados pela construção de significado. Foucault (2009) indica que os enunciados são influenciados por relações de forças externas a lingüística, as relações econômicas e políticas e as instituições. Assim, a partir dos discursos é possível localizar pistas acerca das relações de poder que o constituem. A etnografia acerca dos folhetins me permitiu identificar os novelistas em duas tendências: novelistas indiferentes e novelistas sensibilizados pela “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira. A sensibilização resultou na ampliação da presença 62 de negros em termos quantitativos e/ou qualitativos. No entanto, mesmo quando a imagem do negro é positivada em alguns personagens, na mesma novela outros personagens negros expressam os estereótipos relativos ao ser negro no Brasil. 3.1 A proposta das “cotas raciais” ameaça a quem? Dos trinta e um novelistas investigados, seis não foram tocados pela “ameaça simbólica” das cotas raciais. Estes asseguraram em suas telenovelas a ausência e/ou presença limitada e com pouca carga dramatúrgica de personagens negros. Este foi o contexto do novelista Emanoel Jacobina, que assegurou uma única personagem negra na primeira novela que assinou sozinho, Coração de Estudante (Rede Globo, 18hrs, 2002), trama que foi produzida já no contexto das discussões em torno das cotas raciais. A personagem negra era advogada e professora, desejada por um aluno branco, e encenava o estereotipo da hiperssexualização da mulher negra. Jacobina nasceu no Rio de Janeiro em 1962 e atuou como roteirista do programa Casseta e Planeta, na década de 90. Foi autor principal do seriado Malhação, de 1995 a 1998 e depois em 2010. Foi co-autor do folhetim Kubanacan (Rede Globo, 19hrs, 2003) e colaborador na trama Beleza Pura (Rede Globo, 19hrs, 2008), que foi a primeira novela escrita por Andreá Maltorolli e que não apresentou nenhum personagem negro como integrante fixo do seu enredo. Este folhetim trouxe apenas um personagem negro, um inescrupuloso capanga a serviço do vilão branco, em uma curta participação. A autora Andreá Maltorolli nasceu em 28/09/1962 e faleceu em 22/09/2009. Era graduada em história e comunicação social. Ingressou na Rede Globo em 1994, através da oficina de autores e roteiristas da emissora. Integrou a equipe que roteirizava o seriado Malhação, Escolinha do Professor Raimundo, Turma do Didi e Zorra Total. Maltarolli (2007) considera que fatores lucrativos obstaculizam a inserção de personagens negros nos folhetins, "Você não pode ir contra os padrões instituídos pela sociedade. E isso tudo dentro de um contexto comercial, o que torna mais dramático o risco da rejeição”. Este discurso de Maltorolli fornece uma pista que permite problematizar a inserção de apenas um personagem negro em seu primeiro folhetim Beleza Pura (Rede Globo, 19hrs, 2008). Demarco como necessário sinalizar que estes “padrões instituídos pela sociedade”, destacados pela novelista, referem-se a uma sociedade que se pretende branca e que tem sua subjetividade tecida pelas relações 63 coloniais, que agem subalternizando e inferiorizando a ideia de sujeito negro, construindo-o em permanente dicotomia ao sujeito branco. O novelista Carlos Lombardi também inseriu apenas um personagem negro nas duas novelas que assinou no período encampado pelo estudo, demonstrando uma certa indiferença a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira. Lombardi nasceu em 27/08/1958, em São Paulo-SP. Tem graduação em Comunicação Social pela ECA/SP. Começou sua carreira roteirizando o programa Telecurso 2º Grau. Trabalhou também na TV Cultura e na TV Bandeirantes. Sua primeira experiência com telenovela foi na TV Tupi, quando dividiu com Edy de Lima e Ney Marcones a autoria do folhetim Como Salvar meu Casamento (TV Tupi, 20hrs, 1979), trama que tinha uma personagem negra, Zita (Lizete Negreiros), que fazia o momento comédia da novela, como uma empregada domestica que sonhava em ser cantora e vivia se intrometendo na vida dos patrões brancos. Araújo (2000) destaca que, em um capítulo, esta personagem chegou a se apresentar em um programa de calouros e, ao fim de sua apresentação, os jurados, ao tomar conhecimento de que Zita trabalhava como doméstica, transferiram os elogios da performance artística da aspirante a cantora para sua patroa. Em 1981 foi contratado pela Rede Globo, e nos anos seguintes trabalhou como colaborador nas novelas Jogo da Vida (Rede Globo, 19hrs, 1981), Elas por Elas (Rede Globo, 19hrs, 1982) Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 1983) e Caminho das Índias (Rede Globo, 21hrs, 2009). Escreveu a minissérie Quinto dos Infernos (2002) e alguns capítulos do seriado Malhação (1997). Foi supervisor de texto das novelas Coração de Estudante (Rede Globo, 18hrs, 2002), Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005), e chegou a trabalhar em alguns filmes. Lombardi foi o autor principal da novela Vereda Tropical (Rede Globo, 19hrs, 1984), que não trouxe nenhum personagem negro, o que também ocorreu nos seus folhetins Bebê a Bordo (Rede Globo, 19hrs, 1988) e Perigosas Peruas (Rede Globo, 19hrs, 1992). Em outras, como Quatro por Quatro (Rede Globo, 19hrs, 1994), Vira Latas (Rede Globo, 19hrs, 1997), apresentou apenas uma personagem negra, no papel de empregada doméstica. Cabe ressalvar que neste último folhetim, inseriu, pontualmente, três personagens negros (Quadro 07). 64 Quadro 07-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Carlos Lombardi produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de negros Kubanacan Pé na Jaca 2003 2006 01 01 Fonte: Gomes, 2015. As novelas escritas por Lombardi, no contexto da proposição e repercussão das cotas raciais na mídia brasileira, não apresentaram nenhuma alteração quantitativa no tocante ao número de personagens negros. As escritas em 2003 e 2006, respectivamente, tiveram igualmente apenas uma personagem negra. A modificação observada nas personagens negras deveu-se a não serem enunciadas como empregadas domésticas, mas como uma dona de casa ambiciosa e fofoqueira, que usava sua sensualidade para tentar seduzir os homens ou uma adolescente negra fofoqueira, fútil, gananciosa, e arrogante, filha adotiva de pais brancos de classe média alta. Assim como Lombardi, outro novelista que demonstrou pouca preocupação com a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia foi Ricardo Linhares. No intervalo pesquisado Linhares escreveu duas novelas, Agora que são Elas (Rede Globo, 18hrs, 2003) e Saramandaia (Rede Globo, 23hrs, 2013)4. Agora que são Elas apresentou três personagens negros, com a mesma proposta dos personagens negros da novela anterior de Linhares, Meu Bem Querer: uma família negra, resultante de casamento interracial, encenando o estigma da família negra desajustada e do homem negro como referência de pai, malandro e irresponsável. Veiculou a mesma quantidade de personagens negros, indicando, por um lado, pouca interferência da “ameaça simbólica” das cotas raciais, mas por outro lado resguardando, com exatidão numérica, a existência de um mínimo de presença negra em seus folhetins. Ricardo Linhares nasceu em 30/04/1962, no Rio de Janeiro-RJ. Tem graduação em jornalismo pela UFRJ. Seu primeiro contato com a televisão foi na TV Educativa, escrevendo o Telecurso Qualificação Profissional. No início da década de 80 já integrava a equipe de roteiristas do programa Caso Verdade da Rede Globo. 4 Exibida às 23 horas e, portanto, não foi objeto de análise. 65 Foto 03-Ricardo Linhares Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Foi colaborador nas minisséries Máfia do Brasil (1984), O tempo e o Vento (1985) e Anos Rebeldes (1992), nas novelas O Outro (Rede Globo, 20 hrs, 1987), Fera Radical (Rede Globo, 19hrs, 1988), O Dono do mundo (Rede Globo, 20hrs, 1991) e Celebridades (Rede Globo, 21hrs. 2003). Também foi supervisor de texto do seriado Malhação (1995). Assinou, em co-autoria, as novelas Tieta (Rede Globo, 20hrs, 1989), Lua Cheia de Amor (Rede Globo, 19hrs, 1990), Pedra sobre Pedra (Rede Globo, 20hrs, 1992) A Indomada (Rede Globo, 21hrs, 1997), Porto dos Milagres (Rede Globo, 21hrs, 2001), Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007) e Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011). A primeira novela em que foi autor solo foi Meu Bem Querer (Rede Globo, 19hrs, 1998), que contou com três personagens, no formato de família desajustada,e somente um personagem apareceu na trama durante todo o desenrolar da novela. Assim como Ricardo Linhares, os novelistas Benedito Ruy Barbosa e Walter Negrão mantiveram nos anos 2000 um mesmo quantitativo de personagens negros que apresentavam nas décadas anteriores. Estes autores costumam escrever tramas épicas ou regionalistas que por uma questão de verossimilhança demanda pela participação de personagens negros no enredo, ainda que figurando em papeis de escravos e trabalhadores domésticos ou rurais, com limitada carga dramatúrgica ou orbitando em torno de personagens brancos. Esses exemplos indicam que nem sempre uma maior quantidade de personagens negros assegura-lhes maior visibilidade nos enredos dos folhetins. As novelas de Benedito Ruy Barbosa, épicas ou contemporâneas, abordam temas ou contextos que apresentam um gradiente significativo de personagens negros, que desempenhavam papéis em posições de subalternidade, com pouca carga dramatúrgica. Na maioria dos casos, apareciam exercendo suas profissões, servindo aos personagens brancos. Não tinham suas famílias ou relacionamentos afetivos com outros negros retratados, sugerindo certa invisibilidade, a despeito da presença numérica significativa. 66 Contrário a institucionalização das cotas na mídia, e em especial nas telenovelas, Benedito Ruy Barbosa, em entrevista dada ao Jornal do Brasil, em 06/09/2003, declarou que a regulamentação das cotas raciais inibiria a capacidade de criação artística e forjaria contextos falaciosos do ponto de vista histórico. A inclusão de negros no elenco depende da história. Não se pode é forçar a barra e essa participação ficar irreal. Em Terra Nostra, tive muitos negros em ascensão. Personagens que procuravam dar aos filhos o estudo que não haviam tido, inclusive com críticas às restrições que os colégios faziam a crianças negras na época. Uma vez, algumas associações de negros me criticaram, dizendo que, nas minhas histórias, os negros eram roceiros, mas, na novela, eles eram o que eram na época em que a trama se passava (BENEDITO RUY BARBOSA, 2005). Benedito Ruy Barbosa nasceu em Gália-SP, em 17/04/1931. Trabalhou como jornalista, publicitário e escritor de peças de teatro antes de escrever sua primeira novela Somos Todos Irmãos (TV Tupi, 20hr, 1966). Ao longo das décadas de 60, 70, 80 e 90 escreveu diversas telenovelas para TV Tupi, TV Exelsior, TV Record, TV Cultura, Rede Globo, TV Bandeirantes e TV Manchete. Seus folhetins têm por característica abordar sagas familiares, imigrantes europeus, novelas épicas do período do escravagismo no Brasil e o contexto rural. Nestas telenovelas era linear a presença de personagens negros desempenhando o papel de trabalhadores rurais, escravos, capatazes e empregados domésticos. Foto 04–Benedito Ruy Barbosa Fonte: memoriaglobo.com, 2014. No contexto da pesquisa, as novelas de Barbosa mantiveram o mesmo contingente de personagens negros das telenovelas escritas em décadas anteriores. Estes personagens negros permaneceram enunciados por uma moldura instituída pelo discurso colonial, que lhes dava pouca participação nos enredos, apesar da significativa presença numérica (Quadra 08). 67 Quadro 08-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Benedito Ruy Barbosa produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de negros Esperança 2002 05 Sinhá Moça 2006 17 Paraíso 2009 09 Fonte: Gomes, 2015. Adepto do estilo de escrever novelas com enfoque regionalista, Walter Negrão assegurou também um gradiente significativo de negros em seus folhetins, mas estes em grande parte tinham como função nas tramas apenas orbitar em torno de personagens brancos. Walther Negrão nasceu em 24/05/1941, no município de Avaré- SP. Na juventude, trabalhou como jornalista no jornal Última Hora e na Revista Cláudia. Seu primeiro ingresso na televisão foi como ator em teleteatros na década de 1950. Sua estréia como autor se deu na TV Tupi, em 1958, roteirizando o programa Grande Teatro Tupi. No início dos anos 60, adaptou para o formato de telenovela, textos radiofônicos para a TV Record. Contribuiu com o processo de nacionalização das telenovelas brasileiras, incorporando temáticas do cotidiano dos brasileiros nos enredos de seus folhetins. Escreveu sozinho, ou em co-autoria, e supervisionou um vasto número de novelas para a TV Tupi e TV Globo, ao longo das décadas de 70 80 e 90. No tocante aos personagens negros, as novelas deste autor que apresentaram tais personagens, quando o fizeram, foi em um número reduzido. Foto 05-Walther Negrão Fonte: memoriaglobo.com, 2014. No contexto da discussão das cotas raciais na mídia brasileira, as novelas de Negrão apresentaram, nos enredos de 2004 e 2007, o exato número de cinco personagens negros. A trama, escrita em 2009, trouxe nove personagens negros e sua última novela apresentou o menor percentual de personagens negros (Quadro 09) . 68 Quadro 09- Quantidade de personagens negros nas novelas de Walther Negrão produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros Como Uma Onda 2004 05 Desejo Proibido 2007 05 Araguaia 2010 09 Flor do Caribe 2013 04 Fonte: Gomes, 2015. As novelas de Walther Negrão têm uma peculiaridade que as diferenciam das de outros autores, são ambientadas predominantemente no espaço rural ou litorâneo e nestes contextos, a diferença entre negros e brancos ficou demarcada na dicotomia patrão/empregado. O novelista em foco, embora tenha contemplado um número significativo de negros em suas tramas que foram analisadas, com exceção de Flor do Caribe, priorizou uma construção de sujeitos e sujeitas negras presos aos moldes das relações escravagistas no tocante a relação com personagens brancos, demonstrando assim indiferença a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia Brasileira. 3.2 A “Ameaça Simbólica” redimensionando a construção do personagem negro A “Ameaça Simbólica” das cotas raciais foi ”visível” por vinte cinco dos autores analisados. Considero que o resultado direto dessa “visibilidade” reside na ampliação da presença de personagens negros e sua composição dramatúrgica. Para construir tal argumentação, parto do exemplo da novelista Ana Maria Moretzsohn, que ampliou de zero para três o número de personagens negros nas duas novelas que assinou no período analisado. No entanto, cabe refletir sobre que tipo de personagens negros figuravam nas tramas: crianças abandonadas por seus familiares negros e adotados por mulher branca. Esse perfil de personagem reforça a ideia da criança negra vulnerável, fruto de uma família negra desajustada, que é acolhido por uma “salvadora” branca, fazendo coro ao discurso colonial, que exalta o branco como um salvador e bem feitor do negro, por sua bondade e generosidade. Destaco que esta proposta de ampliação de presença de negro é limitada à dimensão quantitativa (Quadro 10). Quadro 10-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Ana Maria Moretzsohn produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros Estrela Guia 2001 0 Sabor da Paixão 2002 03 Fonte: Gomes, 2015. Ana Maria Moretzsohn nasceu na cidade do Rio de Janeiro-RJ em 07/11/1947. Jornalista de formação, ingressou na Rede Globo na condição de roteirista de 69 minisséries e do programa Caso Verdade, na década de 80. Estabeleceu parceiras com os autores de telenovela Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Charles Peixoto, nas décadas de 80 e 90, e participou da Criação do seriado Global Malhação (1995). Sua primeira novela solo foi Perdidos de Amor (Rede Bandeirantes, 19hrs, 1997), mas no contexto das discussões em torno das cotas raciais, o primeiro folhetim foi Estrela Guia (Rede Globo, 18hrs, 2001). Essa novela tinha trama contemporânea, que abordava valores espirituais de grupos e sociedades alternativos como hippies, confrontados com valores e inovações do capitalismo. Não apresentou nenhum personagem negro em seu elenco. A única telenovela escrita por Euclydes Marinho, no período definido pela pesquisa, foi Desejos de Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002), que apresentou três personagens negros, indicando a preocupação de assegurar alguma presença de personagens negros, no período em que a mídia brasileira estava tensionada pela proposição das cotas raciais. Destaco que os dois primeiros escritos pelo novelista em 1990 e 1999 não tiveram personagens negros. Na trama Desejos de Mulher, os personagens negros eram jovens, de origem humilde, que trabalhavam como modelo, os únicos negros da agência. Como outros personagens negros veiculados nesse período, não tinham um cenário próprio, nem relações familiares ou afetivas retratados na trama. Euclydes Marinho nasceu em 14/02/1950, na cidade do Rio de Janeiro. Na juventude morou em Paris e chegou a iniciar o curso de desenho industrial na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sua aproximação com as artes visuais se deu em trabalhos como fotógrafo de revistas, jornais e filmes. Desde a década de 70, roteirizou diversos filmes. Seu ingresso na televisão se processou em 1978, quando começou a trabalhar na Rede Globo e, nas décadas seguintes, integrou a equipe de escritores dos seriados Ciranda Cirandinha, Malu Mulher, Armação Ilimitada e Tarcisio e Glória. Roteirizou programas especiais que abordavam o universo feminino e a temática da juventude brasileira. Atuou como colaborador do novelista Gilberto Braga na novela Brilhante (Rede Globo, 20hrs, 1981) e também foi autor de várias minisséries como Quem ama não mata (1982), Meu destino é pecar (1984), Meu Marido (1991), Capitu (2009) e Brado Retumbante (2012). 70 Foto 06-Euclydes Marinho Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Como novelista, Euclydes Marinho escreveu somente novelas para o horário das 19 horas. O folhetim Mico Preto (Rede Globo, 19hrs, 1990) foi o primeiro que assinou, em co-autoria com Leonor Baseres e Marcilio de Moraes. Andando nas Nuvens (Rede Globo, 19hrs, 1999) foi a primeira novela que Euclydes Marinho assinou, como autor solo, e ambas não tiveram nenhum personagem negro. Assim como Marinho, outros novelistas redimensionaram posturas adotadas nas décadas anteriores e passaram a inserir mais negros nas novelas que escreviam no contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira. Este foi o caso da novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs, 2008) assinada por Alcides Nogueira, que apresentou três personagens negros, que tiveram pouca participação no enredo, figuravam em profissões pouco valorizadas socialmente e, na maioria das cenas em que apareciam, o faziam apenas servindo personagens brancos. Alcides Nogueira nasceu em 28/10/1949, na cidade de Botucatu no Estado de São Paulo. Ainda na adolescência se mudou com a família para a capital paulista e, aos 20 anos, morou uma temporada em Londres. Formou-se em direito pela Universidade São Francisco, tinha planos com a carreira diplomática, que segundo ele foram redimensionados em função da experiência brasileira com a ditadura militar. Foto 07-Alcides Nogueira Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Na década de 70, Nogueira atuou como escritor e revisor de diversas revistas da Editora Abril. Também começou a escrever peças de teatro, pelas quais recebeu os prêmios Moliere e Mambembe. Já no inicio da década de 80, começou a trabalhar como 71 redator de publicidade da Rede Globo de São Paulo e, em função da notoriedade que estava obtendo como escritor de teatro, foi convidado pelo diretor Paulo Ubiratan para integrar o núcleo de dramaturgia da emissora, onde começou a escrever, ainda em 1982, diversos roteiros para o programa Caso Verdade. A partir do final da década de 80, atuou como colaborador dos novelistas Lauro César Muniz, Silvio de Abreu e Gilberto Braga. Escreveu em parceira com Maria Adelaide Amaral, a minissérie Um Só Coração (2004) e JK (2006). A primeira experiência de Nogueira como escritor de telenovela foi em parceria com Walter Negrão, no folhetim Livre para Voar (Rede Globo, 18hrs, 1984), que apresentou dois personagens negros, que embora tivessem destaque, reforçavam uma significação do negro pautada nas relações coloniais. Figuravam na novela, respectivamente, como um menor abandonado órfão, fugitivo de orfanato, e uma empregada doméstica. No ano seguinte, a partir de um argumento do produzido pelo novelista Benedito Ruy Barbosa, Alcides Nogueira, assinou como autor solo, a novela De Quina pra Lua (Rede Globo, 18hrs, 1985), trama que não trouxe nenhum personagem negro. Nogueira estabeleceu, novamente, parceria com Walter Negrão e assinaram juntos o folhetim Direito de Amar (Rede Globo, 18hrs, 1987), trama que não teve nenhum personagem negro. Dez anos depois, assinou pela segunda vez na condição de autor solo, a novela O Amor Está no Ar (Rede Globo, 18hrs, 1997), com apenas um personagem negro, que aparecia ocasionalmente,como um motorista da família da protagonista branca da novela. A autora Maria Adelaide Amaral, apesar de ter aumentado numericamente a inserção de personagens negros em suas telenovelas, o perfil dramatúrgico destes personagens aponta para uma participação pouco expressiva no enredo, pois não tinham cenários próprios, poucas ou nenhuma cena que abordasse suas relações familiares ou amorosas. Não apareciam em todos os capítulos, e quando tinham cenas, estas os retratavam exercendo suas profissões e servindo a superiores brancos. Amaral nasceu em Alfena, cidade de Portugal, em 01/07/1942. Migrou com sua família para o Brasil, em 1964. Instalou-se na capital paulista e graduou-se em jornalismo pela Escola de Comunicação da Fundação Cásper Libero. Trabalhou com os novelistas Cassiano Gabus Mendes e Silvio de Abreu. 72 No período estabelecido pelos marcos desta pesquisa, Amaral assinou dois folhetins como autora solo e estes contemplaram uma tendência de ampliação do quadro de personagens negros (Quadro 11). Quadro 11-Quantidade de personagens negros nas novelas de Maria Adelaide Amaral produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros Ti TiTi 2010 03 Sangue Bom 2013 07 Fonte: Gomes, 2015. O folhetim TiTiTi (Rede Globo, 19hrs, 2010) era uma trama no formato remake, que inovou ao misturar o roteiro de duas novelas assinadas pelo novelista Cassiano Gabus Mendes, TiTiTi (Rede Globo, 19hrs, 1985) e Plumas e Paetes (Rede Globo, 19hrs, 1980). Na trama fruto dessa adaptação, Amaral apresentou dois personagens negros que inexistiam nas primeiras versões dos folhetins em questão. O fato de na segunda versão de TiTiTi dois personagens negros terem sido inseridos na trama aponta para o reconhecimento da necessidade adequar a trama ao ano de 2010. A segunda novela escrita por Amaral, no período abarcado investigado, foi Sangue Bom (Rede Globo, 19hrs, 2013), também com personagens negros. O contexto dos folhetins escritos por Maria Adelaide Amaral se assemelha ao do novelista Bosco Brasil, que foi autor solo do folhetim Tempos Modernos (Rede Globo, 19hrs, 2010). Esta trama trouxe seis personagens negros, sendo que os que tinham maior destaque somente apareciam em cenas nas quais os ambientavam enquanto profissionais e os que tinham carga dramatúrgica que contemplava cenas em contexto familiar eram constituídas por parentes brancos. Bosco Brasil nasceu na capital paulista, em 1960. Possui graduação pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Começou sua carreira na televisão como roteirista do SBT e da Record. Foi autor da novela As Pupilas do Senhor Reitor (SBT, 19:45hrs, 1994). Na Rede Globo, trabalhou como roteirista de diversas telenovelas assinadas pelo autor Silvio de Abreu. As novelas escritas por Elizabeth Jhin foram produzidas no contexto da discussão em torno das cotas raciais. Embora tenha apresentado uma tendência de ampliação do número de personagens negros (Quadro 12), a participação destes na trama era pequena sempre contracenando com personagens brancos, apontando que nem sempre presença pode reverter a invisibilidade do negro nos folhetins. Elizabeth Jim nasceu em Belo Horizonte em 13/01/1949. Tem formação em teatro pela UNIRIO e foi aluna da primeira oficina de roteiro de TV da Globo. Foi co-autora do folhetim Começar de Novo (Rede Globo, 19hrs, 2004). 73 Quadro 12-Quantidade de personagens negros nas novelas de Elizabeth Jim Novela Ano Quantidade de Negros Eterna Magia 2007 02 Escrito nas Estrelas 2010 05 Amor Eterno Amor 2012 03 Fonte: Gomes, 2015. Nos anos 2000, ou seja, contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais, os autores Lícia Manso e Marcos Bernstein estreiam enquanto novelistas já assegurando um gradiente mínimo de personagens negros em cada trama. Este foi o caso do folhetim A vida da Gente (Rede Globo, 18hrs, 2011). Esta novela era ambientada nas cidades gaúchas de Porto Alegre e Gramado, e a espinha dorsal de seu enredo enfocava conflitos familiares. Esta trama tinha mais de quarenta personagens e, destes, apenas dois eram negros e enunciados como mãe e filho, com pouca carga dramatúrgica. Lícia nasceu na capital carioca, em 1965. É atriz, produtora e roteirista. Foi coautora do seriado Malhação, do programa A Diarista e colaboradora na telenovela Três Irmãs (Rede Globo, 19hrs, 2008). Já o também carioca, Marcos Bernstein, nasceu em 17/02/1970, possui graduação em direto pela PUC-RJ, e tem trabalhos no segmento da mídia como cineasta, roteirista e ator. A proposta de personagem negro apresentada na novela produzida por esta dupla tinha pouco peso e carga dramatúrgica possuíam relações importantes com personagens brancos. O novelista Mario Prata também assegurou uma significativa quantidade de personagens negros, mas estes igualmente tinham pouca carga dramatúrgica na única novela que escreveu dentro dos marcos temporais da pesquisa. Mario Prata nasceu em 11/02/1946 no município de Uberaba-MG e possui Graduação em Economia pela USP. Começou a atuar como escritor, ainda aos 14 anos, na cidade de Lins-SP, tendo um espaço na coluna social no Jornal Gazeta de Lins, usando o pseudônimo de Franco Abiazzi. Posteriormente, começou a escrever para o jornal Última Hora. Lançou seu primeiro livro em 1969, que teve por título O morto que morreu de rir e escreveu, ainda nos anos 70, suas primeiras peças teatrais. Foto 08-Mário Prata Fonte: memoriaglobo.com, 2014. 74 Na segunda metade da década de 70, escreveu sua primeira novela, Estúpido Cupido (Rede Globo, 19hrs, 1976), sem nenhum personagem negro. Em seguida, escreveu o folhetim Sem lenço nem documento (Rede Globo, 19hrs, 1977), que trazia uma personagem negra. Em sua trajetória profissional, Prata atuou não só na Rede Globo, mas também na TV ARD (emissora da Alemanha Ocidental), na TV Tupi, TV Cultura, na emissora portuguesa SIC, na Televisión Nacional de Chile, TV Bandeirantes e TV Record. Paralelamente, escreveu vários livros, minisséries, novelas, roteirizou programas e filmes para a Rede Globo, a partir de 2001, assinou a autoria de apenas uma novela, Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005). Entretanto, foi substituído pelo novelista Carlos Lombardi, que prosseguiu escrevendo a novela. Segundo o portal Memória Globo (2014), Lombardi assumiu a autoria da novela em função de Mário Prata ter tido que se afastar por motivos de saúde. Quando é estabelecido um comparativo entre a presença de negros nas novelas do horário das 19hrs que antecederam Bang Bang, é possível identificar uma continuidade da tendência de assegurar um núcleo e/ou um número significativo de personagens negros nas novelas dessa faixa de horário. Essa dinâmica é fruto da repercussão em torno da protagonista negra na novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2003), que influenciou os folhetins que a sucederam (Começar de Novo, A Lua me disse, Bang Bang e Cobras e Lagartos) a assegurarem um quantitativo significativo de personagens negros. O novelista Walcyr Carrasco (apud Tavares 2003, p.09) que apresentou uma negra como protagonista em sua telenovela Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1997), assumiu posicionamento contrário às cotas raciais na mídia, defendendo que o sistema de cotas seria nocivo a liberdade artística do autor. Carrasco foi enfático ao afirmar: “se você amarra a criação pode produzir um efeito contrário”. Os folhetins escritos por Carrasco no contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais, apontaram que este autor encampou uma preocupação restritamente quantitativa no tocante à presença de personagens negros. Suas novelas deram destaque a temática da discriminação racial no enunciado de personagens negros. Naquelas produzidas a partir de 2001, as tramas roteirizadas passaram a apresentar, de início, uma tendência de ampliação gradual da presença de negros, indicando o efeito da ameaça simbólica das cotas raciais. Posteriormente ao processo de esfriamento das discussões do Estatuto da Igualdade Racial, a presença de negros na ultima novela de Carrasco, Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013) foi rarefeita, pois os personagens negros apresentados na 75 trama não foram fixos ao longo da novela, e até ao décimo quinto capítulo exibido, a novela não havia inserido nenhum personagem ou mesmo figurante negro. O contexto deste folhetim aponta para a artificialidade da tendência de ampliação da presença de personagens negros nas tramas assinadas por Carrasco (Quadro 13). Quadro 13-Quantidade de personagens negros nas novelas de Walcyr Carrasco produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade negros A Padroeira 2001 09 Chocolate com Pimenta 2003 06 Alma Gêmea 2005 04 Sete Pecados 2007 09 Caras e Bocas 2009 08 Morde e Assopra 2011 04 Amor à Vida 2013 03 Fonte: Gomes, 2015. Carrasco nasceu em Bernardino do Campo-SP, em 02/12/1951. Fez graduação em jornalismo pela USP, trabalhou em diversas revistas e jornais, atuando também como autor de livros voltados ao público infanto juvenil e escrevendo peças de teatro. Estreou como autor de novelas no final da década de 80, com Cortina de Vidro (SBT, 19:45hrs, 1989). No inicio dos anos 90 escreveu minisséries para a Rede Manchete e foi supervisor de texto do seriado Retratos de Mulher na Rede Globo. Foto 09-Walcyr Carrasco Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Em 1997, em co-autoria com Mário Teixeira, Carrasco escreveu a novela Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1997). Como ainda tinha vínculo contratual com o SBT, assinou com o pseudônimo de Adamo Angel. Este folhetim inovou ao trazer no papel titulo a atriz negra Taís Araújo, um número significativo de personagens negros e, predominantemente, por abordar elementos da cultura africana sem apresentá-los pelo viés eurocêntrico. Xica da Silva apresentou uma primeira tentativa de redimensionando de personagem negros em uma telenovela, que contribuiu para que na década seguinte outros novelistas também apostassem na idéia de trazer protagonistas negros. Carrasco retornou ao SBT, onde escreveu a novela Fascinação (SBT, 22hrs, 1998). Em 2000, retornou a Globo e assinou, com parceria com Mário Teixeira, o 76 folhetim O Cravo e a Rosa (Rede Globo, 18hrs, 2000), Nesta novela Carrasco introduziu dois personagens negros, sendo que apenas um esteve presente durante toda a novela e ambos atuaram em função de personagens brancos. Já o veterano novelista Antonio Calmon manteve um quantitativo linear no tocante a presença de negros nos folhetins que escreveu no período encampado por esta análise. Apresentou uma ampliação puramente quantitativa da presença de personagens negros. Apostou no estigma da hiperssexualização do negro, com destaque para a virilidade do homem negro e na naturalização de uma suposta condição de subalternidade do negro ao branco. Apresentou negros e negras em suas telenovelas tendo com única função ser os melhores amigos de protagonistas brancos, e reforçou o estigma do homem negro como malandro e criminoso Antonio Calmon nasceu em Manaus-AM, no dia 29/10/1945. Ingressou em 1964, mas não concluiu a faculdade de Sociologia e Política da PUC-RJ. Nas décadas de 60, 70 e 80 atuou como assistente de cinema, diretor e roteirista de diversos filmes premiados no Brasil no mundo. Seu ingresso na televisão se processou em 1985, quando passou a ser roteirista da série Armação Ilimitada da Rede Globo. No mesmo ano, em parceria com Daniel Filho e Euclydes Marinho, contribuiu na elaboração do seriado Tarcisio e Glória. Posteriormente, participou no desenvolvimento do programa Shop Shop, que foi ao ar em 1988. Foto 10- Antonio Calmon Fonte: memoriaglobo.com, 2014. O folhetim Top Model (Rede Globo, 19hrs, 1989) foi sua primeira novela e foi escrita em parceria com Walter Negrão. As novelas escritas por Antonio Calmon concretizam tramas voltadas ao cotidiano de um público jovem, exibidas no horário das 19hrs, com enredos que mesclam comédia e aventura, explorando o fantasioso e a ficção. Seus folhetins escritos nos anos 90, Vamp (Rede Globo, 19hrs, 1991) Olho no Olho (Rede Globo, 1993), Cara e Coroa (Rede Globo, 19hrs, 1995), Corpo Dourado 77 (Rede Globo, 19hrs, 1997), traziam geralmente de um a dois personagens negros, nem sempre fixos ao longo da exibição da novela. No período compreendido pelo recorte temporal investigado, há uma tendência linear de ampliação do número de personagens negros em suas novelas, indicando que o autor encampou a preocupação de preservar um mínimo de personagens negros em seus folhetins (Quadro 14). Quadro 14-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Antonio Calmon produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de negros Um Anjo Caiu do Céu 2001 02 O Beijo do Vampiro 2002 03 Começar de Novo 2004 11 Três Irmãs 2008 2008 04 Fonte: Gomes, 2015. A análise do quadro acima aponta com dois personagens negros na primeira trama que escreveu, ampliando para onze na terceira, e reduzindo para quatro em sua ultima novela. Esse quantitativo recorde foi resultado da ameaça simbólica das cotas raciais na mídia e, também, do fato deste folhetim ter sucedido a novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004), que trouxe uma protagonista negra e um número significativo de personagens negros, o que acabou de alguma forma influenciando os folhetins que a sucederam. Destaco que, após o ano de 2001, em que a mídia brasileira passou a ser tensionada pelas discussões em torno das cotas raciais, os folhetins assinados por Glória Perez passaram a ter um número que variou de seis a oito de personagens negros. Entretanto, a autora cristalizou uma imagem de negro calçada no estigma da hiperssexualização, da malandragem e da indisposição ao trabalho. No tocante a mulher negra, acentua o estigma de um instinto maternal exacerbado e a sensualidade. Glória Perez assegurou em suas novelas um “núcleo popular” ambientado sempre no contexto de periferia ou favela da capital carioca, o que tangencialmente propiciou a inserção de personagens negros (Quadro 15). Quadro 15-Quantidade de personagens negros nas novelas de Glória Perez Produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros O clone 2001 08 América 2005 06 Caminho das Índias 2009 06 Salve Jorge 2012 07 Fonte: Gomes, 2015. 78 Glória Perez nasceu em 25/12/1948, na cidade do Rio Branco-AC. Formada em história pela UFRJ, começou na televisão e nas novelas em 1983, como colaboradora da novelista Janete Clair na novela Eu Prometo (Rede Globo, 20hrs, 1983). No ano seguinte, escreveu, em co-autoria com Aguinaldo Silva, o folhetim Partido Alto (Rede Globo, 20hrs, 1984). Nesta trama, a autora denunciou a falta de transporte público no bairro Encantado, no subúrbio carioca. Após esta novela, Glória saiu da Rede Globo e, posteriormente, foi trabalhar na Rede Manchete de Televisão, onde escreveu o folhetim Carmen (Rede Manchete, 21:30hrs, 1986), trama em que abordou o universo das religiões de matriz africana, dando significativo destaque para alguns atores negros. Nesta trama abordou também a questão do HIV/AIDS, bem como formas de transmissão da doença. Foto 11- Glória Perez Fonte: memoriaglobo.globo.com, 2014. Regressou a Rede Globo em 1990, quando escreveu sua primeira minissérie, Desejo (Rede Globo, 23hrs, 1990). Neste mesmo ano, escreveu a novela Barriga de Aluguel (Rede Globo, 18hs, 1990), trama em que abordou a questão do bebê de proveta. Em De Corpo e Alma (Rede Globo, 21hrs, 1992), abordou ainda a questão da doação de órgãos, discutindo também a discriminação racial por meio da troca de bebês na maternidade. Nesta trama, o filho branco de uma família de classe média alta é trocado na maternidade pelo filho negro de uma família moradora de uma favela. Assim, a autora conseguiu imprimir a característica emblemática de seus folhetins: a abordagem de temas considerados polêmicos associados a ações sócio-educativas e de militância. Esse foi o caso do drama de crianças desaparecidas no folhetim Explode Coração (Rede Globo, 21hrs, 1995). As novelas de Glória Perez sempre asseguram um núcleo ambientado em um bairro periférico ou favela, havendo a presença de personagens negros com significativa participação na trama. O novelista Miguel Falabela deu significativo destaque aos personagens negros em seus folhetins, circunscrevendo-os a esfera da comédia. Explorou o culto à condição de branco e loiro para explorar, pelo viés do humor escachado, o preconceito de negros 79 para com outros negros, bem como a recusa à condição de negro. Apostou em mulheres negras em condição de subalternidade, que invejavam patologicamente mulheres brancas. Falabela nasceu no Rio de Janeiro, em 10/10/1956. Graduou-se em letras pela UERJ. Iniciou sua carreira na televisão em 1982 no programa Caso Verdade da Rede Globo, no mesmo ano em que integrou o elenco da novela Sol de Verão (Rede Globo, 20hrs, 1982). Ainda em 1985, começou a escrever roteiros para programas de televisão e seriados. Ao longo da década de 80 e 90, atuou como ator em várias novelas, seriados e programas e, paralelamente, era apresentador do programa Video Show da Rede Globo. Foto 12- Miguel Falabela Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Em 1996, em parceria com Maria Carmen Barbosa, Falabela escreveu a novela Salsa e Merengue (Rede Globo, 19hrs, 1996), instaurando uma tendência em seus folhetins: fazer comédia acerca da condição do sujeito negro. A única personagem negra desta novela era uma empregada domestica que tinha uma relação de inveja e adoração por sua patroa branca, por esta ser rica, branca e ter o cabelo liso. Jacinta, em algumas cenas, sonhava estar ocupando o lugar da patroa e usando uma peruca loira e lisa, idealizava ser autenticamente loira. Enquanto escrevia a novela, Falabela atuava no programa Sai de Baixo, exibido pela Rede Globo, que tinha um formado de sitcom, dando vida ao personagem Caco Antibes, um homem que se orgulhava de sua condição de homem alto, loiro, apresentando-se como um “príncipe dinamarquês”. Este personagem enfatizava que odiava pobres. Caco tinha grande aceitação por parte do público. Talvez por isso, Falabela, enquanto autor reforçava os estereótipos ao abordar a questão da relação patroa branca e empregada negra, sugerindo uma suposta inveja da negra para com a branca (Quadro 16). 80 Quadro 16-Quantidade de personagens negros Novelas de Miguel Falabela produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade negros A Lua Me Disse Negócio da China Aquele Beijo 2005 2008 2011 07 03 10 Fonte: Gomes, 2015. As novelas que escreveu no período investigado apontam que incorporou a preocupação em inserir um núcleo de personagens negros em seus folhetins. Começou em 2005, período em que além das discussões em torno das cotas raciais na mídia, as novelas foram também influenciadas pelo sucesso da novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004), que emplacou uma protagonista negra. O folhetim que foi ao ar em 2010 concretizou sua novela que mais trouxe personagens negros. Considero que a caracterização do contexto de cada folhetim fornece algumas pistas que permitem traçar algumas hipóteses para problematizar acerca da variação destes números. A análise das quatro novelas de Silvio de Abreu, produzidas de 2001 a 2013, aponta para um quadro de resguardo de participação de negros nas tramas, diferentemente de seus folhetins produzidos em décadas anteriores. No marco temporal estabelecido por esta neste trabalho, os números indicativos da quantidade de negros em suas novelas me instigaram, pois houve um aumento na metade da década de 2000 e uma redução nos anos seguintes (Quadro 17). Quadro 17-Novelas de Silvio de Abreu produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade negros As filhas da Mãe 2001 02 Belíssima 2006 06 Passione 2010 02 Guerra dos Sexos 2012 01 Fonte: Gomes, 2015. Silvio de Abreu nasceu em São Paulo em 20/12/1942. Formou-se em cenografia pela USP em 1963. Ainda na década de 60, atuou como ator, assistente de direção e estreou, como ator de televisão, em 1967, na novela O Grande Segredo (TV Excelsior, 20hrs, 1967), quando retornou de um estágio no Actor Studio de Nova York. Trabalhou como ator em telenovela da Rede Bandeirantes e da Rede Globo nos anos seguintes. De 1971 a 1977, atuou como assistente de direção do diretor de cinema Carlos Manga. Posteriormente, atou como roteirista e diretor de longas metragens nos estilos documentário e pornochanchada. 81 Foto 13- Silvio de Abreu Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Em 1977, foi convidado pela TV Tupi para escrever novelas. Seu primeiro folhetim foi Éramos Seis (TV Tupi, 20hrs, 1977), criada a partir da adaptação de um romance de Maria José Dupré. Já no ano seguinte passou a trabalhar na Rede Globo, quando escreveu a novela Pecado Rasgado (Rede Globo, 19hrs, 1978). Dois anos depois substituiu o escritor Cássio Gabus Mendes na conclusão da novela Plumas e Paetês (Rede Globo, 19hrs, 1980). No ano seguinte, escreveu, a partir de um argumento da dramaturga Janete Clair, a novela Jogo da Vida (Rede Globo, 19hrs, 1981). Sua consagração junto ao público veio dois anos depois, quando escreveu Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 1983), trama que seguia o padrão de não ter nenhum personagem negro. Entre 1984 e 1987, Silvio de Abreu escreveu três novelas no estilo comédia para o horário das 19 horas, Vereda Tropical (Rede Globo, 19hrs, 1984), Cambalacho (Rede Globo, 19hrs, 1986) e Sassaricando (Rede Globo, 19hrs, 1987). Todas as novelas escritas a partir da década de 1980 foram ambientadas na cidade de São Paulo. Somente no folhetim Sassaricando encontrei a presença de um único personagem negro, que teve uma pequena participação na trama. A primeira novela no horário das 20 horas, que assinou, foi Rainha da Sucata (Rede Globo, 20 horas, 1990), que trouxe uma personagem negra, apenas no inicio da novela. No folhetim Deus nos Acuda (Rede Globo, 19hrs, 1992) não tinha nenhum personagem negro. Já em A Próxima Vitima (Rede Globo, 20hrs, 1995), inseriu seis personagens negros que integravam uma família. Nessa trama abordou a questão da discriminação racial. Sua última novela na década de 90, Torre de Babel (Rede Globo, 20hras, 1998) não teve nenhum personagem negro. A tentativa de caracterização dos novelistas me permitiu identificar que grande parte destes encampou a preocupação de inserir uma quantidade maior de negros desde 2001. Percebi, também, que especialmente os novelistas veteranos tendem a apresentar uma mesma proposta de personagem negro em seus folhetins. Ao roteirizar o enredo de uma telenovela, os novelistas mobilizam a produção social da diferença entre negros e 82 brancos por meio de estratégias de significação, enunciado e (in)visibilidade dos personagens sejam negros ou brancos, na perspectiva da diferença colonial. No contexto das tramas, a presença ou ausência dos personagens negros têm uma especificidade no tocante a produção social das diferenças, pois contribuem na significação da ideia de sujeito negro, desestabilizando um suposto equilíbrio no antagonismo ausência/presença. O novelista Gilberto Braga demonstrou ter sido sensibilizado pela “ameaça simbólica” das cotas raciais, assegurando em termos puramente quantitativos uma ampliação da presença de personagens negros em suas tramas. Braga apostou nas relações interétnicas, enfatizando o fetiche interracial, com destaque para o envolvimento do homem negro com mulheres brancas. Ao mesmo tempo em que veiculou a imagem de negros ocupando profissões de destaque, mas sem vínculos com outros negros e sem fazer menção à condição de negro, apresentou o negro como malandro, mulherengo e alcoólatra. Mostrou negros se despindo de seus sinais diacríticos com vistas a sugerir melhoria de vida e brancos “sendo punidos” com o nascimento de filhos negros, fazendo eco ao ideal de embranquecimento da população. Apostou no fetiche do branco pelo negro, trouxe negros e negras como empregados domesticas, cozinheiros, arrumadeiras, prostitutas, fotógrafos, designer de jóias, secretária executiva e assistente pessoal de patrões brancos. Gilberto Braga nasceu no Rio de Janeiro em 01/11/1945 e formou-se em Letras pela PUC-RJ. Sua aproximação com a carreira de escritor deu-se como critico de teatro e cinema do Jornal O Globo. A partir de 1973 escreveu alguns programas Casos Especiais. Entretanto, sua primeira experiência em telenovelas ocorreu quando dividiu, com Lauro César Muniz, a autoria do folhetim Corrida do Ouro (Rede Globo, 19hrs, 1974). Em 1975 adaptou obras literárias do escritor José de Alencar, para o formato de telenovela e inaugurou o horário das 18 horas enquanto espaço de exibição de telenovelas na Rede Globo com os folhetins Helena (Rede Globo, 18hrs, 1975) e Senhora (Rede Globo, 18hrs, 1975). Foto 14- Gilberto Braga Fonte: memoriaglobo.com, 2014. 83 Posteriormente, Gilberto Braga assumiu o lugar de Janete Clair na autoria da novela Bravo! (Rede Globo, 19hrs, 1975). No ano seguinte, escreveu, a partir da uma adaptação do romance homônimo de Bernardo Guimarães (1875), a novela Escrava Isaura (Rede Globo, 18hrs, 1976) seu primeiro grande sucesso e uma das novelas que a Rede Globo mais exportou. Esta novela trouxe um significativo número de personagens negros atuando em papeis secundários como escravos e, para o papel título, o da personagem Escrava Isaura (Lucélia Santos) foi escalada uma atriz branca, sob a justificativa de que a obra original desenhava a protagonista Isaura como “branca da cor do marfim”. Considero que a escrava branca explorada no romance literário e na novela de Gilberto Braga aponta para o contexto de vigência de uma mesma racionalidade ancorada em relações coloniais. Das 12 novelas e minisséries que escreveu nas décadas de 80 e 90, apenas Corpo a Corpo (Rede Globo, 20hs, 1984) e Pátria Minha (Rede Globo, 20hrs, 1994) deram significativo destaque a personagens negros, sendo efetivadauma denúncia da discriminação racial. Corpo a Corpo retratoucomo negativa a rejeição do relacionamento do personagem Cláudio Fraga (Marcos Paulo) deste com a arquiteta negra Sônia (Zezé Motta), por parte da família branca do noivo. Já em Pátria Minha, foi veiculado um discurso do personagem Raul Pelegrini (Tarsicio Meira) dirigido ao personagem negro Kennedy (Alexandre Moreno), com conteúdo ofensivo. Essa cena foi alvo de inquérito junto a Policia Federal, através de denuncia por parte do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o que obrigou a emissora a se retratar, por meio de outra cena na própria novela. A ação do Ministério Público questionou a postura omissa do personagem negro, que aceitou passivamente as ofensas que o desqualificavam enquanto negro. A presença de negros, nas décadas de 80 e 90, foi materializada em poucas novelas de Gilberto Braga e nestas a questão da discriminação racial estava fortemente presente. Entretanto, embora as novelas escritas a partir de 2001 apresentem um aumento quantitativo da presença de personagens negros isso não significou um aumento qualitativo no tocante a imagem de sujeito negro veiculada por esses personagens (Quadro 18). 84 Quadro 18-Quantidade de Negros Nas Novelas de Gilberto Braga produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros Celebridades 2003 06 Paraiso Tropical 2007 09 Insensato Coração 2011 06 Fonte: Gomes, 2015. Para o autor Gilberto Braga (2007) “As novelas, em sua grande maioria, glamourizam a realidade", o novelista laconicamente ponderou que considera que a televisão não deve obrigatoriamente documentar o que se passa fora das câmaras, mas também não pode se furtar de retratar realidade. Também enquanto desdobramento da influência do debate em torno das cotas raciais na mídia, as novelas de Aguinaldo Silva apresentaram um aumento no tocante à quantidade de personagens negros. Apesar de ter apresentado uma ampliação quantitativa no tocante a presença de personagens negros, e de se auto-declarar negro ou mulato, destaco que as imagens de negro, veiculadas pelos seus folhetins não encamparam uma preocupação em assegurar um redimensionamento qualitativo no tocante a idéia de sujeito negro. Remetem, principalmente, para estereótipos solidificados na sociedade: negros vivendo em favelas, famílias negras vulneráveis economicamente, necessitados da caridade ou tutela de sujeitos brancos, negros em situação de marginalidade social, criminalidade e prostituição; negras empregadas domésticas, assediadas sexualmente pelos patrões, negras que não se aceitam enquanto negras; negros e negras se envolvendo com pessoas brancas em contexto de supervalorização da virilidade e/ou hipersexualização de negros (Quadro 19). Aguinaldo Silva nasceu em 07/06/1943, na cidade de Carpina no Estado do Pernambuco. Em 1962 começou a trabalhar como jornalista, ainda na cidade do RecifePE. Ingressou em 1964 como repórter policial no Jornal O Globo. Posteriormente chegou a atuar como roteirista da série Plantão de Policia, produzida pela Rede Globo, em 1979. No ano seguinte começou a escrever episódios na serie Malu Mulher, veiculada na mesma emissora. 85 Foto 15- Aguinaldo Silva Fonte: memoriaglobo.globo.com, 2014. Em 1982 escreveu Lampião e Maria Bonita, e assim inaugurou o gênero minissérie na Rede Globo. Nos dois anos seguintes escreveu mais duas minisséries, Bandidos da Falange e Padre Cicéro. Sua primeira telenovela foi Partido Alto (Rede Globo, 20hrs, 1984). Em parceria com o dramaturgo Dias Gomes, escreveu Roque Santeiro (Rede Globo, 20hrs, 1985). O sucesso deste folhetim içou-o ao patamar do seleto grupo de autores da Rede Globo que escreve novelas para o horário das 20/21hrs. A aceitação das suas novelas junto ao público foi muito significativa e, por isso, é o único autor telenovelista da Rede Globo que só escreveu novelas para o horário nobre da emissora (exibidas no horário de 20/21hrs). As novelas do autor em referência têm por marca emblemática adaptações de obras literárias. Propôs, também, enredos que foram ambientados em cidades fictícias e principalmente na região nordeste, fora do circuito das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Suas tramas mesclam comédia, romance, suspense e exploram o estilo realismo fantástico, formato que prioriza mostrar nos folhetins o irreal ou estranho como comum e cotidiano. Entretanto, embora tenha feito novelas com enredos regionalistas na década de 90, a presença de personagens negros nestes folhetins costumava ser limitada e com pouca carga dramatúrgica. Neste horizonte, destaco Tieta (Rede Globo, 21hrs, 1989), uma adaptação da obra homônima do escritor Jorge Amado, ambientada no agreste do Estado da Bahia (Estado este que, segundo dados do IBGE, abriga o maior contingente da população negra do país) que não apresentou nenhum personagem negro. A personagem título, descrita na obra do escritor baiano como morena, foi vivida na novela pela atriz branca Betty Faria. Paradoxalmente, as telenovelas assinadas por Aguinaldo Silva, produzidas no contexto das discussões acerca das cotas raciais na mídia, apresentam um significativo aumento no tocante a presença de personagens negros nos enredos. 86 Quadro 19-Novelas de Aguinaldo Silva Produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de negros. Porto dos Milagres 2001 04 Senhora do Destino 2004 06 Duas Caras 2008 20 Fina Estampa 2011 07 Fonte: Gomes, 2015. Em fevereiro de 2002, a Revista Bravo publicou um artigo com a discussão do projeto de cotas raciais na mídia. Este texto foi antecedido por uma matéria que trazia, em um breve histórico, os processos de invisibilidade e estereotipação do sujeito negro em telenovelas brasileiras. A revista ofereceu a possibilidade de que os autores dramaturgos expusessem seus argumentos sobre a temática abordada, como uma estratégia de réplica. Em nome da classe dos novelistas, Aguinaldo Silva problematizou a questão por meio do artigo intitulado “Espelho Distorcido”, no qual aponta como ficaria prejudicada a dramaturgia brasileira em um eventual contexto de institucionalização do sistema de cotas para negros na mídia. O nome do artigo já sugere que os folhetins funcionam como espelhos, e que com a regulamentação das cotas, a imagem por estes veiculada estaria distorcida e, por conseguinte, equivocada. A tônica discursiva do texto de Silva, expressa sua posição contrária e sua atitude de militância em desfavor das cotas raciais, sob a alegação de que estas falsificariam a “realidade” retratada nas telenovelas. [...] para alguns políticos, e para as bases ativistas que os sustentam, a questão racial é importante, sim... E eles acham que a televisão privilegia os (falsos) brancos, em detrimento dos únicos negros que eles reconhecem nesse país de raças mescladas, misturadas, ou seja,os puros e retintos. Porque acho que isso seria interferência demais no meu trabalho, e eu prefiro que continue estabelecido assim: meus personagens terão a raça (ou cor de pele),o caráter e a opção sexual que eu quiser, ou precisar. [...] mas não é a realidade que devia mudar primeiro, em vez da dramaturgia? Não é essa que deve correr atrás daquela? Faço minhas as perguntas de Gilberto (e espero que ele me perdoe por envolvê-lo nisso) e tento, aqui, dar uma resposta e pôr um ponto final: acho que os negros, entre os quais orgulhosamente me incluo, devem correr atrás do prejuízo, sim... Mas na vida real. E quando esta for modificada, podem estar certos de que a dramaturgia televisiva o será também. A argumentação de Silva considera que o sistema de cotas imporia uma significativa restrição à liberdade de criação artística, que é apontada pelo autor como fundamental e cara para o oficio de escritor de telenovelas. Entretanto, tal entendimento parece desconsiderar o contexto de produção de uma telenovela em uma emissora de televisão. Um autor dramaturgo tem autonomia relativa no processo de construção do 87 enredo de um folhetim, em função de estar enquadrado contratualmente com emissora que o produzirá, pois seu enredo será objeto de discussão e avaliação por diversas instancias hierárquicas dentro da emissora de televisão. Considero que Aguinaldo Silva desconsidera que o real seja uma construção simbólica, quando separa a “realidade” (processos sócio-políticos) da ficção (novela), e num segundo momento as reconecta ao defender a necessidade do realismo nos folhetins, localizando que as novelas “retratam as relações sociais do jeito que são”. Sua argumentação objetiva deslegitimar o discurso em prol do aumento da presença de negros em telenovelas. Fundamentado na meritocracia, defende que quando o contexto social do negro for modificado no Brasil, as novelas também contemplarão esta mudança. O autor não reconhece que os folhetins são produtos sociais propositivos e os afirma como retratos fiéis da vivencia cotidiana dos sujeitos. De igual forma naturaliza que as telenovelas optam por contar a unicamente a história de sujeitos brancos. No texto, Aguinaldo Silva satiriza sobre como seria falacioso e inverossímil o enredo de um folhetim que apresentasse personagens negros enunciado em posições sociais de prestigio dentro das tramas. De igual modo, argumenta que seria absurdamente irreal inserir em uma novela uma personagem branca e loira, idealmente vivida pela atriz Danielle Winits, para interpretar uma empregada doméstica. Assim, novamente, Silva reforça a demarcação e localização empreendida pelas relações coloniais, no tocante ao lugar autorizado ao negro em uma telenovela, e também em outros espaços sociais. Ao justificar a reprodução da hierarquia social entre negros e brancos no contexto das telenovelas brasileiras, Silva desconsidera que os folhetins são obras artísticas, fantasiosas, de ficção, não necessariamente baseada em fatos reais. Neste sentido, os enredos não estão necessariamente circunscritos ou referenciados em dados históricos, numéricos ou étnicos. Aguinaldo Silva considera que os sujeitos negros (dentre os quais estrategicamente se insere) devem lutar contra as consequências do racismo na dimensão do real, desconsiderando totalmente o papel dos bens simbólicos, como uma telenovela, na configuração da subjetividade. O dramaturgo em referencia inverteu a ameaça: ele próprio e possivelmente outros autores dramaturgos não prosseguiriam escrevendo folhetins caso o sistema de cotas fosse institucionalizado. Expressou, assim, uma posição firme contra as políticas afirmativas. Acionou o argumento da “mestiçagem” no Brasil, para negar a possibilidade de atores puramente brancos. Usou o mesmo argumento para 88 desestabilizar quaisquer certezas acerca da condição de sujeito branco, de atores como Fernanda Montenegro, Marcos Palmeira e Glória Pires. Assim, legitima o ideal de branqueamento, alicerçado no entendimento de que o sujeito mestiço materializa o autenticamente brasileiro, fruto da recíproca interação entre negros, índios e brancos. Os argumentos pró-mestiçagem acionados por Silva, se alinham ao discurso mobilizado pelo porta-voz da Rede Globo Luiz Erlanger (2000), quando afirma que “essa história de que quase não há negros na televisão é besteira porque todo mundo tem sangue negro, acho que eles só consideram negros os que são retintos”. O termo retinto significa, segundo o Dicionário Aurélio, “tinto duas vezes” ou “carregado na cor”. A utilização desta categoria para designar o coeficiente de “negritude” de um sujeito sugere sua têm por principal característica a ausência de cor, demarcando-os enquanto neutros racialmente falando. As ponderações sobre o gradiente de mestiçagem dos atores, e por conseguinte, personagens, feitas por Aguinaldo Silva, e a utilização da categoria “retintos” por Luiz Erlanger, sinalizam que, nas telenovelas e demais programas, somente existe espaço para a presença do negro miscigenado, “higienizado” pelo processo de mestiçagem. Demarca, igualmente, o entendimento de que o sujeito mestiço deve ser compreendido pelo imaginário coletivo como contemplando a retratação de negros e brancos, tendo sua presença nos folhetins devendo ser interpretada como a pavimentação de uma esfera comum a todas as etnias. O último ponto que destaco no texto de Silva, reside no fato de que este, dentre os demais autores novelistas contemporâneos, é o único que se autodenominou “mulato”, acionando assim seus vínculos com os negros e dimensionando que esta posição lhe confere fala autorizada enquanto porta-voz do grupo de dramaturgos, resguardando que seu discurso não seja enquadrado como racista. Reconheço como bastante estratégica a escolha desse autor nordestino, pernambucano, que se autodeclara negro ou mulato, para falar em nome dos dramaturgos. Identifico que o auto enquadramento de Aguinaldo Silva pode ser percebido como uma estratégia para conferir blindagem e assim funcionar como um antídoto para neutralizar qualquer eventual acusação e corporativismo racial entre os dramaturgos. Considero relevante demarcar, que o autor novelista em foco não possui a cor da pele escura e nem demais sinais diacríticos socialmente utilizados no Brasil para a identificação da condição de negro ou mulato. Denise Saraceni (2001), diretora de telenovelas, declarou em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, de 08/04/2001, que a elaboração do teor do projeto de cotas 89 raciais na mídia foi iniciada de forma errada. Segundo Saraceni o projeto deveria ter sido discutido pela sociedade brasileira, e não confinado as quatro paredes do Congresso nacional, pois assim, segundo a diretora, a casa legislativa não efetiva o princípio de “representar o desejo da sociedade”. Com este argumento, Saraceni pretendeu falar em nome da toda a sociedade brasileira, porém não indica qual segmento da sociedade estaria representando. Seu discurso reclama pelos direitos dos que não estão contemplados pelo sistema de cotas. Certamente fala de uma sociedade branca, porém que pode estar travestida de pluriracial. Sua argumentação é ancorada no discurso da defesa da igualdade política e na defesa de um tratamento social igual para todos os brasileiros por parte do Estado. Demonstra desconsiderar o processo político de construção da agenda das políticas afirmativas para negros no Brasil, deflagrado desde os primórdios da marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, quando movimentos sociais e diversos segmentos da sociedade civil organizada expuseram suas demandas, que culminaram na articulação com orientações internacionais na construção do Estatuto da Igualdade Racial. A argumentação utilizada pelos novelistas e os diretores de televisão aqui citados, para deslegitimar as cotas raciais nas telenovelas, constitui uma matriz discursiva que é ancorada nas relações coloniais, e que converge para três principais posicionamentos localizados por Guimarães (2005, p. 166) que atuam contra as ações afirmativas no Brasil: O primeiro considera que as ações afirmativas constituem o reconhecimento de diferenças étnicas e raciais entre os brasileiros, erodindo o imaginário nacional de um país que possui um só povo e uma só raça. O segundo é o defendido por aqueles que enxergam nas discriminações positivas uma espécie de rechaço ao princípio universalista e individualista do mérito, principio este que é encarado como a principal arma contra o particularismo e o personalismo e que ainda regula a vida pública brasileira. O terceiro argumento encara que não existem bases reais, e operacionais para a institucionalização das políticas afirmativas no país. Guimarães (2005, p. 150) analisa ainda, que o debate em torno das ações afirmativas no Brasil está polarizado em duas perspectivas: A primeira é de natureza axiológica e normativa, com foco na correção ou não do tratamento de qualquer individuo, com observância das características adscritas e grupais. Este entendimento parte do principio de que todo e qualquer indivíduo deve ser tratado a partir de suas 90 peculiaridades individuais, de competência e de mérito, independentemente do contexto do grupo social que integra. O autor localiza algumas posições que são identificadas nessa perspectiva axiológica, como a posição liberal que permite discutir o tratamento de modo diferenciado e privilegiado para indivíduos pertencentes a grupos que foram ou estão sendo alvos de discriminação negativa e difusa por outros grupos. Porém, esta aceitação é restrita a situações concretas e a contextos muito especificas que dão a estas políticas um perfil lacônico. Já o posicionamento conservador considera que é de cada indivíduo a responsabilidade pela posição social que ocupa neste horizonte. Quaisquer interferências por parte do Estado nestas questões são classificadas como indevidas. De forma explicita ou tácita, este posicionamento reconhece a existência de um determinado grupo racial, étnico, religioso, ou sexual, localizado socialmente em um contexto de desvantagem. A responsabilidade por esta desvantagem é atribuída às características que identificam o grupo. Guimarães (2005) problematiza as noções de individualismo e de mérito, bem como o processo de construção dos valores que alicerçam as duas perspectivas. Propõe que tais valores são retóricas ideológicas que camuflam práticas sistemáticas de discriminação, opressão, dominação e exploração. Neste sentido, considera que os posicionamentos contrários às políticas de ação afirmativas, são ingênuos e atuam mascarando um novo tipo sutil e não declarado de racismo. 3.2.1 As cotas raciais protagonizam o protagonismo negro? Considero que, além do aumento quantitativo no tocante a presença de personagens negros nas telenovelas, a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira, desnudou a questão da exclusão midiática do negro e influenciou autores a encampar a proposta de dar mais notoriedade a presença de negros em seus folhetins. Isso ocorreu nas seis novelas que tiveram personagens negros como protagonistas, das quais cinco destas foram os primeiros folhetins de novelistas que produziram a partir do contexto da “ameaça simbólica”. Este foi o contexto das duas primeiras novelas do autor João Emanuel de Carneiro, que inovou ao apresentar personagens negros como protagonistas, sendo que a novela Da cor do pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004) apresentou sete personagens negros no elenco. Nas demais, o quantitativo reduz-se a 91 quatro personagens negros, conforme pode ser visto no quadro de suas outras novelas produzidas de 2006 a 2012 (Quadro 20). Quadro 20- Quantidade de Personagens negros nas Novelas de João Emanuel de Carneiro Novela Ano Quantidade de negros Da Cor do Pecado 2004 07 Cobras e Lagartos 2006 04 A Favorita 2008 04 Avenida Brasil 2012 04 (02 fixos) Fonte: Gomes, 2015. Personagens negros figurando como protagonistas, nas duas primeiras tramas de João Emanuel de Carneiro, expressou um movimento significativo de alargamento do quantitativo negro nas telenovelas, que sugeriu possibilidades de redimensionamentos no aparente contexto de fixidez no padrão de colonialidade que impera no processo de construção do enredo dos folhetins João Emanuel de Carneiro nasceu na cidade do Rio de Janeiro-RJ, em 17/02/1970. Formou-se em letras pela PUC. Atua como roteirista de cinema e autor de telenovelas. Começou a escrever aos 14 anos, roteirizando histórias em quadrinhos para o cartunista brasileiro Ziraldo. Enquanto roteirista atou no curta metragem “Zero Zero”, e nos filmes Central do Brasil, Primeiro Dia, Cronicamente inviável, Orfeu, Deus é Brasileiro e no infantil Castelo Rá-Tim-Bum. Sua aproximação com o segmento das telenovelas começou como colaborador da autora Maria Adelaide Amaral na minissérie A Muralha (Rede Globo, 23hrs, 2000), e do autor Euclydes Marinho na novela Desejos de Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002). Em 2004 estreou como autor-titular (com a supervisão do dramaturgo Silvio de Abreu) na novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004). Dois anos mais tarde, escreveu a novela Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006), em 2008 A Favorita (Rede Globo, 21hrs, 2008), sendo Avenida Brasil (Rede Globo, 21hrs, 2012) seu último folhetim. Foto 16- João Emanuel de Carneiro Fonte: memoriaglobo.com, 2014. 92 A aposta de trazer personagens negros enquanto protagonistas no primeiro folhetim solo foi uma estratégia também mobilizada pela dupla de novelistas iniciantes Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, que assinaram, em co-autoria, a novela Cheias de Charme (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este folhetim trouxe dez personagens negros e narrava a saga de três empregadas domésticas. Outra dupla de novelistas estreantes que também apostou em apresentar protagonistas negros foi João Ximenes e Cláudia Lage, no folhetim Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012). Esta trama inovou ao trazer uma narrativa sobre o contexto da contribuição dos povos negros no processo de organização urbana da cidade do Rio de Janeiro-RJ. Lado a Lado apresentou dois protagonistas negros e, também, uma significativa quantidade de personagens negros com participação e carga dramatúrgica no enredo. A dupla de escritoras Duca Rachid e Thelma Guedes, que também começou a roteirizar telenovelas já no período de efervescência das discussões em torno das cotas raciais nos produtos midiáticos, apresentou um número significativo de personagens negros e, ainda, apostaram em trazer uma protagonista negra no segundo folhetim que assinaram (Quadro 21). Maria do Carmo Rodrigues Rachid é o nome de batismo da autora de novelas, Duca Rachid, que nasceu em 23/11/1960, no município paulista de Mogi das Cruzes. Com formação em jornalismo pela PUC-SP, Rachid trabalhou em programa infantil e foi co-autora de telenovela em Portugal, em 1993. No Brasil foi colaboradora do autor Walcyr Carrasco nos folhetins que escreveu para o SBT e Rede Manchete, sendo que na Rede Globo sua primeira atuação foi também como colaboradora do mesmo autor na trama O Cravo e a Rosa (Rede Globo, 18hrs, 2000). Rachid escreveu em parceira com Thelma Guedes, três telenovelas. Guedes nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 07/06/1968. Possui graduação em letras e mestrado em literatura brasileira pela USP. Antes de roteirizar telenovelas, escreveu para o Jornal O Globo, e para o seriado infantil Sitio do Pica-Pau Amarelo. Quadro 21-Quantidade de personagens negros nas novelasde Duca Rachid e Thelma Guedes produzidas de 2001 a 2013 Novela Ano Quantidade de Negros O Profeta 2006 05 Cama de Gato 2009 08 Cordel Encantado 2011 05 Fonte: Gomes, 2015. 93 O mote principal da presença dos personagens negros no Folhetim O Profeta (Rede Globo, 18hrs, 2006), esteve circunscrito à denúncia da discriminação interracial, seja na relação mãe negra/filha branca, ou na resistência ao amor interracial. A trama Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) inovou ao ser a primeira novela do horário das 18hrs da Rede Globo a ser protagonizada por uma personagem negra. A dupla de novelistas investiu no fetiche inter-racial, no mito da mestiçagem, apresentando criança/adolescente negra criada em casa de brancos, negros como filhos bastardos de pais brancos, que só no final da novela revelaram sua paternidade. Pai negro ausente, sendo suprido pelo namorado branco da mãe, sugerindo uma melhoria de vida. Mas, esta inovação está associada a manutenção da exploração do estigma da hipersexualidade/sensualidade do negro/negra e dos estereótipos do homem negro indisposto ao trabalho, indiferente a família, mulherengo e viciado em bebida alcoólica e em jogos, sustentado por uma mulher, negra como empregada doméstica, família negra desajustada, dependente da caridade de brancos, menino negro sonhando em ascender socialmente como jogador de futebol, negro apaixonado por música, adolescente negro sofrendo bullying por ser negro, pobre e quase surdo. O último folhetim assinado pela dupla explorou o amor interracial por meio da relação de uma jovem negra com um príncipe europeu, apresentou um negro como vilão venal e inescrupuloso e abordou a desconfiança do pai negro sobre a fidelidade da esposa branca pelo fato do nascimento de um filho branco e ruivo. Acredito que o contexto das discussões em torno das cotas raciais na mídia brasileira, também sensibilizou o novelista veterano Manoel Carlos a assegurar em suas tramas um aumento quantitativo significativo e linear no tocante ao número de personagens negros, comparando-se com as novelas anteriores. Além de dar um maior destaque aos personagens negros nos enredos, Manoel Carlos inovou ao trazer, na novela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), sua primeira protagonista negra. Este contexto sugere que o novelista em questão incorporou a preocupação de aumentar em termos quantitativos e qualitativos a presença de atores negros em seus folhetins produzidos no contexto da efervescência das discussões em torno das cotas raciais na mídia brasileira (Quadro 22). 94 Quadro 22-Quantidade de personagens negros nas novelas de Manoel Carlos Novela Ano Quantidade Negros Mulheres Apaixonadas 2003 08 Páginas da Vida 2006 08 Viver a Vida 2009 09 Fonte: Gomes, 2015. Manoel Carlos nasceu em São Paulo-SP, em 14/03/1933. Ainda na juventude,trabalhou como auxiliar de escritório e bancário. Segundo o Portal Memória Globo, este dramaturgo, já aos 14 anos, fazia parte de um grupo de jovens denominados “Adoradores de Minerva” e fazia reuniões, diariamente, em frente a Biblioteca Municipal de São Paulo, para discutir literatura e teatro. Seu ingresso na televisão foi como ator, em 1951. Nas décadas seguintes, atuou como ator, diretor e produtor nas emissoras TV Tupi, TV Itacolomi, TV Rio, TV Record, e Rede Globo. Foto 17- Manoel Carlos Fonte: memoriaglobo.com, 2014. Sua primeira novela como autor foi Maria Maria (Rede Globo, 18hras, 1978), uma adaptação do romance Maria Dusá, de Lindolfo Rocha. No mesmo ano, fez outra adaptação literária, desta vez da obra de Carolina Nabuco, que resultou na novela A Sucessora (Rede Globo, 18hrs, 1978). Em 1980, escreveu alguns episódios do seriado Malu Mulher e dividiu, com Gilberto Braga, a autoria da novela Água Viva (Rede Globo, 20hrs, 1980). No ano seguinte lançou o folhetim Baila Comigo (Rede Globo, 20hrs, 1981), seu primeiro roteiro solo e original de uma telenovela. Nesta trama, o autor introduziu uma marca que emblematizou suas produções dramatúrgicas: as suas protagonistas sempre tinham o nome de Helena e eram construídas enquanto heroínas da classe média. A única novela do dramaturgo cuja trama não apresentou uma protagonista chamada Helena foi Sol de Verão (Rede Globo, 20hrs, 1982). De 1983 até o inicio da década de 1990, Manoel Carlos participou na criação do núcleo de teledramaturgia da Rede Manchete e escreveu novelas e minisséries para a Rede Bandeirantes, para a emissora RIT na Colômbia e para a TV Americana voltada ao público de língua espanhola. 95 Seu retorno à Rede Globo foi em 1991, quando escreveu a novela Felicidade (Rede Globo, 18hrs, 1991). Esta foi sua primeira novela que trazia um núcleo composto por seis personagens negros que tinham uma participação significativa no enredo e uma trama própria no folhetim. Entretanto, esta novela reforçou os estereótipos da mulher negra como mulata passista de escola de samba, muito sensual, que terminou assassinada pelo seu ex-namorado, um homem negro alcoólatra, violento e ciumento. Suas novelas produzidas de 1995 a 2000, História de Amor (Rede Globo, 18hrs, 1995) Por amor (Rede Globo, 21hrs, 1998) e Laços de Família (Rede Globo, 21hrs, 2000)tiveram a presença de poucos negros, com limitada carga dramatúrgica, fazendo papeis de empregados domésticos, somente retratados em cenas em que serviam seus patrões brancos, ou nas que contracenavam com eles. Neste horizonte, considero que a preocupação em ampliar a presença de personagens negros e enunciar uma protagonista negra sugere que Manoel Carlos materializou uma preocupação em assegurar também um redimensionamento qualitativo no tocante a presença negra em seus folhetins. As cotas raciais protagonizaram o protagonismo negro? Em termos, isso ocorreu quando foram veiculadas imagens de negros em papel de destaque nas tramas. No entanto, a carga dramatúrgica desses personagens tem interface com os estereótipos sobre o negro no Brasil. 96 4 PRESENÇA NEGRA NAS TELENOVELAS: (IN)VISIBILIDADE? Para tentar escapar da armadilha de encampar o discurso oficial da história do país, julgo ser relevante pontuar que a promulgação da lei áurea, em 1888, que aboliu a escravidão negra no Brasil, foi orquestrada não somente para dar dignidade e liberdade aos negros, mas também para atender a orientações internacionais direcionadas a potencializar as possibilidades do Brasil enquanto um promissor mercado consumidor. Os negros recém libertos foram abandonados à própria sorte, sofreram por parte das instituições sociais constituídas, um processo de invisibilização, resultado da vigência da perspectiva eurocêntrica característica das relações coloniais. Nessa perspectiva os negros são patologizados, animalizados e sua existência é apagada e negada. Isto pode ser identificado por meio das políticas implementadas nos anos seguintes, como a iniciativa do político Ruy Barbosa de Oliveira, ao mandar queimar toda documentação pública referente aos escravos e a prática da escravidão no país. Com este ato, pretendeu negar a existência do passado de escravidão negra no país, sob a alegação de que queimando estes documentos os ex-senhores de escravos, que reclamavam junto ao Estado indenização pela perda do investimento feito para adquirir suas “peças”, não teriam mais em que fundamentar sua demanda. A vigência deste padrão de racionalidade eurocêntrico favoreceu a política de imigração de europeus para o Brasil, no final do século XIX e inicio do século XX, com o objetivo de embranquecer a população. Estes imigrantes eram priorizados na concessão de terras, recebiam auxilio financeiro para permanecer no país, políticas estas que não eram oferecidas aos ex-escravos negros, relegados a própria sorte. Já no primeiro cinqüentenário do século XX, foram estrategicamente descredenciadas pelos discursos oficiais do Estado Brasileiro, nos planos científicos e políticos, as ideologias que condenavam, biologicamente e moralmente, a miscigenação. Os esforços políticos estavam direcionados para construir uma identidade nacional que unificasse brancos, negros e índios. A partir dai, começou a ser construída no país, o que Da Matta (1994) chama de Fábula das Três Raças, narrativa que se refere a junção, nas selvas tropicais brasileiras, das supostas três raças (branco, negro, e índio) formando um povo mestiço, forte e bonito. Esse tipo aglutinava o melhor das três raças, aperfeiçoando, com a miscigenação, a inteligência do branco, a ingenuidade e pureza do índio, e a alegria, sensualidade/virilidade e força para o trabalho do negro. Esta fábula exerce a função de mascarar a existência do racismo no país, e atribuir sentido ao entendimento de que o 97 Brasil sediaria um autêntico Paraíso Racial, onde imperaria uma democracia racial, instituída na igualdade racial, na ausência de todas as formas de preconceito de conotação racial, bem como instiga um fetiche sexual e afetivo entre raças, estimulando a formação de casais interraciais. Neste horizonte, a população brasileira seria predominantemente o resultado da interação dos marcadores espaciais que Freyre (1933) localiza nas edificações da Casa Grande e da Senzala, espaços que sediaram intensos fluxos de interação afetiva, cultural e sexual, que resultaria na miscigenação que constituiria a população brasileira. Cabe destaque que os marcadores que figuram como fixos são respectivamente a Casa Grande (edificação onde moravam os brancos proprietários de terras, descendentes diretos do colonizador europeu) e a Senzala (construção rústica que servia de moradia para os escravos negros e seus descendentes). Estas distintas edificações representam os pilares que concretizam as fazendas, geralmente de cana de açúcar ou café, que podem representar a consolidação das relações coloniais no país, por meio da experiência agroprodutiva. Freyre (1933) argumenta que a casa grande e a senzala se comunicam intensamente entre si. Mas, ao apontar que as negras/escravas de pele mais clara eram escolhidas para o trabalho dentro da casa grande e aquelas de pele mais escura ficaram encarregados do trabalho fora da casa, sinaliza que a cor da pele dos sujeitos funciona como um elemento que demarca os limites e possibilidades de acessos e permanências nestas unidades espaciais em questão e, também nas demais relações sociais referenciadas na experiência colonial. O sentimento de não ser interpelado com a identificação direta com a pele negra está alicerçado no contexto das relações escravagistas. O discurso colonial retira do sujeito colonizado e do seu grupo a capacidade de se administrar e representar, instituindo que somente o colonizador tem a fala autorizada para apresentá-lo e enunciá-lo. Para Babha (1998), o colonizado é definido sumariamente como “o outro”. Por intermédio do discurso colonial, emoldurado, iluminado e enquadrado no jogo da imagem/contra-imagem, no qual a imagem permitida é a do colonizador, somente resta ao colonizado a contra-imagem, o reverso, que tem como únicas possibilidades o apagamento ou a mimetização. A tentativa de problematizar sobre o que representou a presença de personagens negros nas telenovelas e o esforço de “qualificar” o que pode significar sua presença nos folhetins brasileiros a partir de 2001, bem como a visibilidade permitida a estes, me 98 remeteu a necessidade de demarcar o contexto histórico de inserção social dos negros, no contexto de vigência das relações coloniais. No Brasil, os produtos midiáticos como as telenovelas tendem a seguir uma lógica que tem os valores do colonizador europeu como referenciais. Assim, tendem a reproduzir, de forma naturalizada, a produção social da diferença entre os sujeitos brancos e negros configurando relações que podem ser compreendidas sob a perspectiva da diferença colonial. (MIGNOLO 2003) Mignolo (2003) argumenta que a diferença colonial atua como um espaço físico e imaginário no qual a Colonialidade do Poder se processa institucionalizando a subalternização aos colonizados. Entretanto, também dá espaço para a construção do pensamento liminar, termo utilizado pelo autor para designar a reação à diferença colonial, um pensamento produzido pela perspectiva subalterna. A noção de “pensamento liminar”, em Mignolo (2003), seria constituída a partir de um lócus fraturado de enunciação, no qual são produzidas, a partir do pensamento subalterno, como uma forma de reação ao discurso perpetrado pelo colonizador. O movimento político pela inserção do negro nos espaços midiáticos, que resultou na proposição das cotas raciais, bem como a repercussão em torno delas, que resultou na tendência de ampliação da presença de negros nas telenovelas, pode ser interpretada como uma expressão do pensamento liminar. Esse contexto tensionou os processos de produção dos produtos midiáticos brasileiros a partir de 2001, instaurando um movimento de redimensionamento da presença do negro nestes espaços. Faço uso também da categoria hibridismo proposta por Bhabha (1998) compreender a discussão em torno das cotas raciais na mídia brasileira como um movimento liminar, produto de uma negociação na qual ocorreu a aceitação e o redimensionamento de um discurso subalterno e o reconhecimento de uma situação de invisibilidade e apagamento, resultantes da diferença colonial. 4.1 Personagens negros “para inglês ver” Segundo Oliveira (2013), a expressão “para inglês ver” começou a ser utilizada no Brasil quando a Inglaterra passou a pressionar Portugal (que dependia economicamente da coroa inglesa) para que finalizasse o regime escravista. Impulsionados pela revolução industrial, os ingleses perceberam a necessidade de assegurar mercados consumidores para suas mercadorias manufaturadas, passaram a 99 pressionar o Governo brasileiro para que promovesse a abolição da escravidão, transformando a população de negros escravos em uma mão de obra assalariada potencialmente consumidora. Como a elite agrária brasileira se via dependente da mão de obra escrava, a saída encontrada foi a proposição de leis, como a do ventre livre (que declarava alforriados os escravos nascidos no Brasil) e a lei dos sexagenários (que alforriava escravos já idosos), que além de terem uma eficácia bastante limitada no tocante a beneficiar a população negra, também não contribuíram para promover a transformação dos negros em consumidores de produtos ingleses. Por isso, ficaram conhecidas com “leis para inglês ver”, e possibilitou o surgimento desta expressão que ilustra a natureza das ações empreendidas para negros no contexto da experiência brasileira de relações coloniais. Algumas novelas produzidas no período da presente pesquisa, inseriram alguns poucos personagens negros na trama, como estratégia de veicular uma postura de que os negros sempre estariam presentes nos folhetins, não sendo para isso necessário o resguardo de cotas de participação. Neste contexto, consigo identificar dois folhetins de autoria do novelista Silvio de Abreu. A primeira novela do autor nesse marco temporal, o folhetim As Filhas da Mãe (Rede Globo, 19hrs, 2001), apresentou dois personagens negros. Porém, tiveram uma limitada participação e, ainda assim em poucos capítulos. A personagem negra Luzineide (Ana Carbatti) teve uma pequena participação nos primeiros capítulos da trama, como uma amante do personagem branco Edimilson (Edson Celulari). Depois da cena em que Luzineide levou uma surra da esposa de Edmilson, Rosalva (Regina Casé), esta personagem negra não apareceu nem foi mais mencionada na novela. Posteriormente, outro personagem negro ingressou na trama, Marcelo (Norton Nascimento), como um investigador de polícia que entrou meio da novela para uma curta participação. Só aparecia em cenas desempenhando sua profissão, sem ter sua família ou qualquer outro vinculo afetivo retratado na novela. Um telespectador menos atento, ou que não assistisse assiduamente a todos os capítulos, provavelmente não perceberia a presença destes dois personagens negros, pois a carga dramatúrgica destes era mínima. Coincidentemente, a última novela de Silvio de Abreu no período abarcado pelo percurso investigativo foi Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este folhetim foi produzida no formato Remake, de Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 1983) escrita pelo dramaturgo em questão. Na versão de 1983 não havia nenhum personagem 100 negro no enredo. A trama manteve todos os personagens da versão anterior, inclusive com os mesmos nomes. Alguns poucos personagens “inéditos” foram introduzidos na versão de 2012. Um destes foi o personagem negro Baltazar (Ronnie Marrudá). Considero que sua inserção na trama sinaliza uma preocupação em manter uma presença mínima de negros em cada folhetim. Entendo que o fato de todos personagens brancos da versão anterior terem que ser novamente brancos na versão de 2012, indica que o ingrediente racial é fundamental na composição de um personagem, pois a história de personagens brancos não poderia ser redimensionada para um personagem negro. As duas versões de Guerra dos Sexos, materializam enredos pensados exclusivamente para personagens brancos. O personagem negro Baltazar que foi criado especialmente para a versão remake, era um segurança do castelo em que viviam os protagonistas brancos da novela Charlô (Irene Ravache) e Otávio (Tony Ramos). A novela tinha um núcleo elitizado e um núcleo de personagens moradores de um bairro de periferia. Sua trama abordava em formato de humor a suposta rivalidade entre homens e mulheres. Neste horizonte, Baltazar era um empregado partidário do patrão Otávio, em desfavor de sua patroa Charlô. O personagem Baltazar, único personagem negro do folhetim, figurava como um “negro para inglês ver”, não tinha carga dramatúrgica significativa, poucas falas, explorava mais o gestual com forte apelo cômico. Não aparecia em todos os capítulos e encenava uma proposta de negro que remonta ao negro escravo. Foto 18-Personagem Baltazar Fonte: gshow.globo.com, 2012. O novelista Antonio Calmon, na novela Um Anjo Caiu do Céu (Rede Globo, 19hrs, 2001), também inseriu personagens negros para que a trama não fosse elencada somente por atores brancos. Este folhetim era ambientado na cidade do Rio de Janeiro e abordava o universo do estilismo e da moda. Apresentou dois personagens negros, Jô (Janaína Lice) e Nando (Gustavo Mello), que trabalhavam como modelos fotográficos. Jô era inteligente, bonita, elegante, de gênio forte, porém de excelente caráter. Era aluna de uma faculdade de moda que ambientava parte do enredo da novela, onde fazia o 101 curso de modelo. Esta personagem negra era a melhor amiga da personagem branca Carol (Marina Heim), a antagonista jovem da trama. Grande parte das cenas de Jô, figuravam em torno das desventuras da amiga branca. O relacionamento que Jô matinha com o personagem, também negro Nando (Gustavo Mello), era explorado apenas no plano das brigas e reconciliações. Nando era um rapaz integro, de porte atlético. Fazia o curso de modelo masculino e já trabalhava no ramo. Era otimista, embora não fosse empolgado com sua carreira de modelo, por isso resolveu investir em uma escola de capoeira. Os personagens Jô e Nando nunca tiveram qualquer parente ou amigos negros retratados na novela. Além da relação de um com o outro, somente tinham cenas que abordavam os vínculos profissionais ou de amizade com brancos. Embora figurassem no enredo em uma posição de nivelamento com alguns outros personagens brancos, em nenhum momento a novela apresentou cenas que fizessem menção ao fato de serem negros. Seus personagens ressaltaram a hiperssexualização do negro e o padrão de beleza negra com cenas desfilando, ou fotografando com trajes de banho. O novelista Euclydes Marinho, também utilizou o recurso de colocar personagens negros com pouca carga dramatúrgica, para que o folhetim Desejos de Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002) não ficasse sem a presença de negros no enredo. Esta trama era ambientada na Cidade do Rio de Janeiro e tinha sua trama construída no contexto da indústria e mercado da moda, focando um conflito familiar entre duas irmãs brancas de meia idade. A novela trouxe o personagem negro Joaquim (Rocco Pitanga), que é apresentado no site memoriaglobo.com, como um “modelo exótico e muito ambicioso”. Este personagem era morador do subúrbio da capital carioca e dizia que não encarava com seriedade o mundo da moda, pois pretendia ser futebolista. Assim, encenava o estereótipo do negro que tem como única vocação e paixão o futebol, que tinha orgulho de ter um irmão jogador em um time de segunda linha (irmão este que nunca apareceu na novela). A outra personagem negra da novela em foco foi Camila (Aline Aguiar), uma modelo que dizia ter sido criada pela avó, que por ser enfermeira, lhe conseguiu uma bolsa de estudos em uma escola de balé. Era a única negra de um grupo de modelos que dividia um apartamento com outras pessoas. Era apaixonada pela arte da dança e havia sido convidada para trabalhar como modelo quando foi “descoberta” em uma apresentação como dançarina. Por ser dançarina profissional, se definia como uma artista e não apenas modelo. Esta personagem protagonizava cenas de humor ao lado de 102 outras colegas de trabalho brancas, em função do hábito que tinha de escrever seu nome em tudo que era seu. Ficava muito irritada quando alguma colega, por acidente, comia algo ou utilizava algo que lhe pertencia e que estava devidamente “marcado” com seu nome. Mobilizando esta estratégia de assegurar o “negro para inglês ver”, o novelista Emanoel Jacobina, no folhetim Coração de Estudante (Rede Globo, 18hrs, 2002) trouxe uma única personagem negra, Eneida (Ana Carbatti), que era uma advogada e professora de ensino superior, muito rígida e exigente com seus alunos. Eneida nunca teve sua família ou qualquer vinculo afetivo-amoroso retratado na trama. Em suas cenas aparecia atuando como professora e/ou advogada. Seu papel principal na trama era ser confidente da amiga, branca Clara (Helena Ranaldi) que, ao contrário de Eneida, tinha uma carga dramatúrgica que envolvia cenas com seu namorado, relações familiares, desafios de trabalho, etc. Foto 19-Personagem Eneida Fonte: Rede Globo, 2002. Eneida era objeto de desejo do aluno branco Cardosinho (Betito Tavares), que nutria um grande fetiche sexual pela professora negra, que segundo o estudante, pousava de séria, mas isso não impedia que tivesse uma libido a flor da pele. Embora em nenhum momento a condição da negra de Eneida tenha sido claramente enunciada, considero que a questão da suposta sensualidade da mulher negra ficou expressa via a atração e veneração que Cardosinho nutria pela professora, diferente da forma como se relacionava com outras garotas brancas. Assim, a única personagem negra de Coração de Estudante, encenava o estereotipo da hiperssexualização da mulher negra. O novelista Carlos Lombardi inseriu apenas um negro no folhetim Kubanacan (Rede Globo, 19hrs, 2003). Esta novela foi uma comédia que satirizava as experiências políticas dos países da America do Sul. Sua trama, referenciada na década de 50, era ambientada na fictícia ilha caribenha Kubanacan. O enredo em questão contou com a presença de uma personagem negra, chamada Dalila (Thalma de Freitas), que era casada com o pescador branco Ramon (Geraldo Pestalozzi), porém usava toda sua sensualidade 103 para tentar seduzir o melhor amigo do marido, Esteban (Marcos Pasquim), que também era branco. Dalila alternava entre o desejo e o temor no sentido levar uma vida longe da vila de pescadores na qual vivia. Gostava de falar mal das vizinhas e não temia que seu marido soubesse de suas tentativas de seduzir Esteban, pois estava certa de que Ramon a amava. Foto 20-Personagens Ramon e Dalila. Fonte: Rede Globo, 2003. A última novela de Lombardi para a Rede Globo foi Pé na Jaca (Rede Globo, 19hrs, 2007). Este folhetim tinha parte significativa de sua trama ambientada na cidade fictícia de Deus me Livre, no Estado de São Paulo. Seu enredo tinha tom de comédia e se desenrolava em torno de um reencontro de amigos, que culminou com uma caça a uma fortuna. Apresentou apenas uma personagem negra, Maria Agusta/Nina (Lucy Ramos), que era uma jovem, filha adotiva do casal de brancos Maria Clara (Silvia Pfeifer) e Átila (Alexander Barros), e irmã do branco e loiro, Nuno (Sérgio Hondjakoff). Maria Augusta/Nina era exageradamente fútil, intrigante, fofoqueira, maliciosa, proferia discursos em que afirmava que detestava pessoas pobres. Considerava-se muito elegante, dava excessiva importância ao dinheiro, ao passo que seu irmão adotivo Nuno, filho biológico de Maria Clara e Átila não dava importância ao dinheiro da família e sonhava em ser padre. A autora Elizabeth Jim inseriu de dois a cinco personagens negros em suas tramas. Porém, estes orbitavam nas tramas somente em função de personagens brancos. Na novela Eterna Magia (Rede Globo, 18hrs, 2007) Jim abordou a temática do misticismo no tocante a lendas e magias irlandesas. A trama se passava entre os anos de 1938 (Primeira fase) e 1946 (Segunda fase), ambientada na fictícia cidade de Serranias, apresentada como fundada por irlandeses e situada no Estado de Minas Gerais. Na primeira fase da novela não foi apresentado nenhum personagem negro, e na segunda fase, foram introduzidos dois. Destes, o único fixo foi Padre Zuza (Maurício Gonçalves), sacerdote católico da igreja da cidade de Serranias. Era um padre 104 progressista, bondoso, dedicado e que sofreu discriminação racial quando chegou a cidade, porque alguns moradores não aceitavam um pároco negro. O personagem negro Tadeu (Izak da Hora) apareceu em alguns capítulos como violonista. A segunda novela solo de Jim foi Escrito nas Estrelas (Rede Globo, 18hrs, 2010). Teve trama contemporânea, ambientada no Rio de Janeiro. Abordava a temática do espiritualismo e questões éticas e cientificas relacionadas a reprodução humana. Este folhetim apresentou cinco personagens negros. Mas o único personagem negro que tinha uma família, ainda que branca, retratada na trama, era Alex (Izak Dahora), um rapaz com o histórico de ter sido adotado, ainda criança, pelo casal branco Magali (Nica Bomfim) e Jovenil (José Rubens Chachá). Gostava de musica, era um excelente violonista. Seu pai adotivo temia que a carreira de música não lhe reservasse um futuro promissor, por isso insistia que o jovem negro fosse trabalhar na clinica com os irmãos brancos de criação, Gilmar (Alexandre Nero) e Luciana (Manuela do Monte). Foto 21-Personagem Alex Fonte: Rede Globo, 2010 A novela trouxe também o personagem negro Seth (Alexandre Rodrigues), que era o anjo da guarda de um dos protagonistas brancos, Daniel (Jayme Matarazzo). A cena em que mais apareceu foi quando ensinou seu protegido a voar e lhe sensibilizou acerca das vantagens de ter morrido. Foto 22-Personagem Seth e Daniel Fonte: Rede Globo, 2010 Os demais personagens negros da novela tiveram reduzida carga dramatúrgica, somente aparecendo em cenas nas quais desempenhavam as atribuições profissionais de 105 seus personagens. Foi este o contexto dos personagens Xavier Furação (Toni Tornado), Sandra (Rosana Dias), que era uma empregada da casa da personagem branca Jane (Gisele Fróes) e Ezequiel (Lincon Tornado), segurança da clinica de reprodução humana de Ricardo (Humberto Martins). Esse personagem era muito querido por todos em seu ambiente de trabalho e seu apogeu na trama se deu quando se mostrou um exímio cantor e dançarino. A terceira novela de Jim foi "Amor Eterno Amor” (Rede Globo, 18hrs, 2012), que tinha trama contemporânea e era ambientada no Rio de Janeiro. Esta novela trouxe três personagens negros, que só contracenaram com personagens brancos. O que mais deve destaque na trama foi Antônio (Tony Tornado), que era motorista e cozinheiro da personagem branca Verbena (Ana Lúcia Torre), sendo considerado como membro da família. Era apaixonado pela empregada doméstica branca Deolina (Nica Bomfim), com quem se casou no final da trama. Os outros dois personagens negros da trama somente apareciam em cenas nas quais exerciam suas profissões, servindo aos superiores brancos. Este foi o contexto do porteiro Jair (Lincon Tornado) e do administrador de fazenda Hamilton (Flávio Bauraqui) Foto 23-Personagens Verbena, Antônio e Deolinda Fonte: Rede Globo, 2012. Aponto, também, que novelista Maria Adelaide Amaral ao escrever uma nova versão para o folhetim Ti TiTi (Rede Globo, 19hrs, 2010) “precisou” aclimatar a trama ao contexto configurado em torno do debate das cotas e inseriu no enredo personagens negros que não estiveram presentes na primeira versão da novela. A trama em questão era uma novela no formato remake, que inovou ao misturar o roteiro de duas novelas assinadas pelo novelista Cassiano Gabus Mendes, Ti TiTi (Rede Globo, 19hrs, 1985) e Plumas e Paetes (Rede Globo, 19hrs, 1980). Na trama fruto dessa adaptação, Amaral apresentou três personagens negros, sendo uma delas Clotilde (Juliana Alves), como uma mulher sensual, que usava sua aura de moça simples, inocente. Para alcançar seus objetivos, Clotilde fingia ser uma mulher casta e resistia às investidas do patrão 106 mulherengo, Jacques (Alexandre Borges), Assim, ele se apaixona perdidamente por ela e acabam se casado. Ao se transformar em esposa do renomado estilista, Clotilde passou a humilhar os outros funcionários e ostentar seus poderes de patroa. Foto 24-Personagens Jacques e Clotilde Fonte: Rede Globo, 2010. TiTiTi apresentou o personagem negro Adriano Novaes (Rafael Zulu), como um renomado jornalista e critico de moda, que fingia ser homossexual para conseguir espaço e reconhecimento no disputado mundo da moda. Foto 25-Personagem Adriano Fonte: Rede Globo, 2010. Na primeira versão do folhetim TiTiTi, a personagem Clotilde havia sido interpretada pela atriz negra Tânia Alves e o personagem Adriano era vivido pelo ator branco Adriano Reys. Considero que o fato de na segunda versão o personagem Adriano ser negro, aponta para o fato que a autora reconheceu a necessidade de inserir negros para adequar a trama ao ano de 2010. O mesmo principio norteou a inserção da negra Fátima (Cacau Protácio), como uma empregada doméstica que inexistia na primeira versão da novela. A dupla de novelistas que estreou assinando o folhetim A vida da Gente (Rede Globo, 18hrs, 2011), também assegurou os personagens negros “para inglês ver”. Esta novela era ambientada nas cidades gaúchas de Porto Alegre e Gramado e a espinha dorsal de seu enredo enfocava conflitos familiares. Apresentou dois personagens negros que figuravam na trama como mãe e filho. A personagem negra Maria (Neusa Borges) era empregada doméstica na casa de Eva (Ana Beatriz Nogueira). Muito amorosa, apega-se às filhas de sua patroa branca, que eram as protagonistas da trama. Quando saiu da casa da patroa, aproveitou seu talento culinário e abriu com a filha da ex-patroa, 107 Manu (Marjorie Estiano) um buffet para atender a festas e eventos. Maria era mãe solteira do negro Matias (Marcelo Mello Jr), que por sua vez, trabalhava como motorista na casa em que sua mãe era empregada doméstica. Disciplinado, Matias custeava com o próprio salário a faculdade de comunicação e o fato de ter sido super protegido pela mãe, lhe deixou imaturo diante da vida. Ao longo da novela namorou duas personagens brancas, Lorena (Júlia Almeida) e Cris (Regiane Alves). Foto 26- Personagens Lorena, Matias e Maria Fonte: Rede Globo, 2011. Em 2013, Walcyr Carrasco criou polêmica ao escreveu sua primeira trama de “horário nobre”, a novela Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013), ambientada na cidade de São Paulo. Este folhetim trazia em sua trama o cotidiano de um hospital particular. Como a novela abordou a questão da homossexualidade, trazendo cinco personagens gays, a discussão da homofobia esteve fortemente presente no enredo. Talvez por isso o autor tenha entendido que já havia cumprido com estes personagens, a cota das minorias discriminadas e não inseriu, até a terceira semana de exibição, nenhum personagem negro. Este folhetim foi alvo de numerosas matérias que questionavam o fato de não apresentar nenhum negro no elenco. Acredito que em resposta aos questionamentos, o autor inseriu três personagens negros, que apareciam com regularidade ao longo da trama, e outros seis que só apareceram em um capítulo, para assegurar os “negros para inglês ver”. O primeiro a aparecer foi Ináia Seixas (Raquel Villar), uma auxiliar de enfermagem que teve um envolvimento puramente sexual com um médico branco, Jaccques (Julio Rocha), chegando a ser demitida por isso pelo diretor do hospital, o vilão da trama, o personagem Félix (Matheus Solano), que era apaixonado pelo médico. Inaiá foi readmitida quando Félix teve seus poderes diminuídos no hospital. Ináia nunca teve sua família retratada na trama, nem sua casa. Aparecia sempre como figurante nas cenas no hospital que ambientava a trama. 108 Foto 27-Personagens Ináia, Jacques e Félix. Fonte: Rede Globo, 2013. A primeira cena de Ináia, no capitulo que foi ao ar no dia 14/06/2013, aconteceu na terceira semana de exibição da novela, configurando a primeira cena com a presença de ator negro na novela Amor à Vida. A personagem Ináia aparecia ocasionalmente, ficando semanas sem ter uma única cena. Na reta final do folhetim, Inaiá se envolveu com outro médico branco do hospital em que trabalhava, o Dr. Laerte Torres (Pierre Baitelli). Ináia ficou doente e descobriu ser portadora do vírus HIV e já estava desenvolvendo a AIDS. Por isso foi abandonada por Laerte, que não se contaminou com o vírus. Foto 28-Personagens Laerte e Ináia. Fonte: Rede Globo, 2013. A novela levou ao ar uma cena em que quatro ou cinco homens, além de Laerte e Jacques, faziam testes de HIV, por terem sido parceiros sexuais de Ináia. Como desfecho da trama, Ináia teve um “final feliz” ao lado de outro namorado branco, o psicólogo Renan (Àlamo Facó), que a pediu em namoro ciente de que Ináia era soropositiva. A segunda personagem negra a ingressar na trama foi Judith Santiago (Ana Carbatti). Inicialmente foi enunciada como uma psicóloga e, posteriormente, passou a ser enunciada como médica cirurgiã. Esta personagem somente aparecia tratando de pacientes brancos. Sua entrada se deu num contexto em que diversas entidades ligadas a causa da população negra começaram a cobrar a presença de mais personagens negros na novela. Segundo o Jornal Folha de São Paulo, de 14/06/2013, a atriz negra Ana 109 Carbatti viveria na novela o papel de uma psicóloga chamada Verônica, papel este que não estava previsto na sinopse original da novela. A novela apresentou médicos árabes e judeus, que entraram em conflito e tiveram romances, mas a personagem negra médica só foi apresentada em poucas cenas, atuando profissionalmente. Judith também não participou de cenas em que o conselho ou comissões do hospital eram retratados. Sua primeira cena foi ao ar no capitulo 37 da novela. Foto 29-Personagem Judith Fonte: Rede Globo, 2013. Na reta final da novela, Carrasco inseriu o menino negro Jayminho (Kaiky Gonzaga), um menor abandonado, morador de um abrigo para crianças a espera de adoção. Foi adotado pelo casal gay composto pelos personagens Eron (Marcelo Antony) e Niko (Thiago Fragoso). O menino negro foi alvo de discriminação racial por parte da mãe biológica do primeiro filho do casal, a personagem Amarilys (Danielle Winits) que fazia resistência ao fato de um menino negro, ex-morador de abrigo conviver com o filho branco que teve com os pais gays. O personagem Jayminho entrou na trama no capitulo que foi ao ar no dia 08/10/2013. Foto 30-Personagens Eron, Jayminho e Niko. Fonte: Rede Globo, 2013. Amor à vida inseriu outros negros em apenas um capítulo, como a personagem Delcicleide (Atriz não identificada), que apareceu como manicure da personagem branca aspirante a celebridade Valdirene (Tatá Wenerck). Alguns personagens negros, sequer tiveram nomes na trama, não foram incluídos na lista de personagens presente no 110 site da novela. Este foi o contexto do pisquiatra negro (Cristovan Netto), que tinha sessões com o personagem branco Thales (Ricardo Tozzi). A novela trouxe ainda uma Juiza negra (iléa Ferraz) que julgou o crime de bigamia do personagem Atilio (Luis Melo). Havia, ainda, o telefonista negro de um hospital (ator não identificado) que informou por telefone para Paloma (Paola Oliveira), que sua amiga Ciça (Neusa Maria Faro) havia sofrido um acidente e estava internada em um hospital no Rio de Janeiro. Por último, a novela em foco tinha um porteiro negro que trabalhava no hospital (ator não identificado), que apareceu pela primeira vez obstaculizando e depois liberando a entrada de Paloma e Bruno (Malvino Salvador) no hospital na cena em que Alejandra (Maria Maya) confessava seus crimes. Posteriormente, este personagem passou a aparecer na portaria do hospital. Sua única cena fora do hospital foi no capítulo em que acompanhou o vilão Felix, após ser demitido, no transporte de seus objetos pessoais num ônibus. O contexto de personagens negros que não foram fixos ao longo da novela, que apareciam em um único capítulo de Amor à Vida, ainda que figurando em profissões elitizadas como juíza, psiquiatra, expõe a questão de que presença na trama pode não resultar em participação e que, nem sempre, uma maior quantidade de personagens negros pode resultar em uma maior visibilidade. 4.2 Reinventando o protagonista negro? Em 1969, a novela Cabana do Pai Tomás (Rede Globo, 19hrs, 1969) iniciou sendo protagonizada pela atriz negra Ruth de Souza, que vivia a personagem Tia Kolé, materializando assim primeira novela da Rede Globo a ter uma negra como protagonista. Entretanto, ao longo da exibição da trama em questão, o personagem em referência foi secundarizado e perdeu o posto de protagonista. Porém, entre os anos de 2004 a 2012, sob os efeitos da discussão em torno das cotas raciais na mídia, a emissora em foco “reinventou” o negro figurando como o protagonista em seis telenovelas. A novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19 hrs, 2004), escrita por João Emanuel de Carneiro, inovou por ser a primeira novela brasileira do século XXI a ter uma personagem negra como protagonista. Começando pelo título e pela trilha sonora da abertura, a musica Da cor do pecado, cantada por Luciana Melo, veicula uma imagem da mulher negra como tendo a “cor do pecado”, da lascívia, da luxúria, reforçando o estereótipo da mulher negra/mulata reduzida a um objeto sexual. 111 Esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem É um corpo delgado da cor do pecado Que faz tão bem. Esse beijo molhado, escandalizado que você deu Tem sabor diferente que a boca da gente Jamais esqueceu E quando você me responde umas coisas com graça A vergonha se esconde Porque se revela a maldade da raça Esse corpo de fato tem cheiro de mato Saudade, tristeza, essa simples beleza Esse corpo moreno, morena enlouquece Eu não sei bem por que Só sinto na vida o que vem de você. (Musica“ Da Cor do Pecado” de autoria de Bororó , 1939 ) Nesse folhetim, a atriz Thaís Araújo interpretou a protagonista Preta de Souza, uma vendedora de ervas em uma barraca no centro da cidade de São Luís-MA, cozinheira, dançarina de tambor de crioula, que se envolve com Paco (Reynaldo Giannechini), um homem branco e rico, de quem engravida. Tinha como antagonista a vilã loira Bárbara Campos Sodré (Giovanna Antonelli), uma mulher sem escrúpulos, desonesta e inconformada com o fato de ter perdido o namorado para Preta e, por isso, armou, ao longo da trama, inúmeras situações para prejudicá-la e incriminá-la. Foto 31- Personagens Paco e Preta Fonte: Rede Globo, 2004. Na trama, Barbara armou um plano para fazer Paco acreditar que Preta o traía e que o filho que esperava não era dele. Paco ficou tão decepcionado que simulou a própria morte, Bárbara se aproveita do sumiço do ex-namorado e atribui a ele uma gravidez fruto de uma relação com outro homem. Pelo fato de Bárbara ser branca, loira, refinada e bela é colocada como acima de qualquer suspeita. Preta, vítima de suas armações, ao longo de toda trama tenta provar sua inocência, a começar pela paternidade de seu filho Rai (Sérgio Malheiros). 112 Foto 32-Personagens Rai e Preta Fonte: Rede Globo, 2004. A personagem Preta é apresentada como sempre suspeita e portanto, deveria acumular um número significativo de provas contra Bárbara para provar sua inocência. Para incriminar e destruir a rival, a vilã Barbara, contou com a ajuda de Dodô (Jonathan Haagensen), um ex-namorado de preta, vocalista de uma banda de Reggae em São LuísMA, apresentado como mau-caráter, malandro, capaz de tudo para se dar bem. O personagem Dodô reforçou o estereotipo do negro malandro, perigoso e venal. Foto 33-Personagem Dôdo Fonte: Rede Globo, 2004. A relação entre Preta e Barbara era marcada por diálogos em que a última desqualificava Preta e seu filho por serem negros. A temática da discriminação racial era uma questão central em torno da enunciação da protagonista negra. Preta, em um dos capítulos, rebateu um elogio que recebeu do então namorado negro Felipe, lamentando que as pessoas não a consideravam uma mulher bonita, mas sim exótica, tão exótica como achariam um macaco no zoológico. 113 Foto 34-Personagens Felipe e Preta Fonte: Rede Globo, 2004. A novela contou ainda com o empresário branco e rico Afonso (vivido por Lima Duarte), que relutou para aceitar a idéia de ter um neto negro. Reforçou sua postura racista ao justificar que não promovia seu secretário e braço direito, Felipe (Rocco Pitanga), a um cargo de assessor especial, pelo fato de ser negro. Felipe, apesar de ser um competente administrador, que trabalhava em um grande grupo empresarial, deixava seus pais, Laura (Maria Rosa) e Ítalo (Jorge Coutinho) morando nos cômodos destinados aos empregados na casa de Afonso, pois trabalhava como motorista para Afonso. A família de Felipe apresentava um comportamento submisso ao patrão Afonso nos moldes dos escravos no regime escravagista. A esposa de Ítalo, Laura trabalhava como cabeleireira. Felipe se envolveu com Preta (Taís Araújo), enquanto Paco (Reynaldo Gianecchini) estava supostamente morto. Quando Paco retorna, Preta abandona Felipe, que sempre a havia apoiado, e volta para os braços de Paco, que duvidou de seu caráter. A relação entre Preta e Paco retrata o estereótipo de uma Cinderela Negra, que faz de tudo pelo amor e aceitação do príncipe branco. Em 2006 estreou a segunda novela de João Emanuel de Carneiro, Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006), elaborada nos moldes da colonialidade, apresentando quatro protagonistas brancos, de olhos claros: os personagens Duda (Daniel de Oliveira), Bel (Mariana Ximenes), Leona (Carolina Diekman) e Estevão (Henri Casteli) e contando com um personagem negro caracterizado pela malandragem. 114 Foto 35-Protagonistas Brancos da novela Cobras e Lagartos Fonte: Rede Globo, 2006. Nas primeiras semanas de exibição, as pesquisas de opinião, apontaram para uma grande aceitação das cenas de humor protagonizadas pelo personagem negro Foguinho (Lazaro Ramos), previsto para ser coadjuvante na trama. Foguinho não gostava de trabalhar e era visto pelos seus familiares como preguiçoso. No início da trama, trabalha como homem sanduíche, anunciando a loja de penhores do pai Ramires (Ailton Graça). Órfão de mãe, vivia desprezado pela madrasta branca, Shirley (Elizangela) e por seus meio irmãos brancos Sandra (Maria Maya) e Téo (Iran Malfitano). Foto 36- Personagens Ramires e Shirley Fonte: Rede Globo, 2006. Nas refeições da família, Foguinho não podia comer o mesmo bife que comiam seus meio irmãos brancos. Sonhava em ser aceito e amado pela família. Ramires (Aílton Graça) é representado como submisso à esposa Shirley, branca, e por isso hostiliza Foguinho, seu filho negro do primeiro casamento. Ramires era um agiota e em sua loja de penhores tratava mal os pobres, geralmente negros, e era implacável na cobrança de dívidas. Foguinho conquista o amor de uma mulher branca, a personagem Kika (Christiana Kalache), que acredita nele e o aceita como é. Kika foi enunciada com uma mulher sem atrativos físicos, não sendo cobiçada por outros homens. Nunca teve sorte com namorados, talvez por isso enxergava em Foguinho uma possibilidade. 115 Foto 37-Personagens Kika e Foguinho Fonte: Rede Globo, 2006. Entretanto, Foguinho sonhava em namorar a negra, linda e ambiciosa, Ellen (Thais Araujo), que por sua vez, sonhava em se casar com um homem branco e rico. No inicio da trama, Ellen era vendedora na loja de departamento de luxo que ambienta a trama. Órfã de mãe, foi criada pelo pai Jair (Milton Gonçalves). Foi enunciada como gananciosa, consumista, que usa sua beleza para conseguir o que quer, e tornou-se loira, seguindo um padrão estético europeu. Apesar de apaixonada por Estevão (Henri Castelli), um homem branco que causou a morte do pai de Ellen, casou-se com Foguinho visando a herança que este recebeu. Ao descobrir que a herança havia sido fruto de usurpação, chantageia Foguinho, humilhando-o e também a seus familiares, de todas as formas possíveis, traindo-o publicamente com homens brancos. Foto 38-Personagens Foguinho e Duda Fonte: Rede Globo, 2006. O nome de Foguinho era Daniel Miranda, o mesmo nome de seu melhor amigo branco, Duda (Daniel de Oliveira). Aproveitou-se dessa semelhança para usurpar a herança que o amigo havia recebido. Como novo milionário, Foguinho se envolve em mil trapalhadas ao usar a fortuna como trunfo para conquistar sua amada Ellen, que continuava apaixonada pelo vilão branco e loiro Estevan (Henri Casteli). Ellen continuou tentando conquistar Estevão, mesmo casada com Foguinho, acenando-lhe com sua conta bancaria. Os personagens Ellen e Foguinho foram içados ao posto de protagonistas da trama, constituindo o núcleo de humor central da trama. O casal protagonizava cenas cômicas nas quais se atrapalhavam ao tentar parecer ricos e 116 sofisticados, na nova vida de milionários, proprietários de uma loja elitizada. Considero, fundamentado em Carneiro (1998), que o perfil cômico destes personagens reforça a imagem do infantilismo, da imaturidade e da humanidade incompleta do sujeito negro. Ellen figurou como uma vilã cômica durante toda a novela. Já Foguinho, era o estereotipo do bom malandro, que até se arrependeu de ter usurpado a herança do amigo branco, mas era impedido por Ellen de reestituí-la. Foguinho era negro e tinha o bigode pintado de loiro. Segundo Farias e Fernandes (2007, p.10) o bigode loiro do personagem havia sido fruto de uma idéia do ator e diretor da trama, Wolf Maia, que justificou que Foguinho: Por absurda carência, descolore o bigode para diferenciar-se no meio de tantos outros “zés ninguém” que habitam o mesmo bairro de periferia que Foguinho morava no inicio da trama. Entretanto Foguinho criado para ser secundário, para simplesmente integrar o núcleo de humor da novela, caiu nas graças do público, como um anti-herói de bom coração, e passou a figurar como protagonista da trama, ofuscando o protagonista “oficial” branco, o personagem Duda (Daniel de Oliveira). Foto 39- Personagens Foguinho e Ellen Fonte: Rede Globo, 2006. Em Cobras e lagartos, o culto ao padrão estético da beleza ariana era abertamente feito pela vilã branca Leona (Carolina Diekman) que tinha o cabelo loiro claro e ao chegar ao cargo de presidente da loja de luxo que ambientava a trama, ordenou que todos funcionários se tornassem loiros, obrigando, inclusive os negros, a pintar os cabelos: Eu quero fazer um comunicado a todos os funcionários dessa loja, e quando eu digo todos, eu não estou fazendo exceção a ninguém! Todos, dos diretores aos faxineiros! Não me interessa se a pessoa é branca, preta, vermelha ou amarela, eu quero todo 117 mundo aqui a partir de amanhã com o cabelo loiro! Porque o loiro vai ser a marca da Luxus daqui pra frente! Luxus, uma loja loira!". O enredo do folhetim em questão mobilizou a costumeira estratégia de colocar o discurso racista explícito no personagem vilão. A violência do discurso da personagem Leona foi atenuada pela cumplicidade tácita dos personagens negros que a ouviram discursar, que já tinham aderido à perspectiva eurocêntrica de culto ao loiro, Foguinho com o bigode loiro e Ellen com o cabelo loiro. Em 2009, a dupla de autores Duca Rachid e Thelma Guedes escreveram o folhetim Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) que concretizou a primeira novela do horário das 18hrs a ser protagonizada por uma personagem negra. A trama era contemporânea, ambientada na cidade do Rio de Janeiro. Foi estrelada pela personagem negra Rose (Camila Pitanga), uma faxineira, batalhadora, que sustentava sozinha os quatro filhos, Francisco (Gustavo Maya), Regina (Julyana Garcia), Glória (Raquel Fuina) e Tarcisio (Heslander Vieira). A saga da personagem Rose centralizava o enredo de todos os personagens da trama. Ela teve sua família negra retratada na trama, além de figurar como a mocinha da novela, com direito a estampar o cd com a trilha sonora nacional da novela. Foto 40- Personagens Tarsicio, Rose, Regina, Francisco e Glória Fonte: Rede Globo, 2009. O ex-marido negro de Rose, o personagem Tião (Ailton Graça), não gostava de trabalhar. Rose, ao longo da trama se envolveu com um personagem branco, o empresário Gustavo Brandão (Marcos Palmeira), que se encantou com a simplicidade e dignidade de Rose e a assumiu com seus quatro filhos. 118 Foto 41-Personagens Rose e Gustavo Fonte: Rede Globo, 2009. O personagem negro Tião (Ailton Graça), ex-marido de Rose (e pai dos seus quatro filhos), era mulherengo e usava uma suposta doença cardíaca como argumento para não trabalhar e passar os dias jogando sinuca ou no bar. Após se separar de Rose, começou a namorar uma mulher branca, a personagem Heloísa (Emanuelle Araújo), que conheceu na pensão em que foi morar no inicio da trama. Posteriormente, passou a viver de favor de casa do amigo branco, o personagem Bené (Marcello Novaes). Foto 42-Personagens Emanuelle, Tião e Rose Fonte: Rede Globo, 2009. Os filhos de Rose tinham os seguintes perfis; Regina, a filha caçula, era uma estudante bolsista de uma escola particular. Era uma criança doce e sensível, que sofria com ausência do pai negro e se apega muito ao namorado branco da mãe. Francisco era também estudante bolsista de uma escola particular e uma criança levada, que sonhava em ser jogador de futebol, querendo jogar usando a camisa 10 do time Barcelona. Glória era adolescente e também estudava, com bolsa, em escola particular. Era a primogênita, uma jovem responsável, porem contestadora, que tinha conflitos com mãe, por as vezes não se conformar com a vida humilde que levavam. Por vezes se sentia inferiorizada pelas colegas, sonhava em ser modelo e namorava um jovem branco, de uma condição social superior, o personagem Nuno (Rainer Cadete). 119 Foto 43 – Personagens Glória e Nuno Fonte: Rede Globo, 2009. Tarcisio era adolescente e como os demais irmãos era bolsista em uma escola particular. Era o segundo filho de Rose, apaixonado por música desde a infância (sonhava em ser pianista). Desenvolveu um problema auditivo, que quase o deixava surdo, e tinha vergonha de usar o aparelho para melhorar a audição. Apaixonou-se por uma menina branca, a personagem Euridice (Bianca Salgueiro), que lhe correspondia. Porém o romance enfrentou resistências do irmão de Euridice, que perseguia Tarcisio por este ser negro, pobre e ter problemas auditivos. Foto 44 –Personagens Euridice e Tarcisio Fonte: Rede Globo, 2009. Rose era órfã de mãe, sendo criada somente pelo por seu pai negro, Miguel (Antônio Pitanga). Entretanto, nos últimos capítulos da novela descobriu ser filha de um homem branco, o personagem Vitor Bittercourt (Jorge Cerrutti), patrão de sua mãe, com quem teve um caso, abandonando depois mãe e filha. Foto 45-Personagens Miguel e Rose Fonte: Rede Globo, 2009. 120 Além da família de Rose, a novela trouxe dois personagens negros. Juvenal (André Luiz Miranda) era um jovem estudante, oriundo de um orfanato e fruto de envolvimento da uma mãe operária com um branco, um dos vilões da novela, Severo Tardivo (Paulo Goulart) retirou Juvenal do orfanato e o ajudou, sem revelar sua condição de pai. O outro personagem negro, Pericles (Tony Tornado) trabalhava como motorista, sendo que no passado havia sido mecânico de aviões. Era casado com uma mulher branca, Enestina (Ilva Nino), por quem era apaixonado e pai de um filho branco e loiro, o personagem Bené (Marcelo Novais). Foto 46-Personagens Pericles, Bené e Ernestina. Fonte: Rede Globo, 2009. Apesar de trazer um número significativo de personagens negros, a novela Cama de Gato os visibilizou de forma negativa, especialmente ao sugerir que a união entre negros, como no caso do casamento de Rose e Tião, estaria fadada ao fracasso, ao passo que as uniões interaciais eram positivadas. A trama investiu no fetiche inter-racial, no mito da mestiçagem, apresentando criança/adolescente negra criada em casa de brancos, negros como filhos bastardos de pais brancos, que só no final da novela revelaram sua paternidade. Pai negro ausente, sendo suprido pelo namorado branco da mãe, sugerindo uma melhoria de vida. Além disso, encenou o estigma da hiper sensualidade do negro/negra, e legitimou os estereótipos do homem negro indisposto ao trabalho, indiferente à família, mulherengo e viciado em bebida alcoólica e em jogos, sustentado por mulher, negra como empregada doméstica. Visibilizou a família negra como desajustada, dependente da caridade de brancos, trouxe o estereotipo do menino negro e pobre sonhando em ascender socialmente como jogador de futebol, negro apaixonado por música, adolescente negro sofrendo bullying por ser negro pobre e deficiente auditivo. Já a trama Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), assinada Manoel Carlos, inovou ao propor sua primeira protagonista negra, ou sua primeira “Helena” negra, e também por ser a primeira novela do horário das 21hrs a ser protagonizado por uma negra. O posto de protagonista deste folhetim que foi ocupado pela atriz negra Taís 121 Araújo. Apresentou nove personagens negros. Em descrição no site da Rede Globo (2009), por ocasião do lançamento da novela, o autor Manoel Carlos apresentou sua Helena negra da seguinte forma: Sempre pensei em criar uma Helena mais jovem, que abrisse um leque de novas possibilidades para o personagem. Uma mulher por volta dos 30 anos, bonita, bem sucedida no amor e na profissão, mas sentindo-se, mesmo assim, incompleta. Por obra do acaso, vê-se envolvida com um homem mais velho, divorciado, que vai lhe dar a felicidade desejada, mas à custa de muita luta e muito sofrimento. Essa era a Helena mais jovem que eu desejava criar já há algum tempo. Como também sempre quis escrever um papel para a Taís Araújo, que é uma atriz que admiro muito, achei que a possibilidade estava nessa história. E assim nasceu essa nova Helena. A protagonista negra deste folhetim foi enunciada como uma modelo de renome internacional, que teve infância simples e amparava financeiramente sua família que materializava a totalidade do núcleo de personagens negros. Era visibilizada como negra, usando o cabelo de modo a ressaltar sua condição de crespo. A família de Helena viva em Búzios-RJ e era composta por seu pai, Oswaldo (Laércio de Freitas), um músico que vivia se descuidando da saúde, sendo um motivo de preocupação para a família. A mãe, Edite (Lica Oliveira), uma mulher que casou jovem com Oswaldo (Laércio de Freitas), homem bem mais velho que ela e após o divórcio manteve uma boa relação com o ex-marido, a ponto de ainda morarem juntos. Edite namorava Ronaldo (César Melo), que parecia ser mais jovem e este a ajudava a cuidar da pousada que ganhou da filha modelo famosa. Helena tinha dois irmãos, o adolescente estudante Paulo (Michel Gomes) e Sandra (Aparecida Petrowky). Sua família teve pouco destaque na novela, Helena interagia predominantemente com núcleos de personagens brancos. Foto 47-Personagens Edith, Sandra, Helena, Paulo e Laércio. Fonte: Rede Globo, 2009. 122 A única personagem da família de Helena que tinha uma significativa carga dramatúrgica e aparecia em quase todos os capítulos era Sandra. Entretanto o contexto era sempre da constante preocupação e cuidado afetivo e financeiro que Helena tinha para com a irmã. Sandra era uma jovem negra sem profissão, que namorava e teve um filho com o negro marginal/criminoso Benê (Marcelo Melo Jr) e era agredida por ele. Benê foi assassinado por conta de um acerto de contas com outros criminosos morrendo nos braços de Sandra. A família de Helena não aprovava o namoro de Benê e Sandra, pelo envolvimento do rapaz no mundo do crime, por ele explorar financeiramente Sandra e sua família, e finalmente porque, reiteradas vezes, a agredia verbal e fisicamente. Embora Helena fosse muito rica, mesmo quando ainda solteira, sua irmã Sandra morava com o filho e o namorado Benê em uma favela. Foto 48-Personagens Benê e Sandra. Fonte: Rede Globo, 2009. Os personagens negros ficaram isolados dos demais na trama, não apareciam em todos os capítulos e grande parte de suas cenas eram quando recebiam a visita de Helena. O enredo que ligava estes personagens era cingindo em torno de Helena. Ainda no núcleo negro, nos primeiros capítulos participou da trama, somente em cenas de Flashback (quando Helena lembrava-se do passado), o personagem Andre (Antonio Firmino), como um fotógrafo renomado, ex-namorado de Helena antes de ficar famosa. As cenas em que André aparecia faziam menção a um aborto que Helena havia feito, do filho que esperava do namorado negro, em prol de não prejudicar sua carreira. As cenas frisavam que André nunca teve conhecimento da decisão de Helena de interromper a gestação. Ao longo da novela Helena somente se envolveu com homens brancos. Considero que o fato de, após ter ficado famosa, Helena somente ter estabelecido relacionamentos com homens brancos, sugere que ao ascender socialmente, a modelo também precisava ascender racialmente e “positivar” sua condição de negra através do relacionamento com um homem branco seria uma boa estratégia. 123 Foto 49-Personagens André e Helena Fonte: Rede Globo, 2009. Logo no início da novela, Helena se envolveu com o personagem branco, Marcos (José Mayer), um homem rico, mais velho, que exigia que se afastasse das passarelas para ser apenas sua esposa. Helena hesitava em concordar. Com essa situação, Marcos tratava-a como se fosse sua propriedade. Helena em alguns momentos aceitava as imposições do marido e tentava se afastar do trabalho e das amizades que não o agradavam. Foto 50-Personagens Helena e Marcos Fonte: Rede Globo, 2009. Além dos conflitos com Marcos, Helena ainda enfrentava a resistência de sua enteada Luciana (Aline Moraes), que também era modelo e tinha com ela uma relação de rivalidade profissional. Desde o inicio da novela, Luciana implicava com a madrasta. Foto 51-Personagens Helena, Marcos e Luciana Fonte: Rede Globo, 2009. Helena também era hostilizada pela primeira mulher de Marcos, Tereza (Lilia Cabral), ex-modelo, mãe de Luciana, que não aceitava ter sido trocada por Helena, a quem se referia com o adjetivo de “mulherzinha”. Tereza responsabilizava Helena pelo fim de seu casamento e, também, por ter negado uma carona a filha, e com isso ter 124 exposto Luciana a um acidente que a deixou tetraplégica. Por este motivo agrediu Helena, que aceitou passivamente a agressão. Considero que esta cena fez clara menção as relações coloniais, quando a senhora branca, castigava sua escrava negra. Outro elemento que merece destaque é que esta cena foi ao ar na semana em que é comemorada no Brasil a semana da consciência negra. Foto 52- Personagens Helena e Tereza Fonte: Rede Globo, 2009. Considero que ao longo da novela, o papel de Helena perdeu o status de protagonista para as personagens de Luciana e Tereza, que tinham composição dramatúrgica mais densa do que a da suposta protagonista negra. Adepta do mesmo entendimento, Santana (2010, p.56) argumenta: Diante da análise das Helenas de Manoel Carlos da década de 2000, podemos afirmar que Taís Araújo não foi uma protagonista de peso como as demais. Ela só reforçou os estereótipos atribuídos à imagem da mulher, em especial da mulher negra. Fugiu à regra das empregadas domésticas, mas não teve o espaço merecido. De nada adiantou ser rica, famosa e bem sucedida, se perdeu o brilho no meio da trama. Manoel Carlos deu a entender que queria mostrar que não existe preconceito na teledramaturgia, ao colocar uma mulher negra para interpretar o papel de uma modelo bem sucedida, mas ele se esqueceu de dar a ela o verdadeiro protagonismo, aquele em que a personagem tem dramas e superações de verdade que refletem a realidade do público que assiste e se identifica. Ser vítima de um erro do passado e ser humilhada por causa disso foi uma tentativa fracassada de dramatizar a personagem. Helena, ainda casada com Marcos, envolveu-se com o personagem Bruno (Thiago Lacerda) e por isso foi chantageada por Rafaela (Klara Castanho) uma criança de 9 anos, filha de uma empregada de Helena, que ao descobrir relação extraconjugal da 125 patroa de sua mãe, passou ameaçá-la abertamente e exigir regalias e passe livre aos ambientes externos e internos da mansão da patroa negra. Foto 53-Personagens Rafaela e Helena Fonte: Rede Globo, 2009. Bruno pressionava Helena para se separar de Marcos e ir viver com ele. Posteriormente, Bruno descobriu ser filho de Marcos. Marcos e Bruno não se acertaram após serem revelados enquanto pai e filho, inicialmente pelo fato de Marcos ter rejeitado a gravidez da mãe de Bruno e, posteriormente, em função do contexto de ambos desejarem a Helena, situação que aguçou mais ainda as magoas e rivalidades entre pai e filho. Marcos, que também não era fiel a Helena, sofreu muito ao descobrir a traição da esposa negra e terminou a novela ao lado da esposa branca Tereza. Foto 54- Personagens Helena, Bruno e Marcos. Fonte: Rede Globo, 2009. A questão da discriminação racial nunca foi tocada ou discutida abertamente na novela. Em uma seqüência de cenas, Tereza fez rápida menção ao fato de provavelmente Helena ter enfrentado dificuldades na carreira por ser negra. Helena era uma negra que convivia com brancos, como se fosse branca também. Excetuando os traços diacríticos da pele negra e o cabelo crespo, o único elemento que situava Helena como negra era seu vínculo com seus familiares negros, retratados em uma quantidade de cenas proporcionalmente inferior as que retratavam os vínculos que estabelecia com parceiros, colegas de trabalho e amigos brancos. As melhores amigas de Helena eram a médica loira Ariane (Christiane Fernandes), a Médica nissei Ellen (Danielle Suzuki) e a loira que vivia da pensão do pai Alice (Maria Luisa Mendonça). 126 Foto 55-Personagens Alice, Ellen, Helena e Ariane. Fonte: Rede Globo, 2009. A construção de personagens negros na novela Viver a Vida reforçou a estereotipia da hiperssexualização da mulher negra, da negra enquanto cinderela que se envolve com príncipes brancos e ricos. Veiculou, ainda, o negro enquanto malandro/criminoso, por meio do personagem Benê. A relação entre Benê e Sandra apontava para a idéia de família negra como desajustada. Ressalto que ator negro Laércio de Freitas, que viveu o personagem Oswaldo, pai de Helena, desempenhava a profissão de músico, exatamente igual ao personagem Ataufo do folhetim Mulheres Apaixonadas em 2003, também escrito por Manoel Carlos. Este contexto aponta para existência de um determinado padrão de personagens “autorizados” aos atores negros nas novelas do dramaturgo em questão. Enfatizo que este padrão esta referendado nas relações coloniais e segue inalterado, seja quando o personagem negro figura em papeis de empregados domésticos, seja quando figura desempenhando uma profissão elitizada. Em qualquer dos dois contextos, o personagem negro tem sua existência, geralmente condicionada a relações com personagens brancos. Em 2012, a dupla de novelistas estreantes Filipe Miguez e Izabel de Oliveira assinou a autoria da novela Cheias de Charme (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este folhetim, ambientado na capital carioca, teve dez personagens negros e narrava a saga de três empregadas domésticas, Maria da Penha (Taís Araújo) que era negra, Maria do Rosário (Leandra Leal) que era branca e loira, e Maria Aparecida (Isabelle Drummond) que era branca e tinha os cabelos castanhos. As três se agruparam para lutar por direitos de sua categoria profissional e acabam criando um grupo musical nominado de As Empreguetes. 127 Foto 56-Personagens Cida, Rosário e Penha. Fonte Rede Globo, 2012 A personagem negra Penha era a protagonista, uma empregada doméstica que sustentava o marido branco, o filho e os dois irmãos. Trabalhava para patroas brancas. Agregou-se a duas empregadas domésticas brancas, Cida, e Rosário e formou o grupo musical, inicialmente colocando vídeos das apresentações na internet. Penha era a única das três “Empreguetes” que não falava de forma gramaticalmente correta e não tinha escolaridade. Durante a exibição da novela, o Ministério do Trabalho convidou as três atrizes para fazer uma propaganda alusiva aos direitos das empregadas domésticas, Cida e Rosário, falavam o que pode ser classificado como português culto, já a personagem Penha, mesmo na peça publicitária, falava como seu personagem, não conjugando adequadamente os pronomes pessoais e os tempos verbais. Ao longo da novela Penha foi cortejada por homens brancos, inclusive o marido de uma patroa, mas terminou ao lado do seu marido Sandro (Marcos Palmeira). Foto 57-Personagens Marcos e Penha Fonte: Rede Globo, 2012 O garoto negro Patrick (Mc Nicollas) era estudante, filho único de Penha (Taís Araújo), que vivia reclamando da ausência da mãe, fosse quando ela trabalhava como doméstica ou quando se tornou uma cantora de sucesso. O menino passava os dias brincando na rua, sendo pouco zeloso com os estudos. O personagem Patrick aponta para o estigma da família negra como desestruturada. 128 Foto 58-Personagens Patrick e Penha Fonte: Rede Globo, 2012 Penha tinha dois irmãos, o jovem branco Elano (Humberto Carrão), que tinha seu curso de direito custeado por Penha, e a irmã caçula, a adolescente negra Alana (Sylvia Nazareth), uma estudante que foi criada por Penha como se fosse sua filha Ed, que tinha na figura do marido de Penha a imagem de um herói, e via a irmã como severa. Ajudava a cuidar do filho de Penha e se apaixonou por um adolescente branco, Jefferson (Vitor Novello). Foto 59-Personagens Alana, Elano e Penha Fonte: Rede Globo, 2012 Além de Penha, Cheias de Charme trouxe mais duas empregadas domésticas negras. A jovem Gracinha (Lidi Lisboa), que trabalhava como uma babá muito afetuosa com as crianças que quem cuidava e gostava de filmar, com seu celular, flagras de abusos de patroas brancas duronas e postar na internet. A personagem de meia idade Valda (Dhu Moraes) era uma cozinheira, que encenava o estereotipo da mãe preta, no tocante ao apego que tinha aos filhos dos patrões brancos e pelo carinho que devotava a sua afilhada branca, Cida (Isabelle Drummond), uma das empreguetes. O estereótipo da negra como vilã invejosa foi contemplado, em Cheias de Charme, através da personagem Dinha (Juliana Alves). Esta, por sua vez, era uma ajudante de cozinha, que tinha uma rixa com uma das empregadas brancas. Rosário (Leandra Leal), era alvo da inveja de Dinha no trabalho e no amor, pois a negra tentava, sem sucesso, seduzir e conquistar o namorado branco de Rosário, o personagem Ignácio (Ricardo Tozzi). No final da novela foi aclamada como uma grande Chef de cozinha, 129 fato que não arrefeceu a inveja que Dinha nutria ao ver Rosário fazer sucesso como cantora. Foto 60-Personagens Ignácio e Dinha Fonte: Rede Globo, 2012 A novela trouxe, para dar veracidade ao núcleo ambientado na periferia do Rio de Janeiro, os personagens negros Heraldo (Sérgio Menezes dos Reis), que era garçon, Kleiton (Fábio Neppo), que era dono de uma lanhouse na periferia e Niltinho (Sérgio Malheiros), entregador de mini-mercado e grafiteiro. Esses personagens não tinham suas famílias retratadas, nem mesmo vínculos com outros negros, Somente contracenavam com personagens que figuravam como seus amigos brancos, ou seja, suas composições dramatúrgicas estavam direcionadas a ser amigos de personagens brancos, que tinham mais cenas e maior carga dramatúrgica. Apesar de trazer um número bastante significativo de personagens negros, Cheias de Charme os enunciou sob as amarras das relações coloniais, focando o fetiche interracial ao instaurar, de forma naturalizada, a diferença entre empregada negra e empregada branca e, também, ao reatualizar o estereotipo da negra invejosa da mulher branca. Ainda em 2012 foi exibido o folhetim Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012), com trama ambientada no contexto das transformações societárias do Rio de Janeiro no inicio do século XX. Apresentou quatorze personagens negros, através dos quais abordou diretamente os movimentos de inserção social das mulheres e o contexto da urbanização da população negra brasileira, após a abolição da escravidão, focalizando as favelas, a significação do samba e do futebol, além das revoltas sociais. Esta novela, além de focalizar a contribuição do negro no processo de formação social e cultural, dar visibilidade ao negro, demarcando sua presença, apresentada sempre como negativa pela história oficial do Brasil. Este folhetim inovou, também, ao apresentar dois protagonistas negros, os personagens Zé Maria (Lazaro Ramos) e Isabel (Camila Pitanga). 130 Foto 61– Personagens Zé Maria e Isabel Fonte: Rede Globo, 2012. Zé Maria era um exímio capoeirista, barbeiro, um negro ciente dos seus direitos. Metia-se em confusões, por seu envolvimento com a capoeira, por lutar por justiça social para os negros e em função de seu amor por Isabel. Esta, por sua vez, era uma empregada doméstica que trabalhava com Madame Besançon (Beatriz Segal), com quem aprendeu a falar francês. Era filha de Afonso (Milton Gonçalves), um ex-escravo, barbeiro, homem conservador e amante de tocar umas modinhas em sua viola. Isabel apaixonou-se, e só não se casou com Zé Maria, porque este foi preso quando estava a caminho da igreja. Isabel teve um filho com o branco Albertino (Rafael Cardoso), o que fez com que ela ganhasse a inimizade da mãe do rapaz, a ex-baronesa Constância (Patricia Pillar), que lhe tirou a criança. Foto 62– Personagens Albertino e Isabel Fonte: Rede Globo, 2012. Izabel teve uma guinada social na trama quando ficaram revelados seus dotes artísticos Assim, conseguiu juntar dinheiro e construir uma grande casa no Morro da Providência (favela que ambientava a trama) onde os negros se reuniam para comer e festejar suas particularidades culturais. Isabel terminou a novela ao lado de Zé Maria e do seu filho, que conseguiu recuperar no final da novela. 131 Foto 63 –Personagens Elias, Zé Maria e Isabel Fonte: Rede Globo, 2012 Lado a Lado trouxe duas vilãs negras, Berenice (Sharon Menezes) e Zenaide (Ana Carbatti). Berenice era uma serviçal/lavadeira, inicialmente vizinha de Isabel (Camila Pintanga), de quem tinha muita inveja por esta saber ler, escrever e falar francês. Berenice era venal e gananciosa. Por nutrir um ódio patológico por Isabel, tentava sistematicamente seduzir e conquistar Zé Maria (Lazaro Ramos), unicamente para ferir Isabel. Lamentava muito por sua beleza não lhe permitir ter uma vida mais confortável. Berenice encarnava o estereotipo da negra invejosa e explorava o estigma da sensualidade da mulher negra. Como desfecho, morreu tragicamente como uma expressão de castigo por suas maldades ao longo da novela. Foto 64 – Personagens Isabel, Afonso e Berenice Fonte: Rede Globo, 2012 Zenaide era uma moradora do Morro da Providência, amarga, aliada da irmã Berenice em alguns golpes. Recebeu dinheiro da vilã da trama, Constância (Patrícia Pilar) para criar seu neto mestiço, que foi roubado dos braços da mãe Isabel, pelo fato de Constancia não aceitar a criança por ser filha de uma negra com seu filho. Zenaide maltratava impiedosamente o menino. O menino negro Elias (Cauê Campos) era o filho de Isabel e Albertinho, roubado e escondido por anos sob a tutela de Zenaide, a mando da avó paterna branca. Zenaide tinha mais dois filhos, Olavo (Jorge Amorim) que protegia Elias, seu suposto irmão de criação, e Vilmar (Marcio Rangel) que sentia ciúmes de Elias, causando constantemente intrigas e contentas para que a mãe Zenaide castigasse violentamente Elias. 132 Foto 65 – Personagens Berenice, Olavo, Vilmar, Zenaide e Elias Fonte: Rede Globo, 2012. A novela também trouxe um personagem negro que figurava como vilão e criminoso, Caniço (Marcelo Mello Jr), um capoeirista que usava as habilidades da capoeira para a criminalidade, por isso se tornou inimigo declarado de Zé Maria (Lazaro Ramos). Ao longo da trama, se envolveu com Berenice. Localizo no personagem Carniço o estereotipo do negro como malandro/marginal/criminoso. Foto 66 - Personagens Zé Maria e Carniço Fonte: Rede Globo, 2012 A novela explorou a discriminação racial nos times de futebol, através do personagem Chico (César Mello), que era um jogador de Futebol, obrigado a usar pó de arroz no rosto e no corpo para atenuar sua negritude, quando ia jogar. Ao longo da novela se apaixonou e se casou com uma mulher branca, a garçonete Gilda (Jurema Reis). Foto 67- Personagem Chico Fonte: Rede Globo, 2012. A trama explorou a liderança feminina no processo de configuração das favelas cariocas, por meio dos personagens Jurema (Zezeh Barbosa) e Etelvina (Laís Viera). Jurema era lavadeira e vendedora de acarajé. Figurava como líder na comunidade em que vivia e também como uma segunda mãe para a protagonista negra da trama, Isabel. Já Etelvina, era dona de casa, moradora do Morro da Providência, casada com um ex133 soldado, branco, ex- combatente da guerra de canudos. Junto com o marido Pecival (Rui Ricardo Diaz) que era uma liderança na Comunidade em que viviam. Foto 68 – Personagens Etelvina e Jurema Fonte: Rede Globo, 2012. O casal Etelvina e Percival eram pais da menina Madá (Ana Luiza Abreu) e do adolescente Tião (Zeca Gurgel), que trabalhava arduamente como engraxate para poder custear os estudos, no afã de poder propiciar uma vida melhor aos seus familiares. Foto 69 –Personagens Etelvina e Percival Fonte: Rede Globo, 2012. Na proposta de construção dos personagens negros na novela Lado a Lado, localizo uma tentativa de (re)posicionar, de forma afirmativa, a perspectiva, sobretudo no tocante a religião e ocupação sócio espacial na cidade do Rio de Janeiro. Este folhetim expressa um significativo movimento do pensamento liminar (Mignolo, 2003) pois empreendeu um esforço de descentralizar o discurso eurocêntrico na condução de sua narrativa, movimento que percebo que só havia sido feito antes apenas na novela Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996). O folhetim em referência apresentou uma trama ambientada em outra época, sem que a história fosse narrada sob a perspectiva exclusiva de personagens brancos. Entretanto, destaco que o fetiche inter-racial se fez presente no folhetim em questão como um ingrediente fortemente presente no enredo, expresso na relação entre personagens que formavam casais interraciais, bem como o estereotipo da negra invejosa e do negro como marginal criminoso. 134 O discurso colonial retira do sujeito colonizado e do seu grupo a capacidade de se administrar e representar, instituindo que somente o colonizador tem a fala autorizada para apresentá-lo e enunciá-lo. Para Babha (1998), o colonizado é definido sumariamente como “o outro”. Por intermédio do discurso colonial, emoldurado, iluminado e enquadrado no jogo da imagem/contra-imagem, no qual a imagem permitida é a do colonizador, somente resta ao colonizado a contra-imagem, o reverso, que tem como únicas possibilidades o apagamento ou a mimetização. No contexto dos enredos das telenovelas, vejo que o processo de estereotipação faz com que somente os personagens negros sejam racializados nos folhetins. Os personagens brancos são enunciados nas tramas como se fossem racialmente neutros. Este processo resultada diretamente da ação do discurso colonial que institui, para quem não é branco/europeu, uma “imagem de diferença”, que funciona como um receptáculo de tudo aquilo que é construído, classificado e hierarquizado sob o rótulo de “diferença”. Os negros nas telenovelas passam por um do processo de mimetização, isto é são enunciados com códigos semânticos de brancos, o que pode, tangencialmente, lhes invisibilizar mesmo quando estariam visíveis, participando ativamente ou mesmo como protagonistas dos enredos dos folhetins Mesmo nas telenovelas que apresentaram negros como protagonistas, estes personagens negros desenvolviam relações importantes do ponto de vista do enredo com, e somente com, personagens brancos. Entendo que os desdobramentos em torno das cotas raciais, aqueceram uma discussão acerca da presença do negro nas telenovelas e permitiram que fossem produzidas tramas com personagens negros “para inglês ver” e negros/ negras figurando como protagonistas. A análise do enredo destes folhetins, bem como da carga dramatúrgica dos personagens negros, mormente aqueles enunciados como protagonistas, permitiu-me identificar que estas tramas utilizaram como ingredientes principais o fetiche interracial e os processos de estereotipia constituídos em torno do escalonamento, sobreposição ou atravessamento de uma suposta hiperssexualidade, malandragem, criminalidade e subserviência do negro/negra que apareceram enfatizados ou sobrepostos nos enredos dos folhetins. 135 5 QUE INTERRACIALIDADE É ESSA? Nos enredos das telenovelas, o processo de estereotipação faz com que somente os personagens negros sejam racializados nos folhetins. Conceição (1995) aponta que o branco é apresentado como representante natural da espécie. Segundo Araujo (2000), quando a sinopse proposta pelo autor não indicasse que o personagem seria negro, devendo obrigatoriamente ser interpretado por um ator negro, seria escalado um ator branco. Os brancos são apresentados como se fossem racialmente neutros. O discurso colonial institui, para quem não é europeu, uma “imagem de diferença”, que atua como um receptáculo de todas as formas classificadas como “diferença” (BHABHA, 2005). Esta idéia de diferença, construída em torno dos colonizados, é portadora de uma ambigüidade que instaura uma estereotipação sobre seus corpos, comportamentos e aparatos culturais, que os torna alvos da repulsa mas também do interesse e fetiche por parte dos colonizadores. A mulher negra é enunciada nos folhetins como portadora de uma luxúria e um apetite sexual superiores a das mulheres brancas. O sinal emblemático desta característica seria seus quadris e nádegas. No Brasil, a relação entre negros e brancos pode ser interpretada como um passaporte para ascensão e aceitação social e, especialmente, na modalidade da relação entre o homem branco e a mulher negra. Esta subjetivação da relação interracial tem um lastro na história de Chica da Silva, uma ex-escrava que viveu na região de Diamantina, em Minas Gerais, no século XVIII. Através do concubinato com um homem branco, constituído contratador dos diamantes pelo então rei de Portugal, conseguiu sua alforria e inclusão social na elite branca local. A história de Chica da Silva representa a versão brasileira do conto da Cinderela e faz uma apologia vigorosa à prática da mestiçagem, abrindo para negros e mestiços a possibilidade de aceitação social e o atenuando a condição de subalternidade que o status de ser negro confere. Esta “versão colonial” do conto da Cinderela legitima a posição de inferioridade do negro, exponenciando o branco como seu salvador por meio branqueamento. A literatura produzida no Brasil reflete o imaginário que construiu também a mulata como uma mulher de sexualidade animalesca. Algumas obras literárias brasileiras do século XIX exploraram a venda de uma imagem amoral da vida sexual da mulata e da negra. 136 A este respeito, alguns folhetins exploraram em seus enredos tramas em que patrões ou filhos de patrões brancos, assediaram sexualmente suas empregadas negras. Isso ocorreu no folhetim Sangue Bom (Rede Globo, 19hrs, 2013) escrita por Maria Adelaide Amaral. Nesta trama, a personagem negra Sheila (Nanda Lisboa) era uma empregada doméstica apaixonada pelo filho de seus patrões brancos, o mulherengo Tito (Rômulo Neto). Tito humilhava Sheila sempre que podia, mas também a assediava quando estava interessado em aliviar suas tensões sexuais. Sheila, apaixonada, aceitava passivamente a situação, na esperança de que Tito um dia a amasse e assumisse um relacionamento com ela, o que nunca aconteceu. Foto 70-Personagens Nanda e Tito Fonte: Rede Globo, 2013 Outro exemplo emblemático da relação entre filho de patrões brancos e empregada doméstica negra foi apresentado no enredo de Mulheres Apaixonadas (Rede Globo, 21hrs, 2003), escrita por Manoel Carlos. A personagem negra Zilda (Roberta Rodrigues), uma empregada doméstica de uma família de classe média, era alvo de assédio sexual pelo personagem Carlinhos (Daniel Zettel), filho adolescente dos seus patrões. Zilda termina por “aceitar” entrar no jogo de sedução, proposto insistentemente pelo filho do patrão e o inicia sexualmente. Foto 71-Personagens Carlinhos e Zilda Fonte: Rede Globo, 2003. Mulheres Apaixonadas reforçou o estereótipo da mulher negra hipersexualizada, que é alvo e cede ao assédio sexual de homens brancos, posicionados em posições hierárquicas superiores, como foi o caso das personagens negras Zilda (empregada doméstica) e Luciana (Camila Pitanga), uma médica negra que era paquerada e se 137 envolveu, ao longo da trama, com cirurgião chefe da equipe médica, um homem branco de meia idade (José Mayer). A novela explorou a mulher negra como alvo de assédio sexual no ambiente de trabalho, seja em profissões desprestigiadas ou elitizadas. A questão do fetiche interracial esteve fortemente presente na trama, mormente em torno destas personagens. A novela Cabloca (Rede Globo, 18hrs, 2004), escrita por Edilene e Edmara Barbosa, abordou como a negra pode fazer uso da sensualidade para conseguir um conquistar um marido. A personagem negra Ritinha (Aisha Jambo) era uma mucama e fiel confidente da patroa Bellinha (Regiane Alves). Ritinha usava sua beleza e sensualidade como estratégia para conquistar vários pretendentes. Por isso era disputada pelo branco Chico da Venda (Cláudio Galvan), que trabalhava em um bar, e pelos negros Nastácio (Cosme dos Santos), que era motorista, e Zaquel (Alexandre Rodrigues) que era proprietário de uma venda. Foto 72-Personagem Ritinha Fonte: Rede Globo, 2004 Silvio de Abreu, em Belíssima, explorou a estereotipia em torno da beleza e sensualidade da mulher negra, por meio da personagem Mônica (Camila Pitanga), uma empregada doméstica, que morava no quarto dos fundos da casa da patroa branca, e criava o afilhado branco. Mônica recebia um dinheiro da mãe branca do garoto para cuidar dele, mas se apegou, como mãe, à criança. Considero que a personagem reforçou o estereotipo da mãe negra. Monica tinha um irmão e um pai retratados na trama, mas ambos eram brancos e tinham pouca interação com ela. Ao longo da trama, se envolveu com dois homens brancos de situação financeira melhor do que a dela, Alberto (Alexandre Borges) e Cemil (Leopoldo Pacheco) encenando assim, o estereótipo da cinderela negra, que ascende socialmente com o casamento com um homem branco. 138 Foto 73- Personagens Cemil, Mônica e Alberto. Fonte: Rede Globo, 2005. Miguel Falabela na novela Aquele Beijo (Rede Globo, 19hrs, 2010), também apresenta de forma romanceada a figura da negra como uma Cinderela à espera do príncipe branco. Este folhetim materializou a novela do dramaturgo que mais inseriu personagens negros, totalizando 10. A personagem negra que teve mais destaque na trama foi Sarita (Sharon Menezzes). Os demais personagens negros circundavam em torno dela. Sarita era estudante de direito e trabalhava em um salão de beleza, alternando as funções de manicure e cabeleireira. Era líder comunitária do bairro Covil do Bagre localizado na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo da trama, Sarita se apaixonou e se casou com um homem branco rico, com o dobro de sua idade, o personagem Alberto (Herson Capri). Este casal adotou a menor abandonada negra, Cleo (Duda Costa), que morava em um orfanato e só tinha como amigo um menino branco, que também foi adotado pelo casal citado. Foto 74-Personagens Sarita e Alberto Fonte: Rede Globo, 2010. Sarita era irmã de Marisol (Mary Sheila), uma costureira que era explorada pelos patrões brancos Locanda (Stela Miranda) e Felizardo (Diogo Vilela). No desfecho da novela, Marisol se torna uma estilista de sucesso e se casa com um modelo negro nigeriano, no último capitulo da novela. Sarita e Marisol, quando crianças haviam sido abandonadas pela mãe, Diva (Elisa Lucinda), que partiu para se prostituir na Europa. Diva, uma ex-prostituta, ex-presidiária, ladra, assassina, inescrupulosa, que tramou a morte da irmã, Deusa (Zezeh Barbosa) para usurpar seu dinheiro. 139 Foto 75-Personagens Diva e Marisol Fonte: Rede Globo, 2010. Deusa era uma ex-prostituta, que regressou ao Brasil após 20 anos, como uma rica condessa. A personagem utilizava lente de contato azul e variadas perucas para compor seu visual. Antes de partir para se prostituir na Europa, abandonou, ainda criança, a filha Grace Kelly (Leilah Moreno). Esta, por sua vez, não se dava bem com as primas Sarita e Marisol, e morava com Eveva (Maria Gladys) uma velha amiga de sua mãe Deusa. Foto 76-Personagem Deusa Fonte: Rede Globo, 2010. Grace Kelly era uma negra que pintava o cabelo de loiro. Trabalhava como funcionária de uma rede de lojas, era muito ambiciosa, não tinha escrúpulos em fazer qualquer coisa para melhorar de vida e conseguir dinheiro. Desprezava o amor oferecido pelo personagem negro Cabo Rusty (Jorge Maya), um policial analfabeto. Conseguiu ser promovida a gerente ao se aliar com a vilã branca Maruschka (Marilia Pera) contra os interesses da comunidade em que vivia. Grace Kelly se uniu a sua tia Diva, em torno do plano de assassinar sua mãe Deusa, e ficar com o seu dinheiro. Deusa sobreviveu à tentativa de assassinato e Grace Kelly e Diva foram presas. No final da novela, quando Grace obteve novamente a liberdade, passou a trabalhar como prostituta. 140 Foto 77-Personagens Deusa, Diva e Grace Kelly. Foto: Rede Globo, 2010. Explorando novamente o humor, a novela trouxe o casal formado pelos personagens negros, Taluda (Priscilla Marinho) e Herondi (Jhama). Taluda era uma empregada doméstica obesa e com apetite insaciável. Era muito dedicada aos patrões brancos, que se divertiam com o comportamento engraçado de Taluda. Já Herondi era um produtor de filmes pornográficos, que após se casar com Taluda, abriu sua própria produtora de filmes com conteúdo sexual explícito, explorando exclusivamente o fetiche com mulheres obesas. Foto 78-Personagens Taluda e Herondi. Fonte: Rede Globo, 2010. A novela trouxe ainda a personagem negra Bernadete (Karin Hils), uma cabeleireira que se envolveu e teve um filho com o advogado branco Ricardo (Frederico Reuter). Dalva (Mariah da Penha) era uma dedicada funcionária do orfanato sediado na comunidade Covil do Bagre e tratava todas as crianças abrigadas no orfanato como se fossem seus filhos. Dos dez personagens negros da novela Aquele Beijo, oito eram mulheres, que em moldes coloniais, encenavam todos os estereótipos acerca da idéia de mulher negra. O estigma da hiperssexualização esteve fortemente presente, inclusive com enfoque para a mulher negra como exótica e pitoresca, como foi o caso da personagem Taluda. Três destas mulheres estabeleceram a prostituição como atividade profissional e duas delas eram como criminosas e assassinas condenadas. A trama apresentou as famílias 141 negras como desestruturadas, focando contextos de crimes, vulnerabilidade e marginalidade social. No folhetim Négocio da China (Rede Globo, 18 hrs, 2008), Miguel Falabela inseriu três personagens negros. O enredo desta trama era ambientado em um contexto de migração entre Brasil, China e Portugal. Aborda a apropriação da cultura chinesa pelo Brasil, sendo que os pontos de convergência dos personagens se processava no fictício bairro Parque das Nações, localizado no subúrbio da cidade do Rio de JaneiroRJ. Nesta novela, os três personagens negros concretizavam propostas de sujeito negro, instituídas pelo padrão das relações coloniais. A personagem negra Semíramis (Zezeh Barbosa) era uma antiga funcionária de uma padaria, que mantinha por muitos anos um relacionamento secreto com seu patrão branco e português Belarmino (Joaquim Monchique). Por conta do romance entre os dois, Semíramis tinha mais regalias no ambiente de trabalho do que os demais funcionários. Usava como trunfo para pressionar o amante e patrão o filho que tiveram juntos, Tamuz (Ernesto Xaiver), que não foi assumido pelo português. Belarmino temia que o romance com Semíramis, bem como a existência do filho já adolescente, fruto desta relação, fossem descobertos por sua esposa branca Carmubda (Carla Andrino). Foto 79-Personagens Semíramis e Belarmino Fonte: Rede Globo, 2008. A relação entre Semíramis e Belarmino fazia uma clara alusão às relações entre escravas e seus senhores no período colonial, retratadas em muitas obras literárias brasileiras, nas quais os favores sexuais das escravas, segredos que partilhavam com seus patrões e filhos em comum, eram moedas usadas por estas para escapar do tronco, ter atenuada sua jornada de trabalho, obter alguma garantia para seus filhos, e também conseguir se impor diante dos outros escravos. Ressalto que a novela retratou no personagem negro Tamuz, filho de Semíramis e Belarmino, o drama dos filhos de escravas que figuravam como mães solteiras, pois não eram assumidos por seus respectivos pais brancos, casados com mulheres brancas. 142 A estereotipia acerca do corpo negro acarreta uma construção da imagem do negro e da negra hiperssexulizados. Este processo pode estabelecer uma armadilha que reduz este/esta negro/ negra a uma existência circunscritos unicamente aos domínios da sexualidade. A estereotipia da hipersexualidade da mulher negra foi explorada de forma exponenciada na novela Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007). Neste folhetim, o novelista Gilberto Braga apresentou nove personagens negros. Destes, Bebel (Camila Pitanga) teve a maior carga dramatúrgica. O destaque obtido por esta personagem a fez estampar a capa do CD que trazia a trilha sonora internacional da novela. Foto 80- Capa da Trilha Sonora Internacional da novela Paraiso Tropical Fonte: Globo/Somlivre, 2007. Bebel (Camila Pitanga) era uma prostituta baiana e ambiciosa, que migra para a cidade do Rio de Janeiro. Explorada por um cafetão branco, conseguiu conquistar um cliente branco e rico, Olavo (Wagner Moura), por quem se apaixona e é correspondida, se tornando uma prostituta exclusiva de Olavo. Em diversas cenas Olavo referia-se ao alto poder de sensualidade que a cor morena conferia a Bebel, afirmando que era impossível resistir sexualmente a ela. Olavo agia como se fosse apaixonado por Bebel, tirando-a da prostituição, mas sentia vergonha dela, evitando aparições públicas em sua companhia e a assumir namoro ou qualquer compromisso com ela. Foto 81-Personagens Bebel e Olavo Novaes. Fonte: Globo, 2007. 143 Olavo foi noivo de duas mulheres brancas e só não se casou com nenhuma delas porque Bebel armou situações que faziam com que as noivas rompessem o noivado. Bebel se envolveu com outros homens brancos, utilizando seu corpo e sensualidade. Quando ficou grávida, Olavo armou um plano para que Bebel mantivesse relações sexuais com seu tio milionário, para que este viesse a assumir a criança, deixando Bebel rica, para que Olavo desfrutasse da fortuna. Bebel era identificada na trama como morena ou mulata e sua maior aspiração na vida era ser amante “fixa” de um homem branco e rico. Após a morte de Olavo, Bebel se envolveu com um Senador da República. Sua última cena foi depondo em uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Esta personagem teve uma repercussão não prevista pelo autor da novela. Este papel seria vivido originalmente pela atriz branca Mariana Ximenes, cuja recusa, permitiu que Camila Pitanga desse vida à personagem Bebel. Outro personagem negro que teve uma significativa carga dramática na trama foi Evaldo (Flavio Bauraqui), um designer de jóias, alcoólatra, que por ser negro não consegue encontrar lojas dispostas a comercializar seus produtos. Ao solicitar a uma personagem branca, a vilã da trama, Thaís (Alessandra Negrini) que negocie as jóias como se fossem produzidas por um artista italiano, é lesado em todas as negociações. Foto 82-Personagem Evaldo Fonte: Globo, 2007. Evaldo recebia somente o apoio da namorada Eloisa (Roberta Rodrigues), uma garçonete de bom caráter e muito trabalhadora, que não aceitava ver o namorado ser explorado por Thais e a enfrentava. 144 Foto 83-Personagem Eloisa Fonte: Globo, 2007. Em uma cena, Evaldo após ser curado do alcoolismo, reformula seu guardaroupa, corta seu cabelo rastafári e sua namorada alisa os cabelos num processo conjunto de “higienização”, nos termos de Peter Fry (1982), visando uma imagem de maior credibilidade para conseguir contatos com lojas que vendam suas peças. Evaldo foi morto acidentalmente por Thaís, após uma discussão. Foto 84-Personagens Evaldo e Eloisa após “banho de loja” Fonte: Globo, 2007. Já a personagem negra Tatiana (Lidi Lisboa), só estava na trama em função de personagens brancos. Enunciada no enredo como uma jovem desempregada que recebia do cafetão Jader (Chico Diaz) inúmeros convites para se prostituir. Era amiga de Bebel e namorava um personagem branco, Ivan (Bruno Galiasso), que a chamava de “Minha Neguinha”. Esse namoro desagradava a mãe do rapaz, Marion Novaes (Vera Holtz). O personagem Ivan morre nos últimos capítulos da novela, e a última aparição de Tatiana foi ao lado do namorado quando este morre baleado. Foto 85- Personagens Tatiana e Ivan Fonte: Globo, 2007. 145 A novela trouxe ainda as personagens negras Cristina (Nivia Helen) e Zoraide (Thais Garayp) que trabalhavam como arrumadeira e cozinheira, respectivamente, na casa do milionário Antenor Cavalcanti (Tony Ramos). Só apareciam em cenas servindo os patrões, ou comentando a vida destes. Embora figurasse com uma secretária de luxo, a personagem Ivone (Ildi Silva) tinha a mesma composição dramatúrgica das personagens que figuravam como empregadas domesticas, pois grande parte de suas cenas eram secretariando o executivo branco Daniel Bastos (Fábio Assunção), protagonista da trama. Foto 86-Personagens Ivone e Daniel. Fonte: Globo, 2007. Também com um perfil subserviente, o personagem negro Claudio (Jonathan Haagensen) que era um assistente fiel da promoter da branca Marion Novaes (Vera Holtz), mulher de meia idade em declínio financeiro, que sobrevivia de golpes. Cláudio fazia tudo que a patroa branca mandava, independentemente de ser algo lícito ou não, atuando com um capataz de terno e gravata. A novela trouxe ainda o personagem Paulão (Babu Santana) que apareceu em algumas cenas como um criminoso altamente venal e sem escrúpulos. Foto 87-Personagem Claúdio Fonte: Globo, 2007. Embora Paraíso Tropical tenha apresentando nove personagens negros, apenas a personagem Bebel teve participação em todos os capítulos. A imagem de negro veiculada neste folhetim remeteu à hiperssexualização da morena/mulata prostituta, e 146 para negros como empregados fieis e devotadas aos patrões, que não tiveram suas famílias retratadas na trama. A hiperssexualização da negra foi explorada no enredo de outra novela de Glória Perez, Caminho das Indias (Rede Globo, 21hrs, 2009). Nesta trama, a negra Suellen (Juliana Alves), era descrita na sinopse do enredo como sendo uma moça bonita, simpática e de bom caráter. Suellen trabalhava como garçonete em uma pastelaria e, apesar de trabalhar duro, estava sempre disposta para dançar na gafieira do bairro de periferia em que morava. Ao longo da novela se envolveu com um homem branco mais velho, com o triplo de sua idade, o psiquiatra Dr. Castanho, que adorava vê-la dançar. Os dois se casaram no final da novela. Foto 88-Personagens Dr. Castanho e Suellen Fonte: Rede Globo, 2009. A novelista Glória Perez também utilizou a estereotipia em torno de uma suposta hiperssexualidade da mulher negra como um forte ingrediente na novela Salve Jorge (Rede Globo, 21hrs, 2012). Este folhetim, que tinha a parte central de sua trama ambientada em uma favela, seguiu a tendência dos folhetins da dramaturga em abordar outra cultura em contraposição à brasileira. O enredo se construiu no intercruzamento de relações de personagens situados na Turquia e na cidade do Rio de Janeiro. Abordou a temática do tráfico internacional de pessoas para fins sexuais. A narrativa era centrada na protagonista Morena (Nanda Costa), uma moradora da favela do Alemão, situada na capital carioca. Morena tinha esperança de trabalhar fora do país e, por isso, acabou sendo alvo de uma quadrilha especializada tráfico humano. Esta protagonista, embora tivesse o nome Morena, foi vivida por uma atriz branca. Ademais, apesar da narrativa estar centrada em uma favela, que é um espaço no Brasil predominantemente ocupado por negros, no folhetim é a saga de um branco morador de favela que efetiva a trama principal. No total foram apresentados sete personagens negros, dos quais cinco eram moradores de favela, uma era da zona sul carioca e outra era uma prostituta alvo de uma quadrilha de tráfico internacional de pessoas. 147 Dentre os negros moradores da favela destaco Maria Vanúbia (Roberta Rodrigues), que não tinha profissão definida, gostava de dançar e sonhava com carreira internacional como dançarina. Era chamada de “periguete” pelos demais personagens, por se oferecer para homens casados e brigar com suas esposas. Na maioria de suas cenas aparecia de biquíni tomando sol na laje de sua casa, provocando homens comprometidos, fazendo poses sensuais. Tinha um caso com um homem negro, casado com uma mulher branca, a quem sempre provocava na rua. No final da novela, iludida com promessas de uma carreira no exterior, acabou sendo vitima do tráfico internacional de pessoas, mas conseguiu escapar da quadrilha por se recusar a se prostituir a todo custo. Acabou resgatada pela protagonista da trama que colaborava com a Policia Federal. A personagem Vanúbia materializava a negra sensual que usa seu corpo e beleza como capital para ser reconhecida e respeitada. Foto 89-Personagem Vanúbia. Fonte: Rede Globo, 2012. A novela apresentou também o estereotipo do negro malandro, preguiçoso, e indisposto ao trabalho e que explorava financeiramente a esposa branca, através do personagem Pescoço (Nando Cunha), morador da favela, ex-traficante, e ex-presidiario, que não queria trabalhar e por isso se fingia de doente. Tinha um romance tórrido com a vizinha negra Vanúbia e era casado com uma mulher branca, a costureira Delzuite (Solange Badim). Foto 90-Personagens Delzuite e Pescoço. Fonte: Rede Globo, 2012. 148 O estereótipo da negra invejosa e moralista era concretizado pela personagem Diva (Neuza Borges), uma comerciante da favela do Alemão, dona de um bar, casada com um homem branco, o personagem Clóvis (Walter Breda), a quem chamava orgulhosamente de “marido”. Diva era fofoqueira, curiosa, e demonstra muito ciúmes do marido branco. Esta personagem reproduziu, em certo sentido, outra personagem vivida pela mesma atriz na novela América (Rede Globo, 21hrs, 2005): o mesmo nome e perfil dramatúrgico, o mesmo discurso, utilizando o chavão “cala-te boca”. Foto 91-Personagens Clóvis e Diva. Fonte: Rede Globo, 2012. Salve Jorge deu destaque, ainda, a personagem negra, Sheila (Lucy Ramos) outra moradora da Favela do Alemão. Era amiga da protagonista branca, não tinha profissão definida, batalhando ativamente por uma oportunidade de trabalho no exterior. Colaborou com a Polícia Federal, servindo de isca para ajudar a investigar uma quadrilha que atuava no ramo do tráfico internacional de pessoas para fins sexuais. Foto 92-Personagem Sheila. Fonte: Rede Globo, 2012. O último morador da favela foi Sidney (Mussunzinho), estudante, neto de Diva e Clóvis, que não teve seus pais retratados na trama e era criado pelos avós. Era ávido por novos conhecimentos, ajudou a criar uma homepage e uma rádio na comunidade em que vivia e apareceu em poucas cenas. 149 Foto 93-Personagem Sidney Fonte: Rede Globo, 2012. Ainda no núcleo situado no Brasil, a única personagem negra que não era moradora da favela era Julinha (Cris Vianna), uma designer gráfica, moradora da zona sul carioca, que dividia um apartamento com mais duas amigas brancas. Julinha gostava de dançar e recebeu um convite de uma quadrilha de tráfico de pessoas para ser dançarina/prostituta do exterior. Suas cenas se resumiam a acompanhar, como amiga, as aventuras amorosas da amiga branca Èrica (Flavia Alessandra), antagonista romântica da protagonista da trama. Nunca teve sua família retratada na trama. No inicio da novela foi paquerada por Èlcio (Murilo Rosa), que se aproximou de Julinha para se vingar da ex-namorada Èrica. Julinha em sua última cena, indicava que estaria de romance com um militar branco. Foto 94-Personagens Julinha e Élcio Fonte: Rede Globo, 2012. No núcleo localizado na Turquia, a personagem negra que integrou a trama foi Sharon (atriz não identificada). Figurava como a única prostituta negra dentre um grande grupo de garotas vitimas do tráfico internacional de pessoas e teve poucas cenas, com limitadas falas. No tocante ao homem negro, o culto a sua hiperssexualidade nas telenovelas brasileiras começou a ser proposto no período que coincide com o debate em torno das cotas raciais. A visibilidade que lhe é permitida nos folhetins etnografados primaram por enclausurá-lo na idéia do “negão”, visibilizada através da imagem do homem negro, alto e corpulento. O estereótipo da hipersexulização faz referência a ideia de que homem negro teria um pênis maior do que de um homem branco, o que resultaria em 150 um maior apetite sexual, que tornaria o sujeito negro mais viril e, por isso, seria alvo do fetiche sexual por parte de mulheres e homossexuais. As características atribuídas ao homem negro, centradas no campo da indisposição ao trabalho, da marginalidade, e da violência/criminalidade têm claras referências nas relações coloniais, sugerindo que o homem negro teria uma “essência” enquanto sujeito que seria incompatível com ideais de civilidade e comportamento do colonizador europeu. Neste sentido foi recorrente nas tramas etnografadas a enunciação de personagens negros como criminosos, ou como sujeitos venais, dispostos a fazer toda espécie de serviço sujo para vilões brancos. A estereotipia constituída em torno da hiperssexualidade do homem negro foi amplamente destacada pela dramaturga Glória Perez na novela América (Rede Globo, 21hrs, 2005). Esta novela foi ambientada em três cidades, Rio de Janeiro, Miami (EUA) e na fictícia Boiadeiros, situada no Estado de São Paulo. A trama era contextualizada na temática dos rodeios, no cotidiano de um bairro da periferia carioca e na imigração ilegal para os Estados Unidos da América. Discutiu, ainda, cleptomania, pedofilia e inclusão de sujeitos com necessidades especiais. Mobilizou seis personagens negros, sendo que apenas três eram fixos e apareciam em quase todos os capítulos. O personagem negro que teve mais destaque na trama foi Feitosa (Ailton Graça), motorista, segurança e mestre sala de uma escola de samba. Tinha um romance tórrido com a loira Islene (Paula Burlamaqui), chegou a se casar com uma falsa religiosa Creuza (Juliana Paes), também branca, por determinação de sua mãe Diva (Neuza Borges), mas terminou a trama ao lado da loira Islene. Foto 95- Personagens Islene, Feitosa e Diva Fonte: Rede Globo, 2005. A relação entre Feitosa e Islene explorou um suposto fetiche interracial configurado pela relação entre um homem negro e uma mulher loira. Com o personagem Feitosa a autora explorou o estigma da hiperssexualização, referendando a beleza a virilidade do homem negro. Feitosa teve direito a uma canção na trilha sonora 151 da novela, a música “meu ébano”, escrita pelo compositor Nenéo (Nome artístico de Nelson de Morais Filho) e cantada por Alcione: É você é um negão de tirar o chapéu! Não posso dar mole senão você, creo Me ganha na manhá e papau leva meu coração É, você é um ébano lábios de mel Um príncipe negro feito a pincel É só melanina cheirando a paixão É, será que eu cai na sua rede ainda não sei Sei não, mas to achando que já dancei Na tentação da sua cor Pois é, me pego toda hora querendo te ver Olhando pras estrelas pensando em você Negão eu to com medo que isso seja amor Moleque levado sabor de pecado menino danado Fiquei balançada confesso quase perco a fala Com seu jeito de me cortejar, que nem mestre sala Meu preto ritinto malandro distinto Será que é instinto, mas quando te vejo Me enfeito, me vejo - retoco o batom a sensualidade Da raça é um dom é você meu ébano e tudo de bom. ah molequeee!! A música embalava as cenas em que Feitosa aparecia contracenando com as mulheres brancas com que se envolvia ou quando era desejado por outras mulheres ou pelo personagem gay Júnior (Bruno Gagliasso) e reforçava o estigma da hiperssexualidade do negro. A letra faz clara alusão a cor negra como um elemento que define sensualidade e pecado. Feitosa era filho da personagem negra, Diva (Neuza Borges), dona de casa super protetora do filho, moralista, fofoqueira, invejosa e controladora da vida dos vizinhos. A questão da discriminação racial foi abordada no contexto da relação de Feitosa como motorista da personagem branca, Haidê (Cristiane Torloni), que sofria de cleptomania e roubava compulsivamente objetos das lojas. Em uma cena Feitosa, que carregava a bolsa da patroa, foi acusado de roubo, o que levou o esposo de Haydée a demití-lo. A novela trouxe ainda o personagem Farinha (“Mussunzinho”), que era inicialmente um menino de rua, recolhido e criado pelo personagem branco Gomes (Walter Breda), um ex-soldado, tradicional e moralista. Gomes abrigou o menino por ser seu filho bastardo, de um relacionamento extraconjugal que teve com Dalva (Solange Couto), uma artista, classificada na trama como mulata sensual, que abandonou o filho, para tentar carreira como dançarina/prostituta no exterior. 152 Foto 96-Personagem Dalva e Farinha Fonte: Rede Globo, 2005. A personagem negra com menos destaque na trama foi Drica (Cris Vianna), dançarina e cantora de boate, imigrante ilegal nos EUA, amiga da protagonista branca. Houve a participação especial, em poucos capítulos, da atriz negra Tais Araujo, interpretando Nossa Senhora Aparecida, a Santa católica, considerada por estes a padroeira do Brasil, que aparecia para abençoar o protagonista branco da trama, o peão de rodeios Tião (Murilo Benicio). Foto 97- Atriz Negra representando Nossa Senhora Aparecida. Fonte: Rede Globo, 2005. O culto a uma suposta virilidade do homem negro, feito com forte apelo cômico, foi proposto pelo novelista Walcyr Carrasco no folhetim Caras e Bocas (Rede Globo, 19hrs, 2009). A novela explorou a questão do estigma da hiperssexualidade do homem negro por meio do personagem Caco (Rafael Zulu). Este no inicio da trama trabalhava como guia turístico de safáris na Àfrica do Sul, quando retornou ao Brasil foi trabalhar em uma ONG que defendia os animais. Posteriormente, estimulado por um amigo fotógrafo, começou a fazer trabalhos como modelo. Quando Caco sua namorada/esposa branca Láis (Fernanda Machado) faziam sexo, o vigor sexual de Caco era tanto, que chegava a provocar terremotos na casa em que moravam, todos os demais moradores da casa (familiares de Láis sentiam literalmente a casa “tremer” quando o casal praticava relações sexuais). O estereótipo do negro como suspeito de ser um 153 criminoso em potencial, também foi retratado na novela por meio do personagem Caco. Em uma cena, quando o negro fica a espera, tarde da noite, dos proprietários de uma frutaria para comprar uma melancia para atender ao desejo da esposa branca gestante, foi confundido com um assaltante, mesmo estando “bem vestido”, sem portar armas e perguntando, calmo e educamente, pela possibilidade de conseguir a fruta para a esposa. Ao final da cena Caco, depois de se desculpar e se justificar consegue, sob o clima de desconfiança dos donos da frutaria, a melancia para Láis. Foto 98-Personagens Caco e Láis Fonte: Rede Globo, 2009. O estereótipo de hiperssexualização pode conferir um suposto status positivo para negros/negras, entretanto este processo instaura um mecanismo que os desumaniza reduzindo-os a meros objetos sexuais. No contexto da experiência brasileira das relações coloniais esta estereotipação da hiperssexualidade em torno dos corpos do negro e da negra é fomentada pelo culto a mestiçagem. O processo de mestiçagem entre negros e brancos propiciou no Brasil a construção social da idéia mulata/mulato. Gobineau (1853), um dos primeiros estudiosos a iniciar uma investigação sobre o processo de mestiçagem, afirmava em seus estudos que os negros e amarelos seriam mais favorecidos do que os brancos no que concerne ao exercício da sensualidade. Sobre a mulata especificamente, Correa (1996, p. 50) acredita que esta enquanto construção social, se tornou alvo do desejo masculino branco, fetiche este que também pode mascarar a rejeição a negra preta. A telenovela enquanto representante de um habitus cultural tende a retratar o fetiche interracial. Este contexto foi amplamente explorado, por exemplo, no enredo do folhetim Porto dos Milagres (Rede Globo, 21hrs, 2001), uma livre adaptação de duas obras de Jorge Amado: Mar Morto e A Descoberta da América pelos Turcos. A trama era ambientada em uma cidade fictícia, Porto dos Milagres, localizada na Bahia, Estado que segundo IBGE (2010) apresenta proporcionalmente, o maior contingente de população negra do país. Entretanto, dos cinquenta e um personagens arrolados nesta 154 trama, apenas quatro eram negros: três mulheres e um homem. Estes personagens negros tiveram significativo destaque na trama, tendo uma estória própria dentro do enredo do folhetim. A personagem negra que teve mais destaque foi Esmeralda (Camila Pitanga), uma mulher sensual, que adorava ser admirada e desejada pelos homens, sem profissão definida no enredo. Cresceu apaixonada pelo protagonista da novela, o personagem Guma (Marcos Palemeira) que logo no início da trama se apaixona pela personagem Lívia (Flávia Alessandra), loira. Esmeralda, reiteradas vezes, usou sua sensualidade para seduzir Guma, fazendo com que ele viesse por isso a se afastar temporariamente de Lívia. Uma forma de preconceito “às avessas” de negro para com brancos, foi veiculada nos discursos da personagem Esmeralda, que se referia a Lívia e a outras mulheres brancas como “branca azeda”. A personagem Esmeralda era invejosa e figurava encarnando o estereótipo da hiperssexualização da mulher negra e seus capitais eram reduzidos ao seu corpo e beleza. Foto 99- Personagem Esmeralda Fonte: Rede Globo, 2001. Outra personagem negra da trama em foco foi Mãe Ricardina, vivida por Zezé Motta, atriz negra que representava uma mãe de santo, tia de Esmeralda. Ricardina era ialôrixa, responsável pelo terreiro de Yemanjá, divindade cultuada pelo núcleo de personagens que vivia da pesca. As cenas desta personagem se restrigiam a sua atuação como sacerdotisa, conselheira de alguns personagens, como uma grande mãe, sem que sua dimensão pessoal e familiar fossem abordadas. Assim, esta personagem encena o estereotipo da mãe negra, perpetrada pela figura da ama negra (escrava que amamentava os filhos do patrão no período escravagista). Esta personagem tinha embates com a personagem Augusta Eugenia (Arlete Sales), que era uma defensora da religião católica. 155 Foto 100- Personagem Mãe Ricardina Fonte: Rede Globo, 2001. Outra personagem negra da telenovela em questão foi a prostituta Selminha Aluada (Taís Araujo). Uma moça que freqüentemente se apaixonava por seus clientes brancos e passava a enxergá-los como príncipes encantados. Esta personagem encena o estereótipo da Cinderela negra, que sonha em ser aceita e desposada por um homem branco, com ares de nobreza. Foto 101 – Personagem Selminha Aluada Fonte: Rede Globo, 2001. O último personagem negro da trama em questão era Rufino, vivido pelo autor negro Sérgio Menezes. Na trama Rufino era um pescador, amigo do protagonista da trama, Guma, que era branco. Rejeitava a irmã Selminha pelo fato desta trabalhar como prostituta. Era apaixonado por Esmeralda, que só tinha olhos para Guma. Somente no final da novela Esmeralda desistiu de Guma e aceitou o amor que Rufino lhe devotava. 156 Foto 102- Personagens Mãe Ricardina e Rufino Fonte: Rede Globo, 2001. As propostas de sujeito negro construídas por Aguinaldo Silva no folhetim Porto dos Milagres (Rede Globo, 21hrs, 2001) retratam quatro estereótipos: a mãe de santo, uma típica mãe preta do candomblé baiano; duas negras com forte apelo sensual; legitimando o estigma da hipersexualização da negra; sendo uma delas (Selminha) prostituta, que buscavam seus respectivos príncipes brancos e o homem negro que luta pelo amor de uma mulher negra que é apaixonada por um homem de pele clara. Já o folhetim Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2007) também escrita por Aguinaldo Silva, tinha trama situada na fictícia favela da Portelinha, referenciada na cidade do Rio de Janeiro-RJ e em outro núcleo elitizado, que fazia referencia a zona sul da capital carioca. Dentre as novelas analisadas, Duas Caras se destaca como a que mais inseriu personagens negros, totalizando vinte. Dentre os personagens negros, Evilásio Caó (Lazaro Ramos) obteve mais destaque. Era assessor e afilhado do líder da Associação de Moradores da favela, o personagem branco Juvenal Atena. Evilásio tinha status de galã, e inclusive estampou, a capa do CD com a trilha sonora da novela. Foi a primeira vez que isso ocorreu em CD de folhetim de novela da Rede Globo. Foto 103- Capa da trilha sonora da novela Duas Caras. Fonte: Globo/Som Livre, 2008. 157 Evilásio se envolveu com duas mulheres brancas, que em muitos discursos destacavam a virilidade sexual do personagem negro. A primeira foi Guigui (Marilia Gabriela), uma mulher 20 anos mais velha, intelectual, pertencente a elite paulista, que estava refugiada há anos na favela em que Evilásio morava. A segunda, com quem teve um final feliz foi a personagem branca Júlia Barreto (Debora Falabela), jovem da elite carioca, cujo pai, o advogado Barreto (Stenio Mendonça), não aceitava o relacionamento, pelo fato de Evilásio ser negro e morador de favela. Evilasio, com apoio de Júlia, foi eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro. Em uma cena de jantar da família de Júlia para apresentar Evilasio, este foi insultado por discordar de Barreto (Stênio Garcia), que por esse motivo o chamou de “favelado, preto sujo e crioulo metido a besta”. Na ocasião, um dos convidados, um personagem branco e judeu, que também se identificou como um sujeito alvo de processos discriminatórios, desaprovou o comportamento discriminatório de Barreto, alegando que os negros haviam contribuído muito para a história do Brasil, citando exemplos na música, na culinária e nos esportes. Os demais personagens demonstraram preocupação com as repercussões que acusações discriminatórias trariam para a carreira do renomado advogado, mais do que com a questão racial no Brasil. Foto 104 -Foto dos personagens Evilásio e Júlia Fonte: Rede Globo, 2008. Destaco que as cenas do romance interracial entre Evilásio e Julia acentuavam o fetiche da relação entre um homem negro e uma mulher branca. Os personagens proferiam discursos que enfatizavam o quanto era apimentada a vida sexual do casal. Os dois se chamarem na intimidade de “minha branquinha” e “meu negão”. Evilásio era filho de Misael (Ivan de Almeida), um carpinteiro, viúvo, melhor amigo de Juvenal Antenas (Antonio Fagundes). No final da trama, se casou com uma mulher branca, a francesa Claudine (Thaís de Campos). 158 Foto 105-Personagens Misael e Claudine Fonte: Rede Globo, 2008. Gislaine (Juliana Alves), filha de Misael e irmã de Evilásio, não tinha profissão identificada. Era rainha de bateria de escola de samba da favela em que morava, não gostava de estudar e era apaixonada por bailes funks. Ao longo da novela se envolveu e se casou com o personagem branco Zidane (Guilherme Duarte). Embora no final da novela, tenham sido contemplados com romances interraciais, no início da trama os discurso dos personagens Misael (Ivan de Almeida) e Gislene (Juliana Alves) defendiam a premissa de que negros somente deviam desenvolver relacionamento afetivo com outros negros. No capítulo que foi ao ar no dia 02/01/2008, a personagem Gislene afirmou que sua mãe, já falecida, se “revolveria no tumulo se tomasse conhecimento que seu pai está se envolvendo com uma mulher branca”. Foto 106-Personagens Gislane e Zidane Fonte: Rede Globo, 2008. A questão do racismo também foi abordada por meio da personagem Sabrina (Cris Vianna), uma empregada doméstica, assediada sexualmente pelo personagem branco Barretinho (Dudu Azevedo), filho do patrão. A mãe de Barretinho, a personagem Gioconda (Marília Pera) justificava o encantamento do filho pela empregada negra, alegando que ele tinha uma “grande queda por afro-descendentes”. 159 Ao longo da trama, Barretinho demonstrou que sentia mais do que atração física pela empregada, declarando seu amor, e pedindo-a em casamento. Sabrina, entretanto, não aceitou inicialmente, alegando já ser noiva de outro e recusava novas investidas de Barretinho, declarando que jamais se casaria com um homem branco, pois isto iria “Enralecer seu sanuge”. Neste ponto, o autor da trama explorou uma controversa idéia de discriminação racial às avessas, mostrando negros resistentes a se envolver afetivamente ou sexualmente com brancos. Após Barretinho sofrer um acidente por ter sido rejeitado, Sabrina é aconselhada por seu pai, Celestino (Jorge Coutinho), a rever seus preconceitos e aceitar o amor do homem branco, se ela de fato o amasse. Assim, Sabrina abandona Miguel (Taiguara Nazaré) no altar e decide se casar com Barretinho. Após o casamento, Barretinho se declara um branco que escolheu ser negro e se muda com a esposa para África, aceitando uma proposta de trabalho na Nigéria. Foto 106-Personagens Sabrina e Barretinho Fonte: Rede Globo, 2008. Outra personagem negra com destaque na trama foi Solange (Sheron Menezes), uma estudante, filha de líder comunitário da favela, que não aceitava ser negra e desejava se relacionar somente com homens brancos. Disputou com uma personagem branca o amor do personagem branco Claudius (Caco Cioccler). Em uma das cenas da novela, quando Solange foi questionada pela amiga Gislane se seu namorado era bonito, Solange respondeu: “Claro que é bonito, ele é branco”. Solange recusava ser categorizada como negra, retrucando para Gislane, ao ser classificada como negra: “quem é negra aqui? Fale por você mesma Gislane e me tire dessa!”. Solange defendia-se declarando: “eu sou morena, e morena clara!”. Com esta personagem, Aguinaldo Silva fez uma sátira aos sujeitos negros insatisfeitos com sua condição de negro. 160 Foto 107- Personagens Solange e Claudius Fonte: Rede Globo, 2008. A personagem Solange pode também ser enquadrada no estereótipo da Cinderela negra. De igual forma, classifico a personagem Morena/ Condessa de Finzi-Contini (Adriana Alves), uma ex-amante do personagem branco Juvenal Atena (Antonio Fagundes). Morena havia sido empregada doméstica e ex-prostituta no exterior. Lá conheceu e se casou com um Conde Italiano, banqueiro, que morreu, deixando-a milionária. Quando retorna da Itália, decide ajudar sua antiga comunidade da Portelinha. No final da trama, se casa com o mecânico negro Apolo (Antonio Firmino). Embora a novela tenha exibido poucas cenas dos dois juntos, em uma delas a personagem fala para seu companheiro que acha lindo a imagem do amor negro com negro, qualificando a relação como “negros puros”. Foto 108 - Personagens Morena/Condessa e Apolo Fonte: Rede Globo, 2008. A novela também reforçou a premissa de que as bases de discriminação do negro não são raciais, mas de natureza econômica, na cena em que a personagem Morena/Condessa Finzi Continni foi reverenciada até pelo personagem Barreto, que assumidamente discriminava negros. Ao cumprimentá-la beijando-lhe a mão, Barreto declarou que a Condessa é uma “linda negra de alma branca”. A questão da negra hipersexualizada se fez presente, também, no folhetim Duas Caras, por meio da personagem Andréia Biju (Debora Nascimento), empregada doméstica, que também era madrinha de bateria da Escola de Samba da favela em que 161 morava. Muito sensual, se envolveu com dois homens brancos ao longo da trama, Waterloo (Jackyson Costa) um capanga do vilão da trama, e o adolescente rico Petrus (Sérgio Vieira). Andréia resistiu em substituir sua tia na função de mãe de santo no terreiro em que freqüentava. Era irmã de Bijouzinha (Natasha Stramsky), uma bordadeira que fazia curso supletivo a noite. Foto 109- Personagem Andréia Bijou Fonte: Rede Globo, 2008. A personagem Setembrina ou “Mãe Bina” (Chica Xavier) era uma mãe de santo que atuava na comunidade da Portelinha, sendo reconhecida como uma importante liderança. Tinha dois filhos: Zé da Feira (Eri Jhoson), um pagodeiro, feirante, que tinha problemas com alcoolismo e era casado com uma mulher branca, e Ezequiel (Flavio Bauraqui), que personificava a imagem do negro submisso e sem história pessoal na trama. Era um motorista, evangélico fanático, totalmente devotado à protagonista branca, a quem Ezequiel julga ter recebido por missão espiritual a obrigação proteger e servir, embora ela não fosse de sua mesma religião. Reitera o estereótipo do negro mucamo, totalmente a serviço do branco. No final da trama se envolveu com uma mulher branca. Foto 110- Personagem Setembrina/Mãe Bina Fonte: Rede Globo, 2008. O personagem Rudolf Stenzel (Diogo Almeida), um universitário negro, descendente também de alemão, era rico, de caráter dúbio, e sonhava ser uma liderança para os jovens da faculdade particular em que estudava. Sem escrúpulos para alcançar o que desejava, fez uma falsa acusação para se promover, sendo desmascarado pela jovem 162 branca e rica Ramona (Marcela Barrozo), por quem se apaixonou. Rudolf forjou uma situação na qual se passou por vítima de discriminação racial para prejudicar o reitor de sua universidade. Com esse personagem, o autor da novela tentou polemizar a questão de que alguns negros exageram e estrategicamente se sentem eternamente vítimas do racismo e da exclusão, e deliberadamente usam tal situação no afã de obter promoção pessoal. Foto 111- Personagem Rudolf Fonte: Rede Globo, 2008. A novela trouxe também cinco personagens negros que não tinham uma história própria na trama, orbitando em torno de outros personagens. Foram papéis sem origens, laços de parentesco, sem cenários próprios e que apareceram em poucos capítulos. Este foi o caso de Vitória (Raquel Fiuna) enunciada como dançarina/prostituta que se envolveu com um homem branco; Priscila (Luciana Barbosa), que quase foi alvo do tráfico internacional de mulheres para fins sexuais; Josiane (Dani Ornelas), sem profissão definida, que aparecia nas cenas em que o terreiro de Mãe Bina era mostrado; Nanã (Teca Pereira) que desempenhava função de empregada domestica; e Brucelli (Raphael Rodrigues), que era um universitário. A novela endossou o mito da democracia racial brasileira, deslegitimando o indicativo da existência da discriminação racial no Brasil, por intermédio do culto à mestiçagem, construindo ao longo do enredo treze casais inter-raciais e apenas dois envolvendo pares negros. Apenas um permaneceu junto até o desfecho da novela. Destaco que dezenove dos vinte personagens negros eram moradores da favela, entretanto o “líder” comunitário que a fundou e a administrava era o personagem branco Juvenal Antena, que renunciou a estabilidade de seu emprego de carteira assinada para apoiar e liderar os pobres, em sua maioria negros, que decidiram ocupar a área em que fundaram a favela. Juvenal administrava a associação comunitária da favela como um soberano, possuindo auxiliares e vassalos negros. Com este enunciado, a novela 163 legitimou a premissa de que até mesmo nos espaços mais populares como uma favela, onde os sujeitos negros são maioria numérica, precisam ser tutelados por branco(s). O jornal O Globo de 13 de janeiro de 2008, trouxe uma matéria intitulada “Com mais espaço, mas ainda pobres”, em que abordava que a novela Duas Caras concretizava a primeira novela, não épica, com um razoável número de atores negros. Nesta matéria, o autor da trama foi questionado acerca do fato dos personagens negros da trama serem moradores da favela ou empregados domésticos. Aguinaldo Silva reagiu alegando que a construção destes personagens com a configuração de moradores de favela e empregados domésticos foi proposital. “Preferi o mundo real ao idealizado. Não que não haja famílias negras na classe média. Há, mas, nas novelas, quando elas aparecem, têm todo o gestual de famílias brancas. Esse tipo de coisa não me interessava” (SILVA, 2008, p.12). A novela Fina Estampa (Rede Globo, 21hrs, 2011), também assinada por Aguinaldo Silva, apresentou sete personagens negros. A que teve mais destaque foi Dagmar dos Anjos (Cris Vianna), uma cozinheira que cria sozinha os dois filhos adolescentes, fruto de relações com homens diferentes. Por isso, Leandro (Rodrigo Simas) o mais velho era branco, e Leonardo (Victor David) era negro. Ao longo da trama, Dagmar se envolveu com três homens brancos. Esta personagem encarnava a estereotipia da sensualidade da mulher negra, em numerosos capítulos protagonizava muitas cenas de nudez em que aparecia tomando banho de mangueira no quintal de sua casa. O filho branco de Dagmar, Leandro se envolveu com negócios ilícitos e também se prostituia. O fato de Leandro se prostituir desagravada muito Dagmar, que com a ajuda do namorado branco, conseguiu regenerar o filho, inserindo-o no mundo da luta livre. Já o filho negro de Dagmar, Leonardo, era muito estudioso e foi alvo de discriminação racial quando ia estudar na casa do melhor amigo branco e rico, filho da vilã branca da trama, a personagem Thereza Cristina (Cristiane Torloni). 164 Foto 112-Personagens Leonardo, Dagmar e Leandro. Fonte: Rede Globo, 2011. Fina Estampa explorou novamente o fetiche racial com ênfase numa certa virilidade do homem negro por meio do romance entre o personagem negro Edvaldo (Rafael Zulu) e a branca Glória (Mônica Carvalho). No enredo em questão Edvaldo era um baiano que morava no Rio de Janeiro, onde trabalhava como um esforçado mecânico de motos, que após muita dedicação e lealdade ao patrão branco, conseguiu conquistar a confiança deste, realizou o sonho de ser gerente do local em que trabalhava. Identifico, na carga dramatúrgica do personagem Edvaldo, o estereótipo de um escravo leal, que tem que provar lealdade para conseguir o reconhecimento de seu patrão e tem como indicativo de mudança de classe social o casamento com a mulher branca. Foto 113-Personagens Edvaldo e Glória Fonte: Rede Globo, 2011. A novela Três Irmãs (Rede Globo, 19hrs, 2008) de autoria do novelista Antonio Calmon, também apostou no fetiche interracial para enunciar os personagens negros no enredo do folhetim em questão. Esta trama era ambientada no fictício balneário de Caramirim localizado no Estado do Rio de Janeiro. O autor trouxe quatro personagens negros e inovou ao apresentar um par romântico formado pelos personagens negros Janaína (Solange Couto) e Jacaré (Ailton Graça). Janaina era uma mulher de meia idade, alegre, bonita, dona da pousada da região que ambientava trama. Na juventude havia sido passista de escola de samba na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de ser uma mulher de personalidade forte, sentia-se insegura 165 porque seu namorado Jacaré ainda nutria uma paixão por uma atriz branca francesa Sylvie (Antonia Frering) que havia conhecido no passado. O personagem Jacaré era um pescador, totalmente indisposto ao trabalho, que ocasionalmente ajudava na administração da pousada de propriedade de sua namorada. O perfil do personagem Jacaré apresentado no portal Memória Globo (2014) define-o como “tipico malandro de praia, gente boa”. Foto 114-Personagens Jacaré e Janaína Fonte: Rede Globo, 2008 Apesar de gostar da namorada negra, Jacaré ainda venerava a lembrança de uma mulher branca e francesa, que era o grande amor de sua vida e era definida pelo pescador negro como “A mulher mais linda que eu já vi na vida”. Jacaré colecionava tudo que saía na impressa sobre Sylvie, que era uma artista francesa. Em uma reportagem, leu que Sylvie mencionava seu desejo de retornar ao Brasil para reencontrar uma antiga paixão, que pela descrição, seria a que havia vivido com o pescador. O retorno de Sylvie fez com que Jacaré, sumariamente, abandonasse Janaína e passasse a ter um romance com Sylvie. No Final da novela, Jacaré percebeu que o amor pela negra Janaína era superior a paixão pela branca Sylvie. Assim o pescador que não gostava de trabalhar, terminou o romance com a francesa e realizou o grande sonho Janaína, que era casar vestida de noiva. Foto 115-Personagens Sylvie e Jacaré Fonte: Rede Globo, 2008 A proposta de negro/negra apresentada por Antonio Calmon, no folhetim Três Irmãs, veicula a idéia de negro/negra no plano da subalternidade em relação ao branco. 166 Embora a novela tenha sido uma das poucas dentre as analisadas nesta pesquisa, que apresentou um casal de personagens negros (Janaína e Jacaré), a veneração de Jacaré pela personagem branca Sylvie fazia menção explícita a sua condição de européia e branca, características estas que pesaram na decisão de Jacaré de romper com Janaina quando Sylvie retornou. Ainda sobre o personagem Jacaré, Calmon investiu no estereótipo do homem negro malandro “gente boa”, indisposto ao trabalho e explorador financeiro da namorada. A novela também reforçou, com este personagem, o estigma da hiperssexualização do negro, por meio do encantamento de Sylvie por uma suposta virilidade de Jacaré. Fanon (2008) ao problematizar sobre as dimensões políticas e subjetivas das relações interétnicas constituídas por relacionamentos seja entre a mulher negra e o homem branco, ou o homem branco e a mulher negra, localiza a vigência do ideal de embranquecimento como um agente propulsor do desejo interracial que é uma construção social lastreada na colonização. Segundo o autor, o racismo desencadeia no negro um desejo de embranquecer e ascender socialmente por meio de seus descendentes. Assim, para o negro, o elo afetivo com o branco seria uma chave para escapar da exclusão social. O homem negro percebe, no relacionamento com a mulher branca, seu ingresso e permanência em uma sociedade branca. Da mesma forma a mulher negra enxerga nos homens brancos a saída para conseguir gerar filhos mais claros. Essa lógica do embranquecimento está fortemente presente no folhetim Agora que São Elas (Rede Globo, 18hrs, 2003) escrita por Ricardo Linhares. Nesta novela os três personagens negros Vanusa, Rosemary e Wanderley eram irmãos e, ao longo da trama, somente se interessaram por brancos. A personagem negra que obteve mais destaque na trama foi Vanusa (Preta Gil), que não gostava de trabalhar, era extrovertida, ambiciosa, sensual e muito vaidosa. Sonhava em conquistar um marido rico. Ao longo da novela se envolveu com dois homens brancos, apontados por ela como bons partidos por serem ricos, Bruno (Daniel Àvila) e Vitório (Paulo Vilhena). Rosemary (Ildi Silva) era uma jovem esforçada, tímida, trabalhadora e uma cristã que seguia fielmente os preceitos de sua religião. Fugia de relacionamentos porque temia ser abandonada pelo marido, assim como a mãe havia sido. Rosemary despertou interesse do personagem branco Vinícius (Rodrigo Prado). 167 Foto 116-Personagens Vanusa e Rosemary Fonte: Rede Globo, 2003. Na trama, Wanderley trabalhava como motorista e segurança e morava na casa do patrão, Juca Tigre (Miguel Falabela), o vilão branco da novela. Era inconformado com a condição econômica da família, era venal, culpava a mãe pelo fato do pai ter abandonado a família e nutria uma paixão secreta pela filha branca do patrão, Sol (Francisca Queiroz). Alguns folhetins exploraram, com ares de amor platônico o encantamento de negros para com brancos. Esta foi a enunciação da personagem negra Luciana (Lucy Ramos) na novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs, 2008), escrita por Alcides Nogueira. Luciana era uma funcionária obcecadamente apaixonada por seu patrão, o personagem branco Dr. Daniel (Marcelo Antony). Luciana via em Daniel um príncipe capaz de fazê-la feliz e por isso chegou ao ponto de renegar e abandonar os próprios filhos, ainda pequenos, para poder se dedicar a tentar conquistar e perseguir a vida de seu chefe. Luciana vivia rondando misteriosamente todos os lugares que Daniel freqüentava. Daniel era o protagonista da trama e desprezava Luciana, porque amava uma mulher branca. O folhetim O Beijo do Vampiro (Rede Globo, 19hrs, 2002), escrita por Antonio Calmon, abordou na enunciação dos personagens negros, predominantemente, o fetiche interracial, através do amor platônico do negro pela branca e o fetiche interracial da mulher negra em torno da suposta virilidade do homem negro. Esse folhetim era ambientado na fictícia cidade de Maramores, situada no Estado do Rio de Janeiro. Na trama havia uma disputa entre o bem o mal, sendo que se tornava do “mal” quem fosse mordido por um vampiro, que se tornaria automaticamente um vampiro também. Neste folhetim Calmon colocou três personagens negros que eram membros de uma mesma família. A matriarca negra era Nadir (Zezé Motta), uma empregada domestica, considerada amiga e confidente da protagonista branca da novela, Lívia (Flavia Alessandra). Nadir teve mais cenas aconselhando e participando dos dramas da 168 patroa/amiga branca, do que interagindo com seu ex-marido Pedrão/Godzila (Toni Tornado) ou com seu filho Carlos (Sérgio Menezes). O personagem negro Pedrão/Godzila era um bandido que tentou assaltar o personagem Bóris (Tarsício Meira) que era um vampiro. Bóris o mordeu no pescoço, “vampirizando-o”. Após se tornar um vampiro recebeu o apelido de Godzila “O vampiro afro-brasileiro” e passou a servir a um capataz, o personagem vampiro branco Bóris, a quem devotava uma lealdade canina. Outros personagens brancos também foram “vampirizados”, mas não adotavam a mesma postura de Pedrão/Godzila, que agia como um capataz e segurança de Bóris. A postura do personagem Pedrão/Godzila expressava uma imagem do negro subalternizado, mesmo em um contexto fantasioso de vampiros. A novela explorou, também, por meio deste personagem a questão de uma suposta virilidade do homem negro. Pedrão/Godzila tinha sua virilidade enquanto “afrobrasileiro”, cultuada por sua namorada, a personagem branca Dra. Vampretta (Rosane Goffman) que era uma vampira branca que tinha fetiche sexual por homens negros. Foto 117-Personagem Pedrão/Godzila Fonte: Rede Globo, 2002. A novela trouxe ainda o personagem negro Carlos (Sérgio Menezes), um médico filho da personagem Nadir e de Pedrão/Godzila. Por ocasião da estréia da novela, foram feitas algumas reportagens alusivas ao fato do personagem Carlos ser médico e negro, pois até então, todas vezes que um personagem negro não figurava nos papeis tradicionais de negros e escravos, geralmente havia, por parte do autor, a intenção de discutir algo relacionado a discriminação racial. O ator Sérgio Menezes, em entrevista a Revista Isto é Gente, em 23/09/2002, se declarou entusiasmado com a possibilidade de interpretar um médico negro, encarando o personagem como uma possibilidade de combater o preconceito: “Um dos maiores prejuízos do nosso País foi o aspecto colonial, arcaico, mofado, que o português incutiu 169 sobre os negros. A gente vive o reflexo desse equívoco até hoje”, declarou. O ator, ao ler a sinopse do personagem, declarou que considerava ser um avanço o fato do personagem Carlos não representar um papel que costumava ser destinado a um ator negro: “Quando li o roteiro da novela vi que o personagem poderia ser feito por qualquer ator, eu, o Norton Nascimento ou o Murilo Benício, por exemplo”. Carlos teve poucas cenas que retratavam sua relação com sua mãe Nadir, que seguia trabalhando como empregada doméstica, enquanto ele era o único médico da cidade, ou em que convivia com o pai, que era assaltante e posteriormente virou vampiro, capanga de outro vampiro. Carlos nutria uma paixão platônica pela atendente de seu consultório, que era branca, a personagem Ciça (Bianca Castanho). A novela não fez nenhuma problematização no tocante a condição de negro do personagem, ou mesmo da discriminação racial. Carlos, mesmo sendo um profissional bem sucedido, se considerava inferior a mulher amada, vendo-a como uma mulher inatingível. Considero que a construção do personagem transmitia, de forma subliminar, a mensagem de que o fato de Carlos ser negro desautorizava-o a ser digno do amor de Ciça. Assim, referendava a premissa instituída pelo discurso colonial no imaginário coletivo brasileiro, de que o negro é inferior ao branco. Quando começaram a surgir personagens negros nas tramas, não mais restritos a papeis de escravos ou serviçais, era possível preliminarmente embarcar em uma leitura de que o papel historicamente condicionado ao personagem negro estaria sendo redimensionando. Entretanto, mesmo enunciado como médico, o personagem Carlos, tinha o mesmo comportamento submisso, tradicionalmente encontrado em grande parte dos personagens de escravos, empregados domésticos e motoristas das telenovelas brasileiras das décadas anteriores. A relação entre Carlos e Ciça pode ser classificada como o que Barros (2013) nomina de Síndrome de Cirilo. Cirillo é um menino negro, personagem da novela direcionada ao público infantil, Carrossel (SBT, 20hrs, 2012). Este folhetim é uma versão brasileira da novela homônima produzida no México pela emissora Televisa em 1988. No enredo em questão, Cirilo é humilhado e rejeitado pelo fato de ser negro, por Maria Joaquina, uma menina branca, rica e loira, por quem Cirilo é apaixonado. O garoto negro se esforça para ser aceito pela menina branca, sofre muito com a rejeição desta, mas não percebe como uma expressão de discriminação racial, simplesmente introjeta acriticamente a premissa de que é inferior, e por isso indigno do amor de Maria Joaquina. 170 Barros (2013) analisa que a relação entre Cirilo e Maria Joaquina detona toda historicidade constituída em torno das relações amorosas entre homens negros e mulheres brancas, mormente no contexto pós abolição da escravidão, pois estar com uma mulher branca significa mudar de status, evoluir e ascender socialmente. Fanon (2008) situa em pele negra, mas em mascara branca, o sujeito negro que é produzido no contexto resultante da colonização, que preconiza a inferioridade do negro em face da suposta superioridade do branco. A“Síndrome de Cirilo” esteve presente na novela Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007), escrita por Walcyr Carrasco. Nesta trama o personagem negro Barão (Aílton Graça), era um guru de uma organização secreta, liderada pela ambiciosa personagem branca Àghata (Claúdia Raia). Barão orientava as pessoas a conseguir o que desejavam. Entretanto, as vezes se atrapalhava nas previsões e orientações provocando confusões na vida de seus clientes. Barão morava em uma mansão, andava de carro de luxo com motorista, mas ainda assim era infeliz, porque não era correspondido no amor que sentia por Àghata, fazia de tudo para agradá-la, mas nunca realizou seu maior sonho que era receber um beijo da amada branca, que adorava tratálo da pior forma possível. Ághata ao longo da trama se envolveu com homens brancos. Foto 118-Personagem Àghata e Barão Fonte: Rede Globo, 2007. Sete Pecados abordou em seu enredo outra trama envolvendo o fetiche interracial, por meio da personagem negra Dóris (Lena Roque), uma faxineira que foi amante durante a vida inteira de um homem branco, Perseu (Zé Victor Castiel), que alegava ser separado da sua mulher, mas tinha uma outra família branca. Dóris vivia triste com as ausências de Perseu, que afirmava ser representante comercial e por isso tinha que viajar sempre. Dóris era mãe do negro Leonardo (Rafael Zulu), que era garçom e desconhecia que seu pai Perseu tinha outra família, chegando a se interessar por sua meia-irmã branca Irene (Carina Porto). Já o folhetim Cordel Encantado (Rede Globo, 18hrs, 2011), assinada pela dupla de novelistas Duda Rachid e Thelma Guedes, abordou o fetiche interracial com ênfase 171 na questão da mestiçagem. Esta novela era materializada a partir das lendas do sertão nordestino, em especial o culto a realeza européia, que eram temas abordados nos poemas de cordel originários da Europa da idade média, apropriados e resignificados por cantadores nordestinos no século XIX. Esta novela apresentou cinco personagens negros, sendo que quatro eram membros de uma mesma família, chefiada por Damião (Tony Tornado), trabalhador braçal de uma fazenda, casado com a personagem branca Amália. Este casal teve quatro filhos, três negros, Maria Cesária (Lucy Ramos), Juca (Max Lima) e Tibungo (Land Vieira), e um branco de cabelo ruivo, Galego (Renan Ribeiro), que por ser diferente dos irmãos, levantava suspeitas de que seria fruto de uma traição de Amália. Damião hostilizava e rejeitava Galego, somente fazendo as pazes com o filho no final da novela, quando teve a certeza de que o rapaz, embora branco e ruivo, era mesmo seu filho biológico. Foto 119 -Personagens Damião e Galego Fonte: Rede Globo, 2011. A jovem Maria Cesária (Lucy Ramos) era uma eximia cozinheira e atuava como amiga e cúmplice da protagonista branca Doralice (Nathalia Dill). Por ser bonita, sensual e pura, o rei Augusto (Carmo Dalla Vecchia) se apaixonou por ela e, posteriormente, casou-se com ela, apresentando assim mais uma vez, o estereótipo da mulher negra que sonha com um príncipe europeu branco. Foto 120-Personagens Rei Augusto e Maria Cesária Fonte: Rede Globo, 2011. 172 O personagem Juca (Max Lima) era o filho caçula de Amália e Damião, um adolescente que pela menina branca Lady Cecília (Sofia Terra) e trabalhava na prefeitura local. Já o jovem Tibungo (Land Vieira) era o filho mais velho de Damião e Amália e ficou muito tempo a serviço dos vilões da novela, para o desgosto de sua família que também era prejudicada com suas maldades. Este personagem encenou o estereotipo do negro marginal, que usa o crime para prevalecer na vida. Construído sob este mesmo molde, mas com menor participação na trama, o personagem negro Ventania (Renan Monteiro) que era um inescrupuloso jagunço que trabalhava a serviço dos vilões. Foto 121-Personagens Tibungo, Amáia e Maria Cesária Fonte: Rede Globo, 2011. Fanon (2008) analisou os elementos políticos e subjetivos que constituem o racismo colonial que opera pelo estabelecimento de contrastes, e que de maneira maniqueísta contrapõe brancos e negros, apresentando e qualificando os negros como um produto do colonialismo. A partir da lógica do branco colonizador, ocorre uma patologização dos negros enquanto sujeitos regidos pelo biológico, eminentemente sexuais e incivilizados. A análise dos enredos das telenovelas apontou que estas materializam narrativas sobre relações entre personagens negros e brancos a partir de uma proposta de interracionalidade que é estabelecida pelo escalonamento de um fetiche interracial orientado por uma suposta hiperssexualidade de negros e negras. Nesta dinâmica, o fetiche interracial leva água para o moinho da mestiçagem no Brasil com vistas ao embranquecimento populacional, e assim contribui para referendar o mito da democracia racial, instituindo uma proposta de interracionalidade unilateral, centrada no sujeito branco. Este processo atua também mascarando o contexto de exclusão e 173 repressão impostos pelas relações raciais, difundindo falaciosamente uma suposta igualdade de direitos e oportunidades entre brancos, mestiços e negros. 174 6 NOVAS NOVELAS, VELHOS PERSONAGENS NEGROS O perfil típico de um personagem negro em uma telenovela brasileira reside no estereótipo de escravos ou empregados rurais ou domésticos. Esta proposta de personagem negro é lastreada nas relações coloniais, e foi proposto desde os primórdios das telenovelas e ainda tem sido frequentemente adotado em muitas tramas contemporâneas. Como exemplo, destaco que os novelistas Benedito Ruy Barbosa, Walcyr Carrasco, Walter Negrão, Alcides Nogueira e Mário Prata escreveram novelas de época ou regionalistas e, nestes enredos, enunciaram personagens negros construídos com base em uma racionalidade colonial, que os apresenta de forma equivalente, seja figurando como escravos ou como leais empregados domésticos ou rurais e capangas de patrões brancos. Em grande parte das tramas etnografadas os/as personagens negros apareciam sem que suas famílias negras fossem retratadas na trama, contexto este presente desde os primórdios da telenovela brasileira, pois os primeiros personagens negros nas folhetins nacionais eram empregadas domésticas, babás, caseiros, motoristas, cozinheiras, garçons, garçonetes e capangas. Classifico estes perfis como papeis típicos de personagens negros, que encontrei na totalidade de telenovelas que analisei ao curso desta investigação. Estes personagens figuram em relação às famílias brancas para as quais trabalham e onde moram e por isso suas famílias não são veiculadas. Construo minha argumentação partindo da novela Esperança (Rede Globo, 21hrs, 2002) escrita por Bendito Ruy Barbosa. Este folhetim era ambientado na cidade de São Paulo-SP, na década de 30, sob o contexto da questão da industrialização no Brasil. Benedito Ruy Barbosa não concluiu esta novela, sendo substituído pelo autor Walcyr Carrasco. A novela apresentou cinco personagens negros, sendo que apenas a personagem Júlia (Sharon Menezes) teve significativa participação da trama. Júlia era uma serviçal da casa da baronesa do café Francisca (Lúcia Veríssimo). Gostava de ler, adquiriu hábitos e comportamentos refinados em função do convívio com a família à qual servia desde menina. Oferecia aos patrões uma lealdade plena, nutrindo por estes um enorme senso de gratidão. Por isso era considerada uma serviçal de confiança. Era muito próxima da filha da patroa, a jovem Beatriz (Miriam Freeland), que ensinou-lhe a ler e a escrever. A serviçal negra, por sua vez, incentivou Beatriz a abrir a escola para alfabetizar as crianças pobres da região e, nas poucas ausências de Beatriz, Júlia deu aulas aos alunos. Ao longo da trama, foi revelado que Júlia era filha bastarda do seu 175 falecido patrão, o barão de café Marcílio Moreira Alves (José Augusto Branco) com uma escrava, origem esta que todos, inclusive Júlia, desconheciam. A narrativa sugeria que Júlia era inteligente por ser filha, ainda que bastarda, de um homem branco, um barão do café. Alguns personagens negros apareceram na novela com uma reduzida carga dramatúrgica, apenas em cenas nas quais exerciam suas funções, sempre subalternizadas a superiores e/ou patrões brancos. Este foi o contexto dos personagens Nhá Rita (Chica Xavier), que era uma serviçal, idosa, que tinha comportamentos e discursos que pouco se diferenciavam dos de uma escrava. De igual forma agia o personagem Chiquinho Forró (Cosme dos Santos), que era trabalhador na fazenda de café. Os demais personagens negros da novela Esperança não foram fixos, aparecendo em alguns capítulos, sempre em interface com a trama de personagens brancos. Este foi o contexto do personagem Matias (Milton Gonçalves), um estivador do cais, e sua esposa Noêmia (Kenya Costa) que apareceram em alguns capítulos quando abrigaram o protagonista branco Toni (Reynaldo Giannechini), quando este chegou ao Brasil, após fugir da Itália. A narrativa da novela Esperança deu pouca visibilidade aos personagens negros. Talvez preso ao esforço da necessidade de dar verossimilhança histórica a sua novela épica, o autor desconsidera o entendimento de que priorizou abordar o contexto da formação do movimento operário e das revoluções dos anos 30, na cidade de São Paulo, enquanto construtos apenas de sujeitos brancos. Posteriormente Benedito Ruy Barbosa escreveu o folhetim Sinhá Moça (Rede Globo, 18hrs, 2006), uma adaptação do romance homônimo de Maria Dezonne Pacheco Fernandes. Embora o autor em foco tenha figurado como co-autor da primeira versão da adaptação do romance para o formato teledramatúrgico, em 1986, a versão de 2006 foi apresentada não como um remake, mas como uma nova versão, haja visto que o autor fez uma nova adaptação do romance. Este folhetim era ambientado no ano de 1886 e abordava diretamente o contexto político da luta abolucionista. Em seu enredo trouxe dezessete personagens negros. A personagem Virgínia/ Bá (Zezé Motta), era uma escrava que foi ama de leite da filha do Barão de Araruna (Osmar Prado), a Sinhá Moça (Debora Falabela), por isso era chamada de Bá. Virgina/Bá teve um único filho, que lhe foi tirado pelo patrão e vendido num lote de escravos. Devotou à filha de seus patrões um amor intenso e maternal, porém sempre nutriu a esperança de reencontrar seu filho biológico, que era fruto do 176 relacionamento com seu único e secreto amor: o personagem negro Pai José (Milton Gonçalves). Foto 122-Personagens Virginia/Bá e Sinhá Moça Fonte: Rede Globo, 2006. Pai José era um negro idoso, que apesar de já ter 80 anos continuava forte e lúcido. Na juventude foi transformado em escravo reprodutor, por isso tinha incontáveis filhos, netos e bisnetos. Quando envelheceu, passou a sonhar com a liberdade para os negros, por isso morreu no tronco como castigo por seus devaneios abolucionistas, açoitado pelo Feitor (Humberto Martins). Mesmo depois de sua morte, continuou aparecendo em cenas de flashbacks. Era pai de Maria das Dores (Cris Vianna), Justino (Alexandre Moreno) e Fulgêncio (Sérgio Menezes). Maria das Dores (Cris Vianna) era uma escrava alforriada que teve um envolvimento com o vilão branco da novela, o Barão da Araruna, com quem teve um filho branco, Rafael (Lucas Rocha). Fulgêncio (Sérgio Menezes) era um escravo inteligente, que tentava fugir da fazenda e por isso sofria severos castigos. Após ser recapturado em uma tentativa de fuga, respondeu com atrevimento ao seu senhor, o Barão de Araruna, que lhe submeteu a chicotadas. Uma delas, acidentalmente, atingiu um dos olhos do escravo, o que causou uma enorme infecção que fez com que o negro perdesse também a visão do outro olho e ficasse completamente cego. Nesta ocasião os demais escravos ensaiaram uma revolta, que foi arrefecida diante do ato de “bondade” e “sensibilidade” da filha do Barão, que se comoveu com o sofrimento do escravo. Após ficar cego, Fulgêncio ficou com problemas mentais e passou a vagar ao esmo pela fazenda dos patrões. 177 Foto 123-Personagem Fulgêncio e Justino Fonte: Rede Globo, 2006. Já o personagem Justino, era um escravo que ostentava porte diferenciado dos demais negros, afirmava ser filho de um rei africano, desconhecendo que era filho de Pai José. Era um excelente capoeirista e nutria um ódio silencioso por todo e qualquer branco. Era apaixonado pela escrava Adelaide (Lucy Ramos), porém sabia que a única forma de ficarem juntos seria através de libertação da condição de escravos. Lutava a todo custo pela libertação, fosse por meio de fuga ou pela causa abolicionista. Quando Adelaide se apaixonou por um branco, passou a persegui-la e atrapalhar a vida da moça. Adelaide era uma mulata que vivia triste e revoltada na senzala e lutava para se manter virgem diante o assédio sistemático que sofria dos brancos, especialmente do capanga branco Honório (Osvaldo Baraúna). No inicio da trama, amava Justino, mas não se entregava sexualmente a ele, porque não queria gerar crianças para serem escravas. Informada acerca da lei do ventre livre, manteve-se decida a não ser mãe, porque não entendia a eficácia de uma lei que prometia libertar os filhos e, ao mesmo tempo, manter as mães escravizadas. Adelaide ganhou a simpatia da filha de seus donos, a Sinhá Moça, que a levou para viver na casa grande, como sua dama de companhia. Aprendeu regras de etiqueta e se alfabetizou. Ao longo da trama, se apaixonou por um homem branco, o filho de fazendeiros, José Coutinho (Eduardo Pires), um jovem escolarizado defensor de ideais abolucionistas, que ao final da trama se casou com Adelaide, para desespero de Justino. Foto 124-Personagens Adelaide e José Coutinho Fonte: Rede Globo, 2006. 178 Dentre os negros, havia um enunciado como vilão, o personagem Capitão do Mato (Mauricio Gonçalves). Era um capataz, especialista em perseguir escravos fujões, que alegava ter um excelente faro e nunca ter perdido uma vítima. Aparentava sentir prazer em ferir negros escravos e não reconhecia neles nenhum laço de identidade com eles. Foto 125-Capitão do Mato Fonte: Rede Globo, 2006. A novela trouxe a personagem Ruth (Edyr Duqui), que era uma escrava que ao ser comprada foi imediatamente alforrida, passando a trabalhar como empregada doméstica remunerada. Grata aos patrões, servia-os com extrema lealdade, especialmente ao branco Ricardo (Bruno Gagliasso). Os demais personagens negros da novela Sinhá Moça eram escravos, que somente apareciam em função de servir aos personagens brancos, ou para imprimir veracidade a uma trama que era ambientada no contexto da escravidão. Era este o contexto do personagem Bastião (Fabrício Boliveira), um escravo esperto, que tinha a mesma idade da Sinhá Moça, era cúmplice da patroa, bem como atuava como um mediador entre ela e os demais escravos. Já o escravo Bentinho (Alexandre Rodrigues), não se conformava de ter nascido um dia antes da promulgação da lei do ventre livre. Revoltado por viver na senzala, odiava Bastião pelo fato deste poder viver na casa grande. Bentinho era inteligente e esperto e quando foi comprado pelo Branco Rodolfo (Danton Mello), sentiu-se valorizado, passando a devotar ao novo dono lealdade, ajudando-o no romance com a Sinhá Moça. A novela tinha também alguns personagens negros que integravam o núcleo de negros que lutavam pela abolição da escravidão pelo viés das fugas ou revoltas. Este era o contexto dos personagens Pedro (Joaquim de Castro) e Tomás (Alexandre Sil), que eram escravos que tentavam fugir do Barão de Araruna, sob o comando do escravo Justino. Porém, foram recapturados e continuaram a viver sob o jugo do proprietário branco. 179 O folhetim Sinhá Moça apresentou outros seis personagens escravos, Luiz (André Vieira), Tobias (Clementino Kelé), Bento (Marcelo Batista), Balbina ( Rosamarya Colin), e dois outros que apenas figuraram como escravos, sem ter seus nomes mencionados na trama, os atores (Creo Kellab e Derio Chagas) A trama Sinhá Moça, desde a primeira versão exibida em 1986, inovou no segmento telenovela ao propor uma leitura menos “romanciada” do contexto da luta pela abolição, sugerindo que os próprios negros também foram ativos no processo de libertação. Entretanto, ainda legitimava a nobreza dos sujeitos brancos, em especial da Sinhá Moça, que se compadecia do sofrimento dos negros e, por isso, conseguia, por parte deles, um senso de gratidão que gerava, por sua vez, uma conformação com sua condição de escravos, desestabilizando alguns movimentos de revolta dos escravos. A novela seguinte assinada por Benedito Ruy Barbosa foi um remake do folhetim Paraíso (Rede Globo, 18hs, 1982). A segunda versão de Paraíso (Rede Globo, 18hrs, 2009), abordava o universo rural brasileiro, sendo ambientada na fictícia cidade de Paraíso, localizada no Estado do Mato Grosso. Esta trama trouxe nove personagens negros, mas estes tiveram pouca participação no enredo . Dentre os que mais se destacaram estava o negro Tobi (Alexandre Rodrigues), que era um empregado da fazenda de Eleutério (Reginaldo Faria). Tobi era admirador do patrão e aprendeu com ele a “fantasiar” acerca dos causos que contava. Atuava na fazenda como um moleque de recados, até que se encantou com a comitiva do peão branco Zeca (Eriberto Leão) e decidiu ser um peão também. Apaixonou-se e casou-se com a também negra Das Dores (Lidi Lisboa), uma empregada que trabalhava na pensão da branca Ida (Walderez de Barros), que era muito assediada pelos hóspedes da pensão por conta de sua beleza e sensualidade, porém era fiel a Tobi. Foto 126-Personagens Das Dores e Tobi Fonte: Rede Globo, 2009. Já a personagem negra Cleusinha (Lucy Ramos), era uma jovem que, ao lado de duas amigas brancas (Uma de cabelo preto, e outra de cabelo loiro), se reunia para comentar sobre a vida dos moradores da cidade e para tentar conquistar algum namorado. 180 Foto 127-Personagem Cleusinha Fonte: Rede Globo, 2009. Apostando no estereótipo da sensualidade da mulher negra, a novela trouxe a personagem Candinha (Cris Vianna), uma empregada doméstica que era apaixonada pelo patrão branco, Antero (Mauro Mendonça). Justificava o romance extraconjugal que mantinha com o patrão no fato da esposa do patrão, Mariana (Cássia Kiss), se recusar a manter relações sexuais com o marido e só querer saber de rezar e cuidar das coisas da igreja. No final da novela, Antero assumiu o romance com Candinha. Foto 128-Personagens Antero e Candinha Fonte: Rede Globo, 2009. Os demais personagens negros não tiveram carga dramatúrgica direcionada a explorar relacionamentos afetivos ou familiares, apenas apareceram exercendo suas profissões. Este foi o caso dos personagens Zé do Correio (Cosme dos Santos), funcionário dos correios, conhecido por ser muito comunicativo, era também responsável por distribuir os jornais que chegavam na cidade. Entretanto, antes de entregá-los, lia alguns periódicos e acrescentava comentários pessoais. O personagem negro Capita (Gésio Amadeu), era o motorista do único táxi que circulava na cidade e só teve cenas atuando enquanto taxista. O personagem Tião (Jorge Lucas) só teve cenas enquanto empregado rural, da mesma forma pela qual foi enunciada a personagem negra Efigênica (Luciana Barbosa). O remake da novela Cabloca (Rede Globo, 18hrs, 2004), feito pelas novelistas Edmara e Edilene Barbosa, seguiu o estilo dramatúrgico do pai Benedito Ruy Barbosa, mormente na estratégia de enunciação dos personagens negros. A trama apresentou nove personagens negros, sendo três envoltos em um triângulo amoroso que tinha ares 181 de comédia e os demais só tinham função na trama figurando no entorno do enredo de personagens brancos. A personagem negra Julieta (Roberta Rodrigues) era empregada do coronel Justino (Mauro Mendonça) e só teve cenas servindo seus patrões brancos. A serviçal negra Maria (Edyr Duqui), igualmente, só teve cenas desempenhando seu trabalho, assim como o capanga negro (André Vieira) cujo personagem nunca teve o nome pronunciado na trama. Um menino negro (Rapahel Rodrigues) só aparecia em algumas cenas e os atores Marcelo Capobiano e Renata di Carmo, que figuravam para dar veracidade as cenas que exploravam contextos de trabalhadores rurais e também não tinham nomes na trama. As novelas de época de Walcyr Carrasco também reproduziram uma proposta de construção do negro que pouco variava se este figurava como um escravo ou um empregado doméstico ou rural. Na novela A Padroeira (Rede Globo, 18hrs, 2001), ambientada no Brasil colônia, tinha trama datada de 1717. Sua narrativa, foi construída na interface do contexto do mito da aparição da Santa Nossa Senhora Aparecida, considerada pela Igreja Católica como a padroeira do Brasil. A novela tinha como pano de fundo a escravidão negra e apresentou sete personagens negros como escravos. O personagem negro que teve mais destaque foi Zacarias (Norton Nascimento), que apesar de ser um escravo obediente, era torturado constantemente por seus senhores brancos, Fernão (Mauricio Mattar) e Imaculada (Elizabeth Savalla). Era um negro que defendia, junto aos outros escravos, o culto à Nossa Senhora Aparecida. Em um momento da novela. quando tentava fugir e foi capturado, Zacarias rogou pela intervenção da Santa e viu seus grilhões de abrirem. Diante do ocorrido, um branco com posses, Dom Antonio (Stênio Garcia) enfrentou a resistência da dona do escravo e comprou sua liberdade. Zacarias, era um escravo que desenvolvia amizade com personagens brancos, o que fazia com que introjetasse os valores religiosos ligado a igreja católica. Foto 129-Personagem Zacarias Fonte: Rede Globo, 2001. 182 A personagem Imaculada era uma sinhá branca que era a vilã da trama. Era cruel com seus escravos, especialmente os adolescentes Cosme (Samuel Melo) e Damião (Luis Antônio Nascimento). Ambos trabalhavam como mucamos de Imaculada. Ao longo da novela foi revelado que os irmãos eram filhos do Marido de Imaculada e este deixou, em testamento, sua fortuna para os filhos bastardos que teve com a escrava Rosário (Cyda Moreno), que foi vendida por Imaculada para afastá-la dos filhos. Quando Rosário foi reencontrada, assumiu parcialmente a herança e passou a se agir como a dona da casa, e transformou a Imaculada, que ficou na miséria após a leitura do testamento do marido, em sua mucama. Entretanto, o testamento constituía Dom Fernão, filho de Imaculada e do marido, como curador. Este, inconformado com o testamento, repudiava Cosme e Damião como irmãos, se utilizava da condição de administrador da fortuna para se vingar de Rosário e dos filhos, repassando mensalmente uma quantia pequena de recursos. Após receber a herança, Rosário vestiu-se como uma rainha africana, adornada com búzios e alforriou sua amiga negra Eusébia (Mariah Penha), que cuidou de Cosme e Damião, e passou a viver vestida como uma sinhazinha branca, com vestidos de saia balão e peruca empoada. Foto 130-Personagens Rosário e Cosme Fonte: Rede Globo, 2001. A novela trouxe ainda outras escravas que viviam buscando homens brancos que lhes dessem “vida de branca”. Brásia (Lidiane Lisboa) rejeitava o amor oferecido pelo escravo Gil (Fernando Almeida), porque sonhava em conquistar um branco que lhe desse a alforria. Pureza (Iléa Ferraz) era uma escrava que posava de inofensiva, desinteressada, mas também traçava planos de conquistar um branco, para assim se livrar de sua dona Blanca (Patricia França). Já a escrava Clarice (Isabel Fillards), conseguiu engravidar de um branco e passou a viver maritalmente com ele. Considero que os personagens negro/negras de A Padroeira materializavam escravos que introjetavam passivamente a lógica colonial, expressavam a fé católica 183 sem nenhuma referência as religiões de matriz africana, buscavam ligações com brancos com vistas a conseguir a alforria e aceitação social. No folhetim Chocolate com Pimenta (Rede Globo, 18hrs, 2003), inspirado na opera A viúva alegre de Franz Lehár, Carrasco novamente produziu uma trama épica, ambientada desta vez em uma cidade fictícia chamada Ventura, localizada no Sul do Brasil. Esta trama seguia o estilo comédia romântica e era, temporalmente, referenciada nos anos 20, com seis personagens negros/ negras. Quatro personagens negros de Chocolate com Pimenta eram integrantes de uma mesma família, formada por quatro irmãos órfãos, que reforçavam o estereòtipo da família negra desajustada. Esta família era chefiada por Verinha (Sabrina Rosa), uma cabeleireira bonita e muito alegre, que era também uma mulher batalhadora, que muito cedo teve que se responsabilizar pela criação dos irmãos mais novos Jóia (Luiz Antônio), Beleza (Samuel Mello) e Selma (Juliana Alves), que eram o foco de suas preocupações. Verinha era apaixonada pelo branco Beto (Alexandre Barilari) e este, por sua vez, era interessado em Selma, irmã mais nova de Verinha. Foto 131-Personagens Selma e Mauricio Fonte: Rede Globo, 2003. Selma morou um tempo de sua infância com sua madrinha branca e era inconformada com o fato de ter que trabalhar em vários empregos para ajudar em casa e na criação dos irmãos mais novos. Era apaixonada por um homem branco, Mauricio (Victor Pecoraro), que também gostava dela, mas relutou em viver este sentimento sem deixar claro os motivos, deixando que o telespectador interpretasse se eram barreiras econômicas e/ou o fato da moça ser negra, que constituíam obstáculos para formalizar um namoro com Selma. 184 132-Personagens Selma, Beto, Beleza, Jóia, Mauricio e Verinha Fonte: Rede Globo, 2003. Já o adolescente Jóia (Luiz Antônio), cujo nome era Victor, só era chamado pelo apelido. Era muito preguiçoso e divertido, enganava as irmãs mais velhas e outros adultos para obter vantagens, não gostava de estudar, influenciava “negativamente” outras crianças e adolescentes, incitando-os a ingressar em um grupo que fazia pichação nos muros da cidade. O personagem Beleza (Samuel Mello), irmão mais novo de Verinha, Selma e Jóia, tinha o nome de Vinicius. Estava sempre envolvido nas traquinagens do irmão, embora fosse mais medroso e, temendo as conseqüências dos planos do irmão, sempre o obedecia, formando a temida dupla de irmãos “Jóia e Beleza”. Este personagem era o protótipo, construído por Carrasco, do negro delinqüente e malandro na fase adulta. Expressando o estereótipo da criança/adolescente negra em situação de vulnerabilidade social e alvo da caridade de branco, a novela trouxe a menina negra Darlene (Sabrina de Souza), que não tinha família e era criada, sob maus tratos, pela vilã branca Jezebel (Elizabeth Savalla). A protagonista branca da trama, Ana Francisca (Mariana Ximenes), se comoveu com o sofrimento da menina negra e retirou-a do jugo imposto por Jezebel, levando-a para fazer companhia ao seu filho Tonico (Guilherme Vieira), um menino branco e rico, porém triste. A menina negra conseguia diverti-lo. O desfecho feliz para Darlene foi a chegada da sua mãe negra, que a havia abandonado, Inácia (Viviane Porto), que era uma empregada doméstica que se empenhou em se aproximar e conquistar o amor da filha. 185 Foto 133-Personagens Inácia e Darlene Fonte: Rede Globo, 2003. Carrasco escreveu outra trama épica, ambientada também em meados dos anos 30, o folhetim Alma Gêmea (Rede Globo, 18hrs, 2005). Tratava-se de uma trama romântica, contextualizada na religião espírita. Esta novela apresentou quatro personagens negros. A personagem negra que mais obteve destaque foi Sabina (Aisha Jambo), que trabalhava como assistente do terapeuta Julian (Felipe Camargo). Sabina se envolveu com o branco Hélio (Erick Marmo), que trabalhava como sapateiro com o pai. Inicialmente era apaixonado pela protagonista branca da trama, Serena (Priscila Fantin), como esta não o correspondeu, interessou-se por Sabina. A novela abordou diretamente a questão da discriminação racial em tom de comédia. Como o relacionamento entre Hélio e Sabina ser reprovado pela família do rapaz, a matriarca da família Ofélia (Nicette Bruno) adjetivava a moça negra como “torradinha” e “escurinha”. No final da novela os jovens se casaram. Foto 134-Personagens Hélio e Sabina Fonte: Rede Globo, 2005. Os outros três personagens negros de Alma Gêmea eram membros de uma mesma família, que era chefiada pelo pai Abílio (Ronnie Marruda), que trabalhava como gerente geral da empresa do protagonista branco da novela Rafael (Eduardo Moscovis). Abílio era casado com Clarice (Mariah da Penha) e pai de Paulina (Pamella Rodrigues), uma menina inteligente, que estudava balé com a professora branca Vera (Bia Seidl). 186 Foto 135-Personagem Abílio Fonte: Rede Globo, 2005. Abílio era casado com Clarice (Mariah da Penha), uma professora infantil que adorava ensinar, e trabalhava também como cartomante nas horas vagas. Tinha como cliente fiel a branca Olivia (Drica Moraes), que era desesperada para conseguir um marido. Foto 136-Personagens Olivia e Clarice Fonte: Rede Globo, 2005. Mesmo no folhetim Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007), que era uma trama contemporânea e urbana, o novelista Walcyr Carrasco apresentou negros pensados a partir de uma lógica escravagista. Destaco a personagem Fátima (Isabel Fillards), que era enunciada sob o estereótipo da negra que é alvo da caridade de brancos e que figurava na trama como uma órfã que foi amparada pelo casal branco Dante (Reynaldo Gianecchini) e Clarice (Giovanna Antonelli), que se comoveram com o drama de Fátima, uma adolescente em situação de rua. A negra, como sinal gratidão, ajudava sua benfeitora branca nas atividades domésticas e no trato com as crianças do casal. Alcides nogueira ao escrever a novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs, 2008), também enunciou personagens negros em uma estereotipia de subserviência a personagens brancos. Esta trama tinha sua sinopse inspirada em um conto homônimo da Lygia Fagundes Telles e era ambientada nos anos 40 do século XX e localizada na capital paulista. 187 Esta novela trouxe três personagens negros, sendo que a personagem negra Jovelina (Olivia Araújo) teve mais cenas na novela. Jovelina era uma manicure que protagonizava cenas de humor ao lado do patrão branco Memé (José Rubens Chachá), que era um apaixonado pela política praticada pelo então presidente da república. O momento áureo da personagem Jovelina, foi quando a apresentadora de televisão branca, Eunice Jardim (Regina Casé), foi ao encontro da manicure negra para conhecer o dom que esta alardeava ser possuidora, que consistia na capacidade de ler o futuro das pessoas pelas suas respectivas unhas. Foto 137-Personagens Jovelina e Eunice Fonte: Rede Globo, 2008. A segunda personagem negra da novela Ciranda de Pedra foi Luciana (Lucy Ramos), uma funcionária obcecadamente apaixonada por seu patrão, o personagem branco Dr. Daniel (Marcelo Antony). Por último, o personagem negro Emiliano (Samuel Assis) somente teve cenas no início da trama como um químico muito atrapalhado, que trabalhava na metalúrgica dos protagonistas brancos da trama. À época da novela, uma matéria publicada no portal Terra Diversão em 13/06/2008, noticiava que o personagem Emiliano havia passado por uma avaliação interna feita pelos diretores da Rede Globo, que deliberaram que o personagem “não funcionou”. Foto 138-Personagem Emiliano Fonte: Rede Globo, 2008. 188 A reportagem citada afirmava, ainda, que o personagem sairia da trama sem despedida, ficando a indicação de que teria recebido uma proposta de trabalho em outra cidade. O texto é encerrado com a divulgação de que no lugar do personagem Emiliano, entraria na trama o personagem Adonir (Gabriel Wainer). Foto 139-Personagem Adonir Fonte: Rede Globo, 2008. Adonir que era branco e loiro e faria par romântico com a personagem descendente de orientais, Alice (Danielle Suzuki). Foto 140- Personagens Alice e Adonir Fonte: Rede Globo, 2008. Os três personagens negros de Ciranda de Pedra não tinham uma trama própria. Existiam em função dos personagens brancos e somente estavam presentes em cenas em que personagens brancos tinham destaque e mais falas. Ainda assim, destaco que este folhetim registrou a maior presença de personagens negros dentre as novelas escritas por Alcides Nogueira. O quantitativo de dois foi o número máximo de personagens negros presentes na primeira novela escrita por este novelista. Sua segunda e terceira novelas não apresentaram nenhum personagem negro, bem como a última, escrita antes do período das discussões sobre as cotas raciais em telenovelas, que só trouxe um único personagem negro, e ainda com menos destaque do que os da novela Ciranda de Pedra. Neste horizonte, considero que a presença de três personagens negros na novela Ciranda de Pedra sinaliza que o autor teria de algum modo, encampado a preocupação de assegurar a presença de personagens negros nas tramas e este processo indica ser um desdobramento da proposição e repercussão em torno das cotas raciais na mídia brasileira a partir de 2001. 189 A trama Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005), escrita por Mário Prata e Carlos Lombardi, era ambientada no faroeste americano. Entretanto, seu enredo enunciou personagens negros construídos a partir de uma subjetividade que fazia coro a experiência brasileira de relações coloniais. Esta trama apresentou uma família negra, formada pelo casal Zulma (Sônia Siqueira) e Sam (Luiz Melodia) e pelo filho Bike-Boy (Raphael Rodrigues). Zulma era uma empregada doméstica que foi apresentada como uma eterna babá, muito leal e dedicada a sua patroa branca Miriam Viridiana (Joana Fomm). Zulma tinha mais cenas servindo à patroa do que interagindo com seus familiares negros. Nesta mesma perspectiva se materializou a construção de outro personagem, um pianista, que quase não tinha falas, sempre aparecia tocando em um bar e o foco da cena era o diálogo entre personagens brancos. Foto 141-Personagem Zulma Fonte: Rede Globo, 2005. Bike-Boy somente era chamado por este apelido, sendo que nunca seu nome de batismo foi mencionado. Fazia entregas por toda a cidade, fazendo manobras audaciosas, usava nas poucas falas que tinha um vocabulário recheado de gírias e apresentava o comportamento de um malando que queria se dar bem sem esforço. Era melhor amigo do personagem branco Pablito (Humberto Carrão). Foto 142-Personagem Bike-Boy Fonte: Rede Globo, 2005. A novela trouxe a personagem Baiana (Thalma de Freitas), que foi apresentada como a única brasileira da cidade de Albuquerque. Trabalhava como cozinheira de um 190 hotel e agradava a todos com suas receitas brasileiras. Praticante de religiões africanas, Baiana teve cenas fazendo despachos e jogando búzios para personagens brancos, encenando assim o estereótipo, já folclorizado, da mulher negra residente no Estado da Bahia. Esta personagem tinha o histórico de ter sido comprada pelo personagem branco Bullock (Mauro Mendonça), por ocasião de uma viagem ao Brasil. Quando foi alforriada, escolheu ir morar na cidade do seu ex-senhor branco. Foto 143-Personagem Baiana Fonte: Rede Globo, 2005. Baiana se envolveu com o também personagem negro Charles Muller (Cássio Nascimento), um jornalista e editor do periódico da cidade que ambientava a trama. Charles era um homem idealista, e partidário de idéias democráticas. Era amigo do personagem branco Harold (Ricardo Tozzi), tendo mais cenas acompanhando o amigo, do que explorando o relacionamento com Baiana. Foto 144-Personagem Charles Muller Fonte: Rede Globo, 2005. Por fim, o personagem negro Rush (Cosme dos Santos) figurava na trama como ajudante do golpista, que se passava por falso xerife branco Gógol (Marco Ricca). Rush era um ex-presidiário e conheceu, na cadeia, o comparsa. Era visivelmente mais racional do que o parceiro de crimes, entretanto suas cenas eram sempre auxiliando Gógol, como um capanga ou serviçal. 191 Foto 145-Personagem Rush Fonte: Rede Globo, 2005. Já o autor Walter Negrão, na novela Como uma Onda (Rede Globo, 19hrs, 2004), apostou em apresentar uma trama que deu corpo ao primeiro folhetim da Rede Globo protagonizado por um ator estrangeiro (branco e europeu). A novela contava a saga de um açoriano que se instalou no litoral brasileiro. Esta novela era ambientada no litoral do estado brasileiro de Santa Catarina e apresentou cinco personagens negros, que eram membros de uma mesma família. A matriarca da família negra era Abigail (Thaís Garayp), que trabalhava como governanta e cozinheira e morava com sua família na casa dos fundos da mansão dos brancos, o núcleo familiar da protagonista da trama. Tratava-se de uma proposta de demarcação espacial que parecia fazer referência a idéia de Casa Grande e Senzala, desenhada por Freyre (1933). A personagem Nina (Alinne Moraes) via sempre em Abigail a figura de sua babá. Como empregada, Abigail era muito dedicada aos patrões, que lhe chamavam de “Biga”. Era casada com Balbino (Sirmar Antunes), com quem tinha os filhos Rosário (Sheron Menezes) e Franklin (Sérgio Malheiros). Balbino atuava como caseiro, jardineiro, eletricista e encanador da mansão dos patrões, era mau humorado com sua família, mas sempre cordial em servir ao seu patrão branco, a quem considerava um grande amigo. Foto 146-Personagem Abigail/Biga Fonte: www.teledramaturgia.com.br, 2014. A filha do casal, Rosário, era uma moça esforçada, que namorava o pescador branco Floriano (Cauã Reymond). Sonhava em se casar virgem com seu amado e 192 resistia às suas investidas no sentido de manterem relações sexuais antes do casamento. Os dois sonhavam com um barco próprio, onde poderiam morar e também permitir as pescas de Floriano. Após o casamento, os dois adotaram um menino branco. Foto 147-Personagens Rosário e Floriano Fonte: Rede Globo, 2004. Já o filho caçula de Abigail e Balbino, o menino Franklin, tinha acesso livre a casa dos patrões dos pais, brincando com crianças brancas filhas dos patrões, Gigi (Guta Gonçalves) e Rubico (Arthur Lopes), que compartilhavam com ele seus jogos e brinquedos caros. Quando brincavam e faziam alguma aventura, dentre as crianças, Franklin era o mais medroso. O menino tinha uma relação com o tio negro, Samuel (Nill Marcondes), que era irmão de seu pai Balbino. Samuel morava de favor na casa de Abigail e Balbino, que por sua vez moravam de favor na casa dos patrões brancos. Balbino implicava com o irmão Samuel, a quem considerava acomodado. Samuel era alegre, gostava de atividades físicas e trabalhava em agência de mergulhos. A trama Desejo Proibido (Rede Globo, 18hrs, 2007) era ambientada na década de 30, no fictício município de Passaperto, localizado no Estado de Minas Gerais. Nessa telenovela, Negrão apresentou cinco personagens negros, que eram secundários no folhetim. O enredo trouxe a família negra constituída pelo casal Faustino (Cosme dos Santos) e Doralice (Cinara Leal) e o filho Tonico (Carlos Miguel). Faustino era o caseiro que fazia tudo na fazenda da vilã branca Cândida (Eva Wilma). Doralice também trabalhava arduamente como serviçal dentro da casa e, também, nas demais atividades da fazenda. Mesmo muito dedicados à patroa branca e sua família, os empregados negros não eram reconhecidos por eles como os demais empregados brancos, eram constantemente alvos de tratamento ríspido. O tratamento dispensado a Faustino e Doralice fazia clara menção ao regime escravagista, mormente pelo enorme senso de gratidão que os dois sentiam em relação a patroa, pelo fato de pelo menos ter onde morar e trabalhar. 193 O menino Tonico não tinha brinquedos por que era pobre, brincava com outras crianças que eram brancas. Era aconselhado pelos pais a estudar, para ter um destino diferente dos pais. A novela Desejo Proibido era um romance açucarado e tinha poucos personagens cômicos. Um destes era personagem negra Cidinha (Mary Sheyla), que trabalhava como empregada doméstica e vivia se intrometendo nas conversas da patroa branca Magnólia (Nívea Maria) e suas filhas. Tentava conquistar o soldado negro Brasil (Nando Cunha), para quem vivia levando lanches. O soldado Brasil era um homem vaidoso e cuidadoso com sua farda. Era o ajudante do Delegado Branco Trajano (Cássio Gabus Mendes), e por comodidade, morava em umas das celas vazias da delegacia e, como não ocorriam crimes na cidade, o delegado atribuiu ao soldado negro a responsabilidade de cuidar de suas três filhas como se fosse um segurança. Brasil nutria uma paixão platônica por uma das filhas de seu superior, a jovem Teresa (Fernanda Paes Leme), que nunca lhe correspondeu. Foto 148-Personagens Cidinha e Soldado Brasil Fonte: Rede Globo, 2007. Destaco que nesta novela a atriz Thais Garyp, que por sua condição de mestiça pode interpretar uma personagem negra na novela Como uma Onda, em Desejo Proibido alisou os cabelos e foi enunciada como sendo uma índia, a personagem Iraci, que era mãe de uma mulher branca, Ana (Leticia Sabatela). Foto 149-Personagens Iraci e Ana. Fonte: Rede Globo, 2007. 194 O novelista Walter Negrão apostou, também, em apresentar negros em condição de subalternidade a pessoas brancas, e casais interraciais sem diretamente enfocar a questão da hiperssexualidade do negro/negra, especialmente na novela Araguaia (Rede Globo, 18hrs, 2010). Este folhetim tinha enfoque regionalista, era referenciado no entorno do Rio Araguaia, na fictícia localidade de Girassol, que fazia alusão geográfica aos Estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão e apresentou dez personagens negros. A novela trouxe a família negra formada pelo casal composto pelos negros Cícero (Gésio Amadeu) e Pérola (Tânia Alves). Cícero, que era chamado também de “Cirso” era um administrador de fazenda e uma espécie de “faz tudo” para seu patrão branco Max (Lima Duarte). Como empregado, Cícero não gostava do patrão, mas o respeitava pela necessidade do emprego. Foto 150 – Personagens Max e Cícero/Cirso Fonte: Rede Globo, 2010. Cícero era um homem simples, integro e religioso. Era devotado à esposa, que trabalhava como cozinheira, vendendo quitutes e marmitas para turistas que vinham visitar sua localidade. O casal tinha três filhas, Safira (Cinara Leal), Ametista (Nanda Lisboa) e Esmeralda (Raquel Villar). Moças essas as quais o pai chamava de “Jóias do Araguaia”. Estas três personagens negras trabalhavam como monitoras em uma empresa de turismo e sempre apareciam vestidas com roupas que permitiam exibir pernas e decotes. 195 Foto 151 – Personagens Safira, Esmeralda, Ametista e Pérola. Fonte: Rede Globo, 2010. A novela retratou poucas cenas de convivência familiar destes negros. Estes personagens apareciam mais desempenhando suas funções enquanto empregados/empregadas de patrões brancos, ao contrário das famílias brancas da novela que tinham várias cenas em que eram retratados convívios entre familiares. Ao longo da novela, o enredo abordou o fato de que Safira não era filha biológica de Cícero. A moça era fruto de um romance que a mãe teve e foi abandonada pelo parceiro, sendo que Cícero assumiu a gravidez de Pérola, tratando Safira da mesma forma que as demais. A personagem negra Yvete (Neusa Borges) era uma ex-moradora de rua, solitária, que vivia conversando com seu gatinho de estimação chamado “Cebola”. Tinha um amigo branco, chamado Gabriel (Juca de Oliveira) e trabalhava como enfermeira no posto de saúde da localidade, ajudando ao médico branco Ricardo (Eduardo Coutinho). A novela trouxe o personagem René/Palhaço Pimpinela (Nando Cunha), que era um artista circense, que apesar de alegre quando em público, era extremamente triste quando sozinho. Tinha horror as autoridades policiais, o que ao longo da trama foi justificado pelo fato de, ao ser acusado de assassinar uma ex-namorada branca, ter fugido, e como foragido ter se caracterizado de palhaço para não ser reconhecido pela família da vitima e também pela policia. O desfecho do mistério do personagem foi revelado coincidentemente na semana em que no Brasil é comemorado o Dia da Consciência Negra, com a seguinte narrativa: René e uma moça branca namoravam escondido da família da jovem, que não aceitava o romance por René ser negro. Assim, os pais da moça mandam um capataz matar o negro e o tiro acertou a moça. Como René fugiu, todos acreditavam que ele era o assassino. Ao longo da novela, René também se envolveu e teve um final feliz ao lado de outra mulher branca, Nancy (Mariana Rios). 196 Foto 152- Personagens René e Nancy. Fonte: Rede Globo, 2010. A novela em foco trouxe ainda os dois meninos negros, que eram órfãos, Edro (Cadu Paschoal) e André (Douglas Moreira), criados ao lado de outras crianças abandonadas pelo personagem branco Padre Emílio (Otávio Augusto). Contou tabém com a participação do personagem negro Marreta (Christovam Netto), um artista circense que se apresentava exibindo sua força física descomunal. Este personagem aparecia raramente na novela, sendo sua maior participação em um capítulo, quando ajudou, por dinheiro, o vilão branco da novela, Max (Lima Duarte) a destruir o circo no qual trabalhava, prejudicando seus amigos, e enunciando o negro como venal e criminoso. Foto 153-Personagens Marretta e Max Fonte: Rede Globo, 2010. A última novela de Negrão, produzida no período compreendido pelos marcos da pesquisa, foi Flor do Caribe (Rede Globo, 18hrs, 2013). Tinha narrativa com enfoque regionalista, era ambientada na fictícia localidade litorânea Vila dos Ventos, situada no Estado do Rio Grande do Norte. Este folhetim apresentou quatro personagens negros. O personagem negro Quirino (Aílton Graça) foi o que o obteve mais destaque na trama. Era um ex-seminarista que desistiu da vocação religiosa e adotou um filho branco, Juliano (Bruno Gissoni). No início da trama, era casado com a personagem branca Doralice (Rita Guedes). Como Doralice não podia ter filhos, assumiu a 197 maternidade do filho adotado pelo marido e adotou mais duas crianças, o menino negro Wiliam (Renzo Aprouch) e a menina negra, recém nascida, que recebeu o nome de Beatriz. Doralice se apaixonou pelo filho adotivo do marido, o personagem branco Juliano (Bruno Gissoni) e foi para um convento na tentativa de superar esta paixão, vista por ela como impura, já que Juliano a enxergava como uma mãe. Foto 154-Personagens Juliano e Quirino. Fonte: Rede Globo, 2013. Quirino, que trabalhou como motorista e professor de história, sofreu muito ao saber que sua esposa estava perdidamente apaixonada pelo seu filho adotivo Juliano. Seu consolo foi o romance com a personagem negra Nicole (Cinara Leal), que trabalhava como dançarina profissional. Foto 155-Personagens Nicole, Wiliam, Quirino e Doralice Fonte: Rede Globo, 2013. A novela trouxe ainda o personagem negro Alaor (Gésio Amadeu), que nunca teve sua família ou relações amorosas retratadas na trama. Suas cenas reduziam-se a suas conversas com seus amigos brancos Chico (Cacá Amaral) e Donato (Luiz Carlos Vasconcelos). Inicialmente trabalhava em uma salina e quando foi demitido, passou a trabalhar na tripulação de pequenos barcos de pescadores. O folhetim Caminho das Índias (Rede Globo, 21hrs, 2009) escrito por Glória Perez, apesar de apresentar uma trama urbana, também apresentou personagens negros que majoritariamente tinham como função orbitar em torno de personagens brancos. Esta novela era composta por dois núcleos que interagiam através de alguns personagens. Um era ambientado na Índia e outro na cidade do Rio de Janeiro. Contou 198 com seis personagens negros que apontavam para a imagem do negro como subserviente com atravessamentos no campo da comédia, do drama e da hiperssexualidade. A ênfase na comédia era materializada pela personagem Sheila (Priscila Marinho), uma empregada doméstica, que venerava e tinha como ídolo a patroa branca Melissa (Cristiane Torloni). Sheila vibrava com a vida da patroa, a quem via como uma celebridade, e desejava ser rica e bonita como a patroa. Melissa se divertia com a tietagem de sua empregada, permitindo que ela usasse seus cremes caros. Foto 156-Personagem Sheila. Fonte: Rede Globo, 2009 Os três personagens negros, que compunham uma família liderada pela personagem Cema (Neuza Borges), uma empregada doméstica que criou sozinha os filhos Ademir (Sidney Santiago) e Maico (Mussunzinho), representava o mundo da tragédia. Cema foi alvo de violência de um jovem rico Zeca (Duda Nagle), que quando viu Cema com sua amiga Ondina (Luci Pereira) também empregada domestica andando na rua, disse aos seus colegas que estavam no carro que dirigia: “Olha, duas pangarés!”, os amigos disseram em coro: “Vai nelas!”, assim Zeca acelerou e jogou o carro na direção das duas, que pularam a tempo de não serem atingidas. A personagem Cema enfrentou muitas dificuldades quando seu filho mais velho, Ademir recebeu o diagnostico de que ser portador de esquizofrenia. A autora utilizou Ademir como o personagem-chave para promover a campanha social que realizou nesta novela, para abordar as dificuldades que uma pessoa pobre, portadora de alguma doença mental, tem em conseguir informação sobre a doença bem como tratamento adequado. Com a ajuda do psiquiatra branco Dr. Castanho (Stenio Garcia), Ademir lutava para se tratar e se reintegrar socialmente. O outro filho de Cema, Maico (Mussunzinho) era um adolescente muito estudioso, que sofria preconceito na escola e na comunidade em que morava em função da doença do irmão mais velho. Tinha vergonha de Ademir e não gostava que a mãe comentasse com ninguém seu quadro patológico 199 Foto 157- Personagens Ademir, Cema e Maico. Fonte: Rede Globo, 2009 A hiperssexualização foi abordada na trama por meio da personagem Suellen (Juliana Alves), que por ser bonita conseguiu se casar com um médico branco, bem mais velho do que ela. O personagem negro que teve menor destaque foi Eliseu (Darlan Cunha), um jovem oficce-boy que trabalhava em uma grande empresa de atuação internacional. Suas poucas cenas se resumiam a se divertir com os relatos amorosos da secretária executiva branca de meia idade, Wal (Rosane Goffman), que era fofoqueira, viciada em relacionamentos virtuais, e perdidamente apaixonada pelo patrão. Foto 158-Personagens Wall e Eliseu Fonte: Rede Globo, 2009. Da mesma forma, a novela Belissíma (Rede Globo, 21hrs, 2005) de Silvio de Abreu apresentou com poucas cenas o personagem negro Lourenço (Lui Mendes), um consagrado Agenciador de Modelos, que só aparecia em cenas recrutando modelos brancas, ou servindo suas patroas brancas. Não tinha relações afetivas com nenhum outro personagem e não tinha sua família na trama ou cenários próprios retratados. Foto 159 -Personagem Lourenço. Fonte: Rede Globo, 2005. 200 O folhetim Passione (Rede Globo, 21hrs, 2010) também assinada por Silvio de Abreu, trouxe o personagem negro Amendoin (Pedro Lobo) como um menor abandonado, em situação de rua, que foi adotado pela feirante branca Candê (Vera Holtz). Amendoin quando morava na rua era cuidado e protegido por outro menor abandonado, porém branco, o personagem Cridinho (André Luiz Framch), que por ser branco tinha mais destaque e autonomia na trama. Foto 160- Personagens Amendoin, Candê e Cridinho Fonte: Rede Globo, 2010. Considero que a imagem do negro veiculada pelo personagem Amendoin reforçou a idéia do negro sempre tendo um salvador branco. Entendo que mesmo materializando personagens em situação de vulnerabilidade social, o destaque dado ao personagem Cridinho, reforçava o entendimento que a cor branca dotava o personagem de qualidade e aptidões que faltavam a Amendoin por este ser negro. Fanon (2008) destaca que a lógica que prega a inferioridade do negro foi estabelecida pela construção social de uma suposta dependência do negro com relação ao colonizador branco. Nessa perspectiva, alguns enredos de telenovela enunciaram tramas em que brancos desempenham a missão sagrada e caridosa de proteger, acolher, salvar, ajudar, corrigir e educar negros. Foto 161- Personagem Amendoin Fonte: Rede Globo, 2010. A novela Passione apresentou, ainda, outro personagem negro, Noronha (Rodrigo dos Santos), como um homem de classe média alta. Este figurava na trama como um advogado inescrupuloso, um venal cúmplice do vilão da novela, Saulo (Werner Shunemann), que desviava recursos da empresa da mãe, a Metalúrgica 201 Gouveia. Noronha, mesmo sendo o advogado da empresa, com a atribuição funcional de atuar internamente como um consultor jurídico, obedecia cegamente todas as ordens de Saulo, mesmo se estas concretizassem alguma ilegalidade. A relação de Saulo e Noronha tinha ares de uma relação senhor/ escravo, reafirmando assim o primado das relações coloniais como ainda vigentes, mesmo em um contexto em que o negro não está posicionado como empregado doméstico. Foto 162-Personagens Noronha e Saulo Fonte: Rede Globo, 2010. No decorrer da novela Saulo foi assassinado e o esquema de corrupção na empresa foi identificado pelo protagonista da trama, Mauro (Rodrigo Lombardi), que passou a pressionar e investigar os passos de Noronha. O personagem negro ficou desesperado ao perceber que as falcatruas que fez com seu antigo chefe estavam vindo à tona e, então, ameaçou Mauro com uma arma, ao ver que não conseguia intimidá-lo, decidiu atirar e Mauro, ao se defender provocou acidentalmente a morte de Noronha. A construção da idéia de sujeito negro por meio do personagem Noronha encenou a estereotipia da criminalidade. Foto 163-Personagens Mauro e Noronha Fonte: Rede Globo, 2010. Noronha era um vilão na trama, porém não tinha o destaque e a mesma carga dramatúrgica dos demais vilões da trama. Figurava como um empregado de alto escalão de uma empresa, porém desenvolvia uma relação extremamente submissa aos seus patrões brancos. Noronha não tinha outras relações na trama, que não fossem com os personagens brancos em seu ambiente de trabalho. Julgo pertinente demarcar que na 202 novela A Próxima Vitima (Rede Globo, 21hras, 1995), do mesmo autor Silvio de Abreu, Noronha era também o sobrenome da família de personagens negros da trama. O novelista Aguinaldo Silva, na novela Senhora do Destino (Rede Globo, 21hrs, 2004), apresentou cinco personagens/atores negros que reforçavam o estigma da vulnerabilidade social do negro, da marginalidade/criminalidade e do fetiche interracial. Esta estereotipia começou a ser desenhada na primeira fase da novela, por meio da personagem negra Marina (Ruth Souza), uma governanta leal a sua patroa Josefa (Marilia Gabriela). As cenas em que Mariana aparecia se resumiam a retratar sua condição de empregada, sem que essa tivesse sua família ou cenários próprios explorados na trama. Na segunda fase do folhetim, cinco personagens negros integraram a trama, sendo que quatro formavam uma família. O pai Cigano (Ronnie Marrudá) era um expresidiário, não regenerado, casado com Rita (Adriana Lessa), uma cabeleireira, que tentava se afastar do vício em drogas, mas vivia tendo recaídas. Por conta disso, os dois filhos adolescentes do casal (vividos por Agles Steib e Jessica Sodré) necessitavam da caridade da personagem branca, Maria do Carmo (Suzana Vieira), a protagonista da trama. Foto 164- Personagem Cigano Fonte: Rede Globo, 2004 O nome dos adolescentes escrito de forma hibrida entre o inglês e o português, (Maikel Jackson e Lady Daiane) satirizava um suposto hábito que alguns brasileiros pobres e de pouca escolaridade têm de dar nome de celebridades internacionais aos seus filhos. Maikel estudava e trabalhava, porém até o meio da novela figurava como não tendo documentos pessoais, nem mesmo registro de nascimento. Sonhava em ser cantor, mas não tinha talento. Nutria uma paixão platônica pela personagem branca, Bianca (Marcela Barrozo), que nunca o correspondeu, alegando preferência por homens bem mais velhos. 203 Foto 165- Personagem Maikel Jackson Fonte: Rede Globo, 2004. Lady Daiane era rebelde e desobediente. Engravidou duas vezes ao longo da novela, de diferentes homens brancos, vistos por ela como príncipes encantados. Daiane enfrentava a rivalidade da também negra Larissa (Juliana Diniz), na conquista do personagem branco ShaoLin (Leonardo Miggiorin). A personagem Larissa só teve cenas para materializar o triangulo amoroso acima citado e nas brigas verbais e físicas que tinha com Daiane pelo amor do homem branco. Foto 166-Personagens Lady Daiane e ShaoLin Fonte: Rede Globo, 2004. O núcleo negro da novela formava uma família completamente desestruturada, levando em conta padrões ocidentais hegemônicos. Cigano era um péssimo pai, ausente, não trabalhava, era omisso com os filhos, muito agressivo, espancava a mulher Rita, a quem explorava financeiramente. Cigano terminou assassinado por um dos vilões brancos da trama. Rita era alvo da caridade de personagens brancos, se apaixonou pelo taxista português branco, Costantino (Nuno Melo). Cigano exigiu uma alta quantia em dinheiro para permitir que Rita pudesse ter um relacionamento com Constantino. Foto 167- Personagens Rita e Constatino Fonte: Rede Globo, 2004. 204 Os quatro personagens negros que mais apareceram durante a segunda fase da novela representaram a imagem de negro relacionada à violência, à exclusão social, à marginalidade, à malandragem e alvo da caridade dos brancos. O folhetim Fina Estampa (Rede Globo, 21hrs, 2011), também escrito por Aguinaldo Silva, apresentou sete personagens negros. Três deles tiveram enunciados que faziam coro ao fetiche interracial. Os demais somente apareciam orbitando em torno de personagens brancos. A personagem negra Zilá (Rosa Marys Collyn), participou apenas dos primeiros capítulos da trama, figurando como uma produtora artesanal de perfumes e cremes com ervas. Morreu de infarto, deixando para sua ajudante branca todos os segredos de suas receitas, e esta passa então a fazer sucesso e ganhar muito dinheiro com estas fórmulas. Zilá não teve sua família ou qualquer amigo negro retratados na trama, nem nas cenas em torno do seu velório. Os demais personagens negros de Fina Estampa participaram da trama unicamente em cenas que os mostravam em seus exercícios profissionais, sem ter a dimensão afetiva, familiar, nem mesmo cenários próprios mostrados na novela. Nesta perspectiva também figurava a personagem Mônica (Isabel Fillards) uma advogada que só apareceu em cenas com sua cliente branca. Contexto semelhante acontecia com o personagem negro Genésio (Rafae Zoelly), cujas cenas, com poucas falas, se resumiam a servir enquanto garçom seus clientes brancos, no restaurante francês em que trabalhava. A última personagem negra a integrar Fina Estampa foi Cicera (Tânia Toko), que era uma funcionária de uma empresa de serviços de pequenos reparos domésticos ou automotivos. Entrou na novela somente no final da trama, com cenas sem falas, que restringiram esta personagem a sua dimensão profissional. A empresa em que Cicera trabalhava tinha o nome de Marido de Aluguel, e nela mulheres faziam reparos em automóveis e residenciais. Cada funcionária desta empresa seguia um denominado biótipo feminino: uma loira, uma obesa, uma índia, e Cicera que era negra. Fanon (2008) argumenta que a colonização e o racismo alteram profundamente a subjetividade do negro, que passa a ocupar condição singular, pois foi cultural e historicamente posicionado em um lugar de sujeição e inferioridade ao branco, enquanto representante do colonizador europeu. Penso que os enredos das novelas figuram enquanto signatárias desta lógica que é alicerçada em uma racionalidade colonial. Assim, a análise das telenovelas citadas neste capítulo aponta que o negro que foi veiculado nestas tramas foi aquele que, apesar de nem sempre figurar apenas como 205 serviçal ou empregado domestico, “reconhece seu lugar enquanto negro”, como indica Florestan Fernandes (1972). Nas telenovelas etnografadas percebi que o personagem negro, mesmo quando “visível”, pode estar “silenciado”, ou por assim dizer (In)visibilizado. A este respeito me reporto novamente a Spivak (2010), que entende que toda e qualquer representação do subalterno está atravessada por construções hierárquicas dos grupos dominantes. Bhabha (1998) aponta as armadilhas que se constituem nos esforços e tentativas de descrever e caracterizar o sujeito colonizado. Reportando-me ao contexto do negro nas telenovelas, localizo enviezamentos na linguagem utilizada para representar o negro. Este entendimento pode desestabilizar a interpretação de que o contexto de ampliação da presença de personagens negros nos folhetins brasileiros, processado a partir de 2001, resultaria em uma maior visibilidade do sujeito negro nos folhetins. Assim, “maior quantidade” pode não resultar diretamente em “maior visibilidade”. Esta argumentação parte igualmente da problematização de que presença de personagens negros pode não materializar diretamente sua participação no enredo. Assim redireciono a questão para problematizar: maior presença, maior visibilidade, mas visibilidade de que negro? 206 7 NOVOS PERSONAGENS NEGROS EM CENA? As telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a 2013, tiveram como característica o aumento da presença de personagens negros, e estes passaram a figurar desempenhando profissões até então somente destinadas a personagens brancos. Até a década de 90, os personagens negros desempenhavam exclusivamente nos folhetins papéis de empregados domésticos, trabalhadores rurais, criminosos, favelados e moradores da periferia. Quando, muito ocasionalmente, eram enunciados nos enredos como pertencentes a classe média, a novela obrigatoriamente abordava como algo moralmente reprovável a discriminação racial nos contextos constituído em torno das tramas destes personagens negros. Alguns atores negros no início dos anos 2000 deram entrevistas com declarações entusiasmadas com a possibilidade de estar interpretando papeis de personagens bem sucedidos profissional e financeiramente. O ator Sérgio Menezes, que interpretou o médico Carlos na novela O Beijo do Vampiro (Rede Globo, 19hrs, 2002), em entrevista ao Portal Terra, em 2002, demonstrou compreender que este personagem concretizava uma contribuição da novela ao processo de enfrentamento do preconceito racial “Um dos maiores prejuízos do nosso país foi o aspecto colonial, arcaico, mofado, que o português incutiu sobre os negros. A gente vive o reflexo desse equívoco até hoje”. Menezes, na entrevista em referência, declarou também que não gostava da denominação “ator negro”, já que ninguém precisa adjetivar da mesma forma os atores brancos. Afirmava que seu personagem poderia ser interpretado por um ator de qualquer cor. Entretanto, a etnografia que fiz sobre este personagem indicou tratar-se de um médico que apresentava um amor platônico por sua assistente branca, vista por ele como inalcançável. A atriz Thalma de Freitas, em entrevista ao Jornal do Povo, em 04/05/2002, mostrava-se também empolgada em poder interpretar o papel de uma advogada conceituada na novela O clone (Rede Globo, 21hrs, 2001). Thalma destacou, em entrevista ao periódico citado, que a novelista Glória Perez havia inserido vários personagens negros no folhetim O Clone, “ela colocou o preconceito no chinelo. A prova de que ele está diminuindo é que ninguém questiona o fato de Carol ser negra”. A novela O clone (Rede Globo, 21hrs, 2001), assinada por Glória Perez, centrou sua narrativa na abordagem da clonagem embrionária, e na cultura árabe-islamica. Ao longo da sua exibição, apresentou oito personagens negros, com significativa 207 participação no enredo da novela. A personagem Carol tinha pouca carga dramatúrgica, não tinha seus vínculos familiares e afetivos explorados no contexto da novela, com cenas restritas à sua vida profissional. Esta estratégia de construir um/uma personagem negro/negra enunciado como um profissional elitizado foi muito recorrente nas novelas produzidas por muitos autores ao longo do período alvo desta investigação. A personagem negra que teve mais destaque neste folhetim foi Deusa (Adriana Lessa), dançarina e manicure, que sonhava em ser mãe, porém não conseguia engravidar de seu namorado. A personagem buscou ajuda de um experiente médico, especialista em reprodução humana, Dr. Albieri (Juca de Oliveira), e passou a se submeter a tratamentos para engravidar, recorrendo a um doador anônimo de esperma. Entretanto, Dr. Albieri enfrentava um drama pessoal; a morte trágica de seu afiliado, Diogo (Murilo Benicio). Como geneticista, estava com estudos bastante avançados no procedimento de clonagem embrionária e chegou à conclusão de que um clone efetivaria, na prática “um irmão gêmeo desencontrado no tempo”. E como Diogo tinha um irmão gêmeo, Lucas (Murilo Benicio) o geneticista decidiu retirar uma célula de Lucas, para a partir dela poder ter seu amado afilhado de volta. Então, decidiu fecundar Deusa com uma célula de Lucas, e assim produzir o primeiro clone humano. Foto 168-Personagens Deusa e Albieri Fonte: Rede Globo, 2001. A clonagem humana funcionou e Deusa deu a luz a “Leo” (Murilo Benicio), uma criança branca, com as mesmas características antropomórficas de Lucas. A autora permitiu problematizar, com este enredo, o mito da democracia racial no Brasil (DA MATTA, 1994). Em diversos capítulos, Deusa tinha sua condição de mãe de Léo questionada, sendo reconhecida como babá de Léo, pelo contexto inusitado de ser uma mulher negra, mãe de um filho branco. Deusa desconhecia completamente que sua gestação resultava de tal procedimento, que a fazia apenas mãe natural de seu filho, não a mãe biológica. Até saber que era fruto de uma clonagem, Leo considerava Dr. Albieri 208 como seu pai, e desprezou sua mãe Deusa quando esta o afastou de Dr. Albieri, por entender que a proximidade com o geneticista poderia ser prejudicial à relação mãe e filho. Quando Léo completou 18 anos, o segredo da clonagem foi revelado. Leônidas Ferraz (Reginaldo Farias), pai dos gêmeos Lucas e Diogo, entrou na justiça para ser reconhecido como pai biológico de Léo, e ganhou tal pleito em primeira instancia, destituindo Deusa do posto de mãe. O primeiro posicionamento judicial reconhecia que Leo não tinha laços genéticos com Deusa e sim com Leônidas, como pai, e sua falecida esposa como mãe, e Lucas como irmão. Léo aceitou prontamente Leônidas como pai, para tristeza de Deusa. Entretanto, a advogada de Deusa recorreu da decisão e provou, subsidiada por material de plasma do sangue de Léo, a existência de DNA mitocondrial, uma célula que somente a mãe natural (que gerou a criança) transmite. O vínculo mitocondrial não assegura traços genéticos entre Leo e Deusa, porém concretizou a única diferença entre Leo e Lucas, e possibilitou que Deusa fosse reconhecida novamente como mãe de Léo, e Leônidas o pai. A escolha de uma mulher negra como cobaia humana para gerar um clone humano, especialmente por ter dado a luz a um bebê que viria a ser um clone de um homem branco, fazia com que a condição de negra de Deusa figurasse como um elemento que propunha a todo instante a suspeição da sua maternidade . Foto 169-Personagens Deusa e Léo. Fonte: Rede Globo, 2001. Deusa, diferentemente de muitos personagens negros, tinha sua família negra retratada na trama. Morava com sua mãe, a personagem negra, Dona Mocinha (Ruth de Souza), uma aposentada que ajudava bastante a filha a criar o neto, Léo. A personagem Mocinha tinha uma irmã, Lola (Léa Garcia). A entrada da trama da personagem Lola, (segundo o jornal o Estadão de 30/01/2002), se processou porque a atriz que 209 interpretava a mãe de Deusa, Dona Mocinha necessitou se afastar de trama, por alguns capítulos, por uma crise hipertensiva. Mesmo com seu retorno, a personagem Lola permaneceu na trama. Porém, assim como Mocinha, só aparecia no cenário da casa de Deusa. Foto 170-Personagem Mocinha com o neto Léo quando Criança. Fonte: http://memoriaglobo.globo.com, 2014. Outra personagem negra foi Dalva (Neuza Borges), governanta da família branca e rica de Leônidas Ferraz. Dalva figurava na trama como uma típica mãe preta do imaginário colonial brasileiro. Abnegada, vivia em função dos patrões, não tinha cenário próprio, não tinha família ou outros laços afetivos retratados na trama. Suas cenas se resumiam a servir e demonstrar apego maternal a Lucas e Diogo e a neta de seu patrão. Dalva via em Léo a reencarnação de Diogo e o amava como filho. Foto 171-Personagem Dalva Fonte: Rede Globo, 2001. No núcleo da novela ambientado em um bairro da periferia da cidade do Rio de Janeiro, havia três negros. Dona Jura (Solange couto), dona de bar e mãe adotiva de um filho branco chamado Xande (Marcelo Novaes), era autoritária, batalhadora, ciumenta e apaixonada. Fazia de tudo pelo namorado negro Tião, o que desagradava Xande, que percebia que a mãe era notoriamente explorada pelo namorado, apontado pelo enteado como sendo malandro e acomodado. 210 Foto 172-Personagem Dona Jura. Fonte: Rede Globo, 2001. Tião (Antonio Pitanga) era um típico malandro carioca, mulherengo, admirador de samba, não trabalhava, era sustentado pela namorada, passava o dia bebendo e comendo no bar de Dona Jura. Este personagem reencenava o estereótipo do negro malandro e preguiçoso. A novela apresentou ainda o personagem negro Basílio (Silvio Guindane), um atendente do bar de Dona Jura, sem família, sem vínculos afetivos com nenhum outro personagem, exceto com sua patroa. Tinha fama de ser fofoqueiro, e constantemente era corrigido por sua patroa. Foto 173-Personagem Tião Fonte: Rede Globo, 2001. O clone apesar de apresentar uma personagem negra exercendo profissão elitizada, a elegante e bem sucedida advogada Carol (Thalma de Freitas), somente teve cenas retratando sua dimensão enquanto profissional. Segundo dados do jornal Folha do Povo (Cachoeira do Sul, 04/05/2002), este papel foi fruto de uma negociação feita pela atriz Thalma de Freitas, com Mário Lúcio Vaz (diretor da Central Globo de Controle de Qualidade), no sentido de dar a atriz um papel diferente. Até então, havia interpretado uma escrava em Xica da silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996) e quatro empregadas domésticas em folhetins na Rede Globo, Vira Lata (Rede Globo, 19hrs, 211 1996) e Laços de Família (Rede Globo, 21hrs, 2000) e nas minisséries Dona Flor e Seus Dois Maridos e Labirinto, ambas em 1998. Essa atitude da atriz é um indicativo de como o aumento de quantidade de atores negros não correspondia ao aumento na qualidade da imagem de negro que era veiculada. Esse foi também o caso do ator negro Milton Gonçalves, que em 1975 pediu a autora Janeth Clair que compusesse, para ele, um personagem que usasse terno e gravata e falasse um português culto. Assim, este ator interpretou na novela Pecado Capital (Rede Globo, 20hrs, 1975), o personagem Dr. Percival, um psiquiatra formado na Universidade de Havard. A novela o clone apresentou oito personagens negros, que seguiram alguns estereótipos. O personagem Basílio retratou o negro submisso e cômico. As personagens Deusa, Dona Jura e Dalva, reforçaram o estereótipo da mulher negra dotada de um instinto aguçado e abnegado no que tange ao exercício da maternidade, exercida com filhos brancos, que não eram seus filhos biológicos. O personagem Tião aponta para a paixão do negro pela malandragem, pelas bebidas alcoólicas, pelo samba, pela exploração financeira da mulher e a completa aversão ao trabalho. A personagem Carol, que em princípio fugiria aos estereótipos, por ser uma negra que ascendeu socialmente, foi efetivada com pouca carga dramatúrgica, aparecendo exclusivamente no exercício de sua profissão. A reprodução de estereótipos também vai ocorrer em novelas produzidas por outros autores e que foram marcadas pelo aumento de personagens negros. A dupla de novelistas Elizabeth Jim e Antonio Calmon, em 2004, escreveu o folhetim Começar de Novo (Rede Globo, 19hrs, 2004), que enunciava personagens negros desempenhando profissões até então só direcionadas a personagens brancos. Esta novela foi ambientada na fictícia cidade de Ouro Negro, localizada no Estado do Rio de Janeiro. A trama trazia onze personagens negros, divididos, predominantemente, em dois núcleos negros: um composto pela família negra formada pelo casal Jairo (Mauricio Gonçalves) e Margarida (Nívea Hellen), e pelos filhos Lucas (Guilherme Bernard) e Dudu (Ramon Francisco). O núcleo era composto pela família de Joana (Solange Couto), que incluía seu pai, filho e noras. O personagem negro Jairo era um geólogo, chefe de plataforma de petróleo. Era integro, de bom caráter, disciplinado com os filhos, e tinha origem humilde. Sua esposa negra Margarida foi sua primeira namorada. Como Jairo passava grande parte do tempo embarcado na plataforma, acabava por ficar ausente do cotidiano familiar e por 212 isso era afetivamente distante dos filhos, que tinham uma relação de proximidade apenas com a mãe. Já Margarida era uma diretora de escola pública, alegre, carinhosa com os filhos, uma mulher bonita, charmosa. Veio de uma família de classe média, se encantou pela trajetória humilde, porém esforçada, do marido, e foi responsável pela sua ascensão profissional. Seu filho Lucas era um adolescente de 15 anos, estudante e esportista, que se destacava no futebol. Tinha um visual que era considerado radical para cidade onde morava. Nutria uma paixão platônica pela personagem branca Teca (Juliana Lohmann), a namorada do personagem branco Betinho (Kayky Brito), seu melhor amigo. O personagem Dudu, filho do casal Jairo e Margarida, era uma criança negra, que só tinha amigos brancos para brincar. Lucas e Dudu eram os únicos negros da escola onde estudavam. Foto 174-Personagem Lucas Fonte: Rede Globo, 2004. A personagem negra Joana era amiga e gerente do restaurante da protagonista branca da trama, a personagem Letícia (Nathalia do Vale). Joana era uma mulher de meia idade, casada com um homem branco, mais velho, o médico Pimenta (Antônio Pedro), que tinha grande atração pela esposa, e uma permanente desconfiança da fidelidade conjugal desta. O casal era pai do personagem negro Moacir (Gustavo Mello). 213 Foto 175-Personagens Pimenta e Joana Fonte: Rede Globo, 2004. Moacir era o delegado na cidade onde se passa a trama, Ouro Negro. Era honesto, por isso contrariava os interesses dos vilões da trama. Foi noivo da personagem negra Eurídice (Isabel Fillardis), com quem tinha uma relação conturbada e, após sua morte misteriosa, se envolveu com a negra Elvira (Thalma de Freitas), que era uma administradora que também cantava nas horas vagas. Joana não aceitava o romance do filho com Elvira, acreditando que a moça só o envolvia em problemas. Foto 176-Personagens Elvira, Moacir e Joana Fonte: Rede Globo, 2004. A personagem Eurídice era uma massagista de SPA, que apelava para toda sorte de simpatias para conseguir se casar com Moacir. A morte misteriosa de Eurídice , foi justificada pela escalação desta atriz para a novela das 19hrs que sucederia Começar De Novo. A família de Joana era também composta por seu pai Xavier (Toni Tornado), que trabalhava como caseiro, administrando um sítio de uma família de ex-hippes brancos, mas morava na casa da filha. O folhetim em questão trouxe ainda personagem negra Neuza (Mariah da Penha), que trabalhava para patroa branca Janis (Marilia Pêra), 214 e o personagem negro Lazaro (Milton Gonçalves) que fez uma participação especial na novela. Embora tenha apresentando um número significativo de personagens negros, inclusive figurando em profissões de destaque social, e casais negros com significativa carga dramatúrgica, Começar De Novo reforçou por outro lado, a idéia do fetiche interracial por meio do adolescente negro apaixonado platonicamente pela namorada branca do melhor amigo. Explorou, ainda, o estigma da hipersexualização da mulher negra como alvo da desconfiança do marido branco, por meio da personagem negra Joana. Esta personagem figurava também como melhor amiga e cupido da protagonista branca, tendo mais cenas que retratavam sua relação com a amiga do que com a família. A novela veiculou, também, o estereótipo do adolescente negro se destacando no futebol, da criança negra que só brinca com amigos brancos e do pai negro ausente por causa do trabalho. O novelista Gilberto Braga também apostou na proposta de enunciar em suas tramas personagens negros figurando em profissões elitizadas. Quando escreveu o folhetim Celebridades (Rede Globo, 21hrs, 2003) e inseriu seis personagens negros, deu maior destaque ao personagem Bruno (Sergio Menezes), um fotógrafo famoso, rico, amigo pessoal da protagonista branca Maria Clara Diniz (Malu Mader). No início da trama era casado com a também negra Teresa (Michele Valle), uma modelo com a carreira em declínio. Mesmo casada com Bruno, Teresa se envolveu com o nadador branco Caio Mendes (Théo Becker), para ganhar publicidade e assim reaquecer sua carreira. Após a separação do casal negro ainda no início da novela, Teresa saiu da trama e grande parte das cenas de Bruno se resumiram a visitas ou sessões de fotos para a produtora da protagonista. Após ser traído pela esposa negra, Bruno só teve envolvimento com mulheres brancas e nunca teve nenhum parente negro retratado na trama. Sua condição enquanto negro nunca sequer mencionada por ele ou pelos outros personagens com quais interagia. 215 Foto 177- Personagens Bruno e Teresa Fonte: Globo/Divulgação, 2003. Os personagens Bruno e Teresa apesar de no início da novela figurarem como casal, ao longo da trama encenaram o fetiche do negro para com o branco. Teresa figurava como uma mulher negra que deseja um príncipe branco para obter sucesso. Bruno por sua vez era um homem negro, que após se divorciar da esposa negra, somente se envolvia com mulheres brancas, sugerindo que estas eram mais leais e fiéis. Outra personagem negra, que teve significativa carga dramatúrgica no folhetim, foi Palmira (Adriana Alves). Esta personagem circulava pelos dois núcleos da novela, ora trabalhando como arrumadeira no apart-hotel do núcleo elitizado, ambientado na zona sul do Rio de Janeiro, ora enquanto moradora da periferia ambientada no bairro do Andaraí. Palmira casou-se com um homem branco mais velho, o personagem Salvador (Roberto Bomfim), dono de uma barbearia e pai do par da protagonista da trama. O casamento de Palmira e Salvador sugeriu que ela ascendeu socialmente ao se casar com um homem branco. Foto 178- Personagens Palmira e Salvador Fonte: Globo, 2003. O personagem negro Tadeu (Alexandre Morenno) teve destaque em poucos capítulos. No início da trama trabalhava como caixa no bar na periferia, e só aparecia servindo clientes e nunca teve sua família retratada na trama. 216 Foto 179-Personagem Tadeu Fonte: Globo, 2003. Posteriormente, Tadeu passou a trabalhar como funcionário de uma clínica de genética. Mediante a promessa de um encontro sexual com a personagem Darlene (Debora Secco), Tadeu tentou roubar o sêmen congelado do famoso esportista Caio (Théo Becker), a pedido de Darlene, que tenta fazer uma inseminação artificial clandestina, para extorquir um homem rico e loiro, e assim ficar famosa. Entretanto, o plano saiu errado Tadeu, acidentalmente, trocou o seu sêmen pelo do nadador branco e a ambiciosa Darlene acaba moralmente “punida”, dando a luz a dois gêmeos negros que recebem o nome de Darlin e Marlin mas que eram chamados por ela de “bombonzinhos”. Foto 180-Personagem Darlene com seus filhos negros. Fonte: Globo, 2004. Este contexto, de filhos negros serem uma punição ou um castigo, também foi encenando na novela Salsa e Merengue (Rede Globo, 19hrs, 1996) de autoria de Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa. A personagem Teodora Bentes do Gama, que escrachava sua empregada negra, orgulhava-se de sua descendência européia e dos seus cabelos lisos, quando decidiu ser mãe por inseminação artificial. Escolheu um doador canadense para assegurar traços nórdicos a seu filho. Entretanto, o sêmen era de um canadense negro e Teodora reagiu com espanto quando deu a luz a um casal de gêmeos negros. 217 A novela Celebridades trouxe ainda outro personagem negro, que só teve cenas no âmbito de seu exercício profissional, o papel de “Comandante” (Antonio Pitanga). Era um tradicional militar conservador, que possuía alta patente no Corpo de Bombeiros e teve poucas cenas na novela. A seqüência em que mais apareceu foi quando expulsou da corporação um soldado branco Vladimir (Marcelo Farias), depois que este pousou para fotos sensuais para uma revista direcionada ao público gay. Foto 181-Personagens Comandante e Vladimir. Fonte: Globo, 2004. A protagonista da trama, Maria Clara Diniz, tinha duas funcionárias negras, Zaíra (Janaina Lince) uma elegante secretária que trabalhava como assistente particular, e Iara (Sheron Menezes), que era empregada doméstica. Embora figurassem em extratos sociais diferentes, tinham pouca relevância na trama, com pouca carga dramatúrgica. Não tinham cenários próprios, não tiveram vínculos familiares ou afetivos retratados na trama e suas cenas se resumiam a atender a patroa branca. De igual forma ocorreu com a personagem Regina (Aline Borges), uma empregada doméstica na casa de um dos namorados da protagonista. Os personagens Zaíra, Iara e Regina sugerem o entendimento de que o negro, seja figurando na trama como empregado doméstico ou mesmo desempenhando papeis de profissionais mais elitizados, é posicionado em um lugar hierarquicamente inferior. Em Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011), o novelista Gilberto Braga igualmente inseriu seis personagens negros, dos quais dois foram propostos como coadjuvantes, os personagens André Gurgel (Lazaro Ramos) e Carol (Camila Pitanga). No entanto, tiveram tanto destaque na trama, a ponto de dividir com o casal de protagonistas brancos, Pedro Brandão (Eriberto Leão) e Marina (Paola Oliveira) a estampa da capa do CD de duas das quatro coletâneas lançadas com a trilha sonora da novela. Novamente, atores negros estamparam a capa do CD com coletâneas de trilha sonora da novela. 218 Foto 182- Capas das Trilhas Sonoras de Insensato Coração Fonte: Globo/Som livre, 2011. André Gurgel foi apresentado na trama como o mais bem sucedido designer da cidade do Rio de Janeiro. Era mulherengo e sedutor, porém sincero. Não iludia suas parceiras com promessas de amor, deixava claro que procurava apenas sexo. Ao longo da trama se envolveu afetivamente com uma personagem negra, Carol (Camila pitanga), chegando a ter um filho. André teve muitas parceiras brancas, representando um personagem que expressava a hiperssexualização e suposta virilidade do homem negro. Foto 183- Personagens André, Carol e o filho do Casal. Fonte: Globo, 2011. André terminou a novela ao lado da personagem branca, de olhos azuis, Leila (Bruna Linzmeyer), em uma relação aberta (poderiam ter outros parceiros afetivos e sexuais), após concluir sua incompatibilidade com Carol, que exigia uma relação monogâmica. 219 Foto 184- Personagens Leila e André. Fonte: Globo, 2011. André era filho de Gregório (Milton Gonçalves), com quem tinha um péssimo relacionamento. Gregório não tinha profissão definida na trama, era alcoólatra, e vivia tentando extorquir financeiramente André. Seu perfil era apresentado no site da novela como um alcoólatra malandro, cruel e ganancioso. Gregório morreu repentinamente em função de um câncer, para alivio de André. A relação de Gregório e André apontava para outra tendência nas telenovelas brasileiras de apresentar famílias negras como desajustadas. Foto 185-Personagens Gregório e André. Fonte: Globo, 2011. A personagem negra Carol Miranda (Camila Pitanga) era um alta executiva de um grupo empresarial, objetiva e focada no trabalho. No início da trama apresenta um discurso magoado com relação aos homens, por achar que nunca poderia ser mãe. O único membro de sua família que apareceu na novela foi sua irmã branca de olhos verdes, a personagem Alice Miranda (Paloma Bernardi). Carol engravidou de André, porem a união dos dois fracassa porque Carol não aceita a infidelidade de André. No final da trama, Carol se casou com um homem branco 30 anos mais velho, Raul Brandão (Antonio Fagundes), com quem teve mais um filho. 220 Foto 186-Personagens André, Carol e Raul. Fonte: Globo, 2011. Com menor repercussão no enredo na trama, a personagem negra Fabiola dos Santos (Roberta Rodrigues) era uma talentosa cozinheira de bar, cantava e dançava no estabelecimento, encantando a freguesia, o que deixava seu patrão branco, Gabino (Guilherme Piva) enciumado e inseguro, pois nutria uma paixão por sua funcionária. Gabino afirmava que Fabiola era sua “propriedade”. Fabiola se envolveu com um homem branco, mau caráter e bem mais velho, que prometeu lançá-la como cantora, o personagem Milton (José de Abreu). Com a morte deste, Fabiola passou a se envolver com o patrão branco, Gabino, reencenando o chavão da funcionária negra que se envolve com o patrão. Foto 187- Personagens Gabino, Fabiola e Milton. Fonte: Globo, 2011. Insensato Coração também apresentou personagens negros como empregados fiéis e submissos aos patrões, sem famílias ou vínculos afetivos com outros personagens, como foi o caso da personagem Renata (Naruna Costa), uma secretária executiva da protagonista branca da trama, e de Xicão Madureira (Wendel Bendelack), um atendente de quiosque na praia. Considero pertinente ressaltar que este personagem foi construído com um nicho para o humor, era um homossexual caricaturado, fofoqueiro, mas que tinha bom coração e era muito disposto a ajudar, incondicionalmente, sua patroa branca. 221 Em alguns contextos, como do personagem André Gurgel (Lazaro Ramos) que foi enunciado um renomado designer na novela Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011), o papel do negro tinha significativa carga dramatúrgica, sendo explorada sua vida afetiva com muitas parceiras, reafirmado a questão da hipersexualização do negro, por meio do estigma da virilidade do homem negro e do reforço à idéia da família negra enquanto desestruturada, pois o pai de André era inescrupuloso e alcoólatra. Entretanto, em nenhum momento na novela houve algum dialogo em que a condição de negro de André fosse mencionada. Esta estratégia de construir um personagem negro enquanto bem sucedido profissionalmente, sem nenhuma menção à sua condição de negro, pode dar margem a duas interpretações: a primeira, de cunho positivo e propositivo, no sentido de que personagens assim podem materializar uma intenção educativa por parte do novelista no sentido de sugerir a igualdade do negro e como deveria ser visto socialmente, a segunda sugere que negros e brancos podem ser iguais por esforço pessoal e meritocrático, argumentação esta que pode fazer um endosso ao mito do paraíso racial no Brasil, onde os negros podem conquistar seu espaço e aceitação social. Pode endossar, também, a negação da existência do racismo e da discriminação negativa ancorada no quesito cor da pele e fazer coro ao discurso da igualdade entre negros e brancos. Esta tentativa de silenciamento das diferenças entre negros e brancos forja uma suposta homogeneidade cultural, promove a negação das desigualdades sociais entre negros e brancos e atua camuflando a dimensão de cunho racializado presente nas relações sociais no Brasil. Entretanto, ancorado em Fanon (2008), considero impossível que o negro consiga, efetivamente, escapar de sua condição de negro, pois esta permanece afirmada em sua pele como sinal que persiste, mesmo sendo renegado/camuflado. O novelista Manoel Carlos no contexto da efervescia do debate em torno das cotas raciais, também propôs personagens negros figurando em profissões elitizadas. Em Mulheres Apaixonadas (Rede Globo, 21hrs, 2003), seguiu uma tendência de suas últimas novelas ambientando a trama no bairro do Leblon, na capital carioca, sendo que apresentava um núcleo elitizado e um núcleo mais popular, formado por personagens que trabalhavam como serviçais nas residências dos moradores ricos que moravam no bairro em questão. A trama focava o universo feminino no tocante a vida sexual e amorosa. O enredo abordou algumas temáticas como homossexualidade, violência contra idosos, violência urbana, e alcoolismo. Inseriu oito personagens negros. No evento de lançamento da novela, seu escritor foi questionado pelo programa TV Fama 222 (Rede TV, 20hrs, 2003) se o fato de seu folhetim trazer oito personagens negros se dava em razão das cotas raciais na mídia que estavam em voga no momento de estréia da novela. Manoel Carlos negou quaisquer relações com as cotas raciais, declarando-se apenas preocupado em “retratar a junção de raças que deu origem ao povo Brasileiro”. Por isso, além de “criar uma família de negros, inseriu na novela a questão da união inter-racial, e a utilizou como um paradigma de comportamento”. O autor justificou que inseriu personagens negros discretamente, sem fazer panfletagem disso. Entretanto, compreendo como tendencioso que, somente no período que coincide com a repercussão das discussões das cotas raciais na mídia brasileira, um veterano novelista como Manoel Carlos passe a demonstrar preocupação em, minimamente, tentar inserir negros de modo a buscar retratar a diversidade étnico-racial do país. Identifico uma intencionalidade do autor em legitimar com isso o mito da democracia racial e referendar a premissa de que a população do Brasil é mestiça, miscigenada, tolerante e solícita a contatos inter-raciais. Foto 188-Personagens Negros na novela Mulheres Apaixonadas Fonte: Globo/divulgação, 2003. A personagem negra que obteve maior destaque na trama foi Luciana (Camila Pitanga) que era uma médica, filha do primeiro casamento interracial da negra Pérola (Elisa Lucinda) com o branco Téo (Tony Ramos). Luciana, ao longo da trama, se envolveu com dois homens brancos: primeiramente o primo branco Diogo (Rodrigo Santoro) e, posteriormente, com o médico de posição hierárquica superior a dela no ambiente de trabalho, um homem mais velho, César (José Mayer). Enquanto o romance durou, Luciana resistia às tentativas de dominação impostas por César, querendo construir uma relação mais horizontalizada. 223 A mãe de Luciana, Pérola, era uma cantora de uma sofisticada casa noturna da zona sul do Rio de Janeiro. Era casada com o personagem negro Ataufo (Laércio de Freitas), um pianista, bem mais velho que ela, que aparecia ocasionalmente na trama. O casal Pérola e Ataufo eram pais do adolescente negro Jairo (Diego Jack), que também aparecia pouco e quase não tinha falas na trama. Luciana tinha mais vínculos com os parentes brancos, no lado paterno, que por serem brancos tinham mais destaque na trama, aparecendo em todos os capítulos. Além de Pérola que era uma cantora renomada e Luciana que era médica, profissões consideradas “elitizadas” no Brasil, a novela apresentou ainda a personagem negra Adelaide (Lica Oliveira), que era uma professora de uma escola de educação básica de uma escola de classe media alta. Adelaide era uma personagem com pouca carga dramatúrgica e só tinha cenas em seu ambiente de trabalho. Cabe destacar que a cantora negra, somente cantava para um público branco, a médica negra atendia somente a pacientes brancos, e por fim, a professora negra não tinha nenhum aluno negro. Os outros quatro personagens negros da novela foram enunciados como sendo três empregadas domésticas e um motorista. Em outras novelas, alguns personagens negros foram enunciados nos enredos em profissões elitizadas, porém figuravam com uma proposta de carga dramatúrgica nas tramas que pouco os diferenciava de escravos mucamos. Este foi o caso da novela Negocio da China (Rede Globo, 18hrs, 2008), de autoria de Miguel Falabela. O enredo trouxe a personagem negra Dra. Myrna (Renata Vilela), uma médica, que nunca teve sua família ou qualquer parente negro retratado na trama. Esta personagem foi apresentada no site que hospeda dados sobre a novela como uma das melhores amigas de Júlia (Natália do Vale), a protagonista branca de meia idade. Grande parte das cenas de Myrna eram no hospital, ou acompanhando os dramas de amiga branca. Foto 189- Personagens Dra. Myrna e Júlia Fonte: Rede Globo, 2008. 224 Myrna nutria uma paixão secreta, não correspondida, pelo colega de trabalho branco Ramiro (Rodrigo Mendonça), de quem sentia ciúmes e desenvolveu, também, um relacionamento conturbado com o músico branco e mulherengo Heraldinho (Raoni Carneiro). Cabe destacar que o ator branco Raoni Carneiro, também havia encarnado um personagem, Ramon, na novela A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005) também de Falabela, que da mesma forma era mulherengo e se envolvia, com a personagem negra Jurema/Whitney (Mary Sheila), tendo um filho e um final feliz ao lado dela. 190-Personagens Dra. Myrna e Heraldinho Fonte: Rede Globo, 2009. No folhetim Tempos Modernos (Rede Globo, 19hrs, 2010), o novelista Bosco Brasil também mobilizou a estratégia de apresentar negros figurando em posições elitizadas. Esta trama trouxe seis personagens negros. Destes, a que obteve mais destaque foi a Tita Bicalho (Cris Vianna), uma delegada integra e dedicada, eximia lutadora de krav maga e técnicas de defesa pessoal. Era uma mulher muito sensual e também muito vaidosa. Alegava que não saia de casa sem seu batom e sua pistola com o cabo perolado. Todavia esta personagem só era abordada na trama em seu recorte profissional, nunca teve sua família ou qualquer vinculo afetivo retratado no enredo. Foto 191-Personagem Tita Bicalho. Fonte: Rede Globo, 2010. A novela trouxe o adolescente negro Joca (Darlan Cunha), que era filho da branca Iolanda (Malu Galli). Era um estudante que enfrentava diversos conflitos após a morte de seu pai negro (nunca retratado na trama), sofria com falta de atenção da mãe, 225 que era muito ocupada com sua profissão. Restava a Joca o carinho da avó negra, Miranda Paranhos (Eliana Pittman), uma arquivista aposentada, que aproveitava o tempo livre para tocar trombone. Abordando a questão da adoção, a novela trouxe o personagem negro Nabuco Motta (Fabrício Boliveira), um policial amigo de um dos protagonista brancos da trama, que tinha o histórico de ter sido adotado aos 8 anos, por uma senhora branca, a quem chamava com carinho e gratidão de Tia Zila. Dela Nabuco herdou uma loja de reparos de roupa e a administração da loja revelou que Nabuco tinha um enorme talento para a costura. Nabuco só aparecia em cenas nas quais estava trabalhando, da mesma forma que ocorreu a enunciação das personagens negras Dolores/Dodô (Naruna Costa), que era um massagista e fisioterapeuta, e Izidora Mellão (Luciana Barbosa), uma chefe da equipe de recepcionistas do edifício que ambienta parte da trama, responsável pelas fotos dos crachás dos visitantes e que, furtivamente, guardava algumas fotos de pessoas que lhe agradavam. A novela A Favorita (Rede Globo, 21hrs, 2008), de João Emanuel de Carneiro, também apostou em enunciar negros figurando na classe média alta. Nessa trama havia quatro personagens negros, sendo que três tiveram presença fixa ao longo de toda a trama. Os personagens que integravam o núcleo negro da novela eram parte da família do deputado negro Romildo (Milton Gonçalves), um político corrupto, viúvo, que teve também um romance com uma mulher branca, com quem teve um filho do qual não assumiu a paternidade. Romildo tinha dois filhos negros “legítimos”, que não apoiavam a vida de corrupção e crimes do pai, que também era envolvido com o tráfico de armas. Foto 192- Personagem Romildo Rosa Fonte: Rede Globo, 2008. O filho mais velho de Romildo, Didu (Fabrício Bolivieira), era um jovem negro com cabelo rastafári, sem profissão e alcoólatra. Apaixonou-se por uma mulher branca, 226 que inicialmente resistiu as suas investidas, mas aconselhada pela mãe interesseira, cedeu aos galanteios de Didu. Foto 193 - Personagem Didu Fonte: Rede Globo, 2008. Romildo tinha também uma filha, Alicia (Tais Araujo), uma artista plástica mal sucedida, rica, mimada, que se apaixona por um homem branco pobre, porém visto por ela como um príncipe encantado. Foto 194 - Personagem Alicia Fonte: Rede Globo, 2008. A outra personagem negra, que não era da família de Romildo, foi Jurema (Mariah da Penha), uma empregada doméstica que aparecia ocasionalmente servindo seus patrões, encenando um perfil típico de empregada doméstica negra. O fato de três personagens do núcleo negro da novela figurarem como sujeitos ricos, com significativa presença e atuação no enredo da novela, não os isentou de encenar velhos estereótipos sobre o sujeito negro, que resultam de um exercício de colonialidade. A novela por meio da família de Romildo Rosa retroalimentou os estereótipos da Cinderela Negra, do negro alcoólatra e vagabundo, dos negros apaixonados platonicamente por brancos, de casais interraciais, do negro rico como resultado de práticas ilícitas, do negro vilão, flertando com a criminalidade e da negra como empregada domestica. Na novela Avenida Brasil, (Rede Globo, 21hrs, 2012) o autor João Emanuel de Carneiro inovou ao ambientar uma trama, em sua totalidade, em um contexto de 227 periferia de um centro urbano. Introduziu uma narrativa que priorizou elementos dos subúrbios cariocas. O bairro fictício, Divino, supostamente localizado no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, cidade capital de um estado com expressiva população negra, foi veiculado com apenas 4 personagens negros. A história se desenrolava na dinâmica entre o universo de um time futebol do bairro e um lixão. O contexto da invisibilidade do negro no bairro que ambientava a trama, fez cair por terra o argumento retórico, utilizado por alguns novelistas para justificar a que ausência ou a escassez de personagens negros nas tramas resultava do fato de que os folhetins apresentavam muitos núcleos de classe média alta, segmento este que no Brasil seria formado majoritariamente por sujeitos brancos. Assim as novelas ao somente retratar este grupo por meio de personagens negros estariam priorizando um paradigma que se propõe “realista”. Entretanto, considero pertinente situar o contexto do exercício de colonialidade feito dos produtos midiáticos ao priorizar, sempre, enredos de sujeitos brancos, mesmo em um eventual contexto no qual o quesito da verossimilhança lastrearia o indicativo da presença de negros. Ou seja, mesmo quando um folhetim retrata um espaço social tipicamente formado por sujeitos negros, na construção da trama, o negro pode permanecer invisibilizado. No cenário do Divino havia um salão de beleza, no qual a proprietária Monalisa (Heloísa Périssé), branca e loira, fazia muito sucesso com sua formula secreta para viabilizar o alisamento de cabelos de suas clientes. Aqui, penso ser possível identificar a estratégia de apagamento de um sinal diacrítico do sujeito negro, o cabelo encarapichado. O time de futebol explorado era o fictício Divino Futebol clube, um time carioca que não possuía jogadores negros, nem como figurantes. O lixão que ambientava a trama não tinha catadores de lixo negros, nem mesmo as crianças de rua que eram acolhidas pela líder do lixão, a personagem branca, “Mãe Lucinda” (Vera Voltz), eram negras. O folhetim em questão apresentou apenas quatro personagens negros: Zezé (Cacau Protácio), empregada da família branca que protagonizava a trama; Silas (Ailton Graça), dono de um bar; o adolescente Valetim (André Miranda) que trabalhava como garçom/atendente no bar do Silas e Herculano (Leandro Santana) que era motorista da família de protagonistas brancos. Além de serem poucos os personagens negros, suas famílias não eram retratadas na trama. Considero que a ausência da família dos personagens negros, indica uma 228 desumanização deste personagem. No caso da personagem Zezé (Cacau Protácio), suas cenas são resumidas a espaços de comicidade enquanto uma empregada doméstica fofoqueira, que invejava a patroa e as demais empregadas brancas que trabalham na casa onde era serviçal. Nunca teve sua casa retratada na trama, nem seus familiares ou mesmo um par romântico. Zezé vivia em função da família dos patrões. A única menção ao lugar em que morava foi feito por ocasião do seqüestro de sua patroa, que ficou em um cativeiro na mesma favela em que Zezé morava. A empregada branca Janaina (Cláudia Míssura) explorava, para além do nicho de humor, cenas dramáticas de conflitos que vivenciava com o filho branco Lúcio (Emiliano D'Avila). Janaina tinha uma casa modesta em um bairro próximo a mansão em que trabalhava, amplamente retratada na trama. Essa personagem tinha uma empregada doméstica, que também era branca. Embora as duas personagens empregadas na mansão tivessem as mesmas funções e salários, foram apresentadas vivendo situações sociais desiguais. Considero que a cor da pele era o critério que lastreava e naturalizava a transformação das diferenças étnicas entre Janaina e Zezé em desigualdades sociais e econômicas. Zezé tinha muita inveja de Janaina, sentimento que era explorado na trama com ênfase humorística. Em uma das cenas finais da trama, Zezé aparece com Janaina assistindo a uma partida de futebol. Na arquibancada, Zezé paquera com um homem negro, que não lhe corresponde. Após a investida de Zezé, o homem passa a paquerar com Janaína, retroalimentando a inveja de Zezé. O enredo favorecia o entendimento de que Zezé, na sua inferioridade como negra, invejava a todos, sua colega de profissão Janaina, a falsa empregada doméstica Nina (Debora Falabela) e sua patroa Carminha (Adriana Esteves) pelo fato destas serem brancas. Assim, a personagem Zezé encenava o estereótipo da negra invejosa dos benefícios e privilégios que entendia serem conferidos aos de pele branca. As características atribuídas ao homem negro, centradas no campo da indisposição ao trabalho, da marginalidade, violência/criminalidade têm claras referências nas relações coloniais, sugerindo que o homem negro teria uma “essência” enquanto sujeito que seria incompatível com ideais de civilidade e comportamento do colonizador europeu. Neste sentido, foram recorrentes, nas tramas etnografadas a construção de personagens negros como criminosos, ou como sujeitos venais, dispostos a fazer toda espécie de serviço sujo para vilões brancos. 229 A estereotipia da mulher negra enquanto invejosa com relação a mulheres brancas enunciados na personagem Zezé foi produzida e é retroalimentada no contexto das relações coloniais, enquanto desdobramento da marcação estabelecida na Casa Grande e Senzala (FREYRE, 1933), e que tem atravessamentos nas relações interrétnicas no país. As telenovelas, ao apresentarem a mulher negra como invejosa, fazem tangencialmente referencia à obra do romancista brasileiro Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura (1875), que retratou o cotidiano de uma fazenda produtora de café no Estado do Rio de Janeiro. Nesta obra é possível localizar os marcadores de Casa Grande e Senzala, desenhados por Freyre (1933), como cenários que sediam as relações entre brancos, negros e mestiços. Tomando a relação de rivalidade entre as personagens Isaura e Rosa, o autor explora a diferenciação no tom de pele entre as duas, abordada por meio dos sentimentos de inveja que a personagem Rosa nutria pela personagem Isaura, de cor mais clara. Embora ambas fossem escravas, o fato de Isaura ser detentora de uma pele branca, lhe conferia privilégios. Assim, no contexto da experiência brasileira das relações coloniais, existe uma dinâmica em que os negros invejam os mestiços, que por sua vez invejam os brancos. Entendo que esta inveja pode se travestir de uma fetichização, como expressão de um clamor por aceitação e inserção social, que pode ser expresso por mecanismos complexos, que podem passar por sentimentos de amor, ódio, relações de submissão, negociação e dominação, tendo nas dimensões do desejo afetivo, erótico, sexual espaços de catarse. Foto 195 - Personagem Zezé Fonte: Rede Globo, 2012. Em Avenida Brasil, o personagem negro Silas (Ailton Graça) só tinha namoradas brancas: a loira, Monalisa (Heloísa Périssé), a ruiva Olenka (Fabiúla Nascimento) e a loira Ivana (Letícia Isnard). Silas se fingia de doente para que Monalisa, que era apaixonada por um homem branco, viesse a se casar com ele, por pena. Quando passou a viver maritalmente com Olenka, delegou à esposa os cuidados do bar que possuía e passava o dia em casa ingerindo bebida alcoólica ou assistindo 230 televisão. Este comportamento reforça o estereotipo do homem negro malandro e indisposto ao trabalho. No final da novela, casou-se coma personagem loira Ivana, que o chamava de meu chocolate e a quem ele chamava de meu quindim. Os estigmas da virilidade e da hipersexualização do homem negro também foram explorados na trama, ficando expressos nas cenas que retratavam o fascínio que o negro Silas causava junto às personagens loiras. Cabe destaque que Silas era pai solteiro de um filho branco, o personagem Darckson (José Loreto), que tinha olhos claros, que nunca apareceu em cena sem estar de boné ou um lenço na cabeça, impossibilitando o público de definir como era seu cabelo. Ressalto que o nome Darkson significa filho de negro. Silas nunca teve nenhum parente negro retratado na novela, nem nas cenas de seu casamento. O contexto constituído no enredo deste personagem permite localizar uma certa “invisiblidade” do negro, mesmo quando em cena. Foto 196 - Personagem Silas Fonte: Rede Globo, 2012. Os outros dois personagens negros apareciam ocasionalmente. As cenas do personagem Valentim se resumiam a servir os clientes, todos brancos, no bar em que trabalhava. Foto 197 - Personagem Valetim Fonte: Rede Globo, 2012. O outro personagem negro da novela, Herculano (Leandro Santana), motorista da família branca de um ex-jogador de futebol, apareceu somente no início da novela, as cenas em que atuava eram sempre servindo os seus patrões brancos. 231 Foto 198 - Personagem Herculano Fonte: Rede Globo, 2012. Em Sangue Bom (Rede Globo, 19hrs, 2013), a autora Maria Adelaide Amaral apresentou negros como filhos adotivos de brancos. Este folhetim era ambientado no bairro Casa Verde, na capital paulista e abordava a temática da hiper valorização da aparência física, do consumismo e o do desejo pela fama, a qualquer custo. Esta trama era protagonizada por seis jovens brancos, sendo que três deles eram provenientes de orfanatos. Paradoxalmente, trouxe sete personagens negros, que figuravam secundariamente no enredo e eram enunciados sob a moldura de estereótipos clássicos sobre a idéia de sujeitos negros/negras, sugerindo que maior quantidade de negros pode não resultar em uma maior visibilidade nos enredos dos folhetins. O personagem negro que teve mais destaque na trama foi Jonas (Sérgio Malheiros), um jovem que tinha o histórico de ter sido adotado, ainda criança, pelo casal de brancos Gilson (Daniel Dantas) e Salma (Louise Cardoso). Era amigo do protagonista branco da trama, e era um exímio grafiteiro que sonhava em trabalhar como webdesigner. Foto 199 - Personagem Jonas Fonte: Rede Globo, 2013 Jonas teve um relacionamento com a personagem negra Luz da Silva (Aline Dias), que por sua vez tinha o histórico de ser acreana e ter sido adotada pela veterana atriz branca e loira Barbara Helen (Guilia Gam). Luz era a única negra dentre muitos filhos adotados pela mãe. A jovem decidiu se tornar atriz para conseguir a independência e, assim, ficar longe de Barbara que era dominadora e autoritária. 232 Foto 200 - Personagem Luz da Silva Fonte: Rede Globo, 2013 A novela trouxe ainda a recepcionista Mari (Thais Lago da Silva), que era capaz de tudo para realizar seu sonho de ser atriz. As demais personagens, negras, da novela Sangue Bom eram empregadas domésticas, sendo que Chica (Eliana Pittman), Emília (Mariah da Penha), e Santa (Thaís Garayp) eram serviçais de meia idade, que viam como seus, os filhos dos patrões brancos. Já a personagem negra Sheila (Nanda Lisboa) era uma empregada doméstica apaixonada pelo filho de seus patrões brancos. A ampliação da presença negra nos folhetins desencadeou a criação de mecanismos mais elaborados e sutis no tocante aos enunciados que inferiorizam e subalternizam os negros nos enredos, como figurar em uma profissão elitizada mas não fazer menção a condição de negro. A análise etnográfica destes folhetins indicou que muitos enredos não mobilizaram discursos que permitissem classificação racial de personagens enunciados visualmente como negros. Assim, entendo que a propagação nas tramas de uma neutralidade racial entre personagens brancos e negros pode cooperar para mascarar situações de privilégio de brancos. Considero que esta estratégia de pregar uma suposta igualdade racial é lastreada no padrão de subjetivação e posicionamento do negro, engendrado no contexto das relações coloniais, que por sua vez apresenta o negro como desumanizado, próprio para ser explorado enquanto mão de obra. A racionalidade colonial direcionou alguns folhetins a enunciar o personagem negro enquanto existente apenas em sua dimensão profissional, e assim, naturalizar um entendimento de uma suposta vocação do negro em servir ao branco e desejar se relacionar com este branco como um passaporte para ascensão social. 233 8 TUDO ACABA EM DISCRIMINAÇÃO RACIAL ? Em muitos dos folhetins etnografados a questão da discriminação racial foi abordada por diferentes enfoques, de brancos para com negros, de negros para com outros negros, e de negros para com brancos. A discriminação foi retratada de forma explícita como denúncia, de forma explicita como mais uma “maldade” de personagens enunciados como vilões, de forma velada e tácita, e por fim de forma satirizada pelo viés do humor. A discriminação explícita era uma temática recorrente em torno de personagens negros das telenovelas das décadas de 70, 80 e 90. A partir dos anos 2000, esta temática foi menos acionada pelos novelistas, entretanto, por ser uma prática ainda vigente no Brasil, esteve presente em alguns folhetins que etnografei. Dentre estes destaco a trama Belíssima (Rede Globo, 21hrs, 2005), assinada por Silvio de Abreu, que trouxe seis personagens negros, o número máximo de inserção de negros em todas as novelas desse novelista, mesma quantidade da novela A próxima Vitima (Rede Globo, 21hrs, 1995). O folhetim Belíssima foi escrito no contexto da efervescência das discussões acerca das cotas raciais na mídia e, também, de novelas que tinham um número significativo de personagens negros no enredo. A novela abordou a questão da discriminação racial por meio da personagem negra Dagmar (Sheron Menezes), uma atendente de lanchonete, que se envolve com o personagem branco Fladson (Marcelo Médici). Fladson tinha uma paixão não correspondida pela personagem branca Giovana (Paola Oliveira) e viu em Dagmar uma espécie de premio de consolação. A aproximação com Dagmar desagradou a mãe do rapaz, Tosca (Jussara Freire), que não gostava de negros. Na cena em que Dagmar foi jantar na casa de Fladson pela primeira vez, para conhecer a futura sogra, Tosca não escondeu seu desapontamento e proferiu a expressão “minha Nossa Senhora!” diante da surpresa, ao ver que Dagmar era negra. A princípio julgou-a como se fosse uma empregada doméstica que tinha ido comprar carne para sua patroa. A personagem negra inicialmente resistiu a Fladson, por perceber as resistências que sua mãe tinha a ela por ser negra. Fladson era um açougueiro e trabalhava no estabelecimento comercial da mãe. Era filho único e alvo de muita intervenção em sua vida por parte de mãe. 234 Foto 200-Personagens Tosca e Fladson Fonte: Rede Globo, 2005. Quando finalmente Dagmar e Fladson começaram a namorar, a moça relevava todos os xingamentos da sogra. Na cena em que Dagmar leva o pai Isaltino (Tony Tornado) para a inauguração da churrascaria da sogra, Tosca ofende aos dois, por serem negros. Dagmar cansada de ouvir os insultos proferidos por Tosca, decide chamar a policia, e como no Brasil racismo é considerado um crime inafiançável, Tosca foi presa. As cenas de racismo envolvendo estes personagens tiveram um apelo cômico, propiciado pela postura despachada e popular da personagem Tosca e de seu filho, que era gago. Foto 201 - Personagens Fladson e Dagmar Fonte: Rede Globo, 2005. Tosca não passou muito tempo na cadeia e, ainda por lá, começou a fazer declarações em que demonstrava ter ficado atraída por Isaltino. Considero que o interesse de Tosca por Isaltino sugeriu que a atração sexual por negros era admissível para Tosca, o que ela recusava era firmar qualquer compromisso social. Foto 202 - Personagem Isaltino Fonte: Rede Globo, 2005. A novela apresentou duas personagens negras como empregadas doméstica, Mônica (Camila Pitanga), que se envolveu com homens brancos e Rita (Teca Pereira), uma ex- presidiária, que em uma cena, sua aparência causou repulsa à vilã da trama, a 235 personagem Bia Falcão (Fernanda Montenegro) que a chamou de pobre diaba. O discurso da personagem Bia Falcão sobre o incômodo que sentia diante de pessoas pobres e da emprega negra Rita foi reproduzido na internet, e ganhou versão musical em redes virtuais porque emplacou o bordão “pobreza pega!”. Eu não sou hipocondríaca, não, não sou. Pobreza Pega! Pega! Pega com Sarna! Pega como um vírus! Entra pela pele, pela respiração. Eu controlo a minha respiração. Eu prendo meu ar sem querer. Sem querer. Não toco em nada para não me contagiar. Nada! Nos biscoitinhos. Os biscoitinhos daquela pobre diaba daquela empregada são letais. Letais! Resistentes a qualquer antídoto. Eu não sei como eu não morri. E a minha doce bisneta tão frágil, tão delicada, come aquilo! A questão da discriminação racial, inclusive de negros para com negros foi abordada, pelo viés do humor, na novela A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005), escrita em pareceria entre Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa. Apresentou sete atores negros, moradores do Beco da Baiúca, uma vila fictícia, localizada no bairro do Jacarepagúa, na zona oeste da capital do Estado do Rio de Janeiro. Os personagens negros circundavam a matriarca negra Dionísia da Mata (Chica Xavier), uma dedicada mãe para os filhos Anastácia/Latoya (Zezeh Barbosa), Jurema/Whirney (Mary Sheila), Violeta (Isabel Fillardis) e Jorginho (Jorge de Sá). Foto 203 - Personagem Dionísia Fonte: Rede Globo, 2005. Dionísia era a devotada cozinheira da personagem branca Regina (Maitê Proença), que após a morte da patroa recebeu como herança a mansão em que trabalhou a vida inteira. Entretanto, o presente lhe rendeu mais dissabores do que alegrias, fundamentalmente porque suas filhas mais velhas Anastácia e Jurema queriam se apossar da mansão e despojar a mãe da herança. Jurema (Mary Sheila) gostava que de ser chamada pelo nome que adotou “Whitney”. No inicio da trama, trabalhava como arrumadeira, na casa em que sua mãe trabalhava como cozinheira. Foi construída como uma vilã cômica, mas se regenerou ao longo da novela. Era profundamente inconformada por ser negra, alisava e pintava de 236 loiro o cabelo, usava pregador de roupa no nariz, no afã de deixá-lo mais fino e outros artifícios para parecer branca. Envolveu-se e se casou com Ramon (Raoni Carneiro), um homem branco, filho de seu ex-patrão falido, com quem teve um filho no final da novela. Foto 204 - Personagens Anastácia/Latoya e Jurema/Whitney Fonte: Rede Globo, 2005. Anastácia (Zezeh Barbosa) adotou o nome de Latoya e figurou, durante toda novela, como uma vilã cômica, movida por seu desejo de ter dinheiro e embranquecer. Logo no inicio da novela, Anastácia/ Latoya, perdeu o emprego em uma loja de calçados porque se recusou a atender um cliente negro como ela, alegando :“não me abaixo para preto”. Lutava, incansavelmente, contra seus sinais diacríticos negros, alisava cabelo, usava loção fotoprotetora fator 100 e lentes de contato colorida azul. Esta personagem desprezava o vizinho negro “Meia Noite” (Jorge Maya), que era apaixonado por ela. Justificava que o rejeitava por ser negro. “Meia Noite” era segurança que vivia dormindo na guarita em que trabalhava, porque tinha mais de um emprego. As vilãs cômicas, negras, de A Lua me Disse defendiam que apenas se casariam com homens brancos para conseguir “apurar” a raça. Orgulhavam-se quando se envolviam com homens brancos e disputavam entre si quem conseguia os pretendentes mais brancos. Em uma cena mensuravam a “branquitude” de um pretendente pela possibilidade de, a olho nu, detectar veias azuis na coxa da perna super branca. Latoya acentuava mais sua ojeriza com relação a outros negros do que Jurema/Whitney. Ofendia-se quando era classificada como negra, exigia ser tratada como morena clara, ou “elemento oriundo do continente africano”. Demonstrava, em seus discursos, repúdio pela própria condição de negra, discriminando outros negros o tempo todo. Terminou a novela tendo como punição por seu comportamento ter que viver em um circo no qual se apresentava como a “Monga” a “terrível mulher africana que se transforma em Macaca”. 237 As personagens Jurema/Whitney e Anastácia/Latoya materializavam uma proposta de negro que autorizava a discriminação racial aos negros por parte dos brancos, referenciada no argumento de que “os próprios negros se discriminam”. Estas personagens indicam a eficácia do discurso colonial, no tocante a assimilação da racionalidade do colonizador branco por parte dos colonizados negros. Quando questionados por Gualberto (2005) acerca das personagens negras, os autores da novela A Lua me Disse alegaram que os exageros das personagens concretizavam uma estratégia de “conscientização”, propiciada no instante em que o público telespectador identificasse “o quanto as personagens eram ridículas”. Discordo deste entendimento dos novelistas, pois problematizo que grande parte do público telespectador, moldado pelas relações coloniais, não teria como identificar que o comportamento das personagens era caricaturado. Considero que a introjeção do discurso colonial pelo imaginário social coletivo brasileiro seguramente direciona o entendimento de que as personagens em foco tinham um comportamento ridículo porque permaneciam negras, mesmo que se esforçassem para parecer brancas. A este respeito, Gualberto (2005) também deslegitimou o argumento dos autores da novela, afirmando que quando os mesmos resolveram tratar de forma cômica a discriminação de negros para com negros, estavam externalizando uma contra reação a todo o debate que o Movimento Negro vinha propondo em torno da questão das relações raciais no Brasil. A discriminação do negro para com outro negro é um dos principais argumentos utilizados por alguns brancos para justificar a existência da discriminação racial no Brasil. Concordo com Gualberto (2005) quando afirma ser equivocado localizar a prática da discriminação de negro para negro nos mesmos moldes em que um branco discriminaria um negro. Pois para esse autor, quando um negro discrimina outro negro, está externando uma insatisfação com sua condição etno-racial, e este processo seria um construto do legado histórico da escravidão negra no Brasil. Os personagens Jurema e Anastácia referendavam o entendimento acerca da supremacia do sujeito branco, no tocante a alusão ao eurocentrismo, emblematizado nos traços diacríticos opostos aos que materializam a idéia de branquitude. Cabe destacar, ainda, que este folhetim fez com que estas personagens endossassem o paradigma social imposto pelas relações coloniais. O mal estar em torno da questão da supervalorização da branquitude, bem como da discriminação de cunho racial na novela em questão, não ficaram restritos somente ao escracho aos personagens negros. A personagem “Índia”, interpretada pela atriz Bumba, figurava na trama como uma índia que trabalhava há 238 anos no Rio de Janeiro como empregada doméstica na casa da personagem branca Ademilde (Arlete Sales). A empregada Índia falava muito mal o português e era humilhada e explorada pelas irmãs de sua patroa, as personagens brancas Adalgisa (Stella Miranda) e Adail (Bia Nunnes). Em uma das cenas, para impedir que Índia fosse a uma festa de casamento, Adail e Adalgisa rasgaram, as gargalhadas, a roupa da empregada, com o discurso “Dança indiazinha, dança”. Ao longo da cena, que durou 03:22, Índia aceitou passivamente ser despida. Somente quando Adail e Adalgisa saíram do cenário, e Ìndia ficou sozinha em cena, proferiu o discurso: “Índia vai se vingar!”. Foto 205 -Personagem Índia Fonte: Rede Globo, 2005. Segundo o portal Folha On Line, de 30/08/2005, as constantes ofensas feitas a personagem Índia, desencadearam a produção de uma nota de repudio à novela. A nota de repúdio foi assinada por entidades ligadas à causa indígena no estado do Mato Grosso e enviada, posteriormente, ao Congresso Nacional. Em seu texto declarava: A índia Nambiquara, na caricatura da novela, está condenada ao extrato mais subalterno da sociedade, quase como se fosse um animal exótico, divertido, digno de riso. Uma imagem que não é totalmente alheia à nossa realidade, onde o preconceito legitima a exploração, a expropriação e o abandono do poder público. Cabe à televisão brasileira o importante papel de educar, todos sabemos. De um autor/ator respeitado pelo seu público (Miguel Falabella) esperamos mais do que a confirmação de idéias e valores que os povos indígenas lutam tanto para superar, nas suas mais variadas formas de discriminação das diferenças. O portal citado noticiou, ainda, que O Ministério Público Federal do Estado do Rio de Janeiro recomendou à Rede Globo, em 29 de julho de 2005, "que não sejam mais transmitidas na novela 'A Lua me Disse' discursos e cenas que exponham a personagem Índia a situações constrangedoras ou degradantes". Considero que a pressão do Ministério Público levou os autores da novela a escrever, no seu último capítulo, um suposto “desfecho feliz” para a personagem Índia, bem como um castigo para Adail e Adalgisa, que ficaram pobres e sem ter onde morar. Nas cenas em questão, os poucos diálogos da personagem intercalam o discurso de uma narradora, que iniciava enunciando: 239 Ìndia finalmente voltou para o mato, e ajudada por Ademilde, comprou um sitio perto de sua aldeia, um ano depois ela descobriu em suas terras a maior jazida de diamantes do país. E enriqueceu definitivamente, como tinha bom coração, abrigou as duas serpentes (Adail e Adalgisa). Abrigou mas vingou os anos de maus tratos. A cena finaliza com Índia vestida como uma mulher ocidental, rica, adornada com luxuosos vestidos de grife e jóias, sentada em uma sala luxuosa, ordenando aos gritos, que lhe abanassem e trouxessem-lhe biscoitos. Era abanada por Adalgisa e seu chá era servido por Adail. Este desfecho, ao simplesmente trocar a posição social da vitima e do algoz no processo de discriminação, termina por sugerir, a legitimidade da discriminação, neste caso pontuando que as brancas estavam corretas em humilhar a Ìndia porque esta era empregada, e ao se tornar rica e ocidentalizada, figurando na condição de patroa, Índia adotou as mesmas práticas de humilhação daqueles que antes a humilhavam. Paradoxalmente, uma referência “politicamente correta” da condição de negro foi apresentada ao longo da novela A Lua me Disse, com menos destaque, pelos outros dois filhos de Dionísia. Os personagens Violeta e Jorginho viviam sua condição de negro de forma bem diferente das irmãs Anastácia e Jurema. No entanto, as cenas em que esta vivência foi veiculada foram escassas ao longo da exibição da novela. Violeta era uma administradora e melhor amiga da protagonista branca da trama. Ao longo da novela, teve um relacionamento conturbado com Lúcio Dantes (Mauricio Mattar), um empresário, branco. Violeta defendia a causa do orgulho negro e estava sempre em oposição às irmãs. Foto 206-Personagem Violeta Fonte: Rede Globo, 2005. Já Jorginho era um advogado recém formado, que também atuava como violonista e cantor. Namorava a também negra Zenóbia (Roberta Rodrigues), uma empregada doméstica. Jorginho e Zenóbia tiveram poucas cenas, restritas a situações que abordavam a questão da discriminação racial em seus ambientes profissionais. No 240 caso de Jorginho, as cenas intercalavam ironia e comedia dramática. Abordavam a questão da discriminação racial, especialmente quando ia trabalhar no escritório de advocacia das personagens brancas Sílvia (Guilhermina Guinle) e Geórgia Bogari (Patricya Travassos). Zenóbia, por sua vez, vivia em conflito com a cunhada Latoya/Anastacia, em grande parte por discordâncias na leitura acerca da condição de negra. Zenóbia, em uma seqüência de cenas, foi vítima de discriminação racial ao ser obrigada por um porteiro de prédio a usar o elevador de serviço, por ser negra. Quando posteriormente soube, pelo namorado, da existência da lei que coíbe tal prática, retornou ao prédio palco do evento para notificar o porteiro e constatou que o mesmo havia sido demitido pela humilhação que a havia feito passar. O folhetim A Lua me Disse, veiculou a imagem do sujeito negro no campo da comédia ou do drama. Trouxe, com a personagem Anastácia/Latoya, uma proposta de negra como vilã cômica e desastrada. Com a personagem Jurema/Whitney, encenou o estereótipo da negra enquanto empregada invejosa da patroa branca e que se envolve com o filho dos patrões. Estas personagens abordaram, por meio da comédia, a imagem do negro que não aceita sua condição de negro e demonstra repúdio pela própria cor, rejeitando relações amorosas com outros negros. Por outro lado, a personagem Dionísia era a materialização da imagem da empregada negra dedicada aos filhos dos patrões, vendo neles seus próprios filhos. Era um estereótipo da mãe negra enquanto escrava conformada. Cabe destacar que o casal formado pelos negros Jorginho e Zenóbia não tinha a mesma quantidade de cenas e carga dramatúrgica que os outros casais da mesma idade, formado por personagens brancos. A trama em foco abordou a questão racial e o preconceito pelo viés politicamente incorreto (humor), com poucas cenas que fizeram pontual menção a leis que coíbem o racismo e discursos em favor do orgulho negro. A dupla de novelistas Duca Rachid e Thelma Guedes, também abordou a temática da discriminação racial no folhetim O Profeta (Rede Globo, 18hrs, 2006). Esta novela resultou de uma adaptação da obra teledramaturgica homônima, escrita por Ivani Ribeiro, para a extinta TV Tupi em 1977. Esta novela abordava a temática da clarividência e da premonição. Era ambientada na década de 1950, e localizada, em sua primeira fase, em um município no interior do Estado de São Paulo e, na segunda fase, o enredo se desenrola na capital paulista. 241 Esta novela apresentou cinco personagens negros e a questão da discriminação racial tecia o enredo em torno destes personagens. A cozinheira negra Dedé (Zezeh Barbosa) trabalhava para a protagonista branca da trama, Sônia (Paola Oliveira), que a via como sua segunda mãe. O pai de Sônia, o viúvo Piragibe (Luis Gustavo) e a empregada vivam discutindo. Dedé era mãe solteira e tinha uma filha branca, Natália (Vitória Pina), uma garota de 13 anos que tinha vergonha da mãe por ser negra e empregada doméstica. Natália mentia para as colegas da escola, afirmando ser neta de Piragibe, patrão de sua mãe, fingindo que levava uma vida de menina rica. Foto 207- Personagens Dedé e Natália Fonte: Rede Globo, 2006. Outra personagem negra que também foi enunciada pela temática da discriminação racial, foi a professora Gilda (Cris Vianna), educadora que era hostilizada por ser a única professora negra da escola em que trabalhava, sendo alvo de rechaço por parte de alunos e dos seus colegas professores. Esta escola não tinha alunos negros. Gilda teve um romance com o personagem branco Camilo (Malvino Salvador), que tinha vergonha de falar ou mesmo cumprimentá-la diante de conhecidos e somente saia com ela para locais onde não era conhecido, pois temia ser alvo de chacota por ser visto ao lado de uma negra. Quando Gilda percebeu a recusa de Camilo em mudar este comportamento, foi humilhada por ele. O irmão de Gilda, o personagem negro Gabriel (Enesto Xavier), consternado pelo sofrimento da irmã, foi tirar satisfações com Camilo, que também o rebaixou ancorado na sua “superior” condição de sujeito branco. Alguns capítulos adiante, o personagem Camilo, que figurava na trama como um vilão, foi vítima de um assassinato e Gabriel foi considerado suspeito pela polícia, por considerar que ele teria motivos para cometer o referido crime. Foto 208-Personagem Gilda Fonte: Rede Globo, 2006. 242 Os demais personagens negros que apareceram na trama O Profeta, tiveram uma limitada participação em alguns capítulos. Este foi o caso da personagem Alice (Sabrina de Souza), uma criança que teve cenas brincando com amiguinha branca Analu (Caroline Smith), que era filha do antagonista da trama, Clóvis (Dalton Vigh). Com a mesma proposta, se materializou a inserção do personagem negro Policial Eustáquio (Edy Argolo), que só aparecia servindo e atendendo as ordens do delegado Moreira (Jandir Ferrari), que era branco O novelista Manoel Carlos no folhetim Páginas da Vida (Rede Globo, 21hrs, 2006), também abordou a questão da discriminação racial em torno dos personagens negros. Esta trama discutiu, também, homossexualidade, inclusão de criança portadora de síndrome de down, tratamento de HIV/AIDS. O enredo em questão era ambientado no mesmo contexto sócio-geográfico do folhetim anterior escrito pelo autor em discussão. Apresentou oito personagens negros, exatamente a mesma quantidade de negros que esteve presente que seu folhetim anterior, Mulheres apaixonadas. Este contexto sugere o entendimento que o dramaturgo em foco, no contexto da efervescência das cotas raciais em telenovelas, passou a adotar, simbolicamente, um coeficiente numérico mínimo, no afã de resguardar a participação de um mínimo de personagens negros em suas novelas. O autor abordou a discriminação racial por meio da personagem negra Selma (Elisa Lucinda). Esta era uma médica, casada com um homem branco e loiro, o enfermeiro Lucas (Paulo César Grande). Considero pertinente demarcar que na novela Por Amor (Rede Globo, 21hrs, 1998) o novelista Manoel Carlos também escalou o ator Paulo César Grande como um personagem que mantinha um relacionamento com uma mulher negra. Assim, localizo nas novelas de Manoel Carlos, a persistência do clichê da personagem negra que namora com um homem branco e loiro. Foto 209 - Personagem Selma Fonte: Rede Globo, 2006. 243 Em Páginas da Vida, Selma, em seu ambiente de trabalho, aparecia em cenas que retratavam o estranhamento de alguns pacientes e demais funcionários do hospital pelo fato dela ser médica e negra. A personagem negra sofreu abertamente discriminação racial por parte de sua enteada, Gabriela (Carolina Oliveira) e de Angélica (Claúdia Mauro), primeira esposa de seu marido. Angélica não aceitava o fato do ex-marido Lucas estar casado com uma mulher negra. Lucas hesitou em apresentar sua filha a esposa Selma, porque sabia da ojeriza desta por negros. O enfermeiro repreendia a filha todas as vezes que esta agredia a madrasta pela sua condição de negra. Foto 210 - Personagens Gabriela, Angélica, Selma e Lucas. Fonte: Rede Globo, 2006. As personagens Angélica e sua filha Gabriela proferiam discursos e faziam expressões de nojo e horror quando, insistentemente, verbalizavam sua abominação a pessoas negras. Em um capítulo, Gabriela ficou nervosa ao assistir a um documentário sobre a África, que para ela passou a figurar como um lugar terrível, onde só habitavam sujeitos negros, e em sua maioria doentes. Em outra seqüência de cenas, a adolescente se recusou a visitar um recém-nascido, por se tratar de um bebê negro. Foram ao ar, também, as cenas em que Gabriela e Angélica se incomodaram a ponto de se retirar de uma festa de natal, pois se sentiam profundamente perturbadas com a presença de dois convidados negros, Salvador (Sérgio Sá) e Lídia (Thalita Carauta). O desfecho da novela retomou a questão da discriminação racial, qualificando-a como uma prática moralmente reprovável. O dramaturgo “puniu” as personagens Angélica e Gabriela no final da novela. Angélica morreu num ônibus incendiado, por bandidos negros e a filha Gabriela, agora órfã, como castigo teve que ficar sob os cuidados do pai e da madrasta negra que a adolescente havia se recusado a abraçar ao se despedir antes de embarcar na viagem que resultou na morte de sua mãe Angélica. A disseminação de discursos com ingrediente de discriminação racial, como os verbalizados por Angélica e Gabriela, podem terminar por banalizar este comportamento, incitando sua aceitação, pois no Brasil a novela influencia 244 comportamentos. Sobretudo pelo fato de que a “punição” das personagens racistas se restringiu ao plano moral, não havendo a indicação da perspectiva criminal que tal prática configura. Excetuando-se a personagem Selma, que exercia uma profissão considerada elitizada no Brasil, e o promotor de justiça negro (Alexandre Moreno), que só apareceu em um capítulo do folhetim, a novela trouxe, como de praxe, três personagens negras figurando como empregadas domésticas. Destas, Lidia (Thalita Carauta) era a que tinha maior quantidade de cenas, porém sempre a retratando em sua dimensão como empregada doméstica e babá, devotada a patroa Helena (Regina Duarte), que era protagonista da novela, ajudando-a nos cuidados com a filha adotiva que era portadora de síndrome de down. As outras personagens que figuravam como domésticas foram Dorinha (Quitéria Chagas) e Margareth (Carolina Bezerra), apareciam em cenas quase sem falas, limitando-se a servir aos seus patrões brancos. O folhetim Páginas da Vida trouxe ainda os personagens negros Salvador (Jorge de Sá), que era estudante, filho de uma empregada, adotado pela protagonista, a médica obstetra Helena (Regina Duarte), para sublimar a dor que sofria pela morte de sua filha biológica. A construção do personagem Salvador esteve circunscrita a reforçar a imagem caridosa e maternal de Helena. Em outras poucas cenas, Salvador contracenou em cenas quase sem falas, com sua namorada negra, a personagem Luciana (Aline Aguiar) que era uma estudante. Reforçando, como no caso do personagem Salvador, a imagem do sujeito negro como um sujeito alvo da caridade de brancos, a novela trouxe ainda o personagem negro Pinhão (Marcos Henrique), menor abandonado, que é acolhido em uma família de brancos. Pinhão teve poucos diálogos na novela e nas cenas em que atua, o destaque ficava sobre os personagens brancos que lhe devotavam cuidados. Foto 211-Personagem Pinhão Fonte: Rede Globo, 2006. A primeira trama ambientada nos dias atuais, escrita por Carrasco na Rede Globo, foi Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007) e também explorou a questão da 245 discriminação racial. Este folhetim consistia na sua primeira novela para o horário das 19hrs. Propunha uma comédia ambientada na cidade de São Paulo-SP e trazia personagens humanos que cometiam os sete pecados capitais: inveja, ira, preguiça, avareza, gula, luxuria, e soberba, e personagens anjos que os protegiam e orientavam para fazer o “bem”. Essa trama apresentou uma criança negra que era uma menor abandonada, a personagem Benta (Amanda Azevedo). Esta era uma menina inteligente e sensível, com capacidades paranormais, tendo, inclusive, a habilidade de falar com os anjos. Conseguia salvar as pessoas de acidentes e ajudar aos que precisavam de milagres. Benta era filha biológica da empregada doméstica negra Verônica (Sabrina Rosa), que abandonou a menina por não ter como cuidar dela. Assim, Benta foi adotada pelo branco Vicente (Marcelo Novaes) e era alvo de discriminação racial por parte da sua namorada branca, Simone (Samara Filipo). Foto 212-Personagem Vicente e Benta. Fonte: Rede Globo, 2007. Em uma cena da novela Sete pecados, a personagem branca Simone penteava com força o cabelo crespo de Benta, que reagiu iniciando o seguinte diálogo: Benta: Ai, ai, ta doendo... Simone: Ta doendo porque seu cabelo é ruim, por isso que doi Benta: Meu cabelo não é ruim Simone:Ah não! olha meu cabelo Benta, tá sentindo como é liso, você não queria ter um cabelo liso assim igual ao meu... não queria? Benta: Eu sempre gostei do meu cabelo... eu sou mesmo feia? A conversa das duas é interrompida pela personagem branca Miriam (Gabriela Duarte), que percebe o semblante triste de Benta e a questiona. A menina pergunta se tem o cabelo ruim e por que todas as bonecas tinham o cabelo loiro. Miriam faz um discurso sobre a beleza de todos os tipos de cabelos e promete que um dia iria dar a Benta uma boneca parecida com ela. A trama apresentou uma anja negra, Berenice (Thalma de Freitas), que era enviada dos céus para guardar o protagonista branco da trama, impedindo que ele cometesse os sete pecados capitais. Berenice se apaixonou pelo humano branco Régis 246 (Malvino Salvador). Sete pecados trouxe, também, dois personagens negros que apareciam ocasionalmente, Sandro (Darlan Cunha) um adolescente tímido, que desejoso de aprender informática era ajudado pela diretora de escola Miriam (Gabriela Duarte) que o deixava usar o computador da diretoria e Jair (Wilson Rabelo), que era um taxista. Foto 213-Personagem Berenice Fonte: Rede Globo, 2007. Carrasco, na novela Caras e Bocas (Rede Globo, 19hrs, 2009) explorou a questão da discriminação racial de forma mais ostensiva. Este folhetim era ambientado em São Paulo-SP, e apresentou oito personagens negros, sendo que a que obteve mais destaque foi Milena (Sharon Menezes), uma moça esforçada que trabalha inicialmente como garçonete e posteriormente como recepcionista de um restaurante de luxo. Era filha de Dirce (Dhu Moraes), uma empregada doméstica muito dedicada à família da patroa branca Dafne (Flávia Alessandra). Dirce era casada com o branco Nelson (Ludval Campos) e teve com ele um filho branco, Felipe (Miguel Rômulo). Milena foi criada como filha de Nelson, mas ao longo da novela, foi revelado que seu verdadeiro pai era o milionário branco Jacques (Ary Fontoura). Foto 214-Personagem Milena. Fonte: Rede Globo, 2009. A revelação da paternidade faz com que Milena passasse a viver com o pai e, como uma moça rica, passou a se dedicar ao hipismo. Ao longo da novela Milena se interessou pelo personagem negro Caco (Rafael Zulu), mas se apaixonou mesmo pelo personagem branco, mau caráter, Nicholas (Sérgio Marone) que a desprezava, até saber que era filha de um milionário. Nicolas se casou com Milena e a maltratou muito no casamento. Milena foi alvo, também, de discriminação racial por parte da personagem 247 branca Judith (Deborah Evelyn), uma administradora inescrupulosa, que questionava a idoneidade de Milena, hostilizando-a chamando-a de “chocolate”. Foto 215-Personagens Milena e Nicholas Fonte: Rede Globo, 2009. A trama Caras e Bocas trouxe ainda a família negra composta pelo veterinário ativista dos direitos dos animais, Aluísio (Alexandre Moreno), casado com a também veterinária Magali (Thalma de Freitas), com quem teve a filha Ada (Amanda Azevedo). No decorrer da novela, Magali se separou do marido e iniciou um namoro com o fotógrafo negro Marcelo (Flávio Bauraqui). Foto 216-Personagens Ada, Magali e Aluísio. Fonte: Rede Globo, 2009. A questão da discriminação racial esteve fortemente presente na relação entre Caco a Láis, pois os pais da moça, Ernani (Roney Fachini) e Zoraíde (Cristina Mutarelli), se opunham a relação pelo fato de Caco ser negro. Zoraíde era mais incisiva, implicava com o genro negro, chamava-o de “made in Africa” e dizia, abertamente, que não gostava de negros. Em contra partida, a personagem negra Paulina (Kennya Costa) mãe de Caco, não gostava de brancos e reagiu com indignação ao saber que o filho estava namorando uma moça branca, tentando de várias formas separar o casal. Paulina batia de frente com a branca Zoraíde, xingava a família da nora de “baratas descascadas”, “desbotados” e “caras pálidas”. A trégua entre as famílias só foi selada com o nascimento da filha mestiça, fruto do relacionamento entre Caco e Láis. Na cena 248 em que as famílias contemplavam a neta no berço, a avó negra disse: “Ai de quem xingar minha neta por ser negra”, em seguida a avó branca retrucou: “Ai de quem xingar minha neta por ser branca”. Considero que esse desfecho terminou por reforçar o mito da democracia racial, no qual a impossibilidade de determinar a “cor ou raça autêntica” da criança, permitiria que ela figurasse num limbo que a faria ser aceita tanto pelos parentes negros como os brancos. Paulina era uma negra que somente combatia situações de discriminação de brancos para com negros, ou seja, somente advogava contra a prática da discriminação racial em causa própria. Esta postura da personagem, a meu ver, expressa o entendimento do autor da novela sobre a problemática do negro no Brasil, expresso no capítulo em que Paulina saiu em defesa da menina negra Ada, quando esta foi discriminada e reprovada em uma agência de publicidade. A criança negra Ada tinha o sonho de ser atriz e, mesmo tendo sido a única criança que conseguiu ter um bom desempenho no teste para ser garota propaganda de uma marca de sorvetes, foi eliminada sumariamente por não se enquadrar no perfil idealizado pelos diretores do comercial, que priorizavam somente a escolha de uma menina loira. Quando a proprietária da marca de sorvete, Paulina, que também era negra, soube do contexto da discriminação da criança negra no seletivo do comercial para seu produto, contratou a menina negra e demitiu o diretor que havia reprovado a criança por ser negra. No folhetim Morde e Assopra (Rede Globo, 19hs, 2011), também ambientado na capital paulista e em uma fazenda no interior do Estado de São Paulo, Carrasco escreveu uma comédia que tinha como pano de fundo a robótica, a arqueologia e a vida no campo. Esta novela trouxe cinco personagens negros, que não tiveram destaque nem tão pouco uma trama própria dentro no enredo. Carrasco novamente abordou a questão da discriminação racial por meio da personagem Lidia (Ildi Silva), uma moça pobre, empregada doméstica, filha bastarda de um fazendeiro branco, que lhe deixou uma pequena porção de terra em testamento. Porém, a moça sofria intensa perseguição dos meio-irmãos brancos e ficou desamparada. Recebeu a ajuda do personagem branco Tiago (André Bankoff) e se apaixonaram. O pai de Tiago, Oséas (Luis, Mello) reprovou o namoro do filho pelo fato de Lidia ser negra e pobre. Em uma cena, Oseás chegou a rasgar o vestido de Lidia, quando Tiago levou a jovem negra para jantar em sua casa. No final da novela Lidia e Tiago se casaram. 249 Foto 217- Personagens Lidia, Oséas e Tiago. Fonte: Rede Globo, 2011. A novela trouxe a família composta pelo negro Bento (Cosme dos Santos) e a branca Marli (Daniela Fontan), que eram pais do menino negro Nelsinho (Jorge Amorim Ramos). O personagem Bento foi apresentado no site da Rede Globo como um “rude trabalhador do campo”, Bento era muito dedicado ao seu patrão branco, Abner (Marcos Pasqueim), o protagonista da trama. Marli trabalhava na produção da fazenda e, também, era muito dedicada à família branca do patrão. O filho negro do casal somente tinha cenas brincando com a filha branca do patrão, Tônica (Klara Castanho). A novela não retratou a convivência familiar entre Bento, Marli e Nelsinho, personagens que não tinham cenários próprios, só apareciam em cenas com seus patrões brancos. Foto 218-Personagem Bento. Fonte: Rede Globo, 2011. A trama apresentou o casal inter-racial, de meia idade, composto pela personagem negra Janice (Dhu Moraes) e o branco Roney (Mauro Gorini). Janice era Cozinheira, e confidente da patroa branca, Júlia (Adriana Esteves). O personagem negro Igor (Antônio Firmino), que era personal trainner de um SPA, encenava o estigma da hiperssexualidade e virilidade do homem negro, era objeto de sonhos eróticos das personagens brancas Irene (Miriam Lins), Augusta (Cissa Guimarães) e Carolina (Flavia Garrafa). 250 Foto 219 - Personagens Janice e Roney. Fonte: Rede Globo, 2011. A questão do racismo também foi abordada por Aguinaldo Silva, na novela Senhora do Destino (Rede Globo, 21hrs, 2004), por meio da personagem Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), a antagonista e vilã da novela. Nazaré era uma veterana prostituta de meia idade, que gostava de figurar como uma moralista mãe de família. Orgulhava-se de ser loira e ter origem alemã, e proferia discursos de satisfação quando mantinha relações sexuais com vários homens, parceiros amorosos ou clientes. Porém, expressava incomodo ou mesmo se recusava a manter relações sexuais com negros. A ocorrência da abordagem da discriminação racial implícita ou tácita em torno da enunciação de personagens negros nas telenovelas é uma prática recorrente pelos autores novelistas. Entretanto, nos últimos foram processados alguns redimensionamentos em torno de como esta questão tem sido abordada nos folhetins, que passaram a encampar os dispositivos constitucionais vigentes que coíbem o racismo. Neste horizonte, percebi uma tendência de punir legalmente ou moralmente os discriminadores. Neste contexto formas sutis e tácitas de discriminação foram acionadas em alguns enredos. Uma significativa alteração que identifiquei nos folhetins etnografados que abordaram a questão da discriminação racial explícita foi a apresentação, em alguns enredos, de discursos nos quais negros discriminavam outros negros, como na novela A Lua Me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005) e negros que discriminavam brancos, como na novela Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007) e Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2008). Considero que esta estratégia pode estar relacionada à intencionalidade de alguns novelistas em sugerir que o negro também faz uso da discriminação racial, o que os nivelaria aos brancos, que também comentem tal prática. 251 9 À GUISA DE CONCLUSÃO: (in)visibilidade negra nas telenovelas A ameaça simbólica das cotas raciais constitui um ganho político, um espaço conquistado e mantido mediante permanente pressão política, resultante de processos históricos de movimentos de resistência iniciados por atores e intelectuais negros, que foram posteriormente encampadas pelo poder legislativo. A proposição do projeto de cotas para negros na mídia brasileira inovou positivamente ao instaurar um debate em torno da participação de negros em telenovelas brasileiras. A repercussão em torno do projeto das cotas contribuiu para indicar a escassez de possibilidades do negro nas telenovelas, o que desencadeou a preocupação dos autores em assegurar sua presença nos folhetins. Assim, a discussão acerca das cotas adquiriu um caráter propositivo e possibilitou a “abertura do sistema”, materializando resultados que podem ser identificados no aumento numérico da participação de negros e negras nos folhetins. O período constituído a partir de 2001 instaurou na mídia brasileira uma estratégia direcionada a intervir sobre a discriminação racial ao negro, expressa na ausência deste em seus produtos. Enquanto expressão de uma fratura no discurso colonial (BHABHA, 1998) reproduzido pelos enredos das telenovelas, o espaço enunciativo destas no tocante a construção dos personagens negros, segue atualmente ainda tocado pela ameaça simbólica, embora esta hoje não é apenas um espectro das possibilidades de institucionalização das cotas raciais, se expressa sobretudo pelo fato das telenovelas estarem passíveis de judicialização, pois o texto Constitucional brasileiro incorporou dispositivos que criminalizam o racismo e a xenofobia, e também pelo fato dos folhetins estarem atualmente sob uma permanente vigilância social e política de segmentos consideráveis do público telespectador através das redes sociais, e também de movimentos sociais que “fiscalizam” os produtos midiáticos de modo a monitorar participação de negros. Estes elementos articulados alargam fissuras no lócus de enunciação da presença negra nos folhetins enquanto um processo de resistência que expressa uma apropriação da perspectiva do pensamento liminar (MIGNOLO, 2003). A perspectiva teórica da colonialidade me permitiu problematizar os mecanismos que subjazem ao cenário de aumento numérico de negros nas telenovelas, fornecendo pistas que nortearam uma interpretação dos elementos que constituíram e eventualmente retroalimentam esta tendência de ampliação da presença de personagens negros em telenovelas. Primeiramente, parti do pressuposto de que ausência de 252 personagens negros em telenovelas constituía invisibilidade. Esta invisibilidade era tautologicamente localizada como um instrumento de exclusão do negro e reafirmação do discurso colonial. Foi então que percebi que este pressuposto podia me enclausurar na armadilha de um esquema de interpretação quase intuitivo e binário, que percebia a ausência como única expressão de invisibilidade. Conseqüentemente, apontaria a presença de personagens negros como sendo automaticamente igual a sua visibilidade nos folhetins brasileiros. Assim, estaria naturalizando a idéia de visibilidade, constituindo-a exclusivamente pelas experiências da presença física do negro nos folhetins. Este seria um entendimento mecanicizado em torno da idéia de visibilidade, construído pela detecção de que uma quantidade numericamente maior do negro nas telenovelas conferia maior visibilidade ao negro. Neste horizonte, discuti as diferentes propostas de personagens negros que foram veiculadas pelas telenovelas no período recortado por esta análise. No contexto das telenovelas, que são produtos midiáticos produzidos sob o signo das relações coloniais, esta visibilidade auferida aos personagens negros é relativa, por ser viabilizada por uma linguagem produzida pelo discurso colonial, que veicula uma idéia de sujeito negro construída enquanto um depositário de diferenças, paradoxalmente oposto a idéia de sujeito branco. Assim, esta visibilidade é ambivalente, portadora de uma polissemia que, ao mesmo tempo em que insere os negros nos enredos, e os afirma enquanto personagens, porém os segrega sócio-espacialmente nas tramas, negando a possibilidade de construção de um significado de humanidade como aos personagens brancos. A forma como os personagens negros dificilmente têm suas famílias apresentadas na trama e, também, a forma como as famílias negras são retratadas, apontam para a ambivalência da visibilidade conferida aos personagens negros nos folhetins. Meu esforço em tentar agrupar os folhetins por estereótipos ou temáticas preponderantes, resultou de uma tentativa de classificação de uma vasta etnografia feita tendo como foco 68 folhetins produzidos pela Rede Globo de 2001 a 2013, com vistas a problematizar como se produz socialmente as diferenças entre negros e brancos nestas novelas, especialmente como é enunciada e apresentada a imagem e significação do(a) negro (a). A análise do material etnográfico indicou que o aumento quantitativo no tocante à presença de negros nas telenovelas não pode ser interpretado automaticamente como um aumento qualitativo. Assim, no contexto das telenovelas brasileiras não é possível a 253 equação de que uma maior quantidade de personagens negros/negras, resulta diretamente em uma maior visibilidade destes nos folhetins. Nem toda presença de personagens negros em uma telenovela, assegura uma participação efetiva deste no enredo. Em alguns folhetins como Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013) escrito por Walcyr Carrasco, grande parte dos personagens negros que apareceram ao longo da trama, não foram fixos ao longo da exibição da novela, figurando em limitadas cenas e em capítulos específicos, mas não participam efetivamente da trama. Percebo que as estratégias de visibilidade/invisibilidade em torno dos personagens negros, construídas pelos enredos das telenovelas, fornecem enunciados que localizam o status subalterno do negro nas instituições coloniais, de modo a reverberar o discurso colonial, por intermédio das formas como estes são situados, retratados, ignorados, ou inseridos nas telenovelas. Assim, o discurso colonial, constrói uma “visibilidade” constituída pelo enunciado, representação e apresentação do colonizador branco. Nesta perspectiva, sob os moldes da enunciação do colonizador pode não ser possível ao negro ter enunciação própria, porque, mesmo tendo a oportunidade de falar e de ter visibilidade, os personagens negros o fazem completamente reféns do modelo de estética, linguagem e significado do sujeito branco. No contexto da presença do negro, ou da ampliação quantitativa desta nas telenovelas da Rede Globo, a visibilidade conferida por um enunciado configurado pela lógica do colonizador, pode, em alguns casos, não alterar a condição de silenciado/invisibilizado do negro enquanto subalterno. Uma análise acerca do contexto do alargamento da presença do negro nas telenovelas, permite apontar que nestas a imagem que aparece é do negro, mas o espaço em que este personagem negro figura é de propriedade do branco, reafirmando assim uma relação de hierarquia étnico-racial, e apontando que a visiblidade é uma dimensão de poder, poder este que não se expressa apenas na repressão do espaço delegado ao negro, mas sobretudo um poder que produz este negro, posicionando-o em um lugar demarcado colonialmente. A construção de personagens negros/negras baseados na produção/reprodução de estereótipos materializa uma estratégia muito utilizada pelos autores novelistas para dar (in)visibilidade à produção social da significação do personagem negro. Aqui me reporto à discussão feita por Bhabha (1998) acerca de hibrirismo, haja vista, que considero que no processo de produção da enunciação de personagens em um enredo de um folhetim, ocorre uma significação intercultural, ou seja, a cultura do colonizador 254 (branco) enuncia bens culturais dos colonizados (negro/negra). O que pode também permitir uma interpretação de que este negro/negra pode permanecer invisibilizado, mesmo estando visível por esta (in)visibilidade por vezes constituída por meio de processos de estereotipia. As estratégias de visibilidade/invisibilidade fornecem enunciados que qualificam os personagens negros e estes são criados e inseridos nas tramas sob a ótica do branco, pensados pelo branco, figurando nos folhetins ora como negros que agem mimetizando os brancos (BABHA, 1998), ora como objeto de desejo, repudio, temor, medo, raiva ou subserviência. A presença dos/das personagens negros/negras nas telenovelas etnografadas pode ser qualificada como uma visibilidade híbrida, pois se processa num contexto de produção de diferença colonial. Enquanto representação é hibrida por condensar traços dos dois discursos, o do colonizador e o liminar (do negro). Os enunciados dos personagens das novelas expressam a produção social das diferenças entre negros e brancos. Considero relevante sinalizar que as estratégias acionadas pelos novelistas para dar visibilidade aos personagens negros nos folhetins foram mobilizadas para dar uma resposta ao debate constituído em torno das cotas e apontam para a vigência das relações coloniais no tocante a produção das diferenças entre negros e brancos. Entre os anos de 2004 a 2012, seis telenovelas foram produzidas com presença de protagonista(s) negro(s). Enfatizo que dos folhetins produzidos no período compreendido entre 1963 e 2000, apenas duas haviam apresentado protagonistas negros. Para não cair na armadilha de fazer uma análise positivada deste panorama de ampliação, considero pertinente fazer algumas demarcações. A primeira demarcação que faço, refere-se ao fato de que os folhetins estrelados por negros, foram protagonizados pelos mesmos atores: Taís Araújo, Lazaro Ramos e Camila Pitanga. Taís Araújo (25/11/1978) estreou na televisão em 1995, na novela Tocaia Grande (Rede Manchete, 22hrs, 1995). No ano seguinte, interpretou o papel título do folhetim Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996). Este personagem lhe conferiu notoriedade, reconhecimento profissional e o convite para ingressar na Rede Globo em 1998. Na Globo, foi escalada para a novela Anjo Mau (Rede Globo, 18hrs, 1998), Meu Bem Querer (Rede Globo, 19hrs, 1999). Atuou em diversos filmes, até receber o convite para protagonizar o folhetim Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004), assinado pelo autor João Emanuel de Carneiro. Esta novela causou muita repercussão por apresentar uma protagonista negra, abordar a questão da discriminação racial e dos preconceitos vividos pelo negro e, também, reforçou os estereótipos sobre o 255 negro, a começar pelo título que demarcava que a cor do pecado (sexual) é negra. A personagem Preta, protagonista da trama em questão, exponenciou a atriz Taís Araújo ao time do primeiro escalão das atrizes da Rede Globo. Passados dois anos, Taís Araújo, recebeu um papel de destaque na novela Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006). Seu status de protagonista e também de Lazaro Ramos neste folhetim, foi demarcado após o primeiro mês de exibição da trama, diante da enorme aceitação do público em relação aos personagens interpretados pelos dois, pelas cenas de comédia que propunham. Os dois interpretavam Ellen e Foguinho, respectivamente, personagens que ficavam ricos, por meio de um golpe. O humor proposto pela novela, através destes personagens, advinha do elemento inusitado de ver dois negros, despreparados, vivendo mil trapalhadas e trapaças em torno da fortuna que recebiam. A novela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), do autor Manoel Carlos manteve a tradição deste dramaturgo em atribuir o nome de Helena para a protagonista, mas inovou apresentando a primeira Helena Negra, papel protagonizado pela atriz Taís Araújo. Em 2012, Taís Araújo interpretou um dos papeis de protagonista na novela Cheias de Charme (Rede Globo, 2012). Deu vida à personagem Penha, uma empregada doméstica, que sustenta o marido não-negro, o filho e os dois irmãos. Trabalhava para patroas brancas. Agregou-se com duas outras empregadas domésticas, porém brancas, Cida (Isabele Drumond), e Rosário (Leandra Leal) e formou o grupo musical “Empreguetes”. Penha era a única das três “Empreguetes” que não tinha escolaridade e não conjugava os pronomes pessoais e os tempos verbais, segundo a norma brasileira culta de linguagem. Ao longo da novela Penha foi cortejada por homens brancos, inclusive pelo marido de uma patroa. O ator Lázaro Ramos (Salvador, 01/11/1978) começou sua trajetória profissional no teatro e cinema. Ingressou na Rede Globo em meados de 2003, participou de diversos programas no formato série, até se tornar um dos protagonistas de Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006) ao lado da atriz Taís Aráujo. Lazaro foi coadjuvante na novela Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2007) e Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011). Em 2012 interpretou o personagem Zé Maria, protagonista da novela Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012). A atriz Camila Pitanga (Rio de Janeiro, 14/06/1977) é filha do ator negro Antônio Pitanga. Começou sua carreira em 1984, como figurante no filme Quilombo, de Cacá Diegues. Em 1988 passou a trabalhar como assistente de palco da apresentadora 256 Angélica, no programa Clube da Criança da Rede Manchete. Em 1993 integrou o elenco da mini-série Sex-Appel (Rede Globo, 22hrs, 1993), atuou em papeis secundários em algumas novelas nos anos seguintes, até receber o primeiro papel de destaque de sua carreira: o da prostituta Bebel na novela Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007). Na trama, esta personagem era categorizada pelos demais como mulata/negra/morena. Envolvia-se com homens brancos e ricos e era explorada por um cafetão. Considero relevante destacar que a personagem Bebel foi inicialmente direcionada a atriz, branca, Mariana Ximenes, com sua recusa, o papel foi oferecido a atriz Camila Pitanga. Com exceção da atriz Zezé Motta na novela Pacto de Sangue (Rede Globo, 18hrs, 1989), somente os três citados atores negros estamparam capas de CDs com as coletâneas com as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Camila Pitanga, em A Próxima Vitima (Rede Globo, 21hrs, 1995) e Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007); Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009), Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011), e Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012). Taís Araújo estampou a capa da trilha sonora das novelas Anjo Mau (Rede Globo, 18hrs, 1998) e Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004), Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009). Lazaro Ramos estampou as coletâneas de Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2008), Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011) e Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012). O fato dos mesmos três atores atuarem como protagonistas, ou serem considerados qualificados para atuar como protagonistas no contexto de um país constituído por mais de 60% de negros e mestiços, me leva a interpretar esta proposta de escalação dos mesmos três atores negros, como uma estratégia para sugerir um contexto de igualdade racial, como já ocorria desde os tempos dos bailes da corte do Brasil Imperial, no qual segundo Costa (2008) a Princesa Isabel dançava sempre com os mesmos poucos negros. Por outro lado, das seis novelas que apresentaram protagonistas negros, apenas uma foi veiculada no horário nobre, o das 21hrs. Este horário na Rede Globo é o mais caro para anunciantes e, segundo dados do IBOPE (2005), desde a década de 1970 esta emissora exibe folhetins que alcançam maior audiência. Outro ponto que quero destacar está relacionando ao fato de que, com exceção da telenovela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), escrita pelo veterano autor Manoel Carlos, todas as demais foram escritas por autores iniciantes, que começaram a escrever a partir de 2001, no contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais. Da cor do pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004) e Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006), 257 foram, respectivamente, a primeira e a segunda novela do autor João Emanuel de Carneiro. Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) foi a segunda novela assinada pelo trio de autores Duda Rachid, Thelma Guedes. Entretanto, a primeira novela assinada pela dupla de autores em questão, o folhetim O profeta (Rede Globo, 18hrs, 2006), consistiu em um remake, uma adaptação homônima do folhetim O profeta (TV Tupi, 20hrs, 1977), escrito originalmente pela autora Ivani Ribeiro. Entendo que os dramaturgos iniciantes, no esforço de consolidar sua posição na constelação em que figuram os autores veteranos, apostaram em elementos novos e inusitados em seus folhetins e a indicação de protagonistas negros consistiu em uma estratégia “ousada”. Manoel Carlos, autor de Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), manteve sua peculiar narrativa: a trama em questão era ambientada no bairro carioca do Leblon, como seus demais enredos e apresentava a protagonista com o nome de Helena. A personagem helena interpreta pela atriz Taís Araújo, consistia na oitava “Helena” produzida por este autor, foi a única que não se tornou mãe ao longo da novela. Considero que, no atual momento, o negro conquistou uma presença maior nas telenovelas, entretanto, quando os personagens negros estão na posição de protagonistas, os consagrados estereótipos são retratados de forma tenaz. O passeio pelo enredo das telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a 2013, me permitiu perceber que estes folhetins, diferentemente daqueles exibidos nas décadas anteriores, não reduzem a possibilidade da presença de personagens negros às senzalas dos enredos históricos sobre o sistema escravista no Brasil, nem apenas à atualização deste modelo através de personagens que figurem nas tramas como domésticos, motoristas, seguranças ou criminosos. Nas telenovelas produzidas a partir de 2001, observei uma perspectiva crescente da constituição de personagens negros/negras que não mais figuravam nas tramas apenas desempenhando papeis de empregados domésticos ou profissões que indicavam pouca escolaridade. Os folhetins produzidos no período recortado pelo presente estudo apresentaram uma significativa quantidade de personagens que foram enunciados nas tramas desempenhando profissões consideradas elitizadas, como médicos, cantores, modelos, milionários, deputados, executivos, advogados, juízes. Entretanto mesmo quando este/esta personagem figurava nas tramas, desempenhando profissões, que nas décadas anteriores eram destinadas a personagens brancos/brancas, estes personagens negros/negras não tinham suas famílias retratadas nos enredos, não tinham sua condição enquanto negro explicitamente mencionada, figuravam nas tramas em função de 258 personagens brancos e apresentavam um comportamento direcionado aos personagens brancos tão submisso quanto ocorria com os personagens apresentados como profissionais domésticos e serviçais. Foi bastante recorrente nos folhetins analisados, a presença de negros e negras enunciados como melhores amigos/amigas, ou leais confidentes de personagens brancos, assistentes pessoais de brancos, a exemplo dos escravos que trabalhavam como mucamos ou das aias de confiança, típicos do regime escravagista brasileiro. Identifiquei, também, o endosso ao discurso colonial, na construção de personagens negros que figuravam nas tramas tutelados por personagens brancos e os enxergavam como salvadores ou protetores, devotando-lhes uma lealdade ou gratidão irrestrita e reforçando o ideal de superioridade moral e ética dos personagens brancos, expressas por sua bondade e generosidade. Um clichê fortemente explorado neste contexto foram os personagens brancos que adotaram ou protegeram crianças negras. Até quando os personagens negros eram os protagonistas, havia na composição dos enredos em torno destes personagens, uma ligação que atrelava este personagem negro a personagens brancos, especialmente na condição de par romântico, e/ou antagonista na trama. Este foi o contexto da personagem Preta (Taís Araujo) em Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2003), Foguinho (Lazaro Ramos) e Hellen (Taís Araújo) em Cobras e Lagartos, Rose (Camila Pitanga) em Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009), Helena (Taís Araújo) em Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), Zé Maria (Lazaro Ramos) e Isabel (Camila Pitanga) em Lado a Lado. Neste horizonte, também penso ser possível interpretar uma presente ausência do negro, ou seja, este pode estar presente, visível, porém pode permanecer invisibilizado, silenciado, por ter sido construído na trama em um contexto de pouca carga dramatúrgica, sendo retratado unicamente em sua dimensão profissional, ou unicamente com ligação afetiva com personagens brancos. Grande parte das famílias negras apresentadas nas novelas que etnografei figuravam nas tramas como desestruturadas, quando comparadas às famílias de personagens brancos, permitindo identificar desajustamentos como filhos bastardos, de pais ignorados, relações com a criminalidade, além da presença do estigma do pai ausente ou, quando presente, alcoólatra e negligente com a família. A mãe, muito trabalhadora, tinha que se desdobrar para conciliar o trabalho e a criação dos filhos praticamente sozinha. 259 Outra nova estratégia que identifiquei como adotadas pelos novelistas foi dar aos personagens negros o mesmo tratamento dos brancos nas telenovelas, pelo viés das possibilidades de consumo e negando-lhe toda e qualquer referência a sua condição de negro. Uma característica que distingue a presença de negros/negras no período abarcado pela pesquisa, aponta para que, a partir de 2001, os personagens negros passaram a figurar nos folhetins desempenhando profissões até então somente destinadas a personagens brancos, sem sua condição de negro fosse mencionada diretamente nos discursos veiculados pela telenovela. Os folhetins analisados reeditam a estratégia de explorar uma suposta hiperssexualidade da mulher negra e o fetiche da relação da mulher negra e do homem branco e criaram algumas novas estratégias como a ênfase na beleza exótica e a virilidade/malandrangem/criminalidade em torno do homem negro, bem como o fetiche da relação entre um homem negro e uma mulher branca. Sobretudo quando os personagens negros/negras estiveram na posição de protagonistas, os consagrados estereótipos e estigmas estiveram fortemente presentes na composição dramatúrgica destes personagens ao longo do folhetim. As telenovelas tendem a enunciar os personagens negros intercalando processos de estereotipia. Os enredos tendem enfatizar um estereotipo em torno do negro/negro como por exemplo, a questão da hiperssexualidade, também promovem no mesmo enredo atravessamentos de outras expressões de estereotipias em torno do negro como a criminalidade ou subserviência a personagens brancos em moldes escravistas, mesmo sendo uma trama contemporânea. Mesmo diante da identificação de que processos de estereotipia permearam as propostas de enunciação de personagens negros nas telenovelas analisadas, localizo que pontes que permitem novas expressões de visibilidade para negros, foram construídas no contexto da ampliação da presença de personagens negros nos folhetins. Considero que este aumento tem um caráter ambivalente porque foi estabelecido por meio da representação de estereótipos em torno do negro. Em Bhabha (1998) enxergo a dimensão ambivalente do processo de estereotipia dos negros nas telenovelas, pois se por lado os estereótipos podem os reduzir, invisibilizar e obliterar a diversidade, por outro lado, materializaram a chave de abertura da possibilidade de personagens negros obterem visibilidade nos folhetins. Ancorado na idéia de “pensamento liminar” proposta por Mignolo (2003) percebo a necessidade de estar atento a armadilha de obliterar a ambivalência do 260 estereotipo no tocante a presença de negros nos folhetins, no discurso fácil de que representado nos enredos por meio da estereotipia, o negro permanece inegavelmente invisibilizado. Considero que o aumento da visibilidade do negro promovida nas telenovelas por meio de personagens estereotipados, inovaram ao viabilizar com a presença negra a superação da sua ausência nos folhetins. Assim, penso que este processo de presença e ampliação de personagens negros nos enredos constituiu um movimento de discussão e negociação, que é fundamental para subsidiar um exercício de reflexão, que pode contribuir, inclusive, para promover a revisão e/ou a superação da estereotipia constituída em torno da inserção destes negros nos folhetins. 261 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil. São Paulo: Editora SENAC. 2000. BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, 1976. BHABHA, H. (1998). O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG. BARBOSA, Luciene Cecilia. Louca Paixão: Questões Raciais na telenovela sob o olhar do receptor. Dissertação de Mestrado na Escola de Comunicações e Artes; Universidade de São Paulo, 2002 BARROS, Maria. Sidrome de Cirillo e a Solidão da Mulher Negra. In: http://blogueirasnegras.org/2013/06/14/sindrome-de-cirilo-e-a-solidao-da-mulhernegra/, 2014. BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ed. 1997. ______. 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