Ronnie Marmo

Transcrição

Ronnie Marmo
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Igor Bergamo Anjos Gomes
(In)Visibilidade? o negro nas telenovelas
São Luís
2015
1
IGOR BERGAMO ANJOS GOMES
(In)Visibilidade? o negro nas telenovelas
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da
UFMA, para obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais.
Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Beserra
Coelho
São Luís
2015
2
Gomes, Igor Bergamo Anjos
(In)Visibilidade? O negro nas telenovelas / Igor Bergamo Anjos Gomes. – São
Luís, 2015.
268f.
Orientadora: Prof a. Dra. Elizabeth Bessera Coelho.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de PósGraduação em Ciências Sociais, 2015.
1. Personagens negros 2. Telenovelas 3. Visibilidade/invisibilidade I. Título
CDU 316.722
3
IGOR BERGAMO ANJOS GOMES
(In)Visibilidade? o negro nas telenovelas
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da
UFMA, para obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais.
Aprovada em____/______/ 2015
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof. Dra. Elizabeth Beserra Coelho (Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão
_______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva.
Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________
Prof. Dra. Maria Do Socorro Sousa de Araújo
Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________
Prof. Dr. Ramon Luis de Santana Alcântara
Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________
Prof. Dra. Cíndia Brustolin
Universidade Federal do Maranhão
4
AGRADECIMENTOS
A conclusão do curso de doutorado em Ciências Sociais materializa uma grande
alegria em minha vida e a realização de um grande sonho, que certamente viabilizará
outros. Reconheço que esta não concretiza uma vitória apenas individual, mas de uma
coletividade de pessoas que estiveram ao meu lado como parceiras ao longo de minha
trajetória. Por isso eu agradeço a Deus por seu amor para comigo, pela força que sempre
me deu e pelas pessoas maravilhosas que colocou em minha vida.
Agradeço a minha família, na pessoa de minha mãe Ramona, que depois de mim
é a pessoa mais empolgada com minha tese e meu doutoramento, ao meu pai Perpétuo,
minha irmã Mariana e meu cunhado Guilherme, pelo apoio, amor e compreensão
incondicional ao longo desta e de outras jornadas.
Agradeço a minha querida Professora Elizabeth Coelho, por ter aceito o convite
para ser minha orientadora. Agradeço-lhe por ser, desde que a conheci em 2005, uma
referencia profissional e de ser humano para mim.
Penso que palavras não são
suficientes para expressar minha admiração, minha gratidão à minha orientadora pelo
carinho e acolhimento e pela forma como me mostrou os caminhos para construção
deste trabalho.
Agradeço ao meu colega de trabalho Thiago Lima, pela amizade desde os
tempos da graduação em geografia-UFMA, pelas aprendizagens teórico-metodológicas
que compartilha comigo, pela ajuda prestimosa no tocante a revisão do texto da tese.
Agradeço a professora Socorro Araujo por sua solicitude para comigo desde os
tempos em que era aluno de graduação no curso de serviço social da UFMA, pelas
contribuições ao meu trabalho dadas por ocasião da qualificação do projeto e da tese.
Agradeço aos professores do doutorado em Ciências Sociais da UFMA, em
especial ao professor Carlos Benedito, “Carlão”, o primeiro a me receber nas Ciências
Sociais, como meu orientador no mestrado, sendo parceiro na construção da dissertação
que foi o ponto de partida do projeto que resultou na presente tese. Agradeço, também,
aos professores Horácio Antunes e Sandra Nascimento pelo aprendizado que me
propiciaram ao longo das disciplinas que cursei sob a condução destes no mestrado e
doutorado. Agradeço, também, as minhas colegas de turma no doutorado, Katia Núbia,
Anne Nava e Juciana Sampaio e aos amigos do grupo de estudos Estado Multicultural e
Políticas Públicas pela convivência e cooperação acadêmica.
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Agradeço aos professores Ramon Luis de Santana Alcântara e Cíndia Brustolin
por terem aceitado o convite para compor a banca de avaliação da tese, e pelas preciosas
contribuições feitas ao meu trabalho.
Agradeço a todos os meus colegas do Departamento de Geociências da UFMA,
pela compressão no tocante a redução de minha carga horária para que eu pudesse
cursar o doutorado. Agradeço, em especial, aos professores Irecer Portela, Juarez Diniz,
Roberta Figueiredo, Juarez Mota, Marcelino Farias e Ediléia Dutra Pereira e Samarone
Marinho, que ocuparam a Coordenação do curso de Geografia e Chefia do
Departamento do qual faço parte como docente na UFMA, por cooperarem para que
meus horários fossem redimensionados, para viabilizar o alcance de minha titulação.
Agradeço a minha ex-professora e atual colega de trabalho Zulimar Márita
Ribeiro Rodrigues pela torcida e ajuda no tocante a disciplina Direito Ambiental que
cursei do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambiente do qual é coordenadora.
Agradeço aos meus colegas de departamento Maria da Glória e Márcio Celeri, pelo
apoio presencial no dia da defesa da tese.
Agradeço a todas minhas queridas professoras do curso de Serviço Social da
UFMA e também aquelas a quem conheci na coordenação, departamento, ou mesmo
nos corredores. Além de minhas eternas mestras, são referenciais na minha formação
política e exercício profissional. Não poderia deixar de citar os nomes das professoras:
Amparo Barros, Jacinta Silva, Maria Eunice Damasceno, Célia Martins Soares e
Silvany Magali.
Agradeço, também a amizade e parceria dos meus amigos, afilhados a quem
chamo carinhosamente de “base aliada”. Não poderia deixar de citar Sandra Caldas,
Celso Cutrim, Robinson Castro, Rodolfo Prata Naza, Alex Andrade, Alessandra
Oliveira, Phelipe Almeida , Helena Araujo, Bruno Gutiez, Tieta do Agreste, João José
Soares, Marcia Ninfabebê, Janselmo Mello, Janaina Haickel, Pedro Costa, Paloma
Costa, Augusto Mendes, Aline Haickel, Diogo Azoubel, Fátima Acioly, Pedro
Ximenes, Patricia Ximenes, Joanyr Filgueira, Joaninha Castro, Rafael Cordeiro,
Elizabeth Haickel, Jocilene Silva, Taline Shineider, Luana Lima, Gustavo Santos e a
querida Amanda Marfree “um anjo que caiu nas nossas vidas este ano”.
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RESUMO
A presente tese analisa a presença de personagens negros em 68 telenovelas produzidas
pela Rede Globo de Televisão entre os anos de 2001 a 2013, tendo por objeto a
compreensão da produção social da diferença no tocante a significação da idéia de
sujeito negro. O processo de investigação, ancorado em uma etnografia destas
telenovelas, apontou que os folhetins produzidos dentro dos marcos temporais
estabelecidos pela pesquisa, sob a “ameaça simbólica” da proposição das cotas raciais
na mídia, passaram a implementar um aumento quantitativo no tocante a presença de
personagens nos enredos das tramas em questão. O percurso investigativo indicou que
as propostas de personagens negros nos folhetins em questão reproduziram estereótipos
sobre o negro, orientados por uma racionalidade referenciada nas relações coloniais. As
categorias analíticas Colonialidade do Poder e do Saber (Mignolo, 2003) e os esquemas
analíticos propostos pelos autores pós-coloniais Bhabha (1998) e Spivak (2010)
instrumentalizaram a identificação de que, no tocante a inserção de personagens negros
em telenovelas, uma maior quantidade, pode não assegurar uma maior visibilidade nos
enredos, bem como a presença de personagens negros pode não resultar diretamente em
uma maior participação nas tramas, o que desestabiliza a equação de que ausência seria
igual a invisibilidade e presença igual a visibilidade.
Palavras-Chave: Personagens Negros, Telenovelas, Visibilidade/Invisibilidade.
7
ABSTRACT
This thesis analyzes the presence of Black characters in 68 soap opera produced by
Rede Globo de Televisão between the years 2001 to 2013, having by object the social
differences production understanding, regarding the significance of Black person Idea.
The research process, anchored in these soap operas ethnography, pointed out that the
serials produced within the timeframes established by the researchunder the "symbolic
threat" of the racial quotas in the media proposition, began to implement a quantitative
increase regarding the Black characters presence in the plots of the soap operas in
question .Investigative route indicated that proposals for black characters in these serials
in question reproduced stereotypes about black people, guided by a rationality
referenced in colonial relations .The analytical categories Coloniality of Power and
Knowledge ( Mignolo , 2003) and the analytical frameworks proposed by authors postcolonial Bhabha (1998) and Spivak (2010) instrumentalised the identification that, as
regards the inclusion of black characters in soap operas ,greater quantity can not ensure
greater visibility to the plots, and the presence of black characters can not lead directly
to greater participation in the plots ,which destabilizes the equation that absence would
equal invisibility and presence equal visibility.
Keywords : Black Characters , Soap Operas , Visibility / Invisibility
8
LISTA DE FOTOS
FOTO 01 - Atriz Ruth de Souza, na novela A Cabana do Pai Tomás em 1969.............50
FOTO 02 - Atriz Tais Araújo na novela Xica da Silva..................................................51
FOTO 03 - Ricardo Linhares...........................................................................................66
FOTO 04 – Benedito Ruy Barbosa..................................................................................67
FOTO 05 - Walther Negrão.............................................................................................68
FOTO 06 - Euclydes Marinho.........................................................................................71
FOTO 07 - Alcides Nogueira..........................................................................................71
FOTO 08 - Mário Prata...................................................................................................74
FOTO 09 - Walcyr Carrasco...........................................................................................76
FOTO 10 - Antonio Calmon............................................................................................77
FOTO 11 - Glória Perez..................................................................................................79
FOTO 12 - Miguel Falabela............................................................................................80
FOTO 13 - Silvio de Abreu.............................................................................................82
FOTO 14 - Gilberto Braga...............................................................................................83
FOTO 15 - Aguinaldo Silva............................................................................................86
FOTO 16 - João Emanuel de Carneiro............................................................................92
FOTO 17 - Manoel Carlos..............................................................................................95
FOTO 18 - Personagem Baltazar...................................................................................101
FOTO 19 - Personagem Eneida.....................................................................................103
FOTO 20 - Personagens Ramon e Dalila......................................................................104
FOTO 21 - Personagem Alex.......................................................................................105
FOTO 22 - Personagem Seth e Daniel..........................................................................105
FOTO 23 - Personagens Verbena, Antônio e Deolinda................................................106
FOTO 24 - Personagens Jacques e Clotilde..................................................................107
FOTO 25 - Personagem Adriano...................................................................................107
FOTO 26 - Personagens Lorena, Matias e Maria..........................................................108
FOTO 27 - Personagens Ináia, Jacques e Félix.............................................................109
FOTO 28 - Personagens Laerte e Ináia.........................................................................109
FOTO 29 - Personagem Judith......................................................................................110
FOTO 30 - Personagens Eron, Jayminho e Niko..........................................................111
FOTO 31 - Personagens Paco e Preta ..........................................................................112
FOTO 32 - Personagens Rai e Preta.............................................................................113
9
FOTO 33 - Personagem Dôdo.......................................................................................113
FOTO 34 - Personagens Felipe e Preta.........................................................................114
FOTO 35 - Protagonistas Brancos da novela Cobras e Lagartos.................................115
FOTO 36 - Personagens Ramires e Shirley...................................................................115
FOTO 37 - Personagens Kika e Foguinho.....................................................................116
FOTO 38 - Personagens Foguinho e Duda ...................................................................116
FOTO 39 - Personagens Foguinho e Ellen....................................................................117
FOTO 40 - Personagens Tarsicio, Rose, Regina, Francisco e Glória...........................118
FOTO 41 - Personagens Rose e Gustavo......................................................................119
FOTO 42 - Personagens Emanuelle, Tião e Rose.........................................................119
FOTO 43 – Personagens Glória e Nuno.......................................................................120
FOTO 44 – Personagens Euridice e Tarsicio................................................................120
FOTO 45 - Personagens Miguel e Rose........................................................................120
FOTO 46 - Personagens Pericles, Bené e Ernestina......................................................121
FOTO 47 - Personagens Edith, Sandra, Helena, Paulo e Laércio.................................122
FOTO 48 - Personagens Benê e Sandra........................................................................123
FOTO 49 - Personagens André e Helena......................................................................124
FOTO 50 - Personagens Helena e Marcos....................................................................124
FOTO 51 - Personagens Helena, Marcos e Luciana.....................................................124
FOTO 52 - Personagens Helena e Tereza.....................................................................125
FOTO 53 - Personagens Rafaela e Helena....................................................................126
FOTO 54 - Personagens Helena, Bruno e Marcos........................................................126
FOTO 55 - Personagens Alice, Ellen, Helena e Ariane................................................127
FOTO 56 - Personagens Cida, Rosário e Penha............................................................128
FOTO 57 - Personagens Marcos e Penha......................................................................128
FOTO 58 - Personagens Patrick e Penha.......................................................................129
FOTO 59 - Personagens Alana, Elano e Penha.............................................................129
FOTO 60 - Personagens Ignácio e Dinha......................................................................130
FOTO 61 – Personagens Zé Maria e Isabel...................................................................131
FOTO 62 – Personagens Albertino e Isabel..................................................................131
FOTO 63 – Personagens Elias, Zé Maria e Isabel.........................................................132
FOTO 64 – Personagens Isabel, Afonso e Berenice....................................................132
FOTO 65 – Personagens Berenice, Olavo, Vilmar, Zenaide e Elias............................133
FOTO 66 - Personagens Zé Maria e Carniço................................................................133
10
FOTO 67- Personagem Chico.......................................................................................133
FOTO 68 – Personagens Etelvina e Jurema..................................................................134
FOTO 69 – Personagens Etelvina e Percival.................................................................134
FOTO 70 - Personagens Nanda e Tito...........................................................................137
FOTO 71 - Personagens Carlinhos e Zilda....................................................................137
FOTO 72 - Personagem Ritinha....................................................................................138
FOTO 73- Personagens Cemil, Mônica e Alberto. ......................................................139
FOTO 74 - Personagens Sarita e Alberto......................................................................139
FOTO 75 - Personagens Diva e Marisol.......................................................................140
FOTO 76 - Personagem Deusa......................................................................................140
FOTO 77 - Personagens Deusa, Diva e Grace Kelly....................................................141
FOTO 78 - Personagens Taluda e Herondi. .................................................................141
FOTO 79 - Personagens Semíramis e Belarmino..........................................................142
FOTO 80 – Capa da Trilha Sonora Internacional da novela Paraíso Tropical............143
FOTO 81 - Personagens Bebel e Olavo.........................................................................143
FOTO 82 - Personagem Evaldo.....................................................................................144
FOTO 83 - Personagem Eloisa......................................................................................145
FOTO 84 - Personagens Evaldo e Eloisa após “banho de loja” ...................................145
FOTO 85 - Personagens Tatiana e Ivan.........................................................................145
FOTO 86 - Personagens Ivone e Daniel. ......................................................................146
FOTO 87 - Personagem Claúdio...................................................................................146
FOTO 88 - Personagens Dr. Castanho e Suellen...........................................................147
FOTO 89 - Personagem Vanúbia. ................................................................................148
FOTO 90 - Personagens Delzuite e Pescoço. ...............................................................148
FOTO 91 - Personagens Clóvis e Diva. .......................................................................149
FOTO 92 - Personagem Sheila......................................................................................149
FOTO 93 - Personagem Sidney.....................................................................................150
FOTO 94 - Personagens Julinha e Élcio........................................................................150
FOTO 95 - Personagens Islene, Feitosa e Diva.............................................................151
FOTO 96 - Personagem Dalva e Farinha......................................................................153
FOTO 97 - Atriz Negra representando Nossa Senhora Aparecida................................153
FOTO 98 - Personagens Caco e Láis.............................................................................154
FOTO 99 - Personagem Esmeralda ..............................................................................155
FOTO 100 - Personagem Mãe Ricardina......................................................................156
11
FOTO 101 - Personagem Selminha Aluada .................................................................156
FOTO 102 - Personagens Mãe Ricardina e Rufino ......................................................157
FOTO 103 - Capa da trilha sonora da novela Duas Caras............................................158
FOTO 104 - Personagens Evilásio e Júlia ....................................................................159
FOTO 105 - Personagens Misael e Claudine ...............................................................159
FOTO 106 - Personagens Sabrina e Barretinho ...........................................................160
FOTO 107 - Personagens Solange e Claudius ..............................................................161
FOTO 108 - Personagens Morena/Condessa e Apolo ..................................................161
FOTO 109 - Personagem Andréia Bijou ......................................................................162
FOTO 110 - Personagem Setembrina/Mãe Bina ..........................................................162
FOTO 111 - Personagem Rudolf...................................................................................163
FOTO 112 - Personagens Leonardo, Dagmar e Leandro..............................................165
FOTO 113 - Personagens Edvaldo e Glória .................................................................165
FOTO 114 - Personagens Jacaré e Janaína....................................................................165
FOTO 115- Personagens Sylvie e Jacaré......................................................................166
FOTO 116 - Personagens Vanusa e Rosemary.............................................................168
FOTO 117- Personagem Pedrão/Godzila......................................................................169
FOTO 118 - Personagem Àghata e Barão.....................................................................171
FOTO 119 - Personagens Damião e Galego.................................................................172
FOTO 120 - Personagens Rei Augusto e Maria Cesária...............................................172
FOTO 121 - Personagens Tibungo, Amáia e Maria Cesária. .......................................173
FOTO 122 - Personagens Virginia/Bá e Sinhá Moça....................................................177
FOTO 123 - Personagem Fulgêncio e Justino...............................................................178
FOTO 124 - Personagens Adelaide e José Coutinho. ..................................................178
FOTO 125- Capitão do Mato. .......................................................................................179
FOTO 126 - Personagens Das Dores e Tobi. ...............................................................180
FOTO 127 - Personagem Cleusinha..............................................................................181
FOTO 128 - Personagens Antero e Candinha...............................................................181
FOTO 129 - Personagem Zacarias................................................................................182
FOTO 130 - Personagens Rosário e Cosme..................................................................183
FOTO 131 - Personagens Selma e Mauricio.................................................................184
FOTO 132 - Personagens Selma, Beto, Beleza, Jóia, Mauricio e Verinha...................185
FOTO 133 - Personagens Inácia e Darlene...................................................................186
FOTO 134 - Personagens Hélio e Sabina......................................................................186
12
FOTO 135 - Personagem Abílio....................................................................................187
FOTO 136 - Personagens Olivia e Clarice....................................................................187
FOTO 137 - Personagens Jovelina e Eunice.................................................................188
FOTO 138 - Personagem Emiliano...............................................................................188
FOTO 139 - Personagem Adonir. .................................................................................189
FOTO 140- Personagens Alice e Adonir.......................................................................189
FOTO 141 - Personagem Zulma...................................................................................190
FOTO 142 - Personagem Bike-Boy..............................................................................190
FOTO 143 - Personagem Baiana...................................................................................191
FOTO 144 - Personagem Charles Muller......................................................................191
FOTO 145 - Personagem Rush......................................................................................192
FOTO 146 - Personagem Abigail/Biga.........................................................................192
FOTO 147 - Personagens Rosário e Floriano................................................................193
FOTO 148 - Personagens Cidinha e Soldado Brasil.....................................................194
FOTO 149 - Personagens Iraci e Ana. ..........................................................................194
FOTO 150 – Personagens Max e Cícero/Cirso............................................................195
FOTO 151 – Personagens Safira, Esmeralda, Ametista e Pérola. ................................196
FOTO 152 - Personagens René e Nancy. .....................................................................197
FOTO 153 - Personagens Marretta e Max. ...................................................................197
FOTO 154 - Personagens Juliano e Quirino. ................................................................198
FOTO 155 - Personagens Nicole, Wiliam, Quirino e Doralice.....................................198
FOTO 156 - Personagem Sheila. ..................................................................................199
FOTO 157 - Personagens Ademir, Cema e Maico........................................................200
FOTO 158 - Personagens Wall e Eliseu........................................................................200
FOTO 159 - Personagem Lourenço. .............................................................................200
FOTO 160 - Personagens Amendoin, Candê e Cridinho..............................................201
FOTO 161 - Personagem Amendoin.............................................................................201
FOTO 162 - Personagens Noronha e Saulo...................................................................202
FOTO 163 - Personagens Mauro e Noronha.................................................................202
FOTO 164 - Personagem Cigano..................................................................................203
FOTO 165 - Personagem Maikel Jackson.....................................................................204
FOTO 166 - Personagens Lady Daiane e ShaoLin........................................................204
FOTO 167 - Personagens Rita e Constatino..................................................................204
FOTO 168 - Personagens Deusa e Albieri....................................................................208
13
FOTO 169 - Personagens Deusa e Léo.........................................................................209
FOTO 170 - Personagem Mocinha com o neto Léo quando Criança. .........................210
FOTO 171 - Personagem Dalva....................................................................................210
FOTO 172 - Personagem Dona Jura. ............................................................................211
FOTO 173 - Personagem Tião.......................................................................................211
FOTO 174 - Personagem Lucas....................................................................................213
FOTO 175 - Personagens Pimenta e Joana...................................................................214
FOTO 176 - Personagens Elvira, Moacir e Joana.........................................................214
FOTO 177 - Personagens Bruno e Teresa.....................................................................216
FOTO 178 - Personagens Palmira e Salvador...............................................................216
FOTO 179 - Personagem Tadeu....................................................................................217
FOTO 180 - Personagem Darlene com seus filhos negros............................................217
FOTO 181 - Personagens Comandante e Vladimir.......................................................218
FOTO 182 - Capas das Trilhas Sonoras de Insensato Coração....................................219
FOTO 183 - Personagens André, Carol e o filho do Casal...........................................219
FOTO 184 - Personagens Leila e André.......................................................................220
FOTO 185 - Personagens Gregório e André.................................................................220
FOTO 186 - Personagens André, Carol e Raul.............................................................221
FOTO 187 - Personagens Gabino, Fabiola e Milton.....................................................221
FOTO 188 - Personagens Negros na novela Mulheres Apaixonadas...........................223
FOTO 189 - Personagens Dra. Myrna e Júlia...............................................................224
FOTO 190-Personagens Dra. Myrna e Heraldinho.......................................................225
FOTO 191 - Personagem Tita Bicalho..........................................................................225
FOTO 192 - Personagem Romildo Rosa.......................................................................226
FOTO 193 - Personagem Didu .....................................................................................227
FOTO 194 - Personagem Alicia....................................................................................227
FOTO 195 - Personagem Zezé......................................................................................230
FOTO 196 - Personagem Silas......................................................................................231
FOTO 197 - Personagem Herculano.............................................................................231
FOTO 198 - Personagem Jonas.....................................................................................232
FOTO 199 - Personagem Luz da Silva..........................................................................232
FOTO 200 - Personagens Tosca e Fladson...................................................................235
FOTO 201 - Personagens Fladson e Dagmar................................................................235
FOTO 202 - Personagem Isaltino..................................................................................236
14
FOTO 203 - Personagem Dionísia................................................................................236
FOTO 204 - Personagens Anastácia/Latoya e Jurema/Whitney...................................237
FOTO 205 - Personagem Índia......................................................................................239
FOTO 206 - Personagem Violeta..................................................................................240
FOTO 207 - Personagens Dedé e Natália......................................................................242
FOTO 208 - Personagem Gilda.....................................................................................242
FOTO 209 - Personagem Selma....................................................................................243
FOTO 210 - Personagens Gabriela, Angélica, Selma e Lucas......................................244
FOTO 211 - Personagem Pinhão...................................................................................245
FOTO 212 - Personagem Vicente e Benta. ..................................................................246
FOTO 213 - Personagem Berenice................................................................................247
FOTO 214 - Personagem Milena...................................................................................247
FOTO 215 - Personagens Milena e Nicholas................................................................248
FOTO 216 - Personagens Ada, Magali e Aluísio..........................................................248
FOTO 217 - Personagens Lidia, Oséas e Tiago............................................................250
FOTO 218 - Personagem Bento....................................................................................250
FOTO 219 - Personagens Janice e Roney. ...................................................................251
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 01 - O quantitativo cronológico de personagens Negros nas Telenovelas
exibidas pela Rede Globo de 2001 a 2013......................................................................48
QUADRO 02 - Novelas Protagonizadas por Atores negros............................................53
QUADRO 03 - Novelas com núcleo/número significativo de personagens negros (mais
de sete atores negros........................................................................................................55
QUADRO 04 - Presença de personagens negros em telenovelas das 21 horas..............56
QUADRO 05 – Novelas com Apenas um Personagem Negro.......................................57
QUADRO 06 - Autoria das Telenovelas.........................................................................59
QUADRO 07 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Carlos Lombardi
produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................65
QUADRO 08 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Benedito Ruy
Barbosa produzidas de 2001 a 2013................................................................................68
QUADRO 09 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Walther Negrão
produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................69
QUADRO 10 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Ana Maria
Moretzsohn produzidas de 2001 a 2013..........................................................................69
QUADRO 11 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Maria Adelaide
Amaral produzidas de 2001 a 2013.................................................................................73
QUADRO 12 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Elizabeth Jim.........74
QUADRO 13 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Walcyr Carrasco
produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................76
QUADRO 14 - Quantidade de personagens negros nas Novelas de Antonio Calmon
produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................78
QUADRO 15 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Glória Perez
Produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................78
QUADRO 16 - Quantidade de personagens negros Novelas de Miguel Falabela
produzidas de 2001 a 2013..............................................................................................81
QUADRO 17 - Novelas de Silvio de Abreu produzidas de 2001 a 2013.......................81
QUADRO 18 - Quantidade de Negros Nas Novelas de Gilberto Braga produzidas de
2001 a 2013.....................................................................................................................85
QUADRO 19 - Novelas de Aguinaldo Silva Produzidas de 2001 a 2013......................87
16
QUADRO 20 - Quantidade de Personagens negros nas Novelas de João Emanuel de
Carneiro...........................................................................................................................92
QUADRO 21 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Duca Rachid e
Thelma Guedes produzidas de 2001 a 2013....................................................................93
QUADRO 22 - Quantidade de personagens negros nas novelas de Manoel
Carlos...............................................................................................................................95
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LISTA DE SIGLAS
CIDAN – Centro Brasileiro de Documentação e Informação do Artista Negro
EUA – Estados Unidos da América
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBOPE - Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa
GTI - Grupo de Trabalho Interministerial
MPR - Movimento pelas Reparações
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONU - Organização das Nações Unidas
PFL/MA – Partido da Frente Liberal / Maranhão
PT/RS - Partido dos Trabalhadores/ Rio Grande do Sul
SBT – Sistema Brasileiro de Televisão
TVE - Televisão Educadora
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................20
1.1 Trajetória Metodológica.........................................................................................37
2 COTAS RACIAIS NA MIDIA: propostas e repercussões......................................40
2.1 Estatuto da Igualdade Racial e cotas nos produtos midiáticos...........................43
2.2 A “Ameaça Simbólica” das Cotas Raciais nas Telenovelas.................................46
3 QUEM CONSTRÓI O NEGRO NAS TELENOVELAS?......................................58
3.1 A proposta das “cotas raciais” ameaça a quem?..................................................61
3.2 A “Ameaça Simbólica” redimensionando a construção do personagem
negro...............................................................................................................................69
3.2.1 As cotas raciais protagonizam o protagonismo negro?..........................................91
4 PRESENÇA NEGRA NAS TELENOVELAS: (in)visibilidade?...........................97
4.1 Personagens negros “para inglês ver”...................................................................99
4.2 Reinventando o protagonista negro?...................................................................111
5 QUE INTERRACIALIDADE É ESSA?.................................................................136
6 NOVAS NOVELAS, VELHOS PERSONAGENS NEGROS.............................175
7 NOVOS PERSONAGENS NEGROS EM CENA?...............................................207
8 TUDO ACABA EM DISCRIMINAÇÃO RACIAL?...........................................234
9
À
GUISA
DE
CONCLUSÃO:
(in)visibilidade
negra
nas
telenovelas.....................................................................................................................252
REFERÊNCIAS........................................................................................................262
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1 INTRODUÇÃO
Sempre tive como hobby assistir televisão. Desde muito pequeno as telenovelas
já eram meus programas prediletos. Em minhas brincadeiras infantis, gostava de imitar
os personagens e situações que assistia nos folhetins. Tenho uma memória excelente,
então seguramente posso afirmar que minha aproximação com o contexto das
telenovelas se iniciou ainda na infância. As primeiras lembranças de telenovelas que
tenho remontam aos meus dois anos de idade, quando já as assistia na companhia dos
meus pais. Quando me dei conta da diferença entre negros e brancos ao sofrer uma
situação de racismo na escola em que estuda aos seis anos de idade, me percebi
enquanto negro, e identifiquei que pessoas negras como eu, praticamente não estavam
presentes nos enredos das telenovelas e, quando apareciam, o faziam em papeis
subalternos, figurando como empregados ou escravos em novelas de época, enunciados
em posição de total submissão a pessoas brancas, ou envoltos em trama de
marginalidade e criminalidade. A forma como eram enunciados os personagens negros
nas tramas causava um mal estar e fazia com que eu não quisesse me identificar com
estes. Havia, da minha parte, uma recusa sistemática daquelas propostas de sujeitos
negros que me eram apresentadas pelos folhetins.
Encantado com os programas de televisão, quando criança sonhava em ser ator
de novelas. Mas, fui percebendo que eram poucos os negros presentes nos enredos e eu
também não queria encenar nas novelas a proposta de personagens que via atores negros
desempenhando nos folhetins. Quando ingressei na universidade, minha trajetória de
vida me levou a me posicionar como pesquisador interessado nas diferenças étnicoraciais no Brasil. O contato com o instrumental analítico das ciências sociais jogou
novas luzes nas formas como me foram apresentadas as idéias sobre diferenças entre
negros e brancos. Como foi através das telenovelas que tive os primeiros contatos com
as formas de significação da diferença entre negros e brancos, decidi encaminhar meus
estudos de mestrado e doutorado construindo objetos teóricos que pudessem ter como
recorte empírico o universo das telenovelas.
Diante do exposto, apresento como tese de doutorado a análise intitulada:
“(In)Visibilidade? O negro nas telenovelas”, como um esforço de construção de uma
discussão sobre a presença de personagens negros na dinâmica midiático-cultural
brasileira, na modalidade específica das telenovelas. Busquei construir um objeto
centrado na produção social das diferenças, no tocante as significações da idéia de
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sujeito negro. A pesquisa utilizou como campo empírico a presença de personagens e
atores/atrizes negros em telenovelas brasileiras, produzidas e exibidas pela Rede Globo
de Televisão, no período compreendido entre os anos de 2001 a 2013. O recorte do
campo empírico sobre os folhetins da Rede Globo de Televisão deve-se ao fato desta
emissora ser a única, dentre as demais no Brasil, que veiculou ininterruptamente
telenovelas com exibição diária, de segunda a sábado, em 03 horários fixos (18, 19 e 21
horas), oferecendo assim bases lineares para uma observação e comparação sistemática.
De acordo com dados do IBOPE (2005), as telenovelas da citada emissora figuram entre
os produtos midiáticos que obtém a maior audiência no país e, por conseguinte, recebem
atenção não só por parte do público telespectador, mas também por parte de outros
setores da imprensa e da política. Demarco meu entendimento de que a Rede Globo não
é a porta voz da mídia brasileira, mas apenas uma expressão ou um segmento desta. O
percurso investigativo deste estudo será instrumentalizado, principalmente, pelas lentes
teóricas dos estudos acerca da Colonialidade do Poder e do Saber (MIGNOLO, 2003;
BHABHA, 1998; SPIVAK, 2010).
Para analisar a presença de negros nas telenovelas, inicialmente parti de uma
investigação sobre a participação de atores negros nos enredos, para num segundo
momento analisar os personagens vividos por estes atores. Nogueira (1996) aponta que
no Brasil a definição de um negro se materializa pelos sinais diacríticos (cor da pele,
traços físicos e espessura de cabelos). Assim, segui estes encaminhamentos para
demarcar um ator negro, e também para classificar um personagem negro:
primeiramente traços fenotípicos que socialmente emblematizam um sujeito como
negro e, secundariamente, os vínculos familiares e/ou a auto-atribuição etno-racial feita
pelo ator/personagem.
A análise dos dados coletados através da investigação que realizei junto aos
folhetins reforçou a premissa que localizei no trabalho dissertativo e novamente apontou
que atores/atrizes negros encenam personagens negros. Esta representação é ancorada
em observância aos traços fenotípicos do ator /atriz que deram contorno a condição de
negro/negra do personagem, ou por vínculos familiares que este personagem desenvolve
na trama com outros negros e que indicaram sua condição de negro/negra. A única
exceção que encontrei, resulta da fluidez de possibilidades de classificação étnico-racial
decorrentes da experiência da mestiçagem no Brasil e concretiza-se na figura da atriz
Thais Garayp, que foi enunciada como negra em diversos folhetins, mas quando teve
seus cabelos manipulados e foi apresentada com vínculos familiares com determinados
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personagens, figurou como a índia Iraci na novela Desejo Proibido (Rede Globo, 18hrs,
2007), como a indiana Ana no folhetim Caminho das Indias (Rede Globo, 21hrs, 2009)
e como a empresária circense branca Terê em Araguaia (Rede Globo, 18hrs, 2010).
O percurso investigativo que empreendi apontou que, primordialmente, a
imagem de um ator negro define a idéia do que seria um personagem negro em uma
telenovela. Para Silva (2001), a noção de imagem se localiza em uma perspectiva
denominada “realista”, ou seja, a imagem capta a realidade e a cristaliza. Logo, a
imagem concebida como reflexo, sugere uma relação de passividade com a “realidade”,
limitando-se a reproduzi-la. A imagem é concebida, também como expressão de uma
visão estática do processo de significação. Ou seja, a imagem é concebida como
registro, visto que vai refletir um contexto. Assim esta imagem pode apontar para um
contexto construído e de certa forma legitimado pelo registro, pela intencionalidade da
referida representação. Assim, considero que um personagem negro, utiliza-se da
imagem do ator negro para ser enunciado como negro.
Considero que a noção de imagem está diretamente relacionada aos mecanismos
de representação, que por sua vez institui a idéia de que um personagem que ganhará
vida por intermédio de um ator. Fundamentado em Bourdieu (1980), compreendo a
representação como um processo de significação que por sua vez, consiste em
elaboração subjetiva que é produzida nos domínios da linguagem, dos discursos, da
cultura, das disputas pelo poder, das lutas de classificação e hierarquização, pelas
formas de fazer ver e fazer crer, de viabilizar o conhecer e o reconhecer e de instituir um
modelo legítimo das divisões do mundo social.
Considero relevante pontuar que a construção da idéia de negro não remete a um
processo biológico, antes aponta para um sujeito emblematizado pela cor da pele
(predominantemente escura), que foi construído politicamente pelo Discurso Colonial, e
pelos “saberes oficiais” por ele instituídos. Bhabha (1998, p. 125) categoriza como
“saberes oficiais” as expressões de conhecimento e teorias de natureza pseudo
científica, tipológica, legal, administrativa e eugênica, perpetradas pelo Discurso
Colonial.
Segundo Babha (1998, p.111) o alvo do discurso colonial é justificar e legitimar
as práticas coloniais em seus diversos desdobramentos. Para isso, este discurso busca
domesticar o colonizado definindo-o como uma população de tipos degenerados que
têm no primado racial sua marca emblemática. Para Babha (1998, p.123), o discurso
colonial permite o estabelecimento espontâneo da idéia da diferença, percebida entre os
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sujeitos como algo visível e natural. É neste estágio que os signos culturais são
definidos com o propósito de inferiorizar e segregar o outro. E, como reação a esta
segregação, o colonizado mobiliza a estratégia da mimetização, que se efetiva na
mímica que faz da imagem e discurso do colonizador, que funciona como uma imitação
estratégica que faz com o objetivo de ser aceito/igualado. Considero que o discurso
colonial pode se travestir em muitas ideologias e estratégias para seguir atualizado no
âmago das instituições sociais no Brasil, dentre elas a mídia.
A presente análise consiste em uma ampliação da pesquisa que iniciei por
ocasião da construção da dissertação de mestrado, denominada “A Ameaça Simbólica
das Cotas Raciais na Mídia Brasileira: o negro na telenovela”. A pesquisa que
desenvolvi no mestrado apontou que a aprovação do projeto de cotas na mídia pela
Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, no final de maio de 2001, repercutiu
significativamente sobre os espaços midiáticos. Afinal, foi a primeira vez que houve um
indicativo de institucionalização de uma política para enfrentar a problemática do
racismo na mídia brasileira. Entendo que este cenário desencadeou um debate nos
espaços sociais midiáticos sobre as ações afirmativas, o que contribui para aumentar a
presença de personagens negros em telenovelas, programas e comerciais, representados
por atores/atrizes negros. Considero que a possibilidade da institucionalização das cotas
desencadeou a preocupação de autores e diretores de telenovelas em assegurar
minimamente a presença de personagens e atores/atrizes negros nos enredos. Esta
pesquisa indicou que o “aumento” da presença de atores negros em telenovelas se deveu
a “ameaça simbólica” da possibilidade de aprovação da política de cotas no senado
federal. Para autores e produtores de televisão, a aprovação do Estatuto Social da
Igualdade Racial, representaria uma ameaça ao padrão vigente de escalação de elenco
das telenovelas que pouco escalava atores/atrizes negros.
Aponto que o debate em torno das cotas em telenovelas legitimou a necessidade
de discussões acerca da exclusão midiática do negro e, em consonância com a ação
organizada do Movimento Negro, acabou “ameaçando simbolicamente” a produção de
telenovelas no país, desde sua divulgação pela mídia em 2001. A etnografia que
empreendi, por ocasião do trabalho dissertativo, foi realizada focando como campo
empírico as telenovelas veiculadas na faixa de horário das 19 e 21 horas, exibidas, pela
Rede Globo, em um recorte temporal compreendido entre os anos de 2001 a 2008. A
interpretação dos dados indicou a tendência da ampliação quantitativa da presença de
atores/atrizes negros nos elencos dos folhetins, o que diretamente materializou uma
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maior quantidade de personagens negros nos folhetins produzidos no período
demarcado pelo percurso investigativo.
Considero que este aumento foi resultante das discussões em torno das cotas
raciais. Estas discussões problematizam a necessidade da intervenção do Estado para
arrefecer as desigualdades entre negros e brancos no país. O resultado do trabalho
dissertativo apontou que a proposição das cotas raciais no segmento específico da mídia
televisiva desencadeou uma preocupação por parte das emissoras, autores e diretores de
telenovelas em assegurar uma presença mínima de atores/atrizes negros em cada
folhetim, após o ano de 2001. Autores como Araújo (2000) e D’Adesky (2001), são
enfáticos ao apontar, que antes desta data, diversas telenovelas, produzidas entre as
décadas de 60, 70, 80 e 90 no Brasil, sem negros no elenco, e com enredos sem a
presença de personagens negros.
Parto da noção de telenovela como um produto midiático de natureza
audiovisual produzido e exibido por emissoras de televisão, e que tem por característica
fundamental apresentar um enredo, constituído por uma trama que vai se desenrolando
ao longo de vários dias de exibição. Esta exibição diária recebe o nome de capítulo. A
história contada por uma telenovela materializa o seu enredo. No Brasil a telenovela
recebe também os nomes de “novela” e “folhetim”.
O formato telenovela no Brasil remonta a chegada da televisão nesse país.
Xaiver (2014) destaca que em 1951, um ano depois da inauguração da televisão no
Brasil, a TV Tupi levou ao ar sua primeira telenovela, Sua Vida me Pertence (TV Tupi,
20hrs, 1951). Esta trama era composta por 15 capítulos, e foi exibida somente nos dias
de terças e quintas feiras. Como neste período inexistia a tecnologia do vídeo-tape, a
novela era produzida ao vivo, funcionando como um teatro teledivisionado.
Já sob o signo do advento do recurso do vídeo-tape, que permitia a gravação e
posteriormente a exibição de um programa televisivo, a TV Excelsior lançou, em 1963,
a primeira telenovela diária brasileira, o folhetim 2-4599 Ocupado (TV Excelsior,
19:30hrs, 1963). De 1964 a 1968, as emissoras Excelsior, Tupi, Record e Globo
passaram a produzir telenovelas,
folhetins que preservavam a estrutura narrativa
peculiar das novelas radio-fônicas e o modelo audiovisual de telenovelas mexicanas,
cubanas e argentinas. A partir de 1969, as emissoras de televisão brasileira passaram a
produzir telenovelas constituídas por enredos que objetivavam retratar o cotidiano da
população brasileira. Entretanto, o recurso utilizado para promover esta aclimatação
constou na produção de tramas compostas de estórias unicamente de personagens
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brancos. As raríssimas presenças de personagens negros figuravam lastreadas pelo
histórico da escravidão negra no Brasil, materializando a inserção de atores/atrizes
negros em papeis de empregados ou escravos. A primeira emissora a investir neste
modelo foi a TV Tupi. Posteriormente a Globo adotou esta mesma estratégia de tentar
“nacionalizar” culturalmente os folhetins, retratando um Brasil quase sem sujeitos
negros.
A Rede Globo, atenta a aceitação do público telespectador da telenovela, que
atraia anunciantes dispostos a investir em sua programação, elencou a novela como
carro-chefe de sua programação. Instituiu um determinado padrão de produção de
qualidade áudio visual de telenovelas, que acredito ter sido o motivo desta emissora ter
conseguido não apenas a liderança no segmento, como também ter se consolidado como
a maior emissora do país, obtendo igualmente reconhecimento internacional. Este
padrão próprio, de produzir os folhetins, obteve consagração no Brasil e no exterior,
ainda nos anos 70, quando muitas novelas passaram a ser vendidas para serem exibidas
em outros países. Nas décadas seguintes, a produção de novelas foi aperfeiçoada. Este
processo demandou a ampliação das equipes técnicas, exigindo também a contratação
de pesquisadores e colaboradores, o que possibilitou um aumento na quantidade e no
tamanho dos capítulos, uma complexificação dos enredos, que passaram a apresentar
um número maior de personagens. Entretanto, esta ampliação no número de
personagens não viabilizou um aumento da presença de personagens negros nos
folhetins. Os personagens negros nas telenovelas produzidas década de 70 e 80, por
diferentes emissoras no Brasil, eram restritos a papeis de empregados domésticos ou aos
raríssimos casos em que as tramas abordavam a questão do racismo e/ou casamento
interraciais. A presença numericamente expressiva de personagens negros fica restrita a
tramas épicas que focavam o contexto da escravidão negra no país.
Segundo Globo (2010), a ossatura de uma telenovela é construída e assinada
pelo autor (dramaturgo), mas este precisa firmar uma parceria com um diretor de
arte/produção. É por meio desta parceria que o enredo desenhado pelo autor é expresso
através de imagens e cenas. O diretor de telenovela fica com a responsabilidade de
coordenar as equipes de produção e elenco, viabilizar a gravação das cenas e tomar
decisões de natureza administrativa como a gestão de recursos financeiros, de modo a
viabilizar a confecção do produto audiovisual que é a telenovela, seguindo
rigorosamente prazos e dotação orçamentária. Em alguns folhetins, a autoria pode ser
partilhada por dois ou mais autores, ou contar com a“supervisão”de outro autor, que
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poderá figurar como co-autor. Não existe uma metodologia unívoca entre os autores no
processo de construção de uma telenovela. Alguns optam por escrever desde a escaleta
(rascunho de capítulo) ao texto final sozinhos, delegando aos colaboradores a tarefa da
criação de diálogos. Outros optam por coordenar o trabalho de um ou uma equipe de
colaboradores na produção da escaleta, e se dedicam com mais afinco à redação dos
diálogos dos personagens. Há ainda novelistas que preferem concentrar todas as etapas
do trabalho, optando por escrever o capítulo por inteiro. Em alguns casos, uma equipe
de pesquisadores fica responsável pela apuração de temas específicos, como questões
jurídicas ou médicas a serem abordadas por meio do enredo dos folhetins.
As novelas nascem de uma sinopse, que por sua vez concretiza o texto que
apresenta as tramas principais e secundárias dos personagens e faz a projeção destas ao
longo do desenrolar dos capítulos. A sinopse pode ser proposta originalmente pelo
dramaturgo, a partir de um argumento apresentado pelo autor, ou pode também ser
resultado de uma proposta temática feita pela emissora (GLOBO, 2010). O enredo de
uma telenovela é constituído por uma trama que mobiliza diversos personagens.
Entretanto a narrativa designa o(s) protagonista(s) e o(s) antagonista(s), sendo que os
demais personagens desenvolvem uma história que preserva interface com a trama
central que foca os protagonistas/antagonistas. Os capítulos são compostos por cenas
intercaladas do núcleo de personagens que, geralmente, permanecem nos mesmos
cenários. Nem todos os personagens aparecem em todos os capítulos. A exibição de um
capítulo de uma novela é descontinuada por intervalos comerciais.
Para Machado (2000), a novela concretiza um dos modelos de narrativa seriada
que desenvolve um enredo, contando a história dos personagens por meio de ganchos de
um capítulo para outro. Estrategicamente sempre deixam a expectativa de um desfecho
para um capitulo seguinte, de modo a despertar a curiosidade do telespectador, para que
este permaneça interessado na trama, assegurando assim a audiência, que interessa
diretamente aos anunciantes que patrocinam a telenovela.
A Rede Globo de Televisão, desde a década de 70, produz e veicula,
ininterruptamente telenovelas com exibição diária de segunda a sábado, em 03 horários
fixos (18, 19, 20/21 horas). Os folhetins ficam em média de seis a sete meses no ar. As
novelas exibidas no horário das 22 ou 23 horas não são fixas na grade de programação
da emissora. São exibidas de segunda a sexta, ou de terça a sexta feira, e compostas por
uma quantidade menor de capítulos.
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Os folhetins exibidos na faixa de horário das 18 horas priorizam o gênero
romance. Foram inicialmente idealizados como um espaço para promover a adaptação
de obras literárias clássicas brasileiras ao formato de telenovela e sua ênfase recai sobre
tramas ambientadas em épocas passadas. Quando as tramas são contemporâneas
abordam prioritariamente a temática de romances proibidos, enredos situados em
contextos rurais, regionais e/ou cidades fictícias. Desde a década de 80 o espaço das 18
horas também tem sido utilizado para produção de novelas remakes, que consistem em
regravações de uma telenovela já exibida, por meio da atualização dos diálogos aos dias
contemporâneos. Nos folhetins produzidos neste horário, a presença de personagens
negros, quando viabilizada, se processa enunciada pelo discurso colonial, rigidamente
matizada pelos contornos da dita “história oficial” do Brasil, que valoriza a contribuição
dos sujeitos brancos, omitindo a contribuição e a relevância do sujeito negro.
O horário das 19 horas tem sido marcado por folhetins mais ágeis, que exploram
o gênero comédia, por meio de contextos cotidianos, humor, enredos que exploram o
lúdico, o fantasioso e a ficção cientifica. Considero que esta é a faixa de horário que
apresenta folhetins mais heterogêneos e neles é raríssima presença de personagens
negros. Quando se processa a presença negra, ocorre no que considero ser possível
denominar de “papel de negro”, ou seja, constituem personagens que figuram na trama
como empregados domésticos ou rurais, ou apresentando a idéia de sujeito/sujeita negra
pelo viés da hipersexualidade ou da criminalidade.
Já o horário das 20 horas foi sendo, ao longo das décadas, redimensionado para
as 21 horas, com o objetivo de dar mais espaço para o telejornalismo nacional e local,
que são exibidos após a veiculação do folhetim das 19 horas e antes da exibição da
trama que vai ao ar as 21 horas. Os folhetins exibidos nesta última faixa de horário
abordam temáticas peculiares do cotidiano de brasileiros, com personagens brancos, em
quase sua totalidade, mesmo em diferentes contextos sócio-econômicos. Exploram,
geralmente, o gênero drama. Segundo dados do IBOPE (2005) os folhetins das 21 horas
são, desde os anos 70, os que obtêm a maior audiência.
Para Xavier (2014), a telenovela é no Brasil o maior produto de arte popular da
televisão, figurando ladeada pelo futebol e pelo carnaval como um fenômeno cultural
que atrai, cativa e fideliza o público telespectador. Araújo (2000) empreendeu uma
pesquisa sobre todas as telenovelas produzidas no Brasil de 1963 a 1997 e identificou
que estes folhetins negavam o contexto da diversidade étnico-racial no país. Dos mais
de 530 folhetins que etnografou, embora em sua totalidade apresentassem tramas
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ambientadas no Brasil, não retratavam o contingente populacional que é formado
predominantemente por negros e mestiços. O diretor de telenovelas Herval Hossano,
quando questionado por Araujo (2000) sobre os motivos da ausência do negro nos
folhetins nacionais, argumentou que as razões que impedem o negro de participar de
produtos midiáticos como a telenovela eram de natureza econômica, ou seja, o mesmo
motivo que teoricamente também afastaria pessoas pobres. Para Hossano, o negro não
foi inserido nas tramas por causa de razões econômicas, que impedem aspirantes a
atores negros de se preparar profissionalmente para atuar nos folhetins.
Considero que a argumentação de natureza econômica para justificar a ausência
do negro na telenovela, proposta por Hossano, desnuda minimamente a ponta de um
iceberg que fica encoberto por intencionalidades corporativistas. Penso que a questão da
ausência do negro na telenovela está referenciada na produção social da diferença entre
negro e o branco. Neste sentido, a compreensão deste processo exige a aportagem de
uma discussão que situe histórica e politicamente a formação sócio-cultural do Brasil.
O processo de expansão ultramarina, empreendido pelos europeus em meados
século XVI, com vistas à conquista de novas fontes de matéria prima, bem como novos
mercados consumidores, foi constituído e ancorado na produção de uma proposta de
racionalidade que elencou a Europa como centro da história mundial e, por
conseqüência, transformou todas as demais culturas em sua periferia, instituindo assim,
o paradigma Eurocêntrico que se travestiu dos ideais de universalidade e mundialidade
(DUSSEL, 2002).
A experiência colonial desenvolvida no Brasil, a partir do século XVI, pode ser
entendida como mais uma estratégia de propagação do projeto de mundo da
modernidade, iniciado em 1492, com a expansão ultramarina dos povos europeus. Para
Mignolo (2005, p. 75) a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada
desta. Para esse autor, a modernidade e a colonialidade são as duas faces de uma
mesma moeda.
Neste horizonte, o sistema colonial coloca-se como o passaporte para que outras
culturas, transformadas em periferia da Europa, pudessem acessar a perspectiva da
Modernidade e conseguir, assim, uma emancipação, uma saída da condição de atraso,
por meio de uma adesão ao ideário, projeto, visão de mundo referenciado em valores
europeus. Assim, as culturas alvo deste processo passaram a experienciar relações
coloniais, termo que localizo como indicativo da vigência do padrão de regulamentação
instituído por intermédio da colonização por europeus. Esse processo não teve
28
desdobramentos apenas políticos e religiosos, mas sobretudo, epistemológicos, atrelados
a colonialidadedo poder e do saber e a conseqüente constituição de sujeitos e saberes
subalternos (MIGNOLO, 2005).
A colonialidade, em sua dimensão política e epistemológica, pressupôs a criação
de um outro, entendido como um ser intrinsecamente desqualificado, como um sujeito
portador de características inferiores e, por isso, disponível para ser apenas usado e
expropriado. Dussel (2002) considera que a experiência da colonialidade no continente
americano foi subsidiada pela agressiva violência material e simbólica expressas no
mito sacrificial de outros povos categorizados como inferiores.
Segundo Mignolo (2003), a expansão colonialista ocidental desencadeada no
século XVI, não teve apenas um caráter econômico e religioso, mas oportunizou
também a expansão de formas hegemônicas de conhecimento que moldaram a própria
concepção de religião e de economia. Foi a propagação de um conceito representacional
de conhecimento e cognição que se legitimou como hegemonia epistêmica, política e
ética. Configuradas pela lógica colonial/moderna, as relações coloniais instauraram e
naturalizaram uma forma de conceber o mundo a partir da cosmovisão eurocêntrica e
este processo de colonização se legitimou subalternizando e animalizando as
representações e visões de mundo dos povos colonizados.
Mignolo enfatiza a afirmação de Darcy Ribeiro, de que os povos colonizados,
despojados de suas riquezas e do fruto de seu trabalho sob o jugo da dominação
colonial, teriam sofrido a degradação de assumir que a sua imagem era um mero reflexo
da cosmovisão européia, que considerava os povos colonizados como biologicamente
inferiores porque eram negros, ameríndios ou mestiços. Este processo foi instituído pela
classificação e, posteriormente, pela demarcação de um posicionamento fixo dos
sujeitos no interior das relações coloniais. E, também, pela criação do conceito de raça,
no contexto do que Santos (2005) nominou de alteridade colonial. Adepto do mesmo
entendimento, Quijano (2005) argumenta que as relações coloniais propõem padrões de
poder que são constituídos por duas formas de diferenciação, a primeira instituída pela
categorização das diferenças entre conquistadores e conquistados, ao passo que a
segunda é ancorada, rigidamente, na idéia de raça, segundo a qual uma suposta distinção
na estrutura anátomo-biológica outorga a uns uma posição natural de inferioridade em
relação ao outro.
Para Quijano (2005) as relações sociais ancoradas na ideia de raça, como
resultado direto das relações coloniais, propiciou a formação de identidades que até
29
então não existiam. Assim, a colonialidade, enquanto um padrão de organização e
regulamentação social instaurou e cristalizou as categorias índio, negro, mestiço,
branco, e atuou intensamente também no redimensionamento de outras como português,
espanhol, e posteriormente europeu, termos que fora das relações coloniais, somente
sinalizavam a procedência geográfica, ou a nacionalidade de um sujeito. Com o advento
do colonialismo, estes termos adquiriram um conteúdo ancorado em uma significação
predominantemente racial. Assim, o termo raça passou a designar o status de cada
sujeito ou grupo no interior das relações coloniais. Quijano (2005) afirma que a idéia de
raça concretizava uma abstração fora da perspectiva da colonialidade, bem como uma
invenção que não tinha relação com a dimensão biológica, sendo que somente a partir
do século XVI, por meio da experiência colonial, foi estabelecida a fusão entre cor e
raça.
O processo de construção social do sujeito branco apresenta uma diferença
estrutural com relação ao sujeito negro, pois, historicamente foi introjetada no negro
uma idéia de inferioridade, ao passo que ao branco europeu, enquanto descendente do
colonizador, foi atribuído o ideal de ser o modelo universal da humanidade. Balandier
(1976) argumenta que em contextos passiveis de serem classificados como de “situação
colonial” o colonizador constituiu regras escritas em matéria racial, que atuam
impedindo o colonizado de poder avaliar e se perceber autonomamente.
Fundamentado em Bhabha (1998) procuro perceber como é mobilizado o
discurso colonial no tocante a viabilizar a representação do outro, não europeu,
instituindo divisões e classificações binárias expressas pela dicotomia eu/outro, bem
como a pavimentação da diferença alicerçada em estereótipos. Este discurso elenca o
padrão europeu, branco, católico, masculino, cristão, capitalista, heterossexual e adulto
como referência que orienta a decodificação imediata das diferenças e institucionaliza
como apropriada a rejeição dos sujeitos que são interpretados e classificados como
desiguais.
Aciono a categoria “sujeito subalterno” (SPIVAK, 2010), como um recurso para
compreender os sujeitos negros que integram grupos classificados como inferiores,
pelos padrões hegemônicos coloniais nas esferas materiais e simbólicas. As relações
construídas entre negros e brancos no Brasil nasceram e vivem sob o signo das relações
coloniais, sendo fortemente referenciadas no processo histórico da escravidão negra, e
pela inexistência de ações que garantissem a integração social dos negros, enquanto
30
descendentes de africanos no cenário pós-abolição e, por isso, sofreram processos de
exclusão de diferentes ordens.
A abolição da escravidão no Brasil pode ser interpretada como uma estratégia de
abandono do negro, mormente em face ao estimulo às migrações européias, como forma
de embranquecimento da população. No Brasil, as relações coloniais não foram
alteradas com a proclamação da independência com relação a Portugal, em 1822. Este
acontecimento apenas estancou formalmente vínculos administrativos diretos, ficando a
posição da perspectiva Européia resguardada. Nesse sentido, países que viveram a
experiência de terem sido colônias e hoje são ditos emancipados, não podem ser
considerados pós-coloniais. Problematizo que o prefixo “pós” pode sugerir
transcendência ou superação e induzir ao ingênuo entendimento de que as relações
coloniais foram suplantadas.
No Brasil, as relações coloniais alicerçam as instituições sociais e cunharam as
diretrizes que orientam relações sociais e a legitimação da noção de raça, com suposta
referencia biológica, emblematizada pela cor da pele e/ou traços fenotípicos, de modo a
viabilizar a produção social da diferença entre brancos, negros e índios enquanto
indicativos da posição em que estes figuravam nas relações coloniais (colonizador x
colonizados/escravos).
Os produtos midiáticos e as telenovelas são representativos do apagamento
do negro na cultura brasileira. Atuam como instrumentais discursivos que naturalizam a
estratégia do embranquecimento, invisibilizando o negro, excluindo sua participação ou,
em alguns casos, inserindo-o sob a lógica colonial, que essencializa uma posição
subalterna e inferior da idéia de sujeito negro que tem por lastro a posição deste no
sistema escravista.
O discurso colonial pode se travestir em muitas estratégias para seguir
atualizado no interior das instituições sociais no Brasil, dentre elas a mídia. Os produtos
midiáticos brasileiros, em especial as telenovelas, refletem especificidades que
permitem estabelecer uma relação coma “Situação Colonial” (BALANDIER, 1976).
Santos (2002), ao analisar a invenção do Ser Negro (2002) no contexto colonial
brasileiro, pontua que o imaginário social do país introjetou uma imagem do negro
enquanto resultado de preconceitos e atos discriminatórios, calçada em estratificações e
tipificações comportamentais. Essa imagem dá pistas para problematizar a forma como
o sujeito negro é representado nos produtos midiáticos brasileiros, como a telenovela:
31
(...) A perseguição aos africanos que eram símbolos de barbárie, de
decadência cultural e de inferioridade era retratada nos jornais da época de
forma corriqueira entre uma e outra notícia. Lidas e relidas com certa
freqüência, essas notícias, em vez de informar a população, disseminavam
teorias racistas. Do escravo, artigo vendido ou comprado, ao marginal negro
não havia muito espaço. O negro será retratado nos jornais: nas seções
científicas, como objeto de estudo ou comprovação das teorias racistas; na
seção de notícias, ora assassino, ora fugitivo, ora como um ser incapaz de
viver em sociedade cometendo graves erros por ignorância, ora por suas
práticas de feitiçaria ou canibalismo, ora por sua degeneração moral; na
seção de anúncios, como mercadoria que se compra ou vende, procurada ou
encontrada; na seção de contas, como um semi-homem com características
pouco civilizadas. Não podemos nos esquecer das seções policiais e dos
obituários, em que a figura do negro era uma constante: é aquele que mata e
também aquele que morre de forma quase sempre violenta (SANTOS, 2002,
p.134).
Bhabha (1998) sinaliza que, em contextos sociais dotadas de passado colonial, as
identidades são construídas na diferença e se (re) configuram a partir do cruzamento das
experiências individuais com os contextos locais, com as instituições sociais
configuradas sob a égide das relações coloniais.
A perspectiva proposta pelo paradigma da colonialidade do poder e do saber e a
conseqüente constituição de sujeitos e saberes subalternos permite o entendimento de
que, como resultado da experiência colonial no Brasil, produtos midiáticos culturais
como a telenovela, operam a lógica colonial no sentido de negar, encobrir o negro, e
quando o exibem primam pela estigmatização ou a estereotipação do sujeito negro,
circunscrevendo-o nos horizontes da criminalização, animalização, patologização e
folclorização.
Neste sentido, o estereótipo pode ser compreendido como uma imagem
simplificada, construída através de generalizações sobre um grupo, não levando em
conta as diferenças presentes no interior dessa coletividade. A prática de construção do
estereótipo pode promover a redução, a essencialização e a naturalização das diferenças.
Fernandes (2009) sugere que a analise dos estereótipos que conceituam e
circunscrevem a identidade do sujeito negro precede a investigação de uma temática
correlata: a estigmatização do negro. Nas relações coloniais são produzidas expressões
de estereotipação e estigmatização sobre o negro, e estes são permanentemente
acionados e reificados pelos saberes oficiais, pelos produtos midiáticos e em especial
por intermédio das telenovelas, que terminam por atuar como instrumentos para
legitimar e retroalimentar a subalternização do colonizado negro.
32
A imagem estereotipada dos personagens negros nas telenovelas é elaborada
a partir de um processo de estigmatização da idéia de sujeito negro. Susman (1994)
define estigma como qualquer traço persistente de um sujeito ou grupo, que evoca
respostas negativas ou punitivas. Condições consideradas incapacitantes são
estigmatizantes na medida em que evocam respostas negativas ou punitivas. Assim, o
ato de “estigmatizar” indica tomar qualquer marca diferencial de um sujeito e reduzi-lo
a esta característica. Ou seja, estigmatizar é atribuir um rótulo a um sujeito, tomando
como sinais emblemáticos, elementos como a gordura ou magreza, a cor da pele, a
estatura, o comportamento, a situação econômica ou geográfica, enfim, qualquer traço
que expresse alteridade frente aos padrões considerados "normais".
Para Goffman (1994), o estigma refere-se a uma situação em que o sujeito
está inabilitado para a aceitação social plena e configura-se como algo externo a este. O
autor considera que os discriminadores procuram fazer com que o sujeito estigmatizado
seja descredenciado o tempo todo. O objetivo é submetê-lo, constantemente, à prova, no
afã de fazer com que seja legitimada sua inferioridade, inviabilizando sua atuação e sua
inserção efetiva em um grupo social, ou em uma instituição. Goffman (1994) afirma que
este é o procedimento que oportuniza a configuração das condições de deterioração da
identidade da vítima de estigmatização, a partir da qual se facilita a manipulação de seu
comportamento, atitude e sentimentos, potencializando mecanismos de exclusão. O
autor entende que um dos aspectos mais perversos do processo de estigmatização é o
que se refere à sua legitimação por parte do próprio discriminado.
As telenovelas brasileiras têm seus enredos construídos seguindo um padrão
orientado pelas relações coloniais. Grande parte das propostas de presença de
personagens negros se efetiva no reforço à idéia de subalternidade do negro, que por sua
vez é determinada pela demarcação do estigma da cor da pele, que localiza estes
sujeitos como inferiores, devendo portando posicionar-se socialmente em uma posição
desprivilegiada em relação aos sujeitos brancos.
Tavares (2004, p.03) afirma que o processo de estigmatização a que foram
submetidos os negros no Brasil, foi o elemento que consolidou sua exclusão midiática, o
que, em termos mais amplos, significaria apagamento, negação e invisibilidade. Logo, o
tratamento dispensado pela mídia aos personagens negros, em especial pelas
telenovelas, contribui para sua invisibilidade ou pela representação carregada de
estereotipia e estigma.
33
Araújo (2000) afirma que nos anos 1970, os dramaturgos Janete Clair, Jorge
de Andrade e Dias Gomes já escreviam folhetins com a presença de personagens
negros. Porém, nenhum deles chegou a ser protagonista ou antagonista.Eram
personagens que tinham pouco espaço nos enredos. O maior destaque fica por conta da
telenovela Pecado Capital (Rede Globo, 20hrs, 1975), de autoria de Janete Clair, na
qual o ator negro Milton Gonçalves, interpretou um psiquiatra formado em Harvard.
Segundo Araújo (2000), esse foi o primeiro sucesso de crítica e de público para um
personagem representado por um ator negro inserido na classe média. Segundo o
referido autor, nesta década, algumas telenovelas retrataram romances inter-racias.
Os folhetins e programas da TV Tupi usavam a presença do negro nos
espaços da marginalidade ou da comédia. Já as novelas da Rede Globo que abordaram
massivamente o contexto da escravidão, como Escrava Isaura (Rede Globo, 18hrs
1976) de Gilberto Braga e Sinhá Moça (Rede Globo, 18hrs, 1986) de Benedito Ruy
Barbosa, retrataram os escravos como passivos e submissos e legitimaram o branco
como um benevolente herói e bem-feitor dos negros. Nas décadas de 1980 e 1990, a
presença de personagens e atores/atrizes negros ficou um pouco mais frequente no
segmento das novelas regionalistas (tramas cujos enredos não se desenvolvem em
capitais ou centros urbanos) e como empregados domésticos.
Lima (2000) considera que as telenovelas brasileiras, produzidas de 1975 a
1988, retroalimentavam a imagem do negro como um sujeito humilde, em condição
social subalterna, pobre e com baixa instrução. A mulher negra foi retratada com forte
apelo sexual. A autora polemiza que quando um destes estereótipos não se fazia
presente, o negro era apresentado como um sujeito exótico, inserido em um mundo que
pertence ao branco.
Araújo (2000) categorizou como “padrão de estética sueca” a interpretação
feita por atrizes brancas das personagens negras/mulatas dos romances de Jorge Amado,
que foram adaptadas em enredos de telenovelas como Gabriela (Rede Globo, 22hrs,
1975), Dona Flor e seus Dois Maridos (Rede Globo, 22hrs, 1976), Tieta (Rede Globo,
20hrs, 1989). Destaco que a versão produzida em 2012 da novela Gabriela (Rede
Globo, 23hrs, 2012), nova adaptação do original de Jorge Amado, assinada pelo
novelista Walcyr Carrasco, apresentou a atriz branca Juliana Paes interpretando a
personagem título Gabriela. Para isso esta atriz branca recebia forte maquiagem e se
submetia a tratamentos de bronzeamento artificial para ficar mais próxima ao fenótipo
negro/mulato, idealizado no romance original de Jorge Amado.
34
Construo meu argumento problematizando que a tendência de ampliação do
quantitativo da presença de atores/atrizes negros em telenovelas pode ter como objetivo
o descredenciamento do projeto de cotas, deslegitimando sua necessidade. São
apontadas supostas falhas no projeto como, por exemplo, a ausência da inclusão das
populações indígenas e, também, comparações com a experiência norte-americana do
sistema de cotas.
Parto do pressuposto de que a ausência de negros em telenovelas pode ser lida
como uma estratégia de invisibilidade. Por conseguinte, a presença de atores/atrizes
negros (presença esta quantitativamente maior do que nas décadas anteriores) poderia
significar um indicativo de visibilidade. Nesse sentido, a visibilidade seria viabilizada
por um enunciado, uma apresentação, que materializaria a caracterização e construção
do personagem no enredo da telenovela. No entanto, coloco em questão a “qualidade” e
a “intencionalidade” desta presença do negro nos folhetins. Como o processo de
construção do personagem negro em uma telenovela é feito por meio do discurso
colonial, problematizo que esta proposta de presença pode não alterar a condição do
negro como silenciado/invisibilizado enquanto sujeito subalterno neste contexto.
Considero que a telenovela, enquanto produto midiático, segue a lógica imposta pelos
saberes oficiais e seus discursos no campo da história e biologia. Neste horizonte,
demarco que os folhetins e seus enredos atuam como elementos representativos da
dinâmica sócio-cultural do Brasil.
As estratégias de visibilidade/invisibilidade de personagens e atores/atrizes
negros em telenovelas fornecem enunciados, que podem indicar seu status enquanto
colonizado, de modo a reverberar o discurso colonial, ou seja, as relações coloniais
podem ser legitimadas mesmo no contexto de significativa visibilidade de negros em
um folhetim, por intermédio das formas como estes são situados, retratados, ignorados,
ou inseridos nas telenovelas.
Spivak (2010) indica, já a partir do próprio título de sua obra “Pode o subalterno
falar?”, a intenção de sua análise, pois o título original em língua inglesa, “can the
subaltern speak?”, ao optar por utilizar o verbo modal “can” ao invés de “may”, sugere
a possibilidade da interpretação de que houve a intencionalidade de questionar não
apenas se o subalterno pode, no sentido de ter permissão, mas se pode no sentido de ser
capaz, de saber falar, de conseguir falar, sugerindo assim que seria algo surpreendente,
o subalterno ser capaz de falar, mesmo quando lhe fosse permitido. Partindo desta
problematização, situo o entendimento de que o personagem negro de uma telenovela é
35
construído pela articulação de variadas formas de linguagem. Neste horizonte, considero
que o enredo de uma novela, em suas imagens, discursos, bem como a presença e a
relação entre os personagens concretiza uma expressão de enunciado, ou nos termos de
Spivak (2010), a “fala”.
Fundamentado em Babha (1998) considero ser possível o subalterno falar e ser
ouvido em um terceiro espaço, o entre-lugar, que efetivaria o palco de outra
possibilidade de linguagem, que pode inclusive se sobressair ao discurso colonial.
Babha (1998) refere-se a existência de uma ambigüidade na aparente fixidez nas
relações coloniais das instituições coloniais como a mídia e, por meio desta análise,
estendo essa percepção para as telenovelas brasileiras. O autor sinaliza que o contato
entre colonizado e colonizador pode sediar formas hibridas de expressão, nas quais o
híbrido, pensado pelo autor como produto resultante desta interação, pode efetivar um
lócus de construção de uma oposição subversiva. Assim uma presença quantativamente
ampliada de negros em telenovelas brasileiras poderia resultar em um indicativo, ou
uma estratégia de resistência à diferença colonial e aos seus desdobramentos, propondo
um redimensionamento de alguns valores, normas e ideais instituídos pela colonialidade
do poder e do saber.
Assim, direcionei esta investigação para a compreensão da proposta de negro
que está sendo apresentada pelos personagens inseridos nas telenovelas da Rede Globo,
produzidas de 2001 a 2013. Meu objetivo é discutir a produção social da diferença, no
tocante a construção de sujeito negro quando os folhetins passam a apresentar uma
maior quantidade de personagens e personagens negros nos enredos. Busquei estar
atento à armadilha de fazer uma análise positivada deste aumento. A noção de
pensamento liminar, cunhada por Mignolo (2003) me ajudou a problematizar os
contextos que são constitutivos e que estão subjacentes ao cenário de ampliação da
presença de negros nas tramas. O pensamento liminar é construído “nas e a partir das
margens” (MIGNOLO, 2003, p.30), e instaura-se nas fraturas da colonialidade,
orientando uma interlocução dos saberes hegemônicos, com e a partir de lógicas e
saberes subalternizados no curso das relações coloniais. Assim, atua pavimentando um
espaço que permite o reconhecimento da diferença colonial, viabilizando que sujeitos,
imagens, vozes e discursos silenciados pelas relações coloniais construam espaços de
resistência e também de enunciação, como os contextos de resistência negra
constituídos em torno da ameaça simbólica das cotas raciais, bem como o indicativo da
ampliação quantitativa da presença de atores/personagens negros nas telenovelas.
36
1.1 Trajetória Metodológica
A investigação que subsidiou essa tese foi empreendida sob o signo da
epistemologia multicultural proposta por Semprini (1999), que é alicerçada em quatro
pilares: o primeiro entende a realidade como uma construção na qual não existe
realidade social descolada dos sujeitos sociais que a criam, das teorias que a abordam e
da linguagem que permite sua descrição e comunicação; o segundo considera que as
interpretações são subjetivas, de modo que a realidade se constitui em uma série de
enunciados cujo sentido e estatuto referencial são influenciados pelas condições de
enunciação e, também, pela identidade e posição do seu emissor e receptor; o terceiro
concebe que os valores são relativos; o quarto compreende que o conhecimento é um
fenômeno político, ou seja, o conhecimento não brota da relação entre um enunciado e
uma determinada condição do mundo, mas de uma atividade constituinte, cabendo
observar os mecanismos e modalidades desta última e as condições concretas onde
surge, as relações de força que estabelece, os sistemas de interesse aos quais serve e os
grupos que institui ou marginaliza.
O processo de pesquisa exigiu um esforço contínuo de construção e reconstrução
dos procedimentos teórico-metodológicos, de acordo com as demandas emergentes ao
longo do percurso da investigação.
Para conduzir a investigação acerca da presença de negros em telenovelas da
Rede Globo, fiz uma etnografia densa, conforme sugerida por Geertz (1989),
compreendendo que minha descrição etnográfica consiste em uma interpretação que
resulta da articulação de minha vivência pessoal, na qual me percebo como um sujeito
negro, com formação acadêmica alinhada aos Estudos da Colonialidade, o que me
instrumentalizou para a construção de um entendimento de que no Brasil ainda estão
vigentes as relações coloniais.
Etnografei o enredo dos 68 folhetins veiculados nas faixas de horário das 18, 19
e 21 horas, produzidos e exibidos no período compreendido entre 2001 a 2013. A
etnografia feita sobre as telenovelas foi iniciada por ocasião do trabalho dissertativo, no
qual fiz uma investigação sobre a presença de negros em telenovelas da Rede Globo,
produzidas de 2001 a 2008, veiculadas na faixa de horário das 19 e 21 horas. Para
identificar quantitativamente os personagens negros nos folhetins, utilizei o critério
socialmente acionado no Brasil para reconhecer o sujeito negro que consiste
37
predominantemente na detecção da cor da pele (escura), e secundariamente a
observância de sinais diacríticos como tipologia de cabelos e traços antropomórficos.
No trabalho da tese redimensionei meu foco de estudo para a presença de
personagens negros nos enredos dos folhetins, assim estendi o recorte sobre todos os
folhetins, exibidos nas três faixas de horários da emissora (18, 19, e 21horas). Meu
esforço em encampar um número maior de novelas objetivou poder problematizar as
propostas de personagens negros apresentadas por uma variedade maior de folhetins,
que por sua vez eram assinados por diferentes autores.
A etnografia sobre os folhetins foi feita por faixa de horário de exibição destes.
Os veiculados às 21 horas, acompanho assiduamente, como telespectador, e desde
2001 comecei a rascunhar num caderno a quantidade de personagens negros e como
estes figuram nas tramas. Algumas novelas das 18 e 19 horas assisti no portal da Rede
Globo, por meio de vídeos postados no Youtube.com, Dalymotion.com e/ou baixei
capítulos ou cenas compactadas de personagens negros em programas de
compartilhamento de arquivos na internet.
Consegui a sinopse das novelas, a descrição e fotos dos personagens negros nos
portais Memoriaglobo.com e teledramaturgia.com. Também utilizei como fonte de
pesquisa meu acervo pessoal de folhetins gravados, matérias de jornais e revistas que
abordam a temática das telenovelas ou dramaturgos brasileiros, bem como documentos
legais sobre a temática das cotas raciais no país.
Analisei qualitativamente a inserção de negros nos enredos das telenovelas a
partir da perspectiva do que Bhabha (1998) chama de “deslocar a imagem”, na qual,
considerando o Discurso Colonial, constituído pelas relações coloniais, tentei deslocar o
ponto de intervenção (análise e reflexão acerca dos discursos e imagens) da imediata
classificação destas como positivas e negativas, para uma análise atenta aos processos
de subjetivação, estabelecidos pela vigência de relações coloniais. Considerei a
advertência feita por Bhabha, acerca da necessidade de se redimensionar a linguagem
puramente ocular da imagem, para uma linguagem constituída por possibilidades de
identificações ou representações sociais e políticas.
Como estratégia metodológica, identifiquei, sistematizei, analisei e classifiquei a
presença de personagens e atores ou atrizes negros em telenovelas em quadros
sinópticos de duas naturezas: uma de perspectiva quantitativa, na qual mapeei os
folhetins e apontei quantos personagens e atores/atrizes negros apresentam, organizando
por ano de exibição, horário e demarcação do autor da telenovela. Numa perspectiva
38
qualitativa busquei articular marcadores que estão escalonados na composição do
enunciado que constrói e insere os personagens negros nos folhetins, caracterizando
o(s) autor(e) das telenovelas, especificando seu padrão costumeiro de recorte do
contexto social que ambienta as tramas, buscando situar a eventual existência de
personagens negros, localizando quem era(m) estes(s) personagem(ns), que ator ou atriz
os representava; que papel(is) desempenhava(m) na trama, qual (is) era(m) sua(s)
profissão(ões), que núcleo do enredo fazia(m) parte, com quais outros personagens
interagia(m) na trama, etc.
O resultado desse exercício está exposto na presente tese, que foi organizada de
modo a encadear o percurso analítico partindo de uma caracterização em torno da
proposição e repercussão, no contexto das telenovelas, da proposição das cotas raciais
na mídia. Num segundo momento, apresenta uma caracterização do perfil dos autores
que escrevem as telenovelas. Em seguida, a discussão atinge a presença de personagens
negros nos folhetins, num esforço de problematizar como são enunciados nas tramas,
escalonei a idéia de (in)visibilidade e tentei mapear a presença negras nos folhetins
sistematizados a partir da forma como estes são enunciados nos enredos e os organizei
nos eixos temáticos: hiperssexualidade, fetiche interracial, mestiçagem, subserviência,
marginalidade, vulnerabilidade, discriminação racial, negação ou afirmação da
diferença entre negros e brancos.
39
2 COTAS RACIAIS NA MÍDIA: propostas e repercussões
Em 1995, por ocasião da Marcha “Zumbi pela Cidadania e pela Vida”, em
homenagem aos 300 anos de morte de Zumbi dos Palmares, foi pela primeira vez
proposto um indicativo de projeto que abordava a institucionalização de um sistema de
reserva de cotas raciais na mídia brasileira. Neste evento, ativistas do Movimento Negro
e lideranças sindicais expuseram, ao congresso nacional e ao então Presidente da
República, Fernando Henrique Cardoso, suas idéias e sugestões relacionadas ao
enfrentamento das problemáticas vivenciadas pelos negros no país. Os militantes na
referida marcha reivindicavam ações direcionadas ao enfrentamento à discriminação de
cunho racial sofrida pelos negros no Brasil. Como resultado desta mobilização, o então
presidente da república anunciou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial-GTI,
que produziu um documento de 72 páginas que constava a apresentação de propostas
com vistas à promoção da “inclusão” social dos negros no Brasil.
O documento elaborado ainda em 1995, indicava a apresentação de um
Projeto de Lei que dispunha pela instituição de um sistema de reserva de cotas para
negros, este projeto foi encaminhado pelo Movimento Negro pelas Reparações (MPR),
e posteriormente proposto pelo então Deputado Paulo Paim (PT/RS). Dentre outros
pontos, o referido projeto de lei defendia uma reserva de cotas mínima de 20% para
resguardar a presença de negros no mercado audiovisual (programas de televisão,
novelas, seriados e filmes), e de 40% em campanhas publicitárias. À época de sua
proposição, o projeto de cotas raciais na mídia não foi alvo de destaque por parte da
imprensa nacional, sendo vetado em 1998.
Entretanto, em 1999 a então deputada Nice Lobão (PFL-MA) elaborou e
submeteu à apreciação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal um Projeto de
Lei das Cotas (PL 73/1999) que apresentava dispositivos que instituíam como
compulsória a reserva de vagas para negros em vestibulares, concursos públicos e
empresas privadas.
Em 2000, como passaporte para que o Brasil participasse da Terceira
Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia, e
Intolerância Correlata, realizada em Durban na África do Sul, em Agosto de 2001, foi
elaborado pelo Governo Federal do Brasil um corpo de propostas a serem apresentadas
no evento. Nesse bojo estava um novo Projeto de Lei de Cotas (3.198/2000), proposto
pelo então Deputado Paulo Paim, e o Estatuto Social da Igualdade Racial, em favor dos
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que sofriam preconceito ou discriminação racial em função de sua etnia, raça e/ou cor, e
que objetivava a criação de políticas afirmativas para indivíduos em condições
desfavoráveis de competição.
Desta feita, o Projeto Paim propunha ações afirmativas mais abrangentes,
expressas sob a forma de indenizações, reserva de cotas em concursos públicos,
vestibulares, produtos midiáticos, empresas privadas, iniciativas que reforçavam a
criminalização e o combate ao racismo, bem como programas que promovessem a
igualdade racial. O projeto preconizava que Estado brasileiro deveria indenizar cada
negro ou pardo enquanto descendente de escravo por meio de um sistema de reserva de
cotas, como mecanismo de reparação de danos morais e materiais, decorrentes da
operacionalização da escravidão negra no país. Assim, o documento em referência,
prezava pela ampliação das propostas contidas no Projeto de Lei de Cotas (PL 73/1999)
apresentado em 1999, utilizando como público alvo, sujeitos passíveis de serem
categorizados como afrodescendentes, sendo que o acesso a esta categoria, seria
permitido pelo intermédio do enquadramento de seus fenótipos como pretos ou pardos,
ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística-IBGE. O autor do projeto defendia que o descumprimento do
sistema de reserva de cotas pelas instituições públicas e privadas, acarretaria a
necessidade da aplicação de multa e/ou prestação de serviços à comunidade.
A política de cotas para negros consiste em uma ação afirmativa. Para
Guimarães (2005, p. 153), a expressão ação afirmativa refere-se a programas de
políticas públicas ordenadas pelo executivo ou legislativo, ou implementados por
empresas privadas, voltados para assegurar o acesso de membros de minorias raciais,
étnicas, sexuais, ou religiosas, a escolas, contratos públicos e postos de trabalho,
visando uma reparação por uma injustiça passada, e com caráter de ação reparatória.
Guimarães (2005, p.159) enfatiza que políticas afirmativas visam corrigir, e não
eliminar, mecanismos de seleção por mérito, e garantir o respeito à liberdade e à
vontade individual.
Paulo Paim (2000) argumentava que como 48% dos brasileiros são negros,
quase metade dos artistas, figurantes, repórteres, apresentadores e locutores deveriam
ser afrodescendentes. Assim, as cotas na mídia objetivavam arrefecer esta distorção.
Paim propunha as cotas na mídia, não apenas para ampliar o mercado de trabalho dos
artistas negros, mas por considerar que a população telespectadora, especificamente as
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crianças negras, necessitava de referenciais simbólicos próprios (anjos, fadas, heróis
negros) e símbolos da cultura africana.
O projeto Paim foi proposto no Senado em 2003, em sua primeira versão, pelo
seu autor, na ocasião senador (PT-RS), como o Estatuto Social da Igualdade Racial.
Sobre a questão da reserva de cotas nos produtos midiáticos, o artigo 24, 25, 26 do
capitulo VII, do Estatuto Social da Igualdade Racial elencava as seguintes propostas:
Art. 24. As emissoras de televisão, as agências de publicidade, os
produtores de material publicitário e o Poder Público deverão assegurar a
participação de artistas Afrodescendentes em filmes, programas e peças
publicitárias, de conformidade com as disposições desta Lei.
§ 1º. São pessoas Afrodescendentes, para os efeitos desta Lei, as que se
enquadrarem como pretos ou pardos, ou denominação equivalente, conforme
classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).
§ 2º. Os filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão deverão
apresentar imagens de pessoas Afrodescendentes em proporção não inferior a
vinte e cinco por cento do número total de atores e figurantes.
§ 3º Para a determinação da proporção de que trata o artigo 18 e seus
parágrafos, será considerada a totalidade dos programas veiculados entre a
abertura e o encerramento da programação diária, ou no período
compreendido entre a zero hora e as vinte e três horas e cinqüenta e nove
minutos.
§ 4º. As peças publicitárias destinadas à veiculação nas emissoras de
televisão e em salas cinematográficas deverão apresentar imagens de pessoas
Afrodescendentes em proporção não inferior a quarenta por centro do número
total de atores e figurantes.
§ 5º Os órgãos e entidades da administração direta, autárquica ou
fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, ficam
obrigados a incluir cláusulas de participação de artista Afrodescendentes, em
proporção não inferior a quarenta por cento do número total de artistas e
figurantes, nos contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer
outras peças de caráter publicitário.
§ 6º Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas
especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação,
produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a
obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as
pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado.
§ 7º Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto
de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a
diversidade de raça, sexo e idade na equipe vinculada ao projeto ou serviço
contratado.
§ 8º A autoridade contratante poderá, se considerar necessário para garantir a
prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria e expedição
de certificado por órgão do Poder Público.
Art. 25. A desobediência às disposições desta Lei constitui infração sujeita à
pena de multa e prestação de serviço à comunidade, através de atividades de
promoção da não-discriminação racial.
42
Art. 26. Constitui crime a veiculação, em rede de computadores, de
informações ou mensagens que induzam ou incitem a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (grifos
meus)
Considero pertinente destacar que o projeto em referência, dispõe em seu
segundo e quarto incisos um resguardo de percentual de participação de
afrodescendentes que se limita à dimensão quantitativa, não dispondo sobre a dimensão
qualitativa desta participação, ou seja, acerca do modo como estes afrodescendentes
(negros e pardos) participariam e seriam enunciados nos programas de televisão, filmes
e peças publicitárias.
Como proposta das medidas a serem implementadas pelo Estado Brasileiro
quanto signatário de compromissos assumidos na Conferencia de Durban em 2001, o
projeto de cotas foi aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara no
final de maio de 2001, e esta aprovação repercutiu significativamente na mídia,
mormente nos produtos midiáticos televisivos. A repercussão se deu em função de ser a
primeira vez que era constituído um indicativo de institucionalização de uma política
para intervir na questão da “quantidade” da presença de negros na mídia.
2.1 Estatuto da Igualdade Racial e Cotas nos Produtos Midiáticos
Após tramitar por mais de sete anos no congresso nacional, um substitutivo do
Estatuto em foco foi sancionado pelo presidente Luis Ignácio Lula da Silva, em 2010, e
foi inserido no texto constitucional como a lei 12.288/10, sendo lançado no Diário
Oficial de 21 de julho de 2010. O Senado aprovou o texto final do Estatuto Social da
Igualdade Racial, com a supressão integral de quatro artigos e a incorporação de 11
emendas de redação. A proposta foi alvo de severas alterações ao curso de sua
tramitação Câmara e no Senado.
O texto aprovado é constituído de 65 artigos que rezam, genericamente, no
sentido de que sejam implementadas políticas e programas sociais de valorização dos
negros, visando promover a correção de desigualdades históricas relativas às
oportunidades e aos direitos dos descendentes de escravos, no país. Entretanto, a lei não
faz qualquer recomendação ou indicação de como efetivar tais políticas. Foram
suprimidas as propostas iniciais contidas no projeto, que apontavam o sistema de
43
reserva de cotas raciais em concursos públicos, universidades, campanhas políticas e
nos produtos midiáticos, como estratégias para viabilizar a inserção social de negros.
A lei sancionada dispõe pelo entendimento de que discriminação racial constitui
toda e qualquer ação de exclusão, distinção, restrição ou preferência alicerçada em
descendência, etnia, cor, raça. Tipifica tais práticas como crime passível de penalidades
de reclusão de até cinco anos. Dispõe pelo direito dos negros de acesso a saúde, lazer,
trabalho, educação, cultura, esporte, relações de trabalho. Assegura proteção aos direitos
das comunidades descendentes de quilombolas, rezando pelo respeito às religiões de
matrizes africanas. Institui, ainda, penalidades como reclusão de até cinco anos, para
quem coibir, por preconceito étnico-racial, promoção funcional de pessoa negra em
contextos de relações de trabalho seja no público ou privado.
O documento em referencia toma a categoria desigualdade racial enquanto
indicativa de toda e qualquer “situação injustificada de diferenciação de acesso ou
fruição de bens, serviços e oportunidades nas áreas pública e privada em virtude de
raça, cor, descendência ou origem nacional e étnica”.
A lei 12.288/10 apresenta em seu VI capítulo, que é nomeado de “Meios de
Comunicação”, disposições acerca dos produtos midiáticos:
Art. 43. A produção veiculada pelos órgãos de comunicação valorizará a
herança cultural e a participação da população negra na história do País.
Art. 44. Na produção de filmes e programas destinados à veiculação pelas
emissoras de televisão e em salas cinematográficas, deverá ser adotada a
prática de conferir oportunidades de emprego para atores, figurantes e
técnicos negros, sendo vedada toda e qualquer discriminação de natureza
política, ideológica, étnica ou artística.
Parágrafo único. A exigência disposta no caput não se aplica aos filmes e
programas que abordem especificidades de grupos étnicos determinados.
Art. 45. Aplica-se à produção de peças publicitárias destinadas à veiculação
pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas o disposto no art.
44.
Art. 46. Os órgãos e entidades da administração pública federal direta,
autárquica ou fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia
mista federais deverão incluir cláusulas de participação de artistas negros nos
contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer outras peças de
caráter publicitário.
§ 1o Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas
especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação,
produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a
obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as
pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado.
§ 2o Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto
de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a
diversidade étnica, de sexo e de idade na equipe vinculada ao projeto ou
serviço contratado.
44
§ 3o A autoridade contratante poderá, se considerar necessário para garantir a
prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria por órgão do
poder público federal.
§ 4o A exigência disposta no caput não se aplica às produções publicitárias
quando abordarem especificidades de grupos étnicos determinados.(grifos
meus)
De redação curta, a Lei 12.288/10 esboça a necessidade do estimulo à
participação de sujeitos negros em produtos midiáticos, como uma disposição a ser
seguida. Entretanto, é categórica ao relativizar que se a produção for sobre um grupo
étnico especifico, a indicação de inserir negros fica dispensada. A este respeito, chamo a
atenção para o fato de que os produtos midiáticos, como as telenovelas são obras
artísticas, e não documentários jornalísticos.
No campo especifico das telenovelas, considero que a lei 12.288/10, ao não
dispor pela indicação de que sejam produzidos enredos que contemplem a retratação da
trajetória de negros e negras, acaba referendando o atual paradigma de produção do
enredo
dos
folhetins,
marcados
pelo
padrão
do
discurso
colonial,
que
predominantemente prima por contar histórias e retratar como protagonistas
personagens brancos. Uma breve etnografia feita em telenovelas brasileiras produzidas
1963 a 2013, com suas tramas situadas no Brasil, ambientadas em outra época, indica
que estes folhetins somente contam como protagonistas a saga de italianos, portugueses,
espanhóis ou alemães, ou seja, abordam grupos étnicos específicos.
A lei 12.288/10 não interfere nesta “preferência” dos autores em selecionar
como protagonista a história de povos europeus, excluindo assim do epicentro da
narrativa a trajetória de outros grupos étnicos como índios, povos orientais e negros. Os
quatro artigos do capítulo que abordam a questão da mídia e comunicação do Estatuto
da Igualdade Racial são sintéticos e resumidos, indicando que os órgãos de
comunicação devem valorizar a herança cultural e participação negra na história do
país. Entretanto, não dispõem de nenhum dispositivo que garanta, oriente ou fiscalize
como esta valorização seria promovida, abrindo assim margem para o descompromisso
na sua efetivação. A retirada do sistema de reserva de participação de 20% de negros
dificulta a efetividade e o alcance do estatuto. As supressões que sofreu o Estatuto da
Igualdade Racial foram seguramente resultantes de pressões de representantes de
diversos segmentos da mídia brasileira, resistentes ao sistema de reserva de cotas, que
asseguraria a presença de negros nos produtos midiáticos brasileiros.
45
2.2 A “Ameaça Simbólica” das Cotas Raciais nas telenovelas
A aprovação do projeto de cotas na mídia pela Comissão de Ciência e
Tecnologia da Câmara, no final de maio de 2001, repercutiu significativamente sobre os
espaços midiáticos. Afinal, foi a primeira vez que houve um indicativo de
institucionalização de uma política para enfrentar a problemática do racismo na mídia
brasileira. Este cenário desencadeou um debate nos produtos midiáticos sobre as ações
afirmativas, que contribuiu para aumentar a presença de negros em telenovelas,
programas e comerciais. Ou seja, considero que a possibilidade da institucionalização
das cotas, desencadeou a preocupação de autores e diretores de telenovelas em
assegurar, minimamente, a presença do negro nos enredos.
A possibilidade de aprovação da política de cotas no senado federal significou
para alguns autores e produtores de televisão uma ameaça a liberdade de escalação de
elenco das telenovelas. Antes da proposição da política de cotas, não havia nenhuma
preocupação de autores e diretores de telenovelas em assegurar a presença de um núcleo
negro em cada folhetim ou mesmo a presença de atores/atrizes e personagens negros.
Embora o substitutivo do projeto de cotas, aprovado em 2010, tenha
excluído a proposta do sistema de reserva de cotas, o debate constituído ao redor do
projeto em foco colocou em cena a questão da exclusão do negro nas telenovelas. O
debate alcançou uma dimensão propositiva, e possibilitou um indicativo de ampliação
da presença de negro nos enredos. Antes deste período haviam sido produzidas diversas
novelas no Brasil que não tinham nenhum ator/atriz negros/negras no elenco. Araújo
(2000) relata que em um universo de 98 telenovelas brasileiras produzidas nas décadas
de 80 e 90 (excetuando-se as que tiveram como temática a escravidão negra), não
encontrou, em 28 delas, nenhum personagem ou ator/personagem negro, e em 29 delas
o quantitativo de negro era inferior a 10% do elenco.
Meu argumento é que as telenovelas produzidas a partir de 2001, ou seja,
sob o signo da proposição da política de cotas, passaram a expressar, por parte dos
autores e diretores, uma preocupação em assegurar minimamente a presença do negro.
A ausência de um núcleo negro, ou pelo menos um personagem negro passou a ser
questionado. Este foi o caso da telenovela Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013), que
estreou sem nenhum ator negro no elenco, mas ao longo da novela alguns atores negros
foram escalados.
46
Paulo Paim (2004), autor do projeto de cotas na mídia, pontua que o debate
sobre as ações afirmativas contribuiu para aumentar a presença de atores negros em
telenovelas, programas e comerciais, destacando como exemplo, a novela Da Cor do
Pecado (Rede Globo 19hrs, 2004), protagonizada pela atriz negra Taís Araújo. Paim
também aponta outras novelas que tiveram negros ocupando posição de destaque no
enredo, no contexto das discussões das cotas raciais na mídia.
A pesquisa que empreendi analisando telenovelas da Rede Globo, exibidas de
2001 a 2013, indicou não só a tendência da ampliação de número de personagens negros
(Quadro 01) em comparação com as telenovelas das décadas anteriores, como também
que a presença do núcleo negro passou a ter mais destaque no enredo da trama. E, em
alguns casos, não mais ocupando papeis tradicionalmente outorgados a negros como
empregados domésticos, serviçais, pessoas em situação de marginalidade e
vulnerabilidade social. Apenas 01 das 68 novelas exibidas pela Rede Globo nos horários
das 18, 19 e 21 horas, neste estudo analisadas, não tiveram a presença do negro em seus
enredos. Considero relevante destacar a cobrança feita por internautas em redes sociais
e movimentos sociais ligados à causa negra, após 2001, que se fizeram vigilantes a
muitas telenovelas, como foi o caso da articulação e movimentação em torno da novela
Amor à vida (Rede Globo, 21hrs, 2013).
47
QUADRO 01- O QUANTITATIVO CRONOLÓGICO DE PERSONAGENS NEGROS NAS
TELENOVELAS EXIBIDAS PELA REDEGLOBO DE 2001 A 2013
Novela
Ano Horário Personagens
Protagonista Autor
Negros
negro/negra
Um Anjo
2001 19hrs
2
Antônio Calmon
Caiu do Céu
A Padroeira
2001 18hrs
9
Walcyr Carrasco
Estrela Guia 2001 18hrs
0
Ana Maria Moretzsohn
Porto dos
2001 21hrs
4
Aguinaldo Silva
Milagres
O clone
2001 21hrs
8
Gloria Perez
As filhas da
2001 19hrs
2
Silvio De Abreu
Mãe
O Beijo do
2002 19hrs
3
Antônio Calmon
Vampiro
Coração de
2002 18hrs
1
Emanoel Jacobina
Estudante
Desejos de
Mulher
Esperança
2002
19hrs
2
Euclydes Marinho
2002
21hrs
5
Sabor da
Paixão
Mulheres
Apaixonadas
Agora que
São Elas
Kubanacan
2002
18hrs
3
Benedito Ruy Barbosa e Walcyr
Carrasco
Ana Maria Moretzsohn
2003
21hrs
8
Manoel Carlos
2003
18hrs
3
Ricardo Linhares
2003
19hrs
1
Carlos Lombardi
Chocolate
com Pimenta
Celebridades
Como uma
onda 2004
2003
18hrs
6
Walcyr Carrasco
2003
2004
21hrs
19hrs
6
5
Walter Negrão
2004
19hrs
7
2004
18hrs
4
Edmara Barbosa e Edilene Barbosa
Começar de
Novo
Senhora do
Destino
A lua me
disse
Alma
Gêmea
América
BangBang
Sinhá Moça
Belíssima
Cobras e
Lagartos
Páginas da
Vida
O profeta
2004
19hrs
11
Antônio Calmon e Elizabeth Jim
2004
21hrs
6
Aguinaldo Silva
2005
19hrs
7
Miguel Falabela
2005
18hrs
4
Walcyr Carrasco
2005
2005
2006
2006
2006
21hrs
19hrs
18hrs
21hrs
19hrs
6
6
17
6
4
Glória Perez
Mário Prata
EdmaraBarbosa e Edilene Barbosa
Silvio de Abreu
João Emanuel de Carneiro
2006
21hrs
8
Manoel Carlos
2006
18hrs
5
Duda Rachid,Thelma Guedes
Pé na Jaca
2006
19hrs
1
Carlos Lombardi
Da cor do
pecado
Cabloca
1
2
João Emanuel de Carneiro
48
Paraíso
Tropical
Eterna
Magia
Sete Pecados
Desejo
Proibido
2007
21hrs
9
Gilberto Braga
2007
18hrs
2
Elizabeth Jhin
2007
2007
19hrs
19hrs
9
5
Walcyr Carrasco
Walter Negrão
Duas Caras
Beleza Pura
2007
2008
21hrs
19hrs
20
1
Aguinaldo Silva
AndreáMaltorolli
Ciranda de
Pedra
A Favorita
2008
18hrs
5
Alcides Nogueira
2008
21hrs
4
João Emanuel de Carneiro
Três Irmãs
Negócio da
China
Caminho das
Índias
Paraíso
Caras e
Bocas
Viver a Vida
Cama de
Gato
Tempos
Modernos
Escrito nas
Estrelas
Passione
2008
2008
19hrs
18hrs
5
3
Antônio Calmon
Miguel Falabela
2009
21hrs
6
Glória Perez
2009
2009
18hrs
19hrs
9
7
Benedito Ruy Barbosa
Walcyr Carrasco
2009
2009
21hrs
18hrs
9
8
2010
19hrs
6
Bosco Brasil
2010
18hrs
5
Elizabeth Jhin
2010
21 hrs
2
Silvio de Abreu
Ti TiTi
Araguaia
2010
2010
19hrs
18 hrs
3
9
MariaAdelaide Amaral
Walter Negrão
Insensato
Coração
Morde e
Assopra
Cordel
Encantado
Fina
Estampa
A vida da
Gente
Aquele
Beijo
Amor Eterno
Amor
Avenida
Brasil
2011
21 hrs
6
Gilberto Braga
2011
19hrs
5
Walcyr Carrasco
2011
18hrs
5
Duca Rachid e Thelma Guedes
2011
21 hrs
7
Aguinaldo Silva
2011
18hrs
3
Lícia Manso e Marcos Bernstein
2011
19 hrs
10
Miguel Falabela,
2012
18hrs
3
Elizabeth jhin
2012
21 hrs
João Emanuel de Carneiro
Cheias de
Charme
Lado a Lado
2012
19hrs
4( apenas 2
que
apareciam )
10
1
Filipe Miguez e Izabel de Oliveira
2012
18hrs
14
2
João Ximenes Lage e Claúdia Lage
Guerra dos
Sexos
2012
19hrs
1
1
1
Manoel Carlos
Duca Rachid eThelma Guedes
Silvio de Abreu
49
Salve Jorge
Flor
doCaribe
Sangue Bom
Amor à Vida
2012
2013
21hrs
18hrs
7
4
Gloria Perez
Walter Negrão
2013
2013
19hrs
21hrs
7
3 fixos, que
ingressaram
após o 2 mês
da novela e
5(participação
restrita a
poucos
capítulos)
Maria Adelaide Amaral e VicentVillari
Walcyr Carrasco
Fonte: Gomes, 2015.
O quadro exposto indica um aumento quantitativo no tocante a presença de
personagens negros nos folhetins. Esta inserção ocorreu em números proporcionalmente
inferiores ao quantitativo sugerido pelas cotas raciais e parece ter relação direta com o
debate que vinha se constituindo acerca da necessidade das cotas raciais na mídia.
Dos primórdios da telenovela brasileira na década de 1960, até o ano 2000,
apenas duas novelas tinham sido protagonizadas por personagens negros, Araújo (2000)
aponta que, em 1969, a novela Cabana do Pai Tomás (Rede Globo, 19hrs, 1969),
estreou protagonizada pela atriz negra Ruth de Souza interpretando a personagem Tia
Cloé, que era esposa do personagem título Pai Tomás (Sérgio Cardoso). Ao longo da
novela o personagem Tia Clóe foi perdendo espaço na trama, porque outras atrizes
brancas se sentiam desprestigiadas pelo fato da atriz negra Ruth de Souza figurar como
a protagonista do folhetim. Araújo (2000) afirma ainda, que o autor negro Bráulio
Pedroso foi despedido da TV Globo nos anos 70, quando, preparava a sinopse da novela
Preto no Branco, que tinha o projeto de ter o primeiro protagonista negro de uma
telenovela.
Foto 01- Atriz Ruth de Souza, na novela A Cabana do Pai Tomás em 1969.
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
50
Em 1996, outra atriz negra protagonizou um folhetim brasileiro, Táis Araújo,
interpretou a personagem Xica, o papel título do folhetim denominado Xica da Silva
(Rede Manchete, 22hrs, 1996). A trama foi produzida pela Rede Manchete, teve muito
boa aceitação no Brasil, chegando a ser vendida para outros países. A novela era
assinada pelo autor Walcyr Carrasco, que utilizava o pseudônimo de Adamo Angel.
Com a falência da Rede Manchete, os direitos autorais da novela foram comprados pela
emissora SBT(Sistema Brasileiro de Televisão), que reexibiu a novela em 2005.
Foto 02- Atriz Tais Araújo na novela Xica da Silva.
Fonte:Tv Manchete, 1997.
Diferentemente do contexto exposto pela pesquisa de Araújo (2000), que
encontrou apenas duas novelas protagonizadas por negros no período de 1969 a 1997,
dentre as 68 produzidas e exibidas pela Rede Globo de 2001 a 2013, seis foram
protagonizadas por atores negros, algumas inclusive apresentaram um par de
personagens negros como protagonistas (Quadro 02). Estas novelas foram produzidas
no período compreendido entre os anos de 2004 a 2012, enquanto resultado de duas
tendências, a primeira residia na ameaça da possibilidade da aprovação das cotas raciais
na mídia pelo legislativo brasileiro e a segunda consistiu na tendência de autores
estreantes de apostar em elementos novos no processo de composição da narrativa da
trama da telenovela como apresentar protagonistas negros.
Destaco que em um universo de dezenas de atores negros no Brasil, as seis
telenovelas aqui citadas trouxeram os mesmos três atores negros (Tais Araújo, Camila
Pitanga e Lazaro Ramos) que se revezaram enquanto protagonistas nas tramas em
questão. Aqui penso ser possível estabelecer uma interface com contexto da discussão
da experiência brasileira com as relações coloniais. Costa (2008) relata o episódio em
que no baile da corte, no contexto do Brasil imperial, a Princesa Isabel, dançava com
51
um negro, como uma estratégia para sugerir igualdade racial, bem como demonstrar
bondade e benevolência por parte da elite branca.
Considero que esta proposta de ampliação do numero de folhetins
protagonizados pelos mesmos atores negros pode ser classificada com o que
Grosfogoguel (2007) chama de tokens, modelminority, ou vitrines simbólicas, que
materializam espaços ocupados por minorias sociais, que funcionam dando uma
maquiagem multicultural e multirracial ao modelo hegemônico branco da mídia,
cotidianamente marcada pela colonialidade do poder. Este cenário sinaliza algumas
intencionalidades, sendo que a principal aponta para um movimento de resistência dos
autores novelistas à institucionalização das cotas, por considerar que tal iniciativa
colocaria cerceamentos na liberdade de criação artística, ao engessar pelo sistema de
cotas a configuração étnica de um percentual do quadro de personagens do elenco.
52
Quadro 02-Novelas Protagonizadas por Atores/Personagens Negros
Novela
Ano
Horário
Protagonista
negro
Ator/atriz
protagonista
Autor
Da Cor do
Pecado
Cobras e
Lagartos
2004
19hrs
01
Thais Araújo
2006
19hrs
02
Thais Araújo e
Lazaro Ramos
João Emanuel de
Carneiro
João Emanuel de
Carneiro
Viver a Vida
2009
21hrs
01
Thais Araújo
Manoel Carlos
Cama de
Gato
2009
18hrs
01
Camila Pitanga
Duca Rachid e Thelma
Guedes
Cheias de
Charme
2012
19hrs
01
Thais Araújo
Filipe Miguez e Izabel
de Oliveira
Lado a Lado
2012
18hrs
02
Lazaro Ramos
e Camila
Pitanga
João Ximenes Lage e
Claúdia Lage
Fonte: Gomes, 2015.
Estas seis telenovelas que apostaram em apresentar protagonista(s) negro(s),
indicam terem encampado a “ameaça simbólica” para além dos domínios da esfera
quantitativa, pois este contexto aponta para uma ampliação qualitativa da presença de
negros nas tramas. Mesmo em novelas nas quais os negros não eram os protagonistas,
foi possível identificar um aumento da presença de personagens negros nos folhetins,
chegando a um quantitativo de até 20 negros no elenco, como foi o caso da novela Duas
Caras (Rede Globo, 21hrs, 2008). Outro destaque que faço é relativo à constituição, nas
tramas, dos núcleos negros, assegurando quando o folhetim tem em seu elenco um
quantitativo de sete ou mais personagens negros (Quadro 03).
No período abarcado pela minha pesquisa, foi possível destacar, em muitos
produtos midiáticos, como comerciais e programas de televisão e telenovelas, a
presença de um ou dois participantes negros. Com exemplo destaco o programa Big
Brother Brasil1, exibido em temporadas anuais pela Rede Globo, desde o ano de 2001,
seleciona em todas as edições dois participantes negros: um homem negro, com perfil
atlético e uma mulher negra com um perfil de típica mulata brasileira, de formas
corporais avantajadas. Dentre os demais participantes brancos, ocasionalmente eram
selecionados participantes com perfis corporais mais ecléticos.
O autor novelista Walcyr Carrasco (2007) argumentou que os motivos pelos
quais os atores negros estavam ganhando destaque nos enredos dos folhetins, em tramas
1
Programa de entretenimento na modalidade Reality show, no qual 12 participantes são expostos a
situações variadas, monitorados por câmeras 24 horas por dia
53
que apresentavam famílias de classe média, mocinhas, vilões e anjos negros, era
resultado da preocupação da teledramaturgia brasileira em retratar cada vez mais
realisticamente a sociedade. Segundo o autor; “Os negros estão em um momento de
grandes conquistas, nada mais natural que isso se reflita na televisão”.
Ao longo das três primeiras décadas da telenovela brasileira, excetuando as
tramas que retratam a temática da escravidão negra, em 160 folhetins localizei apenas
10 com um núcleo composto por personagens negros, fixos no enredo, do início ao fim
de sua exibição2. Já no contexto dos folhetins produzidos de 2001 a 2013, por mim
etnografados, dos 68 analisados, em 53 encontrei a presença de um núcleo constituído
por negros.
A ampliação significativa do número de atores negros nos folhetins brasileiros e
seus personagens negros como protagonistas das tramas, após o ano de 2001, foram
foco de diversas matérias de programas de televisão, periódicos impressos e online. Em
2005, um texto do Jornal Folha de São Paulo, datado de 20 de fevereiro, trazia uma
reportagem central, com o sugestivo título: “Excluídos invadem o horário nobre”. O
título do artigo, ao utilizar o termo “invadem” para nominar o processo de ampliação da
participação de negros nos folhetins, sugere que as novelas que integram a faixa de
horário nobre, não seriam o lugar dos excluído (os negros). No tocante ao texto da
reportagem, a discussão era estabelecida pelo diálogo entre três antropólogos estudiosos
da mídia ou telenovela. Os pesquisadores emitiram suas interpretações sobre o aumento
da presença de negros em telenovelas considerando três novelas em exibição por
diferentes emissoras (Rede Globo, SBT e Record). Edmilson Felipe, o primeiro a
argumentar, afirmou que a imagem dos grupos negros naquele momento era menos
caricatural do que a retratada uma década antes, mas ainda havia estereótipos. Já para
José Jorge Carvalho, a proposta de inclusão racial operacionalizada nas novelas tinha
perfil conservador e não-revolucionário, pois isolava o núcleo negro dos demais
personagens dos folhetins. A última a opinar, a pesquisadora Eliana Oliveira, referiu-se
à existência de um movimento de alteração nos elencos das novelas, que ainda
considerava tímido e não contemplava os negros do Brasil. A pesquisadora afirmou:“Os
2
Foram elas Vidas em Conflito (Tv Excelsior, 20hrs, 1969), A Cabana do Pai Thomás, (Rede Globo,
19hrs, 1969), Corpo a Corpo (Rede Globo, 20hs, 1984), Mandala (Rede Globo, 22 hrs, 1987), Araponga
(Rede Globo, 22hrs, 1990), Felicidade (Rede Globo, 1991), Renascer (Rede Globo, 21hrs, 1993), Fera
Ferida (Rede Globo, 21hrs, 1994), Pátria Minha (Rede Globo, 21hrs, 1994), A Próxima Vítima (Rede
Globo, 21hrs, 1995).
54
papéis dos negros são sempre inferiores, de submissão, há grandes talentos, é preciso
observar a diversidade”(FOLHA, 2005).
Quadro 03-Novelas com núcleo/número significativo de personagens negros (mais de
sete atores negros)
Novela
Ano
Horário
Numero de atores
Autor
negros
A Padroeira
2001
18hrs
9
Walcyr Carrasco
O clone
Mulheres
Apaixonadas
Da cor do
pecado
Começar de
Novo
A lua me disse
2001
2003
21hrs
21hrs
2004
19hrs
8
8 (de 75 fixos do
elenco)
7
Gloria Perez
Manoel Carlos
2004
19hrs
11
2005
19hrs
7
Sinhá Moça
2006
18hrs
17
Páginas da Vida
2006
21hrs
8
Edmara Barbosa e
Edilene Barbosa
Manoel Carlos
Paraíso Tropical
2007
21hrs
9
Gilberto Braga
Sete Pecados
Duas Caras
Paraíso
Caras e Bocas
2007
2007
2009
2009
19hrs
21hrs
18hrs
19hrs
7
20
9
8
Walcyr Carrasco
Aguinaldo Silva
Benedito Ruy Barbosa
Walcyr Carrasco
Viver a Vida
Cama de Gato
2009
2009
21hrs
18hrs
9
8
Araguaia
Fina Estampa
Aquele Beijo
Cheias de
Charme
Lado a Lado
2010
2011
2011
2012
18 hrs
21 hrs
19 hrs
19hrs
9
7
10
10
2012
18hrs
14
Salve Jorge
2012
21hrs
7
Manoel Carlos
Duca Rachid eThelma
Guedes
Walter Negrão
Aguinaldo Silva
Miguel Falabela,
Filipe Miguez e Izabel de
Oliveira
João Ximenes Lage e
Claúdia Lage
Gloria Perez
Sangue Bom
2013
19hrs
7
João Emanuel de
Carneiro
Antônio Calmon e
Elizabeth Jhin
Miguel Falabela
MariaAdelaide Amaral e
VicentVillari
Fonte: Gomes, 2015.
O aumento numérico da presença de personagens negros em telenovelas a
partir de 2001, foi observado em todas as faixas de horários das telenovelas analisadas
(18hrs, 19hrs e 21hrs). Porém, esta ampliação quantitativa não foi linear e não se
manteve estável de um folhetim para o outro. Também, observei que não foi continua,
dentre os folhetins escritos por um mesmo autor novelista. Folhetins que apresentaram
protagonistas ou antagonistas negros não tiveram necessariamente um quantitativo
numérico significativo de outros personagens negros.
55
Entre os anos de 2003 a 2013, nenhuma telenovela da Rede Globo foi produzida
sem a presença de personagens negros. Neste período, estava muito em voga, na mídia,
a discussão acerca da questão das cotas raciais e a novela Da Cor do Pecado (Rede
Globo, 19hrs, 2004), protagonizada pela atriz negra Táis Araújo, estava gerando muitos
repercussão por trazer uma protagonista negra em uma telenovela global
contemporânea. Este folhetim foi bem recebido pelo público, segundo o Instituto
Brasileiro de Opinião e Estatística-IBOPE (2005). Desde a exibição da novela A Viagem
(Rede Globo, 19hrs, 1994) a Rede Globo não cativava a audiência de tão grande número
de telespectadores no horário das 19 horas. As duas novelas que sucederam Da Cor do
Pecado em sua faixa de horário de exibição, Começar De Novo (Rede Globo, 19hrs,
2004) e A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005), seguiram a tendência de contar com
presença de atores/personagens negros tendo significativo destaque na trama, embora
não fossem protagonistas.
Outra questão que destaco como significativa para reflexão, é que todas as
telenovelas exibidas na faixa de horário das 21 horas tiveram em suas tramas a presença
de pelo menos dois personagens negros. Os folhetins deste horário, por alcançar maior
audiência, têm maior repercussão junto ao público telespectador (Quadro 04).
Quadro 04- Presença de personagens negros em telenovelas das 21 horas
Novela
Ano
Quantidade negros
Porto dos Milagres
2001
04
O Clone
2001
08
Esperança
2002
05
Mulheres Apaixonadas
2003
08
Celebridades
2003
06
Senhora do Destino
2004
06
América
2005
06
Belíssima
2005
06
Páginas da Vida
2006
08
Paraíso Tropical
2007
08
Duas Caras
2007
20
A Favorita
2008
04
Caminho das Ìndias
2009
06
Viver a Vida
2009
09
Passione
2010
02
Insensato Coração
2011
06
Fina Estampa
2011
07
Avenida Brasil
2012
04 (02 fixos)
Salve Jorge
2012
07
Amor à Vida
2013
03(02 fixos)
Fonte: Gomes, 2015.
56
A etnografia que fiz sobre os enredos de novelas apontou que alguns
folhetins que apresentaram uma quantidade significativa de personagens negros, estes
não representaram papeis de destaque na trama central do folhetim. Pontuo
paradoxalmente que, mesmo neste contexto temporal de aumento numérico da presença
do negro em telenovelas, das 68 telenovelas analisadas, unicamente no folhetim Estrela
Guia (Rede Globo, 18hrs, 2002) não encontrei nenhum personagem negro, e em cinco
telenovelas foram produzidas com apenas um personagem negro (Quadro 05).
Quadro 05-Novelas com apenas um personagem negro
Novela
Coração
Estudante
Kubanacan
Ano
2002
Horário
18hrs
Personagens?negros
1
2003
19hrs
1
Pé na Jaa
2006
19hrs
1
Beleza Pura
2008
19hrs
1
Guerra dos Sexos
2012
19hrs
1
de
Autor
Emanoel
Jacobina
Carlos
Lombardi
Carlos
Lombardi
Andrea
Maltorolli
Silvio de Abreu
Fonte:Gomes, 2015.
Igualmente penso ser significativo situar que alguns folhetins veiculados na
faixa de horário das 18 e 19 horas, produzidos no período recortado pela pesquisa,
apresentaram apenas um personagem negro (Quadro 05) e, ainda assim, com limitada
carga dramatúrgica. Este contexto aponta para a premissa de que alguns autores
novelistas como veteranos Silvio de Abreu e Carlos Lombardi, bem como aqueles que
assinaram seu primeiro folhetim a partir de 2001 como Emanoel Jacobina e Andrea
Maltorolli ficaram indiferentes a ameaça simbólica das cotas raciais.
57
3 QUEM CONSTRÓI O NEGRO NAS TELENOVELAS?
O esquema analítico mobilizado neste estudo me permitiu construir, por meio da
análise das telenovelas, o argumento de que cada autor das novelas, ou conjunto de
autores (no caso das novelas escritas por mais de um autor), possui um estilo de
narrativa e construção dos enredos característico dos folhetins de sua autoria. Estes
reproduzem, em alguns casos com uma significativa linearidade e continuidade,
determinadas propostas de negros e negras, que podem ser analisadas sob a perspectiva
da diferença colonial e do pensamento liminar (MIGNOLO, 2003).
Tonon (2004) aponta a existência de um compromisso entre aqueles que
produzem novelas (autor, emissora, diretores, elenco) e os telespectadores. Estes
últimos, embora desconheçam as técnicas utilizadas para a realização de uma
telenovela, podem decodificar as construções arquetípicas, os estilos, a linguagem e a
construção estética apresentadas. O autor destaca, ainda, o repertório compartilhado,
que pode materializar um contrato de leitura que existe, independentemente do
entendimento e da negociação de sentidos que cada receptor, ou cada grupo social fará
da recepção da telenovela. A este respeito, Lopes, Borelli e Resende (2002, p. 368)
complementam o debate argumentando:
O uso da telenovela depende da dimensão simbólica configurada por cada
grupo e cada sujeito, as lógicas dos usos superam os limites de classe social e
respondem a demandas próprias do universo psíquico, do gênero, da geração
e do perfil ideológico. Entretanto, independentemente do sentido construído
por cada grupo ou pessoa, observamos um repertório compartilhado, uma
espécie de agenda de temas comuns considerados importantes para todas as
famílias. A telenovela coloca modelos de comportamentos por meio de
personagens que apresenta, e tais personagens servem para o debate, a
interpretação, a crítica, a projeção ou a rejeição do público.
Barbosa (2005) entende que o autor de uma telenovela contempla as
situações do cotidiano e as representa por intermédio da ficção. Assim, se efetiva o
processo
de
criação
de
personagens,
seus
discursos,
imagem,
gestuário,
comportamentos e o contexto social no qual se encontra inserido como sujeito e
enquanto autor de novelas. A composição dos enredos seria, nessa perspectiva, uma
interpretação do novelista a um dado contexto. Barbosa (2005) considera que o
dramaturgo, ao dimensionar os elementos ficcionais, não está apenas contando uma
história, antes está expressando e representando ao seu público, por meio do enredo do
folhetim, ainda que de que forma às vezes subliminar, tácita, ou implícita, sua particular
58
visão de mundo, seu partidarismo acerca de determinadas questões, constituindo assim
um mecanismo significativo de formação de opinião.
Identifiquei, no período compreendido de 2001 a 2013, um aumento
quantitativo do número de atores negros escalados nos folhetins nacionais, presença
materializada na inserção de mais personagens negros. Minha argumentação
fundamenta-se na premissa de que grande parte dos novelistas passaram a inserir
personagens negros, influenciados pela “ameaça simbólica” das cotas raciais, em termos
quantitativos e qualitativos.
A questão que pretendo compreender é o que esta presença de personagens
negros pode significar e que ideia de sujeito negro está sendo construída e veiculada por
intermédio destes personagens. Assim, direcionei o percurso investigativo para a
caracterização que cada dramaturgo faz do negro, no afã de analisar qual (is) proposta(s)
de sujeito (s) negro (s) estes estão construindo em suas tramas.
Os 68 folhetins produzidas no período investigado foram assinados por 31
autores novelistas. Em sua grande maioria, tiveram autoria individual, conforme pode
ser observado no quadro a seguir.
Quadro 06 - Autoria das Telenovelas
Autoria individual
João Emanuel de Carneiro, Aguinaldo
Silva, Glória Perez, Gilberto Braga, Silvio
de Abreu, Manoel Carlos, Miguel
Falabela, Antonio Calmon, Walcyr
Carrasco, Euclydes Marinho, Alcides
Nogueira, Mário Prata, Ricardo Linhares,
Walther Negrão, Ana Maria Moretzsohn,
João Emanuel Jacobina, Benedito Ruy
Barbosa,
Elizabeth
Jhin,
AndreáMaltorolli, Bosco Brasil e Maria
Adelaide Amaral
Fonte: Gomes, 2015.
Autoria compartilhada
Lícia Manso e Marcos Bernstein,
Duda Rachid e Thelma Guedes,
Edmara e Edilene Barbosa,
Filipe Miguez e Izabel de Oliveira,
João Ximenes e Cláudia Lage
No esforço de minimamente traçar o perfil destes novelistas, busquei
informações e fotos no portal Memoriaglobo.com e no site teledramaturgia.com, por
serem estas fontes documentais lastreadas e alimentadas pela emissora que produz os
folhetins. Apresentam informações sobre cada autor, de forma diferenciada,
especialmente se o novelista for veterano no oficio de roteirizar folhetim. Por isso, em
alguns momentos apresento dados bem sucintos sobre um determinado autor e em
outros o texto consegue ser mais detalhista apresentando inclusive fotos do novelista.
59
Uma breve análise me permitiu identificar, por intermédio do critério
socialmente utilizado no Brasil para definir o sujeito negro (traços fenotípicos,
predominantemente cor da pele e tipo de cabelo) 3, que a totalidade dos autores das
telenovelas etnografadas seriam classificados como brancos. Incluo nessa classificação,
inclusive, o autor Aguinaldo Silva, que se afirma como negro, porém não possui traços
antropomórficos que o levariam a ser reconhecido enquanto negro no Brasil. Faço essa
classificação fundamentado em Oracy Nogueira (1996), que afirma que no contexto
brasileiro a definição racial é ordenada por sinais diacríticos e não por
origem/ascendência.
Dos 31 novelistas pesquisados, a única estrangeira (Maria Adelaide Amaral)
é portuguesa, apenas é um é nordestino (Aguinaldo Silva), dois são oriundos da região
norte do Brasil (Glória Perez e Antonio Calmon), dois são mineiros (Mario Prata e
Elizabeth Jhin), e todos os demais nasceram nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
No tocante a faixa etária, dois apenas dois nasceram na década de 30, onze na década de
40, quatro na década de 50, onze na década de 60, e quatro na década de 70. De acordo
com as informações disponibilizadas nos portais citados, a maioria possui formação
superior, com exceção de cinco. Grande parte cursou jornalismo e/ou atuou na área de
comunicação social, mesmo não tendo esta graduação. Os demais estudaram Letras,
História, Direito, Artes Cênicas e Economia.
Procurei mapear algumas intencionalidades que podem ancorar o processo
de elaboração dos enredos, bem como empreendi o esforço de tentar qualificar os
personagens negros nas telenovelas investigadas.
A necessidade de qualificar a visibilidade permitida aos personagens nos
folhetins produzidos a partir de 2001, direcionou o fio condutor da presente discussão
para o questionamento: que imagem de negro está sendo veiculada no contexto em que
ocorre um aumento da sua presença nos folhetins?
Fundamentado em Bhabha (1998), empreendi o esforço de tentar deslocar a
linguagem ocular da imagem (que figura como visível e audível) para compreender os
significados veiculados por esta imagem. Bhabha (1998) considera que o discurso
3
Oracy Nogueira (1996) apontou que no Brasil, o preconceito de marca elege o fenótipo (a aparência
racial) como critério para a discriminação. São construídas várias gradações classificatórias que
consideram não só as nuances da cor – “preto”, “mulato”, “mulato claro”, “escuro”, “pardo”, “branco” –
como traços fisionômicos como nariz, lábios, cor dos olhos, tipo de cabelo.
60
colonial desempenha um papel imprescindível no tocante a manutenção do processo de
dominação e produção de estereotipia. O autor enfatiza que o discurso colonial tem um
caráter ambíguo, pois se por um lado um dos seus efeitos se materializa no fato de que
os estereótipos funcionam como estratégias para oprimir e subalternizar os colonizados,
por outro lado são capazes de “encantar” e “enlouquecer” os colonizadores.
Para Bhabha (1998), o processo de significação do colonizado no discurso
colonial se corporifica para além do binarismo de opor o bem ao mal, autorizando o
exercício de poder sobre o colonizado, mas também alcança um território subjetivo de
expectativas, imagens, fantasias, sonhos, mitos, aspirações e exigências ao colonizador.
Segundo Bhabha (1998, p.125) o ato de estereotipar não se restringe unicamente
a estabelecer uma falsa imagem que passa a ser o alvo de práticas discriminatórias. Este
efetiva, sobretudo, um arcabouço textual ambivalente com a relação de saberes oficiais
e ao discurso colonial, que por sua vez naturaliza a idéia de diferença racial. Esse autor
propõe que o processo de análise acerca dos estereótipos deve tentar superar a tentação
da superficial interpretação das imagens/enunciados como positivas ou negativas.
Antes, o exercício é tentar problematizar os processos de subjetivação que os
constituem. Adverte, ainda, que o processo de estereotipação impetrado pelo discurso
colonial não se limita ao estabelecimento de uma imagem forjada e falaciosa, que se
torna o alvo de práticas de discriminação negativas. Trata-se de um processo discursivo
mais complexo e, sobretudo, ambivalente, que abarca e perpassa os horizontes da
projeção,
introjeção,
estratégias,
metáforas
e
metonímias,
descolamentos,
sobredeterminação, culpa, agressividade, mascaramento e cisão de saberes oficiais e
fantasmagóricos para assim constituir posicionalidades e oposicionalidades (BHABHA,
1998).
Como as telenovelas brasileiras são feitas por brancos, para agradar
principalmente a telespectadores brancos, nestes folhetins os negros são construídos a
partir de uma racionalidade colonial. Os enredos das telenovelas encampam as eventuais
armadilhas da apropriação da ideia de negro pelo processo de assimilação colonial, no
qual os saberes oficiais e os produtos midiáticos, como as telenovelas, atuam para que
seja instaurado como verdade o que é dito pelo discurso colonial. Este processo faz com
que a ideia de negro, construída pelas relações coloniais, seja enunciada nos folhetins e
fique legitimada e naturalizada, constituindo assim a possibilidade de se ouvir “a voz do
colonizador/branco no subalterno/negro”.
61
Spivak (2010) identifica que em um contexto de subalternidade, quem é detentor
da permissão de falar, tem também o poder de subjetivar a si mesmo e aos outros,
classificados como subalternos. A autora é enfática ao afirmar que toda e qualquer
representação do subalterno está atravessada por construções hierárquicas dos grupos
dominantes. Mostra-se cética quanto a possibilidade do subalterno se subjetivar
autonomamente. Aponta que o espaço da enunciação, ou seja, da fala, da produção dos
discursos é o lócus onde é produzida a subjetividade. Para Spivak, a condição do
subalterno é marcada pelo silenciamento. O subalterno não fala porque o enunciado
pertence a quem tem a propriedade da linguagem em múltiplas formas de expressão do
poder. De igual forma, não existem ouvidos nem olhos solícitos ao diálogo com o
subalterno, pois os códigos lingüísticos não lhe pertencem.
O colonizador, por meio do discurso colonial, constitui uma imagem fixa para o
seu “outro”, por meio dos estereótipos que funcionam para configurar a identidade do
outro e legitimá-lo como diferente, propondo como verdade uma interpretação do outro
que seria constituída por elementos empíricos e naturais e que por isso não carece ser
validada.
Assim, o discurso colonial constrói este negro. O negro tem sido apresentado
nas telenovelas, quase sempre, como sujeito colonizado/subalterno, a quem não é dada a
oportunidade de significar, negar, propor, protagonizar a produção de sua subjetividade.
Embora os folhetins contem com a presença de personagens negros, são
produzidos por autores brancos e são dirigidos para um público idealmente branco. A
luz do instrumental desenhado por Spivak (2010), observo que os folhetins da Rede
Globo de televisão, que foram analisados, concretizam telenovelas de brancos,
compostas por enredos que retratam personagens brancos e negros, direcionados a um
público que entende o sujeito branco como uma referencia neutra e universal.
O enredo das telenovelas e a construção de cada personagem enquanto uma
prática ou processo discursivo demanda atenção no tocante ao momento do produzir,
emitir, assistir, interpretar, que são permeados pela construção de significado. Foucault
(2009) indica que os enunciados são influenciados por relações de forças externas a
lingüística, as relações econômicas e políticas e as instituições. Assim, a partir dos
discursos é possível localizar pistas acerca das relações de poder que o constituem.
A etnografia acerca dos folhetins me permitiu identificar os novelistas em duas
tendências: novelistas indiferentes e novelistas sensibilizados pela “ameaça simbólica”
das cotas raciais na mídia brasileira. A sensibilização resultou na ampliação da presença
62
de negros em termos quantitativos e/ou qualitativos. No entanto, mesmo quando a
imagem do negro é positivada em alguns personagens, na mesma novela outros
personagens negros expressam os estereótipos relativos ao ser negro no Brasil.
3.1 A proposta das “cotas raciais” ameaça a quem?
Dos trinta e um novelistas investigados, seis não foram tocados pela “ameaça
simbólica” das cotas raciais. Estes asseguraram em suas telenovelas a ausência e/ou
presença limitada e com pouca carga dramatúrgica de personagens negros. Este foi o
contexto do novelista Emanoel Jacobina, que assegurou uma única personagem negra
na primeira novela que assinou sozinho, Coração de Estudante (Rede Globo, 18hrs,
2002), trama que foi produzida já no contexto das discussões em torno das cotas raciais.
A personagem negra era advogada e professora, desejada por um aluno branco, e
encenava o estereotipo da hiperssexualização da mulher negra.
Jacobina nasceu no Rio de Janeiro em 1962 e atuou como roteirista do programa
Casseta e Planeta, na década de 90. Foi autor principal do seriado Malhação, de 1995 a
1998 e depois em 2010. Foi co-autor do folhetim Kubanacan (Rede Globo, 19hrs, 2003)
e colaborador na trama Beleza Pura (Rede Globo, 19hrs, 2008), que foi a primeira
novela escrita por Andreá Maltorolli e que não apresentou nenhum personagem negro
como integrante fixo do seu enredo. Este folhetim trouxe apenas um personagem negro,
um inescrupuloso capanga a serviço do vilão branco, em uma curta participação.
A autora Andreá Maltorolli nasceu em 28/09/1962 e faleceu em 22/09/2009.
Era graduada em história e comunicação social. Ingressou na Rede Globo em 1994,
através da oficina de autores e roteiristas da emissora. Integrou a equipe que roteirizava
o seriado Malhação, Escolinha do Professor Raimundo, Turma do Didi e Zorra Total.
Maltarolli (2007) considera que fatores lucrativos obstaculizam a inserção de
personagens negros nos folhetins, "Você não pode ir contra os padrões instituídos pela
sociedade. E isso tudo dentro de um contexto comercial, o que torna mais dramático o
risco da rejeição”. Este discurso de Maltorolli fornece uma pista que permite
problematizar a inserção de apenas um personagem negro em seu primeiro folhetim
Beleza Pura (Rede Globo, 19hrs, 2008). Demarco como necessário sinalizar que estes
“padrões instituídos pela sociedade”, destacados pela novelista, referem-se a uma
sociedade que se pretende branca e que tem sua subjetividade tecida pelas relações
63
coloniais, que agem subalternizando e inferiorizando a ideia de sujeito negro,
construindo-o em permanente dicotomia ao sujeito branco.
O novelista Carlos Lombardi também inseriu apenas um personagem negro nas
duas novelas que assinou no período encampado pelo estudo, demonstrando uma certa
indiferença a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira. Lombardi nasceu
em 27/08/1958, em São Paulo-SP. Tem graduação em Comunicação Social pela
ECA/SP. Começou sua carreira roteirizando o programa Telecurso 2º Grau. Trabalhou
também na TV Cultura e na TV Bandeirantes. Sua primeira experiência com telenovela
foi na TV Tupi, quando dividiu com Edy de Lima e Ney Marcones a autoria do folhetim
Como Salvar meu Casamento (TV Tupi, 20hrs, 1979), trama que tinha uma personagem
negra, Zita (Lizete Negreiros), que fazia o momento comédia da novela, como uma
empregada domestica que sonhava em ser cantora e vivia se intrometendo na vida dos
patrões brancos. Araújo (2000) destaca que, em um capítulo, esta personagem chegou a
se apresentar em um programa de calouros e, ao fim de sua apresentação, os jurados, ao
tomar conhecimento de que Zita trabalhava como doméstica, transferiram os elogios da
performance artística da aspirante a cantora para sua patroa.
Em 1981 foi contratado pela Rede Globo, e nos anos seguintes trabalhou como
colaborador nas novelas Jogo da Vida (Rede Globo, 19hrs, 1981), Elas por Elas (Rede
Globo, 19hrs, 1982) Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 1983) e Caminho das Índias
(Rede Globo, 21hrs, 2009). Escreveu a minissérie Quinto dos Infernos (2002) e alguns
capítulos do seriado Malhação (1997). Foi supervisor de texto das novelas Coração de
Estudante (Rede Globo, 18hrs, 2002), Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005), e chegou
a trabalhar em alguns filmes.
Lombardi foi o autor principal da novela Vereda Tropical (Rede Globo, 19hrs,
1984), que não trouxe nenhum personagem negro, o que também ocorreu nos seus
folhetins Bebê a Bordo (Rede Globo, 19hrs, 1988) e Perigosas Peruas (Rede Globo,
19hrs, 1992). Em outras, como Quatro por Quatro (Rede Globo, 19hrs, 1994), Vira
Latas (Rede Globo, 19hrs, 1997), apresentou apenas uma personagem negra, no papel
de empregada doméstica. Cabe ressalvar que neste último folhetim, inseriu,
pontualmente, três personagens negros (Quadro 07).
64
Quadro 07-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Carlos Lombardi produzidas de
2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de negros
Kubanacan
Pé na Jaca
2003
2006
01
01
Fonte: Gomes, 2015.
As novelas escritas por Lombardi, no contexto da proposição e repercussão das
cotas raciais na mídia brasileira, não apresentaram nenhuma alteração quantitativa no
tocante ao número de personagens negros. As escritas em 2003 e 2006,
respectivamente, tiveram igualmente apenas uma personagem negra. A modificação
observada nas personagens negras deveu-se a não serem enunciadas como empregadas
domésticas, mas como uma dona de casa ambiciosa e fofoqueira, que usava sua
sensualidade para tentar seduzir os homens ou uma adolescente negra fofoqueira, fútil,
gananciosa, e arrogante, filha adotiva de pais brancos de classe média alta.
Assim como Lombardi, outro novelista que demonstrou pouca preocupação com
a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia foi Ricardo Linhares. No intervalo
pesquisado Linhares escreveu duas novelas, Agora que são Elas (Rede Globo, 18hrs,
2003) e Saramandaia (Rede Globo, 23hrs, 2013)4. Agora que são Elas apresentou três
personagens negros, com a mesma proposta dos personagens negros da novela anterior
de Linhares, Meu Bem Querer: uma família negra, resultante de casamento interracial,
encenando o estigma da família negra desajustada e do homem negro como referência
de pai, malandro e irresponsável. Veiculou a mesma quantidade de personagens negros,
indicando, por um lado, pouca interferência da “ameaça simbólica” das cotas raciais,
mas por outro lado resguardando, com exatidão numérica, a existência de um mínimo
de presença negra em seus folhetins.
Ricardo Linhares nasceu em 30/04/1962, no Rio de Janeiro-RJ. Tem graduação
em jornalismo pela UFRJ. Seu primeiro contato com a televisão foi na TV Educativa,
escrevendo o Telecurso Qualificação Profissional. No início da década de 80 já
integrava a equipe de roteiristas do programa Caso Verdade da Rede Globo.
4
Exibida às 23 horas e, portanto, não foi objeto de análise.
65
Foto 03-Ricardo Linhares
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Foi colaborador nas minisséries Máfia do Brasil (1984), O tempo e o Vento
(1985) e Anos Rebeldes (1992), nas novelas O Outro (Rede Globo, 20 hrs, 1987), Fera
Radical (Rede Globo, 19hrs, 1988), O Dono do mundo (Rede Globo, 20hrs, 1991) e
Celebridades (Rede Globo, 21hrs. 2003). Também foi supervisor de texto do seriado
Malhação (1995). Assinou, em co-autoria, as novelas Tieta (Rede Globo, 20hrs, 1989),
Lua Cheia de Amor (Rede Globo, 19hrs, 1990), Pedra sobre Pedra (Rede Globo, 20hrs,
1992) A Indomada (Rede Globo, 21hrs, 1997), Porto dos Milagres (Rede Globo, 21hrs,
2001), Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007) e Insensato Coração (Rede Globo,
21hrs, 2011).
A primeira novela em que foi autor solo foi Meu Bem Querer (Rede Globo,
19hrs, 1998), que contou com três personagens, no formato de família desajustada,e
somente um personagem apareceu na trama durante todo o desenrolar da novela.
Assim como Ricardo Linhares, os novelistas Benedito Ruy Barbosa e Walter
Negrão mantiveram nos anos 2000 um mesmo quantitativo de personagens negros que
apresentavam nas décadas anteriores. Estes autores costumam escrever tramas épicas ou
regionalistas que por uma questão de verossimilhança demanda pela participação de
personagens negros no enredo, ainda que figurando em papeis de escravos e
trabalhadores domésticos ou rurais, com limitada carga dramatúrgica ou orbitando em
torno de personagens brancos.
Esses exemplos indicam que nem sempre uma maior quantidade de personagens
negros assegura-lhes maior visibilidade nos enredos dos folhetins. As novelas de
Benedito Ruy Barbosa, épicas ou contemporâneas, abordam temas ou contextos que
apresentam um gradiente significativo de personagens negros, que desempenhavam
papéis em posições de subalternidade, com pouca carga dramatúrgica. Na maioria dos
casos, apareciam exercendo suas profissões, servindo aos personagens brancos. Não
tinham suas famílias ou relacionamentos afetivos com outros negros retratados,
sugerindo certa invisibilidade, a despeito da presença numérica significativa.
66
Contrário a institucionalização das cotas na mídia, e em especial nas telenovelas,
Benedito Ruy Barbosa, em entrevista dada ao Jornal do Brasil, em 06/09/2003, declarou
que a regulamentação das cotas raciais inibiria a capacidade de criação artística e
forjaria contextos falaciosos do ponto de vista histórico.
A inclusão de negros no elenco depende da história. Não se pode é forçar a
barra e essa participação ficar irreal. Em Terra Nostra, tive muitos negros em
ascensão. Personagens que procuravam dar aos filhos o estudo que não
haviam tido, inclusive com críticas às restrições que os colégios faziam a
crianças negras na época. Uma vez, algumas associações de negros me
criticaram, dizendo que, nas minhas histórias, os negros eram roceiros, mas,
na novela, eles eram o que eram na época em que a trama se passava
(BENEDITO RUY BARBOSA, 2005).
Benedito Ruy Barbosa nasceu em Gália-SP, em 17/04/1931. Trabalhou como
jornalista, publicitário e escritor de peças de teatro antes de escrever sua primeira novela
Somos Todos Irmãos (TV Tupi, 20hr, 1966). Ao longo das décadas de 60, 70, 80 e 90
escreveu diversas telenovelas para TV Tupi, TV Exelsior, TV Record, TV Cultura,
Rede Globo, TV Bandeirantes e TV Manchete. Seus folhetins têm por característica
abordar sagas familiares, imigrantes europeus, novelas épicas do período do
escravagismo no Brasil e o contexto rural. Nestas telenovelas era linear a presença de
personagens negros desempenhando o papel de trabalhadores rurais, escravos, capatazes
e empregados domésticos.
Foto 04–Benedito Ruy Barbosa
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
No contexto da pesquisa, as novelas de Barbosa mantiveram o mesmo
contingente de personagens negros das telenovelas escritas em décadas anteriores. Estes
personagens negros permaneceram enunciados por uma moldura instituída pelo
discurso colonial, que lhes dava pouca participação nos enredos, apesar da significativa
presença numérica (Quadra 08).
67
Quadro 08-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Benedito Ruy Barbosa produzidas
de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de negros
Esperança
2002
05
Sinhá Moça
2006
17
Paraíso
2009
09
Fonte: Gomes, 2015.
Adepto do estilo de escrever novelas com enfoque regionalista, Walter Negrão
assegurou também um gradiente significativo de negros em seus folhetins, mas estes em
grande parte tinham como função nas tramas apenas orbitar em torno de personagens
brancos. Walther Negrão nasceu em 24/05/1941, no município de Avaré- SP. Na
juventude, trabalhou como jornalista no jornal Última Hora e na Revista Cláudia. Seu
primeiro ingresso na televisão foi como ator em teleteatros na década de 1950. Sua
estréia como autor se deu na TV Tupi, em 1958, roteirizando o programa Grande
Teatro Tupi.
No início dos anos 60, adaptou para o formato de telenovela, textos radiofônicos
para a TV Record. Contribuiu com o processo de nacionalização das telenovelas
brasileiras, incorporando temáticas do cotidiano dos brasileiros nos enredos de seus
folhetins. Escreveu sozinho, ou em co-autoria, e supervisionou um vasto número de
novelas para a TV Tupi e TV Globo, ao longo das décadas de 70 80 e 90. No tocante
aos personagens negros, as novelas deste autor que apresentaram tais personagens,
quando o fizeram, foi em um número reduzido.
Foto 05-Walther Negrão
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
No contexto da discussão das cotas raciais na mídia brasileira, as novelas de
Negrão apresentaram, nos enredos de 2004 e 2007, o exato número de cinco
personagens negros. A trama, escrita em 2009, trouxe nove personagens negros e sua
última novela apresentou o menor percentual de personagens negros (Quadro 09)
.
68
Quadro 09- Quantidade de personagens negros nas novelas de Walther Negrão
produzidas de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
Como Uma Onda
2004
05
Desejo Proibido
2007
05
Araguaia
2010
09
Flor do Caribe
2013
04
Fonte: Gomes, 2015.
As novelas de Walther Negrão têm uma peculiaridade que as diferenciam das de
outros autores, são ambientadas predominantemente no espaço rural ou litorâneo e
nestes contextos, a diferença entre negros e brancos ficou demarcada na dicotomia
patrão/empregado. O novelista em foco, embora tenha contemplado um número
significativo de negros em suas tramas que foram analisadas, com exceção de Flor do
Caribe, priorizou uma construção de sujeitos e sujeitas negras presos aos moldes das
relações escravagistas no tocante a relação com personagens brancos, demonstrando
assim indiferença a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia Brasileira.
3.2 A “Ameaça Simbólica” redimensionando a construção do personagem negro
A “Ameaça Simbólica” das cotas raciais foi ”visível” por vinte cinco dos autores
analisados. Considero que o resultado direto dessa “visibilidade” reside na ampliação da
presença de personagens negros e sua composição dramatúrgica. Para construir tal
argumentação, parto do exemplo da novelista Ana Maria Moretzsohn, que ampliou de
zero para três o número de personagens negros nas duas novelas que assinou no período
analisado. No entanto, cabe refletir sobre que tipo de personagens negros figuravam nas
tramas: crianças abandonadas por seus familiares negros e adotados por mulher branca.
Esse perfil de personagem reforça a ideia da criança negra vulnerável, fruto de uma
família negra desajustada, que é acolhido por uma “salvadora” branca, fazendo coro ao
discurso colonial, que exalta o branco como um salvador e bem feitor do negro, por sua
bondade e generosidade. Destaco que esta proposta de ampliação de presença de negro é
limitada à dimensão quantitativa (Quadro 10).
Quadro 10-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Ana Maria Moretzsohn produzidas
de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
Estrela Guia
2001
0
Sabor da Paixão
2002
03
Fonte: Gomes, 2015.
Ana Maria Moretzsohn nasceu na cidade do Rio de Janeiro-RJ em 07/11/1947.
Jornalista de formação, ingressou na Rede Globo na condição de roteirista de
69
minisséries e do programa Caso Verdade, na década de 80. Estabeleceu parceiras com
os autores de telenovela Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Charles Peixoto, nas
décadas de 80 e 90, e participou da Criação do seriado Global Malhação (1995). Sua
primeira novela solo foi Perdidos de Amor (Rede Bandeirantes, 19hrs, 1997), mas no
contexto das discussões em torno das cotas raciais, o primeiro folhetim foi Estrela Guia
(Rede Globo, 18hrs, 2001). Essa novela tinha trama contemporânea, que abordava
valores espirituais de grupos e sociedades alternativos como hippies, confrontados com
valores e inovações do capitalismo. Não apresentou nenhum personagem negro em seu
elenco.
A única telenovela escrita por Euclydes Marinho, no período definido pela
pesquisa, foi Desejos de Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002), que apresentou três
personagens negros, indicando a preocupação de assegurar alguma presença de
personagens negros, no período em que a mídia brasileira estava tensionada pela
proposição das cotas raciais. Destaco que os dois primeiros escritos pelo novelista em
1990 e 1999 não tiveram personagens negros.
Na trama Desejos de Mulher, os personagens negros eram jovens, de origem
humilde, que trabalhavam como modelo, os únicos negros da agência. Como outros
personagens negros veiculados nesse período, não tinham um cenário próprio, nem
relações familiares ou afetivas retratados na trama.
Euclydes Marinho nasceu em 14/02/1950, na cidade do Rio de Janeiro. Na
juventude morou em Paris e chegou a iniciar o curso de desenho industrial na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sua aproximação com as artes visuais se deu
em trabalhos como fotógrafo de revistas, jornais e filmes. Desde a década de 70,
roteirizou diversos filmes. Seu ingresso na televisão se processou em 1978, quando
começou a trabalhar na Rede Globo e, nas décadas seguintes, integrou a equipe de
escritores dos seriados Ciranda Cirandinha, Malu Mulher, Armação Ilimitada e
Tarcisio e Glória. Roteirizou programas especiais que abordavam o universo feminino
e a temática da juventude brasileira. Atuou como colaborador do novelista Gilberto
Braga na novela Brilhante (Rede Globo, 20hrs, 1981) e também foi autor de várias
minisséries como Quem ama não mata (1982), Meu destino é pecar (1984), Meu
Marido (1991), Capitu (2009) e Brado Retumbante (2012).
70
Foto 06-Euclydes Marinho
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Como novelista, Euclydes Marinho escreveu somente novelas para o horário das
19 horas. O folhetim Mico Preto (Rede Globo, 19hrs, 1990) foi o primeiro que assinou,
em co-autoria com Leonor Baseres e Marcilio de Moraes. Andando nas Nuvens (Rede
Globo, 19hrs, 1999) foi a primeira novela que Euclydes Marinho assinou, como autor
solo, e ambas não tiveram nenhum personagem negro.
Assim como Marinho, outros novelistas redimensionaram posturas adotadas nas
décadas anteriores e passaram a inserir mais negros nas novelas que escreviam no
contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia brasileira. Este foi o caso da
novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs, 2008) assinada por Alcides Nogueira,
que apresentou três personagens negros, que tiveram pouca participação no enredo,
figuravam em profissões pouco valorizadas socialmente e, na maioria das cenas em que
apareciam, o faziam apenas servindo personagens brancos.
Alcides Nogueira nasceu em 28/10/1949, na cidade de Botucatu no Estado de
São Paulo. Ainda na adolescência se mudou com a família para a capital paulista e, aos
20 anos, morou uma temporada em Londres. Formou-se em direito pela Universidade
São Francisco, tinha planos com a carreira diplomática, que segundo ele foram
redimensionados em função da experiência brasileira com a ditadura militar.
Foto 07-Alcides Nogueira
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Na década de 70, Nogueira atuou como escritor e revisor de diversas revistas da
Editora Abril. Também começou a escrever peças de teatro, pelas quais recebeu os
prêmios Moliere e Mambembe. Já no inicio da década de 80, começou a trabalhar como
71
redator de publicidade da Rede Globo de São Paulo e, em função da notoriedade que
estava obtendo como escritor de teatro, foi convidado pelo diretor Paulo Ubiratan para
integrar o núcleo de dramaturgia da emissora, onde começou a escrever, ainda em 1982,
diversos roteiros para o programa Caso Verdade. A partir do final da década de 80,
atuou como colaborador dos novelistas Lauro César Muniz, Silvio de Abreu e Gilberto
Braga. Escreveu em parceira com Maria Adelaide Amaral, a minissérie Um Só Coração
(2004) e JK (2006).
A primeira experiência de Nogueira como escritor de telenovela foi em parceria
com Walter Negrão, no folhetim Livre para Voar (Rede Globo, 18hrs, 1984), que
apresentou dois personagens negros, que embora tivessem destaque, reforçavam uma
significação do negro pautada nas relações coloniais. Figuravam na novela,
respectivamente, como um menor abandonado órfão, fugitivo de orfanato, e uma
empregada doméstica.
No ano seguinte, a partir de um argumento do produzido pelo novelista Benedito
Ruy Barbosa, Alcides Nogueira, assinou como autor solo, a novela De Quina pra Lua
(Rede Globo, 18hrs, 1985), trama que não trouxe nenhum personagem negro.
Nogueira estabeleceu, novamente, parceria com Walter Negrão e assinaram
juntos o folhetim Direito de Amar (Rede Globo, 18hrs, 1987), trama que não teve
nenhum personagem negro. Dez anos depois, assinou pela segunda vez na condição de
autor solo, a novela O Amor Está no Ar (Rede Globo, 18hrs, 1997), com apenas um
personagem negro, que aparecia ocasionalmente,como um motorista da família da
protagonista branca da novela.
A autora Maria Adelaide Amaral, apesar de ter aumentado numericamente a
inserção de personagens negros em suas telenovelas, o perfil dramatúrgico destes
personagens aponta para uma participação pouco expressiva no enredo, pois não tinham
cenários próprios, poucas ou nenhuma cena que abordasse suas relações familiares ou
amorosas. Não apareciam em todos os capítulos, e quando tinham cenas, estas os
retratavam exercendo suas profissões e servindo a superiores brancos.
Amaral nasceu em Alfena, cidade de Portugal, em 01/07/1942. Migrou com sua
família para o Brasil, em 1964. Instalou-se na capital paulista e graduou-se em
jornalismo pela Escola de Comunicação da Fundação Cásper Libero. Trabalhou com os
novelistas Cassiano Gabus Mendes e Silvio de Abreu.
72
No período estabelecido pelos marcos desta pesquisa, Amaral assinou dois
folhetins como autora solo e estes contemplaram uma tendência de ampliação do quadro
de personagens negros (Quadro 11).
Quadro 11-Quantidade de personagens negros nas novelas de Maria Adelaide Amaral produzidas
de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
Ti TiTi
2010
03
Sangue Bom
2013
07
Fonte: Gomes, 2015.
O folhetim TiTiTi (Rede Globo, 19hrs, 2010) era uma trama no formato remake,
que inovou ao misturar o roteiro de duas novelas assinadas pelo novelista Cassiano
Gabus Mendes, TiTiTi (Rede Globo, 19hrs, 1985) e Plumas e Paetes (Rede Globo,
19hrs, 1980). Na trama fruto dessa adaptação, Amaral apresentou dois personagens
negros que inexistiam nas primeiras versões dos folhetins em questão. O fato de na
segunda versão de TiTiTi dois personagens negros terem sido inseridos na trama aponta
para o reconhecimento da necessidade adequar a trama ao ano de 2010. A segunda
novela escrita por Amaral, no período abarcado investigado, foi Sangue Bom (Rede
Globo, 19hrs, 2013), também com personagens negros.
O contexto dos folhetins escritos por Maria Adelaide Amaral se assemelha ao do
novelista Bosco Brasil, que foi autor solo do folhetim Tempos Modernos (Rede Globo,
19hrs, 2010). Esta trama trouxe seis personagens negros, sendo que os que tinham
maior destaque somente apareciam em cenas nas quais os ambientavam enquanto
profissionais e os que tinham carga dramatúrgica que contemplava cenas em contexto
familiar eram constituídas por parentes brancos. Bosco Brasil nasceu na capital paulista,
em 1960. Possui graduação pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Começou sua
carreira na televisão como roteirista do SBT e da Record. Foi autor da novela As
Pupilas do Senhor Reitor (SBT, 19:45hrs, 1994). Na Rede Globo, trabalhou como
roteirista de diversas telenovelas assinadas pelo autor Silvio de Abreu.
As novelas escritas por Elizabeth Jhin foram produzidas no contexto da
discussão em torno das cotas raciais. Embora tenha apresentado uma tendência de
ampliação do número de personagens negros (Quadro 12), a participação destes na
trama era pequena sempre contracenando com personagens brancos, apontando que nem
sempre presença pode reverter a invisibilidade do negro nos folhetins. Elizabeth Jim
nasceu em Belo Horizonte em 13/01/1949. Tem formação em teatro pela UNIRIO e foi
aluna da primeira oficina de roteiro de TV da Globo. Foi co-autora do folhetim
Começar de Novo (Rede Globo, 19hrs, 2004).
73
Quadro 12-Quantidade de personagens negros nas novelas de Elizabeth Jim
Novela
Ano
Quantidade de Negros
Eterna Magia
2007
02
Escrito nas Estrelas
2010
05
Amor Eterno Amor
2012
03
Fonte: Gomes, 2015.
Nos anos 2000, ou seja, contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais, os
autores Lícia Manso e Marcos Bernstein estreiam enquanto novelistas já assegurando
um gradiente mínimo de personagens negros em cada trama. Este foi o caso do folhetim
A vida da Gente (Rede Globo, 18hrs, 2011). Esta novela era ambientada nas cidades
gaúchas de Porto Alegre e Gramado, e a espinha dorsal de seu enredo enfocava
conflitos familiares. Esta trama tinha mais de quarenta personagens e, destes, apenas
dois eram negros e enunciados como mãe e filho, com pouca carga dramatúrgica.
Lícia nasceu na capital carioca, em 1965. É atriz, produtora e roteirista. Foi coautora do seriado Malhação, do programa A Diarista e colaboradora na telenovela Três
Irmãs (Rede Globo, 19hrs, 2008). Já o também carioca, Marcos Bernstein, nasceu em
17/02/1970, possui graduação em direto pela PUC-RJ, e tem trabalhos no segmento da
mídia como cineasta, roteirista e ator. A proposta de personagem negro apresentada na
novela produzida por esta dupla tinha pouco peso e carga dramatúrgica possuíam
relações importantes com personagens brancos.
O novelista Mario Prata também assegurou uma significativa quantidade de
personagens negros, mas estes igualmente tinham pouca carga dramatúrgica na única
novela que escreveu dentro dos marcos temporais da pesquisa. Mario Prata nasceu em
11/02/1946 no município de Uberaba-MG e possui Graduação em Economia pela USP.
Começou a atuar como escritor, ainda aos 14 anos, na cidade de Lins-SP, tendo um
espaço na coluna social no Jornal Gazeta de Lins, usando o pseudônimo de Franco
Abiazzi. Posteriormente, começou a escrever para o jornal Última Hora. Lançou seu
primeiro livro em 1969, que teve por título O morto que morreu de rir e escreveu, ainda
nos anos 70, suas primeiras peças teatrais.
Foto 08-Mário Prata
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
74
Na segunda metade da década de 70, escreveu sua primeira novela, Estúpido
Cupido (Rede Globo, 19hrs, 1976), sem nenhum personagem negro. Em seguida,
escreveu o folhetim Sem lenço nem documento (Rede Globo, 19hrs, 1977), que trazia
uma personagem negra. Em sua trajetória profissional, Prata atuou não só na Rede
Globo, mas também na TV ARD (emissora da Alemanha Ocidental), na TV Tupi, TV
Cultura, na emissora portuguesa SIC, na Televisión Nacional de Chile, TV Bandeirantes
e TV Record. Paralelamente, escreveu vários livros, minisséries, novelas, roteirizou
programas e filmes para a Rede Globo, a partir de 2001, assinou a autoria de apenas
uma novela, Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005). Entretanto, foi substituído pelo
novelista Carlos Lombardi, que prosseguiu escrevendo a novela. Segundo o portal
Memória Globo (2014), Lombardi assumiu a autoria da novela em função de Mário
Prata ter tido que se afastar por motivos de saúde.
Quando é estabelecido um comparativo entre a presença de negros nas novelas
do horário das 19hrs que antecederam Bang Bang, é possível identificar uma
continuidade da tendência de assegurar um núcleo e/ou um número significativo de
personagens negros nas novelas dessa faixa de horário. Essa dinâmica é fruto da
repercussão em torno da protagonista negra na novela Da Cor do Pecado (Rede Globo,
19hrs, 2003), que influenciou os folhetins que a sucederam (Começar de Novo, A Lua
me disse, Bang Bang e Cobras e Lagartos) a assegurarem um quantitativo significativo
de personagens negros.
O novelista Walcyr Carrasco (apud Tavares 2003, p.09) que apresentou uma
negra como protagonista em sua telenovela Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs,
1997), assumiu posicionamento contrário às cotas raciais na mídia, defendendo que o
sistema de cotas seria nocivo a liberdade artística do autor. Carrasco foi enfático ao
afirmar: “se você amarra a criação pode produzir um efeito contrário”.
Os folhetins escritos por Carrasco no contexto da “ameaça simbólica” das cotas
raciais, apontaram que este autor encampou uma preocupação restritamente quantitativa
no tocante à presença de personagens negros. Suas novelas deram destaque a temática
da discriminação racial no enunciado de personagens negros. Naquelas produzidas a
partir de 2001, as tramas roteirizadas passaram a apresentar, de início, uma tendência de
ampliação gradual da presença de negros, indicando o efeito da ameaça simbólica das
cotas raciais. Posteriormente ao processo de esfriamento das discussões do Estatuto da
Igualdade Racial, a presença de negros na ultima novela de Carrasco, Amor à Vida
(Rede Globo, 21hrs, 2013) foi rarefeita, pois os personagens negros apresentados na
75
trama não foram fixos ao longo da novela, e até ao décimo quinto capítulo exibido, a
novela não havia inserido nenhum personagem ou mesmo figurante negro. O contexto
deste folhetim aponta para a artificialidade da tendência de ampliação da presença de
personagens negros nas tramas assinadas por Carrasco (Quadro 13).
Quadro 13-Quantidade de personagens negros nas novelas de Walcyr Carrasco produzidas de
2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade negros
A Padroeira
2001
09
Chocolate com Pimenta
2003
06
Alma Gêmea
2005
04
Sete Pecados
2007
09
Caras e Bocas
2009
08
Morde e Assopra
2011
04
Amor à Vida
2013
03
Fonte: Gomes, 2015.
Carrasco nasceu em Bernardino do Campo-SP, em 02/12/1951. Fez graduação
em jornalismo pela USP, trabalhou em diversas revistas e jornais, atuando também
como autor de livros voltados ao público infanto juvenil e escrevendo peças de teatro.
Estreou como autor de novelas no final da década de 80, com Cortina de Vidro
(SBT, 19:45hrs, 1989). No inicio dos anos 90 escreveu minisséries para a Rede
Manchete e foi supervisor de texto do seriado Retratos de Mulher na Rede Globo.
Foto 09-Walcyr Carrasco
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Em 1997, em co-autoria com Mário Teixeira, Carrasco escreveu a novela Xica
da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1997). Como ainda tinha vínculo contratual com o
SBT, assinou com o pseudônimo de Adamo Angel. Este folhetim inovou ao trazer no
papel titulo a atriz negra Taís Araújo, um número significativo de personagens negros e,
predominantemente, por abordar elementos da cultura africana sem apresentá-los pelo
viés eurocêntrico. Xica da Silva apresentou uma primeira tentativa de redimensionando
de personagem negros em uma telenovela, que contribuiu para que na década seguinte
outros novelistas também apostassem na idéia de trazer protagonistas negros.
Carrasco retornou ao SBT, onde escreveu a novela Fascinação (SBT, 22hrs,
1998). Em 2000, retornou a Globo e assinou, com parceria com Mário Teixeira, o
76
folhetim O Cravo e a Rosa (Rede Globo, 18hrs, 2000), Nesta novela Carrasco
introduziu dois personagens negros, sendo que apenas um esteve presente durante toda a
novela e ambos atuaram em função de personagens brancos.
Já o veterano novelista Antonio Calmon manteve um quantitativo linear no
tocante a presença de negros nos folhetins que escreveu no período encampado por esta
análise. Apresentou uma ampliação puramente quantitativa da presença de personagens
negros. Apostou no estigma da hiperssexualização do negro, com destaque para a
virilidade do homem negro e na naturalização de uma suposta condição de
subalternidade do negro ao branco. Apresentou negros e negras em suas telenovelas
tendo com única função ser os melhores amigos de protagonistas brancos, e reforçou o
estigma do homem negro como malandro e criminoso
Antonio Calmon nasceu em Manaus-AM, no dia 29/10/1945. Ingressou em
1964, mas não concluiu a faculdade de Sociologia e Política da PUC-RJ. Nas décadas
de 60, 70 e 80 atuou como assistente de cinema, diretor e roteirista de diversos filmes
premiados no Brasil no mundo.
Seu ingresso na televisão se processou em 1985, quando passou a ser roteirista
da série Armação Ilimitada da Rede Globo. No mesmo ano, em parceria com Daniel
Filho e Euclydes Marinho, contribuiu na elaboração do seriado Tarcisio e Glória.
Posteriormente, participou no desenvolvimento do programa Shop Shop, que foi ao ar
em 1988.
Foto 10- Antonio Calmon
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
O folhetim Top Model (Rede Globo, 19hrs, 1989) foi sua primeira novela e foi
escrita em parceria com Walter Negrão. As novelas escritas por Antonio Calmon
concretizam tramas voltadas ao cotidiano de um público jovem, exibidas no horário das
19hrs, com enredos que mesclam comédia e aventura, explorando o fantasioso e a
ficção. Seus folhetins escritos nos anos 90, Vamp (Rede Globo, 19hrs, 1991) Olho no
Olho (Rede Globo, 1993), Cara e Coroa (Rede Globo, 19hrs, 1995), Corpo Dourado
77
(Rede Globo, 19hrs, 1997), traziam geralmente de um a dois personagens negros, nem
sempre fixos ao longo da exibição da novela.
No período compreendido pelo recorte temporal investigado, há uma tendência
linear de ampliação do número de personagens negros em suas novelas, indicando que o
autor encampou a preocupação de preservar um mínimo de personagens negros em seus
folhetins (Quadro 14).
Quadro 14-Quantidade de personagens negros nas Novelas de Antonio Calmon produzidas de
2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de negros
Um Anjo Caiu do Céu
2001
02
O Beijo do Vampiro
2002
03
Começar de Novo
2004
11
Três Irmãs 2008
2008
04
Fonte: Gomes, 2015.
A análise do quadro acima aponta com dois personagens negros na primeira
trama que escreveu, ampliando para onze na terceira, e reduzindo para quatro em sua
ultima novela.
Esse quantitativo recorde foi resultado da ameaça simbólica das cotas raciais na
mídia e, também, do fato deste folhetim ter sucedido a novela Da Cor do Pecado (Rede
Globo, 19hrs, 2004), que trouxe uma protagonista negra e um número significativo de
personagens negros, o que acabou de alguma forma influenciando os folhetins que a
sucederam.
Destaco que, após o ano de 2001, em que a mídia brasileira passou a ser
tensionada pelas discussões em torno das cotas raciais, os folhetins assinados por
Glória Perez passaram a ter um número que variou de seis a oito de personagens
negros. Entretanto, a autora cristalizou uma imagem de negro calçada no estigma da
hiperssexualização, da malandragem e da indisposição ao trabalho. No tocante a mulher
negra, acentua o estigma de um instinto maternal exacerbado e a sensualidade.
Glória Perez assegurou em suas novelas um “núcleo popular” ambientado
sempre no contexto de periferia ou favela da capital carioca, o que tangencialmente
propiciou a inserção de personagens negros (Quadro 15).
Quadro 15-Quantidade de personagens negros nas novelas de Glória Perez Produzidas de 2001 a
2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
O clone
2001
08
América
2005
06
Caminho das Índias
2009
06
Salve Jorge
2012
07
Fonte: Gomes, 2015.
78
Glória Perez nasceu em 25/12/1948, na cidade do Rio Branco-AC. Formada em
história pela UFRJ, começou na televisão e nas novelas em 1983, como colaboradora da
novelista Janete Clair na novela Eu Prometo (Rede Globo, 20hrs, 1983). No ano
seguinte, escreveu, em co-autoria com Aguinaldo Silva, o folhetim Partido Alto (Rede
Globo, 20hrs, 1984). Nesta trama, a autora denunciou a falta de transporte público no
bairro Encantado, no subúrbio carioca. Após esta novela, Glória saiu da Rede Globo e,
posteriormente, foi trabalhar na Rede Manchete de Televisão, onde escreveu o folhetim
Carmen (Rede Manchete, 21:30hrs, 1986), trama em que abordou o universo das
religiões de matriz africana, dando significativo destaque para alguns atores negros.
Nesta trama abordou também a questão do HIV/AIDS, bem como formas de
transmissão da doença.
Foto 11- Glória Perez
Fonte: memoriaglobo.globo.com, 2014.
Regressou a Rede Globo em 1990, quando escreveu sua primeira minissérie,
Desejo (Rede Globo, 23hrs, 1990). Neste mesmo ano, escreveu a novela Barriga de
Aluguel (Rede Globo, 18hs, 1990), trama em que abordou a questão do bebê de proveta.
Em De Corpo e Alma (Rede Globo, 21hrs, 1992), abordou ainda a questão da doação de
órgãos, discutindo também a discriminação racial por meio da troca de bebês na
maternidade. Nesta trama, o filho branco de uma família de classe média alta é trocado
na maternidade pelo filho negro de uma família moradora de uma favela. Assim, a
autora conseguiu imprimir a característica emblemática de seus folhetins: a abordagem
de temas considerados polêmicos associados a ações sócio-educativas e de militância.
Esse foi o caso do drama de crianças desaparecidas no folhetim Explode Coração (Rede
Globo, 21hrs, 1995). As novelas de Glória Perez sempre asseguram um núcleo
ambientado em um bairro periférico ou favela, havendo a presença de personagens
negros com significativa participação na trama.
O novelista Miguel Falabela deu significativo destaque aos personagens negros
em seus folhetins, circunscrevendo-os a esfera da comédia. Explorou o culto à condição
de branco e loiro para explorar, pelo viés do humor escachado, o preconceito de negros
79
para com outros negros, bem como a recusa à condição de negro. Apostou em mulheres
negras em condição de subalternidade, que invejavam patologicamente mulheres
brancas.
Falabela nasceu no Rio de Janeiro, em 10/10/1956. Graduou-se em letras pela
UERJ. Iniciou sua carreira na televisão em 1982 no programa Caso Verdade da Rede
Globo, no mesmo ano em que integrou o elenco da novela Sol de Verão (Rede Globo,
20hrs, 1982). Ainda em 1985, começou a escrever roteiros para programas de televisão
e seriados. Ao longo da década de 80 e 90, atuou como ator em várias novelas, seriados
e programas e, paralelamente, era apresentador do programa Video Show da Rede
Globo.
Foto 12- Miguel Falabela
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Em 1996, em parceria com Maria Carmen Barbosa, Falabela escreveu a novela
Salsa e Merengue (Rede Globo, 19hrs, 1996), instaurando uma tendência em seus
folhetins: fazer comédia acerca da condição do sujeito negro. A única personagem negra
desta novela era uma empregada domestica que tinha uma relação de inveja e adoração
por sua patroa branca, por esta ser rica, branca e ter o cabelo liso. Jacinta, em algumas
cenas, sonhava estar ocupando o lugar da patroa e usando uma peruca loira e lisa,
idealizava ser autenticamente loira. Enquanto escrevia a novela, Falabela atuava no
programa Sai de Baixo, exibido pela Rede Globo, que tinha um formado de sitcom,
dando vida ao personagem Caco Antibes, um homem que se orgulhava de sua condição
de homem alto, loiro, apresentando-se como um “príncipe dinamarquês”. Este
personagem enfatizava que odiava pobres. Caco tinha grande aceitação por parte do
público. Talvez por isso, Falabela, enquanto autor reforçava os estereótipos ao abordar a
questão da relação patroa branca e empregada negra, sugerindo uma suposta inveja da
negra para com a branca (Quadro 16).
80
Quadro 16-Quantidade de personagens negros Novelas de Miguel Falabela produzidas de 2001 a
2013
Novela
Ano
Quantidade negros
A Lua Me Disse
Negócio da China
Aquele Beijo
2005
2008
2011
07
03
10
Fonte: Gomes, 2015.
As novelas que escreveu no período investigado apontam que incorporou a
preocupação em inserir um núcleo de personagens negros em seus folhetins. Começou
em 2005, período em que além das discussões em torno das cotas raciais na mídia, as
novelas foram também influenciadas pelo sucesso da novela Da Cor do Pecado (Rede
Globo, 19hrs, 2004), que emplacou uma protagonista negra. O folhetim que foi ao ar em
2010 concretizou sua novela que mais trouxe personagens negros. Considero que a
caracterização do contexto de cada folhetim fornece algumas pistas que permitem traçar
algumas hipóteses para problematizar acerca da variação destes números.
A análise das quatro novelas de Silvio de Abreu, produzidas de 2001 a 2013,
aponta para um quadro de resguardo de participação de negros nas tramas,
diferentemente de seus folhetins produzidos em décadas anteriores. No marco temporal
estabelecido por esta neste trabalho, os números indicativos da quantidade de negros em
suas novelas me instigaram, pois houve um aumento na metade da década de 2000 e
uma redução nos anos seguintes (Quadro 17).
Quadro 17-Novelas de Silvio de Abreu produzidas de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade negros
As filhas da Mãe
2001
02
Belíssima
2006
06
Passione
2010
02
Guerra dos Sexos
2012
01
Fonte: Gomes, 2015.
Silvio de Abreu nasceu em São Paulo em 20/12/1942. Formou-se em cenografia
pela USP em 1963. Ainda na década de 60, atuou como ator, assistente de direção e
estreou, como ator de televisão, em 1967, na novela O Grande Segredo (TV Excelsior,
20hrs, 1967), quando retornou de um estágio no Actor Studio de Nova York. Trabalhou
como ator em telenovela da Rede Bandeirantes e da Rede Globo nos anos seguintes. De
1971 a 1977, atuou como assistente de direção do diretor de cinema Carlos Manga.
Posteriormente, atou como roteirista e diretor de longas metragens nos estilos
documentário e pornochanchada.
81
Foto 13- Silvio de Abreu
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Em 1977, foi convidado pela TV Tupi para escrever novelas. Seu primeiro
folhetim foi Éramos Seis (TV Tupi, 20hrs, 1977), criada a partir da adaptação de um
romance de Maria José Dupré. Já no ano seguinte passou a trabalhar na Rede Globo,
quando escreveu a novela Pecado Rasgado (Rede Globo, 19hrs, 1978). Dois anos
depois substituiu o escritor Cássio Gabus Mendes na conclusão da novela Plumas e
Paetês (Rede Globo, 19hrs, 1980). No ano seguinte, escreveu, a partir de um argumento
da dramaturga Janete Clair, a novela Jogo da Vida (Rede Globo, 19hrs, 1981). Sua
consagração junto ao público veio dois anos depois, quando escreveu Guerra dos Sexos
(Rede Globo, 19hrs, 1983), trama que seguia o padrão de não ter nenhum personagem
negro. Entre 1984 e 1987, Silvio de Abreu escreveu três novelas no estilo comédia para
o horário das 19 horas, Vereda Tropical (Rede Globo, 19hrs, 1984), Cambalacho (Rede
Globo, 19hrs, 1986) e Sassaricando (Rede Globo, 19hrs, 1987). Todas as novelas
escritas a partir da década de 1980 foram ambientadas na cidade de São Paulo. Somente
no folhetim Sassaricando encontrei a presença de um único personagem negro, que teve
uma pequena participação na trama.
A primeira novela no horário das 20 horas, que assinou, foi Rainha da Sucata
(Rede Globo, 20 horas, 1990), que trouxe uma personagem negra, apenas no inicio da
novela. No folhetim Deus nos Acuda (Rede Globo, 19hrs, 1992) não tinha nenhum
personagem negro. Já em A Próxima Vitima (Rede Globo, 20hrs, 1995), inseriu seis
personagens negros que integravam uma família. Nessa trama abordou a questão da
discriminação racial. Sua última novela na década de 90, Torre de Babel (Rede Globo,
20hras, 1998) não teve nenhum personagem negro.
A tentativa de caracterização dos novelistas me permitiu identificar que grande
parte destes encampou a preocupação de inserir uma quantidade maior de negros desde
2001. Percebi, também, que especialmente os novelistas veteranos tendem a apresentar
uma mesma proposta de personagem negro em seus folhetins. Ao roteirizar o enredo de
uma telenovela, os novelistas mobilizam a produção social da diferença entre negros e
82
brancos por meio de estratégias de significação, enunciado e (in)visibilidade dos
personagens sejam negros ou brancos, na perspectiva da diferença colonial. No
contexto das tramas, a presença ou ausência dos personagens negros têm uma
especificidade no tocante a produção social das diferenças, pois contribuem na
significação da ideia de sujeito negro, desestabilizando um suposto equilíbrio no
antagonismo ausência/presença.
O novelista Gilberto Braga demonstrou ter sido sensibilizado pela “ameaça
simbólica” das cotas raciais, assegurando em termos puramente quantitativos uma
ampliação da presença de personagens negros em suas tramas. Braga apostou nas
relações interétnicas, enfatizando o fetiche interracial, com destaque para o
envolvimento do homem negro com mulheres brancas. Ao mesmo tempo em que
veiculou a imagem de negros ocupando profissões de destaque, mas sem vínculos com
outros negros e sem fazer menção à condição de negro, apresentou o negro como
malandro, mulherengo e alcoólatra.
Mostrou negros se despindo de seus sinais
diacríticos com vistas a sugerir melhoria de vida e brancos “sendo punidos” com o
nascimento de filhos negros, fazendo eco ao ideal de embranquecimento da população.
Apostou no fetiche do branco pelo negro, trouxe negros e negras como empregados
domesticas, cozinheiros, arrumadeiras, prostitutas, fotógrafos, designer de jóias,
secretária executiva e assistente pessoal de patrões brancos.
Gilberto Braga nasceu no Rio de Janeiro em 01/11/1945 e formou-se em Letras
pela PUC-RJ. Sua aproximação com a carreira de escritor deu-se como critico de teatro
e cinema do Jornal O Globo. A partir de 1973 escreveu alguns programas Casos
Especiais. Entretanto, sua primeira experiência em telenovelas ocorreu quando dividiu,
com Lauro César Muniz, a autoria do folhetim Corrida do Ouro (Rede Globo, 19hrs,
1974). Em 1975 adaptou obras literárias do escritor José de Alencar, para o formato de
telenovela e inaugurou o horário das 18 horas enquanto espaço de exibição de
telenovelas na Rede Globo com os folhetins Helena (Rede Globo, 18hrs, 1975) e
Senhora (Rede Globo, 18hrs, 1975).
Foto 14- Gilberto Braga
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
83
Posteriormente, Gilberto Braga assumiu o lugar de Janete Clair na autoria da
novela Bravo! (Rede Globo, 19hrs, 1975). No ano seguinte, escreveu, a partir da uma
adaptação do romance homônimo de Bernardo Guimarães (1875), a novela Escrava
Isaura (Rede Globo, 18hrs, 1976) seu primeiro grande sucesso e uma das novelas que a
Rede Globo mais exportou. Esta novela trouxe um significativo número de personagens
negros atuando em papeis secundários como escravos e, para o papel título, o da
personagem Escrava Isaura (Lucélia Santos) foi escalada uma atriz branca, sob a
justificativa de que a obra original desenhava a protagonista Isaura como “branca da
cor do marfim”. Considero que a escrava branca explorada no romance literário e na
novela de Gilberto Braga aponta para o contexto de vigência de uma mesma
racionalidade ancorada em relações coloniais.
Das 12 novelas e minisséries que escreveu nas décadas de 80 e 90, apenas Corpo
a Corpo (Rede Globo, 20hs, 1984) e Pátria Minha (Rede Globo, 20hrs, 1994) deram
significativo destaque a personagens negros, sendo efetivadauma denúncia da
discriminação racial. Corpo a Corpo retratoucomo negativa a rejeição do
relacionamento do personagem Cláudio Fraga (Marcos Paulo) deste com a arquiteta
negra Sônia (Zezé Motta), por parte da família branca do noivo. Já em Pátria Minha, foi
veiculado um discurso do personagem Raul Pelegrini (Tarsicio Meira) dirigido ao
personagem negro Kennedy (Alexandre Moreno), com conteúdo ofensivo. Essa cena foi
alvo de inquérito junto a Policia Federal, através de denuncia por parte do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro, o que obrigou a emissora a se retratar, por meio de
outra cena na própria novela. A ação do Ministério Público questionou a postura omissa
do personagem negro, que aceitou passivamente as ofensas que o desqualificavam
enquanto negro.
A presença de negros, nas décadas de 80 e 90, foi materializada em poucas
novelas de Gilberto Braga e nestas a questão da discriminação racial estava fortemente
presente. Entretanto, embora as novelas escritas a partir de 2001 apresentem um
aumento quantitativo da presença de personagens negros isso não significou um
aumento qualitativo no tocante a imagem de sujeito negro veiculada por esses
personagens (Quadro 18).
84
Quadro 18-Quantidade de Negros Nas Novelas de Gilberto Braga produzidas de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
Celebridades
2003
06
Paraiso Tropical
2007
09
Insensato Coração
2011
06
Fonte: Gomes, 2015.
Para o autor Gilberto Braga (2007) “As novelas, em sua grande maioria,
glamourizam a realidade", o novelista laconicamente ponderou que considera que a
televisão não deve obrigatoriamente documentar o que se passa fora das câmaras, mas
também não pode se furtar de retratar realidade.
Também enquanto desdobramento da influência do debate em torno das cotas
raciais na mídia, as novelas de Aguinaldo Silva apresentaram um aumento no tocante à
quantidade de personagens negros. Apesar de ter apresentado uma ampliação
quantitativa no tocante a presença de personagens negros, e de se auto-declarar negro ou
mulato, destaco que as imagens de negro, veiculadas pelos seus folhetins não
encamparam uma preocupação em assegurar um redimensionamento qualitativo no
tocante a idéia de sujeito negro. Remetem, principalmente, para estereótipos
solidificados na sociedade: negros vivendo em favelas, famílias negras vulneráveis
economicamente, necessitados da caridade ou tutela de sujeitos brancos, negros em
situação de marginalidade social, criminalidade e prostituição; negras empregadas
domésticas, assediadas sexualmente pelos patrões, negras que não se aceitam enquanto
negras; negros e negras se envolvendo com pessoas brancas em contexto de
supervalorização da virilidade e/ou hipersexualização de negros (Quadro 19).
Aguinaldo Silva nasceu em 07/06/1943, na cidade de Carpina no Estado do
Pernambuco. Em 1962 começou a trabalhar como jornalista, ainda na cidade do RecifePE. Ingressou em 1964 como repórter policial no Jornal O Globo. Posteriormente
chegou a atuar como roteirista da série Plantão de Policia, produzida pela Rede Globo,
em 1979. No ano seguinte começou a escrever episódios na serie Malu Mulher,
veiculada na mesma emissora.
85
Foto 15- Aguinaldo Silva
Fonte: memoriaglobo.globo.com, 2014.
Em 1982 escreveu Lampião e Maria Bonita, e assim inaugurou o gênero
minissérie na Rede Globo. Nos dois anos seguintes escreveu mais duas minisséries,
Bandidos da Falange e Padre Cicéro. Sua primeira telenovela foi Partido Alto (Rede
Globo, 20hrs, 1984). Em parceria com o dramaturgo Dias Gomes, escreveu Roque
Santeiro (Rede Globo, 20hrs, 1985). O sucesso deste folhetim içou-o ao patamar do
seleto grupo de autores da Rede Globo que escreve novelas para o horário das 20/21hrs.
A aceitação das suas novelas junto ao público foi muito significativa e, por isso, é o
único autor telenovelista da Rede Globo que só escreveu novelas para o horário nobre
da emissora (exibidas no horário de 20/21hrs).
As novelas do autor em referência têm por marca emblemática adaptações de
obras literárias. Propôs, também, enredos que foram ambientados em cidades fictícias e
principalmente na região nordeste, fora do circuito das cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo. Suas tramas mesclam comédia, romance, suspense e exploram o estilo realismo
fantástico, formato que prioriza mostrar nos folhetins o irreal ou estranho como comum
e cotidiano. Entretanto, embora tenha feito novelas com enredos regionalistas na década
de 90, a presença de personagens negros nestes folhetins costumava ser limitada e com
pouca carga dramatúrgica.
Neste horizonte, destaco Tieta (Rede Globo, 21hrs, 1989), uma adaptação da
obra homônima do escritor Jorge Amado, ambientada no agreste do Estado da Bahia
(Estado este que, segundo dados do IBGE, abriga o maior contingente da população
negra do país) que não apresentou nenhum personagem negro. A personagem título,
descrita na obra do escritor baiano como morena, foi vivida na novela pela atriz branca
Betty Faria. Paradoxalmente, as telenovelas assinadas por Aguinaldo Silva, produzidas
no contexto das discussões acerca das cotas raciais na mídia, apresentam um
significativo aumento no tocante a presença de personagens negros nos enredos.
86
Quadro 19-Novelas de Aguinaldo Silva Produzidas de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de negros.
Porto dos Milagres
2001
04
Senhora do Destino
2004
06
Duas Caras
2008
20
Fina Estampa
2011
07
Fonte: Gomes, 2015.
Em fevereiro de 2002, a Revista Bravo publicou um artigo com a discussão do
projeto de cotas raciais na mídia. Este texto foi antecedido por uma matéria que trazia,
em um breve histórico, os processos de invisibilidade e estereotipação do sujeito negro
em telenovelas brasileiras. A revista ofereceu a possibilidade de que os autores
dramaturgos expusessem seus argumentos sobre a temática abordada, como uma
estratégia de réplica. Em nome da classe dos novelistas, Aguinaldo Silva problematizou
a questão por meio do artigo intitulado “Espelho Distorcido”, no qual aponta como
ficaria prejudicada a dramaturgia brasileira
em um eventual contexto
de
institucionalização do sistema de cotas para negros na mídia. O nome do artigo já
sugere que os folhetins funcionam como espelhos, e que com a regulamentação das
cotas, a imagem por estes veiculada estaria distorcida e, por conseguinte, equivocada. A
tônica discursiva do texto de Silva, expressa sua posição contrária e sua atitude de
militância em desfavor das cotas raciais, sob a alegação de que estas falsificariam a
“realidade” retratada nas telenovelas.
[...] para alguns políticos, e para as bases ativistas que os
sustentam, a questão racial é importante, sim... E eles acham que a televisão
privilegia os (falsos) brancos, em detrimento dos únicos negros que eles
reconhecem nesse país de raças mescladas, misturadas, ou seja,os puros e
retintos. Porque acho que isso seria interferência demais no meu trabalho, e
eu prefiro que continue estabelecido assim: meus personagens terão a raça
(ou cor de pele),o caráter e a opção sexual que eu quiser, ou precisar.
[...] mas não é a realidade que devia mudar primeiro, em vez da dramaturgia?
Não é essa que deve correr atrás daquela? Faço minhas as perguntas de
Gilberto (e espero que ele me perdoe por envolvê-lo nisso) e tento, aqui, dar
uma resposta e pôr um ponto final: acho que os negros, entre os quais
orgulhosamente me incluo, devem correr atrás do prejuízo, sim... Mas na vida
real. E quando esta for modificada, podem estar certos de que a dramaturgia
televisiva o será também.
A argumentação de Silva considera que o sistema de cotas imporia uma
significativa restrição à liberdade de criação artística, que é apontada pelo autor como
fundamental e cara para o oficio de escritor de telenovelas. Entretanto, tal entendimento
parece desconsiderar o contexto de produção de uma telenovela em uma emissora de
televisão. Um autor dramaturgo tem autonomia relativa no processo de construção do
87
enredo de um folhetim, em função de estar enquadrado contratualmente com emissora
que o produzirá, pois seu enredo será objeto de discussão e avaliação por diversas
instancias hierárquicas dentro da emissora de televisão.
Considero que Aguinaldo Silva desconsidera que o real seja uma construção
simbólica, quando separa a “realidade” (processos sócio-políticos) da ficção (novela), e
num segundo momento as reconecta ao defender a necessidade do realismo nos
folhetins, localizando que as novelas “retratam as relações sociais do jeito que são”. Sua
argumentação objetiva deslegitimar o discurso em prol do aumento da presença de
negros em telenovelas. Fundamentado na meritocracia, defende que quando o contexto
social do negro for modificado no Brasil, as novelas também contemplarão esta
mudança. O autor não reconhece que os folhetins são produtos sociais propositivos e os
afirma como retratos fiéis da vivencia cotidiana dos sujeitos. De igual forma naturaliza
que as telenovelas optam por contar a unicamente a história de sujeitos brancos.
No texto, Aguinaldo Silva satiriza sobre como seria falacioso e inverossímil o
enredo de um folhetim que apresentasse personagens negros enunciado em posições
sociais de prestigio dentro das tramas. De igual modo, argumenta que seria
absurdamente irreal inserir em uma novela uma personagem branca e loira, idealmente
vivida pela atriz Danielle Winits, para interpretar uma empregada doméstica. Assim,
novamente, Silva reforça a demarcação e localização empreendida pelas relações
coloniais, no tocante ao lugar autorizado ao negro em uma telenovela, e também em
outros espaços sociais.
Ao justificar a reprodução da hierarquia social entre negros e brancos no
contexto das telenovelas brasileiras, Silva desconsidera que os folhetins são obras
artísticas, fantasiosas, de ficção, não necessariamente baseada em fatos reais. Neste
sentido, os enredos não estão necessariamente circunscritos ou referenciados em dados
históricos, numéricos ou étnicos. Aguinaldo Silva considera que os sujeitos negros
(dentre os quais estrategicamente se insere) devem lutar contra as consequências do
racismo na dimensão do real, desconsiderando totalmente o papel dos bens simbólicos,
como uma telenovela, na configuração da subjetividade.
O dramaturgo em referencia inverteu a ameaça: ele próprio e possivelmente
outros autores dramaturgos não prosseguiriam escrevendo folhetins caso o sistema de
cotas fosse institucionalizado. Expressou, assim, uma posição firme contra as políticas
afirmativas. Acionou o argumento da “mestiçagem” no Brasil, para negar a
possibilidade de atores puramente brancos. Usou o mesmo argumento para
88
desestabilizar quaisquer certezas acerca da condição de sujeito branco, de atores como
Fernanda Montenegro, Marcos Palmeira e Glória Pires. Assim, legitima o ideal de
branqueamento, alicerçado no entendimento de que o sujeito mestiço materializa o
autenticamente brasileiro, fruto da recíproca interação entre negros, índios e brancos.
Os argumentos pró-mestiçagem acionados por Silva, se alinham ao discurso
mobilizado pelo porta-voz da Rede Globo Luiz Erlanger (2000), quando afirma que
“essa história de que quase não há negros na televisão é besteira porque todo mundo
tem sangue negro, acho que eles só consideram negros os que são retintos”. O termo
retinto significa, segundo o Dicionário Aurélio, “tinto duas vezes” ou “carregado na
cor”. A utilização desta categoria para designar o coeficiente de “negritude” de um
sujeito sugere sua têm por principal característica a ausência de cor, demarcando-os
enquanto neutros racialmente falando. As ponderações sobre o gradiente de mestiçagem
dos atores, e por conseguinte, personagens, feitas por Aguinaldo Silva, e a utilização da
categoria “retintos” por Luiz Erlanger, sinalizam
que, nas telenovelas e demais
programas, somente existe espaço para a presença do negro miscigenado, “higienizado”
pelo processo de mestiçagem. Demarca, igualmente, o entendimento de que o sujeito
mestiço deve ser compreendido pelo imaginário coletivo como contemplando a
retratação de negros e brancos, tendo sua presença nos folhetins devendo ser
interpretada como a pavimentação de uma esfera comum a todas as etnias.
O último ponto que destaco no texto de Silva, reside no fato de que este, dentre
os demais autores novelistas contemporâneos, é o único que se autodenominou
“mulato”, acionando assim seus vínculos com os negros e dimensionando que esta
posição lhe confere fala autorizada enquanto porta-voz do grupo de dramaturgos,
resguardando que seu discurso não seja enquadrado como racista. Reconheço como
bastante estratégica a escolha desse autor nordestino, pernambucano, que se autodeclara negro ou mulato, para falar em nome dos dramaturgos. Identifico que o auto
enquadramento de Aguinaldo Silva pode ser percebido como uma estratégia para
conferir blindagem e assim funcionar como um antídoto para neutralizar qualquer
eventual acusação e corporativismo racial entre os dramaturgos. Considero relevante
demarcar, que o autor novelista em foco não possui a cor da pele escura e nem demais
sinais diacríticos socialmente utilizados no Brasil para a identificação da condição de
negro ou mulato.
Denise Saraceni (2001), diretora de telenovelas, declarou em entrevista ao
Jornal Folha de São Paulo, de 08/04/2001, que a elaboração do teor do projeto de cotas
89
raciais na mídia foi iniciada de forma errada. Segundo Saraceni o projeto deveria ter
sido discutido pela sociedade brasileira, e não confinado as quatro paredes do
Congresso nacional, pois assim, segundo a diretora, a casa legislativa não efetiva o
princípio de “representar o desejo da sociedade”.
Com este argumento, Saraceni pretendeu falar em nome da toda a sociedade
brasileira, porém não indica qual segmento da sociedade estaria representando. Seu
discurso reclama pelos direitos dos que não estão contemplados pelo sistema de cotas.
Certamente fala de uma sociedade branca, porém que pode estar travestida de
pluriracial.
Sua argumentação é ancorada no discurso da defesa da igualdade política e na
defesa de um tratamento social igual para todos os brasileiros por parte do Estado.
Demonstra desconsiderar o processo político de construção da agenda das políticas
afirmativas para negros no Brasil, deflagrado desde os primórdios da marcha Zumbi dos
Palmares, em 1995, quando movimentos sociais e diversos segmentos da sociedade civil
organizada expuseram suas demandas, que culminaram na articulação com orientações
internacionais na construção do Estatuto da Igualdade Racial.
A argumentação utilizada pelos novelistas e os diretores de televisão aqui
citados, para deslegitimar as cotas raciais nas telenovelas, constitui uma matriz
discursiva que é ancorada nas relações coloniais, e que converge para três principais
posicionamentos localizados por Guimarães (2005, p. 166) que atuam contra as ações
afirmativas no Brasil: O primeiro considera que as ações afirmativas constituem o
reconhecimento de diferenças étnicas e raciais entre os brasileiros, erodindo o
imaginário nacional de um país que possui um só povo e uma só raça. O segundo é o
defendido por aqueles que enxergam nas discriminações positivas uma espécie de
rechaço ao princípio universalista e individualista do mérito, principio este que é
encarado como a principal arma contra o particularismo e o personalismo e que ainda
regula a vida pública brasileira. O terceiro argumento encara que não existem bases
reais, e operacionais para a institucionalização das políticas afirmativas no país.
Guimarães (2005, p. 150) analisa ainda, que o debate em torno das ações
afirmativas no Brasil está polarizado em duas perspectivas: A primeira é de natureza
axiológica e normativa, com foco na correção ou não do tratamento de qualquer
individuo, com observância das características adscritas e grupais. Este entendimento
parte do principio de que todo e qualquer indivíduo deve ser tratado a partir de suas
90
peculiaridades individuais, de competência e de mérito, independentemente do contexto
do grupo social que integra.
O autor localiza algumas posições que são identificadas nessa perspectiva
axiológica, como a posição liberal que permite discutir o tratamento de modo
diferenciado e privilegiado para indivíduos pertencentes a grupos que foram ou estão
sendo alvos de discriminação negativa e difusa por outros grupos. Porém, esta aceitação
é restrita a situações concretas e a contextos muito especificas que dão a estas políticas
um perfil lacônico. Já o posicionamento conservador considera que é de cada indivíduo
a responsabilidade pela posição social que ocupa neste horizonte. Quaisquer
interferências por parte do Estado nestas questões são classificadas como indevidas.
De forma explicita ou tácita, este posicionamento reconhece a existência de um
determinado grupo racial, étnico, religioso, ou sexual, localizado socialmente em um
contexto de desvantagem. A responsabilidade por esta desvantagem é atribuída às
características que identificam o grupo. Guimarães (2005) problematiza as noções de
individualismo e de mérito, bem como o processo de construção dos valores que
alicerçam as duas perspectivas. Propõe que tais valores são retóricas ideológicas que
camuflam práticas sistemáticas de discriminação, opressão, dominação e exploração.
Neste sentido, considera que os posicionamentos contrários às políticas de ação
afirmativas, são ingênuos e atuam mascarando um novo tipo sutil e não declarado de
racismo.
3.2.1 As cotas raciais protagonizam o protagonismo negro?
Considero que, além do aumento quantitativo no tocante a presença de
personagens negros nas telenovelas, a “ameaça simbólica” das cotas raciais na mídia
brasileira, desnudou a questão da exclusão midiática do negro e influenciou autores a
encampar a proposta de dar mais notoriedade a presença de negros em seus folhetins.
Isso ocorreu nas seis novelas que tiveram personagens negros como protagonistas, das
quais cinco destas foram os primeiros folhetins de novelistas que produziram a partir do
contexto da “ameaça simbólica”. Este foi o contexto das duas primeiras novelas do
autor João Emanuel de Carneiro, que inovou ao apresentar personagens negros como
protagonistas, sendo que a novela Da cor do pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004)
apresentou sete personagens negros no elenco. Nas demais, o quantitativo reduz-se a
91
quatro personagens negros, conforme pode ser visto no quadro de suas outras novelas
produzidas de 2006 a 2012 (Quadro 20).
Quadro 20- Quantidade de Personagens negros nas Novelas de João Emanuel de Carneiro
Novela
Ano
Quantidade de negros
Da Cor do Pecado
2004
07
Cobras e Lagartos
2006
04
A Favorita
2008
04
Avenida Brasil
2012
04 (02 fixos)
Fonte: Gomes, 2015.
Personagens negros figurando como protagonistas, nas duas primeiras tramas de
João Emanuel de Carneiro, expressou um movimento significativo de alargamento do
quantitativo negro nas telenovelas, que sugeriu possibilidades de redimensionamentos
no aparente contexto de fixidez no padrão de colonialidade que impera no processo de
construção do enredo dos folhetins
João Emanuel de Carneiro nasceu na cidade do Rio de Janeiro-RJ, em
17/02/1970. Formou-se em letras pela PUC. Atua como roteirista de cinema e autor de
telenovelas. Começou a escrever aos 14 anos, roteirizando histórias em quadrinhos para
o cartunista brasileiro Ziraldo. Enquanto roteirista atou no curta metragem “Zero Zero”,
e nos filmes Central do Brasil, Primeiro Dia, Cronicamente inviável, Orfeu, Deus é
Brasileiro e no infantil Castelo Rá-Tim-Bum.
Sua aproximação com o segmento das telenovelas começou como colaborador
da autora Maria Adelaide Amaral na minissérie A Muralha (Rede Globo, 23hrs, 2000),
e do autor Euclydes Marinho na novela Desejos de Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002).
Em 2004 estreou como autor-titular (com a supervisão do dramaturgo Silvio de
Abreu) na novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004). Dois anos mais tarde,
escreveu a novela Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006), em 2008 A Favorita
(Rede Globo, 21hrs, 2008), sendo Avenida Brasil (Rede Globo, 21hrs, 2012) seu último
folhetim.
Foto 16- João Emanuel de Carneiro
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
92
A aposta de trazer personagens negros enquanto protagonistas no primeiro
folhetim solo foi uma estratégia também mobilizada pela dupla de novelistas iniciantes
Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, que assinaram, em co-autoria, a novela Cheias de
Charme (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este folhetim trouxe dez personagens negros e
narrava a saga de três empregadas domésticas.
Outra dupla de novelistas estreantes que também apostou em apresentar
protagonistas negros foi João Ximenes e Cláudia Lage, no folhetim Lado a Lado
(Rede Globo, 18hrs, 2012). Esta trama inovou ao trazer uma narrativa sobre o contexto
da contribuição dos povos negros no processo de organização urbana da cidade do Rio
de Janeiro-RJ. Lado a Lado apresentou dois protagonistas negros e, também, uma
significativa quantidade de personagens negros com participação e carga dramatúrgica
no enredo. A dupla de escritoras Duca Rachid e Thelma Guedes, que também
começou a roteirizar telenovelas já no período de efervescência das discussões em torno
das cotas raciais nos produtos midiáticos, apresentou um número significativo de
personagens negros e, ainda, apostaram em trazer uma protagonista negra no segundo
folhetim que assinaram (Quadro 21).
Maria do Carmo Rodrigues Rachid é o nome de batismo da autora de novelas,
Duca Rachid, que nasceu em 23/11/1960, no município paulista de Mogi das Cruzes.
Com formação em jornalismo pela PUC-SP, Rachid trabalhou em programa infantil e
foi co-autora de telenovela em Portugal, em 1993. No Brasil foi colaboradora do autor
Walcyr Carrasco nos folhetins que escreveu para o SBT e Rede Manchete, sendo que na
Rede Globo sua primeira atuação foi também como colaboradora do mesmo autor na
trama O Cravo e a Rosa (Rede Globo, 18hrs, 2000).
Rachid escreveu em parceira com Thelma Guedes, três telenovelas. Guedes
nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 07/06/1968. Possui graduação em letras e mestrado em
literatura brasileira pela USP. Antes de roteirizar telenovelas, escreveu para o Jornal O
Globo, e para o seriado infantil Sitio do Pica-Pau Amarelo.
Quadro 21-Quantidade de personagens negros nas novelasde Duca Rachid e Thelma Guedes
produzidas de 2001 a 2013
Novela
Ano
Quantidade de Negros
O Profeta
2006
05
Cama de Gato
2009
08
Cordel Encantado
2011
05
Fonte: Gomes, 2015.
93
O mote principal da presença dos personagens negros no Folhetim O Profeta
(Rede Globo, 18hrs, 2006), esteve circunscrito à denúncia da discriminação interracial,
seja na relação mãe negra/filha branca, ou na resistência ao amor interracial.
A trama Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) inovou ao ser a primeira
novela do horário das 18hrs da Rede Globo a ser protagonizada por uma personagem
negra. A dupla de novelistas investiu no fetiche inter-racial, no mito da mestiçagem,
apresentando criança/adolescente negra criada em casa de brancos, negros como filhos
bastardos de pais brancos, que só no final da novela revelaram sua paternidade. Pai
negro ausente, sendo suprido pelo namorado branco da mãe, sugerindo uma melhoria de
vida.
Mas, esta inovação está associada a manutenção da exploração do estigma da
hipersexualidade/sensualidade do negro/negra e dos estereótipos do homem negro
indisposto ao trabalho, indiferente a família, mulherengo e viciado em bebida alcoólica
e em jogos, sustentado por uma mulher, negra como empregada doméstica, família
negra desajustada, dependente da caridade de brancos, menino negro sonhando em
ascender socialmente como jogador de futebol, negro apaixonado por música,
adolescente negro sofrendo bullying por ser negro, pobre e quase surdo.
O último folhetim assinado pela dupla explorou o amor interracial por meio da
relação de uma jovem negra com um príncipe europeu, apresentou um negro como vilão
venal e inescrupuloso e abordou a desconfiança do pai negro sobre a fidelidade da
esposa branca pelo fato do nascimento de um filho branco e ruivo.
Acredito que o contexto das discussões em torno das cotas raciais na mídia
brasileira, também sensibilizou o novelista veterano Manoel Carlos a assegurar em
suas tramas um aumento quantitativo significativo e linear no tocante ao número de
personagens negros, comparando-se com as novelas anteriores. Além de dar um maior
destaque aos personagens negros nos enredos, Manoel Carlos inovou ao trazer, na
novela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), sua primeira protagonista negra. Este
contexto sugere que o novelista em questão incorporou a preocupação de aumentar em
termos quantitativos e qualitativos a presença de atores negros em seus folhetins
produzidos no contexto da efervescência das discussões em torno das cotas raciais na
mídia brasileira (Quadro 22).
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Quadro 22-Quantidade de personagens negros nas novelas de Manoel Carlos
Novela
Ano
Quantidade Negros
Mulheres Apaixonadas
2003
08
Páginas da Vida
2006
08
Viver a Vida
2009
09
Fonte: Gomes, 2015.
Manoel Carlos nasceu em São Paulo-SP, em 14/03/1933. Ainda na
juventude,trabalhou como auxiliar de escritório e bancário. Segundo o Portal Memória
Globo, este dramaturgo, já aos 14 anos, fazia parte de um grupo de jovens denominados
“Adoradores de Minerva” e fazia reuniões, diariamente, em frente a Biblioteca
Municipal de São Paulo, para discutir literatura e teatro. Seu ingresso na televisão foi
como ator, em 1951. Nas décadas seguintes, atuou como ator, diretor e produtor nas
emissoras TV Tupi, TV Itacolomi, TV Rio, TV Record, e Rede Globo.
Foto 17- Manoel Carlos
Fonte: memoriaglobo.com, 2014.
Sua primeira novela como autor foi Maria Maria (Rede Globo, 18hras, 1978),
uma adaptação do romance Maria Dusá, de Lindolfo Rocha. No mesmo ano, fez outra
adaptação literária, desta vez da obra de Carolina Nabuco, que resultou na novela A
Sucessora (Rede Globo, 18hrs, 1978). Em 1980, escreveu alguns episódios do seriado
Malu Mulher e dividiu, com Gilberto Braga, a autoria da novela Água Viva (Rede
Globo, 20hrs, 1980).
No ano seguinte lançou o folhetim Baila Comigo (Rede Globo, 20hrs, 1981), seu
primeiro roteiro solo e original de uma telenovela. Nesta trama, o autor introduziu uma
marca que emblematizou suas produções dramatúrgicas: as suas protagonistas sempre
tinham o nome de Helena e eram construídas enquanto heroínas da classe média. A
única novela do dramaturgo cuja trama não apresentou uma protagonista chamada
Helena foi Sol de Verão (Rede Globo, 20hrs, 1982).
De 1983 até o inicio da década de 1990, Manoel Carlos participou na criação do
núcleo de teledramaturgia da Rede Manchete e escreveu novelas e minisséries para a
Rede Bandeirantes, para a emissora RIT na Colômbia e para a TV Americana voltada
ao público de língua espanhola.
95
Seu retorno à Rede Globo foi em 1991, quando escreveu a novela Felicidade
(Rede Globo, 18hrs, 1991). Esta foi sua primeira novela que trazia um núcleo composto
por seis personagens negros que tinham uma participação significativa no enredo e uma
trama própria no folhetim. Entretanto, esta novela reforçou os estereótipos da mulher
negra como mulata passista de escola de samba, muito sensual, que terminou
assassinada pelo seu ex-namorado, um homem negro alcoólatra, violento e ciumento.
Suas novelas produzidas de 1995 a 2000, História de Amor (Rede Globo, 18hrs,
1995) Por amor (Rede Globo, 21hrs, 1998) e Laços de Família (Rede Globo, 21hrs,
2000)tiveram a presença de poucos negros, com limitada carga dramatúrgica, fazendo
papeis de empregados domésticos, somente retratados em cenas em que serviam seus
patrões brancos, ou nas que contracenavam com eles. Neste horizonte, considero que a
preocupação em ampliar a presença de personagens negros e enunciar uma protagonista
negra sugere que Manoel Carlos materializou uma preocupação em assegurar também
um redimensionamento qualitativo no tocante a presença negra em seus folhetins.
As cotas raciais protagonizaram o protagonismo negro? Em termos, isso ocorreu
quando foram veiculadas imagens de negros em papel de destaque nas tramas. No
entanto, a carga dramatúrgica desses personagens tem interface com os estereótipos
sobre o negro no Brasil.
96
4 PRESENÇA NEGRA NAS TELENOVELAS: (IN)VISIBILIDADE?
Para tentar escapar da armadilha de encampar o discurso oficial da história do
país, julgo ser relevante pontuar que a promulgação da lei áurea, em 1888, que aboliu a
escravidão negra no Brasil, foi orquestrada não somente para dar dignidade e liberdade
aos negros, mas também para atender a orientações internacionais direcionadas a
potencializar as possibilidades do Brasil enquanto um promissor mercado consumidor.
Os negros recém libertos foram abandonados à própria sorte, sofreram por parte
das instituições sociais constituídas, um processo de invisibilização, resultado da
vigência da perspectiva eurocêntrica característica das relações coloniais.
Nessa
perspectiva os negros são patologizados, animalizados e sua existência é apagada e
negada. Isto pode ser identificado por meio das políticas implementadas nos anos
seguintes, como a iniciativa do político Ruy Barbosa de Oliveira, ao mandar queimar
toda documentação pública referente aos escravos e a prática da escravidão no país.
Com este ato, pretendeu negar a existência do passado de escravidão negra no país, sob
a alegação de que queimando estes documentos os ex-senhores de escravos, que
reclamavam junto ao Estado indenização pela perda do investimento feito para adquirir
suas “peças”, não teriam mais em que fundamentar sua demanda.
A vigência deste padrão de racionalidade eurocêntrico favoreceu a política de
imigração de europeus para o Brasil, no final do século XIX e inicio do século XX, com
o objetivo de embranquecer a população. Estes imigrantes eram priorizados na
concessão de terras, recebiam auxilio financeiro para permanecer no país, políticas estas
que não eram oferecidas aos ex-escravos negros, relegados a própria sorte. Já no
primeiro cinqüentenário do século XX, foram estrategicamente descredenciadas pelos
discursos oficiais do Estado Brasileiro, nos planos científicos e políticos, as ideologias
que condenavam, biologicamente e moralmente, a miscigenação. Os esforços políticos
estavam direcionados para construir uma identidade nacional que unificasse brancos,
negros e índios. A partir dai, começou a ser construída no país, o que Da Matta (1994)
chama de Fábula das Três Raças, narrativa que se refere a junção, nas selvas tropicais
brasileiras, das supostas três raças (branco, negro, e índio) formando um povo mestiço,
forte e bonito. Esse tipo aglutinava o melhor das três raças, aperfeiçoando, com a
miscigenação, a inteligência do branco, a ingenuidade e pureza do índio, e a alegria,
sensualidade/virilidade e força para o trabalho do negro. Esta fábula exerce a função de
mascarar a existência do racismo no país, e atribuir sentido ao entendimento de que o
97
Brasil sediaria um autêntico Paraíso Racial, onde imperaria uma democracia racial,
instituída na igualdade racial, na ausência de todas as formas de preconceito de
conotação racial, bem como instiga um fetiche sexual e afetivo entre raças, estimulando
a formação de casais interraciais.
Neste horizonte, a população brasileira seria predominantemente o resultado da
interação dos marcadores espaciais que Freyre (1933) localiza nas edificações da Casa
Grande e da Senzala, espaços que sediaram intensos fluxos de interação afetiva, cultural
e sexual, que resultaria na miscigenação que constituiria a população brasileira.
Cabe destaque que os marcadores que figuram como fixos são respectivamente a
Casa Grande (edificação onde moravam os brancos proprietários de terras,
descendentes diretos do colonizador europeu) e a Senzala (construção rústica que servia
de moradia para os escravos negros e seus descendentes). Estas distintas edificações
representam os pilares que concretizam as fazendas, geralmente de cana de açúcar ou
café, que podem representar a consolidação das relações coloniais no país, por meio da
experiência agroprodutiva. Freyre (1933) argumenta que a casa grande e a senzala se
comunicam intensamente entre si. Mas, ao apontar que as negras/escravas de pele mais
clara eram escolhidas para o trabalho dentro da casa grande e aquelas de pele mais
escura ficaram encarregados do trabalho fora da casa, sinaliza que a cor da pele dos
sujeitos funciona como um elemento que demarca os limites e possibilidades de acessos
e permanências nestas unidades espaciais em questão e, também nas demais relações
sociais referenciadas na experiência colonial. O sentimento de não ser interpelado com a
identificação direta com a pele negra está alicerçado no contexto das relações
escravagistas.
O discurso colonial retira do sujeito colonizado e do seu grupo a capacidade de
se administrar e representar, instituindo que somente o colonizador tem a fala autorizada
para apresentá-lo e enunciá-lo. Para Babha (1998), o colonizado é definido
sumariamente como “o outro”.
Por intermédio do discurso colonial, emoldurado,
iluminado e enquadrado no jogo da imagem/contra-imagem, no qual a imagem
permitida é a do colonizador, somente resta ao colonizado a contra-imagem, o reverso,
que tem como únicas possibilidades o apagamento ou a mimetização.
A tentativa de problematizar sobre o que representou a presença de personagens
negros nas telenovelas e o esforço de “qualificar” o que pode significar sua presença nos
folhetins brasileiros a partir de 2001, bem como a visibilidade permitida a estes, me
98
remeteu a necessidade de demarcar o contexto histórico de inserção social dos negros,
no contexto de vigência das relações coloniais.
No Brasil, os produtos midiáticos como as telenovelas tendem a seguir uma
lógica que tem os valores do colonizador europeu como referenciais. Assim, tendem a
reproduzir, de forma naturalizada, a produção social da diferença entre os sujeitos
brancos e negros configurando relações que podem ser compreendidas sob a perspectiva
da diferença colonial. (MIGNOLO 2003)
Mignolo (2003) argumenta que a diferença colonial atua como um espaço físico
e imaginário no qual a Colonialidade do Poder se processa institucionalizando a
subalternização aos colonizados. Entretanto, também dá espaço para a construção do
pensamento liminar, termo utilizado pelo autor para designar a reação à diferença
colonial, um pensamento produzido pela perspectiva subalterna. A noção de
“pensamento liminar”, em Mignolo (2003), seria constituída a partir de um lócus
fraturado de enunciação, no qual são produzidas, a partir do pensamento subalterno,
como uma forma de reação ao discurso perpetrado pelo colonizador.
O movimento político pela inserção do negro nos espaços midiáticos, que
resultou na proposição das cotas raciais, bem como a repercussão em torno delas, que
resultou na tendência de ampliação da presença de negros nas telenovelas, pode ser
interpretada como uma expressão do pensamento liminar. Esse contexto tensionou os
processos de produção dos produtos midiáticos brasileiros a partir de 2001, instaurando
um movimento de redimensionamento da presença do negro nestes espaços.
Faço uso também da categoria hibridismo proposta por Bhabha (1998)
compreender a discussão em torno das cotas raciais na mídia brasileira como um
movimento liminar, produto de uma negociação na qual ocorreu a aceitação e o
redimensionamento de um discurso subalterno e o reconhecimento de uma situação de
invisibilidade e apagamento, resultantes da diferença colonial.
4.1 Personagens negros “para inglês ver”
Segundo Oliveira (2013), a expressão “para inglês ver” começou a ser utilizada
no Brasil quando a Inglaterra passou a pressionar Portugal (que dependia
economicamente da coroa inglesa) para que finalizasse o regime escravista.
Impulsionados pela revolução industrial, os ingleses perceberam a necessidade de
assegurar mercados consumidores para suas mercadorias manufaturadas, passaram a
99
pressionar o Governo brasileiro para que promovesse a abolição da escravidão,
transformando a população de negros escravos em uma mão de obra assalariada
potencialmente consumidora. Como a elite agrária brasileira se via dependente da mão
de obra escrava, a saída encontrada foi a proposição de leis, como a do ventre livre (que
declarava alforriados os escravos nascidos no Brasil) e a lei dos sexagenários (que
alforriava escravos já idosos), que além de terem uma eficácia bastante limitada no
tocante a beneficiar a população negra, também não contribuíram para promover a
transformação dos negros em consumidores de produtos ingleses. Por isso, ficaram
conhecidas com “leis para inglês ver”, e possibilitou o surgimento desta expressão que
ilustra a natureza das ações empreendidas para negros no contexto da experiência
brasileira de relações coloniais.
Algumas novelas produzidas no período da presente pesquisa, inseriram alguns
poucos personagens negros na trama, como estratégia de veicular uma postura de que os
negros sempre estariam presentes nos folhetins, não sendo para isso necessário o
resguardo de cotas de participação. Neste contexto, consigo identificar dois folhetins de
autoria do novelista Silvio de Abreu.
A primeira novela do autor nesse marco temporal, o folhetim As Filhas da Mãe
(Rede Globo, 19hrs, 2001), apresentou dois personagens negros. Porém, tiveram uma
limitada participação e, ainda assim em poucos capítulos. A personagem negra
Luzineide (Ana Carbatti) teve uma pequena participação nos primeiros capítulos da
trama, como uma amante do personagem branco Edimilson (Edson Celulari). Depois da
cena em que Luzineide levou uma surra da esposa de Edmilson, Rosalva (Regina Casé),
esta personagem negra não apareceu nem foi mais mencionada na novela.
Posteriormente, outro personagem negro ingressou na trama, Marcelo (Norton
Nascimento), como um investigador de polícia que entrou meio da novela para uma
curta participação. Só aparecia em cenas desempenhando sua profissão, sem ter sua
família ou qualquer outro vinculo afetivo retratado na novela. Um telespectador menos
atento, ou que não assistisse assiduamente a todos os capítulos, provavelmente não
perceberia a presença destes dois personagens negros, pois a carga dramatúrgica destes
era mínima.
Coincidentemente, a última novela de Silvio de Abreu no período abarcado pelo
percurso investigativo foi Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este folhetim
foi produzida no formato Remake, de Guerra dos Sexos (Rede Globo, 19hrs, 1983)
escrita pelo dramaturgo em questão. Na versão de 1983 não havia nenhum personagem
100
negro no enredo. A trama manteve todos os personagens da versão anterior, inclusive
com os mesmos nomes. Alguns poucos personagens “inéditos” foram introduzidos na
versão de 2012. Um destes foi o personagem negro Baltazar (Ronnie Marrudá).
Considero que sua inserção na trama sinaliza uma preocupação em manter uma
presença mínima de negros em cada folhetim. Entendo que o fato de todos personagens
brancos da versão anterior terem que ser novamente brancos na versão de 2012, indica
que o ingrediente racial é fundamental na composição de um personagem, pois a
história de personagens brancos não poderia ser redimensionada para um personagem
negro. As duas versões de Guerra dos Sexos, materializam enredos pensados
exclusivamente para personagens brancos.
O personagem negro Baltazar que foi criado especialmente para a versão
remake, era um segurança do castelo em que viviam os protagonistas brancos da novela
Charlô (Irene Ravache) e Otávio (Tony Ramos). A novela tinha um núcleo elitizado e
um núcleo de personagens moradores de um bairro de periferia. Sua trama abordava em
formato de humor a suposta rivalidade entre homens e mulheres. Neste horizonte,
Baltazar era um empregado partidário do patrão Otávio, em desfavor de sua patroa
Charlô. O personagem Baltazar, único personagem negro do folhetim, figurava como
um “negro para inglês ver”, não tinha carga dramatúrgica significativa, poucas falas,
explorava mais o gestual com forte apelo cômico. Não aparecia em todos os capítulos e
encenava uma proposta de negro que remonta ao negro escravo.
Foto 18-Personagem Baltazar
Fonte: gshow.globo.com, 2012.
O novelista Antonio Calmon, na novela Um Anjo Caiu do Céu (Rede Globo,
19hrs, 2001), também inseriu personagens negros para que a trama não fosse elencada
somente por atores brancos. Este folhetim era ambientado na cidade do Rio de Janeiro e
abordava o universo do estilismo e da moda. Apresentou dois personagens negros, Jô
(Janaína Lice) e Nando (Gustavo Mello), que trabalhavam como modelos fotográficos.
Jô era inteligente, bonita, elegante, de gênio forte, porém de excelente caráter. Era aluna
de uma faculdade de moda que ambientava parte do enredo da novela, onde fazia o
101
curso de modelo. Esta personagem negra era a melhor amiga da personagem branca
Carol (Marina Heim), a antagonista jovem da trama. Grande parte das cenas de Jô,
figuravam em torno das desventuras da amiga branca. O relacionamento que Jô matinha
com o personagem, também negro Nando (Gustavo Mello), era explorado apenas no
plano das brigas e reconciliações. Nando era um rapaz integro, de porte atlético. Fazia o
curso de modelo masculino e já trabalhava no ramo. Era otimista, embora não fosse
empolgado com sua carreira de modelo, por isso resolveu investir em uma escola de
capoeira.
Os personagens Jô e Nando nunca tiveram qualquer parente ou amigos negros
retratados na novela. Além da relação de um com o outro, somente tinham cenas que
abordavam os vínculos profissionais ou de amizade com brancos. Embora figurassem
no enredo em uma posição de nivelamento com alguns outros personagens brancos, em
nenhum momento a novela apresentou cenas que fizessem menção ao fato de serem
negros. Seus personagens ressaltaram a hiperssexualização do negro e o padrão de
beleza negra com cenas desfilando, ou fotografando com trajes de banho.
O novelista Euclydes Marinho, também utilizou o recurso de colocar
personagens negros com pouca carga dramatúrgica, para que o folhetim Desejos de
Mulher (Rede Globo, 19hrs, 2002) não ficasse sem a presença de negros no enredo. Esta
trama era ambientada na Cidade do Rio de Janeiro e tinha sua trama construída no
contexto da indústria e mercado da moda, focando um conflito familiar entre duas irmãs
brancas de meia idade. A novela trouxe o personagem negro Joaquim (Rocco Pitanga),
que é apresentado no site memoriaglobo.com, como um “modelo exótico e muito
ambicioso”. Este personagem era morador do subúrbio da capital carioca e dizia que
não encarava com seriedade o mundo da moda, pois pretendia ser futebolista. Assim,
encenava o estereótipo do negro que tem como única vocação e paixão o futebol, que
tinha orgulho de ter um irmão jogador em um time de segunda linha (irmão este que
nunca apareceu na novela).
A outra personagem negra da novela em foco foi Camila (Aline Aguiar), uma
modelo que dizia ter sido criada pela avó, que por ser enfermeira, lhe conseguiu uma
bolsa de estudos em uma escola de balé. Era a única negra de um grupo de modelos que
dividia um apartamento com outras pessoas. Era apaixonada pela arte da dança e havia
sido convidada para trabalhar como modelo quando foi “descoberta” em uma
apresentação como dançarina. Por ser dançarina profissional, se definia como uma
artista e não apenas modelo. Esta personagem protagonizava cenas de humor ao lado de
102
outras colegas de trabalho brancas, em função do hábito que tinha de escrever seu nome
em tudo que era seu. Ficava muito irritada quando alguma colega, por acidente, comia
algo ou utilizava algo que lhe pertencia e que estava devidamente “marcado” com seu
nome.
Mobilizando esta estratégia de assegurar o “negro para inglês ver”, o novelista
Emanoel Jacobina, no folhetim Coração de Estudante (Rede Globo, 18hrs, 2002) trouxe
uma única personagem negra, Eneida (Ana Carbatti), que era uma advogada e
professora de ensino superior, muito rígida e exigente com seus alunos. Eneida nunca
teve sua família ou qualquer vinculo afetivo-amoroso retratado na trama. Em suas cenas
aparecia atuando como professora e/ou advogada. Seu papel principal na trama era ser
confidente da amiga, branca Clara (Helena Ranaldi) que, ao contrário de Eneida, tinha
uma carga dramatúrgica que envolvia cenas com seu namorado, relações familiares,
desafios de trabalho, etc.
Foto 19-Personagem Eneida
Fonte: Rede Globo, 2002.
Eneida era objeto de desejo do aluno branco Cardosinho (Betito Tavares), que
nutria um grande fetiche sexual pela professora negra, que segundo o estudante,
pousava de séria, mas isso não impedia que tivesse uma libido a flor da pele. Embora
em nenhum momento a condição da negra de Eneida tenha sido claramente enunciada,
considero que a questão da suposta sensualidade da mulher negra ficou expressa via a
atração e veneração que Cardosinho nutria pela professora, diferente da forma como se
relacionava com outras garotas brancas. Assim, a única personagem negra de Coração
de Estudante, encenava o estereotipo da hiperssexualização da mulher negra.
O novelista Carlos Lombardi inseriu apenas um negro no folhetim Kubanacan
(Rede Globo, 19hrs, 2003). Esta novela foi uma comédia que satirizava as experiências
políticas dos países da America do Sul. Sua trama, referenciada na década de 50, era
ambientada na fictícia ilha caribenha Kubanacan. O enredo em questão contou com a
presença de uma personagem negra, chamada Dalila (Thalma de Freitas), que era casada
com o pescador branco Ramon (Geraldo Pestalozzi), porém usava toda sua sensualidade
103
para tentar seduzir o melhor amigo do marido, Esteban (Marcos Pasquim), que também
era branco. Dalila alternava entre o desejo e o temor no sentido levar uma vida longe da
vila de pescadores na qual vivia. Gostava de falar mal das vizinhas e não temia que seu
marido soubesse de suas tentativas de seduzir Esteban, pois estava certa de que Ramon
a amava.
Foto 20-Personagens Ramon e Dalila.
Fonte: Rede Globo, 2003.
A última novela de Lombardi para a Rede Globo foi Pé na Jaca (Rede Globo,
19hrs, 2007). Este folhetim tinha parte significativa de sua trama ambientada na cidade
fictícia de Deus me Livre, no Estado de São Paulo. Seu enredo tinha tom de comédia e
se desenrolava em torno de um reencontro de amigos, que culminou com uma caça a
uma fortuna. Apresentou apenas uma personagem negra, Maria Agusta/Nina (Lucy
Ramos), que era uma jovem, filha adotiva do casal de brancos Maria Clara (Silvia
Pfeifer) e Átila (Alexander Barros), e irmã do branco e loiro, Nuno (Sérgio Hondjakoff).
Maria Augusta/Nina era exageradamente fútil, intrigante, fofoqueira, maliciosa, proferia
discursos em que afirmava que detestava pessoas pobres. Considerava-se muito
elegante, dava excessiva importância ao dinheiro, ao passo que seu irmão adotivo Nuno,
filho biológico de Maria Clara e Átila não dava importância ao dinheiro da família e
sonhava em ser padre.
A autora Elizabeth Jim inseriu de dois a cinco personagens negros em suas
tramas. Porém, estes orbitavam nas tramas somente em função de personagens brancos.
Na novela Eterna Magia (Rede Globo, 18hrs, 2007) Jim abordou a temática do
misticismo no tocante a lendas e magias irlandesas. A trama se passava entre os anos de
1938 (Primeira fase) e 1946 (Segunda fase), ambientada na fictícia cidade de Serranias,
apresentada como fundada por irlandeses e situada no Estado de Minas Gerais.
Na primeira fase da novela não foi apresentado nenhum personagem negro, e na
segunda fase, foram introduzidos dois. Destes, o único fixo foi Padre Zuza (Maurício
Gonçalves), sacerdote católico da igreja da cidade de Serranias. Era um padre
104
progressista, bondoso, dedicado e que sofreu discriminação racial quando chegou a
cidade, porque alguns moradores não aceitavam um pároco negro. O personagem negro
Tadeu (Izak da Hora) apareceu em alguns capítulos como violonista.
A segunda novela solo de Jim foi Escrito nas Estrelas (Rede Globo, 18hrs,
2010). Teve trama contemporânea, ambientada no Rio de Janeiro. Abordava a temática
do espiritualismo e questões éticas e cientificas relacionadas a reprodução humana.
Este folhetim apresentou cinco personagens negros. Mas o único personagem negro que
tinha uma família, ainda que branca, retratada na trama, era Alex (Izak Dahora), um
rapaz com o histórico de ter sido adotado, ainda criança, pelo casal branco Magali (Nica
Bomfim) e Jovenil (José Rubens Chachá). Gostava de musica, era um excelente
violonista. Seu pai adotivo temia que a carreira de música não lhe reservasse um futuro
promissor, por isso insistia que o jovem negro fosse trabalhar na clinica com os irmãos
brancos de criação, Gilmar (Alexandre Nero) e Luciana (Manuela do Monte).
Foto 21-Personagem Alex
Fonte: Rede Globo, 2010
A novela trouxe também o personagem negro Seth (Alexandre Rodrigues), que
era o anjo da guarda de um dos protagonistas brancos, Daniel (Jayme Matarazzo). A
cena em que mais apareceu foi quando ensinou seu protegido a voar e lhe sensibilizou
acerca das vantagens de ter morrido.
Foto 22-Personagem Seth e Daniel
Fonte: Rede Globo, 2010
Os demais personagens negros da novela tiveram reduzida carga dramatúrgica,
somente aparecendo em cenas nas quais desempenhavam as atribuições profissionais de
105
seus personagens. Foi este o contexto dos personagens Xavier Furação (Toni Tornado),
Sandra (Rosana Dias), que era uma empregada da casa da personagem branca Jane
(Gisele Fróes) e Ezequiel (Lincon Tornado), segurança da clinica de reprodução
humana de Ricardo (Humberto Martins). Esse personagem era muito querido por todos
em seu ambiente de trabalho e seu apogeu na trama se deu quando se mostrou um
exímio cantor e dançarino.
A terceira novela de Jim foi "Amor Eterno Amor” (Rede Globo, 18hrs, 2012),
que tinha trama contemporânea e era ambientada no Rio de Janeiro. Esta novela trouxe
três personagens negros, que só contracenaram com personagens brancos. O que mais
deve destaque na trama foi Antônio (Tony Tornado), que era motorista e cozinheiro da
personagem branca Verbena (Ana Lúcia Torre), sendo considerado como membro da
família. Era apaixonado pela empregada doméstica branca Deolina (Nica Bomfim), com
quem se casou no final da trama. Os outros dois personagens negros da trama somente
apareciam em cenas nas quais exerciam suas profissões, servindo aos superiores
brancos. Este foi o contexto do porteiro Jair (Lincon Tornado) e do administrador de
fazenda Hamilton (Flávio Bauraqui)
Foto 23-Personagens Verbena, Antônio e Deolinda
Fonte: Rede Globo, 2012.
Aponto, também, que novelista Maria Adelaide Amaral ao escrever uma nova
versão para o folhetim Ti TiTi (Rede Globo, 19hrs, 2010) “precisou” aclimatar a trama
ao contexto configurado em torno do debate das cotas e inseriu no enredo personagens
negros que não estiveram presentes na primeira versão da novela. A trama em questão
era uma novela no formato remake, que inovou ao misturar o roteiro de duas novelas
assinadas pelo novelista Cassiano Gabus Mendes, Ti TiTi (Rede Globo, 19hrs, 1985) e
Plumas e Paetes (Rede Globo, 19hrs, 1980). Na trama fruto dessa adaptação, Amaral
apresentou três personagens negros, sendo uma delas Clotilde (Juliana Alves), como
uma mulher sensual, que usava sua aura de moça simples, inocente. Para alcançar seus
objetivos, Clotilde fingia ser uma mulher casta e resistia às investidas do patrão
106
mulherengo, Jacques (Alexandre Borges), Assim, ele se apaixona perdidamente por ela
e acabam se casado. Ao se transformar em esposa do renomado estilista, Clotilde passou
a humilhar os outros funcionários e ostentar seus poderes de patroa.
Foto 24-Personagens Jacques e Clotilde
Fonte: Rede Globo, 2010.
TiTiTi apresentou o personagem negro Adriano Novaes (Rafael Zulu), como um
renomado jornalista e critico de moda, que fingia ser homossexual para conseguir
espaço e reconhecimento no disputado mundo da moda.
Foto 25-Personagem Adriano
Fonte: Rede Globo, 2010.
Na primeira versão do folhetim TiTiTi, a personagem Clotilde havia sido
interpretada pela atriz negra Tânia Alves e o personagem Adriano era vivido pelo ator
branco Adriano Reys. Considero que o fato de na segunda versão o personagem
Adriano ser negro, aponta para o fato que a autora reconheceu a necessidade de inserir
negros para adequar a trama ao ano de 2010. O mesmo principio norteou a inserção da
negra Fátima (Cacau Protácio), como uma empregada doméstica que inexistia na
primeira versão da novela.
A dupla de novelistas que estreou assinando o folhetim A vida da Gente (Rede
Globo, 18hrs, 2011), também assegurou os personagens negros “para inglês ver”. Esta
novela era ambientada nas cidades gaúchas de Porto Alegre e Gramado e a espinha
dorsal de seu enredo enfocava conflitos familiares. Apresentou dois personagens negros
que figuravam na trama como mãe e filho. A personagem negra Maria (Neusa Borges)
era empregada doméstica na casa de Eva (Ana Beatriz Nogueira). Muito amorosa,
apega-se às filhas de sua patroa branca, que eram as protagonistas da trama. Quando
saiu da casa da patroa, aproveitou seu talento culinário e abriu com a filha da ex-patroa,
107
Manu (Marjorie Estiano) um buffet para atender a festas e eventos. Maria era mãe
solteira do negro Matias (Marcelo Mello Jr), que por sua vez, trabalhava como
motorista na casa em que sua mãe era empregada doméstica. Disciplinado, Matias
custeava com o próprio salário a faculdade de comunicação e o fato de ter sido super
protegido pela mãe, lhe deixou imaturo diante da vida. Ao longo da novela namorou
duas personagens brancas, Lorena (Júlia Almeida) e Cris (Regiane Alves).
Foto 26- Personagens Lorena, Matias e Maria
Fonte: Rede Globo, 2011.
Em 2013, Walcyr Carrasco criou polêmica ao escreveu sua primeira trama de
“horário nobre”, a novela Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013), ambientada na
cidade de São Paulo. Este folhetim trazia em sua trama o cotidiano de um hospital
particular. Como a novela abordou a questão da homossexualidade, trazendo cinco
personagens gays, a discussão da homofobia esteve fortemente presente no enredo.
Talvez por isso o autor tenha entendido que já havia cumprido com estes personagens, a
cota das minorias discriminadas e não inseriu, até a terceira semana de exibição,
nenhum personagem negro.
Este folhetim foi alvo de numerosas matérias que
questionavam o fato de não apresentar nenhum negro no elenco. Acredito que em
resposta aos questionamentos, o autor inseriu três personagens negros, que apareciam
com regularidade ao longo da trama, e outros seis que só apareceram em um capítulo,
para assegurar os “negros para inglês ver”.
O primeiro a aparecer foi Ináia Seixas (Raquel Villar), uma auxiliar de
enfermagem que teve um envolvimento puramente sexual com um médico branco,
Jaccques (Julio Rocha), chegando a ser demitida por isso pelo diretor do hospital, o
vilão da trama, o personagem Félix (Matheus Solano), que era apaixonado pelo médico.
Inaiá foi readmitida quando Félix teve seus poderes diminuídos no hospital. Ináia nunca
teve sua família retratada na trama, nem sua casa. Aparecia sempre como figurante nas
cenas no hospital que ambientava a trama.
108
Foto 27-Personagens Ináia, Jacques e Félix.
Fonte: Rede Globo, 2013.
A primeira cena de Ináia, no capitulo que foi ao ar no dia 14/06/2013, aconteceu
na terceira semana de exibição da novela, configurando a primeira cena com a presença
de ator negro na novela Amor à Vida. A personagem Ináia aparecia ocasionalmente,
ficando semanas sem ter uma única cena. Na reta final do folhetim, Inaiá se envolveu
com outro médico branco do hospital em que trabalhava, o Dr. Laerte Torres (Pierre
Baitelli). Ináia ficou doente e descobriu ser portadora do vírus HIV e já estava
desenvolvendo a AIDS. Por isso foi abandonada por Laerte, que não se contaminou com
o vírus.
Foto 28-Personagens Laerte e Ináia.
Fonte: Rede Globo, 2013.
A novela levou ao ar uma cena em que quatro ou cinco homens, além de Laerte
e Jacques, faziam testes de HIV, por terem sido parceiros sexuais de Ináia. Como
desfecho da trama, Ináia teve um “final feliz” ao lado de outro namorado branco, o
psicólogo Renan (Àlamo Facó), que a pediu em namoro ciente de que Ináia era
soropositiva.
A segunda personagem negra a ingressar na trama foi Judith Santiago (Ana
Carbatti). Inicialmente foi enunciada como uma psicóloga e, posteriormente, passou a
ser enunciada como médica cirurgiã. Esta personagem somente aparecia tratando de
pacientes brancos. Sua entrada se deu num contexto em que diversas entidades ligadas a
causa da população negra começaram a cobrar a presença de mais personagens negros
na novela. Segundo o Jornal Folha de São Paulo, de 14/06/2013, a atriz negra Ana
109
Carbatti viveria na novela o papel de uma psicóloga chamada Verônica, papel este que
não estava previsto na sinopse original da novela.
A novela apresentou médicos árabes e judeus, que entraram em conflito e
tiveram romances, mas a personagem negra médica só foi apresentada em poucas cenas,
atuando profissionalmente. Judith também não participou de cenas em que o conselho
ou comissões do hospital eram retratados. Sua primeira cena foi ao ar no capitulo 37 da
novela.
Foto 29-Personagem Judith
Fonte: Rede Globo, 2013.
Na reta final da novela, Carrasco inseriu o menino negro Jayminho (Kaiky
Gonzaga), um menor abandonado, morador de um abrigo para crianças a espera de
adoção. Foi adotado pelo casal gay composto pelos personagens Eron (Marcelo Antony)
e Niko (Thiago Fragoso). O menino negro foi alvo de discriminação racial por parte da
mãe biológica do primeiro filho do casal, a personagem Amarilys (Danielle Winits) que
fazia resistência ao fato de um menino negro, ex-morador de abrigo conviver com o
filho branco que teve com os pais gays. O personagem Jayminho entrou na trama no
capitulo que foi ao ar no dia 08/10/2013.
Foto 30-Personagens Eron, Jayminho e Niko.
Fonte: Rede Globo, 2013.
Amor à vida inseriu outros negros em apenas um capítulo, como a personagem
Delcicleide (Atriz não identificada), que apareceu como manicure da personagem
branca aspirante a celebridade Valdirene (Tatá Wenerck). Alguns personagens negros,
sequer tiveram nomes na trama, não foram incluídos na lista de personagens presente no
110
site da novela. Este foi o contexto do pisquiatra negro (Cristovan Netto), que tinha
sessões com o personagem branco Thales (Ricardo Tozzi). A novela trouxe ainda uma
Juiza negra (iléa Ferraz) que julgou o crime de bigamia do personagem Atilio (Luis
Melo).
Havia, ainda, o telefonista negro de um hospital (ator não identificado) que
informou por telefone para Paloma (Paola Oliveira), que sua amiga Ciça (Neusa Maria
Faro) havia sofrido um acidente e estava internada em um hospital no Rio de Janeiro.
Por último, a novela em foco tinha um porteiro negro que trabalhava no hospital
(ator não identificado), que apareceu pela primeira vez obstaculizando e depois
liberando a entrada de Paloma e Bruno (Malvino Salvador) no hospital na cena em que
Alejandra (Maria Maya) confessava seus crimes. Posteriormente, este personagem
passou a aparecer na portaria do hospital. Sua única cena fora do hospital foi no capítulo
em que acompanhou o vilão Felix, após ser demitido, no transporte de seus objetos
pessoais num ônibus.
O contexto de personagens negros que não foram fixos ao longo da novela, que
apareciam em um único capítulo de Amor à Vida, ainda que figurando em profissões
elitizadas como juíza, psiquiatra, expõe a questão de que presença na trama pode não
resultar em participação e que, nem sempre, uma maior quantidade de personagens
negros pode resultar em uma maior visibilidade.
4.2 Reinventando o protagonista negro?
Em 1969, a novela Cabana do Pai Tomás (Rede Globo, 19hrs, 1969) iniciou
sendo protagonizada pela atriz negra Ruth de Souza, que vivia a personagem Tia Kolé,
materializando assim primeira novela da Rede Globo a ter uma negra como
protagonista. Entretanto, ao longo da exibição da trama em questão, o personagem em
referência foi secundarizado e perdeu o posto de protagonista. Porém, entre os anos de
2004 a 2012, sob os efeitos da discussão em torno das cotas raciais na mídia, a emissora
em foco “reinventou” o negro figurando como o protagonista em seis telenovelas.
A novela Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19 hrs, 2004), escrita por João
Emanuel de Carneiro, inovou por ser a primeira novela brasileira do século XXI a ter
uma personagem negra como protagonista. Começando pelo título e pela trilha sonora
da abertura, a musica Da cor do pecado, cantada por Luciana Melo, veicula uma
imagem da mulher negra como tendo a “cor do pecado”, da lascívia, da luxúria,
reforçando o estereótipo da mulher negra/mulata reduzida a um objeto sexual.
111
Esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem
É um corpo delgado da cor do pecado
Que faz tão bem.
Esse beijo molhado, escandalizado que você deu
Tem sabor diferente que a boca da gente
Jamais esqueceu
E quando você me responde umas coisas com graça
A vergonha se esconde
Porque se revela a maldade da raça
Esse corpo de fato tem cheiro de mato
Saudade, tristeza, essa simples beleza
Esse corpo moreno, morena enlouquece
Eu não sei bem por que
Só sinto na vida o que vem de você.
(Musica“ Da Cor do Pecado” de autoria de Bororó , 1939 )
Nesse folhetim, a atriz Thaís Araújo interpretou a protagonista Preta de Souza,
uma vendedora de ervas em uma barraca no centro da cidade de São Luís-MA,
cozinheira, dançarina de tambor de crioula, que se envolve com Paco (Reynaldo
Giannechini), um homem branco e rico, de quem engravida. Tinha como antagonista a
vilã loira Bárbara Campos Sodré (Giovanna Antonelli), uma mulher sem escrúpulos,
desonesta e inconformada com o fato de ter perdido o namorado para Preta e, por isso,
armou, ao longo da trama, inúmeras situações para prejudicá-la e incriminá-la.
Foto 31- Personagens Paco e Preta
Fonte: Rede Globo, 2004.
Na trama, Barbara armou um plano para fazer Paco acreditar que Preta o traía e
que o filho que esperava não era dele. Paco ficou tão decepcionado que simulou a
própria morte, Bárbara se aproveita do sumiço do ex-namorado e atribui a ele uma
gravidez fruto de uma relação com outro homem. Pelo fato de Bárbara ser branca, loira,
refinada e bela é colocada como acima de qualquer suspeita. Preta, vítima de suas
armações, ao longo de toda trama tenta provar sua inocência, a começar pela
paternidade de seu filho Rai (Sérgio Malheiros).
112
Foto 32-Personagens Rai e Preta
Fonte: Rede Globo, 2004.
A personagem Preta é apresentada como sempre suspeita e portanto, deveria
acumular um número significativo de provas contra Bárbara para provar sua inocência.
Para incriminar e destruir a rival, a vilã Barbara, contou com a ajuda de Dodô (Jonathan
Haagensen), um ex-namorado de preta, vocalista de uma banda de Reggae em São LuísMA, apresentado como mau-caráter, malandro, capaz de tudo para se dar bem. O
personagem Dodô reforçou o estereotipo do negro malandro, perigoso e venal.
Foto 33-Personagem Dôdo
Fonte: Rede Globo, 2004.
A relação entre Preta e Barbara era marcada por diálogos em que a última
desqualificava Preta e seu filho por serem negros. A temática da discriminação racial
era uma questão central em torno da enunciação da protagonista negra. Preta, em um
dos capítulos, rebateu um elogio que recebeu do então namorado negro Felipe,
lamentando que as pessoas não a consideravam uma mulher bonita, mas sim exótica, tão
exótica como achariam um macaco no zoológico.
113
Foto 34-Personagens Felipe e Preta
Fonte: Rede Globo, 2004.
A novela contou ainda com o empresário branco e rico Afonso (vivido por Lima
Duarte), que relutou para aceitar a idéia de ter um neto negro. Reforçou sua postura
racista ao justificar que não promovia seu secretário e braço direito, Felipe (Rocco
Pitanga), a um cargo de assessor especial, pelo fato de ser negro. Felipe, apesar de ser
um competente administrador, que trabalhava em um grande grupo empresarial, deixava
seus pais, Laura (Maria Rosa) e Ítalo (Jorge Coutinho) morando nos cômodos
destinados aos empregados na casa de Afonso, pois trabalhava como motorista para
Afonso. A família de Felipe apresentava um comportamento submisso ao patrão Afonso
nos moldes dos escravos no regime escravagista. A esposa de Ítalo, Laura trabalhava
como cabeleireira.
Felipe se envolveu com Preta (Taís Araújo), enquanto Paco (Reynaldo
Gianecchini) estava supostamente morto. Quando Paco retorna, Preta abandona Felipe,
que sempre a havia apoiado, e volta para os braços de Paco, que duvidou de seu caráter.
A relação entre Preta e Paco retrata o estereótipo de uma Cinderela Negra, que faz de
tudo pelo amor e aceitação do príncipe branco.
Em 2006 estreou a segunda novela de João Emanuel de Carneiro, Cobras e
Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006), elaborada nos moldes da colonialidade,
apresentando quatro protagonistas brancos, de olhos claros: os personagens Duda
(Daniel de Oliveira), Bel (Mariana Ximenes), Leona (Carolina Diekman) e Estevão
(Henri Casteli) e contando com um personagem negro caracterizado pela malandragem.
114
Foto 35-Protagonistas Brancos da novela Cobras e Lagartos
Fonte: Rede Globo, 2006.
Nas primeiras semanas de exibição, as pesquisas de opinião, apontaram para
uma grande aceitação das cenas de humor protagonizadas pelo personagem negro
Foguinho (Lazaro Ramos), previsto para ser coadjuvante na trama. Foguinho não
gostava de trabalhar e era visto pelos seus familiares como preguiçoso. No início da
trama, trabalha como homem sanduíche, anunciando a loja de penhores do pai Ramires
(Ailton Graça). Órfão de mãe, vivia desprezado pela madrasta branca, Shirley
(Elizangela) e por seus meio irmãos brancos Sandra (Maria Maya) e Téo (Iran
Malfitano).
Foto 36- Personagens Ramires e Shirley
Fonte: Rede Globo, 2006.
Nas refeições da família, Foguinho não podia comer o mesmo bife que comiam
seus meio irmãos brancos. Sonhava em ser aceito e amado pela família. Ramires (Aílton
Graça) é representado como submisso à esposa Shirley, branca, e por isso hostiliza
Foguinho, seu filho negro do primeiro casamento. Ramires era um agiota e em sua loja
de penhores tratava mal os pobres, geralmente negros, e era implacável na cobrança de
dívidas.
Foguinho conquista o amor de uma mulher branca, a personagem Kika
(Christiana Kalache), que acredita nele e o aceita como é. Kika foi enunciada com uma
mulher sem atrativos físicos, não sendo cobiçada por outros homens. Nunca teve sorte
com namorados, talvez por isso enxergava em Foguinho uma possibilidade.
115
Foto 37-Personagens Kika e Foguinho
Fonte: Rede Globo, 2006.
Entretanto, Foguinho sonhava em namorar a negra, linda e ambiciosa, Ellen
(Thais Araujo), que por sua vez, sonhava em se casar com um homem branco e rico. No
inicio da trama, Ellen era vendedora na loja de departamento de luxo que ambienta a
trama. Órfã de mãe, foi criada pelo pai Jair (Milton Gonçalves). Foi enunciada como
gananciosa, consumista, que usa sua beleza para conseguir o que quer, e tornou-se loira,
seguindo um padrão estético europeu. Apesar de apaixonada por Estevão (Henri
Castelli), um homem branco que causou a morte do pai de Ellen, casou-se com
Foguinho visando a herança que este recebeu. Ao descobrir que a herança havia sido
fruto de usurpação, chantageia Foguinho, humilhando-o e também a seus familiares, de
todas as formas possíveis, traindo-o publicamente com homens brancos.
Foto 38-Personagens Foguinho e Duda
Fonte: Rede Globo, 2006.
O nome de Foguinho era Daniel Miranda, o mesmo nome de seu melhor amigo
branco, Duda (Daniel de Oliveira). Aproveitou-se dessa semelhança para usurpar a
herança que o amigo havia recebido. Como novo milionário, Foguinho se envolve em
mil trapalhadas ao usar a fortuna como trunfo para conquistar sua amada Ellen, que
continuava apaixonada pelo vilão branco e loiro Estevan (Henri Casteli). Ellen
continuou tentando conquistar Estevão, mesmo casada com Foguinho, acenando-lhe
com sua conta bancaria. Os personagens Ellen e Foguinho foram içados ao posto de
protagonistas da trama, constituindo o núcleo de humor central da trama. O casal
protagonizava cenas cômicas nas quais se atrapalhavam ao tentar parecer ricos e
116
sofisticados, na nova vida de milionários, proprietários de uma loja elitizada. Considero,
fundamentado em Carneiro (1998), que o perfil cômico destes personagens reforça a
imagem do infantilismo, da imaturidade e da humanidade incompleta do sujeito negro.
Ellen figurou como uma vilã cômica durante toda a novela. Já Foguinho, era o
estereotipo do bom malandro, que até se arrependeu de ter usurpado a herança do amigo
branco, mas era impedido por Ellen de reestituí-la. Foguinho era negro e tinha o bigode
pintado de loiro. Segundo Farias e Fernandes (2007, p.10) o bigode loiro do
personagem havia sido fruto de uma idéia do ator e diretor da trama, Wolf Maia, que
justificou que Foguinho:
Por absurda carência, descolore o bigode para diferenciar-se no
meio de tantos outros “zés ninguém” que habitam o mesmo
bairro de periferia que Foguinho morava no inicio da trama.
Entretanto Foguinho criado para ser secundário, para
simplesmente integrar o núcleo de humor da novela, caiu nas
graças do público, como um anti-herói de bom coração, e passou
a figurar como protagonista da trama, ofuscando o protagonista
“oficial” branco, o personagem Duda (Daniel de Oliveira).
Foto 39- Personagens Foguinho e Ellen
Fonte: Rede Globo, 2006.
Em Cobras e lagartos, o culto ao padrão estético da beleza ariana era
abertamente feito pela vilã branca Leona (Carolina Diekman) que tinha o cabelo loiro
claro e ao chegar ao cargo de presidente da loja de luxo que ambientava a trama,
ordenou que todos funcionários se tornassem loiros, obrigando, inclusive os negros, a
pintar os cabelos:
Eu quero fazer um comunicado a todos os funcionários dessa
loja, e quando eu digo todos, eu não estou fazendo exceção a
ninguém! Todos, dos diretores aos faxineiros! Não me interessa
se a pessoa é branca, preta, vermelha ou amarela, eu quero todo
117
mundo aqui a partir de amanhã com o cabelo loiro! Porque o
loiro vai ser a marca da Luxus daqui pra frente! Luxus, uma loja
loira!".
O enredo do folhetim em questão mobilizou a costumeira estratégia de colocar o
discurso racista explícito no personagem vilão. A violência do discurso da personagem
Leona foi atenuada pela cumplicidade tácita dos personagens negros que a ouviram
discursar, que já tinham aderido à perspectiva eurocêntrica de culto ao loiro, Foguinho
com o bigode loiro e Ellen com o cabelo loiro.
Em 2009, a dupla de autores Duca Rachid e Thelma Guedes escreveram o
folhetim Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) que concretizou a primeira novela
do horário das 18hrs a ser protagonizada por uma personagem negra. A trama era
contemporânea, ambientada na cidade do Rio de Janeiro. Foi estrelada pela personagem
negra Rose (Camila Pitanga), uma faxineira, batalhadora, que sustentava sozinha os
quatro filhos, Francisco (Gustavo Maya), Regina (Julyana Garcia), Glória (Raquel
Fuina) e Tarcisio (Heslander Vieira). A saga da personagem Rose centralizava o enredo
de todos os personagens da trama. Ela teve sua família negra retratada na trama, além de
figurar como a mocinha da novela, com direito a estampar o cd com a trilha sonora
nacional da novela.
Foto 40- Personagens Tarsicio, Rose, Regina, Francisco e Glória
Fonte: Rede Globo, 2009.
O ex-marido negro de Rose, o personagem Tião (Ailton Graça), não gostava de
trabalhar. Rose, ao longo da trama se envolveu com um personagem branco, o
empresário Gustavo Brandão (Marcos Palmeira), que se encantou com a simplicidade e
dignidade de Rose e a assumiu com seus quatro filhos.
118
Foto 41-Personagens Rose e Gustavo
Fonte: Rede Globo, 2009.
O personagem negro Tião (Ailton Graça), ex-marido de Rose (e pai dos seus
quatro filhos), era mulherengo e usava uma suposta doença cardíaca como argumento
para não trabalhar e passar os dias jogando sinuca ou no bar. Após se separar de Rose,
começou a namorar uma mulher branca, a personagem Heloísa (Emanuelle Araújo), que
conheceu na pensão em que foi morar no inicio da trama. Posteriormente, passou a viver
de favor de casa do amigo branco, o personagem Bené (Marcello Novaes).
Foto 42-Personagens Emanuelle, Tião e Rose
Fonte: Rede Globo, 2009.
Os filhos de Rose tinham os seguintes perfis; Regina, a filha caçula, era uma
estudante bolsista de uma escola particular. Era uma criança doce e sensível, que sofria
com ausência do pai negro e se apega muito ao namorado branco da mãe. Francisco era
também estudante bolsista de uma escola particular e uma criança levada, que sonhava
em ser jogador de futebol, querendo jogar usando a camisa 10 do time Barcelona. Glória
era adolescente e também estudava, com bolsa, em escola particular. Era a primogênita,
uma jovem responsável, porem contestadora, que tinha conflitos com mãe, por as vezes
não se conformar com a vida humilde que levavam. Por vezes se sentia inferiorizada
pelas colegas, sonhava em ser modelo e namorava um jovem branco, de uma condição
social superior, o personagem Nuno (Rainer Cadete).
119
Foto 43 – Personagens Glória e Nuno
Fonte: Rede Globo, 2009.
Tarcisio era adolescente e como os demais irmãos era bolsista em uma escola
particular. Era o segundo filho de Rose, apaixonado por música desde a infância
(sonhava em ser pianista). Desenvolveu um problema auditivo, que quase o deixava
surdo, e tinha vergonha de usar o aparelho para melhorar a audição. Apaixonou-se por
uma menina branca, a personagem Euridice (Bianca Salgueiro), que lhe correspondia.
Porém o romance enfrentou resistências do irmão de Euridice, que perseguia Tarcisio
por este ser negro, pobre e ter problemas auditivos.
Foto 44 –Personagens Euridice e Tarcisio
Fonte: Rede Globo, 2009.
Rose era órfã de mãe, sendo criada somente pelo por seu pai negro, Miguel
(Antônio Pitanga). Entretanto, nos últimos capítulos da novela descobriu ser filha de um
homem branco, o personagem Vitor Bittercourt (Jorge Cerrutti), patrão de sua mãe, com
quem teve um caso, abandonando depois mãe e filha.
Foto 45-Personagens Miguel e Rose
Fonte: Rede Globo, 2009.
120
Além da família de Rose, a novela trouxe dois personagens negros. Juvenal
(André Luiz Miranda) era um jovem estudante, oriundo de um orfanato e fruto de
envolvimento da uma mãe operária com um branco, um dos vilões da novela, Severo
Tardivo (Paulo Goulart) retirou Juvenal do orfanato e o ajudou, sem revelar sua
condição de pai. O outro personagem negro, Pericles (Tony Tornado) trabalhava como
motorista, sendo que no passado havia sido mecânico de aviões. Era casado com uma
mulher branca, Enestina (Ilva Nino), por quem era apaixonado e pai de um filho branco
e loiro, o personagem Bené (Marcelo Novais).
Foto 46-Personagens Pericles, Bené e Ernestina.
Fonte: Rede Globo, 2009.
Apesar de trazer um número significativo de personagens negros, a novela Cama
de Gato os visibilizou de forma negativa, especialmente ao sugerir que a união entre
negros, como no caso do casamento de Rose e Tião, estaria fadada ao fracasso, ao passo
que as uniões interaciais eram positivadas. A trama investiu no fetiche inter-racial, no
mito da mestiçagem, apresentando criança/adolescente negra criada em casa de brancos,
negros como filhos bastardos de pais brancos, que só no final da novela revelaram sua
paternidade. Pai negro ausente, sendo suprido pelo namorado branco da mãe, sugerindo
uma melhoria de vida.
Além disso, encenou o estigma da hiper sensualidade do negro/negra, e
legitimou os estereótipos do homem negro indisposto ao trabalho, indiferente à família,
mulherengo e viciado em bebida alcoólica e em jogos, sustentado por mulher, negra
como empregada doméstica. Visibilizou a família negra como desajustada, dependente
da caridade de brancos, trouxe o estereotipo do menino negro e pobre sonhando em
ascender socialmente como jogador de futebol, negro apaixonado por música,
adolescente negro sofrendo bullying por ser negro pobre e deficiente auditivo.
Já a trama Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), assinada Manoel Carlos,
inovou ao propor sua primeira protagonista negra, ou sua primeira “Helena” negra, e
também por ser a primeira novela do horário das 21hrs a ser protagonizado por uma
negra. O posto de protagonista deste folhetim que foi ocupado pela atriz negra Taís
121
Araújo. Apresentou nove personagens negros. Em descrição no site da Rede Globo
(2009), por ocasião do lançamento da novela, o autor Manoel Carlos apresentou sua
Helena negra da seguinte forma:
Sempre pensei em criar uma Helena mais jovem, que abrisse um
leque de novas possibilidades para o personagem. Uma mulher
por volta dos 30 anos, bonita, bem sucedida no amor e na
profissão, mas sentindo-se, mesmo assim, incompleta. Por obra
do acaso, vê-se envolvida com um homem mais velho,
divorciado, que vai lhe dar a felicidade desejada, mas à custa de
muita luta e muito sofrimento. Essa era a Helena mais jovem
que eu desejava criar já há algum tempo. Como também sempre
quis escrever um papel para a Taís Araújo, que é uma atriz que
admiro muito, achei que a possibilidade estava nessa história. E
assim nasceu essa nova Helena.
A protagonista negra deste folhetim foi enunciada como uma modelo de renome
internacional, que teve infância simples e amparava financeiramente sua família que
materializava a totalidade do núcleo de personagens negros. Era visibilizada como
negra, usando o cabelo de modo a ressaltar sua condição de crespo. A família de Helena
viva em Búzios-RJ e era composta por seu pai, Oswaldo (Laércio de Freitas), um
músico que vivia se descuidando da saúde, sendo um motivo de preocupação para a
família. A mãe, Edite (Lica Oliveira), uma mulher que casou jovem com Oswaldo
(Laércio de Freitas), homem bem mais velho que ela e após o divórcio manteve uma
boa relação com o ex-marido, a ponto de ainda morarem juntos. Edite namorava
Ronaldo (César Melo), que parecia ser mais jovem e este a ajudava a cuidar da pousada
que ganhou da filha modelo famosa. Helena tinha dois irmãos, o adolescente estudante
Paulo (Michel Gomes) e Sandra (Aparecida Petrowky). Sua família teve pouco destaque
na novela, Helena interagia predominantemente com núcleos de personagens brancos.
Foto 47-Personagens Edith, Sandra, Helena, Paulo e Laércio.
Fonte: Rede Globo, 2009.
122
A única personagem da família de Helena que tinha uma significativa carga
dramatúrgica e aparecia em quase todos os capítulos era Sandra. Entretanto o contexto
era sempre da constante preocupação e cuidado afetivo e financeiro que Helena tinha
para com a irmã. Sandra era uma jovem negra sem profissão, que namorava e teve um
filho com o negro marginal/criminoso Benê (Marcelo Melo Jr) e era agredida por ele.
Benê foi assassinado por conta de um acerto de contas com outros criminosos morrendo
nos braços de Sandra. A família de Helena não aprovava o namoro de Benê e Sandra,
pelo envolvimento do rapaz no mundo do crime, por ele explorar financeiramente
Sandra e sua família, e finalmente porque, reiteradas vezes, a agredia verbal e
fisicamente. Embora Helena fosse muito rica, mesmo quando ainda solteira, sua irmã
Sandra morava com o filho e o namorado Benê em uma favela.
Foto 48-Personagens Benê e Sandra.
Fonte: Rede Globo, 2009.
Os personagens negros ficaram isolados dos demais na trama, não apareciam em
todos os capítulos e grande parte de suas cenas eram quando recebiam a visita de
Helena. O enredo que ligava estes personagens era cingindo em torno de Helena. Ainda
no núcleo negro, nos primeiros capítulos participou da trama, somente em cenas de
Flashback (quando Helena lembrava-se do passado), o personagem Andre (Antonio
Firmino), como um fotógrafo renomado, ex-namorado de Helena antes de ficar famosa.
As cenas em que André aparecia faziam menção a um aborto que Helena havia feito, do
filho que esperava do namorado negro, em prol de não prejudicar sua carreira. As cenas
frisavam que André nunca teve conhecimento da decisão de Helena de interromper a
gestação. Ao longo da novela Helena somente se envolveu com homens brancos.
Considero que o fato de, após ter ficado famosa, Helena somente ter estabelecido
relacionamentos com homens brancos, sugere que ao ascender socialmente, a modelo
também precisava ascender racialmente e “positivar” sua condição de negra através do
relacionamento com um homem branco seria uma boa estratégia.
123
Foto 49-Personagens André e Helena
Fonte: Rede Globo, 2009.
Logo no início da novela, Helena se envolveu com o personagem branco,
Marcos (José Mayer), um homem rico, mais velho, que exigia que se afastasse das
passarelas para ser apenas sua esposa. Helena hesitava em concordar. Com essa
situação, Marcos tratava-a como se fosse sua propriedade. Helena em alguns momentos
aceitava as imposições do marido e tentava se afastar do trabalho e das amizades que
não o agradavam.
Foto 50-Personagens Helena e Marcos
Fonte: Rede Globo, 2009.
Além dos conflitos com Marcos, Helena ainda enfrentava a resistência de sua
enteada Luciana (Aline Moraes), que também era modelo e tinha com ela uma relação
de rivalidade profissional. Desde o inicio da novela, Luciana implicava com a
madrasta.
Foto 51-Personagens Helena, Marcos e Luciana
Fonte: Rede Globo, 2009.
Helena também era hostilizada pela primeira mulher de Marcos, Tereza (Lilia
Cabral), ex-modelo, mãe de Luciana, que não aceitava ter sido trocada por Helena, a
quem se referia com o adjetivo de “mulherzinha”. Tereza responsabilizava Helena pelo
fim de seu casamento e, também, por ter negado uma carona a filha, e com isso ter
124
exposto Luciana a um acidente que a deixou tetraplégica. Por este motivo agrediu
Helena, que aceitou passivamente a agressão. Considero que esta cena fez clara menção
as relações coloniais, quando a senhora branca, castigava sua escrava negra. Outro
elemento que merece destaque é que esta cena foi ao ar na semana em que é
comemorada no Brasil a semana da consciência negra.
Foto 52- Personagens Helena e Tereza
Fonte: Rede Globo, 2009.
Considero que ao longo da novela, o papel de Helena perdeu o status de
protagonista para as personagens de Luciana e Tereza, que tinham composição
dramatúrgica mais densa do que a da suposta protagonista negra. Adepta do mesmo
entendimento, Santana (2010, p.56) argumenta:
Diante da análise das Helenas de Manoel Carlos da década de
2000, podemos afirmar que Taís Araújo não foi uma
protagonista de peso como as demais. Ela só reforçou os
estereótipos atribuídos à imagem da mulher, em especial da
mulher negra. Fugiu à regra das empregadas domésticas, mas
não teve o espaço merecido. De nada adiantou ser rica, famosa e
bem sucedida, se perdeu o brilho no meio da trama. Manoel
Carlos deu a entender que queria mostrar que não existe
preconceito na teledramaturgia, ao colocar uma mulher negra
para interpretar o papel de uma modelo bem sucedida, mas ele
se esqueceu de dar a ela o verdadeiro protagonismo, aquele em
que a personagem tem dramas e superações de verdade que
refletem a realidade do público que assiste e se identifica. Ser
vítima de um erro do passado e ser humilhada por causa disso
foi uma tentativa fracassada de dramatizar a personagem.
Helena, ainda casada com Marcos, envolveu-se com o personagem Bruno
(Thiago Lacerda) e por isso foi chantageada por Rafaela (Klara Castanho) uma criança
de 9 anos, filha de uma empregada de Helena, que ao descobrir relação extraconjugal da
125
patroa de sua mãe, passou ameaçá-la abertamente e exigir regalias e passe livre aos
ambientes externos e internos da mansão da patroa negra.
Foto 53-Personagens Rafaela e Helena
Fonte: Rede Globo, 2009.
Bruno pressionava Helena para se separar de Marcos e ir viver com ele.
Posteriormente, Bruno descobriu ser filho de Marcos. Marcos e Bruno não se acertaram
após serem revelados enquanto pai e filho, inicialmente pelo fato de Marcos ter
rejeitado a gravidez da mãe de Bruno e, posteriormente, em função do contexto de
ambos desejarem a Helena, situação que aguçou mais ainda as magoas e rivalidades
entre pai e filho. Marcos, que também não era fiel a Helena, sofreu muito ao descobrir a
traição da esposa negra e terminou a novela ao lado da esposa branca Tereza.
Foto 54- Personagens Helena, Bruno e Marcos.
Fonte: Rede Globo, 2009.
A questão da discriminação racial nunca foi tocada ou discutida abertamente na
novela. Em uma seqüência de cenas, Tereza fez rápida menção ao fato de
provavelmente Helena ter enfrentado dificuldades na carreira por ser negra. Helena era
uma negra que convivia com brancos, como se fosse branca também. Excetuando os
traços diacríticos da pele negra e o cabelo crespo, o único elemento que situava Helena
como negra era seu vínculo com seus familiares negros, retratados em uma quantidade
de cenas proporcionalmente inferior as que retratavam os vínculos que estabelecia com
parceiros, colegas de trabalho e amigos brancos. As melhores amigas de Helena eram a
médica loira Ariane (Christiane Fernandes), a Médica nissei Ellen (Danielle Suzuki) e a
loira que vivia da pensão do pai Alice (Maria Luisa Mendonça).
126
Foto 55-Personagens Alice, Ellen, Helena e Ariane.
Fonte: Rede Globo, 2009.
A construção de personagens negros na novela Viver a Vida reforçou a
estereotipia da hiperssexualização da mulher negra, da negra enquanto cinderela que se
envolve com príncipes brancos e ricos. Veiculou, ainda, o negro enquanto
malandro/criminoso, por meio do personagem Benê. A relação entre Benê e Sandra
apontava para a idéia de família negra como desajustada. Ressalto que ator negro
Laércio de Freitas, que viveu o personagem Oswaldo, pai de Helena, desempenhava a
profissão de músico, exatamente igual ao personagem Ataufo do folhetim Mulheres
Apaixonadas em 2003, também escrito por Manoel Carlos. Este contexto aponta para
existência de um determinado padrão de personagens “autorizados” aos atores negros
nas novelas do dramaturgo em questão. Enfatizo que este padrão esta referendado nas
relações coloniais e segue inalterado, seja quando o personagem negro figura em papeis
de empregados domésticos, seja quando figura desempenhando uma profissão elitizada.
Em qualquer dos dois contextos, o personagem negro tem sua existência, geralmente
condicionada a relações com personagens brancos.
Em 2012, a dupla de novelistas estreantes Filipe Miguez e Izabel de Oliveira
assinou a autoria da novela Cheias de Charme (Rede Globo, 19hrs, 2012). Este
folhetim, ambientado na capital carioca, teve dez personagens negros e narrava a saga
de três empregadas domésticas, Maria da Penha (Taís Araújo) que era negra, Maria do
Rosário (Leandra Leal) que era branca e loira, e Maria Aparecida (Isabelle Drummond)
que era branca e tinha os cabelos castanhos. As três se agruparam para lutar por direitos
de sua categoria profissional e acabam criando um grupo musical nominado de As
Empreguetes.
127
Foto 56-Personagens Cida, Rosário e Penha.
Fonte Rede Globo, 2012
A personagem negra Penha era a protagonista, uma empregada doméstica que
sustentava o marido branco, o filho e os dois irmãos. Trabalhava para patroas brancas.
Agregou-se a duas empregadas domésticas brancas, Cida, e Rosário e formou o grupo
musical, inicialmente colocando vídeos das apresentações na internet. Penha era a única
das três “Empreguetes” que não falava de forma gramaticalmente correta e não tinha
escolaridade. Durante a exibição da novela, o Ministério do Trabalho convidou as três
atrizes para fazer uma propaganda alusiva aos direitos das empregadas domésticas, Cida
e Rosário, falavam o que pode ser classificado como português culto, já a personagem
Penha, mesmo na peça publicitária, falava como seu personagem, não conjugando
adequadamente os pronomes pessoais e os tempos verbais. Ao longo da novela Penha
foi cortejada por homens brancos, inclusive o marido de uma patroa, mas terminou ao
lado do seu marido Sandro (Marcos Palmeira).
Foto 57-Personagens Marcos e Penha
Fonte: Rede Globo, 2012
O garoto negro Patrick (Mc Nicollas) era estudante, filho único de Penha (Taís
Araújo), que vivia reclamando da ausência da mãe, fosse quando ela trabalhava como
doméstica ou quando se tornou uma cantora de sucesso. O menino passava os dias
brincando na rua, sendo pouco zeloso com os estudos. O personagem Patrick aponta
para o estigma da família negra como desestruturada.
128
Foto 58-Personagens Patrick e Penha
Fonte: Rede Globo, 2012
Penha tinha dois irmãos, o jovem branco Elano (Humberto Carrão), que tinha
seu curso de direito custeado por Penha, e a irmã caçula, a adolescente negra Alana
(Sylvia Nazareth), uma estudante que foi criada por Penha como se fosse sua filha Ed,
que tinha na figura do marido de Penha a imagem de um herói, e via a irmã como
severa. Ajudava a cuidar do filho de Penha e se apaixonou por um adolescente branco,
Jefferson (Vitor Novello).
Foto 59-Personagens Alana, Elano e Penha
Fonte: Rede Globo, 2012
Além de Penha, Cheias de Charme trouxe mais duas empregadas domésticas
negras. A jovem Gracinha (Lidi Lisboa), que trabalhava como uma babá muito afetuosa
com as crianças que quem cuidava e gostava de filmar, com seu celular, flagras de
abusos de patroas brancas duronas e postar na internet. A personagem de meia idade
Valda (Dhu Moraes) era uma cozinheira, que encenava o estereotipo da mãe preta, no
tocante ao apego que tinha aos filhos dos patrões brancos e pelo carinho que devotava a
sua afilhada branca, Cida (Isabelle Drummond), uma das empreguetes.
O estereótipo da negra como vilã invejosa foi contemplado, em Cheias de
Charme, através da personagem Dinha (Juliana Alves). Esta, por sua vez, era uma
ajudante de cozinha, que tinha uma rixa com uma das empregadas brancas. Rosário
(Leandra Leal), era alvo da inveja de Dinha no trabalho e no amor, pois a negra tentava,
sem sucesso, seduzir e conquistar o namorado branco de Rosário, o personagem Ignácio
(Ricardo Tozzi). No final da novela foi aclamada como uma grande Chef de cozinha,
129
fato que não arrefeceu a inveja que Dinha nutria ao ver Rosário fazer sucesso como
cantora.
Foto 60-Personagens Ignácio e Dinha
Fonte: Rede Globo, 2012
A novela trouxe, para dar veracidade ao núcleo ambientado na periferia do Rio
de Janeiro, os personagens negros Heraldo (Sérgio Menezes dos Reis), que era garçon,
Kleiton (Fábio Neppo), que era dono de uma lanhouse na periferia e Niltinho (Sérgio
Malheiros), entregador de mini-mercado e grafiteiro. Esses personagens não tinham
suas famílias retratadas, nem mesmo vínculos com outros negros, Somente
contracenavam com personagens que figuravam como seus amigos brancos, ou seja,
suas composições dramatúrgicas estavam direcionadas a ser amigos de personagens
brancos, que tinham mais cenas e maior carga dramatúrgica.
Apesar de trazer um número bastante significativo de personagens negros,
Cheias de Charme os enunciou sob as amarras das relações coloniais, focando o fetiche
interracial ao instaurar, de forma naturalizada, a diferença entre empregada negra e
empregada branca e, também, ao reatualizar o estereotipo da negra invejosa da mulher
branca.
Ainda em 2012 foi exibido o folhetim Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012),
com trama ambientada no contexto das transformações societárias do Rio de Janeiro no
inicio do século XX. Apresentou quatorze personagens negros, através dos quais
abordou diretamente os movimentos de inserção social das mulheres e o contexto da
urbanização da população negra brasileira, após a abolição da escravidão, focalizando
as favelas, a significação do samba e do futebol, além das revoltas sociais.
Esta novela, além de focalizar a contribuição do negro no processo de formação
social e cultural, dar visibilidade ao negro, demarcando sua presença, apresentada
sempre como negativa pela história oficial do Brasil. Este folhetim inovou, também, ao
apresentar dois protagonistas negros, os personagens Zé Maria (Lazaro Ramos) e Isabel
(Camila Pitanga).
130
Foto 61– Personagens Zé Maria e Isabel
Fonte: Rede Globo, 2012.
Zé Maria era um exímio capoeirista, barbeiro, um negro ciente dos seus direitos.
Metia-se em confusões, por seu envolvimento com a capoeira, por lutar por justiça
social para os negros e em função de seu amor por Isabel. Esta, por sua vez, era uma
empregada doméstica que trabalhava com Madame Besançon (Beatriz Segal), com
quem aprendeu a falar francês. Era filha de Afonso (Milton Gonçalves), um ex-escravo,
barbeiro, homem conservador e amante de tocar umas modinhas em sua viola.
Isabel apaixonou-se, e só não se casou com Zé Maria, porque este foi preso
quando estava a caminho da igreja. Isabel teve um filho com o branco Albertino (Rafael
Cardoso), o que fez com que ela ganhasse a inimizade da mãe do rapaz, a ex-baronesa
Constância (Patricia Pillar), que lhe tirou a criança.
Foto 62– Personagens Albertino e Isabel
Fonte: Rede Globo, 2012.
Izabel teve uma guinada social na trama quando ficaram revelados seus dotes
artísticos Assim, conseguiu juntar dinheiro e construir uma grande casa no Morro da
Providência (favela que ambientava a trama) onde os negros se reuniam para comer e
festejar suas particularidades culturais. Isabel terminou a novela ao lado de Zé Maria e
do seu filho, que conseguiu recuperar no final da novela.
131
Foto 63 –Personagens Elias, Zé Maria e Isabel
Fonte: Rede Globo, 2012
Lado a Lado trouxe duas vilãs negras, Berenice (Sharon Menezes) e Zenaide
(Ana Carbatti). Berenice era uma serviçal/lavadeira, inicialmente vizinha de Isabel
(Camila Pintanga), de quem tinha muita inveja por esta saber ler, escrever e falar
francês. Berenice era venal e gananciosa. Por nutrir um ódio patológico por Isabel,
tentava sistematicamente seduzir e conquistar Zé Maria (Lazaro Ramos), unicamente
para ferir Isabel. Lamentava muito por sua beleza não lhe permitir ter uma vida mais
confortável. Berenice encarnava o estereotipo da negra invejosa e explorava o estigma
da sensualidade da mulher negra. Como desfecho, morreu tragicamente como uma
expressão de castigo por suas maldades ao longo da novela.
Foto 64 – Personagens Isabel, Afonso e Berenice
Fonte: Rede Globo, 2012
Zenaide era uma moradora do Morro da Providência, amarga, aliada da irmã
Berenice em alguns golpes. Recebeu dinheiro da vilã da trama, Constância (Patrícia
Pilar) para criar seu neto mestiço, que foi roubado dos braços da mãe Isabel, pelo fato
de Constancia não aceitar a criança por ser filha de uma negra com seu filho. Zenaide
maltratava impiedosamente o menino. O menino negro Elias (Cauê Campos) era o filho
de Isabel e Albertinho, roubado e escondido por anos sob a tutela de Zenaide, a mando
da avó paterna branca. Zenaide tinha mais dois filhos, Olavo (Jorge Amorim) que
protegia Elias, seu suposto irmão de criação, e Vilmar (Marcio Rangel) que sentia
ciúmes de Elias, causando constantemente intrigas e contentas para que a mãe Zenaide
castigasse violentamente Elias.
132
Foto 65 – Personagens Berenice, Olavo, Vilmar, Zenaide e Elias
Fonte: Rede Globo, 2012.
A novela também trouxe um personagem negro que figurava como vilão e
criminoso, Caniço (Marcelo Mello Jr), um capoeirista que usava as habilidades da
capoeira para a criminalidade, por isso se tornou inimigo declarado de Zé Maria (Lazaro
Ramos). Ao longo da trama, se envolveu com Berenice. Localizo no personagem
Carniço o estereotipo do negro como malandro/marginal/criminoso.
Foto 66 - Personagens Zé Maria e Carniço
Fonte: Rede Globo, 2012
A novela explorou a discriminação racial nos times de futebol, através do
personagem Chico (César Mello), que era um jogador de Futebol, obrigado a usar pó de
arroz no rosto e no corpo para atenuar sua negritude, quando ia jogar. Ao longo da
novela se apaixonou e se casou com uma mulher branca, a garçonete Gilda (Jurema
Reis).
Foto 67- Personagem Chico
Fonte: Rede Globo, 2012.
A trama explorou a liderança feminina no processo de configuração das favelas
cariocas, por meio dos personagens Jurema (Zezeh Barbosa) e Etelvina (Laís Viera).
Jurema era lavadeira e vendedora de acarajé. Figurava como líder na comunidade em
que vivia e também como uma segunda mãe para a protagonista negra da trama, Isabel.
Já Etelvina, era dona de casa, moradora do Morro da Providência, casada com um ex133
soldado, branco, ex- combatente da guerra de canudos. Junto com o marido Pecival (Rui
Ricardo Diaz) que era uma liderança na Comunidade em que viviam.
Foto 68 – Personagens Etelvina e Jurema
Fonte: Rede Globo, 2012.
O casal Etelvina e Percival eram pais da menina Madá (Ana Luiza Abreu) e do
adolescente Tião (Zeca Gurgel), que trabalhava arduamente como engraxate para poder
custear os estudos, no afã de poder propiciar uma vida melhor aos seus familiares.
Foto 69 –Personagens Etelvina e Percival
Fonte: Rede Globo, 2012.
Na proposta de construção dos personagens negros na novela Lado a Lado,
localizo uma tentativa de (re)posicionar, de forma afirmativa, a perspectiva, sobretudo
no tocante a religião e ocupação sócio espacial na cidade do Rio de Janeiro. Este
folhetim expressa um significativo movimento do pensamento liminar (Mignolo, 2003)
pois empreendeu um esforço de descentralizar o discurso eurocêntrico na condução de
sua narrativa, movimento que percebo que só havia sido feito antes apenas na novela
Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996).
O folhetim em referência apresentou uma trama ambientada em outra época,
sem que a história fosse narrada sob a perspectiva exclusiva de personagens brancos.
Entretanto, destaco que o fetiche inter-racial se fez presente no folhetim em questão
como um ingrediente fortemente presente no enredo, expresso na relação entre
personagens que formavam casais interraciais, bem como o estereotipo da negra
invejosa e do negro como marginal criminoso.
134
O discurso colonial retira do sujeito colonizado e do seu grupo a capacidade de
se administrar e representar, instituindo que somente o colonizador tem a fala autorizada
para apresentá-lo e enunciá-lo. Para Babha (1998), o colonizado é definido
sumariamente como “o outro”. Por intermédio do discurso colonial, emoldurado,
iluminado e enquadrado no jogo da imagem/contra-imagem, no qual a imagem
permitida é a do colonizador, somente resta ao colonizado a contra-imagem, o reverso,
que tem como únicas possibilidades o apagamento ou a mimetização.
No contexto dos enredos das telenovelas, vejo que o processo de estereotipação
faz com que somente os personagens negros sejam racializados nos folhetins. Os
personagens brancos são enunciados nas tramas como se fossem racialmente neutros.
Este processo resultada diretamente da ação do discurso colonial que institui, para quem
não é branco/europeu, uma “imagem de diferença”, que funciona como um receptáculo
de tudo aquilo que é construído, classificado e hierarquizado sob o rótulo de
“diferença”.
Os negros nas telenovelas passam por um do processo de mimetização, isto é são
enunciados com códigos semânticos de brancos, o que pode, tangencialmente, lhes
invisibilizar mesmo quando estariam visíveis, participando ativamente ou mesmo como
protagonistas dos enredos dos folhetins Mesmo nas telenovelas que apresentaram
negros como protagonistas, estes personagens negros desenvolviam relações
importantes do ponto de vista do enredo com, e somente com, personagens brancos.
Entendo que os desdobramentos em torno das cotas raciais, aqueceram uma
discussão acerca da presença do negro nas telenovelas e permitiram que fossem
produzidas tramas com personagens negros “para inglês ver” e negros/ negras figurando
como protagonistas. A análise do enredo destes folhetins, bem como da carga
dramatúrgica
dos
personagens
negros,
mormente
aqueles
enunciados
como
protagonistas, permitiu-me identificar que estas tramas utilizaram como ingredientes
principais o fetiche interracial e os processos de estereotipia constituídos em torno do
escalonamento, sobreposição ou atravessamento de uma suposta hiperssexualidade,
malandragem, criminalidade e subserviência do negro/negra que apareceram
enfatizados ou sobrepostos nos enredos dos folhetins.
135
5 QUE INTERRACIALIDADE É ESSA?
Nos enredos das telenovelas, o processo de estereotipação faz com que somente
os personagens negros sejam racializados nos folhetins. Conceição (1995) aponta que o
branco é apresentado como representante natural da espécie. Segundo Araujo (2000),
quando a sinopse proposta pelo autor não indicasse que o personagem seria negro,
devendo obrigatoriamente ser interpretado por um ator negro, seria escalado um ator
branco.
Os brancos são apresentados como se fossem racialmente neutros. O discurso
colonial institui, para quem não é europeu, uma “imagem de diferença”, que atua como
um receptáculo de todas as formas classificadas como “diferença” (BHABHA, 2005).
Esta idéia de diferença, construída em torno dos colonizados, é portadora de uma
ambigüidade que instaura uma estereotipação sobre seus corpos, comportamentos e
aparatos culturais, que os torna alvos da repulsa mas também do interesse e fetiche por
parte dos colonizadores.
A mulher negra é enunciada nos folhetins como portadora de uma luxúria e um
apetite sexual superiores a das mulheres brancas. O sinal emblemático desta
característica seria seus quadris e nádegas.
No Brasil, a relação entre negros e brancos pode ser interpretada como um
passaporte para ascensão e aceitação social e, especialmente, na modalidade da relação
entre o homem branco e a mulher negra. Esta subjetivação da relação interracial tem um
lastro na história de Chica da Silva, uma ex-escrava que viveu na região de Diamantina,
em Minas Gerais, no século XVIII. Através do concubinato com um homem branco,
constituído contratador dos diamantes pelo então rei de Portugal, conseguiu sua alforria
e inclusão social na elite branca local. A história de Chica da Silva representa a versão
brasileira do conto da Cinderela e faz uma apologia vigorosa à prática da mestiçagem,
abrindo para negros e mestiços a possibilidade de aceitação social e o atenuando a
condição de subalternidade que o status de ser negro confere. Esta “versão colonial” do
conto da Cinderela legitima a posição de inferioridade do negro, exponenciando o
branco como seu salvador por meio branqueamento. A literatura produzida no Brasil
reflete o imaginário que construiu também a mulata como uma mulher de sexualidade
animalesca. Algumas obras literárias brasileiras do século XIX exploraram a venda de
uma imagem amoral da vida sexual da mulata e da negra.
136
A este respeito, alguns folhetins exploraram em seus enredos tramas em que
patrões ou filhos de patrões brancos, assediaram sexualmente suas empregadas negras.
Isso ocorreu no folhetim Sangue Bom (Rede Globo, 19hrs, 2013) escrita por Maria
Adelaide Amaral. Nesta trama, a personagem negra Sheila (Nanda Lisboa) era uma
empregada doméstica apaixonada pelo filho de seus patrões brancos, o mulherengo Tito
(Rômulo Neto). Tito humilhava Sheila sempre que podia, mas também a assediava
quando estava interessado em aliviar suas tensões sexuais. Sheila, apaixonada, aceitava
passivamente a situação, na esperança de que Tito um dia a amasse e assumisse um
relacionamento com ela, o que nunca aconteceu.
Foto 70-Personagens Nanda e Tito
Fonte: Rede Globo, 2013
Outro exemplo emblemático da relação entre filho de patrões brancos e
empregada doméstica negra foi apresentado no enredo de Mulheres Apaixonadas (Rede
Globo, 21hrs, 2003), escrita por Manoel Carlos. A personagem negra Zilda (Roberta
Rodrigues), uma empregada doméstica de uma família de classe média, era alvo de
assédio sexual pelo personagem Carlinhos (Daniel Zettel), filho adolescente dos seus
patrões. Zilda termina por “aceitar” entrar no jogo de sedução, proposto insistentemente
pelo filho do patrão e o inicia sexualmente.
Foto 71-Personagens Carlinhos e Zilda
Fonte: Rede Globo, 2003.
Mulheres Apaixonadas reforçou o estereótipo da mulher negra hipersexualizada,
que é alvo e cede ao assédio sexual de homens brancos, posicionados em posições
hierárquicas superiores, como foi o caso das personagens negras Zilda (empregada
doméstica) e Luciana (Camila Pitanga), uma médica negra que era paquerada e se
137
envolveu, ao longo da trama, com cirurgião chefe da equipe médica, um homem branco
de meia idade (José Mayer). A novela explorou a mulher negra como alvo de assédio
sexual no ambiente de trabalho, seja em profissões desprestigiadas ou elitizadas. A
questão do fetiche interracial esteve fortemente presente na trama, mormente em torno
destas personagens.
A novela Cabloca (Rede Globo, 18hrs, 2004), escrita por Edilene e Edmara
Barbosa, abordou como a negra pode fazer uso da sensualidade para conseguir um
conquistar um marido. A personagem negra Ritinha (Aisha Jambo) era uma mucama e
fiel confidente da patroa Bellinha (Regiane Alves). Ritinha usava sua beleza e
sensualidade como estratégia para conquistar vários pretendentes.
Por isso era
disputada pelo branco Chico da Venda (Cláudio Galvan), que trabalhava em um bar, e
pelos negros Nastácio (Cosme dos Santos), que era motorista, e Zaquel (Alexandre
Rodrigues) que era proprietário de uma venda.
Foto 72-Personagem Ritinha
Fonte: Rede Globo, 2004
Silvio de Abreu, em Belíssima, explorou a estereotipia em torno da beleza e
sensualidade da mulher negra, por meio da personagem Mônica (Camila Pitanga), uma
empregada doméstica, que morava no quarto dos fundos da casa da patroa branca, e
criava o afilhado branco. Mônica recebia um dinheiro da mãe branca do garoto para
cuidar dele, mas se apegou, como mãe, à criança. Considero que a personagem reforçou
o estereotipo da mãe negra. Monica tinha um irmão e um pai retratados na trama, mas
ambos eram brancos e tinham pouca interação com ela. Ao longo da trama, se envolveu
com dois homens brancos de situação financeira melhor do que a dela, Alberto
(Alexandre Borges) e Cemil (Leopoldo Pacheco) encenando assim, o estereótipo da
cinderela negra, que ascende socialmente com o casamento com um homem branco.
138
Foto 73- Personagens Cemil, Mônica e Alberto.
Fonte: Rede Globo, 2005.
Miguel Falabela na novela Aquele Beijo (Rede Globo, 19hrs, 2010), também
apresenta de forma romanceada a figura da negra como uma Cinderela à espera do
príncipe branco. Este folhetim materializou a novela do dramaturgo que mais inseriu
personagens negros, totalizando 10. A personagem negra que teve mais destaque na
trama foi Sarita (Sharon Menezzes). Os demais personagens negros circundavam em
torno dela. Sarita era estudante de direito e trabalhava em um salão de beleza,
alternando as funções de manicure e cabeleireira. Era líder comunitária do bairro Covil
do Bagre localizado na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo da trama, Sarita
se apaixonou e se casou com um homem branco rico, com o dobro de sua idade, o
personagem Alberto (Herson Capri). Este casal adotou a menor abandonada negra, Cleo
(Duda Costa), que morava em um orfanato e só tinha como amigo um menino branco,
que também foi adotado pelo casal citado.
Foto 74-Personagens Sarita e Alberto
Fonte: Rede Globo, 2010.
Sarita era irmã de Marisol (Mary Sheila), uma costureira que era explorada pelos
patrões brancos Locanda (Stela Miranda) e Felizardo (Diogo Vilela). No desfecho da
novela, Marisol se torna uma estilista de sucesso e se casa com um modelo negro
nigeriano, no último capitulo da novela. Sarita e Marisol, quando crianças haviam sido
abandonadas pela mãe, Diva (Elisa Lucinda), que partiu para se prostituir na Europa.
Diva, uma ex-prostituta, ex-presidiária, ladra, assassina, inescrupulosa, que tramou a
morte da irmã, Deusa (Zezeh Barbosa) para usurpar seu dinheiro.
139
Foto 75-Personagens Diva e Marisol
Fonte: Rede Globo, 2010.
Deusa era uma ex-prostituta, que regressou ao Brasil após 20 anos, como uma
rica condessa. A personagem utilizava lente de contato azul e variadas perucas para
compor seu visual. Antes de partir para se prostituir na Europa, abandonou, ainda
criança, a filha Grace Kelly (Leilah Moreno). Esta, por sua vez, não se dava bem com as
primas Sarita e Marisol, e morava com Eveva (Maria Gladys) uma velha amiga de sua
mãe Deusa.
Foto 76-Personagem Deusa
Fonte: Rede Globo, 2010.
Grace Kelly era uma negra que pintava o cabelo de loiro. Trabalhava como
funcionária de uma rede de lojas, era muito ambiciosa, não tinha escrúpulos em fazer
qualquer coisa para melhorar de vida e conseguir dinheiro. Desprezava o amor
oferecido pelo personagem negro Cabo Rusty (Jorge Maya), um policial analfabeto.
Conseguiu ser promovida a gerente ao se aliar com a vilã branca Maruschka (Marilia
Pera) contra os interesses da comunidade em que vivia. Grace Kelly se uniu a sua tia
Diva, em torno do plano de assassinar sua mãe Deusa, e ficar com o seu dinheiro. Deusa
sobreviveu à tentativa de assassinato e Grace Kelly e Diva foram presas. No final da
novela, quando Grace obteve novamente a liberdade, passou a trabalhar como prostituta.
140
Foto 77-Personagens Deusa, Diva e Grace Kelly.
Foto: Rede Globo, 2010.
Explorando novamente o humor, a novela trouxe o casal formado pelos
personagens negros, Taluda (Priscilla Marinho) e Herondi (Jhama). Taluda era uma
empregada doméstica obesa e com apetite insaciável. Era muito dedicada aos patrões
brancos, que se divertiam com o comportamento engraçado de Taluda. Já Herondi era
um produtor de filmes pornográficos, que após se casar com Taluda, abriu sua própria
produtora de filmes com conteúdo sexual explícito, explorando exclusivamente o
fetiche com mulheres obesas.
Foto 78-Personagens Taluda e Herondi.
Fonte: Rede Globo, 2010.
A novela trouxe ainda a personagem negra Bernadete (Karin Hils), uma
cabeleireira que se envolveu e teve um filho com o advogado branco Ricardo (Frederico
Reuter). Dalva (Mariah da Penha) era uma dedicada funcionária do orfanato sediado na
comunidade Covil do Bagre e tratava todas as crianças abrigadas no orfanato como se
fossem seus filhos.
Dos dez personagens negros da novela Aquele Beijo, oito eram mulheres, que
em moldes coloniais, encenavam todos os estereótipos acerca da idéia de mulher negra.
O estigma da hiperssexualização esteve fortemente presente, inclusive com enfoque
para a mulher negra como exótica e pitoresca, como foi o caso da personagem Taluda.
Três destas mulheres estabeleceram a prostituição como atividade profissional e duas
delas eram como criminosas e assassinas condenadas. A trama apresentou as famílias
141
negras como desestruturadas, focando contextos de crimes, vulnerabilidade e
marginalidade social.
No folhetim Négocio da China (Rede Globo, 18 hrs, 2008), Miguel Falabela
inseriu três personagens negros. O enredo desta trama era ambientado em um contexto
de migração entre Brasil, China e Portugal. Aborda a apropriação da cultura chinesa
pelo Brasil, sendo que os pontos de convergência dos personagens se processava no
fictício bairro Parque das Nações, localizado no subúrbio da cidade do Rio de JaneiroRJ. Nesta novela, os três personagens negros concretizavam propostas de sujeito negro,
instituídas pelo padrão das relações coloniais.
A personagem negra Semíramis (Zezeh Barbosa) era uma antiga funcionária de
uma padaria, que mantinha por muitos anos um relacionamento secreto com seu patrão
branco e português Belarmino (Joaquim Monchique). Por conta do romance entre os
dois, Semíramis tinha mais regalias no ambiente de trabalho do que os demais
funcionários. Usava como trunfo para pressionar o amante e patrão o filho que tiveram
juntos, Tamuz (Ernesto Xaiver), que não foi assumido pelo português. Belarmino temia
que o romance com Semíramis, bem como a existência do filho já adolescente, fruto
desta relação, fossem descobertos por sua esposa branca Carmubda (Carla Andrino).
Foto 79-Personagens Semíramis e Belarmino
Fonte: Rede Globo, 2008.
A relação entre Semíramis e Belarmino fazia uma clara alusão às relações entre
escravas e seus senhores no período colonial, retratadas em muitas obras literárias
brasileiras, nas quais os favores sexuais das escravas, segredos que partilhavam com
seus patrões e filhos em comum, eram moedas usadas por estas para escapar do tronco,
ter atenuada sua jornada de trabalho, obter alguma garantia para seus filhos, e também
conseguir se impor diante dos outros escravos. Ressalto que a novela retratou no
personagem negro Tamuz, filho de Semíramis e Belarmino, o drama dos filhos de
escravas que figuravam como mães solteiras, pois não eram assumidos por seus
respectivos pais brancos, casados com mulheres brancas.
142
A estereotipia acerca do corpo negro acarreta uma construção da imagem do
negro e da negra hiperssexulizados. Este processo pode estabelecer uma armadilha que
reduz este/esta negro/ negra a uma existência circunscritos unicamente aos domínios da
sexualidade.
A estereotipia da hipersexualidade da mulher negra foi explorada de forma
exponenciada na novela Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007). Neste folhetim, o
novelista Gilberto Braga apresentou nove personagens negros. Destes, Bebel (Camila
Pitanga) teve a maior carga dramatúrgica. O destaque obtido por esta personagem a fez
estampar a capa do CD que trazia a trilha sonora internacional da novela.
Foto 80- Capa da Trilha Sonora Internacional da novela Paraiso Tropical
Fonte: Globo/Somlivre, 2007.
Bebel (Camila Pitanga) era uma prostituta baiana e ambiciosa, que migra para a
cidade do Rio de Janeiro. Explorada por um cafetão branco, conseguiu conquistar um
cliente branco e rico, Olavo (Wagner Moura), por quem se apaixona e é correspondida,
se tornando uma prostituta exclusiva de Olavo. Em diversas cenas Olavo referia-se ao
alto poder de sensualidade que a cor morena conferia a Bebel, afirmando que era
impossível resistir sexualmente a ela. Olavo agia como se fosse apaixonado por Bebel,
tirando-a da prostituição, mas sentia vergonha dela, evitando aparições públicas em sua
companhia e a assumir namoro ou qualquer compromisso com ela.
Foto 81-Personagens Bebel e Olavo Novaes.
Fonte: Globo, 2007.
143
Olavo foi noivo de duas mulheres brancas e só não se casou com nenhuma delas
porque Bebel armou situações que faziam com que as noivas rompessem o noivado.
Bebel se envolveu com outros homens brancos, utilizando seu corpo e sensualidade.
Quando ficou grávida, Olavo armou um plano para que Bebel mantivesse relações
sexuais com seu tio milionário, para que este viesse a assumir a criança, deixando Bebel
rica, para que Olavo desfrutasse da fortuna. Bebel era identificada na trama como
morena ou mulata e sua maior aspiração na vida era ser amante “fixa” de um homem
branco e rico. Após a morte de Olavo, Bebel se envolveu com um Senador da
República. Sua última cena foi depondo em uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
Esta personagem teve uma repercussão não prevista pelo autor da novela. Este papel
seria vivido originalmente pela atriz branca Mariana Ximenes, cuja recusa, permitiu que
Camila Pitanga desse vida à personagem Bebel.
Outro personagem negro que teve uma significativa carga dramática na trama foi
Evaldo (Flavio Bauraqui), um designer de jóias, alcoólatra, que por ser negro não
consegue encontrar lojas dispostas a comercializar seus produtos. Ao solicitar a uma
personagem branca, a vilã da trama, Thaís (Alessandra Negrini) que negocie as jóias
como se fossem produzidas por um artista italiano, é lesado em todas as negociações.
Foto 82-Personagem Evaldo
Fonte: Globo, 2007.
Evaldo recebia somente o apoio da namorada Eloisa (Roberta Rodrigues), uma
garçonete de bom caráter e muito trabalhadora, que não aceitava ver o namorado ser
explorado por Thais e a enfrentava.
144
Foto 83-Personagem Eloisa
Fonte: Globo, 2007.
Em uma cena, Evaldo após ser curado do alcoolismo, reformula seu guardaroupa, corta seu cabelo rastafári e sua namorada alisa os cabelos num processo conjunto
de “higienização”, nos termos de Peter Fry (1982), visando uma imagem de maior
credibilidade para conseguir contatos com lojas que vendam suas peças. Evaldo foi
morto acidentalmente por Thaís, após uma discussão.
Foto 84-Personagens Evaldo e Eloisa após “banho de loja”
Fonte: Globo, 2007.
Já a personagem negra Tatiana (Lidi Lisboa), só estava na trama em função de
personagens brancos. Enunciada no enredo como uma jovem desempregada que
recebia do cafetão Jader (Chico Diaz) inúmeros convites para se prostituir. Era amiga de
Bebel e namorava um personagem branco, Ivan (Bruno Galiasso), que a chamava de
“Minha Neguinha”. Esse namoro desagradava a mãe do rapaz, Marion Novaes (Vera
Holtz). O personagem Ivan morre nos últimos capítulos da novela, e a última aparição
de Tatiana foi ao lado do namorado quando este morre baleado.
Foto 85- Personagens Tatiana e Ivan
Fonte: Globo, 2007.
145
A novela trouxe ainda as personagens negras Cristina (Nivia Helen) e Zoraide
(Thais Garayp) que trabalhavam como arrumadeira e cozinheira, respectivamente, na
casa do milionário Antenor Cavalcanti (Tony Ramos). Só apareciam em cenas servindo
os patrões, ou comentando a vida destes. Embora figurasse com uma secretária de luxo,
a personagem Ivone (Ildi Silva) tinha a mesma composição dramatúrgica das
personagens que figuravam como empregadas domesticas, pois grande parte de suas
cenas eram
secretariando o executivo branco Daniel Bastos (Fábio Assunção),
protagonista da trama.
Foto 86-Personagens Ivone e Daniel.
Fonte: Globo, 2007.
Também com um perfil subserviente, o personagem negro Claudio (Jonathan
Haagensen) que era um assistente fiel da promoter da branca Marion Novaes (Vera
Holtz), mulher de meia idade em declínio financeiro, que sobrevivia de golpes. Cláudio
fazia tudo que a patroa branca mandava, independentemente de ser algo lícito ou não,
atuando com um capataz de terno e gravata. A novela trouxe ainda o personagem
Paulão (Babu Santana) que apareceu em algumas cenas como um criminoso altamente
venal e sem escrúpulos.
Foto 87-Personagem Claúdio
Fonte: Globo, 2007.
Embora Paraíso Tropical tenha apresentando nove personagens negros, apenas a
personagem Bebel teve participação em todos os capítulos. A imagem de negro
veiculada neste folhetim remeteu à hiperssexualização da morena/mulata prostituta, e
146
para negros como empregados fieis e devotadas aos patrões, que não tiveram suas
famílias retratadas na trama.
A hiperssexualização da negra foi explorada no enredo de outra novela de Glória
Perez, Caminho das Indias (Rede Globo, 21hrs, 2009). Nesta trama, a negra Suellen
(Juliana Alves), era descrita na sinopse do enredo como sendo uma moça bonita,
simpática e de bom caráter. Suellen trabalhava como garçonete em uma pastelaria e,
apesar de trabalhar duro, estava sempre disposta para dançar na gafieira do bairro de
periferia em que morava. Ao longo da novela se envolveu com um homem branco mais
velho, com o triplo de sua idade, o psiquiatra Dr. Castanho, que adorava vê-la dançar.
Os dois se casaram no final da novela.
Foto 88-Personagens Dr. Castanho e Suellen
Fonte: Rede Globo, 2009.
A novelista Glória Perez também utilizou a estereotipia em torno de uma suposta
hiperssexualidade da mulher negra como um forte ingrediente na novela Salve Jorge
(Rede Globo, 21hrs, 2012). Este folhetim, que tinha a parte central de sua trama
ambientada em uma favela, seguiu a tendência dos folhetins da dramaturga em abordar
outra cultura em contraposição à brasileira. O enredo se construiu no intercruzamento
de relações de personagens situados na Turquia e na cidade do Rio de Janeiro. Abordou
a temática do tráfico internacional de pessoas para fins sexuais. A narrativa era centrada
na protagonista Morena (Nanda Costa), uma moradora da favela do Alemão, situada na
capital carioca. Morena tinha esperança de trabalhar fora do país e, por isso, acabou
sendo alvo de uma quadrilha especializada tráfico humano. Esta protagonista, embora
tivesse o nome Morena, foi vivida por uma atriz branca. Ademais, apesar da narrativa
estar centrada em uma favela, que é um espaço no Brasil predominantemente ocupado
por negros, no folhetim é a saga de um branco morador de favela que efetiva a trama
principal. No total foram apresentados sete personagens negros, dos quais cinco eram
moradores de favela, uma era da zona sul carioca e outra era uma prostituta alvo de uma
quadrilha de tráfico internacional de pessoas.
147
Dentre os negros moradores da favela destaco Maria Vanúbia (Roberta
Rodrigues), que não tinha profissão definida, gostava de dançar e sonhava com carreira
internacional como dançarina. Era chamada de “periguete” pelos demais personagens,
por se oferecer para homens casados e brigar com suas esposas. Na maioria de suas
cenas aparecia de biquíni tomando sol na laje de sua casa, provocando homens
comprometidos, fazendo poses sensuais. Tinha um caso com um homem negro, casado
com uma mulher branca, a quem sempre provocava na rua. No final da novela, iludida
com promessas de uma carreira no exterior, acabou sendo vitima do tráfico
internacional de pessoas, mas conseguiu escapar da quadrilha por se recusar a se
prostituir a todo custo. Acabou resgatada pela protagonista da trama que colaborava
com a Policia Federal. A personagem Vanúbia materializava a negra sensual que usa
seu corpo e beleza como capital para ser reconhecida e respeitada.
Foto 89-Personagem Vanúbia.
Fonte: Rede Globo, 2012.
A novela apresentou também o estereotipo do negro malandro, preguiçoso, e
indisposto ao trabalho e que explorava financeiramente a esposa branca, através do
personagem Pescoço (Nando Cunha), morador da favela, ex-traficante, e ex-presidiario,
que não queria trabalhar e por isso se fingia de doente. Tinha um romance tórrido com a
vizinha negra Vanúbia e era casado com uma mulher branca, a costureira Delzuite
(Solange Badim).
Foto 90-Personagens Delzuite e Pescoço.
Fonte: Rede Globo, 2012.
148
O estereótipo da negra invejosa e moralista era concretizado pela personagem
Diva (Neuza Borges), uma comerciante da favela do Alemão, dona de um bar, casada
com um homem branco, o personagem Clóvis (Walter Breda), a quem chamava
orgulhosamente de “marido”. Diva era fofoqueira, curiosa, e demonstra muito ciúmes
do marido branco. Esta personagem reproduziu, em certo sentido, outra personagem
vivida pela mesma atriz na novela América (Rede Globo, 21hrs, 2005): o mesmo nome
e perfil dramatúrgico, o mesmo discurso, utilizando o chavão “cala-te boca”.
Foto 91-Personagens Clóvis e Diva.
Fonte: Rede Globo, 2012.
Salve Jorge deu destaque, ainda, a personagem negra, Sheila (Lucy Ramos)
outra moradora da Favela do Alemão. Era amiga da protagonista branca, não tinha
profissão definida, batalhando ativamente por uma oportunidade de trabalho no exterior.
Colaborou com a Polícia Federal, servindo de isca para ajudar a investigar uma
quadrilha que atuava no ramo do tráfico internacional de pessoas para fins sexuais.
Foto 92-Personagem Sheila.
Fonte: Rede Globo, 2012.
O último morador da favela foi Sidney (Mussunzinho), estudante, neto de Diva e
Clóvis, que não teve seus pais retratados na trama e era criado pelos avós. Era ávido por
novos conhecimentos, ajudou a criar uma homepage e uma rádio na comunidade em que
vivia e apareceu em poucas cenas.
149
Foto 93-Personagem Sidney
Fonte: Rede Globo, 2012.
Ainda no núcleo situado no Brasil, a única personagem negra que não era
moradora da favela era Julinha (Cris Vianna), uma designer gráfica, moradora da zona
sul carioca, que dividia um apartamento com mais duas amigas brancas. Julinha gostava
de dançar e recebeu um convite de uma quadrilha de tráfico de pessoas para ser
dançarina/prostituta do exterior. Suas cenas se resumiam a acompanhar, como amiga, as
aventuras amorosas da amiga branca Èrica (Flavia Alessandra), antagonista romântica
da protagonista da trama. Nunca teve sua família retratada na trama. No inicio da novela
foi paquerada por Èlcio (Murilo Rosa), que se aproximou de Julinha para se vingar da
ex-namorada Èrica. Julinha em sua última cena, indicava que estaria de romance com
um militar branco.
Foto 94-Personagens Julinha e Élcio
Fonte: Rede Globo, 2012.
No núcleo localizado na Turquia, a personagem negra que integrou a trama foi
Sharon (atriz não identificada). Figurava como a única prostituta negra dentre um
grande grupo de garotas vitimas do tráfico internacional de pessoas e teve poucas cenas,
com limitadas falas.
No tocante ao homem negro, o culto a sua hiperssexualidade nas telenovelas
brasileiras começou a ser proposto no período que coincide com o debate em torno das
cotas raciais. A visibilidade que lhe é permitida nos folhetins etnografados primaram
por enclausurá-lo na idéia do “negão”, visibilizada através da imagem do homem negro,
alto e corpulento. O estereótipo da hipersexulização faz referência a ideia de que
homem negro teria um pênis maior do que de um homem branco, o que resultaria em
150
um maior apetite sexual, que tornaria o sujeito negro mais viril e, por isso, seria alvo do
fetiche sexual por parte de mulheres e homossexuais.
As características atribuídas ao homem negro, centradas no campo da
indisposição ao trabalho, da marginalidade, e da violência/criminalidade têm claras
referências nas relações coloniais, sugerindo que o homem negro teria uma “essência”
enquanto sujeito que seria incompatível com ideais de civilidade e comportamento do
colonizador europeu. Neste sentido foi recorrente nas tramas etnografadas a enunciação
de personagens negros como criminosos, ou como sujeitos venais, dispostos a fazer toda
espécie de serviço sujo para vilões brancos.
A estereotipia constituída em torno da hiperssexualidade do homem negro foi
amplamente destacada pela dramaturga Glória Perez na novela América (Rede Globo,
21hrs, 2005). Esta novela foi ambientada em três cidades, Rio de Janeiro, Miami (EUA)
e na fictícia Boiadeiros, situada no Estado de São Paulo. A trama era contextualizada na
temática dos rodeios, no cotidiano de um bairro da periferia carioca e na imigração
ilegal para os Estados Unidos da América. Discutiu, ainda, cleptomania, pedofilia e
inclusão de sujeitos com necessidades especiais. Mobilizou seis personagens negros,
sendo que apenas três eram fixos e apareciam em quase todos os capítulos.
O personagem negro que teve mais destaque na trama foi Feitosa (Ailton Graça),
motorista, segurança e mestre sala de uma escola de samba. Tinha um romance tórrido
com a loira Islene (Paula Burlamaqui), chegou a se casar com uma falsa religiosa
Creuza (Juliana Paes), também branca, por determinação de sua mãe Diva (Neuza
Borges), mas terminou a trama ao lado da loira Islene.
Foto 95- Personagens Islene, Feitosa e Diva
Fonte: Rede Globo, 2005.
A relação entre Feitosa e Islene explorou um suposto fetiche interracial
configurado pela relação entre um homem negro e uma mulher loira. Com o
personagem Feitosa a autora explorou o estigma da hiperssexualização, referendando a
beleza a virilidade do homem negro. Feitosa teve direito a uma canção na trilha sonora
151
da novela, a música “meu ébano”, escrita pelo compositor Nenéo (Nome artístico de
Nelson de Morais Filho) e cantada por Alcione:
É você é um negão de tirar o chapéu!
Não posso dar mole senão você, creo
Me ganha na manhá e papau leva meu coração
É, você é um ébano lábios de mel
Um príncipe negro feito a pincel
É só melanina cheirando a paixão
É, será que eu cai na sua rede ainda não sei
Sei não, mas to achando que já dancei
Na tentação da sua cor
Pois é, me pego toda hora querendo te ver
Olhando pras estrelas pensando em você
Negão eu to com medo que isso seja amor
Moleque levado sabor de pecado menino danado
Fiquei balançada confesso quase perco a fala
Com seu jeito de me cortejar, que nem mestre sala
Meu preto ritinto malandro distinto
Será que é instinto, mas quando te vejo
Me enfeito, me vejo - retoco o batom a sensualidade
Da raça é um dom é você meu ébano e tudo de bom.
ah molequeee!!
A música embalava as cenas em que Feitosa aparecia contracenando com as
mulheres brancas com que se envolvia ou quando era desejado por outras mulheres ou
pelo personagem gay Júnior (Bruno Gagliasso) e reforçava o estigma da
hiperssexualidade do negro. A letra faz clara alusão a cor negra como um elemento que
define sensualidade e pecado. Feitosa era filho da personagem negra, Diva (Neuza
Borges), dona de casa super protetora do filho, moralista, fofoqueira, invejosa e
controladora da vida dos vizinhos. A questão da discriminação racial foi abordada no
contexto da relação de Feitosa como motorista da personagem branca, Haidê (Cristiane
Torloni), que sofria de cleptomania e roubava compulsivamente objetos das lojas. Em
uma cena Feitosa, que carregava a bolsa da patroa, foi acusado de roubo, o que levou o
esposo de Haydée a demití-lo.
A novela trouxe ainda o personagem Farinha (“Mussunzinho”), que era
inicialmente um menino de rua, recolhido e criado pelo personagem branco Gomes
(Walter Breda), um ex-soldado, tradicional e moralista. Gomes abrigou o menino por
ser seu filho bastardo, de um relacionamento extraconjugal que teve com Dalva
(Solange Couto), uma artista, classificada na trama como mulata sensual, que
abandonou o filho, para tentar carreira como dançarina/prostituta no exterior.
152
Foto 96-Personagem Dalva e Farinha
Fonte: Rede Globo, 2005.
A personagem negra com menos destaque na trama foi Drica (Cris Vianna),
dançarina e cantora de boate, imigrante ilegal nos EUA, amiga da protagonista branca.
Houve a participação especial, em poucos capítulos, da atriz negra Tais Araujo,
interpretando Nossa Senhora Aparecida, a Santa católica, considerada por estes a
padroeira do Brasil, que aparecia para abençoar o protagonista branco da trama, o peão
de rodeios Tião (Murilo Benicio).
Foto 97- Atriz Negra representando Nossa Senhora Aparecida.
Fonte: Rede Globo, 2005.
O culto a uma suposta virilidade do homem negro,
feito com forte apelo
cômico, foi proposto pelo novelista Walcyr Carrasco no folhetim Caras e Bocas (Rede
Globo, 19hrs, 2009). A novela explorou a questão do estigma da hiperssexualidade do
homem negro por meio do personagem Caco (Rafael Zulu). Este no inicio da trama
trabalhava como guia turístico de safáris na Àfrica do Sul, quando retornou ao Brasil foi
trabalhar em uma ONG que defendia os animais. Posteriormente, estimulado por um
amigo fotógrafo, começou a fazer trabalhos como modelo. Quando Caco sua
namorada/esposa branca Láis (Fernanda Machado) faziam sexo, o vigor sexual de Caco
era tanto, que chegava a provocar terremotos na casa em que moravam, todos os demais
moradores da casa (familiares de Láis sentiam literalmente a casa “tremer” quando o
casal praticava relações sexuais). O estereótipo do negro como suspeito de ser um
153
criminoso em potencial, também foi retratado na novela por meio do personagem Caco.
Em uma cena, quando o negro fica a espera, tarde da noite, dos proprietários de uma
frutaria para comprar uma melancia para atender ao desejo da esposa branca gestante,
foi confundido com um assaltante, mesmo estando “bem vestido”, sem portar armas e
perguntando, calmo e educamente, pela possibilidade de conseguir a fruta para a esposa.
Ao final da cena Caco, depois de se desculpar e se justificar consegue, sob o clima de
desconfiança dos donos da frutaria, a melancia para Láis.
Foto 98-Personagens Caco e Láis
Fonte: Rede Globo, 2009.
O estereótipo de hiperssexualização pode conferir um suposto status positivo
para negros/negras, entretanto este processo instaura um mecanismo que os desumaniza
reduzindo-os a meros objetos sexuais. No contexto da experiência brasileira das
relações coloniais esta estereotipação da hiperssexualidade em torno dos corpos do
negro e da negra é fomentada pelo culto a mestiçagem. O processo de mestiçagem entre
negros e brancos propiciou no Brasil a construção social da idéia mulata/mulato.
Gobineau (1853), um dos primeiros estudiosos a iniciar uma investigação sobre
o processo de mestiçagem, afirmava em seus estudos que os negros e amarelos seriam
mais favorecidos do que os brancos no que concerne ao exercício da sensualidade.
Sobre a mulata especificamente, Correa (1996, p. 50) acredita que esta enquanto
construção social, se tornou alvo do desejo masculino branco, fetiche este que também
pode mascarar a rejeição a negra preta.
A telenovela enquanto representante de um habitus cultural tende a retratar o
fetiche interracial. Este contexto foi amplamente explorado, por exemplo, no enredo do
folhetim Porto dos Milagres (Rede Globo, 21hrs, 2001), uma livre adaptação de duas
obras de Jorge Amado: Mar Morto e A Descoberta da América pelos Turcos. A trama
era ambientada em uma cidade fictícia, Porto dos Milagres, localizada na Bahia, Estado
que segundo IBGE (2010) apresenta proporcionalmente, o maior contingente de
população negra do país. Entretanto, dos cinquenta e um personagens arrolados nesta
154
trama, apenas quatro eram negros: três mulheres e um homem. Estes personagens
negros tiveram significativo destaque na trama, tendo uma estória própria dentro do
enredo do folhetim.
A personagem negra que teve mais destaque foi Esmeralda (Camila Pitanga),
uma mulher sensual, que adorava ser admirada e desejada pelos homens, sem profissão
definida no enredo. Cresceu apaixonada pelo protagonista da novela, o personagem
Guma (Marcos Palemeira) que logo no início da trama se apaixona pela personagem
Lívia (Flávia Alessandra), loira. Esmeralda, reiteradas vezes, usou sua sensualidade para
seduzir Guma, fazendo com que ele viesse por isso a se afastar temporariamente de
Lívia. Uma forma de preconceito “às avessas” de negro para com brancos, foi veiculada
nos discursos da personagem Esmeralda, que se referia a Lívia e a outras mulheres
brancas como “branca azeda”. A personagem Esmeralda era invejosa e figurava
encarnando o estereótipo da hiperssexualização da mulher negra e seus capitais eram
reduzidos ao seu corpo e beleza.
Foto 99- Personagem Esmeralda
Fonte: Rede Globo, 2001.
Outra personagem negra da trama em foco foi Mãe Ricardina, vivida por Zezé
Motta, atriz negra que representava uma mãe de santo, tia de Esmeralda. Ricardina era
ialôrixa, responsável pelo terreiro de Yemanjá, divindade cultuada pelo núcleo de
personagens que vivia da pesca. As cenas desta personagem se restrigiam a sua atuação
como sacerdotisa, conselheira de alguns personagens, como uma grande mãe, sem que
sua dimensão pessoal e familiar fossem abordadas. Assim, esta personagem encena o
estereotipo da mãe negra, perpetrada pela figura da ama negra (escrava que amamentava
os filhos do patrão no período escravagista). Esta personagem tinha embates com a
personagem Augusta Eugenia (Arlete Sales), que era uma defensora da religião católica.
155
Foto 100- Personagem Mãe Ricardina
Fonte: Rede Globo, 2001.
Outra personagem negra da telenovela em questão foi a prostituta Selminha
Aluada (Taís Araujo). Uma moça que freqüentemente se apaixonava por seus clientes
brancos e passava a enxergá-los como príncipes encantados. Esta personagem encena o
estereótipo da Cinderela negra, que sonha em ser aceita e desposada por um homem
branco, com ares de nobreza.
Foto 101 – Personagem Selminha Aluada
Fonte: Rede Globo, 2001.
O último personagem negro da trama em questão era Rufino, vivido pelo autor
negro Sérgio Menezes. Na trama Rufino era um pescador, amigo do protagonista da
trama, Guma, que era branco. Rejeitava a irmã Selminha pelo fato desta trabalhar como
prostituta. Era apaixonado por Esmeralda, que só tinha olhos para Guma. Somente no
final da novela Esmeralda desistiu de Guma e aceitou o amor que Rufino lhe devotava.
156
Foto 102- Personagens Mãe Ricardina e Rufino
Fonte: Rede Globo, 2001.
As propostas de sujeito negro construídas por Aguinaldo Silva no folhetim Porto
dos Milagres (Rede Globo, 21hrs, 2001) retratam quatro estereótipos: a mãe de santo,
uma típica mãe preta do candomblé baiano; duas negras com forte apelo sensual;
legitimando o estigma da hipersexualização da negra; sendo uma delas (Selminha)
prostituta, que buscavam seus respectivos príncipes brancos e o homem negro que luta
pelo amor de uma mulher negra que é apaixonada por um homem de pele clara.
Já o folhetim Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2007) também escrita por
Aguinaldo Silva, tinha trama situada na fictícia favela da Portelinha, referenciada na
cidade do Rio de Janeiro-RJ e em outro núcleo elitizado, que fazia referencia a zona sul
da capital carioca. Dentre as novelas analisadas, Duas Caras se destaca como a que
mais inseriu personagens negros, totalizando vinte.
Dentre os personagens negros, Evilásio Caó (Lazaro Ramos) obteve mais
destaque. Era assessor e afilhado do líder da Associação de Moradores da favela, o
personagem branco Juvenal Atena. Evilásio tinha status de galã, e inclusive estampou, a
capa do CD com a trilha sonora da novela. Foi a primeira vez que isso ocorreu em CD
de folhetim de novela da Rede Globo.
Foto 103- Capa da trilha sonora da novela Duas Caras.
Fonte: Globo/Som Livre, 2008.
157
Evilásio se envolveu com duas mulheres brancas, que em muitos discursos
destacavam a virilidade sexual do personagem negro. A primeira foi Guigui (Marilia
Gabriela), uma mulher 20 anos mais velha, intelectual, pertencente a elite paulista, que
estava refugiada há anos na favela em que Evilásio morava. A segunda, com quem teve
um final feliz foi a personagem branca Júlia Barreto (Debora Falabela), jovem da elite
carioca, cujo pai, o advogado Barreto (Stenio Mendonça), não aceitava o
relacionamento, pelo fato de Evilásio ser negro e morador de favela. Evilasio, com
apoio de Júlia, foi eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro.
Em uma cena de jantar da família de Júlia para apresentar Evilasio, este foi
insultado por discordar de Barreto (Stênio Garcia), que por esse motivo o chamou de
“favelado, preto sujo e crioulo metido a besta”. Na ocasião, um dos convidados, um
personagem branco e judeu, que também se identificou como um sujeito alvo de
processos discriminatórios, desaprovou o comportamento discriminatório de Barreto,
alegando que os negros haviam contribuído muito para a história do Brasil, citando
exemplos na música, na culinária e nos esportes. Os demais personagens demonstraram
preocupação com as repercussões que acusações discriminatórias trariam para a carreira
do renomado advogado, mais do que com a questão racial no Brasil.
Foto 104 -Foto dos personagens Evilásio e Júlia
Fonte: Rede Globo, 2008.
Destaco que as cenas do romance interracial entre Evilásio e Julia acentuavam o
fetiche da relação entre um homem negro e uma mulher branca. Os personagens
proferiam discursos que enfatizavam o quanto era apimentada a vida sexual do casal.
Os dois se chamarem na intimidade de “minha branquinha” e “meu negão”. Evilásio
era filho de Misael (Ivan de Almeida), um carpinteiro, viúvo, melhor amigo de Juvenal
Antenas (Antonio Fagundes). No final da trama, se casou com uma mulher branca, a
francesa Claudine (Thaís de Campos).
158
Foto 105-Personagens Misael e Claudine
Fonte: Rede Globo, 2008.
Gislaine (Juliana Alves), filha de Misael e irmã de Evilásio, não tinha
profissão identificada. Era rainha de bateria de escola de samba da favela em que
morava, não gostava de estudar e era apaixonada por bailes funks. Ao longo da novela
se envolveu e se casou com o personagem branco Zidane (Guilherme Duarte). Embora
no final da novela, tenham sido contemplados com romances interraciais, no início da
trama os discurso dos personagens Misael (Ivan de Almeida) e Gislene (Juliana Alves)
defendiam a premissa de que negros somente deviam desenvolver relacionamento
afetivo com outros negros. No capítulo que foi ao ar no dia 02/01/2008, a personagem
Gislene afirmou que sua mãe, já falecida, se “revolveria no tumulo se tomasse
conhecimento que seu pai está se envolvendo com uma mulher branca”.
Foto 106-Personagens Gislane e Zidane
Fonte: Rede Globo, 2008.
A questão do racismo também foi abordada por meio da personagem
Sabrina (Cris Vianna), uma empregada doméstica, assediada sexualmente pelo
personagem branco Barretinho (Dudu Azevedo), filho do patrão. A mãe de Barretinho,
a personagem Gioconda (Marília Pera) justificava o encantamento do filho pela
empregada negra, alegando que ele tinha uma “grande queda por afro-descendentes”.
159
Ao longo da trama, Barretinho demonstrou que sentia mais do que atração física pela
empregada, declarando seu amor, e pedindo-a em casamento. Sabrina, entretanto, não
aceitou inicialmente, alegando já ser noiva de outro e recusava novas investidas de
Barretinho, declarando que jamais se casaria com um homem branco, pois isto iria
“Enralecer seu sanuge”. Neste ponto, o autor da trama explorou uma controversa idéia
de discriminação racial às avessas, mostrando negros resistentes a se envolver
afetivamente ou sexualmente com brancos.
Após Barretinho sofrer um acidente por ter sido rejeitado, Sabrina é
aconselhada por seu pai, Celestino (Jorge Coutinho), a rever seus preconceitos e aceitar
o amor do homem branco, se ela de fato o amasse. Assim, Sabrina abandona Miguel
(Taiguara Nazaré) no altar e decide se casar com Barretinho. Após o casamento,
Barretinho se declara um branco que escolheu ser negro e se muda com a esposa para
África, aceitando uma proposta de trabalho na Nigéria.
Foto 106-Personagens Sabrina e Barretinho
Fonte: Rede Globo, 2008.
Outra personagem negra com destaque na trama foi Solange (Sheron
Menezes), uma estudante, filha de líder comunitário da favela, que não aceitava ser
negra e desejava se relacionar somente com homens brancos. Disputou com uma
personagem branca o amor do personagem branco Claudius (Caco Cioccler). Em uma
das cenas da novela, quando Solange foi questionada pela amiga Gislane se seu
namorado era bonito, Solange respondeu: “Claro que é bonito, ele é branco”. Solange
recusava ser categorizada como negra, retrucando para Gislane, ao ser classificada
como negra: “quem é negra aqui? Fale por você mesma Gislane e me tire dessa!”.
Solange defendia-se declarando: “eu sou morena, e morena clara!”. Com esta
personagem, Aguinaldo Silva fez uma sátira aos sujeitos negros insatisfeitos com sua
condição de negro.
160
Foto 107- Personagens Solange e Claudius
Fonte: Rede Globo, 2008.
A personagem Solange pode também ser enquadrada no estereótipo da Cinderela
negra. De igual forma, classifico a personagem Morena/ Condessa de Finzi-Contini
(Adriana Alves), uma ex-amante do personagem branco Juvenal Atena (Antonio
Fagundes). Morena havia sido empregada doméstica e ex-prostituta no exterior. Lá
conheceu e se casou com um Conde Italiano, banqueiro, que morreu, deixando-a
milionária. Quando retorna da Itália, decide ajudar sua antiga comunidade da Portelinha.
No final da trama, se casa com o mecânico negro Apolo (Antonio Firmino). Embora a
novela tenha exibido poucas cenas dos dois juntos, em uma delas a personagem fala
para seu companheiro que acha lindo a imagem do amor negro com negro, qualificando
a relação como “negros puros”.
Foto 108 - Personagens Morena/Condessa e Apolo
Fonte: Rede Globo, 2008.
A novela também reforçou a premissa de que as bases de discriminação do
negro não são raciais, mas de natureza econômica, na cena em que a personagem
Morena/Condessa Finzi Continni foi reverenciada até pelo personagem Barreto, que
assumidamente discriminava negros. Ao cumprimentá-la beijando-lhe a mão, Barreto
declarou que a Condessa é uma “linda negra de alma branca”.
A questão da negra hipersexualizada se fez presente, também, no folhetim
Duas Caras, por meio da personagem Andréia Biju (Debora Nascimento), empregada
doméstica, que também era madrinha de bateria da Escola de Samba da favela em que
161
morava. Muito sensual, se envolveu com dois homens brancos ao longo da trama,
Waterloo (Jackyson Costa) um capanga do vilão da trama, e o adolescente rico Petrus
(Sérgio Vieira). Andréia resistiu em substituir sua tia na função de mãe de santo no
terreiro em que freqüentava. Era irmã de Bijouzinha (Natasha Stramsky), uma
bordadeira que fazia curso supletivo a noite.
Foto 109- Personagem Andréia Bijou
Fonte: Rede Globo, 2008.
A personagem Setembrina ou “Mãe Bina” (Chica Xavier) era uma mãe de santo
que atuava na comunidade da Portelinha, sendo reconhecida como uma importante
liderança. Tinha dois filhos: Zé da Feira (Eri Jhoson), um pagodeiro, feirante, que tinha
problemas com alcoolismo e era casado com uma mulher branca, e Ezequiel (Flavio
Bauraqui), que personificava a imagem do negro submisso e sem história pessoal na
trama. Era um motorista, evangélico fanático, totalmente devotado à protagonista
branca, a quem Ezequiel julga ter recebido por missão espiritual a obrigação proteger e
servir, embora ela não fosse de sua mesma religião. Reitera o estereótipo do negro
mucamo, totalmente a serviço do branco. No final da trama se envolveu com uma
mulher branca.
Foto 110- Personagem Setembrina/Mãe Bina
Fonte: Rede Globo, 2008.
O personagem Rudolf Stenzel (Diogo Almeida), um universitário negro,
descendente também de alemão, era rico, de caráter dúbio, e sonhava ser uma liderança
para os jovens da faculdade particular em que estudava. Sem escrúpulos para alcançar o
que desejava, fez uma falsa acusação para se promover, sendo desmascarado pela jovem
162
branca e rica Ramona (Marcela Barrozo), por quem se apaixonou. Rudolf forjou uma
situação na qual se passou por vítima de discriminação racial para prejudicar o reitor de
sua universidade. Com esse personagem, o autor da novela tentou polemizar a questão
de que alguns negros exageram e estrategicamente se sentem eternamente vítimas do
racismo e da exclusão, e deliberadamente usam tal situação no afã de obter promoção
pessoal.
Foto 111- Personagem Rudolf
Fonte: Rede Globo, 2008.
A novela trouxe também cinco personagens negros que não tinham uma história
própria na trama, orbitando em torno de outros personagens. Foram papéis sem origens,
laços de parentesco, sem cenários próprios e que apareceram em poucos capítulos. Este
foi o caso de Vitória (Raquel Fiuna) enunciada como dançarina/prostituta que se
envolveu com um homem branco; Priscila (Luciana Barbosa), que quase foi alvo do
tráfico internacional de mulheres para fins sexuais; Josiane (Dani Ornelas), sem
profissão definida, que aparecia nas cenas em que o terreiro de Mãe Bina era mostrado;
Nanã (Teca Pereira) que desempenhava função de empregada domestica; e Brucelli
(Raphael Rodrigues), que era um universitário.
A novela endossou o mito da democracia racial brasileira, deslegitimando o
indicativo da existência da discriminação racial no Brasil, por intermédio do culto à
mestiçagem, construindo ao longo do enredo treze casais inter-raciais e apenas dois
envolvendo pares negros. Apenas um permaneceu junto até o desfecho da novela.
Destaco que dezenove dos vinte personagens negros eram moradores da favela,
entretanto o “líder” comunitário que a fundou e a administrava era o personagem branco
Juvenal Antena, que renunciou a estabilidade de seu emprego de carteira assinada para
apoiar e liderar os pobres, em sua maioria negros, que decidiram ocupar a área em que
fundaram a favela. Juvenal administrava a associação comunitária da favela como um
soberano, possuindo auxiliares e vassalos negros. Com este enunciado, a novela
163
legitimou a premissa de que até mesmo nos espaços mais populares como uma favela,
onde os sujeitos negros são maioria numérica, precisam ser tutelados por branco(s).
O jornal O Globo de 13 de janeiro de 2008, trouxe uma matéria intitulada
“Com mais espaço, mas ainda pobres”, em que abordava que a novela Duas Caras
concretizava a primeira novela, não épica, com um razoável número de atores negros.
Nesta matéria, o autor da trama foi questionado acerca do fato dos personagens negros
da trama serem moradores da favela ou empregados domésticos. Aguinaldo Silva reagiu
alegando que a construção destes personagens com a configuração de moradores de
favela e empregados domésticos foi proposital. “Preferi o mundo real ao idealizado.
Não que não haja famílias negras na classe média. Há, mas, nas novelas, quando elas
aparecem, têm todo o gestual de famílias brancas. Esse tipo de coisa não me
interessava” (SILVA, 2008, p.12).
A novela Fina Estampa (Rede Globo, 21hrs, 2011), também assinada por
Aguinaldo Silva, apresentou sete personagens negros. A que teve mais destaque foi
Dagmar dos Anjos (Cris Vianna), uma cozinheira que cria sozinha os dois filhos
adolescentes, fruto de relações com homens diferentes. Por isso, Leandro (Rodrigo
Simas) o mais velho era branco, e Leonardo (Victor David) era negro. Ao longo da
trama, Dagmar se envolveu com três homens brancos. Esta personagem encarnava a
estereotipia da sensualidade da mulher negra, em numerosos capítulos protagonizava
muitas cenas de nudez em que aparecia tomando banho de mangueira no quintal de sua
casa. O filho branco de Dagmar, Leandro se envolveu com negócios ilícitos e também
se prostituia. O fato de Leandro se prostituir desagravada muito Dagmar, que com a
ajuda do namorado branco, conseguiu regenerar o filho, inserindo-o no mundo da luta
livre. Já o filho negro de Dagmar, Leonardo, era muito estudioso e foi alvo de
discriminação racial quando ia estudar na casa do melhor amigo branco e rico, filho da
vilã branca da trama, a personagem Thereza Cristina (Cristiane Torloni).
164
Foto 112-Personagens Leonardo, Dagmar e Leandro.
Fonte: Rede Globo, 2011.
Fina Estampa explorou novamente o fetiche racial com ênfase numa certa
virilidade do homem negro por meio do romance entre o personagem negro Edvaldo
(Rafael Zulu) e a branca Glória (Mônica Carvalho). No enredo em questão Edvaldo era
um baiano que morava no Rio de Janeiro, onde trabalhava como um esforçado
mecânico de motos, que após muita dedicação e lealdade ao patrão branco, conseguiu
conquistar a confiança deste, realizou o sonho de ser gerente do local em que
trabalhava. Identifico, na carga dramatúrgica do personagem Edvaldo, o estereótipo de
um escravo leal, que tem que provar lealdade para conseguir o reconhecimento de seu
patrão e tem como indicativo de mudança de classe social o casamento com a mulher
branca.
Foto 113-Personagens Edvaldo e Glória
Fonte: Rede Globo, 2011.
A novela Três Irmãs (Rede Globo, 19hrs, 2008) de autoria do novelista Antonio
Calmon, também apostou no fetiche interracial para enunciar os personagens negros no
enredo do folhetim em questão. Esta trama era ambientada no fictício balneário de
Caramirim localizado no Estado do Rio de Janeiro. O autor trouxe quatro personagens
negros e inovou ao apresentar um par romântico formado pelos personagens negros
Janaína (Solange Couto) e Jacaré (Ailton Graça).
Janaina era uma mulher de meia idade, alegre, bonita, dona da pousada da região
que ambientava trama. Na juventude havia sido passista de escola de samba na cidade
do Rio de Janeiro. Apesar de ser uma mulher de personalidade forte, sentia-se insegura
165
porque seu namorado Jacaré ainda nutria uma paixão por uma atriz branca francesa
Sylvie (Antonia Frering) que havia conhecido no passado. O personagem Jacaré era um
pescador, totalmente indisposto ao trabalho, que ocasionalmente ajudava na
administração da pousada de propriedade de sua namorada. O perfil do personagem
Jacaré apresentado no portal Memória Globo (2014) define-o como “tipico malandro de
praia, gente boa”.
Foto 114-Personagens Jacaré e Janaína
Fonte: Rede Globo, 2008
Apesar de gostar da namorada negra, Jacaré ainda venerava a lembrança de uma
mulher branca e francesa, que era o grande amor de sua vida e era definida pelo
pescador negro como “A mulher mais linda que eu já vi na vida”. Jacaré colecionava
tudo que saía na impressa sobre Sylvie, que era uma artista francesa. Em uma
reportagem, leu que Sylvie mencionava seu desejo de retornar ao Brasil para
reencontrar uma antiga paixão, que pela descrição, seria a que havia vivido com o
pescador. O retorno de Sylvie fez com que Jacaré, sumariamente, abandonasse Janaína e
passasse a ter um romance com Sylvie. No Final da novela, Jacaré percebeu que o amor
pela negra Janaína era superior a paixão pela branca Sylvie. Assim o pescador que não
gostava de trabalhar, terminou o romance com a francesa e realizou o grande sonho
Janaína, que era casar vestida de noiva.
Foto 115-Personagens Sylvie e Jacaré
Fonte: Rede Globo, 2008
A proposta de negro/negra apresentada por Antonio Calmon, no folhetim Três
Irmãs, veicula a idéia de negro/negra no plano da subalternidade em relação ao branco.
166
Embora a novela tenha sido uma das poucas dentre as analisadas nesta pesquisa, que
apresentou um casal de personagens negros (Janaína e Jacaré), a veneração de Jacaré
pela personagem branca Sylvie fazia menção explícita a sua condição de européia e
branca, características estas que pesaram na decisão de Jacaré de romper com Janaina
quando Sylvie retornou.
Ainda sobre o personagem Jacaré, Calmon investiu no estereótipo do homem
negro malandro “gente boa”, indisposto ao trabalho e explorador financeiro da
namorada. A novela também reforçou, com este personagem, o estigma da
hiperssexualização do negro, por meio do encantamento de Sylvie por uma suposta
virilidade de Jacaré.
Fanon (2008) ao problematizar sobre as dimensões políticas e subjetivas das
relações interétnicas constituídas por relacionamentos seja entre a mulher negra e o
homem branco, ou o homem branco e a mulher negra, localiza a vigência do ideal de
embranquecimento como um agente propulsor do desejo interracial que é uma
construção social lastreada na colonização. Segundo o autor, o racismo desencadeia no
negro um desejo de embranquecer e ascender socialmente por meio de seus
descendentes. Assim, para o negro, o elo afetivo com o branco seria uma chave para
escapar da exclusão social. O homem negro percebe, no relacionamento com a mulher
branca, seu ingresso e permanência em uma sociedade branca. Da mesma forma a
mulher negra enxerga nos homens brancos a saída para conseguir gerar filhos mais
claros.
Essa lógica do embranquecimento está fortemente presente no folhetim Agora
que São Elas (Rede Globo, 18hrs, 2003) escrita por Ricardo Linhares. Nesta novela os
três personagens negros Vanusa, Rosemary e Wanderley eram irmãos e, ao longo da
trama, somente se interessaram por brancos. A personagem negra que obteve mais
destaque na trama foi Vanusa (Preta Gil), que não gostava de trabalhar, era extrovertida,
ambiciosa, sensual e muito vaidosa. Sonhava em conquistar um marido rico. Ao longo
da novela se envolveu com dois homens brancos, apontados por ela como bons partidos
por serem ricos, Bruno (Daniel Àvila) e Vitório (Paulo Vilhena).
Rosemary (Ildi Silva) era uma jovem esforçada, tímida, trabalhadora e uma
cristã que seguia fielmente os preceitos de sua religião. Fugia de relacionamentos
porque temia ser abandonada pelo marido, assim como a mãe havia sido. Rosemary
despertou interesse do personagem branco Vinícius (Rodrigo Prado).
167
Foto 116-Personagens Vanusa e Rosemary
Fonte: Rede Globo, 2003.
Na trama, Wanderley trabalhava como motorista e segurança e morava na casa
do patrão, Juca Tigre (Miguel Falabela), o vilão branco da novela. Era inconformado
com a condição econômica da família, era venal, culpava a mãe pelo fato do pai ter
abandonado a família e nutria uma paixão secreta pela filha branca do patrão, Sol
(Francisca Queiroz).
Alguns folhetins exploraram, com ares de amor platônico o encantamento de
negros para com brancos. Esta foi a enunciação da personagem negra Luciana (Lucy
Ramos) na novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs, 2008), escrita por Alcides
Nogueira. Luciana era uma funcionária obcecadamente apaixonada por seu patrão, o
personagem branco Dr. Daniel (Marcelo Antony). Luciana via em Daniel um príncipe
capaz de fazê-la feliz e por isso chegou ao ponto de renegar e abandonar os próprios
filhos, ainda pequenos, para poder se dedicar a tentar conquistar e perseguir a vida de
seu chefe. Luciana vivia rondando misteriosamente todos os lugares que Daniel
freqüentava. Daniel era o protagonista da trama e desprezava Luciana, porque amava
uma mulher branca.
O folhetim O Beijo do Vampiro (Rede Globo, 19hrs, 2002), escrita por Antonio
Calmon, abordou na enunciação dos personagens negros, predominantemente, o fetiche
interracial, através do amor platônico do negro pela branca e o fetiche interracial da
mulher negra em torno da suposta virilidade do homem negro. Esse folhetim era
ambientado na fictícia cidade de Maramores, situada no Estado do Rio de Janeiro. Na
trama havia uma disputa entre o bem o mal, sendo que se tornava do “mal” quem fosse
mordido por um vampiro, que se tornaria automaticamente um vampiro também. Neste
folhetim Calmon colocou três personagens negros que eram membros de uma mesma
família. A matriarca negra era Nadir (Zezé Motta),
uma empregada domestica,
considerada amiga e confidente da protagonista branca da novela, Lívia (Flavia
Alessandra). Nadir teve mais cenas aconselhando e participando dos dramas da
168
patroa/amiga branca, do que interagindo com seu ex-marido Pedrão/Godzila (Toni
Tornado) ou com seu filho Carlos (Sérgio Menezes).
O personagem negro Pedrão/Godzila era um bandido que tentou assaltar o
personagem Bóris (Tarsício Meira) que era um vampiro. Bóris o mordeu no pescoço,
“vampirizando-o”. Após se tornar um vampiro recebeu o apelido de Godzila “O
vampiro afro-brasileiro” e passou a servir a um capataz, o personagem vampiro branco
Bóris, a quem devotava uma lealdade canina. Outros personagens brancos também
foram “vampirizados”, mas não adotavam a mesma postura de Pedrão/Godzila, que agia
como um capataz e segurança de Bóris. A postura do personagem Pedrão/Godzila
expressava uma imagem do negro subalternizado, mesmo em um contexto fantasioso de
vampiros.
A novela explorou, também, por meio deste personagem a questão de uma
suposta virilidade do homem negro. Pedrão/Godzila tinha sua virilidade enquanto “afrobrasileiro”, cultuada por sua namorada, a personagem branca Dra. Vampretta (Rosane
Goffman) que era uma vampira branca que tinha fetiche sexual por homens negros.
Foto 117-Personagem Pedrão/Godzila
Fonte: Rede Globo, 2002.
A novela trouxe ainda o personagem negro Carlos (Sérgio Menezes), um médico
filho da personagem Nadir e de Pedrão/Godzila. Por ocasião da estréia da novela, foram
feitas algumas reportagens alusivas ao fato do personagem Carlos ser médico e negro,
pois até então, todas vezes que um personagem negro não figurava nos papeis
tradicionais de negros e escravos, geralmente havia, por parte do autor, a intenção de
discutir algo relacionado a discriminação racial.
O ator Sérgio Menezes, em entrevista a Revista Isto é Gente, em 23/09/2002, se
declarou entusiasmado com a possibilidade de interpretar um médico negro, encarando
o personagem como uma possibilidade de combater o preconceito: “Um dos maiores
prejuízos do nosso País foi o aspecto colonial, arcaico, mofado, que o português incutiu
169
sobre os negros. A gente vive o reflexo desse equívoco até hoje”, declarou. O ator, ao
ler a sinopse do personagem, declarou que considerava ser um avanço o fato do
personagem Carlos não representar um papel que costumava ser destinado a um ator
negro: “Quando li o roteiro da novela vi que o personagem poderia ser feito por
qualquer ator, eu, o Norton Nascimento ou o Murilo Benício, por exemplo”.
Carlos teve poucas cenas que retratavam sua relação com sua mãe Nadir, que
seguia trabalhando como empregada doméstica, enquanto ele era o único médico da
cidade, ou em que convivia com o pai, que era assaltante e posteriormente virou
vampiro, capanga de outro vampiro. Carlos nutria uma paixão platônica pela atendente
de seu consultório, que era branca, a personagem Ciça (Bianca Castanho). A novela não
fez nenhuma problematização no tocante a condição de negro do personagem, ou
mesmo da discriminação racial. Carlos, mesmo sendo um profissional bem sucedido, se
considerava inferior a mulher amada, vendo-a como uma mulher inatingível. Considero
que a construção do personagem transmitia, de forma subliminar, a mensagem de que o
fato de Carlos ser negro desautorizava-o a ser digno do amor de Ciça. Assim,
referendava a premissa instituída pelo discurso colonial no imaginário coletivo
brasileiro, de que o negro é inferior ao branco.
Quando começaram a surgir
personagens negros nas tramas, não mais restritos a papeis de escravos ou serviçais, era
possível preliminarmente embarcar em uma leitura de que o papel historicamente
condicionado ao personagem negro estaria sendo redimensionando. Entretanto, mesmo
enunciado como médico, o personagem Carlos, tinha o mesmo comportamento
submisso, tradicionalmente encontrado em grande parte dos personagens de escravos,
empregados domésticos e motoristas das telenovelas brasileiras das décadas anteriores.
A relação entre Carlos e Ciça pode ser classificada como o que Barros (2013)
nomina de Síndrome de Cirilo. Cirillo é um menino negro, personagem da novela
direcionada ao público infantil, Carrossel (SBT, 20hrs, 2012). Este folhetim é uma
versão brasileira da novela homônima produzida no México pela emissora Televisa em
1988. No enredo em questão, Cirilo é humilhado e rejeitado pelo fato de ser negro, por
Maria Joaquina, uma menina branca, rica e loira, por quem Cirilo é apaixonado. O
garoto negro se esforça para ser aceito pela menina branca, sofre muito com a rejeição
desta, mas não percebe como uma expressão de discriminação racial, simplesmente
introjeta acriticamente a premissa de que é inferior, e por isso indigno do amor de Maria
Joaquina.
170
Barros (2013) analisa que a relação entre Cirilo e Maria Joaquina detona toda
historicidade constituída em torno das relações amorosas entre homens negros e
mulheres brancas, mormente no contexto pós abolição da escravidão, pois estar com
uma mulher branca significa mudar de status, evoluir e ascender socialmente. Fanon
(2008) situa em pele negra, mas em mascara branca, o sujeito negro que é produzido no
contexto resultante da colonização, que preconiza a inferioridade do negro em face da
suposta superioridade do branco.
A“Síndrome de Cirilo” esteve presente na novela Sete Pecados (Rede Globo,
19hrs, 2007), escrita por Walcyr Carrasco. Nesta trama o personagem negro Barão
(Aílton Graça), era um guru de uma organização secreta, liderada pela ambiciosa
personagem branca Àghata (Claúdia Raia). Barão orientava as pessoas a conseguir o
que desejavam. Entretanto, as vezes se atrapalhava nas previsões e orientações
provocando confusões na vida de seus clientes. Barão morava em uma mansão, andava
de carro de luxo com motorista, mas ainda assim era infeliz, porque não era
correspondido no amor que sentia por Àghata, fazia de tudo para agradá-la, mas nunca
realizou seu maior sonho que era receber um beijo da amada branca, que adorava tratálo da pior forma possível. Ághata ao longo da trama se envolveu com homens brancos.
Foto 118-Personagem Àghata e Barão
Fonte: Rede Globo, 2007.
Sete Pecados abordou em seu enredo outra trama envolvendo o fetiche
interracial, por meio da personagem negra Dóris (Lena Roque), uma faxineira que foi
amante durante a vida inteira de um homem branco, Perseu (Zé Victor Castiel), que
alegava ser separado da sua mulher, mas tinha uma outra família branca. Dóris vivia
triste com as ausências de Perseu, que afirmava ser representante comercial e por isso
tinha que viajar sempre. Dóris era mãe do negro Leonardo (Rafael Zulu), que era
garçom e desconhecia que seu pai Perseu tinha outra família, chegando a se interessar
por sua meia-irmã branca Irene (Carina Porto).
Já o folhetim Cordel Encantado (Rede Globo, 18hrs, 2011), assinada pela dupla
de novelistas Duda Rachid e Thelma Guedes, abordou o fetiche interracial com ênfase
171
na questão da mestiçagem. Esta novela era materializada a partir das lendas do sertão
nordestino, em especial o culto a realeza européia, que eram temas abordados nos
poemas de cordel originários da Europa da idade média, apropriados e resignificados
por cantadores nordestinos no século XIX. Esta novela apresentou cinco personagens
negros, sendo que quatro eram membros de uma mesma família, chefiada por Damião
(Tony Tornado), trabalhador braçal de uma fazenda, casado com a personagem branca
Amália. Este casal teve quatro filhos, três negros, Maria Cesária (Lucy Ramos), Juca
(Max Lima) e Tibungo (Land Vieira), e um branco de cabelo ruivo, Galego (Renan
Ribeiro), que por ser diferente dos irmãos, levantava suspeitas de que seria fruto de uma
traição de Amália. Damião hostilizava e rejeitava Galego, somente fazendo as pazes
com o filho no final da novela, quando teve a certeza de que o rapaz, embora branco e
ruivo, era mesmo seu filho biológico.
Foto 119 -Personagens Damião e Galego
Fonte: Rede Globo, 2011.
A jovem Maria Cesária (Lucy Ramos) era uma eximia cozinheira e atuava como
amiga e cúmplice da protagonista branca Doralice (Nathalia Dill). Por ser bonita,
sensual e pura, o rei Augusto (Carmo Dalla Vecchia) se apaixonou por ela e,
posteriormente, casou-se com ela, apresentando assim mais uma vez, o estereótipo da
mulher negra que sonha com um príncipe europeu branco.
Foto 120-Personagens Rei Augusto e Maria Cesária
Fonte: Rede Globo, 2011.
172
O personagem Juca (Max Lima) era o filho caçula de Amália e Damião, um
adolescente que pela menina branca Lady Cecília (Sofia Terra) e trabalhava na
prefeitura local.
Já o jovem Tibungo (Land Vieira) era o filho mais velho de Damião e Amália e
ficou muito tempo a serviço dos vilões da novela, para o desgosto de sua família que
também era prejudicada com suas maldades. Este personagem encenou o estereotipo do
negro marginal, que usa o crime para prevalecer na vida. Construído sob este mesmo
molde, mas com menor participação na trama, o personagem negro Ventania (Renan
Monteiro) que era um inescrupuloso jagunço que trabalhava a serviço dos vilões.
Foto 121-Personagens Tibungo, Amáia e Maria Cesária
Fonte: Rede Globo, 2011.
Fanon (2008) analisou os elementos políticos e subjetivos que constituem o
racismo colonial que opera pelo estabelecimento de contrastes, e que de maneira
maniqueísta contrapõe brancos e negros, apresentando e qualificando os negros como
um produto do colonialismo. A partir da lógica do branco colonizador, ocorre uma
patologização dos negros enquanto sujeitos regidos pelo biológico, eminentemente
sexuais e incivilizados.
A análise dos enredos das telenovelas apontou que estas materializam narrativas
sobre relações entre personagens negros e brancos a partir de uma proposta de
interracionalidade que é estabelecida pelo escalonamento de um fetiche interracial
orientado por uma suposta hiperssexualidade de negros e negras. Nesta dinâmica, o
fetiche interracial leva água para o moinho da mestiçagem no Brasil com vistas ao
embranquecimento populacional, e assim contribui para referendar o mito da
democracia racial, instituindo uma proposta de interracionalidade unilateral, centrada
no sujeito branco. Este processo atua também mascarando o contexto de exclusão e
173
repressão impostos pelas relações raciais, difundindo falaciosamente uma suposta
igualdade de direitos e oportunidades entre brancos, mestiços e negros.
174
6 NOVAS NOVELAS, VELHOS PERSONAGENS NEGROS
O perfil típico de um personagem negro em uma telenovela brasileira reside no
estereótipo de escravos ou empregados rurais ou domésticos. Esta proposta de
personagem negro é lastreada nas relações coloniais, e foi proposto desde os primórdios
das telenovelas e ainda tem sido frequentemente adotado em muitas tramas
contemporâneas. Como exemplo, destaco que os novelistas Benedito Ruy Barbosa,
Walcyr Carrasco, Walter Negrão, Alcides Nogueira e Mário Prata escreveram novelas
de época ou regionalistas e, nestes enredos, enunciaram personagens negros construídos
com base em uma racionalidade colonial, que os apresenta de forma equivalente, seja
figurando como escravos ou como leais empregados domésticos ou rurais e capangas de
patrões brancos.
Em grande parte das tramas etnografadas os/as personagens negros apareciam
sem que suas famílias negras fossem retratadas na trama, contexto este presente desde
os primórdios da telenovela brasileira, pois os primeiros personagens negros
nas
folhetins nacionais eram empregadas domésticas, babás, caseiros, motoristas,
cozinheiras, garçons, garçonetes e capangas. Classifico estes perfis como papeis típicos
de personagens negros, que encontrei na totalidade de telenovelas que analisei ao curso
desta investigação. Estes personagens figuram em relação às famílias brancas para as
quais trabalham e onde moram e por isso suas famílias não são veiculadas.
Construo minha argumentação partindo da novela Esperança (Rede Globo,
21hrs, 2002) escrita por Bendito Ruy Barbosa. Este folhetim era ambientado na cidade
de São Paulo-SP, na década de 30, sob o contexto da questão da industrialização no
Brasil. Benedito Ruy Barbosa não concluiu esta novela, sendo substituído pelo autor
Walcyr Carrasco. A novela apresentou cinco personagens negros, sendo que apenas a
personagem Júlia (Sharon Menezes) teve significativa participação da trama. Júlia era
uma serviçal da casa da baronesa do café Francisca (Lúcia Veríssimo). Gostava de ler,
adquiriu hábitos e comportamentos refinados em função do convívio com a família à
qual servia desde menina. Oferecia aos patrões uma lealdade plena, nutrindo por estes
um enorme senso de gratidão. Por isso era considerada uma serviçal de confiança. Era
muito próxima da filha da patroa, a jovem Beatriz (Miriam Freeland), que ensinou-lhe a
ler e a escrever. A serviçal negra, por sua vez, incentivou Beatriz a abrir a escola para
alfabetizar as crianças pobres da região e, nas poucas ausências de Beatriz, Júlia deu
aulas aos alunos. Ao longo da trama, foi revelado que Júlia era filha bastarda do seu
175
falecido patrão, o barão de café Marcílio Moreira Alves (José Augusto Branco) com
uma escrava, origem esta que todos, inclusive Júlia, desconheciam. A narrativa sugeria
que Júlia era inteligente por ser filha, ainda que bastarda, de um homem branco, um
barão do café.
Alguns personagens negros apareceram na novela com uma reduzida carga
dramatúrgica, apenas em cenas nas quais exerciam suas funções, sempre subalternizadas
a superiores e/ou patrões brancos. Este foi o contexto dos personagens Nhá Rita (Chica
Xavier), que era uma serviçal, idosa, que tinha comportamentos e discursos que pouco
se diferenciavam dos de uma escrava. De igual forma agia o personagem Chiquinho
Forró (Cosme dos Santos), que era trabalhador na fazenda de café.
Os demais personagens negros da novela Esperança não foram fixos,
aparecendo em alguns capítulos, sempre em interface com a trama de personagens
brancos. Este foi o contexto do personagem Matias (Milton Gonçalves), um estivador
do cais, e sua esposa Noêmia (Kenya Costa) que apareceram em alguns capítulos
quando abrigaram o protagonista branco Toni (Reynaldo Giannechini), quando este
chegou ao Brasil, após fugir da Itália.
A narrativa da novela Esperança deu pouca visibilidade aos personagens negros.
Talvez preso ao esforço da necessidade de dar verossimilhança histórica a sua novela
épica, o autor desconsidera o entendimento de que priorizou abordar o contexto da
formação do movimento operário e das revoluções dos anos 30, na cidade de São Paulo,
enquanto construtos apenas de sujeitos brancos.
Posteriormente Benedito Ruy Barbosa escreveu o folhetim Sinhá Moça (Rede
Globo, 18hrs, 2006), uma adaptação do romance homônimo de Maria Dezonne Pacheco
Fernandes. Embora o autor em foco tenha figurado como co-autor da primeira versão da
adaptação do romance para o formato teledramatúrgico, em 1986, a versão de 2006 foi
apresentada não como um remake, mas como uma nova versão, haja visto que o autor
fez uma nova adaptação do romance.
Este folhetim era ambientado no ano de 1886 e abordava diretamente o contexto
político da luta abolucionista. Em seu enredo trouxe dezessete personagens negros. A
personagem Virgínia/ Bá (Zezé Motta), era uma escrava que foi ama de leite da filha do
Barão de Araruna (Osmar Prado), a Sinhá Moça (Debora Falabela), por isso era
chamada de Bá. Virgina/Bá teve um único filho, que lhe foi tirado pelo patrão e vendido
num lote de escravos. Devotou à filha de seus patrões um amor intenso e maternal,
porém sempre nutriu a esperança de reencontrar seu filho biológico, que era fruto do
176
relacionamento com seu único e secreto amor: o personagem negro Pai José (Milton
Gonçalves).
Foto 122-Personagens Virginia/Bá e Sinhá Moça
Fonte: Rede Globo, 2006.
Pai José era um negro idoso, que apesar de já ter 80 anos continuava forte e
lúcido. Na juventude foi transformado em escravo reprodutor, por isso tinha incontáveis
filhos, netos e bisnetos. Quando envelheceu, passou a sonhar com a liberdade para os
negros, por isso morreu no tronco como castigo por seus devaneios abolucionistas,
açoitado pelo Feitor (Humberto Martins). Mesmo depois de sua morte, continuou
aparecendo em cenas de flashbacks. Era pai de Maria das Dores (Cris Vianna), Justino
(Alexandre Moreno) e Fulgêncio (Sérgio Menezes).
Maria das Dores (Cris Vianna) era uma escrava alforriada que teve um
envolvimento com o vilão branco da novela, o Barão da Araruna, com quem teve um
filho branco, Rafael (Lucas Rocha).
Fulgêncio (Sérgio Menezes) era um escravo inteligente, que tentava fugir da
fazenda e por isso sofria severos castigos. Após ser recapturado em uma tentativa de
fuga, respondeu com atrevimento ao seu senhor, o Barão de Araruna, que lhe submeteu
a chicotadas. Uma delas, acidentalmente, atingiu um dos olhos do escravo, o que causou
uma enorme infecção que fez com que o negro perdesse também a visão do outro olho e
ficasse completamente cego. Nesta ocasião os demais escravos ensaiaram uma revolta,
que foi arrefecida diante do ato de “bondade” e “sensibilidade” da filha do Barão, que se
comoveu com o sofrimento do escravo. Após ficar cego, Fulgêncio ficou com
problemas mentais e passou a vagar ao esmo pela fazenda dos patrões.
177
Foto 123-Personagem Fulgêncio e Justino
Fonte: Rede Globo, 2006.
Já o personagem Justino, era um escravo que ostentava porte diferenciado dos
demais negros, afirmava ser filho de um rei africano, desconhecendo que era filho de
Pai José. Era um excelente capoeirista e nutria um ódio silencioso por todo e qualquer
branco. Era apaixonado pela escrava Adelaide (Lucy Ramos), porém sabia que a única
forma de ficarem juntos seria através de libertação da condição de escravos. Lutava a
todo custo pela libertação, fosse por meio de fuga ou pela causa abolicionista. Quando
Adelaide se apaixonou por um branco, passou a persegui-la e atrapalhar a vida da moça.
Adelaide era uma mulata que vivia triste e revoltada na senzala e lutava para se
manter virgem diante o assédio sistemático que sofria dos brancos, especialmente do
capanga branco Honório (Osvaldo Baraúna). No inicio da trama, amava Justino, mas
não se entregava sexualmente a ele, porque não queria gerar crianças para serem
escravas. Informada acerca da lei do ventre livre, manteve-se decida a não ser mãe,
porque não entendia a eficácia de uma lei que prometia libertar os filhos e, ao mesmo
tempo, manter as mães escravizadas. Adelaide ganhou a simpatia da filha de seus donos,
a Sinhá Moça, que a levou para viver na casa grande, como sua dama de companhia.
Aprendeu regras de etiqueta e se alfabetizou. Ao longo da trama, se apaixonou por um
homem branco, o filho de fazendeiros, José Coutinho (Eduardo Pires), um jovem
escolarizado defensor de ideais abolucionistas, que ao final da trama se casou com
Adelaide, para desespero de Justino.
Foto 124-Personagens Adelaide e José Coutinho
Fonte: Rede Globo, 2006.
178
Dentre os negros, havia um enunciado como vilão, o personagem Capitão do
Mato (Mauricio Gonçalves). Era um capataz, especialista em perseguir escravos fujões,
que alegava ter um excelente faro e nunca ter perdido uma vítima. Aparentava sentir
prazer em ferir negros escravos e não reconhecia neles nenhum laço de identidade com
eles.
Foto 125-Capitão do Mato
Fonte: Rede Globo, 2006.
A novela trouxe a personagem Ruth (Edyr Duqui), que era uma escrava que ao
ser comprada foi imediatamente alforrida, passando a trabalhar como empregada
doméstica remunerada. Grata aos patrões, servia-os com extrema lealdade,
especialmente ao branco Ricardo (Bruno Gagliasso).
Os demais personagens negros da novela Sinhá Moça eram escravos, que
somente apareciam em função de servir aos personagens brancos, ou para imprimir
veracidade a uma trama que era ambientada no contexto da escravidão. Era este o
contexto do personagem Bastião (Fabrício Boliveira), um escravo esperto, que tinha a
mesma idade da Sinhá Moça, era cúmplice da patroa, bem como atuava como um
mediador entre ela e os demais escravos. Já o escravo Bentinho (Alexandre Rodrigues),
não se conformava de ter nascido um dia antes da promulgação da lei do ventre livre.
Revoltado por viver na senzala, odiava Bastião pelo fato deste poder viver na casa
grande. Bentinho era inteligente e esperto e quando foi comprado pelo Branco Rodolfo
(Danton Mello), sentiu-se valorizado, passando a devotar ao novo dono lealdade,
ajudando-o no romance com a Sinhá Moça.
A novela tinha também alguns personagens negros que integravam o núcleo de
negros que lutavam pela abolição da escravidão pelo viés das fugas ou revoltas. Este era
o contexto dos personagens Pedro (Joaquim de Castro) e Tomás (Alexandre Sil), que
eram escravos que tentavam fugir do Barão de Araruna, sob o comando do escravo
Justino. Porém, foram recapturados e continuaram a viver sob o jugo do proprietário
branco.
179
O folhetim Sinhá Moça apresentou outros seis personagens escravos, Luiz
(André Vieira), Tobias (Clementino Kelé), Bento (Marcelo Batista), Balbina (
Rosamarya Colin), e dois outros que apenas figuraram como escravos, sem ter seus
nomes mencionados na trama, os atores (Creo Kellab e Derio Chagas)
A trama Sinhá Moça, desde a primeira versão exibida em 1986, inovou no
segmento telenovela ao propor uma leitura menos “romanciada” do contexto da luta
pela abolição, sugerindo que os próprios negros também foram ativos no processo de
libertação. Entretanto, ainda legitimava a nobreza dos sujeitos brancos, em especial da
Sinhá Moça, que se compadecia do sofrimento dos negros e, por isso, conseguia, por
parte deles, um senso de gratidão que gerava, por sua vez, uma conformação com sua
condição de escravos, desestabilizando alguns movimentos de revolta dos escravos.
A novela seguinte assinada por Benedito Ruy Barbosa foi um remake do
folhetim Paraíso (Rede Globo, 18hs, 1982). A segunda versão de Paraíso (Rede Globo,
18hrs, 2009), abordava o universo rural brasileiro, sendo ambientada na fictícia cidade
de Paraíso, localizada no Estado do Mato Grosso. Esta trama trouxe nove personagens
negros, mas estes tiveram pouca participação no enredo .
Dentre os que mais se destacaram estava o negro Tobi (Alexandre Rodrigues),
que era um empregado da fazenda de Eleutério (Reginaldo Faria). Tobi era admirador
do patrão e aprendeu com ele a “fantasiar” acerca dos causos que contava. Atuava na
fazenda como um moleque de recados, até que se encantou com a comitiva do peão
branco Zeca (Eriberto Leão) e decidiu ser um peão também. Apaixonou-se e casou-se
com a também negra Das Dores (Lidi Lisboa), uma empregada que trabalhava na
pensão da branca Ida (Walderez de Barros), que era muito assediada pelos hóspedes da
pensão por conta de sua beleza e sensualidade, porém era fiel a Tobi.
Foto 126-Personagens Das Dores e Tobi
Fonte: Rede Globo, 2009.
Já a personagem negra Cleusinha (Lucy Ramos), era uma jovem que, ao lado de
duas amigas brancas (Uma de cabelo preto, e outra de cabelo loiro), se reunia para
comentar sobre a vida dos moradores da cidade e para tentar conquistar algum
namorado.
180
Foto 127-Personagem Cleusinha
Fonte: Rede Globo, 2009.
Apostando no estereótipo da sensualidade da mulher negra, a novela trouxe a
personagem Candinha (Cris Vianna), uma empregada doméstica que era apaixonada
pelo patrão branco, Antero (Mauro Mendonça). Justificava o romance extraconjugal que
mantinha com o patrão no fato da esposa do patrão, Mariana (Cássia Kiss), se recusar a
manter relações sexuais com o marido e só querer saber de rezar e cuidar das coisas da
igreja. No final da novela, Antero assumiu o romance com Candinha.
Foto 128-Personagens Antero e Candinha
Fonte: Rede Globo, 2009.
Os demais personagens negros não tiveram carga dramatúrgica direcionada a
explorar relacionamentos afetivos ou familiares, apenas apareceram exercendo suas
profissões. Este foi o caso dos personagens Zé do Correio (Cosme dos Santos),
funcionário dos correios, conhecido por ser muito comunicativo,
era também
responsável por distribuir os jornais que chegavam na cidade. Entretanto, antes de
entregá-los, lia alguns periódicos e acrescentava comentários pessoais. O personagem
negro Capita (Gésio Amadeu), era o motorista do único táxi que circulava na cidade e
só teve cenas atuando enquanto taxista. O personagem Tião (Jorge Lucas) só teve cenas
enquanto empregado rural, da mesma forma pela qual foi enunciada a personagem
negra Efigênica (Luciana Barbosa).
O remake da novela Cabloca (Rede Globo, 18hrs, 2004), feito pelas novelistas
Edmara e Edilene Barbosa, seguiu o estilo dramatúrgico do pai Benedito Ruy Barbosa,
mormente na estratégia de enunciação dos personagens negros. A trama apresentou
nove personagens negros, sendo três envoltos em um triângulo amoroso que tinha ares
181
de comédia e os demais só tinham função na trama figurando no entorno do enredo de
personagens brancos. A personagem negra Julieta (Roberta Rodrigues) era empregada
do coronel Justino (Mauro Mendonça) e só teve cenas servindo seus patrões brancos. A
serviçal negra Maria (Edyr Duqui), igualmente, só teve cenas desempenhando seu
trabalho, assim como o capanga negro (André Vieira) cujo personagem nunca teve o
nome pronunciado na trama. Um menino negro (Rapahel Rodrigues) só aparecia em
algumas cenas e os atores Marcelo Capobiano e Renata di Carmo, que figuravam para
dar veracidade as cenas que exploravam contextos de trabalhadores rurais e também não
tinham nomes na trama.
As novelas de época de Walcyr Carrasco também reproduziram uma proposta de
construção do negro que pouco variava se este figurava como um escravo ou um
empregado doméstico ou rural. Na novela A Padroeira (Rede Globo, 18hrs, 2001),
ambientada no Brasil colônia, tinha trama datada de 1717. Sua narrativa, foi construída
na interface do contexto do mito da aparição da Santa Nossa Senhora Aparecida,
considerada pela Igreja Católica como a padroeira do Brasil. A novela tinha como pano
de fundo a escravidão negra e apresentou sete personagens negros como escravos.
O personagem negro que teve mais destaque foi Zacarias (Norton Nascimento),
que apesar de ser um escravo obediente, era torturado constantemente por seus senhores
brancos, Fernão (Mauricio Mattar) e Imaculada (Elizabeth Savalla). Era um negro que
defendia, junto aos outros escravos, o culto à Nossa Senhora Aparecida. Em um
momento da novela. quando tentava fugir e foi capturado, Zacarias rogou pela
intervenção da Santa e viu seus grilhões de abrirem. Diante do ocorrido, um branco com
posses, Dom Antonio (Stênio Garcia) enfrentou a resistência da dona do escravo e
comprou sua liberdade. Zacarias, era um escravo que desenvolvia amizade com
personagens brancos, o que fazia com que introjetasse os valores religiosos ligado a
igreja católica.
Foto 129-Personagem Zacarias
Fonte: Rede Globo, 2001.
182
A personagem Imaculada era uma sinhá branca que era a vilã da trama. Era cruel
com seus escravos, especialmente os adolescentes Cosme (Samuel Melo) e Damião
(Luis Antônio Nascimento). Ambos trabalhavam como mucamos de Imaculada. Ao
longo da novela foi revelado que os irmãos eram filhos do Marido de Imaculada e este
deixou, em testamento, sua fortuna para os filhos bastardos que teve com a escrava
Rosário (Cyda Moreno), que foi vendida por Imaculada para afastá-la dos filhos.
Quando Rosário foi reencontrada, assumiu parcialmente a herança e passou a se agir
como a dona da casa, e transformou a Imaculada, que ficou na miséria após a leitura do
testamento do marido, em sua mucama. Entretanto, o testamento constituía Dom
Fernão, filho de Imaculada e do marido, como curador. Este, inconformado com o
testamento, repudiava Cosme e Damião como irmãos, se utilizava da condição de
administrador da fortuna para se vingar de Rosário e dos filhos, repassando
mensalmente uma quantia pequena de recursos.
Após receber a herança, Rosário
vestiu-se como uma rainha africana, adornada com búzios e alforriou sua amiga negra
Eusébia (Mariah Penha), que cuidou de Cosme e Damião, e passou a viver vestida como
uma sinhazinha branca, com vestidos de saia balão e peruca empoada.
Foto 130-Personagens Rosário e Cosme
Fonte: Rede Globo, 2001.
A novela trouxe ainda outras escravas que viviam buscando homens brancos que
lhes dessem “vida de branca”. Brásia (Lidiane Lisboa) rejeitava o amor oferecido pelo
escravo Gil (Fernando Almeida), porque sonhava em conquistar um branco que lhe
desse a alforria. Pureza (Iléa Ferraz) era uma escrava que posava de inofensiva,
desinteressada, mas também traçava planos de conquistar um branco, para assim se
livrar de sua dona Blanca (Patricia França). Já a escrava Clarice (Isabel Fillards),
conseguiu engravidar de um branco e passou a viver maritalmente com ele.
Considero que os personagens negro/negras de A Padroeira materializavam
escravos que introjetavam passivamente a lógica colonial, expressavam a fé católica
183
sem nenhuma referência as religiões de matriz africana, buscavam ligações com brancos
com vistas a conseguir a alforria e aceitação social.
No folhetim Chocolate com Pimenta (Rede Globo, 18hrs, 2003), inspirado na
opera A viúva alegre de Franz Lehár, Carrasco novamente produziu uma trama épica,
ambientada desta vez em uma cidade fictícia chamada Ventura, localizada no Sul do
Brasil. Esta trama seguia o estilo comédia romântica e era, temporalmente, referenciada
nos anos 20, com seis personagens negros/ negras.
Quatro personagens negros de Chocolate com Pimenta eram integrantes de uma
mesma família, formada por quatro irmãos órfãos, que reforçavam o estereòtipo da
família negra desajustada. Esta família era chefiada por Verinha (Sabrina Rosa), uma
cabeleireira bonita e muito alegre, que era também uma mulher batalhadora, que muito
cedo teve que se responsabilizar pela criação dos irmãos mais novos Jóia (Luiz
Antônio), Beleza (Samuel Mello) e Selma (Juliana Alves), que eram o foco de suas
preocupações. Verinha era apaixonada pelo branco Beto (Alexandre Barilari) e este,
por sua vez, era interessado em Selma, irmã mais nova de Verinha.
Foto 131-Personagens Selma e Mauricio
Fonte: Rede Globo, 2003.
Selma morou um tempo de sua infância com sua madrinha branca e era
inconformada com o fato de ter que trabalhar em vários empregos para ajudar em casa e
na criação dos irmãos mais novos. Era apaixonada por um homem branco, Mauricio
(Victor Pecoraro), que também gostava dela, mas relutou em viver este sentimento sem
deixar claro os motivos, deixando que o telespectador interpretasse se eram barreiras
econômicas e/ou o fato da moça ser negra, que constituíam obstáculos para formalizar
um namoro com Selma.
184
132-Personagens Selma, Beto, Beleza, Jóia, Mauricio e Verinha
Fonte: Rede Globo, 2003.
Já o adolescente Jóia (Luiz Antônio), cujo nome era Victor, só era chamado pelo
apelido. Era muito preguiçoso e divertido, enganava as irmãs mais velhas e outros
adultos para obter vantagens, não gostava de estudar, influenciava “negativamente”
outras crianças e adolescentes, incitando-os a ingressar em um grupo que fazia pichação
nos muros da cidade.
O personagem Beleza (Samuel Mello), irmão mais novo de Verinha, Selma e
Jóia, tinha o nome de Vinicius. Estava sempre envolvido nas traquinagens do irmão,
embora fosse mais medroso e, temendo as conseqüências dos planos do irmão, sempre o
obedecia, formando a temida dupla de irmãos “Jóia e Beleza”. Este personagem era o
protótipo, construído por Carrasco, do negro delinqüente e malandro na fase adulta.
Expressando o estereótipo da criança/adolescente negra em situação de
vulnerabilidade social e alvo da caridade de branco, a novela trouxe a menina negra
Darlene (Sabrina de Souza), que não tinha família e era criada, sob maus tratos, pela
vilã branca Jezebel (Elizabeth Savalla). A protagonista branca da trama, Ana Francisca
(Mariana Ximenes), se comoveu com o sofrimento da menina negra e retirou-a do jugo
imposto por Jezebel, levando-a para fazer companhia ao seu filho Tonico (Guilherme
Vieira), um menino branco e rico, porém triste. A menina negra conseguia diverti-lo. O
desfecho feliz para Darlene foi a chegada da sua mãe negra, que a havia abandonado,
Inácia (Viviane Porto), que era uma empregada doméstica que se empenhou em se
aproximar e conquistar o amor da filha.
185
Foto 133-Personagens Inácia e Darlene
Fonte: Rede Globo, 2003.
Carrasco escreveu outra trama épica, ambientada também em meados dos anos
30, o folhetim Alma Gêmea (Rede Globo, 18hrs, 2005). Tratava-se de uma trama
romântica, contextualizada na religião espírita. Esta novela apresentou quatro
personagens negros. A personagem negra que mais obteve destaque foi Sabina (Aisha
Jambo), que trabalhava como assistente do terapeuta Julian (Felipe Camargo). Sabina se
envolveu com o branco Hélio (Erick Marmo), que trabalhava como sapateiro com o pai.
Inicialmente era apaixonado pela protagonista branca da trama, Serena (Priscila Fantin),
como esta não o correspondeu, interessou-se por Sabina. A novela abordou diretamente
a questão da discriminação racial em tom de comédia. Como o relacionamento entre
Hélio e Sabina ser reprovado pela família do rapaz, a matriarca da família Ofélia
(Nicette Bruno) adjetivava a moça negra como “torradinha” e “escurinha”. No final da
novela os jovens se casaram.
Foto 134-Personagens Hélio e Sabina
Fonte: Rede Globo, 2005.
Os outros três personagens negros de Alma Gêmea eram membros de uma
mesma família, que era chefiada pelo pai Abílio (Ronnie Marruda), que trabalhava
como gerente geral da empresa do protagonista branco da novela Rafael (Eduardo
Moscovis). Abílio era casado com Clarice (Mariah da Penha) e pai de Paulina (Pamella
Rodrigues), uma menina inteligente, que estudava balé com a professora branca Vera
(Bia Seidl).
186
Foto 135-Personagem Abílio
Fonte: Rede Globo, 2005.
Abílio era casado com Clarice (Mariah da Penha), uma professora infantil que
adorava ensinar, e trabalhava também como cartomante nas horas vagas. Tinha como
cliente fiel a branca Olivia (Drica Moraes), que era desesperada para conseguir um
marido.
Foto 136-Personagens Olivia e Clarice
Fonte: Rede Globo, 2005.
Mesmo no folhetim Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007), que era uma trama
contemporânea e urbana, o novelista Walcyr Carrasco apresentou negros pensados a
partir de uma lógica escravagista. Destaco a personagem Fátima (Isabel Fillards), que
era enunciada sob o estereótipo da negra que é alvo da caridade de brancos e que
figurava na trama como uma órfã que foi amparada pelo casal branco Dante (Reynaldo
Gianecchini) e Clarice (Giovanna Antonelli), que se comoveram com o drama de
Fátima, uma adolescente em situação de rua. A negra, como sinal gratidão, ajudava sua
benfeitora branca nas atividades domésticas e no trato com as crianças do casal.
Alcides nogueira ao escrever a novela Ciranda de Pedra (Rede Globo, 18hrs,
2008), também enunciou personagens negros em uma estereotipia de subserviência a
personagens brancos. Esta trama tinha sua sinopse inspirada em um conto homônimo da
Lygia Fagundes Telles e era ambientada nos anos 40 do século XX e localizada na
capital paulista.
187
Esta novela trouxe três personagens negros, sendo que a personagem negra
Jovelina (Olivia Araújo) teve mais cenas na novela. Jovelina era uma manicure que
protagonizava cenas de humor ao lado do patrão branco Memé (José Rubens Chachá),
que era um apaixonado pela política praticada pelo então presidente da república. O
momento áureo da personagem Jovelina, foi quando a apresentadora de televisão
branca, Eunice Jardim (Regina Casé), foi ao encontro da manicure negra para conhecer
o dom que esta alardeava ser possuidora, que consistia na capacidade de ler o futuro das
pessoas pelas suas respectivas unhas.
Foto 137-Personagens Jovelina e Eunice
Fonte: Rede Globo, 2008.
A segunda personagem negra da novela Ciranda de Pedra foi Luciana (Lucy
Ramos), uma funcionária obcecadamente apaixonada por seu patrão, o personagem
branco Dr. Daniel (Marcelo Antony).
Por último, o personagem negro Emiliano (Samuel Assis) somente teve cenas no
início da trama como um químico muito atrapalhado, que trabalhava na metalúrgica dos
protagonistas brancos da trama. À época da novela, uma matéria publicada no portal
Terra Diversão em 13/06/2008, noticiava que o personagem Emiliano havia passado
por uma avaliação interna feita pelos diretores da Rede Globo, que deliberaram que o
personagem “não funcionou”.
Foto 138-Personagem Emiliano
Fonte: Rede Globo, 2008.
188
A reportagem citada afirmava, ainda, que o personagem sairia da trama sem
despedida, ficando a indicação de que teria recebido uma proposta de trabalho em outra
cidade. O texto é encerrado com a divulgação de que no lugar do personagem Emiliano,
entraria na trama o personagem Adonir (Gabriel Wainer).
Foto 139-Personagem Adonir
Fonte: Rede Globo, 2008.
Adonir que era branco e loiro e faria par romântico com a personagem
descendente de orientais, Alice (Danielle Suzuki).
Foto 140- Personagens Alice e Adonir
Fonte: Rede Globo, 2008.
Os três personagens negros de Ciranda de Pedra não tinham uma trama própria.
Existiam em função dos personagens brancos e somente estavam presentes em cenas em
que personagens brancos tinham destaque e mais falas. Ainda assim, destaco que este
folhetim registrou a maior presença de personagens negros dentre as novelas escritas
por Alcides Nogueira. O quantitativo de dois foi o número máximo de personagens
negros presentes na primeira novela escrita por este novelista. Sua segunda e terceira
novelas não apresentaram nenhum personagem negro, bem como a última, escrita antes
do período das discussões sobre as cotas raciais em telenovelas, que só trouxe um único
personagem negro, e ainda com menos destaque do que os da novela Ciranda de
Pedra. Neste horizonte, considero que a presença de três personagens negros na novela
Ciranda de Pedra sinaliza que o autor teria de algum modo, encampado a preocupação
de assegurar a presença de personagens negros nas tramas e este processo indica ser um
desdobramento da proposição e repercussão em torno das cotas raciais na mídia
brasileira a partir de 2001.
189
A trama Bang Bang (Rede Globo, 19hrs, 2005), escrita por Mário Prata e Carlos
Lombardi, era ambientada no faroeste americano. Entretanto, seu enredo enunciou
personagens negros construídos a partir de uma subjetividade que fazia coro a
experiência brasileira de relações coloniais. Esta trama apresentou uma família negra,
formada pelo casal Zulma (Sônia Siqueira) e Sam (Luiz Melodia) e pelo filho Bike-Boy
(Raphael Rodrigues). Zulma era uma empregada doméstica que foi apresentada como
uma eterna babá, muito leal e dedicada a sua patroa branca Miriam Viridiana (Joana
Fomm). Zulma tinha mais cenas servindo à patroa do que interagindo com seus
familiares negros. Nesta mesma perspectiva se materializou a construção de outro
personagem, um pianista, que quase não tinha falas, sempre aparecia tocando em um bar
e o foco da cena era o diálogo entre personagens brancos.
Foto 141-Personagem Zulma
Fonte: Rede Globo, 2005.
Bike-Boy somente era chamado por este apelido, sendo que nunca seu nome de
batismo foi mencionado. Fazia entregas por toda a cidade, fazendo manobras
audaciosas, usava nas poucas falas que tinha um vocabulário recheado de gírias e
apresentava o comportamento de um malando que queria se dar bem sem esforço. Era
melhor amigo do personagem branco Pablito (Humberto Carrão).
Foto 142-Personagem Bike-Boy
Fonte: Rede Globo, 2005.
A novela trouxe a personagem Baiana (Thalma de Freitas), que foi apresentada
como a única brasileira da cidade de Albuquerque. Trabalhava como cozinheira de um
190
hotel e agradava a todos com suas receitas brasileiras. Praticante de religiões africanas,
Baiana teve cenas fazendo despachos e jogando búzios para personagens brancos,
encenando assim o estereótipo, já folclorizado, da mulher negra residente no Estado da
Bahia. Esta personagem tinha o histórico de ter sido comprada pelo personagem branco
Bullock (Mauro Mendonça), por ocasião de uma viagem ao Brasil. Quando foi
alforriada, escolheu ir morar na cidade do seu ex-senhor branco.
Foto 143-Personagem Baiana
Fonte: Rede Globo, 2005.
Baiana se envolveu com o também personagem negro Charles Muller (Cássio
Nascimento), um jornalista e editor do periódico da cidade que ambientava a trama.
Charles era um homem idealista, e partidário de idéias democráticas. Era amigo do
personagem branco Harold (Ricardo Tozzi), tendo mais cenas acompanhando o amigo,
do que explorando o relacionamento com Baiana.
Foto 144-Personagem Charles Muller
Fonte: Rede Globo, 2005.
Por fim, o personagem negro Rush (Cosme dos Santos) figurava na trama como
ajudante do golpista, que se passava por falso xerife branco Gógol (Marco Ricca). Rush
era um ex-presidiário e conheceu, na cadeia, o comparsa. Era visivelmente mais
racional do que o parceiro de crimes, entretanto suas cenas eram sempre auxiliando
Gógol, como um capanga ou serviçal.
191
Foto 145-Personagem Rush
Fonte: Rede Globo, 2005.
Já o autor Walter Negrão, na novela Como uma Onda (Rede Globo, 19hrs,
2004), apostou em apresentar uma trama que deu corpo ao primeiro folhetim da Rede
Globo protagonizado por um ator estrangeiro (branco e europeu). A novela contava a
saga de um açoriano que se instalou no litoral brasileiro. Esta novela era ambientada no
litoral do estado brasileiro de Santa Catarina e apresentou cinco personagens negros,
que eram membros de uma mesma família.
A matriarca da família negra era Abigail (Thaís Garayp), que trabalhava como
governanta e cozinheira e morava com sua família na casa dos fundos da mansão dos
brancos, o núcleo familiar da protagonista da trama. Tratava-se de uma proposta de
demarcação espacial que parecia fazer referência a idéia de Casa Grande e Senzala,
desenhada por Freyre (1933). A personagem Nina (Alinne Moraes) via sempre em
Abigail a figura de sua babá. Como empregada, Abigail era muito dedicada aos patrões,
que lhe chamavam de “Biga”. Era casada com Balbino (Sirmar Antunes), com quem
tinha os filhos Rosário (Sheron Menezes) e Franklin (Sérgio Malheiros). Balbino atuava
como caseiro, jardineiro, eletricista e encanador da mansão dos patrões, era mau
humorado com sua família, mas sempre cordial em servir ao seu patrão branco, a quem
considerava um grande amigo.
Foto 146-Personagem Abigail/Biga
Fonte: www.teledramaturgia.com.br, 2014.
A filha do casal, Rosário, era uma moça esforçada, que namorava o pescador
branco Floriano (Cauã Reymond). Sonhava em se casar virgem com seu amado e
192
resistia às suas investidas no sentido de manterem relações sexuais antes do casamento.
Os dois sonhavam com um barco próprio, onde poderiam morar e também permitir as
pescas de Floriano. Após o casamento, os dois adotaram um menino branco.
Foto 147-Personagens Rosário e Floriano
Fonte: Rede Globo, 2004.
Já o filho caçula de Abigail e Balbino, o menino Franklin, tinha acesso livre a
casa dos patrões dos pais, brincando com crianças brancas filhas dos patrões, Gigi (Guta
Gonçalves) e Rubico (Arthur Lopes), que compartilhavam com ele seus jogos e
brinquedos caros. Quando brincavam e faziam alguma aventura, dentre as crianças,
Franklin era o mais medroso. O menino tinha uma relação com o tio negro, Samuel
(Nill Marcondes), que era irmão de seu pai Balbino. Samuel morava de favor na casa de
Abigail e Balbino, que por sua vez moravam de favor na casa dos patrões brancos.
Balbino implicava com o irmão Samuel, a quem considerava acomodado. Samuel era
alegre, gostava de atividades físicas e trabalhava em agência de mergulhos.
A trama Desejo Proibido (Rede Globo, 18hrs, 2007) era ambientada na década
de 30, no fictício município de Passaperto, localizado no Estado de Minas Gerais.
Nessa telenovela, Negrão apresentou cinco personagens negros, que eram secundários
no folhetim.
O enredo trouxe a família negra constituída pelo casal Faustino (Cosme dos
Santos) e Doralice (Cinara Leal) e o filho Tonico (Carlos Miguel). Faustino era o
caseiro que fazia tudo na fazenda da vilã branca Cândida (Eva Wilma). Doralice
também trabalhava arduamente como serviçal dentro da casa e, também, nas demais
atividades da fazenda. Mesmo muito dedicados à patroa branca e sua família, os
empregados negros não eram reconhecidos por eles como os demais empregados
brancos, eram constantemente alvos de tratamento ríspido. O tratamento dispensado a
Faustino e Doralice fazia clara menção ao regime escravagista, mormente pelo enorme
senso de gratidão que os dois sentiam em relação a patroa, pelo fato de pelo menos ter
onde morar e trabalhar.
193
O menino Tonico não tinha brinquedos por que era pobre, brincava com outras
crianças que eram brancas. Era aconselhado pelos pais a estudar, para ter um destino
diferente dos pais.
A novela Desejo Proibido era um romance açucarado e tinha poucos
personagens cômicos. Um destes era personagem negra Cidinha (Mary Sheyla), que
trabalhava como empregada doméstica e vivia se intrometendo nas conversas da patroa
branca Magnólia (Nívea Maria) e suas filhas. Tentava conquistar o soldado negro Brasil
(Nando Cunha), para quem vivia levando lanches. O soldado Brasil era um homem
vaidoso e cuidadoso com sua farda. Era o ajudante do Delegado Branco Trajano (Cássio
Gabus Mendes), e por comodidade, morava em umas das celas vazias da delegacia e,
como não ocorriam crimes na cidade, o delegado atribuiu ao soldado negro a
responsabilidade de cuidar de suas três filhas como se fosse um segurança. Brasil nutria
uma paixão platônica por uma das filhas de seu superior, a jovem Teresa (Fernanda
Paes Leme), que nunca lhe correspondeu.
Foto 148-Personagens Cidinha e Soldado Brasil
Fonte: Rede Globo, 2007.
Destaco que nesta novela a atriz Thais Garyp, que por sua condição de mestiça
pode interpretar uma personagem negra na novela Como uma Onda, em Desejo
Proibido alisou os cabelos e foi enunciada como sendo uma índia, a personagem Iraci,
que era mãe de uma mulher branca, Ana (Leticia Sabatela).
Foto 149-Personagens Iraci e Ana.
Fonte: Rede Globo, 2007.
194
O novelista Walter Negrão apostou, também, em apresentar negros em condição
de subalternidade a pessoas brancas, e casais interraciais sem diretamente enfocar a
questão da hiperssexualidade do negro/negra, especialmente na novela Araguaia (Rede
Globo, 18hrs, 2010). Este folhetim tinha enfoque regionalista, era referenciado no
entorno do Rio Araguaia, na fictícia localidade de Girassol, que fazia alusão geográfica
aos Estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão e apresentou dez
personagens negros.
A novela trouxe a família negra formada pelo casal composto pelos negros
Cícero (Gésio Amadeu) e Pérola (Tânia Alves). Cícero, que era chamado também de
“Cirso” era um administrador de fazenda e uma espécie de “faz tudo” para seu patrão
branco Max (Lima Duarte). Como empregado, Cícero não gostava do patrão, mas o
respeitava pela necessidade do emprego.
Foto 150 – Personagens Max e Cícero/Cirso
Fonte: Rede Globo, 2010.
Cícero era um homem simples, integro e religioso. Era devotado à esposa, que
trabalhava como cozinheira, vendendo quitutes e marmitas para turistas que vinham
visitar sua localidade. O casal tinha três filhas, Safira (Cinara Leal), Ametista (Nanda
Lisboa) e Esmeralda (Raquel Villar). Moças essas as quais o pai chamava de “Jóias do
Araguaia”. Estas três personagens negras trabalhavam como monitoras em uma empresa
de turismo e sempre apareciam vestidas com roupas que permitiam exibir pernas e
decotes.
195
Foto 151 – Personagens Safira, Esmeralda, Ametista e Pérola.
Fonte: Rede Globo, 2010.
A novela retratou poucas cenas de convivência familiar destes negros. Estes
personagens
apareciam
mais
desempenhando
suas
funções
enquanto
empregados/empregadas de patrões brancos, ao contrário das famílias brancas da novela
que tinham várias cenas em que eram retratados convívios entre familiares. Ao longo da
novela, o enredo abordou o fato de que Safira não era filha biológica de Cícero. A moça
era fruto de um romance que a mãe teve e foi abandonada pelo parceiro, sendo que
Cícero assumiu a gravidez de Pérola, tratando Safira da mesma forma que as demais.
A personagem negra Yvete (Neusa Borges) era uma ex-moradora de rua,
solitária, que vivia conversando com seu gatinho de estimação chamado “Cebola”.
Tinha um amigo branco, chamado Gabriel (Juca de Oliveira) e trabalhava como
enfermeira no posto de saúde da localidade, ajudando ao médico branco Ricardo
(Eduardo Coutinho).
A novela trouxe o personagem René/Palhaço Pimpinela (Nando Cunha), que era
um artista circense, que apesar de alegre quando em público, era extremamente triste
quando sozinho. Tinha horror as autoridades policiais, o que ao longo da trama foi
justificado pelo fato de, ao ser acusado de assassinar uma ex-namorada branca, ter
fugido, e como foragido ter se caracterizado de palhaço para não ser reconhecido pela
família da vitima e também pela policia. O desfecho do mistério do personagem foi
revelado coincidentemente na semana em que no Brasil é comemorado o Dia da
Consciência Negra, com a seguinte narrativa: René e uma moça branca namoravam
escondido da família da jovem, que não aceitava o romance por René ser negro. Assim,
os pais da moça mandam um capataz matar o negro e o tiro acertou a moça. Como René
fugiu, todos acreditavam que ele era o assassino. Ao longo da novela, René também se
envolveu e teve um final feliz ao lado de outra mulher branca, Nancy (Mariana Rios).
196
Foto 152- Personagens René e Nancy.
Fonte: Rede Globo, 2010.
A novela em foco trouxe ainda os dois meninos negros, que eram órfãos, Edro
(Cadu Paschoal) e André (Douglas Moreira), criados ao lado de outras crianças
abandonadas pelo personagem branco Padre Emílio (Otávio Augusto). Contou tabém
com a participação do personagem negro Marreta (Christovam Netto), um artista
circense que se apresentava exibindo sua força física descomunal. Este personagem
aparecia raramente na novela, sendo sua maior participação em um capítulo, quando
ajudou, por dinheiro, o vilão branco da novela, Max (Lima Duarte) a destruir o circo no
qual trabalhava, prejudicando seus amigos, e enunciando o negro como venal e
criminoso.
Foto 153-Personagens Marretta e Max
Fonte: Rede Globo, 2010.
A última novela de Negrão, produzida no período compreendido pelos marcos
da pesquisa, foi Flor do Caribe (Rede Globo, 18hrs, 2013). Tinha narrativa com
enfoque regionalista, era ambientada na fictícia localidade litorânea Vila dos Ventos,
situada no Estado do Rio Grande do Norte.
Este folhetim apresentou quatro
personagens negros.
O personagem negro Quirino (Aílton Graça) foi o que o obteve mais destaque na
trama. Era um ex-seminarista que desistiu da vocação religiosa e adotou um filho
branco, Juliano (Bruno Gissoni). No início da trama, era casado com a personagem
branca Doralice (Rita Guedes). Como Doralice não podia ter filhos, assumiu a
197
maternidade do filho adotado pelo marido e adotou mais duas crianças, o menino negro
Wiliam (Renzo Aprouch) e a menina negra, recém nascida, que recebeu o nome de
Beatriz. Doralice se apaixonou pelo filho adotivo do marido, o personagem branco
Juliano (Bruno Gissoni) e foi para um convento na tentativa de superar esta paixão,
vista por ela como impura, já que Juliano a enxergava como uma mãe.
Foto 154-Personagens Juliano e Quirino.
Fonte: Rede Globo, 2013.
Quirino, que trabalhou como motorista e professor de história, sofreu muito ao
saber que sua esposa estava perdidamente apaixonada pelo seu filho adotivo Juliano.
Seu consolo foi o romance com a personagem negra Nicole (Cinara Leal), que
trabalhava como dançarina profissional.
Foto 155-Personagens Nicole, Wiliam, Quirino e Doralice
Fonte: Rede Globo, 2013.
A novela trouxe ainda o personagem negro Alaor (Gésio Amadeu), que nunca
teve sua família ou relações amorosas retratadas na trama. Suas cenas reduziam-se a
suas conversas com seus amigos brancos Chico (Cacá Amaral) e Donato (Luiz Carlos
Vasconcelos). Inicialmente trabalhava em uma salina e quando foi demitido, passou a
trabalhar na tripulação de pequenos barcos de pescadores.
O folhetim Caminho das Índias (Rede Globo, 21hrs, 2009) escrito por Glória
Perez, apesar de apresentar uma trama urbana, também apresentou personagens negros
que majoritariamente tinham como função orbitar em torno de personagens brancos.
Esta novela era composta por dois núcleos que interagiam através de alguns
personagens. Um era ambientado na Índia e outro na cidade do Rio de Janeiro. Contou
198
com seis personagens negros que apontavam para a imagem do negro como
subserviente com atravessamentos no campo da comédia, do drama e da
hiperssexualidade. A ênfase na comédia era materializada pela personagem Sheila
(Priscila Marinho), uma empregada doméstica, que venerava e tinha como ídolo a
patroa branca Melissa (Cristiane Torloni). Sheila vibrava com a vida da patroa, a quem
via como uma celebridade, e desejava ser rica e bonita como a patroa. Melissa se
divertia com a tietagem de sua empregada, permitindo que ela usasse seus cremes caros.
Foto 156-Personagem Sheila.
Fonte: Rede Globo, 2009
Os três personagens negros, que compunham uma família liderada pela
personagem Cema (Neuza Borges), uma empregada doméstica que criou sozinha os
filhos Ademir (Sidney Santiago) e Maico (Mussunzinho), representava o mundo da
tragédia. Cema foi alvo de violência de um jovem rico Zeca (Duda Nagle), que quando
viu Cema com sua amiga Ondina (Luci Pereira) também empregada domestica andando
na rua, disse aos seus colegas que estavam no carro que dirigia: “Olha, duas pangarés!”,
os amigos disseram em coro: “Vai nelas!”, assim Zeca acelerou e jogou o carro na
direção das duas, que pularam a tempo de não serem atingidas.
A personagem Cema enfrentou muitas dificuldades quando seu filho mais velho,
Ademir recebeu o diagnostico de que ser portador de esquizofrenia. A autora utilizou
Ademir como o personagem-chave para promover a campanha social que realizou nesta
novela, para abordar as dificuldades que uma pessoa pobre, portadora de alguma doença
mental, tem em conseguir informação sobre a doença bem como tratamento adequado.
Com a ajuda do psiquiatra branco Dr. Castanho (Stenio Garcia), Ademir lutava para se
tratar e se reintegrar socialmente.
O outro filho de Cema, Maico (Mussunzinho) era um adolescente muito
estudioso, que sofria preconceito na escola e na comunidade em que morava em função
da doença do irmão mais velho. Tinha vergonha de Ademir e não gostava que a mãe
comentasse com ninguém seu quadro patológico
199
Foto 157- Personagens Ademir, Cema e Maico.
Fonte: Rede Globo, 2009
A hiperssexualização foi abordada na trama por meio da personagem Suellen
(Juliana Alves), que por ser bonita conseguiu se casar com um médico branco, bem
mais velho do que ela. O personagem negro que teve menor destaque foi Eliseu (Darlan
Cunha), um jovem oficce-boy que trabalhava em uma grande empresa de atuação
internacional. Suas poucas cenas se resumiam a se divertir com os relatos amorosos da
secretária executiva branca de meia idade, Wal (Rosane Goffman), que era fofoqueira,
viciada em relacionamentos virtuais, e perdidamente apaixonada pelo patrão.
Foto 158-Personagens Wall e Eliseu
Fonte: Rede Globo, 2009.
Da mesma forma, a novela Belissíma (Rede Globo, 21hrs, 2005) de Silvio de
Abreu apresentou com poucas cenas o personagem negro Lourenço (Lui Mendes), um
consagrado Agenciador de Modelos, que só aparecia em cenas recrutando modelos
brancas, ou servindo suas patroas brancas. Não tinha relações afetivas com nenhum
outro personagem e não tinha sua família na trama ou cenários próprios retratados.
Foto 159 -Personagem Lourenço.
Fonte: Rede Globo, 2005.
200
O folhetim Passione (Rede Globo, 21hrs, 2010) também assinada por Silvio de
Abreu, trouxe o personagem negro Amendoin (Pedro Lobo) como um menor
abandonado, em situação de rua, que foi adotado pela feirante branca Candê (Vera
Holtz). Amendoin quando morava na rua era cuidado e protegido por outro menor
abandonado, porém branco, o personagem Cridinho (André Luiz Framch), que por ser
branco tinha mais destaque e autonomia na trama.
Foto 160- Personagens Amendoin, Candê e Cridinho
Fonte: Rede Globo, 2010.
Considero que a imagem do negro veiculada pelo personagem Amendoin
reforçou a idéia do negro sempre tendo um salvador branco. Entendo que mesmo
materializando personagens em situação de vulnerabilidade social, o destaque dado ao
personagem Cridinho, reforçava o entendimento que a cor branca dotava o personagem
de qualidade e aptidões que faltavam a Amendoin por este ser negro. Fanon (2008)
destaca que a lógica que prega a inferioridade do negro foi estabelecida pela construção
social de uma suposta dependência do negro com relação ao colonizador branco. Nessa
perspectiva, alguns enredos de telenovela enunciaram tramas em que brancos
desempenham a missão sagrada e caridosa de proteger, acolher, salvar, ajudar, corrigir e
educar negros.
Foto 161- Personagem Amendoin
Fonte: Rede Globo, 2010.
A novela Passione apresentou, ainda, outro personagem negro, Noronha
(Rodrigo dos Santos), como um homem de classe média alta. Este figurava na trama
como um advogado inescrupuloso, um venal cúmplice do vilão da novela, Saulo
(Werner Shunemann), que desviava recursos da empresa da mãe, a Metalúrgica
201
Gouveia. Noronha, mesmo sendo o advogado da empresa, com a atribuição funcional de
atuar internamente como um consultor jurídico, obedecia cegamente todas as ordens de
Saulo, mesmo se estas concretizassem alguma ilegalidade. A relação de Saulo e
Noronha tinha ares de uma relação senhor/ escravo, reafirmando assim o primado das
relações coloniais como ainda vigentes, mesmo em um contexto em que o negro não
está posicionado como empregado doméstico.
Foto 162-Personagens Noronha e Saulo
Fonte: Rede Globo, 2010.
No decorrer da novela Saulo foi assassinado e o esquema de corrupção na
empresa foi identificado pelo protagonista da trama, Mauro (Rodrigo Lombardi), que
passou a pressionar e investigar os passos de Noronha. O personagem negro ficou
desesperado ao perceber que as falcatruas que fez com seu antigo chefe estavam vindo à
tona e, então, ameaçou Mauro com uma arma, ao ver que não conseguia intimidá-lo,
decidiu atirar e Mauro, ao se defender provocou acidentalmente a morte de Noronha. A
construção da idéia de sujeito negro por meio do personagem Noronha encenou a
estereotipia da criminalidade.
Foto 163-Personagens Mauro e Noronha
Fonte: Rede Globo, 2010.
Noronha era um vilão na trama, porém não tinha o destaque e a mesma carga
dramatúrgica dos demais vilões da trama. Figurava como um empregado de alto escalão
de uma empresa, porém desenvolvia uma relação extremamente submissa aos seus
patrões brancos. Noronha não tinha outras relações na trama, que não fossem com os
personagens brancos em seu ambiente de trabalho. Julgo pertinente demarcar que na
202
novela A Próxima Vitima (Rede Globo, 21hras, 1995), do mesmo autor Silvio de Abreu,
Noronha era também o sobrenome da família de personagens negros da trama.
O novelista Aguinaldo Silva, na novela Senhora do Destino (Rede Globo, 21hrs,
2004), apresentou cinco personagens/atores negros que reforçavam o estigma da
vulnerabilidade social do negro, da marginalidade/criminalidade e do fetiche interracial.
Esta estereotipia começou a ser desenhada na primeira fase da novela, por meio da
personagem negra Marina (Ruth Souza), uma governanta leal a sua patroa Josefa
(Marilia Gabriela). As cenas em que Mariana aparecia se resumiam a retratar sua
condição de empregada, sem que essa tivesse sua família ou cenários próprios
explorados na trama.
Na segunda fase do folhetim, cinco personagens negros integraram a trama,
sendo que quatro formavam uma família. O pai Cigano (Ronnie Marrudá) era um expresidiário, não regenerado, casado com Rita (Adriana Lessa), uma cabeleireira, que
tentava se afastar do vício em drogas, mas vivia tendo recaídas. Por conta disso, os dois
filhos adolescentes do casal (vividos por Agles Steib e Jessica Sodré) necessitavam da
caridade da personagem branca, Maria do Carmo (Suzana Vieira), a protagonista da
trama.
Foto 164- Personagem Cigano
Fonte: Rede Globo, 2004
O nome dos adolescentes escrito de forma hibrida entre o inglês e o português,
(Maikel Jackson e Lady Daiane) satirizava um suposto hábito que alguns brasileiros
pobres e de pouca escolaridade têm de dar nome de celebridades internacionais aos seus
filhos. Maikel estudava e trabalhava, porém até o meio da novela figurava como não
tendo documentos pessoais, nem mesmo registro de nascimento. Sonhava em ser cantor,
mas não tinha talento. Nutria uma paixão platônica pela personagem branca, Bianca
(Marcela Barrozo), que nunca o correspondeu, alegando preferência por homens bem
mais velhos.
203
Foto 165- Personagem Maikel Jackson
Fonte: Rede Globo, 2004.
Lady Daiane era rebelde e desobediente. Engravidou duas vezes ao longo da
novela, de diferentes homens brancos, vistos por ela como príncipes encantados. Daiane
enfrentava a rivalidade da também negra Larissa (Juliana Diniz), na conquista do
personagem branco ShaoLin (Leonardo Miggiorin). A personagem Larissa só teve
cenas para materializar o triangulo amoroso acima citado e nas brigas verbais e físicas
que tinha com Daiane pelo amor do homem branco.
Foto 166-Personagens Lady Daiane e ShaoLin
Fonte: Rede Globo, 2004.
O núcleo negro da novela formava uma família completamente desestruturada,
levando em conta padrões ocidentais hegemônicos. Cigano era um péssimo pai, ausente,
não trabalhava, era omisso com os filhos, muito agressivo, espancava a mulher Rita, a
quem explorava financeiramente. Cigano terminou assassinado por um dos vilões
brancos da trama. Rita era alvo da caridade de personagens brancos, se apaixonou pelo
taxista português branco, Costantino (Nuno Melo). Cigano exigiu uma alta quantia em
dinheiro para permitir que Rita pudesse ter um relacionamento com Constantino.
Foto 167- Personagens Rita e Constatino
Fonte: Rede Globo, 2004.
204
Os quatro personagens negros que mais apareceram durante a segunda fase da
novela representaram a imagem de negro relacionada à violência, à exclusão social, à
marginalidade, à malandragem e alvo da caridade dos brancos.
O folhetim Fina Estampa (Rede Globo, 21hrs, 2011), também escrito por
Aguinaldo Silva, apresentou sete personagens negros. Três deles tiveram enunciados
que faziam coro ao fetiche interracial. Os demais somente apareciam orbitando em
torno de personagens brancos. A personagem negra Zilá (Rosa Marys Collyn),
participou apenas dos primeiros capítulos da trama, figurando como uma produtora
artesanal de perfumes e cremes com ervas. Morreu de infarto, deixando para sua
ajudante branca todos os segredos de suas receitas, e esta passa então a fazer sucesso e
ganhar muito dinheiro com estas fórmulas. Zilá não teve sua família ou qualquer amigo
negro retratados na trama, nem nas cenas em torno do seu velório. Os demais
personagens negros de Fina Estampa participaram da trama unicamente em cenas que
os mostravam em seus exercícios profissionais, sem ter a dimensão afetiva, familiar,
nem mesmo cenários próprios mostrados na novela. Nesta perspectiva também figurava
a personagem Mônica (Isabel Fillards) uma advogada que só apareceu em cenas com
sua cliente branca. Contexto semelhante acontecia com o personagem negro Genésio
(Rafae Zoelly), cujas cenas, com poucas falas, se resumiam a servir enquanto garçom
seus clientes brancos, no restaurante francês em que trabalhava.
A última personagem negra a integrar Fina Estampa foi Cicera (Tânia Toko),
que era uma funcionária de uma empresa de serviços de pequenos reparos domésticos
ou automotivos. Entrou na novela somente no final da trama, com cenas sem falas, que
restringiram esta personagem a sua dimensão profissional. A empresa em que Cicera
trabalhava tinha o nome de Marido de Aluguel, e nela mulheres faziam reparos em
automóveis e residenciais. Cada funcionária desta empresa seguia um denominado
biótipo feminino: uma loira, uma obesa, uma índia, e Cicera que era negra.
Fanon (2008) argumenta que a colonização e o racismo alteram profundamente a
subjetividade do negro, que passa a ocupar condição singular, pois foi cultural e
historicamente posicionado em um lugar de sujeição e inferioridade ao branco, enquanto
representante do colonizador europeu. Penso que os enredos das novelas figuram
enquanto signatárias desta lógica que é alicerçada em uma racionalidade colonial.
Assim, a análise das telenovelas citadas neste capítulo aponta que o negro que foi
veiculado nestas tramas foi aquele que, apesar de nem sempre figurar apenas como
205
serviçal ou empregado domestico, “reconhece seu lugar enquanto negro”, como indica
Florestan Fernandes (1972).
Nas telenovelas etnografadas percebi que o personagem negro, mesmo quando
“visível”, pode estar “silenciado”, ou por assim dizer (In)visibilizado. A este respeito
me reporto novamente a Spivak (2010), que entende que toda e qualquer representação
do subalterno está atravessada por construções hierárquicas dos grupos dominantes.
Bhabha (1998) aponta as armadilhas que se constituem nos esforços e tentativas de
descrever e caracterizar o sujeito colonizado. Reportando-me ao contexto do negro nas
telenovelas, localizo enviezamentos na linguagem utilizada para representar o negro.
Este entendimento pode desestabilizar a interpretação de que o contexto de
ampliação da presença de personagens negros nos folhetins brasileiros, processado a
partir de 2001, resultaria em uma maior visibilidade do sujeito negro nos folhetins.
Assim, “maior quantidade” pode não resultar diretamente em “maior visibilidade”. Esta
argumentação parte igualmente da problematização de que presença de personagens
negros pode não materializar diretamente sua participação no enredo. Assim redireciono
a questão para problematizar: maior presença, maior visibilidade, mas visibilidade de
que negro?
206
7 NOVOS PERSONAGENS NEGROS EM CENA?
As telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a 2013, tiveram como
característica o aumento da presença de personagens negros, e estes passaram a figurar
desempenhando profissões até então somente destinadas a personagens brancos. Até a
década de 90, os personagens negros desempenhavam exclusivamente nos folhetins
papéis de empregados domésticos, trabalhadores rurais, criminosos, favelados e
moradores da periferia. Quando, muito ocasionalmente, eram enunciados nos enredos
como pertencentes a classe média, a novela obrigatoriamente abordava como algo
moralmente reprovável a discriminação racial nos contextos constituído em torno das
tramas destes personagens negros.
Alguns atores negros no início dos anos 2000 deram entrevistas com declarações
entusiasmadas com a possibilidade de estar interpretando papeis de personagens bem
sucedidos profissional e financeiramente. O ator Sérgio Menezes, que interpretou o
médico Carlos na novela O Beijo do Vampiro (Rede Globo, 19hrs, 2002), em entrevista
ao Portal Terra, em 2002, demonstrou compreender que este personagem concretizava
uma contribuição da novela ao processo de enfrentamento do preconceito racial “Um
dos maiores prejuízos do nosso país foi o aspecto colonial, arcaico, mofado, que o
português incutiu sobre os negros. A gente vive o reflexo desse equívoco até hoje”.
Menezes, na entrevista em referência, declarou também que não gostava da
denominação “ator negro”, já que ninguém precisa adjetivar da mesma forma os atores
brancos. Afirmava que seu personagem poderia ser interpretado por um ator de qualquer
cor. Entretanto, a etnografia que fiz sobre este personagem indicou tratar-se de um
médico que apresentava um amor platônico por sua assistente branca, vista por ele como
inalcançável.
A atriz Thalma de Freitas, em entrevista ao Jornal do Povo, em 04/05/2002,
mostrava-se também empolgada em poder interpretar o papel de uma advogada
conceituada na novela O clone (Rede Globo, 21hrs, 2001). Thalma destacou, em
entrevista ao periódico citado, que a novelista Glória Perez havia inserido vários
personagens negros no folhetim O Clone, “ela colocou o preconceito no chinelo. A
prova de que ele está diminuindo é que ninguém questiona o fato de Carol ser negra”.
A novela O clone (Rede Globo, 21hrs, 2001), assinada por Glória Perez, centrou
sua narrativa na abordagem da clonagem embrionária, e na cultura árabe-islamica. Ao
longo da sua exibição, apresentou oito personagens negros, com significativa
207
participação no enredo da novela. A personagem Carol tinha pouca carga dramatúrgica,
não tinha seus vínculos familiares e afetivos explorados no contexto da novela, com
cenas restritas à sua vida profissional. Esta estratégia de construir um/uma personagem
negro/negra enunciado como um profissional elitizado foi muito recorrente nas novelas
produzidas por muitos autores ao longo do período alvo desta investigação.
A personagem negra que teve mais destaque neste folhetim foi Deusa (Adriana
Lessa), dançarina e manicure, que sonhava em ser mãe, porém não conseguia
engravidar de seu namorado. A personagem buscou ajuda de um experiente médico,
especialista em reprodução humana, Dr. Albieri (Juca de Oliveira), e passou a se
submeter a tratamentos para engravidar, recorrendo a um doador anônimo de esperma.
Entretanto, Dr. Albieri enfrentava um drama pessoal; a morte trágica de seu afiliado,
Diogo (Murilo Benicio). Como geneticista, estava com estudos bastante avançados no
procedimento de clonagem embrionária e chegou à conclusão de que um clone
efetivaria, na prática “um irmão gêmeo desencontrado no tempo”. E como Diogo tinha
um irmão gêmeo, Lucas (Murilo Benicio) o geneticista decidiu retirar uma célula de
Lucas, para a partir dela poder ter seu amado afilhado de volta. Então, decidiu fecundar
Deusa com uma célula de Lucas, e assim produzir o primeiro clone humano.
Foto 168-Personagens Deusa e Albieri
Fonte: Rede Globo, 2001.
A clonagem humana funcionou e Deusa deu a luz a “Leo” (Murilo Benicio),
uma criança branca, com as mesmas características antropomórficas de Lucas. A autora
permitiu problematizar, com este enredo, o mito da democracia racial no Brasil (DA
MATTA, 1994). Em diversos capítulos, Deusa tinha sua condição de mãe de Léo
questionada, sendo reconhecida como babá de Léo, pelo contexto inusitado de ser uma
mulher negra, mãe de um filho branco. Deusa desconhecia completamente que sua
gestação resultava de tal procedimento, que a fazia apenas mãe natural de seu filho, não
a mãe biológica. Até saber que era fruto de uma clonagem, Leo considerava Dr. Albieri
208
como seu pai, e desprezou sua mãe Deusa quando esta o afastou de Dr. Albieri, por
entender que a proximidade com o geneticista poderia ser prejudicial à relação mãe e
filho.
Quando Léo completou 18 anos, o segredo da clonagem foi revelado. Leônidas
Ferraz (Reginaldo Farias), pai dos gêmeos Lucas e Diogo, entrou na justiça para ser
reconhecido como pai biológico de Léo, e ganhou tal pleito em primeira instancia,
destituindo Deusa do posto de mãe. O primeiro posicionamento judicial reconhecia que
Leo não tinha laços genéticos com Deusa e sim com Leônidas, como pai, e sua falecida
esposa como mãe, e Lucas como irmão. Léo aceitou prontamente Leônidas como pai,
para tristeza de Deusa. Entretanto, a advogada de Deusa recorreu da decisão e provou,
subsidiada por material de plasma do sangue de Léo, a existência de DNA mitocondrial,
uma célula que somente a mãe natural (que gerou a criança) transmite. O vínculo
mitocondrial não assegura traços genéticos entre Leo e Deusa, porém concretizou a
única diferença entre Leo e Lucas, e possibilitou que Deusa fosse reconhecida
novamente como mãe de Léo, e Leônidas o pai.
A escolha de uma mulher negra como cobaia humana para gerar um clone
humano, especialmente por ter dado a luz a um bebê que viria a ser um clone de um
homem branco, fazia com que a condição de negra de Deusa figurasse como um
elemento que propunha a todo instante a suspeição da sua maternidade .
Foto 169-Personagens Deusa e Léo.
Fonte: Rede Globo, 2001.
Deusa, diferentemente de muitos personagens negros, tinha sua família negra
retratada na trama. Morava com sua mãe, a personagem negra, Dona Mocinha (Ruth de
Souza), uma aposentada que ajudava bastante a filha a criar o neto, Léo. A personagem
Mocinha tinha uma irmã, Lola (Léa Garcia). A entrada da trama da personagem Lola,
(segundo o jornal o Estadão de 30/01/2002), se processou porque a atriz que
209
interpretava a mãe de Deusa, Dona Mocinha necessitou se afastar de trama, por alguns
capítulos, por uma crise hipertensiva. Mesmo com seu retorno, a personagem Lola
permaneceu na trama. Porém, assim como Mocinha, só aparecia no cenário da casa de
Deusa.
Foto 170-Personagem Mocinha com o neto Léo quando Criança.
Fonte: http://memoriaglobo.globo.com, 2014.
Outra personagem negra foi Dalva (Neuza Borges), governanta da família
branca e rica de Leônidas Ferraz. Dalva figurava na trama como uma típica mãe preta
do imaginário colonial brasileiro. Abnegada, vivia em função dos patrões, não tinha
cenário próprio, não tinha família ou outros laços afetivos retratados na trama. Suas
cenas se resumiam a servir e demonstrar apego maternal a Lucas e Diogo e a neta de seu
patrão. Dalva via em Léo a reencarnação de Diogo e o amava como filho.
Foto 171-Personagem Dalva
Fonte: Rede Globo, 2001.
No núcleo da novela ambientado em um bairro da periferia da cidade do Rio de
Janeiro, havia três negros. Dona Jura (Solange couto), dona de bar e mãe adotiva de um
filho branco chamado Xande (Marcelo Novaes), era autoritária, batalhadora, ciumenta e
apaixonada. Fazia de tudo pelo namorado negro Tião, o que desagradava Xande, que
percebia que a mãe era notoriamente explorada pelo namorado, apontado pelo enteado
como sendo malandro e acomodado.
210
Foto 172-Personagem Dona Jura.
Fonte: Rede Globo, 2001.
Tião (Antonio Pitanga) era um típico malandro carioca, mulherengo, admirador
de samba, não trabalhava, era sustentado pela namorada, passava o dia bebendo e
comendo no bar de Dona Jura. Este personagem reencenava o estereótipo do negro
malandro e preguiçoso.
A novela apresentou ainda o personagem negro Basílio (Silvio Guindane), um
atendente do bar de Dona Jura, sem família, sem vínculos afetivos com nenhum outro
personagem, exceto com sua patroa. Tinha fama de ser fofoqueiro, e constantemente
era corrigido por sua patroa.
Foto 173-Personagem Tião
Fonte: Rede Globo, 2001.
O clone apesar de apresentar uma personagem negra exercendo profissão
elitizada, a elegante e bem sucedida advogada Carol (Thalma de Freitas), somente teve
cenas retratando sua dimensão enquanto profissional. Segundo dados do jornal Folha
do Povo (Cachoeira do Sul, 04/05/2002), este papel foi fruto de uma negociação feita
pela atriz Thalma de Freitas, com Mário Lúcio Vaz (diretor da Central Globo de
Controle de Qualidade), no sentido de dar a atriz um papel diferente. Até então, havia
interpretado uma escrava em Xica da silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996) e quatro
empregadas domésticas em folhetins na Rede Globo, Vira Lata (Rede Globo, 19hrs,
211
1996) e Laços de Família (Rede Globo, 21hrs, 2000) e nas minisséries Dona Flor e
Seus Dois Maridos e Labirinto, ambas em 1998.
Essa atitude da atriz é um indicativo de como o aumento de quantidade de atores
negros não correspondia ao aumento na qualidade da imagem de negro que era
veiculada. Esse foi também o caso do ator negro Milton Gonçalves, que em 1975 pediu
a autora Janeth Clair que compusesse, para ele, um personagem que usasse terno e
gravata e falasse um português culto. Assim, este ator interpretou na novela Pecado
Capital (Rede Globo, 20hrs, 1975), o personagem Dr. Percival, um psiquiatra formado
na Universidade de Havard.
A novela o clone apresentou oito personagens negros, que seguiram alguns
estereótipos. O personagem Basílio retratou o negro submisso e cômico. As
personagens Deusa, Dona Jura e Dalva, reforçaram o estereótipo da mulher negra
dotada de um instinto aguçado e abnegado no que tange ao exercício da maternidade,
exercida com filhos brancos, que não eram seus filhos biológicos. O personagem Tião
aponta para a paixão do negro pela malandragem, pelas bebidas alcoólicas, pelo samba,
pela exploração financeira da mulher e a completa aversão ao trabalho. A personagem
Carol, que em princípio fugiria aos estereótipos, por ser uma negra que ascendeu
socialmente, foi efetivada com pouca carga dramatúrgica, aparecendo exclusivamente
no exercício de sua profissão.
A reprodução de estereótipos também vai ocorrer em novelas produzidas por
outros autores e que foram marcadas pelo aumento de personagens negros. A dupla de
novelistas Elizabeth Jim e Antonio Calmon, em 2004, escreveu o folhetim Começar de
Novo (Rede Globo, 19hrs, 2004), que enunciava personagens negros desempenhando
profissões até então só direcionadas a personagens brancos. Esta novela foi ambientada
na fictícia cidade de Ouro Negro, localizada no Estado do Rio de Janeiro. A trama trazia
onze personagens negros, divididos, predominantemente, em dois núcleos negros: um
composto pela família negra formada pelo casal Jairo (Mauricio Gonçalves) e
Margarida (Nívea Hellen), e pelos filhos Lucas (Guilherme Bernard) e Dudu (Ramon
Francisco). O núcleo era composto pela família de Joana (Solange Couto), que incluía
seu pai, filho e noras.
O personagem negro Jairo era um geólogo, chefe de plataforma de petróleo. Era
integro, de bom caráter, disciplinado com os filhos, e tinha origem humilde.
Sua
esposa negra Margarida foi sua primeira namorada. Como Jairo passava grande parte do
tempo embarcado na plataforma, acabava por ficar ausente do cotidiano familiar e por
212
isso era afetivamente distante dos filhos, que tinham uma relação de proximidade
apenas com a mãe. Já Margarida era uma diretora de escola pública, alegre, carinhosa
com os filhos, uma mulher bonita, charmosa. Veio de uma família de classe média, se
encantou pela trajetória humilde, porém esforçada, do marido, e foi responsável pela sua
ascensão profissional.
Seu filho Lucas era um adolescente de 15 anos, estudante e esportista, que se
destacava no futebol. Tinha um visual que era considerado radical para cidade onde
morava. Nutria uma paixão platônica pela personagem branca Teca (Juliana Lohmann),
a namorada do personagem branco Betinho (Kayky Brito), seu melhor amigo. O
personagem Dudu, filho do casal Jairo e Margarida, era uma criança negra, que só tinha
amigos brancos para brincar. Lucas e Dudu eram os únicos negros da escola onde
estudavam.
Foto 174-Personagem Lucas
Fonte: Rede Globo, 2004.
A personagem negra Joana era amiga e gerente do restaurante da protagonista
branca da trama, a personagem Letícia (Nathalia do Vale). Joana era uma mulher de
meia idade, casada com um homem branco, mais velho, o médico Pimenta (Antônio
Pedro), que tinha grande atração pela esposa, e uma permanente desconfiança da
fidelidade conjugal desta. O casal era pai do personagem negro Moacir (Gustavo
Mello).
213
Foto 175-Personagens Pimenta e Joana
Fonte: Rede Globo, 2004.
Moacir era o delegado na cidade onde se passa a trama, Ouro Negro. Era
honesto, por isso contrariava os interesses dos vilões da trama. Foi noivo da personagem
negra Eurídice (Isabel Fillardis), com quem tinha uma relação conturbada e, após sua
morte misteriosa, se envolveu com a negra Elvira (Thalma de Freitas), que era uma
administradora que também cantava nas horas vagas. Joana não aceitava o romance do
filho com Elvira, acreditando que a moça só o envolvia em problemas.
Foto 176-Personagens Elvira, Moacir e Joana
Fonte: Rede Globo, 2004.
A personagem Eurídice era uma massagista de SPA, que apelava para toda sorte
de simpatias para conseguir se casar com Moacir. A morte misteriosa de Eurídice , foi
justificada pela escalação desta atriz para a novela das 19hrs que sucederia Começar De
Novo.
A família de Joana era também composta por seu pai Xavier (Toni Tornado),
que trabalhava como caseiro, administrando um sítio de uma família de ex-hippes
brancos, mas morava na casa da filha. O folhetim em questão trouxe ainda personagem
negra Neuza (Mariah da Penha), que trabalhava para patroa branca Janis (Marilia Pêra),
214
e o personagem negro Lazaro (Milton Gonçalves) que fez uma participação especial na
novela.
Embora tenha apresentando um número significativo de personagens negros,
inclusive figurando em profissões de destaque social, e casais negros com significativa
carga dramatúrgica, Começar De Novo reforçou por outro lado, a idéia do fetiche
interracial por meio do adolescente negro apaixonado platonicamente pela namorada
branca do melhor amigo. Explorou, ainda, o estigma da hipersexualização da mulher
negra como alvo da desconfiança do marido branco, por meio da personagem negra
Joana. Esta personagem figurava também como melhor amiga e cupido da protagonista
branca, tendo mais cenas que retratavam sua relação com a amiga do que com a família.
A novela veiculou, também, o estereótipo do adolescente negro se destacando no
futebol, da criança negra que só brinca com amigos brancos e do pai negro ausente por
causa do trabalho.
O novelista Gilberto Braga também apostou na proposta de enunciar em suas
tramas personagens negros figurando em profissões elitizadas. Quando escreveu o
folhetim Celebridades (Rede Globo, 21hrs, 2003) e inseriu seis personagens negros, deu
maior destaque ao personagem Bruno (Sergio Menezes), um fotógrafo famoso, rico,
amigo pessoal da protagonista branca Maria Clara Diniz (Malu Mader). No início da
trama era casado com a também negra Teresa (Michele Valle), uma modelo com a
carreira em declínio. Mesmo casada com Bruno, Teresa se envolveu com o nadador
branco Caio Mendes (Théo Becker), para ganhar publicidade e assim reaquecer sua
carreira. Após a separação do casal negro ainda no início da novela, Teresa saiu da
trama e grande parte das cenas de Bruno se resumiram a visitas ou sessões de fotos para
a produtora da protagonista. Após ser traído pela esposa negra, Bruno só teve
envolvimento com mulheres brancas e nunca teve nenhum parente negro retratado na
trama. Sua condição enquanto negro nunca sequer mencionada por ele ou pelos outros
personagens com quais interagia.
215
Foto 177- Personagens Bruno e Teresa
Fonte: Globo/Divulgação, 2003.
Os personagens Bruno e Teresa apesar de no início da novela figurarem como
casal, ao longo da trama encenaram o fetiche do negro para com o branco. Teresa
figurava como uma mulher negra que deseja um príncipe branco para obter sucesso.
Bruno por sua vez era um homem negro, que após se divorciar da esposa negra,
somente se envolvia com mulheres brancas, sugerindo que estas eram mais leais e fiéis.
Outra personagem negra, que teve significativa carga dramatúrgica no folhetim,
foi Palmira (Adriana Alves). Esta personagem circulava pelos dois núcleos da novela,
ora trabalhando como arrumadeira no apart-hotel do núcleo elitizado, ambientado na
zona sul do Rio de Janeiro, ora enquanto moradora da periferia ambientada no bairro do
Andaraí. Palmira casou-se com um homem branco mais velho, o personagem Salvador
(Roberto Bomfim), dono de uma barbearia e pai do par da protagonista da trama. O
casamento de Palmira e Salvador sugeriu que ela ascendeu socialmente ao se casar com
um homem branco.
Foto 178- Personagens Palmira e Salvador
Fonte: Globo, 2003.
O personagem negro Tadeu (Alexandre Morenno) teve destaque em poucos
capítulos. No início da trama trabalhava como caixa no bar na periferia, e só aparecia
servindo clientes e nunca teve sua família retratada na trama.
216
Foto 179-Personagem Tadeu
Fonte: Globo, 2003.
Posteriormente, Tadeu passou a trabalhar como funcionário de uma clínica de
genética. Mediante a promessa de um encontro sexual com a personagem Darlene
(Debora Secco), Tadeu tentou roubar o sêmen congelado do famoso esportista Caio
(Théo Becker), a pedido de Darlene, que tenta fazer uma inseminação artificial
clandestina, para extorquir um homem rico e loiro, e assim ficar famosa. Entretanto, o
plano saiu errado Tadeu, acidentalmente, trocou o seu sêmen pelo do nadador branco e a
ambiciosa Darlene acaba moralmente “punida”, dando a luz a dois gêmeos negros que
recebem o nome de Darlin e Marlin mas que eram chamados por ela de
“bombonzinhos”.
Foto 180-Personagem Darlene com seus filhos negros.
Fonte: Globo, 2004.
Este contexto, de filhos negros serem uma punição ou um castigo, também foi
encenando na novela Salsa e Merengue (Rede Globo, 19hrs, 1996) de autoria de Miguel
Falabela e Maria Carmem Barbosa. A personagem Teodora Bentes do Gama, que
escrachava sua empregada negra, orgulhava-se de sua descendência européia e dos seus
cabelos lisos, quando decidiu ser mãe por inseminação artificial. Escolheu um doador
canadense para assegurar traços nórdicos a seu filho. Entretanto, o sêmen era de um
canadense negro e Teodora reagiu com espanto quando deu a luz a um casal de gêmeos
negros.
217
A novela Celebridades trouxe ainda outro personagem negro, que só teve cenas
no âmbito de seu exercício profissional, o papel de “Comandante” (Antonio Pitanga).
Era um tradicional militar conservador, que possuía alta patente no Corpo de Bombeiros
e teve poucas cenas na novela. A seqüência em que mais apareceu foi quando expulsou
da corporação um soldado branco Vladimir (Marcelo Farias), depois que este pousou
para fotos sensuais para uma revista direcionada ao público gay.
Foto 181-Personagens Comandante e Vladimir.
Fonte: Globo, 2004.
A protagonista da trama, Maria Clara Diniz, tinha duas funcionárias negras,
Zaíra (Janaina Lince) uma elegante secretária que trabalhava como assistente particular,
e Iara (Sheron Menezes), que era empregada doméstica. Embora figurassem em extratos
sociais diferentes, tinham pouca relevância na trama, com pouca carga dramatúrgica.
Não tinham cenários próprios, não tiveram vínculos familiares ou afetivos retratados na
trama e suas cenas se resumiam a atender a patroa branca. De igual forma ocorreu com
a personagem Regina (Aline Borges), uma empregada doméstica na casa de um dos
namorados da protagonista.
Os personagens Zaíra, Iara e Regina sugerem o entendimento de que o negro,
seja figurando na trama como empregado doméstico ou mesmo desempenhando papeis
de profissionais mais elitizados, é posicionado em um lugar hierarquicamente inferior.
Em Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs, 2011), o novelista Gilberto Braga
igualmente inseriu seis personagens negros, dos quais dois foram propostos como
coadjuvantes, os personagens André Gurgel (Lazaro Ramos) e Carol (Camila Pitanga).
No entanto, tiveram tanto destaque na trama, a ponto de dividir com o casal de
protagonistas brancos, Pedro Brandão (Eriberto Leão) e Marina (Paola Oliveira) a
estampa da capa do CD de duas das quatro coletâneas lançadas com a trilha sonora da
novela. Novamente, atores negros estamparam a capa do CD com coletâneas de trilha
sonora da novela.
218
Foto 182- Capas das Trilhas Sonoras de Insensato Coração
Fonte: Globo/Som livre, 2011.
André Gurgel foi apresentado na trama como o mais bem sucedido designer da
cidade do Rio de Janeiro. Era mulherengo e sedutor, porém sincero. Não iludia suas
parceiras com promessas de amor, deixava claro que procurava apenas sexo. Ao longo
da trama se envolveu afetivamente com uma personagem negra, Carol (Camila pitanga),
chegando a ter um filho. André teve muitas parceiras brancas, representando um
personagem que expressava a hiperssexualização e suposta virilidade do homem negro.
Foto 183- Personagens André, Carol e o filho do Casal.
Fonte: Globo, 2011.
André terminou a novela ao lado da personagem branca, de olhos azuis, Leila
(Bruna Linzmeyer), em uma relação aberta (poderiam ter outros parceiros afetivos e
sexuais), após concluir sua incompatibilidade com Carol, que exigia uma relação
monogâmica.
219
Foto 184- Personagens Leila e André.
Fonte: Globo, 2011.
André era filho de Gregório (Milton Gonçalves), com quem tinha um péssimo
relacionamento. Gregório não tinha profissão definida na trama, era alcoólatra, e vivia
tentando extorquir financeiramente André. Seu perfil era apresentado no site da novela
como um alcoólatra malandro, cruel e ganancioso. Gregório morreu repentinamente em
função de um câncer, para alivio de André. A relação de Gregório e André apontava
para outra tendência nas telenovelas brasileiras de apresentar famílias negras como
desajustadas.
Foto 185-Personagens Gregório e André.
Fonte: Globo, 2011.
A personagem negra Carol Miranda (Camila Pitanga) era um alta executiva de
um grupo empresarial, objetiva e focada no trabalho. No início da trama apresenta um
discurso magoado com relação aos homens, por achar que nunca poderia ser mãe. O
único membro de sua família que apareceu na novela foi sua irmã branca de olhos
verdes, a personagem Alice Miranda (Paloma Bernardi). Carol engravidou de André,
porem a união dos dois fracassa porque Carol não aceita a infidelidade de André. No
final da trama, Carol se casou com um homem branco 30 anos mais velho, Raul
Brandão (Antonio Fagundes), com quem teve mais um filho.
220
Foto 186-Personagens André, Carol e Raul.
Fonte: Globo, 2011.
Com menor repercussão no enredo na trama, a personagem negra Fabiola dos
Santos (Roberta Rodrigues) era uma talentosa cozinheira de bar, cantava e dançava no
estabelecimento, encantando a freguesia, o que deixava seu patrão branco, Gabino
(Guilherme Piva) enciumado e inseguro, pois nutria uma paixão por sua funcionária.
Gabino afirmava que Fabiola era sua “propriedade”. Fabiola se envolveu com um
homem branco, mau caráter e bem mais velho, que prometeu lançá-la como cantora, o
personagem Milton (José de Abreu). Com a morte deste, Fabiola passou a se envolver
com o patrão branco, Gabino, reencenando o chavão da funcionária negra que se
envolve com o patrão.
Foto 187- Personagens Gabino, Fabiola e Milton.
Fonte: Globo, 2011.
Insensato Coração também apresentou personagens negros como empregados
fiéis e submissos aos patrões, sem famílias ou vínculos afetivos com outros
personagens, como foi o caso da personagem Renata (Naruna Costa), uma secretária
executiva da protagonista branca da trama, e de Xicão Madureira (Wendel Bendelack),
um atendente de quiosque na praia. Considero pertinente ressaltar que este personagem
foi construído com um nicho para o humor, era um homossexual caricaturado,
fofoqueiro, mas que tinha bom coração e era muito disposto a ajudar,
incondicionalmente, sua patroa branca.
221
Em alguns contextos, como do personagem André Gurgel (Lazaro Ramos) que
foi enunciado um renomado designer na novela Insensato Coração (Rede Globo, 21hrs,
2011), o papel do negro tinha significativa carga dramatúrgica, sendo explorada sua
vida afetiva com muitas parceiras, reafirmado a questão da hipersexualização do negro,
por meio do estigma da virilidade do homem negro e do reforço à idéia da família negra
enquanto desestruturada, pois o pai de André era inescrupuloso e alcoólatra. Entretanto,
em nenhum momento na novela houve algum dialogo em que a condição de negro de
André fosse mencionada.
Esta estratégia de construir um personagem negro enquanto bem sucedido
profissionalmente, sem nenhuma menção à sua condição de negro, pode dar margem a
duas interpretações: a primeira, de cunho positivo e propositivo, no sentido de que
personagens assim podem materializar uma intenção educativa por parte do novelista no
sentido de sugerir a igualdade do negro e como deveria ser visto socialmente, a segunda
sugere que negros e brancos podem ser iguais por esforço pessoal e meritocrático,
argumentação esta que pode fazer um endosso ao mito do paraíso racial no Brasil, onde
os negros podem conquistar seu espaço e aceitação social. Pode endossar, também, a
negação da existência do racismo e da discriminação negativa ancorada no quesito cor
da pele e fazer coro ao discurso da igualdade entre negros e brancos. Esta tentativa de
silenciamento das diferenças entre negros e brancos forja uma suposta homogeneidade
cultural, promove a negação das desigualdades sociais entre negros e brancos e atua
camuflando a dimensão de cunho racializado presente nas relações sociais no Brasil.
Entretanto, ancorado em Fanon (2008), considero impossível que o negro consiga,
efetivamente, escapar de sua condição de negro, pois esta permanece afirmada em sua
pele como sinal que persiste, mesmo sendo renegado/camuflado.
O novelista Manoel Carlos no contexto da efervescia do debate em torno das
cotas raciais, também propôs personagens negros figurando em profissões elitizadas.
Em Mulheres Apaixonadas (Rede Globo, 21hrs, 2003), seguiu uma tendência de suas
últimas novelas ambientando a trama no bairro do Leblon, na capital carioca, sendo que
apresentava um núcleo elitizado e um núcleo mais popular, formado por personagens
que trabalhavam como serviçais nas residências dos moradores ricos que moravam no
bairro em questão. A trama focava o universo feminino no tocante a vida sexual e
amorosa. O enredo abordou algumas temáticas como homossexualidade, violência
contra idosos, violência urbana, e alcoolismo. Inseriu oito personagens negros. No
evento de lançamento da novela, seu escritor foi questionado pelo programa TV Fama
222
(Rede TV, 20hrs, 2003) se o fato de seu folhetim trazer oito personagens negros se dava
em razão das cotas raciais na mídia que estavam em voga no momento de estréia da
novela. Manoel Carlos negou quaisquer relações com as cotas raciais, declarando-se
apenas preocupado em “retratar a junção de raças que deu origem ao povo
Brasileiro”. Por isso, além de “criar uma família de negros, inseriu na novela a questão
da união inter-racial, e a utilizou como um paradigma de comportamento”. O autor
justificou que inseriu personagens negros discretamente, sem fazer panfletagem disso.
Entretanto, compreendo como tendencioso que, somente no período que coincide
com a repercussão das discussões das cotas raciais na mídia brasileira, um veterano
novelista como Manoel Carlos passe a demonstrar preocupação em, minimamente,
tentar inserir negros de modo a buscar retratar a diversidade étnico-racial do país.
Identifico uma intencionalidade do autor em legitimar com isso o mito da democracia
racial e referendar a premissa de que a população do Brasil é mestiça, miscigenada,
tolerante e solícita a contatos inter-raciais.
Foto 188-Personagens Negros na novela Mulheres Apaixonadas
Fonte: Globo/divulgação, 2003.
A personagem negra que obteve maior destaque na trama foi Luciana (Camila
Pitanga) que era uma médica, filha do primeiro casamento interracial da negra Pérola
(Elisa Lucinda) com o branco Téo (Tony Ramos). Luciana, ao longo da trama, se
envolveu com dois homens brancos: primeiramente o primo branco Diogo (Rodrigo
Santoro) e, posteriormente, com o médico de posição hierárquica superior a dela no
ambiente de trabalho, um homem mais velho, César (José Mayer). Enquanto o romance
durou, Luciana resistia às tentativas de dominação impostas por César, querendo
construir uma relação mais horizontalizada.
223
A mãe de Luciana, Pérola, era uma cantora de uma sofisticada casa noturna da
zona sul do Rio de Janeiro. Era casada com o personagem negro Ataufo (Laércio de
Freitas), um pianista, bem mais velho que ela, que aparecia ocasionalmente na trama. O
casal Pérola e Ataufo eram pais do adolescente negro Jairo (Diego Jack), que também
aparecia pouco e quase não tinha falas na trama. Luciana tinha mais vínculos com os
parentes brancos, no lado paterno, que por serem brancos tinham mais destaque na
trama, aparecendo em todos os capítulos.
Além de Pérola que era uma cantora renomada e Luciana que era médica,
profissões consideradas “elitizadas” no Brasil, a novela apresentou ainda a personagem
negra Adelaide (Lica Oliveira), que era uma professora de uma escola de educação
básica de uma escola de classe media alta. Adelaide era uma personagem com pouca
carga dramatúrgica e só tinha cenas em seu ambiente de trabalho. Cabe destacar que a
cantora negra, somente cantava para um público branco, a médica negra atendia
somente a pacientes brancos, e por fim, a professora negra não tinha nenhum aluno
negro. Os outros quatro personagens negros da novela foram enunciados como sendo
três empregadas domésticas e um motorista.
Em outras novelas, alguns personagens negros foram enunciados nos enredos em
profissões elitizadas, porém figuravam com uma proposta de carga dramatúrgica nas
tramas que pouco os diferenciava de escravos mucamos. Este foi o caso da novela
Negocio da China (Rede Globo, 18hrs, 2008), de autoria de Miguel Falabela. O enredo
trouxe a personagem negra Dra. Myrna (Renata Vilela), uma médica, que nunca teve
sua família ou qualquer parente negro retratado na trama. Esta personagem foi
apresentada no site que hospeda dados sobre a novela como uma das melhores amigas
de Júlia (Natália do Vale), a protagonista branca de meia idade. Grande parte das cenas
de Myrna eram no hospital, ou acompanhando os dramas de amiga branca.
Foto 189- Personagens Dra. Myrna e Júlia
Fonte: Rede Globo, 2008.
224
Myrna nutria uma paixão secreta, não correspondida, pelo colega de trabalho
branco Ramiro (Rodrigo Mendonça), de quem sentia ciúmes e desenvolveu, também,
um relacionamento conturbado com o músico branco e mulherengo Heraldinho (Raoni
Carneiro). Cabe destacar que o ator branco Raoni Carneiro, também havia encarnado
um personagem, Ramon, na novela A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005) também
de Falabela, que da mesma forma era mulherengo e se envolvia, com a personagem
negra Jurema/Whitney (Mary Sheila), tendo um filho e um final feliz ao lado dela.
190-Personagens Dra. Myrna e Heraldinho
Fonte: Rede Globo, 2009.
No folhetim Tempos Modernos (Rede Globo, 19hrs, 2010), o novelista Bosco
Brasil também mobilizou a estratégia de apresentar negros figurando em posições
elitizadas. Esta trama trouxe seis personagens negros.
Destes, a que obteve mais
destaque foi a Tita Bicalho (Cris Vianna), uma delegada integra e dedicada, eximia
lutadora de krav maga e técnicas de defesa pessoal. Era uma mulher muito sensual e
também muito vaidosa. Alegava que não saia de casa sem seu batom e sua pistola com o
cabo perolado. Todavia esta personagem só era abordada na trama em seu recorte
profissional, nunca teve sua família ou qualquer vinculo afetivo retratado no enredo.
Foto 191-Personagem Tita Bicalho.
Fonte: Rede Globo, 2010.
A novela trouxe o adolescente negro Joca (Darlan Cunha), que era filho da
branca Iolanda (Malu Galli). Era um estudante que enfrentava diversos conflitos após a
morte de seu pai negro (nunca retratado na trama), sofria com falta de atenção da mãe,
225
que era muito ocupada com sua profissão. Restava a Joca o carinho da avó negra,
Miranda Paranhos (Eliana Pittman), uma arquivista aposentada, que aproveitava o
tempo livre para tocar trombone.
Abordando a questão da adoção, a novela trouxe o personagem negro Nabuco
Motta (Fabrício Boliveira), um policial amigo de um dos protagonista brancos da trama,
que tinha o histórico de ter sido adotado aos 8 anos, por uma senhora branca, a quem
chamava com carinho e gratidão de Tia Zila. Dela Nabuco herdou uma loja de reparos
de roupa e a administração da loja revelou que Nabuco tinha um enorme talento para a
costura.
Nabuco só aparecia em cenas nas quais estava trabalhando, da mesma forma
que ocorreu a enunciação das personagens negras Dolores/Dodô (Naruna Costa), que
era um massagista e fisioterapeuta, e Izidora Mellão (Luciana Barbosa), uma chefe da
equipe de recepcionistas do edifício que ambienta parte da trama, responsável pelas
fotos dos crachás dos visitantes e que, furtivamente, guardava algumas fotos de pessoas
que lhe agradavam.
A novela A Favorita (Rede Globo, 21hrs, 2008), de João Emanuel de Carneiro,
também apostou em enunciar negros figurando na classe média alta. Nessa trama havia
quatro personagens negros, sendo que três tiveram presença fixa ao longo de toda a
trama. Os personagens que integravam o núcleo negro da novela eram parte da família
do deputado negro Romildo (Milton Gonçalves), um político corrupto, viúvo, que teve
também um romance com uma mulher branca, com quem teve um filho do qual não
assumiu a paternidade. Romildo tinha dois filhos negros “legítimos”, que não apoiavam
a vida de corrupção e crimes do pai, que também era envolvido com o tráfico de armas.
Foto 192- Personagem Romildo Rosa
Fonte: Rede Globo, 2008.
O filho mais velho de Romildo, Didu (Fabrício Bolivieira), era um jovem negro
com cabelo rastafári, sem profissão e alcoólatra. Apaixonou-se por uma mulher branca,
226
que inicialmente resistiu as suas investidas, mas aconselhada pela mãe interesseira,
cedeu aos galanteios de Didu.
Foto 193 - Personagem Didu
Fonte: Rede Globo, 2008.
Romildo tinha também uma filha, Alicia (Tais Araujo), uma artista plástica mal
sucedida, rica, mimada, que se apaixona por um homem branco pobre, porém visto por
ela como um príncipe encantado.
Foto 194 - Personagem Alicia
Fonte: Rede Globo, 2008.
A outra personagem negra, que não era da família de Romildo, foi Jurema
(Mariah da Penha), uma empregada doméstica que aparecia ocasionalmente servindo
seus patrões, encenando um perfil típico de empregada doméstica negra.
O fato de três personagens do núcleo negro da novela figurarem como sujeitos
ricos, com significativa presença e atuação no enredo da novela, não os isentou de
encenar velhos estereótipos sobre o sujeito negro, que resultam de um exercício de
colonialidade. A novela por meio da família de Romildo Rosa retroalimentou os
estereótipos da Cinderela Negra, do negro alcoólatra e vagabundo, dos negros
apaixonados platonicamente por brancos, de casais interraciais, do negro rico como
resultado de práticas ilícitas, do negro vilão, flertando com a criminalidade e da negra
como empregada domestica.
Na novela Avenida Brasil, (Rede Globo, 21hrs, 2012) o autor João Emanuel de
Carneiro inovou ao ambientar uma trama, em sua totalidade, em um contexto de
227
periferia de um centro urbano. Introduziu uma narrativa que priorizou elementos dos
subúrbios cariocas. O bairro fictício, Divino, supostamente localizado no subúrbio da
cidade do Rio de Janeiro, cidade capital de um estado com expressiva população negra,
foi veiculado com apenas 4 personagens negros. A história se desenrolava na dinâmica
entre o universo de um time futebol do bairro e um lixão.
O contexto da invisibilidade do negro no bairro que ambientava a trama, fez cair
por terra o argumento retórico, utilizado por alguns novelistas para justificar a que
ausência ou a escassez de personagens negros nas tramas resultava do fato de que os
folhetins apresentavam muitos núcleos de classe média alta, segmento este que no
Brasil seria formado majoritariamente por sujeitos brancos. Assim as novelas ao
somente retratar este grupo por meio de personagens negros estariam priorizando um
paradigma que se propõe “realista”.
Entretanto, considero pertinente situar o contexto do exercício de colonialidade
feito dos produtos midiáticos ao priorizar, sempre, enredos de sujeitos brancos, mesmo
em um eventual contexto no qual o quesito da verossimilhança lastrearia o indicativo da
presença de negros. Ou seja, mesmo quando um folhetim retrata um espaço social
tipicamente formado por sujeitos negros, na construção da trama, o negro pode
permanecer invisibilizado.
No cenário do Divino havia um salão de beleza, no qual a proprietária Monalisa
(Heloísa Périssé), branca e loira, fazia muito sucesso com sua formula secreta para
viabilizar o alisamento de cabelos de suas clientes. Aqui, penso ser possível identificar a
estratégia de apagamento de um sinal diacrítico do sujeito negro, o cabelo
encarapichado. O time de futebol explorado era o fictício Divino Futebol clube, um time
carioca que não possuía jogadores negros, nem como figurantes.
O lixão que ambientava a trama não tinha catadores de lixo negros, nem mesmo
as crianças de rua que eram acolhidas pela líder do lixão, a personagem branca, “Mãe
Lucinda” (Vera Voltz), eram negras.
O folhetim em questão apresentou apenas quatro personagens negros: Zezé
(Cacau Protácio), empregada da família branca que protagonizava a trama; Silas (Ailton
Graça), dono de um bar; o adolescente Valetim (André Miranda) que trabalhava como
garçom/atendente no bar do Silas e Herculano (Leandro Santana) que era motorista da
família de protagonistas brancos.
Além de serem poucos os personagens negros, suas famílias não eram retratadas
na trama. Considero que a ausência da família dos personagens negros, indica uma
228
desumanização deste personagem. No caso da personagem Zezé (Cacau Protácio), suas
cenas são resumidas a espaços de comicidade enquanto uma empregada doméstica
fofoqueira, que invejava a patroa e as demais empregadas brancas que trabalham na
casa onde era serviçal. Nunca teve sua casa retratada na trama, nem seus familiares ou
mesmo um par romântico. Zezé vivia em função da família dos patrões. A única menção
ao lugar em que morava foi feito por ocasião do seqüestro de sua patroa, que ficou em
um cativeiro na mesma favela em que Zezé morava.
A empregada branca Janaina (Cláudia Míssura) explorava, para além do nicho
de humor, cenas dramáticas de conflitos que vivenciava com o filho branco Lúcio
(Emiliano D'Avila). Janaina tinha uma casa modesta em um bairro próximo a mansão
em que trabalhava, amplamente retratada na trama. Essa personagem tinha uma
empregada doméstica, que também era branca.
Embora as duas personagens empregadas na mansão tivessem as mesmas
funções e salários, foram apresentadas vivendo situações sociais desiguais. Considero
que a cor da pele era o critério que lastreava e naturalizava a transformação das
diferenças étnicas entre Janaina e Zezé em desigualdades sociais e econômicas.
Zezé tinha muita inveja de Janaina, sentimento que era explorado na trama com
ênfase humorística. Em uma das cenas finais da trama, Zezé aparece com Janaina
assistindo a uma partida de futebol. Na arquibancada, Zezé paquera com um homem
negro, que não lhe corresponde. Após a investida de Zezé, o homem passa a paquerar
com Janaína, retroalimentando a inveja de Zezé. O enredo favorecia o entendimento de
que Zezé, na sua inferioridade como negra, invejava a todos, sua colega de profissão
Janaina, a falsa empregada doméstica Nina (Debora Falabela) e sua patroa Carminha
(Adriana Esteves) pelo fato destas serem brancas. Assim, a personagem Zezé encenava
o estereótipo da negra invejosa dos benefícios e privilégios que entendia serem
conferidos aos de pele branca.
As características atribuídas ao homem negro, centradas no campo da
indisposição ao trabalho, da marginalidade, violência/criminalidade têm claras
referências nas relações coloniais, sugerindo que o homem negro teria uma “essência”
enquanto sujeito que seria incompatível com ideais de civilidade e comportamento do
colonizador europeu. Neste sentido, foram recorrentes, nas tramas etnografadas a
construção de personagens negros como criminosos, ou como sujeitos venais, dispostos
a fazer toda espécie de serviço sujo para vilões brancos.
229
A estereotipia da mulher negra enquanto invejosa com relação a mulheres
brancas enunciados na personagem Zezé foi produzida e é retroalimentada no contexto
das relações coloniais, enquanto desdobramento da marcação estabelecida na Casa
Grande e Senzala (FREYRE, 1933), e que tem atravessamentos nas relações
interrétnicas no país. As telenovelas, ao apresentarem a mulher negra como invejosa,
fazem tangencialmente referencia à obra do romancista brasileiro Bernardo Guimarães,
A Escrava Isaura (1875), que retratou o cotidiano de uma fazenda produtora de café no
Estado do Rio de Janeiro. Nesta obra é possível localizar os marcadores de Casa
Grande e Senzala, desenhados por Freyre (1933), como cenários que sediam as relações
entre brancos, negros e mestiços. Tomando a relação de rivalidade entre as personagens
Isaura e Rosa, o autor explora a diferenciação no tom de pele entre as duas, abordada
por meio dos sentimentos de inveja que a personagem Rosa nutria pela personagem
Isaura, de cor mais clara.
Embora ambas fossem escravas, o fato de Isaura ser
detentora de uma pele branca, lhe conferia privilégios. Assim, no contexto da
experiência brasileira das relações coloniais, existe uma dinâmica em que os negros
invejam os mestiços, que por sua vez invejam os brancos. Entendo que esta inveja pode
se travestir de uma fetichização, como expressão de um clamor por aceitação e inserção
social, que pode ser expresso por mecanismos complexos, que podem passar por
sentimentos de amor, ódio, relações de submissão, negociação e dominação, tendo nas
dimensões do desejo afetivo, erótico, sexual espaços de catarse.
Foto 195 - Personagem Zezé
Fonte: Rede Globo, 2012.
Em Avenida Brasil, o personagem negro Silas (Ailton Graça) só tinha
namoradas brancas: a loira, Monalisa (Heloísa Périssé), a ruiva Olenka (Fabiúla
Nascimento) e a loira Ivana (Letícia Isnard).
Silas se fingia de doente para que
Monalisa, que era apaixonada por um homem branco, viesse a se casar com ele, por
pena. Quando passou a viver maritalmente com Olenka, delegou à esposa os cuidados
do bar que possuía e passava o dia em casa ingerindo bebida alcoólica ou assistindo
230
televisão. Este comportamento reforça o estereotipo do homem negro malandro e
indisposto ao trabalho. No final da novela, casou-se coma personagem loira Ivana, que o
chamava de meu chocolate e a quem ele chamava de meu quindim. Os estigmas da
virilidade e da hipersexualização do homem negro também foram explorados na trama,
ficando expressos nas cenas que retratavam o fascínio que o negro Silas causava junto
às personagens loiras. Cabe destaque que Silas era pai solteiro de um filho branco, o
personagem Darckson (José Loreto), que tinha olhos claros, que nunca apareceu em
cena sem estar de boné ou um lenço na cabeça, impossibilitando o público de definir
como era seu cabelo. Ressalto que o nome Darkson significa filho de negro. Silas nunca
teve nenhum parente negro retratado na novela, nem nas cenas de seu casamento. O
contexto constituído no enredo deste personagem permite localizar uma certa
“invisiblidade” do negro, mesmo quando em cena.
Foto 196 - Personagem Silas
Fonte: Rede Globo, 2012.
Os outros dois personagens negros apareciam ocasionalmente. As cenas do
personagem Valentim se resumiam a servir os clientes, todos brancos, no bar em que
trabalhava.
Foto 197 - Personagem Valetim
Fonte: Rede Globo, 2012.
O outro personagem negro da novela, Herculano (Leandro Santana), motorista
da família branca de um ex-jogador de futebol, apareceu somente no início da novela, as
cenas em que atuava eram sempre servindo os seus patrões brancos.
231
Foto 198 - Personagem Herculano
Fonte: Rede Globo, 2012.
Em Sangue Bom (Rede Globo, 19hrs, 2013), a autora Maria Adelaide Amaral
apresentou negros como filhos adotivos de brancos. Este folhetim era ambientado no
bairro Casa Verde, na capital paulista e abordava a temática da hiper valorização da
aparência física, do consumismo e o do desejo pela fama, a qualquer custo. Esta trama
era protagonizada por seis jovens brancos, sendo que três deles eram provenientes de
orfanatos.
Paradoxalmente,
trouxe
sete
personagens
negros,
que
figuravam
secundariamente no enredo e eram enunciados sob a moldura de estereótipos clássicos
sobre a idéia de sujeitos negros/negras, sugerindo que maior quantidade de negros pode
não resultar em uma maior visibilidade nos enredos dos folhetins.
O personagem negro que teve mais destaque na trama foi Jonas (Sérgio
Malheiros), um jovem que tinha o histórico de ter sido adotado, ainda criança, pelo
casal de brancos Gilson (Daniel Dantas) e Salma (Louise Cardoso). Era amigo do
protagonista branco da trama, e era um exímio grafiteiro que sonhava em trabalhar
como webdesigner.
Foto 199 - Personagem Jonas
Fonte: Rede Globo, 2013
Jonas teve um relacionamento com a personagem negra Luz da Silva (Aline
Dias), que por sua vez tinha o histórico de ser acreana e ter sido adotada pela veterana
atriz branca e loira Barbara Helen (Guilia Gam). Luz era a única negra dentre muitos
filhos adotados pela mãe. A jovem decidiu se tornar atriz para conseguir a
independência e, assim, ficar longe de Barbara que era dominadora e autoritária.
232
Foto 200 - Personagem Luz da Silva
Fonte: Rede Globo, 2013
A novela trouxe ainda a recepcionista Mari (Thais Lago da Silva), que era capaz
de tudo para realizar seu sonho de ser atriz. As demais personagens, negras, da novela
Sangue Bom eram empregadas domésticas, sendo que Chica (Eliana Pittman), Emília
(Mariah da Penha), e Santa (Thaís Garayp) eram serviçais de meia idade, que viam
como seus, os filhos dos patrões brancos. Já a personagem negra Sheila (Nanda Lisboa)
era uma empregada doméstica apaixonada pelo filho de seus patrões brancos.
A ampliação da presença negra nos folhetins desencadeou a criação de
mecanismos mais elaborados e sutis no tocante aos enunciados que inferiorizam e
subalternizam os negros nos enredos, como figurar em uma profissão elitizada mas não
fazer menção a condição de negro. A análise etnográfica destes folhetins indicou que
muitos enredos não mobilizaram discursos que permitissem classificação racial de
personagens enunciados visualmente como negros. Assim, entendo que a propagação
nas tramas de uma neutralidade racial entre personagens brancos e negros pode cooperar
para mascarar situações de privilégio de brancos.
Considero que esta estratégia de pregar uma suposta igualdade racial é lastreada
no padrão de subjetivação e posicionamento do negro, engendrado no contexto das
relações coloniais, que por sua vez apresenta o negro como desumanizado, próprio para
ser explorado enquanto mão de obra. A racionalidade colonial direcionou alguns
folhetins a enunciar o personagem negro enquanto existente apenas em sua dimensão
profissional, e assim, naturalizar um entendimento de uma suposta vocação do negro em
servir ao branco e desejar se relacionar com este branco como um passaporte para
ascensão social.
233
8 TUDO ACABA EM DISCRIMINAÇÃO RACIAL ?
Em muitos dos folhetins etnografados a questão da discriminação racial foi
abordada por diferentes enfoques, de brancos para com negros, de negros para com
outros negros, e de negros para com brancos. A discriminação foi retratada de forma
explícita como denúncia, de forma explicita como mais uma “maldade” de personagens
enunciados como vilões, de forma velada e tácita, e por fim de forma satirizada pelo
viés do humor.
A discriminação explícita era uma temática recorrente em torno de personagens
negros das telenovelas das décadas de 70, 80 e 90. A partir dos anos 2000, esta temática
foi menos acionada pelos novelistas, entretanto, por ser uma prática ainda vigente no
Brasil, esteve presente em alguns folhetins que etnografei. Dentre estes destaco a trama
Belíssima (Rede Globo, 21hrs, 2005), assinada por Silvio de Abreu, que trouxe seis
personagens negros, o número máximo de inserção de negros em todas as novelas desse
novelista, mesma quantidade da novela A próxima Vitima (Rede Globo, 21hrs, 1995).
O folhetim Belíssima foi escrito no contexto da efervescência das discussões
acerca das cotas raciais na mídia e, também, de novelas que tinham um número
significativo de personagens negros no enredo. A novela abordou a questão da
discriminação racial por meio da personagem negra Dagmar (Sheron Menezes), uma
atendente de lanchonete, que se envolve com o personagem branco Fladson (Marcelo
Médici). Fladson tinha uma paixão não correspondida pela personagem branca Giovana
(Paola Oliveira) e viu em Dagmar uma espécie de premio de consolação. A
aproximação com Dagmar desagradou a mãe do rapaz, Tosca (Jussara Freire), que não
gostava de negros. Na cena em que Dagmar foi jantar na casa de Fladson pela primeira
vez, para conhecer a futura sogra, Tosca não escondeu seu desapontamento e proferiu a
expressão “minha Nossa Senhora!” diante da surpresa, ao ver que Dagmar era negra. A
princípio julgou-a como se fosse uma empregada doméstica que tinha ido comprar carne
para sua patroa.
A personagem negra inicialmente resistiu a Fladson, por perceber as resistências
que sua mãe tinha a ela por ser negra. Fladson era um açougueiro e trabalhava no
estabelecimento comercial da mãe. Era filho único e alvo de muita intervenção em sua
vida por parte de mãe.
234
Foto 200-Personagens Tosca e Fladson
Fonte: Rede Globo, 2005.
Quando finalmente Dagmar e Fladson começaram a namorar, a moça relevava
todos os xingamentos da sogra. Na cena em que Dagmar leva o pai Isaltino (Tony
Tornado) para a inauguração da churrascaria da sogra, Tosca ofende aos dois, por serem
negros. Dagmar cansada de ouvir os insultos proferidos por Tosca, decide chamar a
policia, e como no Brasil racismo é considerado um crime inafiançável, Tosca foi presa.
As cenas de racismo envolvendo estes personagens tiveram um apelo cômico,
propiciado pela postura despachada e popular da personagem Tosca e de seu filho, que
era gago.
Foto 201 - Personagens Fladson e Dagmar
Fonte: Rede Globo, 2005.
Tosca não passou muito tempo na cadeia e, ainda por lá, começou a fazer
declarações em que demonstrava ter ficado atraída por Isaltino. Considero que o
interesse de Tosca por Isaltino sugeriu que a atração sexual por negros era admissível
para Tosca, o que ela recusava era firmar qualquer compromisso social.
Foto 202 - Personagem Isaltino
Fonte: Rede Globo, 2005.
A novela apresentou duas personagens negras como empregadas doméstica,
Mônica (Camila Pitanga), que se envolveu com homens brancos e Rita (Teca Pereira),
uma ex- presidiária, que em uma cena, sua aparência causou repulsa à vilã da trama, a
235
personagem Bia Falcão (Fernanda Montenegro) que a chamou de pobre diaba. O
discurso da personagem Bia Falcão sobre o incômodo que sentia diante de pessoas
pobres e da emprega negra Rita foi reproduzido na internet, e ganhou versão musical em
redes virtuais porque emplacou o bordão “pobreza pega!”.
Eu não sou hipocondríaca, não, não sou. Pobreza Pega! Pega! Pega com
Sarna! Pega como um vírus! Entra pela pele, pela respiração. Eu controlo a
minha respiração. Eu prendo meu ar sem querer. Sem querer. Não toco em
nada para não me contagiar. Nada! Nos biscoitinhos. Os biscoitinhos daquela
pobre diaba daquela empregada são letais. Letais! Resistentes a qualquer
antídoto. Eu não sei como eu não morri. E a minha doce bisneta tão frágil, tão
delicada, come aquilo!
A questão da discriminação racial, inclusive de negros para com negros foi
abordada, pelo viés do humor, na novela A Lua me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005),
escrita em pareceria entre Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa. Apresentou sete
atores negros, moradores do Beco da Baiúca, uma vila fictícia, localizada no bairro do
Jacarepagúa, na zona oeste da capital do Estado do Rio de Janeiro. Os personagens
negros circundavam a matriarca negra Dionísia da Mata (Chica Xavier), uma dedicada
mãe para os filhos Anastácia/Latoya (Zezeh Barbosa), Jurema/Whirney (Mary Sheila),
Violeta (Isabel Fillardis) e Jorginho (Jorge de Sá).
Foto 203 - Personagem Dionísia
Fonte: Rede Globo, 2005.
Dionísia era a devotada cozinheira da personagem branca Regina (Maitê
Proença), que após a morte da patroa recebeu como herança a mansão em que trabalhou
a vida inteira. Entretanto, o presente lhe rendeu mais dissabores do que alegrias,
fundamentalmente porque suas filhas mais velhas Anastácia e Jurema queriam se
apossar da mansão e despojar a mãe da herança.
Jurema (Mary Sheila) gostava que de ser chamada pelo nome que adotou
“Whitney”. No inicio da trama, trabalhava como arrumadeira, na casa em que sua mãe
trabalhava como cozinheira. Foi construída como uma vilã cômica, mas se regenerou ao
longo da novela. Era profundamente inconformada por ser negra, alisava e pintava de
236
loiro o cabelo, usava pregador de roupa no nariz, no afã de deixá-lo mais fino e outros
artifícios para parecer branca. Envolveu-se e se casou com Ramon (Raoni Carneiro), um
homem branco, filho de seu ex-patrão falido, com quem teve um filho no final da
novela.
Foto 204 - Personagens Anastácia/Latoya e Jurema/Whitney
Fonte: Rede Globo, 2005.
Anastácia (Zezeh Barbosa) adotou o nome de Latoya e figurou, durante toda
novela, como uma vilã cômica, movida por seu desejo de ter dinheiro e embranquecer.
Logo no inicio da novela, Anastácia/ Latoya, perdeu o emprego em uma loja de
calçados porque se recusou a atender um cliente negro como ela, alegando :“não me
abaixo para preto”. Lutava, incansavelmente, contra seus sinais diacríticos negros,
alisava cabelo, usava loção fotoprotetora fator 100 e lentes de contato colorida azul.
Esta personagem desprezava o vizinho negro “Meia Noite” (Jorge Maya), que era
apaixonado por ela. Justificava que o rejeitava por ser negro. “Meia Noite” era
segurança que vivia dormindo na guarita em que trabalhava, porque tinha mais de um
emprego.
As vilãs cômicas, negras, de A Lua me Disse defendiam que apenas se casariam
com homens brancos para conseguir “apurar” a raça. Orgulhavam-se quando se
envolviam com homens brancos e disputavam entre si quem conseguia os pretendentes
mais brancos. Em uma cena mensuravam a “branquitude” de um pretendente pela
possibilidade de, a olho nu, detectar veias azuis na coxa da perna super branca. Latoya
acentuava mais sua ojeriza com relação a outros negros do que Jurema/Whitney.
Ofendia-se quando era classificada como negra, exigia ser tratada como morena clara,
ou “elemento oriundo do continente africano”. Demonstrava, em seus discursos,
repúdio pela própria condição de negra, discriminando outros negros o tempo todo.
Terminou a novela tendo como punição por seu comportamento ter que viver em um
circo no qual se apresentava como a “Monga” a “terrível mulher africana que se
transforma em Macaca”.
237
As personagens Jurema/Whitney e Anastácia/Latoya materializavam uma
proposta de negro que autorizava a discriminação racial aos negros por parte dos
brancos, referenciada no argumento de que “os próprios negros se discriminam”. Estas
personagens indicam a eficácia do discurso colonial, no tocante a assimilação da
racionalidade do colonizador branco por parte dos colonizados negros.
Quando questionados por Gualberto (2005) acerca das personagens negras, os
autores da novela A Lua me Disse alegaram que os exageros das personagens
concretizavam uma estratégia de “conscientização”, propiciada no instante em que o
público telespectador identificasse “o quanto as personagens eram ridículas”. Discordo
deste entendimento dos novelistas, pois problematizo que grande parte do público
telespectador, moldado pelas relações coloniais, não teria como identificar que o
comportamento das personagens era caricaturado. Considero que a introjeção do
discurso colonial pelo imaginário social coletivo brasileiro seguramente direciona o
entendimento de que as personagens em foco tinham um comportamento ridículo
porque permaneciam negras, mesmo que se esforçassem para parecer brancas. A este
respeito, Gualberto (2005) também deslegitimou o argumento dos autores da novela,
afirmando que quando os mesmos resolveram tratar de forma cômica a discriminação de
negros para com negros, estavam externalizando uma contra reação a todo o debate que
o Movimento Negro vinha propondo em torno da questão das relações raciais no Brasil.
A discriminação do negro para com outro negro é um dos principais argumentos
utilizados por alguns brancos para justificar a existência da discriminação racial no
Brasil. Concordo com Gualberto (2005) quando afirma ser equivocado localizar a
prática da discriminação de negro para negro nos mesmos moldes em que um branco
discriminaria um negro. Pois para esse autor, quando um negro discrimina outro negro,
está externando uma insatisfação com sua condição etno-racial, e este processo seria um
construto do legado histórico da escravidão negra no Brasil.
Os personagens Jurema e Anastácia referendavam o entendimento acerca da
supremacia do sujeito branco, no tocante a alusão ao eurocentrismo, emblematizado nos
traços diacríticos opostos aos que materializam a idéia de branquitude. Cabe destacar,
ainda, que este folhetim fez com que estas personagens endossassem o paradigma social
imposto pelas relações coloniais. O mal estar em torno da questão da supervalorização
da branquitude, bem como da discriminação de cunho racial na novela em questão, não
ficaram restritos somente ao escracho aos personagens negros. A personagem “Índia”,
interpretada pela atriz Bumba, figurava na trama como uma índia que trabalhava há
238
anos no Rio de Janeiro como empregada doméstica na casa da personagem branca
Ademilde (Arlete Sales).
A empregada Índia falava muito mal o português e era
humilhada e explorada pelas irmãs de sua patroa, as personagens brancas Adalgisa
(Stella Miranda) e Adail (Bia Nunnes). Em uma das cenas, para impedir que Índia fosse
a uma festa de casamento, Adail e Adalgisa rasgaram, as gargalhadas, a roupa da
empregada, com o discurso “Dança indiazinha, dança”. Ao longo da cena, que durou
03:22, Índia aceitou passivamente ser despida. Somente quando Adail e Adalgisa saíram
do cenário, e Ìndia ficou sozinha em cena, proferiu o discurso: “Índia vai se vingar!”.
Foto 205 -Personagem Índia
Fonte: Rede Globo, 2005.
Segundo o portal Folha On Line, de 30/08/2005, as constantes ofensas feitas
a personagem Índia, desencadearam a produção de uma nota de repudio à novela. A
nota de repúdio foi assinada por entidades ligadas à causa indígena no estado do Mato
Grosso e enviada, posteriormente, ao Congresso Nacional. Em seu texto declarava:
A índia Nambiquara, na caricatura da novela, está condenada ao extrato
mais subalterno da sociedade, quase como se fosse um animal exótico,
divertido, digno de riso. Uma imagem que não é totalmente alheia à nossa
realidade, onde o preconceito legitima a exploração, a expropriação e o
abandono do poder público. Cabe à televisão brasileira o importante papel
de educar, todos sabemos. De um autor/ator respeitado pelo seu público
(Miguel Falabella) esperamos mais do que a confirmação de idéias e valores
que os povos indígenas lutam tanto para superar, nas suas mais variadas
formas de discriminação das diferenças.
O portal citado noticiou, ainda, que O Ministério Público Federal do Estado do
Rio de Janeiro recomendou à Rede Globo, em 29 de julho de 2005, "que não sejam
mais transmitidas na novela 'A Lua me Disse' discursos e cenas que exponham a
personagem Índia a situações constrangedoras ou degradantes".
Considero que a pressão do Ministério Público levou os autores da novela a
escrever, no seu último capítulo, um suposto “desfecho feliz” para a personagem Índia,
bem como um castigo para Adail e Adalgisa, que ficaram pobres e sem ter onde morar.
Nas cenas em questão, os poucos diálogos da personagem intercalam o discurso de uma
narradora, que iniciava enunciando:
239
Ìndia finalmente voltou para o mato, e ajudada por Ademilde,
comprou um sitio perto de sua aldeia, um ano depois ela descobriu em
suas terras a maior jazida de diamantes do país. E enriqueceu
definitivamente, como tinha bom coração, abrigou as duas serpentes
(Adail e Adalgisa). Abrigou mas vingou os anos de maus tratos.
A cena finaliza com Índia vestida como uma mulher ocidental, rica, adornada
com luxuosos vestidos de grife e jóias, sentada em uma sala luxuosa, ordenando aos
gritos, que lhe abanassem e trouxessem-lhe biscoitos. Era abanada por Adalgisa e seu
chá era servido por Adail. Este desfecho, ao simplesmente trocar a posição social da
vitima e do algoz no processo de discriminação, termina por sugerir, a legitimidade da
discriminação, neste caso pontuando que as brancas estavam corretas em humilhar a
Ìndia porque esta era empregada, e ao se tornar rica e ocidentalizada, figurando na
condição de patroa, Índia adotou as mesmas práticas de humilhação daqueles que antes
a humilhavam.
Paradoxalmente, uma referência “politicamente correta” da condição de negro
foi apresentada ao longo da novela A Lua me Disse, com menos destaque, pelos outros
dois filhos de Dionísia. Os personagens Violeta e Jorginho viviam sua condição de
negro de forma bem diferente das irmãs Anastácia e Jurema. No entanto, as cenas em
que esta vivência foi veiculada foram escassas ao longo da exibição da novela. Violeta
era uma administradora e melhor amiga da protagonista branca da trama. Ao longo da
novela, teve um relacionamento conturbado com Lúcio Dantes (Mauricio Mattar), um
empresário, branco. Violeta defendia a causa do orgulho negro e estava sempre em
oposição às irmãs.
Foto 206-Personagem Violeta
Fonte: Rede Globo, 2005.
Já Jorginho era um advogado recém formado, que também atuava como
violonista e cantor. Namorava a também negra Zenóbia (Roberta Rodrigues), uma
empregada doméstica. Jorginho e Zenóbia tiveram poucas cenas, restritas a situações
que abordavam a questão da discriminação racial em seus ambientes profissionais. No
240
caso de Jorginho, as cenas intercalavam ironia e comedia dramática. Abordavam a
questão da discriminação racial, especialmente quando ia trabalhar no escritório de
advocacia das personagens brancas Sílvia (Guilhermina Guinle) e Geórgia Bogari
(Patricya Travassos).
Zenóbia, por sua vez, vivia em conflito com a cunhada Latoya/Anastacia, em
grande parte por discordâncias na leitura acerca da condição de negra. Zenóbia, em uma
seqüência de cenas, foi vítima de discriminação racial ao ser obrigada por um porteiro
de prédio a usar o elevador de serviço, por ser negra. Quando posteriormente soube,
pelo namorado, da existência da lei que coíbe tal prática, retornou ao prédio palco do
evento para notificar o porteiro e constatou que o mesmo havia sido demitido pela
humilhação que a havia feito passar.
O folhetim A Lua me Disse, veiculou a imagem do sujeito negro no campo da
comédia ou do drama. Trouxe, com a personagem Anastácia/Latoya, uma proposta de
negra como vilã cômica e desastrada. Com a personagem Jurema/Whitney, encenou o
estereótipo da negra enquanto empregada invejosa da patroa branca e que se envolve
com o filho dos patrões. Estas personagens abordaram, por meio da comédia, a imagem
do negro que não aceita sua condição de negro e demonstra repúdio pela própria cor,
rejeitando relações amorosas com outros negros.
Por outro lado, a personagem Dionísia era a materialização da imagem da
empregada negra dedicada aos filhos dos patrões, vendo neles seus próprios filhos. Era
um estereótipo da mãe negra enquanto escrava conformada. Cabe destacar que o casal
formado pelos negros Jorginho e Zenóbia não tinha a mesma quantidade de cenas e
carga dramatúrgica que os outros casais da mesma idade, formado por personagens
brancos. A trama em foco abordou a questão racial e o preconceito pelo viés
politicamente incorreto (humor), com poucas cenas que fizeram pontual menção a leis
que coíbem o racismo e discursos em favor do orgulho negro.
A dupla de novelistas Duca Rachid e Thelma Guedes, também abordou a
temática da discriminação racial no folhetim O Profeta (Rede Globo, 18hrs, 2006). Esta
novela resultou de uma adaptação da obra teledramaturgica homônima, escrita por Ivani
Ribeiro, para a extinta TV Tupi em 1977. Esta novela abordava a temática da
clarividência e da premonição. Era ambientada na década de 1950, e localizada, em sua
primeira fase, em um município no interior do Estado de São Paulo e, na segunda fase,
o enredo se desenrola na capital paulista.
241
Esta novela apresentou cinco personagens negros e a questão da discriminação
racial tecia o enredo em torno destes personagens. A cozinheira negra Dedé (Zezeh
Barbosa) trabalhava para a protagonista branca da trama, Sônia (Paola Oliveira), que a
via como sua segunda mãe. O pai de Sônia, o viúvo Piragibe (Luis Gustavo) e a
empregada vivam discutindo. Dedé era mãe solteira e tinha uma filha branca, Natália
(Vitória Pina), uma garota de 13 anos que tinha vergonha da mãe por ser negra e
empregada doméstica. Natália mentia para as colegas da escola, afirmando ser neta de
Piragibe, patrão de sua mãe, fingindo que levava uma vida de menina rica.
Foto 207- Personagens Dedé e Natália
Fonte: Rede Globo, 2006.
Outra personagem negra que também foi enunciada pela temática da
discriminação racial, foi a professora Gilda (Cris Vianna), educadora que era hostilizada
por ser a única professora negra da escola em que trabalhava, sendo alvo de rechaço por
parte de alunos e dos seus colegas professores. Esta escola não tinha alunos negros.
Gilda teve um romance com o personagem branco Camilo (Malvino Salvador), que
tinha vergonha de falar ou mesmo cumprimentá-la diante de conhecidos e somente saia
com ela para locais onde não era conhecido, pois temia ser alvo de chacota por ser visto
ao lado de uma negra. Quando Gilda percebeu a recusa de Camilo em mudar este
comportamento, foi humilhada por ele. O irmão de Gilda, o personagem negro Gabriel
(Enesto Xavier), consternado pelo sofrimento da irmã, foi tirar satisfações com Camilo,
que também o rebaixou ancorado na sua “superior” condição de sujeito branco. Alguns
capítulos adiante, o personagem Camilo, que figurava na trama como um vilão, foi
vítima de um assassinato e Gabriel foi considerado suspeito pela polícia, por considerar
que ele teria motivos para cometer o referido crime.
Foto 208-Personagem Gilda
Fonte: Rede Globo, 2006.
242
Os demais personagens negros que apareceram na trama O Profeta, tiveram uma
limitada participação em alguns capítulos. Este foi o caso da personagem Alice (Sabrina
de Souza), uma criança que teve cenas brincando com amiguinha branca Analu
(Caroline Smith), que era filha do antagonista da trama, Clóvis (Dalton Vigh). Com a
mesma proposta, se materializou a inserção do personagem negro Policial Eustáquio
(Edy Argolo), que só aparecia servindo e atendendo as ordens do delegado Moreira
(Jandir Ferrari), que era branco
O novelista Manoel Carlos no folhetim Páginas da Vida (Rede Globo, 21hrs,
2006), também abordou a questão da discriminação racial em torno dos personagens
negros. Esta trama discutiu, também, homossexualidade, inclusão de criança portadora
de síndrome de down, tratamento de HIV/AIDS. O enredo em questão era ambientado
no mesmo contexto sócio-geográfico do folhetim anterior escrito pelo autor em
discussão. Apresentou oito personagens negros, exatamente a mesma quantidade de
negros que esteve presente que seu folhetim anterior, Mulheres apaixonadas. Este
contexto sugere o entendimento que o dramaturgo em foco, no contexto da
efervescência das cotas raciais em telenovelas, passou a adotar, simbolicamente, um
coeficiente numérico mínimo, no afã de resguardar a participação de um mínimo de
personagens negros em suas novelas.
O autor abordou a discriminação racial por meio da personagem negra Selma
(Elisa Lucinda). Esta era uma médica, casada com um homem branco e loiro, o
enfermeiro Lucas (Paulo César Grande). Considero pertinente demarcar que na novela
Por Amor (Rede Globo, 21hrs, 1998) o novelista Manoel Carlos também escalou o ator
Paulo César Grande como um personagem que mantinha um relacionamento com uma
mulher negra. Assim, localizo nas novelas de Manoel Carlos, a persistência do clichê da
personagem negra que namora com um homem branco e loiro.
Foto 209 - Personagem Selma
Fonte: Rede Globo, 2006.
243
Em Páginas da Vida, Selma, em seu ambiente de trabalho, aparecia em cenas
que retratavam o estranhamento de alguns pacientes e demais funcionários do hospital
pelo fato dela ser médica e negra. A personagem negra sofreu abertamente
discriminação racial por parte de sua enteada, Gabriela (Carolina Oliveira) e de
Angélica (Claúdia Mauro), primeira esposa de seu marido. Angélica não aceitava o fato
do ex-marido Lucas estar casado com uma mulher negra. Lucas hesitou em apresentar
sua filha a esposa Selma, porque sabia da ojeriza desta por negros. O enfermeiro
repreendia a filha todas as vezes que esta agredia a madrasta pela sua condição de negra.
Foto 210 - Personagens Gabriela, Angélica, Selma e Lucas.
Fonte: Rede Globo, 2006.
As personagens Angélica e sua filha Gabriela proferiam discursos e faziam
expressões de nojo e horror quando, insistentemente, verbalizavam sua abominação a
pessoas negras. Em um capítulo, Gabriela ficou nervosa ao assistir a um documentário
sobre a África, que para ela passou a figurar como um lugar terrível, onde só habitavam
sujeitos negros, e em sua maioria doentes. Em outra seqüência de cenas, a adolescente
se recusou a visitar um recém-nascido, por se tratar de um bebê negro.
Foram ao ar, também, as cenas em que Gabriela e Angélica se incomodaram a
ponto de se retirar de uma festa de natal, pois se sentiam profundamente perturbadas
com a presença de dois convidados negros, Salvador (Sérgio Sá) e Lídia (Thalita
Carauta).
O desfecho da novela retomou a questão da discriminação racial, qualificando-a
como uma prática moralmente reprovável. O dramaturgo “puniu” as personagens
Angélica e Gabriela no final da novela. Angélica morreu num ônibus incendiado, por
bandidos negros e a filha Gabriela, agora órfã, como castigo teve que ficar sob os
cuidados do pai e da madrasta negra que a adolescente havia se recusado a abraçar ao se
despedir antes de embarcar na viagem que resultou na morte de sua mãe Angélica.
A disseminação de discursos com ingrediente de discriminação racial, como os
verbalizados por Angélica e Gabriela, podem terminar por banalizar este
comportamento, incitando sua aceitação, pois no Brasil a novela influencia
244
comportamentos. Sobretudo pelo fato de que a “punição” das personagens racistas se
restringiu ao plano moral, não havendo a indicação da perspectiva criminal que tal
prática configura.
Excetuando-se a personagem Selma, que exercia uma profissão considerada
elitizada no Brasil, e o promotor de justiça negro (Alexandre Moreno), que só apareceu
em um capítulo do folhetim, a novela trouxe, como de praxe, três personagens negras
figurando como empregadas domésticas. Destas, Lidia (Thalita Carauta) era a que tinha
maior quantidade de cenas, porém sempre
a retratando em sua dimensão como
empregada doméstica e babá, devotada a patroa Helena (Regina Duarte), que era
protagonista da novela, ajudando-a nos cuidados com a filha adotiva que era portadora
de síndrome de down. As outras personagens que figuravam como domésticas foram
Dorinha (Quitéria Chagas) e Margareth (Carolina Bezerra), apareciam em cenas quase
sem falas, limitando-se a servir aos seus patrões brancos.
O folhetim Páginas da Vida trouxe ainda os personagens negros Salvador (Jorge
de Sá), que era estudante, filho de uma empregada, adotado pela protagonista, a médica
obstetra Helena (Regina Duarte), para sublimar a dor que sofria pela morte de sua filha
biológica. A construção do personagem Salvador esteve circunscrita a reforçar a
imagem caridosa e maternal de Helena. Em outras poucas cenas, Salvador contracenou
em cenas quase sem falas, com sua namorada negra, a personagem Luciana (Aline
Aguiar) que era uma estudante.
Reforçando, como no caso do personagem Salvador, a imagem do sujeito negro
como um sujeito alvo da caridade de brancos, a novela trouxe ainda o personagem
negro Pinhão (Marcos Henrique), menor abandonado, que é acolhido em uma família de
brancos. Pinhão teve poucos diálogos na novela e nas cenas em que atua, o destaque
ficava sobre os personagens brancos que lhe devotavam cuidados.
Foto 211-Personagem Pinhão
Fonte: Rede Globo, 2006.
A primeira trama ambientada nos dias atuais, escrita por Carrasco na Rede
Globo, foi Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007) e também explorou a questão da
245
discriminação racial. Este folhetim consistia na sua primeira novela para o horário das
19hrs. Propunha uma comédia ambientada na cidade de São Paulo-SP e trazia
personagens humanos que cometiam os sete pecados capitais: inveja, ira, preguiça,
avareza, gula, luxuria, e soberba, e personagens anjos que os protegiam e orientavam
para fazer o “bem”. Essa trama apresentou uma criança negra que era uma menor
abandonada, a personagem Benta (Amanda Azevedo). Esta era uma menina inteligente
e sensível, com capacidades paranormais, tendo, inclusive, a habilidade de falar com os
anjos. Conseguia salvar as pessoas de acidentes e ajudar aos que precisavam de
milagres. Benta era filha biológica da empregada doméstica negra Verônica (Sabrina
Rosa), que abandonou a menina por não ter como cuidar dela. Assim, Benta foi adotada
pelo branco Vicente (Marcelo Novaes) e era alvo de discriminação racial por parte da
sua namorada branca, Simone (Samara Filipo).
Foto 212-Personagem Vicente e Benta.
Fonte: Rede Globo, 2007.
Em uma cena da novela Sete pecados, a personagem branca Simone penteava
com força o cabelo crespo de Benta, que reagiu iniciando o seguinte diálogo:
Benta: Ai, ai, ta doendo...
Simone: Ta doendo porque seu cabelo é ruim, por isso que doi
Benta: Meu cabelo não é ruim
Simone:Ah não! olha meu cabelo Benta, tá sentindo como é liso, você não
queria ter um cabelo liso assim igual ao meu... não queria?
Benta: Eu sempre gostei do meu cabelo... eu sou mesmo feia?
A conversa das duas é interrompida pela personagem branca Miriam (Gabriela
Duarte), que percebe o semblante triste de Benta e a questiona. A menina pergunta se
tem o cabelo ruim e por que todas as bonecas tinham o cabelo loiro. Miriam faz um
discurso sobre a beleza de todos os tipos de cabelos e promete que um dia iria dar a
Benta uma boneca parecida com ela.
A trama apresentou uma anja negra, Berenice (Thalma de Freitas), que era
enviada dos céus para guardar o protagonista branco da trama, impedindo que ele
cometesse os sete pecados capitais. Berenice se apaixonou pelo humano branco Régis
246
(Malvino Salvador). Sete pecados trouxe, também, dois personagens negros que
apareciam ocasionalmente, Sandro (Darlan Cunha) um adolescente tímido, que desejoso
de aprender informática era ajudado pela diretora de escola Miriam (Gabriela Duarte)
que o deixava usar o computador da diretoria e Jair (Wilson Rabelo), que era um taxista.
Foto 213-Personagem Berenice
Fonte: Rede Globo, 2007.
Carrasco, na novela Caras e Bocas (Rede Globo, 19hrs, 2009) explorou a
questão da discriminação racial de forma mais ostensiva. Este folhetim era ambientado
em São Paulo-SP, e apresentou oito personagens negros, sendo que a que obteve mais
destaque foi Milena (Sharon Menezes), uma moça esforçada que trabalha inicialmente
como garçonete e posteriormente como recepcionista de um restaurante de luxo. Era
filha de Dirce (Dhu Moraes), uma empregada doméstica muito dedicada à família da
patroa branca Dafne (Flávia Alessandra). Dirce era casada com o branco Nelson
(Ludval Campos) e teve com ele um filho branco, Felipe (Miguel Rômulo). Milena foi
criada como filha de Nelson, mas ao longo da novela, foi revelado que seu verdadeiro
pai era o milionário branco Jacques (Ary Fontoura).
Foto 214-Personagem Milena.
Fonte: Rede Globo, 2009.
A revelação da paternidade faz com que Milena passasse a viver com o pai e,
como uma moça rica, passou a se dedicar ao hipismo. Ao longo da novela Milena se
interessou pelo personagem negro Caco (Rafael Zulu), mas se apaixonou mesmo pelo
personagem branco, mau caráter, Nicholas (Sérgio Marone) que a desprezava, até saber
que era filha de um milionário. Nicolas se casou com Milena e a maltratou muito no
casamento. Milena foi alvo, também, de discriminação racial por parte da personagem
247
branca Judith (Deborah Evelyn), uma administradora inescrupulosa, que questionava a
idoneidade de Milena, hostilizando-a chamando-a de “chocolate”.
Foto 215-Personagens Milena e Nicholas
Fonte: Rede Globo, 2009.
A trama Caras e Bocas trouxe ainda a família negra composta pelo veterinário
ativista dos direitos dos animais, Aluísio (Alexandre Moreno), casado com a também
veterinária Magali (Thalma de Freitas), com quem teve a filha Ada (Amanda Azevedo).
No decorrer da novela, Magali se separou do marido e iniciou um namoro com o
fotógrafo negro Marcelo (Flávio Bauraqui).
Foto 216-Personagens Ada, Magali e Aluísio.
Fonte: Rede Globo, 2009.
A questão da discriminação racial esteve fortemente presente na relação entre
Caco a Láis, pois os pais da moça, Ernani (Roney Fachini) e Zoraíde (Cristina
Mutarelli), se opunham a relação pelo fato de Caco ser negro. Zoraíde era mais incisiva,
implicava com o genro negro, chamava-o de “made in Africa” e dizia, abertamente, que
não gostava de negros. Em contra partida, a personagem negra Paulina (Kennya Costa)
mãe de Caco, não gostava de brancos e reagiu com indignação ao saber que o filho
estava namorando uma moça branca, tentando de várias formas separar o casal. Paulina
batia de frente com a branca Zoraíde, xingava a família da nora de “baratas
descascadas”, “desbotados” e “caras pálidas”. A trégua entre as famílias só foi selada
com o nascimento da filha mestiça, fruto do relacionamento entre Caco e Láis. Na cena
248
em que as famílias contemplavam a neta no berço, a avó negra disse: “Ai de quem
xingar minha neta por ser negra”, em seguida a avó branca retrucou: “Ai de quem
xingar minha neta por ser branca”. Considero que esse desfecho terminou por reforçar
o mito da democracia racial, no qual a impossibilidade de determinar a “cor ou raça
autêntica” da criança, permitiria que ela figurasse num limbo que a faria ser aceita tanto
pelos parentes negros como os brancos.
Paulina era uma negra que somente combatia situações de discriminação de
brancos para com negros, ou seja, somente advogava contra a prática da discriminação
racial em causa própria. Esta postura da personagem, a meu ver, expressa o
entendimento do autor da novela sobre a problemática do negro no Brasil, expresso no
capítulo em que Paulina saiu em defesa da menina negra Ada, quando esta foi
discriminada e reprovada em uma agência de publicidade.
A criança negra Ada tinha o sonho de ser atriz e, mesmo tendo sido a única
criança que conseguiu ter um bom desempenho no teste para ser garota propaganda de
uma marca de sorvetes, foi eliminada sumariamente por não se enquadrar no perfil
idealizado pelos diretores do comercial, que priorizavam somente a escolha de uma
menina loira. Quando a proprietária da marca de sorvete, Paulina, que também era
negra, soube do contexto da discriminação da criança negra no seletivo do comercial
para seu produto, contratou a menina negra e demitiu o diretor que havia reprovado a
criança por ser negra.
No folhetim Morde e Assopra (Rede Globo, 19hs, 2011), também ambientado na
capital paulista e em uma fazenda no interior do Estado de São Paulo, Carrasco
escreveu uma comédia que tinha como pano de fundo a robótica, a arqueologia e a vida
no campo. Esta novela trouxe cinco personagens negros, que não tiveram destaque nem
tão pouco uma trama própria dentro no enredo.
Carrasco novamente abordou a questão da discriminação racial por meio da
personagem Lidia (Ildi Silva), uma moça pobre, empregada doméstica, filha bastarda de
um fazendeiro branco, que lhe deixou uma pequena porção de terra em testamento.
Porém, a moça sofria intensa perseguição dos meio-irmãos brancos e ficou
desamparada. Recebeu a ajuda do personagem branco Tiago (André Bankoff) e se
apaixonaram. O pai de Tiago, Oséas (Luis, Mello) reprovou o namoro do filho pelo fato
de Lidia ser negra e pobre. Em uma cena, Oseás chegou a rasgar o vestido de Lidia,
quando Tiago levou a jovem negra para jantar em sua casa. No final da novela Lidia e
Tiago se casaram.
249
Foto 217- Personagens Lidia, Oséas e Tiago.
Fonte: Rede Globo, 2011.
A novela trouxe a família composta pelo negro Bento (Cosme dos Santos) e a
branca Marli (Daniela Fontan), que eram pais do menino negro Nelsinho (Jorge
Amorim Ramos). O personagem Bento foi apresentado no site da Rede Globo como um
“rude trabalhador do campo”, Bento era muito dedicado ao seu patrão branco, Abner
(Marcos Pasqueim), o protagonista da trama. Marli trabalhava na produção da fazenda
e, também, era muito dedicada à família branca do patrão. O filho negro do casal
somente tinha cenas brincando com a filha branca do patrão, Tônica (Klara Castanho).
A novela não retratou a convivência familiar entre Bento, Marli e Nelsinho,
personagens que não tinham cenários próprios, só apareciam em cenas com seus patrões
brancos.
Foto 218-Personagem Bento.
Fonte: Rede Globo, 2011.
A trama apresentou o casal inter-racial, de meia idade, composto pela
personagem negra Janice (Dhu Moraes) e o branco Roney (Mauro Gorini). Janice era
Cozinheira, e confidente da patroa branca, Júlia (Adriana Esteves). O personagem negro
Igor (Antônio Firmino), que era personal trainner de um SPA, encenava o estigma da
hiperssexualidade e virilidade do homem negro, era objeto de sonhos eróticos das
personagens brancas Irene (Miriam Lins), Augusta (Cissa Guimarães) e Carolina
(Flavia Garrafa).
250
Foto 219 - Personagens Janice e Roney.
Fonte: Rede Globo, 2011.
A questão do racismo também foi abordada por Aguinaldo Silva, na novela
Senhora do Destino (Rede Globo, 21hrs, 2004), por meio da personagem Nazaré
Tedesco (Renata Sorrah), a antagonista e vilã da novela. Nazaré era uma veterana
prostituta de meia idade, que gostava de figurar como uma moralista mãe de família.
Orgulhava-se de ser loira e ter origem alemã, e proferia discursos de satisfação quando
mantinha relações sexuais com vários homens, parceiros amorosos ou clientes. Porém,
expressava incomodo ou mesmo se recusava a manter relações sexuais com negros.
A ocorrência da abordagem da discriminação racial implícita ou tácita em torno
da enunciação de personagens negros nas telenovelas é uma prática recorrente pelos
autores
novelistas.
Entretanto,
nos
últimos
foram
processados
alguns
redimensionamentos em torno de como esta questão tem sido abordada nos folhetins,
que passaram a encampar os dispositivos constitucionais vigentes que coíbem o
racismo. Neste horizonte, percebi uma tendência de punir legalmente ou moralmente os
discriminadores.
Neste contexto formas sutis e tácitas de discriminação foram
acionadas em alguns enredos.
Uma significativa alteração que identifiquei nos folhetins etnografados que
abordaram a questão da discriminação racial explícita foi a apresentação, em alguns
enredos, de discursos nos quais negros discriminavam outros negros, como na novela A
Lua Me Disse (Rede Globo, 19hrs, 2005) e negros que discriminavam brancos, como na
novela Sete Pecados (Rede Globo, 19hrs, 2007) e Duas Caras (Rede Globo, 21hrs,
2008). Considero que esta estratégia pode estar relacionada à intencionalidade de alguns
novelistas em sugerir que o negro também faz uso da discriminação racial, o que os
nivelaria aos brancos, que também comentem tal prática.
251
9 À GUISA DE CONCLUSÃO: (in)visibilidade negra nas telenovelas
A ameaça simbólica das cotas raciais constitui um ganho político, um espaço
conquistado e mantido mediante permanente pressão política, resultante de processos
históricos de movimentos de resistência iniciados por atores e intelectuais negros, que
foram posteriormente encampadas pelo poder legislativo. A proposição do projeto de
cotas para negros na mídia brasileira inovou positivamente ao instaurar um debate em
torno da participação de negros em telenovelas brasileiras. A repercussão em torno do
projeto das cotas contribuiu para indicar a escassez de possibilidades do negro nas
telenovelas, o que desencadeou a preocupação dos autores em assegurar sua presença
nos folhetins. Assim, a discussão acerca das cotas adquiriu um caráter propositivo e
possibilitou a “abertura do sistema”, materializando resultados que podem ser
identificados no aumento numérico da participação de negros e negras nos folhetins. O
período constituído a partir de 2001 instaurou na mídia brasileira uma estratégia
direcionada a intervir sobre a discriminação racial ao negro, expressa na ausência deste
em seus produtos.
Enquanto expressão de uma fratura no discurso colonial (BHABHA, 1998)
reproduzido pelos enredos das telenovelas, o espaço enunciativo destas no tocante a
construção dos personagens negros, segue atualmente ainda tocado pela ameaça
simbólica, embora esta hoje não é apenas um espectro das
possibilidades de
institucionalização das cotas raciais, se expressa sobretudo pelo fato das telenovelas
estarem passíveis de judicialização, pois o texto Constitucional brasileiro incorporou
dispositivos que criminalizam o racismo e a xenofobia, e também pelo fato dos folhetins
estarem atualmente sob uma permanente vigilância social e política de segmentos
consideráveis do público
telespectador
através das redes sociais,
e também de
movimentos sociais que “fiscalizam” os produtos midiáticos de modo a monitorar
participação de negros. Estes elementos articulados alargam fissuras no lócus de
enunciação da presença negra nos folhetins enquanto um processo de resistência que
expressa uma apropriação da perspectiva do pensamento liminar (MIGNOLO, 2003).
A perspectiva teórica da colonialidade me permitiu problematizar os
mecanismos que subjazem ao cenário de aumento numérico de negros nas telenovelas,
fornecendo pistas que nortearam uma interpretação dos elementos que constituíram e
eventualmente retroalimentam esta tendência de ampliação da presença de personagens
negros em telenovelas. Primeiramente, parti do pressuposto de que ausência de
252
personagens negros em telenovelas constituía invisibilidade. Esta invisibilidade era
tautologicamente localizada como um instrumento de exclusão do negro e reafirmação
do discurso colonial. Foi então que percebi que este pressuposto podia me enclausurar
na armadilha de um esquema de interpretação quase intuitivo e binário, que percebia a
ausência como única expressão de invisibilidade. Conseqüentemente, apontaria a
presença de personagens negros como sendo automaticamente igual a sua visibilidade
nos folhetins brasileiros. Assim, estaria naturalizando a idéia de visibilidade,
constituindo-a exclusivamente pelas experiências da presença física do negro nos
folhetins. Este seria um entendimento mecanicizado em torno da idéia de visibilidade,
construído pela detecção de que uma quantidade numericamente maior do negro nas
telenovelas conferia maior visibilidade ao negro. Neste horizonte, discuti as diferentes
propostas de personagens negros que foram veiculadas pelas telenovelas no período
recortado por esta análise.
No contexto das telenovelas, que são produtos midiáticos produzidos sob o signo
das relações coloniais, esta visibilidade auferida aos personagens negros é relativa, por
ser viabilizada por uma linguagem produzida pelo discurso colonial, que veicula uma
idéia de sujeito negro construída enquanto um depositário de diferenças,
paradoxalmente oposto a idéia de sujeito branco. Assim, esta visibilidade é ambivalente,
portadora de uma polissemia que, ao mesmo tempo em que insere os negros nos
enredos, e os afirma enquanto personagens, porém os segrega sócio-espacialmente nas
tramas, negando a possibilidade de construção de um significado de humanidade como
aos personagens brancos. A forma como os personagens negros dificilmente têm suas
famílias apresentadas na trama e, também, a forma como as famílias negras são
retratadas, apontam para a ambivalência da visibilidade conferida aos personagens
negros nos folhetins.
Meu esforço em tentar agrupar os folhetins por estereótipos ou temáticas
preponderantes, resultou de uma tentativa de classificação de uma vasta etnografia feita
tendo como foco 68 folhetins produzidos pela Rede Globo de 2001 a 2013, com vistas a
problematizar como se produz socialmente as diferenças entre negros e brancos nestas
novelas, especialmente como é enunciada e apresentada a imagem e significação do(a)
negro (a).
A análise do material etnográfico indicou que o aumento quantitativo no tocante
à presença de negros nas telenovelas não pode ser interpretado automaticamente como
um aumento qualitativo. Assim, no contexto das telenovelas brasileiras não é possível a
253
equação de que uma maior quantidade de personagens negros/negras, resulta
diretamente em uma maior visibilidade destes nos folhetins. Nem toda presença de
personagens negros em uma telenovela, assegura uma participação efetiva deste no
enredo. Em alguns folhetins como Amor à Vida (Rede Globo, 21hrs, 2013) escrito por
Walcyr Carrasco, grande parte dos personagens negros que apareceram ao longo da
trama, não foram fixos ao longo da exibição da novela, figurando em limitadas cenas e
em capítulos específicos, mas não participam efetivamente da trama.
Percebo que as estratégias de visibilidade/invisibilidade em torno dos
personagens negros, construídas pelos enredos das telenovelas, fornecem enunciados
que localizam o status subalterno do negro nas instituições coloniais, de modo a
reverberar o discurso colonial, por intermédio das formas como estes são situados,
retratados, ignorados, ou inseridos nas telenovelas. Assim, o discurso colonial, constrói
uma “visibilidade” constituída pelo enunciado, representação e apresentação do
colonizador branco. Nesta perspectiva, sob os moldes da enunciação do colonizador
pode não ser possível ao negro ter enunciação própria, porque, mesmo tendo a
oportunidade de falar e de ter visibilidade, os personagens negros o fazem
completamente reféns do modelo de estética, linguagem e significado do sujeito branco.
No contexto da presença do negro, ou da ampliação quantitativa desta nas telenovelas
da Rede Globo, a visibilidade conferida por um enunciado configurado pela lógica do
colonizador, pode, em alguns casos, não alterar a condição de silenciado/invisibilizado
do negro enquanto subalterno.
Uma análise acerca do contexto do alargamento da presença do negro nas
telenovelas, permite apontar que nestas a imagem que aparece é do negro, mas o espaço
em que este personagem negro figura é de propriedade do branco, reafirmando assim
uma relação de hierarquia étnico-racial, e apontando que a visiblidade é uma dimensão
de poder, poder este que não se expressa apenas na repressão do espaço delegado ao
negro, mas sobretudo um poder que produz este negro, posicionando-o em um lugar
demarcado colonialmente.
A construção de personagens negros/negras baseados na produção/reprodução
de estereótipos materializa uma estratégia muito utilizada pelos autores novelistas para
dar (in)visibilidade à produção social da significação do personagem negro. Aqui me
reporto à discussão feita por Bhabha (1998) acerca de hibrirismo, haja vista, que
considero que no processo de produção da enunciação de personagens em um enredo de
um folhetim, ocorre uma significação intercultural, ou seja, a cultura do colonizador
254
(branco) enuncia bens culturais dos colonizados (negro/negra). O que pode também
permitir uma interpretação de que este negro/negra pode permanecer invisibilizado,
mesmo estando visível por esta (in)visibilidade por vezes constituída por meio de
processos de estereotipia. As estratégias de visibilidade/invisibilidade fornecem
enunciados que qualificam os personagens negros e estes são criados e inseridos nas
tramas sob a ótica do branco, pensados pelo branco, figurando nos folhetins ora como
negros que agem mimetizando os brancos (BABHA, 1998), ora como objeto de desejo,
repudio, temor, medo, raiva ou subserviência.
A presença dos/das personagens negros/negras nas telenovelas etnografadas
pode ser qualificada como uma visibilidade híbrida, pois se processa num contexto de
produção de diferença colonial. Enquanto representação é hibrida por condensar traços
dos dois discursos, o do colonizador e o liminar (do negro). Os enunciados dos
personagens das novelas expressam a produção social das diferenças entre negros e
brancos. Considero relevante sinalizar que as estratégias acionadas pelos novelistas para
dar visibilidade aos personagens negros nos folhetins foram mobilizadas para dar uma
resposta ao debate constituído em torno das cotas e apontam para a vigência das
relações coloniais no tocante a produção das diferenças entre negros e brancos.
Entre os anos de 2004 a 2012, seis telenovelas foram produzidas com presença
de protagonista(s) negro(s). Enfatizo que dos folhetins produzidos no período
compreendido entre 1963 e 2000, apenas duas haviam apresentado protagonistas
negros. Para não cair na armadilha de fazer uma análise positivada deste panorama de
ampliação, considero pertinente fazer algumas demarcações.
A primeira demarcação que faço, refere-se ao fato de que os folhetins estrelados
por negros, foram protagonizados pelos mesmos atores: Taís Araújo, Lazaro Ramos e
Camila Pitanga. Taís Araújo (25/11/1978) estreou na televisão em 1995, na novela
Tocaia Grande (Rede Manchete, 22hrs, 1995). No ano seguinte, interpretou o papel
título do folhetim Xica da Silva (Rede Manchete, 22hrs, 1996). Este personagem lhe
conferiu notoriedade, reconhecimento profissional e o convite para ingressar na Rede
Globo em 1998. Na Globo, foi escalada para a novela Anjo Mau (Rede Globo, 18hrs,
1998), Meu Bem Querer (Rede Globo, 19hrs, 1999). Atuou em diversos filmes, até
receber o convite para protagonizar o folhetim Da Cor do Pecado (Rede Globo, 19hrs,
2004), assinado pelo autor João Emanuel de Carneiro. Esta novela causou muita
repercussão por apresentar uma protagonista negra, abordar a questão da discriminação
racial e dos preconceitos vividos pelo negro e, também, reforçou os estereótipos sobre o
255
negro, a começar pelo título que demarcava que a cor do pecado (sexual) é negra. A
personagem Preta, protagonista da trama em questão, exponenciou a atriz Taís Araújo
ao time do primeiro escalão das atrizes da Rede Globo.
Passados dois anos, Taís Araújo, recebeu um papel de destaque na novela
Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006). Seu status de protagonista e também de
Lazaro Ramos neste folhetim, foi demarcado após o primeiro mês de exibição da trama,
diante da enorme aceitação do público em relação aos personagens interpretados pelos
dois, pelas cenas de comédia que propunham. Os dois interpretavam Ellen e Foguinho,
respectivamente, personagens que ficavam ricos, por meio de um golpe. O humor
proposto pela novela, através destes personagens, advinha do elemento inusitado de ver
dois negros, despreparados, vivendo mil trapalhadas e trapaças em torno da fortuna que
recebiam.
A novela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), do autor Manoel Carlos
manteve a tradição deste dramaturgo em atribuir o nome de Helena para a protagonista,
mas inovou apresentando a primeira Helena Negra, papel protagonizado pela atriz Taís
Araújo. Em 2012, Taís Araújo interpretou um dos papeis de protagonista na novela
Cheias de Charme (Rede Globo, 2012). Deu vida à personagem Penha, uma empregada
doméstica, que sustenta o marido não-negro, o filho e os dois irmãos. Trabalhava para
patroas brancas. Agregou-se com duas outras empregadas domésticas, porém brancas,
Cida (Isabele Drumond), e Rosário (Leandra Leal) e formou o grupo musical
“Empreguetes”. Penha era a única das três “Empreguetes” que não tinha escolaridade e
não conjugava os pronomes pessoais e os tempos verbais, segundo a norma brasileira
culta de linguagem. Ao longo da novela Penha foi cortejada por homens brancos,
inclusive pelo marido de uma patroa.
O ator Lázaro Ramos (Salvador, 01/11/1978) começou sua trajetória profissional
no teatro e cinema. Ingressou na Rede Globo em meados de 2003, participou de
diversos programas no formato série, até se tornar um dos protagonistas de Cobras e
Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006) ao lado da atriz Taís Aráujo. Lazaro foi
coadjuvante na novela Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2007) e Insensato Coração
(Rede Globo, 21hrs, 2011). Em 2012 interpretou o personagem Zé Maria, protagonista
da novela Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012).
A atriz Camila Pitanga (Rio de Janeiro, 14/06/1977) é filha do ator negro
Antônio Pitanga. Começou sua carreira em 1984, como figurante no filme Quilombo, de
Cacá Diegues. Em 1988 passou a trabalhar como assistente de palco da apresentadora
256
Angélica, no programa Clube da Criança da Rede Manchete. Em 1993 integrou o elenco
da mini-série Sex-Appel (Rede Globo, 22hrs, 1993), atuou em papeis secundários em
algumas novelas nos anos seguintes, até receber o primeiro papel de destaque de sua
carreira: o da prostituta Bebel na novela Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs, 2007).
Na trama, esta personagem era categorizada pelos demais como mulata/negra/morena.
Envolvia-se com homens brancos e ricos e era explorada por um cafetão. Considero
relevante destacar que a personagem Bebel foi inicialmente direcionada a atriz, branca,
Mariana Ximenes, com sua recusa, o papel foi oferecido a atriz Camila Pitanga.
Com exceção da atriz Zezé Motta na novela Pacto de Sangue (Rede Globo,
18hrs, 1989), somente os três citados atores negros estamparam capas de CDs com as
coletâneas com as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Camila Pitanga, em A
Próxima Vitima (Rede Globo, 21hrs, 1995) e Paraíso Tropical (Rede Globo, 21hrs,
2007); Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009), Insensato Coração (Rede Globo,
21hrs, 2011), e Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012). Taís Araújo estampou a capa
da trilha sonora das novelas Anjo Mau (Rede Globo, 18hrs, 1998) e Da Cor do Pecado
(Rede Globo, 19hrs, 2004), Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009). Lazaro Ramos
estampou as coletâneas de Duas Caras (Rede Globo, 21hrs, 2008), Insensato Coração
(Rede Globo, 21hrs, 2011) e Lado a Lado (Rede Globo, 18hrs, 2012).
O fato dos mesmos três atores atuarem como protagonistas, ou serem
considerados qualificados para atuar como protagonistas no contexto de um país
constituído por mais de 60% de negros e mestiços, me leva a interpretar esta proposta
de escalação dos mesmos três atores negros, como uma estratégia para sugerir um
contexto de igualdade racial, como já ocorria desde os tempos dos bailes da corte do
Brasil Imperial, no qual segundo Costa (2008) a Princesa Isabel dançava sempre com os
mesmos poucos negros.
Por outro lado, das seis novelas que apresentaram protagonistas negros, apenas
uma foi veiculada no horário nobre, o das 21hrs. Este horário na Rede Globo é o mais
caro para anunciantes e, segundo dados do IBOPE (2005), desde a década de 1970 esta
emissora exibe folhetins que alcançam maior audiência.
Outro ponto que quero destacar está relacionando ao fato de que, com exceção
da telenovela Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), escrita pelo veterano autor
Manoel Carlos, todas as demais foram escritas por autores iniciantes, que começaram a
escrever a partir de 2001, no contexto da “ameaça simbólica” das cotas raciais. Da cor
do pecado (Rede Globo, 19hrs, 2004) e Cobras e Lagartos (Rede Globo, 19hrs, 2006),
257
foram, respectivamente, a primeira e a segunda novela do autor João Emanuel de
Carneiro. Cama de Gato (Rede Globo, 18hrs, 2009) foi a segunda novela assinada pelo
trio de autores Duda Rachid, Thelma Guedes. Entretanto, a primeira novela assinada
pela dupla de autores em questão, o folhetim O profeta (Rede Globo, 18hrs, 2006),
consistiu em um remake, uma adaptação homônima do folhetim O profeta (TV Tupi,
20hrs, 1977), escrito originalmente pela autora Ivani Ribeiro.
Entendo que os dramaturgos iniciantes, no esforço de consolidar sua posição na
constelação em que figuram os autores veteranos, apostaram em elementos novos e
inusitados em seus folhetins e a indicação de protagonistas negros consistiu em uma
estratégia “ousada”. Manoel Carlos, autor de Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009),
manteve sua peculiar narrativa: a trama em questão era ambientada no bairro carioca do
Leblon, como seus demais enredos e apresentava a protagonista com o nome de Helena.
A personagem helena interpreta pela atriz Taís Araújo, consistia na oitava “Helena”
produzida por este autor, foi a única que não se tornou mãe ao longo da novela.
Considero que, no atual momento, o negro conquistou uma presença maior nas
telenovelas, entretanto, quando os personagens negros estão na posição de
protagonistas, os consagrados estereótipos são retratados de forma tenaz.
O passeio pelo enredo das telenovelas da Rede Globo, produzidas de 2001 a
2013, me permitiu perceber que estes folhetins, diferentemente daqueles exibidos nas
décadas anteriores, não reduzem a possibilidade da presença de personagens negros às
senzalas dos enredos históricos sobre o sistema escravista no Brasil, nem apenas à
atualização deste modelo através de personagens que figurem nas tramas como
domésticos, motoristas, seguranças ou criminosos.
Nas telenovelas produzidas a partir de 2001, observei uma perspectiva crescente
da constituição de personagens negros/negras que não mais figuravam nas tramas
apenas desempenhando papeis de empregados domésticos ou profissões que indicavam
pouca escolaridade. Os folhetins produzidos no período recortado pelo presente estudo
apresentaram uma significativa quantidade de personagens que foram enunciados nas
tramas desempenhando profissões consideradas elitizadas, como médicos, cantores,
modelos, milionários, deputados, executivos, advogados, juízes. Entretanto mesmo
quando este/esta personagem figurava nas tramas, desempenhando profissões, que nas
décadas anteriores eram destinadas a personagens brancos/brancas, estes personagens
negros/negras não tinham suas famílias retratadas nos enredos, não tinham sua condição
enquanto negro explicitamente mencionada, figuravam nas tramas em função de
258
personagens brancos e apresentavam um comportamento direcionado aos personagens
brancos tão submisso quanto ocorria com os personagens apresentados como
profissionais domésticos e serviçais.
Foi bastante recorrente nos folhetins analisados, a presença de negros e negras
enunciados como melhores amigos/amigas, ou leais confidentes de personagens
brancos, assistentes pessoais de brancos, a exemplo dos escravos que trabalhavam como
mucamos ou das aias de confiança, típicos do regime escravagista brasileiro.
Identifiquei, também, o endosso ao discurso colonial, na construção de personagens
negros que figuravam nas tramas tutelados por personagens brancos e os enxergavam
como salvadores ou protetores, devotando-lhes uma lealdade ou gratidão irrestrita e
reforçando o ideal de superioridade moral e ética dos personagens brancos, expressas
por sua bondade e generosidade. Um clichê fortemente explorado neste contexto foram
os personagens brancos que adotaram ou protegeram crianças negras.
Até quando os personagens negros eram os protagonistas, havia na composição
dos enredos em torno destes personagens, uma ligação que atrelava este personagem
negro a personagens brancos, especialmente na condição de par romântico, e/ou
antagonista na trama. Este foi o contexto da personagem Preta (Taís Araujo) em Da Cor
do Pecado (Rede Globo, 19hrs, 2003), Foguinho (Lazaro Ramos) e Hellen (Taís
Araújo) em Cobras e Lagartos, Rose (Camila Pitanga) em Cama de Gato (Rede Globo,
18hrs, 2009), Helena (Taís Araújo) em Viver a Vida (Rede Globo, 21hrs, 2009), Zé
Maria (Lazaro Ramos) e Isabel (Camila Pitanga) em Lado a Lado.
Neste horizonte, também penso ser possível interpretar uma presente ausência
do negro, ou seja, este pode estar presente, visível, porém pode permanecer
invisibilizado, silenciado, por ter sido construído na trama em um contexto de pouca
carga dramatúrgica, sendo retratado unicamente em sua dimensão profissional, ou
unicamente com ligação afetiva com personagens brancos.
Grande parte das famílias negras apresentadas nas novelas que etnografei
figuravam nas tramas como desestruturadas, quando comparadas às famílias de
personagens brancos, permitindo identificar desajustamentos como filhos bastardos, de
pais ignorados, relações com a criminalidade, além da presença do estigma do pai
ausente ou, quando presente, alcoólatra e negligente com a família. A mãe, muito
trabalhadora, tinha que se desdobrar para conciliar o trabalho e a criação dos filhos
praticamente sozinha.
259
Outra nova estratégia que identifiquei como adotadas pelos novelistas foi dar aos
personagens negros o mesmo tratamento dos brancos nas telenovelas, pelo viés das
possibilidades de consumo e negando-lhe toda e qualquer referência a sua condição de
negro. Uma característica que distingue a presença de negros/negras no período
abarcado pela pesquisa, aponta para que, a partir de 2001, os personagens negros
passaram a figurar
nos folhetins desempenhando profissões até então somente
destinadas a personagens brancos, sem sua condição de negro fosse mencionada
diretamente nos discursos veiculados pela telenovela.
Os folhetins analisados reeditam a estratégia de explorar uma suposta
hiperssexualidade da mulher negra e o fetiche da relação da mulher negra e do homem
branco e criaram algumas novas estratégias como a ênfase na beleza exótica e a
virilidade/malandrangem/criminalidade em torno do homem negro, bem como o fetiche
da relação entre um homem negro e uma mulher branca. Sobretudo quando os
personagens negros/negras estiveram na posição de protagonistas, os consagrados
estereótipos e estigmas estiveram fortemente presentes na composição dramatúrgica
destes personagens ao longo do folhetim.
As telenovelas tendem a enunciar os personagens negros intercalando processos
de estereotipia. Os enredos tendem enfatizar um estereotipo em torno do negro/negro
como por exemplo, a questão da hiperssexualidade, também promovem no mesmo
enredo atravessamentos de outras expressões de estereotipias em torno do negro como a
criminalidade ou subserviência a personagens brancos em moldes escravistas, mesmo
sendo uma trama contemporânea.
Mesmo diante da identificação de que processos de estereotipia permearam as
propostas de enunciação de personagens negros nas telenovelas analisadas, localizo que
pontes que permitem novas expressões de visibilidade para negros, foram construídas
no contexto da ampliação da presença de personagens negros nos folhetins. Considero
que este aumento tem um caráter ambivalente porque foi estabelecido por meio da
representação de estereótipos em torno do negro.
Em Bhabha (1998) enxergo a dimensão ambivalente do processo de estereotipia
dos negros nas telenovelas, pois se por lado os estereótipos podem os reduzir,
invisibilizar e obliterar a diversidade, por outro lado, materializaram a chave de abertura
da possibilidade de personagens negros obterem visibilidade nos folhetins.
Ancorado na idéia de “pensamento liminar” proposta por Mignolo (2003)
percebo a necessidade de estar atento a armadilha de obliterar a ambivalência do
260
estereotipo no tocante a presença de negros nos folhetins, no discurso fácil de que
representado nos enredos por meio da estereotipia, o negro permanece inegavelmente
invisibilizado. Considero que o aumento da visibilidade do negro promovida nas
telenovelas por meio de personagens estereotipados, inovaram ao viabilizar com a
presença negra a superação da sua ausência nos folhetins. Assim, penso que este
processo de presença e ampliação de personagens negros nos enredos constituiu um
movimento de discussão e negociação, que é fundamental para subsidiar um exercício
de reflexão, que pode contribuir, inclusive, para promover a revisão e/ou a superação
da estereotipia constituída em torno da inserção destes negros nos folhetins.
261
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