Versão Digital - Programa de Pós

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Versão Digital - Programa de Pós
SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ
MARIA ALICE VOLPE (org.)
SÉRIE SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ
Rio de Janeiro, 2012
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Música
Programa de Pós-graduação em Música
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Carlos Antônio Levi da Conceição
Reitor
Antônio José Ledo Alves da Cunha
Vice-reitor
Debora Foguel
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Flora de Paoli
Decana
ESCOLA DE MÚSICA
André Cardoso
Diretor
Marcos Nogueira
Vice-diretor
Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação
Celso Ramalho - Coordenadora do Curso de Licenciatura
João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural
Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão
Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música
Maria Alice Volpe - Editora-chefe
Revisão e copidesque: Mônica Machado e Viviane Vasconcelos
Projeto gráfico, editoração e tratamento de imagens: Márcia Carnaval
Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
Volume 1: Atualidade da Ópera
Maria Alice Volpe (org.)
Conselho Editorial
André Cardoso
Diósnio Machado Neto
Marcos Nogueira
Maria Alice Volpe
Mário Vieira de Carvalho
Copyright © 2012 by Autores
Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ
500 Exemplares
APRESENTAÇÃO
Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
Maria Alice Volpe
7
PREFÁCIO
Maria Alice Volpe
8
AGRADECIMENTOS
9
TRÂNSITOS CULTURAIS
A ópera na história e na atualidade: uma perspectiva sociológica
Mário Vieira de Carvalho
11
Manuscript collections of Italian opera
Philip Gossett
19
Fantasias operísticas italianas na América Latina
Benjamin Walton
31
Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata in tempi di migrazioni
Annibale Cetrangolo
41
Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia
Ilza Nogueira
65
Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial
Eli-Eri Moura
85
Uma visão atual da ópera no Brasil: procedimentos cênico-musicais
em Dom Casmurro e n’A Tempestade
Ronaldo Miranda
95
ESTUDO INTERDISCIPLINAR
Literatura e música: o romance e a ópera no Brasil Oitocentista
Marcus Vinicius Nogueira Soares
111
ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA
O palimpsesto iluminista: a ressignificação dos modelos operísticos
por um estudo de repertório da Casa da Ópera de São Paulo
Diósnio Machado Neto
123
As óperas de Antônio José da Silva e Antônio Teixeira:
atribuição de autoria e reconhecimento de modelos estéticos
da produção lírica luso-brasileira do século XVIII
Márcio Páscoa
141
O repertório músico-teatral na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,
1778 a 1813
David Cranmer
155
ÓPERA EM TRANSIÇÃO
A República e as mudanças na cultura musical e músico-teatral
Mário Vieira de Carvalho
165
A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil, da Monarquia à República
Maria Alice Volpe
185
Carlos Gomes no contexto da transição da ópera italiana
Marcos Virmond
195
A influência do simbolismo nas óperas de Alberto Nepomuceno
Rodolfo Coelho de Souza
223
ESTILO E RECEPÇÃO
A filiação estética dos autores líricos da Amazônia
no Período da Borracha, a partir de suas óperas
Márcio Páscoa
233
As óperas de Sant’Anna Gomes
Marcos Virmond
251
Joanna de Flandres de Carlos Gomes: obra de transição
Lenita W. M. Nogueira
269
A abertura do drama lírico Pelo amor! (1897)
de Leopoldo Miguez (1850-1902)
André Cardoso
285
O esvaziamento das tradições operísticas do século XIX
e a influência da mídia nos novos padrões estéticos
Heliana Farah e Murilo Neves
295
TRAJETÓRIAS
Óperas em português: ideologias e contradições em cena
Vanda Bellard Freire
303
O teatro lírico no Brasil meridional: origens e percursos
Ezio da Rocha Bittencourt
317
A ópera Jupyra no contexto geral de Francisco Braga
Rubens Russomano Ricciardi
339
Damião Barbosa de Araújo e A Intriga Amorosa:
estilo e questões cronológicas no contexto da sua produção lírica
Pablo Sotuyo Blanco
355
Emílio Soares e a ópera: ressonâncias românticas na Itabira do século XXI
André Guerra-Cotta
375
Chagas: gênese de uma ópera singular
Alexandre Schubert
389
7
APRESENTAÇÃO
A Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ é composta por
coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por
objetivo publicar as conferências dos especialistas convidados desenvolvidas em
forma de capítulo. Essa política editorial proporciona textos enriquecidos pela
interlocução com a comunidade científica em versão expandida e depurada por
novo processo de revisão. As temáticas são tratadas de modo intra e interdisciplinar
e dividem-se em tópicos que refletem diversos segmentos da área. Cada volume
oferece uma visão abrangente do estado atual de conhecimento sobre o assunto. A
colaboração de especialistas oriundos de instituições com diversidade geográfica
intensifica o diálogo da comunidade nacional e internacional, de modo a favorecer
a inserção dos estudos brasileiros na musicologia internacional.
A Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ está dedicada aos
conferencistas convidados e os Anais aos trabalhos selecionados mediante
submissão.
O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço
do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da
temática escolhida para cada volume.
Maria Alice Volpe
Editora
8
PREFÁCIO
Os estudos de ópera têm constituído locus privilegiado das inovações
ocorridas recentemente na musicologia, possibilitando abordagens diversificadas,
desde estudos de sociologia, política, ideologia, história e crítica cultural, vocalidade
e corpo, até discussões sobre novas proposições analíticas para um gênero dramáticomusical que deve ser compreendido, sobretudo, como espetáculo.
A ópera exerceu hegemonia na cultura musical de diversos países desde o
século XVII até início do século XX e constituiu campo de experimentação importante
para o desenvolvimento do discurso musical. Gênero dramático-musical de amplas
possibilidades sociocomunicativas, a plasticidade de suas convenções ensejou no
palco as diversas questões de seu tempo. Suas representações e circundante crítica
nos periódicos constituíram verdadeiros fóruns de formação da opinião pública.
Enquanto espetáculo e ritual, sua prática social foi marcante na determinação das
características do espaço público. Os modelos comunicativos que surgiram no seu
âmbito forjaram os mecanismos de comunicação com as grandes massas, anteriores
ao advento do cinema. Ao reunir e transcender os limites dos gêneros, musicais e
cênicos, a ópera potencializou e consolidou a capacidade da música enquanto arte
de forte catarse comunicativa.
No Brasil, o crescente cultivo da ópera, com sua diversidade de escolas e
subgêneros, refletiu ideologias e atendeu a modos de sociabilidade cada vez mais
secularizados. No decorrer do século XIX, a ópera tornou-se instância indispensável
para o reconhecimento de compositores perante o grande público. A partir do século
XX a ópera teve que competir com outras modalidades de arte e entretenimento,
tornando-se tópico interessante para discussão de seu lugar na atualidade.
O presente volume Atualidade da Ópera oferece um amplo espectro dos
estudos recentes sobre a ópera no Brasil e sua relação com outras áreas culturais da
Europa e América Latina, contribuindo para a crescente reflexão sobre os discursos
históricos construídos sobre a música de tradição européia. A interlocução entre os
estudos aqui apresentados busca ampliar o espaço para as diversas tendências de
análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico que norteie o impulso
historiográfico futuro.
Maria Alice Volpe
9
AGRADECIMENTOS
Aos membros do Conselho Editorial
E aos apoios de
Faperj
Capes
Banco do Brasil
Fundação Universitária José Bonifácio
TRÂNSITOS CULTURAIS
11
A ópera na história e na atualidade:
uma perspectiva sociológica
Mário Vieira de Carvalho
Universidade Nova de Lisboa
Introdução
Numa abordagem sociológica, o social na música é o comunicativo. A comunicação musical estrutura-se em sistemas que emergem do todo social como sistemas sociais
de comunicação dotados de certo grau de autonomia, isto é, de autorreferencialidade e
autorregulação. Esses sistemas sociocomunicativos são imanentes à produção, praxis de
execução, mediação e recepção musicais; são imanentes à música, aos comportamentos
ou formas de vida em que ela se manifesta.
Tomando a ópera, na história e na atualidade, como sistema de comunicação,
trata-se de analisar 1) a estrutura do sistema: os elementos que o constituem e os processos
de autorregulação que lhe são inerentes, os tipos de retroações (feedbacks) em presença;
2) a funcionalidade do sistema: as relações com o seu meio social (inputs e outputs trocados
com outros sistemas sociais: sistemas de poder, econômicos etc.); 3) a dinâmica das relações entre estrutura e função: as mudanças do sistema de comunicação ópera nas suas
relações com diferentes contextos ou environments socioculturais também em mudança.
Nesta intervenção proponho-me à discussão algumas reflexões sobre modelos
de comunicação músico-teatrais na história e na atualidade, a partir de uma breve alusão
retrospectiva a duas experiências históricas paradigmáticas opostas: a de Portugal e a dos
estados germânicos.
Dois modelos opostos de cultura músico-teatral
Em matéria de cultura músico-teatral, Portugal e os estados germânicos encontravam-se numa situação muito semelhante no início do século XVIII. Eram ambos importadores de ópera italiana. Portugal continuaria a ser importador desse modelo até o final
da monarquia, em 1910, e nunca desenvolveria, até hoje, uma estratégia consistente de
institucionalização de ópera ou de teatro lírico em língua portuguesa, nem de criação de
estruturas de produção estáveis que promovessem o emprego artístico local nesse domínio
de atividade artística (envolvendo o canto lírico e todas as demais atividades artísticas e
profissionais inerentes à produção de ópera). Os estados germânicos tornar-se-iam, logo
desde o início do século XVIII, exportadores de ópera alemã (composta em sua própria
língua nacional), num processo que tem continuado em franca expansão planetária até
aos nossos dias. Tanto maior é o contraste quanto é certo que a língua portuguesa é hoje
falada por mais de 250 milhões de pessoas, enquanto o alemão é falado por cerca de 100
milhões.
Aspetos estruturais e ideológicos, que se reconduzem ao desenvolvimento sócioeconômico, às transformações da esfera pública e mesmo a fatores religiosos (conforme
a teoria de Max Weber sobre a relação entre a religião luterana e o espírito do capitalismo)
são algumas das condicionantes que estão, certamente, na origem de percursos tão díspares. Hoje, há cerca de cinquenta teatros de ópera em pleno funcionamento na Alemanha;
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
12
teatros que abrem diariamente as suas portas ao público ao longo de todo o ano e onde
as diferentes produções do seu respectivo repertório, sempre em permanente renovação,
vão se alternando em cartaz. Pelo contrário, em Portugal, a ópera cinge-se agora apenas
a escassos espetáculos, sobretudo no Teatro de São Carlos, e continua a basear-se na
importação de know how do exterior (mormente, na área do canto lírico).1
O programa da burguesia esclarecida germânica, baseado na função educativa
atribuída às artes e, nesse caso, à ópera, em contraposição à função de prestígio e
divertimento, traduziu-se numa rede de interações que importa ter em conta. A ideia de
que cada cidade de certa dimensão devia ter ópera em língua alemã (para “promoção da
humanidade” – Christoph Martin Wieland, 1775) favoreceu o aparecimento de múltiplos
centros de produção, estimulando o emprego artístico local em larga escala. A distribuição
regional desses centros associada à ideia de que a ópera não era um “luxo” da corte ou de
uma elite política, financeira e cultural restrita, antes devia ser colocada ao alcance de
todos, foi historicamente determinante para o alargamento a novos públicos. A
necessidade de responder às solicitações das companhias e dos públicos locais levou à
expansão e diversificação do repertório em língua alemã (quer em originais, quer em
traduções) bem como suscitou o aparecimento de uma cultura autóctone de produção
músico-teatral (libretistas, compositores, intérpretes, especialistas em artes cênicas etc.).
Daí a necessidade de escolas, academias e outros estabelecimentos de formação artística,
que foram desenvolvendo o ensino e a investigação nesses diferentes domínios e em
áreas de saber afins (desde a filosofia às tecnologias de palco). A massa crítica técnicoprofissional gerada e a densidade da esfera pública burguesa contribuíram, por sua vez,
desde cedo, para a constituição de um campo ou sistema artístico forte, com capacidade
de autorreferência e autorregulação, que subtraiu as artes e, neste caso, a ópera, à sua
dependência imediata da função de representação do poder ou de mero divertimento.
As transformações na teoria e praxis decorrentes da rede de interações assim constituídas
conferiram à ópera alemã um dinamismo e uma capacidade de inovação que a tornaram
extremamente influente além-fronteiras.
A rede de atividades ligadas à ópera atuou, por sua vez, como fator de desenvolvimento socioeconômico. Com efeito, o investimento público que apóia o funcionamento
das várias dezenas de teatros de ópera na Alemanha não reverte somente para a finalidade
cultural, reflete-se também na dinâmica econômica, quer pelo emprego que gera diretamente (artístico, técnico, administrativo etc.), quer pela repercussão indireta no tecido
das atividades econômicas (fornecedores de materiais para espetáculos, empresas de
produção de conteúdos culturais em suportes audiovisuais, turismo, hotelaria etc.), quer
ainda pelo peso que tem nas exportações, seja de know how artístico, seja no campo da
chamada “indústria cultural”. Quando o já referido Christoph Martin Wieland escrevia,
em 1775, que a ópera não tinha de ser um “luxo”, que antes podia estar ao alcance de
todos e que teria uma função educativa, não podia prever todo esse imenso potencial
que ela viria a adquirir: potencial de emancipação e valorização de forças produtivas na...........................................................................
1
Sobre os sistemas sociocomunicativos da ópera em Portugal, do século XVIII ao XX, ver análise detalhada em
“Trevas e Luzes na Ópera de Portugal Setecentista” in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical. Estudos sobre a Dialéctica do Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Agua, p. 141-157. Esse estudo
corresponde a uma versão atualizada de parte do primeiro capítulo da monografia que aborda a ópera em
Portugal dos séculos XVIII a XX: ‘Pensar é morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sóciocomunicativos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993 (o original alemão, de 1984, tese policopiada,
foi publicado em versão remodelada e acompanhada de iconografia, com o título ‘Denken ist Sterben’.
Sozialgeschichte des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). A relação com as transformações da
esfera pública na Europa é abordada em “A ópera, a esfera pública e a mudança de sistemas sociocomunicativos”,
in M. Vieira de Carvalho, Por lo impossible andamos – A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto,
Âmbar, 2005, p. 37-60. Ver também, neste volume, o meu artigo “A República e as mudanças na cultura musical
e músico-teatral”.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
13
cionais. A ópera, afinal, não só não era um luxo, como podia ser até um fator de criação
de riqueza. Um eventual colapso dos teatros de ópera alemães não significaria hoje apenas
uma catástrofe cultural. Seria também uma catástrofe econômica...
O papel das políticas públicas
A estrutura de muito longa duração que, por contraste, tem prevalecido em
Portugal2 foi recentemente comprovada por mais um episódio. Entre 2006 e 2009, o Teatro
Nacional de São Carlos funcionou segundo um novo quadro legal, que previa a criação de
um Estúdio de Ópera para profissionalização de artistas líricos portugueses ou residentes
em Portugal e procurava lançar as bases de uma estrutura de produção residente que
pudesse assegurar um aumento exponencial do número de espetáculos, o alargamento a
novos públicos, promovendo simultaneamente o canto lírico em língua portuguesa, numa
perspectiva moderna de valorização da ópera como teatro. Sem prejuízo de se manterem
as temporadas internacionais: produção local e star system deviam articular-se de forma
equilibrada que favorecesse cada vez mais o desenvolvimento e expansão de uma cultura
músico-teatral com uma forte componente de artistas nacionais (ou residentes em
Portugal) e um papel mais relevante da língua portuguesa. Na verdade, o artigo 2º dos Estatutos, na parte relativa ao Teatro de São Carlos, previa nomeadamente:
c) A promoção da internacionalização, tanto através de coproduções como através da valorização da produção própria, visando a afirmação de um projecto de
uma identidade artística susceptíveis de projecção e de potencial atractivo internacionais;
d) A criação e manutenção de um estúdio de ópera que proporcione oportunidades de profissionalização a jovens artistas e técnicos e se constitua como
pólo de inovação no repertório, na prática de encenação e de representação, incluindo produção músico-teatral em língua portuguesa;
e) A formação de novos públicos, designadamente através de produções itinerantes e de um programa educativo, sobretudo dirigido ao público infantojuvenil;
f) A preservação da herança cultural, recuperando e divulgando o património
músico-teatral de origem nacional ou conservado em Portugal;
g) A encomenda a autores portugueses de novas obras musicais ou músico-teatrais e a sua produção ou programação; […] 3
Em 2006, o aparelho produtivo do Teatro de São Carlos (Orquestra Sinfônica,
Coro, pessoal técnico e administrativo, num total de cerca de 400 trabalhadores) estava
inteiramente subordinado ao star system e, por isso, escandalosamente subaproveitado.
Com um financiamento público anual no montante de 14 milhões euros, o Teatro de Ópera custava ao Estado 40 mil euros por dia, mas permanecia fechado durante mais de
300 dias por ano. Não ia além de 27 mil espectadores anuais, o que significa que o custo
ao Estado de cada espectador por espetáculo rondava os 500 euros, e o de um assinante
(por oito óperas) equivalia a seis meses de salário mínimo nacional! Tomando como
exemplo a Ópera de Paris (Bastilha), no mesmo ano, o esforço do Estado também era
considerável, mas nada que se comparasse ao “luxo” de Lisboa: 100 euros, para cada es...........................................................................
2
Ver caracterização pormenorizada neste volume, “A República e as mudanças na cultura musical e músicoteatral”.
Na definição do novo quadro legal – Decreto-Lei nº 160, de 27 de abril de 2007 – eu próprio tive então uma
intervenção decisiva, na medida em que exercia as funções de Secretário de Estado da Cultura do XVII Governo
Constitucional e tinha poderes delegados da Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, para tutelar a área das
Artes do Espetáculo (funções que exerci entre 14 de março de 2005 e 30 de janeiro de 2008).
3
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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pectador por espetáculo; 20 dias de salário mínimo nacional para o assinante de oito óperas. Número de espectadores por ano: perto de um milhão.
Ou seja, considerando, além disso, o mais elevado nível de vida em França, era
enorme o diferencial entre os custos sociais da ópera, respectivamente em Lisboa e em
Paris, e tanto maior também o diferencial entre a sua repercussão cultural e até econômica.
O financiamento público de 100 milhões de euros em Paris, para quase um milhão de espectadores, tinha um efeito reprodutivo indireto na própria economia, enquanto o financiamento de 14 milhões em Lisboa se traduzia em ônus financeiro, pois que, para
além de servir para subsidiar uma elite muito restrita oriunda das classes mais abastadas
(com meios para pagar 50 euros por um bilhete ou 400 por uma assinatura),4 não tinha qualquer efeito relevante no desenvolvimento cultural e socioeconômico do país. Quanto ao
número de espectadores, para se obter em Lisboa um efeito reprodutivo (do investimento
público) proporcional ao de Paris, a atividade do Teatro de São Carlos teria de quase
quadruplicar: passar de apenas 27 mil para cerca de 120 mil espectadores por ano.
Na temporada de 2009-2010, após apenas dois anos de combinação de residência
e star system, sob a direção artística do dr. Christoph Dammann, que cessara funções na
Ópera de Colônia, para assumir o cargo equivalente em Lisboa, os números passaram a
ser completamente diferentes: aumento de 50% do número de espectáculos; 83 mil
espectadores (mais do triplo do número de espectadores de 2006); custo ao Estado de
cada espectador por espetáculo: 156 euros; custo ao Estado de cada assinante de oito
óperas: cerca de dois meses de salário mínimo nacional.
Outro indicador particularmente relevante: enquanto, no triênio de 2003-2006,
as atuações em palco de artistas portugueses ou residentes em Portugal se contavam
apenas por algumas dezenas, nas temporadas de 2007-2010 ascenderam a cerca de um
milhar.
A orientação fundamental foi a de valorizar a recepção do espetáculo como um
todo, sua eficácia teatral (incluindo, naturalmente, a dimensão teatral das componentes
musicais), na base de uma abordagem crítica e inovadora dos conteúdos dramatúrgicos.
Dir-se-ia que tal revolução seria recebida com entusiasmo. E o foi, em termos
de adesão de novos públicos, mas um grupo mais restrito de assinantes e um ou dois
críticos fanáticos do star system desencadearam uma campanha tão exaltada na rádio e
na imprensa que o novo director artístico foi obrigado a rescindir o contrato, seguindose-lhe também, pouco depois, o demissão do diretor do Estúdio de Ópera, o brasileiro
André Heller-Lopes, que exercera igualmente com a maior competência as suas funções.
O episódio suscita uma ampla discussão. Uma questão que logo se coloca é a de
saber qual é o papel das políticas públicas: financiar, sobretudo, a importação de “bens e
serviços” culturais? Ou promover, sobretudo, o investimento reprodutivo, criando condições estruturais para o desenvolvimento sustentável de uma cultura músico-teatral local,
que venha a tornar-se parte ativa no intercâmbio internacional? A resposta implica perceber a relevância da Ópera para a Economia e a relevância da Economia para a Ópera.
Num mundo globalizado multicultural, a interseção entre cultura e economia leva-nos a
identificar fundamentalmente dois sistemas em presença: o hegemônico, baseado no
star system; e o contra-hegemônico, baseado em alternativas locais (ver Figuras 1 e 2).
O primeiro tem como parceiro de comunicação típico o “melômano”, impõe
uma “monocultura” à escala global e se assenta em mecanismos de autorregulação que
excluem alternativas locais. Enquanto ramo da indústria cultural, promove a ópera como
mercadoria de prestígio, mas a sua hegemonia não resulta exclusivamente da dinâmica
...........................................................................
4
Os 14 milhões de financiamento do Estado é que permitiam estes preços. Caso contrário, para o mesmo número de espectadores, cada entrada avulsa poderia ascender a cerca de 550 ou 600 euros.
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de mercado, antes é em larga medida suportada por uma ideologia de dominação que leva os próprios Estados a considerarem-se na obrigação de a apoiar financeiramente como
“serviço público” de cultura.
Em contrapartida, a alternativa contra-hegemônica estimula, também no campo
do teatro lírico, a diversidade das expressões culturais e favorece as conexões estruturais
entre diferentes sistemas de comunicação. A autorregulação destes sistemas de comunicação contra-hegemônicos, que inclui alternativas locais, visa aprofundar a dialética
entre o local e o universal. Resiste à dominação de uma monocultura que faz estiolar todas as outras e dá lugar a uma verdadeira esfera pública intercultural, onde o próprio star
system pode continuar a ser um dos interlocutores (mas apenas um entre muitos) (Figura 2).
Uma estratégia contra-hegemônica no teatro lírico baseia-se na abertura radical
a novos públicos, na recepção do espetáculo como um todo, na reintegração da ópera no
domínio global do teatro, na inovação dramatúrgica e cênica, na redescoberta das obras
do grande repertório como verdadeiro teatro por música para um público atual – e essa
foi sem dúvida uma constante da tradição de produção da ópera nos Estados germânicos
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
16
(desde o século XVIII). Essa é também a chave para a sustentabilidade da produção local.
Há que “defender a ópera contra os seus entusiastas”,5 contra aqueles que a esvaziam do
teatro e a transformam num pretexto para o consumo vazio de grandes vozes, reificadas
como um fim em si, sem relação com a dramaturgia – modelo de comunicação
predominante no star system.
Não se trata de impor um sistema de comunicação a outro ou outros, mas sim
de promover o equilíbrio entre eles, pondo em causa a hegemonia do star system como
cânone. Isto leva-nos a outra questão: o problema de interpretação e encenação de ópera.
O problema da interpretação e o papel da musicologia
Qual é a versão ou interpretação autêntica? Não há um ponto de vista absoluto,
fora do espaço e do tempo, que permita estabelecer a versão ou interpretação autêntica
da obra. Não há um ponto de vista único que permita fixar o sentido da obra. Há, sim,
uma reabertura permanente do processo de sentido, o qual é necessariamente contextual,
vinculado às condições concretas locais de produção, performance e recepção.
O encenador alemão Peter Konwitschny (n. 1945), atualmente encenador
residente e chefe de dramaturgia na Ópera de Leipzig, é um dos melhores exemplos de
uma abordagem das obras que não as deixa fecharem-se sobre si próprias como peças de
museu emudecidas, esvaziadas de teatro, sem nada para comunicar de humanamente
interpelante para um público dos nossos dias.
Konwitschny acentua o papel decisivo da música como ponto de partida: tem
de ser interpretada autonomamente, eventualmente em contradição com o texto, e corporalmente, como um movimento que se expande e se contrai no espaço. A mimesis é entendida não como mera imitação, mas mais como experiência de um déficit que nos confronta com a vida real, evocando ex negativo promessas de felicidade não realizadas (inclui,
por isso, uma dimensão de conhecimento social). Há, por isso, uma permanente exploração
de tensões nas suas encenações: tensão entre música e cena, que não duplica aquela;
tensão entre ilusão e desconstrução da ilusão; tensão entre o mundo do autor e o mundo
atual do espectador (separação de horizontes e não “fusão de horizontes” no sentido da
hermenêutica de Gadamer); tensão entre a necessidade de mudança e a impossibilidade
de mudança.
Neste sentido, Konwitschny realiza a síntese entre a herança de Walter Felsenstein
(ópera como teatro, unidade de canto e representação, incorporação plena da personagem
pelo cantor, interação entre cantores como portadores da ação e não subordinação destes
às entradas dadas pelo maestro) e a herança de Brecht (montagem, efeitos de estranhamento, imagens dialéticas, gesto de mostrar). Konwitschny procura recuperar, como
ele próprio afirma, a ideia de teatro como Politikum (tal como na Grécia antiga), isto é,
como um evento socialmente relevante: “o que é importante para as pessoas tem de ser
discutido coletivamente”.6
Qual é o papel da musicologia? No plano da investigação filológica, estabelecer
a edição crítica da partitura, as suas variantes, identificar os problemas colocados pelas
fontes. No plano da investigação histórico-sociológica e estética, estudar a obra na sua
...........................................................................
5
Título, parafraseando Adorno, que dei a uma comunicação para a qual remeto: “Defender a ópera contra os
seus entusiastas: ‘Musiktheater’ de Walter Felsenstein a Peter Konwitschny”, in IX Colóquio de Outono – Estudos Performativos: Global Performance / Political Performance (eds. Ana Gabriela Macedo, Carlos Mendes de
Sousa, Vítor Moura), V. N. Famalicão, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho: Ed. Húmus,
2010, p. 257-272.
6
Sobre a teoria da interpretação musical e músico-teatral, ver discussão aprofundada in M. Vieira de Carvalho,
“A partitura como espírito sedimentado: Em torno da teoria da interpretação musical de Adorno”, in Theoria
Aesthetica (ed. Rodrigo Duarte), Porto Alegre, Escritos Editora, 2005, p. 203-224; e ainda “Defesa da ópera contra os seus entusiastas”, acima citado.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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estrutura e na sua substância dramático-musical, incluindo a recepção. No plano da dramaturgia musical, contribuir para o conceito da encenação e para as opções de interpretação
(inclusive no âmbito das equipas de produção).
Não compete à musicologia estabelecer o cânone da produção, da interpretação
e da realização da obra. Não pode haver um cânone de excelência ou de qualidade preestabelecido, válido para todos os lugares e circunstâncias.
O conceito de integridade do espetáculo tem necessariamente de prevalecer
sobre qualquer preconceito quanto ao que seja considerado “integridade” da obra. Cada
nova produção de uma obra vale por si e não pode deixar de ser aferida pelo sistema de
comunicação e pelo contexto sociocultural específicos da sua realização. A obra não existe
como algo congelado numa partitura. Obra e partitura não são idênticas. Aquela é sempre
de novo reconstruída a partir desta (cf. Adorno). Nesse sentido, aquilo a que chamamos
obra representada num espetáculo é um sistema de comunicação emergente – emergente
de conexões estruturais entre vários sistemas ou subsistemas, nomeadamente: a estrutura
técnico-material ou financeira; a equipa de produção, tendo como figuras centrais o
encenador e o chefe de orquestra; os intérpretes; o contexto sociocultural e os seus interlocutores institucionais (incluindo os meios de comunicação e os críticos); a investigação musicológica, que assume as várias responsabilidades acima referidas; e, é claro, a
partitura, como ponto de partida.
Na minha perspectiva é necessária uma reflexão crítica que continue a aprofundar a teoria da interpretação musical e, em especial, a teoria da interpretação músicoteatral. A ideia fundamental de que parto é a de que o espetáculo de ópera não é para
servir as expectativas do musicólogo, mas sim as do público. O papel do musicólogo é investigar as fontes e fornecer material fidedigno àqueles que vão produzir e encenar o espetáculo. O papel dos artistas é transformar esse material numa experiência de comunicação atual para um público atual – em que não se trata apenas de música, mas também
de teatro e de eficácia teatral. Na fase da produção e da encenação, o papel do musicólogo
passará a ser então o de coadjuvar os intérpretes na reconstrução da partitura, tendo em
vista fundamentar uma determinada concepção das personagens ou dos conflitos em
jogo, isto é, um determinado universo cênico. Não cabe à musicologia “matar o teatro”,
mas sim ajudar a dar-lhe vida para um público do nosso tempo.
Finalmente, apelo à continuação do desenvolvimento de um espaço de cooperação luso-brasileiro e lusófono, em que também no domínio do teatro lírico possa vir a
desenvolver-se uma alternativa contra-hegemônica. Não é só no domínio da música popular ou do fado que a palavra cantada em língua portuguesa pode fazer o seu curso. Pode e deve também fazê-lo como palavra cênica. A ópera e a “música teatral” têm sido
investigadas na perspectiva histórica, quer no Brasil, quer em Portugal. As abordagens
têm incidido sobre compositores, intérpretes, obras, instituições e recepção. Têm-se
traduzido em edições críticas, monografias e outros trabalhos. Menos investigadas têm
sido as relações luso-brasileiras neste domínio, mormente na era pós-colonial: que companhias, artistas, empresários, obras circularam entre os dois países, com especial relevo
para repertório em língua portuguesa; que formas de cooperação ou intercâmbio se desenvolveram.
Está ainda por fazer um balanço crítico da investigação já realizada, mas o que
importa, sobretudo, é continuar a expandir a intensa cooperação científica já em curso,
estendê-la decididamente à cooperação artística e definir estratégias para o futuro. Cabenos refletir sobre o contributo que os investigadores e os artistas portugueses e brasileiros,
conjuntamente, podem dar não só para o estudo das relações luso-brasileiras neste
domínio, mas também para a sua promoção. É preciso ligar a investigação à atividade artística, e desse modo contribuir, tanto para fazer reviver um patrimônio cultural comum,
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
18
como também para promover projetos inovadores no campo da criação, interpretação,
produção e difusão músico-teatrais, envolvendo os dois países.
Julgo que estamos em condições de dar um grande impulso aos estudos comparativos que tomem em consideração a ópera e outros gêneros músico-teatrais numa
abordagem histórico-antropológica e histórico-sociológica inclusiva – isto é, aberta
também a manifestações músico-teatrais de origem popular ou tradicional –, na qual os
diferentes sistemas de comunicação sejam analisados nas suas conexões estruturais com
contextos em mudança. Desses estudos deveriam sair propostas fundamentadas que
ajudassem à definição de políticas públicas em ambos os países e no âmbito da CPLP –
políticas públicas que visassem potenciar reciprocamente o valor cultural e o valor econômico da ópera e de outros gêneros músico-teatrais como fatores de emancipação social
e humana (Figura 4).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
19
Manuscript collections of Italian opera
Philip Gossett
University of Chicago
For many years, the principal activity of scholars of Italian opera was the
establishment of “authentic” texts (by which was meant any and every version of an opera
for which the composer himself had direct responsibility) and the publication of critical
editions of a repertory that had seemed before to resist such attempts.1 It was only by
recognizing that composers treated their operas with some flexibility that it became
possible to reject the notion of a Fassung letzter Hand and to insist instead that it was the
function of a critical edition to make available all versions traceable to the composer of
each work. In some cases, place was found even for versions that became inevitably
associated with a title, even if the composer himself was not responsible for devising
them.2 The success of this operation is clear: more than 30 volumes devoted to Rossini’s
music are currently available, another 15 of works by Verdi, and growing collections of
the music of Bellini and Donizetti. These have not gained universal acceptance in opera
houses (the hold of custom on operatic singers and impresarios remains very strong), but
they certainly have developed a notable constituency of performers, as well as finally
giving these works the kind of musicological respectability that scholars have demanded.
As long as the preparation of such editions of nineteenth-century Italian opera
was the principal goal of musical scholarship pertaining to this repertory, it was clear that
scholars needed primarily to obtain the autograph manuscripts of composers, as well as
manuscript copies, printed editions, and printed librettos that reflected precisely the most
authentic sources. These sources still have a fundamental significance for all those who
care about this repertory.3 But it should come as no surprise that new questions are
confronting us today as we think about this repertory, new approaches that are becoming
ever more important to younger scholars. While one of my primary goals remains to
complete the textual work that has only been partially accomplished, and as I will suggest
later in this paper the collection of operatic materials in Rio de Janeiro promises to be of
great importance to this effort, other goals are developing, no less interesting and no less
significant for our knowledge of the operatic repertory. Important scholars are concerned
now with the performers, particularly the singers, associated with this music, both in Italy
...........................................................................
1
The first series of critical editions of nineteenth-century Italian opera involved the works of Gioachino Rossini.
It was issued by the Fondazione Rossini of Pesaro, with Ricordi of Milan, as Edizione critica delle opere di Gioachino
Rossini, beginning in 1979. Since 2007, Bärenreiter-Verlag of Kassel has continued the series as Works of Gioachino
Rossini. This project was followed by The Works of Giuseppe Verdi, issued by The University of Chicago Press,
with Ricordi, beginning in 1983. Of later date are publication efforts associated with Gaetano Donizetti (selected
works, beginning in 1991) and Vincenzo Bellini (beginning in 2003).
2
I think particularly of the critical edition of Rossini’s Il barbiere di Siviglia, Patricia Brauner, ed., in Works of
Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2008), which includes pieces from early versions of the opera not supervised by the composer himself. For a discussion of the theoretical basis for these editions, see Philip
Gossett, Divas and Scholars (The University of Chicago Press: Chicago, 2006), available also in Italian translation
as Dive e maestri (Il Saggiatore: Milan, 2009).
3
Indeed, fundamental to the work on Rossini’s Petite Messe solennelle, Patricia Brauner and Philip Gossett,
eds., for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel, etc., 2009) was the discovery of a new manuscript
of the Mass, in private hands. Carlida Steffan has been commissioned to produce the new edition of the Soirées
musicales with a lead time of more than five years so that she can try to locate additional autograph sources.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
20
and abroad.4 While I would be hesitant to grant as much artistic significance to an Erminia
Frezzolini or a Napoleone Moriani as to a Giuseppe Verdi, to an Isabella Colbran or an
Andrea Nozzari as to a Gioachino Rossini, to a Maria Malibran5 or a Rosine Stolz as to a
Gaetano Donizetti, there can be little doubt that composers worked closely with singers
and sought to make their performing capabilities the measure by which their compositional
art would be judged. It is no surprise that in preparing his Macbeth in 1847, Verdi involved
directly Felice Varesi in the title role and Mariana Barbieri-Nini as Lady, even asking them
to look at their solo music ahead of time and to provide judgments as to whether it suited
properly their vocal proclivities.6 If not, the composer was prepared to adapt his music to
their capabilities or to modify it as appropriate. Perhaps the composer’s failure to do the
same for Varesi when preparing La traviata was partially responsible for the failure of the
first version of that opera in 1853.7
By studying the art of individual singers, one can understand better the limits
within which composers were operating. Even though Verdi may have had some doubts
ultimately about the French baritone Victor Maurel, for whom he prepared three roles
(the revised Simon Boccanegra, Iago, and Falstaff), he knew that Maurel’s art was
exceptional. Even when Maurel may have exaggerated (introducing, for example, multiple
reprises of “Quando ero paggio”– the last of which he often sang in his native French),8
the composer remained relatively loyal to him, knowing that the success of his opera
depended on Maurel’s brilliance. Both Verdi and Muzio may have complained quite bitterly
about Jenny Lind’s “old-fashioned” approach to vocality in the 1847 I masnadieri for London
and Lind herself (as Roberta Marvin has shown9) may have had little patience for the new
vocal art he exemplified, still, the composer modified many vocal details in his score so
that it gave Lind a better chance to shine. That was what the public demanded, and he
knew that the public ultimately would determine the fate of any opera.
Among the newer questions being asked today are those that deal with the use
the public around the world made of the musical repertory, especially of opera.10 While
such questions, which can be grouped generically under the heading of “reception theory,”
...........................................................................
4
Let me cite, in particular, the work of Hilary Poriss, Changing the Score: Arias, Prima Donnas, and the Authority
of Performance (Oxford University Press: New York, 2009), as well as the collection of essays, Roberta Montemorra
Marvin and Prof. Poriss, eds., Fashions and Legacies of Nineteenth-Century Italian Opera (Cambridge University
Press: Cambridge, 2009). There are several articles by Mary Ann Smart which address the problem, including
“The Lost Voice of Rosine Stolz” in Cambridge Opera Journal 6 (1994), 31-50 and “Verdi Sings Erminia Frezzolini”
in Verdi Newsletter 24 (1997), 13-22. See also, Susan Rutherford, The Prima Donna and Opera, 1815-1930
(Cambridge University Press: Cambridge, 2006), and Céline Frigau’s master’s thesis for Paris VIII, 2006 (Une voix,
un geste, un corps : Giuditta Pasta en scène : opinions de spectateurs dans La Pasta nell’Otello, Luigi Morando
de Rizzoni, Vérone, 1830) and her doctoral dissertation of 2010, which deals with performers at the ThéâtreItalien in Paris during the first half of the nineteenth century.
5
An important series of essays concerning Maria Malibran was recently published, the fruit of research into this
illustrious singer, daughter of the important tenor, Emanuel García: Malibran: Storia e leggenda, canto e belcanto
nel primo Ottocento italiano, Piero Mioli, ed. (Pàtron editore: Bologna, 2010).
6
For further information, see the Preface to the critical edition of Macbeth, David Lawton, ed., in The Works of
Giuseppe Verdi, Series I, vol. 10 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:
Milan, 2006).
7
See the Preface to the critical edition of La traviata, Fabrizio Della Seta, ed., in The Works of Giuseppe Verdi,
Series I, vol. 19 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi: Milan, 1996).
8
A recording on Columbia Records, IRCC, N. 4-B (labeled as 1904, but supposedly reflecting a recording sesseion
actually held in London in 1907), demonstrates this: he sings the short aria twice in the original Italian (“Quand’ero
paggio”), then once in his native French (“Quand j’étais page”), accessed on YouTube, 2 June 2011.
9
See the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed., in The Works of
Giuseppe Verdi, Series I, vol. 11 (The University of Chicago Press: Chicago, and Casa Ricordi—BMG Ricordi:
Milan, 2000).
10
For a particularly astute treatment of the situation in Germany, see Gundula Kreuzer, Verdi and the Germans:
From Unification to the Third Reich (Cambridge University Press: Cambridge, 2010). An important study is about
to be issued by George Martin, entitled Verdi in America: Oberto through Rigoletto (University of Rochester
Press: Rochester, N.Y., forthcoming).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
21
may not lead to responses that will change the nature of the edited texts, they do help us
understand a great deal about how music was received. The work of Roberta Marvin with
Victorian parodies of Verdian operas, of Emilio Sala with the boulevard theaters in Paris,
of Jeanice Brooks with collections of music in English parlors, of Thomas Christensen with
four-hand arrangements, all this work and much else has enormous resonance today.11
Many parts of the Rio collection must be understood in these terms. Although a more
profound knowledge of the publishing history associated with Ricordi, Schott, Heugel, or
Novello may have little relevance to the problem of establishing a text for compositions
which exist in autograph manuscripts, it does provide the context in which operas were
received and treasured by large parts of the musical world (even in the form of pianistic
potpourris or arrangement for various instruments), particularly by those individuals that
did not come to know opera primarily from formal performances in theaters devoted to
the operatic repertory. And at a moment when access to theaters was limited to a few
individuals who had the possibility of living and working in major metropolises and no
recordings could substitute – however inadequately – for the pleasure of attending
performances, printed vocal scores or extracts had a significant role to play in spreading
the word about a new work that was worthy of public knowledge.12 No one, to my
knowledge, has attempted to study publications and extracts made in South America
with questions of this kind in mind.13
In this context, information about the spread of Italian opera in countries other
than the central European countries (Italy, France, Germany, and Austria) and England
begins to take on a very different level of interest. We know, of course, that the repertory
of Italian opera had enormous resonance in Scandinavia, in Russia, in the Iberian peninsula,
in the Americas (both North and – as the Rio collection demonstrates – South) and
continues to have an important hold on the imagination of audiences in these countries.
When operas are performed regularly, of course, there must be sources that are used by
performers to permit their activities. In some cases, these scores were made available by
an Italian commercial publisher, Ricordi, who had important centers of activity in many
countries (in South America, the most important single city for Ricordi’s distribution was
Buenos Aires). But after much of Ricordi’s performance material was destroyed in a
bombardment of Milan in 1944, the company called back material that had been deposited
in many other countries; as a result, much of that material is no longer to be found in the
countries in which it had been used. Nor does Ricordi seem to have kept today this older
material: it has been replaced by newer products, as demanded by performers.14
Of great interest to scholars, though, is evidence pertaining to complete
manuscripts that were prepared earlier in the history of the works, during the nineteenth
...........................................................................
11
Roberta Marvin has published several articles on this subject, but in particular see her Verdi and the Victorians.
(Boydell & Brewer: Woodbridge, forthcoming). Emilio Sala has written several articles about Verdi and the
Boulevard theaters in Paris: see, in particular, “Verdi e il teatro di boulevard parigino degli anni 1847-1849,” in
eds., Pierluigi Petrobelli and Fabrizio Della Seta, La realizzazione scenica dello spettacolo verdiano: Atti del
Congresso internazionale di studi, Parma, Teatro Regio—Conservatorio di Musica “A. Boito,” 18-20 settembre
1994 (Parma, 1996), 187-214. Jeanice Brooks is currently engaged in ongoing research into collections of music
used in nineteenth-century England, of which a few articles have appeared, such as “Les collections féminines
d’albums de partitions dans l’Angleterre au début du XIXe siècle”, in Christine Ballman and Valérie Dufour, eds.,
‘La la la Maistre Henri’: Mélanges de musicologie offerts à Henri Vanhulst (Brepols: Turnhout, 2009), 351-65.
See also Thomas Christensen, “Four-Hand Piano Transcriptions and Geographies of Nineteenth-Century Musical
Reception”. Journal of the American Musicological Society 52 (1999), 255-98.
12
For a discussion of Italian theaters in this period, see Carlotta Sorba, Teatri: L’Italia del melodrama nell’età del
Risorgimento (Il Mulino: Bologna, 2001).
13
I do want to acknowledge, however, the work of Benjamin Walton of Jesus College, Cambridge University, who
is actively involved in research on the spread of Italian opera in South America.
14
I make these remarks on the basis of personal contacts at Casa Ricordi of Milan, going back to the early 1970s,
particularly with Fausto Broussard, who was present in the Ricordi Archives during the 1950s, shortly after
these events occurred.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
22
century, and still found in collections around the world. Many of these collections are
very important and quite well known. Thus, King Frederick VI of Denmark, in approximately
1820, ordered a significant collection of Italian manuscripts sent to him as representative
of works that could be performed in his realm: this collection is still found in the Royal
Library in Copenhagen. And the collection includes many works that are known from very
few other sources, since it features works popular during the 1810s. In some cases these
manuscripts have textual importance: they include, for example, some little known works
by Rossini, such as Ciro in Babilonia, Adelaide di Borgogna, and Edoardo e Cristina. No
one has yet made a complete study of these sources, so we cannot say very much about
their significance as a group, but the Rossini operas, at least, have all been photocopied
and are being used currently for textual work on these titles.15
In Russia, on the other hand, there has been relatively little study of Italian
manuscripts, even though we know that several important Italian composers spent
considerable periods of time working with Russian theaters, composers such as Giovanni
Paisiello, Domenico Cimarosa, Alessandro Nini, and Giuseppe Verdi. In many cases
important sources (some of them autograph) exist in the archives of the Marinsky Theater
and in other Russian libraries. Indeed in the case of an opera first performed at the Marinsky
Theater, such as Verdi’s La forza del destino of 1861-1862, the theater’s well-known
tendency to have kept everything has proven invaluable.16 On many of the performing
parts we find entries in Verdi’s own hand, annotations written while he was rehearsing
the music with individual singers.17 It is only from these performing materials, for example,
that we learn that the famous Prayer that forms part of the Scena Osteria in Act II was
originally accompanied only by an arpeggiating clarinet and by pizzicato bass notes in the
violoncelli and contrabbassi. In the printed edition of the opera and the autograph
manuscript, however, there are also wind parts duplicating the choral material of the
Prayer. Because of the nature of the parts, we know for certain that these doubling wind
parts were added during the rehearsal period, presumably to keep singers in tune on
what is a long passage with very little accompaniment.18 This clearly has significant
ramifications for today’s editions and for possible interpretations of them in contemporary
performance.
Unfortunately, few collections of this importance exist in Italy itself. That lack is
in part a product of the conditions that prevailed in opera archives and of the many fires
that destroyed whatever collections might have once existed, but it is also in part related
to the nature of the social structures that grew up around the performance of opera in
nineteenth-century Italy. One of the ways in which publishers succeeded in rendering
their calling economically viable during this period was to make available performing
materials exclusively by rental agreements, whereby theaters needed to work through
publishers to obtain materials from which to perform.19 During the first two decades of
the nineteenth century Italian publishers did not even print entire vocal scores of operas.
When it became clear that foreign publishers, particularly those working in Germany,
Austria, and France, were dominating this market, Italian publishers soon began to catch
up. While during the 1810s they published only favorite extracts from new operas, by the
...........................................................................
15
Let me thank Knud Arne Jürgesen, who facilitated my work with these sources.
My use of the library was considerably assisted by the kind permissions obtained from the musical director,
Valery Gergiev. I also wish to thank the staff of the Archive for its many kindnesses.
17
Thus, Verdi himself added the revised cabaletta of Don Carlos’ third-act aria, “Urna fatal,” in the vocal part of
Don Carlos. Originally the vocal part had only an earlier version of this cabaletta.
18
The wind parts originally had rests in these measures. The doubling wind parts were added by means of
collettes in the parts, some of which were pasted in on all four sides, so that it is impossible to read what was
originally present, but some of which were pasted in on only two sides, so that it is simple to read the rests that
were originally in the parts.
19
The process is well described in Claudio Sartori, Casa Ricordi 1808-1858 (Ricordi: Milan, 1958).
16
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
23
mid-1820s they had begun to compete with foreign publishers by producing complete
vocal scores. One publisher in Rome, Ratti, Cencetti & Comp., which began life (as did
many other publishers in Italy) as a copying house for manuscripts, decided to issue several
Rossini operas in printed full scores, but they did a particularly poor job of it, producing
scores that had all the worst character of Ratti and Cencetti’s manuscripts and none of
the qualities we expect in fine printed full scores, and so their experiment did not catch
on.20 Thus, the way was left clear for the continued practice of publishers in Milan (Ricordi
and Lucca), Florence (Cipriani and others), and Naples (Giuseppe, then Bernardo Girard,
Clausetti, and Fabricatore) to print complete vocal scores and to rent complete manuscripts
and performing materials.
At first the performing materials were entirely handwritten. Later, when it became
clear that it was more economically efficient to make some performing materials available
in printed scores (particularly when multiple copies were needed for the strings or for the
chorus), companies such as Ricordi began to produce selected parts in printed copies
while continuing to make manuscript materials when only single parts were needed (an
oboe part or one of the trombone parts). Only when some of Verdi’s works began to be
demanded by many, many theaters at once (works such as Rigoletto, La traviata, or Un
ballo in maschera) did Ricordi prepare entire sets of parts in printed editions.21 They even
tried, with La traviata, to produce a printed edition of the full score, but the resulting
score was sufficiently defective that the company soon returned to the old-fashioned
mode of providing full scores only in manuscript copies.22 It was not until the mid-1880s,
with Otello, that Ricordi began seriously to issue printed full scores, at first only for rental,
then for sale.
It is clear, however, that if this material was all expected to be returned to Ricordi
after its use in a given season, ready to be rented to another opera house, the houses
themselves would not have kept important archives. And, indeed, that was what Ricordi
was counting upon: if opera houses did not maintain an archive, they would come back
again and again to Ricordi to rent materials, and so the fortune of the editorial house and
its directors was made. Whether Ricordi over time actually kept materials from the early
or middle years of the nineteenth century is difficult to determine, since the Ricordi archive
as we know it today is only a fragment of what it once was. As World War II got under way,
the directors of Ricordi made the decision to transport the autograph manuscripts, of
which the company owns many, from the archive to a safe destination outside the center
of Milan. But the remainder of the archive was just sitting there; so, when American
planes bombed the center of Milan in 1944, they destroyed the archive as it was then
known. I knew personally some of the people who worked with Ricordi in those years and
they report that items in the archive were “carbonized”: when the fires had dissipated,
they could still tell what had been there, but when they touched a manuscript or a set of
parts, it dissolved into dust. And so, nowhere in Italy (not even in the major collections of
musical manuscripts in the conservatories of Naples, Milan, Rome, or Bologna) can one
today normally locate sets of materials from the nineteenth century.23
...........................................................................
20
For further information about this publisher, see Bianca Maria Antolini and Annalisa Bini, Editori e librai musicali
a Roma nella prima metà dell’Ottocento (Torre d’Orfeo: Roma, 1988). See also the entry under Ratti and Cencetti
in Bianca Maria Antolini, ed., Dizionario degli editori musicali italiani, 1750-1930 (Edizioni ETS: Pisa, 2000).
21
The history can be followed very nicely in Luke Jensen, Giuseppe Verdi and Giovanni Ricordi, with Notes on
Francesco Lucca: From “Oberto” to “La Traviata” (Garland Publishing Inc.: New York and London, 1989).
22
This edition is discussed in detail by Fabrizio Della Seta in the Preface and Critical Commetnary to the critical
edition of La traviata (see Note 7).
23
There are important exceptions, of course. At the library of the Naples Conservatory, for example, are found
manuscript parts from local churches, including the parts for Rossini’s Messa di Gloria, with important annotations
by the composer. The piece is currently being edited by Martina Grempler.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
24
That is why collections outside Italy have proven so important. The archives of
the Marinsky theater in St. Petersburg is one important location. Another is the Paris
Opéra, which has always had a saving mentality (in English we talk about “pack rats” as
saving everything, so that it is still possible today to examine performing materials from
operas that were given at the Opéra from the eighteenth century and the nineteenth
centuries. For some operas, such as Le comte Ory, for which practically no autograph
manuscripts exist, the new critical edition of the opera depends on the original performing
materials (especially on a score prepared by copyists at the Opéra, but also on the early
performing parts, which must be carefully differentiated from later materials).24 The same
was true for Guillaume Tell and it will undoubtedly be true for the other operas by Rossini
written for the Paris Opéra. For the Donizetti and Verdi operas prepared for the Opéra, we
have – by and large – the original autograph manuscripts, so the materials at the Opéra´have
slightly less importance, but they nonetheless continue to answer many questions that
the autograph manuscripts leave unanswered (what some of these are I will discuss in a
few moments).
The scholar M. Elizabeth C. Bartlet, who died tragically of breast cancer a few
years ago, knew more about French archives than anyone else in the world. She herself
did critical editions of Jean-Philippe Rameau’s Platée and Rossini’s Guillaume Tell. 25 She
also was certain that materials must have still existed from the archives of the Opéracomique and the Théâtre Italien, despite the fire that consumed much of the Italian theater
in 1837. Beth, who was a very strong and persistent scholar, made such a pain-in-the-neck
of herself during the 1970s that the staff of the Bibliothèque Nationale, Départment de la
Musique, finally allowed her access to uncatalogued parts of the collection. It was there
that Dr. Bartlet discovered the performing materials pertaining to Rossini’s Il viaggio a
Reims, the first traces we had seen for this unknown and unpublished opera. From her
discoveries, the effort to reconstruct that masterpiece of Rossini’s maturity took wing.26
Another significant collection of this kind existed for many years in the archives
of Covent Garden in London. Although the theater often insisted that they had nothing, it
wasn’t true: they had a remarkable collection of performing materials, now deposited at
the British Library. The person who particularly insisted that these be made public was
Will Crutchfield, who found important original Donizetti manuscripts in the archive. But
the original performing parts of Verdi’s I masnadieri, which had its first performance at
Covent Garden, were used extensively by Roberta Marvin when she prepared the critical
edition of that opera. These parts showed, for example, that the original prima donna,
Jenny Lind, ornamented the repetition of the cabaletta theme so extensively that it was
necessary to cancel Verdi’s instrumental parts doubling the melody for that repetition.
Since the opera had been performed at Covent Garden only in that original season, there
was no question about the proper dating of these annotations.27
Still, with all of these discoveries, nothing prepared me for what I would find in
the conservatory library at Rio de Janeiro. Although some of the materials do come from
...........................................................................
24
This edition is being prepared by Damien Colas for Works of Gioachino Rossini (Bärenreiter-Verlag: Kassel,
etc., in preparation). It is hoped that the Colas edition, which has already been successfully performed in Zürich,
with Cecilia Bartoli as the Comtesse Adele, will be in print before the end of 2011.
25
The editions appeared, respectively, in the Opera Omnia of Jean-Philipp Rameau, Series 4, vol. 10 (BonneuilMatours, Socieìteì Jean-Philippe Rameau: France, 2005) and the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini,
Series I, vol. 39 (Fondazione Rossini: Pesaro, 1992).
26
For further information about the discovery and reconstruction of Il viaggio a Reims, see Divas and Scholars,
152-8. A critical edition of the opera, Janet Johnson, ed., was published as Series I, vol. 35 in the Edizione critica
delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1999).
27
This history is described in the Preface to the critical edition of I masnadieri, Roberta Montemorra Marvin, ed.
(see Note 9).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
25
the Ricordi archives and should therefore have been returned to the company after
performances in Rio had taken place, the city was far enough away from Milan as to make
it difficult if not impossible for the Milanese publisher to pursue any action against an
opera house in Rio. And most materials in the archive do not come from Milan at all, but
seem to have been acquired from copying houses and publishers in Naples, companies
which may have had less control over their materials than the Milanese publisher tried, at
least, to exert.
I had only three days to examine the collection, so this is very much a preliminary
report, but suffice it to say that I assembled over forty pages of notes in my computer,
enough to give me a fairly good idea of what is to be found in this collection, which has
been expertly catalogued through the efforts of the director of the library, Dolores Brandão,
and its cataloguer, Maria Luisa Nery de Carvalho.28 Still, a preliminary report is better than
none, and I hope it will be useful for all of you to know something about the treasures
here in Rio. I know it will be useful for those actively involved in making critical editions of
operas that have not yet been published in the collected works of Rossini and Verdi, not to
mention Donizetti and Bellini.
Let me begin by discussing the complete manuscripts in the collection. None of
them seems to be very early. I do not know the history of these manuscripts except that
they were in a theatrical archive, from whence they came into the possession of the
Conservatory, which already in the nineteenth century became the Instituto Nacional de
Música.29 They are now housed in the Biblioteca Alberto Nepomuceno of the Federal
University of Rio de Janeiro . We can judge the dating of these complete manuscripts by
those situations in which the names of copyists or publishing houses are included.
Unfortunately, in most cases these indications are found on labels pasted into the scores,
which is a less reliable kind of information than those occasions in which copyists identified
themselves directly by annotating manuscripts in their own handwriting. Still, any
manuscript that is identified with a label specifying that it is from the publishing house of
“Giovanni Ricordi” must date from before 1854, the date of Giovanni’s death. At that
point the company passed into the hands of his son Tito Ricordi (and it was thereafter,
until Tito’s death resulted in the assumption of power by his son, Giulio, known as “Tito di
Giovanni Ricordi”). Thus, the mostly complete manuscript copy of Verdi’s Ernani found in
the Rio collection (it lacks Act II) is identified on a pasted label as coming from ‘Tito di
Giovanni Ricordi,” and the first indicated performance for which the manuscript was used,
written by hand on the score, was in Turin in 1861. Several of the printed performance
parts, however, associated with this title, still bear “Giovanni Ricordi” indications, so it
seems likely that Tito continued to use materials that his father had had prepared earlier.
Whether that means that the score is earlier than 1854 cannot yet be determined. There
are also important groups of scores from a competitor of Ricordi’s in Milan, Francesco
Lucca, whose business flourished from the 1840s throughout the 1860s. He provided the
score of Verdi’s Macbeth, a fine manuscript of the first (1847) version of the opera.
Likewise, for the many complete manuscripts prepared in Naples, we can be
pretty sure that none of these sources date from the 1820s, because none is identified as
being associated with a publisher of this period, such as Giuseppe Girard. Only his son’s
...........................................................................
28
To both of them my heartfelt thanks for all their kindnesses in making the collection available to me over three
long days, including a Saturday and a Sunday, when the library officially should have been closed. Equally I wish
to thank Maria Alice Volpe for having organized this conference, having invited me to participate, and having
assisted me in a host of ways.
29
Benjamin Walton (see Note 3) seems to be primarily interested in very early musical sources, of which Rio has
few. This, however, seems to me an error: we should be grateful for the sources Rio does have and try to
understand what they can tell us.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
26
name is found, Bernardo Girard, as are the names of other companies that did not exist in
the 1820s, such as Clausetti (who ultimately became a partner of Ricordi’s) or Fabricatore.
The Fratelli Fabricatore and Bernardo Girard were important sources for manuscripts and
parts in Rio, and many scores (such as several of the music for Giovanni Pacini) have their
labels, often with double addresses, such as the following from Girard: “Deposito per la
vendita delle proprie edizioni, e di quelle di fondo estero, Largo S. Ferdinando n. 49, /
Copisteria e Archivio di Spartiti manoscritti per uso di rappresentazione, Largo del Castello
n. 73,” clearly differentiating the publisher’s activities as a purveyor of printed editions
and of copies for performance.
Just by way of indicating something of the scope of the collection, it should be
said that there exist some thirteen manuscripts of operas (either complete or of at least a
full act) by Rossini. Not all are usable. There are manuscripts, for example, of Act I of one
of Rossini’s early operas (from 1812), Ciro in Babilonia and of practically the whole of his
later, largely pastiche opera, Edoardo e Cristina, of which autograph manuscripts do not
seem to survive, and so these sources are potentially very useful. But they are in such very
bad shape (worms, in particular, seem to have delighted in eating their paper and paste)
that it is hard to know how it would be possible to employ them effectively. Digital copies
could help: work with the originals would clearly be impossible, for every turn of a page
would destroy more of the volumes.30
While these scores do not always provide significant information for textual
purposes, they do tell important stories. We know, for example, that the censors were not
happy with a chorus in L’Italiana in Algeri of 1813. It was hard enough to stomach Isabella’s
Rondò, “Pensa alla patria,” which was often changed to “Pensa allo sposo” or “Pensa allo
scampo,” but what was truly unacceptable was the text of the preceding chorus, where
Rossini set the text “Quanto vaglian gl’Italiani, nel cimento si vedrà.” In the Rio manuscript
this text has been modified to “Che l’ardir non torna vano nel cimento si vedrà.” The idea
of what Italians are worth disappears altogether. This manuscript is actually entitled not
L’Italiana in Algeri but instead Il naufragio felice, a title in which the opera was known in
Naples. This comes as no surprise since the manuscript was prepared in the copy-house
of “B. Girard,” as written into the source. (Other operas exist in versions modified for
Naples: one source in Rio for Verdi’s Ernani is known, for example, under its Neapolitan
name, as Elvira d’Aragona). There are many indications, though, that the copy of L’Italiana
in Algeri represents a fairly late version of the opera. Rossini wrote L’Italiana in Algeri
without trombones (he did not start using three trombones in his operas until several
years later, in Naples), yet this copy of his score has parts for three trombones. If we look
at copies of the opera found in the library of the Naples Conservatory, we find that some
later copies also have added parts for three trombones, but early copies have no such
parts. In short, this is a dead give-away that the manuscript is a late copy, certainly no
earlier than the 1830s.
I was not surprised to see that the copies of French operas written by Italian
composers in the Rio collection are all to be found in Italian translation. We knew that
these translations were widely used by theaters throughout the world. What surprised
me, on the other hand, was that some of the translations did not agree with what I have
always taken to be the “standard” translations (those preserved in the Ricordi printed
editions and performed continuously until our own time). Thus, even though the translation
of Guillaume Tell as Guglielmo Tell comes from the workshop of Giovanni Ricordi, the last
words of Tell’s response to the Fisherman’s initial song (“Il chante et l’Hélvétie / Pleure,
...........................................................................
30
The library is very kindly providing me with just such digital copies, which allow access to the manuscripts as
they exist today and do not create further damage with each use.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
27
pleure sa liberté”) is rendered not as in the perfectly horrible standard Italian translation
(“Ah-i, quanto piangerà”), which was developed to avoid the word ‘liberté,” but with the
verse “Pasce, pasce una speme il cor”: hardly very elegant, it at least avoids the terrible
“Ah-i” of the standard translation. The Rio manuscript, therefore, is not only important in
itself, but it also raises again the whole issue of how these operas were performed around
the world (and there are complete manuscripts of Rossini’s Moïse and Donizetti’s Les
martyrs, La favorite, and Dom Sébastien, all in Italian, that will require similar study).31
Add to what I have already mentioned, five complete manuscripts to operas by
Bellini, nineteen to operas by Donizetti, seven of Mercadante’s most mature operas, eleven
of Pacini’s operas, and several operas by Verdi, especially works from the 1840s, and you
can get a hint at the importance of the Rio collection of complete manuscripts, which
rivals most other collections in the world, including in Italy. Remember, too, that many of
these manuscripts contain handwritten annotations, for example, of the ornamentation
employed by singers; as such they contribute in a fundamental way to our knowledge of
nineteenth-century performance practice.
But what is truly remarkable in the Rio collection is not even the complete manuscripts. It is the evidence provided by the performance materials that accompanied the
manuscripts. To find performance materials anywhere is rare enough (as I said before, we
are fortunate that such collections as those of the Marinsky Theater in St. Petersburg, the
Paris Opéra, and Covent Garden still exist). In Italy such materials are almost impossible
to find. (One exception is the Teatro La Fenice of Venice, which unusually and uniquely
preserved the complete original performing materials for Semiramide.32) There is practically
no opera represented by a complete score in Rio that does not have associated with it a
full set of parts. And these parts have, most of the time, been annotated with indications
of cuts, modifications, etc. That strongly suggests that the operas were actually performed
from this material before it was deposited in the library.
Now, why should this be so important? For operas for which we have complete
manuscripts or even autographs, why should we need also to have access to parts used by
the musicians? Those who have worked preparing critical editions of this repertory know
the answer. While full scores tell us a great deal, they do not tell us everything we (and the
musicians for whom we work) need to know. One simple example should make this clear.
Normally each individual instrument is not given a separate staff in the complete manuscripts. The two flutes, or the flute and the ottavino, are placed on a single staff; the two
oboes are on a single staff; the three trombones are on a single staff. Sometimes composers
are explicit: they will mark a line “Solo” or “a 2” or even “a 3” in order to communicate specifically
their intentions. More often than not, however, they leave us guessing.
Now, it is sometimes not hard to guess what they have in mind. If the clarinets
are doubling the oboes, there is one melodic line on each staff, the dynamic level is “piano,”
and on the oboe staff the composer has written “Solo,” it seems likely that only Ob I should
be playing and that, even if nothing is said about the clarinets, Cl I alone should play. But
unfortunately matters are not always so simple. We know, for example, that the Italians
tended to use three similar trombones, whereas the French preferred a clearer
...........................................................................
31
I have discussed the problem of translations in Chapter 11 of Divas and Scholars, “Words and Music: Texts and
Translations”, p. 364-406.
These turned out to be fundamental for work on the critical edition of the opera, Philip Gossett and Alberto
Zedda, eds., Series I, vol. 34 in the Edizione critica delle opere di Gioachino Rossini (Fondazione Rossini: Pesaro,
2001). Not only did the parts contain information about instruments not included in Rossini’s autograph
manuscript, but found among them was the autograph of Rossini’s spartitino for the opera, a manuscript
containing many of the orchestral parts there was simply insufficient space for the composer to include in the
basic autograph manuscript. I wish to thank, in particular, Patricia Brauner and Mauro Bucarelli for having brought
this spartitino to my attention.
32
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
28
differentiation of three quite independent instruments with different ranges. This works fine
when there are three notes on the staff, and we assign them to Trn I, Trn II, and Trn III accordingly,
but what if there are only two notes on the staff or only one? How many instruments
should play and what parts should they play. Silence. The full autograph allows us to
guess, but it doesn’t tell us explicitly what to do. Here the performance material becomes
crucial. If the notes are found in a part, at least the musician or editor or publisher who
prepared the material believed that the note so indicated should be played by that part
(and normally separate parts were prepared for each oboe or the two clarinets were
placed on two separate staves, or there were separate parts for Trns I and II together and
for Trn III, etc.). So, instead of simply guessing who should play what note, we have at least
some contemporary evidence about the matter.
This proved fundamental in our work with Semiramide, for example, an opera
that uses four separate horns, but in which the autograph is not always clear about what
each part should play. In some cases there were so many parts that not even the larger
paper Rossini used for his score was adequate to contain all this information, so that
Rossini had to write additional parts on separate “spartitini,” as we call them, some of
which were subsequently lost. Thus, it is only from the performance material that we can
reconstruct what actually was performed at the theater.
I have emphasized the problem of the trombones because the handling of Trn II
is particularly tricky. That Trn I should play the upper note of, say, an octave, is clear, just as
Trn III should presumably play the lower note. But what should Trn II do? Should it play
the upper part, the lower part, or simply drop out? What we know from contemporary
evidence is that it did none of the above: it tended to jump around, playing notes that
were comfortably within its register. And so on one octave Trn II plays with Trn I, but on
the next octave it may be playing with Trn III. Thus, our critical editions sometimes seem
to have the peculiar appearance of I and II playing together on the first and third beats of
the measure and II and III playing together on the second and fourth beats: if we do
something of this kind, it is because that is the information we gather from qualified
performance materials of the period.
The Rio parts, of course, cannot pretend to have been used for the earliest
performances of any of these operas, so that we cannot be certain that what they reveal
is what the composer may have had in mind. Yet, they are closer to this reality than pure
guesswork on the part of the editors. Thus, in many cases they will prove invaluable to
those who are preparing critical editions of the repertory of nineteenth-century Italian
opera. I would not want to do a critical edition of Verdi’s I Lombardi, to take one example,
without consulting closely the materials in the Rio collection, some of which stems from
Giovanni Ricordi in Milan (hence pre-1854) and some of which comes from Ricordi’s
Neapolitan colleague, Clausetti.
I could go on about other uncertainties in the autograph manuscripts (ambiguities
about signs of dynamic level, about the length of slurs, etc.) for which performing materials
offer additional information, but I think the example I have given is clear enough.
There is yet another way in which these materials prove fundamental. Ricordi
and other publishers, faced with the growing popularity of Verdi’s operas, in particular,
began to change their procedures. First, instead of preparing all performance materials
by hand, they began to print parts where multiple copies were needed for a performance,
especially choral parts and string parts. But finding this material is a nightmare. There are
a few collections with some of it, but frequently we have had to admit defeat: no copies
had been located in any library or theater collection of parts known before the publication
of the edition. From now on such judgments cannot be made without consulting the Rio
collection, which has many printed parts: for I Lombardi, for example, there are printed
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
29
choral parts and string parts. Later, faced with performances of Verdi’s operas in many
theaters simultaneously, Ricordi began to print parts for every instrument. Some of these
parts are found in the Rio collection. For La traviata, for example, there are printed choral
parts, as well as printed orchestral parts for arpa, triangolo, and nacchere e tamburelli.
It is surprising, however, that in some cases editors preferred to avoid the Ricordi
printed parts and continued to provide manuscript parts. This is the case with Un ballo in
maschera of 1859, for which Ricordi prepared a complete set of printed parts (one set
was purchased many years ago by the New York collector James Fuld, who—on his death—
willed it to the Pierpont Morgan Library).33 So it came as a surprise to find in the Rio
collection not only a complete manuscript of Un ballo in maschera, as the opera was
known after 1859, but also a relatively complete set of manuscript performance materials
(bearing at one point the date of April 1864). I will certainly want the editors of this volume,
which has yet to be published in The Works of Giuseppe Verdi, to consult not only the
printed Ricordi parts, but also these Rio manuscript parts, even if we have no certain
indication of their provenance.
What I have written thus far only begins to suggest the riches of this collection.
I was particularly surprised to find a series of parts for La pie voleuse. This is a version of
Rossini’s two act semiserious opera La gazza ladra of the carnival season of 1817, first
performed at the Teatro alla Scala of Milan. But the opera soon returned during the 1820s
to Paris, from whence the subject first became known as a play by the name of La pie
voleuse, as an opéra-comique, with music by Rossini, but with the musical numbers
connected by spoken dialogue. This is the version represented by these parts, which were
prepared through the “Magasin de Musique / de M.r / D’Harmeville / Directeur du 15.e
Arrondissement,” that is, they are Parisian parts that somehow made their way to Rio in a
version that was certainly never performed in Rio, but may nonetheless represent the
earliest single group of parts in the Rio collection.
Let me report finally on the wonderful band parts found among material in Rio. We
know well that from the late 1810s through the 1850s composers tended to write music
for a “banda sul palco.” The band parts in the Rio collection indicate without doubt that
the banda really was sul palco, as other sources have hinted.34 The band parts for Verdi’s I
Lombardi are small in format, just the size necessary to attach them to an instrument
which is being walked across the stage.
...........................................................................
33
Before his death, Mr. Fuld kindly made a photocopy of the entire set of parts available to the editors of the
forthcoming critical edition of Un ballo in maschera, Ilaria Narici and Andreas Giger.
34
Particularly clear is a manuscript associated with costuming at the Théâtre Italien of Paris for performances
there of Rossini’s La donna del lago in 1824, which includes costumes for members of the band. This manuscript
is discussed in the Preface to the critical edition of the opera, ed. H. Colin Slim in the Edizione critica delle opera
di Gioachino Rossiini (Fondazione Rossini: Pesaro, 1990), xxvii-xxx.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
31
Fantasias operísticas italianas
na América Latina*
Benjamin Walton
Universidade de Cambridge
O assunto ópera nas Américas surgiu várias vezes nas páginas do Allgemeine
musikalische Zeitung, durante meados da década de 1830; e, em janeiro de 1836, o
correspondente da revista Livorno apresentou uma atualização. Ele começou relembrando
algumas viagens anteriores pela América, principalmente a de Lorenzo da Ponte, então
em meados dos seus 80 anos de idade, a Nova York, e a viagem de Manuel García e família para os Estados Unidos e México. Também mencionou uma então recente visita a
Milão por um empresário mexicano para contratar um contralto, um baixo e um diretor
musical. Porém, o foco principal do relatório era uma lista detalhada de toda uma companhia que recentemente partira para Havana. Aí se incluíam uma prima donna soprano,
um primo contralto que também era primeiro músico, mais dois primi contralti, duas
seconde donne, sete primi tenori, dois primi bassi cantanti, um primo basso generico, uma
série de primi e bassi secondi, três coristas, um diretor de música, um diretor de coros, um
copista e ponto, ainda os principais membros de uma orquestra completa: músicos de
cordas e de sopro, um trompetista e um harpista. Havia ainda um suplemento completo
de bailarinas e mímicos, com seus mestres de dança, assim como pintor, maquinista, alfaiates de ambos os sexos, um médico e um cozinheiro. Todos eram italianos arregimentados
durante o verão anterior em Milão e Bolonha por um empresário de Berlim, Franz Brichta;
a companhia completa totalizava 70 pessoas. A epidemia da cólera atingiu a região enquanto aguardavam o navio em Livorno. Quando da partida, somavam 67 membros; perderam um dos tenores, um alfaiate e o infortunado médico (“Theatralische Sommer-Stagione”, 1836, colunas 63-64).
“Se levarmos em consideração”, concluiu o relatório, “que ano após ano, a Itália
fornece cantores para não apenas os seus inúmeros teatros, mas também os de Lisboa,
Madrid, Barcelona, Cádiz, Sevilha, Porto, as ilhas de Maiorca e a América, muitos dos
quais também cantam em vários teatros na Inglaterra, França e Alemanha, e que ainda há
um grande número deles sem qualquer compromisso, temos de nos maravilhar com essa
imensa assembleia; mas, claro, nos campos de Espéria” – isto é, na Itália – “todos cantam,
mesmo quando falam!” (col. 64).
De certa forma, isso não era novidade: já no século XVIII a ópera italiana fora apresentada em toda a Europa e também desde o Vice-Reino de Lima até a corte Imperial da China, onde o imperador Qianlong teria sido tão seduzido por La buona figliuola, de Piccinni, que
ele arrumou um grupo de músicos chineses especialmente treinados para executar essa obra
em um teatro especialmente construído para isso (Ginguené, 1800, p. 10-11).1 O espanto da
...........................................................................
* A pedido do autor, o texto está aqui publicado na tradução para o português, realizada por Maria Alice Volpe
e Régis Duprat.
1
“Esse príncipe havia se emocionado deliciosamente ao constituir uma trupe de músicos incumbidos apenas de
tocar a música dessa peça; pois ele havia feito construir por hábeis operários do país uma espécie de teatro, e
que sobre as muralhas ele havia feito pintar todas as cenas de La Cecchina, a fim de poder vê-la e ouvi-la ao
mesmo tempo”. Tradução livre, do original “Ce prince en avait été si délicieusement ému, qu’il avait établi une
troupe de musiciens chargés seulement de jouer la musique de cette pièce; qu’enfin il avait fait bâtir par d’habiles
ouvriers du pays une espèce de théâtre, et que sur les murailles il avait fait peindre toutes les scènes de la
Cecchina, afin de pouvoir la voir et l’entendre à la fois”. Sou grato a David Irving por chamar minha atenção para
esta referência. Sobre a ópera em Lima no século XVIII, ver Villena, 1945 e Estenssoro, 1989.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
32
retórica do correspondente de AMZ, diante da disseminação de cantores italianos em
toda a Europa e através do Atlântico, sinaliza a possibilidade de que o tipo de viagem
planejada para Havana em 1830 foi diferente de tudo o que havia ocorrido antes; e mesmo
do ponto de vista do historiador posterior, tal evento poderia marcar o verdadeiro início
da globalização da ópera italiana.
Tal afirmação pode parecer desnecessariamente exagerada. Afinal, deixando de
lado esse bando de cantores e dançarinos vinculados a Cuba, muitas óperas fora da Europa
nos anos anteriores a 1850 envolviam um número muito menor de intérpretes –
frequentemente pequeno para realizar um bom trabalho – em produções improvisadas,
em teatros inadequados. Donna Gabaccia (2000, p. 43) estima que, enquanto artistas da
“arte elevada”, ou seja, cantores de ópera e outros músicos, representaram a mais alta
categoria da emigração italiana de elite no início do século XIX, apenas cerca de 2% deles
chegou às Américas.2 Trata-se de um número suficientemente pequeno, de fato, que
pode ser quase calculável ou pelo menos rastreável pelos nomes dos empresários ou dos
cantores principais de cada companhia. É o caso do grupo que acompanhou o baixo
rossiniano Filippo Galli para o México nos anos posteriores a Garcías, por exemplo, ou a
companhia de Giovanni Montresor em Nova York e Filadélfia, no mesmo período, recrutada
por Da Ponte que acabou por unir forças com uma companhia Brichta anterior em Havana.3
Mais ao sul, quase tudo irradiava a partir do ponto focal do Rio de Janeiro, o
centro da ópera da América do Sul desde que a corte portuguesa se transferira para lá fugindo de Napoleão, em 1808, e construiu uma casa de ópera como réplica do São Carlos
de Lisboa. Foi do Rio que o espanhol Pablo Rosquellas reuniu uma companhia para apresentar as primeiras óperas italianas em Buenos Aires, em 1825 (Gesualdo, 1962; Bourligueux, 1992). E foi também do Rio que, alguns anos mais tarde, outra companhia, liderada
por Domenico Pizzoni, iniciaria sua circunavegação do globo, trazendo a ópera italiana
para as recém-independentes Montevidéu, Santiago e Lima, perfazendo a rota nesta sequência, e, eventualmente, alcançando lugares além das Américas ainda não conquistados
pela ópera na primeira metade daquele século.4 Significativo começo, sem dúvida, mas
nada comparável à explosão da ópera e casas de ópera na Europa, inclusive na própria
Itália.
A ideia de globalização, entretanto, traz em seu bojo um conjunto de ideias sobre
a liberalização do comércio e redes de comunicação que pode parecer envolver a ópera
apenas tangencialmente. No entanto, é notável que em sua recente pesquisa panorâmica
do século XIX, o historiador da globalização Jürgen Osterhammel (2009, p. 28) não só
destaque a ópera como a forma de arte característica da época, mas também chame a
atenção para o fato de que, em suas palavras, “a ópera globalizou-se precocemente”. Essa
precocidade é uma qualidade relativa, é claro, e no debate em curso sobre os princípios
da globalização está bem delineada nos títulos dos capítulos centrais de um livro recente
sobre “A globalização na história do mundo” por Peter N. Stearns (2010): “1000 da era
cristã como o ponto de viragem: o nascimento da globalização?”; “1500 como o ponto de
viragem: o nascimento da globalização?”, “a década de 1850 como o ponto de viragem: o
nascimento da globalização?”
...........................................................................
2
Tal figura é inevitavelmente aproximada, dada a dificuldade de coleta de dados; a principal fonte de Gabbaccia
provém das biografias em Imperatori, 1956.
3
Sobre a turnê Galli para o México, 1831-1835, ver Vogeley, 1996 e Reyes de la Maza, 1969. Sobre Montresor e
Brichta, ver Preston, 1993, cap. 3.
4
A companhia não executou nenhuma ópera completa em Montevidéu, mas ofereceu trechos de óperas de
Rossini, em 1829 e 1830 (ver Ayestarán, 1953, p. 303 e ss.), pois, em seguida, apareceram em Santiago, em
1830-1831, e em Lima, em 1831-1832, antes de ir para Macau, na China.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
33
Fiquemos com o último desses referenciais, por razões óbvias – o que nos termos
de Stearns não seria de modo algum muito recuado temporalmente. A ópera posterior a
1850 se encaixa suficientemente bem no relato da crescente integração global facilitada
pelo desenvolvimento dos meios de transporte, especialmente os navios a vapor, e pela
comunicação rápida possibilitada pelo telégrafo. Contudo, em resposta à observação de
Osterhammel, quero considerar a possibilidade de que as viagens das décadas de 1820,
1830 e 1840 criaram uma ideia antecipada de ópera global, baseada mormente no que
Roland Robertson chamou de “uma intensificação da consciência do mundo como um
todo” (Robertson, 1992, p. 8). Essa variante anterior, eu diria tão importante e merecedora
de tanta atenção quanto o circuito de ópera movido pelos navios a vapor que se desenvolveria mais tarde no mesmo século; na verdade é uma parte geradora da história posterior. Nesse contexto, a viagem daquela companhia de ópera, robustamente composta
por 70 membros, para Havana não se revela apenas algo maravilhoso por si só; tão notável
foi o fato que a turnê foi relatada em um dos principais periódicos alemães de música
como parte de uma excursão de “ópera italiana”. O jornalismo ajudou a mapear e, assim,
dar existência ao crescente âmbito da ópera na medida em que ela se disseminou ao
redor do globo, de tal modo que as estatísticas sobre o número de intérpretes deixam evidentemente de indicar. E, como resultado, a própria ópera italiana é transformada, ao receber um novo conjunto de contextos e significados como uma ideia global.
Aplicar a concepção de ópera global a 20 ou 30 anos atrás, é mover a sua origem
da modernidade tecnológica do navio a vapor para a modernidade mais cataclísmica das
guerras napoleônicas e suas consequências, quer sob a forma de chegada da corte portuguesa ao Rio ou as guerras de independência que ocorreram em diversas partes do
continente americano. Tal reformulação serve ainda para separar decisivamente a ópera
globalizada das grandes levas de emigração italiana para as Américas, que ocorrerão no
final do século: mais de sete milhões de pessoas, entre 1876 e 1914. Por essa época, e
paralelamente ao seu apelo tradicional de elite, a ópera italiana tinha garantido um contexto já preparado da diáspora italiana, dulcificado pela nostalgia da pátria. Estimativas
sobre a emigração na primeira metade do século são mais difíceis de encontrar, mas no
caso da América do Sul, os italianos foram, sem dúvida, superados numericamente por
grupos de outras nacionalidades, o que resulta em que a ópera italiana durante as décadas
de 1820 e 1830 certamente não era um produto ligado a qualquer concepção de origem
nacional e muito menos a um público definido nacionalmente.
Voltando-se para um caso específico pode-se esclarecer esse ponto: Woodbine
Parish, o britânico encarregado dos negócios em Buenos Aires no momento da primeira
mania operática naquela cidade, durante os últimos anos da década de 1820, estimava
que, em 1832, de uma população total de 81 mil habitantes na cidade, 15 a 20 mil eram
estrangeiros – vale dizer, da Europa ou da América do Norte – e que dois terços destes
eram britânicos e franceses (1839, p. 30).5 Como resultado, a ópera italiana – cantada por
uma mistura de cantores italianos, espanhóis e argentinos – era oferecida para uma
audiência visivelmente composta pela elite local governante e pelos ricos comerciantes
do norte da Europa. Para esses grupos, a ópera se denotava tão europeia – uma reminiscência da ópera em Paris ou Londres para os comerciantes e, de uma forma diferente,
para os argentinos também – quanto qualquer outro produto do norte da Europa a ser
emparelhado com demais bens importados de luxo, moda e misteres da época. “As pessoas
de Buenos Aires”, escreveu um viajante, “estão fazendo rápidos avanços ao copiar os bri-
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5
Sobre uma história mais ampla da emigração italiana para a Argentina, ver Devoto, 2006.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
34
tânicos, tanto no seu mobiliário e na decoração de suas casas como nas atrações da mesa”
(Andrews, 1827, vol. 1, p. 19). Ao assistir à ópera, o mesmo autor observou isso como “o
espelho, em cada país, da moda e do gosto em voga” (p. 17), e os públicos locais em Buenos Aires parecem tê-lo visto do mesmo modo: um espelho faceado firmemente para o
Nordeste, através do Atlântico.
Sem dúvida, é tão problemático generalizar sobre esse público de Buenos Aires
como qualquer outro. Entretanto, é evidente que a ópera foi tomando forma ali, como no
resto do continente, em uma nova esfera pública, após a independência, promovida pela
explosão da imprensa jornalística.6 E nesse contexto a ópera servia tipicamente como
marca não apenas da “civilização” como também mais especificamente de um conjunto
alternativo de valores estéticos e éticos ao domínio espanhol anterior. A alta cultura da
ópera italiana poderia, portanto, ser colocada em clara oposição às sainetes e tonadillas
espanholas, herdadas de épocas anteriores, que foram repetidamente condenadas pelo
jornal governista, o Argos de Buenos Aires, como indecentes e maçantes (ver, por exemplo,
a crítica teatral de 12 de outubro de 1825). Como resultado, a ópera tornou-se circunscrita
a certos quadrantes dentro de uma busca mais ampla de civilização europeia não espanhola, de maneira a tornar praticamente irrelevante qualquer qualidade especificamente
italiana.
As primeiras representações de Rossini em Buenos Aires, por exemplo, foram
em concerto, em outubro de 1822, pelo adolescente compositor argentino Juan Pedro de
Esnaola, recém-retornado de Paris; e seu desempenho foi comentado na Argos (5 de
outubro de 1822) nos seguintes termos:
Todos os presentes deram uma prova indiscutível de seu bom gosto no prazer e
profundo silêncio com que ouviram as diferentes peças sublimes de música vocal
e instrumental. O auditório aplaudiu particularmente o jovem D. Juan Pedro
Esnaola pelo brilho de sua execução de várias composições difíceis para voz e
piano.7
Em outras palavras, as peças importavam menos que a negociação de dificuldade
por um premiado músico local e a exibição de decoro da audiência. Se isso também soa
como se a revista tivesse sido escrita com olhar para além do público local, isso é confirmado pelos objetivos proferidos pela organização responsável por Argos, a Sociedade Literária
de Buenos Aires: “dar conhecimento às nações estrangeiras do estado do país e de seu progresso, difundir a ilustração e organizar a opinião” (apud Shumway, 1991, p. 87).
Abordei em outro estudo como esses primeiros anos da ópera italiana em Buenos
Aires se ajustam ao grandiloquente sonho de civilização do primeiro presidente do país,
Bernardino Rivadavia. De maior interesse aqui, entretanto, é a maneira com que a recepção
da ópera italiana se tornou partícipe ao projeto de levar a cidade a uma fantasia de
civilização global e, ao mesmo tempo, deixou qualquer ideia de “Itália” mais ou menos
velada. O mesmo pensamento pode ser reformulado de uma maneira diferente: na
...........................................................................
6
Discordâncias sobre o papel do jornalismo impresso na formação da esfera pública na pós-independência da
América do Sul continuam a ressoar na esteira de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson; ver, por
exemplo, Uribe-Uran, 2000 e Guerra, 2003. No caso da ópera, no entanto, é difícil separar a chegada das companhias itinerantes da circulação dos jornais da pós-independência, tanto dentro como além dos centros urbanos
específicos.
7
“Todos los concurentes dieron pruebas indudables de su buen gusto en el placer y profundo silencio con que
escucharon diferentes piezas sublimes de música vocal y instrumental. El auditorio aplaudió particularmente al
jóven D. Juan Pedro Esnaola por la brillantez con que desempeñó varias composiciones difíciles de canto y piano”, em tradução livre.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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ausência de qualquer concepção particular da Itália na América do Sul, naquela época, a
ópera italiana em si viria para preencher essa lacuna. Garantido o prestígio por meio de
performances em Paris ou Londres, a ópera veio a substituir uma ideia de Itália ou a constituir a personificação de uma espécie de italianità que não seria disponível de nenhuma
outra forma.
A presença de um contingente europeu entre esse público de ópera, por sua
vez, significava que o ideal fantástico da ópera italiana conjecturado em algumas dessas
primeiras críticas também poderia ser alcançado com bastante facilidade. Para cada comentário como aquele encontrado no periódico de Buenos Aires, El Centinela (2 de março
de 1823), sobre uma apresentação de excertos do Barbeiro de Sevilha, de Rossini, pela
companhia Rosquellas – “finalmente temos ouvido alguma coisa em Buenos Aires que se
aproxima da perfeição no canto e que dá uma ideia completa da beleza da música italiana”8
– há uma falsa alternativa de um viajante europeu, como a de que o teatro em Buenos
Aires “pode ser colocado em pé de igualdade com um dos estabelecimentos mais inferiores
de Londres” (De Bonelli, 1854, vol. 2, p. 312); ou que no mesmo local “os artistas estavam,
talvez, um pouco acima da mediocridade” (Andrews, 1827, p. 17); e mesmo, desta vez sobre
o Rio, em 1828, que “uma detestável companhia italiana, com uma orquestra ainda mais
execrável, assassinava Rossini três vezes por semana” (Jacquemont, 1835, vol. 1, p. 70).
Em ambas as cidades – as duas mais importantes em termos de ópera ao sul de
Havana – um meio termo entre os dois extremos retóricos pode ser rastreado na leitura
dos jornais locais direcionados principalmente para os comerciantes ingleses ou franceses,
ao lado de notícias – incluindo notícias de ópera – de sua terra. Frequentemente contextualizariam apresentações através da referência a cantores em Londres ou Paris, e mesmo
na Itália, mas normalmente viriam em defesa da experiência local. O crítico do jornal
francês publicado no Rio, L’Indépendant, por exemplo, escreveu, em 28 abril de 1827,
reconhecendo que a voz do então principal tenor Victor Isotta carecia de força e flexibilidade, mas ponderou, “nós também sabemos que, se a voz de Isotta […] pudesse acrescentar força e flexibilidade ao seu timbre encantador, ele estaria cantando em La Fenice
ou em La Scala; portanto, quedamo-nos satisfeitos”.9
Seria simplista colocar essas avaliações muito rigidamente em um continuum
do real ao fantástico; e seria tão falso sugerir que os críticos locais nunca teriam sido rígidos sobre a qualidade das apresentações quanto sugerir que os visitantes não ficaram,
por vezes, notavelmente impressionados. Contudo, tomadas coletivamente em seus padrões relativamente previsíveis, torna-se claro que para além de qualquer opinião específica expressa por um crítico particular, a importância dessas declarações impressas
reside ainda na confirmação da existência da ópera em um determinado local, seja bom
ou ruim. Afinal, dispor de uma casa de ópera de segunda categoria ainda constituía um
vínculo junto ao circuito mais amplo da ópera. Dito de outra forma, a realidade potencialmente decepcionante da ópera italiana no século XIX sempre pareceu reter os contornos de sua fantasia norteadora, quer seja em relação à participação na civilização global,
para a imaginação do cantar perfeito, ou uma ainda mais vaga e mais fluida qualidade
italiana, do tipo que pairou nesse relato de um viajante para Lima no início dos anos 1830
(Ruschenberger, 1835, vol. 2, p. 94):
...........................................................................
8
“Por fin hémos oido en BA algo que se aproxîma á la perfeccion del canto, y que dá una idéa completa de la
belleza de la música italiana”, em tradução livre.
9
“[…] nous savons aussi qui se la voix d’Isotta … unissait à son timbre délicieux la force et la flexibilité, Isotta
chanterait à la Phenice ou à la Scala, et nous ici, nous prenons le parti d’en être satisfaits”, em tradução livre.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
36
A Companhia de Ópera Italiana, que de lá partiu em 1832, difundiu um gosto
quase universal pela música italiana; e agora cada jovem sintonizado com a moda
canta e toca as melhores peças de Rossini e Paccini [sic], e muitos aprenderam a
ler italiano.
Corro o risco aqui de mistificar a indefinição da “italianidade” na ópera da
América do Sul mais do que seria credível. Já na década de 1820, havia exilados italianos
em posições de influência em Buenos Aires e em outros lugares,10 e certamente com o
passar do tempo vários escritores se esforçaram para educar seus públicos sobre o
embasamento da música ouvida na casa da ópera de várias maneiras, seja pela publicação
de extratos de Vie de Rossini, de Stendhal, ou, no tempo em que a companhia de Brichta
chegava a Havana, no final da década de 1830, por meio da exploração das diferenças
entre Rossini, querido dos anos 1820, e outros compositores.
No pólo oposto de tais discussões estava, geralmente, o mais jovem
contemporâneo de Rossini, Vincenzo Bellini, e cada um tinha seus partidários. No primeiro
periódico musical da Argentina, o Boletín Musical (1837), por exemplo, Bellini, em geral,
tinha vantagem e recebia elogios por suas qualidades românticas numa linguagem que o
associava intimamente à melancolia estética da “Joven Generación” argentina, o grupo
político e literário formado em oposição à ditadura populista pós-rivadaviana de Manuel
de Rosas.11 Enquanto isso, em Montevidéu, local escolhido como exílio para muitas figuraschave da Generación, o jornal El Iniciador publicou um artigo em 1º de agosto de 1838
(“Bellini em face de Rossini”) que associava o revolucionário Rossini diretamente à excitação
da era napoleônica, mas que, mais de uma vez, celebrou os arroubos angelicais de Bellini
como autêntico sucessor de Rossini. O artigo foi escrito por Miguel Cané, ele mesmo um
argentino que se mudou para Montevidéu em 1835, e um dos editores do jornal. E as
respectivas caracterizações eram familiares o suficiente, mas não deixaram de servir para
lançar uma luz interessante para um artigo publicado anteriormente no Boletín, de 17 de
setembro de 1837, sobre “o gosto musical de Napoleão”, que termina com uma nota prórossiniana:
Nós também, como o primeiro cônsul, e como o povo, amamos a música monótona, isto é, a música simples no canto e no acompanhamento. Pelo que amamos a música de Rossini acima de todas as músicas: é a gloriosa música do
povo e este título o coloca acima de todos os músicos do mundo.12
Tais posições diferentes podem parecer não mais do que uma postura artística,
ecoando debates franceses e italianos do início da década. E mais ainda desde que um
artigo comparando os dois compositores em El Iniciador apareceu em resposta a um artigo anterior (3 de março de 1838), sob o mesmo título, no La Moda (sucessor do Boletín)
de Buenos Aires, que havia sugerido que Bellini nunca escapara à sombra de Rossini. As
duas revistas compartilhavam vários autores e pode-se facilmente traduzir esses artigos
...........................................................................
10
Ver, por exemplo, Pietro [Pedro] de Angelis, levado a Buenos Aires por Rivadavia, e editor de ambos Crónica
Política y Literária de Buenos Aires (1827) e El Lucero (1829–1832), ambos distribuem notícias da Europa sobre
Rossini.
11
Sobre o lugar de Bellini no Boletín e as possíveis ligações entre a revista e o Generación, ver o excelente ensaio
introdutório à edição fac-símile da revista (Plesch, 2006, p. 25ff). Sobre o Generación, ver particularmente
Shumway, 1991, caps. 5 e 6.
12
“Nosotros tambien, como el primer Cónsul, y como el pueblo, amamos la música monotona; es decir la música simple en el canto como en el acompañamiento. Por lo cual amamos la música de Rossini sobre todas las músicas: es el glorioso músico del pueblo, y este título lo realza sobre todos los músicos del mundo”, em tradução
livre.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
37
como expressões públicas do debate em curso, repetindo argumentos semelhantes da
França ou Itália do início da década.13
No entanto, dado o clima da época, não é necessário ler muito nas entrelinhas
para perceber, no final da década de 1830, como o popular Rossini da era napoleônica
também pôde se mover facilmente para o papel de um Rossini do regime argentino
opressivamente populista, para ser então rejeitado por Cané em El Iniciador através da
imagem de um Bellini mais irreal. O mesmo tipo de segmentação podia ser visto nas
apresentações musicais: Bellini era conhecido principalmente através de excertos
impressos no Boletín ou La Moda destinados às apresentações semiprivadas dos salões;14
Rossini mantivera o seu lugar, ao longo dos anos 1830, no repertório padrão das
apresentações públicas das bandas militares de Buenos Aires, tendo os motes musicais
do Tancredi ou de A Italiana a acompanhar os incontáveis desfiles e festivais vespertinos
(Plesch, 1999).
Para dar um único e eloquente exemplo: em março de 1839, exatamente no
momento em que o Uruguai declarou guerra contra o regime argentino, apoiado pelo
governo no exílio em Montevidéu, Rosas retornou a sua residência em Buenos Aires.
Uma multidão de cerca de uma centena de pessoas apareceu para dar as boas vindas,
empurraram um piano até o local e fizeram uma serenata ao seu líder por uma hora ou
mais, primeiro com o hino nacional e com slogans desejando a morte do líder uruguaio,
Fructuoso Rivera, antes de romper no dueto do segundo ato de Tancredi de Rossini, “Ah si
de mali miei”, seguido por um dueto de L’Italiana e uma variedade de outras canções, algumas operísticas e outras não (British Packet, 13 de março de 1839). Poucas semanas
depois, na Sexta-Feira Santa, as bandas da Marinha e da Guarda da Argentina se reuniram
na ponte levadiça do forte no centro da cidade para tocar mais trechos de Tancredi para
milhares de habitantes da cidade reunidos, antes que quatro bonecos de Judas em trajes
militares fossem suspensos na forca e esquartejados. Em seguida os marinheiros marcharam até a Praça da Vitória e continuaram a tocar enquanto outro boneco de Judas em
uma gaiola foi dilacerado por moleques de rua (British Packet, 13 de abril de 1839).
Não é fácil estabelecer qualquer associação direta; e ao longo de toda a década
de 1830 Rossini se manteve como o compositor mais tocado no teatro de Montevidéu.
Enquanto isso, as óperas de Bellini permaneceram não encenadas e, portanto, em grande
parte, imaginadas; embora segmentos individuais fossem realizados no palco por membros
da família italiana Piacentini, que havia chegado em Montevidéu alguns anos antes como
uma trupe composta por pai e três filhas.15 Então, com o surto da guerra em 1839 – que
iria durar mais de uma década – a encenação de óperas em Montevidéu passou por um
período mais ou menos inativo (como já acontecera em Buenos Aires alguns anos antes),
até que um novo repertório chegasse na década de 1850, incluindo representações
completas de várias óperas de Bellini.
Foi durante esse mesmo período negro da década de 1840, no entanto, que
grandes planos foram elaborados para uma nova casa de ópera em Montevidéu, finalmente
inaugurada em 1856, o Teatro Solís, que ainda hoje está de pé.16 O projeto da casa atenta
para a sua posição simbólica entre as áreas antigas e novas da capital e também à sua
superioridade sobre qualquer outra casa de ópera do continente; caracteristicamente,
...........................................................................
13
O primeiro artigo no Boletín (28 de agosto de 1837) reimprimiu parte de um trecho do parisiense Revue des
Deux Mondes, intitulado “Rossini y Bellini”.
14
O Boletín incluiu uma série de “cuadrillas del Pirata (de Bellini)” em 7 de outubro de 1837; La Moda imprimiu,
tanto uma valsa para piano sobre um “motivo de Bellini”, como também um minueto por Esnaola “à la Bellini”.
15
Ver, por exemplo, o concerto benefício de Justina Piacentini em 26 de setembro de 1836, que incluiu “Casta diva”.
16
Sobre a história do Teatro Solís, ver Salgado, 2003.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
38
isso é articulado explicitamente na descrição constante no manuscrito dos planos do
arquiteto imaginando a visão do teatro visto por um viajante, recém-chegado à cidade,
talvez ao desembarcar provindo de Londres ou Paris – Montevidéu mais uma vez como
parte da civilização global (Antonio, 1841, p. 10). E a dimensão do edifício foi igualmente
ambiciosa, com capacidade para mais de 1.500 pessoas ou, dependendo da estimativa,
algo entre 1/12 e 1/25 de toda a população da cidade.17
Talvez, os cálculos tenham sido simplesmente realistas: no momento em que
esses planos foram elaborados em 1841, a população de Montevidéu havia mais do que
quadruplicado em uma década e esse aumento foi, em parte, devido à chegada de um
grande número de imigrantes italianos. Entre eles se incluíam alguns trabalhadores, mas
também trabalhadores qualificados, como o arquiteto do próprio Solís, Carlo Zucchi, e a
família Piacentini, juntamente com exilados políticos, como Giovanni Battista Cuneo –
envolvidos com El Iniciador – e Giuseppe Garibaldi, que tinha chegado em 1837 do Rio de
Janeiro e formou fortes alianças com os exilados argentinos. Ambos Cuneo e Garibaldi se
envolveram na guerra; o afamado Garibaldi formando a sua Legião Italiana, e levando-a
para a batalha contra as tropas de Rosas. Como resultado, a campanha uruguaia se tornou
uma causa célebre para os liberais europeus, gerando panfletos ao gosto de Alexandre
Dumas (1850). Lucy Riall também sugeriu (2007, p. 42) que a crença de Garibaldi no
significado da escrita biográfica e do jornalismo polêmico pode ter-se originado
diretamente de seus contatos com os exilados argentinos. Certamente a publicidade de
seu sucesso militar no Uruguai se deu em grande parte através da reportagem jornalística
de Cuneo, a ponto de que, nas palavras de Riall, “o heroísmo de Garibaldi e a Legião
Italiana como um todo foi identificado com italianità” (p. 45).
É uma ligação mais concreta entre um determinado conjunto de valores e uma
noção de “italianidade” do que qualquer coisa que ofereci até agora em relação à música.
E não há dúvida de que os europeus davam mais atenção aos jornais de notícias sobre as
façanhas de Garibaldi do que às histórias de viagens de cantores de ópera italiana, ainda
que maravilhosas. No entanto, é difícil resistir à suposição de que uma legião italiana de
Garibaldi também deveria ter a sua própria banda militar e que ela talvez também tenha
tocado Rossini. Difícil também, a partir desse ponto de vista, duvidar se já não havia algo
de marcial codificado na música, na medida em que tinha extrapolado as casas de ópera
e entrado nos quartéis de Buenos Aires ou Montevidéu, assim como os ouvintes de Rossini
na Itália e na França já haviam reconhecido, logo de início, os sons das bandas militares
napoleônicas penetrando as casas de ópera.
Aqui devemos fazer uma pausa teórica. Primeiro, porque ao buscar elidir a música
com a nova italianidade garibaldiana, repentinamente nos damos conta de que estamos
fazendo ressurgir aquela fantasia trivial do historiador da ópera: a união da música e do
heroísmo, a ópera como trilha sonora para a ação patriótica. E nós estamos, afinal, à
beira da década de 1840, com todas as tentações de coros patrióticos de Verdi e do Risorgimento. Também quero fazer aqui uma pausa cautelosa porque tal elisão é apenas um
truque de prestidigitação: a partir das bandas documentadas de Rosas para uma banda
imaginária de Garibaldi. Qualquer que fosse o repertório executado pela banda de Garibaldi, a música de Rossini havia se tornado nessa época também a música da Argentina,
e da Argentina de Rosas, totalmente contra toda e qualquer missão rivadaviana civilizadora
e eurófila. Ao tornar-se global, em outras palavras, a ópera italiana também havia se
...........................................................................
17
Esse cálculo é complicado pela variedade de diferentes estimativas da população de Montevidéu nesse momento. Muitas fontes impressas contemporâneas sugerem uma estimativa entre 10 a 18 mil, mas um estudo
mais detalhado, de 1843, sugeriu que havia 40 mil pessoas na cidade, 6 mil das quais eram italianos (ver Devoto,
2006, p. 32 e nota 13 anterior).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
39
tornado recentemente nacional, enquanto a natureza de suas possibilidades e significados
acabou por ser tão mutável como sempre foi.
O que foi feito das outras fantasias operísticas alternativas? Na América Latina,
pelo menos, o fascínio belliniano continuou, por mais tempo do que em outros lugares, e
de maneiras interessantes. Em certa medida, porém, a aproximação da era dos navios a
vapor, da comunicação mais rápida e de maior migração a partir de 1850 traz consigo as
preocupações familiares da globalização e, de certo modo em extinção, com o espaço
para contestar as ideias de italianità encolhendo rapidamente. Alternativamente, podese dizer que quando da mudança daquela era para o mundo pós-1850, como no caso de
Garibaldi no Uruguai, as fantasias rossiniana e belliniana completaram o seu efeito e poderiam logo dar lugar a um novo conjunto de imaginações por volta dos anos 1860, diretamente da nova nação italiana, que poderia então ser levada mundo afora, particularmente pelas ondas de emigrantes que também fugiram da Itália real na década de
1880 e 1890 e buscaram, mais uma vez, cantores de ópera para lhes cantar, a milhares de
quilômetros de distância.
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
41
Viaggi dell’opera verso il Rio de la Plata
in tempi di migrazioni
Annibale Cetrangolo
Università Ca’Foscari, Venezia
Una premessa
La diffusione dell’opera nella società di Buenos Aires determinò che quello lirico
fosse l’ideale culturale egemone della comunità. Il melodramma, durante la rifondazione
della società rioplatense, fu investito di una funzione extramusicale.
Al di là del piacere estetico, la classe dirigente ebbe perfetta coscienza che l’opera
era rito civile utile a conseguire la coesione interna e imprescindibile per la degna rappresentazione esteriore del paese. Il genere si associò comunque con Italia, il luogo di provenienza della maggior parte degli stranieri che arrivavano in Argentina.
Le difficoltà di appropriarsi del genere da parte dell’elite di potere coincise, intorno
al 1910, con una visione meno cordiale dello straniero. Il migrante italiano, specificamente,
che prima era considerato elemento essenziale per il progresso del paese, fu bollato di
arretrato invasore dell’ambito urbano. Si rimproverò agli stranieri di essere ingrati con la
terra che gli accoglieva mentre si costatava che, malgrado tutto, quei contadini arrivati
continuavano ad essere i proprietari di emblemi culturali invidiati come l’opera. Il melodramma fu per ciò un altro dei terreni di battaglia. Pari passo che si sospettavano le difficoltà
di argentinizzare il genere lirico, si cominciava a capire, rassegnati, che il progetto di europeizzare il paese era in salita: non bastava vendere mucche per accedere gli oggetti pregiati. La
frenesia che gli argentini impegnarono nell’intento di appropriazioni di oggetti culturali
stranieri investiti di prestigio come l’opera e la risentita delusione provata al capire l’impossibilità di tale impresa portò al rifiuto del melodramma e dei suoi agenti. Tanta passione
mostra l’importanza che acquistano gli oggetti muniti di valore rappresentativo nella contingenza dell’accoglienza e del rifiuto delle culture.
Anche in Brasile
Il Brasile, di forma analoga ai vicini del Rio de la Plata, ricevette ingenti flussi
migratori provenienti dall’Europa e dell’Italia in particolar modo. Questo fenomeno comune
a queste nazioni atlantiche del Sudamerica, si articola, però, in territori con storie diverse.
Risulta di grande utilità il confronto di questi diversi sviluppi, tale operazione permetterà
di arrivare ad interpretazioni più raffinate delle attuali. L’apparenza mostra a chiara luce le
analogie: anche a Rio il melodramma fu considerato come viatico imprescindibile per
l’appartenenza al “mondo civile”. Scrive Rogerio Budasz che il teatro d’opera a Rio fu
legittimato dalla corte Bragança come scuola di civiltà e risultò nelle mani del potere,
addirittura strumento di propaganda politica.1 E, se scuola doveva essere, l’insegnamento
...........................................................................
1
Budasz, R. Teatro e Música na América Portuguesa. Ópera e teatro musical no Brasil (1700-1822). Convenções,
repertório, gênero e poder, Deartes Ufpr, p. 181.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
42
tecnico del mettier acquistava un’importanza che il palazzo non poteva trascurare. Come
in Argentina e in tanti altri luoghi del globo, anche in Brasile la promozione degli stili
europei in campo musicale si articolarono con i tentativi nazionalisti di appropriazione
del genere. Sempre Budasz indica che in Brasile si alternarono i vettori di stimolo ai modelli
didattici europei – nel 1843 già funzionava un conservatorio che rispettava quei paradigmi
– con prove di timida brasilianizzazione del genere. Infatti, essendo l’opera spettacolo
politico “não tardaria muito até que aparecessem compositores sintoniçados com as açoes
ao mesmo tempo modernizantes e nacionalistas de dom Pedro II, que se envolvessem no
projeto de criação de uma ópera nacional”. I fenomeni brasiliano e argentino si mostrano
analoghi: per decenni i compositori rioplatensi impegnati nella composizione di opere su
temi storici o nativisti lo faranno su testi e convenzioni melodrammatiche italiani e anche
il tentativo brasiliano vorrà essere nazionale “mas não excessivamente nacional”.2 Le azioni
degli intelettuali brasiliani che accompagnarono queste operazioni liriche furono molto
simili a quelle dei colleghi argentini. In Brasile si elaborarono miti fondatori intorno ad
alcuni compositori e si determinarono parametri per misurare una “brasilidade” in funzione
di certe tematiche, di certi paessaggi e dell’accoglienza di certe musiche tradizionali.3.
Anche in Brasile, come in Argentina e altrove, il prodotto lirico non doveva essere, nota
sempre Budasz, “eccesivamente nazionale”, cioè non eccesivamente diverso del modello.
Era necessario, cioè, che quelle opere potessero presentarsi in Europa come parenti dei
melodrammi parigini o milanesi; parenti venuti dalla campagna forse, ma parenti dopo
tutto. La solita forma e i suoi derivati, l’articolazione scenica, la “posizione”, la misura e
l’accento del verso e addirittura, in tanti casi, la lingua italiana, assicuravano un saldo
substrato condiviso con il modello europeo capace di soportare senza sussulti le pittoresche
variazioni al tema che tanto anelavano i nazionalisti.
Tutti questi sviluppi ribadiscono tante caratteristiche comuni degli sviluppi argentino e brasiliano, ma ci sono, come si annotò prima, differenze di sostanza: in Brasile
l’opera ricevete quell’investitura politica che ho descritto, da un impero e non da una repubblica liberale. Quella repubblica rioplatense era, come le altre ispanoamericane, tanto
bramosa di allontanarsi culturalmente della vecchia metropoli coloniale quanto precaria
istituzionalmente. Questo segna sostanziali differenze già in partenza col Brasile: in quei
poveri teatri, a dispetto dell’ingenuo orgoglio con il quale oggi si presentano, le primizie
rossiniane furono qualche sparuto Barbiere di Siviglia o L’Italiana in Algeri rappresentati
appena nel 1825. Che differenza con Rio! La corte Bragança, prima di quella data aveva
mostrato nella sua nuova sede Tancredi, Aureliano in Palmira, Il Barbiere, L’Italiana in
Algeri, Elisabetta, Regina d’Inghilterra, Adelaide di Borgogna, L’Inganno felice. 4 Negli
anni successivi Berlioz penserà seriamente di trasferirsi a Rio e lo stesso Wagner fu invitato
all’impero.
Per i brasiliani, inoltre, Lisbona rappresenta emblema ben diverso che Madrid
per gli argentini. Per i nazionalisti come Ricardo Rojas o Leopoldo Lugones la Patria si costruisce contro gli stranieri ma non contro gli spagnoli in un’operazione carica di tensioni e
veemenze. Riconoscere un continuum luso brasiliano per certi studiosi brasiliani, invece,
risulta riflessione matura e serena che muove da un punto di partenza assolutamente
diverso, forse opposto, “menos ufanista”, quello di riconoscere “práticas e experiências
comuns, permutas transformações, adaptações e readaptações”.5
...........................................................................
2
Budasz, R., op. cit., p. 183.
Budasz, R., op. cit., p. 113.
Budasz, R., op. cit., p. 10.
5
Budasz, R., op. cit., p. 113.
3
4
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
43
Per concludere, anche le distanze che l’intellighenzia brasiliana prenderà rispetto
all’opera italiana nel ‘900 risulteranno da motivazioni molto diverse rispetto agli analoghi
rifiuti del quartiere aristocratico di Buenos Aires.
Analogie e differenze dovranno mettersi a fuoco considerando non soltanto le
istanze dell’Ottocento ma anche confrontando le situazioni precedenti, quelle che hanno
legato le terre americane controllate dal Portogallo e dalla Spagna intorno alla circolazione
del melodramma e dei suoi operatori.
II Notizie e proposte
Considero necessario includere in questo testo proposte operative giacché trovo
irripetibile quest’occasione per comunicare con i colleghi del Brasile. È questa, infatti, la
sede più adatta per poter dialogare e fondare delle collaborazioni tra la ricerca brasiliana
ed il gruppo internazionale che rappresenta l’IMLA.
1. Antecedenti
Ai tempi della fondazione dell’IMLA, negli anni ‘80, assieme a Francisco Curt
Lange abbiamo individuato un grave ostacolo che si poneva davanti allo studio delle
migrazioni musicali europee verso l’America Latina durane il periodo coloniale, argomento
che allora ci occupava. Era necessario per studiare il trapianto delle musiche europee
oltreoceano, risolvere un problema a monte: l’assoluta precarietà che allora incombeva
sui contatti scientifici tra studiosi spagnoli, italiani e portoghesi. Sebbene oggi, a pochi decenni di distanza risulti singolare, era frequente che un italiano studiasse la musica composta nella Napoli retta dai Borboni spagnoli con scarse informazioni sul mondo culturale
iberico o, viceversa, che uno spagnolo analizzasse l’arrivo dell’opera a Madrid o Barcellona
ignorando gli studi italiani sul melodramma del Settecento. Il Portogallo musicale, per
conto suo era conosciuto malissimo in Italia: persone che sedevano su cattedre universitarie
riuscirono a pubblicare edizioni critiche di melodrammi senza aver consultato gli esemplari
di quelle opere che si conservano in fondi fondamentali come quello dell’Ajuda. Inoltre,
dal punto di osservazione dell’Europa musicologica, salvo scarse eccezioni, occuparsi di
musicologia storica latinoamericana durante l’Ancien Regime era attività segnata quasi
da pittoreschismo. Ricordo in quel contesto, come una nostra speciale riuscita, l’aver festeggiato gli ottanta anni di Lange con il primo contatto istituzionale tra le musicologie di
Portogallo, Spagna ed Italia: fu in occasione del Convegno su Domenico Zipoli che organizzò
l’IMLA a Prato nel 1987.
Successive preoccupazioni scientifiche dell’IMLA, focalizzate su quelle migrazioni
di massa verso le Americhe che si verificarono tra la fine dell’Ottocento e l’inizio del Novecento, trovarono nel flessibile oggetto lirico una materia ideale per l’analisi delle migrazioni culturali. Il positivo sviluppo scientifico delle musicologie dei paesi mediterranei
nel post franchismo e, soprattutto l’espansione degli studi migratori a tutti i rami delle
scienze umane, hanno reso consapevoli gli addetti ai lavori dell’impossibilità di studiare
fenomeni culturali così fluidi come i prodotti musicali senza considerare l’incidenza dei
movimenti di persone e oggetti, nell’attualità illustri studiosi europei e nordamericani
considerano imprescindibile lo studio dei movimenti dell’opera verso il Nuovo Mondo.
Anni fa, John Rosselli dell’Università del Sussex considerò necessario l’esame degli archivi
di Buenos Aires per scrivere i suoi fondamentali testi su impresari e cantanti lirici e in
questa stessa sede, la presenza della massima autorità rossiniana, Philip Gossett, è la più
contundente dimostrazione di quanto la più alta ricerca scientifica consideri lo studio dei
fondi extraeuropei ineludibili per la comprensione della musica europea. Le brillanti
scoperte di Benjamin Walton sugli itinerari dell’opera realizzati grazie all’attenta lettura di
periodici conservati in fondi latinoamericani mostrano da parte sua quanto la ricerca locale
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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abbia trascurato lo studio dei propri materiali in funzione di una provinciale considerazione
dell’opera come genere subalterno.
Nell’immediato futuro si presenta una nuova occasione di collaborazione intorno
allo studio della ricezione dell’opera italiana nelle Americhe, scopo centrale della rete
International Relationships between Italy and Iberoamerica (RIIA), uno study group
dell’International Musicological Society che coordina l’IMLA. La Tavola Rotonda organizzata
da quella nostra equipe durante il Convegno IMS di Zurigo del 2007 fu l’occasione di
conoscere i colleghi brasiliani con i quali adesso condivido questa sede, tra i quali la Prof.
Volpe, che devo ringraziare per la mia presenza qui. Il miglior risultato di questi sforzi sarebbe poter contare in una rappresentazione della musicologia brasiliana nella Tavola
Rotonda dello study group, Roma 2012.
A continuazione presento alcuni casi di ricerca lirica che ho intrapreso in questi
anni e che mostro nella loro incompiutezza come occasioni e inviti alla necessaria collaborazione con gli studiosi brasiliani.
2. Casi
Alcuni esempi possono mostrare brevemente la necessità di questi studi in rete.
Viggiano
Grazie al confronto di testimonianze raccolte a Buenos Aires con documenti
conservati nel porto della città argentina e nell’Archivio di Stato di Potenza ho potuto ricostruire il viaggio atlantico di musicisti di strada, tra i quali degli arpisti, provenienti anche
dalla zona di Viggiano, in Basilicata. E’ stato così possibile dimostrare la presenza a Buenos
Aires di quegli ambulanti che Roberto Leydi aveva indicato come importanti vie di penetrazione del melodramma e che Henri Malot aveva raccontato nel suo famosissimo romanzo Sans Famille.
Ho trovato, infatti, che, negli ultimi anni dell’Ottocento, 428 musicanti della Regione Basilicata avevano richiesto il passaporto per migrare. Di questi, una percentuale
altissima risiedeva a Viggiano e in paesi molto vicini come Marsico Vetere o Tramutola in
una distribuzione che è la seguente:
Mi domando quanti di loro avevano Buenos Aires come destinazione e se qualcuno è arrivato effettivamente nella città. Nei documenti argentini non è semplice identificare un’origine precisa: i documenti indicavano appena, e confusamente, la nazionalità
e il porto d’imbarco, inoltre i migranti, un po’ per pudore e un po’ per farsi capire meglio,
invece di menzionare il piccolo centro urbano di provenienza, indicavano all’ufficiale che
li riceveva la regione di origine oppure il nome di qualche centro importante della zona
d’origine. Ad ogni modo, tra 1892 e 1916, duecento nove persone fecero ingresso nel
porto di Buenos Aires dichiarandosi “musicanti”. Quasi tutti erano viaggiatori che proAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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venivano da porti italiani (143 da Genova e 14 da Napoli). Soltanto tre si erano imbarcati
a Barcellona.
Combinando i dati degli archivi europei con quelli sudamericani non sembra
azzardato dedurre che anche a Buenos Aires approdarono ambulanti originari dalla zona
di Viggiano. Certo è che se fosse possibile identificare quei viaggiatori come arpisti, i dubbi
sarebbero minori ma le fonti non aiutano. I registri d’ingresso argentini quando registrano
le professioni degli arrivati non scendono in particolari sul tipo di attività musicale di quei
migranti, e d’altra parte questa volta non ci soccorre l’ausilio della letteratura locale. Infatti,
nei testi argentini contemporanei di queste migrazioni come la saga emblematica nazionale,
il Martin Fierro, si trovano frequenti riferimenti a italiani che suonano l’organetto a
manovella ma non ci sono riferimenti ad arpisti. Scrive Hernández:
Allí un gringo con un órgano
Y una mona que bailaba
Haciéndonos rair estaba
Cuando le tocó el arreo,
¡Tan grande el gringo y tan feo!
Lo viera cómo lloraba.
I riferimenti con tono squalificante che identificano quel tipo di suonatore ambulante con gli italiani sono così numerosi nella letteratura di quegli anni, che si deduce
l’abituale impiego nella società della parola “organillero” per denigrare i migranti peninsulari. Molto spesso l’identificazione fu più precisa: quel personaggio del musicante fu
sovente caratterizzato come napoletano. Tenendo conto che “napoletano” non indicava
soltanto chi proveniva dalla città partenopea ma più genericamente dall’antico Regno di
Napoli, e dato che la Basilicata era regione apparteneva a quel reame, l’ipotesi delle migrazioni di ambulanti di Viggiano a Buenos Aires torna a rifiorire come possibile.
Un contatto personale mi fu di particolare aiuto. Ebbi modo di conoscere uno
degli ultimi costruttori di organetti a Buenos Aires, Osvaldo La Salvia, il quale sorprendentemente mi manifestò che la sua famiglia era originaria di… Tramutola! La conversazione
con La Salvia ha spiegato, sebbene di maniera iperbolica, il rebus del passaggio dall’arpa
all’organetto. Il nostro interlocutore ci racconta che il suo avo, appena arrivato dall’Italia
suonava in realtà l’arpa ma che il mitico Juan Moreira tagliò le corde dello strumento con
il suo facón e così il povero musicante dovette ripiegare sull’organetto. Questa colorita
storia, come in dettaglio spiego altrove6, è la mitizzazione di una tragedia sociale: la miseria
dilagante nel sud d’Italia sostituì il fenomeno della forzata migrazione di un gruppo
famigliare in cerca di fortuna con una realtà ancora più cruda: un vero e proprio commercio
minorile. Nella prima situazione, i bambini accompagnano i genitori. Erano gli adulti a
suonare strumenti come l’arpa e gli infanti giravano con il cappello richiedendo un soldo
ai transeunti, al massimo suonavano qualche tamburello. La seconda situazione invece
vede lo sfruttamento dei bimbi. Loro erano consegnati ad un “protettore” che li costringeva
a mendicare per le strade, e, ovviamente, non erano capaci di suonare strumenti tranne
quelli meccanici come l’organetto.
Tornando all’archivio lucano sono stato in grado d’identificare numerosi musicanti
di Tramutola di cognome La Salvia o derivati che chiedono alle autorità salvacondotto per
viaggiare. Molti di loro indicano come destinazione di viaggio il Sudamerica.
...........................................................................
6
Cetrangolo, A. E., Dell’arpa de Viggiano all’organito porteño. In: Etno-folk, Revista de etnomusicologia, nº 1415 giugno-novembre 2009, p. 596-621.
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Cognome
Salvia
La Salvia
La Salvia
La Salvia
La Salvia
La Salvia
La Salvia
Lasalvia
Lasalvia
Lasalvia
Lasalvia
Lasalvia
Lasalvia
Nome
Luigi
Domenico
Antonio
Antonio
Benedetto
Nicola María
Benedetto
Domenico
Michele
Giuseppe
Francesco
Benedetto
Vincenzo
Richiesta
1868
1862
1863
1864
1865
1868
1868
1868
1868
1868
1868
1870
1870
Destino dichiarato
Argentina, Buenos Aires
Algeria
Argentina, Buenos Aires
America
Spagna
Brasile, Rio de Janeiro
Egitto, Alessandria
Argentina, Buenos Aires
Argentina, Buenos Aires
Argentina, Buenos Aires
Argentina, Buenos Aires
Egitto
Argentina, Buenos Aires
Gli estremi del viaggio sembrano così stabiliti e confermano la trasferta a Buenos
Aires di queste famiglie. Si noti che, accanto ai La Salvia, altre famiglie di costruttori di
organetti risiedevano a Buenos Aires. Anch’essi erano originari della stessa zona e
procedevano proprio da Viggiano. Si trattava della famiglia De Cunto che aveva negozio
nel centro della città. Ma se sono chiari la partenza e l’arrivo della traversata, cosa succedeva
nei porti intermedi?
Questa inchiesta risulta incompleta senza l’esame degli archivi dei porti brasiliani.
Ci fu in Brasile un fenomeno analogo? Si trovano famiglie portatrici di quei cognomi “caldi”?
Ci furono fabbriche di organetti a Rio vincolate a italiani procedenti della Basilicata? Trovo,
innanzitutto, già una traccia: tra i personaggi identificati a Potenza scopro dei musicanti
migranti che dichiarano di avere precisamente il Brasile come meta definitiva: così Vincenzo
Nicola De Cunto, nato a Viggiano, che dichiara nel 1865 di voler raggiungere Río de Janeiro,
e Nicola María La Salvia che, tre anni dopo, manifesta di volersi spostare nella stessa città
carioca.7
Settecento
Un altro stimolo alla collaborazione con gli studiosi brasiliani riguarda i viaggi
che musica e musicisti hanno realizzato nel XVIII secolo. Uno di questi movimenti musicali
mi portò a inseguire le musiche di Giacomo Facco fino al Portogallo di Joao V8. Il musicista
che era oggetto dei miei interessi aveva composto melodrammi in occasione del doppio
matrimonio celebrato nel 1729 tra i figli del monarca lusitano con gli eredi di Filippo V di
Spagna. La considerazione che di Facco aveva la corte Bragança fu tale che il fastoso
resoconto dell’evento pubblicato a Lisbona9 non dimenticò di menzionare la partecipazione
di Facco sebbene trascuri il nome del maestro di musica di uno delle contraenti, la Principessa Maria Barbara di Bragança, nientemeno che Domenico Scarlatti. Diversi personaggi
che talvolta indirettamente avevano a che vedere con Giacomo Facco, hanno attirato
allora la mia curiosità. Il primo fu Antonio José Da Silva. Di Da Silva avevo notizie soprattutto
attraverso Lange il quale, affidandomi copie da lui conseguite a Vila Viçosa, mi spinse a
restaurare ed eseguire le musiche che furono composte per il suo teatro de bonecos. O
...........................................................................
7
ASP, código: 186515038.
Cetrangolo, A. E., Esordi del melodramma in Spagna, Portogallo e America. Giacomo Facco e le cerimonnie del
1729, Olschki, Firenze, 1992.
9
Da Natividade, J., Fasto de Hymeneo ou Historia Panegyrica dos desposorios dos Fidelissimos Reys de Portugal
nossos Senhores, D. Joseph I e D. Maria Anna Vitoria de Borbon, que dedica e consagra à mesma Fidelissima
Majestade, dà Rainha nossa Senhora. Fr. Joseph Da Natividade, Prégador Géral da Ordem dos Prégadores, na
província de Portugal, Oficina de Manoel Soares, Lisbona, 1752.
8
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Judeu, nella ricerca su Facco, si mostrava come un ideale antagonista del mio personaggio
centrale: i suoi spettacoli di teatro musicale sembravano avversare emblematicamente
gli spettacoli di corte come quelli che Facco presentava, tanto è vero che, dopo che l’italiano
mostrò con gran pompa il suo Júpiter y Anfitrión, Da Silva scrisse il suo Amphitrião. In un
senso molto diverso, un personaggio che centrò il mio più vivo interesse in quegl’anni fu il
poliedrico Conte di Ericeira. Ericeira, sebbene nobile, era sedotto da un universo più aperto
rispetto alla soffocante corte Bragança, e nel mio libretto funzionava come trait d’union
tra Da Silva ed il Marchese de los Balbases, protettore di Facco e ambasciatore straordinario
di Filippo V di Spagna a Lisbona. L’ideale cast di quel melodramma – ovviamente serio, se
si tiene conto del tremendo rogo con che conclude la partecipazione in scena del povero
Da Silva – si completava nel mio racconto con l’attuazione di musicisti che non conoscevo
prima: gli italiani residenti in Portogallo Avondano e Mazza.
Sebbene uno dei miei primi lavori in Italia si era già centrato sull’itinerario di
musicisti emigrati nelle Americhe10, successivamente a quell’interesse per Facco sono
tornato sull’argomento percorrendo un tratto di quel trasloco artistico, quello che, partendo
da Novi Ligure proseguiva verso Lisbona fino ad arrivare a Buenos Aires11. È chiaro che
urge giustificare un così curioso punto d’inizio di quel viaggio: per ché Novi Ligure? Va
presto detto, Novi era la patria di quei musicisti che avevo conosciuto a Lisbona e che
erano riusciti ad attirare la mia curiosità. Rogerio Budasz12 s’interrogò sull’arrivo di cantanti
d’opera in Portogallo e sugli strumentisti Mazza e Avondano s’interessarono diversi studiosi
lusitani, fondamentalmente Manuel Carlos de Brito. Di questi ultimi personaggi si
conoscevano, però, soltanto dati delle loro attività in Portogallo: non sono mai stati studiati
in Italia e della loro vicenda nella penisola non rimane traccia. Il mio lavoro dunque fu
quello di realizzare un esame degli archivi parrocchiali di Novi per stabilire dati anagrafici
certi e ricostruire legami famigliari, cosa fondamentale giacché, al meno per il caso dei
Mazza che passarono in Portogallo, era chiaro il reciproco vincolo di sangue.
Mazza
Contemporaneamente all’arrivo di cantanti d’opera in Portogallo che hanno
interessato anche Rogerio Budasz13 e che procedevano dall’Italia, arrivarono anche
strumentisti, fondamentalmente violinisti. Molti di loro procedono da un piccolo centro
vicino Genova, Novi. Si tratta di Pietro Avondano e dell’importante famiglia Mazza. Su di
loro ha scritto tempo fa Manuel Carlos de Brito e personalmente me ne sono occupato di
recente in un testo pubblicato a Madrid14 dopo aver fatto uno spoglio negli archivi di Novi
per ricostruire i legami famigliari. Ebbene un personaggio di questa famiglia, Bartolomeo
Mazza, violinista e compositore, si trasferì a Buenos Aires in una nave nella quale viaggiavano anche italiani che avrebbero contribuito notevolmente alla rivoluzione indipendentista del Rio de la Plata. Un dato notevole sottolinea ancora il bisogno di studi congiunti
che coinvolgano la musicologia del Brasile: quando Mazza arriva a Buenos Aires gli viene
commissionata la composizione di un’opera. Forse si tratta della prima opera composta
nella regione. L’opera aveva come titolo niente meno che Las Variedades de Proteo, uno
dei titoli più celebri del carioca Antonio Jose da Silva. Mazza aveva conosciuto il testo dai
...........................................................................
10
Cetrangolo, A. E., Napoli, Madrid, Messico e Buenos Aires: alcuni dati su musicisti pugliesi in America Latina
nel Settecento in: Musicisti nati in Puglia ed emigrazione musicale tra Seicento e Settecento. Atti del Convegno
Internazionale di Studi Lecce, 6-8 dicembre 1985, La Torre d’Orfeo, Roma, 1988, p. 337-358.
11
Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures migran hacia Oeste: nuevos datos sobre los Avondano y los
Mazza in Concordis Modulationis Ordo, Ismael Fernández de la Cuesta. In Honorem, Inter-American Music Review,
vol. XVIII, 1-2, 2008, p. 247-264.
12
Budasz, R., op. cit., p. 8.
13
Budasz, R., op. cit., p. 8.
14
Cetrangolo, A. E., Familias de músicos lígures… cit.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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suoi parenti residenti in Portogallo? Aveva invece soggiornato in Brasile prima del suo
arrivo a Buenos Aires?
Tutto questo accadde mesi dopo le festività in onore delle nozze tra l’infante
Don Pedro e la Principessa Donna Maria, che hanno motivato le costruzione carioche effimere che Budasz menziona. Avrà partecipato Mazza a quelle feste? La verità è che lui è
coinvolto subito dopo, a Buenos Aires, nelle analoghe celebrazione encomiastiche dovute
all’esaltazione al trono di Carlo III.15
Il cognome Mazza richiamava anche un personaggio di enorme importanza per
la storia della musica sudamericana, Bartolomeo Mazza, chi viaggiò a Buenos Aires e morì a Lima. Fu, molto probabilmente il primo compositore moderno a scrivere un’opera nel
Rio de la Plata. Mazza s’imbarcò a Cadice nel 1752 nel Nuestra Señora del Rosario e condivise la sua traversata atlantica con italiani che avrebbero posto il seme dell’insurrezione
liberale del Rio de la Plata: il commerciante ligure Domenico Francesco Belgrano ed il
medico veneziano Angelo Veneziano Castelli. I figli di Belgrano e Castelli sarebbero diventati
determinanti nelle lotte indipendentiste del Rio de la Plata contro i Borboni spagnoli.
Ebbene, i risultati di quel lavoro di ricerca a Novi hanno permesso di ricostruire
un albero genealogico dove furono individuati non solo i personaggi che compaiono nei
documenti portoghesi, si stabilì anche il loro rapporto parentale diretto con Bartolomeo
Mazza. Grazie ai documenti di parrocchia fu possibile stabile molte delle date di nascita di
questi musicisti, tra gli altri quella di Bartolomeo, e fu anche chiarito il rapporto di Romão
Mazza, attivo in Portogallo con la sua famiglia di Novi. Fu stabilita anche la corretta grafia
del cognome di questi artisti, cioè Mazza e non Massa.
Attraverso la vicenda di questi musicisti è possibile intuire il nuovo scenario sociopolitico che tanto avrebbe modificato i meccanismi di produzione artistica, cioè la committenza e l’impresa. Bartolomeo Mazza, infatti, è chiaro esempio del musicista dei nuovi
tempi, quello che si lancia alla terra sconosciuta senza protezioni tentando un’impresa
personale.
Nella nuova terra, terra di contrabbandieri spregiudicati, Mazza incontra altri
personaggi impavidi come il flautista impresario Domenico Saccomano di Bari. Entrambi
condivisero una rischiosa impresa che vide la fugace costruzione del primo spazio di opera
imprenditoriale a Buenos Aires. L’attività fu mal vista dalle autorità ecclesiastiche, il che
ricorda le censure dell’Ancien Regime, ma il negozio fu disturbato anche, segno invece dei
nuovi tempi, da una litigiosa cantante che portò Saccomano nei tribunali.
Diversi particolari di queste vicende richiamano con forza il bisogno dello spoglio
dei fondi brasiliani.
Infatti, gli studi che hanno trattato la materia16, non molti in realtà, insistono
sulla pratica di rappresentare a Buenos Aires opere con marionette, come quelle che Antonio José da Silva aveva utilizzato nella sua sala di Lisbona; si menziona anche sovente che
i cantanti di Saccomano provenivano dal Brasile, cosa che confermerebbe il cognome
della cantante che litiga con Saccomano: Mascarenhas.
Ma ancora di più attira potentemente l’attenzione il titolo dell’opera che presenta
Mazza a Buenos Aires in occasione delle celebrazioni locali in onore d Carlo III, niente
meno che Las Variedades de Proteo, con tutta possibilità quel testo di Da Silva, che Antonio
Teixeira aveva musicato nel teatro del Bairro Alto.
Le domande che s’impongono dunque sono: arrivarono i musicisti Mazza, parenti
di Bartolomeo in Brasile? Bartolomeo ebbe conoscenza del testo di Da Silva in Portogallo
...........................................................................
15
Budasz, R., op. cit., p. 28.
Così Trenti Rocamora, J. L., El teatro en la América colonial, Huarpes, Buenos Aires, 1950, e Gesualdo, Vicente,
Historia de la música en la Argentina, Beta, Buenos Aires, 1961.
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o in Brasile? Esistono documenti brasiliani che provino la presenza di Saccomano e Mazza
in Brasile?
Ottocento
Il periodo delle grandi migrazioni europee verso le Americhe è, come già s’annunciò, argomento centrale delle attuali attività dell’IMLA. Strategia fondamentale di questi
studi è l’elaborazione di una banca dati raccoglitrice d’informazioni varie relative all’attività
lirica di quegli anni. Quel contenitore ospita dati desunti tanto dallo spoglio di pubblicazioni
periodiche come di cronologie di teatri lirici italiani, spagnoli, uruguaiani ed argentini. I
materiali sono organizzati tramite due sentieri: quello dei nominativi degli operatori artistici
e quello dei titoli dei melodrammi. Grazie alla fusione all’interno di questo strumento dei
dati che provengono da luoghi diversi, è possibile stabilire relazioni fino adesso sconosciute,
che potrebbero essere utilmente arricchite con l’aggiunta d’informazioni brasiliane.
Il caso Bernardi
La Base Dati Imla portò recentemente tra gli interessi di primo piano una figura
dimenticata: Enrico Bernardi. Questo risultato è dovuto alla prossimità che nell’elenco informatico hanno trovato dati di provenienza diversa: quelli, scarsissimi della letteratura
musicologica argentina, quelli sostanziosi desunti dalla lettura che membri dell’Imla hanno
realizzato su periodici veneziani e quelli che ha raccolto Márcio Páscoa sul Teatro di Belém.
Di Bernardi si era interessato, nel 1988, Juan María Veniard17 chi menzionava,
studiando Arturo Berutti, Enrique (sic) Bernardi,18 compositore dell’opera Juan Moreira,
che avrebbe svolto qualche attività a Buenos Aires, nel malfamato Teatro Doria, e anche
nell’allora appena fondata città argentina di La Plata. Sulle vicende di Bernardi precedenti
quel soggiorno argentino, apparentemente breve, Veniard dà alcune notizie della sua
traiettoria in Brasile oltre che in Italia, sua Patria.
Sono stato attratto dalla personalità di questo italiano in quanto, sebbene rimane
esigua traccia della sua musica scritta, quel melodramma sul mitico personaggio della
pampa ben potrebbe significare l’esordio della serie delle opere composte in Argentina
intorno la figura emblematica del gaucho. Certo, l’operazione era carica di un’indubbia
valenza extramusicale. Attraverso l’opera, genere culturale che allora godeva del più alto
prestigio, l’elite locale anelava a costruire un repertorio nazionale lirico, ed in questa
strategia la figura mitizzata dell’uomo della campagna risultava indispensabile. In tale
contesto sorprende lo stridente disinteresse che su Bernardi hanno dimostrato gli storici
della musica locale, soprattutto se si ricorda che non pochi di loro hanno considerato il
proprio lavoro come un’occasione per “contribuir a la creación del ser nacional”. Si sprecava
così, come direbbe Hobsbawm, una magnifica opportunità per partecipare a “The Invention
of Tradition”. Significativamente, nemmeno la “patriottica” Enciclopedia de música argentina di Rodolfo Arizaga dedicò una voce alla figura di Bernardi. Trovo probabile che
abbia contribuito a tali silenzi una ferita narcisista all’onore nazionale, cioè l’indissimulabile
nazionalità dell’autore dell’operazione. Mentre sovente furono “argentinizzati”, anche nel
loro nome, musicisti peninsulari attivi in Argentina come Vittorio De Rubertis, Sante Discepolo, Giovanni Grazioso Panizza o Pietro Melani, l’operazione con quel Bernardi, di fugace
residenza nel paese, era impossibile. Risultava dunque intollerabile per quell’intellighenzia
...........................................................................
17
Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicología “Carlos
Vega”, Buenos Aires, 1988.
18
Il cognome Bernardi è molto diffuso in Italia, soprattutto a Milano e nel veneziano. Sarà necessario evitare di
conffodere questo musicista con un suo collega, attivo in quegli anni nel Veneto. Infatti, G. B. Bernardi è autore
di una romanza di fortuna, “Non ti scordar”, che fu pubblicata a Padova intorno il 1885. Questo è indicato da La
Gazzetta di Venezia, 2 de diciembre de 1886.
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argentina che era impegnata nella costruzione di emblemi nazionali, riconoscere che non
solo fu una troupe di genovesi – i Podestà – a portare al teatro la figura del gaucho, ma che
fu ancora un italiano il primo a cantare in un melodramma la vicenda del personaggio
emblematico della Patria.
Ho cercato informazioni di Bernardi fuori dell’Argentina. Dalla base dati Imla
risulta che Enrico Bernardi nacque a Milano nel 1838 e morì nella stessa città nel 1900. Il
musicista fu trombonista e anche compositore.
I cataloghi italiani elencano programmi della Scala che tra 1857 fino il 1862
mostrano il suo nome, a volte scritto “Enrico De Bernardi”. Fino il 1857, il nostro, compare
nelle liste assieme ad un altro trombonista dello stesso cognome di nome Luigi, forse suo
padre. Dai documenti risulta che Bernardi suona in spettacoli che si presentano anche in
un’altra celebre sala milanese: il Regio Teatro alla Canobbiana.19
La sua attività compositiva è molto estesa e varia sebbene tradisce una predilezione per la danza. Le sue prime musiche per la scena – un balletto del titolo Le illusioni
d’un pittore presentato nel Teatro della Canobbiana di Milano – sono del 1854. Tre anni
dopo, sempre alla Canobbiana in collaborazione con Luigi Madoglio compone un’”azione
coreografica in sei quadri di Agrippa Pinzuti” del titolo Juanita. Per la stessa sala firma
Una colpa: azione mimica in sei quadri di Federico Fusco. In quel periodo – Bernardi ne è
un esempio – è preponderante negli argomenti per balletti la tematica feèrica e un po’gotica, così per la Scala compose Zeliska nel 1860, un “balletto fantastico danzante in 3 atti”
essendo ancora Fusco il coreografo dell’occasione. Nell’importante cronologia del Teatro
alla Scala pubblicata in quegli anni20, sebbene quella fonte citi come produzioni scaligere
due balletti che sono di Bernardi Marco Visconti ed il già menzionato Zeliska, il testo
segnala come unico responsabile degli spettacoli al coreografo Federico Fusco. In quella
fonte si menziona addirittura il nome del pittore delle scene – Filippo Peroni – ma non
quello di Bernardi. Quell’omissione è dovuta forse al carattere esordiente del nostro come
compositore. Bernardi, per la Scala, era innanzitutto un membro dell’orchestra del Teatro
e nel teatro lirico si praticava allora, come anche oggi, una consuetudine scortese: quella
di non considerare artisti di primo piano i componenti dei corpi stabili come l’orchestra ed
il coro. Sono certo che nel ’60 Bernardi era ancora trombonista della Scala giacché trovo il
suo nome in un programma che elenca con dettaglio i nomi degli strumentisti
dell’orchestra.21 Quei due balletti di Bernardi, comunque, meritarono repliche altrove e i
programmi di sala corrispondenti confermano la sua paternità. Zeliska fu presentato sette
anni dopo al San Carlo di Napoli dove furono inserite anche un paio di danze di Luigi
Madoglio e Giuseppe Giaquinto, Marco Visconti si presentò al Regio di Torino, a Firenze e
Roma. Quest’ultimo balletto si basava nel celebre testo di Tommaso Grossi, Marco Visconti:
...........................................................................
19
Queste le presentazioni che, secondo l’Istituto Centrale per il Catalogo Unico delle Biblioteche Italiane, mostrano
programmi con partecipazione orchestrale milanese di Enrico Bernardi: 1854: Il trovatore, Marco Visconti (di
Domenico Bolognese), 1855: Giovanna De Guzman, I Lombardi alla prima crociata, Ines di Mendoza (di Francesco
Chiaromonte), 1856: Fanciulla delle Asturie (di Benedetto Secchi), 1857: Giovanna De Guzman, Jone (di Errico
Petrella), Nabucco; 1858: Il duca di Scilla (di Errico Petrella), L’ Uscocco (di Francesco Petroncini), Pelagio (di
Mercadante), Simon Boccanegra, Vasconcello (di Angelo Villanis), 1859: Fausta (di Donizetti), Il crociato in Egitto
(di Meyerbeer), Maria de’Ricci (di Ferdinando Asioli), Marta, 1860: Corrado Console di Milano (di Paolo Giorza),
Giuditta (di Achille Peri), Il carnevale di Venezia ovvero Le precauzioni (di Errico Petrella), 1861: I Capuleti ed i
Montecchi, Preziosa (di Ruggero Manna), Tutti in maschera (di Carlo Pedrotti), 1862 Gemma di Vergy.
20
Teatro alla Scala, cronologia di tutti gli spettacoli rappresentati in questo teatro dal giorno del solenne suo
aprimento sino ad oggi con Introduzione ed annotazioni compilate da Luigi Romani, Tip. di Luigi di Giacomo
Pirola, Milano, 1862.
21
Si tratta di una Gemma di Vergy che si presentò nella primavera del 1862, cioè due anni dopo la Zeliska di
Bernardi. Il nome del nostro musicista è compreso nel lungo elenco degli operatori musicali che lavorarono in
quella recita. Il libretto si trova nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/
segnatura] Libretti K.2 con il numero di catalogo Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano
- MI [fondo/segnatura] Libretti K.2. Il numero di catalogo era BI90132200923.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
51
storia del Trecento, cavata dalle cronache di quel tempo che ispirò anche un melodramma
famoso di Enrico Petrella. Nel 1868 Bernardi presentò un “ballo grande” nel Teatro Ciniselli
dal titolo Gretchen. La musica era stata scritta in collaborazione con Giuseppe Scaramelli.
Scaramelli era autore del primo ballabile e dell’atto secondo. Il balletto comprendeva uno
scottisch e anche una scena fantastica delle Willi. Impossibile non ricordare che questo
brano collegava all’ambiente scenico che il futuro collaboratore di Bernardi, lo scrittore
Fontana, avrebbe sfruttato per la prima opera di Puccini. Gretchen fu presentato a La Fenice nella Quaresima del 187222. Arrivò, invece, alla Scala nella Quaresima del 1885 e
questa volta il nome di Bernardi fu pienamente riconosciuto dal teatro come quello di un
compositore23. Un altro ballo romantico fantastico in sei atti del nome La Fata nix per le
coreografie di Luigi Danesi salì alle scene del Teatro Apollo di Roma nel 1871. La musica
era di Bernardi in collaborazione con altri compositori come Paolo Giorza, Gustavo Rosari
e Leopoldo Angeli. Nella Quaresima del 1872. La Fata nix arrivò alla Fenice, dunque in
contemporanea con la riposizione di Gretchen. Nello stesso 1872 Bernardi presentò il
“ballo storico” Cola di Rienzi con la coreografia di Giovanni Pogna. L’anno successivo Bernardi tornò al mondo delle fate ed esibì Lo specchio infernale: ballo fantastico in sei quadri
e sette scene del coreografo Luigi Bonesi Da rappresentarsi nel Teatro della Concordia in
Cremona, pel Carnevale.
La disseminazione del nome di Benardi arrivò a luoghi più intimi: molte delle
danze dei suoi balletti, come quelle del famoso Cola di Rienzi24 si ascoltavano nelle case
italiane tramite le abituali trascrizioni per pianoforte. Bernardi le pubblicò indistintamente
con Lucca, Ricordi e Sonzogno e non solo. Nello stesso anno lo stesso editore presentò anche una “Polka” e un “Valzer dei Cavalieri” del balletto Ate. Tanto quest’ultimo ballo come
Cola di Rienzi erano musiche che sulla scena furono danzate con coreografie di Giovanni
Pogna.
Oltre a queste musiche che il pubblico conosceva dal teatro, Bernardi scrisse
altri brani dedicati al salotto famigliare. Seguì spesso la moda dei balli che allora facevano
furore come uno “Schottisch” dedicato all’attrice Elvira Raspini25. Due anni dopo, Lucca
stampa il galop “Colpa” dedicato al Maestro della Banda Civica, Gustavo Rossari. Evidentemente lo stesso editore pensava al mercato francese quando nella copertina di un certo
brano si legge: “Rêve de bonheur, mazurka pour piano par Henri Bernardi”. Nel 1878
Sonzogno gli pubblica la polka “Bordeaux”. Nel 1878 e anche nel 1884, Lucca edita due
titoli di Bernardi: “Grand pot pourri caratteristico: partenza in tramvai – ritorno in Ferrovia”
e “A estrada de Ferro de Bragança, galop dedicato a Ao Illmo Sr. Manuel Jose e Silva Potector
de tudos os artistas”. Tanto quel pot pourri come quel galop riflettono la sensibilità tipica
che per i moderni trasporti di locomozione mostrava la società e che raccoglieva la musica
più leggera. I brani del milanese sono pubblicati contemporaneamente alla più celebre
musica di locomozione: “Funiculì, Funiculà”, che è del 1880. Ricordi pubblicò nel 1886, un
brano che sembrava, come il precedente galop, arrivare dall’estero. Infatti, titolo e autore
sono indicati così “Onca, valsa para piano por Henrique Bernardi”26. All’elenco possono
aggiungersi molte altre danze di Bernardi che portano nomi suggestivi come il galop
...........................................................................
22
La Casa di Carlo Goldoni, a Venezia, conserva una copia del libretto di Gretchen per l’edizione lagunare. Il
numero di catalogo è il seguente: BI98102900002.
Gretchen: ballo romantico-fantastico in 8 quadri, del Cav. Luigi Danesi; riprodotto da Cesare Coppini; con
musica dei maestri Enrico Bernardi ed Angelo Venanzi. Biblioteca comunale - Palazzo Sormani – Milano. codice
IT\ICCU\LO1\1201808.
24
Lucca pubblicò nel 1873 brani come il “Galop pirrico”, la “Marcia trionfale” del secondo atto e anche un
esotico “Ballabile dei Saraceni.
25
Ricordi, Milano, 1858.
26
Il pezzo è dedicato “Ao exmo. se.r Manoel A. V. de Andrade”. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe
Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.37.
23
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
52
“Sciabolate”, la polka “Passarin” o la mazurka “Sottovoce”. Sovente queste musiche furono
pubblicate in forma di raccolte come un Album musicale che pubblicò il giornale Il Gazzettino Rosa per omaggiare i suoi abbonati nel 186927.
Talvolta le pagine sono servite a Bernardi per commemorazioni funebri come
due pezzi del 1873 in memoria di Alessandro Manzoni e di Francesco Lucca.28 Una certa riduzione per pianoforte mostra che Bernardi compose anche un Requiem dedicato a Mario
Tiberini29. Inoltre il brano dedicato a Manzoni reca un’informazione supplementare: l’edizione menziona Bernardi come “direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi.” Altri sforzi di Bernardi celebrano cerimonie più leggere come certe musiche di
circostanza che furono dedicate all’Esposizione Nazionale di Milano del 188130. Esse
risultarono pretesto per inserire il piatto forte di Bernardi: una serie di danze. Questa la
lista: “Introduzione, Suono festivo che annunzia l’arrivo delle Regioni Italiane, Canto del
Meneghino, Piemonte-polka & Polka, Venezia e Napoli - valzer, Napoli-canzone napoletana,
Toscana e Romagna - polka”. Più interessante per il suo carattere transoceanico è un certo
notturno che pubblica Lucca, Saudade do Parà31.
Dall’inizio della sua carriera Bernardi mostrò grande sensibilità per gli eventi
politici a lui contemporanei ed il suo esordio compositivo coincide con l’epopea del 1861.
Un suo brano di banda precede di poco quell’anno: già nel 1859 Ricordi pubblica Della
gloria e giunto il dì: marcia sopra motivi popolari/composta e ridotta per banda militare
da E. Bernardi. Proprio nel 1861 Bernardi scrive, nel fervore degli eventi, la marcia
“Volturno” per Lucca e che è dedicata “ai militi della 2.a Legione della Guardia Nazionale
di Milano”. Quella musica fu eseguita dalla Banda Garibaldi. Un’ode del titolo “Il 9 gennajo
a Vittorio Emanuele” con versi di Vittore Trevisan che incominciano con “Sperse le schiere”
fu pubblicata dall’Editoria Musicale nella versione per canto e piano. Evidentemente, ai
fini di queste ricerche è del maggiore interesse ritrovare negli scaffali delle biblioteche italiane una musica per pianoforte che Bernardi pubblicò a Buenos Aires. Si tratta della Marcia
Porta Pia32 che fu distribuita nella colonia argentina di Buenos Aires come supplemento
straordinario del giornale Il vessillo dell’arte del 28 settembre del 1891. In quel momento
Bernardi era in Argentina.
Come non poteva essere diversamente, Bernardi si esercitò in diverse occasioni
come autore di teatro lirico. Il milanese presentò nel 1875 un’opera comica che intonava
versi di Fontana, il Marchionn di gamb avert: opera buffa in tre atti con un cast composito33,
che si esibì in prima al milanese Teatro del Castello il 14 luglio di quell’anno34. Il libretto era
del famoso poeta Ferdinando Fontana, uno “scapigliato” come Ghislanzoni e si basava su
di un testo del 1816 del più famoso poeta dialettale milanese, Carlo Porta. A Milano tutti
conoscevano quei versi che con spavaldo realismo iniziavano:
...........................................................................
27
Biblioteca del Civico Istituto musicale L. Folcioni, Crema – CR, codice IT\ICCU\DE\90131101188.
Ad Alessandro Manzoni: per le sue esequie celebratesi a Milano il giorno 29 maggio 1873: preludio funebre,
del maestro Enrico Bernardi direttore proprietario del corpo di musica di Porta Garibaldi / riduzione per pianoforte
solo,: F. Lucca, Milano [1873], Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A.
59.25 e Alla memoria di Francesco Lucca: preludio funebre / di E. Bernardi; riduzione per pianoforte solo: F.
Lucca, Milano [1873]. Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano, segnatura: 1. A. 59.24.
29
Requiem a Mario Tiberini: elegia, di E. Bernardi; riduzione per pianoforte dell’autore: F. Lucca, Milano, 1882.
30
L’ Esposizione Nazionale del 1881 in Milano: ricordo musicale per pianoforte, di Enrico Bernardi, Editoria
Musicale, Milano, 1881.
31
Una copia nella Biblioteca del Conservatorio di musica Giuseppe Verdi, Milano - MI [fondo/segnatura] 1.A.59.33.
32
Tip. del Vessillo dell’arte, Buenos Aires, 1891.
33
Alessandro Bottero (Marchione), L. Binda (Santina Sgalisa), Eduardo Caracciolo (Scavion), Giuseppe Capello
(Sgonfion), A. Guenoi (Marchesa Fariani); Gaetano Galli (Commissario).
34
Manferrari, U., Dizionario universale delle opere melodrammatiche, Sansoni Antiquariato, (Tip. già G. Civelli),
Firenze, 1954.
28
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
53
Moros dannaa, tradii de la morosa,
pien de loeuj, de fastidi e pien de corna35
Quel contatto di Bernardi con Fontana è rilevante in attenzione alle relazioni tra
Milano e ambienti lontani. Il poeta, un milanese come Bernardi, fu un curioso personaggio
che a causa delle sue idee repubblicane dovette migrare in Svizzera dove morì nel 1919. I
versi di Fontana erano molto conosciuti soprattutto quando accompagnavano musiche
più leggere. Le operette viennesi si cantavano in Italia nella sua versione tradotta e Fontana
firmò molte canzoni con il famosissimo Paolo Tosti come: “E morto Pulcinella!”, “Allora ed
oggi!!” e “Senza di te”. La sua collaborazione con Bernardi avrà certamente contribuito
alla notorietà del compositore. Lo scrittore collaborava con altri colleghi come Luigi Illica
con chi scrisse qualche commedia comeINarbonnerie-Latour, ed era in contatto con
Amilcare Ponchielli. Ponchielli, per conto suo, fu il tramite tra Fontana ed il giovane Puccini.
Ma Fontana, poeta delle prime fatiche liriche del compositore toscano – Le villi ed Edgar
– e dell’Asrael di Alberto Franchetti fu anche librettista della Maria Petrowna di João
Gomes de Araújo.
Bernardi fece incursione anche nella composizione dei melodrammi seri. Il primo
di questi lavori, che preparava il ben diverso esordio del genere lirico gauchesco in Argentina, fu Faustina dramma lirico in un prologo e tre atti che l’autore compose nel 1868
per presentarlo nel Teatro Sociale di Lodi. Faustina intonava un libretto di Giovanni Inverni
e nel giugno del 1869 si cantò nel Teatro Ciniselli con il titolo I Romani nelle Gallie36. Dieci
anni dopo, il compositore, nelle stesse scene di Lodi mostrò un titolo molto più pretenzioso
che merita un’attenzione speciale: Patria!... dramma lirico in 4 atti/versi di Ferdinando
Pagavini che fu rappresentato per la prima volta al Teatro Sociale di Lodi la sera del 5
febbrajo 1879. Anche se il cast era esiguo comprendeva due parti per soprano, una
drammatica, il ruolo di Dolores e una leggera, la parte di Raffaela.37 L’opera si basava su di
una famosa pièce del “maestro del “drammone” ottocentesco, Victorien Sardou”. Il testo
aveva interessato lo stesso Verdi e la possibilità di una collaborazione con il compositore
lusingava molto lo scrittore francese, ma Verdi, dopo un’attenta valutazione della cosa,
come racconta Budden, scartò l’idea38. Il compositore, sebbene considerò la creazione di
Sardou, Patrie! “bel dramma, vasto, potente e soprattutto scenico” e foriero di nuove
“situazioni” trovò un ostacolo il ruolo che avrebbe dovuto assumere la prima donna:
“Peccato che la parte della donna sia di necessità odiosa.” In una lettera a Giulio Ricordi
Verdi è molto più lapidario, di quel testo “non vi è da far musica. Vi sono due, tre o quattro
pezzi belli e fatti, ma l’opera non v’è…” Ricorda Budden che lo stesso Verdi: “Si offri di
ottenere da Sardou l’autorizzazione perché fosse il giovane Faccio, in vece sua, a musicarla,
ma non era questo che il drammaturgo voleva, e così per il momento la faccenda non
procedette oltre. Alla fine la Patrie! dello scrittore francese fu trasformata in opera da
Lauro Rossi con il titolo di La contessa di Mons. (1874).39 Il libretto allora fu di Marco
...........................................................................
35
Amanti dannati, traditi dalla morosa / pieni di tedio, fastidi e pieni di corna. Beretta, C., Letteratura dialettale
milanese. Itinerario antologico-critico dalle origini ai nostri giorni, Hoepli, Milano, 2003, p. 84.
36
Il cast era il seguente: Giuseppe Vagner (Trimalcione, nobile patrizio e Diavolo, patrizio romano), Eusebio
Torriani (Guilerno, schiavo), Giuseppina Levi (Enoria, schiavo), Raffaele Angelini (Clodio, Mercante di Schiavi),
Enrico Geminiani (Faustina, patrizia romana), Francesco Zucchi (Montelibano, gladiatore), Alessandro Trabattoni
(un eunoco servo di Siomar).
37
Il cast era il seguente: il baritono Vincenzo Greco (Conte di Rysoor), il soprano Ginevra Colombo (Dolores), il
tenore Carlo Pizzorni (Karloo), il basso Lorenzo Meneghello (Duca d’Alba), il soprano Giulia Welmi (Raffaella), il
basso Marco Pavesi (Rincon) e il tenore Luigi Minotti (Noircames).
38
Budden, J., Le opere di Verdi, vol III, p. 174, EDT, Torino, 1988 [The Operas of Verdi, Cassel, Londra, 1981], p.
173.
39
Budden, J., op. cit., p. 174.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
54
D’Arienzo. Una volta arrivato, in questo modo travagliato, allo scenario lirico, il testo di
Sardou diventò altre volte melodramma. Il lavoro di Bernardi su quel testo rifiutato da
Verdi succedette così di cinque anni il lavoro del compatriota Rossi ma ancora nel 1886
Patrie! divenne, grazie a Émile Paladilhe un dramma lirico in cinque atti cantato in francese.
Il New York Times, del 26 dicembre del 1886, pochi giorni prima della presentazione dell’
opera di Paladilhe, mostra di ignorare i melodrammi di Rossi e Bernardi e non prevede un
grande futuro per l’operazione di Paladilhe: “The play is very scenic and highly spectacular but I do not think it will be a success, because it wants as a whole, the soul of music.40”
Malgrado questa infausta profezia l’opera del francese riscosse un buon successo e dopo
la prima che ebbe luogo all’Opèra il 30 dicembre del 1886 fu rappresentata sovente prima
della Grande Guerra.
Nell’ambito del teatro musicale più lieve, il poliedrico Bernardi compose El granduca de Gerolstein: operetta buffa con prosa in dialetto: rappresentata al Teatro Milanese
per la prima volta il 3 gennaio 1871/poesia di Cletto Arrighi. Lo spettacolo, come era abituale nel genere, riuniva ruoli cantati e recitati41. Va detto che il sopranome Cletto Arrighi
nascondeva l’identità di Carlo Righetti. Lo stesso anno presenta A Zig-zag. Rivista fantasmagorica del triennio 1871-3 e nel 1877 la rivista d’indubbio tono leggero, Minimpipi.
Di tutt’altro carattere altre preoccupazioni del milanese: Bernardi, mentre suonava alla Scala dedicò fatiche alla didattica del flicorno basso42 e pubblicò anche uno schema
didattico organologico43.
Grazie alla proficua lettura di pubblicazioni periodiche veneziane ho imparato
che Bernardi fu ben noto a Venezia essendo celebrato come direttore della banda cittadina,
quella che si esibiva regolarmente a Piazza San Marco. Da quei dati si conferma che Bernardi
era soprattutto famoso in funzione della sua musica ballabile: la banda, anche se diretta
da altri musicisti, eseguiva spesso galops e polke estratte dai suoi balletti Cola di Rienzi,
Fata Nix e Ate. Ma sempre dalla lettura dello stesso giornale, si evince che i veneziani potevano seguire anche la fortuna dei suoi melodrammi. Infatti, La Gazzetta di Venezia
pubblica notizie provenienti da Trieste di questo tenore: “ L’opera Patria!, del maestro
Bernardi, nuova per Trieste, ha ottenuto l’altra sera un ottimo successo”.44
Bernardi fu anche direttore di orchestra, soprattutto di opera, e qualche dato
proveniente dalle fonti italiane può dare idea dell’ambiente musicale che frequentava. Il
musicista diresse sovente nel nord Italia soprattutto a Milano – alla Scala – e Torino. Il suo
repertorio come direttore comprese opere famose del repertorio ma anche titoli marginali
e sembra e la sua attività in tal ruolo sia stata particolarmente intensa dopo il 1872. A Torino presentò L’Ombra di Flotow e a Milano diresse Reginella di Gaetano Braga, Luce di
Stefano Gobatti, Arrigo II di Antonino Palmintieri, La Valle d’Andorra di Halèvy ma anche
Semiramide e La Gioconda. Una produzione scaligera di Aida, a ridosso della prima italiana
dell’opera, lo trova nel ruolo di “regista supervisore”, niente meno che accanto a Francesco
Faccio. Alla Fenice invece, come responsabile principale della produzione, si presentò nelle
recite straordinarie del 1877 con una compagnia di canto di primissima linea e fu così che
il milanese diresse l’indiscussa diva di quegli anni, Adelina Patti. Il programma di quella
stagione comprendeva, tra dicembre e marzo, diversi titoli ma sicuramente la Patti fu
diretta da Bernardi in La Traviata, Faust ed Il barbiere di Siviglia45. L’attività di direttore lo
trova anche in luoghi di minore importanza e così Bernardi fu spesso attivo sul podio del
...........................................................................
40
Sardou’s “Patrie” as an opera in: The New York Times, 26 dicembre del 1886.
Biblioteche della Fondazione Giorgio Cini, Venezia - VE [fondo/segnatura] Rolandi - BER-BERN:
IT\ICCU\DE\98103003824.
42
F. Lucca, Milano, 1862.
43
Gio. Canti, Milano, [s.d].
44
23 de mayo de 1881.
45
A cura di M. Girardi e F. Rossi, Albrizzi, Venezia, 1989.
41
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
55
Teatro Concordi della città di Padova, da dove scrivo. Qui, tra il Natale del 1881 e il carnevale
successivo presentò Les Huguenots con buon successo e celebre cast. Scrive il giornale
veneziano: “A Padova ebbero prospere sorti gli Ugonotti, e si distinsero specialmente il
soprano Bulicioff, e il tenore Novelli e il maestro concertatore Bernardi.46 Leggendo con
un po’ di attenzione si può capire che sebbene il critico scrivente era, all’occorrenza, capace
di severità – bolla il coro di mediocre – loda il “chiarissimo” lavoro di Bernardi:
L’orchestra è diretta dal chiarissimo maestro concertatore Bernardi Enrico […].
Le masse corali vennero applaudite nel famoso ra-ta-plan. Nel capo d’opera dalla
congiura sono rimaste nella mediocrità. Il complesso lascia di che dire […].47
Ancora, in La Gazzetta di Venezia si legge dell’attività di Bernardi fuori dell’Italia.
Il dato del periodico permette così d’identificare il musico attivo a Venezia e Padova con
lo stesso oscuro personaggio che dirigeva a La Plata, e che collaborava anche con cantanti
importanti e addirittura con il più celebre compositore brasiliano, Carlos Gomes. Il periodico
scrive delle attività musicali di Bernardi a Pernambuco, questo pochi mesi dopo di quel
Meyerbeer padovano. Lo spettacolo in tournée è di altissimo prestigio si annuncia e non
soltanto perché della compagnia partecipa Libia Drog, che è il centro della notizia, ma
anche perché dirigono due maestri che garantiscono il successo: Bernardi e Gomes, citati
ambedue in rapporto di paritaria importanza (!).
Notizie teatrali – Siamo lieti di registrare che la nostra concittadina Lidia Drog,
artista di canto distintissima per voce bella, fresca e poderosa e per ottimo
metodo di canto, meriti che acquistano particolare risalto della rara bellezza del
viso e della figura, ha sollevato, al teatro S. Isabella di Pernambuco, un vero entusiasmo, in seguito al successo costante che la signorina Drog seppe ottenere
in parecchie opere. – Lo spettacolo importantissimo, il che risulta non solo dai
nomi degli artisti, tutti pregevoli, ma anche dai maestri che concertano e dirigono
gli spettacoli, essendovi colà i maestri Bernardi e Gomez, imprime al successo
della signorina Drog un vero valore artistico, e ci è caro rivelarlo.48
Il periodico non esagerava rispetto alla Drog. La cantante era un soprano molto
noto, di attività internazionale nei più alti scenari: aveva cantato con divi come Francesco
Tamagno nel primo teatro di New York.49 L’artista era, infatti, molto conosciuta fuori d’Italia
e la tournée brasiliana era moneta corrente per un’artista che, come ci risulta dal Data
Base IMLA, si era presentata in Europa da Las Palmas a Bucarest e – assieme allo spagnolo
Andrés Antón – in teatri d’America come il Guzmán di Caracas e le principali scene
messicane ed è più che probabile che il maestro abbia accompagnato alla cantante in
altre trasferte.50 Trovare dunque il nome di Bernardi associato alla Drog prova di rimbalzo
l’importanza del nostro direttore d’orchestra.
L’elenco che fino adesso ho potuto ricostruire, sicuramente parziale, mostra una
intensissima attività di Bernardi nelle diverse attività che ha svolto nel mondo musicale.
La sua carriera lo mostra, soprattutto, inserito proficuamente nel competitivo ambiente
dello spettacolo italiano di quegli anni, un ambiente affollato di personalità di primissimo
...........................................................................
46
28 de diciembre 1881.
3 de enero de 1882.
3 de septiembre de 1882.
49
Precisamente si dice che la Drog rovinò il debutto del gran tenor al Metropolitan di New York al dimenticare il
testo di “Selva opaca” nel Guglielmo Tell.
50
Data base Imla Mig. Cd Rom, coordinamento, D. Pala, direzione scientifica, A. E. Cetrangolo.
47
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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rango. Questo percorso italiano di Bernardi trova il musicista in collaborazione con le
figure più note dell’ambiente artistico a lui contemporaneo. Bernardi ha diviso la scena
con persone come Franco Faccio e Adelina Patti e abitava in una città che era un vero palcoscenico. Milano allora ospitava una ragnatela di personaggi e in quella rete Enrico Bernardi è sempre coinvolto. Fu amico di Carlos Gomes che risiedeva nella città e, del collega
brasiliano, sovente diresse le opere. Nel 1884 si trovava a Milano oltre che Gomes anche
un altro compositore, suo compatriota: João Gomes de Araújo e Milano era tanto la città
di Bernardi come di Ferdinando Fontana, librettista di Bernardi, di Gomes de Araujo e perfino di Gomes e Puccini. L’ambiente meneghino risulta fertile per i contatti transatlantici
come mostrano le collaborazioni dei brasiliani Gomes e Gomes de Araújo con il librettista
di Aida, Antonio Ghislanzoni, ancora un lombardo.
La presenza di quella compagnia italiana a Pernambuco, documentata dai periodici italiani, stimola lo studio delle fonti brasiliane, attività già in corso grazie all’utile raccolta
di dati che sull’Ópera de Belém do Pará ha svolto Márcio Páscoa.51 Da questa fonte
apprendo che a Bernardi fu affidata nel 1880, la prima stagione lirica dello stupendo Teatro
da Paz nella quale cantava la Drog. Bernardi, anni dopo, avrebbe avuto analogo onore
inaugurando quel Teatro Amazonas, che il cinema ha reso ancora più famoso. Un altro
dato mostra la rilevanza di Bernardi e della considerazione che di lui aveva Carlos Gomes:
l’ìtaliano diresse la prima assoluta nella regione dell’opera brasiliana più famosa, Il Guarany.
In quell’occasione, l’entusiasmo del pubblico di fronte all’opera del suo compatriota fu
enorme, e secondo quanto si legge nei giornali locali, di fronte all’impossibilità di acclamare
Gomes di persona per osannarlo, gli spettatori in delirio omaggiavano – anche nei finali
d’atto – il direttore d’orchestra Bernardi, simulando fosse Gomes. Bernardi era
rappresentante del Genio assente: “Após o primeiro ato, como o público não podía vitoriar
pessoalmente a Carlos Gomes, chaumou à cena o maestro Bernardi, regente da orquestra,
simulou que tinha em sua presença o imortal paulista e vitoriou-o estrondosamente.” 52
Questo crescendo di foga culminò nel parossismo al finale dell’opera: “até que ao fim da
peça a assistência já estava a delirar atirando ao palco as mais diversas oferendas, flores,
poesias, hinos, presentes, etc.” 53
Bernardi fu allora considerato, al di là dei propri valori musicali, come il sacerdote
di una liturgia musicale patria. In quella stagione del 1880 il milanese presentò un
programma completamente italiano. Ernani, Un Ballo in Maschera, Il Trovatore, Rigoletto,
Norma, Lucrezia Borgia, Ruy Blas.
Due anni dopo, Bernardi tornò a dirigere nello stesso teatro ma questa volta
condividendo la responsabilità della stagione del teatro con lo stesso Gomes. Il brasiliano
fu ricevuto come era facile supporre con una foga “feérica, apoteótica”54. Nel 1882, e
questo conferma quell’annuncio del giornale veneziano, viaggia la Drog e la sua presenza
nel cast fa supporre che la compagnia di canto sia stata più che degna. L’orchestra era
completamente formata da italiani e nel suo organico c’erano due strumentisti che forse
erano parenti di Enrico Bernardi.55 Nel 1882 si presenta una stagione che segue lo schema
del 1880, cioè tutto italiano con una prima locale di Gomes: Salvator Rosa. Bernardi dirige
anche in quell’occasione, con Gomes presente, musiche del brasiliano.
Anche l’importante stagione del 1883, praticamente organizzata da Gomes, vede
la partecipazione di Bernardi come direttore delle opere. La critica locale anche se spesso
si mostra poco soddisfatta con la compagnia di canto, loda la direzione intelligente del
...........................................................................
51
Páscoa, M., Cronología lírica de Belém, Asociaçãon Amigos do Teatro da Paz, Belém, 2006.
O Liberal do Pará, 10 de agosto de 1880, cit. da Páscoa, M., op. cit., p. 18.
O Liberal do Pará, op. cit.
54
Páscoa, M., op. cit., p. 35.
55
Infatti Márcio Páscoa include i nominativi nei membri di quell’orchestra e li si leggono che un cornista ed un
trombonista si chiamano rispettivamente Aristide e Simone Bernardi. Páscoa, M., op. cit., p. 38.
52
53
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
57
“distinto maestro Bernardi”.56 Páscoa ipotizza che tra il 17 ed il 26 giugno si sia presentato,
in mezzo ad altre prime, Patria! di Bernardi nel teatro.57 L’esperienza di Gomes come organizzatore teatrale fu fallimentare ed il brasiliano, invece di continuare con l’anelata tournée brasiliana tornò in Italia. Tutto diverso l’avvenire di Bernardi. Il riconoscimento, l’accoglienza locali e le possibilità di lavoro stavano convincendo il milanese di congedarsi della
banda di Piazza San Marco e pensare di più a Belém dove dal 1883 fisserà dimora partecipando attivamente alla vita musicale del luogo. La scena lirica del Teatro da Paz accoglierà
ancora Bernardi come direttore d’orchestra della stagione 1896 con il ritorno della Drog.
Quel dilatato periodo di residenza sudamericana e quel lasso di tempo tra 1883 e 1896 è
quanto attira la mia attenzione. Fu allora che il musico visse a Buenos Aires? Evidentemente
il milanese non avrà avuto vita molto sedentaria se è vero che “Voltou a digressões durante
os anos de 1890, retornando a Belém para suceder Gomes na direção do conservatório
local.”58
In funzione delle nuove informazioni brasiliane sarà d’uopo tornare all’esame di
dati su Buenos Aires: altre cronologie del Data Base, altre pubblicazioni periodiche.
Rispetto alle cronologie teatrali ho compilato un elenco di opere rappresentate
a Buenos Aries basandomi su pubblicazioni giornalistiche in quanto nessuno studioso locale aveva realizzato lavori analoghi per questo periodo59 e i fondi della città hanno conservato materiale teatrale molto scarso. Riguardo l’esame delle pubblicazioni periodiche invece, risultano preziosi i lavori che giovani studiosi argentini stanno svolgendo su fondi
locali.60
Risulta da queste indagini che Bernardi svolse un ruolo di prim’ordine nella capitale argentina durante 1890. Infatti il milanese si presentò come direttore nella massima
sala lirica di Buenos Aires, il Teatro Ópera, e fu, in conseguenza anche in Argentina, inserito
nell’ambiente più prestigioso giacché faceva parte della compagnia dell’onnipossente Angelo Ferrari. Bernardi collaborava, assieme ad Arnaldo Conti, con un grande maestro di
quegli anni, niente meno che Marino Mancinelli. È abbastanza possibile che a Buenos Aires Bernardi fosse considerato di fama superiore a Conti giacchè nelle promozioni il suo
nome compare prima di quello del collega e, tra l’altro, non come “sustituto” ma sotto la
dicitura “otro director”. Quella stagione dell’Ópera ospitava artisti di calibro internazionale
che Bernardi ha potuto frequentare, talvolta dirigere, come Adalgisa Gabbi, Elvira
Colonnese, Zina Dalty ed Amelia Stahl e soprattutto comprendeva un gruppo maschile
d’importanza storica. Infatti, il cast poteva vantare tre dei più famosi tenori del momento
– Tamagno, De Lucia e De Marchi –, per non parlare dei due baritoni: Maurel e Kaschmann.
Le vicende successive di Bernardi, almeno quelle che conosco fino adesso, mostrano un’attività meno brillante, almeno a giudicare dalle sedi: dirige a La Plata nel 1891 e,
tra marzo e maggio del 1894, a Buenos Aires nel Teatro Doria. Il Doria, che le cattive lingue
chiamavano “la ópera barata”, era una sala frequentata dai lavoratori immigranti. La
stagione di questo teatro, tipica produzione di repertorio, quel 1894 presentava una
compagnia capeggiata da Carlos de Mattia e che comprendeva: La Forza del Destino, Il
Trovatore, Aida, Cavalleria Rusticana, La Favorita, Il Guarany, Un Ballo in Maschera, Fausto,
Norma, La Gioconda, Rigoletto, Ernani e Lucrezia Borgia. È evidente che quella serie di
...........................................................................
56
Liberal do Pará, 1 maggio 1883, citato da Páscoa, M., op. cit., p. 42.
Páscoa, M., op. cit., p. 46.
Páscoa, M., op. cit., p. 244.
59
Tranne che per una sala marginale, il Teatro Doria: Dillon, César A. y Juan Andrés Sala, El teatro musical en
Buenos Aires. Teatro Doria – Teatro Marconi, Gaglianone, Buenos Aires, 1997.
60
Si tratta di lavori che su fonti poco studiate come il periodico El Mundo del Arte stanno sviluppando Ignacio
Weber del Proyecto Ubacyt La música en la prensa periodica argentina e Marina Pruski, Elias Joel Kelly, Pablo
Palomino, Walter Palotta, Esteban Pizá y Jorge Gustavo Torres, partecipanti del seminario Migraciones artísticas
en el Río de la Plata organizzato dall’IMLA, il Cemla e L’Unsam, che ho tenuto a Buenos Aires nel 2010.
57
58
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
58
titoli ben avrebbero potuto conformare una stagione tipica del Teatro da Paz. Ancora di
più, due dei cantanti che Bernardi diresse al Doria, il baritono Fortunato Cecchini ed il
tenore Egisto Guardenti, furono attivi anche al Teatro da Paz e specialmente interessante
è il caso di Guardenti: il tenore ha cantato, diretto sempre dal maestro milanese, il ruolo
di Pery nella più celebre opera brasiliana, tanto nel Doria come a Belem.
Bernardi, come in Italia, risulta essere stato conosciuto in Argentina anche come
compositore poliedrico giacché scrive con successo tanto musica da ballo per il Jardín Arcadia, un luogo alla moda,61 come una Messa per voci bianche e quartetto d’archi, filarmonica e flauto che si presentò nella cattedrale di La Plata.62 In poco tempo, dunque, il
maestro era riuscito ad inserirsi nell’ambiente locale e il cronista del brano sacro platense
annota che “musica ed esecuzione nulla lasciarono a desiderare” e che si aspetta di “applaudire presto il bravo Maestro in qualche nuova opera” già che “egli va giustamente annoverato fra i migliori compositori”.63
Forse Bernardi, in tutto si è fermato quattro o cinque anni in Argentina componendo e dirigendo durante parecchie stagioni. Ma sono altre le attività di Bernardi che lo
rendono così interessante per la ricerca sudamericana: il milanese non soltanto fu il responsabile della prima argentina di un titolo celebre del repertorio lirico ma compose in quella
terra anche un melodramma molto curioso. I due eventi artistici sono fortemente intrecciati
tra di loro come cercherò di spiegare di seguito.
Bernardi fondatore dell’ópera nacional?
Sia detto subito che la presenza di Bernardi in Argentina fu contemporanea di
un fenomeno che colpiva la società argentina: il successo straordinario della versione teatrale del Juan Moreira, la storia di un gaucho mitico che era stato portato alle scene da
artisti di circo immigrati. Il milanese approfittò quell’occasione che travalicava il fenomeno
artistico. Al suo arrivo a Buenos Aires fu testimone non della creazione di un personaggio
teatrale ma di un tipo, e questo tipo nacque intorno al paradigma che personificava
l’identità nazionale. José Podestà, figlio dei genovesi Pietro Podestà e María Teresa Torterolo
elaborò un carattere per il suo teatro circense. Il suo Juan Moreira era personalissimo ed
originale, anche se costruito sul protagonista di un romanzo di Eduardo Gutiérrez che a
sua volta si era ispirato su un famoso fuorilegge vissuto poco tempo prima. Il grande studioso di teatro Mariano Bosch, che visse durante il successo di Podestà, sottolinea infatti
che quella dell’attore fu “creación de la nada”. Chiunque dopo di lui abbia voluto evocare
quell’emblema, ha dovuto fare i conti con il modello coniato da Podestà, cioè l’eroe di
“luengas barbas negras i melena aceitada, chambergo con barbijo i echado para atrás
como descubriendo el letrero de guapo que tenia en los ojos i la frente, tipo noble sin
miedo, atropellador, cantor i poeta, gran jinete”. Il risultato fu che il Moreira di Podestà
risultò più vero che il personaggio del romanzo e più vero che il Moreira in carne ed ossa.
Scrive Bosch che Podestà “tan real lo creó, que despuès de su interpretación, cualquier
otro Moreira seria apócrifo; hasta el propio Moreira que vivió, si resucitara.” Attraverso la
segnalazione di Bosch, si conferma ancora una volta, che tra mito e realtà non corre buon
sangue. Sembra dunque che le liturgie possono organizzarsi soltanto intorno ad una falsificazione e, come famosamente pronunciò il pioniere di questi studi, le nazioni possono
soltanto crearsi sugli errori. La verità svelata dal “progresso degli studi storici rappresenta
spesso un pericolo per le nazionalità.”64
...........................................................................
61
Veniard, J. M., La Música Nacional Argentina, Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega, Buenos Aires,
1986, p. 196.
62
Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1981, p. 10.
63
Cronica locale in El Mundo del Arte, 18 diciembre di 1891, p. 10.
64
Renan, E., Che cos’è una nazione? Conferenza tenuta alla Sorbona l’11 marzo 1882. Donzelli, Roma, 1993, p. 6.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
59
Il gaucho di Podestà, ebbe, sempre secondo Bosch, una nobiltà e una valenza di
rivendicazione sociale, di protesta contra l’ingiustizia arbitraria, che riunì l’adesione
entusiasta del pubblico. Al di là dell’ambito del circo, del mondo dell’arte, Moreira fu così
“drama de carácter social.”65
Altri Moreira
Dalla lettura dei periodici di quegli anni risulta che una miriade di spettacoli di
vario tipo, seguendo il modello di Podestà, drammatizzarono le vicende del gaucho Juan
Moreira cavalcando un successo nato nella modestia del circo.
S’impara da quelle fonti che tra le diverse trascrizioni sceniche del Juan Moreira
ve ne fu una molto particolare. Sulle scene del teatro Doria salì una versione teatrale in
italiano. Il cronista di El Mundo del Arte, periodico bilingue vicino alla comunità peninsulare,
segnalava che “I costumi erano perfettamente imitati; gli artisti si sforzarono, e riuscirono
ad essere dei buoni gauchos…italiani”66. La stessa rivista fornisce il nome del responsabile
delle versioni italiane del Juan Moreira e de altre pièces d’ambientazione rurale: “Molta
gente, mi dicono, va alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo italianizzato, dal sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzó il “Juan
Moreira”, e che ridusse per le scene “L’Orfana del Ghetto”. Davvero che l’operosità del Sig.
Gismano è straordinaria…”. 67 Nello stesso anno la compagine si presenta a Mendoza.
José Francisco Navarrete informa che in questo modo il Juan Moreira fu conosciuto in italiano in città. Soltanto trent’anni dopo, quando l’interesse per queste rappresentazioni
era già spento e Mendoza s’entusiasmava per certe presenze in città tanto reali come
virtuali – Arthur Rubinstein e Charlie Chaplin – poté conoscere il Moreira portato in città
dal proprio José Podestà. Si trattava di una delle ultime fatiche della sua carriera. Il racconto
di Navarrete è prezioso perché ci informa di quella pioniera Compañía Dramática Italiana
G. Modena, diretta da Rómulo F. Lotti. Il gruppo si congedò del pubblico del Teatro
Municipal, prima di proseguire per il Cile con il Juan Moreira che Gismondi aveva scritto
espressamente per la compagnia. Si noti come l’autore della nota accusa Gismondi di
essersi “appropriato” del testo:
En la función de despedida estrenaron el “grandioso drama criollo en seis cuadros,
escrito ex profeso para la compañía por el Sr. D. Gismano ¡Juan Moreira”! Así, este autor
italiano se apoderaba de un texto, al que con seguridad había accedido en Buenos Aires,
y lo daba a conocer en Mendoza pero en idioma italiano.68
Questa operazione di Gismondi sarà sicuramente un passo che porterà ad
un’azione ancora più sorprendente: la trasposizione lirica della storia del famoso gaucho.
Della cosa si dà notizia nella stessa nota perché si dice che “A proposito di Juan Moreira è
ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera, che un maestro molto conosciuto nella
capitale e nella Plata, sta musicando”69. La nota del periodico nasconde nel mistero il
nome tanto del librettista come del compositore. L’arcano dura poco. Nello stesso numero
del periodico s’informa che “i versi sono di un nostro collaboratore e la musica del Cav.
Enrico Bernardi. Il cronista manifesta che ha avuto occasione di ascoltare il primo atto
dell’opera e ci informa delle sue impressioni che, giacché la musica non si conserva, sono
...........................................................................
65
Bosch, M. G., Historia de los orígenes del Teatro Nacional Argentino y la época de Pablo Podestá, Talleres
Gráficos Argentinos L. J. Rosso, Buenos Aires, 1929, p. 42.
66
Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’Ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio
1892.
67
Brontolon, T., [Battaglia, R.], Platea e Palcosecnico. Teatro Doria in El Mundo del Arte, 20 febbraio 1892, p. 2.
68
Navarrete, J. F., Cubillos y el ciclo de la gauchesca en Mendoza in Tendencias criticas en el teatro, a cura de
Osvaldo Pellettieri, Galerna, Buenos Aires 2001, p. 267.
69
Battaglia, R., Platea e Palcoscenico. Teatro Doria. Juan Moreira; L’ebreo Errante in El Mundo del Arte, 1 gennaio,
1892, p. 2.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
60
preziose: “mantenendo in parte quel cachet tipico melanconico proprio del ritmo gaucho
vi si allontana giustamente quando deve esprimere la forte passione, e si slancia vigorosamente italiana”. Come dire, va bene la malinconica campagna argentina ma senza il
nostro sangue l’opera non funziona70. Il giornalista ci racconta che il Juan Moreira di Bernardi
ospita un coro di gauchos, il brindisi, una canzone napoletana, un walzer ed il concertato
finale che ha delle “frasi melodiche facili e felicissime” “71. Possiamo dunque farci un’idea
di questa pampa che tanto concede al golfo di Sorrento e ai boschi viennesi. La frase finale
dell’articolo dà un colpo di grazia: Juan Moreira avrà ottimo successo anche se eseguito
da una compagnia italiana. Si scrive, anticipando difese ad attacchi possibili: “sarebbe
strano che le opere potessero eseguirsi bene solo dagli elementi ai quali appartiene per
nazionalità il soggetto del quale si tratta”.
Simili aperture alla libertà creativa intorno alla figura del gaucho, sembrano cozzare con richieste di segno opposto. È necessario “fare” il Juan Moreira con meno fronzoli e
con più purezza di pampa. Il cronista che si nasconde sotto lo pseudonimo Todero Brontolón
si fa eco di una richiesta di El Diario: “Ni andaluces, ni velas de baño, ni alamares, ni bordados de seda verde…hay que hacer más rural a Juan Moreira”.72
Dunque El Mundo del Arte tra informazioni in contagocce sul Juan Moreira, che
significativamente s’incrociano con la singolare operazione di Gismondi, anche se ci informa
sull’autore della musica, non chiarisce chi è il librettista, a cui soltanto allude con quel
“nostro collaboratore”.
A questo punto bisogna chiarire un punto. Il finale del primo degli articoli di El
Mundo del Arte su Juan Moreira dà una notizia come coda: “A proposito di Juan Moreira
è ormai noto che se n’è fatto un libretto d’opera…”. Questo testo chiude la notizia sulle
attività di Gismondi come autore del Juan Moreira in italiano. Si evince con chiarezza
dalle righe precedenti che quell’operazione consistete nello scrivere una versione parlata
in italiano su Juan Moreira ed il periodico non indica, come invece legge Veniard, che Gismondi sia l’autore di quel libretto che si menziona alla fine dell’articolo.
Veniard fonde nella stessa citazione due diversi articoli della rivista quello del
primo gennaio (I versi sono di un nostro collaboratore” e quello del 20 febbraio (“Teatro
Doria…Molta gente va, …alle rappresentazioni della “Figlia del Gaucho” dramma criollo
italianizzato, dal Sig. Gismano, lo stesso autore che con bastante fortuna italianizzo il “Juan
Moreira”), facendo diventare consequenziale l’incoraggiamento al “bravo signor Gismano”
rispetto all’anonima composizione del libretto.73
In realtà sembra chiaro che al Doria si recitò e al Nacional si cantò. In effetti,
quando il periodico fa la sua cronaca sullo spettacolo del Doria utilizza sempre il verbo
“recitare”e così l’autore del pezzo, Brontolón, critica l’operazione del Doria: “Il Juan Moreira
deve essere recitato in idioma del paese”. Della stessa maniera manca allusione alcuna a
uno spettacolo lirico nella presentazione mendozina che racconta Navarrete.
...........................................................................
70
Il tema della pampa come paesaggio noioso e poco stimolante all’arte fu argomento di famosa polemica tra il
pittore Eduardo Schiaffino e lo scrittore Rafael Obligado. Scrive Schiaffino: “el paisaje toca los límites de la
mayor pobreza, y las costumbres achatadas por el servilismo, desteñidas por el cosmopolitismo, van perdiendo
gradualmente toda originalidad, sin que se pueda prever aún cuál será el carácter definitivo que afectará nuestra
campaña…. la línea está ausente en la campaña de Buenos Aires, [...] no hay nada imprevisto, triunfa y domina
lo que es chato”, Schiaffino, Eduardo, Pro-Patria. Contribución del ingenio argentino para la reconstrucción de
la “Rosales”. Buenos Aires, José Antonio Berra Impresor, 1893. Perfino i compositori d’opera come Eduardo
García Mansilla, iscritti nel più radicale movimento nazionalista, perciperono inadeguata alla tensione drammatica
la scena della pampa e l’”arricchirono”, all’occorrenza d’improbabili palme tropicali, cf. Cetrangolo, A. E., El
melodrama italiano en Argentina entre 1880 y 1920, Tesi Dottorale, relatore Prof. Enrique Cámara de Landa,
Università di Valladolid, 2010, p. 670.
71
La nostra música in El mundo del Arte, 1 gennaio 1892, p. 10.
72
Brontolon, T., Platea e palcoscenico. Jardín Florida in El mundo del Arte, 20 de febrero de 1892, p. 2.
73
Veniard, J. M., Arturo Berutti, un argentino en el mundo de la ópera, Instituto Nacional de Musicologia, Buenos
Aires, p. 198.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
61
Comunque credo molto possibile che la pièce parlata in italiano di Gismano sia
stata la base del libretto di Bernardi. È possibilissimo che quel passaggio da pièce a libretto
lo abbia fatto lo stesso Gismano ed è molto possibile che invece abbia ragione Veniard
quando suppone Gismano sia Amilcare Evaristo Gismondi. Gismondi era un genovese
nato nel 1853 che si trasferì a Buenos Aires dopo aver studiato musica con Tito Maffei e
pubblicato qualche musica sua con Ricordi. In Argentina si è occupato di commercio e di
industria. Fu il primo a impiantare una fabbrica di olio nel paese. Si dedica al giornalismo
collaborando con La Patria degli Italiani, La Nación e La Prensa firmando con lo pseudonimo di Mefistófeles. Gismondi fu tra i critici musicali più importanti di allora a Buenos
Aires. Viveva in centro, a Cangallo 1848. 74 Quando Puccini visitò Buenos Aires nel 1905
Gismondi accompagnò e organizzò festeggiamenti in onore del compositore. L’Archivio
Ricordi conserva importante documentazione fotografica di Gismondi.
In una curiosa risurrezione nel Plata della secolare questione della verosimiglianza
nell’opera, il cronista di El Mundo del Arte informa che si compone un melodramma su
Juan Moreira anche se certi impresari locali criticano l’operazione perché il famoso gaucho
“non era cantante”75. Lo stesso periodico dà un’informazione che trovo preziosa: il Juan
Moreira lirico ha dei punti di contatto con Cavalleria Rusticana e questo ci porta subito ad
altre attività di Bernardi
Bernardi Pirata?
Non credo che tale associazione del cronista sia affatto casuale: il celebre titolo
di Mascagni era stato presentato in prima assoluta a Roma, nel maggio del 1890, cioè
meno di due anni prima del racconto argentino. Certamente la nuova opera, anche se
d’un compositore novello aveva provocato grande impressione nella città come in tutto il
mondo e si sapeva di produzioni storiche come quella di Budapest diretta da Mahler.
Quando il cronista di El Mundo del Arte scrive, Cavalleria era già stata presentata a Buenos
Aires, precisamente al teatro Nacional nel febbraio del 1891, cioè anticipando di pochi
mesi la prima – nella stessissima sala – del Juan Moreira. Ancora di più, quella versione
dell’opera di Mascagni fu oggetto di uno scandalo i cui echi arrivarono perfino in Italia in
quanto a Buenos Aires era stata utilizzata un’orchestrazione falsa, quasi sicuramente
confezionata in loco. Credo molto possibile che l’autore di quella strumentazione apocrifa
sia stato Bernardi, che fu il direttore di Cavalleria Rusticana in quella prima “imperfetta”.
È comprensibile che quel “contributo” che Mascagni non aveva mai desiderato, e dunque
forzatamente anonimo, abbia spinto Bernardi a tentare un’altra creazione che invece
potesse firmare con nome e cognome. Quasi svelandolo, la rivista argentina si riferisce al
nascente Juan Moreira come la Cavalleria Nazionale.
La rivista pubblica inoltre una parte dell’opera nuova, si tratta niente meno che
di un … “brindisi” particolarmente simile a quello di Mascagni il che ben potrebbe
confermare la parentela tra Giovanni Moreira (sic) y Turiddu. L’invito Bernardi:
Beviamo amici, colmo il bicchier
Beviamo amici che il liquor ci scaccia
i funesti pensier
Ben ricorda la famosa promozione etilica di Mascagni dove ci propone di bere:
...........................................................................
74
Dizionario biografico degli italiani al Plata, a cura degli editori, Barozzi, Baldissini & Cia. Buenos Aires, 1899, p.
173, 174.
75
El Mundo del Arte, 23 novembre di 1891, p. 2.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
62
Intanto amici, qua, beviamone un bicchiere.
[…] il vino ch’è sincero
E che annega l’umor nero,
Pochi anni dopo, persuasi di stare “facendo patria”, alcuni compositori argentini
percorrerranno con perseveranza il sentiero di cantare liricamente le vicende del gaucho.
Il più famoso di questi tentativi, Pampa di Arturo Berutti, intonerà, nel 1897, certi versi
italici – remotissimi discendenti delle arie di paragone metastasiana – che difficilmente si
potrebbero ascoltare tra le immensità della pampa:
Tuona il cielo romba e cade
Sulla Pampa la tempesta,
e il dolor martella, e invade
la mia testa.
In fine
Per concludere, aggiungo la semplice menzione di alcune preoccupazioni, alcuni
dei tanti fili sciolti che aspettano di essere legati ai risultati della ricerca brasiliana. L’esame
di quei argomenti molto potrebbe contribuire a capire meglio l’impiego degli emblemi
lirici nell’incontro di culture diverse che la migrazione provoca.
Così trovo molto interessante la possibilità di approfondire l’analisi di certe prassi
legate alla diffusione del teatro musicale attraverso l’utilizzo delle marionette. Questa
specifica attività drammatica, comune in Brasile e nell’ambiente rioplatense, sembra molto
intensa rispetto alle intonazioni su testi di Antonio José da Silva.
Analogamente si potrebbe seguire anche la traccia della specifica disseminazione
attraverso la letteratura de cordel che secondo David Cranmer costituisce un discrimine
anche per quanto riguarda il repertorio.76
Un altro sentiero da seguire è certo quello delle committenze in tempi di ancien
regime. Le cerimonie ufficiali sono sicuramente fertili occasioni di collaborazione negli
studi perché allora hanno stimolato la creazione di prodotti musicali. È il caso delle
esaltazioni al trono dei monarchi iberici che hanno provocato occasioni festive anche
nelle colonie americane e le celebrazioni anche periferiche organizzate in circostanza dei
matrimoni tra principi Bragança e Borboni di Spagna o di Napoli. L’arduo compito di spoglio
dei documenti conservati nei diversi archivi delle vecchie metropoli o delle antiche colonie
è soltanto possibile attraverso un lavoro in rete. Il caso già evidenziato dei matrimoni
incrociati tra i quattro futuri regnanti di Spagna e Portogallo celebrato nel 1729 è solo uno
di una serie di eventi che meritano speciale attenzione nella ricerca della committenza
musicale. Altri eventi di quel tipo come l’acclamazione di Don Josè nel 1750 o quella di
Carlos III che Buenos Aires celebrò nel 1760, risultano essenziali per gli sviluppi lirici. Come
fu indicato prima, in quest’ultima occasione Bartolomeo Mazza scrisse un’opera su testo
di Da Silva e nello stesso anno, ma in Brasile, un’altra di queste feste stimolò altre musiche
per il teatro: si tratta di festeggiare nella città carioca il matrimonio principesco tra Donna
Maria e suo zio Don Pedro. Questa produzione è del massimo interesse: in ambito più che
ufficiale, i funzionari di giustizia locali scelgono per omaggiare la dinastia un titolo di Da
Silva. Si trattava dunque di un’opera di quel judeu che vent’anni prima era stato condannato
a morte dal nonno della sposa; inoltre il testo scelto per l’occasione riproponeva il mito di
Amphitrione la stessa storia che era stata intonata da Giacomo Facco per il matrimonio
...........................................................................
76
Cranmer, D., Eighteen-century opera and comedy, manoscritto, 2008, che cita Budasz, R., op. cit. p. 80.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
63
dei genitori di Donna Maria.
Trasversale ai territori dei Bragança e Borboni tanto in Europa come nelle
Americhe è l’attività di teatro musicale dei gesuiti che si produceva abitualmente nei collegi
della Compagnia del Gesù come festa finale degli studi.
Le confraternite religiose che tanto hanno interessato Francisco Curt Lange hanno
conformato una densa rete che legava Napoli, Lima, Buenos Aires e Rio. Le loro promozioni
certo, si riferiscono al prodotto musicale religioso, ma converrà che anche lo studioso
degli sviluppi lirici riesca a monitorare queste reti da vicino: l’operista Pergolesi compose
il suo Stabat Mater incaricato dalla napoletana Confraternita dei Sette Dolori, un’importante istituzione che aveva ramificazioni tanto italiane quanto americane.
L’attività del data base IMLA ha mostrato, come fu detto nel caso dei musicisti di
Viggiano e anche rispetto alle attività di Enrico Bernardi, l’utilità di seguire il percorso
degli operatori musicali. Lo studio di personaggi come quella rissosa Mascarenhas, la diva
brasiliana attiva a Buenos Aires e Lima, ben potrebbe essere foriera d’importanti informazioni sulla diffusione dei repertori.
Studiando i letterati vincolati al teatro musicale sarà della maggiore utilità intensificare gli studi comparativi. Si tratterebbe di approfondire per esempio, i contatti di Metastasio, poeta cesareo, con José Basilio da Gama, contatti che conosco grazie a Rogerio
Budasz77, senza dimenticare la produzione del peruviano de las Llamosas che presentò
con successo le sue pièces teatrali alla corte di Madrid.
Nel Settecento, i consuoceri João V e Filippo V non conobbero le rispettive capitali.
In occasione di quelle nozze principesche semplicemente si scambiarono le principesse, e
tornarono alle rispettive corti senza attraversare la frontiera luso-ispana di Caia, mancando
così di partecipare al matrimonio delle proprie figlie. La scienza musicologica adesso dovrà
invece superare quelle barriere e studiare i fenomeni da ambedue i punti di vista.
...........................................................................
77
Budasz, R., op. cit.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
65
Lídia de Oxum: a ópera negra da Bahia
Ilza Nogueira
Universidade Federal da Paraíba
Lídia de Oxum é um dos últimos trabalhos de Lindembergue Cardoso (30 de junho de 1939 – 23 de maio de 1989), realizado no curto período de março a junho de 1988.
Concebida para a ocasião do centenário da abolição da escravatura (13 de maio de 1988),
a ópera só foi estreada em junho de 1995,1 no contexto da celebração do tricentenário da
morte de Zumbi (Alagoas, 1655 – Viçosa, 20 de novembro de 1695), o último líder do
Quilombo. O libreto é um drama lírico do poeta e jornalista baiano Ildásio Tavares (25 de
janeiro de 1940 – 31 de outubro de 2010).2 Obá de Xangô e ogã do terreiro Axé Opô
Afonjá3, Ildásio foi um grande conhecedor da cultura religiosa afrobaiana. Lídia de Oxum
é uma elaboração do seu musical “O Barão de Santo Amaro”, escrito em 1978 e nunca encenado, pela alusão identificável aos governantes da ditadura.
Este trabalho pretende apresentar a ópera de uma forma abrangente e que,
principalmente, reflita as referências culturais utilizadas com a finalidade da caracterização,
já que Lídia de Oxum pode ser considerado um trabalho que retoma, na distância de mais
de um século, o modelo do romance de costumes que marcou a literatura brasileira do final do século XIX – centrado na caracterização de tipos sociais, usos, costumes, convenções,
paisagens, cenas, épocas e lugares da realidade. Portanto, transformada em enredos imaginários, abundantes em conflitos entre o indivíduo e os padrões sociais.
O drama lírico será referido apenas para que possamos demonstrar como e
quanto a música de Lindembergue Cardoso projeta as ideias implícitas e explícitas do texto. Nesse sentido, pode-se observar o compositor enfatizando-as por meio da aderência
– com referências localizadas na época e no espaço geográfico do argumento –, tanto
quanto, ao contrário, salientando-as com a divergência cultural; recontextualizando-as
em ambientes sonoros estranhos, respectivos à linguagem musical contemporânea do
compositor.
Finalmente, pretendemos também situar Lídia de Oxum no contexto estilístico
do conjunto da obra de Lindembergue Cardoso. Para este objetivo, baseamo-nos no artigo
“Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”, de nossa autoria.4
O argumento
A ação da ópera se situa na penúltima década do século XIX, no Recôncavo
Baiano, nas proximidades do município de Santo Amaro da Purificação. Teodoro Aragão,
o Barão do Santo Amaro, é proprietário do Engenho Corrente. Em sua personalidade
extremamente autoritária, ostentando poder, arrogância e prepotência, Teodoro re...........................................................................
1
Salvador, Bahia. Teatro Castro Alves, 29 de junho a 3 de julho de 1995. A montagem, dirigida por Paulo Dourado, foi levada posteriormente a São Paulo – durante o Festival Internacional de Artes Cênicas, no Teatro Municipal, 19 de outubro de 1995 – e a Brasília – durante a Semana Internacional de Cultura, no Teatro Nacional. Uma
nova montagem foi realizada em Salvador no ano seguinte, ao ar livre – no Parque do Abaeté, 11 e 12 de maio
de 1996), dirigida por Ildásio Tavares.
2
Lídia de Oxum in “Coleção Dramaturgia da Bahia”, Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo, 2004, p. 101-141.
3
O terreiro Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro (Salvador, BA), é o mais antigo de que se tem notícia (1910). Xangô é o senhor desse terreiro. O título “obá” é honorífico, concedido a doze amigos e protetores
do terreiro aos quais está entregue o destino civil do mesmo. O “ogã” é um ministro leigo do orixá; não entra em
transe, permanece consciente durante as seções de “trabalhos”.
4
Nogueira, Ilza. “Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural”. Artigo no prelo (Per Musi – Revista Acadêmica de Música, nº 25, jan.-jun., 2012).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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presenta a aristocracia açucareira, lusodescendente e escravocrata. Lourenço é o primogênito do Barão que, havendo concluído os estudos de Direito em Coimbra, regressa à
Bahia depois de longa ausência, quando os negros escravos conspiram uma rebelião pela
sua liberdade. Leitor e admirador da poesia de Castro Alves, contaminado pelas ideias
libertárias da época, Lourenço abraça a causa abolicionista, contra os escravocratas liderados por seu pai. Pede ao escravo Romão, um companheiro de infância, que o conduza
ao Engenho Esperança, quartel-general do movimento, a fim de se inteirar do levante. A
visita é marcada para a “noite de Olubajé”, uma cerimônia de candomblé em homenagem
a Omolu.5 Nessa noite, Lourenço se encanta por Lídia de Oxum,6 a bela mestiça filha do
mulato Bonfim, dono do engenho e chefe da conspiração.
Numa conversa com Romão, Lourenço ouve do amigo a surpreendente revelação
de que seu avô era filho de uma escrava dos seus bisavós. A consciência dessa realidade
impele o jovem advogado à luta ao lado dos negros. Romão e Lourenço participam de
uma reunião estratégica no Engenho Esperança, para planejar a rebelião e, nessa ocasião,
são surpreendidos com a notícia de que os senhores de engenho já se aproximam armados.
As suspeitas de traição incidem sobre Lourenço; entretanto, quando esclarecida a inocência
do jovem, decidem embrenhar-se no canavial para um ataque de tocaia, do qual Lourenço
participa. Durante o combate, chega um emissário da coroa anunciando a assinatura da
Lei Áurea. Os negros comemoram, mas um deles, Tomás de Ogum,7 líder da revolta e antigo admirador de Lídia, rebela-se, incrédulo: “Mil anos se passarão/Por cima desse decreto,/Sem existir igualdade,/Que não se faz num papel./Para mim continua a guerra,/
Uma guerra sem quartel.”
Dividida entre o amor antigo de Tomás e a paixão súbita por Lourenço, Lídia vive
o dilema do conflito de identidade, expresso nesse desabafo ao seu pai: “Oxum, minha
mãe, valei-me,/Tomás é preto, meu pai,/Lourenço é branco e a família/Me tratar bem
nunca vai./Meu lugar é com os negros,/Sou mulata da Bahia”.8
O drama lírico
Concepção estrutural
O drama lírico é estruturado em sete cenas distribuídas em dois atos. As quatro
cenas do I Ato apresentam os personagens principais, caracterizados em função de uma
problematização sócio-racial em torno de classe opressora contra a classe oprimida sob
jugo e submissão. Centralizada na ópera, a cena final desse ato é a cerimônia festiva do
Olubajé, ícone da identidade cultural afrobaiana. O primeiro ato conclui, portanto, com
uma representação apoteótica dessa cultura, daquilo que a caracteriza como fundamen...........................................................................
5
Omolu, Olu ou Obaluaiyê é considerado o “senhor da vida na terra”. Orixá poderoso, guerreiro, caçador, destruidor e implacável, é extremamente temido e respeitado por enviar as doenças como castigo ou para garantir
uma renovação da vida. Da mesma forma que traz as enfermidades, Omolu traz também a cura. Sua figura
misteriosa (cujo rosto, sob o filá de palha da costa, ninguém vê) esconde os segredos da restauração da vida.
Olubajé é uma cerimônia que se realiza anualmente no mês de agosto, com a finalidade de agradar o orixá com
sua comida predileta, para pedir-lhe saúde e longevidade. No ritual, iguarias típicas servidas sobre folhas de
mamona são oferecidas aos convidados pelos filhos de santo. Como a semente da mamona – o rícino – é tóxica
e mortal, a comida ritual sobre as folhas da “planta assassina” representa, portanto, a vida sobre a morte.
Enquanto servem-na, dançando curvados para frente (a dança do orixá), os filhos de santo cantam “Aiyê ajeum
bó, Olubajé ajeum bó”, incitando os convidados a comerem e saírem. Uma interpretação (mais que uma tradução literal) de Ildásio Tavares para esse texto em iorubá arcaico é: “Mundo, coma e saia/ coma a comida do
santo (Olu ou Omolu) e saia” (Aiyê = mundo; ajeum = comida; bó = sair).
6
Oxum, orixá feminino, é a rainha de todos os rios e cachoeiras. Considerada a deusa mais bela e sensual do
candomblé; é vaidosa, veste-se de amarelo ouro e traz na mão direita um espelho.
7
Para a compreensão da personagem Tomás de Ogum, deve-se considerar o perfil dos filhos desse orixá guerreiro, violento, conquistador e implacável, admirado pela bravura e temível pelo seu carácter devastador.
8
Vale lembrar que uma das características que compõem o perfil dos filhos de Oxum é a de não se desesperarem por paixões impossíveis; por mais que gostem de uma pessoa, o seu amor-próprio é muito maior. Por trás
da sua imagem doce, esconde-se uma forte determinação.
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talmente mística, crente e ritualística: o candomblé.9 E através do ritual, apresenta-se o
tripé da cultura afrodescendente na Bahia: a culinária, a dança e a expressão musical percussiva e vocal.
Enquanto o I Ato tem caráter contemplativo, concentrando-se em delinear os
personagens em seus respectivos nichos culturais, o II Ato é essencialmente ativo, desencadeando os acontecimentos e ações que fundamentam o drama: a preparação da rebelião
e o combate entre negros e brancos, interrompido pela notícia da abolição da escravatura.
Sem a efetivação do romance entre Lourenço e Lídia, o final da ópera é sugestivo da continuidade de um status quo fundamentado em segregação e inconfiabilidade. A saudação
a Ogum, “Ogun yê!”, emitida pelo rebelde Tomás como um “grito de guerra”, dá origem
ao apoteótico grand finale dançante em estilo “afoxé”.
Concepção estética
A concepção estética do drama lírico mistura a simplicidade da poesia popular
de tradição cordelista à estrutura métrica e de rima mais elaborada da poesia clássica. Os
versos livres ou as estrofes simples que caracterizam o cordel (tipo redondilhas) se encontram nos trechos atribuídos às personagens negras; na ária de Lídia, por exemplo, observa-se o esquema da redondilha maior, isto é, 7 sílabas com rimas alternadas (Figura 1).
Figura 1. Texto da ária de Lídia.
A metrificação poética mais elaborada caracteriza as falas das personagens que
representam a classe social lusodescendente, a exemplo, a estrutura de métrica mista
com rimas interpoladas da ária de Lourenço (Figura 2).
Figura 2. Texto da ária de Lourenço.
...........................................................................
9
Falando-se em identidade cultural afrobaiana, uma digressão a suas origens étnicas é oportuna, pois poderá
esclarecer as raízes de diferenças observadas entre os cultos de origem africana na Bahia e em outras regiões do
Brasil. Até a segunda metade do século XVIII, os escravos trazidos para a Bahia vinham da África centro-ocidental; eram banto, matriz importante na formação da religiosidade negro-baiana. A palavra candomblé, por exemplo, é de origem banto. Ao contrário da região Sudeste do Brasil, onde o mercado escravo banto teve continuidade, ao longo do século XIX, o tráfico na Bahia deslocou-se para as regiões iorubá (ao sul e centro da atual República de Benim, parte da República do Togo e todo o sudoeste da atual Nigéria). Kètu, Egba, Egbado e Sabé são
alguns dos segmentos iorubanos ou nagô que vieram para a Bahia; todos eles – com destaque para os Kètu –
contribuíram, decisivamente, para instalar aqui uma espécie de hegemonia cultural nagô na Bahia, ao longo da
segunda metade do século XIX. Inicialmente aliados aos jeje (como eram denominados pelos iorubá os povos
do leste, como os axanti, ewe, fanti, fon, gan, mina e mahin), os nagô competiram com eles e depois os superaram em Salvador. O Recôncavo, entanto, é tido como terra de jeje. O candomblé baiano hoje é considerado uma
religião de matriz jeje-nagô.
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Figura 2. Texto da ária de Lourenço (cont.)
Essa realização poética se reflete na mistura eclética da música de Lindembergue
Cardoso, em que se mesclam tradições operísticas centro-europeias, a canção popular
brasileira e as tradições folclóricas da Bahia: a afrobaiana litorânea e a sertaneja interiorana.
A concepção cênica
Na partitura, orientações sobre a composição do cenário, localização e movimentação das personagens são econômicas, mas suficientemente sugestivas. A maioria
delas introduz as cenas; no entanto, algumas se encontram no seu desenvolvimento. Paulo
Dourado, diretor geral, da primeira montagem, explicou-se: “Nossa proposta é uma encenação em que o teatro busque uma identidade através da música”.10 Se a música ditou
a identidade da concepção teatral e a identidade da concepção musical fundamentada
no drama lírico é essencialmentalmente baseada na cultura afrobaiana, era de se esperar
que a teatralização do argumento usasse e abusasse do elemento coreográfico, uma vez
que os conceitos de música e dança se encontram mais que intimamente relacionados na
cultura em questão, de forma que um implica necessariamente no outro. A grande quantidade de danças indicadas na partitura, elaboradas em longas coreografias na montagem
de Paulo Dourado,11 é um dos aspectos marcantes da pregnância da identidade cultural. É
com cantos e dança que a cultura afrodescendente cultua os seus deuses, presta reverência
à natureza e brinda a vida. Na força da dança, Lídia de Oxum tem um expressivo diferencial
do conceito tradicional do gênero. No entanto, como disse o coreógrafo Carlos Moraes,12
mais que um traço de excepcionalidade, a dança nessa ópera é uma marca decisiva na
narrativa, influindo em toda a mis-en-scène. A concepção da Cena 4 do primeiro Ato – O
ritual do Olubajé –, epicentro da ópera, de que parte o eixo das narrativas dramática e
musical, pode ser entendida como uma grande coreografia, na qual a ação é retida para
focalizar o encontro do par amoroso Lourenço e Lídia.
A concepção musical
Lindembergue Cardoso não deixou referências à concepção musical de sua ópera;
não nutria esperanças de uma encenação após uma tentativa fracassada de que integrasse
as comemorações do centenário da abolição da escravatura. Por isso Lindembergue se
desestimulou a escrever uma abertura, é o que nos informa a viúva do compositor. Ildásio
Tavares, tendo acompanhado a composição da música muito próximamente, inclusive
fornecendo a Lindembergue os materiais musicais oriundos do candomblé e até mesmo
sugerindo-lhe o perfil da ária do Barão Teodoro, foi quem se expressou sobre a concepção
musical da ópera, por ocasião da estreia. Segundo ele, a proposta musical para Lídia de
Oxum era a realização de uma “antiópera neobarroca e brasileira” (Tavares, 1995), valorizando o recitativo musical (Sprechgesang) e a recitação falada. Subentende-se, portanto,
que essa concepção “antioperística” se refira, principalmente, à tradição novecentista
...........................................................................
10
In Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20 de abril de 1995.
Em geral, a música concebida para as danças consta de poucos compassos para a orquestra com indicação de
repetição ad libitum, aos quais se adiciona a percussão étnica do palco improvisando.
12
In Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.
11
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italiana. Segundo informa o autor do texto, Lídia não deveria ser um pretexto para a exibição de atributos vocais; no entanto, pretendia referir-se às distintas expressões idiomáticas do gênero. Assim, encontramos na ópera algumas referências ao belcanto (ampla
extensão, com exploração do registro agudo e grandes intervalos), trechos em estilo arioso,
recitativo secco e recitativo accompagnato, respondendo à funcionalidade do momento:
seja a caracterização da personagem, a construção da dramaticidade, a rápida evolução
da ação, ou, ao contrário, a necessária retenção do tempo nos trechos de natureza reflexiva
ou contemplativa.
Como disse o diretor da primeira montagem, Paulo Dourado: “Em Lídia de Oxum,
a música está construída em função de uma ação dramática”.13 Isso pode ser observado
em vários aspectos, principalmente no tratamento compositivo do texto, que enfatiza o
recitativo secco e o canto silábico, que utiliza bastante a voz falada, e cuja adaptação à
linha melódica, seja da voz solista ou do coro, projeta-se sobre uma textura orquestral
funcionalmente acompanhante.
A orquestração, geralmente subjacente à concepção vocal, chama a atenção
pelos trechos concebidos em função de efeitos dramáticos, simbólicos, imagéticos e descritivos, direcionando o processo perceptivo para a compreensão de mensagens subliminares
no texto. Podemos lembrar, por exemplo, o caráter paródico, caricato, portanto, do estilo
marcial da ária do Barão Teodoro, ou a utilização do repente nordestino para, através da
referência explícita à tradição cordelista, satirizar a relação ilícita entre o bisavô de Lourenço
e a negra Luzia. Outro aspecto característico da concepção orquestral é o trabalho motívico
relacionado aos protagonistas do drama, indicativo, portanto, e também cumpridor de
função estruturalizante de um discurso musical que se faz orgânico por meio dessas peças
referenciais reiterativas. A simplicidade da orquestração é maior do que aquela que configura a formação da orquestra: 2 (picc.). 2. 2. 2 / 2. 2. 2. 1 / perc. (6); cordas. Nela sobressai
o naipe de percussão, com seis integrantes e 16 timbres,14 podendo ser considerado o
carro-chefe da concepção orquestral. Em trechos como o do Exemplo 1, a percussão
modela o uso dos instrumentos de sopro ou corda em efeitos de caráter essencialmente
percussivo.
Em alguns tutti orquestrais homorrítmicos, como se pode observar no Exemplo
2, sopros e cordas aderem à percussão, intensificando-a com sonoridades complexas, algumas vezes aleatórias, sendo formadas com alturas indeterminadas em regiões indicadas.
Os instrumentos étnicos no palco (agogô e atabaques) complementam o cenário
coreográfico das danças afrobaianas na senzala e no terreiro de candomblé (Exemplo 3);
devem improvisar sempre, seja quando tocam a sós ou junto à textura escrita da percussão
na orquestra.
Integrando o cenário, a percussão tem função representativa, portanto, é funcional na definição da ambiência ambivalente entre o universo das culturas afro (dominante
na obra) e eurodescendente (representada em menor parte da obra). Chama atenção a
caracterização musical desses dois universos culturais nos acompanhamentos às ações
vocais dos respectivos personagens.
Além da farta exploração dos timbres da percussão étnica, reforçados pelos diversos tipos de tambores na orquestra, outros aspectos caracterizam o universo da etnia
negra, como 1) a elocução do texto preferencialmente em recitativo parlando, em métrica
livre, no trecho de um diálogo entre Bonfim, Lídia e Tomás de Ogum (Exemplo 4).
...........................................................................
13
Ver Nota 6.
Agogôs (no palco e na orquestra), atabaques (no palco e na orquestra), bumbo, bongôs (2), caxixi, chocalho,
coco, caixa clara, pratos suspensos, (2) pratos, reco-reco, surdo, timpani (2), tomtom (4), triângulo, woodblock.
14
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Exemplo 1. Instrumentos de sopro em efeitos percussivos.
2) Acompanhamentos concebidos em longos ostinati rítmicos, como no trecho
em que as cordas acompanham o dueto entre o escravo Romão e Lourenço (Exemplo 5),
o branco que prega a igualdade racial. Neste exemplo, é interessante notar que a expressão
vocal do Romão se faz na forma ariosa e a de Lourenço, em recitativo, intercambiando os
estilos definidos para as personagens negras e brancas na grande maioria da obra; essa
observação, que pode não corresponder à intenção composicional, é significativa no contexto do viés analítico-semiológico.
3) Utilização de padrões rítmico-melódicos tradicionais, como na imitação do
toque do berimbau, pontuando o diálogo entre Romão e Lourenço (Exemplo 6) ou na estória da negra Luzia, narrada no estilo de um desafio de violeiros, sobre o padrão do coco15 (Exemplo 7).
Nesse contexto de caracterização musical do universo negro, a ária de Lídia no
final do I Ato se reveste de excepcionalidade. Centralizada na ópera, destaca-se principal...........................................................................
15
O padrão do coco é o das danças de umbigada (de provável origem banto), que corresponde, na montagem
original, à concepção cênica da dança erótica entre a escrava Luzia e o bisavô de Lourenço.
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Exemplo 2. Sopros e cordas intensificam a percussão com sonoridades complexas.
Exemplo 3. Entrosamento da percussão no cenário com o naipe da orquestra.
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Exemplo 4. Estilo vocal característico do universo étnico afrodescendente.
mente pelo lirismo dramático, explorando a região aguda. Uma estrutura musical simples
corresponde ao modelo também simples da redondilha maior: cada estrofe de quatro
versos é adaptada a um período musical de duas frases, repetido uma terça menor abaixo.
Ao jogo de rimas alternadas corresponde, então, uma espécie de “rima musical”: os versos
1 e 3 têm a mesma frase, assim como os versos 2 e 4. Muito do caráter lírico-dramático
deve-se às oitavas ascendentes que concluem a segunda frase. A modulação de Fá# maior
para Sol maior na terceira estrofe, leva ao extremo agudo (Si), enfatizando a dramatização
na confissão do medo do amor (Exemplo 8).
Quanto aos aspectos que caracterizam o universo da etnia branca, destacam-se
as referências às tradições operísticas oitocentistas centro-europeias ou à música da
sociedade burguesa do Brasil império. Podemos citar: 1) a elocução do texto preferencialmente em estilo arioso, com linhas melódicas caracterizadas por gestos amplos ascententes-descendentes, como pode-se verificar nos trechos correspondentes aos Exemplos 9, 10 e 11; 2) A concepção de motivos condutores no acompanhamento orquestral,
asso-ciados às interlocuções das personagens; no motivo de Lourenço (Exemplo 12), no
motivo da mãe de Lourenço (Exemplo 13) e no motivo marcial do Barão Teodoro (Exemplo
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14); e 3) O uso de padrões derivados da tradição musical de salão ao final do segundo
reinado, a exemplo, o dueto entre as mulheres da família Aragão, concebido em “tempo
de valsa brasileira” (Exemplo 15).
Exemplo 5. Acompanhamento orquestral característico do universo étnico afrodescendente.
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Exemplo 6. Imitação do toque do berimbau.
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Exemplo 7. Coco.
Exemplo 8. Ária de Lídia.
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Exemplo 8. Ária de Lídia (cont.)
Exemplo 9. Ária de Lourenço.
Exemplo 10. Dueto da mãe e da irmã de Lourenço.
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Exemplo 11. Ária do Barão Teodoro.
Exemplo 12. Motivo de Lourenço.
Exemplo 13. Motivo da mãe de Lourenço.
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Exemplo 14. Motivo do Barão Teodoro
Identidade autoral x identidade cultural
Identidade autoral
Lídia de Oxum apresenta a maioria dos aspectos que caracterizam, indiscutível
e preponderantemente, a obra de Lindembergue Cardoso sob o ponto de vista ideológicoestético. Em primeiro lugar, podemos citar a intimidade com a música folclórica e popular
brasileira, notada em todas as fases da sua produção musical: do início à maturidade profissional. Essa intimidade chega a ponto de suas alusões estilísticas ao popular ou ao folclore
apresentarem um grau de autenticidade tal que poderíamos apostar tratar-se de uma
citação. Dois trechos da ópera exemplificam esse aspecto. Um deles é a ária de Tomás de
Ogum, onde o compositor indica, na partitura, “Canção à moda popular” (Exemplo 16). O
cantor é essencialmente acompanhado pelas cordas, os metais articulam pequenos elos
motívicos ascendentes entre as frases e uma bateria (tambor surdo no pulso e caixa clara
no soluço do contratempo) sustentam a base rítmica característica: um padrão estrutural
clássico do estilo.
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Exemplo 15. Duteto da mãe e da irmã de Lourenço.
O outro trecho é o já mencionado e demonstrado desafio, que diz respeito à estória da negra Luzia, sobre o modo misto nordestino e o ritmo do coco (Exemplo 7); e a
cadência típica do duo de flautas em terças paralelas (Exemplo 17).
Outro aspecto característico da obra integral de Lindembergue Cardoso é a convivência próxima do religioso com o profano; hinos que se referem à Bahia católica (o Hino ao Senhor do Bonfim foi utilizado em sua Rapsódia Baiana) tanto quanto os cânticos
dos rituais do candomblé baiano (como o Hino a Oxalá, tema central de sua peça Oniçá
Orê) são evocados num discurso em que religiosidade e “mundanidade” se alternam.
Centrada na cultura afrobaiana, em que as fronteiras entre os universos religioso e profano
são particularmente obscuras, a ópera é farta em referências aos ritmos, timbres e cantos
afrodescendentes, aos ijexás e afoxés, ritualísticos, semânticos e ambivalentes no que diz
respeito à funcionalidade nos âmbitos religioso e profano. Na ópera, é na diferenciação
entre o ritmo calmo do ijexá, marcado pelos atabaques, e o andamento vivo do afoxés –
onde também o agogô entra em cena – que se distinguem as representações do universo
religioso (na cena da cerimônia de Olubajé) e profano (o lazer dançante na senzala e a
celebração festiva da liberdade oficializada).
Outra característica ideológico-estética na obra de Lindembergue Cardoso é abertura à interação criativa do(s) intérprete(s); na ópera, o trecho que acompanha as expressões de dúvida sobre uma possível traição à rebelião negra tem uma concepção textural
inteiramente deixada ao caos de um improviso orquestral dirigido, com sugestão de atividade em notação gráfica e indicação de dinâmica (Exemplo 18).
A atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais tradicionais, outra característica da estética do compositor, também se encontra na ópera. Enquanto a concepção
melódica das árias é eminentemente tonal, não se pode dizer o mesmo do acompanhamento harmônico, o qual pode evocar, temporariamente, um centro tonal irrespectivo
da linha melódica, de forma a promover uma dose de ambiguidade, de estranhamento,
que, em determinados momentos, se resolve. Pode-se dizer que melodia e acompanhamento saem e entram em fase harmônica, ciclicamente, como num trecho da ária de
Lídia (Exemplo 19).
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Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum.
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Exemplo 16. Ária de Tomás de Ogum (cont.).
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Exemplo 17. Cadência do desafio.
Exemplo 18. Improviso orquestral dirigido.
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No contexto harmônico respectivo a Sol-maior/ Mi menor, a melodia vocal tem
um acompanhamento instrumental que, inicialmente, refere-se ao contexto de Mi bemol
maior, para concluir em fase com a voz. Isso determina os estranhamentos harmônicos
Mib/Mi natural, Fá natural/Fá #, Si b/Si natural, que turvam a definição tonal do trecho,
até que, finalmente se esclareça o contexto de Sol Maior.
Se as noções de ambiguidade, estranhamento e indeterminação se encaixam
perfeitamente numa ambientação musical para essa personagem, deve-se salientar que
essas características são inerentes à linguagem do compositor, de uma forma geral.
Identidade cultural
Considerando o aspecto da identidade cultural da ópera, devemos lembrar, de
antemão, que Lindembergue Cardoso e Ildásio Tavares, nascidos respectivamente em
1939 e 1940, foram parte da juventude estudantil da década de 1960, que se iniciou profissionalmente na década de 1970, nos “anos de ferro” da política nacional e no movimento
internacional da contracultura, de contestação dos valores centrais do mundo ocidental.
Foram parte de uma juventude de espírito libertário, inovadora de estilos, constituída de
arautos da cultura underground, alternativa, marginal, focada principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento. Na época de sua formação
intelectual e ideológica, o mundo ao redor digeria os critérios-chave da estética moderna:
o novo, a ruptura e a vanguarda. Devemos também acrescentar o fato de que Lídia de Oxum, embora concebida no final da década de 1980, tem um antecedente ideológico nos
anos 70: o musical “O Barão de Santo Amaro”, em que o autor usa do artifício paródico
para denunciar os abusos de poder e prepotência da ditadura militar da época.
Talvez possamos estabelecer uma relação entre esse contexto que circunscreve
o período de formação ética e ideológica dos autores e a proposta estética idealizada
para Lídia de Oxum: “antiópera neobarroca e brasileira”, segundo Ildásio Tavares. Quanto
à conceituação antioperística, Lídia é discutível do ponto de vista musicológico, principalmente considerando-se o perfil dos gêneros multimidiáticos em evolução a partir dos
anos 1980 (época em que foi concebida) em direção ao contexto ideológico do pós-modernismo, o qual Lídia de Oxum visita confortavelmente. O que se pode dizer da pretensão
“antioperística” – que poderíamos, sem titubear, atribuir antes a Ildásio Tavares que ao
compositor – é que, certamente, reverberando ainda valores dos anos 1960–1970 (principalmente a ruptura com as concepções estéticas imediatamente anteriores), não se concretizou na música de Lindembergue Cardoso. Já nos anos 1980, o compositor se distanciava
dos critérios-chave da estética moderna – o novo, a ruptura e a vanguarda – e certamente
observava a chegada do pós-modernismo com a satisfação de poder, então, aberta e
francamente, sem pressões de recusa ou aceitação, embalar-se nas culturas de suas origens
étnicas – sertaneja e afrobaiana –, as quais, convivendo com ideologias de época e seus
desdobramentos estéticos, sempre estiveram presentes em sua criação. Pode-se dizer,
inclusive, que a música de Lindembergue Cardoso já sintomatiza os problemas advindos
da globalização e sintoniza-se nas tendências estéticas pós-modernas instituídas a partir
dos anos 1990, quando inovação e originalidade já não são palavras de ordem, e o olhar
voltado para o passado, com a retomada de modelos da tradição, é encorajado. Se, de
um lado, pode-se reconhecer na arte de Lindembergue Cardoso a resistência à globalização
pela recorrência, cada vez maior, às identidades locais, de outro lado, nela verificam-se
também a pluralização de referenciais e a descentralização de sistemas e procedimentos
composicionais, aspectos que integram a ideologia pós-moderna.
No que diz respeito à pregnância de brasilidade, se há pontos de contato entre
as concepções do libretista e do compositor (adoção de regionalismos e vernáculo), também se pode detectar a diferença. Se no libreto, como ressalta seu autor, a grande tragédia
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representada é “o abismo de identidade dos personagens, que se agrava após a abolição”
(cf. Bahia Hoje, 1995), a música de Lindembergue Cardoso, certamente, reflete outra
realidade, que se refere ao contexto sócio-histórico da época em que foi concebida, ou
seja, a grande virada de identidade cultural que se reconhece na Bahia contemporânea: a
de que o colonizado, finalmente, colonizou o colonizador.
Exemplo 19. Ária de Lídia (trecho).
Referências bibliográficas
“Começam os ensaios da ópera”. Bahia Hoje, Caderno A, capa, 24 de maio de 1995.
“Dança é diferencial na ópera Lídia de Oxum”. Bahia Hoje, 8 de maio de 1996.
“Salvador monta primeira ópera negra do Brasil”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, capa, 20
de abril de 1995.
Tavares, Ildásio. “A ópera é dos operários”. Tribuna da Bahia, Caderno 2, p. 5, 4 de julho
de 1995.
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Dulcineia e Trancoso – uma ópera armorial
Eli-Eri Moura
Universidade Federal da Paraíba
A ópera Dulcineia e Trancoso, com música de minha autoria e libreto de W. J.
Solha,1 foi estreada no dia 18 de dezembro de 2009, no Teatro de Santa Isabel, na cidade
do Recife, Pernambuco. Composta durante o período exato de três meses, de 9 de setembro
a 9 de dezembro de 2009, a obra foi comissionada por Ana Lúcia Altino e Rafael Garcia
(casal a quem é dedicada) para ser apresentada durante o XII Virtuosi Festival Internacional
de Música, evento tradicional dirigido pela mesma dupla, que ocorre todo mês de dezembro em Pernambuco. A estreia contou com um elenco de solistas de primeira grandeza,
interpretando os oito personagens do drama: Gabriella Pace, soprano (Dulcineia); André
Vidal, tenor (Trancoso); Felipe Oliveira, barítono (Dono do Circo); Sávio Sperandio, baixo
(Cervantes); Flávio Leite, tenor (Ariano); Saulo Javan, barítono (Bozo); e Adriana Clis, mezzo
(A Morte e A Compadecida). A direção musical coube ao maestro Rafael Garcia, que regeu
a Orquestra Jovem de Pernambuco (com um setup instrumental modesto, em função do
tamanho do fosso do Teatro de Santa Isabel2) e um coro local de vinte vozes (SCTB), especialmente formado para a ocasião. Ainda participaram do projeto seis bailarinos dirigidos
por Maria Paula Costa Rego. A direção cênica ficou a cargo de Luiz Carlos Vasconcelos e o
cenário virtual (criado através de projeções e animações) a cargo de Marcelo Garcia. Em
virtude da exiguidade do tempo para compor a obra, a orquestração foi dividida entre
mim e meus colegas compositores Marcílio Onofre e Carlos Anísio.
O dado curioso inicial, relacionado à composição de Dulcineia e Trancoso, diz
respeito à natureza da encomenda: “escrever a primeira ópera armorial”. A ideia surgiu,
na verdade, a partir do sucesso de outro projeto armorial – o Concerto Duplo Armorialis
para viola, violoncelo e orquestra, também comissionado a mim pelos diretores do Festival
Virtuosi, para um concerto comemorativo dos 80 anos do escritor paraibano Ariano Suassuna, em dezembro de 2007. O que achei intrigante foi o fato de me requererem obras
em linguagens e estilos aos quais nunca me dediquei na realidade, a não ser em eventuais
projetos de música incidental para teatro e filme. No entanto, mesmo devoto da chamada
música contemporânea de concerto, dois fatores me levaram a aceitar o desafio. Primeiro,
a música associada ao Movimento Armorial sempre esteve em meus ouvidos, seja através
das manifestações folclóricas que a inspiraram, uma vez que fui criado em uma cidade do
interior do Nordeste (Campina Grande, na Paraíba), seja através do contato próximo com
os principais protagonistas dessa música, como o renomado Quinteto Armorial,3 que atuou
no Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), on...........................................................................
1
Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941) é escritor, poeta, dramaturgo, ator e artista plástico. Reside na Paraíba
desde 1962. Autor de livros como Israel Rêmora, A Verdadeira Estória de Jesus, A Batalha de Oliveiros e História
Universal da Angústia, já ganhou numerosas distinções, dentre as quais o Prêmio João Cabral de Melo Neto
(2005) e o Prêmio Graciliano Ramos (2006). Em 2006 foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tive a honra de
dividir com Solha, que considero um dos maiores escritores brasileiros da atualidade, mais de dez parcerias em
peças de teatro e musicais.
2
Duas flautas (segunda flauta dobrando flautim), um oboé, dois clarinetes (segundo clarinete dobrando clarone),
um fagote, duas trompas, um trompete, um trombone, uma tuba, dois percussionistas, piano, cordas (mínimo:
quatro primeiros violinos, quatro segundos violinos, três violas, três violoncelos e dois contrabaixos).
3
Em especial, seus integrantes Antônio José Madureira, Antônio Nóbrega (com quem estudei violino ainda garoto), Fernando Barbosa, Edílson Eulálio e Fernando Pintassilgo.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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de fui aluno, no final da década de 1970. Segundo, sempre foi minha crença que todo
compositor deve desenvolver seu métier dominando uma frente ampla de linguagens,
mesmo que só a título de exercício composicional. Reforça meu pensamento o fato de
vivermos atualmente uma realidade de imensa diversidade de mídias que exigem linguagens musicais muito específicas – do jingle publicitário à música acusmática, da música
incidental à música abstrata –, uma realidade que força o compositor a desenvolver muitas
vezes o que chamo de camaleonismo composicional, necessário para atender as mais
diversas demandas do mercado.
Quanto a ser a “primeira ópera armorial”, essa é uma questão em aberto, evidentemente. Sabe-se que em 11 de maio de 1961, o compositor paraibano José Siqueira
(1907–1985) estreou a sua ópera A Compadecida (1959), sobre a peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Escrita onze anos
antes da articulação do Movimento Armorial, A Compadecida (de acordo com relatos de
quem viu a partitura, ainda não publicada, no acervo particular da família do compositor)
é típica da linguagem folclorista de José Siqueira, utilizando-se de temas extraídos diretamente da música nordestina para caracterizar seus personagens – um traço que a distancia, em parte, dos ideais armoriais.4 Sendo a primeira ópera armorial ou não, Dulcineia
e Trancoso causou impacto em virtude de um contexto específico de tempo e espaço,
conforme a visão do crítico musical Carlos Eduardo Amaral.
A estreia de Dulcineia e Trancoso […] não constituiu um marco despercebido
nas artes pernambucanas tão somente pelo fato de ter sido a primeira ópera escrita a partir das diretrizes do Movimento Armorial (ainda que tenha saudavelmente evitado a linha estética arraigada pelos grupos musicais armoriais dos
anos 1970), mas sobretudo por ter sido a primeira ópera composta para ser encenada no Teatro de Santa Isabel desde o final do século XIX, quando Euclides
Fonseca (1854–1929) deu importantes contribuições para o gênero em Pernambuco. Dulcineia e Trancoso […] também fez história por se tornar a segunda
ópera brasileira contemporânea apresentada no Recife, depois de O Cientista,
de Sílvio Barbato […], em 2007. (Amaral, 2010, p. 33)
Tendo Ariano Suassuna como seu maior articulador, o Movimento Armorial foi
inaugurado em 18 de outubro de 1970, com a realização de um concerto e de uma exposição de artes plásticas, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife. No que diz respeito
especificamente à arte musical, seu cânon central foi a criação de uma música de concerto
“erudita popular nordestina”. O próprio Ariano dizia estar à “procura de uma composição
nordestina renovadora, de uma música erudita brasileira de raízes populares, de um som
brasileiro, criado para um conjunto de câmera, apto a tocar a música europeia, é claro –
principalmente a ibérica mais antiga, tão importante para nós, mas principalmente apto
a expressar o que a cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu” (Suassuna, 1974). Já em 1951, Ariano discutia sobre os caminhos, relacionados de alguma forma
à música popular, que os compositores poderiam explorar.
Partindo da simples imitação das formas populares, passará ela por uma fase de
transposições, para chegar finalmente à recriação, sua forma mais alta. A imitação
é, no caso, o campo do compositor popular; e a transposição o de uma espécie
...........................................................................
4
Durante 45 anos, até a encenação de O Cientista, de Sílvio Barbato (1959–2009), em 2006, A Compadecida
deteve o “título” de última ópera a ser criada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e a última em português
ali encenada, até Dom Casmurro (criada em São Paulo), do compositor Ronaldo Miranda, na década de 1980.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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intermediária, importantíssima para a criação de uma música nacional. (Suassuna, 1951, p. 44-45)
Esses princípios são muito próximos aos da música nacionalista orientada por
Mário de Andrade, que já na Semana de Arte Moderna de 1922 propôs estágios para a
criação de uma linguagem musical simultaneamente brasileira e moderna, implicando
em diferentes tipos de recontextualização da música popular – desde a adoção fiel de
melodias folclóricas até uma música refletindo o inconsciente nacional, aquela que seria
verdadeiramente nacionalista em espírito (caso da música de Villa-Lobos). O compositor
potiguar Antonio José Madureira, que veio a se tornar um dos ícones da música armorial,
aponta, no entanto, diferenças com o movimento defendido por Suassuna.
Na música, Ariano Suassuna teve um papel muito importante, porque, para mim,
mostrou qual a diferença da música erudita do movimento nacionalista e o que
seria uma música erudita partindo das raízes populares do Nordeste. A nacionalista parte de uma estrutura já estabelecida, europeia, levando elementos da
cultura popular. A armorial é o inverso: mergulha na música autêntica do Nordeste e traz alguns elementos da cultura erudita para si. (apud Nóbrega, 2007)
Ademais, nota-se na práxis musical armorial traços que a caracterizam de forma
marcante e a distanciam do movimento nacionalista anterior, dentre eles: uma abordagem
timbrística diferenciada, através da inclusão de novas sonoridades rústicas, primitivas,
ásperas, que trouxe para a sala de concerto instrumentos da tradição popular (rabeca,
viola de arame, marimba, pífanos etc.); a ênfase na relação com a cantoria de viola, o cavalo marinho, o maracatu e outros folguedos típicos do Nordeste, em especial, dos estados
de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte; o uso de supostos elementos da
música antiga (medieval, renascentista e barroca) da Península Ibérica; a aplicação de
determinados procedimentos, desenvolvidos principalmente por Antonio José Madureira
(que, a meu ver, tornaram-se clichês do movimento), como a recorrência de pequenos
fragmentos melódicos, a citação e gradual transformação de temas de cunho folclórico, e
o uso bastante particular dos modos nordestinos, resultando muitas vezes em uma música
cíclica e até certo ponto estática. Tais traços são bem nítidos na música de Antonio José
Madureira, em especial a interpretada pelo Quinteto Armorial, liderado por ele, e de
outros compositores do movimento, como Cussy de Almeida, Clóvis Pereira, Antonio Nóbrega, Capiba e Jarbas Maciel, dentre outros, além de nomes mais recentes, como o do
potiguar Danilo Guanais.
Os dois primeiros traços citados e em especial o depoimento de Antonio José
Madureira me conduzem a uma pequena reflexão: a de que no patamar da música contemporânea de concerto, mesmo em uma esfera distinta de linguagem musical, também
tenho aplicado princípios que tangenciam alguns dos pressupostos da música armorial.
Minha pesquisa composicional nesse patamar tem visado desenvolver uma linguagem
baseada em novas relações entre a chamada música de concerto e elementos etnomusicais
brasileiros, buscando alternativas para a produção de uma música que seja regionalmente
contextualizada, mas que transcenda os ideais da chamada música nacionalista – aquela
que, baseada numa estética apregoada por Mário de Andrade, é emblemática de grande
parte da produção brasileira nos séculos XX e XXI. A busca de alternativas se dá na abordagem das relações em si entre o contextual e o estrutural. Em outras palavras, na interação
entre referências culturais e sistemas composicionais abstratos. Sob meu ponto de vista,
em muito da música que emprega elementos regionais, estes são sugados pelo sistema.
Em vários casos, o sistema concerne práticas harmônicas já estabelecidas, apenas ajustadas
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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para abrigar as referências culturais. Dessa forma, o sistema, incorporando o conjunto de
normatizações, convenções e relações, corporifica o todo, e, assim, tem primazia sobre a
cultura. Consequentemente, o todo, ao ser operacionalizado, não se desintegra, se mantém
estável; e atributos musicais, como coesão, consistência, unidade (próprios de sistemas
baseados principalmente na tonalidade), sobrepõem-se sobre as idiossincrasias culturais
como os fatores qualitativos do discurso. Como resultado, os elementos culturais tendem
a ficar na superfície da música, estratificados nos parâmetros das alturas e do ritmo, muitas
vezes gerando apenas um caráter exótico. Achando, pessoalmente, esse caminho já
exaurido (ao menos, no patamar citado), tenho procurado a direção oposta: implementar
a cultura como ponto de partida, de tal forma que sistemas composicionais emerjam sinergicamente a partir dos elementos etnomusicais. Nesse contexto, os ingredientes culturais devem estar na base, no início do processo composicional, influenciando a escolha
da matéria prima, dos procedimentos e das estruturas, e funcionando como um fator
causal. Grosso modo, a cultura deverá formar o ambiente, e rotinas sistêmicas devem
emergir em função dela. Nessa abordagem, as referências culturais corporificam o todo e
este, ao ser operacionalizado, mantém-se consistente, perene, enquanto o sistema composicional torna-se aberto, flexível, passível de transformações. Associada a esse propósito
há a ideia de que uma profunda interação com elementos de uma cultura musical local
ocorra de forma estrutural, envolvendo não apenas alturas e ritmos, mas também outros
parâmetros, a exemplo de timbre, textura, densidade e registro, como elementos constitutivos do cosmos composicional. O processo composicional que chamo de Desfragmentação é um modelo catalisador dessas ideias, e aparece em peças como Circumsonantis para quarteto de cordas, baseada na capoeira, e Noite dos Tambores Silenciosos
para orquestra sinfônica, baseada no maracatu de Pernambuco.
O libreto de Dulcineia e Trancoso sintetiza – como uma grande homenagem – o
universo ficcional do mentor intelectual do Movimento Armorial, Ariano Suassuna. Solha
(2010) diz que “como a ideia era a criação de uma ópera armorial, a primeira coisa que
me ocorreu foi pensar numa história a partir do romance A Pedra do Reino, do Ariano,
considerada por ele mesmo como sua obra mais importante”. No libreto, o autor desdobra
as ideias do escritor paraibano e “abre” a Pedra do Reino (que não ocorre no romance),
revelando a catedral que conteria o Rei Dom Sebastião.5 O libretista organiza o enredo em
um único ato, dividido em dez cenas, criando diversas situações e plots sobrepostos.
Sabendo que a arte circense é uma das paixões de Ariano, ele parte da ideia de que tudo,
na verdade, é um espetáculo de um circo fantástico, mágico, presidido pelo seu Dono,
conforme descrição a seguir.
Cena 1 – Dono do Circo, Ariano e Cervantes
Com a Pedra do Reino ao fundo, o espetáculo é aberto pelo Dono do Circo,
“uma espécie de Deus, espécie de Lux in Tenebris no mau sentido”, segundo Solha (2009,
p. 3). Na história do picadeiro surgem dois profetas: o próprio Ariano Suassuna e seu ídolo, Miguel de Cervantes Saavedra. Os dois profetizam (cada um cantando em sua própria
...........................................................................
5
Sabe-se que o jovem rei português foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578, em uma
cruzada cristã. Desde então, transformou-se em personagem de uma lenda em Portugal, segundo a qual ele
teria sido alçado aos céus durante a citada batalha para um dia voltar como redentor, a fim de instaurar o Quinto
Império (de justiça e fartura) contra os espanhóis. Séculos depois, na década de 1830, no Brasil, ocorrem manifestações coletivas de um messianismo associado ao rei português, rotuladas de sebastianismo, precisamente
em São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, a 470 quilômetros do Recife, onde duas rochas conhecidas
como Pedra Bonita erguem-se a 30 e 33 metros respectivamente. Em 1836, João Antônio dos Santos prega que
Dom Sebastião está encantado na Pedra Bonita e precisa ser libertado para implantar um reino de prosperidade
e liberdade. Dois anos depois, seu cunhado João Ferreira se autointitula rei e proclama que a Pedra só se desencantaria quando lavada com sangue, o que foi feito com sacrifícios humanos. O massacre da Pedra do Reino
ocorreu entre 14 e 16 de maio de 1838, matando 53 pessoas, incluindo mulheres e crianças.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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língua) que dez dragões virão destruir a Pedra num banho de sangue, o que fará acontecer
o milagre: a Pedra se abrirá para surgir de dentro dela uma catedral grandiosa e Dom Sebastião acompanhado de sua corte (reis, rainhas e príncipes... dos maracatus). O Dono do
Circo ainda esclarece: os dragões são, na verdade, retroescavadeiras.
Cena 2 – Trancoso e Bozo
O Dono do Circo apresenta Trancoso (um ator que interpreta Dom Pixote) e Bozo (outro ator que interpreta São Chupança), os quais comentam sobre a profecia. Nas
palavras de Solha:
Ah, claro que nesse circo fabuloso em que Cervantes nos visita, não poderia faltar a imensa figura de seu superstar Dom Quixote, aqui, na verdade, Pixote,
dançando um xote, acompanhado pelo indefectível Sancho Pança, na verdade
São Chupança. Tal Quixote-Pixote, no entanto, não poderia limitar sua referência
à Espanha, daí que nosso herói não é mais do que uma performance do ator
Trancoso, nome que nos remete a Gonçalo Fernandes Trancoso, o pioneiro da
contística lusitana, célebre por suas estórias fantasiosas, donde o rótulo de História de Trancoso para todo relato de sertanejo, que não passe de flagrante
mentira, como toda esta ópera. (Solha, 2009, p. 3)
Cena 3 – A Morte
O Dono do Circo apresenta a vilã, A Morte, cuja missão é destruir a Pedra para acabar com o fanatismo. Trancoso sonha com Dulcineia. A Morte avisa: vai dinamitar a Pedra do Reino e desmantelá-la com suas escavadeiras sombrias. O Coro do Povo responde
com fé.
Cena 4 – A Compadecida
Ocorre uma revelação a Trancoso, que Solha descreve:
[…] e eis que Trancoso, em lugar de botar na cabeça a bacia de barbeiro (que é o
elmo de Quixote), põe, por engano, o chapéu de Lampião, com o que imediatamente entra em transe […] e o que vê e vemos com ele? A fabulosa Pedra se
abrindo, revelando a maravilhosa Catedral que há dentro dela, da qual saem a
Compadecida e seu coro de anjos para falar com nosso ator. E o que ela quer
com ele? Que lidere o povo contra a Morte e suas tropas [levando-o para proteger
a Pedra], prometendo-lhe, em troca, Dulcineia! (Solha, 2009, p. 3)
Cena 5 – Dulcineia
Ariano e Cervantes entram com Dulcineia, que se pergunta por que foi a escolhida. Para ser desviada de seus pensamentos acerca de seu futuro sombrio, Dulcineia é
distraída com um Frevo.
Cena 6 – Encontro de Dulcineia e Trancoso
Trancoso e Dulcineia finalmente se encontram. Solha (2009, p. 3): “Não há dúvida
de que o encontro dos dois é uma tremenda maldade criadora de Ariano para o Dono do
Circo, pois o casal é logo levado à Morte, a fim de que o sangue dos dois banhe a Pedra
que, finalmente, deve se escancarar para o Milagre”.
Cena 7 – Lampião e Maria Bonita
No meio da história, Cervantes tem um transe profético (a prefiguração da tragédia): Lampião e Maria Bonita (que são, na verdade, os modelos de Trancoso e Dulcineia)
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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atravessam de barco o rio São Francisco, onde cruzam com uma jazz-band que vem em
outra embarcação na direção oposta – há uma jam session no meio do São Francisco.
Poucos dias depois, Lampião e Maria Bonita são mortos e degolados na Grota dos Angicos.
Cena 8 - A batalha
Ocorre a batalha de Trancoso (liderando o povo) pela Pedra do Reino contra a
Morte, as dragas e as tropas – a batalha é perdida.
Cena 9 - O fuzilamento
No alto da Pedra surgem Trancoso e Dulcineia acorrentados como Prometeu.
Entre eles está Bozo, preso. O Dono do Circo anuncia o pelotão de fuzilamento. Bozo se
queixa – queria uma grande ária. Dulcineia e Trancoso proferem suas últimas palavras. O
fuzilamento é ordenado pela Morte. Trancoso, Dulcineia e Bozo morrem.
Cena 10 - A ressurreição
Finalmente, com o sangue de Trancoso, Dulcineia e Bozo, a Pedra do Reino se
abre, e de lá surgem três Bonecos de Olinda: Trancoso com a faixa “El Rei Dom Sebastião
Trancoso”; Dulcineia Primeira, como Rainha; e Bozo (um boneco pequeno) como Bufão,
dançando maracatu. Vão começar o reinado da grandiosa nação brasileira (e o ciclo
reinicia...).
Ressalte-se que, além da homenagem a Ariano, o enredo de Solha traz em seu
bojo um expressivo número de elementos que referenciam uma arte popular reverenciada
pelo próprio Ariano, uma poética que sempre impregnou o Movimento Armorial em geral:
a Literatura (ou Folheto) de Cordel, própria da Cantoria de Viola. Dentre tais elementos,
sobressaem o espírito profético, o universo mágico, fantástico, o componente épico e espetacular, o mito, a lenda, o messianismo, o herói, o sacrifício, o milagre, a efusão religiosa,
o humor e a tragédia.
No ambiente imaginário, irreal, apresentado pelo libreto de Solha, proponho
um universo sonoro em que culturas musicais distintas convivem, confrontam-se e se
fundem. E evidenciam traços característicos da tradição operística, referências da música
medieval-renascentista da Península Ibérica, e referências regionais – que incluem maracatu, frevo, cantoria de viola, xote, baião, caboclinhos, valsa, terno de pífanos etc. –
além de música circense. Há também uma carga de alusões musicais por trás da ópera –
concernente a estilos, não a obras específicas – que permeia compositores tão díspares
quanto Mozart, Verdi, Mahler, Del Tredici, Bernstein e Juan Del Encina, dentre outros,
num diálogo com o armorial. No que concerne os elementos armoriais em si, procurei
evitar o uso explícito de certos clichês melódico-harmônicos muito óbvios do Movimento.
O maior desafio, talvez, foi encontrar o equilíbrio entre esses elementos – incluindo as
referências folclóricas rurais nordestinas, a música secular medieval-renascentista, a música
circense – e a tradição lírica, cuja impostação vocal do bel canto foi respeitada. Não tentei
limar ou modificar esse aspecto para adequá-lo às características armoriais; pelo contrário,
procurei fazer com que ambos dialogassem para enriquecimento do próprio discurso narrativo e musical.
Minha solução foi articular formalmente o discurso criando uma colagem em
dois níveis, que amparasse simultaneamente seccionamento e continuidade. Em um nível
há a compartimentação sequencial e sobreposta dos conteúdos (de ordem primária, motívico-temática em especial), de acordo com determinados critérios de ordenamento e
recorrência. Em outro nível há o intercambiamento entre tais conteúdos e diversas caracterizações, gerando, inclusive, mutações nos primeiros. O objetivo desse intercambiamento
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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foi criar uma teia pré-composicional, na qual fosse possível combinar e recombinar, entre
os conteúdos, múltiplas funções e qualidades, tais como: tipos de música (de cunho folclórico, com evocação de música antiga, com evocação de música circense, de tradição
lírica); desdobramento da narrativa (por meio de diálogos, de descrições, de reflexões);
contorno dramático-musical (para implementar estabilidade, flutuação tensional, instabilidade); articulação discursiva (através de falas, árias [duetos, trios...], segmentos vocais
vários, inserções orquestrais, quasi-recitativos); elaboração musical (envolvendo simplicidade, complexidade) etc. Assim, um mesmo material temático e seu desenvolvimento,
ao mesmo tempo que mantivessem seus papéis tradicionais de implementação de coesão
linear e de agentes do discurso musical, poderiam, por exemplo, carregar em determinado
instante música de cunho folclórico, descritiva, estável, em dueto, envolvendo certo grau
de simplicidade e, em outro instante, poderiam carregar música de tradição lírica, reflexiva,
de flutuação tensional, num trio, envolvendo complexidade etc. Nesse contexto, evitouse a tipificação musical dos personagens (com exceção d’A Morte) e do coro, de tal forma
que os diversos materiais temáticos pudessem também intercambiar livremente entre
eles.
A ópera é governada por uma harmonia abertamente triádica, organizada sobre
uma plataforma tonal e outra modal, as quais se inter-relacionam. Na segunda plataforma
são usados os modos Lócrio, Frígio, Mixolídio (Nordestino), Lídio (Nordestino), Dórico
(Nordestino Menor) e de Tons Inteiros. Dentre os vários tipos de relações e caminhos tonais sedimentados (sobre os dois tipos de organização de alturas), três se destacam: por
terças (relações de mediantes cromáticas); por quartas; e de acordo com os graus (completos ou parciais) do modo Lócrio. Essas relações são projetadas tanto em larga escala,
estabelecendo as áreas e os centros tonais da ópera, quanto em pequena escala, definindo
as simples progressões tonais. A Figura 1 mostra um resumo das áreas tonais principais
distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso, destacando tais relações. Note-se que
certo grau de simetria reflexiva é aplicado ao desenho tonal, considerando as Cenas 5 e 6
como eixo central. As citadas relações também estão presentes nos grandes eixos tonais
da obra: 1) o centro tonal inicial e final de Lá em relação ao de Fá, no meio (terça); 2) o
centro Lá em relação ao de Mib, simetricamente localizado nas Cenas 3 e 8 (trítono da
“dominante” lócria); os centros Fá, Sib e Mib na segunda metade (quartas).
Figura 1. Áreas tonais principais distribuídas nas dez cenas de Dulcineia e Trancoso.
Naturalmente, num plano prático, tais relações são aplicadas visando criar passagens, tanto de larga quanto de pequena escala, com menor direcionamento (caso das
relações de mediante cromática) e com maior direcionamento e empuxo tonais (caso dos
caminhos por quartas), de acordo com as necessidades dos fluxos textuais e musicais.
Mas há também um uso até certo ponto simbólico, com a aplicação dos caminhos pautados
nos graus do modo Lócrio, em especial os que formam o intervalo de trítono (I e V graus
do modo) – como acontece na Cena 3 (dedicada ao personagem Morte), onde as áreas
tonais seguem as notas de um acorde diminuto, e na segunda metade da ópera (em que
a parte trágica do enredo é desencadeada), onde os grandes centros tonais (exceto Fá#)
seguem os graus de uma escala Lócria de Lá desordenada.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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A exemplo da colagem intercambiante de funções e estruturas que ocorre no
desenho formal, algumas interações acontecem também entre os elementos melódicoharmônicos. Por exemplo, a passagem tonal apresentada na Figura 2 (cantada pela
Compadecida, na Cena 4) tem em seu baixo e nas fundamentais dos acordes de sua
progressão harmônica uma escala completa (desordenada) do modo Frígio em Ré.
Figura 2. Trecho da Cena 4, cantado pela Compadecida. Pauta inferior mostra modo Frígio em Ré (desordenado).
Já a Figura 3 mostra uma passagem modal em Dórico (cantada pela Morte, na
Cena 3), compassos 137-146, sucedida por uma tonal que tem na melodia o modo Lócrio
em Ré, compassos 147 em diante.
Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
93
Figura 3. Trecho da Cena 3, cantado pela Morte (cont.).
Tais interações tiveram por propósito criar uma espécie de narrativa subliminar
harmônica capaz de carregar com fluidez e coerência tonais os distintos conteúdos
propostos no universo sonoro de Dulcineia e Trancoso.
Em última instância, os procedimentos e elementos de tal universo sonoro,
descritos aqui, objetivaram transcender, em parte, as práticas musicais mais desgastadas
do Movimento em questão, desenvolvidas ao longo das últimas décadas, mas sem perder
a essência do espírito Armorial.
Referências bibliográficas
Amaral, C. E. “Ópera Recifense”. Revista Continente. Recife, ano X, p. 33-35, maio, 2010.
Nóbrega, A. P. “A Música no Movimento Armorial”. In: Anais do XVII Congresso da
ANPPOM. São Paulo, 2007.
Solha, W. J. “Opera Dulcineia e Trancoso” (texto no programa de concertos do XII
Virtuosi Festival Internacional de Música). Recife, dezembro, 2009.
Solha, W. J. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<[email protected]> em 3 de agosto, 2010.
Suassuna, A. “Notas sobre a música de Capiba”. In: Ferreira, A. É de Tororó. Rio de
Janeiro, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951, p. 44-45.
Suassuna, A. “O Quinteto e o Movimento Armorial”. In: Quinteto Armorial – Do
Romance ao Galope Nordestino. Texto na contracapa do LP. Manaus: Sonopress Rimo
da Amazônia, Discos Marcus Pereira, 1974.
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Uma visão atual da ópera no Brasil:
procedimentos cênico-musicais
em Dom Casmurro e n’A Tempestade
Ronaldo Miranda
Universidade de São Paulo
A ópera brasileira, em termos de criação musical, teve o seu momento de maior
esplendor na segunda metade do século XIX, com a produção de Antônio Carlos Gomes
(Campinas, 1836 – Belém, 1896), compositor que foi sem dúvida o maior operista do continente americano.
O autor de Lo Schiavo, Il Guarany e Colombo, contudo, constituiu-se num fenômeno relativamente isolado e sem continuidade. Os grandes compositores que o sucederam não se dedicaram com a mesma intensidade ao gênero lírico, preferindo abordar
outras formas de expressão musical e muito raramente se aventurando no terreno da
ópera. Essa constatação pode ser aplicada às figuras de Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno e Francisco Braga, este talvez o responsável pela mais importante obra do gênero,
na virada do século: a ópera Jupyra, composta no ano de 1900, sobre libreto de Escragnolle
Doria, a partir de um argumento de Bernardo Guimarães.
Glauco Velásquez deixou inacabada sua ópera Soeur Béatrice, a partir da peça
de Maurice Maeterlinck, o dramaturgo belga eleito por Claude Debussy em sua incursão
no gênero lírico, através de Pelléas et Mélisande.
Em pleno século XX, nosso esfuziante Francisco Mignone não negou suas origens
italianas, mas percorreu um caminho bastante irregular entre sua primeira ópera, O Contratador de Diamantes, de 1921, e a última, O Sargento de Milícias, composta em 1978.
No ano de 1928, a segunda ópera de Mignone, L’Innocente, que teve libreto em
italiano – tal como a primeira –, despertou controvérsias profundas entre os críticos brasileiros. Luiz Heitor Correa de Azevedo considerou-a “verdadeiramente notável e marcante”
(Azevedo, 1938), mas Mário de Andrade foi ríspido e nada condescendente com a obra e
com o autor, que, nessa época, tinha apenas 31 anos de idade. Concentrando-se no distanciamento que esta ópera mantinha em relação a um contexto musical brasileiro, Mário
de Andrade escreveu:
É muito doloroso, no momento decisivo de normalização étnica em que estamos,
ver um artista nacional se perder em tentativas inúteis. Porque em música italiana, Francisco Mignone será apenas mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa, que ele não aumenta […] O Inocente pertence à Itália. A música brasileira fica na mesma, antes e depois dessa ópera. (Andrade, 1976)
Quarenta e oito anos se passaram até que Mignone escrevesse sua terceira ópera,
O Chalaça, com libreto de Mello Nóbrega, finalmente em língua portuguesa. Concebida
em apenas um ato, O Chalaça estreou na Sala Cecília Meireles em 1976, com regência de
Mário Tavares e direção de Osvaldo Loureiro. Cantores favoritos do compositor, Paulo
Fortes e Glória Queiroz viveram os papéis principais, representando respectivamente o
personagem título, o Chalaça, e Domitila, a Marquesa de Santos.
Em bela crítica no Jornal do Brasil, Edino Krieger saudou favoravelmente o novo
trabalho de Mignone, considerando-o uma obra “leve, mas consistente, que se mantém
de pé tanto musicalmente quanto cenicamente, da primeira à última nota” (Krieger, 1989).
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Figura polêmica, de talento arrebatador, nosso grande Heitor Villa-Lobos fez
algumas incursões no gênero lírico, mas não foi nesse terreno que obteve o sucesso retumbante, que o coloca hoje entre os compositores mais destacados do século XX. Sua
ópera mais importante talvez tenha sido Yerma, composta em Paris entre os anos de
1955 e 1956, a partir da peça homônima de Federico Garcia Lorca. Ouvida pela primeira
vez após a morte do autor, no ano de 1971, na Ópera de Santa Fé, Yerma chegou ao Brasil
em 1983, em encenação de Adolfo Celi, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O espetáculo foi saudado por Luiz Paulo Horta, no Jornal do Brasil, com uma boa crítica, ressalvando-se porém a constatação de um certo clima “monocórdio”, que se instala sobretudo no primeiro ato (Horta, 1989). Outros trabalhos villalobianos no gênero operístico
são Izath, A Menina das Nuvens e Magdalena, esta última estreada em Los Angeles, no
ano de 1948, com direção cênica de Jules Dassin.
Entre o Malazarte de Oscar Lorenzo Fernandez e o Pedro Malazarte de Mozart
Camargo Guarnieri, a ópera brasileira foi pouco ouvida na primeira metade do século XX. Camargo voltou ao gênero no ano de 1960, trocando a comédia pelo drama. Compôs Um
Homem Só, belo drama lírico em um ato, a partir de um libreto de Gianfrancesco Guarnieri.
O espetáculo de estreia foi dirigido por Ziembinski, voltando à cena, em 1976, numa nova
versão encenada por Gianni Ratto.
Entre as experiências mais recentes, na criação operística nacional, vale citar
Balada para Matraga, composta em 1985 pelo compositor Rufo Herrera, argentino radicado em Minas Gerais, a partir do original de Guimarães Rosa, A Hora e a Vez de Augusto
Matraga; Maroquinhas Fru-Fru, escrita em 1976 por Ernst Mahle, alemão radicado em
Piracicaba, a partir da peça homônima de Maria Clara Machado; A Peste e o Intrigante,
ópera infantil de Mário Ficarelli, baseada em Monteiro Lobato e destinada, em 1986, aos
alunos do Conservatório de Tatuí; e Qorpo Santo, de Jorge Antunes, estreada em Brasília
no ano de 1983, com uma visão do compositor sobre a vida do dramaturgo gaúcho José
Joaquim de Campos Leão, o Qorpo Santo.
Na década de 80, duas compositoras – Jocy de Oliveira e Cirlei de Hollanda – entram em cena nesse processo de consolidação de uma nova linguagem para a ópera no
Brasil. Jocy de Oliveira estreou em 1987, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
sua ópera Fata Morgana, contando apenas com a meio-soprano Ana Maria Kiefer e o
violinista Ayrton Pinto, mas utilizando uma variada gama de recursos visuais. Essa característica de projetar na ópera um espetáculo de perfil multimedia permaneceu em todas
as suas criações subsequentes do gênero. No ano de 1989, Cirlei de Hollanda foi a responsável pelo espetáculo inaugural do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro: sua
ópera Judas em Sábado de Aleluia transpôs para o gênero lírico, com agilidade e competência, o universo teatral de Martins Penna.
No apagar das luzes do século XX, precisamente em 1998, estreia Alma, ópera
que Cláudio Santoro concluiu em Teresópolis, no ano de 1985. Baseada em Os Condenados,
de Oswald de Andrade, Alma só foi encenada nove anos após a morte do grande compositor amazonense, em Brasília, em 1989.
No ano 2000, João Guilherme Ripper recebe de André Heller, no Rio de Janeiro
e em São Paulo, a primeira encenação de uma ópera de sua autoria: Domitila. Concentrada
em um ato e contando apenas com uma soprano, um pianista, um clarinetista e um violoncelista, esta ópera foi a segunda escrita por Ripper, que antes abordou também A Hora
e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em obra ainda inédita.
Foi, contudo, no ano de 2003, no pequeno teatro do Centro Cultural Banco do
Brasil em São Paulo, que João Guilherme Ripper apresentou sua mais bem sucedida incursão no gênero lírico: a ópera O Anjo Negro. Contando com um valoroso elenco e um
pequeno conjunto instrumental, com regência de Abel Rocha e direção cênica de André
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Heller, O Anjo Negro mostrou plenamente a poderosa força dramática do compositor,
transformando a peça homônima de Nelson Rodrigues numa grande ópera.
O ano de 2006 marcou a estreia de Olga, de Jorge Antunes, sobre libreto de Gerson Valle. Preparada ao longo de muitos anos, essa densa e eclética criação de Antunes
ganhou vida cênica pelas mãos de William Pereira, responsável pela bela montagem desta
ópera no Teatro Municipal de São Paulo.
É nesse contexto que se inserem minhas duas óperas – Dom Casmurro e A Tempestade, ambas encenadas em São Paulo. Dom Casmurro foi escrita a partir da Bolsa
Vitae de Artes, entre os anos de 1988 e 1992, quando ocorreu sua estreia no Teatro Municipal paulistano. A Tempestade foi composta, no tempo recorde de oito meses, por encomenda da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, estreando em setembro de 2006 no
Teatro São Pedro.
A origem de Dom Casmurro remonta, na verdade, ao ano de 1976, quando eu
concluía meu Curso de Graduação em Composição na Escola de Música da UFRJ. Apresentei
nessa época alguns esboços do primeiro ato, como meu trabalho final de composição em
música dramática, já contando com a colaboração do libretista Orlando Codá. Esse trabalho
inicial, porém, resultou apenas numa abordagem juvenil do romance machadiano. Foi
preciso esperar 12 anos, de 1976 a 1988, para que o projeto ganhasse substância dramática
e musical, encontrando uma realidade possível a partir da Bolsa Vitae. Quando obtive a
bolsa, a partir de 1988, libreto e partitura foram reformulados e concluídos num período
de quatro anos: o libretista Orlando Codá atuou comigo nos primeiros 12 meses e em seguida trabalhei praticamente sozinho nos três últimos anos, face às dimensões gigantescas
dessa ópera de três atos, com música de duas horas e quinze minutos de duração,
consubstanciada numa partitura orquestral de quase mil páginas.
O primeiro problema enfrentado foi comprovar o caráter operístico de Dom
Casmurro. Nesse sentido, encontrei defensores ardorosos em Maria Augusta Wurthmann
Ribeiro, com sua dissertação de Mestrado, de 1981, na ECA/USP, orientada pelo prof. Jacó
Guinsburg (Ribeiro, 1981), bem como no teórico americano Herbert Lindenberger, que
conclui o capítulo “Ópera em romances” de seu livro Opera – the extravagant art com um
epílogo intitulado “A ‘Opera Mundi’ de Dom Casmurro”, ressaltando o tom operístico do
livro de Machado de Assis (Lindenberger, 1984). Tais autores reforçam minha ideia de que
Dom Casmurro é um romance não só teatralizável como totalmente adequado ao gênero
lírico. O aspecto descritivo e a densidade psicológica da narrativa não chegam a inviabilizar
os fortes componentes dramáticos da obra, que se identificam por completo com o universo operístico: um triângulo amoroso, uma suspeita de traição, uma paixão avassaladora
(que atravessa obstáculos para que o amor se consuma), intrigas familiares e um final
totalmente infeliz.
A teatralização do romance Dom Casmurro, através da ópera, foi objeto de minha
tese de Doutorado na ECA/USP, desenvolvida entre os anos de 1992 e 1997, sob a orientação de Eudinyr Fraga. Várias questões referentes às relações entre ópera e literatura foram levantadas nesse trabalho (Miranda, 1997).
Transpor uma obra de arte de um gênero para outro não é tarefa fácil. E, quase
sempre, quem se arrisca a fazer uma adaptação – principalmente quando se trata de
adaptar um consagrado título literário – arrisca-se a ser alvo de críticas e a ter o seu trabalho comparado (e diminuído) em relação ao original abordado. No entanto, se efetivamente a maioria das adaptações são inferiores aos seus originais, há também honrosas
exceções, mormente no gênero lírico, onde encontramos transposições que podem ser
consideradas artisticamente equivalentes à matriz adaptada ou, até mesmo, superiores,
em casos de flagrante desnível do romance ou da peça de teatro original.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Um belo caso de equivalência, por exemplo, pode ser exemplificado com o Otelo,
de Verdi, sobre libreto de Arrigo Boito, se comparado ao Otelo original de William Shakespeare. Joseph Kermann, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, ressalta a
habilidade de Boito, ao suprimir e deslocar – em seu libreto – várias cenas do original shakespeareano (Kermann, 1988). Kermann assinala que, ao contrário de Pelleas et Mélisande,
de Debussy – ópera que, segundo ele, segue quase ipsis verbis, e com eficiência, o texto
de Maurice Maeterlinck – o Otelo, de Verdi e Boito, não se prende à peça original: a forma
da ópera não é a de sua matriz teatral, a começar pela supressão do 1º ato pelo libretista,
que abre a 1ª cena do Otelo operístico com a Tempestade que inicia o 2º ato shakespeareano. Kermann observa que, nessa ópera, Shakespeare teve que se dobrar a uma
bela concepção do teatro musicado, em que compositor e libretista cristalizaram situações
emocionais com regularidade, em seções ou tableaux líricos (sem pausas nem interrupções), ficando a música à vontade para “contribuir de forma mais forte e inequívoca
para o drama”.
Outra bela adaptação de Shakespeare para o palco, nos moldes de um musical
da Broadway, West Side Story transpôs o cenário de Romeu e Julieta da cidade de Verona
para a Nova York dos anos 50. O espetáculo teve quatro grandes autores: Jerome Robbins
(autor da ideia e da coreografia), Arthur Laurents (responsável pela adaptação teatral e
pelo texto falado), Stephen Sondheim (autor do texto cantado) e Leonard Bernstein (autor
da música). Segundo Joan Peyser, Arthur Laurents negou-se a escrever a letra das canções,
afirmando que “em nenhuma circunstância serviria como libretista para uma grande ópera
de Bernstein”. Em outras palavras, expressou sua veemente relutância em desempenhar
o papel secundário de um Boito para Verdi, “mesmo que isso pudesse resultar num Otelo”.
Em relação às óperas francamente superiores aos originais adaptados, podemos
citar a Carmem, de Bizet, com libreto de Meilhac e Halévy (muito mais reluzente do que a
novela de Prosper Mérimée em que se baseou), bem como La Bohème e Tosca, de Puccini
– ambas com libreto de Giacosa e Illica – a primeira composta a partir de um livro bem
simples de Henry Muger (Scènes de la vie de Bohème) e a segunda baseada numa apagada
peça de Victorien Sardou (La Tosca).
Catherine Clément, com sua linguagem poética e psicanalítica, enaltece as duas
óperas de Puccini, que possuem atmosferas bastante diversas. Em seu livro, A ópera ou a
derrota das mulheres, dedica um capítulo à Tosca, com o subtítulo de Os pés ligeiros da
paixão. Eis um de seus comentários:
Tosca, a vertigem. A vertigem de uma voz a quem acontecem coisas de ópera
em uma ópera. Uma única voz de mulher, pressionada pelos homens, Tosca ou
a corrida louca do canto e do ciúme, os pés ligeiros da paixão. Ela não para de
correr, de entrar, de sair, ofegante, apressada. E quando porventura ela não está
no palco sua voz de cantora enche o espaço de fora e tudo se imobiliza subitamente, ternamente, como se ela suspendesse por um tempo o drama político
e as intrigas dos homens que a cercam. (Clément, 1993)
Já em relação à La Bohème, a autora francesa destaca a inocência, o imobilismo
e a juventude. No subcapítulo que se intitula Pierrô lunar (numa comparação da figura de
Mimi com o Pierrot da canção francesa Au Clair de la lune), a escritora continua com seu
discurso poético:
[…] Momentos de calma: a ópera permite que o coração respire. La Bohème
passa da tristeza à alegria, da zombaria de caserna à emoção poderosa, da juventude que vive seus dias mais belos à angústia que vislumbra a velhice que
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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virá […] Puccini jamais deixa de ressaltar como a morte é cotidiana. Quando alguém morre, é um dia como qualquer outro […] É claro que uma mulher perde
a vida. Mas é como se ninguém tivesse culpa, como se nada houvesse, com esse
frio que congela todo mundo, e ao qual essa moça não resiste […] La Bohème é
a morte natural, a ausência total do drama cristão, o coração limpo para sempre
do que há de trágico no amor. (Clément, 1993)
Talvez a opinião mais sintética e precisa sobre essas duas óperas de Puccini seja
a do escritor inglês W. H. Auden, ele próprio um autor de libretos, além de ensaísta e crítico literário:
Considero La Bohème inferior à Tosca não porque a música seja menos bela,
mas porque os personagens, especialmente Mimi, são demasiadamente passivos:
há um hiato inábil entre a determinação com que os personagens cantam e a indeterminação com que agem. (Auden, 1993)
Sempre direto e perspicaz, Auden não se acanha em opinar que Rossini obteve
melhor resultado do que Mozart, ao adaptar para o gênero lírico o personagem Fígaro,
de Beaumarchais, citando a ópera mozartiana As Bodas de Fìgaro como uma das adaptações não tão bem sucedidas. Auden afirma, categoricamente:
Mozart é um compositor melhor do que Rossini, mas, a meu ver, o Fígaro de As
Bodas é menos satisfatório do que o Fígaro de O Barbeiro e a culpa, creio eu, cabe a Da Ponte, cujo Fígaro (conforme o libreto) é um personagem por demais
interessante para ser musicado, de modo que, ao lado do Fígaro que canta, sentimos a presença de um Fígaro que pensa com seus botões. O Barbeiro de Sevilha,
por outro lado, que não é propriamente uma pessoa mas um xereta musical,
encaixa-se perfeitamente na música, sem tirar nem por. (Auden, 1993)
Uma opinião que sintetiza com bastante propriedade essa questão das adaptações no gênero lírico é a de David Hamilton:
Comparar libretos de ópera, retirados de obras-primas da literatura ou do teatro,
com suas fontes (ressaltando frequentemente o desnível dessas adaptações) é
um exercício amado por críticos e acadêmicos. Na verdade, essas comparações
podem ter encorajado a máxima circunspecção observada por alguns compositores do século XX ao tornarem mais literais suas adaptações de originais
teatrais, considerando – entre outros títulos – Salomé e Electra, de Strauss, Pelléas,
de Debussy, e as óperas de Alban Berg. Essas comparações, contudo, implicam
que as fontes literárias (como voz narrativa e desenvolvimento) são transferíveis
para o palco musical, enquanto ignoram o potencial da música para criar, entre
outras coisas, modos alternativos de expressividade ou poderosas conexões entre
elementos da narrativa. (Hamilton, 1996)
David Hamilton conclui que, ao contrário dos críticos, o público não costuma
comparar as óperas com suas fontes literárias e, sim, comparar as óperas com outras
óperas. Para utilizar um modismo contemporâneo, musicar um texto é realmente transcriálo, ou seja, recriá-lo dentro de um código completamente diferente.
Foi dentro desse espírito, descrito por Hamilton, que me aventurei a adaptar
para a ópera o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Estava convencido do espíAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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rito operístico do romance machadiano e creio que consegui teatralizá-lo através da música,
contando com a preciosa colaboração do libretista Orlando Codá. A ação dramática está
dividida em três atos, com duração média de 45 minutos cada um. Tal como no livro de
Machado de Assis, o primeiro ato começa com Dom Casmurro narrando sua vida, já completamente solitário e metódico em sua triste velhice. O personagem apelidado Dom
Casmurro, cujo nome é Bento Santiago, torna-se, no decorrer da ópera, o narrador da história. Apenas na primeira e na última cena, ele é ele mesmo, em tempo real.
Em linhas gerais, o primeiro ato retrata a juventude de Bentinho (como era
chamado Bento Santiago pela família) e seu amor por Capitu, sua vizinha na rua de
Matacavalos. Sua mãe, Dona Glória, quer cumprir a promessa de mandá-lo ao Seminário.
A todo momento, o agregado da família, José Dias, uma espécie de preceptor de Bentinho,
lembra à Dona Glória sua promessa de fazer de seu filho um sacerdote. A família toda
participa desse contexto, inclusive Tio Cosme, Prima Justina e o Pai de Capitu, o Senhor
Pádua. Bentinho troca juras de amor com Capitu, prometendo-lhe que não vai ser padre,
mas ninguém consegue demover sua mãe do propósito. O primeiro ato termina com a
partida de Bentinho para o Seminário: toda a família reunida, muitos adeuses, muitas recomendações e, à parte, trocas juras de amor do jovem Bento com Capitu.
O segundo ato passa-se predominantemente no Seminário. Já o Prelúdio orquestral oscila entre um neorromantismo mahleriano e sugestões do modalismo gregoriano. Em cena aberta, a ambientação sonora prevê cânticos litúrgicos para coro masculino e para coro infantil, incluindo o tradicional Veni creator spitritus. É introduzido o
personagem de Escobar, amigo dileto de Bentinho. Desenvolve-se liricamente a amizade
dos dois jovens. Para quebrar o clima litúrgico e monocórdio do Seminário, Bentinho sonha com as francesas da rua do Ouvidor e o sonho se materializa em cena coral, projetada
com muita habilidade pelo libretista Orlando Codá. Há também a visita de Escobar à família de Bentinho, quando se introduz a personagem de Sancha, futura mulher de Escobar.
De volta ao Seminário, Bentinho, com a ajuda de Escobar, consegue convencer José Dias
a tirá-lo daquele lugar, propondo que Dona Glória ordene um substituto em seu lugar.
Pela primeira vez Bentinho vira o patrão de José Dias e o agregado acaba lhe obedecendo.
O ato termina com o casamento de Bentinho e Capitu, na mesma capela do Seminário.
Como sempre, Dom Casmurro, o narrador, pontua a história, reforçando a ação dramática,
fornecendo informações e preenchendo lacunas dos acontecimentos não encenados.
O terceiro ato se passa na Casa da Glória, de frente para o mar da Baía de Guanabara, onde vão morar Bentinho e Capitu depois de casados. Escobar, que também deixara
o Seminário e havia se casado com Sancha, visita sempre o casal. Aos poucos a presença
constante de Escobar vai despertando os ciúmes de Bentinho. Escobar morre afogado,
por ter insistido em nadar em dia de ressaca, com o mar bravio. Na véspera do afogamento,
há um dueto de bravura dos dois amigos, quando Bentinho tenta demover Escobar da
ideia perigosa de nadar em águas tão agitadas.
Ao descrever o enterro do amigo, Dom Casmurro lembra que Capitu olhava
para o corpo de Escobar com “olhos tristes de viúva”. Os ciúmes de Bentinho progressivamente aumentam. Por fim, nasce Ezequiel primeiro e único filho de Bentinho e Capitu
e, à medida que ele cresce, vai ficando cada vez mais parecido com a figura de Escobar.
Bentinho enlouquece de ciúmes e se separa de Capitu. Na briga final do casal, literalmente
a acusa de adultério, o que ela nega com veemência.
O final da história é contado por Dom Casmurro. Na penúltima cena, ele reencontra o filho, já adulto. Ezequiel chega da Europa e pede dinheiro ao pai para empreender
uma expedição arquelógica à Palestina. Bento Santiago vê, no filho adulto, a imagem exata do amigo Escobar. Eles se despedem. No recitativo final, Dom Casmurro narra laconicamente a morte de Ezequiel: “Não houve lepra, mas houve tifo. Ezequiel lá ficou. Foi
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enterrado na Terra Santa...” Constatando que está completamente só e que, pouco a pouco,
vai voltando à sua rotina de vida, ele termina exclamando: “Que a Terra lhes seja leve”.
A música que compus para Dom Casmurro procura alternar a linguagem, deixando em geral os procedimentos atonais para os recitativos do personagem título e as
cores do neotonalismo para os momentos líricos, as situações amorosas e as cenas familiares. Há quem tenha visto semelhanças com a textura do primeiro movimento das
Bachianas nº 5 de Villa-Lobos no arioso que Capitu canta, na Cena 5 do primeiro ato, ou
certa influência de George Gershwin no dueto de bravura que se segue entre o par romântico central da ópera. Já o maestro David Machado detinha-se em comentários sobre
a 4ª cena do segundo ato, de caráter estático e interiorizado. Segundo ele, a música ali
refletia um pouco da linguagem de Stravinsky e Alban Berg. Posso assegurar, no entanto,
que essas possíveis influências ou semelhanças não foram intencionais. Já as citações no
estilo de Richard Wagner, ao final do 2º ato e ao meio do terceiro, foram feitas propositalmente, para sublinhar a admiração textual de Machado de Assis pelo mestre de
Bayreuth. No próprio romance, Dom Casmurro narra sua noite de núpcias com imagens
da Primeira Epístola de São Pedro (sobre o casamento) e do Cântico dos Cânticos de Salomão, “como se música e texto houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de
Wagner” (Assis, 1988).
Em vista dessa observação, o libretista Orlando Codá reuniu, a meu pedido, pequenas citações dessas duas fontes (A Epístola de São Pedro e os Cânticos de Salomão) para
a cena final do segundo ato, que representa o casamento de Bentinho e Capitu. Tais textos
foram por mim musicados à maneira de Wagner, em uma grande seção musical, inserida
na parte central do Gloria in Excelsis Deo com que termino a música do segundo ato.
No decorrer do terceiro ato, procurei estabelecer através da música, uma forte
atmosfera de drama, paixão e angústia, que caracterizam os vários momentos da ação
dramática. Aqui não estamos mais no universo inocente e juvenil do primeiro ato, nem
no clima litúrgico, intimista e, por fim, exultante, do segundo ato. O terceiro ato de Dom
Casmurro caminha progressivamente para a tragédia: tal como no romance, o desfecho
trágico de repente se precipita.
Um dos recursos operísticos que projetei conscientemente foi dar a maior densidade dramática possível ao dueto de bravura entre Bentinho e Escobar, na véspera do
afogamento. Tendo no palco, respectivamente, um barítono e um tenor, lembrei-me – ao
compor esta cena – do exepcional dueto de Iago e Otelo, com a mesma formação vocal.
Não me lembrei, nem por um minuto, da música específica que Verdi criou para essa
situação, mas sim da força expressiva daquele momento. Acho que consegui a intensidade
pretendida, e acabei – talvez – imprimindo certo tom verdiano à textura musical que criei
para o dueto em questão.
Ainda no terreno da técnica composicional, os leitmotivs, ou motivos condutores, foram abundantemente por mim utilizados na criação de Dom Casmurro. Passam
das vozes para a orquestra, de um personagem para o outro, de uma para outra cena,
bem como percorrem diversas situações, acentuando um personagem ou uma ideia, bem
como deslocando-se de contexto, no decorrer da ação dramática. As árias, os duetos e os
ensembles nunca estão isolados, mas sempre inseridos, quase que ininterruptamente, na
sequência dos acontecimentos musicais.
A repercussão crítica de Dom Casmurro foi maior nos anos que se seguiram à
estreia da ópera do que propriamente no momento de sua apresentação. Zito Baptista
Filho, em sua coluna Discos Clássicos, de O Globo, assim saudou a primeira transmissão
radiofônica da ópera no Rio de Janeiro, em dezembro de 1992:
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A música de Ronaldo Miranda, já destacado por premiações em obras de piano
e câmara, tem as influências esperadas da arte italiana, francesa e alemã. Ela
cresce expressivamente de ato para ato. Um texto de Machado de Assis seria
impensável cantado em outro idioma. E o cuidado no trabalhar esse texto mostra
o quanto compositor e libretista respeitam e se encantam com a linguagem incomparável do escritor. (Baptista Filho, 1992)
Vera Lúcia Mello, produtora da Rádio Cultura FM de São Paulo e responsável
pelo programa Ópera Completa, ressaltou a questão do risco e da responsabilidade autoral
na questão da adaptação de romance tão festejado quanto Dom Casmurro. Eis parte do
seu depoimento, dois anos após a estreia da ópera:
Surpreendente transpor Dom Casmurro para o palco lírico! A riqueza da observação psicológica de Machado de Assis, sua lucidez e ironia, a qualidade literária de sua escrita em ópera! Cumprir tal tarefa hercúlea é um enorme desafio.
Para nós, brasileiros, só teria um paralelo na transposição de Otelo de Shakespeare por Boito e Verdi. Além das dificuldades implícitas à adaptação significa
também enfrentar preconceitos – por conservadorismo ou ousadia – o risco de
se expor à crítica por tocar no mito. (Melo, 1994)
O compositor e musicólogo Rodolfo Coelho de Souza, em extenso depoimento,
também escrito no ano de 1994, demonstra uma visão bastante pessoal da linguagem
musical de Dom Casmurro, afirmando:
No primeiro e segundo atos, melodias e harmonias mais tonais e transparentes,
com frequentes ressonâncias com elementos da tradição popular, facilitam ao
compositor desenhar o quadro social no qual se forja a personalidade do futuro
“Casmurro”. No segundo ato, já presenciamos certos recursos de modalismo,
que introduzem um estranhamento, certa volta a um exótico mais primitivo […]
e que sugerem um tipo de conflito psicológico regressivo no personagem. Esse
conflito desemboca coerentemente no terceiro ato, na paranoia acusatória e na
reclusão depressiva do personagem […], conforme a ambiguidade da narrativa
machadiana, que é expressa pelo compositor através da técnica do leitmotiv,
apoiada num quase atonalismo wagneriano, extremamente cambiante na polarização tonal, sem fazer uso, porém, do excesso de cromatismo. Nesse sentido,
principalmente, no terceiro ato, Dom Casmurro filia-se a uma ascendência da
ópera francesa, realizada magistralmente no Werther de Massenet, com o qual
o Casmurro de Miranda guarda relevantes paralelismos técnico-estilísticos. (Souza, 1994)
O crítico Luiz Paulo Horta, que, na estreia da ópera, mostrou-se bastante incomodado com a inteligibilidade do canto em português, voltou a comentar Dom Casmurro,
com maior ênfase, em artigo na revista Piracema, tecendo os seguintes comentários:
Depois de tentar a mão tanto na música vocal como na instrumental, um de
nossos melhores compositores jovens – Ronaldo Miranda – saiu-se com um ensaio serissimo de “operização” do Dom Casmurro […] Havia, realmente, na versão
levada à cena, desequilíbrios entre instrumentação e capacidade vocal (não é
sempre que se dispõe, por aqui, de vozes poderosas). O texto, por causa disso,
quase deixou de ser ouvido; e isso tirava à ópera o seu principal encanto: a deliAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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ciosa dicção que ela encontrou para a história machadiana posta em música
[…]. À primeira vista, o Dom Casmurro, esta suma do romance carioca, não se
prestaria à “operização”. É obra intimista, de um quase filósofo, trabalhando um
personagem introvertido. Mas, para tudo isso, a ópera tem solução. Quando
acertarem finalmente as questões de montagem, esse Dom Casmurro operístico
poderá ser ouvido não só como um passeio por climas da sociedade imperial,
mas também como um exercício precioso no lirismo melódico que Villa-Lobos
provou ser um dos componentes essenciais da alma brasileira. (Horta, 1994)
Tendo assistido à última récita de Dom Casmurro, no Municipal paulista, quando a
ópera já estava totalmente amadurecida e grande parte dos problemas referentes ao equilíbrio das vozes já havia sido solucionada, Jorge Coli, professor da Unicamp, foi o mais ardoroso defensor da minha adaptação do romance machadiano para o gênero lírico. Coli escreveu, ainda no ano de 1994, um extenso depoimento para minha tese de Doutorado, intitulando-o A ópera e D. Casmurro de Ronaldo Miranda. Trata-se verdadeiramente de um
longo texto, nas dimensões de um artigo, do qual transcrevo apenas alguns momentos:
[…] Dom Casmurro de Ronaldo Miranda torna-se uma experiência muito animadora. Porque o autor enfrenta as questões específicas do gênero, que fazem
com que ele possa reivindicar – e isto sem preconceito algum – o epíteto de
operista, na medida em que escreve uma obra cujo ponto de partida é, fundamentalmente, a ideia do espetáculo […] Música que não se pensa jamais voltada
para si mesma. Música que, por felicidade, não hesita em retomar belos contornos melódicos, para nos fazer acreditar no amor, na amargura, nos ciúmes. Que
faz explodir a orquestra em espasmos, que insiste em ritmos ou cantilenas. E a
força efetivamente emocional do espetáculo é indiscutível – o final, concentrado
na solidão de Bentinho, cerra gargantas e corações. Devemos ser, e somos, propriamente tomados pela tragédia a que assistimos […]. Dom Casmurro, a ópera,
liga-se àquela que é a característica mais fundamental do gênero: a de ao mesmo
tempo contar uma história e fazer com que o ouvinte experimente, de um modo
denso e veemente, tudo o que habita dentro do peito dos seres que vão sendo
criados diante de nós, sem que saibamos distinguir o que é música, o que é sentimento […]. Torniamo all’antico e faremo cosa nuova. O mestre de Falstaff nunca
abandonou suas certezas. Voluntariamente ou não, Ronaldo Miranda procedeu
a um retorno às fontes mais verdadeiras da ópera, esquecidas tantas vezes. Ele
não perdeu de vista de que se tratava de problemas não propriamente musicais,
mas que pertencem à complexidade de um gênero muito intrincado. D. Casmurro
é música impura, impuríssima, como diria José Dias. Música generosa, no sentido
de que sai de si. Como foram as de Wagner ou Puccini, Verdi ou Gluck, Mozart
ou Monteverdi. (Coli, 1994)
Dom Casmurro estreou no dia 19 de maio de 1992, no Teatro Municipal de São
Paulo, por sugestão e projeto da empresária Gaby Leib e iniciativa de Emílio Kalil, recebendo
um total de cinco récitas. O numeroso elenco foi encabeçado pelo barítono Paulo Fortes,
que viveu o papel título. Bentinho e Capitu foram protagonizados pelo barítono Francisco
Frias e pela soprano Celine Imbert. Escobar foi interpretado pelo tenor Mazias de Oliveira,
Dona Glória pela meio-soprano Sílvia Tessuto, José Dias pelo barítono Jeller Felipe e Prima
Justina pela soprano Patrícia Endo. David Machado foi o regente e Marcelo Marchioro o
diretor cênico, contando com cenários de Felipe Crescenti e figurinos de Leda Senise. ParAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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ticiparam da performance a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o Coral Lírico e o
Coral Infantil ECO.
Quatorze anos separam minha primeira ópera, Dom Casmurro, da segunda, A
Tempestade, baseada na peça homônima de William Shakespeare, e estreada em setembro
de 2006, no Teatro São Pedro, em São Paulo.
A Tempestade surgiu a partir de uma encomenda da Banda Sinfônica do Estado
de São Paulo, através do maestro Abel Rocha, diretor musical da instituição, e de Clodoaldo
Medina, diretor executivo do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim. A encomenda me
foi feita ao final de 2005 e a nova ópera precisaria estar pronta em menos de um ano.
De imediato, ficou claro que não seria possível pensar na adaptação de um novo
romance, pois não haveria tempo suficiente para teatralizá-lo. A matriz deveria ser uma
peça de teatro, já com os diálogos prontos e as situações cênicas determinadas. Também
não haveria tempo para chamar um libretista e, assim sendo, eu mesmo empreendi essa
tarefa, tal como o fizeram Cirlei de Hollanda no Judas em Sábado de Aleluia, de Martins
Penna, e João Guilherme Ripper, no Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Meu trabalho,
nesse sentido, constituiu-se em consultar três traduções da peça shakespeareana para o
português, bem como o original em inglês e a versão para o italiano. A partir dessas consultas, criei coragem e encurtei a ação dramática, colocando todo o conteúdo da peça
num espetáculo operístico de duas horas de duração, em dois atos. Foi preciso suprimir
cenas e personagens, sem prejudicar o fio condutor da história, bem como criar árias,
duetos, ensembles e leitmotivs, para contar em música essa maravilhosa fábula shakespeareana.
Uma forte razão para a escolha de A Tempestade como tema de minha segunda
ópera foi uma versão teatral dessa obra, empreendida por Giorgio Strehler para o Piccolo
Teatro di Milano. Assisti a essa montagem no Theatre National de l’Odéon, em Paris, no
ano de 1983 e fiquei simplesmente maravilhado com o poder de sedução cênica e o simbolismo da obra, capaz de tocar – com extrema leveza e ironia – nos sentimentos humanos
mais profundos. A encenação despojada de Strehler, apoiada em esplêndidos atores e
numa iluminação perfeita, realçava ainda mais as qualidades do texto de Shakespeare e a
mensagem humanística da obra. Movido por essas lembranças e pela releitura da peça,
resolvi enfrentar o desafio e partir para a ação. Resumi os cinco atos da peça em apenas
dois: o primeiro ficou com uma hora e dez minutos, e o segundo com cerca de 50 minutos.
Deusas da mitologia e figuras femininas (entre os espíritos do ar) foram cortadas, bem
como os nobres Adrian e Francisco, que pouco participaram da ação dramática.
Para o personagem de Ariel, o espírito do ar, segui a tradição de apresentá-lo
com uma intérprete feminina. Giorgio Strehler, em sua versão de La Tempesta, em 1983,
convidou para esse papel nada menos do que a atriz Giulia Lazzarini, gloriosa figura da
cena teatral italiana e uma espécie de Fernanda Montenegro de lá. Era fantástico vê-la
atuando literalmente no ar, flutuando e quase voando através de um cabo de aço. Retratei
então o personagem de Ariel na voz de uma meio-soprano, tal como o Cherubino de
Mozart. Já o papel principal da ópera – referente à figura de Próspero, o Duque de Milão,
exilado e possuidor de amplos poderes mágicos – foi escrito para um barítono agudo,
possuidor de grande extensão vocal. Miranda, filha de Próspero, foi destinada a uma
soprano lírico, enquanto Ferdinando, o Príncipe de Nápoles, foi retratado na voz de tenor.
Caliban, ser maligno e deformado, é outro barítono em cena. Na verdade, como todo o
elenco é masculino, há coleções de barítonos e tenores em cena, representando a corte
de Nápoles e a tripulação do navio naufragado numa ilha deserta.
Com direção cênica e cenários de William Pereira, figurinos de Fábio Namatame
e iluminação de Caetano Vilela, A Tempestade teve regência de Abel Rocha, que escalou
o seguinte elenco para esta produção da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo: Homero
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Velho (como Próspero), Rosana Lamosa (como Miranda), Fernando Portari (como o Príncipe Ferdinando), Regina Elena Mesquita (como Ariel), Sebastião Teixeira (como Caliban),
Carlos Eduardo Marcos (como o Rei Alonso), Eduardo Janho-Abumrad (como o Conselheiro
Gonzalo), Jordi Quelart (como Antônio), Márcio Marangon (como Sebastian), Paulo Queiroz
(como Trínculo), Sandro Bodillon (como Stephano), Rubens Medina (como o Contramestre), Yuri Jaruskevicius (como o Capitão), e Ossiandro Brito, Nick Vila Maior e Osvaldo
Hernán (como Marinheiros e Espíritos).
Tal como na peça shakespeareana, a ópera A Tempestade começa com a cena
que literalmente representa o seu título, uma terrível tormenta em mar aberto. Em poucos
compassos, uma densa introdução orquestral antecede a entrada das vozes angustiadas
da corte e da tripulação do navio. A música está totalmente fora da tonalidade e os intervalos angulosos, de segundas e sétimas, traduzem a tensão e o drama, que se consumam
no naufrágio inevitável.
Na segunda cena, já em terra firme, Miranda pede a Próspero, seu pai, que
acalme os mares, com o seu poder mágico. Ele a tranquiliza e, em seguida, lhe relata toda
a sua história, contando-lhe quem eles são de fato e como chegaram àquela ilha. Miranda
adormece. Na cena três, Ariel faz um relatório completo ao seu amo, Próspero, sobre
como armou a tempestade e como estão os nobres náufragos. Próspero dá novas tarefas
a Ariel. A quarta cena marca a aparição de Caliban, ser maligno e filho da bruxa Sícorax,
que inicialmente enfrenta Próspero, mas em seguida lhe obedece, com medo de seus poderes mágicos. Na cena seguinte, Ariel faz com que o Príncipe Ferdinando – sonhador e
perdido na ilha – encontre casualmente Miranda. Os dois jovens imediatamente se apaixonam. Próspero interfere e finge estar contrariado, enfrentando Ferdinando e obrigandoo a trabalhar na ilha. Na sexta cena, o Rei Alonso descansa, imaginando que seu filho, Ferdinando, está morto. O Conselheiro Gonzalo o consola. Enquanto o Rei dorme, Sebastian
e Antonio tentam matá-lo, mas suas espadas se paralisam no ar, pelo poder de Ariel. A sétima cena é totalmente burlesca, num trio grotesco entre o monstrinho Caliban, o bufão
da corte – Trínculo – e o provedor da adega real, Stephano, este completamente bêbado.
A oitava cena marca o final do Primeiro Ato, num dueto entre Miranda e Ferdinando, que
trocam declarações de amor. Próspero encerra a narrativa, afirmando que muita coisa
ainda está para acontecer.
O segundo ato começa com uma breve Abertura da banda sinfônica. Na primeira
cena, o trio formado por Caliban, Trínculo e Stephano planeja a morte de Próspero. Os
três estão completamente bêbados. Na cena dois, Ariel e os espíritos do ar preparam um
banquete para os náufragos, que se encantam com a música que ouvem de longe e não
sabem de onde ela vem. Repentinamente, Ariel aparece em forma de harpia e acusa os
nobres de terem usurpado o Ducado de Próspero, informando-os de que o Duque se encontra nesta ilha. Todos pensam que se trata de mera alucinação, mas Alonso, o Rei, é
tomado de culpa e remorso. A terceira cena mostra um casamento simbólico de Ferdinando
e Miranda, sob as bênçãos de Próspero, que aceita o jovem Príncipe como genro. Os espíritos do ar abençoam a união, trazendo as bênçãos de Íris, Juno e Ceres. Ariel chega repentinamente, para avisar seu amo de que Caliban, Stephano e Trínculo pretendem atacálo. Na cena seguinte, Próspero enfrenta os três bufões com a ajuda dos espíritos que se
transformam em cães ferozes. Na cena cinco, Próspero abdica de seus poderes sobrenaturais e apresenta-se aos nobres, estáticos e imobilizados, dentro de um círculo mágico. Eles custam a crer que estão diante do Duque de Milão, mas, finalmente, o reconhecem. Próspero perdoa todos eles e convida-os para pernoitarem em sua gruta. No dia
seguinte partirão para Nápoles e Milão. Próspero voltará a ser o Duque. Chegam Miranda
e Ferdinando. O Rei Alonso transborda de felicidade ao ver que seu filho está vivo. Miranda
se encanta com a corte e exclama: “Ó admirável mundo novo, que tem gente tão bela...
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
106
Que maravilha! Que lindas pessoas eu vejo! Como é bonita a humanidade…”. A sexta e última cena é dedicada ao monólogo final de Próspero, transformado numa grande ária.
Ele fala em partir para recomeçar vida nova, como um homem comum, despojando-se
mais uma vez de todos os seus poderes mágicos. Entra em cena todo o elenco que repete
num grande coral a frase de Miranda sobre o Admirável Mundo Novo.
Embora haja poucos momentos de livre atonalismo, a linguagem neotonal caracteriza a maior parte da música de A Tempestade. Há múltiplas influências na partitura e
motivos condutores para caracterizar personagens ou situações dramáticas. Os temas
são recorrentes, vão e voltam às vezes em cenas semelhantes, às vezes em cenas diversas.
As atmosferas musicais se alternam bastante, da seresta brasileira de sabor urbano à tarantela italiana, cantada por Stephano e Antonio, quando conspiram contra o Rei. Afinal
de contas, são napolitanos e milaneses que estão em cena. No caso da seresta urbana, o
tema mais pungente é cantado no Primeiro Ato pelo Príncipe Ferdinando, em sua ária
“De onde vem essa música?”, e pelo próprio Próspero, na penúltima cena da ópera, quando
se despede emocionado de seu fiel Ariel: “Ah, meu querido Ariel/ Cuide dos ventos ainda
uma vez.../ Depois voe com eles, pra onde quiser/ Até um dia, Adeus!”.
No decorrer do Segundo Ato, há várias pequenas citações de Félix Mendelssohn,
autor que tem uma estreita relação com William Shakespeare, pois colocou em música
outra peça admirável do dramaturgo inglês: o Sonho de uma Noite de Verão. Usei diversos
temas de Mendelssohn em situações as mais variadas possíveis. São eles a Canção sem
Palavras op. 38 n. 2, uma das estrofes da Marcha Nupcial (única melodia efetivamente
retirada do Sonho de uma Noite de Verão), o refrão do Rondó Capriccioso e um curtíssimo
segmento do Concerto n. 2 para Piano e Orquestra. No total, essas referências não ultrapassam cinco minutos de música, embora sejam bem perceptíveis, cada uma delas, no
momento em que são ouvidas.
Talvez o momento mais pregnante da música de A Tempestade seja o dueto de
amor de Miranda e Ferdinando, ao final do Primeiro Ato. Impregnada de generoso melodismo, esta cena tornou-se a preferida dos críticos e do público. Lauro Machado Coelho
ressalta o dueto de amor em questão em sua crítica no Estado de São Paulo. Eis parte do
seu comentário:
A um apólogo de sentido universal e intemporal, como ‘The Tempest’, cai muito
bem a ambientação inequivocamente brasileira criada pela música de Ronaldo
Miranda... Há momentos climáticos em que desabrocham números formalmente
construídos, de cantilena elaborada e melodicamente atraente. Um dos mais
felizes é o dueto de amor de Ferdinando e Miranda, no final do primeiro ato,
que Portari e Rosana Lamosa, em grande forma vocal, executaram com apaixonado envolvimento. (Coelho, 2006)
Já Clóvis Marques, no site Opinião e Notícia, ressaltou a comunicabilidade da
obra:
Conto moral ou fábula política em tom de féerie, A Tempestade, última peça de
William Shakespeare, ganhou pelas mãos de Ronaldo Miranda uma adaptação
operística alegre e comunicativa. […] A música de Miranda tem um pendor para
a expressão solar, o elã e a melodia fluente que dilui as tinturas escuras ou oníricas
dessa especulação sobre o poder e a traição, a pequenez humana e a grandeza
do perdão. Mas também é verdade que A Tempestade é uma obra de claridade
e confiança na capacidade do homem de se reiventar na união, com boa dose
de humor. (Marques, 2006)
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Finalmente, Jorge Coli, mais uma vez, reafirmou opinião positiva e eloquente
sobre minha linguagem operística, afirmando em texto publicado na Folha de São Paulo:
Ronaldo Miranda teve uma experiência prévia no campo da ópera: um excepcional Dom Casmurro, de 1992, então protagonizado por Paulo Fortes. A excelente Banda Sinfônica do Estado de São Paulo encomendou agora a ele A Tempestade, inspirada em Shakespeare. A partitura é impulsionada pelo fluxo poético,
é convincente, cuidada e justa nos detalhes. Maravilhoso o modo como a orquestração, baseada nos instrumentos de sopro que constituem a banda sinfônica, se casa com as vozes, aclimatando personagens, sejam eles cômicos,
aéreos, exaltados ou violentos. (Coli, 2006)
O diretor cênico William Pereira, apesar de ter contado com um orçamento exíguo, muito contribuiu para a delicadeza e sensibilidade da montagem operística de A
Tempestade em suas três récitas no Teatro São Pedro. Eis o início e o fim do seu depoimento
no programa do espetáculo:
Sempre quis encenar A Tempestade de Shakespeare – e já havia me debruçado
sobre a peça, desde os meus tempos de estudante no Departamento de Teatro
da ECA/USP. A última peça do Bardo me fascina, talvez por ser em certos aspectos
uma obra a ser desvendada, tamanhos são os símbolos, desafios, leituras que
esse texto abriga e as infinitas possibilidades que ele aponta ao encenador. […]
Vejo A Tempestade como um microcosmo do próprio fazer-teatral. A ilha de
Próspero é o mundo, próprio palco, e é nesse espaço “mágico”, “encantando”,
que toda a ação se desenrola, tendo como filtro, como diapasão, o Homem, o
Humano, tão caro a Shakespeare e ao Renascimento. […] Nessa ilha-palco […]
habitam Ariel – o espírito do ar (a inspiração?) – e Caliban – ser fantástico, meio
humano, meio animalesco, que simboliza os instintos animais do homem. E entre
esses dois pólos elementares – Água e Ar, Terra e Fogo – Próspero, o Humano,
encenará seu rito de passagem que culminará no perdão aos antigos inimigos e
na promessa de um “admirável mundo novo” […] Quando fui convidado para
encenar a ópera de Ronaldo Miranda com a Banda Sinfônica do Estado de São
Paulo, retomei essa antiga paixão que é A Tempestade de Shakespeare – agora
uma paixão maior, duplicada em forma de música, composta por um dos maiores
compositores eruditos do país. Retomo, melhor, recupero um universo, um texto,
uma concepção, um sonho antigo, uma fascinação e encantamento que o tempo
só aumentou. Transpor o universo shakespeareano em notas musicais é o meu
desafio. Desafio apaixonante. O resto não é mais silêncio... O resto é música!
(Pereira, 2006)
Apoiado pelo excelente elenco, muito bem escolhido e extremamente bem ensaiado pelo maestro Abel Rocha, William Pereira deu o melhor de si, dentro dos recursos
de que dispunha. Assim como acrescentei o coral O Brave New World ao monólogo de
Próspero, para terminar a ópera, William encenou lindamente a cena final e, após o coral,
enquanto apenas os instrumentos da Banda Sinfônica concluem a partitura, retomando a
atmosfera do tema inicial da Tempestade, todos os cantores-atores se unem para remontar
simbolicamente o navio. Enquanto a cortina se fecha, nobres e plebeus tomam posse da
nave e partem juntos para o “Admirável Mundo Novo”.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
108
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Souza, Rodolfo Coelho de. Depoimento ao autor. São Paulo, 1994.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
ESTUDO INTERDISCIPLINAR
111
Literatura e música: o romance e a ópera
no Brasil Oitocentista
Marcus Vinicius Nogueira Soares
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Para lidar com as possíveis relações entre Literatura e Música, optei por uma
abordagem mais propriamente histórica e que se refere à importância da música no
contexto da produção literária brasileira do século XIX. Qualquer pessoa que se embrenhe
na pesquisa da literatura desse período, ou mesmo que dela se aproxime desinteressadamente, pelo puro prazer da leitura, se depara a todo tempo com textos que remetem à música, seja pela exploração mais acentuada dos elementos sonoros e rítmicos
do texto, seja pela presença de incontáveis alusões ao universo da arte musical – como títulos de obras, nomes de compositores, cantores e instrumentistas, trechos de libretos
operísticos e até termos técnicos. É claro que, por um lado, cabe aqui o argumento de que
toda essa musicalidade não se restringe ao contexto brasileiro, mas, sim, ao território
mais amplo do romantismo e, como tal, perceptível nas produções europeias e de outros
países do continente americano. Por outro, nunca será demais recordar o caráter multifacetado de um movimento cultural que rompeu com o padrão milenar dos classicismos
em favor das diferenças individuais e, consequentemente, nacionais.
Nesse sentido, a relação tipicamente romântica entre música e literatura, que
vê na junção dessas duas artes forte componente de sublimação, na medida em que a primeira poderia contribuir para a elevação estética da segunda, ganha contornos específicos
ao cruzar o Atlântico e aportar em solo brasileiro. É o que tentarei desenvolver a seguir,
através da produção de três autores, Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo e José de
Alencar, em que as duas primeiras suscitam uma abordagem mais histórica, uma vez que
buscam enquadrar, dramatúrgica e literariamente, determinado modo social de recepção
da música, particularmente da ópera, e a terceira que nos sugere uma perspectiva mais
formal, estética, ligada à concepção dos gêneros em jogo, e que procurarei tratar a partir
das implicações entre a materialidade dos meios envolvidos na comunicação artística e
os seus modos de recepção.
Pena e Macedo: a dessublimação da ópera
Como primeiro exemplo significativo, saliento não um texto propriamente literário, mas uma peça teatral: refiro-me a O diletante,1 de Martins Pena. Escrita em 1844 e
encenada em fevereiro de 1845, trata-se de uma comédia sobre um rico proprietário, José Antônio, cuja paixão pela música, especificamente pela ópera italiana – “arte divina”
(Pena, 1966, p. 225), como ele mesmo diz –, em especial por Norma, de Bellini e Romani,
fundamenta e determina todas as suas relações familiares e sociais: Josefina, a filha para
quem a ópera era apenas um motivo para ir ao teatro, apesar de “louquinha”, cantava
bem; a esposa, ao contrário, sofrivelmente; o abastado fazendeiro paulista, Marcelo, com
quem José Antônio gostaria de casar a filha, preferia o fado à ópera, gênero que o
provinciano só conheceu na noite anterior, quando dormiu na apresentação de Norma;
sendo assim, se o futuro genro não mostrava nenhuma inclinação para a arte lírica, quem
seria o tenor para assumir o papel de Pollione no terceto da música do “sublimíssimo
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1
Palavra de origem italiana com a qual se designavam, no século XIX, os amantes de ópera.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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gênio” italiano, partitura que José Antônio acabara de comprar com a esperança de
executá-la em casa? Nesse momento, entra em cena Gaudêncio, o segundo pretendente
de Josefina, que, ao se fingir de cantor, caiu nas graças do velho diletante. Depois de várias peripécias, descobre-se que Gaudêncio tem mulher, Perpétua, e dois filhos; além
disso, vem à tona que Perpétua seria a irmã de Marcelo que fora raptada por um pérfido
sedutor, coincidentemente o próprio Gaudêncio. Numa cena que me parece a mais instigante de toda a peça, Perpétua, acompanhada de seus dois filhos, se dirige à casa da
família para conversar com Josefina. É quando Antônio presencia o seguinte quadro: Perpétua e Josefina dialogando perante as duas crianças ajoelhadas. A sua atitude não poderia
ser outra:
José Antônio, caminhando para frente – Bravo! Bravíssimo! (as duas surpreendem-se; os pequenos conservam-se de joelhos.) Continuem, que eu acompanho. (Vai para o piano)
Perpétua – Ah!
Josefina – Continuar o quê, senhor?
José Antônio – Pois não é o dueto de Norma que estavam cantando?
Josefina – Qual dueto! Que loucura!
José Antônio, caminhando para ela – Ó filha, pois eu pensei que ias cantar. Vi estes dois pequenos de joelhos, julguei que tu ias fazer de Norma e ali a senhora
de Adalgisa...
Josefina – E não se enganou de todo. Somente trocou os nomes: aqui a Adalgisa
sou eu, e a senhora Norma, porque é a traída e abandonada pelo falso...
José Antônio – Pollione?
Josefina – Qual Pollione! Pelo Dr. Gaudêncio!
José Antônio – Hem? O que estás dizendo? (Pena, 1966, p. 243)
Não é surpreendente que José Antônio interpretasse a cena como se fosse um
dueto de Norma, afinal é o que se espera da reação de um homem cujo quadro de referências é operístico, no sentido em que ele empresta ao gênero, ou seja, como forma de
arte sublime, uma vez que transcende o aqui e agora da vida cotidiana. Surpreendente
mesmo é a reação de Josefina que, ao não descartar plenamente a interpretação de José
Antônio, entende a ópera do compositor italiano não como manifestação dessa sublimidade, mas, ao contrário, como possível instrumento de reflexão das mazelas do cotidiano em geral e das suas próprias em particular. A “ópera trágica” de Bellini, com suas
melodias fortemente expressivas e o seu conteúdo político de valor libertário, na possível
analogia entre a Gália ocupada pelos romanos e a Itália pelos austríacos, transforma-se,
em solo brasileiro, numa comédia de costumes dessublimada, circunscrita à capacidade
de expressar os conflitos comezinhos do dia a dia.
É mais ou menos nesse sentido que a música, e de novo a ópera, reaparece, só
que agora em um texto literário, mais propriamente no segundo romance daquele que é
considerado por muitos o primeiro romancista brasileiro, Joaquim Manuel de Macedo.
Depois de estrear com A moreninha, em 1844, Macedo publica, no ano seguinte, O moço
loiro.2 Já no primeiro capítulo, dois personagens, Antônio e Otávio, adentram o restaurante
de um hotel. O segundo, há dez meses fora do Rio de Janeiro, tem vivo interesse em assistir a uma novidade, o “Teatro Italiano”, por sinal, expressão que dá nome ao capítulo. Naquela noite seria a estreia de Ana Bolena, de Donizetti e Romani. No meio de um diálogo
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2
Embora me reporte aqui só ao segundo romance de Macedo, já no primeiro, A moreninha, a ópera, no caso, O
barbeiro de Sevilha, de Rossini e Sterbini, aparece na articulação textual e de recepção da narrativa de 1844,
como analisa Gimenez (2007).
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sobre compra de bilhetes, Antônio lança a seguinte indagação a Otávio: “Ora, dize lá; tu
és Candianista, ou Delmastriasta?” (Macedo, 2003, p. 14). Se Otávio não entende de imediato a pergunta, afinal se não conhecia o tal “teatro”, muito menos as referidas expressões,
o mesmo não vale para todos que se encontram presentes no restaurante. A expectativa
pela resposta detona discursos acalorados contra ou favor das duas prima-donas do momento: Augusta Candiani e Clara Delmastro. Mais tarde, na hora do espetáculo, não será
diferente no interior do teatro de São Pedro de Alcântara. Posicionando-se à esquerda ou
à direita do palco, como nas assembleias francesas revolucionárias, os diletantes partidários
de cada cantora instauram uma algazarra que chega ao ponto de tornar inaudível a própria
apresentação.
É interessante notar as circunstâncias históricas que envolvem os acontecimentos
relatados nesse primeiro capítulo. Como informa o narrador, a história tem o seu início
no dia 6 de agosto de 1844. Como se sabe, foi o ano em que a cidade do Rio de Janeiro retomou as atividades operísticas, suspensas doze anos antes, exatamente por conta dos
graves conflitos que vinham ocorrendo entre espectadores nas plateias dos teatros e que
culminou com o episódio de 28 de setembro de 1831, quando a sala do Teatro foi transformada “numa praça de guerra” (Andrade, 1967, p. 194). O retorno dos espetáculos líricos tem, nesse sentido, certo ar de novidade, como revela a atitude de Otávio; talvez o
próprio Macedo se encontrasse em situação análoga a do personagem, já que, nascido
em 1820, no município de Itaboraí, provavelmente não deve ter visto alguma récita antes
da interrupção mencionada.
Além disso, mais uma vez, como na peça de Martins Pena, a viagem transatlântica
parece realizar transfiguração dessublimadora: a terrível história da segunda esposa de
Henrique VIII, injustamente condenada por adultério, é convertida, nos teatros cariocas,
em pano de fundo de conflitos entre “candianistas” gagos e “ultradelmastristas” surdos,3
em cenário cuja única opção a um não diletante como Otávio era flertar com as jovens
damas da corte. Menos do que a fruição da ópera, o que se vê aqui representado é um
quadro historicamente configurado de recepção.
Apesar dos exemplos, ambos da década de 1840, aqui citados, serem representativos do processo de dessublimação, este outro, por sua vez, não corresponde ao
único modo de apropriação literária da música no contexto oitocentista. A obra de José
de Alencar vai instaurar uma nova trilha e, mais uma vez, o caminho será percorrido através da ópera. Já posso adiantar que, diferentemente de Pena e Macedo, Alencar não vai
enquadrar a ópera no contexto exclusivamente social. Embora essa contextualização não
esteja alijada do modo como o autor de Iracema encara o melodrama italiano, e não só o
italiano, como também o francês, ela me parece secundária na concepção alencariana:
nessa, a ópera é um modelo de arte e, como tal, um manancial de formas e temas para a
elaboração de romances.
Nesse ponto de nosso argumento, creio que seria importante intercalar uma reflexão um pouco mais conceitual, relacionada à teoria dos gêneros, pois, se os textos de
Pena e Macedo remetem a estereótipos sociais de recepção da ópera, o romance alencariano aponta para questões de ordem estética, como já assinalava, e que cabe agora desenvolver.4 Volto, assim, aos termos iniciais do debate: literatura e música.
...........................................................................
3
A cena aqui é literal, já que Otávio acaba se acomodando na plateia exatamente entre um espectador gago e
outro surdo.
4
Cumpre ressalvar que, embora esses estereótipos se aproximem da classificação proposta por Giron (2004, p.
119), na qual haveria três diferentes tipos de receptores de ópera nesse período, “o diletante, o partidista e o
folhetinista”, e que Pena e Macedo estariam satirizando os dois primeiros respectivamente, o que proponho
sobre a obra de Alencar não alude a qualquer forma de tematização do terceiro, nem como estereótipo a ser
satirizado, nem como autorreflexão do gênero, a despeito de seu trabalho como folhetinista. Como se verá, a
questão é estética, logo, literária. Na verdade, caberia um item a mais na tipologia de Giron: o romancista.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
114
Literatura e música: romance e ópera
Em geral, o ponto de interseção que é mais destacado, quando as duas artes são
comparadas, diz respeito à dimensão sonora. Contudo, se hoje a aproximação depende
de estudos de caráter interdisciplinar, de um lado através da Literatura Comparada, de
outro por meio da Musicologia, isso só se deu devido à ruptura ocorrida em determinado
momento histórico. Como lembra Segismundo Spina (2002, p. 15),
A poesia primitiva não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a
poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia
no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e às vezes à coreografia, mais
especialmente àquela.
Do ponto de vista que se tornou hegemônico, pelo menos para os estudos literários, na descrição do processo de formação da cultura ocidental, a identificação da chamada “poesia primitiva” encontra as suas primeiras formulações na Grécia antiga. Para
Aristóteles (1981, p. 22), em sua Arte Poética, ritmo e melodia, juntamente com a natureza
imitativa do homem, são elementos que estão na própria origem da poesia:
Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo –
que os metros são parte dos ritmos é fato evidente – primitivamente, os bem
dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações a poesia.
Bem mais tarde, Jean-Jacques Rousseau (1983, p. 186 e 187), no Ensaio sobre a
origem das línguas, sempre interessado no comércio entre as duas artes, retoma as ponderações aristotélicas quando sugere que “a princípio não houve outra música além da
melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o
canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas
articulações e pelas vozes”. Citando o geógrafo grego Estrabão, continua Rousseau: “outrora
dizer e cantar eram o mesmo, o que mostra, acrescenta [Estrabão], que a poesia é a fonte
da eloquência”. Embora, para o pensador genebrino, não se trate de uma relação de
causalidade – afinal, poesia e eloquência possuiriam origem comum –, o que importa
aqui é o reconhecimento de indistinção fundamental, de uma indiferença primitiva, perceptível historicamente. Além disso, é importante entender o sentido de “ritmo” utilizado
por Rousseau e que se coaduna com aquele empregado pela Retórica quando alude à noção de numerus, ou seja, “de uma sucessão regulamentada (nas línguas clássicas) de sílabas
longas e breves, dentro da compositio” (Lausberg, 2004, p. 267) que, na poesia, encontra
a sua unidade no verso, no retorno regular de iguais cadências rítmicas, e, na prosa, na
ausência de retorno. Dito de outra maneira, a medida do verso, o seu ritmo, é a sua unidade métrica, a quantidade de sílabas longas e breves ou, no caso das línguas neolatinas,
de sílabas fortes e fracas, que estabelecem a sua extensão, o seu limite.
Nesse sentido, quando a percepção do que hoje chamamos de literatura consistia,
pelo menos até o século XVIII, em um tipo de experiência eminentemente rítmica do verso, era possível referir-se ao extrato sonoro do fenômeno literário: na situação primitiva,
como se viu, de modo estrito; em momentos históricos posteriores, de forma ainda bastante evidente, uma vez que o vínculo se manteve, até certo ponto, presente. Contudo, a
questão se complexifica quando a literatura se transforma naquilo que o seu nome designa:
arte da escrita e da leitura; quer dizer, quando a escrita deixa de ser atividade secundária
ligada ao mero registro documental e se converte em meio privilegiado de transmissão e
recepção de textos, o que se deu a partir do advento dos tipos móveis e da imprensa no
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
115
final do século XV, invenção que permitiu a substituição gradativa dos antigos manuscritos
por material impresso e criação de novos suportes de publicação que, por sua agilidade
técnica, tornaram possível a proliferação até então inimaginável de textos escritos. É no
bojo desses acontecimentos que se desenvolve um gênero literário: o romance. Como
ressalta Bakhtin (1988, p. 188), “ao lado dos grandes gêneros, só o romance é mais jovem
do que a escritura e os livros, e só ele está organicamente adaptado às novas formas da
percepção silenciosa, ou seja, à leitura”. Cabe acrescentar que, ao contrário dos “grandes
gêneros” (a epopeia, a tragédia e a lírica), que valorizaram o verso como unidade rítmica,
o romance vai privilegiar a prosa, ou seja, a variedade do numerus que prescinde de medida.
Assim, tanto pelo ritmo que privilegia quanto pelo modo de recepção que requer, o da
leitura silenciosa, o romance instaura um novo paradigma que é o da própria literatura
enquanto arte, da arte cuja autonomia depende de sua realidade estritamente escrita, e
não de uma possível dimensão sonora, como se prescrevia nas poéticas do passado.
Não é à toa que determinados historiadores literários entendem que não é conceitualmente adequado empregar o termo literatura, designando uma mesma experiência
estética e cultural desde os gregos. Paul Zumthor, por exemplo, no clássico A letra e a voz:
a “literatura” medieval, grafa o vocábulo entre aspas, uma vez que, para ele, a experiência
moderna de literatura não coincide com aquela que se desenvolveu na Idade Média, pois
lá se tratava ainda de uma prática oral, “vocal” na acepção de Zumthor,5 que se deu através
do canto e da performance propriamente dita, ou seja, por meio da presença física dos
agentes envolvidos no processo comunicativo, enquanto na modernidade, o corpo humano
deixa de ser veículo de constituição de sentido e fonte do mesmo, consequentemente
toda materialidade decorrente do envolvimento corporal – voz, gesto etc. – desaparece
em favor da virtualidade do ato silencioso de leitura.6
Sendo assim, não me parece evidente aproximar literatura e música pela suposta
afinidade sonora entre ambas; se, em determinado momento histórico, a afinidade era
intrínseca, com a autonomização do campo literário ela deixa de ser, permanecendo, em
alguns casos, como resquício de uma origem comum, principalmente na sobrevivência
do metro na poesia, e, em outros, como afinidade a ser buscada, como princípio de determinada proposta criativa individual ou coletiva, como ocorreu no Romantismo e no
Simbolismo literários.
Ora, voltando a José de Alencar, nunca é demais recordar que ele foi escritor de
romances no século em que o gênero atingia o seu apogeu, tornando-se hegemônico na
medida em que se disseminava por todos os meios materiais disponíveis à época (livro,
jornal etc.). Sob esse prisma, o escritor cearense, como boa parte dos escritores do período,
nasceu e se desenvolveu dentro da cultura impressa.7 Contudo, a que se deve o vivo interesse do autor de Iracema pela ópera? De imediato, como prática cultural, afinal, em cenário onde mais de cem récitas eram realizadas em um único ano, era impossível não ser
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5
Zumthor (1993, p. 21) prefere a expressão “vocalidade” ao invés da “oralidade”: enquanto esta se relaciona à
voz como mera “portadora da linguagem”, aquela alude à “historicidade de uma voz”, portanto, ao seu uso, ao
modo de realização material em dado momento.
6
É o que constata Gumbrecht (1998, p. 75): “O corpo humano não era [na Modernidade] mais o veículo de
constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo de sentido, o livro, pela introdução de
uma máquina, a prensa de impressão. Ao mesmo tempo [...] o corpo era também liberado de sua função de
fonte de sentido”.
7
Nesse ponto, deixo em suspenso, por economia, a discussão sobre a possível precariedade das condições de
desenvolvimento da cultura impressa no Brasil do século XIX; razão pela qual não vou tratar aqui a hipótese que
alguns críticos sustentam de que o amplo interesse dos escritores oitocentistas pela ópera se deva, apenas, à
deficiência ou quase inexistência de um público letrado, o que teria favorecido a produção de formas culturais
cujo meio de transmissão fosse eminentemente oral ou diretamente influenciado pela oralidade, como no caso
da literatura. Seja como for, acredito que tal hipótese não se coaduna com as motivações da obra de José de
Alencar.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
116
contaminado, positiva ou negativamente, pelos melodramas europeus, como vimos nos
exemplos de Pena e Macedo. Entretanto, no caso alencariano, esse envolvimento vem
acompanhado de determinada concepção de arte que cumpre entender: no que segue,
tentarei confrontar o que até agora apresentei sobre o romance com uma breve reflexão
sobre a ópera na tentativa de analisar a concepção alencariana.
Alencar e a sublimação da ópera
Nesse sentido, é possível dizer, de imediato, que a relação de José de Alencar com
a ópera é, no mínimo, seminal; não seria excessivo afirmar que ela está na origem do próprio artista que viu nos grandes dramas encenados nos teatros da corte o modelo da arte
sublime.
Alencar vai manifestar esse entusiasmo logo nas suas primeiras produções, no
caso, folhetinescas: primeiramente, na série com que inaugura a sua carreira como escritor
público, intitulada “Álbum”, impressa no Diário do Rio de Janeiro, em 1854; imediatamente
depois, ainda no mesmo ano de 1854, na bem conhecida “Ao correr da pena”, iniciada no
Correio Mercantil e concluída no seu retorno ao Diário do Rio de Janeiro, em 1855. Comentando os espetáculos líricos, fazendo apologia das principais divas do bel canto que
estrelavam as companhias italianas e francesas em suas temporadas na capital do Império
e, claro, admirando os mais prestigiados compositores da terra de Dante (Rossini, Bellini,
Donizetti e Verdi, entre outros) e alguns franceses (Meyerbeer, Auber, Gounod etc.), os
seus folhetins testemunham um Alencar (2004, p. 54) embevecido com o gênero musical
que era quase toda a música realizada no Brasil em meados do século XIX, como se pode
depreender do artigo de 15 de outubro de 1854 de “Ao correr da pena”:
Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada, no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no
qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro
vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos
por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações de Verdi e Meyerbeer.
Não é difícil perceber que a música era, para o jovem folhetinista Alencar, ópera.
Na arena literária, a repercussão dessa influência vai se manifestar prontamente.
Logo no seu primeiro romance, Cinco minutos, de 1856, uma frase – “non ti scordar di
me” – retirada de Il trovatore, de Verdi e Cammarano, torna-se o elo da relação entre os
protagonistas cuja história segue de perto outra obra do operista italiano, com texto de
Francesco Piave, La traviata. No romance seguinte, O guarani, de 1857, óperas ou passagens delas não são aludidas no corpo do texto, o que não é de se estranhar, considerando
que os conflitos se desenrolam no início do século XVII, em cenário inóspito; entretanto,
toda a narrativa é transformada em libreto por Antonio Scalvini com o mesmo título,
cabendo a composição musical, talvez a mais famosa de todo o repertório brasileiro, a
Carlos Gomes, em 1870. Há, em Lucíola, encontros fortuitos entre os protagonistas, durante
eventos operísticos, que determinam a condução da trama. Em relação à Iracema, Joaquim
Nabuco (1978, p. 187) sugeriu, maliciosamente, no calor da famosa polêmica entre ambos,
certa homologia estrutural com a Norma, de Bellini e Romani, quando utilizou a expressão
“Norma tupi” para designar a protagonista da lenda alencariana de 1865. Por sinal, a
mesma ópera do compositor siciliano reaparece em forte cena de Senhora, de 1875, para
acender em Aurélia, quando ela executa uma de suas árias ao piano, o desejo de vingança;
há, ainda, o diálogo entre o último romance do escritor cearense, Encarnação, e Lucia di
Lammermoor, de Donizetti e Cammarano, no qual se percebe como a concepção alenAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
117
cariana de arte se aproxima dos modelos operísticos; por fim, vale destacar o libreto escrito pelo próprio Alencar, A Noite de São João, musicado por Elias Álvaro Lobo e encenado
em 1860; isso sem contar as narrativas onde óperas são apenas mencionadas como em A
pata da gazela, Sonhos d’ouro e O tronco do Ipê.
Considerando a importância da ópera na produção literária do período, especialmente na de Alencar, caberia a seguinte pergunta: que quadro de referências artísticas
e culturais, além daquele estabelecido por Martins Pena e Macedo, é possível configurar
a partir da presença da ópera na literatura brasileira oitocentista? Ainda: por que a maior
estima pela ópera e não pela música romântica de concerto como a de Liszt, Chopin,
Schumann, Mendelssohn e Berlioz, entre outros?
O próprio Alencar nos fornece as primeiras pistas. Antes mesmo de se tornar
romancista, no decorrer da famosa polêmica sobre a epopeia de Gonçalves de Magalhães,
A confederação dos tamoios, de 1856,8 polêmica que, além de Alencar, contou ainda com
a participação, na bancada adversária, de Araújo Porto Alegre e D. Pedro II, o autor de Iracema, imbuído da concepção lamartiniana da unidade das artes, ou como ele mesmo escreve, “da união da poesia, da música e da pintura” (Alencar, 1953, p. 25),9 apresentou
quatro grupos de artistas para exemplificá-la, organizando-os segundo as afinidades criativas que ele julgava existir entre os escolhidos de cada agrupamento, como se segue: Homero, Miguel Ângelo e Rossini; Virgílio, Ticiano e Donizetti; Shakespeare, Veronese e Meyerbeer; Píndaro, Rafael e Verdi. Na poesia, o destaque coube a três autores da antiguidade
clássica (Homero, Virgílio e Píndaro) e um renascentista (Shakespeare); nas artes plásticas,
todos os nomes citados são de criadores renascentistas; por fim, na música, a lista inclui
apenas operistas românticos. Considerando apenas os representantes da poesia e da música, são as ausências que chamam a atenção: assim como não há romancistas, também
não há compositores de música de concerto. Além disso, é importante ressaltar que a
ópera já seria o resultado dessa união e, nesse sentido, ela não deveria apenas ocupar
uma posição nessas tríades. Tratemos um pouco mais de perto essa questão.
Como o próprio Alencar assinala, a reflexão sobre a unidade das artes advém de
Lamartine, mais propriamente do segundo prefácio a Les Meditations, intitulado “Les
destinées de la poésie”. Embora Lamartine discorra exclusivamente sobre poesia e apenas
mencione de passagem o autor Do contrato social, a ideia da unificação das três artes
aparece no pensamento de Rousseau (1961 apud Starobinski, 2010, p. 23) sobre a ópera,
no verbete correspondente no seu Dictionnaire de musique:
As partes constitutivas de uma ópera são o poema, a música e a cenografia. Pela
poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de
diversos órgãos, a mesma impressão até ele.10
Alencar explora, assim como Lamartine, a noção rousseauniana como forma de
assegurar um lugar privilegiado à poesia e, mais ainda, como ideal a ser visado por todo e
qualquer poema que se pretenda grandioso – o que não teria ocorrido, segundo Alencar,
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8
Trata-se da polêmica que foi desencadeada a partir das fortes críticas publicadas, em 1856, no Diário do Rio de
janeiro, pelo jovem Alencar, ao referido poema daquele que era considerado, à época, o introdutor do romantismo no Brasil e, principalmente, o fundador da Literatura Nacional, Domingos José Gonçalves de Magalhães.
9
Concepção que Alencar (1967, p. 185) vai retomar mais tarde, em 1872, quando da publicação de Sonhos
d’ouro. Reportando-se à capacidade artística de Ricardo, protagonista da história, o narrador escreve: “Deus
criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência”.
10
Como ressalta Starobinski, essa definição de Rousseau é resultado de suas leituras de Les Caractères de La
Bruyère.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
118
com a epopeia de Magalhães. Acrescente a isso o fato de que Alencar (1953, p. 24) lançava
mão das reflexões lamartinianas como reiteração de determinado princípio poético que
nos parece fundamental: “A descrição dos rapsodes gregos, que eram ao mesmo tempo
poetas, músicos e atores, descrição que li quando ainda pouco me ocupava de literatura,
ficou impressa para sempre no meu espírito como a verdadeira imagem da poesia”. Ora,
não estaria na própria invenção da ópera o mesmo resgate dessa imagem original, na
retomada do drama clássico a busca pelo reestabelecimento da unidade primitiva? Caberia,
então, afirmar que a tarefa romântica encontra um precedente no gênero musical surgido
no século XVII?
Antes de tudo, é preciso ter cuidado com certas aproximações. Afinal, esses
“renascimentos” encontravam-se disseminados, antes ou depois da emergência da ópera,
no quinhentismo português, nos dramas shakespearianos, no Século de Ouro espanhol
ou no classicismo francês, e não foi à toa que, junto do modelo de unidade grego, resgatouse, também, a mitologia, como atestam Eurídice, de Jacopo Peri,11 e Orfeu, de Monteverdi,
entre outros, o que em certa medida limitaria a novidade do empreendimento, pelo menos
fora do campo estritamente musical. Contudo, a grande novidade da ópera reside no fato
de que, na sua tentativa de retomada da unidade primordial, ela o fez através de uma
espécie de reconstituição do drama grego e, nesse sentido, a reintrodução da música foi
fundamental, na medida em que se aproximou da desejada unidade enquanto a falta de
um ou de outro elemento teria inviabilizado essa aproximação em outros campos artísticos.
Assim, retornando às perguntas formuladas acima, de fato, estando na constituição do gênero o referido resgate, a ópera poderia ser tomada como precedente artístico do romantismo em geral, razão pela qual ela se desenvolve de maneira bastante
acentuada exatamente no período romântico, atingindo o seu auge com Wagner. Todavia,
no caso de Alencar, a questão é outra, sendo ele um romancista: por que a ópera se converte em modelo para composição de seus romances? A pergunta se complexifica quando
lembramos o percurso histórico aqui apresentado relativo aos dois gêneros, pois se a
ópera extrapola, em certa medida, por conta mesmo da unidade que almeja, os limites
materiais da arte a qual está previamente ligada, ou seja, a música, o romance é o gênero
por excelência do que se passou a entender por literatura no contexto da modernidade;
em outras palavras, o romance é o gênero que estabelece as condições de autonomia da
experiência literária, ou seja, de uma arte da escrita, enquanto a ópera parece refratária a
qualquer forma de autonomização.
Sob esse prisma, quando Alencar traz a ópera para o interior de sua concepção
de arte, o que ele parece ressaltar, além do aspecto sublime – também valorizado, como
se viu, pela personagem diletante de Martins Pena, embora não pela sua peça – é a possibilidade de reintrodução do corpo no circuito comunicativo através da voz materializada
pela recordação da cena operística. Quer dizer, o romance alencariano recusa a dicção
puramente literária do gênero em favor da experiência totalizadora da arte romântica
representada pela ópera. Entende-se, assim, o contraste entre a recepção dessublimadora
e prosaica da ópera por parte de Pena e, principalmente, de Macedo, e o tratamento poético, sublimador e transcendente, conferido por Alencar ao melodrama, mesmo, e talvez
só por isso, quando ele se encontra às voltas com temas cotidianos.
Para finalizar, e para que fique mais claro o que acabei de afirmar, tomarei como
exemplo o seu primeiro romance já aqui mencionado: Cinco minutos. Em forma de carta,
o narrador relata à sua prima como, chegando cinco minutos atrasado ao largo do Rossio,
atual Praça Tiradentes, com intuito de tomar o ônibus das seis horas para o bairro do Andaraí, acabou pegando o das sete e conheceu a mulher com quem acabaria se casando,
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O que se percebe, também, no subtítulo: “Tragédia em homenagem ao ideal antigo”.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
119
Carlota. O encontro dentro do veículo é, no mínimo, curioso: ele se senta ao lado de uma
mulher toda vestida de seda, cujo rosto estava coberto por um véu. Os corpos se tocam,
as mãos se apertam e o narrador, através de várias inferências de natureza axiológica,
procura deduzir da beleza ou feiura da figura enigmática. Absorvido por todo esse enleio
amoroso, o narrador não se dá conta do momento em que ela sai do ônibus:
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar
diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo
de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase
imperceptivelmente:
– Non ti scordar di me! ...
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco
até nove horas da noite.
Nada! (Alencar, 1967, p. 5)
Após o episódio, o narrador, sempre atento à possibilidade de encontrá-la, no
entanto só possui um elemento capaz de identificá-la: a voz. É quando, em um baile,
surge uma nova pista: “quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti
um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava
dentro de minha alma, murmurou: – Non ti scordar di me!...” (Alencar, 1967, p. 6). A voz
não era propriamente da pessoa que ele procurava, mas, sim – e algo que ele só vai descobrir mais adiante –, da mãe da sua desconhecida. Não creio que seja demais especular
que, do ponto de vista de um possível efeito de leitura do romance, Alencar esteja aí
lidando com um horizonte de expectativa bastante claro naquele momento: o leitor de
romance era, também, um espectador de óperas. Assim, a frase lançada de Il trovatore,
de Verdi e Cammarano, no início de um relato escrito, não funciona apenas como mera
alusão a ser buscada por aquele que lê, mas como elemento constitutivo da articulação
que o texto infringe ao leitor, na medida em que requer desse a recordação de um quadro
de referências prévio à leitura, de um quadro moldado pela experiência estética, e até
afetiva, por ele vivenciada nas salas de concertos – é claro que estou sempre me referindo
aqui ao possível leitor de 1856.
Isso fica ainda mais evidente no terceiro encontro entre os personagens que se
dá exatamente no teatro, durante a encenação de La traviata, do mesmo Verdi. Após
avistar mãe e filha, o narrador consegue o bilhete do camarote ao lado e, no decorrer do
último ato da ópera, se dirige a Carlota: “– Não me esqueço” (Alencar, 1967, p. 8). À reação supostamente fria de Carlota segue o discurso revoltado do narrador contra a vaidade
feminina: “Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata,
interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca” (Alencar, 1967, p. 8). A oração final
empresta a todo o período uma ambiguidade significativa que pode ser tomada como
sintoma da articulação a que me refiro e da destreza com que Alencar a incorpora na letra
do texto: a frase não deixa claro de onde provém a tosse que “interrompe” a ária, se de
Carlota ou da própria Charton. Mesmo reconhecendo Carlota como a responsável pelo
ato, enfrentar a ambiguidade implica o entendimento de um recurso formal de identificação por meio da sobreposição de signos de diferentes artes, cujo alcance estaria na
realização de tão desejada unidade: a articulação da ópera no romance se coaduna com
a tentativa de produzir no leitor o efeito que uma ópera produziria, dramatúrgica e musicalmente, em seu expectador, superando, assim, o limite material da escrita e da “percepção silenciosa” requerida pela leitura. Nesse sentido, o romance alencariano vai de
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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encontro à cultura impressa que lhe deu origem e ao próprio gênero, assim como se volta
contra a distância instaurada pela ausência do corpo do circuito comunicativo; no drama
musical, ao contrário, vida e obra se combinam, e vozes são repercutidas, como as de
Marguerite Gautier, Violeta, Charton e Carlota.12
Referências bibliográficas
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Confederação dos Tamoios. São Paulo: FCL/USP, 1953.
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Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1981.
Bakhtin, Mikhail. “Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance)”.
Tradução de Aurora Bernardini et al. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do
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Lausberg, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução de R. M. Rosado
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Santos Machado. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)
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Zumthor, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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12
Lembro que La traviata é baseada em A dama das camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho, texto com o
qual Alencar dialoga tanto em Cinco minutos, quanto nas peças As asas de um anjo (1859) e A expiação (1868),
bem como em Lucíola, romance de 1862.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
ÓPERA NA AMÉRICA PORTUGUESA
123
O palimpsesto iluminista: a ressignificação
dos modelos operísticos por um estudo de
repertório da Casa da Ópera de São Paulo
Diósnio Machado Neto
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto
Desde a década de 1750, como vimos referindo, as esferas constituintes da malha
social, como a educação, a economia, a religião e, também, as formas de vivência lúdica,
foram submetidas a conflitos e acomodações cuja base era a intersecção das possibilidades
críticas do indivíduo com um ideal de bem comum, mediado pelo poder absolutista. Assim,
trazendo à razão como justificativa, a ação tratava de mediar novas configurações da
crítica individual, compartimentando o discurso da Igreja a questões místicas.
Para tanto, tratou de desenvolver, por uma censura rígida do poder temporal, a
“utilidade do bem comum” através de uma laicização da compreensão da Natureza e, por
essa, inocular uma compreensão da própria condição humana e sua relação de dependência com uma ordem estabelecida e representada na figura do déspota. Para impulsionar
essa sociedade a uma consciência virtuosa, o redimensionamento do espaço público,
alterando tanto o ambiente doméstico como o público, era primordial, pois nele se consubstanciariam os mais altos valores humanos que combateriam a corrupção e, indiretamente, levariam o Reino e sua população ao desenvolvimento e equilíbrio necessários
para a plenitude da vida. Como já observamos, era uma ordem geométrica.
Sem entrar nos méritos complexos dessas cadeias de conflitos e negociações,
podemos dizer que eles são inerentes à política baseada no acúmulo do capital mercantil,
pretendido por Pombal. Torrão Filho indica que esse processo é marcado pela ampliação
do espaço de discussão privada que se articula, antes de qualquer coisa, nas pequenas dimensões sociais. Citando Habermas, Torrão Filho forja a ideia desse lento desenvolvimento
da crítica ao redor de um “debate público das pessoas privadas reunidas num espaço
público” (Habermas, 1984 apud Torrão Filho, 2006, p. 153). Esse debate é justamente
consequência do modelo que, ambiguamente, tratava de centralizar o poder, mas ao
mesmo tempo incentivar a iniciativa privada através do desenvolvimento de sua capacidade de discernimento do “bem” comum. E a ambiguidade, como afirma o autor está
“no interior da família patriarcal burguesa, que não exclui ninguém, mas exige formação
cultural e propriedade para a participação política” (p. 152).
Nesse projeto, tanto o salão familiar como a ópera elevaram-se como espaço de
ruptura do discurso da velha ordem patrimonialista estamental. Apesar da aparente insignificância diante de um sistema social tão enraizado, essa modificação dos espaços lúdicos
auxiliou uma alteração da sensibilidade social no Brasil. Veremos como esse redimensionamento deslocou o centro de gravidade da valoração moral, atuando na formação de
uma opinião pública que, tradicionalmente regida pela preponderância do ato privado,
que desconsiderava estatutos, contratos e até mesmo uma moral religiosa, passou a conceber, mesmo que timidamente, uma relação social fundada numa res publica regida justamente por um universo de letras e normas, contratos e negociações.
A ópera como elemento esclarecedor
Vivido no tripé da devoção religiosa (Coroa, Ordinário e Santo Ofício) a Real Mesa Censória constrangia, nos finais da década de 1740, o melodrama da tradição vicentina
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ou de sátira social como drama jocoso de Antônio José da Silva. Entre outros fenômenos,
tal postura oficial e vigilante de uma moral casta e proselitiva impedia a introdução plena
dos padrões dramáticos iluministas (Carvalho, 1993, p. 49).
Exemplar dessa mentalidade foi o estabelecimento das imposições comportamentais e estéticas para a continuidade das funções no Pátio das Comédias, cujas verbas
se revertiam para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Para “evitar maiores danos
circunstancia a que atenderão sempre as leis que até dissimulam algumas coisas de pecado
público” (apud Brito, 1989, p. 98), em 1730 estipularam-se normas que incidiam sobre o
conteúdo das comédias e as qualidades do público. Tal fato só foi possível diante da determinação firme do Rei de proibir as comédias em Portugal, após a apresentação de pareceres de trinta teólogos que não viam constrição moral no ato da promoção das comédias
(Brito, 1989, p. 99). O libelo liberatório foi justamente promovido por um dos principais
membros da elite “ilustrada”, Francisco Xavier de Menezes, o 4º Conde de Ericeira. Outro
fato igualmente revelador foi a suspensão dos espetáculos teatrais pelo impacto místico
que acometeu Dom João V após a decaída de sua saúde. El-Rei foi “aconselhado por um
frade, Frei Gaspar da Encarnação, e apoiado pela Rainha D. Mariana da Áustria, a qual
como exemplo de ocupação mais segura fazia frequentes visitas às igrejas” (Brito, 1989,
p. 103).
Dessa forma, a introdução da ópera italiana e dos gêneros de teatro musical
burguês nos vários círculos da sociedade não freava a aptidão e a disposição consuetudinária do clero, assim como os preconceitos da mentalidade religiosa inoculada pela tradição devota de grande parte da nobreza e da própria realeza. No entanto, a ópera bufa
patrocinada pela Câmara Real, a ópera séria frequentada pela nobreza na Academia da
Trindade, e o desenvolvimento do teatro musical de matriz popular, no Teatro do Bairro
Alto pelas óperas de Antônio José da Silva, indicavam já uma mudança trazida pelos ares
das formas de sociabilidade do mercantilismo que se desenvolvia em Portugal. Promovido
pelas arcas de mercadores estrangeiros de grosso calibre, os agentes do divertimento público venciam espontaneamente as barreiras dogmáticas e estimulavam as apropriações
reformadoras dos costumes.
Para Manuel Carlos de Brito, todo esse fenômeno por si só foi suficiente para
inocular uma renovação no espírito obscurantista e introduzir os modelos melodramáticos
do Iluminismo (Brito, 1989, p. 100). Rui Vieira Nery corrobora a tese:
No seu conjunto, os espetáculos públicos dos Teatros da Trindade e da Rua dos
Condes, por um lado, e do Bairro Alto, por outro, demonstram uma vontade de
apropriação, por parte da sociedade civil, de uma operática italiana que penetra
em Portugal pelos círculos exclusivos da Corte, correspondendo a uma estratégia
deliberada de renovação política, ideológica e artística promovida pelo próprio
monarca, e fora até então fundamentalmente canalizada para a órbita litúrgica
[…] Há indícios de que as óperas italianas da Trindade e da Rua dos Condes seriam frequentadas principalmente pela aristocracia cortesã, sabendo-se, nomeadamente, de sessões privadas integralmente contratadas por senhoras nobres
para os seus convidados, enquanto o Teatro do Bairro Alto atrairia um público
de extração majoritariamente burguesa, naturalmente avesso ao uso da língua
italiana e mais sensível à sátira social e às graças por vezes um pouco brejeiras
dos textos do judeu. No entanto, os dois espaços teatrais não terão sido por certo estanques do ponto de vista sociológico, e mais importante do que a imposição
de quaisquer modelos explicativos apriorísticos é a constatação dessa componente civilista que lhes é comum e que só será partilhada pela corte já no reinado
de Dom José I (Nery, 1999, p. 94).
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Mário Vieira de Carvalho, entretanto, discorda da tese. Para ele o fato da introdução de modelos discursivos alinhados em outros centros com os movimentos ilustrados
não é suficiente para consolidar o movimento no teatro cantado português. Mesmo
considerando o surgimento de um teatro de crítica social, como o teatro de bonifrates de
Antônio José da Silva, e a recepção de inúmeras obras de Metastasio,1 como um avanço
contra a prevalência da moral religiosa na determinação e constituição da linguagem teatral, Carvalho desconsidera-o como signo do Iluminismo. Para ele, o Iluminismo trazia
protocolos e estruturas de recepção que não ocorriam plenamente nas formas de sociabilidade da nobreza e da burguesia introduzida na relação com o teatro musical.
Segundo Carvalho, o que era fundamental para a ópera na opinião dos iluministas,
entre eles Rousseau, André Grétry e Charles Burney, era a “retroação forte”. Esta ocorreria
quando o envolvimento do público com a ação dramática levasse à transcendência da
consciência da “farsa” teatral para presenciar a própria vida fluindo diante de seus olhos.
A sedução provocada pela ação dramática deveria eliminar simbolicamente, com todos
os recursos possíveis, a parede entre o palco e a plateia. Dessa forma, a mensagem edificante seria inoculada pela fruição estética e a naturalidade pela qual o discurso artístico
era exercido tanto pelo autor como pelos atores (Carvalho, 1999, p. 62).
Para criar essa “ilusão” alguns elementos do teatro musical aristocrático deveriam ser rechaçados. A primeira questão era negar o caráter fantasioso, a “poética do
maravilhoso”, da tradição operística que vinha do seiscentos: “despertar, não ‘étonnement
puérile, sobre o ‘maravilhoso’ e o ‘jamais vu’, mas sim interesse através da imitação da
natureza, da verossimilhança da ação e da mais perfeita ilusão” (Carvalho, 1999, p. 36). O
bel canto seria justamente o exemplo da artificialidade que criticavam os iluministas. A
virtuosidade do canto ornamentado era um princípio da ópera barroca, diametralmente
oposto ao desejado por um teatro cujo objetivo era edificar. Ele representava a mácula da
individualidade, do egocentrismo, dos prejuízos opressores das oligarquias dominantes,
o que Rousseau chamava de despojos do homem histórico-social, cujo processo alienava
o homem de sua “verdadeira essência, pois seduzido pelas luzes da ribalta, ele se produz
enquanto espetáculo […] o indivíduo passa a agir segundo as imposições da ‘opinião
pública’” (Freitas, 2003, p. 33). Ademais, essa “exibição do eu opõe à virtuosidade o
envolvimento no drama representado e, ao propósito de provocar espanto, a ilusão. O
ator devia desaparecer no que representava e, deste modo, levar também o espectador a
envolver-se no que era representado. A arte não era para ser mostrada: a maior arte consistia em ocultar a arte, em apresentá-la como “natureza’” (Carvalho, 1999, p. 43). Essa
seria a única maneira de realizar o projeto iluminista, em que o teatro assume um papel
pedagógico, “cujo núcleo é o conceito de ‘catharsis’” (Freitas, 2003, p. 33).
Para Carvalho, as relações de comunicação para desenvolver um modelo de
identificação entre o público e a obra versavam então sobre a “redução da complexidade
de recepção […] reduzir a complexidade do texto musical foi um artifício para realizar a
superação da exibição do eu e equilibrar a retroação palco/plateia” (Carvalho, 1999, p.
59). Para tanto era necessário reduzir o espaço de intervenção virtuosística do cantor e
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1
Manuel Carlos de Brito (1989, p. 105) relaciona as óperas de Metastasio apresentadas no Teatro da Academia
da Trindade. Entre 1736 e 1742, quando foram suspensas as atividades teatrais, praticamente em todos os anos
houve récitas de óperas do abade italiano, entre elas: Alessandro nell’Indie; Artaserse; Demofonte; L´Olimpiade;
Il Siroe; La Clemenza de Tito; L’Émira; Demétrio; Catone in Utica; Ezio e Didone abbandonata. Na maior parte
das apresentações a música era de Schiassi, que até mesmo permaneceu um tempo em Lisboa. Como afirma
Carvalho, Metastasio representava alguns valores tangentes tanto à monarquia como à religião, principalmente
a “gravidade e caráter exemplar das ações” (Carvalho, 1993, p. 32). Ademais, podemos acrescentar que em
Metastasio a simbologia salvacionista do poder temporal era sempre sufragada pela benevolência espiritual e
realizada nos protocolos da razão onde o poder do soberano era traçado em linhas heroicas. Esse programa
ideológico constituía um capital simbólico fundamental que era importante inocular na consolidação do regalismo
que pretendiam as monarquias setecentistas.
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dessa forma aumentar a prevalência do compositor, um “Deus ex-macchina da racionalização total” (Carvalho, 1999, p. 61).
A racionalização imarcescível da criação, no entanto, estava na proporção inversa
da recepção, pois, aumentando a complexidade da máquina teatral, a ilusão se realizaria
conduzindo “à percepção de um artifício altamente complexo como ‘simples natureza’”.
(Carvalho, 1999). A estrutura de representação justamente buscava induzir a visão de um
sistema espontâneo, “a supressão da racionalidade através da completa entrega à ilusão”
(Carvalho, 1999, p. 61). O desenvolvimento da técnica de atuação, da cenografia, do vestuário etc., necessários para efetivar a “ilusão”, era inversamente proporcional à resistência
das formas fechadas do discurso musical, como a aria-da-capo, vista nas óperas de Gluck.
Nesse mesmo princípio da ilusão desdobrou-se um esforço para modificar a
mentalidade da recepção. Era necessária, nesse “novo” sistema, a apreensão total do espectador, o que contrariava o espírito peregrino da recepção teatral nos modelos seiscentistas... O teatro não poderia ser um mero divertimento, uma “exibição do eu”, um deleite para os sentidos primários. A pretensão do teatro iluminista pressupunha a atenção
comovida, o envolvimento sincero, a superação da mentalidade que buscava a “satisfação
da vista e do ouvido”; enfim, o teatro não deveria ser um mero interlúdio para a convivência
social.
Sintetizando em poucas linhas, para Carvalho o teatro frequentado pela nobreza,
principalmente promovendo as óperas de Metastasio, “em vez de tender à difusão das
Luzes, a ópera séria tendia, antes, simplesmente, a favorecer o desenvolvimento da convivência social” (Carvalho, 1993, p. 33). Igualmente problemático seria o teatro do Bairro
Alto. Mesmo considerando pontos de tangência com o modelo da opéra-comique francesa,
do singspiel alemão ou da ballad opera inglesa, o teatro burguês de Lisboa carecia de um
importante princípio ativo da pedagogia social do teatro iluminista: o envolvimento do
ator no personagem que acabava suprimindo a farsa da dramatização, desvelando a vida
real na identificação do espectador com “outro” vivido, e não representado. O fato do
modelo do Teatro do Bairro Alto concretizar-se em bonecos eliminava completamente
esse princípio básico, na opinião de Mário Vieira de Carvalho. Para o autor, a sátira social,
a crítica do cotidiano, a exposição do conflito entre as classes, até mesmo a utilização
caricaturesca dos motivos mitológicos e das fórmulas da ópera séria italiana, presentes
principalmente nas óperas de Antônio José da Silva, era não mais que um momento do
conflito inicial entre as Luzes e o obscurantismo da herança teatral religiosa (Carvalho,
1993, p. 36).
Importante transformação ocorreu com a subida ao trono do Príncipe do Brasil,
Dom José I. Seu gosto pela ópera italiana o transformou em um dos principais mecenas
do gênero. No início de seu reinado, construiu a Ópera do Tejo, considerada pelos contemporâneos um dos mais imponentes teatros de ópera da Europa. Infelizmente ele não resistiu
ao terremoto, assim como o arroubo mecênico inicial. Durante os oito anos seguintes ao
terremoto, as atividades operísticas foram interrompidas. O retorno, no entanto, consubstanciou um importante signo das transformações articuladas por Pombal: a
incorporação da burguesia comercial nos círculos de sociabilidade da Ópera, antes restrita
à nobreza.
A primeira grande transformação foi, como explica Mário Vieira de Carvalho,
admitir o teatro como elemento primordial na formação de redes de sociabilidade. Aqui,
o teatro integrava um “processo de promoção e nobilitação gradual” (Carvalho, 1993, p.
45). Tanto a burguesia como a nobreza dialogavam concreta e simbolicamente, não só
pelos corredores dos camarotes, mas representando reciprocamente os valores de cada
qual, de forma que uma síntese social era, em tese, assentada pela ação pedagógica do
teatro.
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Assim, contribuindo para impulsionar as mudanças nas estruturas de dominação
econômico-políticas pela apologia ao despotismo esclarecido, a capacidade que a ópera
assumia em aglutinar o escol social acabava inoculando novas formas de conhecimento e
gerenciamento da realidade, que mesmo na preservação da matriz religiosa flexibilizava
as operações dos padrões e conceitos da vida cotidiana, até mesmo dentro da mentalidade
devota. Dessa forma, a retroação tornava-se um importante elemento de nivelamento
das consciências. Tão importante foi esse aspecto que, em 1771, o consulado pombalino
reconheceu na ópera o papel pedagógico idealizado pelos iluministas:
Eu El-Rei faço saber […] que os homens de negócios da Praça de Lisboa Me representarão, que o grande esplendor e utilidade, que resulta a todas as Nações
do Estabelecimento dos Teatros públicos, por serem estes, quando são bem regulados, escola onde os povos aprendem as máximas sãs da Política, da Moral,
do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da Fidelidade, com quem devem servir os
seus Soberanos, civilizando-se e desterrando insensivelmente alguns restos de
barbaridade, que neles deixaram os séculos infelizes de ignorância. (Benavides,
1883 apud Carvalho, 1993, p. 45)
Essa declaração traz explícito o corpo conceitual do despotismo esclarecido: a
utilidade da ação pública e especialmente do teatro; a civilização pela educação; o fim
comum que é o Estado e esse o único caminho para o bem comum; a aliança com a burguesia comercial; e a projeção do futuro glorioso superando os “séculos infelizes de ignorância”, sustentada na querela primordial do Iluminismo: o debate entre modernos e
antigos. Como sintetiza Mário Vieira de Carvalho, “o teatro, até então somente tolerado
ou, sobretudo, reprimido, quando não ele próprio repressivo (o dos jesuítas), passava a
ser considerado escola dos povos contra a ignorância. Era a primeira vez que surgia em
Portugal um discurso iluminista sobre o teatro. Provinha da burguesia e o Rei homologavao” (Carvalho, 1993, p. 46).
O papel apologético da ópera, sobretudo na divulgação dos ideais do projeto
pombalino, era outra questão importante. Como vimos, através da Real Mesa Censória o
consulado de Pombal controlava firmemente os parâmetros e paradigmas da atividade
cultural portuguesa e, além disso, promovia suas ações e doutrinas. Dessa forma, a conjuntura política era um componente primordial dos pareceres dos deputados da Real
Mesa e não raras vezes o órgão censor imprimia o selo da ambiguidade, induzidos pelas
mudanças da marcha ordinária do governo.
Ademais ocorreu toda uma transformação no sistema comunicativo do teatro
musical, alinhando-se, então, com as características iluministas cobradas por Mário Vieira
de Carvalho. A primeira a se destacar era a nova forma de retroação marcada pela mudança
da atitude de recepção. Cabe dizer que alterar os libretos não causava constrangimento
aos editores ou tradutores. Considerável número de libretos publicados com a autorização
da Real Mesa Censória era “adulterado”, até mesmo introduzindo-se novos personagens
ou trechos poéticos que buscavam identificar o herói literário com o Soberano, as “licenzes”,
ou os valores promovidos por este, como a religião católica (Carvalho, 1993, p. 192). Tanto
Brito como Carvalho destacam que o teatro da ópera séria tornou-se lugar do mais completo silêncio, superando a balbúrdia apontada por tantos nativos e estrangeiros: “as récitas
tinham lugar entre as sete da tarde e dez da noite, e a elas se assistia em silêncio absoluto”
(Brito, 1989, p. 115). Carvalho diz que isso indicava uma assimilação dos protocolos iluministas, no que diz respeito à consciência edificante do espetáculo teatral. Aponta, no
entanto, outros fenômenos: a intenção declarada de promover a ilusão, alguns espetáculos
contavam com mulheres ou castratis que “pareciam autênticas senhoras”; o número de
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vezes que a ópera era repetida, em que “num modelo de representação ou separação de
competências (eliminação de estruturas de ‘exibição do eu’, silêncio, atenção dos
espectadores centrada no palco), a assimilação do ‘drama’ e das suas implicações morais
e políticas era, naturalmente, favorecida pela repetição de cada obra”.
Mário Vieira de Carvalho, no entanto, aponta para singularidades do modelo da
corte de Dom José. Primeiro diz que o projeto de desenvolvimento de um teatro iluminista, baseado principalmente no desenvolvimento do discurso burguês ocorre ao “inverso”, ou seja, não nos braços do teatro nativo, mas na ópera séria italiana, o que subvertia
os princípios declarados pelos movimentos em outros países.
A função institucional declarada [difusão das luzes] e a ‘dissimulada’ [sociabilidade] vão ter, porém, na prática uma eficácia inversa: o que a burguesia consegue é assegurar a sociabilidade, mas não organizar o teatro de acordo com os
princípios do Iluminismo. O estatuto da sociedade por ações já era bastante
revelador a este respeito: o teatro melhor apetrechado (Condes) destinava-se à
ópera italiana, o pior e mais barato (Bairro Alto) ao teatro declamado português.
Sobretudo não havia qualquer menção relativa a uma especial promoção do
teatro português ou ao desenvolvimento de um teatro musical português (semelhante ao singspiel). (Carvalho, 1993, p. 46)
Dessa forma, Vieira de Carvalho considerava que a burguesia não desenvolveu
nada mais do que a sociabilidade, constrangendo o principal elemento da estética iluminista, ou seja, a manifestação nacional, espontânea que libertaria a burguesia da exibição
do eu, mesmo que fosse no ato social e não musical.
No entanto, esse é um problema complexo, pois o sentido metafórico do movimento iluminista glosou ideias que, consubstanciadas em estratégias políticas, repercutiram em diferentes classes sociais, estratégias de governo, formas de uso e vias de
acesso. Dessa forma, mesmo considerando a autoridade que nega todos os adjetivos do
Iluminismo, consideramo-los tão amplos que mesmo dizendo o que eram, eram-lhe negadas a essência por serem.
De qualquer forma é necessário frisar que a ópera determinou uma mudança
significativa nas formas de relacionamento vertical e horizontal da população e seus
domínios de entendimento da realidade. Independentemente se foi a ópera séria que
melhor articulou as ideias iluministas, o que seria uma contradição só mesmo possível
nas particularidades da mentalidade portuguesa, o fato desse princípio inocular os valores
sociais espalhou-se por todo o Reino. Veremos, em seu tempo, que o governador de São
Paulo, assim como seus congêneres pelo Brasil, incentivou a ópera com despesas muitas
vezes pagas pelo próprio bolso. Ademais, criaram-se modelos de comunicação híbridos,
permitindo a atuação de mulheres ou, como no caso na casa de ópera de São Paulo, representando no mesmo palco tanto ópera séria italiana como exemplares do teatro
português, como clamava Mário Vieira de Carvalho para selar a estampa iluminista na
vida teatral da corte.
No Brasil, refletindo o laço colonial, o teatro com música esteve sempre presente
acompanhando o desenvolvimento dos núcleos populacionais. Como em Portugal, até
meados do século XVIII o teatro religioso era preponderante, principalmente o teatro
jesuítico. No entanto, nas festas cívicas representava-se em espaço público as chamadas
comédias, que eram basicamente peças alegóricas que dramatizavam simbolicamente os
valores fundamentais para a afirmação da autoridade monárquica, aludindo sempre as
duas devoções: Deus e o Rei.
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Através de uma efervescência oficial no fomento da ópera construiu relações
intensas entre os agentes régios e os empresários do divertimento teatral, principalmente
a partir da década de 1760. O sistema contratualista igualmente regeu as relações entre
os agentes régios e os empresários que buscavam explorar o teatro. Nessa senda, revelase particularmente o mecenato de dois governantes emergentes no cenário político português: o Morgado de Mateus e do Vice-Rei do Brasil, Dom Luís de Vasconcelos e Souza,
o Marquês de Lavradio, que governou de 1769 a 1778.
Sobre o Marquês de Lavradio, Ayres de Andrade (1967, p. 67) mostra por farta
documentação que o empresário que substitui o Padre Ventura, o comediante músico
Manuel Luís Ferreira, tornou-se um homem de forte inserção social adquirido nos protocolos cortesãos, forjando um clientelismo típico do Antigo Regime.
Sem estender a análise desse mecenato, cabe dizer que tanto era o vínculo de
Manuel Luís com o poder que, na opinião de seus contemporâneos, o antigo comediante
não passava de um “alcoviteiro” a serviço do Marquês de Lavradio. A tendenciosa detração
no mínimo sublinhava o vínculo, velando favores escusos, já que o músico-empresário se
estabeleceu de tal forma que monopolizou as funções lírico-teatrais do Rio de Janeiro e
sua influência transpassou o governo de Lavradio. De forma única na história da música
colonial, um músico, feito empresário, recebeu inúmeras comendas, sendo até mesmo
nomeado moço da câmara do Príncipe Regente Dom João VI e Coronel de Milícias do
Quarto Regimento (Andrade, 1967, p. 65).
No entanto, o caso mais intenso de relação de um governador com o “divertimento da ópera”, segundo as fontes disponíveis, ocorreu em São Paulo, no governo de
Dom Luiz Alberto Botelho de Souza Mourão, o Morgado de Mateus. Esse governador impulsionou o “divertimento da ópera” por um envolvimento pessoal singular conferindo a
ela até mesmo um caráter revelador de sua visão de mundo em que a arte, de um modo
geral, figurava num papel central de representação e afirmação do poder.2 E esse desejo
não era constrangido pela visão da inviabilidade cultural da Capitania de São Paulo. A inexistência de círculos mais ilustrados e padrões de sociabilidade era o que o estimulava,
como ele próprio diz revelando o cunho iluminista que encontrava simbolizado na ópera:
“que com estes meios [a ópera] facilita a civilidade e a convivência desses povos” (Nery,
2006, 44min).
Enfim, enfrentando diversos obstáculos, o governador tratou de organizar uma
inserção de ideias ilustradas que visavam modificar as estruturas da opinião pública,
primordial para o estabelecimento de uma via desenvolvimentista exigida pelo despotismo
pombalino. Assim, além de estimular uma interiorização do conhecimento científico
através de prospecções marcadas pelo signo da ciência possível, promoveu ferramentas
para a inserção do povo de São Paulo nos índices culturais do Iluminismo católico, em que
a renovação de habitus era entendida como a ponte primordial para o desenvolvimento
e consolidação do absolutismo português.
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2
Grande parte do envolvimento de Dom Luiz Alberto com a ópera foi preservado graças ao hábito raro no universo
dos governadores portugueses de registrar o cotidiano de suas atividades em um diário. Belloto (1979) afirma que
somente existe um congênere, feito por um governador das Índias, porém longe da riqueza de detalhes do memorial
do Morgado de Mateus. Em seu “diário de viagem” relatou não só efemérides das atividades operísticas, como os
títulos das obras e as questões sobre a recepção, como os muitos conflitos e dificuldades que envolviam a colocação
em cena das peças lírico-teatrais. Cabe ainda dizer que o códice referido tem um caminho sinuoso. Primeiro porque o
próprio governador fez duas cópias. Uma enviava para a sua esposa em Portugal, como forma de proteção circunstanciada. A outra, uma espécie de rascunho, ficava em sua posse. O conjunto de manuscritos pertenceu primeiro aos
fundos da Casa de Mateus, em Portugal. Posteriormente foi adquirido pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Fizemos inúmeras tentativas de localizar esse documento, porém foram sempre infrutíferas. No entanto, o conhecimento do teor desse diário nos chegou através de Rui Vieira Nery que conseguiu uma cópia dele através da historiadora Heloísa Bellotto. Em que pese o musicólogo português ainda não ter publicado nenhum trabalho a respeito, promoveu uma conferência sobre essas memórias em 2006, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo (Nery, 2006). Referendados nessa conferência, disponibilizada on-line, constituímos nossas fontes sobre o caso.
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A primeira ação do Morgado de Mateus foi montar uma estrutura física e humana
para a ópera paulistana, repetindo, evidentemente, o modelo europeu. Para tanto, e já
demonstrando a organicidade do espaço, anexou a casa da ópera ao seu palácio de
governo. Ao que tudo indica foi em 1767 que se iniciou a construção. Segundo nos relata
Nery (2006), o diário do Governador demonstra sua “obsessão” pela obra, chegando a
inspecionar os trabalhos e relatar detalhadamente o seu progresso: “andam trabalhando
com grande força num excelente teatro que por delegação de Sua Excelência3 se está
fazendo em um dos quartos do colégio [dos jesuítas], onde ele instalou seu palácio de
governo” (Dom Luiz Antônio, 1767 apud Nery, 2006, 42min). A inauguração, que
primeiramente deveria ocorrer na Páscoa, deu-se em 6 de junho de 1767, ou seja, no dia
do natalício de Dom José I. Na ocasião foi apresentada a ópera de Antônio José da Silva,
Anfitrião ou Júpiter e Alcmena.
Figura 1. Casa da ópera de São Paulo (esq. da foto), anexa à Igreja da Companhia de Jesus.4
Nessas primeiras funções, a música era executada pela gente da terra, usando,
por exemplo, meninos cantores que aprendiam música nos antigos aldeamentos jesuíticos,
em que pese a expulsão, mantiveram a tradição de ensino da arte.5 Posteriormente, o
Governador contratou pessoalmente o músico mineiro Antônio Manso da Mota, confiando-lhe a tarefa de organizar integralmente as récitas.
Esse aspecto é importante de se destacar: a preocupação de Dom Luiz Antônio
pela atualização da sua casa de ópera, concretizada na contratação de um músico de um
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3
Num estilo clássico, as memórias do governador sempre estão escritas na terceira pessoa.
Disponível em <http://www.abril.com.br/especial450/materias/teatro/foto1.html>, acessado em 2 de janeiro
de 2008.
5
Pasquale Petrone afirma que missões como as que existiam em São Miguel Paulista mantinham viva a tradição.
Diz que a música dos índios animava as festas religiosas das aldeias, atraindo a população vizinha (Petrone,
1995, p. 331). Na festa que se realizou em São Borja, ainda sob domínio espanhol na década de 1760, podemos
ver a expectativa da população diante da apresentação dos artistas “da terra”: “[…] entraron [os ameríndios das
missões jesuítas de Trinidad, Martyres, y San Thomé] en el Pueblo al son de sus Clarines, Chirimias, y cajas,
todos en ordem, causando grande movimiento, y alegria en todos los Militares, y vivenderos” (Instituto de
Estudos Brasileiros, Coleção Lamego, cód. 68, doc. 1). Sobre essa última memória podemos destacar dois aspectos: primeiro é a dimensão do grupo musical, 170 integrantes entre cantores e instrumentistas de vários
naipes; e, segundo, a laudatória, que sublinhava a qualidade dos grupos vocais dos ameríndios, equiparando-os
aos das melhores catedrais da Espanha.
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grande centro, como a Bahia. Outros artistas igualmente foram arregimentados pelo
governador, como demonstra seu diário de governo. Ademais, essa preocupação vinculavase, também, aos papéis de música. Dom Luiz Antônio registrou no seu diário o envio de
Antônio Manso ao Rio de Janeiro para adquirir partituras, tanto para a ópera como para o
coro da Sé (Nery, 2006, 56min 30s). Ainda segundo Nery (2006), em inúmeras ocasiões o
governador se referiu a atualização do repertório que se executava tanto na igreja como
no teatro. Destacava o Morgado, sempre como autoelogio, que algumas peças ou óperas
foram cantadas em Lisboa com pouca distância de tempo. Fez alusão no seu diário, por
exemplo, de execuções de músicas compostas por David Perez e de um Te Deum que, segundo suas próprias palavras, “foi apresentado diante do Rei no ano novo” (apud Nery,
2006, 56min).
Justamente nesse sentido o prestígio de Manso da Mota consolidou-se junto ao
governador, pois para a autoridade a música do mestre mineiro era “provida das melhores
solfas de bom gosto do tempo presente” (apud Duprat, 1995, p. 51). Assegurava, ainda,
que tal música era “de violinos”. Em outras palavras, o músico de Sabará representava
uma mudança no sentido do gosto da época, que pouco a pouco se distanciava do “stile
antico” em prol de um “profanismo, influência do melodrama italiano, texto em português,
primórdios do estilo galante” (Duprat, 1995, p. 51). E essa postura do Morgado de Mateus
confirma a disposição do governador em estabelecer um padrão estético referenciado na
corte portuguesa e, sempre, objetivando o estabelecimento dos paradigmas do Iluminismo
católico, como ele próprio afirma para justificar a imponência das festas públicas e religiosas: “não só para cumprir com o seu afeto e com o muito que deve ao seu senhor, mas
também para imprimir nos corações desse povo a veneração e a obediência ao seu soberano e fazer adiantar o conhecimento do seu real nome que nessas remotas partes em
muitos indivíduos era ainda ignorado” (apud Duprat, 1995, p. 56-57). Em síntese, o Morgado
de Mateus sempre tinha em mente edificar pelas festas, como propunham inúmeros protocolos das doutrinas iluministas que se espalhavam pela Europa.
Em que pese a determinação do governador, a partir de 1772, a ópera paulistana
foi vitimada pela apatia da comunidade, como já dissemos, distante das possibilidades
críticas encontradas em outros centros. O fato é que no costume da época a ópera vivia
de assinaturas dos camarotes. Na falta crônica de signatários o financiamento das récitas
comprometeu-se, como relatou em seu diário: “acabaram os operários de computar trinta
óperas que tinham permitido fazer aos partidários [assinantes] dos camarotes durante
um ano. E não pagando uns os partidos e outros deixam os camarotes e não querem
alugar mais, ficaram os operários impossibilitados de continuar nessa terra” (Nery, 2006,
1h 9min 23s).
No entanto, a convicção do governador de inocular as “boas” regras da civilidade
revelou-se mais intensa nesse momento de depressão. Diante do impasse do êxodo do
público criou uma intendência para o divertimento da ópera, concretizada na “portaria
sobre o divertimento da ópera”, assinada no dia 20 de novembro de 1772. Nomeou para
o cargo de Intendente o Juiz de Fora de Santos, José Gomes Pinto de Morais, obrigandolhe a realizar impreterivelmente “nos dias determinados as óperas estabelecidas, ordenando nessa matéria o que lhe parecer mais conveniente” (apud Bellotto, 1979, p.
248). Entre outras obrigações, o Intendente “tinha autorização para punir os músicos e
atores que não cumprissem seus deveres” (apud Bellotto, 1979, p. 248).
Assim, foi no âmbito da “Intendência do divertimento da ópera” que o Morgado
de Mateus estabeleceu uma política intervencionista direta para sustentar a casa de ópera
e frear a decadência que vinha se consubstanciando pelo desleixo do povo paulistano.
Chegou a ordenar ao Juiz de Fora, agora intendente, que formalizasse um contrato com
os músicos, “na forma que se pratica no Rio de Janeiro”, onde “os operários serão obrigados
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a fazer trinta óperas dentro de um ano, das quais oito serão novas. Estas vão ser feitas no
domingo à noite, iniciando no inalterado ponto das oito horas ainda que sua excelência
não se ache em seu camarote” (Nery, 2006, 1h 9min 30s). A determinação de restabelecer
a atividade desdobrou-se, também, para a determinação de enviar às principais famílias
da cidade um mapa dos camarotes “sugerindo” que cada uma escolhesse e pagasse pelo
lugar, dando, até mesmo, a oportunidade de que cada signatário pudesse pagar em crédito
pela referida assinatura (Nery, 2006, 1h 10min). Ou seja, Dom Luiz Antônio estava determinado, pela razão ou pela força, a promover a ópera e assim, como disse, continuar o
projeto de inocular civilidade promovendo a convivência do povo pela formação de uma
opinião crítica forjada no teatro, evidentemente mediada pelos desígnios do poder
estabelecido.
Em síntese, pode-se dizer que no campo das artes Dom Luiz Antônio teve uma
atuação destacável. Sua preocupação com os protocolos dos espetáculos públicos, forjados
na sua consciência do poder edificante que deles emanavam, o levou a promover ações
que, pelas conjunturas da terra, tinham uma execução extremamente mais complexa se
comparadas com as que ocorriam nos principais polos urbanos da Colônia, como Salvador
ou o Rio de Janeiro. A mobilização era diuturna e por vezes autoritária, porém sempre
orientada à concretização da ação lúdica como alavanca da civilidade. Ademais, não se
esquecia da devoção religiosa, e com igual brio tratou de promover a suntuosidade dos
eventos, pois entendia a religião como o elo que sacramentava o poder régio, logo o seu
próprio poder. Enfim, o governador era fiel ao binômio fundamental do iluminismo católico
português: a cruz e a espada.
Nessa senda, não se furtou ao debate que envolvia as configurações da arte nos
espaços públicos. E por esse espírito tenaz não tardou a ver sua estrela cair. Já desgastado
por contrariedades acumuladas nas incontáveis insistências de estratégias militares que
deveras contrariaram o Marquês de Lavradio e a própria Coroa, o Morgado guardou em
sua algibeira o desconforto da elite da terra que em muitas ocasiões se viu oprimida pelos
modelos de sociabilidade que o governante tratou de impor (Bellotto, 1979, p. 252 e ss.).
Um evento que lhe causou grande dano, por exemplo, foi um problema recorrente à primeira metade do século: a disposição eclesiástica de manter suas zonas de
influência. E esse problema teve como pivô justamente a determinação de manter a sua
casa de ópera. Para isso, promoveu o “operário” Antônio Manso ao cargo de mestre-decapela, contrariando a determinação eclesiástica de prover o cargo, o que se somava a
conflitos como a indisposição do governador de dividir seu palácio com a sede episcopal
(Bellotto, 1979, p. 316). A indisposição entre as duas principais autoridades, o que é simbólico, selou os autos que caíram sobre o governador. Acusaram-lhe de gastos indevidos
e enriquecimento ilícito; e a casa de ópera tornou-se, então, parte do seu “tendão de
Aquiles”. Ironicamente, a sua determinação em trazer o principal signo de civilidade tornouse um dos cravos que o crucificou!
Porém, para a nossa história foi essa determinação do governador que desvelou
mais intensamente a importância da ópera na configuração do modelo de sociabilização
iluminista, que chegou ao Brasil. O fato de Morgado de Mateus extrapolar os costumes
coevos e impulsionar a ópera por incentivos econômicos e anímicos institucionais, mantendo na sua mão a iniciativa de fomentar os espetáculos, torna o caso ainda mais significante. Ao contrário do que ocorreu em outras praças, Dom Luiz Antônio construiu o
teatro dentro de seu palácio e não só se satisfez com determinar a programação, como
seus congêneres, mas tratou o assunto dentro do âmbito privado. Inusitadamente contratou músicos com dinheiro próprio ou do erário, cuidando pessoalmente da constituição
do corpo de comediantes e músicos. Na iminência de falência praticamente obrigou as
famílias de posse da terra a cumprirem com a sua obrigação de levar ao povo e a elas
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próprias os índices de civilidade que ele vislumbrava como necessários para a ruptura da
cadeia de indigência que mediava o povo paulista. Como um autêntico déspota esclarecido,
despegou-se da subordinação que lhe era imposta e assumiu o papel messiânico para iluminar, ou “facilitar”, como disse, a inserção dos índices de civilidade e promover, essa foi
a sua palavra, a “convivência” do seu povo...
Enfim, o âmago da exacerbação de Dom Luiz Antônio estava na compreensão
de que o despotismo esclarecido era responsável pela correção da “humanidade impossível”. Para tanto, o remédio que tombaria os usos e costumes seria, entre outros, mas
principalmente, a catarse dramática. Destarte, o Morgado de Mateus não poupou argumentos e coerções para tornar o espetáculo do poder, como a ópera, a tração retroativa
para inocular o discurso costurado por códigos e práxis que afirmava a autoridade régia
na inteligência coletiva do povo e assim projetar o bem comum.
Por essa senda, ademais, podemos entender o envolvimento dos governadores
na criação e sustentação dos “negócios” da ópera: a ação velava a construção de vias de
acessos ideológicas que facilitaria as formas de governar nos domínios lusitanos. Nessa
articulação que redefinia os espaços da formação crítica, a Igreja foi um primeiro obstáculo.
Porém, distante de inibi-la, pois a base do Iluminismo português era uma base religiosa, a
estratégia foi determinar as fronteiras de sua atuação, tanto administrativamente como
ideologicamente. E justamente tal ato, ou seja, compartimentar as zonas de influência,
impulsionava a aventura da ópera, o que, sublinhamos, obedecia aos protocolos mais
ortodoxos do iluminismo europeu.
No Brasil, onde esse controle da influência religiosa era extremamente mais
complexo, a ópera acabou identificando-se, ainda mais fortemente, com o desejo dos
agentes ilustrados e deles exigiu atenção, ou os melhores esforços, como vimos no caso
do Governador paulista. Ademais, o problema da formação social no Brasil se expandia
para além do átrio das igrejas, o que reforçava a correção dos costumes pelo modelo de
intervenção persuasiva das formas de espetáculo do poder. Portanto, nesse vórtice da
humanidade impossível, o esforço para a alteração do espaço público – definindo agora a
casa de ópera como um elemento de intervenção ideológica na formação da consciência
coletiva – tornou-se um dos pólos fundamentais das reformas para alavancar a economia
da Colônia. E essa realocação das vias de acesso à apologia régia, antes somente nas
mãos da Igreja, foi construída como a ponte comunicativa com a opinião pública, permitindo aos governos locais um espaço laico obediente, já que a casa da ópera só se sustentava pelo apoio institucional. Esse clientelismo era o que vinculava a ópera com a fruição ideológica, pois o estanco das ideias, exercido pela censura oficial, afirmava a autoridade régia ao mesmo tempo em que direcionava a elevação crítica necessária para o
desenvolvimento de uma sociedade burguesa. Logo, a energia gasta nessa estratégia
forjava-se no propósito de Pombal e sua percepção da ópera como “escola onde os povos
aprendem as máximas sãs da Política, da Moral, do Amor à Pátria, do Valor, do Zelo, da
Fidelidade […]”.
Assim, a reforma dos meios de diálogo entre o governo e a população não só
era oportuna como urgente. Isso porque, as questões complicadas não eram apenas o
poder e a mentalidade forjadas numa religiosidade heterodoxa ou o encontro das etnias.
Amalgamava o processo social o deslocamento vertiginoso do poder econômico do campo
para as cidades. Como diz Raymundo Faoro, esse deslocamento era ocasionado por um
modelo econômico refratário à economia latifundiária em detrimento da atividade comercial articulada desde as cidades. Assim, no modelo burguês que a Metrópole impulsionava, “a terra deveria ser objeto de negócios, sem entraves alheios ao mercado ou
impedimentos economicamente irracionais” (Faoro, 2000, vol. 2, p. 22). A base de
articulação foi justamente o impulso a uma política de crédito sustentada não no
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beneplácito régio, mas nos fundos da nova esfera dos comerciantes, que lentamente se
transformavam em comissários (intermediários entre os produtores e os exportadores) e
financistas (Faoro, 2000, vol. 2, p. 23). Ademais, a “guerra” velada tratava de impulsionar
uma dinâmica produtiva dividindo o grande latifúndio improdutivo para incorporar mais
gente à cadeia produtiva; o que, ironicamente, manteve o sistema de produção escravagista. Assim, a própria elite da terra, antes orgulhosa do acúmulo territorial, aos poucos
se distanciou da agricultura e se refugiou no emprego público ou no sistema financeiro,
criando novos campos sociais que formaram, desde o início do século XIX, a nobreza que
sustentou o Império brasileiro. Esse processo aqueceu-se, ademais, no caldeirão de uma
sociedade refratária às estruturas estamentais rígidas, inflada por uma Igreja pouco
ortodoxa e muitas vezes resistente ao controle centralizador do Padroado.
Esse desenvolvimento da burguesia não poderia ocorrer sem a formação de
uma crítica que pudesse compreender, até mesmo para equilibrar-se precariamente, os
estatutos e códigos jurídicos. Dessa forma, a nova ordem social não poderia mais ser
vivenciada apenas na determinação da vontade privada, como nos séculos anteriores. A
socialização burguesa, que se consubstanciava na afirmação da urbanidade como opção
desenvolvimentista, instava conjugar a questão do desenvolvimento econômico pelos
caminhos de uma civilidade cujos paradigmas apontavam para a formação de uma opinião
pública laica, urbana e letrada. É justamente essa senda que “exigiu” a separação dos
domínios laicos e religiosos, obrigando à modificação do espaço público. E a casa de ópera
tornou-se um signo dessa nova civilidade, assim como o salão doméstico, amparado na
modinha.
Essa separação do jugo místico religioso, mesmo que parcial, velada ou simuladamente, configurou o principal símbolo de desenvolvimento: o universo urbano. Dessa
forma, conjugando tanto o desejo da burguesia como o desígnio do despotismo de controlar via catarse os códigos e práxis dessa nova civilidade através do espetáculo de poder,
a ópera tornou-se a principal ferramenta de intervenção persuasiva. Nascia um natural
contraponto à Igreja, cujo discurso, ao contrário da ópera, não distinguia ambientes, ou
seja, o rural e o urbano. Ademais, a religião mostrou-se incapaz de combater superstições
que se perpetuavam na diversidade da devoção, sempre exercida nos vórtices das inúmeras
etnias que formavam o caldo cultural brasileiro. Na ópera, a ação normativa era bem
mais simples e, invariavelmente, regida pelas mãos das autoridades régias. Essa separação
de liturgias, dizemos novamente, era a essência do Iluminismo.
Porém essa estratégia de alteração dos padrões de formação crítica era de execução extremamente mais difícil do que na Metrópole. Isso porque o poder do mundo
rural não desapareceu e o vigor de seus interesses não se desfez em prol de uma política
de elevação da capacidade de operação de cunho racionalista que favorecia os desejos de
desenvolvimento econômico de base burguesa, como pretendia o despotismo esclarecido
de Pombal. Esse conflito estabeleceu-se paradoxalmente, pois o poder continuava na
mão da elite agrária, porém mediada por uma política institucional que necessitava fomentar a participação econômica mais decidida de uma parcela maior da população,
vinculada a um modelo burguês urbano. Ao articular a vida socioeconômica nos perímetros
das cidades e vilas, o impulso de desenvolvimento de uma mentalidade mais exigente de
ordenação legal fomentava conflitos a cada dia mais balizados pela discussão política.
Ademais, esse novo princípio de desenvolvimento exigia uma ordem legalista, como já
dissemos, consubstanciada na discussão de novos conceitos através de um acesso mais
amplo a ideias letradas.
A ópera possibilitava a fruição dessa mentalidade, que justamente se afirmava
pela burocratização do Estado, a partir da segunda metade do século XVIII. No entanto,
criando novos sistemas de convivências que redefiniam a discussão sobre o espaço público
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e os paradigmas que o regiam, ampliavam-se os espaços de negociação e conflitos. Para
minimizar o surgimento de interesses contrários à Coroa, a intervenção ideológica que
legitimava e fazia reconhecer o prestígio do poder incrustava a autoridade como mediadora
dos discursos que visavam modelar as relações entre as pessoas e dessas com o poder.
Dessa forma, justifica-se a proximidade das autoridades na propagação das ideias
absolutistas via espetáculo operístico, pois, nesse espaço, o paradigma era convencer
pela persuasão; o que não diminuía a disposição de “convencer” pela violência institucional.
E nesse sentido a escolha dos temas das óperas e as formas de representá-los estava na
mesma dimensão do esforço para a criação e manutenção física do teatro; o que justifica
o reduzido número de títulos executados no Brasil.
Segundo autores como Décio de Almeida Prado (1993) coexistiam nas casas de
ópera brasileiras uma diversidade de gêneros: “iam da comédia seiscentista espanhola
(O Conde de Alarcos, de Mira de Amescua; Amor e obrigação, de Antonio de Solís) à
ópera setecentista italiana (Ézio em Roma, Zenóbia no Oriente, de Metastasio), da comédia
(Sganarelo, baseada em Moliére) à tragédia clássica francesa (Zaíra, de Voltaire)” (Prado,
1993). No entanto, devemos sublinhar, primeiramente, que o termo ópera não significava,
como alerta Décio de Almeida Prado, um gênero inteiramente cantado.
A palavra ópera não deve despertar excessivas reminiscências europeias. No
contexto nacional, como no português, aplicava-se, se não a todas, a qualquer
peça que contivesse números de canto, executados de conformidade com os recursos musicais de cada cidade. Os “dramas para música” de Metastasio prestavam-se, de resto, a tratamentos mais livres quanto à proporção entre o cantado
e o falado, podendo ser lidos ou como libretos de ópera (e dezenas de compositores valiam-se do mesmo texto) ou como tragédias de fundo histórico (e
final geralmente feliz), centradas sobre heróis da Antiguidade clássica, cujos nomes ligavam-se não raro aos de uma cidade ou região Catone in Utica, Adriano
in Siria — que figuravam menos como entidades geográficas precisas que como
cenários de instantes cruciais de suas vidas. O coro não tinha muita importância
no desenvolvimento do enredo, as personagens eram poucas, seis ou sete, a
ação relativamente concentrada no espaço e no tempo. Essa economia de meios,
mais próxima da disciplina neoclássica que das elaboradas fantasias mitológicas
da ópera barroca do período anterior, facilitava evidentemente a montagem do
espetáculo (Prado, 1993).
Ainda segundo Décio de Almeida Prado, a ópera no Brasil trazia uma particularidade interessante, herdada logicamente da cultura portuguesa: ela era transformada
em teatro de cordel. Nesse novo gênero, as obras sofriam traduções, adaptações, enfim,
modificações que consideravam estruturas particulares de recepção.
A surpresa desvanece assim que se verifica, como fez um estudioso moderno,
que as peças representadas possuíam um denominador comum bem próximo
do Brasil, via Portugal: “todas elas são de teatro de cordel”, constatou Carlos
Francisco de Moura. Mais ainda: todas haviam sido publicadas ou republicadas
recentemente em Lisboa. Participavam, portanto, do repertório corrente em
Portugal e desse ângulo devem ser analisadas. A expressão “teatro de cordel”,
pouco significando do ponto de vista literário, como se tem notado, porque
comportava de tudo, nem por isso deixava de corresponder a uma determinada
realidade dramática. Essa identidade de palco, constituída por usos e costumes
teatrais, alterava não pouco as características nacionais e as particularmente
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estilísticas dos textos, tendendo a uniformizá-los. Um exemplo curioso desse fenômeno de contaminação literária acha-se no próprio repertório cuiabano. Pelo
género e pelo título, dir-se-ia, nada de mais lusitano que o entremez O saloio
cidadão. Mas trata se, efetivamente, de uma adaptação livre de Le bourgeois
gentilhomme, de Moliére, devida provavelmente à pena incansável de Nicolau
Luís, homem de teatro em atividade nos palcos lisboetas na segunda metade do
século XVIII. A ele são creditadas perto de cinquenta de tais transcrições
anônimas, entre as quais umas cinco ou seis das encenadas em Cuiabá, inclusive
a tragédia Inês de Castro. “que segue de perto o texto de Vélez de Guevara, Reinar después de morir. Garrett resumiu sem piedade o processo de produção
deste repertório híbrido: “traduziam em português as óperas de Metastasio,
metiam-lhe graciosos — chamava se a isto acomodar ao gosto português; e
meio rezado, meio cantarolado, lá se ia representando.
Esse é um fenômeno bastante peculiar da mentalidade iluminista baseada na
edificação do bem comum através da vulgarização dos valores havidos como civilizatórios,
velando, evidentemente, uma apologia da ideologia dominante, aqui no caso o despotismo
do Iluminismo Católico português. Nesse sentido, ganhava importância a direcionalidade
da mensagem através da forte retroação. E é justamente nesse aspecto que um autor da
era joanina foi resgatado e encontrou uma ressonância que uniu tanto o gosto público
como os desejos da afirmação ideológica: Antônio José da Silva (1705 – 1739).
Nas relações elaboradas por Curt Lange, Ayres de Andrade e Nireu Cavalcanti,
circunscritas nas casas de ópera de Vila Rica e Rio de Janeiro (Budasz, 2006, p. 24-29), são
citadas apresentações de Os encantos de Medeia (1735) e O precipício de Faefonte (1738).
Boccannera Júnior (1924 apud Leão, 2004, p. 101) revela que no Teatro Guadalupe da Bahia
encenava-se com frequência Labirinto de Creta (1736) e Guerras de Alecrim e Manjerona
(1737). No acervo da família Pompeu de Pina, administradora secular da casa de ópera de
Pirenópolis (GO), ainda em atividade, sobreviveram ao tempo algumas óperas do Judeu, entre
elas Guerras... e Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736). Da mesma forma, o dramaturgo
satírico era representado em São Paulo na década de 1770, segundo relata Rui Viera Nery
apoiado no códice “Diário de Governo” do Morgado de Mateus (2006). Enfim, o singspiel
do Judeu era uma constante nas casas de óperas brasileiras e sua representação certamente
ultrapassava em muito os indícios que as parcas fontes documentais nos revelam.
O regozijo do público pelas sátiras sociais do Judeu era o que ajustava, também,
sua legitimidade ideológica. Era revigorante e simbólico, na nova ordem política, as críticas
à aristocracia decaída vertidas em textos como Guerras do Alecrim e Manjerona, onde
até mesmo a linguagem gongórica usada pela criadagem era uma crítica mordaz à ilusão
e pretensão de uma casta de fantasia, absolutamente falida, mas que mantinha a pose e
a posse através dos títulos e clientelismos tradicionais nos regimes anteriores à segunda
metade do século XVIII. Assim, numa sociedade que almejava a consolidação social pela
virtude e não pelo sangue, o enredo de Guerras... ganhava uma retroação política e social
forte. Ou seja, nesse vórtice de desacreditar a antiga nobreza encontravam-se não só a
nova política pombalina, mas os desejos de letrados e funcionários régios recém elevados,
assim como da própria burguesia.
Outro aspecto é a identidade ambígua do Judeu. Essa ambiguidade constrói-se
no fato de que a mensagem iluminista era vertida numa linguagem teatral indiscutivelmente barroca:
Fazendo do teatro a analogia predileta do mundo como engano e ilusão, a obra
de “O Judeu” concretiza alegorias no palco. Teatralidade de imagens, valorizada
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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pela ideia de que o ‘engenho’ típico do artista é a imaginação, e de que esta
atividade é nitidamente distinta daquela que produz conceitos e noções […], o
teatro que abriga a obra de Antônio José é pródigo em efeitos, fantasmagorias,
transformações, metamorfoses. Anjos e diabos entram em cena e dialogam;
“são menos abstratas do que as anchietanas”. Elementos caricatos, grotescos e
irônicos infiltram-se na cena. O palco enche-se de efeitos proporcionados por
uma maquinaria que põe em cena toda uma parafernália de palácios, jardins,
nuvens, mares e fontes, para figurar no palco o contramundo visível. O teatro
torna-se o campo para as invenções tecnológicas da época. O cenário é
reconhecido como pintura e suas trocas ou mudanças são visíveis e carregadas
de teatralidade. Bonecos e atores contracenam. O carnaval, com a sua abolição
da hierarquia social, ainda que temporária, configura o riso, o deboche, colocando
o mundo às avessas, ao valorizar as “permutações do alto (céus, partes altas do
corpo) e do baixo (terra, partes baixas do corpo), da face e do traseiro”, conforme
Cafezeiro (1996, p. 83), um elemento configurado nas óperas do autor.
Ao contrário do que afirma Lorenzo Mammi, para quem essa referência barroca
era contraditória, pois não “consegue cortar o cordão umbilical que a liga à religião, ao
teatro jesuítico, aos mistérios processionais” (2001, p. 39), Raimundo Leão (2006) aponta
que, tal paradoxo ganhou relevância na forma comunicativa do despotismo católico ao
criar um elo comunicativo que permitiu por um discurso ainda barroco inocular uma
mensagem de cunho reformista consolidada numa filosofia imperceptível para a grande
parte da população. Em outras palavras, sem rupturas drásticas com a consciência pública
dominante, o teatro de Antônio José permitiu uma crítica irônica em que a graça estava
na suspensão pelo ridículo revelado dos misticismos e prejuízos de castas. As alegorias
formavam, então, uma razão contrária aos modelos de sociabilização dos regimes
anteriores, baseados na concentração do poder numa aristocracia rural e “atrasada”:
Luz e trevas animam a cena. Intensificam-se as lutas para afastar o humano da
ortodoxia da Igreja, deixando-o iluminar-se pelos métodos pregados pela
epistemologia científica. É nesse universo que a identidade de “O Judeu” se forma,
se dá a conhecer e provoca o presente, espelhando as condições de deslocamento
cultural e discriminação social às quais são submetidos trabalhadores, intelectuais
e artistas, pelas emanações do fundamentalismo político e religioso, escudadas
na razão louca que nos põem em permanente estado de alerta e de tensão
emergencial, tal o grau de intolerância, preconceito e negação do diferente. Esse
outro, negado em sua alteridade, é condenado a viver na indeterminação. No
entanto, mostra-se como sujeito múltiplo, para além da identidade monolítica
que o pensamento hegemônico configura. (Leão, 2006, p. 104)
Outro gênero importante explorado pelo teatro pombalino é a ópera séria,
principalmente de Metastasio, a própria afirmação do despotismo. Suas alegorias induziam
o encontro das virtudes ordenadoras do mundo com a autoridade régia. A razão, único
caminho da justiça, mas igualmente forja da benevolência, era o centro de gravidade dos
enredos de Metastasio. Dessa forma, sua presença nos palcos brasileiros é uma projeção
dos modelos de divertimento culto estimulados desde os tempos Pombal.
Assim, pelo alto grau de identidade com o regime, suas peças eram as preferidas
de governadores e letrados. Assim como em Portugal, Metastasio e Carlo Goldoni eram
representados tanto em funções de gala, com música de grandes autores como David
Perez e Nicòllo Jommelli, como em funções ordinárias, adaptados e até mesmo repreAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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sentados por bonecos.6 Ademais, a influência metastasiana foi determinante para o
desenvolvimento do arcadismo crioulo, mais precisamente para Cláudio Manuel da Costa
que traduziu, possivelmente destinando-os à casa de ópera de Vila Rica, dois libretos:
Comédia do mais heroico segredo ou Artaxerxe e Demofonte em Trácia. Ou seja, pelo fenômeno do intercâmbio e edição em forma de cordel, as óperas de Metastasio travestidas
de linguagem mais apropriada às possibilidades críticas de uma população mais ampla.
Nas realizações das cortesias ocorridas em academias, eventos governamentais,
posses, recepções etc., típicas da consciência teatrocrática do Antigo Regime, as óperas
de Metastasio serviam amiúde, sempre traduzidas para o português, acrescentadas de
passagens (as licenzas) que identificavam diretamente o homenageado:
Para lisonjear o destinatário da dedicatória, também é costume referir-se a exemplos da antiguidade grega e latina sempre nimbada de glória. Vemos assim Tolentino comparar o Visconde de Vila Nova da Cerveira, ministro de D. Maria I, com
Cícero “lendo poetas e filósofos” embora “encarregado dos importantes negócios
da República”. Por sua parte, Couto Guerreiro dá exemplos de magnanimidade
extraídos das vidas de Alexandre Magno e do rei Artaxerxes, vidas então
conhecidas graças à comédia do abade de Metastasio O mais heroico segredo
ou Artaxerxes, que teve várias edições em poucos anos, assim como, do mesmo,
a ópera Alexandre na Índia. (Maffre, s/d., p. 5)
Por fim resta observar um importante aspecto do surgimento das casas de ópera
no Brasil colonial: a participação ativa de atores saídos das camadas baixas da sociedade,
majoritariamente artistas mulatos. Décio de Almeida Prado (1993) observava que esse
fenômeno foi determinante para o molde no qual os produtores, autores e público estabeleceram as formas de diálogo através do teatro.
Pelo seu lado mais pobre, mais terra a terra, contentava-se com espetáculos
amadores improvisados, aproveitando-se de que para subir a um estrado e dizer
algumas frases decoradas não era preciso nem mesmo aquele mínimo de exercício técnico imprescindível na pintura e na música. Esse hábito popular nos vinha através das naus portuguesas, seja nas quinhentistas, em que padres jesuítas
encenavam vidas de santos e autos sacramentais durante as calmarias, seja, duzentos anos mais tarde, nas embarcações setecentistas, como maneira fortuita
de preencher as horas vazias.
No entanto, esse pode ter sido um elemento primordial para uma renovação
das estrutras de linguagem, pois a intersecção das convenções e das possibilidades de
fruição estética dos agentes que edificavam o divertimento possibilitaram aberturas significativas aos modelos importados. Nesse caso é sintomática, por exemplo, a presença
de mulheres nos elencos das casas de óperas crioulas. Problema sempre latente na censura
lusitana, constituído até mesmo em proibições régias como aconteceu em tempos de
Dona Maria, a ópera brasileira, principalmente em Vila Rica e no Rio de Janeiro foi flexível
à presença feminina. Além do apelo ao imaginário masculino, identificando o arquétipo
licencioso da mulher mestiça com o estigma afetivo da arte melodramática, a presença
...........................................................................
6
Rogério Budasz (2006, p. 25) indica que libretos de Metastasio produzidos no Teatro do Bairro Alto de Lisboa,
foram encenados como teatro de bonecos, “traduzidos para o português e sujeitos a cortes e adaptações –
geralmente inclusão de personagens cômicos – tais como Achille in Sciro, Adriano in Síria, Didone, La Semiramide
riconosciuta, Zenobia e La isola desabitada”.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
139
da mulher consolidava as doutrinas do teatro iluminista que clamava pela identificação
do teatro com a natureza, logo contrário a personagens travestidos.
Esse fenômeno consolida-se justamente nas possibilidades críticas e estruturais
de execução e recepção dessa ópera. Adaptando libretos e música à instrumentação disponível, a cantores, assim como às vias de acesso à legitimidade para preservação do espaço, a ópera nacional tornou-se um laboratório de identidades que juntavam letrados
como Cláudio Manuel da Costa e elencos de mulatos, entre compositores e atores. Todo
esse conjunto amalgamado por um fluxo de experiências que não deixava de considerar
que a ópera existia como afirmação de poder monárquico, imbuída de um caráter civilizador direcionado. Como escola de princípios, era forjada por política de Estado e cuja
assistência era uma questão primordial para a representação social da elite, pois não só
celebrava os valores monárquicos, como era fundamental para a visibilidade social na
trama das redes de influência e consolidação do poder local.
Concluindo, representando as diversas camadas do mundo livre, a casa de ópera
transformou-se num espaço de negociações e conflitos, onde participavam os governantes,
os letrados, a burguesia e toda a humanidade que, não esqueçamos, era julgada de “impossível”. Forjavam-se nesse caldeirão não só as bases das relações humanas, mas, também, os paradigmas críticos que vinham nos entreatos de uma opinião pública que lentamente se distanciava do jugo totalitário da Igreja. Assim, ao mesmo tempo em que a ópera deixava fluir as formas típicas do iluminismo europeu nos libretos de uma nova classe
de intelectuais, possibilitava o encontro com compositores e cantores elevados de estamentos sociais marginados de voz. Todo esse jogo determinou e simbolizou esse novo
ambiente onde lentamente desenvolvia-se uma opinião pública, comum. O outro lado
desse processo será ampliar essa formação do espaço público crítico aos ambientes domésticos, através do salão e seu culto à modinha.
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
141
As óperas de Antônio José da Silva
e Antônio Teixeira: atribuição de autoria
e reconhecimento de modelos estéticos
da produção lírica luso-brasileira
do século XVIII
Márcio Páscoa
Universidade do Estado do Amazonas
O paço ducal de Vila Viçosa, em Portugal, possui em seu acervo, um conjunto
musical manuscrito sobre texto de Antônio José da Silva (1705–1739), ali intitulado Alecrim
e Mangerona. Está identificado em suas folhas pela cota A.M.G-7 em concordância com
o catálogo de José Augusto Alegria onde foi-lhe atribuída a designação de G prática 7
(Alegria, 1989, p. 165). O conjunto é composto de cadernos correspondentes às partes separadas de instrumentos e vozes. Estão presentes partes instrumentais designadas em
página de rosto por violino primo, violino 2º, viola obligata, Basso e, sem folha de rosto, páginas para Trombe 1ª e 2ª. Das partes vocais constam apenas as de Sevadilha, Clóris e
Nise.
O conjunto das partes instrumentais inclui árias, para além das personagens femininas, pertencentes aos demais personagens da trama: Fuas, Gilvaz, Semicúpio e Lancerote. A essas partes vocais perdidas, até o momento, podem-se somar partes de oboé e
saltério indicadas na carátula da parte do baixo contínuo, mas inexistentes no conjunto
deste espécime. A totalidade das partes de cordas indica ainda assim a presença parcial
de árias previstas no libreto original. Publicado pela primeira vez em 1737, ano em que se
estreou no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, o texto conservava o título de Guerras do
Alecrim e Mangerona, contendo em seu bojo duas partes, a guisa de atos, sendo que a
primeira está composta de quatro cenas e a segunda por sete cenas. Subtitulava-se desde
o princípio de Ópera Joco-séria, alusiva ao caráter da restante obra deste mesmo autor.
As árias previstas, somando-se ao coro final e a um recitado, alcançam a conta de 21 números musicais. Destes, apenas 17 se encontram no conjunto manuscrito de Vila Viçosa.
Não é possível saber se um dia já existiram tais árias faltantes, mas há indícios neste sentido.
No manuscrito musical A.M.G-7 há uma indicação anotada ao fim do dueto entre
Sevadilha e Lancerote “Moça tonta, descuidada”, em que se lê: “D.Fuas/Minuet/Já que a
fortuna”. Entretanto, mais abaixo há a indicação “Segue D. Nize”. A música que se segue é
de fato a ária desta personagem feminina, “Suponha, senhor, que nunca me viu”. A indicação da ária de Fuas, “Já que a fortuna”, confirmada no libreto original como um minuete,
consiste, entretanto numa anotação feita por mão diferente da cópia da música. Essa
anotação aparece no lugar aludido, nas partes de violino primeiro e segundo, e do basso,
mas não na da viola. A inserção da ária pode ter sido feita quando as apresentações baseadas nesta cópia musical já estavam em andamento e deve ter existido em folhas avulsas,
agora perdidas. Outra possibilidade é a de que os músicos que se valeram do atual A.M.G7, dispunham de uma cópia reduzida do conjunto mais completo da ópera e obtiveram
avulsamente esta ária de Fuas, quando da montagem. As mãos que anotaram a indicação
podem ter sido dos executantes que usaram tais partes cavas. Não só a letra parece diAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
142
ferente em alguns pontos, como na parte do segundo violino a indicação atribui o mencionado minuete vocal a D. Gilvaz, confusão que tanto pode evidenciar mãos diferentes e
atribuição errônea, como eventual troca de personagem para tal música, ainda que pouco
provável neste caso. Também é meramente especulável que a música perdida desta ária
reencontrada ou refeita ao tempo da montagem que se valeu deste manuscrito, pertença
ao autor predominante do corpus musical A.M.G-7.
As partes de instrumento que contêm folha de rosto, exceção da parte de Trombe,
indicam: “Muzica/Senhor Antônio Teixeira”, constante de maneira igual nas partes de violino e com o tratamento abreviado na parte de viola (Sr.), sendo que no baixo surge em
italiano: “Muzica/Dal Signore Antônio Teixeira”. Somente nesta folha consta a indicação
da instrumentação completa a que corresponde o manuscrito: “Alecrim e Mangerona/
con Violini, Saltério, Oboe, Trombe, Viola e/ Basso”.
A credibilidade da autoria tem por fiador o enciclopedista Diogo Barbosa Machado. A primeira menção biográfica sobre Antônio Teixeira vem publicada ainda em vida
do compositor, na Bibliotheca lusitana que o dicionarista começou a editar em 1741,
quando o músico devia ter 37 anos, o que mostra a consideração a que tinha alcançado
nos meios intelectuais de que participava, dilatada por uma lista, ainda que um tanto genérica, de obras musicais de sua lavra.
Antônio Teixeira, nasceo em Lisboa, e na Paroquial Igreja de Nossa Senhora da
Encarnaçaõ foy bautizado a 14 de Mayo de 1707, sendo filho de Manoel Teixeira,
e Vicencia da Silva. Quando contava nove annos de idade, foy mandado por ordem Real aprender a Arte de Contraponto em Roma, e como fosse dotado de
engenho perspicaz, sahio igualmente destro na composiçaõ da Musica, como
no toque do cravo. Restituído à pátria a 11 de Junho de 1728, em premio na sua
applicaçaõ, foy eleito Capellaõ Cantor da Santa Igreja Patriarcal, e Examinador
dos Ordinandos e canto chão em todo o Patriarcado. São innumeraveis as obras
musicaes, que tem composto, merecendo entre ellas distincçaõ.
Te Deum laudamus, a vinte vozes com todo o gênero de instrumentos músicos,
que cantou no último dia do anno de 1732, na acçaõ de Graças, que se rende a
Deos Nosso Senhor pelos benefícios recebidos naquelle anno, cuja funçaõ se
celebra em a Casa professa de Saõ Roque, e a Ella assistem as Pessoas Reaes,
com toda a Corte
Te Deum laudamus a nove vozes.
Psalmos, Offertorios, Lamentações, Motetes, a quatro, e oito vozes, com instrumentos, e sem elles.
Miserere, a oito vozes sem instrumentos.
Sete Operas a seis vozes com instrumentos, que se representarão com grande
applauso dos Expectadores.
Missa a oito vozes. Outra a quatro. Psalmos de Vesperas, a quatro para a Igreja
de Santo Antônio dos Portugueses em Roma. (Machado, 1759, p. 61)
O dicionário elaborado por José Mazza, ao final daquele século, repercute as
informações de Barbosa Machado, de forma resumida, sem acréscimos, entretanto
consagrando-o como “excelente compositor”, certamente de cima da trajetória que agora
se podia observar mais completa. Sobre Teixeira, diz que era
Presbítero natural de Lx.ª filho de Manoel Teixeira e Vicencia da Silva, Mestre do
Seminario real de Muzica, excelente Compozitor, e Organista da Patriarcal, onde
foi cappelão Cantor, era examinador do Canto chão do Patriarcado, Compos hum
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
143
Te Deum a 5 coros com todo o genero de instrumentos, compos outro a nove
vozes, sete operas, salmos, Mizereres, Lamentações, e outras mais, faleseo no
seculo de 700. (Mazza, 1944, p. 45)
A repetição das informações parece refletir a provável perda de documentos
com o terremoto de 1755, o que deve ter impedido o acesso a quaisquer dados para além
daqueles inicialmente divulgados por Barbosa Machado. Joaquim Vasconcellos, escrevendo biografias de músicos portugueses, em 1870, repetiu ainda mais uma vez as informações do autor da Bibliotheca lusitana, dando unicamente esta fonte como referência
em seu verbete sobre Antônio Teixeira (Vasconcellos, 1870, vol. 2, p.198-199).
Somente Ernesto Vieira, em 1900, levantou novos elementos sobre a trajetória
do compositor. Vieira, desconfiando da pouca idade do bolsista de Dom João V, acreditava
que as datas de nascimento ou a da ida para os estudos em Roma deviam ser diferentes
(Vieira, 1900, vol. 2, p. 347). Vieira transcreve a entrada biográfica redigida por Machado
e acrescenta que Teixeira deveria já ser
compositor considerado, pois foi incumbido de escrever a música para uma cantata, cujo folheto se imprimiu e tem este título “Gli sposi fortunati, componimento
da cantarsi nella sala dell’Illustrissima ed Ecceletissima Signora D. Antonia Gioacchina de Menezes de Lavra, nel Carnevale dell’anno 1732". (Vieira, 1900, vol.
2, p. 348)
Do rol de composições arroladas na Bibliotheca lusitana, Vieira menciona apenas
o célebre Te Deum, pois justifica que “das suas composições, que Barbosa Machado diz
terem sido innumeráveis [sic] nunca vi senão a cantata que existe na Bibliotheca Nacional”
(Vieira, 1900, vol. 2, p. 348). Trata-se esta da “Cantata concertata a 3 voci con violini,
Obué, Flauti, Trombe, e Corni da Caccia, Gloria, Fama, Virtú, del sigre. Antônio Teixeira”.
Vieira ressalva que não sabe se esta obra era do mencionado Antônio Teixeira ou de um
homônimo seu, que na condição de padre, foi autor de música sacra que se encontrava
no Archivo da Sé, em Lisboa, do qual destaca um Ecce sacerdos, e uma composição datada
de 1770 (Vieira, 1900, vol. 2, p. 348).
A identificação da obra operística de Antônio Teixeira surgiu quando Luis de
Freitas Branco, revelou nas páginas do periódico Século, em 1947, a existência dos manuscritos de Vila Viçosa, dos quais aquele sob a cota A.M.G-7. Logo na década seguinte sairia
à luz nova edição da obra de Antônio José da Silva, constante no Theatro Cômico Portuguez,
agora sob o nome de Obras completas, que incluiam ainda Glosa ao Soneto de Camões
“Alma minha gentil, que te partiste” e as Obras do diabinho da mão furada, além da
transcrição de documentos. Realizada, portanto, em 1957, pela Livraria e Editoria Sá da
Costa, aos cuidados de José Pereira Tavares, que fez notas diversas e o prefácio, a edição
passava a ser a primeira que informava a associação das peças de Antônio José da Silva
com o trabalho musical de Antônio Teixeira (Silva, 1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII).
Na mesma ocasião já se informava também a existência, em Vila Viçosa, de trechos musicais relativos a As variedades de Proteu, com a especulação sobre a autoria
pertencer ao mesmo compositor que as folhas manuscritas do A.M.G-7 revelavam (Silva,
1957, vol. 1, p. XXXI-XXXIII). Essas partituras nem, tampouco, o conjunto musical de árias
e recitativos de Precipício de Faetonte – que figurou a partir de 2000 nos ficheiros da
biblioteca de manuscritos musicais da Universidade de Coimbra sob a cota de MM876 –
chegaram a ser publicadas.
Partindo, portanto, da ideia de que a ópera Alecrim e mangerona, com atribuição,
é confiavelmente de Antônio Teixeira, faz-se necessário verificar os elementos constitutivos
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
144
utilizados pelo autor e como ele os aplica, do ponto de vista técnico e estético na música
que compõe.
Inicialmente, deve-se levar em conta as composições que apresentam partes
completas, quais sejam as árias para os papéis femininos. De modo secundário, mas não
menos importantes, aquelas em que estando ausente a linha vocal, sabe-se o seu lugar
de entrada na estrutura de acordo com as indicações anotadas pelo copista das partes de
primeiro e segundo violinos.
Dos 19 números musicais, três revelaram-se espúrios, por causa de evidências
musicais ou textuais, isoladas ou conjuntas. Dos 16 restantes, observa-se a predominância
da ária da capo em cinco partes e com grau menor, mas igualmente relevante, o minuete
vocal e o rondó. Excluindo-se o recitativo, são dez árias a solo e sete seções em conjunto:
dois duetos, um trio, um quarteto, um quinteto, e o coro final a seis vozes. Com exceção
deste último, todas as estruturas dos conjuntos se baseiam na ideia da estrutura da capo.
Em quase todas essas árias há uma introdução instrumental onde o tema a ser
desenvolvido pela linha vocal é exposto sob a ideia de antecedente e consequente ou a
partir de uma melodia ou motivo que são usados para a construção do tema.Quando isso
acontece, é bastante comum que o autor o faça repetindo o consequente. A ária “Senhora
que o velho quer levantar”, traz este procedimento.
Figura 1. Introdução da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7 vv.
Após essa primeira etapa de exposição, acrescenta um motivo rítmico-melódico
que fará repetir cadencialmente, proporcionando modulação e gerando a ideia de se
tratar de uma consequente do primeiro grupo de compassos. Tais compassos podem
funcionar como temas-motivos isoladamente, e ele os usará assim ou como um conjunto
organizado de ideias musicais dentro da racionalidade tonal.
Na observância do conjunto, a segunda seção é uma ampliação modulada da
primeira, ou seja, a variação melódica que permite a progressão tonal é duplamente
repetida, como uma ampliação exponencial do tema-motivo inicial. Por vezes há também
um tema-motivo de características mais cordais que melódicas, usado nesta ária em
consonância com a ideia de simetria melódica e já numa terceira ideia motívico-melódica
que facilita o retorno à tonalidade para fazer a entrada vocal.
A síntese seguinte pertence à exposição melódica da introdução na ária Senhora,
que o velho, onde A e B são temas-motivos e C é um terceiro material motívico, derivado
ou não dos anteriores, que se presta à modulação e modificação.
A [a (2 comp.) + b (4 comp,)] + B [a (2c) + b (4c.) :] + (C)[c (2c.: +1)]
(Mi m) –
(Si m) – Mod [(Ré m) – (Lá m) – (Sol M)] – (Mi m)
I
V
(VII – IV – (RM) – I)
I
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Figura 2. Compassos 7-18 da ária “Senhora que o velho quer levantar”, A.M.G-7vv.
Evidentemente o autor pode estabelecer em outras árias modulação mais longa
entre o Primeiro e o Quinto graus, mas independente disto, Teixeira comumente estabelece
a linha do canto em perfeita observância às melodias criadas na introdução. Desse modo,
o texto fica claramente disposto como se segue:
(A) = (a+a’ ou ab(c)+ab(d))
a
Senhora, que o velho
Se quer levantar (x2)
b
Coitada de mim
Que eu ouvi escarrar X 2
Falar e tossir
(c) Senhora... não ouve
Falar e tossir, etc…
Terceiro tema-motivo com Modulação
Ritornello
a
Senhora, que o velho
Se quer levantar (x2)
b
Coitada de mim
Que eu ouvi escarrar (Novo material melódico, que descarta c e parte
de b) X2
Falar e tossir
B
Senhor, vá-se embora (seção B flutuante sobre material prévio de a, b ou c)
Vá já para fora
Senão o papão
Nos há de engolir
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
146
O plano da ária fica estabelecido em A (a-a’ = a+b+(c)) - B (x) – A (da capo) tornando-se
uma ária da capo em cinco partes. Dentro de A opera-se uma ida à tonalidade relativa, obtida ao
final de a e que permanece pelo ritornello, recomeçando a’ tal como no princípio. A disposição de material textual truncado, como exemplificado (“Senhora... não ouve... falar e
tossir” etc.) também caracteriza o trecho posterior à exposição textual e é ponto de livre elaboração do compositor nas duas vezes em que surge, sendo verificavel em diversas outras
árias suas exclusivamente neste momento, ao contrário do que fizeram outros conhecidos
autores da época em Portugal, como Francisco Antônio de Almeida, David Perez etc.
Dentre as variantes possíveis está o procedimento verificado na ária de Dona
Clóris Dirás ao meu bem, em que os versos são repetidos, de maneira fragmentária, antes
da exposição a ter transitado ao a’. Teixeira pode ter exagerado as repetições aqui para
dar simetria a uma construção baseada na força retórica. Diferente das demais árias,
mesmo aquelas de As variedades de Proteo (exceto “Se amor, se a parca irada”, ária de
Proteu) e Precipício de Faetonte, esta não começa por introdução instrumental, mas pela
linha vocal sem acompanhamento. Dona Clóris manda que Semicúpio leve uma mensagem
ao seu pretendente, de teor vital para o desfecho da peça.
Dirás ao meu bem
Que não desconfie
Que adore, que espere
Que não desespere
Que á sua fineza
Constante serei
Que firme eu também
A tanta fineza
Amante, constante
Extremos farei
Como nas demais árias, Antônio José da Silva escreveu em versos pentassilábicos
e aqui especialmente o pé do verso com o verbo na conjugação majestática: “dirás”. A dupla repetição desta palavra envolve cadência de quinta justa que antecede a entrada do
acompanhamento instrumental e confere força de ordem ao enunciado de Dona Clóris.
Aqui o uso da retórica musical é quem dá a gravidade, a solenidade da mensagem verbal.
Percebe-se que isto condicionou o compositor à elaboração das demais passagens usando
repetição exagerada dos versos, sempre de modo fragmentário, usando o significado de
fazer lembrar o conteúdo da mensagem ao portador, valendo-se das muitas variantes
afetivas propostas pela construção musical. Recorde-se que Benedetto Marcello, no seu
célebre Il teatro alla moda discorria de modo satírico e sarcástico o procedimento de repetir duas ou mais vezes os versos fragmentados, ao longo do poema da ária (Marcello,
172?, p. 20). Teixeira, porém, evita outro ponto satirizado por Marcello, o do abundante e
indiscriminado uso de melismas sobre quaisquer palavras, sem atender ao sentido textual
e musical. O compositor português estabeleceu aqui melismas vocais sobre a sílaba forte
da palavra “desespere”, por mais de uma vez e somente sobre esta palavra, ao longo de
continuadas sextinas ou misturando-as habilidosamente a pares de colcheias e semi-colcheias para criar variedade rítmica (Marcello, 172?, p. 20).
A palavra aqui carrega o afeto principal da ária, aludindo à impaciência dos amantes, as incertezas da reciprocidade e da consumação, com a atmosfera sensual, sedutora,
proposta pela construção ritmico-melódica. Muito adequadamente, Teixeira também sugere pontos de cadência sobre algumas repetições de “Dirás, dirás...” obviamente idenAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
147
Figura 3. Compassos 7-10 da ária “Dirás ao meu bem”.
tificadas pela consecutiva pausa geral. Repousa aí mais um exemplo de domínio retórico
que o autor luso parecia manejar com destreza e que constitui uma de suas características.
Outro exemplo bastante interessante do uso retórico-afetivo está presente na ária
de Sevadilha, intitulada “Se um tonto jarreta”. Trata-se de mais uma estrutura da capo a
cinco partes. O texto contém as passagens “ou é para rir, ou é para chorar”, que Teixeira
distribuiu usando praticamente o mesmo material para os afetos opostos. Na primeira
vez, sob colcheias intercaladas com pausa do mesmo valor em progressão de tendência
diatônica, construiu a ideia do riso, e na segunda, com intervalos de tendência cromática
e melodia cortada por uma pausa de colcheia a cada três notas, a do choro.
O riso fica bem evidenciado se a interpretação ao gosto da época desempenhar
as colcheias de maneira bem curta e com um stacatto, conforme sugerem algumas anotações nas partes cavas (o sinal aparece de maneira irregular no conjunto das notas aludidas).
Por sua vez, a progressão descendente cromática era desde muito convencionada como
desfalecimento, lamentação ou o choro aqui aludido, em cujas intermitentes pausas a
cada três notas fica sugerido o soluço.
Este padrão de notas – anacruse em colcheia, seguida de colcheia na cabeça do tempo e colcheia na parte fraca do tempo – que se encontra na base do efeito retórico aqui descrito, parece estar estreitamente ligado à elaboração do tema introduzido pelas cordas. É
comum em obras do período galante que a ária se inicie por um movimento melódico de
anacruse, muito geralmente num intervalo de quinta ou quarta para o primeiro grau. No
caso desta ária o movimento faz parte do tema e a sua repetição após pausa de colcheia
é a sua consequente motívica. Obviamente, como é uso em Teixeira, passa a ser repetido,
Figura 4. Compassos 14-18 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
148
ampliando a noção sensorial e retórica. O intervalo da anacruse de entrada foge do comum
uso do movimento de quinta, quarta ou mesmo terça, para forjar uma ideia de harmonia
Figura 5. Compassos 1-4 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.
extática nos dois primeiros compassos, talvez pelo diminuto tamanho do trecho.
Pode-se arguir também que pesou nesta ideia o fato de tal escolha ser mais
tendente à boa prosódia. A elaboração ajusta-se perfeitamente na versificação de versos
pentassilábicos, com os sabidos acentos de 2ª e 5ª sílabas.
Figura 6. Compassos 8-11 da ária “Se um tonto jarreta”, A.M.G-7 vv.
Teixeira, entretanto não fez nenhuma outra ária com melodismo tão fragmentário
e mesmo assim obtém a finalização com a duplicação da consequente, conforme se vê no
exemplo em que a segunda linha dos versos vai repetida.
Estes procedimentos de simetria, duplicação da segunda parte ou consequente
textual-musical compõem uma espécie de assinatura, de que ainda fazem partes outros
muitos procedimentos como o domínio retórico com prevalência de um motivo.
O conjunto das demais árias chama atenção também pela riqueza de escrita rítmica. Estão presentes numa mesma estrutura colcheias iguais, pontuadas, ritmos lombardos, tercinas, sextinas e algumas misturas destas formulações entre si em pequenas
células.
Constam do conjunto, entretanto, duas árias que não dizem respeito ao texto
de Guerras do alecrim e mangerona. Para Sevadilha, há uma ária intitulada “Eu nunca fiz
cazo d’amantes”, e outra para Gilvaz, nomeada “Não me xameis tirano”, de acordo com as
partes dos violinos, da viola e do Basso, sendo que nesta há a indicação de Nova por uma
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
149
outra mão na cabeça da folha. Trata-se de uma composição a C cortado, em Fá Maior,
contando 57 compassos, ainda que a parte de violino 2 tenha entretanto apenas 53 compassos escritos. Na parte de violino 1, lê-se ao final o nome de Pietro Guglielmi, sugerindo
que se trate de uma composição deste autor italiano que se tornou bastante frequente
no repertório visto em Lisboa no último terço do século XVIII. “Não me xameis tirano” seria então uma contrafacta de “Non mi rendete infido”, da ópera Alceste de Pietro Alessandro Guglielmi (1728–1804), estreada em Milão a 26 de dezembro de 1768 (Cranmer,
2009, p. 116). A ópera sobrevive em dois conjuntos manuscritos, sendo que um deles pertence ao arquivo musical do Palácio da Ajuda, em Lisboa, um dos mais significativos acervos
de espécimes musicais do gênero lírico para a segunda metade do século XVIII. Como nos
demais casos dos personagens masculinos, esta ária também não possui uma parte vocal
no A.M.G-7. “Não me xameis tirano” parece ter sido incluída no manuscrito musical em
substituição à “Borboleta namorada”, texto original de Antônio José da Silva para o personagem Gilvaz, por causa de sua posição entre as demais árias.
Por sua vez, a segunda ária espúria parece ter vindo substituir o dueto “Meu
franguinho topetudo”, entre a mesma Sevadilha e Semicúpio. É uma composição a 3/8
em Dó Maior, com distribuição para cordas e sopros. A parte de trombe traz indicação de
“15, Sevadilha na Ópera da Estalajadeira// in C sol ut = Eu nunca fiz cazo/ cuja Ária está
atrás da folha seguinte/ logo depois do Coro Final”. Embora a posição da cópia nas demais
partes instrumentais esteja corretamente alinhada com as restantes árias, possível sugestão
de que as partes de trombe surgiram posteriormente pode significar apenas um problema
de uso do papel, de cópia ou de acréscimo na orquestração.
A menção à Ópera da Estalajadeira remete a alguma versão em circulação de
La locandiera, texto do dramaturgo Carlo Goldoni (1707–1793). Há incerto número de
publicações desta peça traduzida, adaptada para o português ou que a ela se referem
pelo tema, pelos personagens ou situações. Uma vez que o texto da ária não está presente
no original italiano, deve-se considerá-la um enxerto às traduções e adaptações da época.
Mesmo assim, também não foi possível localizar nenhum libreto, folheto ou versão similar
da peça, em português, no qual estivesse inserido, mas a situação onde ela devia ser inserida é clara. Segundo o original de Goldoni, a estalajadeira Mirandolina, diz, na cena IX do
primeiro ato, não pensar em casamento e nem precisar dos eventuais pretendentes que
por ali passam pela sua estalagem. Na versão portuguesa publicada em 1765, intitulada A
locandiera, levada com sucesso, segundo a carátula, no Teatro da Rua dos Condes, a passagem agora acomodada próxima ao final de uma grande cena primeira, parece esclarecedora. Nela a protagonista Mirandolina afirma que “dos outros [amantes] que me
perseguem, não faço eu cazo” (Anônimo, 1765, p. 7) A ária pode ter sido acomodada próxima a este ponto, em substituição a ele ou, ainda, em outras versões derivadas disso,
conforme a prática corrente.
Resta ainda mais uma ária possivelmente espúria, sobre texto de “De um amigo
e de uma ingrata”. Sua estrutura obedece a modelos baseados na forma sonata, portanto
de uma época bem posterior à maioria do conjunto nesta ópera. Como o manuscrito do
A.M.G-7 aponta para uma divisão em três atos, ao contrário de duas partes conforme
previsto nas publicações de Guerras do Alecrim e Mangerona ao longo do século XVIII, e
como a ária em questão foi colocada ao final do então segundo ato deste manuscrito musical, deve ter certamente obedecido a propósitos dramatúrgicos que acharam por bem
“atualizar” a obra naquele ponto importante da peça.
Ao lado da partitura de Alecrim e Mangerona, existe outro espécime atualmente
identificado pela cota A.M.G-6 que se compõe de cadernos avulsos para instrumentos e
vozes em cujas carátulas se intitulam todos As Variedades de Proteo. Nenhum dos cadernos
atribui autoria à música neles contida. Tais cadernos são para violino primo, violino secundo
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
150
[sic], violleta, basso, oboés 1º e 2º, trompa 1ª e secunda [sic], além de partes vocais para
Proteo, Ponto, Dórida, Caranguejo, Políbio, Nereo e Marezia.
Tal conjunto musical de Vila Viçosa abrange a totalidade das árias previstas nas
edições de As Variedades de Proteu desde 1737, exceto pela exclusão de três delas, pertencentes a Cirene, a Dórida e ao Rei do Ponto, pelo que enxertou-se em seu lugar no
A.M.G-6 um trio com texto não pertencente ao original e música provavelmente posterior
à estreia. No caso das exclusões tratam-se das árias: “Não tenhas por delírios meus temores” (Dórida), “Refreia o pranto, Dórida” (Rei) e “Fortuna que inconstante” (Cirene).
No lugar do que seria o único solo do monarca, a oitava seção musical da peça, surge o
terceto “Que medo, que susto”, contando com a participação dos três personagens que
tiveram solos subtraídos e cuja colocação dramatúrgica da seção musical se adapta ao
ponto em que estava a “cantoria” do Rei.
O conjunto das árias revela uma prevalência do formato da capo a cinco partes,
exceto os solos de Caranguejo, que são em forma de rondó, como o foi também o primeiro
de Semicúpio em Alecrim e Mangerona, criando assim uma associação de identidade
para os personagens graciosos masculinos. Há também o minueto vocal, “Toda minha alma”, para o personagem Proteu, que, assim como o minueto previsto para Fuas no A.M.G7, destina-se ao canto do amante que pretende ser bem sucedido em seus intentos. Tais
minuetos podem ser outra marca identitária de Teixeira, em vista das comuns barcarolas
e arietas de cariz modal nos demais autores líricos do tempo. No caso dos rondós, a associação parece ser mais comum com os demais exemplos da época.
Na escolha de andamentos, apenas quatro Andantes estão grafados, e ainda
assim não o foram por todas as partes; ao contrário, as indicações aparecem isoladamente,
ora na parte do violino primo, ora na do secundo ou na da violeta. Sem contar o coro de
entrada, repetido à saída, há doze “cantorias” que não tiveram atribuição de andamento.
Pelas características da escrita pode-se, entretanto prever o afeto adequado e a velocidade
para a obtenção de uma interpretação coerente em todas elas. Isto reforçaria a ideia de
que o aspecto retórico conduziria escolhas interpretativas a andamentos, dentre outras
coisas, a aspectos da declamação musical
Também em As Variedades de Proteo observa-se a prevalência do mesmo modelo estrutural do A.M.G-7. A ária “Na onda repetida”, de Políbio (Ato 1), possui vinte e
três compassos de introdução instrumental. A diposição de texto e música fica como sugere a síntese (Esquema 1).
A estruturação melódica de Teixeira também obedece a duas de suas premissas
mais importantes, a simetria da construção musical e a qualidade retórica da música. Para o primeiro caso basta olhar a elaboração do primeiro verso “Na onda repetida”, conforme
figura 7.
Todas as seções musicais de As Variedades de Proteu remetem aos procedimentos que conferem a autoria ao compositor de quase todas as seções de Alecrim e
mangerona. Mesmo o caso de “Que medo, que susto”, o trio enxertado no lugar das três
árias suprimidas, obedece aos modelos em questão e ainda que o texto seja diferente, o
uso de versos pentassilábicos com acentos de segunda e quinta sílabas indica proximidade
grande com Antônio José da Silva, autor de ambos os libretos.
O caso do manuscrito MM876, Precipícios de Faetonte, entretanto, é diferente.
Há 19 seções musicais, das 33 previstas no texto de Antônio José da Silva, sendo que sobreviveram apenas nove árias, pois as restantes são coros ou recitados secos. O conjunto
das partes reúne apenas violino primeiro, violino segundo, oboés e baixo instrumental.
Não existe nenhuma parte vocal, com exceção de uma parte de quarteto, e apenas o título das árias ou a atribuição de conjunto (dueto, terceto, coro) permite deduzir a correspondência com o texto de Antônio José da Silva.
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Esquema 1.
No que diz respeito aos modelos composicionais adotados, apenas quatro seções
parecem ter proximidade com a autoria de Antônio Teixeira. São elas o quarteto “Não podem os deuses dois finos afectos” e as árias “Naquela deidade galharda”, “Nas pupilas dos
meus olhos” e “Se quer adorar-me da mágica fuja”, respectivamente para os personagens
Mecenas, Faetonte e a graciosa Chirinola.
Todas as demais parecem ser de fatura muito posterior à obra lírica conhecida
de Antônio Teixeira. A presença de ligaduras da mão do copista e abundantes marcas de f
e p por mão diferente, quase certamente o copista principal, parecem determinar que a
cópia iniciou-se bem mais tarde que os dois manuscritos de Vila Viçosa.
A parte do quarteto inclusive possui o nome de alguns intérpretes no lugar dos
personagens. São eles Antonico, Vitorino, Santos e Rei. Com exceção deste último, que é
de fato um personagem, os demais interpretaram respectivamente Ismene, Albano e Faetonte, segundo a ordem da parte mais aguda para a mais grave, cabendo a parte de baixo
ao Rei.
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Figura 7. Compassos 14-19 da ária “Na onda repetida”, A.M.G-6.
Eles podem ser Antônio José da Serra, Vitorino José Leite e José dos Santos, respectivamente atuantes em partes femininas, de galan e gracioso de meio caráter, no Teatro do Salitre entre 1788 e 1792 (Brito, 1989, p. 107-108); Victorino entretanto aparece
mormente em partes de primeira dama.
Os manuscritos de Alecrim e Mangerona e As Variedades de Proteu podem também remeter ao repertório do mesmo teatro que usou as partes para Precipícios de Faetonte, mas são cópias mais antigas.
As ligaduras e sinais de f e p de mão posterior em Alecrim e mangerona indicam,
ao lado das inserções do aludido material de Guglielmi e da ária em forma sonata, que
deve ter sido copiado a cerca de 1770, vindo a ser usado por algumas décadas dada quantidade de copistas que ali atuaram.
Quanto ao A.M.G-6, As Variedades de Proteu, o manuscrito encontra-se muito
pouco usado, se comparado aos demais, embora tenha partes que foram recobertas a
tinta posterior ou mesmo substituídas. Deve ser o mais antigo dos três conjuntos e sua
cópia pode ter começado alguns anos antes de Alecrim e mangerona, A.M.G-7. Mas não
muito antes, pois o único quarteto da peça já não foi copiado na íntegra, dispensando a
parte b e portanto sem indicação de da capo. Esse procedimento verificável em obras cujos autores aboliram as indicações de da capo e dal segno, em favor de uma elaboração
próxima da ideia da coda, foi-se tornando comum no último terço do século XVIII, dada a
influência estética do modelo da forma-sonata sobre a elaboração vocal. Além disso, o
procedimento é o mesmo que se observa na integral do conjunto de Precipícios de Faetonte
acima indicado.
Há indícios, ainda, de que tais manuscritos possam ter circulado pelo Brasil.
Desde a década de 1760 que há registros de apresentação das óperas de Antônio José da
Silva pelo Brasil. Ñão é sabida a autoria da música para tais casos, mas a de Antônio Teixeira não era desconhecida no ambiente colonial. Quando Salvador José de Almeida Faria,
professor de José Maurício Nunes Garcia, faleceu no Rio de Janeiro, em 1799, havia um Te
Deum do autor português, quiçá o hoje célebre a 20 vozes, no seu espólio (Cavalcanti,
2004, p. 185-186).
A grande disseminação de tais títulos de Antônio José da Silva é certamente responsável pela prática frequente de encenação de excertos da sua obra em Pirenópolis, interior de Goiás, até os dias atuais. A encenação parece ter sempre envolvido significativa
presença de música, proveniente de coleção privada de manuscritos musicais mormente
do século XIX. A autoria de tal música também é desconhecida, mas dos quatro conjuntos
relativos a Guerras do Alecrim e Mangerona, As Variedades de Proteu, Anfitrião e Encantos
de Medeia, poucas árias destas últimas parecem ser do século XVIII, havendo ao menos
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
153
dentre estas ainda um número diminuto, seguramente uma e talvez mais um par, que podem vir a ser atribuídas a Antônio Teixeira, ou ambiente estético relacionável, sendo a
grande maioria da composição do século XIX, em datas diferentes pelo que se deduz das
muitas mãos que copiaram a música. A inacessibilidade do acervo em que estão contidos
tais manuscritos impede um exame mais criterioso, de cunho científico-musicológico, para que se pudesse avaliar sua dimensão e importância para a região e mesmo para a cultura luso-brasileira.
Ainda assim, alguns elementos podem ser deduzidos a partir da formação do acervo. Sabe-se que foi constituído de três núcleos originários distintos, incluindo a Igreja
Matriz e a banda local. Em 1800, José Joaquim Pereira da Veiga (1772–1840), recém-ordenado padre, assumia funções em Meia Ponte (Pirenópolis). Trouxe consigo do Rio de
Janeiro, onde estudou, vários “dramas” (Mendonça, 1981, p. 101), e para a execução musical de suas árias criou em 1805 um quarteto de cordas (Mendonça, 1981, p. 101). Os
dramas em questão eram Alecrim e Mangerona, Aspásia, Adriano, Artaxerxes e Ésio em
Roma, dentre outros (Gaioso, 2004, p. 22). A autoria da música trazida é incerta e é muito
provável que o material subsistente pertencesse no todo ou em parte já ao século XIX.
Isso porque se sabe que José Inácio do Nascimento, um dos membros do quarteto do padre Pereira da Veiga, compôs ainda em 1842 árias para Ésio em Roma (Gaioso, 2004, p.
22). Como o hábito de realizar as óperas do acervo de Pirenópolis atravessou o tempo e
chegou aos dias atuais, é crível que o material musical setecentesco tenha sido substituído
gradativamente. As folhas desse acervo, que contêm o baixo instrumental das árias “Suponha, senhor”, de Dona Nize, e “Viste, ó Clóris”, de Dom Gil, contêm no seu rodapé a seguinte menção: “Reprezentada no anno de 1846. Ópera de Custódio Roiz de Morais”. A
atribuição pode servir à ideia de autoria ou de propriedade. Há ainda o nome de Manoel
Moreira de Mello inscrito na parte de primeiro violino da citada ária de Dom Gil. O conjunto
conta até mesmo com uma ária para a personagem Fagundes, para quem Antônio José
da Silva não elaborou trechos cantados.
A autoria e os modelos estilísticos de tais manuscritos, dos quais a música popular
urbana parece ter parte, ainda que apontem para uma preservação do texto de Antônio
José da Silva, se distanciam da obra de Antônio Teixeira.
Mesmo no caso de Vila Viçosa, não parecem ainda bem claros os motivos porque
a música de Teixeira teria sobrevivido em manuscritos tão tardios, se considerarmos a volatilidade do gosto e as rápidas mudanças estéticas durante o século XVIII. As Variedades
de Proteu e Alecrim e Mangerona, foram aparentemente copiados a partir de mais ou
menos 1760 e 1770, respectivamente, possivelmente às portas do momento histórico
musical de maior mudança para o gênero lírico daquele século. Eles parecem ter sido usados por décadas seguidas e é possível que tenham atravessado ao século XIX nesta condição.
Também não se sabe o que proporcionou uma rápida mudança de música como
se observa nos manuscritos goianos de meados do século XIX. A composição musical para o texto de Antônio José da Silva parece ter sido retomada, provavelmente a partir dos
últimos dez ou doze anos do século XVIII, conforme se pode deduzir do manuscrito de
Precipícios de Faetonte, reforçada pelo conjunto de manuscritos de Pirenópolis sobre as
quatro peças citadas do Judeu. A provável presença de contrafacta em alguns destes casos,
mais seguramente no MM876, deve ocupar certa importância nos estudos, pois pode
atestar a necessidade de atualização do gosto e os novos padrões, ou pelo menos mais
atuais, em voga nas audiências.
Quanto aos manuscritos de Pirenópolis, se foram ainda que parcialmente copiados no Rio de Janeiro, por onde os espécimes de Vila Viçosa podem ter circulado
(Cranmer), devem apontar para uma mudança de gosto que alcança, também, o Brasil
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colonial, ainda que as datas mais prováveis da formação repertorial do acervo da antiga
Meia Ponte fiquem melhor acomodadas ao período de 1817 a 1840, quando o Padre Pereira da Veiga esteve comprovadamente aos serviços daquela comunidade e com o
mencionado material trazido do Rio de Janeiro.
A saliente e ainda pouco conhecida produção de teatro musical em língua portuguesa que parece convergir para o fim do século XVIII parece ligada a motivos diversos
em que se sobressai a tendência paneuropeia de ópera em língua vernácula e de assunto
cotidiano com personagens de identificação popular, assim como num plano mais lusobrasileiro, enxerga-se uma tendência nacionalista que ora parece imitar, ora reagir, fortemente a modelos italianos. Nesse sentido, a manutenção de autores lusófonos, como
Antônio José da Silva e Antônio Teixeira, nos palcos tardo-setecentistas poderia tanto significar um indício da forte retroação conseguida no Brasil, como pode apontar para a busca de elementos tradicionais e nacionais, em meio à fixação de um teatro lusófono num
mercado dominantemente de lavra italiana.
Referências bibliográficas
[Anônimo] Comédia nova intitulada A locandiera, ornada segundo o gosto dos Cômicos
Theatros Portuguezes. A qual se representou com grande aceitação no Theatro da Rua
dos Condes... Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Sousa, 1765.
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Cambridge Press., 1989.
Cavalcanti, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da
invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Cranmer, David. “Os manuscritos de música teatral no Paço Ducal de Vila Viçosa – a
ligação brasileira”. In: Callipole, Revista de Cultura, n. 17. Ed. Câmara Municipal de Vila
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Gaioso, Marshal. Da Missa ao Divino Espírito Santo ao Credo de São José do Tocantins,
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Machado, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana: histórica, crítica e cronológica. Na qual
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Mazza, José. Dicionario biografico de Musicos Portugueses. Lisboa: Ocidente, xxiii–xxvi,
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Vasconcellos, Joaquim de. Os musicos portuguezes. 2 v. Porto: Imprensa Portugueza,
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VIEIRA, Ernesto. Diccionário biográphico de músicos portuguezes. 2 v. Lisboa:
Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
155
O repertório músico-teatral
na Casa da Ópera do Rio de Janeiro,
1778 a 1813
David Cranmer
Universidade Nova de Lisboa
A data incerta é, mas, ao que parece, já na década de 1760, surgiu, no Rio de Janeiro, um novo teatro; era o terceiro a ser construído nesta cidade, e veio a ser denominado
por “Ópera Nova”, para o distinguir do segundo teatro, que assim passou a ser a “Ópera
Velha”. Até a década de 1770, são bastante reduzidos os nossos conhecimentos acerca do
repertório destes dois teatros.
Terá sido a Ópera Nova que o Morgado de Mateus visitou, em meados de 1765,
presenciando récitas de Precipícios de Faetonte, com texto de António José da Silva (o
“Judeu”), e quatro óperas com texto de Pietro Metastasio, presumivelmente em tradução
portuguesa: Dido desprezada, Ciro reconhecido, Alexandre na Índia e Adriano na Síria
(Budasz, 2008, cronologia). O viajante francês, Louis Antoine de Bougainville, refere-se
genericamente a representações de obras de Metastasio e outros mestres italianos durante
a sua estadia em julho de 1767, sem especificar em que teatro (Budasz, 2008, cronologia).
Foi durante uma representação de Os encantos de Medeia, de António José da Silva, em
1775, que a Ópera Velha pegou fogo, deixando a Ópera Nova como a única “Casa da Ópera”
da cidade.1
Moreira de Azevedo, em O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens
notáveis, usos e curiosidades, publicado originalmente em 1877, faz referência a representações de várias obras, sem mencionar a data (nem a sua fonte), mas que, do contexto,
supõe-se ser de depois de 1773: “Subiram à cena nesse palco as mais populares peças dos
repertórios de Moliére e de Antônio José, e a Inês de Castro, o Convidado de Pedra, a Astúcia de Escapim, mágicas e cantorias” (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156). A Inês de
Castro em questão terá sido, provavelmente, a “comédia” sobre este tema Só o amor faz
impossíveis, de Manuel José de Paiva, sob o pseudónimo de Sylvestre Sylverio da Sylveira
e Silva, o Convidado de Pedra e a Astúcia de Escapim terão sido de Goldoni e Molière respectivamente.
Segundo Moreira de Azevedo, que mais uma vez não indica a sua fonte, durante
o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa (de 1778 a 1790), enquanto Manuel Luiz
Ferreira o geria, a Casa de Ópera prosperou, com a criação de uma companhia lírica e
representações de Chiquinha, isto é La Cecchina o sia la buona figluola, de Piccinni, Piedade
de amor (La pietà di amore, de Giuseppe Millico) e L’italiana in Londres (L’italiana in Londra, de Cimarosa) (Moreira de Azevedo, 1969, p. ii e 156).
A fonte original desta informação foi entretanto descoberta por Nireu Cavalcanti,
tendo sido publicada na íntegra por Rogério Budasz em Teatro e Música na América Portuguesa (Budasz, 2008, p. 248-249). O documento em questão é constituído pelas memórias de Manuel Joaquim de Meneses, com o título Companhias líricas no Teatro do Rio
de Janeiro antes da chegada da Corte Portuguesa em 1808, elaboradas em cerca de 1850,
e é conservado hoje em dia no Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional, no Rio de
...........................................................................
1
Em 1769, segundo Budasz (2008), cronologia. Agradeço a Lino de Almeida Cardoso a correcção.
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Janeiro. Para além dos títulos referidos por Moreira de Azevedo, o manuscrito cita mais
uma ópera – A italiana em Argel, o que ou diz respeito a uma ópera completamente desconhecida, ou mais plausivelmente é um simples lapso.2
No entanto, Meneses acrescenta mais dados, não só títulos, mas igualmente
importantes práticas de execução.
Alem das pessas liricas propriam.te ditas, todos | sabem q. as antigas comedias,
eraõ intercalladas de árias, e duetos, taes como as de Antonio Jose, Labirintho
de Creta: Variedades de | Protheo, Precipicios de Faetonte, Alecrim e Mangerona,
Encantos | de Circe, &c.a, e de outros authores como a denominada D. João de
Alvarado. (apud Budasz, 2008, p. 243)
Ao referir Encantos de Circe, Meneses queria dizer Encantos de Medeia, que é
da autoria de António José da Silva, ou esqueceu-se que a referida ópera portuguesa era
de outro autor desconhecido.3 Quanto a D. João de Alvarado, comédia atribuída ao dramaturgo lisboeta Nicolau Luís da Silva, voltarei na devida altura à questão da sua música.
Segundo Meneses, nos anos que se seguiram, foram representadas as óperas
“Nina, Desertor Frances, e Desertor Hespanhol” (Budasz, 2008, p. 249), a primeira de Paisiello, a segunda de Gazzaniga e a última de compositor desconhecido. Com o regresso da
cantora Joaquina Lapinha de Portugal, para onde se tinha deslocado desde 1791 até 1805,
a Casa da Ópera entrou numa nova fase, com representações de Semiramis, Julieta e Romeu, Barbeiro de Sevilha, Ouro não compra amor ou Louco em Veneza” (Budasz, 2008, p.
249). Semiramis pode ter sido de Nasolini, Bianchi, Borghi ou talvez Marcos Portugal,4 Julieta e Romeu de Zingarelli, Barbeiro de Sevilha de Paisiello, Ouro não compra amor de
Marcos Portugal, sendo desconhecido o autor de Louco em Veneza.
Para a última fase da Casa da Ópera, de 1808 até a inauguração do Teatro de São
João, a 12 de outubro de 1813, a melhor fonte de informação é a Cronologia da Ópera no
Brasil – século XIX (Rio de Janeiro), publicada online por Paulo Kühl, em 2003. Citando
sempre a sua fonte, lembra-nos não apenas de Le due gemelle, de José Maurício Nunes
Garcia, supostamente representada em 1809,5 e as óperas de Marcos Portugal, L’oro non
compra amore e Artaserse, postas em cena respectivamente em 1811 e 1812, mas também
uma série de obras ocasionais, com música composta por José Maurício ou Fortunato
Mazziotti, conforme o caso, para celebrar aniversários ou dias onomásticos da rainha D.
Maria I ou do Príncipe Regente, D. João.
A escassa documentação que possuímos deixa-nos, portanto, com uma visão
bastante limitada do repertório da Casa da Ópera, conduzindo facilmente a supor que as
representações líricas tenham sido bastante raras. A nossa interpretação, pelo contrário,
é que a documentação é de tal maneira fragmentária que nos fornece um panorama bastante incompleto do que poderia ter sido um teatro bastante activo. A questão que se le...........................................................................
2
As óperas conhecidas com o título L’italiana in Algeri, de Luigi Mosca (1808) e de Rossini (1813), são obviamente fora da questão durante o Vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa.
3
O texto desta ópera foi publicado no tomo II das edições de Operas Portuguezas de 1746 e 1753, assim como
no tomo IV das do Theatro Comico Portuguez de 1759-61 e 1788-92. Ver Cranmer, 2009a.
4
As óperas em questão são, por ordem cronológica de estreia absoluta, Nasolini, La morte di Semiramide (Pádua,
1790), Bianchi, La vendetta di Nino (Nápoles, 1790), Borghi, La morte di Semiramide (Milão 1791) e Portugal, La
morte di Semiramide (Lisboa, 1801). As óperas de Nasolini, Bianchi e Borghi circularam largamente nas décadas
de 1790 e 1800. Representou-se a ópera de Bianchi no Teatro de S. João do Porto na temporada de 1798–1799
e a de Borghi no Teatro de S. Carlos, em Lisboa, em 1799. Desconhece-se qualquer representação de La morte di
Semiramide de Marcos Portugal a não ser com Angelica Catalani como protagonista.
5
A questão da sua representação é bastante polémica. Não se sabe ao certo quando foi estreada ou mesmo se
chegou a ser.
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157
vanta, como consequência, é a de que fontes existirão que nos pudessem fornecer mais
dados.
Tão cedo como 1964, Francisco Curt Lange apontou, de facto, outro caminho.
No Boletín Interamericano de Música, publicou um artigo ilustrado com, entre outras
imagens, a página de rosto, em manuscrito, da parte de baixo da tragédia Zara. Nesta página consta a indicação: “Reprezentada no Teatro do Rio de Janeiro em 18 de Novembro
de 1778”. Numa outra página da mesma fonte, não publicada na altura, mas entretanto
reproduzida em Teatro e Música na América Portuguesa (Budasz, 2008, p. 101), existe
uma ária com o nome da intérprete – “Sra. Paula”, que nos permite caracterizar a escrita
musical do seu copista:
1) as claves de fá, à excepção da do primeiro sistema, terminam numa espécie
de pequeno gancho;
2) os sustenidos inclinam-se para a direita;
3) no segundo sistema, onde entra a cantora, consta a indicação “voz”, em que o o
e o z estão escritos com um único movimento da pena, sem a levantar do papel;
4) a barra final é constituída por uma barra dupla, mais três barras, cada vez mais
pequenas, terminando num floreado.6
Acontece que num outro manuscrito, de um Demofoonte, conservado a quase
8 mil quilómetros do Rio de Janeiro, no Paço Ducal de Vila Viçosa (com a cota G prática
51), encontramos uma grafia musical idêntica: claves de fá maioritariamente com um pequeno gancho, sustenidos inclinados para a direita, “voz” com o o e z escritos num único
movimento da pena, e a barra final com os mesmos contornos. A cantora neste caso é
indicada como “Sra. Joaquina”.
Esse último facto é tão importante como a grafia do copista, pois quer a Sra.
Paula, de Zara, quer a Sra. Joaquina de Demofoonte, constam da lista de cantores referidos
por Meneses, nas suas Memórias, como sendo do tempo do vice-reinado de Luís de
Vasconcelos e Sousa:
entre os cantores daquelle tempo distinguia hum de | nome Pedro, vindo de
Portugal, q. era ao m.mo tempo excellente | actor dramatico, e poeta, compositor
de alguns entremeses jocosos: | eraõ seus companheiros M.el Rois Silva, Lobato,
Ladisláo Benave- | nuto, comico bufo, Jose Ignacio se S.a Costa, e outros. [...]
Entre as cantoras, distinguia-se Joaquina da Lapa, que pas- | sou a Europa [...]
eraõ suas companheiras, | Luisa, Paula, e outras, todas brasileiras, bem como os
cantores, a excepção de Pedro. (Budasz, 2008, p. 248)
No manuscrito de Demofoonte, um pastiche, com texto apenas parcialmente
de Metastasio, encontramos os nomes de Sra. Joaquina (Joaquina Lapinha), Sr. Manoelinho
(Manuel Rodrigues da Silva), Sr. Pedro (Pedro António Pereira), Sra. Paula, Sra. Luísa, e
uma Sra. Ignacia, não referida por Meneses. Não pode haver a mais pequena dúvida de
que a proveniência desse material seja a Ópera Nova do Rio de Janeiro.
Meneses informa-nos igualmente dos cantores que actuaram a partir de cerca
de 1805,
até q. chegando de Portugal Joaquina da Lapa, deo novo | impulso ao theatro.
Alem della existiaõ as cantoras Fran.ca de Paula, | Maria Jacintha, Genoveva, Ig-
...........................................................................
6
As fotografias originais que Curt Lange tirou encontram-se no Acervo Curt Lange, na Biblioteca da UFMG, em
Belo Horizonte. Perderam-se os manuscritos originais.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
158
nes, e Maria Candida: entre os cantores, | M.el Rois Silva, Ladisláo, Luiz Ignacio,
e Geraldo, musico eminente | q. ainda existe, e o celebre baixo profundo João
dos Reis. (Budasz, 2008, p. 248)
Esses nomes também se encontram em alguns dos manuscritos no Arquivo
Musical no Paço Ducal em Vila Viçosa. A existência nesse Arquivo de fontes provenientes
do Rio de Janeiro não constitui em si uma novidade. Já se sabia, por exemplo, das obras
ocasionais de José Maurício Nunes Garcia, Ulissea e O Triunfo da América, para além do
final do entremez Manoel Mendes, cujo texto literário é de António Xavier Ferreira de
Azevedo. No entanto, investigações realizadas por nós ao longo de vários anos, baseadas
numa análise criteriosa dos manuscritos, revela que várias dezenas de obras conservadas
neste espólio têm a sua origem na Casa de Ópera do Rio de Janeiro ou, pelo menos, passaram por lá, vindas originalmente de teatros lisboetas, especialmente do Teatro do Salitre
ou do Teatro de São Carlos, para além do Teatro Real de Salvaterra. As investigações em
Vila Viçosa ainda estão longe de concluídas, mas os dados são suficientemente seguros
para se poder propor acrescentar um número considerável de obras ao repertório músicoteatral conhecido da Ópera Nova.7
Em primeiro lugar, no entanto, convém fazer referência aos manuscritos conservadas em Vila Viçosa que correspondem às obras mencionadas por Meneses. No que
diz respeito ao repertório do vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa, existem as partituras e algumas partes cavas das óperas italianas La pietà di amore (G prática 23 e 117.63)
e de L’italiana in Londra (G prática 35, 90f, 91i e 117.9). O material pertencente às óperas
portuguesas de António José da Silva, Guerras do alecrim e mangerona e Variedades de
Proteu (respectivamente, G prática 7 e 6) também terá sido usado no Rio. Existem igualmente fragmentos da música para D. João de Alvarado, criado de si mesmo (G prática 86b
e 117.23). Na edição impressa desta comédia, não existe qualquer indício do uso da música,
mas, como já foi referido, Meneses lembra-nos que “as antigas comedias, eraõ intercalladas
de árias, e duetos”, sendo a existência destes fragmentos testemunho dessa prática. Quanto
ao período posterior, existe igualmente em Vila Viçosa material usado no Rio pertencente
a Il barbiere di Siviglia de Paisello (partitura e partes cavas, G prática 27) e de Il disertor
francese (apenas partes cavas, G prática 8 e 117.6), este último com a data de 1800. Encontra-se ainda neste Arquivo a partitura do Acto II de L’oro non compra amore (G prática
39), sem nada, contudo, que indique o seu uso no Rio.
Para além destas obras, encontramos material, sobretudo partes cavas e muitas
vezes incompleto, de um leque bastante variado de obras músico-teatrais, não só óperas,
comédias e tragédias, mas também entremezes e farças,8 obras ocasionais e números
soltos:
1º Óperas italianas: La Zaira, de Bernardo José de Souza Queiroz (só as partes
cavas, G prática 45, 91f e 117.17, pois a partitura encontra-se na Biblioteca da Ajuda, cota 48-II-36 e 37); Il fanatico in Berlina, La modista raggiratrice e La molinara o sia l’amor contrastato, de Paisiello (respectivamente, G prática 34 e
117.77; 61 e 117.11; e 28, 62, 90a e 117.12); Argenide ossia il ritorno di Serse e
As damas trocadas (tradução portuguesa de Le donne cambiate), de Marcos
...........................................................................
7
Fruto desta investigação é o “Elenco provisório” (Cranmer, 2009b), um inventário das cotas relevantes da
secção G prática, que, em grande parte, substitui o catálogo confuso e incompleto do Cónego Alegria (Alegria,
1988).
8
A ortografia da época “farça” é usada para designar um género específico, em um acto, em voga em Portugal
e no Brasil entre a década de 1790 e cerca de 1830. Distingue-se assim da farsa dos séculos XVI e XVII, de Gil
Vicente, Francisco Manuel de Melo e outros, bem como do uso moderno da ortografia actual.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
159
Portugal (respectivamente, G prática 44, 90b, 91a, b, c, 117.15; e 46, 89d, i,
117.16,); Il seraglio d’Osmano (G prática 22 e 117.67), de Gazzaniga; e L’isola
d’Alcina, de autor desconhecido (G prática 68).
2º Adaptações populares de Metastasio: Demetrio, de David Perez, em tradução
portuguesa com três cenas cómicas acrescentadas (G prática 85), e versões anónimas de L’olimpiade (G prática 117.13) e Dido [desamparada] (G prática 88c e
117.5), para além do Demofoonte já referido.
3º Conjuntos de árias, duetos, coros etc. para inserção em comédias e tragédias
portuguesas: O capitão Belisário (G prática 117.20), A mulher amorosa (G prática
117.30), A esposa persiana (G prática 117.25), O convidado de pedra (G prática
117.21), Olinta (G prática 117.31), todas sem atribuição, e Eurene [perseguida e
triunfante], cujos números têm atribuições a Traetta, Perez, Guglielmi e Piccinni
(G prática 117.51).
4º Entremezes e farças: O gato por lebre, com música de António José do Rego
(G prática 12 e 117.27), A dama astuciosa, de José Palomino (G prática 83 e
117.22), O disfarce venturoso, uma versão de Quem busca lã fica tosquiado, de
Marcos Portugal (G prática 47, 86j, 89c, 89s e 117.49), A marujada, de Bernardo
Queiroz (G prática 86h, 86i, 86l e 117.29), e O papalvo logrado, de autor desconhecido (G prática 91g e 117.32).
5º Obras ocasionais: para além das obras de José Maurício (Ulissea, G prática
13, e O Triunfo da América, G prática 15.1, 15.2, 86g e 117.35), O elogio da Senhora Rainha, de Marcos Portugal (G prática 42, 84e e 117.73) e três elogios de
Fortunato Mazziotti (de 1811, G prática 43; de 1812, G prática 20 e 117.50; sem
data, G prática 21.1).
6º Números soltos: várias árias anónimas em italiano ou em português, incluindo
as chamadas “ária da perna” (G prática 117.18) e a “ária do papagaio” (117.66),
modinhas e lunduns com acompanhamento orquestral, e um coro marcial de
Fortunato Mazziotti intitulado “A Defesa de Saragoça”, para uso no drama Palafox
em Saragoça, ou, a batalha de 10 de Agosto do anno de 1808 (G prática 84a),
outra peça do dramaturgo António Xavier Ferreira de Azevedo.
A procura de repertório não termina, contudo, em Vila Viçosa. Uma parte cava
solta existente neste arquivo, sem qualquer identificação mas para uma personagem Constância (G prática 117.47), durante vários anos deixou-nos com um ponto de interrogação,
até um dia ao examinar manuscritos no espólio do falecido maestro Filipe de Sousa, legada
à Fundação Jorge Álvares, encontrámos partes cavas pertencentes à comédia A ciganinha.
Como descobrimos, esta comédia, bem popular nas últimas décadas do século XVIII no
Brasil, mas desconhecida em Portugal, possui uma personagem Constância. As partes estavam todas presentes excepto a dela, pois é essa que está em Vila Viçosa. Também existem
no referido espólio as partes cavas de Coriolano em Roma, com indícios incontornáveis
do seu uso na Casa de Ópera do Rio de Janeiro.
Como é evidente, não é suficiente meramente descobrir a existência de fontes,
por muito que seja o ponto de partida sine qua non para qualquer investigação. Sendo
assim, gostaria de levantar diversas questões, dando uma resposta em alguns casos, mesmo
que parcial e provisória, ou noutros propondo eventuais métodos de as resolver.
Em primeiro lugar, a questão de cronologia. Com raras excepções, estes manuscritos não possuem datas. Em alguns casos, referências a cantores específicos ajudam.
Ao que parece, Joaquina Lapinha, por exemplo, é referida como “Joaquina” antes da sua
partida para a Europa e “Lapinha” depois do seu regresso. Um estudo rigoroso dos papéis,
através das marcas de água e a grafia dos copistas ajudará também. De facto, é possível
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
160
identificar um conjunto de copistas activos durante o vice-reinado de Luís de Vasconcelos,
responsáveis sobretudo pelas cópias das comédias e da tragédia Eurene. Outro grupo
está claramente associado a compositores activos no Rio na primeira e segunda décadas
do século XIX. A década de 1790 é mais difícil. Em todo o caso, a reutilização de manuscritos
e a inserção de materiais mais recentes no meio de outros já usados, dificulta bastante o
estabelecimento de uma cronologia coerente. O material de Demofoonte, por exemplo,
fornece evidência de ter sido usado duas vezes de formas diferentes, afectando os
intérpretes envolvidos. O de Guerras do alecrim e manjerona foi usado provavelmente
três vezes, durante um período de 10 ou mais anos entre cerca de 1780 e cerca de 1790,
evidenciando uma clara evolução performativa a favor de uma duração bastante mais reduzida.
Se é possível afirmar a proveniência de alguns dos manuscritos do século XIX,
especialmente os com música composta no Rio, outros, sobretudo os anteriores, são bastante mais difíceis. Em todo o caso, alguns têm proveniências mistas. A partitura da farça
O gato por lebre, por exemplo, é autógrafa e tem a indicação explícita de ter sido composta
por Rego para o Teatro do Salitre, em Lisboa, em 1804. As partes cavas, no entanto, incluem
a grafia de pelo menos um copista carioca. A partitura de Argenide, de Marcos Portugal,
está sobretudo na mão de copistas lisboetas conhecidos do Teatro de São Carlos, em Lisboa, mas há determinadas secções introduzidas com a grafia mais uma vez de um copista
carioca. Uma das dificuldades prende-se com a não sobrevivência de manuscritos claramente atribuíveis a copistas activos no Teatro do Bairro Alto, Teatro do Salitre e Teatro
da Rua dos Condes, com que se pudesse fazer a comparação, esclarecendo o que terá vindo de Portugal e o que foi copiado localmente no Rio.
Há toda a questão da autoria da música inserida nas comédias e tragédias. Toda
a evidência encontrada até agora aponta para uma tradição de pastiche e contrafacção.
Por exemplo, uma das árias acrescentadas em Guerras do Alecrim e Mangerona, tem um
atribuição a Pietro Guglielmi. De facto, esta ária é um contrafactum, de outra, na sua
ópera Alceste.9 A ária “Que farei sem o consorte?” em A mulher amorosa, é nada mais
nem menos do que “Que farò senza Euridice?”, do Orfeo, de Gluck, com um novo texto
em português. Já referi que Eurene possui música de pelo menos quatro compositores.
Outra questão que é preciso estabelecer é onde se insere eventualmente a música
encontrada para obras cujos textos impressos não indicam o uso de qualquer música. Um
exemplo que já nos foi possível verificar é A mulher amorosa. Neste caso, à excepção de
uma das “cantorias” (como os números musicais são designados), é fácil descobrir, através
de uma leitura cuidadosa do contexto dramático e literário, onde os números musicais se
inserem. Em um caso – um recitativo acompanhado – o próprio texto encontra-se, de
facto, na edição impressa.
Uma problemática parecida é levantada em casos em que os textos das canções
na edição impressa nada têm a ver com a música que possuímos. A edição impressa de O
gato por lebre, por exemplo, possui o texto de apenas uma canção, que Rego não musicou,
e nenhuma das cantorias compostas por este se encaixa neste momento na peça. No entanto, não é difícil encontrar lugares apropriados para os números escritos por Rego.
Meneses faz referência a outra questão ainda: a da língua em que se cantava.
Segundo este, na primeira fase, durante o vice-reinado de Luiz de Vasconcelos, as óperas
italianas eram traduzidas por Antonio Nascentes Pinto para português, enquanto no período após o regresso da Lapinha já se cantava em italiano (Budasz 2008, p. 248-249). Em
vários dos manuscritos em Vila Viçosa encontramos uma mistura das duas línguas. Não
só existem cantorias com o texto italiano riscado e o português inserido, mas também
...........................................................................
9
A ária “Não me chamais tirana” é um contrafactum da ária “Non mi rendete infido” de Alceste.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
161
manuscritos em que algumas das árias estão em italiano e outras em português. Por enquanto não podemos definir uma data aproximada sequer a partir de quando se começou
a cantar em italiano. Também não devemos excluir à partida a hipótese de ter havido por
vezes uma mistura, tendo alguns cantores a preferência para o italiano e outros para o
português. Apenas uma análise cuidadosa dos manuscritos esclarecerá esta dúvida.
Por último, gostaria de levantar questões acerca das edições modernas que
podemos querer elaborar com base nestas matérias, pois aqui há outras questões ainda
que entram em jogo. O primeiro é que, em muitos casos, o material que sobreviveu é
bastante fragmentário. De Dido [desamparada], por exemplo, só temos as partes das
trompas e o baixo. De Eurene perseguida e triunfante foi conservada apenas a parte de 2º
violino. E mesmo quando existe a partitura ou as partes cavas todas (ou suficientes para
permitir a reconstituição do resto), no caso de comédias, tragédias, entremezes e farças,
precisamos também do texto da peça em que a música se insere, se queremos encenar
estas obras – e seria triste executá-las apenas em versão de concerto. Já fiz referência a
algumas obras para as quais possuímos uma edição impressa. Noutros casos temos de
procurar os textos em manuscrito, uma tarefa bastante mais difícil, não só por serem
mais raros, mas porque os títulos usados nas partituras e partes cavas nem sempre
correspondem ao do texto literário.
No entanto, vale a pena procurar. Por título de exemplo, existe em Vila Viçosa
música atribuída a Marcos Portugal referente a um entremez intitulado O disfarce
venturoso. Acontece que se encontra em Coimbra um manuscrito do texto do entremez
Quem busca lã fica tosquiado,10 obra que Marcos Portugal inclui na sua relação autógrafa
como sendo a versão portuguesa da sua farsa italiana L’equivoco in equivoco. Os textos
de quatro das suas cinco cantorias são iguais aos de O disfarce venturoso. Esta descoberta
viabiliza a sua encenação.
Outra questão em relação às edições prende-se com os nossos objectivos em as
realizar, e daí quais os critérios que devemos usar. Para tomar dois casos concretos, numa
edição de Guerras do alecrim e mangerona, devemos manter os números que não
pertencem à versão original (incluindo, por exemplo, a ária de Guglielmi)? Ou devemos
omitir tudo o que não seja plausivelmente de António Teixeira, a quem a música é
atribuída? E, na versão portuguesa do Demetrio de David Perez, devemos excluir as cenas
adicionais cómicas, por uma questão de respeito pelo libretista e pelo compositor, para
além da questão de coerência estilística, ou seguir o objectivo que levou alguém na época
a fazer a versão portuguesa, respeitando antes o gosto dos portugueses daquele tempo,
que exigia absolutamente a inclusão das cenas cómicas?
Nesta tarefa levantei bastantes questões. Foi possível responder, pelo menos
parcialmente, a algumas. Quanto às restantes, constituem um desafio para o futuro.
Referências bibliográficas
Alegria, José Augusto. Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: Catálogo dos Fundos
Musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
Budasz, Rogério. Teatro e Música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça,
gênero e poder. Curitiba: Deartes-UFPR, 2008.
Cranmer, David. Edições setecentistas do Theatro Comico Portuguez, das Operas
...........................................................................
10
Na Sala Dr. Jorge de Faria, na Faculdade de Letras. Possui a cota: JF 5-9-41.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
162
Portuguezas e das edições avulsas das obras que os constituem. 2009a. Disponível em
<http://www.caravelas.com.pt/Theatro%20Comico%20Portuguez.htm>.
Cranmer, David. Elenco provisório de espécies de música dramática e instrumental
manuscrita até 1833 existentes no Paço Ducal de Vila Viçosa. 2009b. Disponível em
<http://www.caravelas.com.pt/PacoDucalVilaVicosa.htm>.
Kühl, Paulo Mugayar. Cronologia da ópera no Brasil: século XIX. 2003. Disponível em
<http://www.iar.unicamp.br/cepab/opera/cronologia.pdf>.
Lange, Francisco Curt. “La opera y las casas de opera en el Brasil colonial; Nuevos
aportes sobre la opera en Vila Rica”. In: Boletín Interamericano de Música, n. 44, nov.,
1964, p. 3-11.
Moreira de Azevedo, Manuel Duarte. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos,
homens notáveis, usos e curiosidades. 3ª ed., 2 v. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana
Editora, 1969.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
ÓPERA EM TRANSIÇÃO
165
A República e as mudanças
na cultura musical e músico-teatral
Mário Vieira de Carvalho
Universidade Nova de Lisboa
Tão forte como o impulso destrutivo é, na autêntica historiografia, o impulso da salvação. Mas de
que pode ser salvo algo transcorrido? Não tanto da má reputação e do desprezo em que caiu, mas
mais de um certo modo da sua tradição. O modo como é apreciado como “herança” é mais funesto
do que poderia sê-lo […] o seu desaparecimento.
(Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. In: Edição Crítica da Obra e do Espólio, 2010, p. 128)*
Procurando dar neste texto sobretudo uma perspectiva de síntese sobre as mudanças operadas na cultura musical e músico-teatral pela República, há duas ideias fundamentais a reter: a primeira é a de que essas mudanças ocorrem ao longo de um processo
em que a data de 1910 constitui um indicador importante, mas não verdadeiramente
uma fronteira histórica a separar o anterior do novo regime; a segunda é a de que a necessidade e a concretização das mudanças, na música e na cultura em geral, tal como
noutras dimensões da vida social, é articulada no quadro de uma rede de relações de natureza sistémica, que exclui um nexo linear de causa e efeito.
Acrescem, como advertências ao leitor: não se abordará aqui a imensa variedade
da experiência musical: apenas se tomarão em conta alguns aspectos, incidindo muito
especialmente em Lisboa e no Teatro de São Carlos; mais do que apresentar novos factos,
pretende-se reflectir criticamente sobre dados já conhecidos e deixar apontadas pistas
para investigação ulterior.
“Nada temos adiantado desde o século XVIII”
O republicanismo ou o movimento republicano desempenha um papel central,
também na área cultural, desde cerca de 1880 – marcando uma forte presença, por exemplo, nas comemorações camonianas –, mas o que importa salientar é a polarização política
e ideológica que se gera em torno dele, a energia com que assume a crítica e a necessidade
de uma alternativa ao status quo, transformando-a numa questão de regime, e levandoa enquanto tal até ao fim, ainda que para alguns quadrantes igualmente críticos e descontentes tal questão não se colocasse. Por outras palavras: a República é a resposta que
as circunstâncias históricas concretas do País acabam por impor para um diagnóstico em
que convergem perspectivas políticas e ideológicas muito diferenciadas.
“O povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.
Esta afirmação de Eça de Queirós publicada no Distrito de Évora, de 28 de abril de 1867, é
um bom exemplo desse diagnóstico.1 Podia ter encabeçado o manifesto inaugural do Par...........................................................................
* “So stark wie der destruktive Impuls, so stark ist in der echten Geschichtsschreibung der Impuls der Rettung.
Wovor kann aber etwas Gewesenes gerettet werden? Nicht sowohl vor dem Verruf und der Mißachtung, in die
es geraten ist als vor einer bestimmten Art seiner Überlieferung. Die Art, in der es als “Erbe” gewürdigt wird, ist
unheilvoller als seine Verschollenheit es […] sein könnte.” Cf. Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte,
ed. Gérard Raulet (Werke und Nachlaß – Kritische Gesamtausgabe, vol. 19), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2010.
1
Cf. J. M. Eça de Queirós, Da colaboração no “Distrito de Évora” (ed. Helena Cidade Moura), 3 vols., Lisboa,
Livros do Brasil, s. d., vol. II, p. 171. Cit. in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach: A ácida
gargalhada de Mefistófeles, Lisboa, Colibri, 1999, p. 11-27.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
166
tido Republicano. Mas, menos importante do que a questão de saber se Eça de Queirós
foi alguma vez republicano é o diagnóstico em si. Não era preciso ser-se republicano para
afirmar que “o povo está cansado de ver que nada temos adiantado desde o século XVIII”.
Foram, porém, os republicanos quem incorporaram, ampliaram e transformaram em acção
prática o processo de mudança, traduzindo-o em mudança de regime.
Como já referi noutra ocasião, nessa frase de Eça de Queirós contêm-se as noções
de peuple de Michelet (1847), de história como processo e como progresso (como a entendiam Voltaire, Hegel, Marx ou Antero), do século XVIII como época de revolução ou de
rotura em que o terceiro estado (o povo) assume o protagonismo. Eça de Queirós falanos, assim, de Portugal em 1867 — do Portugal pós-vintista, pós-setembrista e pós-cabralista — como de um país que ainda não tivesse feito a sua revolução burguesa. Apresentanos o constitucionalismo e a Regeneração com os traços do “antigo regime”: Nada se
adiantara desde o século XVIII!2
No seu diagnóstico, Eça de Queirós tem em mente termos de comparação europeus, a que acede, não por experiência directa, pois ainda nunca saíra do país, mas pela
informação que lhe chega em livros e revistas ou através de outras fontes indirectas (testemunhos pessoais de amigos etc.). Também a música e a ópera ocupam aí uma área
relevante – uma área a respeito da qual Eça de Queirós deixa igualmente entrever que,
em Portugal, “nada se adiantara desde o século XVIII”. São notórios, por exemplo, os lugares
paralelos entre alguns trechos das crónicas do Distrito de Évora e os textos de Paul Scudo
na Revue des Deux Mondes, que aproximam Eça de Queirós da “actualidade” da cultura
músico-teatral europeia tanto quanto mostram o seu defasamento do “cânone” então
dominante em Portugal. A assimilação, provavelmente através de Antero, do conceito de
“música como linguagem do inexprimível” do romantismo alemão constitui outro exemplo
desse defasamento.3
“A nossa época é que devia produzir a música”, diz Eça de Queirós, na Gazeta de
Portugal (outubro de 1866).4 Em Portugal, porém, escreverá depois no Distrito de Évora,
não vê “nem arquitectura, nem música”, assim como também não vê ideias. É no contexto
dessa crítica que ganham particular relevância as suas referências a Mozart. Consciente
ou inconscientemente, elas assinalam a singularidade das suas preferências musicais em
contraste radical com o seu meio. Pois que, ao contrário de Londres, Paris, das principais
cidades germânicas e mesmo italianas, as óperas de Mozart não eram representadas em
Lisboa, não tinham marcado até então o quotidiano cultural português.
Na “Sinfonia de Abertura” fala do D. Juan de Mozart como se fosse a quintessência
da música: “o indefinido daquela alma revelado pela arte, eis aí a música”.5 Mas como
podia Eça de Queirós sabê-lo de experiência vivida, se nessa altura nunca podia ter assistido
à representação cénica de Don Giovanni num teatro? Decerto, podia ter ouvido trechos
executados ao piano e comentados (eventualmente pelo seu amigo Augusto Machado,
“o Cruges”). Isso não é, porém, comparável a uma forte presença da obra na esfera pública,
através de uma tradição de representações e de adaptações teatrais, ou seja, duma apropriação efectiva e alargada. O D. Juan de Mozart era um ícone da Europa romântica, uma
referência incontornável do imaginário de escritores, artistas e público culto da época.
Em Paris, a recepção era muito intensa desde 1805, inclusive em versões em língua fran-
...........................................................................
2
Cf. Vieira de Carvalho, loc. cit.
Cf. ibidem.
Cf. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal), ed. Carlos Reis e
Ana Teresa Peixinho, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 66-68.
5
Cf. Edição Crítica…, Textos de Imprensa I, p. 72.
3
4
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
167
cesa. Em Londres, tornara-se familiar ao público desde 1817, em versões quer italianas,
quer inglesas. Nos países germânicos estava constantemente no cartaz, e a frequência
das produções em língua alemã pode medir-se pelo número de traduções – mais de 60 ao
longo do século XIX, reflectindo mudanças dos contextos ideológicos da recepção.
Também em Itália a obra fazia a sua carreira no século XIX. Se as companhias italianas contratadas para Lisboa não as incluíam no seu repertório, a única explicação plausível é a relutância do público português. De 1838 a 1840, na sequência da Revolução de
Setembro, assistiu-se a um esforço de renovação do repertório e da praxis de representação, que tomava por modelo o Grand Opéra de Paris, designadamente quanto à
coerência do todo e ao aperfeiçoamento do palco ilusionista. O empresário que se encontrava à frente do São Carlos, o Conde de Farrobo, oriundo da grande burguesia comercial
e cosmopolita, figura “esclarecida” e influente do constitucionalismo, empenha-se nessa
reforma. Deve-se-lhe também, por essa altura (1839), a estreia do Don Giovanni de Mozart
no São Carlos e em Portugal. Por detrás disso, há, sem dúvida, um propósito “educativo”,
dir-se-ia mesmo “iluminista” – no espírito do Setembrismo – como resulta claramente do
extenso artigo publicado no Diário do Governo (5 de janeiro de 1839) a preparar o público
antes da estreia.6 O artigo, que podia ter sido escrito por alguém com o conhecimento de
causa de João Domingos Bomtempo ou – quem sabe? – do próprio Farrobo, distinto
músico-amador, intérprete e encenador de ópera no seu Teatro privado das Laranjeiras,
exaltava os méritos da ópera de Mozart (dando especial relevo à música) e o significado
da sua estreia em Portugal. Tudo, porém, em vão: o embate com a incompreensão ou
indiferença do público não permitiu que a obra subisse à cena mais de quatro ou cinco
vezes. À data em que Eça de Queirós escrevia – e já haviam passado quase três décadas –
a obra não voltara a ser representada em Lisboa.
Mais significativo ainda é o que se passa com outra das principais óperas de Mozart: As Bodas de Fígaro. No Distrito de Évora, em 13 janeiro de 1867, Eça de Queirós
compara-as ao Otello de Rossini, uma obra familiar ao público do São Carlos, e observa
que, em Mozart, “a música completa a obra teatral, explica a oculta poesia daquelas almas,”
enquanto Rossini nada teria acrescentado a Shakespeare.
Tal como Don Giovanni, também a ópera Le Nozze di Figaro corria os teatros europeus desde a viragem do século. Ao tempo em que Eça de Queirós escrevia, mantinhase provavelmente ainda no cartaz do Théâtre Lyrique, em Paris, onde se transformara
num êxito popular desde 1858, na nova versão francesa de Barbier e Carré. Símbolo indissociável da revolução burguesa do século XVIII era uma presença constante no repertório, deixando bem para trás a peça de Beaumarchais que lhe dera origem. Adaptada
e representada em numerosas línguas, constituía outra das grandes referências da cultura
europeia do século XIX.
Em Portugal, porém, nunca seria levada à cena em vida de Eça de Queirós. Se o
Don Giovanni ainda foi representado algumas vezes em duas ou três temporadas do São
Carlos, a partir de 1869 e até final do século, as Bodas só viriam a ser estreadas em Lisboa
após a Segunda Guerra Mundial, em 1945 (em condições, de resto, extremamente precárias). Por estranha e irónica coincidência, a sua estreia no São Carlos ocorre somente
no ano do centenário do nascimento de Eça de Queirós, que “adorava Mozart em segredo”.7
Da Flauta Mágica não fala Eça de Queirós nas suas crónicas. Também aqui é
flagrante o contraste entre Lisboa e a recepção europeia da obra. Já para não falar nos
países germânicos, onde atraía público em massa desde finais do século XVIII, são
...........................................................................
6
Cf. Mário Vieira de Carvalho, ‘Pensar é Morrer’ ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas socio-comunicativos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993, p. 109-111.
Citado in Mário Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 19.
7
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
168
incontáveis as adaptações em diferentes línguas – por exemplo, em Paris, desde 1801, no
Odéon, com o título Les Mystères d’Isis (um pastiche de Ludwig Wenzel Lachnith que
também incluía trechos do Don Giovanni e das Nozze di Figaro), e desde 1865, no Théâtre
Lyrique, numa versão francesa de Charles Nuitter e Alexandre Beaumont mais conforme
ao libreto original. Contudo, embora tivesse circulado igualmente em versões italianas,
certo é que as companhias contratadas ao longo do século XIX pelos empresários do São
Carlos nunca a levaram à cena neste teatro. Só em 1953 seria aqui estreada por uma companhia alemã que também trouxe pela primeira vez a Portugal O Rapto no Serralho (Die
Entführung aus dem Serail).
Por sua vez, Cosi fan tutte teve a sua primeira representação em Portugal no
Teatro de São João no Porto em 1816 (única no século XIX), mas só foi estreada no Teatro
de São Carlos em 1958. Finalmente, La Clemenza di Tito foi estreada no Teatro de São
Carlos em 1806 – mais num contexto de revivalismo do modelo virtuosístico da opera
seria e de libretos metastasianos do que por via da “descoberta” do teatro de Mozart, no
que este tinha de mais representativo e característico.8 Também não voltou à cena senão
no século XX, muito depois da Segunda Guerra Mundial.
Sobretudo quando relacionada com testemunhos que nos deixou da sua
experiência vivida de espectador de ópera, a singularidade da recepção do Don Giovanni
e das Bodas de Fígaro de Mozart em Eça de Queirós, num meio que as desconhece ou se
mantém indiferente a elas, é um sintoma importante da posição de crítico da cultura em
que o escritor se coloca quando afirma que “em Portugal nada temos adiantado desde o
século XVIII”. No meu estudo já acima referido,9 julgo ter posto suficientemente em
evidência, a propósito do que Eça de Queirós escreve sobre o Fausto de Gounod, no São
Carlos (estreia em 1865), o que o distingue das estratégias de comunicação dominantes
em Lisboa. Eça de Queirós ocupa-se do drama e – na sua apreciação – canto, orquestra,
representação e cena são vistos como um todo que é por aquele inteiramente absorvido.
A música, para ele, está nas personagens, e não fora delas: é, a bem dizer, “esquecida” na
experiência do todo, e quando lhe reserva algumas linhas é ainda para acentuar o que há
nela de gesto dramático. Como já referi, a este respeito, a própria produção do Fausto,
pela coesão das componentes cénico-musicais, era uma excepção relativamente à prática
habitual do S. Carlos, e isso pode ter favorecido os traços específicos da recepção de Eça
de Queirós. Em todo o caso, o confronto com outros cronistas da época evidencia também
aqui o que separa Eça de Queirós desses testemunhos, muito mais preocupados com as
qualidades vocais dos cantores e com a música em si, do que com a ideia de drama como
um todo.
A respeito do Fausto, dizia um dos jornais que, desde havia 25 anos, nunca se
atingira no Teatro de São Carlos um tal grau de coerência do todo, inclusive na mise-enscène. Ou seja: o jornal remete precisamente para a época da direcção do Conde de Farrobo.
Ligando os dois aspectos – o interesse por Mozart e a recepção da ópera como
um todo – conclui-se que a ausência de Mozart no Portugal romântico não pode ser reduzida a uma mera e mais ou menos fortuita questão de “gosto”. Trata-se antes de uma
questão estrutural – inerente ao sistema sócio-comunicativo então dominante no Teatro
de São Carlos e aos mecanismos de autorregulação através dos quais este se mantinha
estável, impondo-se a toda e qualquer tentativa de inovação ou mudança. É que as óperas
de Mozart exigiam uma atenção concentrada no desenrolar do todo, do drama, enquanto
a grande tradição da ópera italiana, de Rossini a Verdi, passando por Bellini ou Donizetti,
...........................................................................
8
9
Continuo a manter esta minha opinião – cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 62.
M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 11-27.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
169
ou mesmo da ópera francesa (aliás, cantada em italiano) de Meyerbeer ou Auber – independentemente do génio dramático e das não menores exigências de coesão teatral por que
se batiam os seus autores – se prestava mais facilmente ao isolamento dos “números”, a
uma recepção fragmentária. Por outro lado, face ao paradigma de brilho ou bravura vocais
a que essa tradição habituara os espectadores do São Carlos, dificilmente as óperas de
Mozart podiam suscitar interesse enquanto sequências de “números”, onde, de quando
em quando, se “medisse” o virtuosismo da prima donna: “Ali é que se via a força das
cantoras!” – como dizia o conselheiro Acácio.
Não é por acaso que Eça de Queirós fala de compositores “pensadores” – os excluídos do repertório do São Carlos – contrapondo-os aos da tradição italiana dominante:
Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos
canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir
e a fingir. De resto, Donizetti e Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles respeitamo-los como ideias que cantam – estes detestamo-los como erotismos que
arrulham.10
Sob a aparência de uma oposição entre estilos ou escolas nacionais, o que está
aqui realmente em causa é a crítica de um modelo de comunicação que excluía as ideias,
o drama, e, consequentemente, qualquer investimento intelectual por parte do público.
A excepção do Fausto, reflectida na própria recensão crítica de Eça de Queirós,
confirma a regra de uma prática de representação onde a cena não condizia com o drama
representado; os cenários, ainda que pintados por Rambois e Cinnati ou, mais tarde, por
Manini, não condiziam com os figurinos e os adereços; onde, enfim, o palco era um mero
pódio para os cantores fazerem valer as suas faculdades e destrezas vocais ou, ao menos,
o seu potencial de sedução pessoal. Nos anos 70 e nos 80 do século XIX continuam a
abundar os testemunhos da falta de consistência dos elementos cénicos, que colocava o
São Carlos abaixo do padrão de exigência de outros teatros da capital:
Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que miseen-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente,
bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia…
Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços
nus mal lavados, eles com as botas enlameadas […]11
Voltando ao Don Giovanni, na crónica publicada no Diário de Governo de 5 de
janeiro de 1839 tornava-se, porém, bem explícito o equívoco até mesmo daqueles que
queriam promover a obra. Após considerações relativas à moralidade do protagonista
concluía-se:
[M]as todos sabem que não é ao drama que se vai dar attenção no Theatro
Italiano; é só à parte harmonica, e nesta parte D. Giovanne [sic], merece mais
que nenhuma outra Opera.12
...........................................................................
10
Cf. J. M. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (ed. Helena Cidade Moura), Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 230.
Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 230. Cf. ainda testemunho de Carl Busch citado em Vieira de
Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 89 e, M. Vieira de Carvalho, “Imagens da alteridade na recepção de Il Guarany de Carlos Gomes por ocasião da sua estreia em Lisboa em 1880”, in Portugal e o Brasil no advento do Mundo Moderno – Sextas Jornadas de História Ibero-Americana (ed. Maria do Rosário Pimentel), Lisboa, Edições
Colibri, 2001, p. 315-346 (republicado in M. Vieira de Carvalho, ‘Por lo impossible andamos’ - A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto, Âmbar, 2005, p. 109-139).
12
Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 111.
11
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
170
Assim continuava a ser à data em que Eça de Queirós escrevia as suas crónicas
para a Gazeta de Portugal e o Distrito de Évora ou, mais tarde, As Farpas. Tanto mais contrastante é, pois, no contexto português, a sua posição. E tanto mais flagrante o divórcio
entre a concepção iluminista da ópera, desenvolvida desde meados do século XVIII em
vários países europeus, e a tradição que se mantinha em Portugal em pleno século XIX –
a ideologia da redução da ópera a “música de ópera”, sem considerar o teatro, o drama.
Ideologia no sentido próprio do termo: aceitar como evidência do senso comum algo que
já fora problematizado havia um século em França, na Inglaterra ou nos países germânicos,
em resultado da emergência da esfera pública burguesa. Em Portugal, mesmo um membro
da elite mais cosmopolita e informada, como aquele que redigiu o artigo laudatório do
Don Giovanni e do seu autor, Mozart, escrevia como se desconhecesse a teoria e a praxis
operísticas desses países, ou considerasse uma fatalidade ser o “Teatro Italiano” a negação
do teatro.
Em Portugal, as estratégias de comunicação na ópera continuavam a ser dominadas pela estrutura coloquial herdada do antigo regime, a qual não dava tréguas, nem a
Mozart, nem à concepção da ópera como drama.
O modelo de comunicação coloquial
Um debate em torno da ópera ou do teatro lírico como o que foi iniciado em
França em 1752 e deu origem à chamada querelle des bouffons nunca podia ter ocorrido
em Portugal. Centenas de artigos em periódicos, opúsculos e panfletos publicados sobre
o assunto no espaço de três ou quatro anos pressupunham condições estruturais que não
existiam em Portugal. Aqui dominava a esfera pública representativa, marcada por um
estreito controlo das publicações – a necessidade de um imprimatur régio –, e os periódicos
existentes limitavam-se a breves notícias sobre eventos do quotidiano nacional e internacional, mormente de carácter político, comercial ou militar. A esfera pública burguesa
encontrava-se, entre nós, num estádio ainda demasiado incipiente, que decorria da própria
debilidade do desenvolvimento do capitalismo, da falta de uma burguesia autoconsciente
do seu papel social e bem implantada no terreno.13
Enquanto a imprensa florescera desde a viragem para o século XVIII em França,
na Alemanha ou em Inglaterra (país em que a censura à imprensa foi abolida em 1695) e
se transformara num espaço de debate das mais variadas temáticas – também as artísticas
– em Portugal persistia a inexistência de uma verdadeira opinião pública. Nem mesmo os
temas considerados próprios de uma conversation amusante, tais como música ou ópera,
ganhavam espaço na esfera pública como alternativa tolerada às questões políticas ou de
Estado.14
Economia de mercado e esfera pública burguesa eram pressupostos do próprio
processo de autonomia do sistema artístico, da sua diferenciação funcional relativamente
ao cerimonial representativo da corte e ao culto religioso. Momentos como o da querelle
des bouffons marcam um estádio decisivo nesse processo que já vinha tendo expressão
no volume e na intensidade do debate sobre música e ópera, inclusive em publicações especializadas, que se multiplicam desde o início do século XVIII e onde não raro abundam
as recensões críticas de publicações de música impressa.
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13
Um indicador relevante é, por exemplo, o facto de o número de negociantes nacionais só em 1792 ter ultrapassado o dos negociantes estrangeiros fixados em Portugal. Cf. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p.
50, 52.
14
Sobre a “semântica da interacção” na sociedade da corte e os temas próprios de uma conversation amusante,
excluindo questões políticas ou de Estado, cf. Niklas Luhmann, “Interaktion in Oberschichten: Zur Transformation
ihrer Semantik im 17. und 18. Jahrhundert”, in Gesellschaftstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie
der modernen Gesellschaft (do mesmo), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1993, vol. I, p. 72-161.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
171
As histórias da música tendem a dar uma visão redutora da querelle, circunscrevendo-a ainda e sempre a uma questão de “gosto”, a uma espécie de birra entre os
partidários da música francesa e os da música italiana. Mas o que está em causa é de
muito maior alcance. Trata-se, na verdade, de um debate em torno de dois modelos de
comunicação da ópera: uns defendem o modelo da “sociedade da corte”, outros o modelo
emergente da esfera pública burguesa. De cada um dos lados, posicionam-se partidários
tanto da música italiana como da música francesa.
No modelo da sociedade da corte, o espectáculo de ópera existia em função do
próprio cerimonial representativo, palco e sala interpenetravam-se, não havia separação
entre “teatro” e “quotidiano”. Todos desempenhavam um papel activo no espectáculo:
não só os artistas, que jamais podiam descurar a exibição das destrezas (os seus títulos de
prestígio e ascensão sociais); mas também os espectadores, por sua vez vinculados à etiqueta e à hierarquia, que exigiam deles contenance, isto é, que dessem mais atenção à representação do respectivo cargo ou condição do que à acção ficcional representada no
palco. A verdadeira representação era o próprio cerimonial da corte, a festividade solene
de celebração do poder, do qual a ópera fazia parte como elemento subordinado, essencialmente decorativo.
Os méritos ou destrezas dos artistas (compositor, libretista, maquinista ou pintor
das cenas, músicos e sobretudo cantores), cada qual expondo o mais possível os artifícios
da oficina músico-teatral, alimentavam, por sua vez, a semântica da interacção entre os
cortesãos – eles próprios, afinal, músicos-amadores ou conhecedores. Ser conhecedor
era um atributo inerente às maneiras, entre as quais se contava precisamente a capacidade
de manter conversations amusantes: por exemplo, sobre música e ópera, um dos temas
de eleição (como decorre das fontes da época).
O criticismo burguês dirigia-se tanto contra esta estrutura de comunicação, onde
o balanço entre o feedback para o representado e o feedback para as destrezas (a oficina)
na arte de representar podia configurar uma estrutura épica, como contra a sua tendencial
degradação numa estrutura coloquial, a variante mais corrente ou generalizada em teatros
públicos na ausência de cerimonial da corte (rei ausente ou oficialmente “incógnito”,
quando presente). Neste caso, as retroacções (feebacks) cumulativos entre as destrezas
ou sedução pessoal dos virtuosi e os espectadores bem como aquilo a que poderíamos
chamar a hiperactividade destes durante o espectáculo – retroagindo uns para os outros
– expulsava do campo da recepção a ópera em si, a acção representada, as personagens,
o drama. Prevalecia uma recepção fragmentária, onde o espectáculo se deslocava para a
sala, já não no contexto do cerimonial representativo da corte, mas sim no contexto de
formas de sociabilidade informais, como aquelas que o Abade António da Costa descreve
por volta de 1753, referindo-se a uma opera seria representada em Roma:
Já não falo no grande rumor que se faz dentro [do palco], porque o de fora é tal
que quase o encobre de todo. […] Ora que ouvi eu aqui? Conheço que não foi
coisa que me desse gosto, antes trago na cabeça um zum zum, de quatro para
cinco horas de rumor de rabecas, rabecões, trompas, etc., gritaria de gente, conversação contínua, risadas, palmadas, uns a gritar: bravo, bravone! Ah, caro Cafarello! os que vendem sempre a apregoar ao redor dos camarotes, gritando
desesperados: quem quer vinho, frutas, doces, etc. 15
...........................................................................
15
Cit. in M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical – Estudos sobre a Dialéctica do
Iluminismo, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 41.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
172
O modelo de comunicação alternativo, incidindo sobre a produção, mediação,
recepção e função da ópera, parte integrante de uma revolução burguesa que se começa
a manifestar nas artes, na cultura, na ideologia, antes de ter expressão política na reforma
e na revolução das instituições políticas, já se encontra delineado nos artigos e opúsculos
da querelle, contemporâneos a esta carta do Abade António da Costa, e pode ser sintetizado
nos seguintes princípios:
- Separação radical entre palco e sala bem como entre teatro e quotidiano (quarta
parede);
- Art caché (arte oculta ou dissimulada): as destrezas visam a ilusão perfeita; a
maior destreza consiste em jouer au naturel, isto é, em dissimular as destrezas
ou o artifício, conferindo ao representado o efeito de realidade ou tranche de
vie;
- A acção representada como aparência do natural anula a “distância” do espectador, suscita empatia ou identificação emocional;
- A compreensão decorre, não da razão, mas sim do sentimento, a melhor forma
de ensinar a virtude (do coração para o coração);
- Art caché (arte como tranche de vie) não carece de espectadores conhecedores,
está ao alcance de todos (à la portée de tout le monde);
- O rapport d’égalité entre os espectadores, igualizando-os como humanos, obnubila a hierarquia de cargo ou condição na sala, num efeito paralelo ao do desaparecimento da hierarquia de faculdades e destrezas no palco (pois que o virtuosismo do intérprete é também, a bem dizer, “esquecido” na retroacção ou
feedback exclusivos para a personagem e a acção representadas);
- A ópera autonomiza-se da festividade da corte e da sua função cerimonial ou
de divertimento faustoso, e, enquanto arte autónoma, passa a assumir uma
função educativa, instrumento de cidadania e esclarecimento;
- Consequência da autonomia da arte – neste caso, da ópera – é a inversão da
hierarquia entre palco e sala: enquanto no modelo da sociedade da corte dominava a relação autoritária da sala para com o palco, no modelo burguês pressupõe-se a autoridade do palco sobre a sala;
- Em vez de mero pretexto para a conversation amusante, que desviava das
questões políticas ou de Estado, a ópera torna-se indestrinçável das grandes
causas ou grande questões, também políticas, que mobilizam a esfera pública.
Essa estrutura de comunicação apresentacional,16 emergente em meados do
século XVIII da esfera pública burguesa, começa a consolidar-se nos teatros europeus por
...........................................................................
16
Os conceitos de estrutura coloquial e estrutura apresentacional são desenvolvidos a partir de Heinrich Besseler
(“Umgangsmusik und Darbietungsmusik im 16. Jahrhundert” [1959] in Aufsätze zur Musikästhetik und Musikgeschichte, Leipzig, Reclam, 1978, p. 301-331), que os aplicou a diferentes formas de fazer música: Umgangsmusik
(música coloquial) designa uma participação musical colectiva em que não há uma distinção clara entre competências musicais activas e passivas, entre artistas e público; Darbietungsmusik (música de apresentação ou apresentacional) designa formas de fazer música baseadas na distinção entre o desempenho dos músicos e uma audiência passiva que assiste à realização musical. Nos meus primeiros trabalhos comecei a aplicar esses conceitos à
própria noção de estrutura de comunicação: distinguindo entre Umgangsstruktur (estrutura coloquial: aquela
em que todos os participantes têm um papel activo, independentemente de este se traduzir num comportamento propriamente musical) e Darbietungsstruktur (estrutura apresentacional: aquela em que há uma divisão radical de competências entre artistas que actuam e um público imóvel e silencioso que assiste à performance).
Na transposição para a língua portuguesa, usei inicialmente as designações, respectivamente, de estrutura de participação e estrutura de separação de competências. Em língua inglesa, as categorias de Besseler têm sido, porém,
traduzidas pelos adjectivos colloquial e presentational. No sentido de estabilizar os conceitos, proponho agora
que passem a ser usadas em língua portuguesa as palavras coloquial e apresentacional (este último, decerto, um
neologismo, mas sem a ambiguidade da palavra representação, ou derivados, e mesmo dos neologismos performance ou performativo, entretanto já inscritos no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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volta de 1770, cerca de cem anos antes da publicação das crónicas de Eça de Queirós na
Gazeta de Portugal e no Distrito de Évora. O princípio do desaparecimento do cantor na
personagem é formulado por Rousseau (1767), o da subordinação das partes ao todo no
palco de ópera por Gluck (1769), e a concretização prática do modelo apresentacional
testemunhada por Burney nos seus Diários (referindo-se a um espectáculo da Alceste de
Gluck, em Viena, em 1771):
Não basta ao Actor de Ópera ser um excelente Cantor, se ele não for também
excelente na Pantomima; pois que não deve fazer sentir somente o que ele próprio diz, mas também o que faz dizer à Sinfonia… mesmo guardando silêncio; e,
ocupando-se embora de um papel difícil, se se esquecer por um instante da Personagem para se ocupar do Cantor, não será senão um Músico em Cena; já não
será Actor. (Rousseau, Dictionnaire de Musique, 1767).
[…] Uma ópera feita como defendo pode ter êxito mesmo quando interpretada
por um cantor mediano. […] um cantor célebre torna-se destruidor do interêt
général, sobretudo quando rodeado de gente mediana, que é por ele aniquilada
[…] todos os cantores, por mais excelentes que sejam, destroem o efeito de conjunto quando o compositor serve cada um à sua maneira [em vez de fazer a música] à la manière du poëme […] (Gluck, prefácio a Alceste, 1769).
[…] os que a viram representada […] não podiam tirar os olhos um só momento
do palco, durante todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua
consternação tão aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade,
entre a esperança e o medo dos eventos, até à última cena do drama […] (Burney,
1773, sobre a Alceste, de Gluck, em Vi)17
Esta mudança de paradigma na estrutura de comunicação – do modelo coloquial
para o modelo apresentacional –, descrita por Hans Robert Jauss como transferência para a arte do modelo de identificação da religião, estava ainda longe de ter aplicação em
Portugal e nem sequer fora ainda objecto de debate na esfera pública. Um dos precursores
do debate é precisamente Eça de Queirós que, nas suas primeiras crónicas, diagnostica a
persistência do modelo coloquial da sociedade da corte do antigo regime:
Vai-se ao S. Carlos […] porque é obrigação de cada um mostrar-se nas cadeiras,
olhar, aborrecer-se. mover-se compassadamente e sair. […] As famílias que em
S. Carlos têm assinatura, essas, vão conversar, fazer ondear os estofos, mostrar
os falsos penteados, paradear pomposamente. […] Nada do que é humano entra
nesta sociedade frívola. Só sentimentos convencionais e ridículos […]18
Na sua ficção, um verdadeiro olhar antropológico avant la lettre sobre a sociedade portuguesa, Eça de Queirós multiplicará os testemunhos quanto a esta maneira de
frequentar ou de estar no teatro. Pedro da Maia divertia-se com “distúrbios no Marrare”,
“façanhas nas esperas de toiros”, “cavalos esfalfados” e “pateadas em S. Carlos”. Alencar
ia observar “do camarote dos Gamas” o curso do idílio entre Pedro e Maria, instalados
numa frisa, e corria ao Café Marrare, a meio do espectáculo, “a berrar a novidade”. Para o
conselheiro Acácio, “Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando
estavam abertas as Câmaras e S. Carlos”. E assim por diante.
...........................................................................
17
18
Cf. M. Vieira de Carvalho, Razão e sentimento na comunicação musical…, especialmente p. 35-139.
Cf. Eça de Queirós, Da colaboração para o Distrito de Évora…, v. I, p. 263.
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174
Este modelo comunicação generalizava-o Eça de Queirós a todo o teatro: “Vaise [ao teatro], como ao Passeio, em noites de calor, para estar”.19 “Passeio” incluía, pois,
a ópera, o teatro em geral, o café, o circo, a praça de touros e também o Parlamento, além
do Passeio Público propriamente dito.20 Enquanto decorria o espectáculo conversava-se,
entrava-se e saía-se, visitavam-se amigos nos camarotes. Quando a família real chegava,
o espectáculo era interrompido, toda a companhia vinha à boca de cena e cantava o Hino
da Carta. Nas Galas, a Tribuna Real fazia concorrência ao palco propriamente dito, ao
mesmo tempo que era vedado ao público patear ou aplaudir, para se marcar bem o carácter
solene de cerimonial da corte ao qual a performance músico-teatral se subordinava… –
resquício de uma prática da sociedade da corte do antigo regime que Eça de Queirós não
deixa de ridicularizar em As Farpas (outubro de 1871).21
A ausência da quarta parede e da separação entre teatro e quotidiano bem como a relação autoritária da sala para com o palco eram evidentes. A estrutura de comunicação herdada do antigo regime mantinha-se no essencial. Nesta matéria – Eça de Queirós tinha razão! – em Portugal “nada se adiantara desde o século XVIII”.
O falhanço do programa iluminista em Portugal
Ao contrário de outros países europeus, a hostilidade da Igreja ao teatro (referimo-nos às formas de teatro profano em vernáculo, excluindo as tragicomédias dos jesuítas declamadas em latim) marcou persistentemente a própria esfera pública representativa até meados do século XVIII. O privilégio de 1588 de Filipe II, segundo o qual
todas as representações de comédias em Lisboa só podiam ser autorizadas desde que pagassem tributo ao Hospital de Todos-os-Santos, é sintomático dessa hostilidade ao teatro,
assim caracterizado como um divertimento suspeito, apenas “tolerado” ou “desculpado”
se parte das suas receitas revertesse para obras de caridade. Não admira, por isso, que a
corte portuguesa se tenha mantido afastada do teatro: com Gil Vicente, nasceu e desapareceu (para sempre!) o teatro de corte em língua portuguesa. Daí também que a voga
dos espectáculos músico-teatrais e a expansão europeia da ópera italiana desde meados
do século XVII não tenham penetrado na corte portuguesa, que nunca a usou para a
função representativa até ao termo do reinado de João V. Todas as fontes parecem confirmá-lo: o esplendor da música italiana fazia falta ao monarca para replicar o esplendor
do poder real, mas era exclusivamente na Igreja que exercia essa função. A autocelebração
joanina do poder real confundia-se com o cerimonial religioso – altamente teatralizado, é
certo (em Mafra ou na Patriarcal), mas religioso.
Só com José I, ainda antes da edificação da Ópera do Tejo, é que a música teatral,
a ópera italiana, rompe essa barreira político-ideológica secular. Só então o teatro e o investimento no teatro (enquanto espaço faustoso adequado à função) se tornam atributos
da representação oficial do poder real. Mas é também na época de José I, após o abalo
social, político e ideológico causado pelo terramoto, que surge o primeiro esboço de um
discurso iluminista sobre teatro, rompendo com a subordinação também secular do sistema artístico à autoridade teológica:
Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa Me representaram […] o grande esplendor e utilidade, que resulta a todas as Nações do Estabelecimento dos Teatros
públicos, por serem estes […] Escola, onde os Povos aprendem […] civilizando...........................................................................
19
Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 23.
Cf. J.-A. França, O Romantismo em Portugal - Estudo de factos socioculturais , 6 vols., Lisboa, Livros Horizonte,
1974, cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 71-84.
21
Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 190-191.
20
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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se e desterrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que neles deixaram os séculos infelizes da ignorância.22
Homologado pelo rei em 1771, este alvará resulta de uma representação de 40
grandes negociantes, oriundos de uma burguesia comercial cosmopolita, que pretendia
constituir uma Sociedade para a Sustentação dos Theatros Públicos, mantendo um teatro
de ópera italiana e outro de drama português. Marca a diferença entre a condenação
teológica do teatro como vício e a sua avaliação positiva como escola, como fonte de
saber e “esclarecimento”. Reflecte e assume o discurso iluminista europeu sobre o papel
das artes.
Num sentido semelhante se pronuncia, por exemplo, nos Estados germânicos,
Christoph Martin Wieland (1775):
Na concepção até agora dominante, a ópera é um prazer demasiado caro para a
maioria dos príncipes da Alemanha e até mesmo para as nossas cidades mais
populosas e ricas. Em contrapartida, um Singspiel […] exigiria tão parco investimento que até uma cidade mediana da Alemanha […] teria meios […] para
oferecer aos seus cidadãos um prazer público da mais elevada natureza e que
decerto não deixaria de ter uma influência muito útil no gosto e nos costumes.
[…] a maioria daqueles que governam contemplam a música, a poesia, o teatro
e as belas-artes apenas como artes de passatempo, cujo fim exclusivo seria fazer
cócegas à vista e ao ouvido […], não veem as forças inexauríveis, inesgotáveis
para o aperfeiçoamento da humanidade que nestas artes se contêm[…] O Singspiel através da mera reunião da poesia, da música e da acção [actuaria] no sentido
da promoção da humanidade.23
As diferenças na formulação do programa iluminista para a ópera que estes textos revelam correspondem, porém, a estádios bem diferentes, quer de desenvolvimento
da esfera pública, quer de desenvolvimento do capitalismo e duma consciência de classe
burguesa.
Em Portugal, fala-se em teatro como escola, mas pretende-se continuar a manter
a ópera italiana enquanto forma de sociabilidade de prestígio. Em parte alguma se
menciona ópera em língua portuguesa. Não se desenvolve uma alternativa ao modelo de
comunicação da sociedade da corte. Pelo contrário, cerca de 20 anos mais tarde, quando
a mesma burguesia cosmopolita, já em época de “viradeira”, é obrigada a justificar o
Teatro de São Carlos (1793) como fonte de receita para a Casa Pia (regresso à condenação
teológica do teatro), o modelo de comunicação que este incorpora, em todo o seu
esplendor, é aquele que a corte já tinha: ópera italiana na presença do rei. A burguesia
portuguesa quer, para ela, um teatro de corte, com todos os respectivos ingredientes,
incluindo – além do espaço faustoso, do rei e da família real – o mais “nobre” e mais caro
de todos: ópera italiana.24
O contraste com o discurso iluminista que prevalece nos Estados germânicos e a
que Wieland dá voz não podia ser mais flagrante. Na tomada de posição deste, o primeiro
ponto é logo a recusa do modelo da sociedade da corte: por se basear na ópera italiana,
...........................................................................
22
Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 45.
Christoph Martin Wieland, Versuch über da deutsche Singspiel und einige dahin einschlagenden Gegenstände
(1775), cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 35.
24
Para uma discussão mais alargada, cf. M. Vieira de Carvalho, “Trevas e Luzes na Ópera do Portugal Setecentista”,
in Razão e sentimento…, p. 141-157. Neste estudo procede-se a uma revisão crítica, à luz da descoberta de
novas fontes primárias, das questões já abordadas, quanto ao século XVIII, in O Teatro de São Carlos…
23
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
176
um luxo demasiado caro, tanto mais que se esgotava na função de mero passatempo. Em
vez disso, Wieland defende um novo modelo: o do Singspiel, uma alternativa músicoteatral em língua alemã, que estaria ao alcance dos recursos financeiros mesmo das cidades
medianas e desempenharia um importante papel na formação dos cidadãos em geral, no
aperfeiçoamento ou “promoção da humanidade”, enfim, teria uma função educativa.
Destas duas opostas concepções de ópera e da sua função social bem como dos
sistemas sociais e de poder que com aquelas respectivamente se correlacionam decorrem,
ao longo do século XIX – e Eça de Queirós e a geração de 70 bem podiam verificá-lo –
percursos completamente distintos.
Na Alemanha, em finais do século XVIII, a praxis da ópera italiana já só restava
na corte prussiana. Em 1801 também esta é obrigada a abandonar o antigo conceito de
teatro de corte e a usar somente a ópera alemã para a função de prestígio e representação
do poder real. O modelo de comunicação contra-hegemónico desenvolvido pela burguesia
impõe-se em toda a linha. Entretanto, a expansão da ópera alemã e dos seus centros de
produção é tal que os Estados germânicos, outrora importadores de ópera italiana, se
transformam em exportadores de ópera alemã logo nas primeiras décadas do século XIX.
Algo de semelhante ocorre noutros países, designadamente, centro-europeus e eslavos,
que desenvolvem desde então as suas respectivas tradições de ópera nacional.
Que acontece em Portugal? No Portugal “em que nada se adiantara desde o século XVIII” persiste o modelo de país “importador” e “colonizado”. Embora primeiro Teatro
do Estado, o Teatro de São Carlos mantém-se no século XIX como “Teatro Italiano”, onde
só actuam companhias italianas e se canta exclusivamente em italiano. Tal como no século
XVIII, para os teatros da corte de João V, José I ou Maria I, os compositores portugueses
têm de continuar a escrever, para o São Carlos, até ao fim da monarquia, sobre libretos
italianos. O próprio programa nacionalista de Alfredo Keil, da Irene à Serrana (1899), passando por Dona Branca tem de ser concretizado sobre libretos italianos ou traduzidos
para italiano.
Simultaneamente, prevalece o preconceito contra cantores portugueses profissionais formados no Conservatório: Clementina Cordeiro, a primeira a tentar em meados
do século XIX, é obrigada a abandonar a carreira, dada a manifesta hostilidade do público.
Só os cantores estrangeiros, já “enobrecidos” pelo êxito acumulado obtido nos palcos italianos, eram respeitados pelo público português. A discriminação social no acesso às
profissões musicais está bem patente no relatório do Director do Conservatório de 1878:
só “filhos de artistas, operários e funcionários subalternos” é que ali procuravam formação
profissional. Os amadores, esses – como Bazilio, Genoveva, Maria Eduarda e outras personagens de Eça de Queirós – recebiam formação musical em casa, mas não para o exercício
profissional. Viver da música não era próprio das classes elevadas. Viver de uma profissão
ou do seu trabalho não era, aliás, algo que honrasse especialmente os pergaminhos duma
grande família burguesa, como decorre do célebre comentário de Carlos da Maia, ao receber a sua primeira libra de honorários pelo exercício da medicina…
Extraindo todas as consequências da sua observação crítica da sociedade portuguesa e do papel que nela desempenhava o São Carlos, Eça de Queirós acaba por concluir
como os iluministas alemães, havia cem anos:
O teatro de São Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música
sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as
donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que
educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvála? […] O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário!
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
177
É uma fábrica de reputação para os artistas estrangeiros. […] Enfim, nem criação
de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem
interesse geral do País.25
A convergência com o criticismo, entre outros, de Christoph Martin Wieland,
torna-se, porém, ainda mais flagrante quando se trata de definir a função última do Teatro
de São Carlos:
[…] A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente!
Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que
dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o
frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não,
corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário
dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas,
como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossa placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco
contos anuais é prodigioso – para que a corte tenha onde passar a noite! 26
Em síntese: tal como outrora Wieland, referindo-se à opera italiana dos teatros
de corte alemães, Eça de Queirós denuncia o São Carlos como um luxo caro e um passatempo frívolo, não lhe reconhece uma função educativa ou civilizadora nem um papel
como “centro de arte nacional” e “escola de artistas”:
[…] o Governo […] não reúne uma única razão para subsidiar o S. Carlos. Nem há
ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola
de artistas, nem um aproveitamento geral do País! 27
Deste modo, Eça de Queirós caracteriza lapidarmente o falhanço da reforma
teatral de Garrett (1836) em matéria de ópera ou de cultura músico-teatral. Corrigindo o
retorno ao padrão obscurantista que ainda se manifestara na sequência da Revolução de
1820,28 essa reforma, de inspiração iluminista, tinha colocado decididamente o teatro na
esfera educativa, definido o Teatro Nacional como Teatro Normal e consagrado o princípio da responsabilidade do Estado na sua sustentação e inspecção. Deixara, de fora,
inexplicavelmente, a ópera. Nenhuma medida fora tomada para promover uma ópera
nacional ou transformar o São Carlos, enquanto teatro do Estado, num Teatro Nacional
de Ópera.
A recepção de Wagner e as mudanças na estrutura de comunicação
Poderá parecer desproporcionado, num trabalho sobre as mudanças na cultura
musical e músico-teatral operadas pela República, dedicar tanto espaço aos antecedentes
históricos, mas isso era absolutamente indispensável para enfatizar a tese que tenho
...........................................................................
25
Cf. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre…, p. 229-230.
Ibidem, p. 231-232.
Ibidem, p. 231.
28
Cf. Parecer da Comissão da Fazenda do Soberano Congresso, de 9 de Janeiro de 1822, que serve de fundamento à recusa de subsídio do Estado para o São Carlos. O parecer retoma, não o discurso iluminista da burguesia
comercial e cosmopolita de 1771 – teatro como “escola”, fonte de “educação” e “esclarecimento” – mas sim a
tradição teológica de condenação do teatro como “vício”. Não admira que esta fosse a ideologia dominante
num Congresso onde a maioria dos eleitos provinha do interior do País… Menos plausível seria ver aqui uma influência directa de algumas ideias de Rousseau, designadamente, na Lettre à M. d’Alembert (1758). Cf. M. Vieira
de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 65.
26
27
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
178
defendido em vários estudos precedentes: a da filiação ideológica iluminista dessas mudanças. Com efeito, na minha perspectiva, a República apresenta-se-nos, nesta área da
cultura, como uma tardia revolução iluminista burguesa, herdeira de um corpo de princípios que já fora levado à prática, em grande parte dos países europeus, em meados do
século XVIII. Embora reflectido ocasionalmente em várias tentativas ou esboços de reforma
(Sociedade para a Sustentação dos Teatros Públicos, em 1771, Setembrismo, em 1836),
esse programa nunca chegara a ter realização consequente em Portugal.29
Uma historiografia da música ou da ópera que deixe de fora a investigação dos
sistemas de comunicação em que elas se manifestam e abdique de modelá-los nas suas
relações ou na sua interacção com outros sistemas sócio-comunicativos correlacionados
(por exemplo, estrutura da esfera pública, sistema político) não está em condições de
captar e diferenciar o que há realmente de específico, único, na experiência portuguesa,
desde meados do século XVIII ao dealbar do século XX. Entretanto, a especificidade
identificada nesta área cultural pode contribuir para lançar nova luz sobre os processos
culturais em sentido mais lato bem como sobre as constelações sócio-económicas,
institucionais, ideológicas e políticas que ocorrem no País durante esse período. O que se
entende por iluminismo, romantismo, liberalismo, nacionalismo, republicanismo, as
próprias estruturas da economia e do poder serão diferentemente compreendidas
consoante consideremos, ou não, as “lições” que nos são fornecidas pela história social
da música e da ópera em Portugal.
Eça de Queirós, que nos tem servido de fio condutor, torna transparente nos
seus escritos, quer de ficção, quer de intervenção ou comentário crítico, o tecido de relações
da vida social, cultural e política. Ninguém, como ele, põe em evidência tão lucidamente
o jogo de remissões entre estrutura social, estilos de vida (habitus), ideias, crenças, valores,
motivações, comportamentos. À sua fina observação não podia escapar uma fonte tão
rica de informação sobre o Portugal do seu tempo e, em especial, sobre as camadas sociais
mais poderosas ou próximas do poder, como era a da actividade musical e músico-teatral
– em Lisboa, centrada no São Carlos. Daí a relevância da sua obra, muito especialmente a
literária, como fonte de conhecimento historiográfico – neste caso, da historiografia
musical. Como já escrevi noutra ocasião, é um exemplo de como a objectividade da ficção
se impõe à ficção da objectividade.
O debate de que Eça de Queirós é precursor, nos textos acima mencionados,
intensifica-se na década de 80, coincidindo também com a acrescida expansão da imprensa
periódica. Embora suscitado a propósito dos mais diversos eventos musicais ou músicoteatrais (por exemplo, a estreia de Il Guarany, de Carlos Gomes, em 1880), esse debate
será sobretudo alimentado pela recepção de Wagner, à qual dediquei boa parte da minha
investigação sobre a história social do São Carlos. O que tentei pôr aí em evidência foi
precisamente a crescente problematização da estrutura de comunicação do São Carlos,
que surge dos mais diversos quadrantes e que incorpora também uma dimensão de oposição política, ainda que não exclusivamente republicana. Reduzir esse debate a uma disputa de “gosto” entre “wagnerianos” e “verdianos”, ou adeptos do drama musical alemão
e adeptos da ópera italiana, seria, mais uma vez, tão redutor e simplista como arrumar
em campos opostos, quanto às posições em presença, respectivamente, os republicanos
e os monárquicos.
O que emerge desde a série de artigos publicados por Batalha Reis, em março
de 1883, subsequentes à morte de Wagner, é o crescente número de vozes na imprensa e
...........................................................................
29
Cf. M. Vieira de Carvalho, “A República como Revolução Iluminista e os Rumos da Cultura Musical”, in Razão e
sentimento…, p. 158-174 (publicado originalmente in Congresso “A Vida da República Portuguesa 1890-1990”,
Lisboa, Cooperativa de Estudos e Documentação Universitária Editora, 1991, p. 281-297).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
179
a consistência dos argumentos que põem em causa cada vez mais radicalmente a instituição
São Carlos e o seu modelo de comunicação. Não admira que a recepção de Wagner sirva
de principal incentivo para o debate, já que todo o projecto wagneriano não era senão a
tentativa de levar às últimas consequências a reforma iluminista da ópera. Bayreuth, com
a sua arquitectura interior em anfiteatro, o fosso da orquestra escondido, o balanço acústico
entre voz e orquestra que permitia captar a palavra cantada, as luzes apagadas durante o
espectáculo, visava estabilizar na praxis da comunicação o efeito que Gluck alcançara na
célebre produção da Alceste, de 1771, em Viena: a recepção da ópera como um todo,
como drama, como teatro. Se Gluck já então se colocara na posição de uma espécie de
Deus ex-macchina que, para além da composição da partitura, também assegurava a
coerência dos elementos cénicos e da performance músico-teatral tendo em vista o aperfeiçoamento da ilusão (o efeito de realidade), Wagner ia ainda mais longe, ao criar um
dispositivo que lhe permitia controlar também a recepção. Numa sala às escuras, perante
um “palco invisível” (ideal da “ilusão perfeita”, prefiguração do écran cinematográfico) e
com uma orquestra também invisível (prefiguração da “banda sonora”), o público não
podia furtar-se à estrutura de comunicação apresentacional. A “quarta parede” e a subordinação da sala ao palco radicalizadas pelo dispositivo de Bayreuth pretendiam ga-rantir
o efeito outrora descrito por Burney e, mais tarde, já no século XX, vulgarizado nas talking
pictures ou cinema sonoro. Importa relembrá-lo neste contexto, embora já antes citado:
[Os espectadores] não podiam tirar os olhos um só momento do palco, durante
todo o espectáculo, tendo a sua atenção tão aguçada e a sua consternação tão
aumentada, que se conservavam em permanente ansiedade, entre a esperança
e o medo dos eventos, até à última cena do drama […]30
Não cabe na economia deste trabalho pormenorizar as diferentes fases do confronto de ideias suscitado pela recepção de Wagner (remeto para estudos anteriores).
Convém, no entanto, salientar um momento fundamental do processo de mudança, que
ocorre em 1909, um ano antes da implantação da República.
O anúncio da companhia alemã de Munique, que apresentou então em Lisboa,
na íntegra, O Anel do Nibelungo (cantado em alemão), vinha acompanhada de um “regulamento” em que se estabeleciam determinadas regras quanto às condições em que
deviam decorrer os espectáculos. A intenção declarada era transpor para o São Carlos o
procedimento habitual em Munique e Bayreuth.
A primeira inovação consistiu numa série de conferências proferidas na sala
principal do São Carlos (segundo a imprensa, perante numeroso público) com o intuito de
preparar os espectadores para a obra, iniciá-los na sua substância dramática e musical. A
empresa encarregou António Arroio dessa tarefa, que se fez acompanhar ao piano, para
os exemplos musicais, por Rui Coelho. As conferências foram depois publicadas em sucessivos números do jornal republicano A Lucta, e o seu conteúdo não deixa dúvidas quanto
à ligação estabelecida por António Arroio entre a substância dramática da obra e a confrontação política que então se vivia em Portugal (recorde-se o regicídio e a eleição da
primeira vereação republicana na capital, no ano anterior).
Os wagnerianos monárquicos, segundo alguma imprensa, ter-se-iam reunido
em casa de Alexandre Rey Colaço, que assistira, ao piano, Batalha Reis, cujas conferências
são igualmente publicadas na imprensa (Diário de Notícias). Mas, assim como Batalha
...........................................................................
30
Sobre a recepção da crítica iluminista, especialmente de Rousseau, em Wagner, cf. M. Vieira de Carvalho, “Auf
der Spur von Rousseau in der Wagnerschen Dramaturgie”, in Opern und Musikdramen Verdis und Wagners in
Dresden, Dresden, Schriftenreihe der Hochschule für Musik “Carl Maria von Weber”, n. 12, 1988, p. 607-624.
Trad, port. “O rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagnerianas”, in Razão e sentimento…, p. 216-228.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
180
Reis não deixara de pôr em evidência, nos seus artigos de 1883, o carácter reformador do
projecto de Wagner e de assumir a crítica das relações de comunicação dominantes (por
maioria de razão aplicável ao São Carlos), assim também na sua explanação do Anel do
Nibelungo, em 1909, ele se detém extensivamente na substância dramática e nos conteúdos simbólicos, inclusivamente, políticos, da obra. Ou seja: um e outro convergiam na
importância atribuída ao drama, às personagens e aos conflitos humanos que nele se desenrolam, o que contribuía para suscitar no público a atitude de atenção ao espectáculo
como um todo, rompendo com a habitual recepção fragmentária, focada nos cantores e
em “números” musicais isolados.
No mesmo sentido apontava, aliás, a exigência de só se venderem bilhetes para
a Tetralogia completa (levada à cena sem cortes) e não em separado para cada uma das
“jornadas”.
A companhia alemã, como era anunciado pela empresa, trazia ao São Carlos a
praxis de representação de Munique e Bayreuth (provavelmente a encenação supervisionada por Cosima Wagner), recebida pela crítica em Lisboa como “a ilusão perfeita”.
Entretanto, invertendo as tradicionais relações de poder no São Carlos, várias
medidas tomadas pela empresa asseguravam a subordinação da sala ao palco:
- Todos os espectáculos começavam pontualmente, sem atender a conveniências
do protocolo oficial;
- Durante a performance era vedada a entrada e a circulação na sala;
- As luzes da sala permaneciam completamente apagadas no decurso do
espectáculo.
Como habitualmente, o rei chegou atrasado à estreia de O Ouro do Reno. Pela
primeira vez, o espectáculo não foi interrompido: a autonomia da performance artística e
a sua coerência interna impuseram-se ao protocolo oficial e ao tradicional cerimonial de
“teatro de corte”. O episódio teve um aproveitamento político na imprensa, considerando
alguns tratar-se de uma vitória da “plateia republicana” sobre os “camarotes monárquicos”.
Assim se consumara a mudança de paradigma no São Carlos: da secular estrutura
de comunicação coloquial, herdada do conceito de “teatro de corte” do Antigo Regime,
para a estrutura de comunicação apresentacional, teorizada havia já cerca de 150 anos
no seio duma esfera pública burguesa cada vez mais poderosa (como aquela que então se
impusera em França, na Alemanha ou em Inglaterra), mas só concretizada em Lisboa –
através da mediação do pensamento e da obra de Wagner – quando também aqui a
opinião pública ganhou em massa crítica e poder contra-hegemónico.
Quando da reabertura do Teatro de São Carlos em 1920, após 8 anos de encerramento, a estrutura de comunicação apresentacional já se consolidara. As óperas levadas
à cena no São Carlos projectam-se nos movimentos culturais, ideológicos, políticos, como
nunca antes. A assimilação de Parsifal (a ópera mais representada nos anos 20 em Lisboa)
pelas correntes que anseiam por uma solução autoritária (um “salvador”, “redentor-rei”,
“ditador”), enquanto os anarcossindicalistas e o movimento operário se revêm em Siegfried,
é um exemplo da mudança de paradigma: passara a prevalecer a atenção ao drama. A
subordinação da sala ao palco manifestava-se ainda no efeito amplificador recíproco de
solicitações culturais, por um lado, e snobismo, por outro. Agora prevalecia um novo tipo
de espectador, que receava manifestar a sua incompreensão ou desagrado. Parecer culto
era tanto ou mais importante do que sê-lo.31
...........................................................................
31
Cf. estudo extensivo da recepção de Wagner e do período compreendido entre cerca de 1880 e cerca de 1930,
in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 131-212.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
181
Os ideais republicanos e as mudanças na cultura da escuta
Falar de opinião pública e poder contra-hegemónico evita que se estabeleça
uma relação linear de causa e efeito entre o republicanismo e as mudanças culturais em
curso. O grande empreendimento do Coliseu dos Recreios em Lisboa, inaugurado em
1890, concebido, financiado e explorado comercialmente por uma sociedade de conhecidos lojistas republicanos surge, por um lado, como uma alternativa democrática ao São
Carlos, “teatro da corte” e “símbolo da ordem monárquica”. Por outro lado, porém, põe
em evidência as contradições ou a ausência de um programa republicano estruturado
para as artes, mormente as músico-teatrais. Replicando, de certo modo, num octógono a
elipse do São Carlos, as suas ordens de camarotes (de cinco passam para duas) e a própria
tribuna real, a sala do Coliseu – em todo o caso, adequada à variedade de divertimentos
ou recreios, incluindo o circo, a que se destinava – deslocava ainda mais para primeiro
plano o “espectáculo da sala”, não favorecia, designadamente em espectáculos músicoteatrais, o aperfeiçoamento do palco ilusionista (quarta parede) nem o modelo de identificação. De qualquer modo, não há que subestimar o Coliseu enquanto poderosa tentativa
de resposta democrática às aspirações culturais e recreativas dos sectores mais desfavorecidos da população de Lisboa, que constituíam uma importante base social de apoio
à alternativa republicana.
O Coliseu não respondia, porém, às aspirações de uma elite cultivada que se
exercitava na escuta da música instrumental da tradição clássica e romântica, considerando-a uma das mais elevadas expressões da arte e da cultura. Ainda hoje, após a
remodelação da sala em 1994 (que lhe retirou em larga medida o carácter popular ou populista, ao dotar as antigas bancadas com cadeiras), se observa, em concertos sinfónicos,
a grande dificuldade em controlar os incidentes perturbadores duma escuta silenciosa e
concentrada. A sala não foi pensada para isso. Assim como o não fora o São Carlos, com a
sua arquitectura típica de teatro italiano e teatro de corte do século XVIII.
Esta dimensão – a da escuta – tem especial relevância, pois está relacionada
com a dificuldade na institucionalização dos concertos públicos, que pressupunham uma
estrutura de comunicação apresentacional. Após uma primeira tentativa falhada de João
Domingos Bomtempo para instituir em Lisboa a modalidade dos concertos públicos, as
várias que se lhe seguiram nunca tiveram a força necessária para se imporem como alternativa estável ao modelo hegemónico: o do teatro de ópera. Não se trata aqui, mais
uma vez – como usa repetir-se no discurso musicológico – da oposição entre ópera italiana,
por um lado, e música instrumental (sobretudo alemã), por outro, mas sim da hegemonia
efectiva e absorvente da estrutura de comunicação coloquial cunhada pelo “Teatro
Italiano”, a qual contagiava as manifestações musicais no seu todo, também as da música
instrumental, fosse onde fosse que estas acontecessem. Eça de Queirós captou o fenómeno
– parte integrante do habitus (como diria Bourdieu) próprio da “alta sociedade” da época
–, numa das suas páginas mais acutilantes de Os Maias (1888). O que sobressai na atitude
do público é – em vez de reverência e devotio – a relação autoritária para com a
performance musical, a clara prevalência da estrutura de comunicação coloquial:
Da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca – o Cruges, com o nariz
bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamente o teclado. […]
– O Cruges […] O nome correu entre as senhoras que o não conheciam. E era
composição dele, aquela coisa triste?
– É de Beethoven, srª D. Maria da Cunha, a “Sonata Patética” […]
Uma das Pedrosas não percebera bem o nome da sonata. E a marquesa de Soutal,
muito séria, muito bela, cheirando um frasquinho de sais, disse que era a Sonata
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
182
Pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. […]
[…] por toda a sala, o sussurro crescia. Os encatarroados tossiam livremente.
Dois cavalheiros tinham aberto “A Tarde”. E caído sobre o teclado, com a gola da
casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquela
desatenção rumorosa, atabalhoava as notas, numa debandada.32
No mesmo sentido convergem os comentários de alguma imprensa, por exemplo,
quanto à tentativa fracassada de Miguel Ângelo Lambertini de fundar e manter uma
Orquestra – a “Orquestra Sinfónica Portuguesa” – em 1906. Um dos comentários que
sobressai é o do jornal republicano O Mundo, de França Borges:
É preciso que o público vá a estes concertos não por vaidosa ostentação, mas
sim por gosto sincero. […] Não é certamente o público do S. Carlos, lendo, falando,
rindo, fazendo amor, fazendo, enfim, tudo; menos ouvir, que realiza o público
ideal da música de arte. (Mundo, 3/12/1906).33
Daí merecerem especial relevo os fortes indícios, sobretudo desde cerca de 1881
(com a fundação do Orpheon Portuense por Bernardo Valentim Moreira de Sá), de um
movimento organizado de defesa e promoção da música instrumental que se fundia com
firmes motivações político-ideológicas de oposição ao status quo. Ao contrário dos grandes
negociantes de Lisboa de finais do século XVIII – os quais, inteiramente subordinados à
esfera pública representativa, não tinham uma alternativa para o modelo do teatro de
corte, antes o haviam feito seu no Teatro de São Carlos – agora, um século mais tarde,
graças à vitalidade duma esfera pública burguesa em acelerada expansão, começava a
gerar-se um verdadeiro movimento contra-hegemónico. A “burguesia esclarecida”, sem
dúvida em larga medida polarizada em torno dos ideais republicanos, já não queria “ópera
italiana na presença do rei”, mas sim música instrumental, a qual, como “experiência
artística suprema”, pressupunha o religioso silêncio da audiência (a rigorosa observância
da estrutura apresentacional).
Não é por acaso que Viana da Mota escolhe o nome simbólico de “Bomtempo”
quando se inicia na maçonaria em 1895, nem é por acaso que apadrinha a iniciação de
Moreira de Sá no ano seguinte (este escolhe o nome simbólico de “Beethoven”). Sinais
importantes a considerar são também a recusa de Moreira de Sá em aceitar a condecoração
que lhe fora concedida pelo rei D. Luís e a omissão de dedicatórias à Família Real em obras
de Viana da Mota desde a Sinfonia À Pátria (1895). Deverá igualmente recordar-se a
participação de José Relvas na fundação da Sociedade de Música de Câmara em 1899
(juntamente com Miguel Ângelo Lambertini, Costa Carneiro, Dom Luís da Cunha e Menezes,
Cecil Mackee) e o pólo de intensa actividade camarística da Casa dos Patudos. De resto,
esse movimento contra-hegemónico acaba por ser justificado retrospectivamente pelo
próprio Viana da Mota num texto escrito em 1917 para a revista A Águia, da Renascença
Portuguesa (nos 69 e 70):
O encerramento dos teatros de São Carlos em Lisboa e do São João no Porto,
longe de ter sido um prejuízo, foi um grande benefício para a música em Portugal,
porque nos livrou dessa perniciosa influência e suscitou os concertos sinfónicos,
que sem a falta da ópera não se teriam provavelmente sustentado.34
...........................................................................
32
33
34
Citado in M. Vieira de Carvalho, Eça de Queirós e Offenbach…, p. 56-57.
Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 172.
Cit. in M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 173.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
183
É nesta identificação do Teatro de São Carlos bem como do Teatro de São João
com o discurso simbólico duma certa e determinada ordem (aquela ordem monárquica
que mantivera congelado, durante mais de um século, o modelo de teatro de corte do Antigo Regime), e no assumido propósito de liquidar essa tradição que vejo um dos momentos
mais consequentes do republicanismo e da sua inspiração iluminista burguesa em matéria
de cultura musical. Com a queda da monarquia também cai o teatro de corte, para dar
lugar à sala de concertos burguesa como “lugar de realização da música autónoma”.
Esta mudança de paradigma terá uma enorme importância no desenvolvimento
da música em Portugal. Através dos concertos públicos gera-se uma dinâmica inteiramente
nova na criação e na interpretação musicais: os compositores portugueses são muito
mais solicitados e as suas obras recebidas com uma atenção que outrora só a ópera mobilizava. Dir-se-ia que a produção e a circulação da música em Portugal ganham densidade
cultural pela sua interacção com outras correntes literárias e artísticas, movimentos
ideológicos e políticos, problemáticas estético-filosóficas. Tudo isso também fazia parte
do ressurgimento com que sonhava Viana da Mota na sua Sinfonia À Pátria (1895) –
ressurgimento onde ecoam premonitoriamente as fanfarras da República…
Finalmente, quanto ao projecto de uma Ópera Nacional, está ainda por encetar
a investigação sistemática das fontes relativas a este período. Deixo aqui registada apenas
uma breve nota para sublinhar que a questão emerge igualmente dos debates na esfera
pública, antes e depois da implantação da República. A pressão da opinião pública leva à
criação em diploma legal (1902) de um Teatro Nacional de Ópera, que se previa vir a ser
instalado no local onde hoje se encontra o edifício do Governo Civil (Convento de São
Francisco), mas cuja construção era deixada à iniciativa privada. Mais uma vez, não se
colocava a hipótese da transformação do próprio Teatro de São Carlos num Teatro Nacional
de Ópera. Também os governos da República nada adiantaram a este respeito: a Comissão
de Reforma do São Carlos (que incluía Viana da Mota e Francisco d’Andrade) não produziu
resultados.
Pouco depois da implantação da República, o projecto é recuperado por Rui
Coelho com a sua ópera O Serão da Infanta (libreto de Teófilo Braga), estreada em 1913,
no São Carlos, com honras oficiais – a primeira de uma série de óperas em língua
portuguesa que comporá ao longo da vida.35 Também a corrente do Renascimento Musical
(Ivo Cruz, entre outros) promove o uso da língua portuguesa nos géneros de ópera e
oratório. Luís de Freitas Branco, primeiro ligado ao monarquismo e ao Integralismo
Lusitano, depois à Oposição ao Estado Novo, assim como Fernando Lopes-Graça, que se
assume desde cedo como activista político das áreas republicana e comunista, são
igualmente defensores da ópera em língua portuguesa (incluindo traduções de originais
estrangeiros). Enfatizam o critério da coerência do espectáculo de ópera como um todo e
concebem o Teatro de São Carlos como um centro de produção músico-teatral própria,
na base de artistas nacionais ou residentes. A formação de várias companhias de ópera
com artistas nacionais nos anos vinte e trinta (envolvendo ocasionalmente o maestro
Pedro de Freitas Branco) pode também ser referida a este propósito. Em suma: logo a
seguir à implantação da República tudo parecia encaminhar-se para a institucionalização
de uma Ópera Nacional. Paradoxalmente, porém, o “nacionalismo” do Estado Novo não
incluía tal desígnio. Apesar de a ópera D. João IV, de Rui Coelho, ter sido escolhida para a
reabertura do São Carlos em 1940, o desenvolvimento nesse sentido foi bloqueado. A
“Acção Nacional de Ópera”, de Rui Coelho, que pretendia constituir-se como uma estrutura
...........................................................................
35
O Teatro de São Carlos estava encerrado para temporadas regulares desde 1912. Quando reabre em 1920,
apresenta regularmente óperas de Rui Coelho em estreia: Crisfal (1920), Auto Berço (1921), Inês de Castro, A
Freira de Beja e O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1927).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
184
de produção permanente – de certo modo, uma tentativa paralela à dos Bailados Verde
Gaio (criados, já nos anos 40, por António Ferro) – é um projecto abortado que nunca
receberá o necessário apoio público. O Estado Novo prefere recuperar, para o São Carlos,
o conceito de teatro representativo – “sala de visitas” – , ao serviço da estetização da política. O modelo inspirador é o do “teatro de corte” do Antigo Regime, do qual não era historicamente possível, nem conveniente, recuperar a estrutura de comunicação coloquial,
mas já era possível conservar a função. Bem o demonstra a obrigatoriedade do traje de
cerimónia: aos olhos de uma esfera pública refeudalizada, servia para distinguir o escol
do Outro inferior… 36
...........................................................................
36
Cf. M. Vieira de Carvalho, O Teatro de São Carlos…, p. 213-254 (cf. também o original alemão desta obra, mas
remodelado, actualizado e largamente documentado com iconografia: ‘Denken ist Sterben’. Sozialgeschichte
des Opernhauses Lissabon, Kassel, Bärenreiter, 1999). Para um panorama mais detalhado dos desenvolvimentos da cultura musical nas primeiras décadas do século XX, cf. igualmente do autor, “Snobismo e confrontação
ideológica na cultura musical”, in Portugal Contemporâneo, ed. António Reis, Lisboa, Alfa, 1989 ss., v. III, p. 297310. Para o período de 1870-1900, cf. Maria José Artiaga, Continuity and Change in Three Decades of Portuguese Musical Life (1870-1900), PhD Diss, Royal Holloway, University of London (policopiado).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
185
A “batalha dos símbolos”: ópera no Brasil,
da Monarquia à República*
Maria Alice Volpe
Universidade Federal do Rio Janeiro
O presente trabalho aborda a ópera no Brasil na trama de discursos que concorreram para os embates identitários no período de transição do regime político, da
Monarquia à República. A legitimação de um novo conjunto de valores sociais, políticos e
culturais foi empreendida em diversas modalidades discursivas, entre as quais a ópera
teria potencialmente uma capacidade comunicativa de difundir as diferentes visões para
além dos setores mobilizados com essas questões. Compreendida como parte integrante
das batalhas ideológica e política, observa-se que a “batalha de símbolos” que se deu no
âmbito da ópera encontrou maior ressonância ao operar sobre os valores identitários já
assimilados ao imaginário nacional durante o período monárquico, do que sobre as tentativas republicanas de definir o panteão cívico do novo regime. Enquanto essa “batalha de
símbolos” era empreendida nos círculos da elite intelectual e política brasileira, também
se colocava em tensão discursiva com os diversos subgêneros do teatro musicado, uma
vez que resistia em reconhecer nessas práticas socioculturais populares um lugar no imaginário nacional – contradizendo, portanto, os postulados republicanos de envolvimento
popular na vida política. O foco de análise desse trabalho reside na crítica musical e literária,
pela qual se buscará identificar as questões mais significativas para um redimensionamento
da ópera na história cultural do Brasil no referido período.
Iniciemos a nossa teia de discursos puxando um fio da crônica musical que retrata
vivamente aquele complexo social:
Ante os gravíssimos acontecimentos em nossa vida social e politica, parece que
assunto não deveria haver para esta crônica. Entretanto, assim não é. Apesar da
orchestra dos canhões, granadas e balas em guerra fratricida, a crônica lírica
tem a registrar os Huguenotes, de Meyerbeer, a Traviata, de Verdi, Bocacio e
outras operetas, no Lírico e no Politeama. Apesar dos perigos da guerra civil, ha
assunto para a semana lírica! Isso demonstra até que ponto é privilegiada a natureza de nossa terra e privilegiada a indole de nosso povo. A anormalidade dos
acontecimentos não influiu na normalidade de nossa vida social e doméstica.
Na política podem as tempestades formar torvelinhos de tufões; na vida social e
na família não há grande mudança de hábitos e costumes. Pelas ruas da cidade
perambulam senhoras e cavalheiros. Vão ás compras e obrigações cotidianas.
Em todos os teatros, em que se faz musica ou representam comédias, mágicas e
operetas, afluem os espectadores com o mesmo entusiasmo do costume. Ha
corridas hípicas, arriscam-se somas loucas, formiga o povo... chega a parecer indiferença pelos destinos da pátria... É positivamente privilegiada a nossa terra e
privilegiada tambem a indole do povo brasileiro. [...] Como outrora [referindose à Abolição da Escravatura e à Proclamação da República], o povo assistia aos
acontecimentos, aplaudindo as vitórias e indiferente ás derrotas, assim tambem
agora: [...] abre-se o primeiro ciclo de uma guerra fraticida, e o povo, acostumado
a músicas e flores, olha quase indiferente para tudo isso, com se tratasse de
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* Agradecimento pelo fomento da CAPES (Bolsa de Doutorado no Exterior, 1995-2000) e da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro (Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, Edital de 2009).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
186
simples espetáculo cômico no Lírico, á cata de diversões! E os teatros continuam
a funcionar todas as noites [...] A Traviata permanece em cena, o Abacaxi e outras peças de diversão, até que uma granada venha dissolver as reuniões de festa a que nos entregamos! Que privilegiada, a nossa terra, e a indole do povo
brasileiro!1
O episódio a que se refere a crônica da coluna “Semana Lírica” da Cidade do Rio
– periódico dirigido pelo abolicionista e republicano José do Patrocínio – é a segunda Revolta da Armada, iniciada a 6 de setembro de 1893, e empreendida por um grupo de altos
oficiais da Marinha que exigiam a convocação de eleição presidencial em cumprimento à
Constituição de 1891.2 Publicada no final de semana seguinte ao início da Revolta da Armada, a crônica acima retrata com agudo senso crítico o comportamento político e social
da população do Rio de Janeiro na primeira década da República, trazendo o entorno musico-teatral à análise histórica empreendida por José Murilho de Carvalho, em Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987). O relato da reação da população,
indiferente à aguda crise política e iminente guerra civil, enquanto “inveteradamente”
absorvida pelas diversas modalidades de entretenimento oferecidas pela Capital Federal
– na qual o teatro de música ou de representação estava entre os hábitos sociais assíduos,
ao lado das corridas de cavalo, compras, passeios e diz-que-diz-que nos espaços públicos
– desafia as nossas pretensões, no campo da teoria histórica, de compreender a música
numa teia de discursos dos embates identitários do período em questão.
Entretanto, foi justamente esse alheiamento das questões políticas imediatas,
expresso no comportamento social desse segmento da população que afluía aos teatros
fluminenses, que possibilitou a recorrência, no âmbito musical, de símbolos identitários
forjados em momentos políticos anteriores – o Indianismo e a Paisagem, conforme propusemos no nosso trabalho de 2001 – e, ao mesmo tempo, a não consagração de símbolos
identitários propostos pela elite intelectual e artística dos círculos republicanos – que
trataremos nesta comunicação. Buscaremos mostrar, neste breve estudo, que a rede de
discursos identitários vinculados à música teatral teve lugar justamente nesse espaço
sociocultural aparentemente “apático”, onde se confluem as análises históricas propostas
por José Murilo de Carvalho, no já referido livro de 1987 e no estudo posterior, que deu
consecução à análise da dimensão simbólica da legitimação do novo regime político, A
formação das almas: o imaginário da República do Brasil (1990). A falta de ressonância
popular nos símbolos escolhidos pela “república musical”, como a denominou Avelino
Pereira em suas propostas músico-teatrais, levou o projeto de restauração do teatro nacional – refiro-me aqui ao Centro Artístico (1893-1901) – a sua suplantação peremptória
pelas práticas culturais vinculadas às sociabilidades e identidades dos diversos segmentos
da população da Capital Federal.
O Indianismo na música brasileira encontrou aderência, perante o público e a
crítica, como símbolo de identidade nacional justamente no seu período de declínio na
literatura. O sucesso retumbante de Il Guanary (1870) – na recepção europeia pelo exotismo e na recepção brasileira – plasmado no mito de fundação nacional – motivou uma
série de obras sobre o tema indianista nas décadas subsequentes: a ópera Moema (1895)
de Delgado de Carvalho, o poema sinfônico Marabá (1894) e a ópera Jupyra (1900) de
Francisco Braga. O mito de fundação nacional, embutido no discurso literário e nas belas
artes, teve o seu sistema de submitos gradualmente dissolvido nas referidas obras musicais
ao perpassar a primeira década da República. O Indianismo continuou a reverberar nesse
...........................................................................
1
Charnacé. Cidade do Rio, 10 de setembro de 1893, p. 1, coluna “Semana Lyrica”, grifo nosso.
2
Após a renúncia do primeiro presidente Deodoro da Fonseca, acusava-se Floriano Peixoto (o vice) de permanecer ilegalmente no cargo.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
187
imaginário músico-teatral, deseroicizando a figura do português colonizador, suprimindo
o tema da conversão ao catolicismo e constatando o fracasso da união entre o português
e o índio, tanto pela corrupção dos costumes nativos (em Moema), como pela visão pessimista da miscigenação, simbolizada pela mestiça enjeitada, deslocada socialmente, pois
que não se encaixa nem no mundo dos brancos, nem no mundo dos índios (em Jupyra e
Marabá), terminando simbolicamente por uma morte social (Volpe, 2001).
Ainda que calcado num sistema simbólico do período monárquico, o Indianismo
conseguia catalizar algumas questões sociais importantes debatidas nos anos iniciais do
novo regime. Por outro lado, o Indianismo não enfrentou, no plano das simbologias republicanas, concorrente que tivesse a legitimidade necessária para o esvaziar em favor de
um sistema simbólico mais oportuno social e politicamente.
As primeiras décadas da República do Brasil (1889-1909) têm sido caracterizadas
pelo ideal cosmopolita de “civilização” e “progresso”, que visava integrar o Brasil no “concerto das nações”, vale dizer, na economia mundial, o que implicava emulação do estilo
de vida europeu, mais precisamente, parisiense.3 Entre as vogas culturais importadas da
França, estava o wagnerismo, que conquistava o público e a crítica parisiense e, imediatamente, fluminense. Defensores dessa corrente estavam entre o grupo de artistas e
intelectuais que intentaram uma proposta simbólica para a República brasileira. Fundaram
o Centro Artístico (1893),4 cuja proposta tinha como cerne “elevar e dignificar a arte brasileira” e “ressuscitar o teatro lírico nacional”. Os membros dessa associação estavam engajados na ideologia de “progresso” artístico e tomaram o wagnerismo e “música do
futuro” no Brasil como a sua panaceia. Trata-se aqui sobretudo de Leopoldo Miguez, Coelho
Neto, Luís de Castro e Rodrigues Barbosa. Outros aderiram topicamente, como Alberto
Nepomuceno e Delgado de Carvalho.
A preocupação central da “inteligência musical” brasileira durante a década de
1890 estava claramente voltada para a atualização da música brasileira com as correntes
europeias, muito mais do que propriamente com a reavaliação dos símbolos de identidade
nacional. Isso se torna muito claro na única associação musical que promoveu alguma
reflexão sobre a música no Brasil, o Centro Artístico. A produção musical promovida pelo
Centro Artístico torna evidente que assuntos e símbolos nacionais não faziam parte da
questão da “ressurreição do teatro nacional” e “dignificar a arte brasileira” significava
emular modelos europeus de “civilização” e “progresso”.
No Prefácio intitulado “Escudo”, ao libreto do Os Saldunes (1900), Coelho Neto
justifica a sua empreitada, invocando a modéstia de um prosador pela ousadia de escrever
poesia, em prol da campanha pela criação do drama lírico no Brasil:
Eu costumo subir ao Parnaso, quando o Ideal me reclama, vestindo a penula
modesta, como simples prosador que sou; quis, porém, não por vaidade, senão
por amor da Arte excelsa, traçar o pallium magnifico dos rimadores e, mal ajustado, accusando o meu desageitamento em traze-lo, elle reveste-me o corpo,
não encobrindo de todo o grosseiro trajo de prosador, que é o meu. Penetro o
templo de Musagete como supplicante, não como sacerdote; pedindo-lhe que
me auxilie na campanha em que ando tambem empenhado, da creação do
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3
Ver, entre outros, Martins (1978); Sevcenko (1999 [1983]); Needell (1987); e Volpe (2001), especialmente capítulo 2 “The construction of an image: the ‘Capital Federal’”, p. 55-130.
4
O Centro Artístico foi dirigido pelo compositor e regente Leopoldo Miguez e contou com a contribuição de personalidades como os escritores Coelho Neto e Artur Azevedo, os críticos musicais Luís de Castro e Rodrigues Barbosa, o compositor e regente Alberto Nepomuceno, o compositor, pianista e editor musical Artur Napoleão, o compositor diletante Delgado de Carvalho, renomados artistas plásticos como Bernardelli e Amoedo, além de outros membros da elite brasileira como Antonio Bustamante, o bacharel Silvio Bevilcqua e o dr. Ildefonso Dutra (Azevedo,
1950, p. 51; Azevedo, 1956, p. 97-8, 111-112, 384; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900, p. 3).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
188
“Drama Lyrico” no Brazil. Relevaime, pois, a audacia e não tomeis como
atrevimento insolito o que é simplesmente fervoroso enthusiasmo.5
A publicação d’ Os Saldunes de Coelho Neto em Portugal suscitou inúmeros artigos na crítica de diversos periódicos, portugueses e brasileiros. Uma das questões
principais foi o seu estilo influenciado pelo “decadentismo” francês. O crítico que assinava
por “Bruno”, realça a “furia de improvisação abundante, a opulencia inexhaurivel de um
vocabulario lucilante de côr, a immensa plasticidade do estylo flexuoso” de Coelho Neto,
o qual, “vencido pelo falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir pelos exageros de
expressão e para as originalidades de construcção que contrarião o espirito da lingua e
desarticulão o idioma; enfim, para desorientação verbal que produz páginas esotéricas
voltadas a misterioso enigma de morbida emotividade moderna”.6
Além do estilo eclético de Coelho Neto, influenciado pelo simbolismo e parnasianismo, o gosto decadentista por temas esotéricos e mórbidos (Artemis, musicada
por Alberto Nepomuceno) e a adesão a temáticas mitológicas pelos defendores do “Drama
Lírico no Brasil” recebiam apreciação negativa pela crítica brasileira e portuguesa. Algumas
vezes por suas inconsistências mitológicas – libreto de Hostia, musicado por Delgado de
Carvalho – outras por sua inadequação para expressar o caráter nacional na literatura
brasileira – Os Saldunes, musicado por Leopoldo Miguez.
O crítico Oscar Guanabarino aponta detalhadamente os descabimentos do “enredo archeologico” da balada Hostia, de Coelho Neto, qualificando ironicamente o escritor
como “erudito mythologista” e “erudito orientalista” do “Centro Shakeswagneriano”.7
No caso de Os Saldunes, a coluna “Theatros e Música” do Jornal do Commercio
transcreve trecho inteiro de comentário do romancista português Carlos Malheiro Dias
sobre Coelho Neto, em artigo sobre a “geração nova no Brasil”, publicado no número especial da “revista illustrada Brazil-Portugal, commemorativo do Centenario do Descobrimento (1900), para relembrar o seu retorno à direção acertada da literatura brasileira
no romance Sertão” – e, portanto, o seu desacerto no Saldunes:
Coelho Netto, a meio do perigo de uma desorientação que ameaçava levar o retrocesso á obra eminentemente progressiva da sua geração em plena luta de
escolas decadentes, lança os fundamentos do romance nacional de costumes e
inicia a obra gloriosa do Sertão, colhendo a caracteristica predomente e definitiva
da raça brazileira, creando o preciosissimo manancial dos costumes, da linguagem, das lendas e das tradições; fazendo que uma intuição genial, a obra mater
da nacionalisação litteraria; e documentando para todo o sempre o periodo tumultuario da unificação da raça, erguendo os scenarios magnificentes onde se
derramão os clarões da aurora do povo novo.8
...........................................................................
5
Coelho Neto, “Escudo”, prefácio ao libretto Os Saldunes (1900), grifos nossos.
“Um dos mais insignes prosadores do Brazil contemporaneo, redigindo, em uma furia de improvisação abundante, chronicas diarias para o jornalismo fluminense, em curto lapso Coelho Netto occupava o primeiro lugar,
pela opulencia inexhaurivel de um vocabulario lucilante de côr e pela immensa plasticidade de um estylo flexuoso
e proprio a frisar o mysterioso enigma de morbida emotividade moderna. […] Vencido, como todos os Brazileiros,
do falso prestigio do boulervard, deixou-se descahir para os exageros de expressão e para as originalidades de
construcção que contrarião o espirito da lingua e desarticulão o idioma./ Começou-se a perceber no espirito e
na factura de Coelho Netto o influxo, escusado, das extravagancias do Sr. Peladan; e escandalisou o Rio um
cantico no gosto e quase que nos vocabulos daquella pagina esoterica, que é rythmada pelo ritornello da fanfarra:
Los a toi./ No volume, agora, de Os Saldunes volve a insistir esta desorientação verbal, nas rubricas e nas notulas
preliminares explicativas. Mas o corpo da obra está felizmente indemne dessa macula: é ele um conjunto perfeito”. (Voz Publica, Porto, 18 de maio de 1900, grifos nossos)
7
Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2.
8
Dias, Carlos Malheiro. Trecho citado em coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10
de maio de 1900, p. 3, grifos nossos.
6
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
189
O problema do caráter nacional emergiu com bastante intensidade por ocasião
do IV Centenário do Descobrimento do Brasil (1900), ensejando disputa acirrada entre
Leopoldo Miguez e Francisco Braga, pela encenação de suas óperas, respectivamente
Il Salduni e Jupyra, dentro da programação comemorativa oficial. Tratei detalhadamente
desse problema em trabalho anterior (Volpe, 2004), mas sintetizo aqui o imbroglio que
resultou no cancelamento das duas. A ópera indianista de Braga teria sido “oficialmente
escolhida pela comissão do IV Centenário do Brasil”, conforme carta de F. Braga a F. Buschmann,9 e a produção do drama lírico de Miguez teria sido prometida para o mesmo fim,
de acordo com a afirmação de Coelho Neto na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio.10 Embora um exame das relações interpessoais sugira a tendenciosidade da Associação do IV Centenário ao suspender o suporte financeiro aos dois espetáculos, uma
análise do contexto mais amplo de significação revela que faltava a ambas as óperas
substância ideológica que ressoasse o discurso das instituições guardiãs das celebrações
da história nacional; faltava igualmente o elogio da colonização portuguesa e o mito de
fundação nacional incólume. A ópera sobre a mestiça deslocada socialmente, Jupyra, foi
encenada em 1900 fora do âmbito da programação comemorativa oficial e a ação lendária,
Os Saldunes, apenas no ano seguinte.
A proposta do Centro Artístico de “criação do Drama Lyrico no Brasil” foi atacada
por diversos ângulos, na imprensa diária, algumas vezes até com o sarcasmo típico nas
polêmicas da época. Argumentos de ordem ideológica, estética e estilística se misturavam
com ataques pessoais.
Lobo Cordeiro aponta o problema identitário fundamental do projeto de criação
do “Drama Lírico no Brasil” nos moldes defendidos pelo círculo wagneriano:
Esta pouca affeição pelo drama lyrico […] aggrava-se quando vemos o poema
de Coelho Netto, aproveitando para assumpto de composição musical um lance
dramatico que, pela geographia e pela ethnographia, não tem nada que ver
com as tradições do espírito melodico do povo a que pertencem o poeta e o
musico.11
Temos aí a questão identitária que ocupará cada vez mais espaço nas décadas
subsequentes. Soma-se a ela, a “missão civilizatória”, pretendida pelo Centro Artístico,
que se configurava em outros campos como projeto maior da inteligência à época.12 Alinhados aos intelectuais que estabeleciam projetos para a “redenção das massas miseráveis”
(Sevcenko, 1999[1983], p. 95), os membros do Centro Artístico se incumbiam de estabelecer os parâmetros para a “educação do público”. A “missão civilizatória” pretendida
pelo Centro Artístico foi ridicularizada por Oscar Guanabarino até ser, após alguns anos,
cabalmente descartada pelo público. Guanabarino protesta:
[…] um dos sócios da empreza que se denomina Centro Artístico affirmou ter
sido fundada aquella associação – não para servir de campo pratico aos artistas
nacionaes e educal-os em provas publicas, com a critica severa e imparcial da
massa anonyma que, nos theatros, compra o direito de applaudir ou patear –
mas para educar esse mesmo publico, aliás conhecedor de uma vasta litteratura
...........................................................................
9
Carta de F. Braga a F. Buschmann, 20 de fevereiro de 1900, transcrita in Exposição (1968, p. 34).
Gazeta de Notícias, de 1º de maio de 1900, parcialmente reimpresso no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,
em 8 de maio de 1900, p. 3.
11
[Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio
de 1900, p. 3, grifos nossos.
12
Sobre a missão civilizatória da inteligência brasileira do período, ver Sevcenko, 1999 [1983].
10
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190
dramatica e musical, apresentada por artistas de nomeada universal. Essa pretenção, ridicula em si, irritou, como era natural, não só o publico em geral, como
a maioria dos socios do Centro, e no jornalismo achou formal protesto nestas
columnas, cujo signatario repudiou desde logo a educação, que se lhe pretendia
dar a titulo de renascimento das artes. 13
E para fundamentar o seu indignado protesto contra a pretensão educativa da
referida associação, Guanabarino desqualifica o próprio círculo de artistas nele envolvido,
qualificando-os “de uns tantos pigmeus que, na opinião desses desvairados, se colocariam
ao lado de Shakespeare e de Wagner”. E, ainda, denuncia a incompetência de Delgado de
Carvalho como orquestrador e instiga que seja revelado o seu colaborador na instrumentação. Guanabarino fala ironicamente:
Nós, que conhecemos a instrumentação de Berlioz, de Meyerbeer, de Massenet,
de Verdi, de Grieg, de Puccini, de Beethoven, de Bizet, de Gounod e tantos outros
musicos notaveis – nada sabemos, nada ouvimos, e devemos ir aos espectaculos
do Centro para sermos educados pelo Sr. Delgado de Carvalho!14
Oscar Guanabarino aponta ainda as inconsistências na ação teatral. E entre uma
desqualificação e outra o crítico exclama repetidamente: “E ahi temos a fórma pela qual
o Centro Artistico nos quer educar!” – “E querem nos educar!”
Os preceitos estéticos do drama musical wagneriano também foram questionados, entre eles, a ideia de “obra de arte total” e a própria relação discursiva entre a
ópera e a plateia. No primeiro aspecto, Lobo Cordeiro afirma:
O drama lyrico (com representar um progresso de concepção de composição) é
– no seu desenho structural e no seu lemma basilar – uma das extravagancias
chimericas do alto e puro genio, mas genio sempre incompleto e fragmentario
de Ricardo Wagner. A fusão de todas as artes na theatral e scenica da peça de
espetaculo não é uma synthese, é um cyncretismo. Sobrenadarão as artes dos
sentidos, a musica, a pintura, as mesmas formulas elementares da coreographia,
da mise-en-scène, da alfaiataria de theatro, etc. Mas, na arte do espírito, a poesia,
perde-se-há por completo. E, perder-se-há até no que nella há já de sensual e de
technico. A musica simples da alliteração e da rima ficará submergida na onda
estrepitante das sonoridades orchestraes.15
...........................................................................
13
“[…] (cont.) “Educa-se um povo, no terreno das artes, com as grandes producções dos artistas celebres, commentandose essas mesmas obras, afim de chamar a attenção para os pontos fracos ou para as suas bellezas; mas os araufos do
Centro começaram a sua campanha educadora procurando chamar o ridiculo sobre os fundadores da arte musical,
julgando que por essa fórma destruiam os genios que se impuzeram a muitas gerações, afim de conseguirem a imposição de uns tantos pygmeus que, na opinião desses desvairados, se collocariam ao lado de Shakespeare e de Wagner
para afastar o publico da admiração votada a Bellini, o inimitado melodista admirado por todo o mundo e pelo proprio
Wagner; a Rossini, que salvou a musica italiana das garras dos cantores que adulteravam tudo para que sobressaissem
as suas qualidades de virtuose; a Verdi, o mais pujante dramatisador da musica, que obrigou toda a Italia a acompanhar com elle a evolução da sua arte; a Gounod, o musico contemplativo que se immortalizou com o Fausto; a
Meyerbeer, o grandioso autor da Propheta, e por ahi além, no mais ridiculo desrespeito aos maiores vultos que
occupam logar saliente na historia das artes./ Explica-se assim a nossa attitude franca e leal; e sabemos ter ao nosso
lado um grande partido”. (Guanabarino, Oscar. O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, “Artes & Artistas”;
crítica sobre a apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.).
14
Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1898, p. 2, crítica sobre a
apresentação da balada Hostia, música de Delgado de Carvalho, libreto de Coelho Neto; grifo nosso.
15
[Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio de
1900, p. 3.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
191
O mesmo crítico faz ainda um balanço negativo da proposta wagneriana e sua
adequabilidade teatral:
Não se crie o poeta ilusões. Todo o poema posto em musica nunca passará de
um libretto. [...] Coelho Netto houve de sacrificar ás exigencias theatraes do
drama lyrico, o que mais uma vez prova o artificioso e falso do systema.16
A relação entre a ópera e o público, instaurada pelo drama musical wagneriano,
foi sutilmente reprochada por Oscar Guanabarino ao comentar a recepção inicialmente
fria do público na estreia de Il Salduni, “porque Leopoldo Miguez na sua partitura não dá
uma pausa ou uma resolução sobre a tônica, de modo a poder intervir a plateia”17
Certamente, tratava-se de uma mudança de hábitos, de uma proposta de prática
sociocultural que alijava a participação do público, subtraindo-lhe a espontaneidade de
reações. E não passou despercebida do crítico.
Não há dúvida de que o wagnerismo teve os seus defensores que colocaram a
sua voz na crítica periódica. Esgota-me o tempo aqui para adentrar nos seus argumentos.
Lembro sinteticamente os seus ideais de “progresso” e sua predileção pelo termo “música
do futuro” ao defender o drama musical wagneriano e o poema sinfônico. Esse breve
apanhado, predominantemente das vozes contrárias ao projeto de “criação do Drama
Lírico no Brasil”, conclui agora com a explicação de sua falência, trazendo o comentário
de Oscar Guanabarino sobre a dissolução do Centro Artístico:
Essa associação foi derrocada – não pelo signitário destas linhas, como da a entender o illustre librettista no final do livro sobre o 4º Centenario, mas pelo bello
sexo fluminense que, não podendo supportar as imposições de uma arte falsa,
pretenciosa e ridícula, reagiu abandonando aquelles espectaculos inexplicáveis
e impassiveis. Daquella febre delirante em que os psychiatras poderiam acham
motivos para serias indagações e novos estudos, sobretudo no tocante á periencephalite difusa, apresentando os doentes a monomania da grandeza artística;
daquele delírio dizíamos sempre lucriou-a arte alguma coisa – a partitura dos
Saldunes.18
Alguns anos depois, Coelho Neto, ao ser indagado por João do Rio, em entrevista
em junho de 1907, sobre qual era o volume preferido de sua lavra, o prolífico escritor
responde:
O Pelo Amor! Não se admire. Prefiro o Pelo Amor! por uma questão de momento.
Ainda naquele tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha perdida, mas de que me lembro com saudades, como certos generais velhos
recordam nostálgicos as derrotas. Em todo o caso foi uma perda que acentuou
a cisão e determinou uma corrente literária.19
...........................................................................
16
[Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 de maio
de 1900, p. 3, grifo nosso.
Guanabarino, Oscar. ‘Saldunes’ in coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1901, p. 2.
18
Guanabarino, Oscar. “Saldunes: Impressões do Libretto”, artigo separado, (anterior à) coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 2, grifos nossos. (Na primeira página, no topo central,
com retrato de Miguez.)
19
Entrevista de Coelho Neto concedida a João do Rio, em junho de 1907, Coleção Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro; grifo nosso.
17
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
192
Está enfeixado aí um novo momento na história cultural brasileira, quando a
participação dos valores populares ganhará crescente proeminência. A elite intelectual
buscará o folclore e o movimento nacionalista até adentrarmos o modernismo. E as práticas
socioculturais populares irão se legitimar cada vez mais nos espaços urbanos de sociabilidade, tendência que deve se realizar de modo predominante na nossa contemporaneidade.
Assim como o seu panteão cívico, o projeto simbólico-musical da Primeira
República caiu no olvido por não encontrar ressonância social. Enquanto o modernismo
não chegava, para fazer a sua releitura primitivista do índio e da paisagem, assistimos a
uma batalha de símbolos cujas tentativas no campo dramático-musical tiveram maior
aderência social nos palcos do teatro musical popular do que na arena da “música do
futuro”. Para a república dramático-musical, a batalha de símbolos foi uma batalha perdida.
Figura 1. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1898, anúncio do Centro Artístico, Artemis, de
Alberto Nepomuceno e Coelho Neto.
Figura 2. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1900, primeira página: Coelho Neto e esposa.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
193
Figura 3. O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901, p. 1 (topo central): retrato de Leopoldo Miguez.
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Volpe, Maria Alice. “Representações Musicais do IV Centenário do Descobrimento do
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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2004, p. 87-99.
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Charnacé. Coluna “Semana Lyrica”, Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 10 de setembro de
1893.
Cidade do Rio. Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1900.
[Cordeiro, Lobo]. ‘Saldunes’ in coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio. Rio de
Janeiro, 10 de maio de 1900.
Dias, Carlos Malheiro. Trecho citado em coluna “Theatros e Música”, Jornal do Commercio.
Rio de Janeiro, 10 de maio, 1900.
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1898.
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1900.
Guanabarino, Oscar. Coluna “Artes & Artistas”, O Paiz. Rio de Janeiro, 3 de novembro,
1898.
Guanabarino, Oscar. “Saldunes’: Impressões do Libretto”, O Paiz. Rio de Janeiro, 20 de
setembro, 1901.
Guanabarino, Oscar. ‘Saldunes’ in coluna “Artes & Artistas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de
setembro de 1901.
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1900.
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1900.
O Paiz, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1901.
Voz Publica. Porto, 18 de maio de 1900.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
195
Carlos Gomes no contexto
da transição da ópera italiana
Marcos Virmond
Universidade Sagrado Coração, Bauru
Após o silêncio de Gioacchino Rossini, em 1829, o precoce desaparecimento de
Vincenzo Bellini, em 1835, e a morte de Gaetano Donizetti, em 1848, o melodrama lírico
ficou nas mãos de Giuseppe Verdi por um longo tempo. Ainda que renovador, Verdi segue
os modelos do melodrama lírico estabelecidos por esses compositores. Esse modelo
calcava-se nos números operísticos fechados, onde a ária tripartite impera e a presença
da caballeta é indispensável. Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este
modelo parece ter chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana,
como um todo, parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira
virtual dos Alpes. Uma nova geração reclama novos ares. O melodrama lírico, uma das
mais bem guardadas relíquias da unificação da Itália, não se exclui dessa necessidade de
renovação. Ademais, Verdi parece modificar seu processo composicional e reduz a
frequencia de novas óperas que produz. É este momento que se desenvolve no período
arbitrariamente compreendido entre 1870 e 1893 e nele serão apresentadas e se consolidarão profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua estrutura musical, no processo composicional e na constituição de seus libretos. Essas modificações
terão reflexos para o surgimento da giovane scuola, estendendo-se sobre a produção
operística até o início do século XX. Mesmo ocorrendo no período pós-romântico da ópera
italiana, essas décadas de agitação cultural melhor se qualificam pela denominação de
período de transição. Atores privilegiados nesse processo são Antônio Carlos Gomes, Amilcare Ponchielli e Alfredo Catalani. A presente investigação procura demonstrar suas contribuições na afirmação desse período, procurando recuperar a relevância deles para a
evolução da ópera italiana da segunda metade do século XIX.
Antônio Carlos Gomes parece um compositor fadado à controvérsia. Na juventude enfrentou dificuldades com a imprensa sobre a fatura de sua Joana de Flandres. Ao
longo de sua carreira da maturidade colhia, na mesma proporção, desafetos e glórias em
seu país natal. Morto, foi guindado à condição de nume estelar da cultura pátria para, em
seguida, ser destronado pelos scapigliatti da Semana de 1922. A depressão da arte lírica
nacional, após o fim das rotineiras temporadas internacionais, traz consigo um paralelo
esquecimento do compositor. Após isto, efemérides e iniciativas de regentes sensíveis,
mas isolados, são os únicos responsáveis por dispersos renascimentos de obras do Gomes.
Mais recentemente, este revival parece interessar ao cenário internacional. Entre outras
iniciativas, Il Guarany é encenado em Bonn (1994) e Washington (1966), Salvator Rosa no
Festival de Martina Franca (2004) e Colombo estréia na Europa em récita no Teatro Bellini
de Catania (2006). Em qualquer dessas récitas, no Brasil ou no exterior, Gomes continua a
ser, impavidamente, o mesmo compositor artesanal e metódico, monolítico em sua proposta de dar vazão à verve do melodrama que, sabe-se lá como e por que, lhe é inerente
desde a infância. Da mesma forma, a reação da crítica também continua controversa. Críticos de Washington expressaram-se sobre Il Guarany como um “equívoco”, “banalidade”
ou “bizarrice” puramente baseado em Donizetti e Verdi. Se não bastasse, pesquisadores
de relevo tendem a adotar posições reducionistas sobre Gomes e outros compositores
do período, como é o caso de Ponchielli. Nesse sentido, as afirmações de Malach são
reveladoras do pouco conhecimento que esse autor tem sobre a obra desses compositores:
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
196
“Gomes and Ponchielli […] were little more than Verdian epigones, seeking new and
superficially different ways on manipulating a vocabulary that by 1870 even the great
Verdi had lagerly transcended” (Mallach, 2002, p. 63). E ainda: “While the music of Il
Guarany shows great charm and melodic flair, […] it is also derivative, almost to the point
of parody” (Mallach, 2007, p. 18).
Esses comentários parecem sumarizar uma linha de expressão, tanto nacional
como internacional, totalmente equivocada sobre o que é a obra operística de Gomes.
Revela um absoluto desconhecimento sobre a produção gomesiana, o que até certo ponto
é compreensível, mas encerra uma indisfarçável má vontade para com compositores do
gênero que não sejam os reconhecidos expoentes dos períodos da ópera italiana do século
XIX, começando com Rossini, seus imediatos sucessores Bellini e Donizetti, o mestre longevo Giuseppe Verdi, os veristas pontuais e imediatos Mascagni e Leoncavallo e terminando
pelo esperado e firme sucessor de Verdi, Giacommo Puccini. Aparentemente, este tipo de
crítica vê o melodrama italiano limitado a esses nomes estelares e os demais se enquadram
irremediavelmente no limbo dos operisti minori. Trata-se de um equívoco imperdoável.
Como dito, este tipo de visão se funda em um desconhecimento da obra desses outros
compositores, aí incluído Gomes. Sua divulgação, tanto em edições atualizadas como em
registros fonográficos, é limitada em poucos casos e inexistente na maioria. Em parte,
essas deficiências podem justificar a análise superficial e o veredito açodado desses críticos.
Felizmente, nas últimas décadas o mundo acadêmico começa a lançar um olhar
investigativo sobre esses compositores e produz uma literatura, ainda incipiente, que
poderá subsidiar um retorno mais concreto dessas obras ao repertório das casas de ópera.
Este também é o caso de Antônio Carlos Gomes, cuja abordagem acadêmica já se mostra
expressiva em Nicolaisen (1980), Conati (1982), Mussomelli (1992), Nogueira (1997),
Budden (2002), Nicolodi (2002), Volpe (2002 e 2004) e Pupo Nogueira (2006). Uma leitura
desses textos revela um Gomes dentro da estética do melodrama italiano da segunda
metade do ottocento, mas com suas características próprias, com seu individualismo
marcado e, sobretudo, sua contribuição para o desenvolvimento do gênero em um período
muito peculiar, o qual se conhece como “período de transição da ópera italiana”. Neste
contexto, o objetivo do presente estudo é analisar e discutir a participação de Antônio
Carlos Gomes e outros compositores no mencionado período.
Carlos Gomes: um brasileiro em Milão
Quando se discute Gomes e sua produção operística da maturidade1 uma questão
relevante é perguntar-se em que contexto deve se analisar a obra de Antônio Carlos Gomes.
Dentro deste escopo, inserir der Gomes como um compositor da história da música
brasileira é difícil, ainda que possível. Entretanto, tudo indica que sua inclusão como
compositor relevante ao melodrama italiano do século XIX parece mais acertada e mesmo
oportuna. Neste sentido, uma das mais coerentes manifestações sobre esta localização
de Gomes na história da música se faz no texto de Vicenzo Terenzio sobre a história da
música italiana no século XIX em que o autor afirma:
Le sue qualità di schietto melodista e la viva suggestione che egli subì dell’arte
verdiana inducono a inserire la sua produzione teatrale nel quadro del nostro
melodrama ...Non sarebbe giusto, tuttavia, pensare a uma forma di imitazione
passiva. Il linguaggio verdiano si prestava a dar rilievo alla fervida fanatasia del
Gomes […]. (Terezio, 1976, p. 384)
...........................................................................
1
Entende-se por obras do período da maturidade de Gomes Il Guarany, Fosca, Salvator Rosa, Maria Tudor, Lo
Schiavo, Condor e Colombo.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
197
Verifica-se que Gomes estava em Milão em um momento muito especial da
ópera italiana, o chamado Período de Transição e, levando em consideração o que disse
Terenzio, devemos analisar a participação de Gomes neste momento. Para tal, sugerimos
abordar três grandes tópicos: Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?;
O período de transição (1870-1893); Contribuição de Gomes e seus colegas para a
renovação do melodrama italiano.
Que ambiente Antônio Carlos Gomes encontrou em Milão?
A Itália unificada
Gomes chega em Milão no final de 1863 e inicia seus estudos com pelos menos
dois importantes nomes da música italiana, Lauro Rossi e Alberto Mazzucato. Milão, na
segunda metade do século 19 era uma metrópole. A capital da cultura e da economia
pujante, em contraste com o sul pouco desenvolvido. Somente em 1861, a cidade e as
demais regiões da Itália, a exceção de Roma, constituem o Reino da Itália, o qual será
completado com a anexação de Roma em 1871 e, muito mais tarde, de Trento e de Trieste
em 1918. A constituição do Reino da Itália facilita Milão a consolidar-se como o grande
centro empresarial e econômico do jovem reino. Então, a Itália de Gomes é a de um país
recém unificado e a Milão de Gomes é um caldeirão de ideias, tendências e empreendimentos de toda a ordem.
A crise do melodrama
Considerando o silêncio de Rossini após a estreia de Guglielmo Tell, em 1829, o
precoce desaparecimento de Bellini, em 1835, e a morte de Donizetti, em 1848, o melodrama lírico ficou nas mãos de G. Verdi por um longo tempo. A estrutura do bel canto
introduzida por Rossini e desenvolvida por Bellini e Donizete mas também incorporada
por Verdi em suas primeiras fases tem vida longa. Gravitam em torno de Verdi nomes
menores que contribuem para atender uma contínua demanda de óperas novas, mas
sem significativos avanços estéticos, o que seria quase exclusividade de G. Verdi. Entre
eles, Saverio Mercadante, Lauro Rossi, Vaccai e Pacini.
Entretanto, nos últimos anos da década de sessenta, este modelo parece ter
chegado a um esgotamento e mudanças se impunham. A arte Italiana, como um todo,
parece não suportar mais o isolamento a que foi submetida pela barreira física dos Alpes.
Uma nova geração reclama novos ares. O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa e a morosidade das modificações sociais, tão caras à causa do risorgimento, auxiliam
em compor um quadro de insatisfação. Essa necessidade de renovação já aparece mesmo
em Verdi, quando os temas de suas óperas, a esta altura, já haviam mudado sensivelmente
do terreno heróico-histórico para a dramaturgia clássica romântica de Hugo e Schiller.
No campo das artes, esta insatisfação se traduz em um grupo de jovens artistas
que seria chamados scapigliatti.
A scapigliatura
O termo scapigliati refere-se a uma condição de “descabelados”. Os scapigliati,
como assim eram chamados os seguidores da scapigliatura, compreendiam literatos,
músicos, artistas plásticos e intelectuais de diferentes qualidades, mas que se concentravam
em contestar o status quo. Tudo poderia e deveria ser diferente. O velho não mais tinha
valor. De fato, foi o primeiro movimento com ambições de vanguarda na recente história
cultural da Itália unificada. Teve duração relativamente efêmera, de 1860 a 1875, e limitouse a Milão e Turim, mas deixou marcas importantes na vida artística da Itália.
Em linhas gerais, o movimento centrava-se nos seguintes pontos: liberdade de
expressão, quebra das regras acadêmicas antepondo a criatividade à razão, originalidade
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
198
em contraste aos ditames rigorosos do estilo e a quebra das limitações do provincianismo
do norte.
Importantes nomes dessa vertente modificadora foram Tranquilo Crenoma, nas
artes plásticas, Igino Ugo Tarchetti, na literatura, e Emilio Praga, na dramaturgia.
Na música, a scapigliatura não contou expressão importante e seus
representantes mais notáveis são Franco Faccio e Arrigo Boito.
Independentemente desses eventos modificadores, o fato é que esse efervescente cenário social encontra um Verdi menos produtivo em termos quantitativos. No
contexto da história da ópera italiana, é neste período que segue, que serão apresentadas
e se consolidarão profundas modificações no melodrama lírico no que se refere a sua
estrutura musical e à constituição de seus libretos. Essas modificações serão fundamentais
para o surgimento da giovane scuola, com reflexos em toda a produção operística até o
final do século XIX e nos primeiros decênios do século XX. Tal período se denomina, Período
de Transição.
O Período de Transição
Defini-lo não é tarefa fácil. Considera-se que seria um período de ligação entre
Verdi e Puccini. Poderia ser, também, um período de rejeição aos pressupostos Rossinianos,
com um gradual desaparecimento da ópera de número, a inicial aceitação do modelo da
grand opéra e, finalmente, a permissão da influência da opera lírica francesa sobre o
melodrama italiano.
Uma nota da biografia sobre Filippo Marchetti contém uma possível explicação
para este período e deve ser reproduzida:
Filippo Marchetti (Bolognola, 1831 – Roma, 1902) è stato un compositore importante in quella fase di passaggio del melodramma italiano compresa fra la
straordinaria stagione romantica dominata dal genio verdiano e la nuova stagione
segnata dalla presenza di Puccini, Giordano, Cilea e Mascagni. (Pellegrino, 2002)
De forma sucinta, Nicolaisen (1980, p. 3) refere-se a este espaço como o Período
em que Verdi escreveu suas três maiores óperas, Aida, Otello e Fastalff. Esta definição
não deixa de ser controversa, uma vez que a figura de Verdi não é, decididamente, a
figura central deste período e, portanto, não poderia se usando como marco de referência
para sua delimitação.
Outra forma de caracterizá-los seria dizer que se trata do período de abertura
da ópera à influência externa ocasionando mudanças estilísticas ao melodrama italiano
do qual Verdi pouco participou, mas não se manteve alheio.
Lauro Machado Coelho (2002) o situa entre a Aida e Cavalleria Rusticana e o reconhece como um Período intermediário de indecisões, acertos e erros que caracterizam
toda época de transição.
De qualquer forma, trata-se de um período bem definido pelo seu espaço temporal, por suas características estilísticas, pelo momento histórico, resultando no surgimento de um novo formato de melodrama. Em torno deste período, caracterizado também
por um relativo recolhimento de Giuseppe Verdi, gravitam alguns compositores emblemáticos como Fillipo Marchetti, Stefano Gobatti, Alfredo Catalani, Amilcare Ponchielli e
Antônio Carlos Gomes.
A fixação temporal desse período depende dos conceitos de cada autor. As diferentes opções estão relacionadas a determinadas obras paradigmáticas. Como dito, Nicolaisen (2002) delimita-o entre 1870 e 1893, com Aida e Fastalff. Coelho (2002) e Cezari
(2000) também consideram Aida como o início, mas o marco do verismo com Cavalleria
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
199
Rusticana seria o final deste período. Uma outra possibilidade, aí incluído os lídimos
representantes da transição, seria iniciar o período com Il Guarany de 1870 e finalizá-lo
com o Condor de 1891.
De qualquer forma, o que mais importa é descrever e discutir os fatos musicais
e estéticos que fazem do Período de Transição um momento único e definido ao longo do
percurso do melodrama italiano do século XIX, o que será discutido a seguir.
Contribuição de Antônio Carlos Gomes e seus colegas
para a renovação do melodrama italiano
O insucesso das revoltas de 1848, por toda a Europa e a morosidade das modificações sociais, tão caras à causa do risorgimento,2 auxiliam em compor um quadro de
insatisfação. Uma vez no poder, os antigos revolucionários, como costuma ocorrer, não
conseguem em curto espaço de tempo, que só no discurso político se realiza, as modificações profundas que levem a um rápido desenvolvimento econômico e social da
Itália. Por um lado, a classe política dominante, para a Itália pós-unificação, preocupa-se
primordialmente em demonstrá-la como nação legítima e alinhada à ordem europeia.
Estas, certamente, não são as preocupações centrais daqueles jovens que lutaram pela
unificação. As gerações mais jovens, inquietas, se revoltam contra toda a ordem estabelecida e gritam pelo novo.
O melodrama lírico, uma das mais bem guardadas relíquias da unidade italiana,
não se exclui dessa insatisfação e da necessidade renovação. Mais que isto, o tradicional
isolamento cultural a que a península se impunha, está prestes a desmoronar, pois não
faltam vozes internas que desejem ardentemente romper a cúpula que protegia a música
italiana da influência externa.
Em termos gerais, a abertura do melodrama italiano ao mundo exterior se concentra principalmente na adoção da estética da grand opéra francesa e o período de
transição vai compreender uma releitura dos códigos desse gênero que são, em síntese:
uso de tema histórico, a preocupação com a grandiosidade da encenação, o uso de massas
corais, de cenas rituais, emprego de peças características (polacca, habanera, etc.), a presença do coup de théâtre, a inserção de balé, características particulares da orques-tração,
o uso de tema recorrentes para unidade dramática, um discurso vocal diferenciado e, por
fim, e muito relevante, a desestruturação da Solita forma
Pode-se passar agora a analisar alguns desses elementos caracterizadores da
grand opéra em sua apropriação pelos compositores italianos, com Gomes incluído, e
identificar sua contribuição para moldar essas características ao gosto e às cores peninsulares.
Os elementos da grand opéra
As características estruturais da grand opéra de Auber e Meyerbeer estão presentes na ópera da transição (Virmond, 2009).
Um elemento contraditório é que, na Itália, não ocorre com freqüência o uso de
tema histórico, limitando-se a alguns poucos casos como o Ruy Blas de Marchetti I Lituani
de Ponchielli e a Maria Tudor de Gomes. Independentemente, o tema escolhido será tratado com grandiosidade cênica, garantindo-se a participação de massas corais, sejam em
números isolados, característicos o nos concertatos, como bem se pode verificar em Il
Figliuol Pródigo de Ponchielli, por exemplo.
...........................................................................
2
Movimento político e revolucionário entre 1815 e 1870 que resultou na unificação dos diferentes estados da
península da Itália em um novo país. Foi um dos mais importantes períodos da história italiana e teve como foco
central a revolta contra a opressão estrangeira por parte dos austríacos. Entre as figuras principais desse movimento salientam-se de Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
200
As cenas rituais ocupam importante lugar ao longo da ópera. Exemplos disto
são a invocação no terceiro ato de Il Guarany de Carlos Gomes, a cena do templo no
primeiro ato e a cena do julgamento de Aida de G. Verdi e a Scena del Consiglio em Fosca.
O emprego de peças características é fundamental para a criação da cor local e
para garantir a diversidade dos eventos cênicos e musicais. Este é o caso, entre outros
muitos, da Polacca de Cecília em Il Guarany e das canções de brinde em I Lituani de Ponchielli.
O coup de théâtre é aquele momento privilegiado, geralmente curto, de clímax
dramático resolutivo, onde o texto e o desenvolvimento cênico têm características marcantes, conclusivas, brilhantes, inesperadas, inspiradas, levando a um arrebatamento da
audiência pelo inusitado. Esse modelo é usado em La Gioconda (1876), no momento final
do terceiro ato quando Alvise apresenta o corpo exânime de sua mulher e revela ter sido
ele seu algoz em virtude da traição aos votos do casamento, para duplo espanto de seus
convidados e, pretensamente, da plateia. Da mesma forma, Antonio Scalvini, este um dos
principais scapigliati em Milão, e Carlos D’Ormeville optam por transformar D. Antonio
em um quase homem-bomba ao explodir o castelo ao final de Il Guarany. Na cena final de
Maria Tudor, a agitação da rainha à suspeita levantada por Giovanna de uma possível traição e a surpresa da revelação de quem realmente foi ao patíbulo3, é cena que preenche
também os requisitos de coup de théâtre. Mais adiante, vemos em Andrea Chénier (1896)
outro exemplo clássico na exuberante cena final do terceiro ato, quando Gérard se apresenta e retira a acusação contra Chénier, mas ela é reapresentada por Fouquier, o promotor,
o que termina permitindo a condenação do poeta à guilhotina. Illica e Giacosa preparam
várias situações dessas em Tosca, sendo o assassinato de Scarpia e o falso fuzilamento de
Cavaradossi dois momentos representativos.
O balé, elemento essencial da grand opéra, se faz presente na ópera do período
de transição. Muitas vezes desprovido de interesse para a continuidade da ação dramática,
o balé apresenta o apelo ao grandioso e ao colorido local. Os exemplos são conhecidos e
falam por si. Basta recordar as danças indígenas em Il Guarany, os balés de La Gioconada,
Il Figliuol Prodigo e I Lituani e a Bacanalle em Maria Tudor de Carlos Gomes.
A orquestração
Da leveza da orquestração de Belinni e Donizetti, onde a transparência da frase
é fundamental, admitindo-se apenas o desdobramento das tríades para apoiar e expressão
da frase melódica pelo solista, passa-se a uma orquestração mais densa e valorizadora
dos timbres instrumentais. Esses timbres assumem relevância dramática no contexto do
discurso musical em relação ao discurso literário. Veja o caso de Donizetti no Elixir d’Amore
(Figura 1). Em Gomes, as questões tímbricas serão particularmente importantes para tentar
a “cor local” em Il Guarany. Este é o caso dos instrumentos adicionais para o acompanhamento do balé no terceiro ato e, no final do segundo ato, o uso de uma banda interna
para executar a música que as instruções da partitura referem como “suono interno
d’instrumenti selvaggi”. Mais adiante, esta preocupação estará presente em Condor (Figura
2), no dobramento dos violoncelos com os fagotes para um efeito eminentemente tímbrico
de urgência e selvageria ao anunciar a invasão do palácio de Odalea pela turba enfurecida.
O uso dos violinos na região aguda e em trêmulo é outra fórmula comum e,
para a época, perigosa, pois que identificava imediatamente o compositor com a estética
...........................................................................
3
Maria combina com D. Gil de trocar o condenado à morte, Fabiano Fabiani, seu amante, por Gilberto. Sob o
capuz ninguém iria notar a diferença. Na verdade, Dom Gil prefere atender ao pedido de seu rei, Felipe II da
Espanha, do que atender aos apelos da Rainha da Inglaterra. Ele não ordena a troca de prisioneiros e, ao final,
quem vai ao patíbulo é Fabiani, para desespero de Maria.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
201
Figura 1. Introdução orquestral da frase principal. Na exposição pela voz, a orquestra apoia harmonicamente o
tema – G. Donizetti, L’Elisir d’Amore.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
202
Figura 2. O uso dos fagotes em uníssono com os violoncelos – A. Carlos Gomes, Condor, terceiro ato.
Figura 3. O modelo usado por Gomes ao final de ópera. Violinos em trêmulo no registro agudo – A. Carlos Gomes. Fosca.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
203
wagneriana após a estréia do Lohengrin em Bologna, ocorrida em 1870. Convém recordar
que Verdi já fizera uso dessa mesma fórmula na então longínqua La Travita, de 1853. Entretanto, o modelo da melodia sobre um fundo de violinos em trêmulo no registro agudo,
principalmente em cenas de consumação de perda, dor, despedida, é constante e eficiente
em Fosca, Salvator Rosa e La Gioconda. Veja-se o caso da Fosca de Gomes (Figura 3).
O uso proeminente do dobramento de frase entre as cordas, as violinatti, é outro
modelo comum ao período. A frase apresentada pelos primeiros violinos era reproduzia
nos segundos violinos uma oitava abaixo, assim como pelas violas na mesma tessitura.
Eventualmente, a frase era distribuída por todas as cordas, à exceção dos contrabaixos.
As madeiras poderiam ser chamadas a dobrar a mesma melodia, também. Este dobramento aumenta a densidade da frase e empresta grandiosidade tímbrica à frase, alcançando um grande efeito dramático, sublinhando as intenções do compositor em momentos
climáticos. Catalani e, mais tarde, Mascagni (Figura 4) apresentam exemplos típicos deste
artifício de orquestração.
Figura 4. Emprego das cordas para a exposição da melodia principal. As madeiras também sustentam a mesma
frase e nesse exemplo se encontram condensadas em um único pentagrama – A. Catalani, La Wally (1892).
Temas recorrentes
Essa associação entre discurso dramático e orquestra, por meio dos temas recorrentes, se apresenta de forma mais elaborada entre os compositores desse período de
transição. Esta preocupação será incessante, quase como uma necessidade para a obtenção
da coesão estilística e da unidade dramática em suas obras. O tema recorrente se dá pela
caracterização que um determinado tema melódico, fragmento rítmico, tonalidade ou
textura tímbrica apresenta com um determinado evento ou condição dramática no contexto do libreto. Como a própria palavra diz, trata-se de uma reminiscência, isto é, ela
passa a atuar como tema recorrente após o prévio estabelecimento da relação melodia,
rítmica ou tímbrica com o evento associado. Assim, o seu reaparecimento já não requer
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204
nem a participação da voz ou do personagem a que está ligado, ou melhor dito, condicionado. O tema do amor de Alfredo por Violeta, que recorre no último ato da La Traviata,
é suficiente para evocar essa condição, mesmo que não houvesse interferência do personagem para corroborar essa associação.
De fato, seu uso não é novidade, pois mesmo Weber em Der Freischütz já fez
uso desses temas. Entretanto, a abordagem dessa fórmula pelos compositores da Transição
é diferenciada e mais sofisticada.
Kimbley (1991) cita um caso representativo da antes mencionada preocupação
com a unidade dramática por partes dos compositores do período em estudo. No final do
segundo ato de La Gioconda, durante o dueto de extremo confronto entre Gioconda e
Enzo, quando esta lhe mostra a barca em que foge Laura, sua rival pelo amor do marinheiro.
Enquanto Enzo responde, incrédulo, a mais esta tentativa de Gioconda em afastá-lo de
Laura, a mesma melodia que Gioconda apresentou sua denúncia acompanha a exposição
de Enzo, criando um confronto adicional, psicológico, mas totalmente fundado em uma
ação musical (Figuras 5 e 6).
Figura 5. No desenvolvimento do dueto, Gioconda revela a fuga de Laura na tentativa de demonstrar que a rival
verdadeiramente não o ama.
Figura 6. Na entrada de Enzo, refutando a possibilidade de traição de Laura, a frase de Gioconda confronta-se com
a exposição de Enzo.
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205
Em verdade, Antônio Carlos Gomes, já utilizara este mesmo expediente em sua
revolucionária Fosca, de 1873. De fato, para esse período de transição, Fosca deve ser
analisada com muita atenção, pois que prenuncia muitas das mudanças que irão marcar
esse período.
Nesta ópera, logo no primeiro ato, Gajolo, o chefe dos piratas refuta a ideia
sugerida por Fosca de aceitar o resgate e não entregar Paulo, o refém. Isto é contra a ética
dos corsários. Enquanto explica isto à irmã, a orquestra retoma o Tema dos Corsários que,
de acordo com a análise de Mário de Andrade (1936), apresenta a altivez desses homens
e que é apresentado logo nos primeiros compassos da abertura da ópera, pelo menos em
suas duas últimas versões (Figura 7) e será repetido outras vezes ao longo da obra quando
surgir este mesmo contexto dramático.
Figura 7. Enquanto Gajolo refuta a ideia de trair a ética do grupo, o Tema dos Corsário é exposto pela orquestra de
forma a complementar o discurso dramático – A. Carlos Gomes, Fosca.
Seria exaustivo apresentar todas as situações em que os compositores da Transição utilizam este recurso, mas espera-se que esses exemplos permitam fixar a noção do
emprego que eles fizeram deste expediente composicional para obter unidade em suas
obras, além de reforçar seu senso dramático.
O discurso vocal
O tratamento da vocalidade no contexto do Discurso Vocal se altera sensivelmente devido, em parte, a nova abordagem da orquestração. Tornando-se mais espessa,
mais densa a orquestração, a vocalidade tende a competir com a orquestra. Em muitas
obras desse período, de fato, percebe-se o estabelecimento de uma relação de forças entre orquestra e cantores, com certa preponderância da orquestra sobre eles. Certamente,
esta dualidade não se restringe a uma modificação do tratamento da linha vocal. Percebese, antes de tudo, uma preocupação crescente em incorporar a orquestra no discurso
dramático.
A relação entre discurso dramático e musical se acentua e se aproxima. A declamação dramática, muitas vezes de caráter enérgico, assume preponderância. Esta opção
de tratamento da frase vocal está em consonância com a busca da continuidade do discurso
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206
musical. As cenas de ligação entre as secções não têm mais o caráter contemplativo ou
puramente narrativo de fato ocorrido. Os fatos acontecem em tempo real e, texto e música,
descrevem reações psicológicas coerentes com seu conteúdo dramático. Nela se traduz a
necessidade de expressar algo real, uma seqüência de sentimentos despertados ou
resultantes de um fato. Fosca introduziu muitas novidades no melodrama desse período
e, por isto, pode novamente ser usada para exemplificação do que foi exposto sobre a
mudança na vocalidade.
Na cena final do segundo ato, quando Gajolo, para salvar Fosca da fúria da
populaça, explica que ela é uma louca. A reação dela é muito convincente e o tratamento
musical dado por Gomes, isto é, a declamação musical que ele usa para este segmento é
muito efetivo e característico dessa nova modalidade de tratamento da frase. Fosca se
sente ao mesmo tempo ultrajada com o artifício usado pelo irmão como reconhece sua
loucura por desejar um amor impossível (Figura 8).
Figura 8. A declamação dramática é fruto de uma necessidade de expressar o real – A. Carlos Gomes, Fosca.
Em La Gioconda encontramos um outro exemplo do tratamento dramático de
eventos em tempo real, expresso por uma declamação dramática muito eficaz e
convincente. No quarto ato, após sua ária, Gioconda discute consigo mesma os fatos até
ali ocorridos, suas consequências e as medidas que tomou para resolvê-los ou contornálos (ecco il velen di Laura). Depois que ela aproxima os dois amantes, Enzo e Laura, e
salva-los pela fuga, pensa que está tudo resolvido. Subitamente, lembra-se da mãe, cega
– mais um encargo em sua agenda repleta de problemas. É algo que chega a ser trivial,
não fosse a enorme carga emocional que esta lembrança lhe desperta. Tanto no primeiro
caso como neste último, a cena é construída por meio de uma declamação dramática em
que o texto musical se coaduna perfeitamente com o texto dramático. Seria conveniente
recordar que, para os compositores da primeira metade do século, um recitativo a seco
ou acompanhado, resolveria a questão (Figura 9).
Figura 9. Inicia-se uma intensa declamação dramática quando Gioconda lembra que ainda não pode matar-se, pois
falta encontrar a mãe, cega – A. Ponchielli, La Gioconda, Quarto ato, cena V.
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207
Ainda dentro de uma nova abordagem da vocalidade, cita-se o uso freqüente
de expansões da frase melódica, em registro médio para o agudo, com conteúdo
fortemente dramático, usualmente com a indicação interpretativa de slancio que pode
ser traduzida por ímpeto, arrojo, ardor – o que efetivamente está contido nesse tipo de
expansão da frase. Um exemplo clássico ocorre, novamente, em Fosca e La Gioconda
(Figura 10):
Figura 10. As duas mulheres, irmanadas pelo amor não correspondido, usam frequentemente a melodia expandida,
com slancio.
A desestruturação da Solita Forma
Os principais constituintes da estrutura do melodrama e seu esquema formal
podem ser visto no Quadro 1.
SCENA ED ARIA
ScenaScena
Cantabile
Tempo di mezzo
Cabaletta
SCENA E DUETTO
Scena
Tempo d’attacco
Cantabile
Tempo di mezzo
Cabaletta
FINALE
Tempo d’attacco
Largo concertato
Tempo di mezzo
Stretta concertata
Quadro 1. Principais segmentos da estrutura do melodrama italiano da primeira metade do século XIX.
De acordo com as convenções do melodrama lírico, cada um desses segmentos
tem a sua função e sua constituição formal. A seção inicial, a scena, é construída em forma de recitativo e destinada ao desenvolvimento rápido da ação dramática. Seguem as
partes mais importantes, do ponto de vista musical, o cantabile e a caballeta. A primeira
peça é exposta em tempo moderado ou mesmo lento e sua construção vocal é, como diz
o nome, de caráter cantabile. A segunda peça, a cabaletta, em tempo rápido, vocalidade
ágil e de conteúdo conclusivo. Entre esses dois segmentos musicalmente mais importantes
coloca-se um momento intermediário, de ligação dramática e de pouco desenvolvimento
musical, o tempo di mezzo.
Os finais de ato, dentro do padrão da Solita forma, sofreram modificações adicionais nesse período e que, segundo Cesari (2002), são marcantes.
De uma forma ampla, o se apresenta no Quadro 2 é uma proposta classificadora
dos finais de unidades dramáticas, aí já incluída a nova versão dos Finales.
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Quadro 2. Identificação e descrição dos diferentes segmentos finais das unidades dramáticas no melodrama
Italiano do século XIX. (Fonte: Virmond, 2007)
Essa discussão será limitada às modificações introduzidas nos Finales. Neste
sentido, uma das importantes contribuições de Ponchielli é a reestruturação desses finais
de ato, no que Luigi Illica chamava de “novo concertato a tutta ribalta”, como cita Nicolaisen
(1980). Ao contrário da estrutura descrita no Quadro 1, essa nova proposta incluía, em
termos gerais, os seguintes aspectos musicais:
- Seção inicial de interesse rítmico
- Seção solística com introdução do tema principal (tenor ou soprano)
- Repetição do tema com suporte adicional
- Seção cadencial com ou sem relação temática ao concertato – peroração final
com retomada temática
Um caso intermediário é o concertato do primeiro ato de Il Guarany, no qual o
padrão do primo ottocento está claramente presente.
Convém, agora, analisar aquelas modificações para os Finales propostas por
Ponchielli, as quais podem ser claramente identificadas em La Gioconda. De início, há
uma seção inicial com caráter eminente rítmico (Figura 12). Segue-se a apresentação de
uma frase por um dos solistas, em de âmbito cantabile, que se firam com o tema principal
do segmento (Figura 13). Posteriormente, há uma repetição, completa ou modificada do
tema principal com suporte coral e dos demais solistas (Figura 14). Por fim, apresenta-se
uma seção cadencial (Figura 15) com ou sem relação ao tema principal, levando à conclusão
do Finale com um dos tipos de fechamento de unidade dramática descritos no Quadro 2
(Figura 16). Usualmente, na época, e esta é uma contribuição da Ponchielli, utilizava-se a
Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany.
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Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).
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Figura 11. Sequência estrutural do final do segundo ato – A. Carlos Gomes, Il Guarany (cont.).
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211
Figura 12. Secção inicial rítmica – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.
Figura 13. Seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.
Figura 14. Repetição da seção solística – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.
peroração final com retomada temática. Este trata-se de uma peroração sinfônica, usualmente com o tema principal ou um seu desenvolvimento, apresentado em tutti orquestral
com dinâmica fortíssimo. Este fechamento sinfônico é curto, condensado e, de fato,
funciona efetivamente como uma conclusão motívica da cena final.
Na primeira Fosca, de 1873, Carlos Gomes prenuncia este tipo de estruturação
e desenvolvimento de Finale ao fim do segundo ato de sua obra. Há uma introdução de
interesse puramente rítmico na voz de Fosca e na figuração orquestral que acompanha
(Figura 17) e uma seção solística introduzida por Paolo (Figura 18) que é repetida e desenvolvida por Fosca e retomada pelo coro de forma extensiva.
Há, entretanto, uma segmentação importante entre o início do Finale e sua cadência final com elementos musicais desprovidos daquela coerência imposta por Ponchielli
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Figura 15. Seção cadencial – A. Ponchielli, La Gioconda, Finale do terceiro ato.
Figura 16. Seção final da unidade dramática. Peroração final com retomada temática – A. Ponchielli, La Gioconda,
Finale do terceiro ato.
Figura 17. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.
Figura 18. Seção solística – A. Carlos Gomes, Fosca, Finale do segundo ato.
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213
em sua nova estrutura de Finale como no caso de La Gioconda. Contudo, em Salvator Rosa de 1874, Gomes, introduz esse mesmo sistema que, mais tarde Ponchielli utilizará em
La Gioconda (Figuras 19, 20, 21 e 22). O compositor ainda não consegue uma fluência
estrutural como Ponchielli, mas os elementos essenciais estão presentes. Trata-se de um
meio caminho entre o Finale do segundo ato de Aida (1871) e o de La Gioconda (1876).
Verdi constrói uma impressionante e colorida cena, mas não está atento à unidade estrutural. Ele, certamente, já tinha abandonado a fórmula antiga do concertato, mas este
final em Aida revela-se mais um agregado de números dentro de um grande número,
incluindo o Balé. No caso do Salvator Rosa, Gomes propõe um início com figuração rítmica
e exposição de um tema solístico que aparece diretamente nas duas vozes principais.
Inclui ainda um segundo tema em cantabile, mas é aquele primeiro que, em verdade,
será usado na repetição com os demais solistas e coro. Por último, a peroração final não
é feita com retomada temática, apenas um fecho de unidade (Figura 22) com desenho
rítmico retomado do que já tinha sido apresentado e uma curta reafirmação tonal. De
qualquer forma, é interessante verificar como este Finale do Salvator Rosa prenuncia de
forma concreta aquilo que Ponchilli mais adiante levará à condição de um paradigma do
período da Transição para os finais de ato.
Apenas para melhor ilustrar esta discussão, citam-se na sequência os exemplos
musicais do Lo Schiavo para que se identifique a adesão de Gomes ao modelo demarcado
por Ponchielli, ainda que de forma mais compacta (Figura 24). Tanto isto é verdade que a
secção solística (Figura 25) é retomada de imediato em uma seção de repetição com sucessivas entradas do tema principal na voz do tenor (Americo) e, posteriormente, do barítono (Iberê) com apoio do coro e demais solistas. A seção cadencial é curta e a peroração
final (Figura 26) é extremamente similar ao Finale já mencionado do Salvator Rosa (ver
Figura 23).
Figura 19. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.
Figura 20. Seção solística – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.
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214
Figura 21. Seção de repetição – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.
Figura 22. Seção cadencial – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.
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215
Figura 23. Peroração final sem retomada temática – A. Carlos Gomes, Salvator Rosa, Finale do segundo ato.
Figura 24. Seção rítmica – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.
Figura 25. Seção solística – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.
Figura 26. Peroração final – A. Carlos Gomes, Lo Schiavo, Finale do segundo ato.
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216
Assim, esta estruturação do Finale assume característica marcante e específica
desse período dito de transição e enuncia-se como uma das contribuições desses compositores ao desenvolvimento do melodrama italiano da segunda metade do século XIX.
Uma de suas peculiaridades é o fechamento da unidade dramática, o qual foi
sumarizado no Quadro 2. Entretanto, convém aprofundar a discussão sobre um desses
tipos de finalização, a peroração final com retomada temática, ainda que sem este título,
foi muito bem identificado por Cesari (2002)4 e também mencionada por Nicolodi (2002).
O que se propõe agora é uma ampliação deste conceito com uma melhor caracterização
de seus componentes. Neste sentido, alguns exemplos podem auxiliar no seu
entendimento.
Novamente, Carlos Gomes e Il Guarany permitem caracterizar este tipo de
fechamento. Exatamente no final do quarto ato se vê o uso de um dos temas principais,
apresentado em dinâmica fortíssima e com pleno significado. Aqui, Gomes renuncia
categoricamente a um final típico de afirmação tonal e usa como fecho a simples mas
poderosa reapresentação do tema da pureza, altivez, bravura e coragem de Pery, isto é,
um modelo exemplar de bon sauvage (Figura 27).
Figura 27. Compassos finais do último ato. Veja-se o uso do motivo de Pery – A. Carlos Gomes, Il Guarany,.
Em La Gioconda identifica-se o modelo mais bem acabado para este tipo de fechamento. Logo após o coup de théâtre da revelação do corpo de Laura, para comentar e
concluir a cena catastrófica, a orquestra retoma, exatamente, o tema do largo concertato
(Figura 28).
Figura 28. Finale do terceiro ato – A. Ponchielli, La Gioconda.
...........................................................................
4
“Nei Finali concertati la scomparsa della Stretta è compensata dalle cosiddette perorazioni, cioè dalla ripresa
orchestrale, a tutta forza, della frase principale del Largo concertato, che assolve alla medesima funzione di
chiudere l’atto in modo musicalmente eclatante” (Cesari, 2002, p. 6).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
217
Nessa mesma linha, exemplifica-se o final de I Lituani, estreado no Scala em
1874. Após uma muito bem elaborada cena final, do ponto de vista harmônico, Ponchielli
encerra a ópera com poucos compassos em que retoma de forma grandiosa um tema
muito recorrente desde a sinfonia da ópera, o qual pode ser ligado a figura de Walter/
Corrado, o herói que se imola em nome da afirmação da pátria Lituana (Figuras 29 e 30).
Figura 29. Na Sinfonia de I Lituani aparece pela primeira vez o tema relacionado com Walter, que será retomado ao
longo da ópera.
Figura 30. Compassos finais do último ato em que, após a conclusão coral, a orquestra retoma o frase relacionada
com Walter (assai largamente com molt’anima) – A. Ponchielli, I Lituani.
A estrutura da solita forma está praticamente ausente dos finais de ato das óperas
do verismo. Entretanto, Mascagni e Leoncavallo, mesmo longe de Gomes, Ponchielli e
Marchetti, não se furtam a esta fórmula da retomada do tema principal como resumo de
ato, ou mesmo de finalização da ópera, principalmente naquelas de um ato. Esse é o caso
de Cavalleria Rusticana (1890) (Figura 31) e Pagliacci (1893) (Figura 32).
Figura 31. Final da ópera – P. Mascagni, Cavalleria Rusticana.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
218
Figura 32. Final da ópera – R. Leoncavallo, Pagliacci.
O jovem Pucinni, ainda dando seus primeiros passos com Le Villi e Edgard, parece
não ficar alheio a essa possibilidade. No final do primeiro ato de Le Villi (1884) introduz
uma conclusão orquestral de 17 compassos com dinâmica fortissíssimo e textura densa
de orquestra (Figura 33). O desenvolvimento é feito sobre elementos temáticos da
Preghiera (Angiol di Dio), não havendo a reprodução literal de uma frase, como visto no
exemplo citado de Leoncavallo.
Figura 33. Primeiro ato, Preghiera – G. Puccini, Le Villi.
Na Manon Lescaut, sua primeira obra de afirmação no cenário lírico, o compositor também utiliza o mesmo sistema de final (Figura 34)
Figura 34. Final do terceiro ato – G. Puccini, Manon Lescaut.
Um compositor mais afastado desse grupo, em termos temporais, é Umberto
Giordano. Ele também aproveita este processo de resumo musical para a conclusão de
atos. Suas citações não chegam a ser literais como nos casos antes citados, mas o processo,
em essência, é o mesmo, assim como seu efeito. Em Andrea Chénier (1896), essa agora
quase convenção, aparece tanto no final do terceiro como do quarto ato. No primeiro
caso, a conclusão é curta, mas com tempo dramático muito adequado, pois há uma ligeira
diminuição de intensidade de eventos musicais nos compassos que antecedem esse final,
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
219
correspondendo ao momento em que os juízes discutem o veredito. Quando este é dado,
e Chénier é condenado, o fecho orquestral surge de forma justa. Ele não cita temas anteriores, usa apenas um fragmento de material da longa cena do julgamento, mas o uso
declaratório da orquestra, com instrumentação plena e andamento larghissimo é utilizado
da mesma forma que nos outros exemplos (Figura 66). Ao final da ópera, o mesmo ocorre,
de forma mais extensa e usando material temático mais identificável com o desenvolvimento do último dueto entre Andrea e Magdalena. A textura orquestral é a mesma
dos demais exemplos e a indicação de andamento, outra vez, pede grandioso (Figura 35).
Figura 35. Final do terceiro ato – U. Giordano, Adrea Chénier.
Figura 36. Final do quarto ato – U. Giordano, Adrea Chénier.
Francesco Ciléa é um compositor ainda mais tardio que Giordano ao período
em discussão, mas fará uso desse procedimento. Isto revela o intenso impacto causado
por esse grupo de compositores (Gomes, Ponchielli e Catalani) iniciais ao período de transição, cujos resultados ainda podem ser sentidos na virada para o século XX. O exemplo
de Ciléa ocorre ao final de terceiro ato da Adriana Lecouvreur (1902). Após a cena de intensa dramaticidade em que Adriana recita o monólogo de Fedra, o final do ato ascende
a um grau insuportável de tensão com a afronta dissimulada de Adriana para com a Principessa di Bouillon. Essa carga emocional se consubstancia e se exorta na conclusão orquestral do ato, com a retomada do tema do cantabile que acompanha a recitação de Adriana,
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
220
agora densamente orquestrada e em dinâmica fortíssimo (Figura 37). Apesar da enorme
distância, 1874-1902, é interessante comparar a similaridade entre esse final, inclusive a
indicação interpretativa (largamente) daquele usado por Ponchielli em La Gioconda.
Figura 37. Final do terceiro ato – F. Cilea, Adriana Lecouvreur.
A quantidade de exemplos poderia ser maior e permite concluir que esta fórmula
para fechos de atos conquistou a preferência dos compositores do período de transição e
se estendeu pela Giovane Scuola e seu efeito dramático é tão efetivo que estendeu-se
até o início do século XX.
Considerações finais
Entre as várias possibilidades de abordagens para se analisar Antônio Carlos
Gomes e sua obra, uma das mais relevantes é considerá-lo como expressivo participantes
da história do melodrama italiano da segunda metade do século
Identifica-se em Antônio Carlos Gomes um artesão atento com o acabamento
de sua fatura, cioso da qualidade de seu produto e, paralelamente, revela-se um compositor
de inequívoca competência técnica em seu metier, contribuindo para o desenvolvimento
do melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Juntamente com Ponchielli e
Catalani, formam o grupo mais representativo do período de transição. Nesse sentido,
Gomes e Ponchielli são importantes nomes que contribuíram para o desenvolvimento do
melodrama italiano na segunda metade do século XIX. Se Ponchielli tem sido mais estudado
neste contexto, não se pode negar a capacidade de Gomes em perceber o ambiente de
transformação em que se encontrava e procurar um estilo próprio, o que resultou em
uma obra, talvez irregular, mas sempre evolutiva.
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A influência do simbolismo nas óperas
de Alberto Nepomuceno
Rodolfo Coelho de Souza
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto
A despeito de que Nepomuceno é conhecido principalmente pela sua obra
instrumental – sinfônica e de câmera – ou por sua obra vocal de câmera, devemos reconhecer que a ópera foi o gênero em que empreendeu seus projetos mais ambiciosos e
parte substancial de sua energia criativa. Isso se deveu a dois fatores. O primeiro é que no
Brasil de seu tempo a ópera era o gênero em que um compositor se consagrava. Concertos
de câmera eram raros e concertos sinfônicos mais raros ainda. Aliás, foi justamente devido
ao empenho dos compositores daquela geração, desde Leopoldo Miguez até Francisco
Braga, que o concerto sinfônico passou a ter uma presença significativa na vida cultural
brasileira, ainda que de início quase que restrita só à capital federal e umas poucas cidades
provinciais com maior população e riqueza crescente, como São Paulo. No período em
que viveu no Recife, entre os oito e vinte anos de idade, Nepomuceno estudou com o
maestro e compositor Euclides d’Aquino Fonseca (1854-1929). Em 1883, participou como
violinista da estreia da ópera Leonor de Fonseca. Como todos de sua geração, Euclides
Fonseca também almejava consolidar sua reputação como compositor de óperas. O aluno
seguiria os passos do mestre.
O segundo fator foi Carlos Gomes. A fama conquistada pelo compositor na Itália
graças a Il Guarany estabeleceu um paradigma de carreira de sucesso que a maioria dos
compositores da geração seguinte almejou repetir. Maria Alice Volpe (2004, p. 2) afirma
que “os paradigmas musicais nacionalistas construídos por Carlos Gomes persistiram nessa
época crepuscular [fim do Império e início da República] até o advento do modernismo
brasileiro”. Para Nepomuceno o desafio representado por Carlos Gomes foi palpável e
imediato. Seu primeiro projeto operístico, iniciado em 1887, mas nunca terminado, seguia
a mesma senda aberta em 1870 por Il Guarany de Carlos Gomes. Volpe (2002) demonstra
que a música brasileira respondeu inexoravelmente, naquele período, à hegemonia da
literatura no imaginário da intelectualidade brasileira. Por isso, o romance de José de
Alencar, no qual a ópera de Gomes foi baseada, tornou-se paradigmático para os músicos
da época ao construir uma espécie de mito de conciliação entre as civilizações europeia e
nativa brasileira, servindo de inspiração para uma dezena de óperas compostas no Brasil
de acordo com o modelo indianista de Carlos Gomes.
A Porangaba de Alberto Nepomuceno teria sido mais uma dessas óperas indianistas. Planejada para ter três atos, utilizava como libreto um poema de Juvenal Galeno
baseado em uma lenda cearense. A composição foi concebida na época de sua viagem
para Roma, onde o compositor começou seus estudos europeus. Parece evidente que
Nepomuceno teve o sonho juvenil de repetir na Itália o sucesso de Carlos Gomes, compondo uma ópera de feitio semelhante à da mais famosa do seu predecessor. O catálogo
das obras do compositor (Corrêa, 1985) registra que desse projeto teria restado apenas o
manuscrito dos Prelúdios para os atos I e III, uma Marcha dos Índios e um Bailado. O
catálogo afirma que a orquestração teria se extraviado, embora nos pareça mais provável
que ela nunca tivesse sido encetada, assim como a composição da música para as demais
cenas. Mais plausível é que, ao chegar a Roma, Nepomuceno tivesse sido absorvido pelos
estudos no Liceo Musicale Santa Cecília e desviado sua atenção para a música de câmera,
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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envolvendo-se no projeto, também inacabado, de compor três quartetos de cordas. Os
quartetos ainda puderam ser completados por musicólogos porque os esboços restantes
são bem mais completos do que os da ópera.
Nepomuceno tinha bastante sensibilidade para as oportunidades. Quando se
envolveu no movimento abolicionista tratou de compor uma Dança de Negros. Quando
se envolveu com os ideais republicanos, compôs hinos e incorporou traços da linguagem
wagneriana para marcar diferenças com a música do período do Império. Se tivesse insistido na composição de Porangaba teria persistido num anacronismo, ao que Nepomuceno não era muito propenso. Se há uma acusação sobre os percursos de seu estilo que
parece pertinente é que ele se curvava com muita facilidade a influxos de ocasião, incorporando com excessiva rapidez a influência dos estilos com que o compositor tomava
contato. Nepomuceno tinha um espírito camaleônico que lhe permitia incorporar, em
pouco tempo, traços estilísticos dos autores que admirou momentaneamente. A longo
prazo, isso dificultou a compreensão de sua obra pelas gerações seguintes, facilitando
que apenas os elementos vistos como precursores do nacionalismo modernista fossem
valorizados pela musicologia do século vinte, em detrimento dos outros aspectos em que
ele visivelmente empenhou mais energia criativa. Nesse sentido, ter deixado inacabada –
ou ao que parece na verdade apenas mal começada – a composição de Porangaba, acabou
sendo um benefício para sua trajetória, pois de outro modo ele poderia ter ficado marcado
como mais um epígono de Carlos Gomes.
Quanto à parceria com Juvenal Galeno, que forneceu o libreto para Porangaba,
registre-se que o poeta, vinte e oito anos mais velho do que Nepomuceno, era naquele
momento a figura mais proeminente das letras do Ceará, terra natal do compositor. Galeno,
considerado pioneiro dos estudos do folclore nordestino, escreveu os versos de Porangaba
sob a influência direta de Gonçalves Dias, que conheceu pessoalmente em 1859 quando
aportou em Fortaleza uma Comissão Científica de Exploração na qual Gonçalves Dias encabeçava uma missão etnográfica.
Não obstante o projeto de Porangaba ter permanecido incompleto na gaveta
do compositor, o vínculo afetivo de Nepomuceno com a literatura regional nordestina
ficou registrado em sua obra por cinco canções sobre versos de Galeno, entre elas Tu és o
sol (1894), Medroso de amor (1894), Cativeiro (1896) e Cantiga triste (1899). A recorrência
da utilização de versos de Galeno testemunha a relevância que esse poeta conservou no
imaginário do compositor ao longo dos anos. A prova definitiva disso é que a última canção
composta por Nepomuceno, A Jangada, de 1920, utiliza, ainda uma derradeira vez, versos
de Galeno.
Além de Galeno mais dois poetas cearenses figuram no cancioneiro de Nepomuceno, quais sejam Antonio Salles e Frota Pessoa. Entretanto, exceto naquela última
canção, Nepomuceno jamais se revelou interessado em colocar em música versos inspirados em temas do folclore nordestino. Entre os autores utilizados em suas dezenas de
canções figuram apenas mais três poetas nordestinos, os maranhenses Gonçalves Dias e
Raimundo Corrêa e o sergipano Hermes Fontes, contudo as poesias escolhidas trazem
sempre o caráter genérico do lirismo romântico, parnasiano ou simbolista, o que permitiria
terem sido compostas em qualquer outro lugar de fala portuguesa. Essa constatação
conflita seriamente com a visão de que a obra de Nepomuceno, como um todo, antecipa
as preocupações folcloristas do nacionalismo modernista.
Afirmamos acima que o espectro de Carlos Gomes projetou uma sombra sobre
os projetos operísticos de Nepomuceno. Isso fica particularmente evidente no caso de O
Garatuja. Assim como Porangaba, esta ópera ficou inacabada. O catálogo de Alvim Corrêa
(1985, p.19) relata que se conhece apenas o manuscrito do Prelúdio e do primeiro ato, supostamente completado, mas até hoje nunca executado. Note-se, porém, que o Prelúdio
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foi estreado ainda em 1904, pela Orquestra do Instituto Nacional de Música, regida pelo
compositor. Naquele ano, o principal projeto lírico de toda a carreira de Nepomuceno, a
ópera Abul, ainda estava por terminar e de fato sua composição só foi completada no ano
seguinte. A estreia ainda teria que aguardar uma montagem, com cantores italianos, realizada no Teatro Coliseu de Buenos Aires em 1913. Parece estranho imaginar que Nepomuceno interrompesse a composição de Abul, bem avançada naquele momento, para
iniciar outro projeto operístico. É possível que O Garatuja tenha sido inicialmente concebido apenas como um poema sinfônico a partir do romance de Alencar. Por isso, o Prelúdio teria sido terminado e executado ainda em 1904. O sucesso da obra na estreia pode
ter estimulado o compositor a cogitar transformar do Prelúdio numa eventual abertura
para uma ópera que, entretanto, nunca concluiria.
O aspecto mais intrigante do projeto de O Garutuja é que Nepomuceno tenha
voltado a buscar em um romance de José de Alencar o material temático para o que
haveria de ser sua derradeira ópera. Carlos Gomes utilizara o primeiro romance de Alencar,
de 1853, para forjar seu maior sucesso e Nepomuceno buscava novamente em Alencar,
na primeira parte de Alfarrábios, um romance em forma de trilogia, escrito vinte anos depois, o enredo para uma ópera. O romance de Alencar de 1873 porta um subtítulo, Crônicas
dos Tempos Coloniais, e tem mais duas partes, O Ermitão da Glória e A Alma do Lázaro. O
interesse pela música colonial brasileira – concretizada na recuperação por Nepomuceno
da Missa de Réquiem do Padre José Maurício Nunes Garcia, aliás estimulada por Taunay
– pode ter suscitado seu interesse por Alfarrábios. Todavia argumentaremos, mais adiante,
que é mais provável que a sedução tenha advindo da própria composição do personagem
do romance. Por outro lado, caso Nepomuceno estivesse de fato buscando um material
que lhe permitisse desenvolver temas do folclore brasileiro, teria sido mais natural que
tivesse utilizado o último romance de Alencar, O Sertanejo, obra de 1875. Sob este ponto
de vista Alfarrábios fornece o menos provável de todos os argumentos. Lembremos ademais que, em 1904, ao esboçar O Garatuja, a memória da Guerra de Canudos de 1896-97
estava mais vívida do que nunca no imaginário dos brasileiros e a publicação, em 1902,
do romance Os Sertões de Euclides da Cunha tornava o tema ainda mais candente. Sucede,
entretanto, que Nepomuceno já havia escrito duas óperas dramáticas. Certamente o assunto de O Sertanejo de Alencar não forneceria material adequado para uma comédia. Decidido
em tentar a sorte neste outro gênero, o material encontrado em Alfarrábios pareceu a Nepomuceno a alternativa adequada, sem mencionar a atração representada pelo nome de Alencar.
Se há no Prelúdio do Garatuja materiais musicais que parecem aludir a fontes
folclóricas brasileiras, creio que é muito mais plausível relacioná-los ao caráter de comédia
que esta ópera pretendia desenhar. A ópera buffa italiana buscara no cancioneiro popular
elementos de estilo que lhe facilitaram encontrar o tom adequado para a comédia.
Nepomuceno conhecia muito bem essa tradição e a prezava. Nas suas canções em que o
texto sugeria um viés cômico, como em Xácara op.20 n.1 (1899) ou nas Trovas op.29 n.1
e 2, ele utilizou ritmos populares de seu tempo, como o fandango (de origem ibérica), a
habanera e o xote (corruptela de schottisch), para atingir esse mesmo fim. Nos anos anteriores Nepomuceno envolvera-se em ferrenhas polêmicas com o crítico Oscar Guanabarino a respeito da ópera italiana. Portanto é compreensível que, ao abordar pela primeira
vez o gênero da ópera cômica, ele tivesse presente em sua mente a tradição italiana. O
que transparece no Prelúdio de O Garatuja não seria, portanto, o folclorismo nacionalista
que monopolizou os modernistas, mas sim a fórmula genérica do scherzo, diversas vezes
revisitada por Nepomuceno em suas obras, de modo semelhante a Beethoven ou Verdi
que utilizaram melodias e ritmos populares com o mesmo fim.
O grande paradoxo, que permanece incontestado ainda hoje, é que se nas duas
óperas de Nepomuceno que jamais subiram ao palco ainda se poderia cogitar de motiAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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vações nacionalistas, nas duas outras, terminadas e montadas, não se percebe nenhum
resquício evidente de folclorismo. Por isso, para viabilizar o rótulo de precursor do nacionalismo a ele atribuído pela historiografia modernista, houve que relegar ao esquecimento as duas óperas acabadas que, entretanto, dão testemunho de um grande
empenho de se continuar a tradição operística brasileira na geração pós Carlos Gomes.
As duas óperas em questão, Artémis, levada à cena em 1898, e Abul, composta
entre 1899 e 1905, mas só montada em 1913, tem muito em comum, seja na linguagem
musical, seja no enredo dramático. Quanto ao enredo, elas têm um aspecto comum
também a O Garatuja. Os personagens centrais das três óperas são artistas plásticos. O
personagem alcunhado de garatuja, cujo nome de batismo seria na verdade Ivo das Ervas,
é um jovem pretendente a pintor que no final da trama abandona os pincéis para se tornar escrevente de cartório e agradar o sogro que, em troca, lhe concede a mão da filha. O
enredo do romance, que lembra uma comédia de Martins Pena, sugere personagens
cômicos e situações picarescas. O libreto que foi elaborado pelo próprio Nepomuceno
deveria explorar esse potencial cômico, mas a julgar pelo libreto algo descosido de Abul,
também escrito pelo compositor, dificuldades na adaptação podem explicar, pelo menos
em parte, porque a ópera ficou inacabada. A decisão de Nepomuceno de escrever o libreto
de duas de suas óperas certamente foi influenciada pelo precedente de Richard Wagner.
O wagnerianismo, com todas as suas implicações musicais e literárias, é uma referência
marcante na linguagem de Nepomuceno em geral e sobretudo na operística. Mesmo O
Garatuja, que à primeira vista parece muito distante de Wagner, numa inspeção mais
atenta revela certos paralelismos com Os Mestres Cantores de Nürenberg, não obstante
o caráter naturalista do enredo, vazado de um caráter irônico, que está muito mais próximo
do verismo de Il Pagliacci de Ruggero Leoncavallo do que das mitologias de Wagner.
O pretexto para a ação das outras duas óperas, tanto de Artémis como de Abul,
também gira em torno de artistas plásticos, desta vez escultores. A este respeito há que
se considerar a influência da estreita amizade de Nepomuceno com os irmãos Bernardelli,
artistas plásticos que militaram na Academia Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Os irmãos Bernardelli, Henrique, Félix e Rodolfo, respectivamente pintores os dois primeiros e escultor o terceiro, patrocinaram a primeira viagem de estudos do compositor à
Itália, quando uma bolsa do governo imperial lhe foi rejeitada e a República ainda não havia sido instaurada para permitir que esse compromisso fosse resgatado. O modelo de
criação e ensino propagado pela Academia de Belas Artes, baseado na emulação das
obras dos grandes mestres, gerou uma marca profunda no espírito de Nepomuceno.
Podemos reconhecer, até com certa facilidade, como a música de Nepomuceno dialoga,
ao longo de toda sua vida, com as obras referenciais que admirava, de compositores de
sua geração ou das imediatamente anteriores, entre os quais podemos posicionar, com
certeza, Brahms, Wagner, Liszt, Grieg, Fauré e mesmo Debussy. Esse princípio da “imitação
dos grandes mestres,” que chega a representar um maneirismo estilístico para a obra dos
Bernadelli, é também essencial para se compreender a música de Nepomuceno, que ao
contrário de buscar a inovação a partir da negação do passado, como haveria de ser o
mote dos modernistas, acredita na releitura criativa como a fonte maior de inspiração do
artista.
Em Artémis, o personagem principal, Helio, é um escultor que abandona sua família, obcecado com a perfeição de uma estátua de Artemis que está esculpindo. Em Abul
o tema principal é a religião monoteísta do povo judeu exilado na Babilônia. O personagem
principal, Abul, é filho de Terak, um escultor de ídolos pagãos, a quem o filho rejeita, passando a desobedecê-lo, movido por uma fé monoteísta que é contrária à idolatria. Em
todas as três óperas acima mencionadas o enredo é fundamentalmente metadiscursivo,
uma vez que se trata de uma obra de arte que coloca em questão os valores éticos das
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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próprias obras de arte materializadas como esculturas ou pinturas. Nisso reconhecemos
um traço essencialmente simbolista na concepção de todas elas. É fundamental salientar
que a preocupação metalinguística é pouco relevante para o pensamento modernista,
mas se torna novamente importante nas preocupações do pós-modernismo, o que justifica,
pelo menos em parte, o resgate da obra de Nepomuceno em curso nesta geração, após
décadas de esquecimento pelas gerações modernistas que queriam enterrar todas as
manifestações artísticas que exalassem o que era considerado o mau odor do academicismo.
Essas considerações trazem à baila outro tópico candente na recepção da obra
de Nepomuceno após sua morte: a questão do canto em português. Essa deveria ser uma
questão importante na reavaliação das óperas de Nepomuceno, todavia ela permanece
condicionada pelos interesses da propaganda modernista. Segundo os relatos da historiografia influenciada pela ideologia modernista, desde Renato Almeida até Luis Heitor
Correa de Azevedo e Vasco Mariz, Nepomuceno foi o compostor da sua geração que
assumiu a bandeira da defesa do canto em português. Alvim Corrêa (1985, p.7) afirma
que, em 1895, Nepomuceno inicia “uma patriótica e árdua campanha pela nacionalização
definitiva de nossa música erudita, ao impor o canto em vernáculo nas nossas salas de
concerto” criando o lema que “não tem pátria um povo que não canta em sua língua.”
Ora, tal uma campanha de fato nunca existiu. O que ocorreu em 1895 foi uma polêmica
jornalística entre o crítico Oscar Guanabarino e o compositor. Avelino Romero Pereira
(2007, p. 113) relata que o motivo da disputa “nasceu de um comentário feito à canção
Por mim?, do francês Gabriel Dufriche, cantada pelo barítono Carlos de Carvalho” que foi
considerada por Guanabarino em sua crítica como uma “pretensa imitação do Amo-te
muito de Nepomuceno”. O fato de um francês escrever sobre versos em português deu
margem a que os contendores reeditassem uma versão tropical da Querelle des Bouffons,
como aquela em que Rousseau defendeu o canto em italiano e Rameau o canto em francês.
Neste caso Nepomuceno defendeu outro crítico, Rodrigues Barbosa, que congratulou o
compositor por usar versos em vernáculo, enquanto Guanabarino assumiu uma posição
que aos modernistas interessou julgar como italianófila. Pereira (2007, p. 120) mostrou
ademais que o lema acima citado não foi criado por Nepomuceno, mas é uma passagem
das notas biográficas de Nepomuceno que Rodrigues Barbosa escreveu. No mais, se por
um lado a canção cantada em português foi de fato o pretexto que detonou a diatribe,
por outro ela logo desandou em ofensas pessoais e numa disputa em que cada lado procurava pavonear sua erudição. O certo, porém, é que nunca esteve em disputa que uma
ópera pudesse ser cantada em português, uma vez que o próprio Guanabarino argumentava que o canto em português não era novidade, nem sequer na ópera, lembrando
o precedente de Carlos Gomes e Henrique Alves de Mesquita. Por outro lado Nepomuceno
também nunca se revelou intransigente a esse respeito, nem na teoria nem na prática,
bastando lembrar que escreveu canções sobre poemas em língua estrangeira em diversos
momentos de sua carreira, até perto do fim, quando compôs Le Miracle de la Semence
sobre versos em francês de Jacques d’Avray (pseudônimo de Freitas Valle). Como afirma
Ana Balakian (2000, p. 15) “com o simbolismo, a arte deixou realmente de ser nacional e
assumiu as premissas da cultura ocidental”.
Deixando de lado as hoje irrelevantes questões de plágio levantadas no debate
de Nepomuceno com Guanabarino, salientemos que nessa discussão foram revisitados
alguns argumentos sobre a fonética e a prosódia do italiano que serviram de fundamento
para a comparação com o francês no caso da Querelle e com o português no caso da
Campanha. Essas questões foram retomadas novamente, por exemplo, no Congresso sobre
a Língua Portuguesa Cantada, promovido por Mario de Andrade, que teve recentemente
uma segunda edição, demonstrando que o tema continua longe ter a uma posição conAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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sensual. Outros aspectos importantes podem ser extraídos da revisão daquele debate. É
inegável que Guanabarino se identificava com a posição conservadora dos parnasianos,
ao deixar transparecer que o canto em língua estrangeira seria signo da música culta enquanto o português, uma língua inculta (certamente uma paráfrase do verso “Última flor
do Lácio, inculta e bela” de Bilac, publicado em 1888) seria menos adequada ao canto.
Nepomuceno, por outro lado, identificava-se com o projeto positivista progressista republicano, argumentando que o texto cantado devia ser inteligível para o público. Portanto,
em sua opinião, as óperas em língua estrangeira deviam ser traduzidas para a língua local,
como se fazia habitualmente na Europa. Em última instância o debate revela um Nepomuceno acostumado à visão cosmopolita dos problemas, em vez de, como se propalou,
um compositor entrincheirado em posições nacionalistas, enquanto Guanabarino
meramente resguardava hábitos provincianos. O projeto republicano de identidade
nacional, com que Nepomuceno sintonizava, não implicava na exclusão da cultura universal
e sua substituição por uma cultura regional, pelo contrário, considerava que cabia aos
homens cultos ilustrar o povo através da educação, ao mesmo tempo em que se reforçaria
a identidade nacional pela incorporação de elementos da cultura popular.
Os quatro projetos operísticos de Nepomuceno percorrem todo o espectro de
tendências do movimento romântico brasileiro. O primeiro desses projetos, Porangaba,
situa-se na esteira do nacionalismo indianista da segunda geração romântica da qual
José de Alencar é principal protagonista. Se concretizado naquele momento o projeto padeceria de um patente anacronismo porque buscava reviver um modelo operístico que o
próprio Carlos Gomes já abandonara. Seu segundo projeto, Artémis, com o subtítulo de
“episódio lírico”, baseou-se num libreto de Coelho Neto e representa uma adesão em
larga escala ao Simbolismo, sintonizado ainda com o gosto parnasiano predominante na
sociedade carioca da época que se torna marcante devido ao texto de Coelho Neto. Seu
terceiro projeto, Abul, é ainda mais abertamente Simbolista, voltado todavia ao gosto
cosmopolita das plateias italiana e argentina. Traz o subtítulo “ação legendária” e tem
como pano de fundo a versão judaico-cristã de um tema filosófico-religioso de conteúdo
similar aos mitos nórdicos das óperas de Wagner, que em última instância são a própria
matriz do movimento Simbolista. O derradeiro projeto, O Garatuja, representaria uma
adesão ao realismo romântico, mas como jamais foi concluído conclui-se que as duas
óperas de Nepomuceno representadas durante sua vida testemunham um compromisso
profundo com o projeto Simbolista. Lembremos ademais que duas das primeiras canções
de Nepomuceno utilizaram poemas em francês de Maeterlinck, o representante de maior
visibilidade do simbolismo entre os poetas de língua francesa em seu tempo. E também
que, em sua última viagem ao continente europeu, Nepomuceno visitou Debussy, seu conhecido desde a estreia de L’aprés midi d’um faune e dele recebeu uma partitura autografada de Pélleas et Melisande, ópera que representa a culminação do simbolismo operístico na França.
Se a campanha pelo canto em português tivesse existido de fato como relatado
pela historiografia modernista, seria natural que as duas óperas levadas à cena por Nepomuceno previssem apenas execuções em português, mas tal não ocorreu. A primeira
encenação de Artémis no Rio de Janeiro foi de fato cantada em português, mas a partitura
foi publicada em versão bilíngüe português-francês, e em algumas passagens a prosódia
do francês parece se adaptar melhor à música do que a versão em português (Exemplo
1). Seria isso um indicativo de que Nepomuceno pensou a música para o texto em francês,
almejando uma representação europeia? Sérgio Alvim Corrêa (1985, p. 10) relata um encontro de Nepomuceno com Mahler em 1900, no qual o brasileiro teria pleiteado uma
montagem do Artémis em Viena que, todavia, não aconteceria. Se isso de fato aconteceu
seria natural que existisse uma tradução para o alemão que, entretanto, não se conhece.
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Seja como for, é patente que Nepomuceno não considerava que cantar suas óperas em
português fosse um requisito imprescindível.
Exemplo 1. Fragmento de Artemis em que Helio conversa com sua escultura.
É flagrante nessa passagem que a linha vocal parece mais ajustada ao texto em
francês do que em português. Por exemplo, a palavra Artemis em francês é oxítona, o que
faz a sílaba tônica coincidir com o fim da frase dada pelo acompanhamento pianístico que
converge para a terça Dób-E. Saliente-se, além disso, a linguagem intensamente cromática,
evidentemente inspirada na do Tristão de Wagner. Esse é um signo inquestionável de
uma pertença simbolista.
Do mesmo modo, o Abul parece muito mais afeito à prosódia do italiano do que
à do português. Mas nesse caso não há dúvida de que Nepomuceno considerava prioritárias
as montagens em Buenos Aires e Roma, que aconteceram em italiano. Seu acalentado
sonho de repetir o sucesso de Carlos Gomes na Itália exigia que o libreto fosse compreensível ao público de Roma. Infelizmente as circunstâncias conspiraram contra seu desejo.
Afinal, Nepomuceno deveria ter imaginado que uma ópera que soava wagneriana e tinha
o handicap de uma ação quase estática, e ainda copiava soluções batidas da Grand Opera
francesa, não poderia agradar aos italianos. Mas talvez ele tivesse confiado que uma certa
semelhança com o Otello de Verdi e os libretos de cunho religioso de Boito fossem suficientes para despertar a simpatia do público romano. Por outro lado, quanto à montagem
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no Rio de Janeiro, ter sido ela feita em português respondia coerentemente à lógica defendida por Nepomuceno na polêmica com Guanabarino: uma ópera deveria ser encenada,
sempre que possível, na língua falada pelo público local.
Se, como verificamos acima, o simbolismo de Artémis descende diretamente
do wagnerianismo alemão, a linguagem de Abul, por outro lado, parece prestar tributo a
um gosto francês fin de siècle, talvez até decadentista. O cromatismo wagneriano tornase abrandado por um diatonismo modal, que revela possíveis influências de Debussy,
Fauré e da Schola Cantorum em geral, instituição por onde passara Nepomuceno durante
seus estudos na França. A passagem transcrita no Exemplo 2 comprova essa intrigante
tendência à hibridação. A tonalidade de Dó oscila entre maior e menor, utilizando acordes
característicos dos dois modos indiscriminadamente. A escala descendente na mão direita
que abre esta passagem apresenta o modo Frígio de Dó sobre um pedal de tônica, com a
quinta justa. O paralelismo no movimento das vozes parece fazer referência à técnica de
Debussy, assim como a progressão por oitas e quinta paralelas na mão esquerda. O Ré
bemol que marca o modo frígio dessa passagem revela-se, no fim do segundo compasso,
como um acorde de sexta napolitana sem inversão (bII) que é imediatamente reinterpretado como dominante do acorde de Solb maior que se segue.
Exemplo 2. Fragmento de Abul, início da Dança Sacra do terceiro ato.
Como devemos interpretar essa passagem abrupta de Dó para Sol bemol, antípodas no ciclo das quintas? É plausível fazermos uma associação simbólica a essa passagem,
reconhecendo as duas tonalidades como dois polos de um dualismo antitético, ou seja,
uma representação de luz e trevas, bem e mal, dó menor versus Solb Maior. Trata-se de
uma dança sacra, onde a música coloca em questão a oposição entre sensualidade e ascese religiosa. Se se trata de uma ópera simbolista é natural que Nepomuceno encontrasse
meios próprios à linguagem musical para representar esses conteúdos conceituais. A
passagem prossegue com uma volta também abrupta à Dó, sem que, entretanto, se ouça
a tônica. A tonalidade se torna perceptível apenas pelo retorno da dominante Sol maior,
precedida por uma subdominante alterada, Fá maior. A passagem que se iniciara em dó
menor devia fazer soar Fá menor, mas o que se ouve é uma subdominante maior, característica do modo de Dó maior. Essa inesperada e intrigante mistura de modos fazia parte
do vocabulário harmônico francês no final do século. No tratado de harmonia de Koechlin,
adotado no Conservatório de Paris, aparece explicitamente a recomendação de que é
permitida, no modo menor, a alteração cromática da subdominante, substituindo-a pela
subdominante do modo maior. Essa mistura paradoxal de modos gera um efeito de gosto
duvidoso, uma impressão de manipulação arbitrária das alterações cromáticas que é justamente o que permite a essa linguagem realizar a contrapartida musical dos jogos de
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palavras e significados caros à literatura simbolista. Note-se que no compasso 5 a
subdominante retorna como fá menor, enfatizando a oposição entre as subdominantes
maior e menor.
Flávio Cardoso Oliveira (2005) localizou o romance original sobre o qual
Nepomuceno baseou seu libreto. Trata-se de A Romance of the Faith de Herbert D. Ward.
Ward foi um pastor norte-americano que viveu na Nova Inglaterra e publicou alguns romances para mocinhas, de conteúdo moralizante, baseados em relatos pseudo-históricos,
ou mais precisamente pseudo-bíblicos. Por que teria Nepomuceno escolhido esse romance
para basear seu libreto? A moda do exotismo religioso era uma recorrência no fim do
século dezenove. Mas a explicação mais plausível é que Nepomuceno tenha recebido
esse romance de presente da cantora Roxy King, americana de nascimento, que cantou o
papel de Hestia na estréia de Artémis. Supõe-se que teria havido uma ligação afetiva
entre eles e que o libreto guarde significados simbólicos dessa relação. Mas há também
muitos elementos em Abul que lembram a Aída e o Otello de Verdi (a cena da preghiera
de Abul no ato II, por exemplo), assim como de Wagner, como o interlúdio e a procissão
do terceiro ato, que parecem fazer referência ao coro dos peregrinos de Tannhauser,
assim como a Danza sacra Del Fuoco parece uma referência às Walquírias.
Referências bibliográficas
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Balakian, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000 [1967, 1ª ed. em inglês].
Corrêa, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo Geral. Rio de Janeiro: Funarte,
1985.
Oliveira, Flávio Cardoso. A Ópera Abul de Nepomuceno e sua Contribuição para o
Patrimônio Musical Brasileiro na Primeira República. Tese de Doutorado. Campinas:
Unicamp, 2005.
Pereira, Avelino Romero. Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a
República Musical. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.
Volpe, Maria Alice. “Carlos Gomes: A persistência de um paradigma em época de
crepúsculo”. Brasiliana, v. 17, p. 2-11, maio 2004.
Volpe, Maria Alice. “Remaking the Brazilian Myth of National Foundation: Il Guarany”.
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ESTILO E RECEPÇÃO
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A filiação estética dos autores líricos
da Amazônia no Período da Borracha,
a partir de suas óperas
Márcio Páscoa
Universidade do Estado do Amazonas
Entre o último quartel do século XIX e a primeira década do século XX, a economia
da região Norte do Brasil concentrou-se quase totalmente na extração e comercialização
da borracha silvestre, com uma cadeia de interesses diretos e indiretos que estimulou
investimentos, recrutou força de trabalho em outras regiões brasileiras e no exterior, provocando mudanças absolutas nas capitais de Pará e Amazonas. Naquele momento, a contribuição da região para o PIB do país aproximava-se da soma de todas as outras.
Tal movimentação econômica tem seus primeiros indícios a partir da criação da
Província do Amazonas (1850), com instalação acontecida em 1852. A ideia então era
promover o desenvolvimento de uma das regiões territoriais mais vastas e pouco habitadas
do país, instalando estrutura administrativa estatal. As receitas da extração de borracha
apareceram lentamente a partir daí, havendo um crescimento exponencial significativo a
partir da década de 1870, com ápice por volta da virada do século XIX para o XX.
Como efeito disso, as capitais do Amazonas e do Pará se desenvolveram enormemente. As cidades passaram por remodelamento urbano, com influência clara do traçado cartesiano de Haussmann para Paris no século XIX, em que ruas perpendiculares e
paralelas deram nova organização ao cotidiano, permitindo a implantação rápida e pioneira
de benefícios tecnológicos, como a distribuição pública de luz elétrica, a conseqüente
malha viária de bondes à tração elétrica, sistema de águas e esgoto e o recolhimento de
lixo, sem mencionar serviços como o de limpeza pública. A quantidade de praças e jardins
também cresceu, concomitante ao novo modelo de cidade para qual edifícios públicos de
caráter monumental e referencial arquitetônico foram sendo erguidos. A composição
arquitetônica dos espaços sugere ainda a importância de certos setores e atividades sociais
e culturais.
Excepcionalmente interessante para este último caso é a da concepção dos teatros das capitais do Pará e do Amazonas. O Teatro da Paz, em Belém, que abriu as portas
em 2 de fevereiro de 1878, foi erigido em inegável estilo italiano, e o prédio, cuja sala acomoda quase mil lugares, ficou plantado no meio de uma vasta praça ajardinada, em que
se colocaram, coreto, pérgola, e, posteriormente, até mesmo um outro pequeno teatro.
O Teatro Amazonas, inaugurado em 31 de dezembro de 1896 possui, entretanto, estilo
eclético, valendo-se de um conjunto de características revivalistas que remetem a estilos
de épocas diferentes, desde os cânones renascentistas em diante. O acabamento externo
é mais sofisticado e a elaboração do Salão de Honra, ainda que de dimensão menor que
o do vizinho paraense, é muitíssimo mais complexa.
O Teatro Amazonas foi projetado para compor-se diante de uma praça pontuada
ao centro pelo monumento de abertura dos portos da Amazônia à navegação internacional,
marco referencial do crescimento da região. Monumento, calçamento da praça e, acima
de tudo o teatro foram obra de uma equipe de artistas italianos liderados por Giovanni
Capranesi e Domenico De Angelis, que também executaram algumas obras relevantes
em Belém. Especialmente De Angelis, que esteve várias vezes na Amazônia, foi quem
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
234
assinou alguns dos painéis e plafonds de maior valor artístico e histórico do período em
ambas as capitais.
A sofisticação dos teatros das capitais da borracha esteve fundamentada não
apenas no desejo, mas na necessidade de abrigar um volume de visitas de companhias artísticas nacionais e estrangeiras, bem como a crescente plateia destas urbes.
Os teatros predecessores de Belém e Manaus, antiquados ou precários, chegaram
a abrigar as primeiras temporadas de ópera destas capitais. Tal aspecto antiquado está
sugerido tanto pelas dificuldades em abrigar os novos modelos de espetáculo oitocentista
quanto pelos elementos visuais internos e externos, do mesmo modo que a precariedade
deve-se muito mais à dificuldade de manutenção de empreendimentos privados, como
eram todos.
Belém já tomara contato com modelos diferentes de ópera, e as suas variantes
possíveis de exibição, desde o século XVIII, enquanto Manaus vivenciaria tais experiências
nas últimas décadas do século XIX. As diferenças de população tendem a explicar isso. Por
ser mais antiga e atribuída de maior importância desde o início, Belém no início do século
XIX contava população superior a 20.000 pessoas, número não muito diferente do núcleo
urbano de Manaus ao fim deste mesmo século.
Essa população, constituída principalmente por imigrantes recentes, sobretudo
nordestinos em grande parte fugidos das dificuldades impostas por severos períodos de
seca, foi formada por um contingente estrangeiro bastante significativo. Assim como a
maior parte dos nordestinos, que tendiam a trabalhar diretamente na extração da borracha, os estrangeiros também parecem ter se concentrado em nichos. A maioria era portuguesa, que dominou quase de maneira monopolista o comércio varejista e de médio
porte. Ingleses e alemães, ainda que em número bem mais reduzido, também participaram
ativamente, dominando áreas de concessões e serviços públicos, assim como grandes
empreendimentos de navegação e comércio exterior. A presença de sírio-libaneses e judeus
marroquinos pela Amazônia Ocidental, mas especialmente em Manaus, foi igualmente
marcante, grupos geralmente associados ao comércio.
A população cosmopolita desta nova Amazônia, em que ainda estavam incluídos
italianos e um número variado de provenientes da Europa e América do Sul, fez com que
os hábitos, sobretudo das capitais, mudasse bastante. Manaus, que era menor, talvez
tenha sofrido maior impacto, crescendo num processo de cosmopolitismo, que ao fim do
período da borracha, faria a cidade desabar de modo devastador. Belém já trazia algumas
luzes de sua vivência como capital importante do período colonial e nisso o período decadencial encontrou certa contenção aos inevitáveis estragos. Talvez este mesmo motivo
explique o surgimento de Henrique Eulálio Gurjão (1834-1885).
Nascido na capital do Pará, ele possivelmente foi o mais mitificado dentre os autores do Norte brasileiro do século XIX. Guilherme de Mello, autor da primeira obra panorâmica sobre a História da Música no Brasil, escrevendo pouco mais de duas décadas
depois da morte do compositor paraense, considerava-o a síntese de “toda a antiga tradição
musical do Pará” (Mello, 1908, p. 346). O historiador baiano deu diversas informações
que seriam repetidas posteriormente pelos maiores estudiosos da música brasileira. Dele
sabe-se que o compositor nasceu em Belém, a 15 de novembro de 1834, filho de Ana Dorothéa de Andrade Gurjão e do Major Henrique Pedro Gurjão. Mello afirma que o músico
se valeu de uma pensão provincial, que lhe concedeu a Assembléia do Pará, através da lei
nº 218 de 16 de novembro de 1851, para ir estudar na Europa. Mas os 800$000 réis a que
fazia jus eram insuficientes e foi auxiliado por seus irmãos, Hilário Maximiano Antunes
Gurjão, que se tornara capitão de artilharia, e Francisco Pedro Gurjão, então um chefe de
seção da extinta Tesouraria da Fazenda. Isto deve explicar certo retardo que se verifica na
data de sua partida para Roma, que Mello afirma ter sido em 14 de maio de 1852. Ainda
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
235
segundo o autor baiano, foi na capital italiana que Gurjão estudou com “o maestro Pacini,
autor de um número considerável de óperas, das quais se destacam: Saffo (Nápoles, 1842),
Medea (Palermo, 1843), Niccolo de Lapi (Rio de Janeiro, 1855).1
Mello informa ainda que Gurjão obteve um diploma de maestro (compositore)
no Instituto Musical de Gênova e menciona apenas duas obras suas dessa época, uma
Ave Maria escrita quando recebeu a notícia da morte de outro irmão seu, o engenheiro
Raimundo Gurjão, e uma “missa a grande instrumental que foi executada no Pará por
ocasião de uma festividade do Espírito Santo” (Mello, 1908, p. 346).
Também provém de Mello a informação de que teria sido sugerida a Gurjão a
execução da Idália no Rio de Janeiro, quando voltou da Itália, deduzindo-se que a sua
única ópera tenha sido composta em solo europeu. A parada na capital brasileira ocorreu
para que o compositor visitasse o irmão militar, a esta altura detentor da patente de
tenente-coronel e residindo no Rio: “Henrique Gurjão havia já escrito a sua mimosa ópera
Idália. O referido oficial pediu-lhe com instância que a levasse à cena ali; o Maestro, porém,
recusou-se, alegando que ela era dedicada aos seus comprovincianos e, por isso, só no
seu torrão natal desejava fazê-lo” (Mello, 1908, p. 347) .
Mello não informa quanto tempo Gurjão passou no Rio de Janeiro, mas afirma que
sua chegada ao Pará deu-se em 14 de novembro de 1861. Diz ainda que ocupou uma cadeira do magistério público. O historiador dá também alguma nota sobre a produção de
Gurjão, associando algumas peças a eventos e pessoas homenageadas2, destacando-se
um par de vaudevilles, para o Teatro Providência, que era a principal casa de espetáculos
de Belém antes do Teatro da Paz (Mello, 1908, p. 349),3 “além de muitas missas para festas, marchas para bandas marciais e hinos para diversas associações” (Mello, 1908, p. 348).
O último parágrafo do relato sobre Gurjão na primeira obra histórica que o menciona é sobre a Idalia, em que ele emite opinião, sem que se saiba se ele conhecia a
música por algum meio:
Essa ópera extraordinariamente bela, do estimadíssimo maestro paraense, foi
representada pela primeira vez no Theatro da Paz na noite de 3 de novembro de
1881, tendo ele sido chamado a cena onze vezes para receber as mais estrondosas
provas de admiração e apreço. (Mello, 1908, p. 349)
Nenhuma outra apreciação sobre Gurjão e sua obra seria tão extensa quanto
esta nos subsequentes escritos de história da música brasileira, embora ele ainda tivesse
sido considerado durante certo tempo o primeiro compositor lírico nacional, justificando
uma ordem histórica e cronológica (Cernicchiaro, 1926, p. 302).
A promessa da estreia de Idália aos paraenses só se realizaria em 1881, quando
a economia da borracha já havia erguido o Teatro da Paz e proporcionava temporadas
...........................................................................
1
Mello se engana com a data da estréia de Saffo, que na verdade ocorreu no São Carlos napolitano em 29 de
novembro de 1840, mas erra, sobretudo, com a malograda estréia de Niccolo de Lapi, anunciada de fato para o
Rio de Janeiro, em 1857, mas não executada. A primeira execução conhecida deu-se em Florença, no Teatro Pagliano, em 1873. Conforme M. Rose; S. R Balthazar & T. Kaufman «Giovani Pacini» Grove Music Online, ed. L.
Macy, acesso em 31 de agosto de 2007, www.grovemusic.com.
2
O galope Hilaridade teria sido oferecido ao maestro Francisco Libânio Colás, sendo executado durante espetáculo em benefício deste no Teatro da Paz. O Hino do Trabalho foi uma oferta aos artistas e teve lugar na inauguração de uma Exposição Artística e Industrial, quando foi executado por quatro bandas marciais, aparentemente também no Pará. Gurjão fez ainda a missa de réquiem com Libera me para o seu irmão Hilário, que alcançara
o posto de general. Constam ainda um Hino Paraense, um hino a Carlos Gomes, nomeia seis Romanzas em
italiano (La partenza, La vedova, Una rimenbranza, Il giuramento e La lontananza), outra em português (Presente e passado). Vicente Salles faria diversos adendos a esta lista, com especial menção ao nome dos vaudevilles
e à música sacra (1970).
3
Mello não dá o nome das peças, mas informa que uma foi escrita por Marcello Lobato de Castro e a outra por
Luiz Bauna [sic, certamente Baena]. Ambas teriam sido muito aplaudidas.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
236
artísticas anuais ao público local. O desaparecimento da partitura e partes cavas de Idália
leva a supor que Mello, Cernichiaro e demais historiadores que a ela fazem menção, podem
ter conhecido apenas a versão pianística que Enrico Bernardi fez publicar no Pará em data
próxima à da morte de Gurjão. Mesmo essa edição, hoje muito rara e só recentemente
revista e novamente publicada (Páscoa, 2009), deve ter sido de pequena circulação, porque
após Azevedo (1938) não se leem mais apreciações sobre a ópera de Gurjão. Pode ser
também que Mello tenha escrito mais detidamente sobre Gurjão em parte porque tomou
conhecimento da ruidosa recepção de Idália no Teatro da Paz (Salles, 1994, p. 85-95).
O elenco criador da Idália veio integralmente com a companhia lírica italiana
que desenvolveu temporada no Teatro da Paz àquele ano. A soprano catalã, de nome
italianizado, Giuseppina de Senespleda foi a detentora do papel título. Uma especialista
na Violeta de La traviata, ela, como muitos outros que vieram ao Norte do Brasil naqueles
tempos, teve passagens por teatros de Gênova e da rota portuária mediterrânea. Ao lado
dela destavam o tenor Enrcio Giordano (1851-1903), detentor da parte de Rodolfo, artista
bastante conceituado em seus dias, com passagens pelo Scala milanês e outras casas de
igual porte, o barítono Acchile Medini, no papel de Gonçalvo, um especialista de primo
ottocento, o baixo Celeste Saccardi e os comprimários Giulia Marconi e Alessandro Ziliani
(Páscoa, 2006):
O público encheu literalmente o teatro na saudosa noite da primeira representação da Idália, 3 de novembro de 1881.
E desde a magnífica ouverture ao último trecho não cessou de aplaudir o seu
maestro que veio ao proscênio 14 vezes receber as mais estrepitosas e solenes
manifestações de apreço, de reconhecimento e de admiração.
O desempenho foi o melhor possível, sendo todos os artistas muitíssimo aplaudidos, sendo também chamado ao proscênio, nomeadamente o maestro Cimini,
que muito concorreu para o sucesso da Idália no Pará. (Folha do Norte, 28 de
fevereiro de 1915)4
A edição feita por Bernardi contém 130 páginas de música e não é possível saber
ao certo se a ópera foi transcrita na integralidade, embora os trechos coligidos pareçam
fazer parte de um processo sequencial lógico. Bernardi era bastante experiente e teve envolvimento direto com o meio musical paraense, não havendo razões para desconfiar do
trabalho de redução. 5
A observação dos elementos constitutivos de Idália mostra que Gurjão teve de
fato escola e professor. Ainda que faltem provas documentais do encontro e envolvimento
com Pacini, um olhar atento nas características musicais de ambos pode fornecer respostas.
As primeiras óperas de Pacini revelam a influência direta de Rossini, como foi
comum a muitos autores de sua época, embora aqui se deva dizer que alguns representantes de gerações anteriores, como Paisiello e Cimarosa também eram apreciados
pelo compositor. Essa referência identitária em Rossini se reflete em Gurjão, não só por
causa da adoção do protótipo lírico e dos ritmos repetitivos, ou mesmo da abertura sob
influência da Forma Sonata, mas também nos detalhes, como os crescendo instrumentais,
minuciosamente registrados por Bernardi em toda a partitura.
Mesmo os acréscimos de Pacini a este modelo podem ser identificados em Gurjão, como nos fins de frase pontuados por grupeto, ou ainda no uso do Tempo di mezzo
...........................................................................
4
A romanza da Idália já havia sido executada durante a récita de La favorita, no dia 2 de outubro de 1880, durante a temporada lírica daquele ano. A ocasião foi um benefício do tenor Lodovico Giraud e da meio-soprano
Climene Kalasch (Constituição, 5 de outubro de 1880)
5
Em Páscoa (2006, apêndice) há biografia de Bernardi com lista de trabalhos para o palco.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
237
como recurso de interação e a escolha de um movimento lento na abertura para acentuar
contrastes, o que vai se revelar em um expediente dramático ao longo da ópera. Mesmo
quando Pacini emula Bellini, verifica-se isso em Gurjão, com a escolha de melodismo
simples, o consequente abandono de fiorituras rossinianas e, de maneira mais evidente,
na construção da cabaletta, repetida sempre três vezes, que no autor paraense realizarse com especial tendência por transposições da melodia em oitava ou ao menos através
de dobradura melódica.
A adoção do estilo franco de Bellini, que marcou a segunda fase compositiva de
Pacini, pode também ser arguida como um ponto coincidente que Gurjão manteve com
outros autores de ópera italiana. Mas ainda assim, há outras observações que, somadas
às anteriores, parecem ultrapassar a mera casualidade. Gurjão construiu um claro bloco
A-A’ na cavatina, para então fazer um Tempo di mezzo contrastante, por vezes com menos
interesse melódico, o que pode refletir trecho declamatório, também característico de
alguns momentos de Pacini. Associado ao tipo de cabaletta descrito, a adoção do protótipo
remete ao possível mentor italiano.
Infelizmente, sem a partitura da versão orquestral de Idália, não se podem comprovar outros elementos, tais como os que Pacini usou no seu período maduro, especialmente a partir de Saffo, quando os recitativos ficaram mais elaborados e houve a atribuição
de novos efeitos expressivos, englobando construção de atmosfera obtida na orquestra.
Temas em blocos harmônicos como o que figura na abertura de Idália e repete-se no
miolo de cena, já apontado anteriormente, constituem-se em excelente evidência neste
sentido.
E na fase que compreende os anos de 1840 em diante, Pacini também passou a
desenvolver rápidas modulações, a usar tonalidades relativas distantes e a conter a ritmia
exagerada com a valorização das tercinas bellinianas e a aproximação dos tempos lentos
de cantabili de Donizetti. Gurjão também procedeu neste sentido. Em especial, os tempos
lentos são usados pelo paraense para mostrar contraste de tensão/resolução entre os andamentos externos do plano de cena padrão ou mesmo na troca de cantabili dos duetos,
o que se reflete em sofisticação dramatúrgica e conserva coerência com muitas das escolhas acima mencionadas. Na volta dos temas do cantabile para a execução da cabaletta,
Gurjão aproxima-se ainda mais de Pacini. O mesmo se dá com certas introduções instrumentais de cena, em que o desejo parece ser a não fixação da tonalidade.
São, enfim, muitos elementos coincidentes que reunidos revelam um conjunto
de procedimentos e informações capaz de provar a influência direta de Pacini sobre Gurjão,
sobretudo pela afinidade artística e estética, que supera a discussão sobre haver ou não
provas de uma relação direta de convivência e contato periódico.
Apesar de todo este exame relativo a Pacini, há uma clara atmosfera verdiana
em muitos dos trechos de Idália, seja porque Gurjão chegou a conclusões musicais semelhantes dadas as condições do meio em que estudou, ou porque se sentiu inspirado diretamente pela muitas óperas que teve a oportunidade de ver e ouvir, afinal a década de
1850, seja em Gênova ou Roma, proporcionou ao jovem estudante paraense um número
vultoso de estreias de Verdi. São especialmente interessantes os temas heroicos na formulação do protótipo verdiano, que Gurjão usa nas cavatinas, fazendo algum eco a Il trovatore e outras obras de lustro próximo. Antes de marcá-las como flagrante semelhança,
seria mais honesto lembrar que ao se vincular com mentores da geração precedente e
acompanhar as novidades da cena lírica dos seus anos de amadurecimento, Gurjão pode
ser um exemplar da geração de Verdi e que com ele compartilhou de várias opções na estruturação e linguagem da ópera em meados do século XIX.6
...........................................................................
6
Uma apreciação mais detalhada dos aspectos estruturais de Idália encontra-se em Páscoa (2009, p. 305-321).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
238
Ao menos um aluno de Gurjão projetou-se de igual ou superior modo. Nascido
em Belém, a 2 de novembro de 1853, José Cândido da Gama Malcher começou seus estudos de música ainda no Pará, com o conterrâneo e predecessor nas lides operísticas.
Entretanto, o médico José da Gama Malcher, seu pai, a despeito de ser um reconhecido melômano, encaminhou o filho para uma formação de profissional liberal, antes
que este pudesse se enveredar pela música. Assim sendo o jovem Malcher foi mandado
para a Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, a fim de estudar Engenharia. Oscar Guanabarino, cronista musical carioca contemporâneo ao compositor, que se ocuparia de
resenhar a sua primeira ópera, Bug Jargal, informa que Gama Malcher foi à Pensilvânia
por volta dos 17 anos, “mas cedendo a sua tendência natural para a música transportouse, em 1876, para Gênova, matriculando-se um ano mais tarde no Conservatório de Milão”
(O Paíz, 27 de fevereiro de 1891).
Após cumprir o desejo paterno e recebendo o apoio de Gurjão, Malcher seguiu
para a Itália intencionado em aperfeiçoar-se nos assuntos musicais, o que deve ter durado
por volta de quatro anos. Em 1881, é certo, já estava ele de volta a Belém. Identifica-se a
sua participação na vida cultural da cidade desde agosto deste ano pelo menos, quando
foi bastante elogiado por sua execução pianística durante sarau no Club Verdi (Liberal do
Pará, 19 de agosto de 1881).
Havendo seu pai assumido a presidência interina da Província do Pará, o novel
maestro obteve a pauta do Teatro da Paz e uma subvenção dos cofres paraenses com a finalidade de organizar três temporadas líricas a partir de 1882. Neste ano consumou o desejo
local de acolher o compositor Carlos Gomes, trazido por ocasião da estreia de Salvator Rosa
no Teatro da Paz. A temporada de 1882, a despeito do relativo sucesso e de boas lembranças
por cronistas posteriores, não terminou bem, eivada de problemas. Com a perda do restante
contrato de subvenção e uma indisposição com Carlos Gomes que se iniciara em princípios
do ano seguinte, Malcher retirou-se para a Itália novamente. Chegado em 1883, disposto a
retomar o contato com Michele Saladino que havia sido seu professor em Milão (Il teatro
ilustrato, novembro de 1888, nº 96, p. 176), Malcher envidou esforços para concluir em
1885 a sua primeira ópera, Bug Jargal (O Paíz, 27 de fevereiro de 1891). Seguiram-se seu
casamento com Palmira Belatti e o nascimento do primeiro, de seus onze filhos.
Em 1890, com a queda do Império Brasileiro e a nascente República, Malcher
retorna para realizar como empresário a primeira temporada brasileira deste novo período
no país. Foi assim, no ano de 1890, que se estreou Bug Jargal em Belém, a 17 de outubro,
tendo número elevado, mas impreciso de repetições.
A ópera baseada no primeiro romance de Victor Hugo foi posta em libreto por
Vicenzo Valle (1857-1890), que o músico deve ter contactado em Milão onde o libretista
era conhecido dos jovens compositores ligados à scapigliatura. Valle assinou muitas canções com o nome de pluma, Innocenza Weill, mas seu maior êxito foi a ópera Labilia
(1890) de Niccola Spinelli, que ganhou o segundo prêmio do célebre Concurso Sonzgno
que vitoriou Cavalleria rusticana, de Mascagni.
A montagem de Bug Jargal ganhou ainda um reforço significativo, com os figurinos desenhados por Luigi Bartezago (1820-1905), que trabalhara intensamente para o
Scala de Milão durante toda a década de 1870, sendo especialista em temas exóticos. Sobrevivem dez pranchas assinadas por ele e que expressam nominalmente os personagens
da ópera de Gama Malcher. 7
...........................................................................
7
As pranchas foram conservadas por Gama Malcher, juntamente com um álbum contendo folhetos, programas
de concertos seus e recortes de críticas feitas por si a apresentações realizadas na Itália, de obras de Wagner e
Puccini, publicadas em periódico ainda não identificado. Este material, constante em uma pasta, passou a herdeiros e deles a um amigo da família, chegando posteriromente às mãos do estudioso Vicente Salles, que por
sua vez o encaminhou ao Museu da Universidade Federal do Pará.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
239
Após a temporada belenense, a companhia lírica de Malcher seguiu para o sudeste do país, apresentando-se em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, onde se desfez já
no ano de 1891, debaixo de dívidas provocadas pelo não cumprimento do acordo, de
parte dos intermediários da pauta do teatro carioca para onde se dirigiria o grupo (Jornal
do Commercio, 3 de março de 1891). Na ocasião, partitura e partes de Bug Jargal foram
dados em pagamento de impostos ao governo, e o material arrestado foi depositado na
biblioteca do então Instituto de Música, hoje a Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola
de Música da UFRJ; somente em 2009 a versão orquestral foi publicada (Páscoa, 2009).
No seu retorno a Belém o compositor obteve por concurso a cadeira de música
do Liceu Paraense, em 1892, e posteriormente ingressou no Instituto Carlos Gomes, conservatório musical paraense de grande importância, que chegou a dirigir, substituindo a
Enrico Bernardi. Foi nesta etapa que se entregou à segunda ópera, Jara, que concluiu em
1893.
Dentre seus projetos no período esteve também a organização de uma orquestra
sinfônica para divulgar a obra de Beethoven, Wagner, Mascagni e de autores brasileiros,
bem como de um sexteto que se tornou notável pelos nomes que o compunham, pois
eram todos musicistas exponenciais da vida artística paraense, como o violoncelista, e
também compositor lírico, Ettore Bosio.
Ainda em 1895 envolveu-se em mais uma empresa lírica e na ocasião fez estrear
Jara, juntamente com algumas premières importantes para Belém, como foram as de
Mignon e sobretudo de Fosca e de Pagliacci. Jara foi recebida com maior surpresa pela
crítica e público do Pará, sendo muito elogiados os cenários de quem não se sabe ao
certo a autoria. Diferente da primeira ópera, Jara não parece ter sido conservada em
versão pianística, mas apenas em partitura orquestral autógrafa. Esteve por lugar não sabido durante algumas décadas, mas foi recentemente reencontrada no acervo do Conselho
Estadual de Cultura do Pará, para onde havia sido depositada por doação do filho do
autor; havia sido destinada pelo próprio Malcher ao conservatório, mas com o temporário
encerramento das portas desta instituição em 1908, o material deve ter sido salvaguardado
em outra parte.
A produção de Malcher, que após Jara já possuía novo libreto encomendado,
chegou a incluir duas outras obras líricas, Idílio e Seminarista. A primeira seria estreada
em 1905, na temporada que a companhia de Assis Pacheco e Donato Rotoli fez para reinaugurar novamente o Teatro da Paz. As partes principais chegaram a ser distribuídas à
soprano Tina Poli Randaccio e ao tenor Ferdinando De Neri, mas por motivos incertos a
peça não foi posta em cena (Folha do Norte, 11 de junho de 1906).8 Tais peças não estreadas
permanecem hoje extraviadas.
Além destas obras citadas, Gama Malcher produziu um número indefinido de
obras para variada formação, sendo que a maior parte não foi localizada até hoje.
Com a criação do Centro Musical Paraense ocupou, em 1914, o posto de presidente, ocasião em que era o decano dos compositores paraenses, título que manteve até
o seu falecimento em 17 de janeiro de 1921.(Salles, 1970, p. 187)
Os libretos de Bug Jargal e Jara, este de autoria de Fulvio Folgoni, foram publicados na Itália, respectivamente em 1890 e 1893. No caso de Bug Jargal foi feita ainda
uma publicação traduzida, posta de modo narrativo e apontando os destaques do espetáculo que o público devia tomar atenção. Uma tradução de Jara também circulou em
Belém pelas páginas dos peródicos da época em que se estreou.
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8
A irregular frequência do público, o cansaço que muitos membros da empresa alegavam, somados ainda ao
medo por doenças tropicais podem ter concorrido para a temporada abreviada para menos de mês e meio, com
raras reprises e o corte da terceira ópera de Gama Malcher.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
240
A comparação dos libretos publicados com a partitura mostra que Malcher se
valeu quase livremente deles. No caso de Bug Jargal, Malcher reformulou quase todo o
segundo ato para fazê-lo convergir para uma cena de concertante e coro, não só de maior
impacto dramático que o previsto no libreto, mas dotando a obra de equilíbrio
dramatúrgico. Os atos I e IV começam com desempenhos coletivos (coro) e terminam
com conflitos individuais (duetos) em situação inversa ao dos atos II e III. A ideia foi justamente controlar as tensões e reviravoltas típicas do melodrama de orientação verdiana,
influenciado pela grand opéra, para o que Malcher inclui além dos coros, bailado e batalha
campal que fez representar por seção de descritivismo orquestral.
Os personagens, de força arquetípica, também parecem obedecer a uma concepção narratológica em que as tensões vividas em cena equilibram forças em direção ao
final caótico. A primeira dificuldade foi certamente a adaptação do romance que possui
narrador e está repleto de personagens, inclusive um cão de poderes fantásticos.
Valle e Malcher chegaram a uma formulação de seis personagens, sendo que
um deles é uma criação para a ópera. A trama que se passa no Haiti, durante a revolução
negra de 1791, descreve a situação limite da escravidão brutal da colônia francesa e a
forte retroação dos negros rebelados que agem violentamente contra seus algozes. Maria
(soprano) é filha do latifundiário Antonio (baixo) e está noiva de Leopoldo (barítono),
sendo todos colonos franceses. Sua bondade provoca o amor de Bug Jargal (tenor), escravo
e líder negro, e consequentemente o ciúme da escrava Irma (meio-soprano). Completa a
distribuição o líder negro rival de Bug Jargal, chamado Biassu (baixo), tão cruel quanto
sua contraparte branca, o mencionado Antonio.
Irma foi criada para diversos propósitos na ópera e é certamente a concepção
que deu maior número de opções inventivas. A tessitura da parte, por vezes grafada mezzosoprano, por vezes contralto, na verdade possui desenhos melódicos semelhantes ao das
personagens veristas, com canto farfalhado, às vezes gritado, texto inacabado que denota
pensamentos soltos, ideias sem rumo, instabilidade psicológica. Malcher criou ao menos
um leitmotiv para cada personagem, antecipando aí a concepção pucciniana do recurso
de origem wagneriana. No caso de Irma, o tema condutor das ideias é um ritmo de carimbó,
dança típica do Norte do Brasil, hoje muito associada ao Pará. Também consta para ela
um cantabile acomodado à maneira de um lundu, com os inevitáveis choques dissonantes
que este gênero popular possuia. Irma é dramaturgicamente o elemento exótico, que
carrega a responsabilidade pela cor local, mas é ainda o personagem que detém os mesmos
sortilégios e surpresas do cão Rask, do romance Hugoliano original. A sua composição na
trama amorosa serve, entretanto, para acertar o modelo então em voga; ela ama o
protagonista, que ama Maria, que por sua vez ama Leopoldo. Vocalmente sua concepção
pode remeter a Eboli de Don Carlos e Amneris, de Aida, como fontes diretas, mas no
restante, ela é uma novidade absoluta.
Malcher, entretanto, mesclou por toda a ópera elementos de tendências estéticas
diferentes, quase como uma síntese da produção lírica do século XIX. O primo ottocento
está presente com a canção de Bug Jargal ao final do Ato I, que remete às inúmeras canções
de bardo das óperas de Rossini, Donizetti e Bellini. A lembrar esse último está um bom
punhado de cantabili que na formulação ternária possui a tercina como último tempo do
compasso. No mesmo sentido estão os vários cantabili de melodismo simétrico com
alguma fioritura de cauda e coros em formato de barcarola, a 6/8.
Mas Verdi está muito presente, com a tendência ao ambiente tonal de Ré bemol
em partes importantes, bem como no seu modelo de protótipo lírico aqui adotado. Alguns
planos de cena, que oscilam em sua maioria pelos modelos tradicionais de Donizetti, na
verdade mostram progressão tonal semelhante à de Verdi, que incitava o discorrer de
uma cena para outra com a passagem por mediantes e dominantes que buscavam repouso.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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A consistência ideológica da maior parte dos personagens também parece verdiana, com
a tendência ao cariz de pureza virginal e até mesmo religiosa de Maria, o heroísmo inconformado e estóico de Bug Jargal, a dubiedade do caráter varonil de Leopoldo e as
posturas monolíticas e temíveis de Antonio e Biassu.
Embora haja ainda a influência wagneriana acima citada – e é comprovada a admiração de Malcher pelo autor germânico, Bug Jargal parece se inscrever melhor naquilo
que se entende por scapigliatura, que no caso do paraense já dá inúmeros sinais de um
nascente verismo.
A descritividade orquestral acima aludida, não só nas passagens sem canto, mas
justamente na riqueza que o autor constrói com a presença do solista de canto, é uma
marca inconfundível disto. Não se trata da influência da harmonia cromática de Wagner,
mas de um germanismo mais respeitante às influências de Beethoven, cujas sinfonias se
tornavam muito populares na Itália no tempo em que Malcher lá viveu. Muitas das seções
de Bug Jargal também começam com uma previsão de tonalidade pela armadura de
clave, mas que não se confirmam, revelando o caráter aberto da obra, uma espécie de
divagação no planejamento harmônico, tentativa de não se prender excessivamente a
modelos.
Entretanto o ponto de scapigliatura mais flagrante é em tudo que a obra coincide
com o Guarany de Gomes, de quem certamente Malcher é tributário. O tema exótico, o
concertante de caráter religioso, com preghiera, ao final do segundo ato, a abertura de
ato com os indígenas (na caso de Bug Jargal, dos negros rebelados), o dueto amoroso de
tenor e soprano, as figuras do chefe colono e do chefe “selvagem” atribuídas a baixos,
que aliás aparecem e desaparecem na ópera no mesmo ponto dos atos em ambas as
óperas. O melodismo sinuoso e bem cuidado em ambas, poderia ser mais um ponto coincidente, embora isto seja uma constante na geração que alcançará o verismo, e uma das
características desta etapa. Aliás, o próprio final de Bug Jargal, sem apoteose, vincado no
drama individual humano, é uma escolha naturalista e muito distante de Gomes e seus
precedentes. Malcher consegue relaxar a responsabilidade da parte vocal, equilibrando a
presença orquestral, realizando toda a última cena com pequenos cantabili e uma preghiera, naquilo que mais se aproxima do que a época chamou de recitativo melódico-dramático.
Jara está ainda mais impregnada de elementos naturalistas, mas não só. Tudo
que em Jara aparentemente é verista, tem contornos tão densos que faz com que a ópera
se aproxime muito do simbolismo. Não é apenas uma narrativa folclórica, porque é baseade
me lenda, mas uma lenda com fortes atributos universais e densidade psicológica. O índio
Begiuchira (tenor), perdido em sua canoa de volta para casa, depara-se com a figura sedutora de Jara (soprano). Ela promete seu amor, desde que ele a acompanhe ao seu reino
no fundo dos rios. Sabedor do que isso implica, consome-se porque desde esse dia não
consegue mais parar de pensar em tal aparição. Sachena (meio-soprano), sua mãe
preocupa-se e tenta chamá-lo à realidade. Ubira (barítono), outro varão da tribo chega
intempestivamente durante os festejos sazonais e relata os perigos das matas ermas em
que ele mesmo se encontrou poucos momentos antes, aludindo à Jara. Mas Begiuchira já
não se pertence. O conflito de Begiuchira é existencial. A vida se lhe consome em amor
pelas próprias forças da vida. O amor pela Jara não é libertador no sentido em que Bug
Jargal amava Maria porque descobrira nisso uma nova forma de amar e compreender a
humanidade, para além das convenções sociais. O amor de Begiuchira é todo consumição.
Ele sabe que para aceitar este amor, rejeitará o mundo que conhece e as forças da vida.
Mas a libertação também acontece pela aceitação desse amor. Ao se entregar nos braços
de Jara, extingue-se-lhe a vida física, o limite para o mundo de outra dimensão, que lhe
aparece irresístivel nos encantos incomuns de Jara.
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Todo o dilema da ópera se resume ao universo psíquico de Begiuchira no seu
confronto com as forças do Natural e os arquétipos que aí estão envolvidos. Entre a devoção
a duas mulheres, ele oscila pela imagem mítica da mãe, pertencente a um mundo real e
previsível, e a visão onírica, mágica, fantasmagórica da imprevisível mulher, pretensa
amante, que pertence a um mundo idealizado. O temor reverencial da mãe exerce o
domínio da parentela, da tradição social, da convenção do universo real. Este é o domínio
da mulher que gera, da mulher que um dia conteve o homem e o transformou em força
cinética. Sachena é precisamente a força geradora da Terra. Jara completa o ciclo da vida
desse mesmo homem e por ser a mulher receptora, a que extingue a vida do homempoder cinético, que o recebe nos seus domínios agora fantásticos, mas ainda assim nas
entranhas do planeta, torna-se a antítese de Sachena. Esta, a criatura da força elementar
da terra, a outra, criatura da força elementar do fluxo, da água, onde ocorre a dissipação
e a transformação.
O universo de Jara, de Malcher, excede a descritividade literária de Stradelli,
fonte de quem Malcher é tributário e onde o libreto é calcado, pois Malcher já concebe
um universo psíquico e uma atmosfera dominada pelo aspecto simbólico.
Malcher se valeu de longas passagens orquestrais, algumas próximas de meia
hora, o que muito contrariou o público da época. O libreto também foi muito modificado,
quase totalmente desfigurado. Malcher trocou versos de posição e em tal maneira que a
rima às vezes é branca e em alguns pontos, sem métrica, passa a ideia narrativa. Mas nas
cavatinas – curiosamente ele conservou seções de protótipo lírico tradicional, retorna
aos versos octonários de Stradelli, o ilustrado geógrafo italiano que recolheu e deu forma
narrativa à lenda. Há coros, há bailados, mas há também a tendência à harmonia cromática
e à divagação tonal, há abundância de pentatônicas, de escalas octatônicas, de escalas
expandidas, estruturas palindrômicas.
Na verdade a música sobeja sobre a ação porque a ação da ópera é estática e o
tempo estático é característico da abordagem simbolista, assim como o aprofundamento
da relação entre Homem e Natureza, tão evidentes aqui. Em Jara não há guerras nem
motins, não há os tradicionais duelos nem as disputas de amor e honra; há menos ainda
levantes coletivos contra injustiças sociais. Não há a célebre disputa por valores morais,
por conquistas pessoais ou de causa difusa.
Jara é um colóquio de amor e morte que se dá numa atmosfera de sonho. Jara
é quem o afirma e o coro assim o repete: Amor de Jara é sogno di dormente. A tríade
sonho-amor-morte completa-se no universo simbolista da cultura europeia da virada do
século XIX para o XX. O uso de linguagens particulares, como procedimento compositivo
de autores diversos, especialmente no século XX, realiza-se na adoção de novas sonoridades
pelo uso de vocabulários desconhecidos, da esfera musical como a variedade de escalas
modais que, sobretudo, serviriam como marca identitária nacional e primitiva, mas ainda
na esfera verbal, com o aparelho comunicativo que pressupõe nova musicalidade no dizer
o texto. No caso de Jara há até mesmo cena de diálogo de Ubira com coro que está em
nheengatu, língua geral dos indígenas da Amazônia.
Malcher antecipa o discurso nacionalista que diversos exemplos simbolistas
europeus propuseram a autores brasileiros do século XX.
O simbolismo de Jara é, por um lado, dotado da mesma discussão sobre o papel
do Homem na Terra que já aparecera em Bug Jargal. Mas nesta sua primeira ópera, estão
em jogo as forças de um realismo devedor dos preceitos de Hugo, que em seu prefácio de
Cromwell revelava o paradigma evolutivo do Homem e da sociedade em direção à luta
pela posse da terra e o conflito de interesse antagonizando coletivo e individual, bem
como coletivos entre si. A noção de progresso e evolução levaria aos confrontos e esse
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era o mundo real com os elementos em causa. O Homem, sob a noção de progresso, pretensamente melhora, ascende, se emancipa no universo da razão.
Jara também discute o papel do Homem na Terra, mas para além dos domínios
da razão, justamente onde ele não pode pretender controle. O universo psíquico dos
sonhos, funde-se em algum momento ao dos sentimentos, onde se acalenta o amor, e à
vertigem incontrolável pelo desenrolar da vida que acaba em morte, que no caso de
Begiuchira se associa ao último prazer prometido.
Ao tempo em que Malcher produzia suas duas masterpieces um novo talento
surgia no Pará. O jovem Octávio Meneleu Campos nascera a 22 de julho de 1872 na rua
Riachuelo, em Belém, obtendo ainda menino os primeiros estímulos à música pela irmã
Isabel, através do piano. Com a passagem do violinista baiano Adelelmo do Nascimento
em princípios da década de 1880 pela capital do Pará, Meneleu Campos recebeu nova
influência e dessa vez direcionando-se ao violino. Adelelmo viu logo o talento precoce e
insistiu com João Marinho de Campos, pai de Meneleu, para que o destinasse a estudos
mais avançados na música (A Província do Pará, 11 de janeiro de 1900). Mas o desejo
paterno quis que ele fosse estudar Direito no Recife, o que de fato veio a acontecer em
1888. Na altura já compunha e com um destes primeiros trabalhos, a valsa Cecy – que ele
logo orquestraria – chamou atenção do estipêndio governamental, pois o governador
Lauro Sodré, em um dos primeiros mandatos republicanos, concedeu bolsa a Meneleu
Campos para ir estudar na Europa. A família reagiu então declinando o favor, para custear
enfim a ida de Meneleu Campos para Milão (Salles, 1972, p. 159-201).
Embarcado para a Itália em 1º de maio de 1891 no vapor Manauense, estudou
com Andrea Guarneri até obter matrícula no Real Conservatório da capital lombarda em
outubro daquele mesmo ano. Naquele renomado estabelecimento de ensino italiano
teve oportunidade de estudar com Vincenzo Ferroni (1858-1934), um dos mais influentes
professores de harmonia da época. Sete anos mais tarde submetia-se a intensa série de
exames que o permitiriam laurear-se em piano, violino e composição (Mello, 1908, p.
330-333).
A repercussão das provas construiria a fama entre seus conterrâneos, que o
receberiam na volta da Europa com deferências de notabilidade. Aquele a quem os jornais
chamavam agora de “orgulho da pátria e da família”vinha para ser o novo diretor do
Conservatório local, recebendo o cargo das mãos de Gama Malcher (A Província do Pará,
12 de janeiro de 1900). Os primeiros tempos passou entre as atividades do conservatório
e a composição. Casado com a italiana Rosetta Basso, enviuvou precocemente em 1902,
o que o levou a uma intensidade de trabalho e uma consequente requisição de licença
sabática a ser vivida em 1903. Aproveitou este período para voltar a Milão e retomar
contato com velhos conhecidos, sendo a primeira oportunidade concreta para a encomenda e aquisição do libreto de Gli eroi, comprado a Luigi Illica (Salles, 1970, p. 99). Já
fizera uma ópera nos finais do século anterior, chamada Il salvocondotto, mas considerava
um trabalho de juventude. Autor de um catálogo que se enriquecia ano a ano, seu objetivo
era na verdade experimentar o gênero mais em voga do momento e que consagrava
carreiras no mundo mediterrânico-americano.
Embora dedicado ao ofício de ensino na direção do conservatório, o desgaste
político afasta-o do emprego em 1906, mesmo ano em que se casou com Marieta Guedes
da Costa. O retorno à Europa foi imediato. Nesse momento, de certeza, cresceu seu empenho para a realização de Gli eroi, terminando a composição e tentando viabilizar sua
montagem, o que nunca aconteceria.
Regressou ao Pará em 1908, ano em que o governador Augusto Montenegro extinguia o Instituto Carlos Gomes, conservatório do Pará. Meneleu Campos intentaria o
ensino particular e mesmo uma escola, mas com o fim do Ciclo da Borracha a debandada
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de recursos provocou também a de pessoas. Em fins de 1909 ele dirigia-se para o Rio de
Janeiro, onde inicialmente seus quartetos e romanzas foram sendo executados por nomes
importantes da música local, como Ernesto Ronchini, Jerônimo Silva, Rubens Tavares e,
sobretudo, Vincenzo Cernicchiaro, que escreveria elogiosamente sobre o paraense no
volume de história da música no Brasil que o italiano editaria na Europa década e meia
depois.
Em dezembro de 1909 seus quartetos de cordas foram executados em São Paulo
e no princípio da década seguinte já se encontrava de volta a Belém para seu ofício
pedagógico no estabelecimento que criara. Cansado da lida, encerrou as portas de sua
escola em 1912 e no ano seguinte dirigia-se mais uma vez à Europa.
Em verdade, depois de breve passagem por Paris, fixou-se por dois anos em
Portugal para cumprir recomendações de tratamento médico para sua filha Sulamita.
Neste meio tempo lecionou piano, solfejo, teoria musical, harmonia e composição, mas
obteve pouco sucesso e acabou por retornar mais uma vez a Belém em 1916. Surgiu nova
fase compositiva em que se fizeram aparentes as influências de Alberto Nepomuceno,
que ele conhecera no Rio de Janeiro e que até executara obras suas. Mas Meneleu Campos
foi escrevendo cada vez menos, nos anos seguintes, ainda que motivado em orquestrar
algumas de suas peças já existentes e empenhado na direção de grupos diversos como
sempre esteve, sendo mesmo capaz de montar um septeto que deixou boas impressões,
além de um orfeão e concertos vocais-sinfônicos (Salles, 1972).
Em 1926 ausentou-se mais uma vez a descanso e estando de repouso em Niterói,
faleceu repentinamente em 20 de março de 1927. O rápido desgaste se deveu em parte
ao seu último grande desgosto, o suicídio de sua filha, desfecho de uma relação amorosa
impossível para os padrões morais da época.
O assunto de Gli eroi é, sobretudo, político e recai na coleção de dramas históricos
que reapareceram com relativa força no início do século XX, dos quais Tosca é bom exemplo. A ação passa-se em março de 1848 na cidade de Milão e é baseada em fatos reais,
momento em que a Itália, sob domínio estrangeiro, vive uma das páginas mais marcantes
da construção da nacionalidade. O libreto é um dos mais identificados com a personalidade
anárquica e rebelde do seu autor. Diferente de Malcher, Meneleu Campos não modifica
nada, não intervém e aceita passivamente o proposto por Illica. Em quatro atos, recheada
de personagens, a peça é inteiramente descritiva e tem longas falas. O último ato entretanto
é simbolista, ambientado como num sonho, é a experiência de inconsciência no momento
da morte do par amoroso central.
A música foi concebida num contínuo sem paradas até o fim de cada ato. As
melodias surgem ladeadas por recitativos em procedimento que lembra o expediente de
La bohème. A cópia da versão pianística já traz inúmeras ideias de orquestração, especialmente das cenas de grande aparato. Os motivos musicais são muitos, desde melodias
sedutoras a rufar de tambores, progressões de acordes, atmosferas diversas, em que há
espaço até para o hino de Mameli ao final, com o triunfo italiano. A despeito de alguns
belos momentos do par central, o militar Max, das forças invasoras, e a italiana Alessandra
Dedomini, filha de uma das tradicionais famílias lombardas, que se insurge contra a
ocupação, o quarto ato, com sua propositura inesperada, foi pouco valorizado por Meneleu
Campos. Ele é relativamente breve, comparado aos demais, e mesmo a música de grande
impacto dramático do seu inicio, não vê continuidade atmosférica até o final. Pode ter
sido uma escolha para que se equilibrasse aos demais atos, que na verdade ainda se
tornavam mais longos pela presença de pré-atos com episódios explicativos. Não se sabe
por que Meneleu Campos não interveio no libreto, o que poderia ser salutar a criação artística, uma vez que o próprio Puccini confiava o refinamento das propostas de Illica ao
seu parceiro Giuseppe Giacosa. Certo germanismo com a ideia de obra de arte monolítica
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parece estar presente. Foram, enfim, muitos os elementos que de certa forma podem ter
contribuído para que Gli eroi não encontrasse suporte para a montagem, independente
dos problemas econômicos da região. Uma vez que Meneleu Campos contactara Franco
Cardinali para o papel principal, é especulável que tenha tentado também teatros, companhias e empresários estrangeiros. O assunto que possivelmente tenha sofrido certa
resistência fora da Itália por ser «italiano demais», afinal possuía até trechos em dialeto
lombardo, ainda precisava romper com o ar de discurso panfletário, que na estética do
gênero lírico parecia um tanto datado naquela altura.
A completar o panorama de autores brasileiros atuantes no Norte do país durante
o Período da Borracha, está o nome de Elpídio Pereira. Nascido em Caxias, Maranhão, a
16 de outubro de 1872, Elpídio de Britto Pereira teve suas primeiras lições de música com
os mestres de banda da sua cidade natal, inicialmente com o violinista Antonio Cariman e
depois com o clarinetista Antonio Coutinho. Sua família, percebendo o seu interesse e talento, enviou-o a Lisboa para estudar. Na capital portuguesa, chegado em princípios de
1890, foi matriculado em um colégio, para frequentar o curso preparatório a fim de ingressar no Conservatório de Paris. Nesta instituição estudou como aluno-ouvinte na classe
de Taudou (harmonia), a mesma onde Francisco Braga era aluno efetivo. Entretanto, manteve lições com Domenico Ferroni a partir de 1891, fora do Conservatório, para estudar
violino e reforçar seus conhecimentos de harmonia, pois sua intenção maior era a carreira
de compositor.
A situação financeira adversa de sua família o trouxe de volta ao Brasil e, após
passar dois anos e meio, mais diretamente ligado a Belém, transferiu-se para Manaus
onde encontraria inicialmente irmãos e amigos da família, e mais tarde o próprio pai, que
aceitara um cargo em uma companhia de navegação. Mas o seu contato inicial com a capital do Amazonas se deu em 1892/93, no momento de sua volta ao Brasil, vindo da primeira viagem de estudos a Paris.
Nesta oportunidade foi convidado por Adelelmo do Nascimento (1852-1898),
para participar com dois números de sua escolha, em um concerto que o baiano, radicado
em Manaus, estava a organizar. O jovem violinista então optou por uma peça de sua autoria, a Serenade Brasilienne, a primeira de suas composições a ser ouvida no Brasil após
o seu primeiro estágio de instrução musical no exterior.
Neste meio tempo, Elpídio Pereira deu concertos em Belém, São Luiz e Terezina,
com rápida passagem pela terra natal. Nova oportunidade de ir a Manaus aconteceu
quando o empresário Joaquim Franco, que dominava os principais palcos do Norte naquele
momento, recrutou o jovem violinista para fazer parte da orquestra da companhia lírica
destinada a ambas as capitais da borracha.
Estabelecido definitivamente em Manaus, Elpídio Pereira envolveu-se com a
organização de concertos sacros na Catedral, num periodo que deve ter ido de 1895 a
1898 (Pereira, 1957, p. 40). Para além dos concertos, Pereira foi também partícipe de tertúlias. Ele tomou parte desde o princípio do Club Musical Amazonense, fundado pelo alemão Max Brunn, que por vezes utilizou-se de sua loja de partituras e instrumentos para os
encontros dos associados. O Club Musical Amazonense era uma sociedade de concertos
que surgiu com o intuito de se dedicar a execuções privadas e envolvia diversos diletantes
e profissionais, brasileiros e estrangeiros, residentes em Manaus.
Mas ainda em Manaus, o compositor maranhense viu-se obrigado, por causa
de um sinistro que destruiu os bens da família, a trabalhar em atividade não relacionada
à música, sendo empregado do setor de cobranças da Casa Marius & Levy. Esta situação
não duraria muito tempo. Com a aposentadoria de Adelelmo do Nascimento do cargo de
professor de música do Gymnasio Amazonense, em 1897, Elpídio Pereira foi chamado
para reger interinamente a cadeira. O musicista privava da intimidade do chefe de gabinete
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do Governador Fileto Pires, o escritor Raul de Azevedo, também maranhense. E foi justamente este quem propôs a Elpídio Pereira a troca da posição no magistério estadual
por uma bolsa de estudos na Europa.
Assim, em 1898, partia para Paris, a fim de continuar sua instrução, o que durou
até 1902, quando expirou o prazo da bolsa concedida pelo governo amazonense.
Aprofundou estudos de composição com Domenico Ferroni, que se tornou a
sua influência direta neste período e que provavelmente lhe apresentou a obra teórica de
Berlioz e Rossini, que ele já havia usado em uma fase anterior. Elpídio Pereira despediu-se
da capital francesa dando dois concertos na Sala Hoche, onde apresentou peças somente
de sua autoria, regendo a orquestra dos Concerts Lamoureux (Pereira, 1957, p. 1-56). No
retorno para o Amazonas deu ainda um concerto em Lisboa.
O compositor faria concertos com obras suas, em seu favor ou em benefício de
amigos, até 1903, pois passou os anos de 1904 a 1906 percorrendo algumas capitais
brasileiras, onde havia interesse em divulgar sua obra. Segundo Pereira (1957, p. 60), esteve em Belém, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo e, na capital carioca, ainda em 1906,
organizou concerto de suas obras, coadjuvado por Francisco Braga e Alberto Nepomuceno
que dirigiu a orquestra (Pereira, 1957, p. 57 64).
Na altura em que voltara a Manaus já intencionava escrever uma ópera (Pereira,
1957, p. 47) e seus trabalhos, marcadamente camerísticos até a virada do século, vinham
ganhando versão orquestral ou sendo originalmente concebidos para forças mais dilatadas.
A promessa do novo governador do Amazonas, Antonio Constantino Nery não
se cumpriu e a nova estada de Pereira em Manaus durou até 1908, quando finalmente
decidiu-se a ir ao Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades. Com a crise econômica
da borracha, ficava claro que um retorno a Paris para completar estudos estava tão difícil
quanto a perspectiva de montar a ópera que almejava um dia compor. Ele o sabia bem,
pois em Manaus, além de tocar e promover concertos – incluindo alguns com musicistas
estrangeiros em passagem pela cidade – Pereira recebeu encomendas governamentais
de obras suas e atuou na crítica de ópera, escrevendo em jornal especializado até os derradeiros espetáculos liricos que se apresentaram no Período da Borracha.
Mais uma vez na capital da república brasileira, o compositor precisou tecer
novos contatos para obter a desejada bolsa para o retorno a Paris, o que de fato aconteceu
entre 1912 e 1913, às custas do Governo Federal. A decisão deveu-se, sobretudo, ao parecer
favorável de Alberto Nepomuceno, então diretor da Escola Nacional de Música. A despeito
do disposto na lei que a outorgara, a subvenção foi paga com atraso nos três anos a que o
artista fazia jus, o que ocasionou certa demora na sua partida do Brasil e consequentes
dificuldades financeiras em Paris.
Chegado em meados de 1913, procurou imediatamente Ferroni, ainda residente
no mesmo lugar. Entretanto, obter um bom professor de composição para encerrar os estudos com a feitura do drama lírico, como ele mesmo estipulara, não foi tarefa fácil. A
busca inicial foi pelo renomado compositor Vincent d’Indy, que não podendo atendê-lo
em privado, indicou que frequentasse a sua classe de composição na Schola Cantorum,
mas sob a condição de que nos três anos em que estivesse sob sua tutela não compusesse
nada. A exigência não agradou e o compositor brasileiro recorreu mais uma vez ao Ferroni
para obter uma prova, desta vez com Paul Vidal (1863-1931). Este maestro, compositor e
professor do Conservatório de Paris, a despeito do renome que gozava, atendia alunos
menos privilegiados social e financeiramente. Aceitando Pereira como aluno, recomendouo aos irmãos Eugène e Edouard Adenis para que estes célebres libretistas lhe preparassem
um libreto. Inicialmente o treinamento de Pereira, exigido por Vidal, concentrou-se em
musicar o Horace de Corneille em recitativos. Antes mesmo de acabar a tarefa, Vidal decidira que o aluno brasileiro podia se voltar para o seu próprio assunto.
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A escolha do tema veio de sugestões de amigos e alguns deles chegaram a lhe
mandar material do Brasil. Na altura, com a República, o país passava por debates de revisionismo histórico. A ideia de fazer uma ópera sobre Calabar, um português insurrecto
que passou ao lado dos holandeses, deveria ter novos contornos.
Pereira queria expor uma faceta de Calabar como uma espécie de primeiro herói
nacional, mas o personagem era extremamente polêmico e a decisão do compositor de
levar o projeto até o fim certamente custar-lhe-ia a estreia da ópera, que nunca seria
montada.
O trabalho de composição foi rápido e ele mesmo confirmou que o fez “quase
sem repouso, a tal ponto que quase não dava atenção ao que se passava na guerra”
(Idem, p.76). Em fins de março de 1915, ou seja, três meses depois de começado já levava
para Vidal o primeiro ato completo, não só em canto e piano, mas também a orquestração,
que o mestre teria aprovado: “Trés bien Elpides, vous avait fait un beau travail” (Idem).
Por causa dos atrasos no recebimento da bolsa do governo brasileiro, a composição do segundo ato não veio logo. Neste meio tempo ele se ocupou da composição de
duas outras peças significativas de seu catálogo, a Sonata para violino e piano e o bailado
Yan e Nadine, com libreto de sua própria lavra, planejando retomar Calabar ainda em novembro de 1915. Mas uma crise de estafa o impediu de continuar o trabalho neste ano.
Somente em janeiro de 1916 terminou a orquestração de Yan e Nadine e voltou à
composição de Calabar.
Com o término da bolsa, o compositor precisou voltar ao Brasil e Calabar, que
teria seu segundo ato orquestrado durante a viagem de retorno, ficou incompleta por
alguns anos. O período que coincide com o fim da I Guerra Mundial foi especialmente
difícil para o autor, que passou por necessidades de toda a ordem. Chegou a visitar a família em Manaus, mas parecia não haver boas perspectivas em parte alguma. Escrevendo a
Epitácio Pessoa, agora presidente da república, mas a quem se relacionara na estada parisiense por intermédio de amigos, Elpídio Pereira obteve nomeação para funcionário da
embaixada brasileira em Paris. O retorno à capital francesa serviu de muitas maneiras.
Em um primeiro momento saldou dívidas diversas, depois iniciou o processo de publicação
de algumas de suas obras mais importantes, para, por fim, concluir Calabar, ao que tudo
indica, em 1921.
Se a ópera não lhe trouxe retornos que os esforços envidaram, o bailado, agora
reformulado e com o novo título de Les pommes du voisin, seria estrondoso sucesso no
Teatro Gaité Lyrique, atingindo 76 récitas ao longo de 1926.
Até meados dos anos 30 há registros de que o compositor permaneceu ativo,
ainda que menos produtivo. Suas incumbências diplomáticas cresceram desde então e
durante a Segunda Guerra chegaria ao posto de vice-cônsul em Londres, em breve oportunidade que os 20 anos de carreira diplomática lhe proporcionaram fora da França. Aposentado, voltaria ao Rio de Janeiro onde viveu até 1961, ano em que faleceu.
Na capital francesa, o compositor acompanhou algumas execuções líricas marcantes, como a estréia de Cavalleria rusticana na Opera Comique, ainda em 1891 (Pereira,
1957, p. 27-28), ou as premières de Lohengrin, em 1892 e Parsifal já em 1913, na Opera de
Paris (Pereira, 1957, p. 31). Embora ele tenha assistido a duas estréias de Wagner, e de
admitir que a execução foi “grandiosa do começo ao fim” (Pereira, 1957, p. 32), não parecia
concordar totalmente com a estética do compositor alemão. Sobre Parsifal ele disse: “As
cenas [são] por demais longas, com recitativos que pareciam não ter fim, e por isso cansativas ao ouvido” (Pereira, 1957), revelando ser este o motivo de grande parte dos frequentadores ter descido as escadas do teatro no intervalo do primeiro ato visivelmente fatigados.
Ao que parece, o seu apreço era pela atmosfera do lírico, pois dentre as inolvidáveis circunstâncias de sua trajetória ele nomeia a vesperal lírica de carnaval da Ópera de Paris,
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quando doze horas após o baile que acontecia na mesma casa, os espetáculos retornavam
ao palco. A sua atração pela cena também se desvela ainda a partir de outro de seus episódios parisienses quando era estudante sob o mecenato do Amazonas. Em 1900, substituiu um amigo violinista nos ensaios e apresentações da peça L’aiglon, de Edmond Rostand, que era levada por Sarah Bernhard no teatro de mesmo nome; o pagamento de
cinco francos por ensaio não era “a soma que fazia aceitar a incumbência, mas a
oportunidade […] de apreciar bem de perto a insigne artista francesa na sua dinâmica
atividade” (Pereira, 1957, p. 54).
A música em Calabar é absolutamente característica da produção lírica francesa
dos anos 10. O melodismo é confiado à orquestra e os personagens desempenham em
recitativos e ariosos integralmente, ecoando a recepção wagneriana através do Peleas et
Melisande de Debussy, modelar para toda aquela geração. Cenas curtas e numerosas,
tableaux para destaque temporal e espacial, misticismo e simbologia, além do uso de leitmotiv são exemplos de como aspectos tradicionais se fundiam às influências wagneristas
em Calabar, a exemplo de outros autores franceses do período.
Do ponto de vista dramático-musical, a procissão da sexta-feira santa, com o
Canto da Verônica, ainda no primeiro ato, é talvez um dos melhores momentos do trabalho,
não só pela concepção, mas pela possibilidade de remeter ideias como pecado, destino,
nacionalismo, dentre outros elementos de discussão interessantes. A opção estética de
Pereira também o compromete em algumas aparentes incongruências. A primeira delas
remete à relação entre música e palavra. Uma vez que o libreto não foi construído em versos metrificados, a possibilidade do uso de recitativos entremeados a melodismo solto
apoia-se fundamentalmente na adoção do leitmotiv. Mas se até aí Pereira escolheu corretamente, parece ser problemático o fato de que ele nem sempre tivesse melodias de
reminiscência para ornar as falas. Isso pode ter provocado certo incômodo na recepção à
obra, como se depreende dos relatos do próprio autor sobre o contato desta com o público
seleto de ouvintes da área musical nos concertos que ele promoveu com excertos da
ópera e mesmo na relação com os responsáveis artísticos dos teatros onde buscou a estréia de Calabar, afinal há trechos longos de declamação em altura definida, apoiada unicamente em acordes.
Estas audiências informais podem ter sentido também certo descompasso entre
a proposta de teatro trágico, com cenas de discussão de valores éticos, morais e ideológicos,
entre dois personagens como de hábito, e a extensão dos assuntos ao nível da grand
opéra, em que entra e sai do conflito dramático um numeroso contingente de personagens,
vivendo propostas de situações extremas que resultam do conflito político.
Para completar, a personagem Maria, de jovem aldeã quase anônima, convertese numa quase mártir, morrendo ao final por seu amor, o personagem Calabar, e “roubando-lhe a cena”.
Na verdade Pereira não teve a oportunidade da estreia e a consequente retroação
que lhe permitisse reflexão e reprocessamento de ideias. Pior, a versão orquestral de Calabar está desaparecida e não há como saber como o autor orquestrou a obra e que valor
enfim pode ter para o patrimônio musical brasileiro, geral e malfadamente descuidado e
esquecido.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Libretos
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
251
As óperas de Sant’Anna Gomes
Marcos Virmond
Universidade Sagrado Coração, Bauru
O irmão de Antônio Carlos Gomes
José Pedro de Sant’Anna Gomes nasceu em Campinas em 1834 e veio a falecer
em 1908, isto é, quase doze anos após a morte de seu irmão mais famoso, o compositor
Antônio Carlos Gomes. Da mesma forma que muitos outros compositores menos visíveis,
a produção musical de Sant’Anna Gomes ainda não foi devidamente explorada. Felizmente,
seus manuscritos se encontram bem preservados no Museu Carlos Gomes, em Campinas,
São Paulo, prontos para uma devida análise e transcrição musicológica que os disponibilize
ao grande público. Entretanto, parte de sua obra de câmara já foi objeto de apreciação
musicológica e apresentada em concertos, através do Projeto Memória Musical
Campineira, de 1992, e nas comemorações do centenário de seu falecimento em 2008
(Stecca, 2008, p. 21).
Sant’Anna era irmão mais velho de Antonio Carlos Gomes e teve com este uma
relação muito afetuosa e parceira durante a vida. A formação e atividades musicais dos irmãos foram concomitantes e estiveram sob a orientação severa do pai, Manoel Jose
Gomes. Sant’Anna sempre exerceu influência positiva sobre Carlos, tendo estimulado o
irmão em sua decisão de deslocar-se para o Rio de Janeiro para os estudos no Conservatório
Imperial. Posteriormente participou decisivamente, do ponto de vista financeiro, para
que ocorresse a montagem de Il Guarany no Teatro alla Scala, em Milão. Carlos conviveu
com muitas pessoas e personalidades ao longo de sua vida, algumas delas foram muito
amigas e fundamentais para a continuidade de sua luta artística, como André Rebouças,
Teodoro Teixeira Gomes e José Castelães. Entretanto, percebe-se que, ao longo dos anos,
a figura de Sant’Anna Gomes foi a mais importante como um esteio na atribulada vida do
irmão, atuando como conselheiro e incentivador. Próximo à estréia de Il Guarany, Carlos
escreve a Sant’Anna pedindo sua presença, e os qualificativos com que enaltece o irmão
revelam esta relação privilegiada:
Juca,
Aproxima-se o dia fatal. Vem; si tu me faltares e si o successo coroar os meus esforços, a tua ausência far-me-á receber as ovações do público italiano, com a alma cheia de tristeza e saudade por ti, meu irmão, meu amigo e sempre generoso
protector. (Boccanera, 1913, p. 27)
No que tange suas atividades individuais, Sant’Anna atuou de forma muita intensa
na vila de São Carlos, depois Campinas, como compositor, regente, instrumentista, professor, juiz de paz e empresário. Além de substituir o pai em suas responsabilidades musicais
na vila, exerceu por muito tempo a regência da Orquestra do Teatro São Carlos em Campinas, onde se apresentavam diversas companhias de ópera, em especial as italianas, que
não tinham orquestra própria e trabalhavam com a do teatro. Foi também negociante de
músicas e instrumentos musicais e atuou tambem como professor e violinista, instrumento
com o qual desmonstrou uma intimidade de virtuose.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
252
No que se refere à composição, Sant’Anna transitou por diversos gêneros e seu
catálogo inclui peças orquestrais, vocais, obras para banda e duas óperas. Alda é a única
ópera que concluiu, mas que continua inédita em termos de apresentação pública. Sua
tentativa anterior, Semira, não foi concluída. Nos últimos anos de sua vida, participou da
composição de uma Pastoral, com texto de Coelho Neto, então professor da escola Culto
à Ciência em Campinas. A peça estreou nessa cidade no natal de 1903 e contou com a
participação de outros nomes conhecidos do período: além de Sant’Anna, que compôs o
Prelúdio, Francisco Braga, participou com a Visitação, Henrique Oswald, Anunciação, e
Alberto Nepomuceno, compôs Natal, trecho que foi regido pelo próprio compositor na
ocasião da estréia.
Em termos de análise musicológica da obra de Sant’Anna Gomes se deve citar
estudos das peças camerísticas (Nogueira, 1992 e 2006), além de algumas obras para
banda (Abreu, 2010). Fora esses estudos, pouco se encontra sobre suas outras obras. De
fato, vários compositores brasileiros permanecem praticamente desconhecidos pela falta
de investimento em pesquisa sobre sua obra, como é o caso de João Gomes de Araújo.
José Pedro Sant’Anna Gomes também se enquadra neste grupo e é relevante que se investigue melhor sua produção, particularmente com as ferramentas de musicologia histórica,
para que se ofereçam edições críticas aos musicistas e regentes que desejem dar vida a
estas obras. Esta é a única maneira de expor a obra de um artista para que ela se submeta
ao crivo do público, de críticos e musicólogos e se faça um julgamento consciente da sua
produção.
A ópera Semira
Semira é a primeira das óperas de Sant’Anna Gomes. Verifica-se em duas páginas
de cópias de partes instrumentais a data de 15 de janeiro de 1889. A ópera ficou incompleta
e dela se conhece apenas um dueto e duas romanzas. O libreto é do poeta italiano Giuesppe
Emilio Ducati e o enredo versa sobre tema exótico, ambientado no oriente próximo. O
texto dos trechos disponíveis permite inferir uma trama de amores não correspondidos
entre a rainha Semira, o jovem Caled e Zyla. Há ainda a figura de Adim, que parece não ter
pretensões amorosas com a Rainha, mas em sua romanza expressa aspirações de poder
político envolvendo Semira.
A análise dos poucos documentos de Semira revela música de certo interesse. A
estrutura geral e a abordagem estética é a mesma do melodrama italiano do século XIX,
mas deslocada para o momento em que foi escrita. Fora esta ressalva, a música é de boa
qualidade, com desenho melódico equilibrado, chegando a momentos de rara beleza
como o caso da cantilena entoada pelo clarinete na introdução romanza de Zyla, no segundo ato da ópera (Figura 1) e o desenvolvimento melódico que ocorre durante as frases
de Zyla (Figura 2). Tanto o dueto de Caled e Semira como a romanza de Adim são obras de
boa fatura, ainda que não requintadas do ponto de vista harmônico, muito menos inovadoras em sua estrutura. Entretanto, o senso dramático para utilizar o discurso musical
comentando o discurso dramático está presente.
Nesse sentido, Semira se diferencia marcadamente da segunda e última experiência de palco de Sant’Anna Gomes – Alda. Como se verá na continuidade, essa segunda
ópera apresenta dificuldades composicionais importantes e, em um momento, pode-se,
inclusive, questionar se tal diferença em qualidade ocorreu sob a pena de um mesmo
autor.
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253
Figura 1. Introdução da romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.
Figura 2. Romanza de Zyla – Sant’Anna Gomes, Semira, 2º Ato.
A ópera Alda
Alda se divide em quatro atos e seu libreto é em italiano, do mesmo poeta de
Semira, Emilio Ducati. Informações na literatura admitem que Carlos Gomes tenha adquirido este libreto em Milão e posteriormente não tenha se interessado em compor a
música. Como Sant’Anna estava desejoso de compor uma ópera, Carlos Gomes teria enviado para o irmão em Campinas (Nogueira, 2001, p. 329). Essa hipótese fica mais patente
com notícia vinculada em Le Menestrel (1884) de que Gomes estaria terminando de
compor Lo Schiavo e se preparava para musicar um novo libreto de nome Semira. Os fatos ficam mais claros com outra notícia do mesmo periódico, já em 1887, que afirma:
O Mundo Artístico, de Buenos Aires, nos faz saber que o Mº Sant’Anna Gomes,
irmão do Mº. Carlos Gomes, autor do aplaudido Guarany, compositor ele mesmo,
escreve nesse momento uma ópera, Simira, sobre libreto do Mº. Emilio Ducati.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
254
A ação se passa na Síria, cerca de mil anos antes da era cristã. (Le Menestrel,
1887, p. 270)
Giuseppe Emilio Ducati foi também responsável pelo texto de algumas canções
de Carlos Gomes (Dolce rimbrovero e Per me solo) e Pietro Mascagni (Risveglio). Ducatti
foi também o libretista de ópera encenada no Teatro Solis de Montevidéu, Manfredo di
Svezzia (1882) do compositor uruguaio Tomás Giribaldi (1847-1930). Em relação à Alda,
no Dictionnaire des Opéras (Clemenet e Larousse) só se encontram duas óperas com o
mesmo título. A primeira é uma ópera cômica em um ato com libreto de Bayard e Duport,
estreada em 1835. A outra tem música de Derkum, representada em Colônia, na Alemanha,
em 1846. Pelo que se depreende dos comentários nesta referência, estas duas obra nada
tem a ver, em termos de enredo, com a Alda de Sant’Anna e Ducatti.
A ópera foi concluída em 1904, mas nunca foi encenada, apesar de o compositor
ter obtido recursos do governo para fazê-lo. A morte o surpreendeu. Por outro lado, seria
interessante verificar como seria recebida esta ópera, uma vez que em 1904, mesmo
Campinas já não apresentava ambiente propício a este gênero de espetáculo, sendo de
maior apelo ao publico as revistas e as operetas (Nogueira, 2001, p. 328).
O libreto de Alda
Alda pode ser melhor estudada pois sua partitura orquestral e uma redução
para canto e piano estão disponíveis. O libreto tem quatro atos e é típico das óperas italianas da primeira metade do século XIX, com tons exóticos. A trama se desenvolve entre
um grupo de ciganos e nobres perto de um castelo medieval na região de Auvernia e na
cidade de Arles, na França no começo do século XIII. Os personagens são
Falco, um guarda bosques
Barão de Auvernia
Renato, seu filho
Duque de Arles
Lida, sua filha
Sambo, um cigano
Alda, uma cigana
Mansa, dona da hospedaria
baixo
baixo
tenor
baixo
soprano
barítono
soprano
soprano
Participam ainda um coro de ciganos, servos do Barão, soldados e camponeses.
O enredo de Alda envolve um quarteto amoroso entre a cigana Alda, o filho do Barão de
Auverne, Renato, Sambo, um cigano e Lida, filha do Duque de Arles. Trata-se de um enredo
de amores não correspondidos e relações conflituosas entre ciganos e nobres e um
misterioso fato envolvendo o velho Barão e os ciganos em tempos passados. Como se
percebe, um tema de libreto de ópera bastante deslocado do tempo em que Sant’Anna
Gomes se propõe a compor a música.
O primeiro ato mostra uma hospedaria próxima ao castelo. Falco, um guarda bosque a serviço do Barão de Alvernia, acompanhado por camponeses, conta a história de uma
bela jovem cigana que se entrega a Renato, o jovem filho do Barão de Alvernia. Em seguida,
entra o Barão que afugenta os camponeses e tem longa conversa com Sambo, que dormitava
em um banco frente à hospedaria. Em linguagem muito indireta, mas que o esperto cigano
muito bem entende, o Barão pede que ele seqüestre a cigana e a mate em troca de
recompensas que mudarão a vida de Sambo. Após a saída do Barão, Sambo entoa uma ária
onde reflete sobre a tentadora oferta, mas ao fim resolve que: “ladrão, ainda que seja, mas
assassino, para vos dar prazer? Nunca! Nem que o Diabo me tivesse em seu poder!”.
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255
Na última cena, entram Falco e Alda acompanhados de um grupo de bandidos.
Inicialmente, Sambo não reconhece a donzela, mas esta o faz recordar os tempos em que
eram mais jovens e viviam juntos no bando de ciganos. Alda comenta sobre seu inditoso
amor por Renato e Sambo a exorta a unir-se ao seu bando. Isso acontece com a chegada
dos ciganos que reconhecem Alda como sua antiga parceira e a colocam sobre um carro,
ornada como se fosse a rainha do bando. Entoam um rataplan e partem felizes, menos
Alda que ainda pensa em seu fiel amor por Renato.
No segundo ato, na sala do castelo de Arles, entram Renato, o filho do Barão e
Lida, filha do Duque de Arles. O seu casamento será realizado naquela sala. Renato comenta
sobre um pedestal de mármore vazio e Lida replica que se tratava do busto de sua avó
que foi retirado devido a um triste fato do passado. Instada por Renato, Lida conta que
em tenebrosa noite de tempestade, um raio fulminante destruiu a estátua da avó e após
este maléfico dia, o povo dizia vagar um negro fantasma em noites de luar. Lida sai, pois
deve se preparar para a cerimônia. Renato, em uma ária, reflete sobre o fato narrado,
mas logo retoma em sua mente o amor por Alda, resignando-se diante da impossibilidade
de concretizá-lo.
Chegam os convidados em alegre algaravia, entre eles Sambo e Alda. Esta,
escondida sob um véu negro, carrega um punhal que pretende usar na rival e um filtro
letal para aquele que a abandonou. O cortejo nupcial adentra o recinto sob vivas e loas do
coro. O Barão e o Duque dão boas vindas a todos e preparam os noivos para a assinatura
do pacto nupcial. Subitamente, Alda, sobre o pedestal vazio e coberta por negro véu,
lança duro anátema aos noivos, ameaçando matar aquele que o pacto assinar. Todos se
surpreendem e identificam em Alda o fantasma antes referido. Ela se aproxima ameaçadoramente de Renato, mas é interrompida pelo Barão que desembainha a espada. Alda
puxa o véu e se revela para espanto de todos. Quando o Barão a tenta ferir, Sambo se
interpõem entre eles e Renato pede ao pai que se contenha, o que só faz aumentar o
espanto dos presentes. O Barão a acusa de ser uma feiticeira, ao que Sambo retruca, pedindo clemência, que se trata apenas de uma demente. Em vão, pois o Duque manda
prendê-la e ordena que morra queimada na fogueira. Renato pede ao Duque que a deixe
livre, ao que se junta Lida. Ele finalmente cede e manda que Alda e Sambo se retirem. O
Barão continua apreensivo e confessa que somente terá paz quando se livrar da bruxa
que enfeitiçou seu filho. Antes de partir, Alda se aproxima de Renato e lhe pede que se encontrem à meia-noite junto ao Arco de Augusto, ao que o rapaz cede. Sambo e Alda se
retiram sob o olhar amedrontado dos presentes.
O terceiro ato se desenvolve junto a um arco romano próximo ao rio Ródano. É
noite. Alda e Renato se encontram. Alda renova seus votos de amor eterno ao amado e
desculpa-se pelos momentos de ira e vingança. Renato diz que ainda a ama, pois atendeu
seu pedido de encontro. Mas resta Lida, menciona Alda, ao que Renato afirma não ser
mais seu intento casar, pois está disposto a fugir com sua eterna amada. Alda o alerta de
que ela é uma cigana e os ciganos têm o destino amaldiçoado e prediz que seu próprio
futuro é uma fogueira. Pela insistência de Alda para que ele se dê conta das intransponíveis
dificuldades para consumar seu amor, Renato chega a duvidar das intenções da moça. Entretanto, ela está apenas demonstrando os sacrifícios que os esperam se juntos permanecerem. Renato, por fim, aceita e combinam se encontrar no mesmo lugar na noite
seguinte. Eles não perceberam que Sambo, agora um pretendente de Alda, está escondido
em ruínas próximas e ouviu os planos dos amantes. Ele vitupera contra Renato, agora seu
rival pelo amor de Alda. Vinda da cidade cavalgando, aparece Lida que é interrompida
por Sambo. Esta lhe pede que informe como chegar ao acampamento cigano. Ele lhe diz
que será seu guia e que tem o poder de ler o futuro nas mãos. Lida se interessa e estendelhe a mão. Uma vida longa ela terá plena de gáudio, diz ele. Mas, em seguida, mostra-se
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256
assustado ao continuar a leitura. Lisa o insta a dizer a verdade. Hesitante ele revela que as
linhas declaram ser ela traída pelo noivo. Lisa fica muito abalada e Sambo diz que apenas
um filtro mágico poderá fazê-la recuperar o amor de Renato. À parte, Sambo reconhece
que o filtro, em verdade, levará Renato à morte. Após um momento de hesitação, Lida lhe
entrega uma bolsa de moedas de ouro e solicita que ele lhe dê o filtro e Sambo explica que
apenas algumas gotas em um copo de bebida serão suficientes, o resto Satã o fará. Lisa
parte com uma irônica saudação de Sambo que lhe deseja boa viagem e um amor mais feliz.
O último ato mostra um promontório no vale do Ródano e a cena se desenrola
junta a uma frondosa e antiga árvore. Alda, com trajes de peregrina, se encontra sob a
árvore esperando Renato, mas envolta em tristes pensamentos. Ela saiu do acampamento
cigano, mas percebeu que Sambo a seguiu com olhar ciumento. De fato, este a surpreende
junto à arvore. Sambo por fim, em tom suplicante, confessa o amor que lhe devota e pede que ela não fuja com Renato em busca de um futuro incerto e perigoso. O cigano tenta
de todos os modos demovê-la, mas Alda cada vez mais reafirma seu imutável amor por
Renato. Diz que seria incapaz de traí-lo, ao que Sambo indaga o que ela faria se ele morresse. Alda com crescente preocupação pergunta o que aquilo quer dizer e Sambo, com
júbilo infernal, conta que Lisa lhe havia pedido um filtro de amor e que ele lhe dera um
frasco de veneno. Alda parte desesperada na tentativa de salvar o amante. Sambo termina
a cena afirmando que ao destino traçado por satanás ninguém pode fugir. Que ele seja
odiado e amaldiçoado, pois um dia o fogo irá unir os dois.
No segundo quadro deste ato, vemos uma vasta sala do palácio do Duque de Arles, onde se desenrola uma festa. Lida e o Barão conversam com tranquilidade. A futura
nora lhe pergunta se o Barão acredita em filtros. Ele diz que não passam de crendices e
que para excitar o amor basta apenas um filtro, a beleza, o qual, diz ele, Lida o possui. Alda entra por uma porta lateral. Não lhe importa que seja surpreendida e morta, pois seu
intento é apenas salvar Renato. Ela se esconde no vão da porta quando vê Lida e Renato
se aproximando em amorosa conversa. Lida propõe um brinde e serve duas taças de vinho, lançando em uma delas o filtro dado por Sambo. No momento que Renato leva a
taça aos lábios, Alda sai do esconderijo e se apossa da taça, dizendo que ele morrerá se
tomar o vinho e que ela veio ali salvá-lo. Lida, apreensiva com a invasão, chama por socorro
e a cena é tomada por todos que se encontravam na festa. O Duque, enfurecido, manda
que os arqueiros prendam Alda e a levem direto para a fogueira. Voltando-se para o Barão,
Alda diz que beberá o licor que iria matar seu filho. De fato, amaldiçoando o Barão, ela
bebe da taça e a joga aos pés do surpreso Barão. Ela cai morta, fulminada. Renato tenta
aproximar-se do corpo, mas surge Sambo que a pega nos braços e sai precipitadamente,
afirmando que agora ela será sua. Todos estão horrorizados com os acontecimentos, o
Barão estremece com o anátema, Renato sente-se torturado pela dor e Lida afirma que
não mais se casará e que um convento a espera.
A música de Alda
Sant’Anna Gomes, como compositor, percorreu diversos gêneros do campo musical. Entretanto, o conjunto de sua obra, que não é extensa, tem uma forte inclinação
para a música de salão. Neste sentido, chama a atenção o desejo e preocupação do compositor em ingressar no difícil e trabalhoso gênero operístico, o que fez por duas vezes.
Ainda que sua produção maior tenha qualidade artística compatível com a estética específica dos gêneros exercitados (hinos, marchas, polcas, valsas, galopes etc),
ficam evidentes as dificuldades de Sant’Anna Gomes quando pretende enfrentar a
composição de uma ópera como Alda.
O material disponível é suficiente para um estudo adequado do ponto de vista
musicológico. Encontra-se no Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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de Campinas uma redução para canto e piano realizada por José Brachetto e duas cópias
da partitura de orquestra com caligrafia compatível com a do próprio Sant’Anna Gomes, o
que permite sugerir que estas cópias tenham sido produzidas por ele mesmo para uso em
futura execução. Entretanto, estas cópias, ainda que autógrafas, não parecem ter sido o
material original de gestação da obra, pois, além da caligrafia precisa, típica de uma cópia
para uso, elas não apresentam nenhuma correção, cancelamentos ou ajustes típicos de
um manuscrito autógrafo inicial.
Sobre a música de Sant’Anna Gomes, propõe-se apenas a análise do primeiro
ato, pois se acredita ser suficiente para uma visão do pensamento composicional do autor
para a integralidade da obra. De fato, ao longo dos demais atos, a proposta de Sant’Anna
Gomes em termos composicionais não se modifica. Entretanto, na sequência, serão
discutidas duas soluções de clímax dramático durante o segundo e quarto atos para melhor
ilustrar o manejo de Sant’Anna das ferramentas do drama musical.
A estrutura do primeiro ato se constitui em cinco cenas:
Prelúdio
Cena 1 –
Cena 2 –
Cena 3 –
Cena 4 –
Cena 5 –
coro de introdução e narrativa, 2/4 (Coro e Falco)
cena e dueto (Barão e Sambo)
ária (Sambo)
cena (Alda, Falco e Sambo)
Dueto (Alda e Sambo)
Arioso (Alda)
coro e cena
Coro rataplan
Finale
A ópera de Sant’Anna Gomes não apresenta uma abertura ou sinfonia, como
poderia se esperar no modelo escolhido pelo irmão de Carlos Gomes. Entretanto, cada
um dos quatro atos é introduzido por um curto prelúdio com limites muito tênues com o
número que segue. Já no primeiro ato verificamos uma curta introdução (Figura 3) de
oito compassos em Ré maior, seguidos por uma ponte cantabile em 6/8 que leva, de forma
pouco equilibrada, ao coro de introdução (Figura 4). O desenvolvimento harmônico é
convencional, pois segue-se a este desenho de três compassos, outros quatro agora na
dominante.
Este curto prelúdio revela, preliminarmente, a simplicidade da proposta de
Sant’Anna Gomes para sua obra e define o corte nitidamente romântico de sua construção,
em descompasso com a época em que foi composta, isto é, pouco antes de 1904.
Após esse curto prelúdio, o primeiro ato inicia com um coro de introdução com
a participação de um grupo de camponeses e Falco, o guarda-bosque do Barão. Trata-se
de uma típica introduzione largamente usada no melodrama italiano desde os primórdios
do século XIX, com as funções de estabelecer o cenário da ação e contextualizar os eventos
que seguem. O coro de introdução atesta a abordagem singela de Sant’Anna, pois o acompanhamento das vozes muitas vezes se assemelha a um dos exercícios iniciais de piano de
Carl Czerny (Figura 5).
A chegada do Barão leva a uma cena em diálogo com Sambo, o cigano, na qual
o Barão tenta cooptá-lo para seqüestrar e assassinar Alda. Após a saída do Barão, Sambo
reflete sobre a oferta na primeira ária da ópera.
O nível simples e descomprometido de estruturação melódica e harmônica continua a prevalecer ao longo de todo o ato, ora retomando uma atmosfera de Czerny ora
com o sabor típico de sonatinas de compositores menores do início do século XIX (Figura 6).
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Figura 3. Introdução ao primeiro ato – Sant’Anna Gomes, Alda.
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Figura 4. Coro, introdução – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Figura 5. Ária de Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Figura 6. Frase de Falco, introdução, redução do acompanhamento orquestral – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Por fim, chegam Alda e Falco, iniciando-se um longo dueto entre Alda e Sambo
e ao fim do ato temos uma cena com estes solistas e o coro, não faltando um Coro Rataplan,
algo que era usado em algumas óperas até a metade do século XIX, mas que logo caiu em
desuso (Figura 7).
Os demais atos se desenvolvem na mesma estrutura do primeiro ato, isto é, utilizando um esquema padrão da ópera italiana prévia ao pós-romantismo. Assim, Alda,
termina por constituir-se em uma típica ópera de números. De fato, ao longo dos atos se
identifica uma clara sequência de cenas estanques que são construídas em torno de duetos,
trios, árias, coros e finais (Figura 8).
Ao longo da ópera há falta de continuidade no discurso musical. Uma idéia musical, por mais simples que seja, não apresenta desenvolvimento que garanta um discurso
unificado. Um exemplo claro disto é o diálogo entre o Barão e Falco, onde o discurso de
encontro, fragmentado por frases curtas com ocorrência constante de cadências conclusivas, quer retomar a tônica de forma açodada (Figura 9). O novo período, muitas vezes,
também inicia com a mesma tônica, repetindo o mesmo plano harmônico, o que leva a
um passo musical profundamente monótono.
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Figura 7. Coro Rataplan – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Figura 8. Ária de Alda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.
Como bem define Reynolds (1985), melodia e harmonia, na prática comum, necessitam criar um sentido de direção e movimento. Boas melodias e progressões harmônicas devem criar tensão ou suspense que levam a um ponto de relaxamento. Nesse
sentido, Green (1990, p. 63) é mais enfática ainda ao considerar como características do
período romântico, ao qual tardiamente Sant’Anna se filia, o fato de que “o elemento de
suspense é utilizado na postergação das resoluções e o elemento de surpresa deixa a audiência sufocada através de súbitas e inesperadas mudanças de tonalidade”.
No caso de Sant’Anna Gomes, isto parece não ocorrer. O ritmo harmônico não
cria nenhum suspense, pelo contrário, está sempre levando a uma sensação de conclusão
antecipada, de fragmentação e falta de desenvolvimento lógico do discurso musical.
Mesmo em números fechados, como a ária de Sambo, que poderia indicar maior interesse,
o desenvolvimento melódico ou harmônico não está presente, limitando-se a apresentar
uma sequência de frases curtas em um conjunto que termina por soar desconexo e banal.
Da mesma forma que a ária de Alda não aguça os sentidos, o dueto que se segue entre ele
e Alda reafirma as dificuldades de Sant’Anna Gomes em enfrentar um genero maior do
que suas obras camerísticas. A seção introdutória a esse dueto é lapidar em confirmar
essa dificuldade (Figura 10).
Nos pontos climáticos da Alda essas dificuldades se salientam. Entretanto, como
típica exceção da regra, há aqui e ali breves trechos de maior interesse musical. Isto ocorre
no prelúdio, de caráter pastoral, ainda que similar a muitos outros congêneres no ramo
operístico. No mesmo caso se enquadra a música festiva para a cerimônia de casamento
do quarto ato, escrita para banda (Figura 11), gênero com o qual Sant’Anna tinha mais
intimidade. O tema principal, apresentado nos compassos 3 e 4 da Figura 11, é recorrente
em todo o segmento, o que garante, além do caráter brilhante e festivo, um sentido de
unidade temática as cenas terceira e quarta desse ato.
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Figura 9. Dueto entre Barone e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Figura 10. Seção introdutória do Dueto entre Alda e Sambo – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 1.
Figura 11. Música para banda – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.
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Interessa ainda discutir duas situações climáticas em Alda e a forma como
Sant’Anna as resolve.
Na cena quinta, do segundo ato, o libretista Ducati propõe um interessante coup
de théatre. Na tentativa de impedir o casamento de Renato com Lida, Alda, imóvel,
esconde-se sob um longo véu negro em um pedestal, à guisa de estátua. No momento da
assinatura do contrato nupcial, emoldurada por um festivo coro, Alda toma vida e, para
espanto e comoção geral, desce do pedestal e vaticina: Não, pelo inferno! Vosso destino
eu revelo. Quem este documento assinar,o amanhã não verá!. Esta súbita mudança de
clima é tratada convenientemente por Sant’Anna, mesmo que de forma básica – uso de
um inesperado acorde de sétima diminuta nos metais que interrompe a marcha do coro
(Figura 12). Não se pode negar que, pelo menos, o tratamento do clímax é convincente.
Outra situação bem conduzida por Sant’Anna Gomes ocorre na quinta cena do
último ato. O casamento interrompido no segundo ato é retomado. Novamente no festivo
ambiente de bodas, Lida verte um líquido na taça de Renato crendo ser um filtro de amor,
mas Alda sabe tratar-se de veneno que Sambo intencionalmente trocara. Alda surge e impede Renato de tocar no cálice – Pare! Jogue fora o cálice. Com o grito de Lida todos acorrem à sala e o espanto é geral – Que acontece! Lida aponta Alda e grita – A bruxa! Os presentes não se intimidam e pedem a morte de Alda – A ré malvada, morra na pira!. Sant’Anna Gomes consegue uma interessante mudança de ambiente dramático no momento da
súbita entrada de Alda, tanto pela transição para tonalidade menor como pelo surgimento
de ritmo concitado na orquestra (Figura 13).
Considerações finais
José Pedro Sant’Anna Gomes tem parte de sua evidência devida ao irmão Antônio
Carlos Gomes. Evidentemente, mesmo com esta afirmativa, não se pode negar a autonomia e o empreendedorismo de Sant’Anna Gomes em sua intensa atividade como cidadão
e músico em Campinas. Mesmo com maior tendência ao repertório ligeiro, Sant’Anna
frequentou o sisudo mundo da música sacra e a complexidade da ópera. Alda, sendo a
única ópera que completou, surge como item de interesse para a musicologia, pois que
seu estudo pode estabelecer quais identidades estéticas poderiam existir entre os dois irmãos, enquanto compositores de óperas, ainda que vivendo e experimentando cenários
culturais extremamente distintos.
O que se depreende da análise do que restou de Semira e da integralidade de
Alda é que o compositor não apresentava fôlego técnico e desenvoltura melódica para
enfrentar um gênero de estrutura tão complexa e extensa como é o caso da ópera. A qualidade do libreto de Ducati, usualmente criticada, não pode ser imputada como causa da
pouca qualidade da música de Sant’Anna Gomes. O texto é pobre, mas o enredo não é menos interessante que outros congêneres da época e, mesmo assim, apresenta pelo menos
dois momentos de coup de théatre que fariam a alegria de qualquer compositor mais
gabaritado, inclusive seu próprio irmão.
Por outro lado, não há como negar que a essência da obra de Sant’Anna está no
gênero camerístico de salão, mas a pouca inventividade do compositor em Alda contrasta,
pelo menos, com uma dessas obras. Trata-se de Suspiros (1907), escrita como variações
para quinteto de cordas e soprano ligeiro, com variações sobre um tema, utilizando escrita
de certo virtuosismo, o que dá à peça um caráter operístico, incluindo uma cadenza para
a exibição dos dotes da cantora (Nogueira, 2006, p. 554). Cabe ressaltar que a mesma autora chama a atenção que, entre as obras de Sant’Anna, Saudade! para cordas, se apresenta
com caráter bem mais diferenciado exatamente por que a melodia foi proposta por
Sant’Anna, mas o arranjo seria da lavra de Carlos Gomes.
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Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2.
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Figura 12. Cena quinta, clímax na cena do casamento – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 2 (cont.).
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Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4.
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Figura 13. Cena quinta, clímax final – Sant’Anna Gomes, Alda, ato 4 (cont.).
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Assim, pode-se depreender que, se havia uma estreita relação entre os dois
irmãos em termos fraternais, essa mesma associação não ocorreu em termos de estética
musical. Em Alda, a inventividade melódica, o fino senso dramático, o apuro formal e a
variada orquestração do irmão Carlos não foram assimiladas por Sant’Anna, nem por
imitação, uma vez que nada na sua música sequer se aproxima ao menor Gomes, nem
por transmissão, pois que não há referências de que o famoso irmão tenha, em algum
momento, sido tutor musical deste que ficou restrito a Campinas.
Referências bibliográficas
Abreu, A. J. José Pedro de Sant’Anna Gomes e a atividade das bandas de música na
Campinas do século XIX. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes. – Campinas: [s.n.], 2010.
Andrade, M. Pequena História da Música. 8ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1980, p. 166.
Bocannera, Silio. Um artista Brasileiro. Bahia: Thypographia Brasileira, 1913, p. 27.
Clement, F.; Larrousse, P. Dictionnaire des Opéras (Dictionaire lyrique). Paris: Edition
Larousse, s/d.
Le Menestrel, a. 50, n. 31, p. 246, 5-jul., 1884.
Le Menestrel, a. 53, n. 34, p. 270, 30-jul.,1887.
Nogueira, L. W. M. Transcrição de obras cameristicas de Sant’Anna Gomes. Projeto
Memória Musica Campineira, 1992.
Nogueira, L. W. M. Música em Campinas nos últimos anos do império. Campinas:
Editora da Unicamp, Fapesp – CMU Publicações, 2001, p. 359.
Nogueira, L. W. M. A obra camerística de José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908).
Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Música (ANPPOM), Brasília, 2006, p, 550-557.
Reynolds, W. H. Common-practice Harmony. Nova York: Longman Inc., 1983, p. 64.
Stecca, J. B. “O resgate das músicas de Sant’Anna Gomes”. In: Maestro José Pedro de
Sant’Anna Gomes – Centenário do falecimento 1908-2008. Campinas: Câmara
Municipal de Campinas, 2008.
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Joanna de Flandres de Carlos Gomes:
obra de transição
Lenita W. M. Nogueira
Universidade Estadual de Campinas
Carlos Gomes nasceu no dia 30 de junho de 1836 em Campinas, cidade distante
cem quilômetros da capital paulista. Era filho de Manuel José Gomes, mestre-de-capela
na sua cidade natal entre 1815 e 1868 e seu único professor até sua ida para o Rio de Janeiro em 1859. Nesta época já havia escrito diversas peças, entre elas as missas de São Sebastião e a de Nossa Senhora da Conceição. Em uma rápida temporada em São Paulo
compôs uma de suas obras mais famosas, a modinha Quem sabe? com letra de Bittencourt
Sampaio, estudante da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Contra a vontade do pai, foi para o Rio de Janeiro em 1859 e matriculou-se no
Imperial Conservatório de Música, onde concluiu seus estudos em 1863. Foi regente e ensaiador na Ópera Nacional, posto que lhe permitiu entrar em contato com o repertório
de música lírica, em especial a italiana, da qual era grande admirador.
Figura 1. Carlos Gomes por volta de 1873.
Em 1861 conseguiu levar ao palco sua primeira ópera, A Noite do Castelo, recebida com grande entusiasmo. Baseada em um poema do poeta português Antonio Feliciano
de Castilho, com libreto em português de Antonio José Fernandes, foi dedicada ao imperador Pedro II. A estreia ocorreu no dia 4 de setembro de 1861, no Teatro Lírico Fluminense, Rio de Janeiro. E, apesar de integrar o movimento da Ópera Nacional que buscava
a criação de um estilo de ópera brasileiro, o enredo de A Noite do Castelo se passa na Europa medieval na época das Cruzadas, notando-se alguma semelhança com Lucia de
Lammermoor de Donizetti.
A ópera inicia-se no castelo do conde Orlando; sua filha, Leonor está prestes a
se casar com Fernando. Anteriormente ela havia se comprometido com Henrique, sobrinho
do conde, que se acreditava morto nas cruzadas. Entretanto, isso não era verdade e ele
reaparece exatamente no dia do casamento e, ao perceber que naquela noite seria assinado o contrato nupcial entre Leonor e Fernando promete vingança. Encontra-se com a
noiva, mas não aceita as suas desculpas. Esta, ao final, perde o juízo (há uma cena de loucura) e, dentro dos padrões tradicionais da ópera no período, a morte de ambos é o desfecho da ópera.
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No Museu Carlos Gomes existe uma cópia da época, que pertenceu à filha de
Carlos Gomes, Ítala Gomes Vaz de Carvalho. A partir desta partitura foi levada à cena a
única montagem contemporânea desta ópera, que ocorreu em 1974 com a Orquestra
Sinfônica Municipal de Campinas. O manuscrito autógrafo foi doado recentemente ao
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo.
Logo após a estreia A Noite do Castelo foi editada em versão para canto e piano
por Raphael Coelho Machado com a indicação “Ópera nacional em 3 actos”. Na sua essência trata-se de obra de um jovem compositor talentoso, mas que ainda não estava plenamente amadurecido enquanto operista. A escrita musical ainda é bastante contida e por
vezes chega sugerir a modinha, gênero de canção popular na época. Somente neste aspecto, e pelo fato de seu libreto ser em português, pode-se aproximar esta obra de uma busca por padrões nacionais, já que se trata de uma ópera de quadros, com todos os clichês
vigentes na ópera italiana do período. Embora seja melodiosa e tenha alguns trechos inspirados, A Noite do Castelo não consegue arrebatar, já que a orquestração, embora correta,
é tímida e o trabalho vocal tenha pouco brilho. O conjunto carece de melhor urdimento e
percebe-se que as ousadias que caracterizariam o estilo posterior de Carlos Gomes ainda
estavam em estado embrionário. Isso, entretanto, não deve ser creditado apenas à
imaturidade do compositor, que tanto o enredo como libreto são medíocres e de pífia
inspiração.
Figura 2. Edição para canto e piano, de 1863.
Cerca de dois anos depois, em 15 de setembro de 1863, no mesmo Teatro Lírico
Fluminense no Rio de Janeiro, foi levada à cena Joanna de Flandres, a segunda ópera de
Carlos Gomes. O libreto de Salvador de Mendonça, embora de melhor feitura que o anterior, também deixa bastante a desejar. A ópera foi dedicada ao maestro Francisco Manuel
da Silva, então diretor do Imperial Conservatório de Música. Embora tenha ficado no esquecimento por bem mais de um século até sua restauração em 20031, Joanna de Flandres
é, no gênero operístico, imediatamente anterior a Il Guarany e representa uma passagem
importante na produção do compositor.
Ao escolher Joanna de Flandres, uma protagonista perversa e ardilosa, como
personagem principal de sua ópera, Gomes viu-se obrigado a elaborar mais a sua escrita,
...........................................................................
1
A autora desenvolveu um projeto de restauração desta ópera, incluindo grade de orquestra e redução para
canto e piano, concluído em 2003 e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP.
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apurando sua técnica de composição, tanto orquestral como vocal. Entretanto, esse avanço
não deve ser creditado apenas a seu talento inato, mas é consequência também dos estudos no conservatório e do intenso trabalho que vinha realizando desde 1860 como
regente da Companhia da Ópera Nacional. O trabalho incluía o estudo de partituras diversas
que deveria ensaiar e reger, reduções das partes orquestrais de óperas para piano, arranjos,
adaptações e a realização das partes cavadas. Essa prática foi um grande aprendizado e
ao escrever Joanna de Flandres já conhecia diversas óperas, bem como as técnicas de orquestração e escrita vocal.
Joanna de Flandres trabalha com uma orquestração mais densa que A Noite do
Castelo: piccolo, duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, quatro trompas,
dois trompetes, três trombones, oficleide, tímpanos, bumbo, triângulo, harpa, primeiros
e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. As trompas aparecem em diversas
tonalidades, já que eram utilizadas as naturais, às quais eram acoplados tubos que aumentavam ou diminuíam a sua extensão, conforme a tonalidade desejada. O oficleide,
instrumento de metal hoje em desuso, é bastante encontrado em partituras até o século
XIX, executando partes mais graves. (Seu substituto natural na orquestra é a tuba, mas
como esta teria uma sonoridade mais branda, alguns pesquisadores indicam a utilização
do bombardino.)
Em sua segunda ópera Carlos Gomes continua às voltas com as Cruzadas, já que
o enredo se passa no século XIII e conta a história de como a pérfida Joanna se apropriou
do reino de Flandres quando seu pai, o conde Balduino, foi dado como morto nas Cruzadas.
Ela tem como cúmplice o trovador Raul de Mauléon, com quem resolve se casar. Contudo,
Balduíno, não havia perecido e reaparece inesperadamente durante a cerimônia de casamento. Joanna, que não estava disposta á devolver o poder ao pai, finge não reconhecêlo, acusa-o de impostor e manda prendê-lo nas masmorras do castelo, sob os protestos
de sua irmã Margarida. Após uma série de eventos, Raul, cheio de remorsos, mata Joana,
que pede perdão ao pai, e se suicida.
Trata-se de um libreto fantasioso e nada do que nele ocorre parece corresponder
a alguma verdade histórica. A ação ocorre em Lilla (Lille) durante o ano de 1225 e tem
como pano de fundo a revolta dos flamengos contra Joanna. Esta personagem não é uma
criação literária, ela existiu e reinou por algum tempo naquela região, hoje integrada à
Bélgica2. O enredo da ópera é fictício, embora o pai de Joanna, Balduíno IX (ou Balduino I
de Constantinopla) tenha sido de fato dado como morto durante as Cruzadas em Constantinopla. Entretanto, uma possível volta desta personagem para reassumir o trono e a
consequente rejeição pela filha, parece não ter qualquer embasamento histórico.
Joanna de Flandres (1188-1244) ou Joanna de Constantinopla, não foi assassinada
e casou-se duas vezes, falecendo sem deixar herdeiros. Foi Condessa de Hainaut, esposa
de Fernando, filho do rei Sancho I de Portugal, e de Tommaso de Saboia, filho de Tommaso
I. Foi sucedida pacificamente no trono por sua irmã Margarida e ambas eram filhas de
Balduino IX e Maia de Champagna. O que foi possível localizar sobre um possível retorno
do conde Balduino foi uma referência a alguém que teria tentado se passar por ele.
A maneira como o perfil da heroína foi engendrado no libreto, entretanto, exigiu
um trabalho composicional bem mais acurado, no qual, mais que possível, foi necessária
uma escrita vocal bem mais elaborada, tanto no que se refere aos solistas como às partes
corais. As personagens principais têm características definidas, sendo que as irmãs Joanna
e Margarida, embora sejam personalidades antagônicas, são sopranos de tessitura semelhante e a elas ficam reservadas as partes mais complexas, com proeminência para
Joanna. Raul de Mauléon é um tenor que não tem grandes momentos virtuosísticos, o
...........................................................................
2
A região de Flandres fica no norte da Bélgica e teve um grande poderio econômico na Idade Média, quando
agregava ao seu território partes que hoje pertencem à França e à Holanda.
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mesmo ocorrendo com Balduino, baixo, e Huberto de Courtray, cavaleiro flamengo e líder
dos conjurados, barítono. Há ainda uma personagem menor, Burg, confidente de Joanna,
tenor, de pouca relevância no contexto. No que se refere às partes corais é interessante
notar que há uma cena na qual são utilizados dois coros, um masculino representando os
flamengos e outro, misto, os franceses.
O manuscrito original de Joanna de Flandres, por razões não esclarecidas, está
dividido em dois arquivos: o primeiro ato, que corresponde a quase metade da partitura,
está no Museu Histórico Nacional e os outros três na Biblioteca Arthur Nepomuceno da
Escola da Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ambos na cidade do Rio de
Janeiro.
As cenas foram todas numeradas pelo compositor, mas não existe o número 1:
o Prelúdio, designação do próprio compositor, já traz o número 2. Isso provavelmente
ocorreu porque Carlos Gomes, em razão do tempo, teria deixado para escrever a abertura
após a estreia, como faria também em Il Guarany. Mas naquele ano de 1863 as coisas se
precipitaram e logo após a estreia, por ter sido o aluno mais destacado do Conservatório,
Gomes ganhou uma bolsa de estudos e partiu para Milão logo em seguida, deixando uma
possível abertura de Joanna de Flandres para trás.
Figura 3. Página de rosto da partitura, no topo, a inscrição “N. 2”.
Outro trecho em que há saltos na numeração é no início do terceiro ato, já que
o número 14 também não aparece no manuscrito. Talvez aqui tenha acontecido a mesma
coisa, o compositor teria pensado em escrever uma abertura para o terceiro ato, já que o
número 13, que fecha o segundo ato, é uma Marcha Triunfal perfeitamente concluída,
não havendo quebra no enredo, na continuidade musical ou no manuscrito.
Os manuscritos têm diversos trechos rasurados ou riscados, em sua maioria
correções, algumas provavelmente realizadas pelo próprio Gomes e outras sobre as quais
não temos elementos para fazer qualquer afirmação. Mas podemos fazer algumas ilações
partindo do fato de que pouco antes da estreia o compositor e a produção da ópera
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Figura 4. Página inicial da partitura, com a inscrição “N° 2” no alto, à esquerda.
trocaram ofensas que foram publicadas na imprensa carioca. Em uma delas Gomes solicitou
ao regente Nicolau Priol que declarasse em público as correções, cortes e acréscimos que
havia feito na partitura sem sua autorização e se eram mesmo necessárias.
O maestro acabou por abandonar tudo às vésperas da estreia, o mesmo
acontecendo com o tenor, já que os empresários não haviam acertado seu contrato. A
própria empresa começou uma campanha difamatória na imprensa alegando que o
compositor perturbava os trabalhos de preparação do espetáculo. A troca de farpas pela
imprensa continuou com ironias dirigidas ao compositor, com insinuações sobre seus
erros gramaticais, e ao libretista Salvador de Mendonça, chamado de “poeta funileiro”.
Na imprensa um dos detratores assinava anonimamente suas críticas com o pseudônimo
de “Funil” e um certo H.F. publicou uma sátira que apresentava Joanna de Flandres passeando pela “Rua dos Latoeiros”, ornamentada com objetos como funil, regador e escumadeira.
Depois de dois adiamentos a ópera estreou no dia 15 de setembro de 1863 sob
a regência de Carlo Bosoni. Curiosamente os empresários tentaram “fabricar” o fracasso
da ópera preparando uma vaia, contrataram uma claque e deixaram de vender muitos lugares, de modo que teatro ficasse vazio e pudessem alegar que o espetáculo não havia
despertado interesse. Para completar, marcaram para a véspera um recital com os cantores
que iriam participar da ópera, de forma que estivessem cansados no dia da estreia. Mas
apesar da confusão e das disputas Joanna de Flandres foi bem recebida e contou com a
presença do imperador Pedro II na estreia.
O manuscrito tem 1054 páginas e cerca de 70 mil compassos o que nos leva a
imaginar quanto tempo não teria sido necessário para sua realização (não entraram nesse
cômputo as partes cavadas). Atualmente computadores e programas de escrita musical
facilitam nosso trabalho e podemos reproduzir música sem dificuldades, mas na época
de Gomes ainda eram utilizadas penas, cuja tinta não durava mais que alguns segundos,
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Figura 5. Sátira publicada na imprensa carioca, em 1863; ao fundo, compositor e libretista.
obrigando a sucessivos e repetitivos movimentos para recarregar a pena. Além dos sinais
musicais, ainda era preciso riscar barras de compassos e por vezes até mesmo as pautas.
Para ganhar tempo os compositores e copistas criavam atalhos e abreviaturas e
estes existem fartamente na partitura de Joanna. Decorridos quase cento e cinquenta
anos da estreia (além de dois ou três anos de composição), tais sinais não deixam claras
intenções do compositor. Muitos trechos, por serem repetições, foram deixados em branco,
mas existem sutis diferenças, o que obriga a idas e vindas na partitura e em tais situações
o erro passa ao lado. Sabe-se que o libretista atrasou e, provavelmente para ganhar tempo,
Gomes deixou de anotar diversas indicações, talvez consideradas óbvias ou subentendidas.
Sabendo que qualquer problema poderia ser resolvido durante os ensaios, aos quais ele
estaria presente, deixou lacunas no manuscrito. Isso exigiu dos restauradores atuais a
tomada de decisões de cunho pessoal, que, entretanto, não foram apoiadas apenas na
intuição, mas sim no conhecimento da obra e do estilo do compositor.
O manuscrito autógrafo tem também diversos trechos rasurados e/ou riscados,
indicando correções, acréscimos de articulações e dinâmica, além de cortes de trechos
inteiros. Anotações e cortes podem ter sido realizados por pessoas diferentes, já que aparecem nas cores preta, vermelha e azul. Existem ainda correções realizadas com a mesma
tinta preta do manuscrito, o que nos leva a supor que foram realizadas pelo próprio compositor. Mas como são, em sua maioria, riscos e sinais indicativos, não é possível afirmar
isso com segurança.
Conforme dito anteriormente Gomes desentendeu-se com o maestro Nicolau
Priol por este ter teria efetuado cortes na partitura sem sua autorização. Isso nos leva a
imaginar que parte dessas anotações talvez não seja mesmo do compositor e sim de Priol
que acabou abandonando a ópera. A regência coube a Carlos Bosoni, que teria trabalhado
com o mesmo manuscrito já rasurado pelo regente anterior.
Após o Prelúdio (n. 2), a cena inicia-se com a conjuração dos revoltosos fiéis a
Balduíno, que, em uma marcha patriótica, juram defendê-lo.
O tema é apresentado inicialmente pelo líder dos revoltosos, Huberto de Courtray, barítono, e depois repetido entusiasticamente pelo coro masculino. Aqui já é possível
notar uma orquestração mais densa, distanciada da utilizada em A Noite do Castelo.
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Figura 6. Trecho inicial – A Conjuração.
Figura 7. Trecho do coro dos conjurados.
Na sequência a cena muda para os salões do palácio e Joanna, que, avisada de
que tramam contra ela, canta a ária mais conhecida da ópera “Foram-me os anos da
infância”, editada anos atrás (Figura 8).
Como passaria a ser uma característica da obra de Carlos Gomes, há uma súbita
mudança de clima com a entrada de um coro de cavalheiros franceses que repudiam a
revolta popular contra Joanna e esta, em um trecho de grande virtuosidade, exalta a
vingança: “só tu me elevas de infernal prazer! […] Sou tua, és minha!”. Neste trecho também
é possível notar que a estética de A Noite do Castelo estava ficando para trás, já que o
compositor não economizou ornamentos, saltos, vocalizes, notas extremas e ritmos
agitados para que a solista pudesse expressar sua ira (Figura 9).
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Figura 8. Ária de Joanna – Foram-me os anos da infância.
Figura 9. Ária de Joanna – Vingança.
Na cena seguinte Joanna está a sós com seu amante e cúmplice Raul e é interessante notar pela terceira vez a heroína muda de atitude somente nesta cena. Aqui ela
está dialogando de uma maneira aparentemente delicada, mas seu cinismo é visível, há
certo mal-estar entre casal que troca acusações veladas. E mais uma vez Gomes demonstra
como havia aprimorado a qualidade de sua escrita, tanto vocal como orquestral, ao fazer
mais uma mudança no sentido do trecho, passando para uma cena romântica na qual um
dueto de amor bastante longo marca o desenvolvimento de um estilo que Gomes começava a desenvolver e que teria continuidade em sua obra posterior, em especial na
Fosca (Figura 10).
Após essa cena romântica, Joanna e Raul resolvem se casar, o que dá ensejo a
um segundo dueto, tão longo quanto o primeiro, porém bem mais brilhante. No decorrer
dessa cena, a mais longa de toda a ópera, existe indicação de um corte que vai da página
212 até 232, talvez um dos motivos da rixa entre compositor e maestro. Mas é preciso levar em consideração que o trecho é, de fato, muito aquém das expectativas no que se refere à duração de um ato operístico.
Na figura abaixo, no último compasso, há uma indicação “Salto” e uma modificação posterior feita com papel colado para adaptar o texto de Raul para o salto e a entrada na página 232 (Figuras 11 e 12).
O casamento é uma típica cena de corte, com brindes e vivas, mas apesar do júbilo, há certa desconfiança no ar, já que foi tudo definido às pressas e simplesmente comunicado à corte, além do que Raul era um plebeu sem posses. A festa é interrompida
pela chegada de Balduíno, que se apresenta a Joanna. Ela não só nega conhecê-lo, como
o acusa de impostor, sob o olhar estupefato de sua irmã Margarida. Aqui são utilizados
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Figura 10. Início do dueto de amor.
dois coros, um masculino (flamengos) e um misto (os nobres franceses), num interessante
contraponto de ideias e expressões: os flamengos cantam sua revolta, e os franceses, sua
surpresa. O mesmo se dá com solistas: Balduíno expressa seu sofrimento com a longa
ausência e a rejeição da filha, Huberto, sua revolta, e Margarida, compaixão pelo pai. Já
Raul instiga Joanna a calar-se e essa fica num misto de ódio e remorso.
No final há o consenso de que a melhor solução seria levar o caso ao rei da
França, que resolveria a questão. Musicalmente, trata-se de uma cena bastante elaborada,
talvez inspirada no quarteto do Rigoletto (1851) de Giuseppe Verdi. Embora Gomes ainda
não tivesse a maestria do compositor italiano, o conjunto é bem elaborado e o ouvinte
consegue distinguir esses sentimentos díspares.
A partir desse momento há um crescimento de Margarida, que introduz o tema
que vai concluir o primeiro ato, desenvolvido em seguida por solistas e coros. Este trecho
também é bastante longo, resultando em uma ópera muito irregular em termos de
conjunto, pois aqui termina o primeiro ato e já estamos praticamente na metade da obra
(Figura 1B).
O segundo ato inicia-se com uma cena na qual Raul, cheio de remorsos, canta
uma ária bastante conhecida, editada há alguns anos em versão para canto e piano (Figura
14).
Burg, o fiel de Joanna, entra em cena e informa que a tropa o aguarda; Raul,
enfurecido, ordena que ele saia e canta uma cavatina onde afirma seu amor por Joanna,
mas conclui dizendo que, caso ela não ouça a voz da razão e aceite seu pai como conde de
Flandres, “tanto amor há de em ódio se tornar”.
O trecho seguinte é também é bastante conhecido e frequentemente executado.
Trata-se de um solo de flauta dedicado ao famoso flautista belga radicado durante o século
XIX no Rio de Janeiro, Mathieu-André Reichert (1830-1880), que introduz Margarida num
cenário entre ruínas. Ao lado de uma fonte ela relembra sua infância até que chegam
Huberto e os revoltosos, que a saúdam: “Sois de Flandres, a boa estrela, nosso arcanjo
protetor”. Surpresos ouvem uma marcha triunfal e compreendem que a sentença do rei
de França foi favorável a Joanna. Esta ordena que Balduino seja conduzido ao cárcere,
concluindo o segundo ato.
Ao final deste trecho, Gomes, certamente exausto, anotou na partitura: “com
mil demônios acabemos assim” (Figura 15).
Um terno dueto entre Balduíno e Margarida dá início ao terceiro ato, mas são
bruscamente interrompidos pela entrada de Joanna. Ela tenta convencer o pai a assinar
um documento no qual, em troca de sua liberdade, afirmaria que conde de Flandres
estava morto. A recusa de Balduíno dá origem a um interessante terceto, onde
encontramos novamente uma escrita musical na qual estados de espírito opostos são
confrontados (Figura 16).
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278
Figura 11. Da página 212, modificação no último compasso da linha de Raul.
Figura 12. Da página 232, final do trecho cortado, na indicação “qui”.
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279
Figura 13. Margarida introduz o tema.
Figura 14. Ária de Raul.
b
Figura 15. Final do ato II, trecho de leitura difícil, com a anotação: “Com mil demônios acabemos assim”.
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280
Figura 16. Ato III, Trio Joanna, Margarida e Balduíno.
Enquanto Balduíno e Margarida declaram mútuo amor, Joanna destila todo seu
ódio em outro trecho de grande virtuosidade. O ato se encerra quando ela abandona intempestivamente o cárcere, não sem antes hesitar num passageiro ataque de remorsos,
que em nada afeta seu desejo pelo poder.
O quarto ato acontece no palácio e Raul canta variações sobre a sua ária do segundo ato. Ao fundo Joanna revela desprezo pela fraqueza de Raul e ao se encontrarem
cantam um dueto no qual ele revela que vinha tendo pesadelos que envolviam a morte
de Balduíno e a ira popular (Figura 17).
Joanna repete o mesmo tema com acento irônico, dizendo que não teve sonhos,
mas vê com júbilo a mesma coisa que Raul, a cabeça do pai rolando no patíbulo. Em um
trecho de bravura Raul faz pesadas acusações: “Ímpia filha, criminosa, teu intento hei de
mudar”, ao que Joanna responde “Tu perjuro, me traíste, mas não podes me abrandar”.
Joanna ordena a seu fiel, Burg, a execução de Raul entregando-lhe um punhal.
Margarida vem implorar pela vida de Balduíno: “Oh, pelos céus, perdoa quem te deu a vida!”, mas a condessa não se importa com o destino do pai, “que sofra seu destino, sua
sorte”. O som triunfante de uma fanfarra de metais indica que Balduíno foi libertado pelos revoltosos e vem retomar o seu lugar. As duas irmãs cantam um duo de grande exigência
vocal, no qual Joanna continua jurando vingança, mas já temerosa, e Margarida exulta
com a libertação do pai.
Na cena final da ópera, Raul retorna portando o punhal que arrancara das mãos
de Burg e após breves palavras ele próprio, alheio aos pedidos de clemência e apelos desesperados de Margarida, apunhala Joanna. Balduíno entra a tempo de escutar a última
ária da filha moribunda, na qual ela pede perdão a ele e a seu povo: (Figura 18).
É ordenada a prisão de Raul, que se adianta e crava em si o punhal, dizendo “Eu
cumprir vou o meu cruel destino!”. Tudo isso numa cena muito rápida, não há muita exploração destas mortes. A ópera termina com rápido e convencional tutti, que destoa do
conjunto da ópera. Além da música banal, o texto final também é sofrível: “Oh, dia fatal!”.
Ao final da composição, Carlos Gomes, ainda mais exausto com a composição e
certamente aborrecido com os problemas que ela vinha acarretando anotou no manuscrito: “Fim d’um triunfiasco” (Figura19).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
281
Figura 17. Ato IV, Dueto Joanna e Raul.
Figura 18. Ária final de Joanna.
Figura 19. Página final do manuscrito, trecho de leitura difícil e a inscrição: “Fim d’um triunfiasco”.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
282
Figura 20. Final do manuscrito – detalhe.
Nessa sucinta apresentação encontramos elementos pouco característicos da
ópera do período, quando, em geral, as heroínas sofredoras e fracas predominavam na
cena operística. Joanna de Flandres, na contramão desse padrão, não tem caráter, é má e
dissimulada, prenunciando as futuras malvadas de Gomes como Fosca (1873) e Maria
Tudor (1879). Mas a mulher pura e sofredora, padrão da ópera romântica, está presente
na figura de Margarida, que passa grande parte de suas cenas tempo em sofrimento e
implorando a ajuda divina.
Já Raul de Mauleón é um anti-herói de caráter duvidoso que, ao apresentar-se
na corte como trovador, cai nas graças da condessa. Esta, entretanto, vai usá-lo como
instrumento para chegar a seu intento. Ele se submete e a apoia em seus atos criminosos
na esperança tornar-se rico e poderoso. Ao final é tomado pelo remorso e tenta convencêla a recuar, mas ao fracassar pratica um gesto operístico incomum ao assassinar
deliberadamente a amada e heroína (que por sua vez havia ordenado sua morte).
Inserida entre o desabrochar de A Noite do Castelo e um dos maiores sucessos
de toda a carreira de Carlos Gomes, Il Guarany, montada na Itália em 1870, a ópera Joanna
de Flandres apresenta-se como uma transição entre a primeira, na qual o compositor
ainda tateava, tanto no aspecto musical como na busca de um estilo pessoal, e a outra,
onde já coloca sua marca pessoal. Neste sentido podemos dizer que se Joanna de Flandres
ainda tem alguns problemas referentes à técnica composicional, se comparada com A
Noite do Castelo é um avanço imenso e já aponta para o arrojo de Il Guarany, embora a
estética desenvolvida na Joanna não tenha sido muito explorada nesta ópera. Ela vai
aparecer com mais ênfase na ópera seguinte, Fosca. Talvez por ter imprimido nesta ópera,
a segunda apresentada na Itália, o estilo tão pessoal que havia esboçado em Joanna de
Flandres, Fosca sempre foi a obra preferida de Carlos Gomes (Figura 20).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
283
Fontes documentais
Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro (1° ato)
Biblioteca Arthur Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2º, 3º e 4º atos)
Partitura
Nogueira, Lenita W. M. Joanna de Flandres. Transcrição musicológica coordenada pela
autora com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Grade orquestral e redução para canto e piano. Campinas, 2003. (Não editada).
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285
A abertura do drama lírico Pelo amor!
(1897) de Leopoldo Miguez (1850-1902)
André Cardoso
Universidade Federal do Rio de Janeiro
O compositor Leopoldo Miguez (1850–1902) ocupa uma posição singular no panorama da música brasileira da virada do século XIX para o XX. Sua produção é concentrada
em dois gêneros representativos da estética do século XIX: o poema sinfônico e o drama
musical. O sinfonismo de Miguez é a principal marca de seu trabalho, em especial se confrontado com o operismo italiano em voga em seu tempo. Facilmente se constata que,
não por acaso, a música de Franz Liszt (1811–1886) e Richard Wagner (1813–1883) fornece
a base estética para sua música que, dentro do contexto sociocultural, representava no
Brasil do final do segundo Império, a face do pioneirismo e da vanguarda. O ímpeto renovador de Miguez junto ao movimento republicano serve como pano de fundo a uma busca de uma expressão musical que se contrapunha ao gosto predominante no antigo regime,
e a apologia de Miguez em favor da então música do futuro, revela entre outras coisas,
mas em especial no campo artístico, o anseio por mudanças relevantes no campo político.
A historiografia musical brasileira vem repetindo ao longo das últimas décadas
a afirmação de que a música de Miguez é devedora de Wagner. Não se pode negar de modo algum que, de fato, a parte principal de sua obra – representada pelos poemas sinfônicos
Parisina, Prometeus e Ave Libertas e pelos dramas musicais Pelo Amor e I Salduni – seja
filiada aos cânones lisztianos e wagnerianos. Ainda assim, a análise um pouco mais cuidadosa de um conjunto maior de obras da relativamente pequena produção musical de Miguez, nos revela um compositor mais eclético e que em diferentes momentos de sua carreira lançou mão de procedimentos composicionais representativos de outras escolas de
composição. Não são encontrados vestígios da música de Wagner, por exemplo, em boa
parte de sua produção para piano solo, onde predominam as chamadas “peças características” tão a gosto dos salões parisienses e nas quais percebemos o estilo chopiniano,
especialmente nos Noturnos. Sua sonata para violino, composta em 1887, se liga à tradição
da música pura que vem de Mendelssohn e Schumann chegando até Brahms, uma corrente
estética antagônica à música programática. O que dizer então de sua Suite Antiga, composta
como uma recriação de danças barrocas?
De qualquer forma, Leopoldo Miguez se apresenta, de fato, como o maior representante da corrente wagneriana no Brasil e seu principal conjunto de obras, acima mencionado, não deixa dúvidas sobre isso. Mesmo alguns de seus contemporâneos e amigos
criticaram os excessos wagnerianos de Miguez. José Rodrigues Barbosa (1857-1939) afirmou em 1922 que Miguez “fez mal em subordinar-se, por completo, a uma forma musical
que Wagner criou definitivamente” e que o compositor brasileiro foi “um imitador de
Wagner”. Ressalva, porém, que foi um “imitador genial” (Barbosa apud Castagna, 2007,
p. 77).
Fazendo uma rápida revisão da literatura referencial sobre música brasileira constatamos que o julgamento da produção de Miguez se dá quase que exclusivamente a partir das premissas ideológicas do modernismo brasileiro. Luiz Heitor Correa de Azevedo,
em texto de 1938, diz: “Leopoldo Miguez, em seu ardoroso proselitismo, assimila tão
bem a técnica wagneriana que toda a partitura dos Saldunes é como que uma edição reAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
286
sumida e vulgarizada da Tetralogia, em que se pode apontar, página por página, a correlação com o monumento que subjugara as suas faculdades criadoras” (Azevedo, 1938,
p. 23). Apesar do tom crítico inicial Luiz Heitor mostra certa condescendência dizendo
mais à frente que nem por isso I Salduni “perde as qualidades que possue no mais alto
grau: nobreza, perfeição de forma, teatralidade, colorido orquestral e uma verdadeira e
cálida emoção, onde às vezes trai-se o artista tropical” (Azevedo, 1938, p. 51). Renato Almeida, por sua vez disse que:
Leopoldo Miguez foi um discípulo de Liszt e de Wagner, sem maior originalidade,
embora com certo caráter. Fez uma música brilhante, com muitas páginas bonitas,
mas sem significação na história da nossa música. [...] aceitou os modelos que
outros fixaram e tudo quanto fez foi uma adaptação, na qual consumiu todas as
forças do seu engenho. […] O seu poema sinfônico foi o poema sinfonico de
Liszt, a sua ópera o drama musical de Wagner. Dess’arte, Leopoldo Miguez como
compositor, não tem significado social na história da nossa música e, se deixou
belas páginas, nenhuma influência exerceram elas sobre a nossa vida artística,
sobre o desenvolvimento da criação musical brasileira. (Almeida, 1942, p. 395)
Bruno Kiefer, compositor e musicólogo de outra geração, segue os passos de
Renato Almeida e afirma que Miguez “compôs uma obra que não trouxe a menor contribuição para uma música de características brasileiras. A rigor, não foi criador. Dominava
o métier, não há dúvida, mas foi para seguir, como epígono, as pegadas de Liszt e Wagner,
sobretudo deste último” (Kiefer, 1976, p. 127).
Como podemos ver a visão modernista embota uma compreensão mais nuançada do papel dos compositores românticos brasileiros e chega mesmo a ser incoerente
ao aceitar e legitimar, por exemplo, uma obra como o Requiem do Padre José Maurício
Nunes Garcia (1767-1830), calcada na obra análoga de Mozart. Mas, ao contrário dos
compositores de nosso romantismo musical, a figura de José Maurício era útil aos propósitos políticos de afirmação da nacionalidade brasileira levados a cabo pelos modernistas.
Em prol da causa os modernistas poderiam, portanto, considerar o mozartiano Requiem
de José Maurício uma obra válida, mas não os lisztianos poemas sinfônicos e as óperas
wagnerianas de Leopoldo Miguez.
Mais arguta e menos reducionista nos parece a opinião de Enio Squeff ao afirmar
que Miguez, apesar de “ter cedido demais ao modelo maior”, no caso a música de Wagner,
“não foi menor compositor por isso” (Squeff, 1982, p. 33). Squeff prossegue dizendo que
“o mundo instável de Wagner – e por extensão de Miguez – é, indiscutivelmente, o mundo
em transformação do capitalismo; mas ao contrário da visão debussista […] à visão ‘wagneriana’ de Miguez impõe-se um ordenamento ideológico”. Conclui, por fim, dizendo que
“o que importa é que Leopoldo Miguez não foi um anacronismo; ligou-se a uma das alternativas ideológicas que o mundo contemporâneo de então se lhe colocava” (Squeff, 1982,
p. 120).
A visão de Squeff mostra que a contribuição musical de Leopoldo Miguez pode
ser muito mais relevante do que aquela que a historiografia brasileira referencial repete
já há várias gerações, ou seja, a de Miguez como um simples imitador de Liszt e Wagner.
Em Miguez as questões políticas e ideológicas são fundamentais para compreender sua posição no panorama da música brasileira da virada do século XIX para o XX.
Para Miguez ser moderno naquele momento significava ser republicano, positivista e wagneriano. Se o Império estava por demais identificado com a música italiana, suas convicções
políticas o levaram naturalmente a adotar uma linguagem musical que se contrapusesse
ao italianismo predominante durante o regime monárquico. Se o positivismo era a ideoAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
287
logia da jovem República brasileira, o Instituto Nacional de Música deveria adotar os princípios de “ordem e progresso” estampados na bandeira nacional e se transformar em instituição modelar. Em seu relatório de viagem à Europa para conhecer as instituições de
ensino musical entre 1895 e 1896, publicado em 1897, Miguez exalta “a ordem e a disciplina” dos conservatórios alemães e belgas e critica o “conservadorismo impertinente”
e os “antigos e obsoletos métodos” dos italianos. Seu orgulho republicano no relatório fica igualmente patente quando menciona sua visita ao Musikverein de Viena ocasião em
que pode ver o “manuscrito da Sinfonia Heroica de Beethoven com a dedicatória a Bonaparte raspada a canivete”, ressaltando que “tal fato tão comentado da vida de Beethoven”
era uma prova de “quanto aquele espírito elevado era republicano” (Vermes, 2004). Com
Miguez à frente o Instituto Nacional de Música se transformaria no bastião da modernidade
musical na última década do século XIX não só através de uma renovada prática pedagógica,
mas também através de iniciativas até então inéditas como a criação de um laboratório
de acústica e um museu instrumental, o que denota uma abordagem mais científica da
música.
As questões político-ideológicas se refletem na prática musical e a música italiana,
considerada decadente e conservadora, vai dando lugar ao repertório “progressista” das
escolas francesa e alemã, com embates entre seus respectivos defensores, representados
na imprensa da época pelos críticos Oscar Guanabarino (1851-1937) e José Rodrigues
Barbosa. É a partir da atuação e postura progressista dos compositores ligados ao INM
que novas obras são apresentadas ao público carioca na transição do século XIX para o
XX. Pelos programas dos concertos dirigidos por Miguez, Alberto Nepomuceno (18641920), Carlos de Mesquita (1864-1953) e Francisco Braga (1868-1945) – à frente de orquestras como a do Instituto Nacional de Música, do Clube Beethoven, da Sociedade de
Concertos Populares, da Sociedade de Concertos Sinfônicos ou arregimentadas para ocasiões especiais, como a Exposição Nacional de 1908 – podemos perceber um amplo domínio do novo repertório austro-germânico, francês e até mesmo russo em detrimento
do italiano (Goldberg, 2006).
Miguez foi figura central da vida musical brasileira nas duas últimas décadas do
século XIX. Sua morte prematura aos 52 anos de certa forma abriu espaço para novas
lideranças. Quem ocupará o espaço deixado por Miguez e emergirá como novo líder da
chamada “República Musical” é exatamente seu sucessor na direção do INM, o compositor
Alberto Nepomuceno.
Pelo Amor!
Para tratar da gênese do drama lírico Pelo Amor! se faz necessário abordar a figura de Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934), o escritor que, no final do século
XIX e início do XX se apresenta como libretista de várias óperas de diferentes compositores
brasileiros como Pelo Amor e I Salduni de Leopoldo Miguez, Artemis e Abul de Alberto
Nepomuceno e Hostia de Delgado de Carvalho. Luiz Heitor julgou ser Coelho Netto “o libretista titulado da nova ópera brasileira” e que a partir de sua “fantasia pujante, inflamada
pelo simbolismo torrencial do drama lírico wagneriano, surgem os melhores poemas de
ópera até hoje escritos no Brasil” (Azevedo, 1938, p. 23).
Em 1897, ano de criação de Pelo Amor, Coelho Netto já era um escritor consagrado, além de personalidade que desfrutava de grande prestígio no meio intelectual
carioca daquela época. Segundo Coelho Netto a arte dramática no Brasil encontrava-se
em franca decadência em razão do predomínio das “revistas e bambochatas”. Para fazer
frente a esse gênero de espetáculo popular Coelho Netto liderou uma campanha em prol
do que considerava serem ideais artísticos mais elevados. Sua ideia era reunir em grêmios
e associações artistas amadores com a missão de apresentar espetáculos dramáticos e
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
288
sua estratégia foi fomentar acalorados debates na imprensa de modo a fazer valer seus
ideais artísticos. Segundo Danielle Carvalho (2009) é devido à relevância do papel de Coelho
Netto no meio intelectual da época que a imprensa dá atenção ao literato e acolhe seus
artigos. Sob pseudônimo, Coelho Netto lança “ácidas críticas às peças em cena naquele
momento” que, através da pilhéria, tinham como objetivo “agradar os gostos impudicos”.
Coelho Netto rotulou tais espetáculos de “chirinola” que significava uma embrulhada ou
trapalhada. Carvalho conclui, então, que o drama Pelo Amor! de Coelho Netto e Miguez
seria um
exemplo da produção teatral que regeneraria os palcos cariocas, e a aliança entre a elite e os intelectuais é tomada como o caminho possível para essa regeneração, uma vez que, conforme acreditava o escritor, os artistas profissionais não
tinham preparo suficiente para levar à cena exemplares do “gênero mais elevado”.
(Carvalho, 2009, p. 212)
O tema de Pelo Amor! remete ao tempo da baixa Idade Média, em fins do século
XIII, onde uma princesa escocesa, através do amor que a liga ao esposo, morto ao cair em
um precipíssio, pressente não só a morte do marido como a desgraça que sobre ela se
abaterá após sua perda. O sentimento que nutre pelo marido acabará por causar um desfecho trágico em sua vida. A atmosfera tensa que perpassa os dois atos do drama lírico é
reforçada pela música de Leopoldo Miguez através de temas específicos para as principais
personagens, situações dramáticas ou sentimentos, de acordo com os procedimentos do
leitmotiv wagneriano.
Richard Wagner é a maior influência não só na música como também para o autor do libreto. A lenda de Tristão e Isolda é a grande referência. Segundo Carvalho (2009,
p. 212), assim como na ópera de Wagner, “também em Pelo Amor! está presente o sentimento amoroso incontrolável que engendra um desfecho funesto ao casal”.
A presença das óperas de Wagner nas temporadas líricas cariocas não foi imediatamente consolidada. As companhias que vinham da Europa traziam em seu repertório
uma grande maioria de óperas italianas. Wagner era ouvido sobretudo através das sociedades de concertos que apresentavam trechos sinfônicos. Segundo Luiz Heitor o Lohengrim
de Wagner em sua estreia no Rio de Janeiro em 1883 “fôra ouvido com tédio, por um público que o lirismo místico do drama invencivelmente adormentava” (Azevedo, 1956, p.
98). Quase uma década depois, em 1892, o Tanhauser “era recebido com entusiasmo e
constituía um acontecimento social e artístico de grande relevância” revelando que “ia
se formando no Brasil, uma forte corrente wagneriana” (Azevedo, 1956, p. 98). O entusiasmo pela música de Wagner se consubstanciou na criação do Centro Artístico “que
reunia os nomes mais ilustres da época nas letras e nas artes, agrupados sob a bandeira
dos ideais wagnerianos” (Azevedo, 1956, p. 99). Unidos pelo ideal artístico, Coelho Netto
e Miguez criaram Pelo Amor e, segundo informação constante na edição impressa da redução para canto e piano, o puseram em cena em 24 de agosto de 1897 no Cassino Fluminense, ou seja, no prédio ao lado da atual Escola de Música da UFRJ. Porém, as atividades
do Centro Artístico não conquistaram apenas adeptos. Os principais críticos foram Oscar
Guanabarino e o escritor Arthur Azevedo que, igualmente através dos jornais, lançaram
dúvidas não só sobre o texto da peça e sua relação com a música, como também sobre os
propósitos do Centro Artístico.
Arthur Azevedo (1855-1908) construiu sua fama como uma espécie de sucessor
de Martins Pena (1815-1848) na abordagem da comédia de costumes, através de textos
para o teatro de revista e posicionou-se como o defensor dos artistas profissionais atacados
por Coelho Netto em sua pregação em prol dos “gêneros elevados”. Tal posicionamento
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289
não deixa de ser revelador de uma disputa que tinha como palco principal a recém-fundada
Academia Brasileira de Letras, à qual ambos pertenciam. Segundo Carvalho
Em resposta a Pelo Amor!, considerado por Netto o modelo de literatura erudita
que deveria ser posto em cena para o enobrecimento da arte dramática na capital
federal, Azevedo escreve Amor ao pêlo!, que, como ele próprio denomina, tratase de uma “pachouchada” que parodia o intento “elevado” de Netto (Carvalho,
2009, p. 213)
A mesma autora conclui que “o fato de a paródia ter tido muito mais sucesso
junto ao público do que o trágico poema dramático é sintomático” e revela o quanto o
projeto de Coelho Netto “colidia com os interesses dos espectadores” (Carvalho, 2009, p.
213).
Já Rodrigues Barbosa, o representante da “República Musical” na imprensa, não
deixou de socorrer seus colegas e como que respondendo tardiamente às críticas de Guanabarino e Azevedo afirmou:
Ouvindo a leitura do Pelo Amor! e convidado a escrever para ele alguns números
de canto e de melodrama, Miguez, encantado com a poética de Coelho Neto,
tão espontânea e tão acorde com o seu modo de sentir, escreveu aquela bela
música, sendo para notar que sua musa lhe é tão fiel e a sua expressão tão verdadeira, que poesia e música se casam intimamente, sem que fosse necessário
repetir no canto uma só palavra para preencher o contorno da frase melódica:
poesia e música caminham em mútuo realce, estreitamente ligadas no mesmo
sentimento. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)
Após a morte de Leopoldo Miguez seu colega de INM, o professor Otávio Bevilacqua, em artigo para a Revista Brasileira de Música intitulado “Leopoldo Miguez e o Instituto Nacional de Música” se manifestou sobre a representação de Pelo Amor! no Cassino
Fluminense, dizendo que “foi um fato que marcou época” pois “pela primeira vez subiu à
cena com certos requintes de arte, uma obra de autor brasileiro, cantada em português
por amadores e artistas todos do nosso meio”. Na opinião de Bevilacqua a encenação “foi
um acontecimento” e que “o grau de perfeição atingido na execução foi digno de nota, levando-se em conta o tratar-se de gente, na sua maioria sem prática alguma de cena, de
um conjunto à última hora improvisado” (Bevilacqua, 1940, p. 10).
Abordando a música composta por Leopoldo Miguez para a abertura do drama
de Coelho Netto vemos que a orquestração prevê madeiras a dois e mais um flautim. Para os metais Miguez determinou quatro trompas, dois trompetes, três trombones e a tuba. Os tímpanos e um prato de choque formam o naipe de percussão. Nas cordas sobressaem os divisi nos segundos violinos, violas e violoncelos. É um conjunto menor do que
aquele previsto por Wagner para o Prelúdio de Tristão e Isolda, que incluiu ainda o corninglês, o clarone, um terceiro fagote, e um terceiro trompete.
Na edição impressa do libreto temos a informação de que a orquestra na estreia
da obra foi composta por “50 professores” sob a regência do compositor (Coelho Netto,
1897). A partir de tal informação e da orquestração prevista chegamos a um efetivo de 21
músicos para os sopros e percussão e 29 para as cordas. Com tal quantitativo podemos
pensar que na estreia da obra Miguez contou com um naipe de cordas formado por 7 primeiros violinos, 6 segundos violinos, 6 violas, 6 violoncelos e 4 contrabaixos, com possibilidade de alguma variação. É um efetivo relativamente pequeno para uma obra com
características wagnerianas e muito distante, menos da metade, da quantidade indicada
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
290
por Wagner para a formação do naipe de cordas de seu Tristão, com 16 primeiros e segundos violinos, 12 violas e violoncelos e 8 contrabaixos (Wagner, 1985). Tal opção pode
ter sido por inúmeras razões: dificuldades em arregimentar tantos músicos, os solistas
amadores cujas vozes não poderiam sobrepujar uma orquestra muito volumosa ou ainda
o tamanho do salão de bailes do Cassino Fluminense que não comportaria uma orquestra
muito grande.
Apesar da diferença no efetivo orquestral podemos perceber claramente já em
alguns poucos compassos da abertura que o modelo é o Prelúdio de Tristão e Isolda de
Wagner. O andamento é o mesmo, Lento na partitura de Miguez e Langsam und schmachtend
na de Wagner. Se na partitura de Miguez falta a indicação de caráter (schmachtend = langoroso ou languidamente) aparece por sua vez a indicação metronônica de semínima
igual a 72, ausente na de Wagner.
Sem mais detalhes, que superariam o tempo disponível para esta comunicação,
aponto como primeira semelhança a frase inicial a cargo do naipe dos violoncelos sem
acompanhamento, construída também a partir de um grande intervalo ascendente (6a.
em Wagner e 8a. em Miguez) seguido de uma sequência descendente que desemboca
em um acorde nas madeiras que tem a mesma função do famoso acorde de Tristão.
Exemplo 1. Richard Wagner - Abertura de Tristão e Isolda (c. 1-3)
Exemplo 2. Leopoldo Miguez - Abertura de Pelo Amor! (c. 1-4)
Sobre a frase inicial da abertura Rodrigues Barbosa, presente na estreia da obra
no Cassino Fluminense assim se referiu:
O prelúdio do primeiro ato, arquitetado sobre uma frase que traduz a dor de
Malvina, desenvolvida com riqueza de recursos extraordinária, forma o ambiente
espiritual para a compreensão não dos fatos, mas do sentimento que tumultua
no peito amoroso da protagonista. (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74)
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
291
O discurso musical prossegue e podemos perceber outros procedimentos análogos aos utilizados por Wagner no Prelúdio de Tristão e Isolda; as grandes pausas para
criar tensão dramática, a tensão melódica na forma de síncopes, as volatas nas cordas e
madeiras, o início em andamento lento, a aceleração na parte central e a retomada do
andamento mais lento na recapitulação, o discurso musical contínuo e a harmonia modulante e sem repouso.
Rodrigues Barbosa, além da abertura, teceu breves comentários sobre os diferentes números de Pelo Amor!, que aqui reproduzimos:
Ao subir o pano, ouve-se um estribilho (a seco) do bobo nos bastidores. Depois
vem a canção do grilo, onde os efeitos imitativos da orquestra multiplicam-se
com interesse, emoldurando a frase melancólica do canto. Depois de uma ária
pastoril que se ouve ao longe, vem a “Marcha grave” de ritmo solene e que se
desenvolve em admirável progressão de caráter grandioso e nobre. É um trecho
musical que impressiona pela serenidade do seu ritmo e pela majestade que o
domina. Ouve-se depois, ao longe, uma romança de suave frescura, tão comovente quanto o despertar de um coração que pela primeira vez palpita de
amor, e esse é justamente o sentimento nela cantado. Quando Darthula, de joelhos, faz uma oração, a orquestra de cordas, em surdina, acompanha com uma
música em que se ouve o trêmulo balbuciar de uma velha no fervor da prece.
Quanta verdade de expressão! A canção do grilo volta ainda e, quando o pano
desce, ouve-se ainda o tristonho estribilho, que deixa no espírito umas névoas
de melancolia e de tristeza, obrigando a recordação daquelas cenas tão comovedoras. Uma frase intercalada da “Marcha grave”, à entrada da maca conduzindo
o corpo de Armínio, no primeiro ato, e exprimindo a dor deste, forma com um
motivo melodioso, uníssono nas cordas, traduzindo a vida solitária de Samla, a
feiticeira, a principal trama do interessantíssimo prelúdio do segundo ato. Há
depois uma oração, cantada por um quinteto e na qual predomina o caráter súplice da crente que implora. A batalha do bobo tem, com extrema simplicidade
melódica e rítmica, profundos acentos da melancolia saudosa que faz chorar de
tristeza e consola pela revivescência do passado que é caro, talvez mesmo pela
sua tristeza. A canção de Samla é dessas que se ouvem com o coração e nunca
mais se esquecem; ficam gravadas na alma. Quando a ação dramática chega ao
paroxismo e quando a dor se apodera de todos pelo suicídio de Malvina que se
apunhala, e quando a consternação geral traz o silêncio e todos curvam joelho,
ouve-se lá fora a romança que canta o idílio do primeiro amor, e aquele contraste
violento, de paixões tão opostas e tão verdadeiras, traz à cena do palco maior
intensidade; em cena a dor torna-se mais profunda; lá fora a poesia é mais suave,
mais celestial... (Barbosa apud Castagna, 2007, p. 74 e 75)
A edição proposta para a abertura do drama lírico Pelo Amor!, faz parte de um
projeto de pesquisa que tem por objetivo editorar obras do acervo de manuscritos musicais
da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ. Iniciado em 2003, o projeto já editorou 17 obras de compositores brasileiros como José Maurício Nunes Garcia,
Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco Braga. Três obras de Miguez e duas de Oswald foram gravadas em CD pela Orquestra Sinfônica da UFRJ com financiamento do Ministério da Cultura – distribuído aos participantes deste Simpósio. A partitura da Romanza
para orquestra de cordas (1898) de Henrique Oswald (1852-1931) foi publicada no volume
23, número 1 da Revista Brasileira de Música, também distribuída aos presentes.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
292
A edição da abertura de Pelo Amor! foi baseada no manuscrito autógrafo do
compositor. O conjunto de manuscritos de Miguez chama a atenção pela clareza, detalhamento e capricho na notação. Luiz Heitor já mencionava esta característica: “Quem examina as suas partituras, e até mesmo as partes de orquestra que ele próprio copiava, admira-se da caligrafia regular, claríssima, traçada com requinte de velho guarda-livros, que
enche todas as páginas” (Azevedo, 1956, p. 110). Os manuscritos de Miguez, que se encontram em sua totalidade na Biblioteca Alberto Nepomuceno, são na verdade as versões finais de partituras que provavelmente foram esboçadas e escritas em rascunhos e posteriormente reescritas após minuciosa revisão. Não se encontra na maioria de suas partituras alterações, rabiscos, supressões ou adições de compassos. A forma metódica como
Miguez produziu suas partituras facilita em muito o trabalho daqueles que se propõe a
editorá-las.
A partitura editorada de Pelo Amor! foi executada pela Orquestra Sinfônica da
UFRJ em concerto dirigido pelo maestro Ernani Aguiar na Sala Cecília Meireles em 2008.
Considerações finais
Uma das questões que podem ser colocadas neste simpósio sobre ópera é: se a
ópera foi evento artístico de grande importância na vida musical brasileira, se os compositores brasileiros de várias gerações se dedicaram a escrever óperas nos mais diversos
estilos, por que não as vemos incluídas nas temporadas dos grandes teatros brasileiros?
É obvio que as respostas são muitas, mas antes que se formulem teorias mirabolantes colocando questões sociológicas à frente das musicais, faço outra pergunta: onde
estão as partituras e partes orquestrais, reduções de piano e libretos dessas óperas para
os intérpretes? Tomo como exemplo a produção do compositor Henrique Oswald, contemporâneo de Miguez. Das três óperas por ele produzidas, La Croce d’oro, Le Fate e Il
Néo, as duas primeiras continuam inéditas, em manuscritos guardados no Arquivo Nacional. Levando em consideração a qualidade do compositor, reconhecida através de sua
produção para piano solo e música de câmara, frequentemente executada, não se pode
supor de antemão que sejam obras que mereçam adormecer por tanto tempo nas gavetas.
Aí entra a responsabilidade não só das instituições que promovem as temporadas de
ópera, mas também dos musicólogos. Nesse sentido se destacam os trabalhos de vários
colegas aqui apresentados. Pudemos constatar nesses cinco dias o avanço na pesquisa do
repertório operístico brasileiro, as diversas iniciativas de edições de partituras e conhecer
de perto a produção de alguns compositores brasileiros contemporâneos. Ao mesmo
tempo a presença de ilustres colegas de outros países como Portugal, Itália, Argentina, Inglaterra e Estados Unidos nos deu a oportunidade de mais uma vez reconhecer que o
intercâmbio de informações é fundamental, especialmente para o entendimento de um
gênero que atravessa fronteiras. Essa constatação torna ainda mais relevante a escolha
do tema do simpósio, pois saímos com a certeza, pelo interesse que despertou, que a
ópera continua atual.
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Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
295
O esvaziamento das tradições operísticas
do século XIX e a influência da mídia nos
novos padrões estéticos
Heliana Farah e Murilo Neves
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Diz Theodor Adorno (2002, p. 285)1 que quando o crítico musical Paul Bekker
estava se aventurando como diretor de casa de ópera, ele pode ter sido o primeiro a falar
de ópera como um museu. “Com efeito, a experiência musical ao vivo hoje em dia, tanto
em casas de ópera como em salas de concerto, é muito próxima de uma ida ao museu.
Em um artigo, Alex Ross (2005) nos lembra que, até o século XIX, aplausos entre os movimentos de uma sinfonia ou concerto eram não só aceitos como esperados. Ross transcreve o trecho de um artigo pré-Primeira Guerra da Enciclopédia Britânica, que Howard
Shanet cita na história da New York Philarmonic. Transcrevemos aqui:
O espírito reverencial que aboliu o aplauso na igreja tendeu a espalhar-se para o
teatro e a sala de concerto, sob larga influência da atmosfera quase religiosa das
apresentações de Wagner em Bayreuth.
Alienado de seu poder de manifestação, o público fica limitado a uma experiência
unilateral, cabendo a ele o silêncio respeitoso e o aplauso educado depois da execução.
Na ópera – objeto principal de nosso estudo – o caráter mutilador desta prática é ainda
mais evidente, visto que a história nos mostra um público absolutamente ativo, questionador e determinante com suas opiniões. O público de ópera sempre foi capaz de decidir o rumo de uma performance, fosse exigindo quantos bis desejasse de uma determinada ária através de aplausos intermináveis, fosse impedindo uma récita de continuar
através de vaias insistentes. Podemos aqui lembrar casos como os da estreia de Il Barbiere
di Siviglia de Rossini, Madama Butterfly de Puccini, ou La Traviata de Verdi. Sobre a estreia
de Il Barbiere di Siviglia, como observa Kobbé:
Ao cair a cortina no primeiro ato, Rossini virou-se para o público, deu ligeiramente
de ombros e aplaudiu. O público, apesar de extremamente ofendido com semelhante demonstração de desprezo por sua opinião, reservou a vingança para
o segundo ato, do qual não foi possível ouvir uma única nota. Kobbé (1991, p.
243)
A manifestação do público, atualmente, foi limitada por parâmetros questionáveis de educação e comportamento social, e os neófitos hoje em dia são constrangidos a
esperar até que um “iniciado” se manifeste, a fim de evitar uma possível gafe. O respeito
ao artista tornou-se, de alguma forma, maior que o respeito ao público, mesmo que, à
parte qualquer filosofia egocêntrica vinda do artista, este público seja o consumidor final
do produto arte e, portanto, aquele a quem deveria caber o poder máximo de avaliação.
...........................................................................
1
“At the time when music critic Paul Bekker was trying his hand as opera house director, he may have been the
first to have spoken of opera as a museum” (Adorno, 2002, p. 285).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
296
Longe de querer fazer aqui qualquer juízo de valores sobre códigos de postura e educação,
nossa intenção é ver como um comportamento que foi imposto à revelia do público aos
poucos mudou a própria experiência de ir ao teatro de ópera.
Se tomarmos a carreira da soprano turca Leyla Gencer (1928-2008) como exemplo, podemos ter uma ideia de como o poder da mídia, alavancado pela grande era das
gravações, tem o poder de alterar e manipular parâmetros. Como outras divas de sua
época, Maria Callas e Joan Sutherland, que tinham por alcunha La Divina e La Stupenda,
respectivamente, Gencer era conhecida como La Turca, La Regina ou, a alcunha que mais
nos interessa aqui, La Regina Pirata. Seu obituário no The New York Times (13-mai., 2008)2
diz:
Eclipsada por contemporâneas mais conhecidas como [Maria] Callas e Renata
Tebaldi, Ms. Gencer não tinha contrato com uma grande gravadora. Mas sua
voz viajou o mundo muitas vezes em gravações piratas, dando a ela o apelido de
Rainha Pirata.
A revista especializada Ópera International a cita como La Fiancée des Pirates,
ou a noiva dos Piratas, devido ao fato de que as gravadoras sempre a ignoraram. Seu único registro em estúdio é um recital de árias pela Cetra3. Embora ela possua uma grande
legião de fãs, toda sua extensa e variada carreira está documentada apenas em registros
amadores de suas performances ao vivo. Em entrevista a Stefan Zucker no filme Opera
Fanatic, ela diz que nunca agradou aos críticos americanos. Segundo ela, realmente chorava
em cena: cantava e chorava, e vez por outra vinha uma nota pouco ortodoxa. Os críticos
americanos, diz ela, gostam de música “água e sabão”. As reações do público em suas gravações piratas, no entanto, deixam bem clara a arrebatadora impressão que ela causava
no teatro. Não é difícil imaginar o motivo de não ter muitos registros em estúdio, visto
que as gravações, segundo os critérios do mercado, devem ser o mais perfeitas possível.
O mesmo obituário do New York Times cita uma entrevista de Gencer à revista Opera
News, em que diz que, mesmo sem ter ganho uma única lira com as gravações ao vivo nos
teatros, elas trazem outras compensações:
Todos os jovens me conhecem. Eles me escrevem longas cartas. Eles me dizem:
“É como se estivéssemos no teatro. Nós a vemos. Nós a ouvimos através de
seus discos como se estivéssemos lá.” É um grande milagre!
À medida que grande parte da vida útil de um apreciador de ópera médio desde
o advento dos fonogramas é vivenciada em casa, ouvindo gravações, torna-se inegável –
tanto quanto perigoso – o poder da mídia sobre os padrões estéticos. Achamos fundamental relatar o caso de Leyla Gencer para deixar claro que, se por acaso não existissem
essas gravações piratas, provavelmente para nossa geração e para as futuras seu nome
seria apenas um mito, sem grandes documentações de sua arte. E, se uma cantora é tão
endeusada pelos que a viam ao vivo, será realmente que as notas “pouco ortodoxas” seriam motivo suficiente para que não fosse considerada uma referência?
...........................................................................
2
“Pre-empted by better-known contemporaries like Callas and Renata Tebaldi, Ms. Gencer did not have a contract
with a major commercial record label. But her voice traveled the globe many times over in bootleg recordings,
earning her the nickname the Pirate Queen. […] If she “never made a lira” from these recordings, as Ms. Gencer
told Opera News in 2003, they had other compensations. […] “All the young people know me,” she said at the
time. “They write me long letters. They tell me: ‘It’s as if we were in the theater. We see you. We hear you
through your discs as if we were there.’ This is a great miracle!” (Fox, 2008).
3
“Omaggio a Leyla Gencer” Cetra LPO, 2001.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
297
Norman Lebrecht (2008, p. 19) relata o momento que, segundo ele, suscitou “o
nascimento da gravação como ato musical, separado e distinto da execução ao vivo”. O
pianista Wilhelm Kempff gravava uma bagatela de Beethoven quando esbarrou em uma
tecla:
Tivesse Kempff esbarrado seu dedo enquanto se apresentava num palco, teria
por certo continuado sem problemas, sabendo que poucos na platéia teriam
percebido a falha ou sequer se lembrado dela depois. Numa gravação, contudo,
qualquer imprecisão seria registrada para sempre, tornando-se mais grave e
desagradável a cada nova audição. […] O artista ficava então sujeito a um julgamento sem tréguas, não podendo se permitir ilusórios desvios de atenção.
(Lebrecht, 2008, p. 19)
Em que os rígidos códigos de conduta impostos ao público moderno, o legado
pirata da soprano turca e a pressão pela precisão nas gravações nos interessam? Podem,
em última análise, revelar sintomas da dissociação entre o gosto do público e os interesses
da mídia. Seriam os novos padrões ditados por um grupo – de musicólogos, maestros, críticos ou mesmo executivos de teatros ou gravadoras – talvez alheio à tradição da ópera?
Estaria o público obedientemente consumindo e aplaudindo um produto pasteurizado e
retirado de seu contexto? Sem querer invalidar o poder dado aos que ditam as novas regras, preferimos indagar o porquê de hoje, com todas as facilidades tecnológicas ao nosso
alcance, esses padrões dificilmente são questionados.
Podemos encontrar algumas pistas nos tratados de canto mais recentes. Baseamo-nos aqui em um comentário de Richard Miller4, principal autor da chamada escola
americana de canto, em um de seus livros. O autor admite que para os ouvidos europeus
os padrões americanos dão mais atenção ao timbre do que a qualquer outra coisa. A
igualdade vocal do típico americano incomoda aos europeus por ser considerada por eles
falta de sutileza interpretativa, negligência de colorido vocal e ausência de risco na apresentação. Miller se justifica argumentando que, na pior das hipóteses, tudo fica realmente
muito chato e parecido. Mas, se for bem executado, confere ao cantor a liberdade de
abordar qualquer repertório. Seria a necessidade moderna de abordar com segurança
toda a gama de repertório disponível uma das responsáveis pela “pasteurização” do canto?
Se existe o movimento de música antiga, que tem a intenção de estudar e tentar
reproduzir a música renascentista, barroca e clássica, nada mais justo que haver pelo menos uma conscientização similar no tocante à música dos grandes compositores do século
XIX. Sejamos realistas, é ilusão achar que a execução atual da música desse período esteja
fiel à execução da época. Evidentemente existem questões como o gosto atual, e não pretendemos de maneira nenhuma defender que se deva executar desta ou daquela forma.
Apenas achamos que, da mesma maneira que hoje se busca restaurar a autenticidade na
performance do que se conhece como música antiga, podemos aproveitar o gancho histórico do movimento para voltar o mesmo olhar para a ópera do século XIX, e mesmo para a ópera do início do século XX. As gravações da primeira metade do século passado nos
colocam em contato com cantores muito próximos das tradições românticas e não é difícil
perceber diferenças muito grandes entre esses e os registros mais atuais do mesmo reper...........................................................................
4
“There is also the European complaint that the American singer gives more attention to the production of tone
than to other equally important aspects of performance. Timbre congruity of the typical American singer disturbs
some European ears. Tonal uniformity is thought to be lacking in interpretative subtlety, and neglectful of vocal
coloration. A common comment is that there is no place for artistic risk-taking in the American approach to
voice performance. The same type of criticism that some European critics bring against major American orchestras
- too mechanically perfect - is leveled at the American singer. […] At it (the American ideal of elite vocalism) best
allows a singer to perform a wide variety of literatures, and liberates him or her for a fuller realization of artistic
and interpretative factors. At its worst, it can be unimaginative and boring” (Miller, 2004, p. 192-193).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
298
tório. Musicalmente, percebe-se uma liberdade maior dos cantores, seja no uso do tempo
rubato, seja nas ornamentações ou cadências. Vocalmente, percebe-se além de uma dicção
mais clara e vogais mais puras, um uso mais amplo dos diferentes registros vocais, particularmente nas vozes femininas.
Vemos aparecer dentro das fileiras do movimento de música antiga o interesse
pelas execuções historicamente informadas do período romântico. Mas talvez incorram
em dois equívocos. Elas trazem consigo um sotaque, sedutor, mas alheio ao período.
Além disso, esquecem de recorrer à evidência arrebatadora dos documentos fonográficos.
Talvez em escala mundial, mas certamente em escala local, a quase total alienação aos
padrões estéticos vocais do século retrasado pode ser atribuída a dois motivos: ignorância
ou arrogância.
Se é ignorância, resultante da falta de leitura e audição das gravações mais antigas
podemos facilmente sanar. Ao contrário da Renascença, do Barroco e do Classicismo, no
Romantismo e no Verismo, quando não há gravação original de seus intérpretes, as gravações são de apenas uma geração posterior. E não seria isso prova muito mais contundente
do que a análise documental da música antiga? E não faltam documentos escritos do século XIX, talvez apenas não tenham recebido a devida atenção. Não se pode ignorar –
muito menos desprezar – a possibilidade de ter contato com a voz de Francesco Tamagno,
o criador do Otello de Verdi, ou de reconhecer o legato verdiano na voz de Adelina Patti,
considerada sua cantora preferida. Podemos ainda ouvir as gravações de Victor Maurel,
criador de Iago em Otello e dos papéis-títulos na versão definitiva de Simon Boccanegra e
em Falstaff. E para continuar em Falstaff, podemos ouvir gravações de Adelina Stehle, a
primeira Nanetta, Edoardo Garbin, o primeiro Fenton, Antonio Pini-Corsi, o primeiro Ford
e Virginia Guerrini, a primeira Meg. Podemos ouvir as vozes de Rosina Storchio, criadora
de Cio-Cio-San na primeira versão de Madama Butterfly e de Salomea Krusceniski, criadora
do papel na primeira revisão. Temos acesso a registros da voz de Giovanni Zenatello, o
criador de Pinkerton e de Giuseppe de Luca, o criador de Sharpless na mesma ópera. Podemos ouvir Emmy Destinn, Enrico Caruso e Pasquale Amato, criadores dos papéis de
Minnie, Dick Johnson e Jack Rance em La Fanciulla Del West, Cesira Ferrani, a primeira
Manon Lescaut e primeira Mimì em La Bohème, além de Hariclea Darclée, Emilio de
Marchi e Eugenio Giraldoni, que estrearam Tosca como o papel-título, Cavaradossi e
Scarpia, respectivamente. Podemos ouvir também Gealdine Farrar, a primeira Suor
Angelica, Claudia Muzio e Giulio Crimi, criadores de Giorgetta e Luigi em Il Tabarro. Crimi
estreou também o Rinuccio em Gianni Schicchi ao lado de Florence Easton como Lauretta
e Giuseppe de Luca como Schicchi; os dois últimos também tiveram registros sonoros.
Existem diversas gravações de Tito Schipa e Gilda dalla Rizza, que estrearam La Rondine
nos papéis de Ruggero e Magda. Também registraram suas vozes Rosa Raisa, a primeira
Turandot, Miguel Fleta, o primeiro Calaf, e Maria Zamboni, a primeira Liù. Podemos ouvir
gravações de Giuseppe Borgatti e Mario Sammarco, criadores de Andrea Chénier e Gerard
na ópera de Giordano. O que poderia nos falar mais claramente do estilo verista do que a
gra-vação da ária de Santuzza em Cavalleria Rusticana de Mascagni com Gemma Bellincioni, criadora do papel, ou Lina Bruna Rasa regida pelo próprio compositor? Grandes demonstrativos da tradição verista podem ser observados também em gravações de todos
aqueles que compuseram o primeiro elenco de I Pagliacci: Adelina Stehle, já citada como
a primeira Nanetta, e que foi também a primeira Nedda, Victor Maurel (também já citado),
primeiro Tonio, Fiorello Giraud, o primeiro Canio e Mario Ancona, o primeiro Silvio. Podemos ouvir Hermann Winkelmann, o primeiro Parsifal e único dos criadores de Wagner
a gravar. Podemos ouvir Medea Mei-Finger, criadora do papel de Lisa em A Dama de Espadas e do papel título em Iolanta de Tchaikowsky. Dos criadores das óperas de Strauss,
há gravações de Margarethe Siems, a criadora de dois papéis bastante diversos – a MaAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
299
rechala em Der Rosenkavalier e Zerbinetta em Ariadne auf Naxos, além de Chrysothemis
na Elektra. Criadores também de papéis straussianos que podemos ouvir em registros sonoros são Ernestine Schumann-Heink, criadora da Klytaemnestra na Elektra, além de Minnie Nast, Eva Von der Ostens e Karl Scheidemantel, que estrearam, respectivamente, os
papéis de Sophie, Octavian, e Faninal, em Der Rosenkavalier. Temos acesso a gravações de
Ernest van Dick, o primeiro Werther na estréia absoluta da ópera de Massenet (em alemão)
e de Guillaume Ibot e Marie Delna, criadores de Werther e Charlotte na estréia francesa.
Podemos ouvir também Jean-François Delmas, criador de Athanaël em Thaïs, além de
Mary Garden e Jeanne Gerville-Réache, que integraram o elenco de estréia de Pélleas et
Mélisande, como Mélisande e Geneviève respectivamente.
Para além da oportunidade inestimável de ouvir as vozes dos criadores de grande
parte dos papéis emblemáticos do final do século XIX (ainda que não necessariamente
nas partes que criaram), podemos perceber nessas gravações o legado da antiga estética
do canto. Mesmo sendo esses cantores já do final do século XIX (alguns nascidos ainda no
início da segunda metade do século), não podemos negar as evidências da herança presente nesses registros. Se não possuímos, infelizmente, gravações de Pauline ViardotGarcia ou Mathilde Marchesi, diretamente preparadas por Manuel Garcia II, por exemplo,
podemos ao menos ouvir outros grandes cantores que foram por elas preparados.
No campo da documentação escrita temos o relato dos jornais da época, biografias e autobiografias como a de Caruso e Tetrazzini. Temos críticas, tratados e depoimentos vindos de fontes diversas e tantos outros documentos escritos de importância.
Podemos observar também os tratados de canto, e apontamos entre os mais importantes
os de Manuel Garcia II, de Mathilde Marchesi e de Giovanni Battista Lamperti (sendo que
também do último temos, além do tratado e de uma publicação de seus ensinamentos
por um de seus pupilos, registros sonoros de alguns de seus alunos). Muito conhecido hoje em dia é o tratado de Lili Lehmann, cantora muito apreciada por Richard Wagner e que
esteve na primeira produção do ciclo completo Der Ring des Nibelungen em Bayreuth em
1876 como Woglinde, Helmwige e o Pássaro da Floresta. Lehmann apareceu mais tarde
como Brünnhilde no primeiro ciclo apresentado no Metropolitan Opera House de Nova
Iorque em 1889 e repetiu o papel em Bayreuth, em 1896. É oportuno lembrar que esta
cantora sofreu grande influência de Edward Wheeler Scripture e de Henry Holbrooke Curtis que foram, provavelmente, o ponto de partida da mudança na estética vocal já sentida
no começo do século XX e realmente aprofundada a partir da metade do século. Apesar
da popularidade do tratado da soprano alemã, pouco se divulga os seus registros sonoros.
Existe a possibilidade, devido à maior proximidade que temos com o século XIX
do que com os anteriores (e talvez um recalque ainda não resolvido de ser essa ainda a
música de repertório na maioria das casas de ópera), de haver uma arrogância de achar
que se faz atualmente a música do século XIX melhor do que se fazia na época. Não são
infrequentes as opiniões a respeito da estética da época como cafona, de mau gosto. Por
vezes é até verbalizada uma ideia de que na época não houvesse capacidade para fazer
melhor. Dentro dos padrões do historicamente informado, esse comportamento não faz
o menor sentido, pois se a ideia é o respeito ao estilo do período, não cabem juízos quanto
ao gosto e aos padrões dos intérpretes de uma obra à época de sua criação. Assim sendo,
ao mesmo tempo em que os padrões modernos tentam ser fiéis a uma música da qual só
se tem relatos escritos, buscam “melhorar” outra devidamente documentada sob os padrões da época de sua criação. Como essa forma de fazer é considerada “melhor”, gravase assim e essa passa a ser a referência tanto do público como dos novos artistas.
Robert Donington, bastião da música antiga, mesmo deixando claro seu pouco
apreço pela tradição verista, nos mostra como os padrões estéticos vocais de hoje não
são mais os mesmos.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
300
No presente momento, os excessos do verismo estão (felizmente) fora de moda;
e a dureza germânica foi (infelizmente) substituída por uma tendência, muito
mais destrutiva do bom canto, de cobrir o som. O canto duro era ainda bom
canto: era para frente, e por isso era claro; não era forçado, e por isso podia brilhar e projetar.5 (Donington, 1973, p. 65)
E similar depoimento nos dá Adorno ao dizer:
Ainda posso me lembrar da minha infância, quando minha mãe se lamentava
do fim da arte vocal italiana causada pelo estilo wagneriano de canto. Hoje esse
mesmo estilo começa a morrer sendo muito difícil achar cantores hábeis. O conhecido e pouco criticado sistema de cantores convidados, no qual um punhado
de famosos cantores wagnerianos são emprestados é uma aberração.6 (Adorno,
2002, p. 584)
O mais perigoso é que essa mudança de padrões, como se pode observar, não
se limita ao campo apenas da execução musical. Ela interfere em questões essenciais como a própria emissão do som. A execução pura e simples do instrumento voz é afetada,
influenciando, evidentemente, em um fator imprescindível no espaço crucial da ópera: a
acústica na sala de espetáculos ao vivo.
Sabemos que grande parte das obras compostas está gravada, senão em vídeo
pelo menos em áudio. As óperas de repertório contam normalmente com dezenas de
gravações de estúdio diferentes. Se o som da voz humana, como diz Davini (2007, p.101)7,
está se adequando às limitações impostas pela tecnologia que reduzem acusticamente a
riqueza tímbrica dos sons, qual seria, acusticamente falando, o diferencial de assistir ao
vivo a um cantor cujo timbre se reduz àquele da gravação? Vejamos a afirmação do autor:
Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la
performance en vivo tiende a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como
resultado, cantantes, músicos y directores han sido frecuentemente forzados a
maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades
a los modelos digitales de resolución. (Davini, 2007, p. 101)
A perda é maior se avaliarmos que em casa o som que sai de nosso equipamento
pode ser adequado a produzir a intensidade que desejamos. A técnica vocal do canto lírico foi desenvolvida exatamente para produzir esse tipo de emoção proveniente da qualidade de som que resulta de todos os harmônicos que enriquecem a voz. Com o astronômico custo da produção de óperas de boa qualidade e a disponibilidade das gravações,
quanto tempo durará para que a grande maioria dos teatros deixe de produzi-las se os
cantores não mais possuírem esse diferencial?
...........................................................................
5
“At the present time, the verismo excesses are (fortunately) out of fashion; and the germanic hardness has
(unfortunately) been replaced by a tendency, far more destructive of good singing, to cover the sound. The hard
singing was still good singing: it was forward, and therefore it was bright; it was unforced, and therefore it could
ring and carry” (Donnington, 1973, p. 65, tradução nossa).
6
“[…] I can still remember quite well from my childhood how my mother lamented the demise of Italian vocal art
that was caused by the wagnerian style of singing. Today that stile is itself begining to die out; its excedingly
difficult to locate any singers who are up to it. The well-known and hypocritically criticized system of guests
singers, by which a handful of the most famous Wagner singers are lent around, so to speak, from one new
production to the next, is just an aberration” (Adorno, 2002, p. 584, tradução nossa).
7
“Una vez que las audiencias se habitúan a los resultados de la grabación digital, la performance en vivo tiende
a decepcionar en términos de perfectibilidad. Como resultado, cantantes, músicos y directores han sido
frecuentemente forzados a maratones técnicas para poder aproximar sus registros, timbres e intensidades a los
modelos digitales de resolución” (Davini, 2007, p. 101).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
301
Na esperança de informar os que desconhecem a estética romântica e verista é
que propomos uma visão histórica da estética vocal do século XIX. Porque se nós, hoje,
achamos os românticos extremamente arrogantes de se apoderar da música anterior a
eles e executá-la como lhes convinha, na realidade estamos fazendo muito pior. Antes do
período deles não havia música antiga. Ouvia-se quase que exclusivamente a música composta em sua época: não era uma atitude aceitável recorrer à música de gerações anteriores
senão para estudo. Vimos inclusive o Messiah de Handel ganhando de uma nova “leitura”
de Mozart para ser apreciado por um público posterior. Então podemos entender que,
até que nascesse a consciência de buscar uma fidelidade histórica, levasse certo tempo.
Nós hoje temos a consciência histórica, e aliada a ela a veemência da documentação em
registros sonoros. Vamos atribuir a omissão à estética da época a quê?
Referências bibliográficas
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Londres: University of California Press, 2002.
Adorno, Theodor. “Wagner’s Relevance for today”. [1963] In: Essays on music. Londres:
University of California Press, 2002.
Davini, Silvia Adriana. Cartografías de la voz en el teatro contemporáneo. Bernal:
Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2007.
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1973.
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The New York Times, 13-mai., 2008. Disponível em: http://www.nytimes.com/ 2008/05/
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Kobbé, Gustave. O livro Completo da Ópera. Trad. Clóvis. Marques. Org. Conde de
Harewood. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
Lebrecht, Norman. Maestros, obras-primas e loucura. Trad. Rafael Sando. Rio de
Janeiro: Record, 2008.
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2005/02/applause_a_rest.html. Acessado em 20-jan., 2010.
Zucker, Stephen. Opera Fanatic. Documentário. Dir. Jan Schmidt-Garre. Prod. Pars
media. DVD, 93 min., NTSC 4:3 Letterbox. Berlim: Arthaus Musik, 2000.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
TRAJETÓRIAS
303
Óperas em português: ideologias e
contradições em cena
Vanda Bellard Freire
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Óperas em português e o sentimento nacional
O interesse pela temática da ópera, sobretudo da ópera em português, tem estado em minhas pesquisas há algum tempo, envolvendo sobretudo o contato com documentos e partituras do século XIX. As seguintes observações sobre o tema resultam,
em parte, de mais de dez anos de trabalho junto ao acervo de obras raras da Biblioteca Alberto Nepomuceno da UFRJ, do qual fazem parte cerca de 14 mil manuscritos musicais, a
maioria proveniente do século XIX.
Essa tarefa desenvolveu-se em articulação com diferentes projetos de pesquisa,
sob minha responsabilidade: Ópera Brasileira em Língua Portuguesa, O Real Theatro de
São João e o Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara, Ópera e Música de Salão no Rio
de Janeiro Oitocentista, Óperas e Mágicas em teatros e salões do Rio de Janeiro e de Lisboa (1870-1930), Teatro Musical no Rio de Janeiro e em Lisboa (1870-1930) – um estudo
social e Registro Patrimonial de Manuscritos do Arquivo de Obras Raras da Biblioteca da
Escola de Música da UFRJ. O tema da ópera em português perpassa todos esses projetos.
A tarefa que desenvolvi nesse Arquivo, desde 1989, articulando-se com essas
pesquisas sob minha responsabilidade, ofereceu à biblioteca subsídios à organização e
catalogação do acervo, bem como contribuiu, através da digitalização de manuscritos
(mais de 20 mil páginas digitalizadas). A íntima interação com esse material, através de
procedimentos de pesquisa, permitiu a construção de conhecimentos de interesse para a
musicologia no Brasil e em Portugal.
Decorreram desse trabalho alguns levantamentos e catálogos, parcialmente publicados, que expandem as informações levantadas originalmente junto aos manuscritos,
com informações primárias de diferentes documentos (periódicos, libretos, cartazes e
programas de teatro, entre outros). Os principais levantamentos ou catálogos gerados
nesse processo foram: “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, “Teatros do Rio de Janeiro
do Século XIX” (originalmente atribuída ao Teatro São João e ao Theatro São Pedro de Alcântara), “Coleção Guilherme de Mello”, “Levantamento Geral de Manuscritos da Biblioteca Alberto Nepomuceno”, “Mágicas no Brasil e Portugal”.
Entre as coleções ou conjuntos de manuscritos que sofreram organização minuciosa, através das pesquisas citadas acima, destacamos a coleção de obras do Padre José Maurício Nunes da Silva, com insubstituível respaldo do Catálogo de obras do Padre
elaborado pela professora Cleofe Person de Mattos, e a Coleção Guilherme de Mello,
constituída de música de salão do século XIX, contendo exemplares atribuídos ao século
XVIII.
Há particular interesse para as observações aqui apresentadas o conjunto intitulado Ópera Brasileira em Língua Portuguesa e a coleção de obras atribuídas, originariamente, aos Teatros São João e São Pedro de Alcântara e que hoje, após a pesquisa desenvolvida sobre essa coleção, foi considerada como oriunda de vários “Teatros do Rio de
Janeiro do Século XIX”, pois, segundo a investigação sobre esse conjunto de obras, esta é
a origem mais provável.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
304
Paralelamente a esse extenso trabalho e às pesquisas a ele correlatas, as pesquisas que tenho coordenado têm empreendido um extenso levantamento em periódicos,
principalmente oitocentistas, que tem contribuído significativamente para a elucidação
de inúmeros aspectos pertinentes ao acervo em questão e para a musicologia brasileira.
Já foram consultados e fichados, pela equipe de pesquisa sob minha coordenação,
mais de 5.000 exemplares de periódicos do século XIX, dos quais resultam extensos bancos
de dados que sistematizam as informações recolhidas. Esses dados fazem contraponto às
informações obtidas nos manuscritos musicais, libretos e outros documentos, permitindo
uma visualização mais profunda da trama social da época.
Dessas frentes de trabalho decorrem, assim, as observações sobre óperas em
português abordadas nesta exposição. A ênfase é dada ao Rio de Janeiro, nos séculos XIX,
XX e XXI, restringindo-se ao círculo social de maior poder econômico, âmbito da ópera
nessa cidade.
Óperas em português
A produção de óperas em português é mais extensa do que comumente se imagina e, embora seja habitualmente relacionada à proposta da Imperial Academia de Música
e Ópera Nacional (meados do século XIX), na verdade antecede, em muito, a essa proposta
e se desdobra até a atualidade.
O levantamento “Ópera Brasileira em Língua Portuguesa”, já citado, relaciona
332 títulos de óperas em português, produzidas do século XVIII à atualidade. Esse
levantamento obviamente não é completo. A distribuição desses títulos através do tempo,
em corte longitudinal, revela o seguinte traçado:
- Século XVIII
- Século XIX (primeira metade)
- Século XIX (segunda metade)
- Século XX (primeira metade)
- Século XX (primeira metade)
- Século XXI (primeiros anos)
6%
5%
25 %
36 %
18 %
10 %
Observa-se, pelo perfil acima, que a produção mais intensa de óperas em português ocorre na primeira metade do século XX, sendo que, no século XXI, apesar de apenas
uma década haver transcorrido, essa produção já se mostra significativa. Por outro lado,
a produção do século XVIII aparece muito pequena, mas o fato de as pesquisas que coordeno não focalizarem o referido século certamente responde pela minimização desse
percentual. É interessante observar que um brevíssimo levantamento de óperas em português, em Portugal, feito ao longo da pesquisa, apontou 39 títulos, o que revela, nesse esboço de levantamento, um caminho interessante a ser aprofundado por pesquisas futuras.
Segundo Kiefer (1976) e diversos outros autores mais recentes, as primeiras óperas em português remontam ao século XVIII. Destacam-se, nesse período, as óperas do
Judeu. Posteriormente, o Theatro São João foi inaugurado em 1813, no Rio de Janeiro,
com uma ópera em português, e outras, também em vernáculo, foram encenadas na primeira metade do século XIX.
A formalização, em meados do século passado, de um movimento visando à
institucionalização da produção de óperas em português (a Imperial Academia de Música
e Ópera Nacional), foi, sem dúvida, importante, e propiciou a canalização de recursos
provenientes de extrações de loterias, com a finalidade de subvencionar o empreendimento. Não é, contudo, o marco inicial da produção de óperas em Português (informação
esta que não é nova, mas que ainda é fruto de desconhecimento frequente).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
305
É importante observar que, com população predominantemente constituída de
escravos e de analfabetos, e só tendo conhecido, ao longo do século XIX, condições razoáveis de higiene e de saneamento, a ópera e o luxo dos teatros do Rio de Janeiro floresceram
no ambiente carioca oitocentista, associando a ópera às elites e á nobreza. É um espetáculo
ligado à nobreza e à alta burguesia que se esboça nesse período. É “o passatempo de gente escolhida” (periódico A Actualidade, de 12 de fevereiro de 1859). Está ligada ao poder:
simboliza, sublinha e valida esse poder. As citações a seguir ilustram essa observação:
o Rio de Janeiro atravessa boa parte do século XIX sem iluminação nas ruas e
sem sistema de esgotos, sendo os dejetos domésticos depositados em praça
pública, mas, desde 1813, pouco depois da chegada da corte portuguesa, já se
inaugurava o primeiro grande teatro de ópera – o Real Theatro de São João,
com o costumeiro luxo na arquitetura e na decoração: veludos, dourados, sanefas
etc. (Freire, 1995, p. 106-107)
A criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional não foi um movimento isolado ou desconectado da trama social da época. Todo o século XIX, segundo autores como Ianni (1994), foi atravessado por manifestações de caráter modernista e nacionalista, que se relacionam também à produção operística.
A questão nacional é um tema constante no pensamento brasileiro. Diz respeito
a como se cria e recria a nação, em cada época, conjuntura ou ocasião. [...] pode-se refletir sobre o Império e a República como formas históricas diferentes
da nação. (Ianni, 1994, p. 8-9, grifo nosso).
Essas manifestações ideológicas aparecem em documentos diversos, mesmo
antes da independência do Brasil, e estão presentes nos jornais, desde o início do século
XIX, persistindo ao longo de todo o período. Ou seja, o discurso modernista e nacionalista
sublinha todas (ou quase todas) as grandes causas do século XIX e XX, seja a Guerra do
Paraguai, seja a abolição da escravatura, seja o movimento republicano, entre outros.
Foi sob o patrocínio da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional que se
iniciou a carreira profissional ou, pelo menos, teve início uma carreira com maior visibilidade, de vários compositores. Damos como exemplos os compositores Carlos Gomes (A
Noite do Castelo, 1861 e Joanna de Flandres, 1863) e Elias Álvares Lobo (A Louca, 1861).
Carlos Gomes estreou com uma ópera em português, em 4 de setembro de 1861, “A Noite do Castelo”, no Theatro Lyrico Fluminense, que lhe valeu a condecoração da ordem da
Rosa, concedida pelo Imperador. Joanna de Flandres, encenada no mesmo teatro, também
sob o manto da Ópera Nacional, tinha igualmente seu texto em português, e seu sucesso
valeu a Carlos Gomes a nomeação para mestre da Capela Imperial (Carvalho, 1935).
A ópera, gênero musical a que Carlos Gomes mais se dedicou, foi, sem dúvida, o
preferido das classes sociais dominantes do Rio de Janeiro oitocentista, “o passatempo
de gente escolhida”, como assinala o periódico A Actualidade, do Rio de Janeiro, já citado.
A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, contudo, unânime, envolvendo controvérsias sobre a pertinência do canto em português e sobre o destino de verbas para a ópera brasileira ou para companhias italianas.
[…] não faltou quem na organização e na existencia da Opera Nacional motejasse
e tentasse vilipendiar tanto a ideia como sua realização […]. tão digna do apoio
e da proteção de todos os Brazileiros amigos de sua patria, visto que ella vinha
[…] estabelecer o cunho de sua arte, imprimindo-lhe ou fazendo de envolver o
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
306
genero, o typo caracteristico da musica nacional [...] o que dá a nacionalidade é
a linguagem de que se usa, em que está escripto o libreto e a partitura, e não o
facto accidentalissimo do artista que canta essa partitura […]. (Jornal do
Commercio, 1861)
A defesa da ópera nacional, com texto em português, não era, portanto unânime.
A controvérsia em torno da ópera chegava à Câmara, envolvendo o debate sobre verbas
de apoio à ópera brasileira ou às companhias italianas. O interesse pelo canto em português
aparece, contudo, desde o início do século XIX, em diversos momentos, como ilustram os
exemplos a seguir.
Em 1852, Raphael Coelho Machado publicou um Breve Tratado de Harmonia
(Magaldi, 1995), provavelmente escrito anos antes, que dedicava um capítulo ao canto
em português, evidenciando a preocupação com uso do nosso idioma cantado, antes da
criação da Imperial Academia.
Em 1857, A Revista Literária e Recreativa, além de discutir a necessidade de edificar um teatro apropriado para a Ópera Nacional, afirmava que já se provou que “a língua
que falam os brasileiros e portugueses pode prestar-se, e presta-se realmente e de facto,
a todas as variedades da musica lyrica theatral”.
Complementando essa exemplificação, transcrevemos abaixo um comentário
contido no periódico A Actualidade, de 24-nov., 1860, que, saudando a Ópera Nacional,
observa: “irrogam uma injúria atroz à lingua portuguesa aquelles que dizem que ella não
se presta bem ao canto. Depois da Italiana, nenhuma conhecemos que lhe leve a palma
da clareza e suavidade dos sons, na facilidade e melodia da prosa”.
O debate sobre o canto em português e sobre as verbas para a ópera prolifera
nos periódicos. Em 1º de agosto de 1859, o jornal A Actualidade, discutiu a proposta do
“Sr. Deputado Pacheco” para elevação, ao dobro, do número de loterias destinadas a subvencionar a empresa lírica, e lembra que “as loterias concedidas ao theatro lyrico e a
opera nacional forão uma das mais valentes armas, de que se servio essa opposição [partidos políticos de oposição] para combater o gabinete de 4 de maio”.
A ópera não era, portanto, somente o “passatempo” das elites, mas movimentava
quantias vultosas, na forma de subvenções, e gerava debates políticos na câmara, no senado e nos jornais:
Não nos digão que o ministerio não tem que ver com o theatro lyrico. Esse estabelecimento, que tem custado ao Estado boas centenas de contos de réis e a
quem ainda dá elle cerca de 120:000 $ 000 por anno além do edifício, que representa um avultadíssimo capital, além das alfaias, do guarda-roupa, que não custarão ahi qualquer migalha. Este estabelecimento, para o qual se vai levantar
um monumento, que custará seus 2 000:000 $ 000, não pode ser considerado
senão como a mais mimosa e a mais bem dotada das repartições do serviço público. (A Actualidade, 1º-ago., 1859)
Ao longo do ano de 1859, o mesmo periódico prosseguiu, em diversos números,
discutindo as subvenções ao teatro lírico, o apoio às companhias italianas (em detrimento
das nacionais), questionando o canto em língua estrangeira e a concorrência desigual à
ópera nacional.
Em 7 de julho de 1860, ao discutir as subvenções e loterias que patrocinavam o
teatro lírico, A Actualidade afirmava que esse apoio ocorria “porque entendia-se que o
Brasil próspero não podia deixar de possuir um theatro de canto em italiano [e que] o
theatro lyrico era uma necessidade da conciliação: convinha distrahir o público das
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
307
questões políticas” (grifos nossos). Ou seja, o viés político/ideológico relativo à ópera
transparece nessa afirmativa, mesmo quando o discurso advoga a necessidade de “distrair”
o público das questões políticas.
As divergências sobre o canto em português atravessaram, portanto, o século
XIX e penetraram no século seguinte. Alberto Nepomuceno, na transição entre esses dois
séculos, destaca-se como um dos nomes que batalharam pelo canto em português, embora
também tenha produzido obras em outros idiomas. Segundo Romero (2007), Joaquim
Rodrigues Barbosa, ao anunciar o programa de concerto de apresentação de Nepomuceno,
após seus estudos na Alemanha, dava destaque aos versos em língua portuguesa, afirmando que “apesar de sua longa residência na Europa, tem um amor imenso à sua pátria
e às coisas de sua terra [...] acredita que a nossa língua é muito musical e tem todas as qualidades para adaptar-se ao canto” (Romero, 2007, p. 108). Essa convicção custou, a Nepomuceno, confrontos diversos, que evidenciam a controvérsia, ainda ao tempo de Nepomuceno, sobre o canto em português, controvérsia essa que a ópera já refletia há tempos.
A ópera foi, sem dúvida, um evento de grande importância no ambiente carioca
oitocentista, assim como os debates sobre o uso do idioma português no canto. O espaço
ocupado nos jornais da época é um dos importantes testemunhos a esse respeito. Além
disso, a importância da ópera pode ser rastreada nas melodias das modinhas e no repertório das igrejas, e no fato de ter gerado grande parte do repertório pianístico do século
XIX, no Rio de Janeiro (reduções, fantasias, arranjos etc.). Esse repertório derivado da
ópera ecoou nos salões cariocas em todo aquele período, ao som das vozes e dos pianos
de músicos amadores e profissionais, apresentando-se lado a lado.
Observamos, assim, que o emprego do português vernáculo aconteceu, efetivamente, como um gesto político, a partir de meados do século XIX (embora a produção
de óperas em português seja muito anterior a esse momento). Cabe lembrar, mais uma
vez, que o uso do texto de óperas em português não foi uma “criação” do movimento pela Ópera Nacional e que o nacionalismo faz parte do ideário da época, não só no Brasil,
como tema intelectual, político e estético (Burke, 2010), como podemos observar na citação a seguir, extraída do Jornal do Commercio, de 7 de julho de 1861:
O dia de hoje recorda o acontecimento mais notável dos fatos do Brazil, commemorando a fundação da nossa nacionalidade. […] A constituição jurada em 1825,
no conceito de nação, encerra a resolução dos problemas sociaes, monumento
de sabedoria política levantado pelo patriotismo de nossos pais […]. Os seus
preceitos são os dogmas da religião política do Brazil, que o santo amor da pátria
tem gravado com buril eterno no coração de seus filhos. Saudamos o anniversario
do dia grandioso de que datão [datam] a independencia e a nacionalidade brazileira, e […] enviamos ao céo os nossos mais sinceros votos pela prosperidade da
pátria. (grifos nossos)
Revela-se, portanto, na leitura de documentos oitocentistas, inclusive de periódicos, a atualidade e a importância do nacionalismo, como tema relevante à época, expressando uma vertente ideológica do período, que, paralelamente a outras, também transparece, subjacente às óperas: liberalismo e nacionalismo, expressos no orgulho pela independência e pela afirmação da nacionalidade; positivismo e conservadorismo, expressos
nos “dogmas da religião política” e no “santo amor à pátria”; nos “votos de prosperidade
à pátria”, além da inspiração positivista, transparece, através do desejo de progresso, um
ideal de modernidade...
Em torno do ideário nacionalista/progressista/modernista se encontram as duas
tendências políticas contraditórias, dominantes à época – o liberalismo e o conservaAtualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
308
dorismo. As diferenças ideológicas entre essas duas correntes se diluíam, aparentemente,
no discurso pela liberdade, pela afirmação nacional e na expectativa quanto ao progresso
da nação… E essa afirmação passava, também, pelo teatro de ópera. Foi nesse pano de
fundo que emergiu, no Rio de Janeiro, o movimento pela institucionalização da ópera nacional.
Óperas em português, música, ideologias
Observamos que não somente no idioma se dava a consumação de “brasilidade”
nas óperas, expressando o ideal nacionalista. Luiz Heitor Correia de Azevedo (1987) assinala
indícios de “brasilidade” nas duas primeiras óperas de Carlos Gomes, escritas em português,
convergindo, em sua opinião, com os comentários feitos, na época, pelo Jornal do
Commercio, referindo-se à Joanna de Flandres:
a melodia […] tem momentos de abandono em que deixa os céus mediterrâneos
pela ardência dos trópicos e evoca […] qualquer coisa que está bem próxima de
nós, bem no centro de nossa sensibilidade musical: qualquer coisa que, sem ritmos sincopados, sem sétimas abaixadas, parece-nos […] música do Brasil. (Azevedo, 1987, p. 99-100)
A despeito das evidências do uso de fórmulas comuns às óperas italianas, Luiz
Heitor refere-se, ainda, a “certo jeito das modinhas do tempo”, apontando, assim, características do cancioneiro brasileiro permeadas às da ópera italiana, na produção de Carlos
Gomes.
Nacionalismo, no século XIX, se expressava nesse jogo entre modelos europeus
(sobretudo italianos), “perfumes” melódicos e harmônicos brasileiros, “jeito” de modinhas,
texto em português. Assim se afirmava a nacionalidade, em meados do século XIX, e Carlos Gomes, talvez mais veementemente que outros músicos de sua época, assim o fez.
Squeff e Wisnik (2001, p. 22) divergem de Azevedo (1987) e não reconhecem
brasilidade na música de Carlos Gomes, pois consideram que o compositor “valeu-se de
aspectos literários para engrossar a filosofia nacionalista do Segundo Império”. Segundo
eles, Carlos Gomes corresponde a “algum tipo de nacionalismo” pelo uso de temas literários ou personagens nacionais, embora faça música predominantemente europeia, configurando “não apenas a fórmula do sucesso, mas pior, da conciliação”. Seu apelo ao “exótico”, segundo o gosto e o modismo da época, seria a chave para conciliar as fórmulas
musicais da ópera italiana com a temática nacional, gerando um “nacionalismo alienado”,
que “renega a realidade, mesmo quando pode interferir nela” (Squeff e Wisnik, 2001, p.
30).
Carvalho (1935) relata o empenho de Carlos Gomes em conseguir, na Itália, instrumentos de percussão que lhe assegurassem a sonoridade necessária à ambientação da
temática indígena, e contesta aqueles que acusaram o compositor de só escrever música
italiana, assinalando que suas melodias têm um sabor que evoca nossas selvas, cheias da
luz fulgurante e do ruído misterioso de nossa natureza. E conclui afirmando que a música
de Carlos Gomes tem, como qualidade essencial, ser a música mais genuinamente brasileira
que jamais se escrevera.
Nogueira (2006) considera que a obra de Carlos Gomes revela um conflito (ideológico e musical) entre procedimentos estéticos desenvolvidos na ópera italiana à época
da unificação da Itália e a “necessidade estética do compositor de avançar com outras
tendências, de estar atento, enfim, ao mundo da criação musical do final do século XIX”
(p.31). A análise de Nogueira valoriza o processo de síntese de diferentes características
ou de hibridização na obra do compositor.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
309
Consideramos que essas interpretações divergentes sobre a ópera de Carlos Gomes refletem diferentes concepções e diferentes momentos, sendo, de certa forma, aplicáveis às demais óperas do período, nas quais a música sublinha, por contraste ou por afinidade, significados subjacentes, muitas vezes contraditórios entre si, participando, assim,
de sua elaboração, de sua disseminação e de sua permanência. Significados são entendidos
neste trabalho como remissão a “outra coisa que” (Castoriadis, 1991 apud Freire, 1994),
expressando valores vigentes à época.
Entendemos que, assim, as óperas em português, sobretudo no século XIX e início do século XX, expõem, nos diversos espaços (palcos dos teatros, plateia, camarotes
etc.), concepções ideológicas divergentes, associadas a hibridismos musicais diversos e a
libretos que veiculam significados igualmente contraditórios. Esses hibridismos celebram
sínteses entre aspectos diversos, amalgamando contradições e contrastes.
Essas contradições e contrastes transparecem nos personagens, como no caso
de índios que se comportam segundo valores europeus, nos enredos das óperas, como,
por exemplo, em óperas ambientadas em acontecimentos históricos da Europa, bem como
nas músicas, que hibridizam elementos de diferentes gêneros, estilos e procedências. A
maioria do povo, contudo, não participa desse processo, já que não frequenta o teatro,
pois, no Rio de Janeiro oitocentista os espetáculos de ópera são acessíveis apenas ao público restrito, de melhor poder econômico.
As óperas de Carlos Gomes fornecem bons exemplos dessas contradições. Nas
primeiras óperas em português, A Noite do Castelo e Joanna de Flandres, a temática é
estrangeira (Cruzadas), com modelagem geral de inspiração italiana e com traços melódicos
e harmônicos “dos trópicos”. Em Il Guarany, apesar da temática nacional, o texto original
é em italiano (há versão posterior em português). Convivem traços musicais de brasilidade
com modelos musicais da ópera italiana. A temática indígena, que seria o aval de O Guarani
como nacionalista, é contraditória, pois opera a entrega do índio ao branco, em imolação
voluntária (mito sacrificial), simbolizando a tensão dialética entre colonizador/colonizado,
culminando com o sacrifício sublime e espontâneo do último (Bosi, 1992).
Assim, as óperas oitocentistas em português (não só as de Carlos Gomes) processam um jogo dialético: ora a temática estrangeira domina, ainda que cantada em idioma
nacional; ora a temática nacional, permeada de contradições, submete-se ao idioma
estrangeiro. O mesmo ocorre nas construções musicais: tensão dialética entre fórmulas
italianas e formas de expressão musical típicas do Brasil, como a modinha, prevalecendo,
porém, o domínio do colonizador...
A proposta de nacionalismo musical do movimento modernista, no início do
século XX, repetiu no nível simbólico o mesmo jogo: o folclore nacional, absorvido pela
linguagem musical “universal”, repete o rito sacrificial do colonizado, segundo avaliação
de Bosi (1992).
Observa-se, assim, nesse jogo contraditório de concepções, musicais e
ideológicas, o encontro ou a hibridização de diferentes significados (Freire, 1994): significados residuais, provenientes dos modelos musicais europeus, aqui imitados; de significados atuais, presente nos “jeitos” de modinhas, e outros “jeitos” aqui delineados; e
significados latentes, que só iriam se explicitar, aprofundar ou desenvolver posteriormente,
como, por exemplo, no movimento nacionalista, desencadeado pela Semana de Arte Moderna, que, como se vê, não era absolutamente novo.
O desejo de afirmação nacional aparece, portanto, subjacente a toda essa produção, articulando a valorização de elementos da cultura local com a imitação de elementos estrangeiros. Essa afirmação envolve expectativas de modernidade e de modernização, ideologias também importantes na sociedade brasileira oitocentista e que estão
subjacentes à produção de óperas em português, estendendo-se ao século XX.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
310
Esse processo de construção de identidade passa por duas etapas não necessariamente sucessivas: uma de imitação, em que a simples cópia do modelo europeu é uma forma de afirmação, uma forma de se dizer no mesmo nível que a
metrópole; outra de síntese, de elaboração conjunta de elementos musicais,
segundo articulações de sentido aqui engendradas e articulações de sentido
originárias da Europa. (Freire, 1995, p. 107-108)
Esse jogo dialético é descrito por Mattos (1986 apud Freire, 1995) como duas faces de uma mesma moeda – um jogo de imitação, ou de ênfase nas semelhanças com a
metrópole, a partir do qual os homens livres do Império se reconhecessem e se fizessem
reconhecer como membros do “mundo civilizado”, animado pelo ideal de progresso; e
um jogo de diferenças, que consiste em distinguir o Império Brasileiro das nações mais
civilizadas da Europa, pelo modo pacífico como se constituiu, pela peculiaridade de sua
posição geográfica, pelo seu exotismo etc.
Cunha (1987, p. 187), analisando a ópera O Escravo, da qual há versão em português, enfatiza esse jogo dialético, apontando o retorno ao “exotismo”, bem como o uso
de “acentos rítmicos”, contornos melódicos peculiares, “instrumental selvagem”, configurando a presença de “estranhezas rítmicas e temas de sabor agreste e mesmo selvagem
que nada têm a ver com a música da Europa e muito menos com a italiana.” O mesmo autor identifica, nessa ópera, traços de verismo, junto a traços “patrióticos”. Segundo o mesmo autor, a característica marcante de O Escravo é “a beleza e variedade das melodias,
com acompanhamentos que, na maioria, fogem ao tradicionalismo lírico italiano pela
originalidade da concepção” (p. 189).
Divergindo de Cunha, que exalta características nacionais em Carlos Gomes, no
jogo dialético acima mencionado, Squeff e Wisnik (2001), referindo-se a O Escravo, destacam que a crítica internacional apenas assinalou “cor local” no prelúdio do quarto ato, na
Alvorada, com o gorjeio dos pássaros etc., ressaltando, contudo, a inclusão, no final do
prelúdio, de uma alusão remota ao Hino Nacional brasileiro: “O compositor não acede
que suas obras devam ser nacionais no sentido radical de ir ao folclore – mas que têm que
ser tematicamente nacionalistas. Inclusive na alusão deliberada a temas incorporados ao inconsciente coletivo e que se mantêm conceitualmente vivos” (Squeff e Wisnik, 2001, p. 23).
Os mesmos autores consideram que Carlos Gomes esquivou-se de comprometerse, efetivamente, com questões relativas à escravidão negra e ao colonialismo, optando
por colocar índios, e não negros, como escravos, na ópera. O compositor teria evitado,
segundo Squeff e Wisnik, posicionar-se como “acusador de uma sociedade que não cessar
de explorar a mão de obra escrava – caso do Brasil; e como crítico das sociedades européias
em geral, quase todas elas com inequívoca vocação colonialista, não disfarçadamente racistas” (Squeff e Wisnik, 2001, p. 26).
À proclamação da República, em 1889, corresponderam mudanças ideológicas
na sociedade e no Imperial Conservatório, que passou, com o novo regime, a denominarse Instituto Nacional de Música e a buscar novas prioridades estéticas. O italianismo que
dominara todo o cenário musical oitocentista foi sendo parcialmente substituído, sem,
contudo, desaparecer, e sem que haja unanimidade quanto a essa troca, por modelos
franceses e germânicos. Aliás, as elites da cidade do Rio de Janeiro aspiravam a um afrancesamento, que se expressa de muitas formas nos primeiros tempos da República, e tem
um de seus pontos máximos na campanha “o Rio civiliza-se”, desencadeada no início do
século XX, gerando muitas demolições e alargamento de ruas e avenidas, à busca de se
aproximar de modelos urbanísticos parisienses.
Carvalho (1935), referindo-se à frustrada nomeação de Carlos Gomes para o
Conservatório de Música do Rio de Janeiro, nos primeiros tempos da república, considera
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
311
que o maestro foi banido, apesar de constituir gloria nacional indiscutível, porque, segundo
ela, o compositor não era considerado wagneriano por Dr. Luiz de Castro, Rodrigues Barbosa e Leopoldo Miguez, entre outros. E conclui afirmando que não se fazia grande questão
de música brasileira, preferiam-se, ao invés, bons copistas “teutões”. A estética germânica
é valorizada por Miguez, primeiro diretor do recém criado Instituto.
Novos tempos se anunciavam, e a ópera, como uma das instâncias expressivas
da sociedade, também transforma os significados que processa, pelo menos em parte.
Novos tempos: teatro e cinema, óperas e filmes
Com a chegada de novos tempos (primeiros tempos da República), a ópera, que
teve forte uso emblemático pelo poder monárquico, entrou em decadência juntamente
com o declínio do regime monárquico e com o início do cinema (Freire, 2004). Lembramos
que em 1896 foi produzido o primeiro filme no Rio de Janeiro (Capellaro; Ferreira, 1996).
No ano, portanto, da morte do compositor, iniciava-se a produção de filmes na
cidade, mas já tramitava, desde meados do século XIX, uma ascensão de outros gêneros
de entretenimento para a população, alguns deles predecessores do cinema, que apontavam para uma substituição de meios de comunicação e de expressão, com evidente declínio da ópera. Em setembro de 1861, época do primeiro sucesso operístico de Carlos
Gomes (A noite do Castelo), já figurava no Jornal do Commercio um anúncio do “gabinete
optico”, exibindo “vistas” de países da Europa e alusivas a alguns eventos importantes da
época.
Lanternas mágicas, cosmoramas, agioscópios e outros espetáculos visuais, com
emprego de novas tecnologias, substituiriam, sorrateiramente, a ópera, na preferência
do público. É preciso notar que esses meios de entretenimento tinham um apelo estético
e ideológico fundamentalmente diferente da ópera, pois, ao contrário dela, que, numa
concepção fortemente moldada pelo romantismo, veiculava sempre conteúdos idealizados
e distantes da realidade do momento, o cinematógrafo e seus antecessores sempre tenderam a privilegiar a atualidade. A realidade atual não era importante na literatura romântica, inclusive nos libretos de ópera, em que os sentimentos conflituosos tendiam a
ser tratados como paixões, destituídos de implicações sociais. A representação se dava no
âmbito dos conflitos pessoais menores, resolvidos, na trama, pela punição dos transgressores.
No cinema, gradativamente, novos significados ganharam importância. No processo de transição de modelos estéticos, há que se registrar a grande quantidade de óperas,
operetas e outros gêneros dramático-musicais – filmados nos primeiros tempos do cinematógrafo – cedendo lugar, gradativamente, a documentários e a outros filmes de ambientação contemporânea. O exemplo a seguir ilustra essa situação:
UM FILME IMPORTANTE. A empresa S. Lazzaro empreendeu extrair uma fita de
O Guarani, a mais popular das óperas de Carlos Gomes. […] A partitura sofreu ligeiros cortes, apenas os indispensáveis para organizar o filme, cujo desdobramento não poderia ter a duração de toda a ópera. Os artistas que cantam
no palco, por trás do pano branco, não sacrificaram, por sua vez, a música de
Carlos Gomes, e o público manifestou o seu agrado pelos mais entusiásticos
aplausos. A empresa já está cuidando da montagem da Cavalleria e de outras
óperas. (Gazeta de Notícias, 19-abr., 1911)
A “crise” da ópera é evidente, e pode ser ilustrada pelo comentário de um articulista da Revista Fon-Fon, de 30 de novembro de 1907, que declarava que: “O [Teatro]
Lírico já tem um falante [cinematógrafo], que, em breve, se aperfeiçoado, matará a própria
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
312
Ópera” (apud Araújo, 1985). Além da “crise” do gênero operístico, a “crise” do teatro, em
geral, é assinalada por muitos comentaristas nos jornais do final do século XIX e início do
século XX. Essas “crises”, contudo, eram na verdade decorrentes do confronto entre duas
culturas ou duas tradições, a “erudita” e a “popular”, e não o fim da música, da ópera ou
do teatro, tal como lastimado por diversos intelectuais da época.
Carlos Gomes morreu sem pressentir que, poucos anos depois, os principais
teatros de ópera do Rio de Janeiro, inclusive o Teatro São Pedro de Alcântara e o Teatro Lírico, seriam transformados em cines-teatro, apresentando espetáculos mistos de palco e
tela para poderem sobreviver.
O cinema absorveu não só o teatro de ópera, pois são muitas as óperas e operetas
filmadas nesses primeiros tempos do cinema, no Rio de Janeiro, mas também absorveu
em grande parte as manifestações do “teatro ligeiro”, como os espetáculos de “revista”
que, permeados de humor, passavam em revista os fatos políticos e sociais do momento.
Foram muitas as peças de revista apresentadas no novo cinematógrafo, numa prova inequívoca da mudança que se processava nos meios de comunicação.
Apesar das mudanças, contudo, o viés nacionalista penetrou o século XX, com
outros matizes. A Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, manteve esse viés e o
reforçou com um ideário articulado por intelectuais da época. O nacionalismo oitocentista
tinha semelhanças com as concepções da Semana de Arte Moderna e do início do século
XX, embora cada um tivesse suas peculiaridades, pois nenhuma concepção é atemporal
ou isenta de historicidade. Alguns traços desses nacionalismos perduraram ao longo do
século XX, com diferentes nuances, inclusive nas óperas.
As óperas em português do século XIX e da primeira metade do século XX expressam, de forma semelhante, ideais e significados contraditórios. Há mais elementos de
continuidade que de ruptura, entre elas. De certa forma, a ideologia nacionalista está
subjacente em vários aspectos que se contrapõem dialeticamente, apesar de novos significados e novas linguagens musicais se fazerem presentes: liberdade e independência
versus submissão; idealização romântica versus realismo; modernismo versus conservadorismo; afirmação de identidade diferenciada versus busca de igualar-se ao estrangeiro.
Assim como o século XIX foi “costurado” por ideais conflitantes de independência,
de progresso, de modernismo, de nacionalismo, a música, e, sobretudo, a ópera, também
fez parte deste “alinhavo” ideológico e conflituoso da época. Squeff e Wisnik (2001, p. 25)
consideram que, em certo sentido, a ópera para o Brasil representou quase o inverso do
que foi para a Europa, pois, enquanto em países como Itália e Alemanha, a ópera acompanha a unificação nacional, no Brasil é apenas a extensão de um espetáculo dramático
que pouco ou nada tem a ver com a realidade do país, explorado em vários níveis e
inconsciente de suas possibilidades como nação. Embora não seja esse o objetivo da
observação dos dois autores, ela reforça a interpretação de conflito ideológico conduzida
nesta exposição.
Na concepção de nacionalismo elaborada no movimento modernista do início
do século XX, sobretudo por Mário de Andrade, foi formulada uma versão do nacionalismo
musical que resultaria da absorção do folclore pela música “universal”. Passou-se, assim,
a considerar a Semana como o marco do nacionalismo e do modernismo, como a “inventora” dessas concepções na arte brasileira, configurando uma ruptura com concepções
anteriores. A realidade, contudo, não é bem essa, pois muitos elementos do pensamento
e da estética dos séculos anteriores persistiram no ideário modernista e posteriormente
a ele, como vestígios do passado, envoltos em novos significados e conflitos.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
313
Considerações finais
Ao longo do século XX, as significações ideológicas ligadas à ópera se transformaram. Óperas em outro idioma ainda são compostas no início do século XX, mas gradativamente passam a ser concebidas quase exclusivamente em português. Textos em
outros idiomas, como latim ou grego, são utilizados, muitas vezes em busca de um efeito
sonoro especial.
Significados antigos persistem subjacentes a muitas delas, como resíduos. O viés
nacional transparece em muitas óperas compostas a partir do século XX, tendo como tema personagens ou passagens da história do Brasil. Damos como exemplos: Castro Alves
(de José Siqueira, s.d.), Farrapos (de Roberto Eggers, 1936), A Descoberta do Brasil (de
Eleazar de Carvalho, 1939), A Cabanagem (de Manoel Belarmino da Costa, 1949), Anita
Garibaldi (de H. Geyer, 1950), A Lenda do Bicho Turuna (Lindemberg Cardoso, 1974), Domitila (de João Guilherme Ripper, 2000), Olga (de Jorge Antunes, 2006), entre outras. A
temática histórica, contudo, cede muitas vezes importância, no drama, aos conflitos e
paixões pessoais, tal como nas óperas do século anterior, embora em algumas, como
Olga, de Jorge Antunes, o conteúdo político prevaleça.
As óperas passam, assim, gradativamente a expressar as ideologias e estéticas
dos séculos XX e XXI: expressionismo, impressionismo, existencialismo, minimalismo, vanguardismo e outras, sobrepostas a resíduos do passado. Temas da contemporaneidade e
da atualidade política são expostos, por vezes mais cruamente, em cena. Novos recursos
dramáticos, composicionais e sonoros são incorporados (Jorge Antunes e Jocy de Oliveira
são exemplos importantes). A formação instrumental e o elenco são frequentemente
reduzidos, muitas vezes como forma de torná-las viáveis, economicamente.
Talvez por esses motivos, as óperas do século XIX e do início do século XX ainda
são as que têm maior receptividade pelo público “cativo” do gênero, que busca reencontrar
as mesmas fórmulas estéticas, as mesmas árias famosas, e nem sempre aprecia as inovações.
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de Óperas brasileiras do século XX,
cujo enredo resumido permite entrever algumas concepções subjacentes, aliando significados residuais, atuais e latentes:
Sonho de uma Noite de Luar (1916-1917), de J. Otaviano Gonçalves. O enredo
trata de um homem que, relendo velhas cartas de amor, evoca a figura infantil de sua
amada Edel. Na exaltação em que se encontra vê surgir Edel, com 15 anos, como a conhecera, e têm um longo colóquio. Logo em seguida, a verdadeira Edel, muito sacrificada
pelas lutas da vida, vem visitá-lo e, em vão, tentam reacender a chama do amor entre eles.
Sóror Madalena (1926), de Alberto Costa, conta a história de uma freira, num
hospital, que visita, numa noite de carnaval, o homem agonizante que no passado a seduziu
e abandonou. Ele lhe pede perdão e, antes que morra, ela o beija na boca. Depois, arrependida, corre a pedir perdão a Deus na capela, e o Senhor lhe dá o sinal de que perdoou
sua fraqueza.
Um Homem Só (1962), de Camargo Guarnieri. Trata de um funcionário público
solitário, procurando sentido para sua vida, em diversas situações, sem encontrar resposta:
em conversas com uma catadora de papéis; com um psicanalista; em visita a uma igreja,
onde tampouco encontra consolo; no encontro com Rita, uma jovem desgastada pela
vida, que passa a noite com ele, mas depois recusa uma relação permanente. Por fim encontra a morte e, num cortejo fúnebre, é acompanhado por todos aqueles que nunca o
souberam compreender.
Olga (2006), de Jorge Antunes, conta a história da revolucionária Olga Benário
Prestes e seu romance com Luis Carlos Prestes, com final trágico da heroína em campos
de concentração alemães.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
314
A presença de diferentes recursos composicionais e sonoros na ópera Olga serve,
aqui, para ilustrar as novas tendências estéticas presentes nas óperas mais recentes: “[...]
usa linguagem musical moderna [...] adota melodias neotonais mescladas a música experimental [...] inserções eletroacústicas, referências ao folclore nordestino e citações da
ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner, entre outros elementos” (Folha de São Paulo
apud Hartkopf, 2010).
Nos quatro exemplos, persistem algumas fórmulas que embalaram as óperas
oitocentistas, como o drama dos amores impossíveis, o desajuste à realidade social, a culpa e a punição pela transgressão de normas sociais, etc. Embora com outra roupagem,
com uso de novas linguagens musicais e com temáticas atuais, as óperas dos séculos XX e
XXI muitas vezes perpetuam, de certa forma, a essência do gênero, que garantiu seu sucesso
no século XIX.
O “mundo da ópera” corresponde, originalmente, a um universo político e ideológico que não é exatamente o do final do século XIX, nem o do século XX ou XXI. Contudo,
a magia de suas melodias e histórias fantásticas exerce, até hoje, um encanto sedutor sobre os ouvintes.
Talvez você já faça parte de outro mundo, mas se a loucura das histéricas pôde
passar da fogueira à ópera, e durar ainda através do extraordinário esplendor
de suas vozes, sem dúvida se escondem, também, nos recantos de sua cabeça,
os grandes mitos impensados dos quais você é, sem saber, prisioneiro. A ópera
é a síntese desses mitos; melhor do que qualquer livro ela soube expô-los em
toda sua grandeza passada. Ela os faz viver, sobreviver, ressuscitar; mantém no
prazer cego as duras leis familiares e políticas. É preciso saber olhar esses mitos
no fundo de seu olhar deslumbrante. (Clément, 1993, p. 243)
A ópera oitocentista deixou, sem dúvida, suas reverberações não só nos teatros
do Rio de Janeiro, onde ainda se apresentam algumas poucas óperas a cada ano, mas,
também, nos ecos nos pianos e nas vozes das classes mais aquinhoadas, através das melodias das óperas arranjadas para uso doméstico. Nos cursos de música do Rio de Janeiro,
os de canto e de piano ocuparam, durante muito tempo, no século XX, um lugar de destaque, como reflexo remoto da importância dada à ópera no anterior, mas esse interesse
entra em declínio, no final do século XX. Mudou a sociedade, mudou o país, mudou o
mundo. A ópera é um espetáculo indelevelmente ligado a um mundo que não existe
mais, mas ainda tem seu fascínio, ainda que sob novos valores e formas.
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O teatro lírico no Brasil meridional:
origens e percursos
Ezio da Rocha Bittencourt
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
Origens do teatro lírico no Brasil Meridional (séculos XVIII e XIX)
As mais antigas apresentações líricas que faço registro na então Capitania do
Rio Grande de São Pedro do Sul datam de 1760, na localidade de São Borja, como ponto
alto das celebrações à coroação de Carlos III, de Espanha. Pouco após a Guerra Guaranítica,
em região ocupada pelo exército de D. Pedro Cevallos e então pertencente à Castela, índios guaranis, orientados por padres jesuítas espanhóis levaram a feito as óperas Rei Orontes do Egito, Felipe V, Pastores do Nascimento do Deus Menino e O Nascimento (Andreotti,
1995, p. 22-23). A Reconquista portuguesa da Vila de Rio Grande em 1776, após os treze
anos de domínio espanhol, foi igualmente comemorada com diversos festejos que incluíram trechos de óperas em italiano apresentados por militares da Coroa lusa. 1
Em finais do século XVIII surgiram no Rio Grande do Sul (RS) e na Região Platina
as primeiras casas de espetáculos denominadas de Casas-da-Ópera ou Casas-da-Comédia
que passaram a albergar as representações cênicas. O termo “ópera” abrangia tanto as
comédias quanto os dramas e até verdadeiras peças líricas, ou mais comumente, alguns
trechos, “cortinas operísticas ”, todas estas manifestações entremeadas por músicas. Nestes
ambientes o repertório deixou progressivamente de ter influência medieval e adotou modelos napolitanos da “opera-buffa” tão em voga na Lisboa Setecentista.
Com a instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro em 1808 e a construção
do Real Teatro de São João (1813), o país recebeu os primeiros elencos profissionais estrangeiros que impulsionaram a ópera no Brasil, atendendo, inicialmente, às necessidades
culturais desta fidalguia europeia recentemente instalada na nova capital do Império Lusitano. Em verdade foi o compositor Marcos Portugal quem introduziu no país, o gosto pela
ópera italiana, da qual ele próprio era legítimo representante. Era o mais importante músico português de sua época, tinha estudado em Nápoles onde se tornou amigo de Cimarosa. Chegou ao Brasil em 1811 sendo nomeado mestre-de-capela da Capela Real recémcriada por D. João VI. Estilisticamente sua produção pertence ao Rococó e à Itália. Escreveu
músicas sacras para a Capela Real, modinhas populares e várias óperas destinadas a divertir
a Corte. Nas décadas de 1810 e 1820 a figura dominante de Marcos Portugal e a extraordinária presença da ópera italiana se infiltraram na produção dos músicos deste período
e colaboraram decisivamente no sucesso da vertente lírica peninsular no país ao longo
desse século.
O gosto pela ópera italiana serviu igualmente para manter o interesse do público
brasileiro pela música durante o Primeiro Reinado e a Regência, períodos em que a vida
musical brasileira carecia de instituições de peso que pudessem, verdadeiramente,
organizá-la. Na Corte, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara (1826), que sucedeu o
Real Teatro, tornou-se o centro das atividades operísticas no país e o compositor Gioacchino
Rossini (1792-1868) o grande responsável pela manutenção da chama musical na capital
durante boa parte da primeira metade do século XIX. Aliás, musicalmente, este período
...........................................................................
1
Essa informação foi obtida por Francisco Riopardense de Macedo em manuscritos existentes na Biblioteca de
Évora, em Portugal (Macedo, 1971).
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pertenceu grandemente ao compositor. Óperas como Il barbiere di Seviglia, La Cenerentola;
L’italiana in Algeri; La gazza ladra, gozaram de enorme popularidade à época.
O prestígio da ópera italiana foi tão importante que chegou a influenciar as modinhas, canções brasileiras sentimentais ou tristes, e mesmo contaminar a música sacra.
Vasco Mariz em sua História da música no Brasil revela que trechos de óperas italianas
eram adaptados e executados frequentemente, nas igrejas e que esta prática perdurou
até a primeira metade do século XX no país (Mariz, 1981, p. 49).
A ópera revelou-se igualmente um tema literário observado nas obras de vários
literatos brasileiros, sendo inclusive recorrente nas criações de José de Alencar e de Machado de Assis – autores seduzidos também pelo teatro e pela vida mundana em geral.
José de Alencar em Cinco Minutos faz referência à opera Il Trovador, de Verdi:
A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão
cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.
Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao
teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir. A princípio, por uma intuição
natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi,
que devia também ir sempre ao teatro. (Alencar, 1997)
A frase da ópera verdiniana que o personagem se apropria a fim de exprimir seu
desespero ante ao desconhecimento da identidade da mulher pela qual está apaixonado
é “Nem sequer um nome!”. Ele se vale da ópera, de sua dramaticidade e melodia, para
melhor manifestar o sentimento de aflição que o invadia.
Em Encarnação, Alencar retrata a personagem Julieta que, no foyer do Teatro Lírico, canta a ária da Lucia de Lammemoor, de Donizetti, seduzindo o personagem Hermano. Outra personagem, Amália, é igualmente marcada pelas melodias operísticas que
recorda. Na obra Pata da gazela a ópera Lucia de Lammemoor é mais uma vez mencionada,
sendo apontada como “o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na língua
dos anjos”.
Machado de Assis, tanto na literatura quanto no jornalismo, enfoca igualmente
muitas noitadas do Teatro Lírico retratando, inclusive, artistas da época: sopranos, tenores,
barítono que povoavam os espetáculos operísticos do Rio de Janeiro nos finais do
Oitocentos como as italianas Candiani e Zecchini. Em Memórias póstumas de Brás Cubas,
a filha do personagem Damasceno canta, ao piano, uma ária de Ernani, de Verdi. Em A semana, Machado de Assis faz referência às óperas Tannhäuser e Lohengrin, de Wagner e
Les Huguenots, de Meyerbeer. Depreende-se então que a ópera ocupava uma posição de
destaque na vida brasileira, invadindo a literatura e povoando as crônicas.
Dos finais do século XVIII e por toda a primeira metade do século XIX o gênero
ópera observou um extraordinário crescimento na Europa, superior então a todas as épocas
precedentes. O período registra as últimas composições de Mozart, as de Weber e do jovem
Wagner, na Alemanha e na Áustria; as de Rossini, Donizetti, Bellini e do jovem Verdi, na
Itália. Foram esses autores os maiores expoentes musicais surgidos nesta época marcada
por uma grande difusão das manifestações artísticas das nações europeias entre si. Uma conseqüência destes contatos foi o surgimento do Romantismo em vários domínios da arte,
por volta de 1800, nas Grã-Bretanha, França, Alemanha, sobretudo. No Brasil, este movimento chegou somente em finais da década de 1830 e afetou primeiramente a literatura.
Em termos operísticos, no conjunto das tendências criadoras do Romantismo
musical brasileiro, o movimento mais importante foi, sem dúvida, aquele que buscou na
década de 1850 a criação da “ópera brasileira”, nacionalizada tanto pelos temas apresentados quanto pela utilização de libretos em língua portuguesa. Foi neste período que
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o sentimento nativista amadureceu no teatro lírico brasileiro. Deve-se mencionar que a
primeira ópera brasileira escrita em português foi Marília de Itamaracá (1854), composta
pelo alemão Adolf Maersch residente no Rio, com libreto de Simoni.
Em 1857 foi criada a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Na direção
da instituição estava o espanhol José Zapata y Amat. Entusiasta do gênero zarzuela, que
por esta época vinha passando por um reflorescimento na Espanha, Amat empreendeu
uma campanha para que o gênero fosse transplantado para o Brasil como modelo a ser
seguido pelos compositores nacionais. No mesmo ano de sua fundação, a instituição promoveu a encenação de uma zarzuela traduzida em português intitulada A estréia de uma
artista, que alcançou grande sucesso e estimulou o projeto. Em 14 meses, Amat conseguiu
levar a cena 62 zarzuelas, óperas cômicas italianas e a ópera Norma, de Bellini, todas traduzidas para o português. Em 1860, a Ópera Lírica Nacional substituiu a Imperial Academia.
Buscou-se então dar estímulo à elaboração de uma ópera “genuinamente brasileira”. Surgiram algumas peças: a ópera-cômica A noite de São João (1860), de Elias Álvares Lobo
com libreto de José de Alencar foi a primeira ópera de música e libreto de autores nacionais;
A noite no castelo (1861), de Carlos Gomes, libreto de Antônio José Fernandes dos Reis,
Joanna de Flandres (1863), de Carlos Gomes com libreto de Salvador de Mendonça; O vagabundo (1863), de Henrique Alves de Mesquita. Algumas óperas e muitas zarzuelas foram
igualmente traduzidas para o idioma português neste período. Contam-se, igualmente,
adaptações de obras francesas em português.
Sob o Segundo Reinado algumas instituições culturais promoveram um período
excepcional na vida musical brasileira marcado por estímulos a produção nacional e pela
representação de óperas de compositores e libretistas brasileiros com textos em português.
Talvez este período tenha sido o de maior brilho exterior da música brasileira e, sem dúvida, o auge da produção operística de autores nacionais. O imperador D. Pedro II foi,
notadamente, um dos chefes de Estado brasileiros mais afeiçoados às artes e em especial
a música, exercendo o papel de mecenas de vários artistas enviados à Europa para aperfeiçoamento, a suas expensas. O mesmo pode-se dizer do apreço musical de D. Pedro I ele
próprio músico e compositor, assim como seu pai D. João VI grande responsável pelo
desenvolvimento cultural da capital do país nas primeiras décadas do século XIX.
Todavia, apesar dos esforços empregados, faltaram reais condições para que a
ópera nacional pudesse encontrar espaço e se afirmar em um universo musicalmente italiano no qual estava emerso o país e onde o interesse econômico dos empresários das
grandes companhias líricas (estrangeiras e italianas, sobretudo) e dos teatros ditava o
tom. Outrossim, somava-se a real dificuldade de cantores líricos lusófonos. Não existia no
país um quadro significativo de cantores brasileiros de qualidade que conseguissem garantir
a boa encenação de uma ópera, o que obrigava recorrer a elencos estrangeiros que, na
sua grande maioria, não dominavam o idioma português. Foi o que aconteceu com a
ópera Joanna de Flandres de Carlos Gomes, representada, em 1863, no Rio de Janeiro. Os
artistas eram todos italianos, não entendiam o idioma nacional e a plateia não pode nem
sequer verificar em que língua eles cantavam devido à péssima pronúncia. Outra questão
importante era que as óperas consagradas do repertório estrangeiro eram mais lucrativamente rendosas que as criações nacionais com libretos por vezes deficitários, e compositores desprovidos de uma sólida tradição musical como os italianos. Assim, face às
inúmeras dificuldades encontradas, naufragou a tentativa da “ópera nacional” iniciada
em 1852 e a ópera italiana continuou serena em seu longo reinado nos palcos brasileiros.2
...........................................................................
2
Este movimento buscou a autoafirmação nacional através da valorização da língua portuguesa; dos temas históricos
brasileiros para óperas e cantatas, com tendências indianistas e antiescravistas. Esses aspectos não eram, necessariamente, coincidentes entre si. A música, entretanto, continuava sendo grandemente de inspiração europeia (Kiefer,
1977, p. 77-78).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
320
Desta feita, foram as companhias estrangeiras, notadamente as italianas e mais
raramente as francesas e as espanholas, que dominaram a cena operística da Corte e de
outros centros urbanos do país durante o século XIX. Conforme Bruno Kiefer, “a ópera italiana impregnava os ouvidos de todo mundo, mas sobretudo da classe mais abastada que
vivia em função de padrões e da transplantação sumária da cultura europeia” (Kiefer,
1977, p. 82). O bel canto italiano gozava de uma popularidade tão grande no país que
quase fazia parte da estrutura mental do brasileiro. Segundo o registro de peças líricas representadas na Corte elaborado por Ayres de Andrade, observa-se um predomínio quase
que absoluto das óperas italianas A título de exemplo, no ano de 1859, realizou-se um total de 73 espetáculos com 17 óperas, todas italianas e predominando composições de
Donizetti e Verdi. No ano seguinte, foram produzidas somente 31 récitas onde igualmente
estes autores imperaram (Andrade, 1967).
Conforme alguns autores, o movimento em prol da ópera nacional falhou, ou
no mínimo, não alcançou todos os objetivos desejados, importantes foram seus frutos.
Dentre eles Carlos Gomes (1836-1896) tornou-se o mais notável, sendo o primeiro compositor brasileiro cuja obra alcançou verdadeiramente larga repercussão na Europa. Seu
sucesso internacional debutou em 1870 com a estréia no Teatro Alla Scala, de Milão de
sua terceira peça lírica, uma ópera-baile em 4 atos intitulada Il Guarany baseada no romance homônimo de José de Alencar, de 1857, obra-prima do romantismo indianista que
busca as origens da nacionalidade brasileira. Escrita em italiano ela possui libreto de Antonio Scalvini concluído por Carlo D’Ormeville. Sucesso junto ao público milanês, ela foi
encenada 12 vezes no ano de sua estreia sendo no ano seguinte incluída no repertório do
Scala. Foi igualmente encenada em vários teatros da península e em outros países da Europa. Assim, o reconhecimento internacional da música brasileira nasceu por intermédio
da ópera. O compositor tinha como principais modelos Bellini, Donizetti e, sobretudo,
Verdi.
Il Guarany narra a história de amor entre dois jovens: o índio Peri e a jovem
branca Cecília. Ela se desenrola no litoral do Rio de Janeiro, por volta de 1560, na época
da colonização. Em sua urdidura, Cecília, filha do fidalgo português D. Antônio de Mariz,
desperta a paixão em quatro homens: no espanhol Gonzales, no português D. Álvaro, no
Cacique Aimoré e no jovem guarani Peri. Após várias aventuras, lutas entre caçadores de
índios e tribos de nativos, intrigas, tentativas de rapto, aprisionamentos, e outros qüiprocós
que bem caracterizam o melodrama romântico, os jovens amantes encontram-se e selam
a nova união. No final da peça somente Peri e Cecília sobrevivem aos morticínios.
O personagem Peri, é o índio idealizado (nobre, fiel, bravo e cortês), a representação do brasileiro original; Cecília veicula a imagem feminina ideal (bela, meiga e
delicada); Gonzales é o inimigo, o espanhol ávido de ganho; D. Mariz é o fidalgo de moral
imaculada preocupado com o bom casamento de sua filha; D. Álvaro personifica o cavalheiro irrepreensível. O amor puro surgido de um encontro casual, a amizade transformada
em paixão que transpõe as barreiras étnicas e culturais existentes entre os amantes marca
o enredo da ópera. Valendo-se do romanesco, ela pode ser vista também como uma
narrativa da dizimação indígena que marcou o processo de colonização portuguesa da
América. Ela igualmente deixa ver as disputas territoriais e econômicas entre os reinos
ibéricos pelas novas terras descobertas; revela a dureza dos princípios da colonização.
Temas envolvidos diretamente com a formação do país e que fazem desta obra um marco
na fundação da nacionalidade brasileira. Daí, um dos motivos de seu imenso sucesso no
Brasil, tanto sob a forma literária original de Alencar, quanto na adaptação lírica de Gomes.
Assim, é correto afirmar que Il Guarany é a ópera nacional dos brasileiros. Ela exerce uma
função comparável àquela das óperas de Glinka para os russos, das de Smetana para os
tchecos, ou da Freischütz, de Weber, para os alemães, por exemplo.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
321
Todavia, musicalmente, Il Guarany é uma ópera grandemente filiada à tradição
italiana que dominava o gênero nesta época. Conforme o musicólogo Franco Abbiati, ela
é um “melodrama romântico admirável e sólido […], uma obra sincera e cordial,
italianíssima, ou melhor, verdíssima em tudo: libreto e música, drama e canto, corte cênico
e tradicionalismo formal” (Abbiati, 1960, p. 237). A personalidade do autor revela-se,
todavia, em numerosos trechos, manifestando-se mais visivelmente em sua célebre
Sinfonia. Esta criação é sem dúvidas, a mais célebre ópera de Gomes e do repertório
nacional de todos os tempos. Foi graças ao libreto em italiano e a composição melódica
consonante aos ditames da Península Itálica, que o músico brasileiro pode penetrar no
concorrido e seleto templo maior da ópera e, destarte, receber o reconhecimento mundial
de sua obra.
Se a carreira brasileira de Gomes é marcada por várias modinhas, valsas,
mazurcas, transcrições de temas folclóricos negros (notadamente de lundus) e óperas em
português, seu aperfeiçoamento na Itália – espécie de Meca operística dos países latinos
– acentuou sobremaneira o modelo italiano em sua produção lírica.3 Ao Il Guarany,
seguiram outras óperas onde a filiação ao melodismo italiano é notória, Salvador Rosa
(1874), Maria Tudor (1879), Lo Schiavo (1889), Condor (1891). Uma exceção à regra foi
sua quarta ópera, Fosca (1873), em que o autor introduziu alguns leitmotivs, à maneira
wagneriana o que provocou o protesto dos partidários da corrente italiana que batiam-se
contra as influências germânicas no gênero lírico. Assim, se após 1870 Gomes dedicou-se
ao melodrama italiano, sua obra não deixou de transparecer certos traços brasileiros que
caracterizaram sua formação anterior.
Todavia, deve-se admitir que na produção lírica de Carlos Gomes, assim como
de outros músicos eruditos e operístas nacionais do período, observa-se uma arte
majoritariamente europeia, mesmo que os nacionalistas se interessassem pelas coisas
do Brasil. Se musicalmente o compositor não renovou a tradição europeia, o fato de cantar
o índio brasileiro, mesmo que em italiano, e revelar a exuberância da natureza tropical do
país em grandiosos cenários, forneceu uma projeção internacional à jovem nação que
construía sua identidade. E aqui cabe lembrar que o nacionalismo do século XIX
diferenciava-se do nacionalismo andradino do século XX. Sobre seu caráter oitocentista,
esclarece Alberto Pacheco e Adriana Kayama:
Os nativistas do século XIX não pretendiam uma ruptura estética com os moldes
musicais europeus. Resumidamente, podemos dizer que, neste século,
consideravam como nacionalista a música composta com texto em português.
Também era tida como nacional a música em língua estrangeira, mas com libreto
cujo tema fosse nativista; ou mesmo qualquer produção musical que
impressionasse a Europa e afirmasse a grandeza do Brasil, mostrando que os
músicos brasileiros de então eram capazes de produzir música de grande
qualidade. (Pacheco, 2007, p. 28)
No século XIX podem-se definir três grandes escolas operísticas, ou seja, a original
italiana, a alemã que se opunha à fundadora, e a francesa que buscava fugir das influências
das duas precedentes. Na vertente italiana Gioacchino Rossini (1792-1868), na primeira
metade do século, e Giuseppe Verdi (1813-1901), na segunda, eram os principais
compositores. Na escola alemã fundada por Wolfgang Mozart (1756-1791) e mais tarde
Karl Maria Von Weber (1786-1826), Richard Wagner (1813-1883) era o expoente maior
deste século. Já o modelo francês de ópera foi construído por Hector Berlioz (1803-1869),
...........................................................................
3
O aperfeiçoamento de Gomes na Itália deu-se a partir de 1864, sob o patrocínio do Imperador D. Pedro II.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
322
Charles Gounod (1818-1893), Jacques Offenbach (1819-1880) e Georges Bizet (1838-1875).
Se tradicionalmente as óperas eram escritas na língua italiana, as escolas alemã e francesa
impuseram-na os idiomas de seus países. Igualmente as melodias italianas foram abandonadas em proveito de uma musicalidade representativa desses países. No gosto brasileiro
predominou, todavia, as composições italianas de grande invenção melódica e destaque
para o canto. Conforme Fernando de Azevedo:
Entre as duas principais orientações na composição de óperas dessa época – a
que nos vinha da Itália, como herança de Verdi e outros compositores da península, representada por Mascagni, Leoncavallo, Puccini, e a outra que tem sua
origem em Wagner e Strauss, e na qual prevalece a música de programa em que
a orquestra tem o papel primordial, – foi aquela, a orientação italiana, que exerceu
maior influência nos compositores de óperas nacionais. (Azevedo, 1940, p. 474)
Cabe destacar que a produção operística de Richard Wagner foi introduzida no
país em 1883, quando foi encenada pela primeira vez a ópera Tannhäuser, uma das mais
célebres e exemplo do nacionalismo romântico alemão. Se Weber organizou a ópera alemã
oitocentista inspirando-se no medievo e na mitologia germânica, Wagner foi seu legítimo
herdeiro, marcando com sua “arte integral” a música deste século XIX.
Contrapondo-se ao apreço generalizado pela ópera, as plateias nacionais, praticamente, ignoravam os grandes compositores de música erudita. Todavia, a partir da segunda metade do século XIX assistiu-se uma lenta, mas progressiva, diversificação do repertório importado, devido a ação das sociedades musicais que se faziam fundar não somente na Corte mas em várias cidades do país estimulando a arte musical e alargando o
repertório habitualmente conhecido. Começaram então a se desenvolver concertos musicais com repertório mais erudito e que fugia do melodismo das óperas italianas. A música
culta alemã principiou a ser introduzida e, gradativamente, ganhou espaço na cena
brasileira. 4
No século XIX muitos conjuntos profissionais de ópera se apresentaram no Rio
Grande do Sul. Mais do que em qualquer outra forma teatral, foi neste gênero que a presença fundadora italiana se fez mais fortemente marcante. Italianos formavam a maior
parte das companhias, dos diretores artísticos, dos cantores, e quase todo o repertório
executado. A primeira companhia que tenho notícia a apresentar ao público sulino peças
operísticas em sua integralidade foi a Lírica Italiana, dirigida por Domingos Calcagno, que
ocupou o Teatro Sete de Setembro, da cidade de Rio Grande, em março e em novembro
de 1854, levando a cena, entre outras, Norma, de Bellini e Ernani, de Verdi.5 Foi, entretanto,
a partir da década de 1860 que a Província mais meridional do Império do Brasil passou a
receber mais sistematicamente estes conjuntos e a beneficiar da encenação de óperas
completas.6 Se vários foram os conjuntos operísticos que realizaram espetáculo nos teatros
do Sul, somente um conjunto francês quebrou o monopólio italiano neste século: a Companhia Lírica Francesa Verneuil, mas cujo repertório, apesar de algumas óperas, centrava-se
no gênero opereta.
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4
Em finais do século XIX autores como Schubert, Mendelssohn e Schumann, entre outros começaram a ser
divulgados no país.
5
Bittencourt, 1998, p. 13, 15. M. P. F. J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 25-mar., 1942;
17-nov., 1944.
6
Dentre eles cito a Companhia Lírica Italiana; Companhia Lírica Italiana Cavedagni; Companhia Lírica Italiana
Narizano; Companhia Lírica Italiana Lambiase; Companhia Lírica Italiana Tartini; Companhia Lírica Italiana MattiaPezzoni; Grande Companhia Lírica Italiana Guelfo Poltromieri; Companhia Lírica Italiana De Mattia; Companhia
Lírica Italiana Sanzone; Companhia Lírica Italiana Cartocci & Cia.
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323
Das peças líricas mais representadas na segunda metade do Oitocentos nos teatros sulinos destacaram-se Ernani (1844) e Trovador (1853), ambas de Giuseppe Verdi,
mas também Norma (1831), de Vincenzo Bellini e Lucia de Lammermoor (1835), de Gaetano Donizetti.
Se, como já foi dito, a primeira metade do século XIX pertenceu, musicalmente,
a Gioachino Rossini, a segunda correspondeu a Giuseppe Verdi. A música rossiniana é repleta de melodias brilhantes e aparentemente fáceis, adaptadas à sociedade da época da
Restauração. Vincenzo Bellini é, classificado por alguns como um sub-Rossini da sociedade
parisiense, de forte invenção melódica, mas de pouca harmonia. Verdi, um dos mais populares operístas da história da música, fixou para seus contemporâneos e para a posteridade a imagem de uma riqueza inesgotável de melodias dramáticas, tipicamente italianas.
Assim, não poderia ser outro o compositor, a não ser Verdi, o mais encenado
nesta segunda metade do século XIX no Rio Grande do Sul. Sua vastíssima produção de
grande dramaticidade coloca em evidência sua predileção por temas históricos e literários.
Igualmentre importante, a produção de Donizetti, Bellini e Rossini, autores também marcados pela literatura e pela história.7 Além dos supracitados, outros compositores italianos
foram percebidos: Puccini, Boito, Giordano, Petrella, Ponchielli, Paganini, Mascagni, Leoncavallo, sobretudo, que imprimiram no gosto operístico do público sulino a marca das
melodias italianas.
Segundando, a grande distância, os compositores italianos observo certos autores
franceses como Charles Gounod; Daniel Auber e Georges Bizet; além de Jacques Offenbach;
Giacomo Meyerbeer e Franz Von Suppé.8
Dos compositores brasileiros marcaram presença Carlos Gomes com a ópera Il
Guarany (1870) e Delgado de Carvalho com Moema (1894) encenada pela primeira vez
no sul em 1896.9
Um dos primeiros artistas profissionais a se apresentarem nos teatros do Rio
Grande do Sul com um repertório operístico foi o casal de italianos Tereza Questa e Paulo
Rondelli que realizaram vários espetáculos no Teatro Pedro II, de Porto Alegre, em 1850,
executando trechos seletos de Verdi e Donizetti: os dois compositores mais populares da
época. Em 1855 estes mesmos artistas, auxiliados pelo cantor Leguori, realizaram outras
récitas no pequeno teatro executando além dos autores supracitados, árias de óperas de
Bellini.
A Grande Lírica Italiana, que já havia conquistado as plateias de Buenos Aires e
de Montevidéu, estreou no dia 26 de setembro de 1877 no Teatro São Pedro, da capital da
Província, executando Macbeth, Il Trovatore, Ballo in Maschera, Ernani, Aída, de Verdi,
Ruy Blas, de Filipo Marchetti, La Favorita, de Donizetti, Fausto, de Gounod e Il Guarany,
de Carlos Gomes, apontado pela crítica como “o grande brasileiro vitoriado nos centros
mais cultos do mundo civilizado!”. Esta é a primeira ocorrência que possuo do Il Guarany,
nos palcos do Rio Grande do Sul.10 Devido a desentendimentos entre seus componentes o
conjunto se desfez. Em 19 de outubro estreou no Sete de Abril, de Pelotas a Companhia
...........................................................................
7
De Verdi figuraram nos palcos sulinos numerosas criações: Ernani, Trovador, Belisario, Os lombardos, I due
foscari, Atila, Traviata, Nabucodonossor, Luisa Miller, Macbeth, Rigoletto, Ballo in maschera, Aida, Força do
destino. Também de relevância a produção de Donizetti (Linda di Chamounix, Lucia di Lammemoor, Don Pasquale,
Norma, Elisir d’amore, Lucrezia Borgia, Favorita, Maria de Rohan); de Rossini (Guilherme Tell, O barbeiro de
Sevilha, Semiramides) e de Bellini (Sonambula, Norma, Os puritanos).
8
Charles Gounod (Faust); Daniel Auber (Fra Diavolo) e Georges Bizet (Carmen); além de Jacques Offenbach (Os
contos de Hoffman, uma ópera fantástica); Giacomo Meyerbeer (L’africaine, Os huguenotes); Franz Von Suppé
(Boccacio).
9
Não confundir com a ópera Moema (1889), de Assis Pacheco.
10
Mesmo se o levantamento da programação dos teatros sulinos não está completo, apresentando inclusive
muitas lacunas, posso afirmar que a ópera Il Guarany foi encenada no RS, no mínimo, nos anos de 1877, 1881,
1894, 1896, 1904, 1905, 1907, 1908, 1910, 1913, 1920, 1921, 1926, 1928, 1929, 1931 e 1939.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
324
Lírica Italiana, da empresa Narizano que acredito ter sido organizada com elementos oriundos da antiga formação. Executando o mesmo repertório, a Narizano deu seis récitas
nesta cidade. Dirigindo-se à cidade de Rio Grande, apresentou-se no popular Anfiteatro
Abano Pereira em 30 de outubro com a ópera Fausto, do francês Charles Gounod. Por
não ter hasteado a bandeira nacional, logo ao subir o pano de boca, a companhia estrangeira sofreu uma vigorosa pateada11 provinda do público das bancadas indignado com o
descaso à nação brasileira. O protesto foi acompanhado do exterior do edifício por pedradas
e pauladas no tabuado e no telhado de zinco, desferidas por cerca de mais de trezentas
pessoas que rodeavam a construção. “Era um barulho infernal”, pronunciava o Diário do
Rio Grande, de 1º de novembro deste ano. O subdelegado teve que intervir ordenando a
suspensão do espetáculo. No dia seguinte a companhia embarcou no vapor Cervantes
deixando a cidade.12
Tal como essa companhia, muitas outras que excursionaram pelo Rio Grande do
Sul eram provenientes dos teatros platinos ou direcionavam-se a estas casas de espetáculos
após suas temporadas na Corte e em outras grandes cidades do Império do Brasil. Buenos
Aires era a capital latino-americana da ópera e foi nesta cidade onde melhor se desenvolveu
o teatro lírico com a formação de um público fiel e temporadas operísticas ininterruptas.
Nos seus primeiros anos de funcionamento o portenho Teatro Colón foi uma sucursal do
Teatro Alla Scala, de Milão, o qual ditava o modelo a ser seguido.13 A proximidade do Rio
Grande do Sul daquela capital metropolitana facilitou assim o contato das plateias sulinas
com o universo da ópera. Deve-se ter presente, entretanto, que o público das cidades
gaúchas não possuía a mesma tradição e as exigências do portenho. No Rio Grande do
Sul, as temporadas operísticas nunca apresentaram a mesma continuidade observada na
capital Argentina; muito ao contrário, houve anos em que a ópera esteve completamente
ausente dos palcos regionais. Uma análise comparativa entre a movimentação teatral do
Teatro Colón elaborada por Roberto Caamaño e a percebida nas cenas do Rio Grande do
Sul, revela que o público sul-rio-grandense, mostrou-se bem mais conservador que o
portenho em relação aos programas operísticos, não aceitando com a mesma abertura
de espírito as mudanças do gênero lírico e suas novas correntes. (Caamaño, 1956, p. 87)
Em verdade, as plateias sulinas contentavam-se com os malabarismos vocais dos cantores,
com as exibições de virtuosidade na voz e associavam ópera, essencialmente, com a vertente italiana.
A Companhia Lírica Italiana De Mattia, frequentou o palco do Teatro São Pedro,
de Porto Alegre de 27 de outubro de 1894 a janeiro do próximo ano. Sob a regência do
maestro Provesi, ela executou um repertório operístico conhecido, com peças de Verdi,
Ponchielli, Mascagni, Donizetti, Gounod etc. A novidade coube a Les Huguenots, de Giacomo Meyerbeer, que pode ser considerado o criador da grande ópera francesa, misturando o estilo melódico italiano, a ópera literária francesa e o romantismo alemão, e
cujo objetivo era sempre o forte efeito teatral. Pronunciando-se sobre esta obra, a crítica
local disse que era uma criação de envergadura sendo seu prelúdio “tecido sobre o célebre
Coro Luterano, ainda hoje cantado pelo Protestantismo em seus severos templos, era,
sem dúvida alguma, a mais bela, a mais imponente parte da grande composição musical,
pois ali apareciam extraordinárias revelações do quanto valia o talento da privilegiada
mentalidade alemã” (Damasceno, 1956, p. 277). A ideia da superioridade germânica espe...........................................................................
11
Expressão utilizada na época, que nomeia batida com os pés no chão em sinal de reprovação ou desagrado. É
interessante ressaltar que esta era uma prática muito comum nos teatros, sobretudo do século XIX, inclusive na
Europa. Conforme consta, as óperas Carmem, de Georges Bizet e Maria Tudor, de Carlos Gomes quando estrearam no Scala, de Milão, não agradaram a assistência e foram fragorosamente “pateadas”.
12
Diário do Rio Grande, 30-out., 1877.
13
E aqui deve ser lembrado que Milão era a capital mundial da ópera, com um público sofisticado e importantes
editores de música.
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325
cificamente, e norte-europeia de maneira mais geral, depreendida dessa observação está
completamente de acordo com as correntes de pensamento que na Belle Époque apregoavam a posição de destaque da civilização europeia no mundo. Em Pelotas, a De Mattia
proporcionou 13 récitas à plateia do Sete de Abril e, em Rio Grande atuou em fevereiro
de 1895. No dia 8 promoveu a primeira audição local da ópera La Gioconda, de Ponchielli
que, composta em 1876, ainda não havia sido executada na cidade. 14
Analisando a produção musical, sobretudo a europeia, de 1789 a 1848, o historiador Eric Hobsbawm classifica este período como sendo de um extraordinário florescimento artístico; meio século alicerçado sobretudo no Romantismo e que incluiu na
ópera nomes como Bellini, Donizetti, Verdi, Wagner, e outros jamais superados (Hobsbawm, 1977, p. 298). Se na área musical o repertório já era basicamente internacional, no
período de 1870 a 1914 outras formas de criações artísticas se tornaram mais do que nunca
internacionalizadas. Esse recorte temporal não deve, portanto, ser estudado em termos de
suas realizações. Ele deve ser apreendido não a partir de sua produção, mas do desenvolvimento de seu consumo, que foi notável. Nas palavras do autor, “o nítido aumento do tamanho e da riqueza de uma classe média urbana [mundial] capaz de dar mais atenção à cultura,
bem como a grande extensão da classe média baixa e de setores das classes trabalhadores
instruídos e com sede de cultura, teria sido suficiente para garantir esse desenvolvimento”
(Hobsbawm, 1988, p.310).15 Já Arno Mayer afirma que até 1914, “mesmo a nação mais
industrializada e imperialista da Europa contava com uma cultura oficial [establishment]
singularmente tradicional” uma vez que “as revoluções industriais compactas não conseguiram incitar novas visões, símbolos e cânones” (Mayer, 1990, p. 212-193).
Entre 1875 e 1914 o moderno repertório operístico internacional ainda estava
sendo elaborado e centrava-se em compositores como Puccini, Mascagni, Leoncavallo,
Strauss, Wagner e Janecek. A análise da movimentação teatral no Rio Grande do Sul revela,
então, que os programas executados estavam em sintonia com as tendências percebidas
na Europa concernentes aos compositores italianos, mas completamente em defasagem
às demais correntes. O alemão Wagner, o austríaco Strauss ou o tcheco Janecek estavam
ausentes dos repertórios apresentados ao público sulino. Para compreender esta situação
de bipolaridade, basta lembrar que os conjuntos operísticos estrangeiros que se apresentavam nos teatros do Sul eram quase que absolutamente italianos e, por evidência, divulgavam o repertório da Península. Não possuo nenhum registro de companhias de óperas
alemãs que tivessem se exibido nestes espaços.
A ópera no Rio Grande do Sul em princípios do século XX
(décadas de 1900 e 1910)
Nas duas primeiras décadas do século XX as companhias operísticas oriundas da
Península Itálica tornaram-se absolutas nas cenas do Rio Grande do Sul.16 Observo que
neste período o gosto do público gaúcho recaiu sobre peças do repertório verista tais
como La Bohème e Tosca, de Giacomo Puccini; Cavalaria Rusticana, de Pietro Mascagni e
Palhaços, de Rugiero Leoncavallo que figuram como as óperas mais encenadas. Entretanto
Verdi, com seu imenso repertório e, sobretudo, com Aida, La traviata, Rigoletto e Trovador,
...........................................................................
14
Damasceno, 1956, p. 277. Echenique, 1934, p. 72-73. Diário do Rio Grande, 9-fev., 1895.
Na Alemanha, por exemplo, o número de teatros triplicou entre 1870 e 1896 passando de 200 a 600 casas do
gênero (Hobsbawm, 1988, p. 310).
16
Frequentaram os teatros do Estado neste período os seguintes grupos: Companhia Lírica Italiana Reiter &
Provesi; Companhia Lírica Italiana Roberto Mario; Companhia Lírica Italiana Schiaffino; Companhia Lírica Italiana Bannochi; Companhia Lírica Garbini-Dal Negro; Companhia Lírica Tornesi; Companhia Lírica Italiana MarantiBessona; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Zonzini; Companhia Lírica Italiana Tuffaneli-Schiaffino; Companhia
Lírica Italiana Riva-Morini; Companhia Lírica Italiana Schiavazzi-Selingardi; Companhia Lírica Italiana La Mura;
Companhia Lírica Italiana Galli Curci-Hipolito Lazaro; Companhia Lírica Rottoli-Billoro.
15
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continuou a responder pelo compositor mais executado, sendo seguido por Puccini.
Nestes decênios de 1900 e 1910, compositores como Puccini, Leoncavallo e Mascagni, sem maior expressividade no século anterior, vão ganhar posição de destaque no
universo operístico dos teatros do Rio Grande do Sul.17
Se para a ópera nacional o período não foi favorável – observo somente a encenação da já tradicional Il Guarany e alguns trechos de Lo Schiavo, ambas de Carlos Gomes – o mesmo não pode ser dito para ópera regional. Aliás, este período foi excepcional
em termos de criações de compositores sul-rio-grandenses, a saber: Sandro (1902), de
Murilo Furtado (1873-1958) com libreto em italiano de Arturo Evangelisti e Carmela (1902),
de Araújo Viana (1871-1916) com libreto de Leopoldo Brígido passado para o italiano por
Ettore Malagutti. Sandro é uma violenta história de um crime passional; uma espécie de
continuação da Cavalaria Rusticana, de Mascagni um dos compositores de maior influência
no autor gaúcho. Carmela, por sua vez, possui uma urdidura de amor e morte. Tanto Furtado quanto Viana haviam se aperfeiçoado na Itália e ambas as peças lá decorriam: a primeira na Sicília e a segunda numa aldeia de pescadores em Sorrento. A influência dos cânones italianos é igualmente marcante. No decênio seguinte surgiu O rei Galaor (1913),
do mesmo Araújo Viana com libreto em português de Eugênio de Castro, que alcançou
grande sucesso neste mesmo ano na então capital do país, Rio de Janeiro. Aliás, Araújo
Viana tornou-se um nome de destaque na ópera brasileira graças, sobretudo, a Carmela.18
Athos Damasceno afirma que depois de Il Guarany foi Carmela a ópera nacional mais encenada no país: cinco vezes em Porto Alegre e outras tantas nas cidades de Pelotas, Rio
Grande, e no Rio de Janeiro, totalizando doze representações. Essas óperas escritas no começo do século XX, numa língua estrangeira e sob o influxo musical da Itália, são exemplos
bem representativos da influência hegemônica do modelo operístico italiano nos compositores do gênero do Rio Grande do Sul. Elas revelam um transplante cultural e confirmam o ainda vivo neocolonialismo e a dependência brasileira da Europa e seus padrões
artísticos de expressão neste período histórico de acentuado europeísmo. Esta posição
cultural da Belle Époque brasileira muito contrasta com o nacionalismo musical do século
XIX e sua tentativa da fundação da ópera brasileira, assim como com o posterior nacionalismo modernista andradiano.
Nos palcos do Rio Grande do Sul, após um ano sem temporada lírica na capital
do Estado, a empresa Reiter & Provesi, ocupou o Teatro São Pedro de maio a julho de
1904. Estreou dia 8 com a ópera La Bohème, de Puccini, um autor dotado de lirismo refinado e grande sensibilidade musical, apesar do excessivo sentimentalismo e sensacionalismo que marcam suas obras. Em Pelotas a companhia apresentou como novidade,
I Puritani, conforme observamos no Diário do Rio Grande, de 4 e 6 de setembro de 1904:
“a última ópera de Bellini, representada em Paris às vésperas de seus funerais” e, igualmente marcada pela forte invenção melódica, característica de seu autor. Atuando no
mês de setembro no teatro Sete, de Rio Grande, o conjunto agradou na execução de, entre outras, das já consagradas La Bohème e da monumental Aída, de Verdi.19
Em excursão pelo Estado em 1907, a Companhia Lírica Italiana Tuffanelli-Zonzini,
procedente de Buenos Aires, apresentou-se ao público porto-alegrense de 22 de agosto a
...........................................................................
17
Puccini (Tosca, La bohème, Manon Lescault); Leoncavallo (Os palhaços, Zaza, Zingaros) e Mascagni (Cavalaria
Rusticana, Iris). Outros operistas italianos que passaram igualmente a adquirir uma maior importância foram
Almicare Ponchielli (La Gioconda), Umberto Giordano (Andrea Chernier) e Felipo Marchetti (Ruy Blas). Nas
franjas do repertório italiano, o francês se fez representar através de autores como Auber (Fra Diavolo), Bizet
(Carmen); Gounod (Faust); Meyerbeer (Os huguenotes, Dinorah); Ambroise Thomas (Mignon) e Massenet
(Manon).
18
Damasceno informa que Carmela foi encenada por cinco vezes em 1906, no Teatro São Pedro de Alcântara, no
Rio de Janeiro, sob a direção do famoso maestro e compositor Francisco Braga, numa adaptação em português
do poeta Osório Duque Estrada (Damasceno, 1956, p. 376).
19
Moritz, 1975, p. 164. Echenique, 1934, p. 78. Diário do Rio Grande, 6-set., 1904.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
327
29 de setembro, estreando no Teatro São Pedro com a ópera Tosca, de Puccini. Além das
tradicionais peças italianas e da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, o conjunto montou
Carmela, do músico rio-grandense Araújo Vianna, a pedido de estudantes locais, e assistida
por seu autor, então presente ao espetáculo. Conforme Moritz, “ao terminar o primeiro
ato, os artistas foram ovacionados e receberam uma chuva de confetes e serpentinas”.
Em Rio Grande a companhia realizou sua primeira récita no Teatro Sete de Setembro em
8 de outubro com Lucia di Lammermoor, obra de Gaetano Donizetti, caracterizada por
uma impressionante força dramática.
A Companhia Lírica Italiana Schiafini (ou Schiffino ou Schiaffino) vinda do Teatro
Victoria, de Buenos Aires, ocupou o palco do São Pedro da segunda quinzena de abril a
começos de maio de 1908 trazendo um longo repertório de 22 títulos e realizando 28 récitas. No programa Aida, Otelo, Traviata, Baile de máscaras, Trovador, Rigoletto, Força do
destino, de Verdi; Lucia di Lamemoor, de Donizetti; Barbeiro de Sevilha, de Rossini; Tosca
e Bohème, de Puccini; Gioconda, de Ponchieli; Palhaços, de Leoncavallo; Cavalaria Rusticana, de Mascagni; Mefistófeles, de Ariago Boito; Manon Lecault, de Puccini. Do repertório francês representaram Fausto, de Gounod; Manon, de Massenet e pela primeira
vez Mignon, de Ambroise Thomas. O conjunto encenou também Sandro, de Murilo Furtado; Salvador Rosa e Il Guarany, de Carlos Gomes. Após a temporada na capital do Estado,
a Schiafini apresentou-se no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e no Politeama Rio-Grandense,
de Rio Grande.
Uma das mais célebres companhias líricas a frequentar os teatros do Estado foi
a Galli-Curci e Lazaro. Em excursão pela América do Sul, o conjunto capitaneado pela soprano coloratura Amelita Galli-Curci e pelo tenor Hypólito Lazaro – artistas renomados
internacionalmente20 – após temporada no Teatro Colón, da capital portenha, estreou no
Teatro São Pedro, de Porto Alegre, em 6 de novembro de 1915 com a ópera Il Rigoletto,
de Verdi. Com estrondoso sucesso, levou também à cena várias composições do repertório
italiano tradicional: Bohème, O barbeiro de Sevilha, Traviata, Os puritanos, Cavalaria, Palhaços, Sonambula, Tosca, Lucia. Somente Dinorah, de Meyerbeer distanciava-se da escola
italiana. Do teatro da Praça da Matriz realizou três récitas populares no Cine-Teatro Apolo,
seguindo após para Pelotas onde, no Sete de Abril, deu seis espetáculos. Em Rio Grande,
a companhia exibiu-se nos dias 29 e 30 de novembro no Politeama Rio-Grandense encenando La Traviata e Il Rigoletto, respectivamente. Deixando a cidade, dirigiu-se a Bagé,
e após para Montevideo e Livramento.21
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20
A italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963) era natural de Milão onde iniciou seus estudos. Soprano ágil, com timbre
puro e cristalino impressionava também por sua segurança vocal, musicalidade e estilo impecáveis. Descoberta por
Pietro Mascagni, estreou no papel de Gilda na ópera Il Rigoletto, em 1906 sem qualquer formação profissional. Após
tornar-se nome conhecido na cena lírica europeia, excursionou pela América do Sul em 1915. A partir de 1916 passou
a integrar a Chigago Opera Company. Em 1920 estreou no Metropolitan Opera House, de New York. Foi uma das
primeiras cantoras líricas a atingir fama internacional, graças às suas gravações. Hypólito Lázaro era espanhol, natural
de Barcelona. Tendo iniciado sua carreira na opereta em 1909, transferiu-se para Milão onde aperfeiçoou sua arte.
Após exibir-se em teatros italianos e no Cairo, triunfou em 1912 no Covent Garden, de Londres e em Gênova. Em 1913
consagrou-se no Scala, de Milão como grande intérprete mascagniano. Seu repertório, todavia, abrangia vários estilos. Para o próprio compositor Pietro Mascagni, Lázaro era “superior ao imortal Gayarre e bem melhor que Caruso”.
Considerado um dos cantores prediletos de Giacomo Puccini, foi apontado pelo grande maestro Arturo Toscanini (lêse New York Philharmonic) como “o rei dos tenores” (Ópera Collection, 1996; Moritz, 1975, p. 187; Andreotti, 2001, p.
124-125 ).
21
Comentando os dotes vocais de Galli-Curci, o cronista do jornal O Tempo revela que foi “uma delícia acompanharlhe os vôos canoros, fluentes e doces por vezes, caprichosos de outras, borboleteando numa tessitura quase intérmina,
tal a facilidade com que ela ascendia às mais altas notas”. No papel de Violeta, da Traviata, conquistou o público. Ao
término da cavatina do primeiro ato, “o auditório não mais reprimiu os aplausos, que vinha sopitando e irrompeu uma
salva de palmas calorosa e prolongada, justa homenagem à artista que tão finamente detalhava filigranas vocais. E
repetiu-se, avolumou-se essa homenagem no correr da ópera, até ser uma ovação brilhante ao terminar a partitura”.
Lázaro, “mercê de sua voz insinuante, que agradou pelo timbre e pela finura com que foi manejada” igualmente
motivou aclamações (Moritz, 1975, p. 187-190. Echenique, 1934, p. 83-84. Rio Grande. Rio Grande, 1º-nov., 1915. O
Tempo. Rio Grande, 29 e 30-nov. e 1º-dez., 1915).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
328
Em menos de um ano da apresentação de Galli-Curci-Lazaro, o RS receberia a visita de outra cantora mundialmente aclamada: Adelina Agostinelli.22 A soprano italiana
exibiu-se no Politeama Rio-Grandense em 1916 integrando o quadro de cantores da Companhia Lírica Italiana Rottoli & Billoro. Vinda igualmente de Buenos Aires, a troupe desembarcou no porto da cidade de Rio Grande em 29 de agosto. Composto por 85 elementos
e orquestra própria este conjunto artístico contava com a regência do conhecido maestro
De Angelis, do Alla Scala. Dia 1º de setembro deu-se sua estréia com a ópera Fedora, de
Giordano, peça na qual Agostinelli havia debutado na cena lírica. Seguiram-se La bohème,
de Puccini (3-set.) e Manon, de Massenet (5-set.). Da cidade marítima, Agostinelli seguiu
para Pelotas apresentando-se no Teatro Sete de Abril e depois para Porto Alegre atuando
nos teatros São Pedro e Apollo. Além das óperas supracitadas, encenou também Il
Trovatore, de Verdi, obtendo grande sucesso junto ao público sulino.
A ópera no Rio Grande do Sul durante o entre-guerras (décadas de 1920 e 1930)
No período do entre-guerras, além das já habituais companhias italianas que
dominavam a vida operística no sul do país, observo um conjunto nacional: a Companhia
Lírica do Teatro Municipal de São Paulo (1929) e outro conjunto formado por artistas italianos e brasileiros: a Companhia Lírica Ítalo-Brasileira (1928). Na década de 1930 foi organizado um grupo regional denominado de Orfeão Rio-Grandense que realizou vários
espetáculos no Teatro São Pedro com um repertório de óperas italianas tradicionais. Além
destes, também ocuparam os teatros gaúchos várias companhias estrangeiras, majoritariamente, provenientes da Itália.23
Observo nestas décadas de 1920 e 1930 uma continuidade do repertório registrado desde a segunda metade do século XIX, centrado em autores italianos, a saber:
Verdi, Puccini, Mascagni, Leoncavallo, Bellini, Boito, Ponchielli, Donizetti, Giordano, Rossini;
seguido de Bizet, Gounod, Massenet e Meyerbeer. Todavia, algumas peças até então pouco
representadas ou completamente inéditas às plateias sulinas ganharam espaço. Foi o caso
de Otelo, uma das últimas óperas de Verdi; Mme. Butterfly e Il Fabaro de Puccini; Loreley,
de Alfredo Catalani, mas também de obras de outros compositores não italianos como
Pescadores de pérolas, de Bizet e Lohengrin, de Richard Wagner.
Conforme Hobsbawm, de 1914 até 1945, o repertório operístico internacional
continuaria essencialmente o mesmo remarcado desde 1875, ou seja, centrado em Puccini,
Leoncavallo, Richard Strauss, Mascagni, etc., que seriam o que havia de mais vanguardista
no gênero (Hobsbawm, 1995, p. 181).
A ópera brasileira continuava a ocupar uma posição extremamente limitada nos
teatros estudados.24 De Antônio Carlos Gomes, foram encenadas Il Guarany, Lo Schiavo, e
...........................................................................
22
Adelina Agostinelli (1882-1954) era Natural de Bergamo e principiou sua carreira em teatros da Itália tendo
cantado por repetidas vezes no teatro Alla Scala de Milão. Nesta casa contracenou com os mais notáveis tenores de sua época, dentre eles, Enrico Caruso e Titto Ruffo. Atuou igualmente em vários países da Europa, nos
Estados Unidos e na América Latina. Fixou residência em Buenos Aires onde, a partir de 1929, dedicou-se ao
ensino, formando gerações de cantores (Ópera Collection, 1996; Andreotti, 2001, p. 125-126).
23
Companhia Lírica Italiana Marranti; Companhia Lírica Italiana Billoro-Cavallaro; Companhia Lírica Italiana Dora
Solima; Companhia Lírica Italiana Garofalo-Garavaglia; Companhia Lírica de Jorge Alberto, Riva & Cia.; Companhia Lírica de Segreto, Bonacchi e Piergilli; e algumas outras mais, chamadas de simplesmente “Companhia
Lírica Italiana”.
24
Se raras eram as peças operísticas brasileiras observadas nos teatros do Rio Grande do Sul desde o século XIX
até o ano de 1940, várias eram as composições nacionais. A título de informação e consulta segue uma lista
parcial dessas criações. Ano/Local/Compositor/Ópera. 1860/R. J./Elias Alvares Lôbo/A noite de São João. 1861/
R. J./A.Carlos Gomes/A noite do castelo. 1862/R. J./Domingos José Ferreira/A corte de Mônaco. 1863/R. J./A.
Carlos Gomes/Joana de Flandres. 1863/R. J./Henrique Alves de Mesquita/O vagabundo. 1870/Milão/A. Carlos
Gomes/Il Guarany. 1873/Milão/A. Carlos Gomes/Fosca. 1874/Gênova/A. C. Gomes/SalvadorRosa. 1879/Milão/
A. Carlos Gomes/Maria Tudor. 1881/Belém/Henrique Eulálio Gurjão/Idália. 1888/Milão/João Gomes de Araújo/Carmosina. 1889/R. J. /A. Carlos Gomes/Lo schiavo. 1889/S. P./Assis Pacheco/Moema. 1890/Belém/João Cândido
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
329
Fosca, todas peças já conhecidas. Outra ópera nacional levada a feito, esta então inédita
às plateias sulinas, foi Maria Petrowna (1929), de João Gomes de Araújo com libreto em
italiano de Ferdinando Fontana, compositor que estudou também na Itália. A ação se
passa em Nápoles e na Rússia Setecentista. Roberto Eggers, por sua vez, respondeu pelos
autores regionais com a ópera Farrapos (1936) com libreto de Faria Correa, baseada na
história do Rio Grande do Sul. Obra escrita em português, de temática regionalista e musicalidade que busca inspiração no folclore sulino. A ação se desenrola no ano de 1835 e
visava consagrar os heróis civis e militares da epopeia gaúcha. Destarte, o bairrismo –
uma faceta do ufanismo patriótico que caracteriza este período histórico – marca presença
na ópera regional.25
Em 1921, a Companhia Lírica Italiana Marranti realizou temporada nos palcos
do RS. Com um elenco composto por 18 cantores, orquestra com 25 músicos, corpo de
baile com 8 dançarinos e 25 coristas, diretor, ensaiador, coreógrafo, maquinistas etc., a
companhia estreou em 30 de abril, em Pelotas, inaugurando o amplo e luxuoso Teatro
Guarani. Como não poderia deixar de ser, foi escolhida para a ocasião a obra mais famosa
do compositor Carlos Gomes. Ao Il Guarany, seguiram-se peças de Verdi, Ponchielli, Leoncavallo, Puccini, Mascagni, Boito, Bizet, Gounod e dos autores do Bel Canto: Bellini, Rossini
e Donizetti. De 20 de maio a 1º de junho a Marranti ocupou o velho casarão da Praça da
Matriz em Porto Alegre, dirigindo-se após a Rio Grande. No Politeama Rio-Grandense,
abriu sua temporada em 3 de junho com La Gioconda, de Ponchielli e, nas noites seguintes:
Lucia di Lammermoor, de Donizetti; Il Rigoletto, de Verdi; e Tosca, de Puccini. Bagé também
foi incluso nesta excursão.26
Procedente do Teatro Urquiza, de Montevidéu e antes deste, do Politeama de
Buenos Aires, a Companhia Lírica Billoro-Cavallaro exibiu-se às plateias porto-alegrenses
em junho e julho de 1928, executando um repertório, preponderantemente italiano. Com
a sensual Carmem, a mais famosa obra do compositor francês Georges Bizet, o conjunto
estreou no amplo Politeama, de Rio Grande em 4 de agosto. No dia seguinte foi a vez de
Il Rigoletto, que encerrou a curtíssima temporada na cidade. Ao lado de seu estilo romântico, Giuseppe Verdi colocou nesta criação de 1851, fortes elementos realistas que chocaram a sociedade de então e inovaram a ópera. Pela primeira vez, um corcunda assumia o
personagem principal de uma peça lírica. 27
da Gama Malcher/Bug-jargal. 1891/Milão/A. Carlos Gomes/Condor ou Odaléia. 1892/R. J./A. Carlos Gomes/
Colombo. 1894/R. J. /Delgado de Carvalho/Moema;. 1895/Belém/João Cândido da Gama Malcher/Iara. 1896/R.
J./Leopoldo Miguez/Os saldunes. 1897/R. J./Leopoldo Miguez/Pelo amor!. 1897/R. J./Assis Pacheco/Flora. 1898/
R. J./Alberto Nepomuceno/Ártemis. 1898/R. J./Delgado de Carvalho/Hóstia. 1900/R. J./ Assis Pacheco/ Estela
ou dor!. 1900/R. J./Francisco Braga/Jupira; 1902/P. Alegre/Araújo Viana/Carmela. 1902/P. Alegre/Murilo Furtado/Sandro; 1903/Campinas/(4 compositores, não nominados)/Pastoral. 1904/R. J./Abdon Milanes/Primízie; 1906/
S. P./João Gomes Jr./Foscarina; 1908/S. P./João Gomes de Araújo/Helena; 1911/S. P./João G. Jr/La Boscaiola;
1912/Curitiba/Augusto Stresser/Sideria; 1913/Buenos Aires/Alberto Nepomuceno/Abdul; 1913/R. J./Araújo
Viana/Rei Galaor; 1917/R. J./H. Villa-Lôbos/Izath; 1917/Belém/Alípio César Pinto da Silva/Notte bizzarra. 1922/
R. J./João Otavino Gonçales/Poema da vida; 1922/R. J./João G. Jr./Dom Casmurro. 1923/R. J./Júlio Reis/Heliofar.
1924/S. P./Carlos de Campos/A bela adormecida. 1924/R. J./Francisco Mignone/O contratador de diamantes.
1925/R. J./Assis Republicano/O bandeirante. 1926/S. P./Carlos de Campos/Um caso singular. 1926/R. J./Alberto
Costa/Sóror Madalena. 1928/R. J./Francisco Mignone/L‘Innocente. 1929/S. P./João G. de Araújo/Maria Petrovna;
1935/P. Alegre/Vitor Ribeiro Neves/Ponaim; 1936/P. Alegre/Roberto Eggers/Farrapos; 1937/R. J./João Otavino
Gonçales/Iracema; 1939/R. J./ Eleazar de Carvalho/A descoberta do Brasil. Fora do recorte temporal desta tese,
destaco as seguintes óperas: 1941/R. J./Eleazar de Carvalho/Tiradentes. 1941/R. J./Oscar Lorenzo Fernandez/
Malazarte; 1950/R. J./Henrique Oswald/Il Neo. 1950/R. J./Iberê Lemos/A ceia dos cardeais. 1950/Blumenau/
Heinz Geyer/Anita Garibaldi. 1952/R. J./Camargo Guarnieri/Pedro Malazarte.
25
Neste trabalho não me proponho a apontar os autores e as peças que não foram encenados no Rio Grande do
Sul, mas somente aqueles que marcaram presença nos teatros sul-rio-grandenses. Entretanto, excepcionalmente, gostaria de mencionar a obra operística de Heitor Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros modernos. Cabe a observação de que suas óperas compostas antes de 1940, ou seja, Izaht (1918); Zoé
(1919); Jesus (1919) e Malazarte (1921) não foram encenadas nos teatros pesquisados.
26
Duval, 1945, p. 59; Moritz, 1975, p. 195-197; Rio Grande. Rio Grande, 11-mai., 1921. Eco do Sul. Rio Grande, 3
e 4-jun., 1921. Coleção de Prospectos, pasta 8, 6-jun., 1921.
27
Moritz, 1975, p. 203. Rio Grande, 4 e 7-ago., 1928. Coleção de Prospectos, pasta 9, 4-ago., 1928.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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A Companhia Lírica Popolare Italiana Garofalo-Garavaglia realizou temporada
de 9 récitas no então já centenário Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em agosto de
1935. Com espetáculos diários, chegou a oferecer nos dias 10 e 11 duas sessões. Na bagagem a companhia trazia, exclusivamente, óperas italianas: de Verdi (La Traviata, Il Rigoletto,
Il Trovatore), Puccini (Tosca, Mme. Butterfly, La Bohème), Leoncavallo (I Pagliacci) e Mascagni (Cavaleria Rusticana). A estreia foi dia 6 com La Traviata, outra importante ópera
verista criada por Verdi e onde uma meretriz centra as atenções.28
O Teatro Sete de Setembro albergou igualmente a companhia da soprano lírica
italiana Dora Solima, que fez seu début em 30 de agosto de 1936 com La Traviata. Solima
no papel da rameira, “revelou-se uma grande artista, dona de uma voz admirável, e cantou
com sentimento dando vida extraordinária, como convinha à personagem de Violeta Valery. Soube tirar partido dos seus recursos vocais. Isso, aliás, valendo-lhe o prestígio que
logo firmou entre a plateia”. Elogios também foram pronunciados ao tenor Abelle de Angeli, ao barítono José Callini, à cenografia, ao guarda-roupa e a orquestra de cerca de 20
músicos regida pelo maestro Ferdinando Allita. Também compunham esta tournée as
óperas Lucia di Lammermoor, Il Barbiere di Siviglia, I Pagliacci e La Bohème.29
Em 1930 fundou-se na cidade de Porto Alegre, o Orfeão Rio-Grandense, instituição destinada, inicialmente, ao canto coral e que em poucos anos já se apresentava
no palco do Teatro São Pedro, encenando óperas completas. Ele realizou espetáculos nos
anos de 1934, 1935 e 1936 alcançando grande popularidade junto ao público citadino.
Seu repertório compunha-se de óperas consagradas e pertencentes ao universo italiano.
Além de Verdi e Donizetti, incluíam autores veristas: Puccini e Mascagni. Na temporada
de 1935 o Orfeão representou Mme. Butterfly, La bohème, Tosca, de Puccini e La traviata,
Trovador, Rigoletto, de Verdi.
A ópera em recitais de canto
Se as companhias profissionais italianas que se apresentavam no Rio Grande do
Sul com certa constância, e permaneciam em temporadas de às vezes semanas ou mesmo
meses, privilegiavam o repertório italiano tradicional que sempre lhes garantiu rendosas
bilheterias, os pequenos recitais de canto ofereciam espaço às novas tendências que floresceram ou que estavam despontando em outros países da Europa. Esses encontros não
desprezavam, entretanto, as consagradas árias italianas. Nestes espetáculos, que marcaram
igualmente a história da música no extremo sul do Brasil, desenvolveu-se uma cultura
operística “alternativa” a ordem estabelecida e que se contrapunha às peças já clássicas e
inúmeras vezes reprisadas nos grandes teatros regionais.30
Todavia, deve-se ter presente que os recitais de canto, embora fossem observados
de forma espaçada desde a segunda metade do Oitocentos nos teatros do RS, eles só adquiriram importância e maior freqüência a partir da década de 1910 e, sobretudo, na década de 1920 devido, em parte, ao surgimento de uma série de Conservatórios de Música
na região que estimulou o gosto pelo canto. E que, na maior parte dos casos, os recitais
de canto não estavam centrados em repertórios operísticos e nem tampouco apresentavam peças líricas em sua integralidade. Esses encontros englobavam árias de óperas,
...........................................................................
28
Rio Grande, 6 e 7-ago., 1935. Coleção de Prospectos, pasta 1, 9-ago., 1935. Bittencourt, 1998.
Rio Grande, 29 e 31-ago., 1936. Coleção de Prospectos, pasta 2, 29 e 30-ago., 1936.
Dentre os compositores e trechos de óperas executados nestes espetáculos e que não encontravam espaço
nos programas das grandes companhias faço registro de Wagner (Tannhäuser, Tristão e Isolda, Rienzi, Navio
fantasma, O crepúsculo dos Deuses e Os mestres cantores de Nürenberg); Mozart (A flauta mágica, As bodas de
Figaro, Rapto do serralho, Idomeneo e a pequena ópera-bufa Bastien et Bastienne); Flotow (Martha); Humperdink
(com a feerie Haensel und Gretel); Gluck (Orfeu e Eurídice, Alceste); Beethoven (Fidelio) e Strauss, dentro do
universo germânico. Massenet (Thaïs), Délibes (Lakmé) e Saint-Saëns respondem pelos autores franceses e
Tchaikowisky (A dama de espadas) pela moderna ópera russa. Registro igualmente a ópera Simon Boccanegra,
que embora pertença a Verdi, nunca foi encenada pelos elencos profissionais.
29
30
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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lieder, volkslieder, cantatas, poemas sinfônicos, poesias musicais... e mesmo cantos populares e folclóricos.
Isso posto, acerca desses recitais ecléticos de canto tecerei breves parágrafos
debruçando-me somente nos registros do século XX.
Nas primeiras décadas do século passado, os recitais de canto já tinham adquirido
prestígio junto ao público sulino. Nesse período, merece destaque as várias audições das
cantoras Olyntha Braga e Izabel de Verney Campello, ambas gaúchas, assim como as
apresentações da soprano brasileira Hedy Iracema que já havia atuado como prima-dona
da Ópera de Stuttgart. Outro artista de relevância no canto neste período foi o baixo
alemão Hans Edgar Obersteller que se exibiu no Teatro São Pedro, da capital em 1915. O
famoso cantor que em sua carreira internacional contava com apresentações no Covent
Garden, na Ópera de Munique, no Colón e, sobretudo, nos festivais de Bayreuth, realizou
em Porto Alegre cinco recitais executando um longo programa centrado em compositores
germânicos e incluindo árias de óperas, Lieder e Volklieder (canções do folclore germânico).
Durante o entre-guerras os recitais de canto tornaram-se mais frequentes. Nos
espetáculos de canto figuraram as sempre apreciadas árias de Rossini, Donizetti, Verdi,
Puccini, Bellini, Cimarosa, Bizet, Wagner, Mozart, Gluck, Beethoven, Weber e Carlos Gomes.
Ao lado deste repertório operístico eclético, outros compositores mereceram especial
atenção nos programas de recitais de voz, notadamente, os românticos: Schumann, Wolf,
Schubert, Mendelssohn, Flotow, Strauss; os clássicos Händel, Lotti e Caccini; o barroco
Scarlatti; os academicistas franceses Massenet e Franck; e os nacionalistas russos
Tchaikowski e Rimsky-Korsakoff. Destaque também para o compositor russo dos começos
do século XX, Rachmaninoff que se constituiu no autor mais moderno executado, mesmo
que sua produção fosse fortemente influenciada pelo Romantismo de Liszt e de Chopin.
Dos compositores brasileiros destaco algumas canções de Alberto Nepomuceno e de Ernani
Braga, ambos pertencentes a segunda geração de autores nacionalistas, assim como algumas peças do sul-rio-grandense Heckel Tavares, também desta mesma fase.
O primeiro grande concertista de canto a se apresentar ao público gaúcho na
década de 1920, foi o tenor alemão Karl Jörn, que ocupou o Teatro São Pedro, de Porto
Alegre em agosto deste ano. Nos quatro saraus que realizou, dedicou especial atenção a
Wagner (Tannhäuser, Lohengrin, Stolzing, Rienzi, Loge etc.). Ofereceu, igualmente, à plateia
do sul uma série de lieder de Schubert, Schumann, Wolf e de Strauss; trechos de
composições do brasileiro Nepomuceno, e cortina lírica com peças de Mozart, Bizet, Verdi
e Puccini.
A cantora lírica pelotense Zola Amaro, conhecida da cena nacional e internacional,31 exibiu-se, em 1923, em teatros de sua terra natal ao lado do barítono Andino
Abreu. Em Porto Alegre, no Teatro São Pedro, interpretou uma série de árias de óperas
veristas e também O sonho de Elsa, de Wagner e A casinha pequenina, grande sucesso de
Ernani Braga. Retornou dois anos mais tarde a este palco com a Morte de Isolda, do mesmo
Wagner. Apresentou-se também no Teatro Sete de Abril, de Pelotas e, em fins de maio,
cantou pela primeira vez ao público da cidade de Rio Grande. Acompanhada ao piano
pelo maestro local Angelo Celega, a intérprete executou alguns trechos das óperas Andréa
...........................................................................
31
Natural de Pelotas, Zola Amaro (1891-1944) iniciou-se no canto lírico, por influência do tenor Enrico Caruso
que conheceu em viagem a Buenos Aires. Instalando-se na capital portenha aperfeiçoou seus estudos. Estreou
em Bahia Blanca, Argentina em 1919. Consagrou-se no Costanzi, de Roma tendo se exibido também em outros
teatros da Itália. Em 1920 atuou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Retornando à Europa cantou no São
Carlos, de Nápoles; La Fenice, de Veneza; Scala, de Milão, assim como em Turim, Palermo, Catânia, Trieste,
Florença, Bolonha, Udine, Pesaro e em Cremona. Posteriormente apresentou-se no Covent Garden, de Londres;
no Real, de Madri; em Haia, Amsterdam, Roterdam e na Grécia. No Scala, cantou sob a regência do célebre
maestro Arturo Toscanini (1867-1957). Foi a primeira brasileira a pisar o palco deste grande templo da ópera
mundial. Fez uma longa carreira de concertista, manteve-se ativa até a sua morte em 1944, ano em que realizou
récita no Teatro São Pedro (Enciclopédia, p. 29-30. Moritz, 1975, p. 191-192. Campos, 1998).
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
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Chenier, Lohengrin, e Norma. O recital foi um sucesso; aclamada pelo público rio-grandino,
voltaria a esta cidade no mês de novembro, realizando récita no palco do Cine-Teatro Carlos Gomes. Também nesta casa fez recital em outubro de 1929. 32
Após apresentar-se no mês de março em Porto Alegre, proporcionando ao público do Teatro São Pedro uma soirée fortemente marcada por canções brasileiras, a soprano Iracema Follador ocupou o palco do Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande em 19
de maio de 1925, conquistando o público local com suas interpretações. Executou algumas
árias operísticas: Thaïs, de Massenet; Mignon, de Ambroise Thomas; Andréa Chenier, de
Umberto Giordano. A escolha das partituras nacionais recaiu sobre As Trovas, de Alberto
Nepomuceno e A Eterna Canção, de Araújo Vianna.33
Depois de excursionar pelas repúblicas do Prata, a já conhecida do público sulino
Julieta Telles de Menezes fez-se ouvir em 1928 na cidade de Rio Grande. Abolindo o tradicional repertório operístico, escolheu para seu sarau peças de Pergolesi, Sarri, Cesti,
Schumann, Debussy, Dalcroze. A última parte do espetáculo foi destinada à música erudita
nacional: Amor, de Araújo Vianna; Cantigas, de Alberto Nepomuceno; Sinos da Aldeia,
de Heitor Villa-Lobos; Canção de Rua, de J. Octaviano; Toada Para Você, de Lorenzo Fernandez e do acalanto popular Tutú Marambá, de Luciano Gallet. Acompanhada ao piano
pelo maestro Angelo Celega, a concertista venceu, brilhantemente, este repertório eclético,
demonstrando sua versatilidade e maestria no domínio da modulação da voz frente às
mais variadas exigências das partituras escolhidas. No Teatro São Pedro, da capital gaúcha
Menezes realizou neste ano dois recitais nos quais, igualmente, destinou parte a composições de autores brasileiros.34 A música brasileira começava assim a se afirmar nos repertórios dos recitais eruditos.
Em 1933, excursionaria pelo Estado aquela que pode ser considerada a mais célebre soprano brasileira: Bidu Sayão. 35 Mundialmente reconhecida a diva apresentou-se
primeiramente no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 29 de setembro executando
um repertório bem amplo que incluiu obras de: Cesti, Gluck, Mozart; Chopin, De Falla,
Liodow, Auber, Nin, Rossini, e Donizetti. Em português, interpretou dois números: Canto
da Saudade e Casinha Pequenina, sucessos de Ernani Braga. Seguindo para a cidade de
Pelotas, realizou dois recitais no Teatro Guarani. Em Porto Alegre executou três aplaudidas
apresentações cantando páginas de Bach, Gluck, Mozart, Bellini, Donizetti e Braga.
Retornou ao Sul do país no ano seguinte, para mais uma promissora tournée. Em Rio
Grande, ocupou novamente o teatro Sete de Setembro em 3 de novembro. Acompanhada
por músicos locais e pelo pianista e compositor gaúcho Radamés Gnatalli, a soprano carioca
demonstrou o virtuosismo de sua voz executando um longo e eclético programa que
incluiu autores como Grétry, Pasiello, Mozart, Rossini, Verdi, Delibez, Liadoff, Giordano,
Leroux, Liszt e o brasileiro Alberto Costa. No teatro São Pedro, da capital do Estado, Sayão
executou diversos compositores, entretanto destacavam-se árias de óperas de Mozart: A
flauta mágica, As bodas de Fígaro, O rapto do serralho, Idomeneo, além de Alleluia, do
repertório sacro do autor.36
...........................................................................
32
Caro, 1975, p. 320. Echenique, 1934, p. 89. Rio Grande, 25 e 26-mai., 1925. Bittencourt, 1998.
Iracema Follador foi aluna da célebre cantora sul-rio-grandense Amália Iracema, cf. Caro, 1975, p. 320. Rio
Grande, 19 e 20-mai., 1925.
34
Rio Grande, 11 e 15-out., 1928. Caro, 1975, p. 323.
35
Bidu Sayão nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1902, onde principiou seus estudos e audições. Sua
carreira internacional teve início em 1926, no Costanzi, de Roma, tendo cantado também no São Carlos, de
Nápoles; no Scala, de Milão; em Turim e Lisboa. No começo dos anos 30 fez sucesso no Opéra e no OpéraComique, de Paris. Em 1935 debutou nos Estados Unidos da América, após se exibir em Buenos Aires. Em fevereiro de 1937 foi contratada para compor o elenco permanente do Metropolitan Opera House, de New York,
cidade onde passou a concentrar definitivamente sua carreira. Faleceu em 1999 (Enciclopédia, 1998, p.703).
36
Rio Grande, 29 e 30-set. e 2-out., 1933; 3-nov., 1934. Coleção de Prospectos, pasta 1, 28-set., 1933. Caro,
1975, p. 329-330.
33
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
333
Outro nome de destaque no canto nesta década de 1930 nos teatros sulinos foi
a soprano polonesa Wanda Werminska, prima-dona da Ópera de Varsóvia, que realizou
recital no Teatro Sete de Setembro, de Rio Grande, em 13 de agosto de 1934. Em uma única apresentação ela seduziu o público e a imprensa locais. No programa trechos das óperas
Tosca e Mme. Butterfly (Puccini) e Carmem (Bizet). Também Saudade e Mazurka, de Chopin; Margareta, de Schubert; Wals, de Rózycki; Menina Alegre, de Frydmann, Canções
espanholas, de Delibez, Dama de Espadas, de Tchaikowsky, algumas canções cracovianas,
além de Canção, do brasileiro Marcelo Tupinambá. Apresentando-se no Teatro São Pedro,
de Porto Alegre interpretou árias de Alceste, de Gluck, da Dama de Espadas, de Tchaikowsky,
a Habanera da famosa ópera de Bizet e uma série de canções de seu país.37
Em 1937, já então contratada do Metropolitan Opera de New York, a soprano
Bidú Sayão retornou ao Rio Grande do Sul, realizansdo seus últimos recitais na região.
Após apresentar-se nas cidades de Porto Alegre e de Pelotas, exibiu-se à plateia do Politeama Rio-Grandense, de Rio Grande em 7 de agosto. Acompanhada ao piano por Werther
Politano, a consagrada cantora abriu o espetáculo com árias escolhidas da ópera A Flauta
Mágica, de Mozart. Seguiram-se: La Farfalletta (Bellini), La Pastoreila (Rossini), La Traviata
(Verdi), Le Rossignol (Saint-Saens), Tristesse (Chopin), Rêve d’amour (Liszt), Le Rossignol et
la Rose (R. Korsakoff), The Kuckoo (Lisa Lehemann), La Girometta (Libella), Leclet de Rire
(Amba). Do repertório nacional figuraram trechos da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes e
Canção de Ninar, de P. Barroso. 38
Considerações finais
A análise do repertório lírico executado nos principais teatros do Rio Grande do
Sul, da segunda metade do século XIX até 1940, revela que o gênero ópera foi grandemente
tributário dos programas apresentados pelas companhias líricas italianas que realizavam
temporadas nas cidades da região. Ele estava alicerçado nas criações italianas oitocentistas,
notadamente, no Romantismo e no Verismo (Realismo lírico). O repertório francês de
ópera se fazia também remarcar, embora se limitasse a alguns poucos autores. Destacaramse compositores do bel canto como Verdi, Donizetti, Bellini, Rossini, Puccini; os representantes da Grande ópera francesa como Meyerbeer, Gounod, Massenet. Também os
autores veristas como Mascagni, Leoncavallo, Puccini, Bizet e, de certa forma, Verdi com
seu “realismo romântico”.39
Outros músicos pertencentes a diferentes períodos da história da ópera encontravam espaço somente nos pequenos recitais de canto. Suas obras foram, portanto, parcialmente conhecidas; não sendo encenadas. Estes espetáculos limitavam-se a execução
de seus trechos mais significativos. Foi desta maneira “breve” e superficial que importantes
operístas do Classicismo como Gluck, Mozart; do Romantismo como Beethoven, Flotow,
Humperdink, Wagner o criador do “drama musical”; do Pós-romantismo como Richard
Strauss; da escola francesa dos finais do século XIX como Délibes, Saint-Saëns, foram apresentados às plateias do Sul.
O estudo da programação operística dos teatros sulinos revela também que
outros compositores determinantes na formação e na evolução do gênero lírico como os
fundadores Peri e Monteverdi; os italianos Scarlatti, Pergolesi, Cimarosa, Paisiello, Cherubin;
os franceses Lully, Ramaeu, Berlioz, Debussy, os alemães Händel, Haydn, Schönberg; o
húngaro Béla Bartók, entre tantos mais, estavam completamente ausentes dos palcos da
...........................................................................
37
Rio Grande, 11, 13 e 14-ago., 1933. Caro, 1975, p. 329.
Caro, 1975, p. 332. Rio Grande, 7 e 9-ago., 1937.
La traviata (1853) de Verdi, baseada no romance de Alexandre Dumas Filho – que aliás estreou como peça
teatral neste mesmo ano – é uma criação sensível, íntima, de um impressionante realismo, que a conecta com
esta corrente lírica.
38
39
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
334
região. Nenhum registro de criações do Renascimento, do Barroco, do Rococó. Reitero
que as poucas peças do Classicismo só são observadas nos recitais de canto. Dos modernos
autores que nos começos do século XX vitalizaram a ópera, como os alemães Kurt Weill,
Carl Orff, o russo Serge Prokofiev, igualmente, não possuo nenhum espetáculo registrado.
Assim, acredito ser correto afirmar que a presença ópera nos teatros do extremosul do Brasil acompanha o percurso do desenvolvimento do gênero lírico em muitos países,
notadamente nos de formação latina. Ela nasceu sob o signo do Romantismo italiano e
jamais se distanciou consideravelmente de sua bella Península natal.
Na década de 1930, Bidú Sayão (1902-1999), a mais célebre cantora lírica brasileira, apresentou-se, por repetidas
vezes, nos teatros do Rio Grande do Sul.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
335
O compositor Carlos Gomes (1836-1896) foi o operista brasileiro mais executado no Rio Grande do Sul. Sua ópera
Il Guarany apresenta-se como o maior sucesso nacional do gênero; uma presença constante nos repertórios das
companhias italianas que excursionavam pelos teatros sulinos; uma espécie de homenagem ao público do país que
as acolhia.
Desde o século XIX, as companhias de ópera italianas marcavam presença nos palcos do Rio Grande do Sul
garantindo para si a hegemonia do gênero lírico e o predomínio do repertório italiano. Uma das mais importantes
cantoras a frequentar os palcos regionais foi a soprano italiana Amelita Galli-Curci (1882-1963), em finais de 1915.
Nesta foto, Galli-Curci interpreta a personagem Violeta, da ópera La Traviata, de Verdi, um dos grandes sucessos do
compositor.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
336
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1: 1919-25 (Pasta 8); Politeama Rio-Grandense – 2: 1926-28 (Pasta 9); Politeama RioGrandense – 3: 1929-34 (Pasta 10); Politeama Rio-Grandense – 4: 1935-53 (Pasta 11);
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339
A ópera Jupyra no contexto geral
de Francisco Braga
Rubens Russomano Ricciardi
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto
Uma criança órfã, Antônio Francisco Braga1 (Rio de Janeiro, 1868-1945), em 1876,
passou a viver no Asilo dos Meninos Desvalidos. Reconhecendo seu talento para a música,
o dr. Daniel de Almeida, diretor do asilo, fez com que Francisco Braga ingressasse como
aluno no Imperial Conservatório de Música. Pouco tempo depois, o jovem músico já dirigia
a banda do Asilo. Em 1886, concluiu o curso de clarineta na classe de Antônio Luiz de
Moura (Rio de Janeiro, 1820-1889), tendo estudado também composição (harmonia e
contraponto) com o então jovem professor Carlos Marciano de Mesquita (Rio de Janeiro,
1864 – Paris, 1953), que fora aluno, em Paris, de grandes nomes da época, como Jules
Massenet (composição, contraponto e fuga), Cásar Frank (órgão) e Émile Durant (harmonia). A esse período remontam já as primeiras composições de Francisco Braga, como
peças para banda e música de câmara.
Em 1887, a abertura Fantasia (1886), sua primeira composição sinfônica, é estreada no então Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro (onde hoje se
situa o Teatro João Caetano), sob regência de seu professor, Carlos de Mesquita, no primeiro
dos Concertos Populares, a primeira série de concertos sinfônicos públicos do Rio de Janeiro, idealizada pelo próprio Mesquita. Em 1888, em carta endereçada ao diretor do
asilo, Francisco Braga pede seu desligamento como interno, por ter atingido a maioridade,
mas se mantém vinculado à instituição, agora como professor de música.
Em 1889, por ocasião da Proclamação da República, foi aberto concurso para
escolha de um hino que homenageasse a data. Francisco Braga é um dos 36 inscritos. Em
janeiro de 1890, são executados os trabalhos dos concorrentes do concurso, em espetáculo
realizado no Teatro Lírico do Rio de Janeiro (próximo à atual rua 13 de maio, infelizmente
já há muito demolido), com a presença do marechal Deodoro da Fonseca. A regência esteve a cargo do próprio Carlos de Mesquita, então um dos músicos mais influentes do
Brasil, que também havia sido membro do júri. Foram selecionados quatro hinos, e, dentre
eles, o de Francisco Braga. No entanto, o grande premiado foi Leopoldo Miguez (Niterói,
1850 – Rio de Janeiro, 1902). Francisco Braga, por sua vez, é contemplado com uma viagem
de estudos à França, como bolsista do Estado.
Em fevereiro de 1890, segue para Europa, onde permanecerá por 10 anos. Inicialmente em Paris, submeteu-se a um concurso para ingressar como aluno do Conservatório
de Música. Seguindo os conselhos de seu professor Carlos de Mesquita, Francisco Braga
optou por ser também aluno de Massenet, com quem passou a estudar composição.
Compõs várias pequenas peças camerísticas, bem ao gosto francês da época. Em 1892,
...........................................................................
1
Destaca-se, dentre as informações biográficas sobre Francisco Braga, a Cronologia elaborada em Pequeno,
Mercedes Reis. Exposição Comemorativa do Centenário do Nascimento de Francisco Braga (1868-1945). Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional, 1968, p. 11-19. Temos ainda a coleção de cartas e cartões postais de Francisco
Braga à família de Francisco e Victória Buschmann. São documentos datados desde o final do século XIX até
bem próximo à morte de Braga. Destacam-se, em especial, as cartas escritas a Francisco Buschmann (dinamarquês de nascimento, residiu no Brasil antes de se radicar na Alemanha, tendo sido o mecenas de Francisco
Braga na Europa) e a seus filhos Johannes (cujo apelido era Didi) e Carolina (cujo apelido era Mimica, a última
sobrevivente da família Buschmann a manter correspondência com Francisco Braga). Essa coleção está depositada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, sob o nº 50.3.8, da qual extraímos os
diversos textos redigidos por Francisco Braga aqui transcritos.
Atualidade da Ópera - Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ
340
graças à solicitação do próprio Massenet, consegue uma prorrogação do prazo de sua
permanência em Paris, a fim de não interromper seus estudos. Ainda na capital francesa,
inicia-se a fase mais produtiva de sua carreira como compositor. Francisco Braga começa
a compor suas obras sinfônicas de maior importância, como Paysage (1892) e Cauchemar
(1895). Ambas as obras foram estreadas no Rio de Janeiro, sob regência do violinista e
cronista Vincenzo Cernicchiaro (Torraca, Itália – 1858 – Rio de Janeiro, 1928), respectivamente no Teatro São Pedro de Alcântara (1892) e no Cassino Fluminense (1895).
A 5 de fevereiro de 1895, Francisco Braga se apresenta no Salle D’Harcourt, num
concerto intitulado Festival Brésilien. Além de seus próprios trabalhos de música de câmara,
são apresentadas também obras de outros compositores brasileiros, como Carlos Gomes,
Francisco Valle, Alberto Nepomuceno e ainda seu ex-professor, Carlos de Mesquita, agora
também radicado em Paris, que passa a ser seu parceiro em projetos de realização de
concertos.
No ano seguinte, a 4 de fevereiro de 1896, Francisco Braga e Carlos de Mesquita
dividem a regência no grande Concert Brésilien, um projeto ainda mais ambicioso, desta
vez na Galerie des Champs-Elysées, com uma orquestra de 60 músicos e vários solistas,
como Marie Dalzen, Zocchi, Clemence Hémar (cantores), Mathilde Sinay, Andréa Vhery e
Oliveira Guimarães (pianistas). São apresentadas neste concerto, com mais de 4 horas de
duração, 14 obras sinfônicas, concertantes e trechos operísticos de Carlos Gomes (de
Odalea, Lo Schiavo e Il Guarany) – obras sugeridas pelo próprio compositor, que manteve
correspondência com Francisco Braga -; Franz Liszt (Fantaisie Hongroise para piano e orquestra); Carlos de Mesquita (Prélude, 1er Episode Symphonique, Chanson à deux – nº1
des Aquarelles, Etude de Concert em Ré, e trechos da ópera La Esméralda); Alberto Nepomuceno (Intermezzo); Frédéric François Chopin (Nocturne en Mi b); Louis Moreau Gottschalk
(Tremolo – Etude de Concert); Antoine François Marmontel (Tarantelle); Alexandre Levy
(com a estréia européia do Samba, da Suite Brésilienne) e do próprio Francisco Braga
(Paysage – esquisse symphonique, Cauchemar – scherzo symphonique, Gavotte
Marionettes, Prière e Menuet – essas três últimas para orquestra de cordas, compostas as
duas primeiras em 1892, e a terceira em 1894). No entanto, há uma carta de Carlos Gomes
a Francisco Braga, datada de 18 de fevereiro de 1896, onde o compositor campineiro lamenta o insucesso deste concerto.
Logo em seguida, Francisco Braga vai para Viena e Dresden, onde é acolhido
pela família do dinamarquês Francisco Buschmann, que passa a ser seu mecenas. Naquele
ano de 1896, e, ainda no ano seguinte, o jovem compositor vai a Bayreuth, para ouvir, por
várias vezes, as óperas de Richard Wagner. Apesar da proximidade com Massenet, seu
professor em Paris, Francisco Braga optou por ter em Wagner seu maior Vorbild como
poética musical de seu tempo.
A 11 de agosto de 1896, Francisco Braga escreve de Bayreuth a Johannes Buschmann (Didi),2 filho de Francisco e Victória Buschmann:
por ora tenho a cabeça no poder de Wagner e não penso senão no que ouvi e
no que vou ouvir. Hoje, p. ex. com o Sigfried. Creio que sáhio meio amalucado
do theatro. Sabes que horas são? Acabo de abrir o famoso chronometro, tão
appetitoso e bom, e constato que são 2 horas justas da tarde. Siegfried começa
às 4 horas. Vou fazer a barba, e as 3.35 lá estou com os ouvidos à espera de novas sensações. Ah! Didi, se soubesses como é bonito tudo isto!? 3
...........................................................................
2
Johannes Buschmann era chamado carinhosamente por Francisco Braga pelo apelido de Didi. Violoncelista
amador, Didi era um apaixonado por música e ópera. Àquela altura ele residia em Lisboa.
3
Em todos os textos de Francisco Braga aqui transcritos mantivemos a ortografia e gramática originais.
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A 30 de julho de 1897, em nova carta a Didi, Francisco Braga mais uma vez se
ocupa de Wagner: “Já estou aqui [em Bayreuth] há 4 dias, e já ouvi Parsifal duas vezes,
ouvindo mais uma vez hoje – Que monumento, meu Didi! que sublime concepção!” Logo
em seguida, Francisco Braga narra com detalhes as performances dos principais cantores
– o que sempre se configurava como um dos assuntos prediletos em suas cartas a Didi,
como por exemplo: “Marie Brenna é Anna v. Mildenburg; esta última possuindo uma voz
volumosa e bella, bella ella mesma, e de formas soberbas. A interpretação que dá Marie
Brenna na scena em que ella seduz Parsifal, é voluptuosa, embriagante, demasiadamente
captivante. É grande artista”. A 2 de agosto de 1897, Francisco Braga escreve a Didi sobre
um determinado cantor, outro exemplo de suas observações sobre detalhes da atuação
de cantores em Bayreuth: “Alois Burgsteller, o bello Siefried do anno passado, que tinha
uma soberba cabelleira natural, tingi-os, de maneira que agora está louro e melhor pa o
papel, mas o homem não é tão bonito como antes”.
Francisco Braga havia ouvido “mais uma vez a trilogia Der Ring des Nibelungen,
isto é, o Vorabend – Rheingold”. No mesmo dia, escreve de Bayreuth também a Francisco
Buschmann com o mesmo entusiasmo em relação ao Theatro de Wagner e outras possibilidades de assistir suas óperas: “Acabo n’este momento de achar uma deliciosa excellente,
gostosa e comfortavel cadeira nº72 e sem pagar mais do preço regular. No bilheteiro,
onde eu tinha pedido há alguns dias, guardaram-me e assim assisto a Nibelungen. Eu já
estava resolvido ir a Munich ouvir Tristan, que se canta no dia 5 [de agosto de 1897] sob
direcção de Richard Strauss”.
Wagner preenchia decididamente os anseios do jovem Francisco Braga em busca
de uma linguagem musical: “Acabei de assistir a serie do Ring des Nibelungen. Cada vez
esta poderosa força do geneo do grande Wagner se incute no meu espírito mais extraordinariamente. Sahi do theatro com uma emoção considerável. Que música divina!”
(Bayreuth, carta a Didi, 6 de agosto de 1897).
Mas o que lhe fascinava em Wagner não eram os contrastes dramáticos, a alternância de atmosferas, o princípio de inovação ou ousadia estrutural, mas sim um certo
lirismo melodioso romântico. Na visão de mundo de Francisco Braga, a categoria do “sublime” era a que de longe maior admiração e respeito lhe causava, diante da qual nem sequer se fazia necessária uma ideia nova de ruptura ou contraste. A busca por categorias
como a “pureza da arte”, o “belo sagrado” ou a “delicadeza do êxtase” acabou impregnando
toda a obra de Francisco Braga, desde a juventude até os anos mais tardios. Não raramente,
sua personalidade até parecia ingênua, como podemos observar em sua carta à Família
Buschmann, escrita de Bayreuth, a 4 de agosto de 1897: “...gosamos de uma temperatura
fresca de um sol resplendissant, e de um céo azul como os olhos dos cabellos de ouro das
virgens scandinavas”. Em várias outras cartas observamos sempre a mesma e insistente
perspectiva do êxtase e do sublime:
O tempo decididamente não gosta de gente que vem ouvir Parsifal. Durante as
últimas representações choveu a cantaros, depois tudo se serenou. Agora começa
novamente a ficar máu, e com certeza amanhã temos aguaceiro. É que há indivíduos que vêm profanar o templo sagrado da arte. Os céus castigam, pondoos na chuva. (Bayreuth, 7 de agosto de 1897)
Eu hontem pensei que o tempo ficasse ruim. Qual! A noite esteve poética, com
um luar adorável. Então pelas 9 horas fui até o theatro, e do plateau gosei dos
suaves raios da lua, e por muito tempo fiquei em êxtase, ouvindo as vozes
interiores de minh’alma, que me diziam... Hoje está um bello dia. (Bayreuth, 8
de agosto de 1897).
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Em março de 1897, Cauchemar e Paysage foram apresentadas mais uma vez,
agora no Teatro Gewerbehaus, em Dresden. Remonta também àquela estada de Francisco
Braga na capital da Saxônia o início dos trabalhos mais intensivos na Jupyra. O compositor
partiu então para a Ilha de Capri (Itália), em novembro de 1897. Até 1900, ano de seu retorno definitivo ao Brasil, Francisco Braga se ocupará do projeto mais importante de sua
vida: a composição da ópera Jupyra.
Desde 1892, o compositor cogitava a hipótese de compor uma ópera, e, por carta, solicitou um libreto a seu amigo carioca, o cronista, teatrólogo, jurista, professor e jornalista, Luiz Gastão de Escragnolle Doria (Rio de Janeiro, 1870-1948), uma figura de destaque na vida cultural do Rio de Janeiro da época, embora não há como lhe atribuir qualquer talento especial como autor literário. Francisco Braga assim descreveu suas necessidades em relação ao libreto: “o assunto brasileiro é quase em mim uma idéia fixa;
para começar, peço-lhe somente um ato, mas um pouco descritivo, para dar lugar à sinfonia”. Escolheu-se como tema “Jupyra”, o terceiro conto do livro Histórias e tradições da
Província de Minas Gerais (1872), de autoria do poeta e ficcionista Bernardo Joaquim da
Silva Guimarães (Ouro Preto, 1825-1884). Para que pudesse ser posto em música, o conto
de Bernardo Guimarães foi adaptado em forma de libreto por Escragnolle Doria, e, logo
em seguida, traduzido para o italiano por Antonio Menotti Buja (Lecci, Itália, 1877 – Nápoles, 1940). Hoje, passados mais de cem anos e com o devido distanciamento crítico,
não há como negar toda uma fragilidade literária que acabou configurando o libreto da
ópera. Se por um lado, Escragnolle Doria não logrou uma tensão que permitisse à ação
dramática uma estruturação efetiva, o conto original está longe de se situar entre as principais criações literárias de Bernardo Guimarães.
Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 140-144), o regionalismo daquele escritor romântico mineiro “mistura elementos tomados à narrativa oral, os causos e as estórias de Minas Gerais e Goiás, com uma boa dose de idealização”. Assim como acontece com a maior
parte dos sertanistas, há, em Bernardo Guimarães “a dificuldade na superação em termos
artísticos do impasse criado pelo encontro do homem culto, portador de padrões psíquicos
e respostas verbais peculiares a seu meio, com uma comunidade rústica, onde é infinitamente menor a distância entre o natural e o cultural”. Ainda, segundo Bosi:
as várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico, e, até, modernista), que têm sulcado as nossas letras desde os meados do século XIX, nasceram
do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural,
provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a
projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do
campo. Do enxerto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam
o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos e estéticos do prosador. (Bosi, 1994, p. 141)
O talento literário de Bernardo Guimarães foi criticado em seu tempo, não obstante o lugar de destaque que hoje ocupa no romantismo brasileiro e o sucesso que alcançaram romances seus, como O Seminarista (1872) e A Escrava Isaura (1875). Segundo
Monteiro Lobato:
lê-lo é ir para o mato, para a roça, mas uma roça adjetivada por menina do Sião,
onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo
descreve a natureza como um cego que ouvisse cantar e reproduzisse as paisagens
com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico
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da impressão pessoal. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas
cor de jambo. Bernardo falsifica o nosso mato. (Bosi, 1994, p. 142)
Basta pensarmos numa personagem como Rosalia, a boa moça branca e rival
da índia Jupyra, para entendermos a colocação de Monteiro Lobato. Já a personagem Jupyra, a infeliz e vingativa protagonista no contexto literário de Bernardo Guimarães, talvez
seja um entre os mais representativos exemplos, na caracterização de uma natural má
índole, contrastante a uma bondade natural (prolongamento do bom selvagem, herança
já de um José de Alencar) também presente em outras obras suas. Não é por menos que
num diálogo da cena IX, Rosalia chama Jupyra de Razza abbieta, razza ville! (raça abjeta,
raça vil). Seria néscio, no entanto, segundo Alfredo Bosi, falar em preconceito como atitude
etnicamente responsável. Pelo contrário, em Rosaura – a enjeitada (1883), obra da maturidade, Bernardo Guimarães chegou a dizer: “em nossa terra é uma sandice querer a
gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: no
Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado
flecha ou tocado marimba” (Bosi, 1994, p. 144), referindo-se assim à grande maioria mestiça da população brasileira composta por descendentes de índios e negros, mesclados
com europeus. E no libreto da Jupyra, do mesmo modo, há o confronto entre personagens
de origens étnicas diversas. A breve e trágica história se passa no século XIX, na região da
Vila de Campanha do Rio Verde, no centro-sul da Província de Minas Gerais.
O coro inicial anuncia que o amor é volúvel, que muda como a lua e o vento. Jupyra, uma jovem e humilde índia, está apaixonada por Carlito, com quem vinha tendo um caso
amoroso. No entanto, Quirino se declara a Jupyra, e pelo seu amor seria capaz de qualquer
ato. Mas Jupyra não corresponde aos desejos de Quirino e se sente feliz por amar Carlito, imaginando que seu amor fosse correspondido. Carlito, por sua vez, já estava enjoado dos amores
com Jupyra e queria se livrar dela, mas não pretendia, no entanto, causar constrangimentos.
E, por isso, dissimulava. Perguntado por Jupyra se ele ainda a amava, Carlito responde tão
somente: “pergunte aos meus amigos”. Carlito se encontra com Rosalia, moça branca e bonita, e há toda uma cena amorosa entre os dois, com juras românticas eternas. Esse encontro
é presenciado por Jupyra, que vê e ouve tudo escondida. Jupyra entra em desespero
quando houve Carlito contar a Rosalia que tudo que ele havia tido com uma índia (no caso, com ela, Jupyra) nada mais seria que um passatempo. Jupyra se sente rejeitada, e em
um novo encontro com Quirino lhe dá um punhal e lhe pede que mate Carlito, pois assim
Quirino poderia tê-la como recompensa. Carlito se despede de Rosalia para ir caçar, no
momento em que Rosalia lhe adverte de um sonho terrível que havia tido. Jupyra declara
seu ódio a Rosalia, mas esta a despreza. Carlito é seguido por Quirino pela floresta. Por
fim, Quirino aparece com a faca ensanguentada e é amaldiçoado por Rosalia. Jupyra, ao
ver o corpo de Carlito boiando no Rio Verde, se atira de uma ponte para a morte.
Francisco Braga evoca um único canto popular na Jupyra: o inequívoco dolce no
tema da abertura, depois recapitulado na Coda final, lembrando o modo mixolídio, com a
7a menor, tão típico do nordeste brasileiro. Mas na obra de Francisco Braga jamais se
consolidou qualquer neofolclorismo, tal como nas gerações modernas seguintes. A linguagem musical de Francisco Braga contém, portanto, uma síntese de várias correntes
musicais românticas européias de sua época, que remontam desde a influência direta de
seu professor Massenet, em Paris, mesclada com certos recursos típicos do verismo de
algumas óperas italianas – lembrando aqui que Verdi era seu compositor italiano predileto4
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Em carta a Francisco Buschmann, escrita do Rio de Janeiro, a 18 de setembro de 1902, Francisco Braga assim se
refere à ópera italiana de seu tempo: “Não sei, mas os italianos, sua escola, suas operas, fazem-me mal, acho-os
falsos em tudo. Salva-se, dos modernos, o principe – G. Verdi. Este foi artista sincero. Mas toda esta sucea de
Puccini e Leoncavallo e Mascagni e Franchetti, e não sei quem mais ainda, são uns pedantes, falsos prophetas.”
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– e, principalmente, acolhendo também o sinfonismo contraponstístico de Wagner, sobre
o qual o compositor carioca edifica sua linguagem operística eminentemente melódica e
romântica.
A 29 de dezembro de 1897, da Ilha de Capri, Francisco Braga escreve à Família
Buschamnn agradecendo o envio de presentes de natal. Em especial, refere-se a uma
obra de Wagner que ele necessitava estudar por ocasião da composição de sua ópera Jupyra: “Quanto à partitura do Götterdämmerung como o Álbum vieram preencher duas
lacunas há muito ambicionadas”. Outra partitura que lhe serviu de referência para seu
trabalho diário na Jupyra foi Die Meistersinger von Nürnberg, na versão reduzida para
canto e piano.
Empolgado com a composição da ópera Jupyra, Francisco Braga, em sua estada
na Ilha de Capri, já vislumbrava, a 12 de fevereiro de 1898, uma rápida possibilidade de
estréia: “Por aqui continua tudo como sempre, pois esta ilha é uma maravilha, um encanto
de belleza! Tenho trabalhado bastante na minha Jupyra, que, se Deus quiser verá a scena
este 1898”. O próprio compositor já descrevia seu processo criativo em carta a Scragnolle
Doria: “ardo de impaciência a tal ponto que tenho momentos de febre quando me sento
ao piano e ensaio certas scenas da nossa Jupyra... De improviso, componho, canto palavras
sem nexo, imagino acentuações dramáticas, enfim, um horror, uma alucinação”. A 16 de
abril de 1898, Francisco Braga já cogitava também a possibilidade de edição, mesmo a
partitura da Jupyra ainda não estando concluída: “não posso ainda ir-me, pois não estive
ainda com o homem da Ricordi. É necessário ainda muito trabalho, por as cousas em
ordem para a execução, se bem que só possa passar a metade; o que há ainda a fazer é
forte! Não se pode precipitar assim os acontecimentos. Mas vae indo”. Entretanto, essas
possíveis tratativas com a editora de música Ricordi jamais se concretizariam. Ainda da
Ilha de Capri, a 20 de junho de 1898, Francisco Braga escreve ao seu mecenas, o velho
Buschmann, já satisfeito com os primeiros resultados de sua composição: “A Jupyra que,
cada vez fica mais bella, lhe envia saudações amistosas”. Em 1898, um ano dos mais produtivos em toda sua vida, Francisco Braga, além de se concentrar intensamente na composição da Jupyra, consegue levar a cabo a composição de várias outras obras, incluindose o Episódio Sinfônico e o poema sinfônico Marabá, este último trabalho inspirado em
mais um texto do seu libretista Escragnolle Doria.
No início de 1899, Francisco Braga volta à Alemanha, mesmo com a partitura da
ópera ainda não estando totalmente concluída. Em Dresden, a 17 de janeiro de 1899, em
nova carta a Buschmann, ele relata o estágio em que o trabalho se encontrava naquele
momento e começa a se preocupar com as incertezas sobre o destino da Jupyra: “Actualmente trabalho na orchestração final da minha obra. Sobre a execução não posso ainda
dizer nada, pois vivo ainda de esperança, mas...?” Francisco Braga começa a se deparar
com as enormes dificuldades em viabilizar a estréia da Jupyra na Europa, como podemos
observar de sua carta de 7 de fevereiro de 1899. Ele havia optado pela composição da Jupyra em italiano, mas como tentava vender sua ópera na Alemanha, verificou a dura necessidade de traduzir o libreto para o Alemão e ainda ter que adaptá-lo à partitura:
Aqui estou de volta por alguns dias. Já estive com o Possart5, intendente do
Theatro real de Munich, que é bem amável, apezar da pose pedantesca que toma quando dá as suas audiências. Paletot completamente abotoada e a mão direita sobre o primeiro botão, mas dentro do paletot, com um gesto napoleônico.
Mas o essencial é que é distinto e gentilíssimo. Conversamos uns 12 minutos so...........................................................................
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Ernst von Possart (Berlim, 1841-1921), ator, diretor de cena e intendente de grande influência na produção
operística na Alemanha de seu tempo.
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bre a minha pretensão, e elle disse-me: Faça traduzir o seo Dramma em alemão,
e volte aqui, mas faça tudo isso breve e bem! Já vê que não vae muito mal. Aqui
em Dresden está o [Ludwig] Hartmann que traduziu o Pallazzo de Leoncavallo, a
quem escrevi, e que me respondeo de vir vê-lo. E cá me acho. Esta tarde sou
esperado em casa de Hartmann. Eu pensei que as cousas fossem mais faceis,
apezar que não teem sido muito complicadas. Que Deus me ajude.
Nos primeiros momentos deste empreendimento, Francisco Braga estava ainda
esperançoso com o projeto da estreia da Jupyra na Alemanha, junto à Ópera de Munique.
É o que observamos de sua carta de 20 de março de 1899, também endereçada a
Buschmann:
No dia 24 [de março de 1899] o illustre Possart vêm a Dresde, e o meo traductor
Ludwig Hartmann prometteu-me interessar-se pela Jupyra, e falar ao Possart
que é também seu amigo. O Hartmann está muito satisfeito com o trabalho, e
disse-me que cada vez lhe agrada mais a musica. Juntamente lhe envio o
[Dresdner] Neueste Nachrichten que traz uma pequena notícia. Ludwig Hartmann
é o crítico de artes d’esse jornal. Sabbado esteve aqui, e tem já a metade da obra
traduzida. Diz elle que a musica ganha muito com o texto alemão. Veremos o
que será com o Possart. O Hartmann, segundo me disse o editor Bock, quando
se interessa faz muito pela pessoa. É curioso! Só o fato d’elle aceitar a tradução
o que fez depois de ter ouvido toda a opera, eu no Piano e elle com a partitura
de orchestra. Assim mesmo pedio-me que deixasse a musica em sua casa que
queria estudal-a bem, para dar-me dois dias depois, uma resposta decisiva. Naturalmente gostou. Pois o Bock ficou me olhando como se eu fosse um bicho!
Logo em seguida, em abril de 1899, Francisco Braga se encontra novamente
com o intendente do Teatro de Munique:
O Possart esteve aqui e repetio o que tinha dito em Munich: que quando tudo
fosse prompto entregasse a elle. No próximo sabbado parto para München,
pois tudo estará prompto graças a Deus, n’aquella epocha. Não sei se valerá a
pena uma grande e dispendiosa viagem para ouvir a insignificante obra de um
principiante. Em todo o caso é gentil a idéia que muito me lisongea. O Hartmann
mesmo é quem quer ser o portador da obra ao Possart. Veremos em que dará
essa innocente tentativa de artista ambicioso de glórias?!
No entanto, Francisco Braga mantinha seu entusiasmo sob severa parcimônia,
pois lhe parecia claro que as chances não eram grandes em ver a Jupyra estreada em
Munique. A 13 de abril de 1899, ainda em Dresden, há um novo relato sobre seus planos:
Devo partir para Munich desde que fôr cantada a ópera de Vogl, que creio será
no dia 24 ou 26 [de abril de 1899]. Segundo as decisões [de Possart], ruins ou
bôas, devo seguir para a Italia para tratar das representações futuras da Jupyra.
Talvez depois da opera ser representada em Munich (se o fôr) fará o seu giro pela Alemanha... Mas qual! Tudo isto não depende de mim, não vale a pena armar
castellos, somente pelo prazer de os desarmar depois.
O compositor carioca passaria ainda por difíceis momentos de angústia e longa
indefinição. A 18 de maio de 1899, escreve de Munique a Francisco Buschmann:
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Eu aqui estou desde 5a feira última; já o manuscripto está em mãos do Intendente
[Possart]; eu estou esperando a decisão que me foi marcada para 15 dias depois;
e desde que tenha uma bôa notícia lhe communicarei. Não tive occasião de
executar eu mesmo o trabalho. Foi, como de costume, submettido à commissão
de que fazem parte os célebres Levi6 e Fischer7!?? Será o que Deus quiser.
A decisão se adiava. A 2 de junho de 1899, Francisco Braga relatava que ainda
esperava pela decisão, se sua ópera Jupyra seria ou não programada pelo Teatro de Ópera
de Munique, pois segundo soube pelo intendente Possart, a partitura ainda estaria “em
mãos do Kapellmeister Fischer”. Enfim, apesar de não receber qualquer confirmação,
Francisco Braga, a 4 de julho de 1899, ainda relutava em desistir de uma estreia na Europa,
mesmo tendo, como diz:
a cabeça estonteada com a demora da decisão que deve fixar o destino de minha
Jupyra. Até agora nada, e é entretanto necessário que seja já, pois eu desejava
que no próximo anno, a minha opera fosse cantada no Rio de Janeiro por ocasião
das festas do 4º centenário da descoberta do Brazil, e para isso convem ser primeiro cantada n’um theatro europeo. Minha gente aqui me diz que tome cuidado
com o Possart, que é um hypocrita – um typo. Tenho receio que me façam perder
o tempo inutilmente, para dar-me depois uma resposta negativa, e ter eu de recomeçar a experiência em outra parte.
A ilusão, no entanto, se tornou ainda maior, pois Hermann Levi (já doente, pouco
antes de morrer), ciente do talento do jovem compositor carioca e das inegáveis virtudes
musicais da Jupyra, dá um parecer favorável à montagem inédita da ópera pelo Teatro de
Munique.8 Este novo fato renovou as esperanças de Francisco Braga. De Partenkirchen,
na região de Munique, a 22 de agosto de 1899, ele escreve a Buschmann, após receber
uma carta do Levi, para aqui voltei com a Jupyra, a minha carina caboclinha, às
ordens do amavel e celebre Director do Theatro de München.9 Pedio-me esperar
até quinta-feira. É curioso este homem! Me recebe sempre com tanta distinção,
como se eu fosse já qualquer coisa neste mundo! Enfim, seja o que Deus quiser!
A espera de poucos dias, porém, se transformou uma vez mais numa longa indefinição que duraria ainda três meses, até novembro de 1899. Eis que Francisco Braga
observava impassível as chances cada vez menores de sua ópera Jupyra ser executada na
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Hermann Levi (Gieâen, 1839 – Garmisch-Partenkirchen, 1900), famoso regente alemão em seu tempo – tendo
sido ainda tradutor de libretos de Lorenzo da Ponte das óperas de Mozart para o alemão. Apesar da origem
judaica, uma vez convertido ao cristianismo, foi indicado por Wagner para reger em Bayreuth a estréia de Parsifal
(1882). Após a morte de Wagner foi também o principal diretor dos festivais de Bayreuth ao lado da viúva
Cosima. Levi atuou ainda como regente titular em várias casas de óperas: Saarbrücken, Mannheim, Rotterdam,
Karlsruhe e finalmente em Munique (onde pouco antes de morrer teve este contato com Francisco Braga). Além
da ligação com Wagner, Levi foi amigo por algum tempo também de Brahms. A ruptura entre os dois ocorreu
após as duras críticas de Brahms às composições de Levi, que o levou a destruir todos seus manuscritos, restando de sua pena apenas algumas poucas obras impressas.
7
Franz Fischer (1849-1918), violoncelista e regente (assistente de Levi) em Munique e em Bayreuth.
8
Este parecer de Hermann Levi sobre a Jupyra foi traduzido e publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, de 16 de outubro de 1899.
9
Por “Director do Theatro de München” devemos entender hoje “diretor artístico” ou “regente titular”. Já as
funções mais administrativas eram exercidas pelo “intendente”, não obstante este profissional volta e meia ter
a possibilidade de influenciar diretamente os rumos dos projetos artísticos. Ao que tudo indica, foi isso que
aconteceu em relação à possibilidade do Teatro de Munique (hoje Bayerische Staatsoper) programar a Jupyra,
pois o regente titular, Hermann Levi, chegou a aprovar a inclusão da ópera no repertório, mas o intendente
Possart acabou se tornando um obstáculo, inviabilizando o projeto.
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Europa. Triste fato este, que persiste até os nossos dias, pois fora o Rio de Janeiro (onde a
ópera fora estreada em 1900) e São Paulo (e nesta cidade tão somente graças às recentes
iniciativas da OSESP, que remontam ao recente ano de 1997), esta obra maior de Francisco
Braga, um dos pontos culminantes do romantismo musical brasileiro, jamais fora executada
em qualquer outro lugar do planeta. Seria este o inexorável destino da Jupyra, apreciada
pela música, mas rejeitada pelo libreto?
Em Dresden, a 21 de novembro de 1899, Francisco Braga confirma finalmente a
possibilidade da estréia da Jupyra no Brasil. Nota-se também, pelo conteúdo da carta
logo abaixo transcrita, que se alimentava certo espírito de rivalidade entre ele e Leopoldo
Miguez. É notória a satisfação de Francisco Braga ao constatar que o projeto – de uma
ópera com temática francesa – proposto pelo compositor de Niterói, fora preterido em
favor de sua Jupyra, pela “nacionalidade” desta:
Hontem recebi uma carta do Rio de Janeiro, do amigo Snr. João Vianna que, enviado da diretoria do comité das festas commemorativas do 4º Centenário da
descoberta do Brazil, me pede insistentemente para que a Jupyra seja executada
durante os mesmos festejos, por uma companhia de 1a ordem. A directoria tendo
se dirigido ao Miguez, para que fosse composta uma ópera de assumpto nacional,
o maestro respondeu não haver tempo, e offereceu a sua nova ópera Saldumes
cujo assumpto porém é gaulez. A vista da nacionalidade da Jupyra foi ella
escolhida. Hontem mesmo respondi por telegramma, como me havia pedido o
Snr. João Vianna. Todas as despesas correm por parte do comité, eu tenho como
gratificação os meus direitos de autor, e, um benefício!
Iniciava-se então um novo, mas não menos difícil processo de ajustes para a estréia da Jupyra no Rio de Janeiro, mas desta vez a decisão de apresentar a ópera pelo menos já estava aparentemente assegurada. Francisco Braga, ainda em Dresden, em dezembro
de 1899, relata que
não sei ainda quando, e se irei mesmo eu dirigir as representações da Jupyra.
Tudo isto depende de dinheiro. A companhia será de 1a ordem e o emprezario é
o Sanzone que costuma ir todos os annos [ao Brasil]. Elle deve vir me procurar,
pois foi pessoalmente procurar o Rochinha10, que deu-lhe uma carta de apresentação para mim! A todo o momento espero uma carta do homem ou eu
mesmo irei à Milão pois os trabalhos de cópias devem ser feitos aqui na Europa.
Não deixa de ser curioso o fato de que estas partes cavadas, copiadas na Itália,
no início de 1900, serviram basicamente como material para as raríssimas execuções orquestrais da Jupyra ao longo do século XX, até nossa edição pela OSESP. Já há muito estas
partes copiadas – e não com muito capricho! – se encontravam em péssimo estado de
conservação.
Apesar das tratativas com o Rio de Janeiro, Francisco Braga ainda mantinha as
últimas esperanças de uma execução européia da Jupyra. Uma vez malogrado o projeto
em Munique, os seus manuscritos – tanto a partitura sinfônica como a versão para canto
e piano – permaneciam agora sob a guarda de terceiros junto à Ópera de Dresden, mas a
definição também não vinha, o que causava a justificada preocupação de Francisco Braga.
Nos primeiros dias de 1900, ele escreve que “não há meios de obter uma resposta do
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Rochinha era o apelido de José de Souza Rocha, a quem Francisco Braga dedica a Jupyra. O Rochinha foi sempre o melhor amigo do compositor, um companheiro inseparável desde a infância, quando foram colegas no
Asilo dos Meninos Desvalidos.
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Schuch,11 sobre a Jupyra que já lá está há 2 meses. Nunca o vejo”. Em Dresden, a 8 de
janeiro de 1900, Francisco Braga relata que “hoje fui procurar o illustre E. von Schuch para
saber qual o destinho que está reservado à minha ópera, devo voltar amanhã”.
Pouco depois, a 2 de fevereiro de 1900, ainda em Dresden, Francisco Braga continuava relatando as simultâneas tratativas em Dresden e junto ao empresário italiano
Sanzone:
Tudo continua sobre a Jupyra estacionário. Quando estive com o Schuch só pude
obter o contemplal-o durante 6 minutos, se tanto […] que esperasse mais um
pouco, que actualmente havia muito trabalho, os concertos […] novas óperas
[…] etc. Felizmente fiz o conhecimento do ensaiador dos coros, Dr. Walther Rabl,12
moço ainda, muito amável que me disse haver realmente muito trabalho, e que
as minhas partituras, orchestra e piano-canto, achavam-se em seu poder, e prometteu-me lembrar de vez em quando ao Schuch. E assim vae vagando o barco
das minhas illusões por esses mares fóra... O imprezario Sanzone escreveu-me,
é provável que eu vá brevemente até Milão entrar em negociações com elle, e
dar-lhe uma audição da Jupyra. Por ora nada está decidido, espero a resposta
que elle deve mandar sobre o que lhe escrevi.
Diante de tantas dificuldades, Francisco Braga, a 25 de março de 1900, escreve a
seu amigo Corbiniano Villaça, que residia em Paris, cogitando a hipótese de Jupyra ser estreada na capital francesa, mas novamente não houve êxito neste empreendimento.
Por fim, o impasse só se resolve a 13 de maio de 1900. Francisco Braga recebe
então boas notícias de seu amigo José de Souza Rocha (o Rochinha), do Rio de Janeiro,
que já havia se encontrado com Sanzone. O empresário italiano se desculpou por não ter
tido tempo de se encontrar pessoalmente com Francisco Braga, na Europa, mas assegurava
que manteria sua promessa, não só de promover a estréia da Jupyra por ocasião dos festejos do 4º Centenário, no Rio de Janeiro, como convidaria o próprio compositor para
atuar como regente junto à sua Companhia Lírica. Logo em seguida, em junho de 1900,
Francisco Braga vai a Milão, organiza os detalhes da produção e parte de Gênova para o
Rio de Janeiro – a bordo do vapor italiano Duchessa di Genova – a 8 de julho de 1900, juntamente com toda a Companhia Lírica de Sanzone. A chegada ao Rio de Janeiro ocorreu
no dia 25 daquele mês.
Passadas as primeiras semanas de volta à sua cidade natal, Francisco Braga constatou que, por fim, a ópera de Leopoldo Miguez não havia sido de fato preterida em favor
da Jupyra – a comissão dos festejos optou sim por apresentar ambas as óperas – e manda
as primeiras notícias a Buschmann, a 27 de agosto de 1900: “ando como um doido nesta
cidade. Manifestações, jantares, festas etc., mas ainda não consegui organizar as minhas
festas e nem a Jupyra entrou em ensaios, porque o imprezari