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www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 INVESTIGAÇÃO FELINA: NARRAÇÃO E CIRCULAÇÃO DO SABER NO QUARTO EPISÓDIO DE ULISSES, DE JAMES JOYCE Marcio Renato Pinheiro da Silva RESUMO: De um lado, uma instância narradora de caráter onisciente; de outro, a personagem protagonista Leopold Bloom, cujo relato, via discurso indireto livre, começa, gradativamente, a predominar sobre o da instância narradora. Isto, a ponto de esta instância se dissociar de sua função primordial (narrar) na medida mesma em que mais se aproxima daquilo que narra, no caso, da personagem. É partindo desta dialética, entre aproximação e distanciamento, que se estrutura o quarto episódio de Ulisses, do irlandês James Joyce. Dialética, esta, mais significativa conforme se observa que é a instância narradora onisciente aquilo que veicula toda uma série de alusões eruditas, as quais dão, a Ulisses, seu conhecido caráter enciclopédico, enquanto que o uomo qualunque Bloom, extremamente sensível aos estímulos exteriores, analisa aquilo que o circunda por meio de uma espécie de, digamos, sabedoria popular. Logo, a citada dialética se desdobra em um entrecruzamento de saberes distintos porque advindos de diferentes estratos sócioideológicos, no caso, erudição (instância narradora) e prosaísmo (Bloom); logo, a promoção de uma espécie de circulação de distintos saberes por meio, justamente, de sua prévia dissociação — promoção, esta, a cuja ambivalência se dedica este estudo. ABSTRACT: On the one hand, the omniscient narrative instance; on the other hand, the main character Leopold Bloom, whose discourse, through free indirect speech, begins, step by step, to overcome the narrative instance. Thus, this instance gets away from its main function (to narrate) in so far as it gets closer to what it narrates, that is, the character himself. This dialectic between nearness and distance is what structures the fourth episode of Ulysses, by the Irish writer James Joyce. Dialectic which becomes more important if we observe that is the narrative instance that presents all the erudite allusions which gives Ulysses its very known cyclopaedic aspect; Bloom, on the other side, is an ordinary man whose analysis of what surrounds him is based on common sense. Therefore, the dialectic between nearness becomes, also, relative to different sorts of knowledge, descended from different social and ideological levels. So, there is a circulation of different levels of knowledge through, precisely, their previous dissociation; circulation whose ambivalence is analyzed by this paper. PALAVRAS-CHAVE: circulação do saber; narração; Ulisses. KEY WORDS: knowledge circulation; narration; Ulysses. INTRODUÇÃO Dezesseis de Junho de mil e novecentos e quatro: todos os dezoito episódios do romance Ulisses, do irlandês James Joyce, atêm-se, justamente, a este único dia, em especial, à vida de três personagens dublinenses: o professor Stephen Dedalus, o representante de imprensa Leopold Bloom1 e sua esposa, a cantora Molly Bloom. Ainda que relativo a um único dia e a poucas personagens, o romance, por outro lado, www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 empreende tal narração por meio de uma enorme gama de estratagemas a ponto de se converter em uma espécie de mosaico de modos de narrar, absolutamente, sem precedentes na literatura ocidental até então. Mesmo em seus três primeiros episódios, focados em Stephen Dedalus e nos quais se percebe uma certa continuidade dos parâmetros narrativos oitocentistas, há a irrupção de um intensivo uso do discurso indireto livre, sobrepondo, às sentenças da instância narradora, a vida interior de Stephen a ponto de esta, por vezes, predominar.2 De qualquer modo, isto pouco é se comparado àquilo que se dá no decorrer do romance, em especial, à autonomia da linguagem frente ao narrado a ponto de diluir as fronteiras psicossociais e formais por meio das quais se estipula a identidade de uma personagem ou, mesmo, da instância narradora. Certamente que o primeiro ponto de virada da narração é o quarto episódio. Aí, em vez do decadentismo taciturno e ensimesmado de Stephen, protótipo de jovem irlandês (e, de certo modo, europeu) com pretensões literárias de fins do século XIX e começo do XX, entra em cena o judeu Leopold Bloom, uomo qualunque cuja sensibilidade aos estímulos exteriores, somada à sua, digamos, sabedoria popular — ambas tornam o quarto episódio uma espécie de processo de dinamização subjetivoespacial. Englobando desde os aspectos mais elementares, como as necessidades fisiológicas de Bloom e os percalços de sua vida pessoal, passando pela divagação e pela investigação relativas a quaisquer fatores com os quais se depara a personagem (culinária, meteorologia, animais etc.), chegando até a aspectos da vida social, política e histórica de Dublin — o episódio promove uma tal circulação do saber que tanto potencializa quanto prediz muitas das páginas subseqüentes do romance. Usualmente, costuma-se elucidar tal circulação em conjunção com as inumeráveis alusões que se encontram no decorrer de todo o romance; alusões, estas, que, muito além do paralelo com a epopéia homérica, fazem, de Ulisses, um romance, verdadeiramente, enciclopédico — algo afim a em se lendo, tudo dá, tal como o podem atestar alguns estudos do tipo (cf. p. ex., GIFFORD; SEIDMAN, 1989). Entretanto, e tecnicamente? quais são os aspectos narrativos que potencializam esta circulação? qual, seu teor? seus limites? É a tais perguntas que se dedica este estudo. Em tese, o quarto episódio deve esta circulação do saber a Leopold Bloom, a seu interesse por aquilo que o circunda e com que se relaciona. Mas tal interesse, sua enunciação, isto é mediado pela instância narradora, que, não atuando como personagem, ora toma, para si, a narração, ora a concede a Bloom. Assim sendo, qual a lógica subjacente a www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 este encadeamento de vozes na narrativa? quais são seus efeitos e significações? A isto, atém-se o primeiro tópico. Em seguida, interessam as divagações típicas a Bloom à luz da já, então, analisada lógica narrativa do episódio. 1 DEMARCANDO DISTÂNCIAS, TERRITÓRIOS... O Sr. Bloom comia com prazer os órgãos internos de aves e de outros animais. Ele gostava de uma sopa grossa de miúdos de aves, moela com nozes, um coração recheado assado, fatias de fígado fritas à milanesa, ovas de bacalhau tostadas. Mais do que tudo ele gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao seu paladar um sabor refinado de urina ligeiramente perfumada (JOYCE, 2005, p. 64).3 Trata-se do primeiro parágrafo do quarto episódio. Aí, a maneira como a instância narradora apresenta as preferências gastronômicas de Leopold Bloom implica um considerável conhecimento da personagem, de seus gostos e hábitos (“ele gostava”, “mais do que tudo gostava”). Conhecimento, este, arquitetado por meio de uma relativa objetividade, de um relativo distanciamento, dado que, em momento algum, as vozes da instância narradora e da personagem se fundem ou se confundem — mesmo porque só a da primeira é que consta do excerto. Há, aí, portanto, uma certa univocidade narrativa quanto às funções exercidas: cabe, à personagem, a, digamos, atuação; já à instância narradora, seu relato por um viés onisciente. Entretanto, dois parágrafos adiante, já ocorrem, neste quadro algo rígido, alterações significativas: Os carvões estavam avermelhando. Uma outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo. Ela não gostava de seu prato cheio. Tudo bem. Ele deu as costas para a bandeja, levantou a chaleira de ferro da lareira e a pôs do lado no fogo. Ela ficou ali sentada, apática e acocorada, com o bico projetado para fora. Uma xícara de chá logo. Bom. Boca seca (JOYCE, 2005, p. 64-65). O terceiro parágrafo do episódio (o primeiro do trecho acima) presta-se, sobretudo, ao fornecimento de uma referência determinante aos afazeres subseqüentes da personagem, da mesma forma que a quarta e, de certo modo, a quinta sentenças do parágrafo seguinte. No restante do excerto, a fragmentação sintática por meio da qual as ações são enunciadas e avaliadas, bem como preditos alguns de seus fins — tudo mais parece relativo à personagem, à sua vida interior, do que, propriamente, à instância narradora. Assim, de um lado, a instância narradora apresenta as ações da personagem ou as motivações afins, tornando-as inteligíveis; www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 de outro, a própria personagem assume, via discurso indireto livre, a narração. Desta dinâmica, decorre que a instância narradora se esquiva da narração na medida mesma em que mais se aproxima daquilo que narra, no caso, da personagem, a ponto de esta ser assimilada à função primordial daquela. Esta coincidência de funções acaba por se desdobrar em uma coincidência de vozes, em um entrelaçamento que, embora passível de desenlace em boa parte do excerto, não deixa de torná-lo algo ambíguo, sobretudo, se comparado ao primeiro parágrafo do capítulo.4 A propósito, esta diferença em relação ao primeiro parágrafo instaura uma ruptura no, digamos, padrão narrativo projetado no princípio do episódio, indiciando diferentes modulações afins não, apenas, à narração em si,5 bem como à percepção e à inteligibilidade, àquilo que, formal e ideologicamente, implicam. E, logo após o trecho citado, estas diferentes modulações mais se adensam: A gata andou toda esticada com a cauda erguida em volta de uma das pernas da mesa. — Minhau. — Ah, você está aí — disse o Sr. Bloom, se virando de costas para o fogo. A gata respondeu miando e toda esticada se aproximou miando novamente em volta de uma das pernas da mesa. Exatamente do jeito que ela rasteja em cima da minha escrivaninha. Ronron. Coce minha cabeça. Ron (JOYCE, 2005, p. 65). Os três primeiros parágrafos deste excerto demarcam, com clareza, a distância entre as vozes em pauta: a instância narradora, Leopold Bloom e, inusitadamente, a gata. Mas, a partir do quarto parágrafo, todas estas vozes se alternam e, mais, mesclam-se. Se sua primeira sentença pode, facilmente, ser atribuída à instância narradora, a segunda mais parece afim a Bloom, que compara os trejeitos da gata àqueles que ela mesma desempenha quando sobre sua escrivaninha.6 “Ronron” e “ron” são onomatopéias de sons característicos a gatos. Mas “coce minha cabeça” parece, antes, uma solicitação da gata a Bloom. Ou seja, além de seus próprios sons constarem, via onomatopéia, da narração (“minhau”, “ronron”, “ron”), são-lhe atribuídos sentidos. Aí, embora “minhau”, “ronron” e “ron” sejam, todos eles, onomatopéias de sons emitidos pela gata, o primeiro consta da narrativa por meio de discurso direto, a ponto que os outros dois, de indireto livre. Isto acontece, é possível, porque “minhau” é uma das falas do, digamos, diálogo que a gata trava com Bloom; já “ronron” e “ron” são sons que, intercalados a “coce minha cabeça”, como que reiteram esta última sentença, concedendo-lhe sentido. www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 Dado o caráter indireto por meio do qual são fornecidas as duas últimas onomatopéias, bem como o da sentença “coce minha cabeça”, e como tal sentença não é uma fala, propriamente, da gata, mas, antes, uma provável interpretação de seus sons feita por uma outra instância — pode ocorrer que, diferentemente de “minhau”, “ronron” e “ron” não sejam, stricto sensu, sons emitidos pela gata. Em virtude de este ronrom típico aos gatos ser, notavelmente, mais baixo do que seu miado, o fato de ele não constar da narrativa de forma direta, bem como o de reiterar uma sentença, igualmente, não-direta (“coce minha cabeça”) — isso implica que ele bem pode ser percebido, seja em sua potencialidade ou em sua manifestação, na medida mesma em que atribuído à gata. Neste caso, é mais provável que Bloom o perceba conforme o enuncia mentalmente e, em seguida, via discurso indireto livre, ipsis literis. Fosse a instância narradora, a notação se daria, com maior probabilidade, por meio de discurso direto, tal como “minhau”.7 Tal entrelaçamento discursivo entre Bloom e a gata não deixa de ter, guardadas certas proporções, alguma semelhança com o entre a instância narradora e Bloom, sendo aquele viável em razão deste — a instância narradora concede o discurso a Bloom, que o concede à gata, cuja vida interior é enunciada via Bloom, cuja vida interior é enunciada via instância narradora. Este encadeamento diferencia seus elementos constituintes na medida mesma em que os equipara: equiparação porque a instância narradora, Bloom e a gata — todos, de um modo ou de outro, narram; diferenciação porque isto só é possível dadas a organização e a mediação desempenhadas, sobretudo, pela instância narradora. Esta proeminência da instância narradora, a despeito de sua discrição, acaba, também, por diferenciá-la de Bloom e das demais vozes em um outro âmbito, o qual leva a crer que a equiparação citada ocorre para mais salientar a diferença, e não o contrário. Pois, por um lado, a instância narradora, ao se aproximar de Bloom a ponto de lhe conceder a narração, adquire, desta, um certo distanciamento — afinal, em tais momentos, Bloom é, em tese, quem narra, minimizando, consideravelmente, o comprometimento da instância narradora com o relato. Por outro, Bloom tenta o mesmo em relação à gata, mas, aí, diferentemente da instância narradora, em vez de minimizar seu comprometimento, Bloom, pelo contrário, mais se compromete, mais se revela ante aquilo que narra por fazê-lo por um outro que não ele mesmo. De fato, Bloom o faz não por um outro, mas por dois outros: pela instância narradora, a qual lhe concede a narração, e pela gata, cuja provável vida interior ele mimetiza. Nos dois casos, o relato é, todo ele, www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 de responsabilidade de Bloom; nos dois casos, a personagem oferece sua vida interior e sua linguagem, e tudo o que ambas implicam, ao leitor. Por outro lado, nestas ocasiões, a instância narradora não se mostra ou se mostra por um viés negativo, isto é, dá-se a ver, precisamente, ao se ocultar, isto é, menos por si mesma do que pela concessão de sua função primordial a uma outra entidade ficcional, por este gesto em si mesmo. Sim, há uma diferença elementar entre a gata (animal desprovido de linguagem articulada) e Bloom (humano provido de linguagem articulada), fazendo, da vida interior daquela, uma latente atribuição deste. De qualquer maneira, a inviabilidade do distanciamento de Bloom parece ocorrer, antes, em razão de um outro fator. Afinal, fosse um outro ser humano que, com Bloom, interagisse, caso este atribuísse, àquele, um, digamos, discurso interior, o distanciamento de Bloom continuaria impraticável, seu comprometimento e seu desnudamento manter-se-iam.8 Não é, portanto, uma diferença entre espécies (biologicamente falando) aquilo que leva Bloom a uma posição diametralmente oposta à da instância narradora ao praticar o mesmo que esta. É, antes, uma diferença de planos fenomênicos projetados pela diferença de níveis narrativos. Bloom se atém à gata, isto é, a algo que divide, com ele, o mesmo estrato espaciotemporal, o mesmo nível narrativo. Aí, assumir a narração se revela como sendo uma via de assunção e de constituição de seu presente, de construção de si mesmo neste presente e deste para si. Pouco importa se isto se dá por meio da atribuição de vida interior àquilo que o circunda ou não: tal atribuição diz tanto ou mais sobre a personagem do que sobre aquilo que ela mimetiza. Já a instância narradora não ocupa o mesmo estrato espaciotemporal que Bloom por ser de outra natureza: ela não atua, não desempenha ação alguma como personagem, não é, propriamente, um simulacro de ser humano junto à ação; isto tudo lhe possibilita, dentre outras coisas, lidar com o presente da personagem como sendo passado (“o senhor Bloom comia”). É duplo, portanto, o status do distanciamento da instância narradora: nível narrativo e estrato espaciotemporal.9 Daí, é, também, duplo o status da proximidade de Bloom quando assume a narração: a personagem ocupa um estrato espaciotemporal, seu aqui e seu agora, cujo relato cabe a ela mesma, não sendo possível, aí, diferenciar estrato espaciotemporal de nível narrativo na medida em que ambos coincidem. Esta coincidência entre estrato espaciotemporal e nível narrativo no que se refere à narração via discurso indireto livre — isto projeta um outro status à teleologia narrativa. Porque, em tese, à instância narradora, cabe contar uma história, e ela o faz, em geral, tomando o narrado por passado, ou seja, como sendo algo cujos desdobramentos já foram desenvolvidos, o que acaba por elucidar os fins das ações, bem como as www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 implicações, daí, decorrentes (temporais e/ou teleológicas, semânticas, ideológicas etc.). Centrar a narração no presente, no aqui e no agora da personagem, isto minimiza, em muito, as projeções possíveis relativas à ação e a seus desdobramentos, tornando-os mais imediatos e contingentes do que, propriamente, assimiláveis a uma eventual finalidade, a um télos. Mais ainda se esta narração é feita por uma personagem: aí, esta, em vez de parte integrante de um sentido maior, de um fim maior cuja revelação cabe ao percurso traçado pela instância narradora; fim, este, que ultrapassa, que transcende a personagem ao submetê-la a e ao encerrá-la em um destino — boa parte deste teor se refrata em meio ao prosaísmo do presente da personagem, de seu aqui e agora. De certo modo, se, aí, Bloom se vincula a algo que o transcende, a um sentido ou fim últimos, estão são menos da ordem do já dado (porque temporalmente finalizado) do que da de um devir a ser construído, e, isto, a partir do prosaísmo da personagem, de sua cotidianidade, com toda a suscetibilidade, aí, implicada. Isto, para não dizer que o gesto em si de redispor uma eventual teleologia narrativa em termos mais rarefeitos — que isto, por si só, já é uma espécie de sentido ou fim últimos que transcendem a personagem na medida mesma em que a tomam em sua cotidianidade, em seu imediatismo contingente, ou seja, este sentido e este fim sendo relativos, intimamente, à própria cotidianidade, ao próprio imediatismo contingente, a tudo o que, aí, cabe e ao que isto implica.10 Que aqui e que agora são estes? O que Bloom constrói, via discurso, em seu presente e como ele o faz? Em meio aos poucos excertos, até o momento, analisados, vimos que sua vida interior, de um lado, possui um certo pragmatismo vinculado ao cotidiano na medida em que seus afazeres, os quais ele comenta e avalia internamente, têm, todos eles, fins precisos e imediatos; de outro, Bloom parece ser bastante sensível aos estímulos exteriores, dada, por exemplo, a atribuição de vida interior à gata, implicando uma certa benevolência, uma certa capacidade de projeção no outro visando compreendê-lo e identificar-se-lhe, o que, claro, não exclui eventuais fins de instrumentalização. Estes caracteres irrompem em meio àqueles, são momentos em que os procedimentos práticos ascendem a um outro nível, mais subjetivo e/ou afetivo, bem como mais investigativo porque comparativo (“exatamente do jeito que ela rasteja em cima da minha escrivaninha”). Em suma, o pragmatismo de Bloom não inviabiliza a subjetividade, a afetividade ou a investigação; pelo contrário, é como que o elemento desencadeador de todo este processo. São, certamente, traços incipientes, dados os poucos excertos analisados até o momento, mas, ainda assim, pertinentes porque mais e mais www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 explorados no decorrer do episódio. Aí, Bloom confirma e amplia estes traços a ponto de eles se tornarem aquilo que há de mais saliente. E é ao estudo destes fatores, bem como de sua possível conjunção com a instância narradora tal como já predito, que se dedica o próximo tópico. 2 CONTIGÜIDADE REFLEXIVA Consumo de miúdos, preparação de mais desjejum para si e para a esposa, saída em busca de rins, volta para casa e finalização do desjejum em meio a conversas com Molly, evacuação: eis, basicamente, as ações de Bloom no quarto episódio de Ulisses. Entretanto, conforme dito, notáveis são as conjecturas que a personagem traça em meio a seus afazeres, os sentidos atribuídos àquilo com que se depara, bem como o movimento lingüístico-retórico traçado por seus pensamentos, ou seja, a alternância entre contigüidade advinda dos estímulos exteriores e reflexão lógico-indutiva sobre tais estímulos. De todo o episódio, um dos momentos em que Bloom traça uma investigação estrita de maneira mais insistente é, justamente, a respeito de sua gata, cuja aparição já fora contextualizada. Esclarecidas, agora, a lógica narrativa do episódio, bem como algumas de suas implicações, vejamos aquilo que de principal Bloom leva em conta no que se refere a seu animal de estimação, sendo que tais aspectos constam logo após do abordado no capítulo anterior: — Leite para a gatinha — disse ele. — Minhau! — gritou a gata. Eles as chamam tolas. Elas entendem o que dizemos melhor do que nós as entendemos. Ela entende tudo o que quer. Vingativa também. Cruel. A natureza dela. Curioso os camundongos não chiam nunca. Parecem gostar disso. Eu me pergunto o que é que eu pareço para ela. Altura de uma torre? Não, ela pode pular por cima de mim. — Medo dos pintos ela tem — disse ele zombeteiramente. — Medo dos chukchuks. Eu nunca vi uma gatinha tão tola como essa gatinha. — Minhau! — gritou alto a gata (JOYCE, 2005, p. 65). Após mais duas falas do diálogo entre Bloom e a gata, esta se torna o alvo das conjecturas daquele; conjecturas, no caso, que se iniciam por meio da apresentação de um juízo de valor, provavelmente, corrente em relação às gatas, uma espécie de senso comum — “eles as chamam tolas”. De forma não-explícita, Bloom se opõe a tal argumento por pressupor que “elas entendem o que dizemos melhor do que nós as entendemos”, isto é, por sugerir que, em razão de tal capacidade, as gatas não são, necessariamente, tolas. A personagem chega a uma tal conclusão a partir www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 da comparação do animal consigo mesma, ou, mais genericamente, aos seres humanos (“melhor do que nós as entendemos”), categoria da qual, a propósito, Bloom, em princípio, separa-se (“eles”), só se lhe assimilando novamente mediante a redistribuição do saber em jogo, isto é, da correção do juízo a respeito da gata. Esta revisão de Bloom se baseia em algo como o que eu sou/nós somos para ela, reconhecendo a eventual singularidade da percepção do outro, a despeito de uma série de saberes consensuais que, cristalizados socialmente, poderiam levar, de antemão, à desvalorização do animal frente ao humano. Ou seja, para Bloom, tanto ou mais do que os saberes consensuais, vale sua própria observação empírica, a indução desencadeada por estas, ainda que, neste caso, tais dados não sejam fornecidos ipsis literis, mas, apenas, a conclusão à qual o levaram. Mas, em seguida, outros juízos de valor têm sua base empírica algo explicitada. Ao dizer que “ela entende tudo o que quer” e que é “vingativa e cruel”, Bloom sugere que a gata possui uma certa autonomia frente aos demais seres com os quais interage por conta da especificidade de sua volição (“a natureza dela”); volição, aliás, cuja sanção ele, em seguida, justifica — “os camundongos não chiam nunca, parecem gostar”. Este tácito acordo existente entre a gata e os camundongos acresce mais um parâmetro comparativo à investigação sobre a gata: não, apenas, o que eu sou/nós somos para ela, mas, também, o que os outros são para ela. Daí, decorre a consideração dos camundongos como entes distintos da gata, bem como da própria personagem, ou seja, não se trata de uma hierarquização entre animais e humanos, mas de um redimensionamento a partir dos animais entre si e destes frente à personagem em uma escala sem nenhuma valoração prévia a não ser aquela oriunda da observação empírica de Bloom. E a seqüência do excerto traz mais duas relações comparativas baseadas nestes mesmos parâmetros: uma, da gata em relação a Bloom; outra, dela quanto a outros animais. Primeiramente, Bloom se pergunta o que ele “parece para ela”, e, embora cogite ser “da altura de uma torre”, considera a comparação falsa por ela poder “pular sobre ele”. Novamente, trata-se de um o que eu sou/nós somos para ela, ainda que, desta vez, sua hipótese se revele insuficiente, falha. Em seguida, Bloom, por se lembrar do fato de a gata temer aos pintos, chega à conclusão de que “ela é tola”, invertendo, assim, a proposição inicial, segundo a qual as gatas não são tolas em razão de entender aos humanos melhor do que eles as entendem. De fato, Bloom, que, em princípio, mostrara-se cauteloso em relação ao senso comum segundo o qual as gatas são tolas — ele termina por reafirmá-lo. Mas não se trata de uma mera contradição de termos, já que www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 a recorrência a este juízo se dá, para Bloom, por outras razões. Em “eles dizem que elas são tolas”, trata-se de uma avaliação sumária do outro sem que, de início, seja esboçada qualquer tentativa de reconhecimento deste outro, da singularidade de sua percepção e, a partir daí, do teor de sua relação com os humanos. Bloom, pelo contrário, diz que a gata é tola a partir da observação de seu comportamento frente a outros animais, no caso, dos pintos. Ele toma a si mesmo como elemento norteador da avaliação por, provavelmente, considerar os pintos inofensivos, isto é, o contrário do que parecem ser à gata. Mas isto se dá a partir de ambos, Bloom e a gata, em relação a um outro, e não, unicamente, dele em relação a ela. E, ademais, o tom zombeteiro e lúdico que permeia a sentença, ele se presta, antes, à promoção de uma neutralidade frente a uma eventual supervalorização da crueldade e do caráter vingativo atribuídos à gata do que, propriamente, a uma predicação que a encerre categoricamente. Ou seja, de um lado, cruel e vingativa, e, de outro, ingênua e tola — o choque entre estes dois pólos termina por deixar, em aberto, uma palavra final sobre a gata. Havendo algo deste teor, trata-se, antes, de afetividade, de benevolência, uma vez que sua tolice é, de fato, mera ingenuidade. Estes fatores de Bloom, opostos, por exemplo, aos do ensimesmado Stephen Dedalus — isto ocorre, ao que parece, porque, ao ser investigada, a gata é, de certo modo, reconhecida em sua singularidade de ser vivo frente ao humano que a analisa. Bloom não se pergunta, necessariamente, o que ela é para ele, embora, claro, este seja o propósito subjacente a todas as suas conjecturas. Mas a personagem busca por este propósito de forma mais indireta, aberta e complexa, isto é, por meio não de uma simples adequação unívoca dela a seus parâmetros lógico-cognitivos e morais, mas, antes, por meio da adesão hipotética de tais parâmetros por parte da gata, isto é, da experimentação quanto à validade ou não de tais parâmetros para ela. Em suma, à pergunta o que é ela para mim, Bloom sobrepõe o que sou eu para ela e o que é ela para os outros animais, sendo este última sentença articulada a partir de o que eles são para ela. Trata-se de perguntas cujo teor é menos essencialista, as quais implicariam princípios rígidos, perenes e sumários, do que proporcional, servindo-lhe, por base, as relações empiricamente observáveis pela personagem. E, a todas estas perguntas, Bloom tenta respondê-las se valendo de uma estrutura silogística, isto é, da eleição de duas premissas de caráter dedutivo, havendo, em seguida, a inferência de uma conclusão a partir da conjunção entre ambas. E, partidário da proporcionalidade e da indução que é, Bloom se mostra, sempre, aberto à revisão de tais premissas de acordo com os resultados obtidos de sua conjunção, mesmo porque elas são formuladas por meio de indução, e não, necessariamente, tomadas por asserções abstratas e imutáveis. Senão, vejamos a www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 transposição hipotética das quatro proporcionalidades vistas até o momento a uma estrutura silogística:11 1.A) as gatas são tolas; 1.B) os tolos não entendem; 1.C) se as gatas nos entendem melhor do que nós as entendemos, nós, humanos, somos mais tolos do que elas; 2.A) a gata é cruel e vingativa; 2.B) os camundongos não reclamam; parecem, até, gostar; 2.C) logo, parece haver uma espécie de acordo natural entre ambos, sendo o juízo sobre a natureza da gata algo impertinente no que se refere aos camundongos e, por extensão, é relativo que se lhe considere cruel; 3.A) eu, para ela, tenho a altura de uma torre; 3.B) uma torre não é algo sobre o qual se pode saltar; 3.C) se ela pode saltar sobre mim, eu não tenho, para ela, a altura de uma torre; 4.A) a gata teme aos pintos; 4.B) os pintos são inofensivos; 4.C) logo, a gata é ingênua, visto que não há razão para temê-los. Bloom empreende suas conjecturas não por meio de uma mera aleatoriedade associativa, mas, sim, com um certo rigor, com um certo método, no caso, a elaboração de premissas a partir de sua observação indutiva e empírica, havendo, em seguida, uma espécie de prova destas premissas. Em razão deste empirismo indutivo, suas divagações se prestam ao papel de ferramenta à compreensão do outro, e não ao encerramento deste em um invólucro autotélico e autofágico, isto é, em um sistema de hierarquias em relação ao qual o outro é julgado conforme se lhe adéqua ou não. Daí, um certo frescor destas conjecturas, visto promoverem alguma desautomatização da percepção por meio de dados inusitados porque, justamente, observáveis junto à vida mais chã da personagem. Não se trata, frise-se, de uma pura circulação sem qualquer ponto referencial ou de atração. Conforme dito, o provável propósito das conjecturas de Bloom a respeito da gata é a pergunta o que ela é para mim. Isto, por si só, já confere certa especificidade à circulação em pauta. Verdade que, se tal pergunta se aplica a um ente, absolutamente, comum à personagem, a maneira por meio da qual Bloom busca respondê-las, suas divagações — elas ascendem a um nível de relativa abstração. Mas, em vez da demarcação de um campo especulativo cuja legitimação seria sua aplicabilidade a uma maior gama de fenômenos, estas abstrações retornam, sempre, ao objeto específico que as desencadeiam. Prova disto é a sentença “eu nunca vi uma gatinha tão tola como essa gatinha”: aí, além da evidente singularidade da gata em questão, há todo um teor www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 afetivo em jogo, isto é, a singularidade, também, do vínculo entre Bloom e ela. Lembrando que toda esta narração da personagem se encadeia a sentenças da instância narradora, notável que, de um lado, o relativo distanciamento desta instância frente ao discurso interior de Bloom oblitere qualquer margem de sanção (lógica, moral etc.) daquela às elucubrações deste; notável, em suma, que não haja nenhuma predeterminação afim arquitetada pelo entrecruzamento de vozes na narração. Mas, por outro lado, há, sim, uma tácita sanção em jogo, a ser percebida nesta divisão em si mesma, bem como no distanciamento que ela engendra entre instância narradora e personagem. Vejamos. CONTRAPONTO E FUGA Em que medida a sofisticada e, por vezes, ostensiva erudição de Ulisses (cf. p. ex., GIFFORD; SEIDMAN, 1989), em vez de oposta às investigações prosaicas de Bloom, não encontra, nestas, um dos fatores que a potencializam? Isto porque, ao cabo, ambas atuam visando à mobilização e à circulação de diversos saberes, sendo a diferença de estratos sócioculturais dos quais advém (prosaísmo e erudição) um possível fator de complementaridade. Mas, sendo o caso, o romance trata de turvar as fronteiras entre tais estratos, precisamente, por endossá-las, ou seja, por empreender uma divisão categórica em seu bojo: cabe, a Bloom, o prosaísmo; à instância narradora (ou a outras personagens, como a Dedalus), a erudição.12 O próprio manejo, no quarto episódio, de diferentes modos de narrar visa, dentre outras coisas, à forjadura do distanciamento entre a instância narradora e Bloom, isto é, à demarcação mesma desta divisão. Por ser afim a saberes historicamente institucionalizados, esta divisão de vozes na narrativa e de estratos culturais deriva, possivelmente, de uma divisão de classes.13 Seu entrecruzamento, ou seja, a transgressão de tais limites ou, até, sua eventual abolição, trata-se de algo que o episódio encena na medida mesma em que a seus limites. Pois, como visto, se os dois pólos concorrem a uma certa complementaridade entre si, a assunção de sua distinção é, precisamente, a base deste processo. Afinal, só se pode considerar que a narração empreende um certo entrecruzamento de vozes (e de saberes, e de classes) caso, em princípio, for estabelecida uma distinção entre elas. E isto, já se sabe, é feito desde o princípio, e categoricamente. www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 O caráter naïf das conjecturas de Bloom, a despeito da erudição residual afim à estrutura silogística, seria o atestado mesmo de sua exclusão, de sua marginalidade, dadas as classes de saber projetadas pela narrativa (prosaísmo e erudição). Mas, para ele, em vez de mácula ou trauma, isto, antes, é a instauração à viabilidade de especulações de todo e qualquer tipo. Neste sentido, a narração de seu aqui e de seu agora dinamizam este propósito, viabilizando a construção de sua subjetividade por uma outra via, aquém ou além daquela que, compulsória e, em certos casos, ideologicamente, recai sobre ele.14 Daí, até, sua benevolência e interesse quanto àquilo que o circunda, mesmo àquilo que, em princípio, possa ser indigno de tamanha atenção, bem como o caráter inusitado de suas conjecturas e das inexoráveis divisões, daí, decorrentes. Vimos que a narração do aqui e do agora de Bloom refrata uma eventual teleologia traçada pela narrativa, o encarceramento das personagens em um destino, em uma palavra final ou sentido último do qual elas, e aquilo que lhes é afim, seriam meros fatores reiterativos. Vimos, também, que isto é mais da ordem do devir do que do já dado (porque temporalmente finalizado). Vimos, ainda, que isto tudo pode ser relativo à contingência mesma projetada pela narrativa. Se, em suma, isto tudo é pertinente, a encenação da abolição dos compartimentos nos quais se encerram os saberes, bem como quaisquer outras formas de divisão, por meio destes próprios compartimentos/divisões, trata-se de algo que o quarto episódio frustra na medida mesma em que o promete, em que o instaura como possibilidade não-unívoca, ambivalente, irresoluta. Dizendo de outro modo, o que parece estar em jogo não é, necessariamente, uma resposta categórica às questões (formais, sociais, políticas, históricas etc.) suscitadas pelo episódio, mas, antes, sua proposição como pergunta, como potencialidade cuja atualização não deixa de ser esta potencialidade em si mesma. Isto porque o episódio instaura os limites daquilo mesmo que ele propõe ao, justamente, propôlo a partir de tais limites. Trata-se de uma, digamos, dialética refrativa em razão de sua estruturação já ser, em si, uma síntese de elementos (vozes ou saberes) algo distintos; elementos, estes, cuja origem, vinculada a divisões sociopolíticas, históricas e, mesmo, formais algo cristalizadas porque, ademais, adotadas no próprio bojo da narração — eis algo que dá, à formulação do episódio, um caráter sintético ao mesmo tempo em que problematiza tal caráter ou em que, em certos aspectos, inviabilizao.15 Ou, pelo contrário, o episódio seria o atestado mesmo do devir de outras formas de divisão (de saberes, de classes); devir segundo o qual é possível tomar tais divisões tal como, usualmente, atuam em termos www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 históricos, políticos, sociais, ideológicos e formais e, a partir daí, redispôlas não mais como elementos contrários entre si, mas, antes, complementares? e tal complementaridade, ainda que não dizimasse os efeitos excludentes de tais divisões, trataria de neutralizar parte deles? Sendo o caso, uma vez que este devir é relativo à vida interior de Bloom, e não a um projeto partilhado pelas demais instâncias ficcionais — eis, aí, os limites de sua eventual praticabilidade categórica. Em suma, se o quarto episódio de Ulisses incita a uma revisão da circulação dos saberes que mobiliza, bem como dos demais fatores, aí, subjacentes, ele o faz sem, contudo, obliterar o enraizamento da usual dinâmica sócio-histórica à qual tais saberes estão vinculados. Mais precisamente, ao se valer deste enraizamento em sua própria lógica narrativa, o episódio não deixa de praticar, parafraseando uma célebre frase de Dedalus, uma tentativa de despertar do pesadelo da história, ou, melhor ainda, despertar o próprio pesadelo para, então, tentar despertar dele... Bloom, talvez, seja aquele que desperta (d)a história como pesadelo para instituí-la como realidade complexa cuja ambivalência dá vazão a um jogo de sobrevivência simbólica tanto lúdico quanto lúcido. Ou seja, Bloom supera o caráter, em geral, trágico da distância entre consciência e condição ao tomá-la menos como fator de predestinação do que como espaço propício ao jogo; jogo dentre cujas peças estão os liames de seu status de sujeito sócio-histórico; jogo dentre cujas regras está, certamente, a consciência de seus próprios limites. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GIFFORD, Don; SEIDMAN, Robert J. Ulysses annotated: notes for James Joyce’s “Ulysses”. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 1989. JOYCE, James. Ulysses. Harmondsworth: Penguin, 1992. ______. Ulisses. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 NOTAS: Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José do Rio Preto (SP), e Professor Colaborador de Estudos Literários do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). 1 Delicado um termo que precise a profissão de Leopold Bloom. Opta-se por representante de imprensa na medida em que a função da personagem é obter anúncios a serem veiculados pelo jornal para o qual trabalha. 2 Esta técnica, chamada, usualmente, de monólogo interior, é um dos fatores pelos quais mais se notabilizou Ulisses. Exemplar disto é, certamente, seu décimo oitavo episódio, narrado, inteiramente, por Molly Bloom, sem haver intervenção alguma da instância narradora, bem como mimetizando, via desarticulação sintática, o fluxo do discurso interno da personagem. Contudo, no que se refere aos três episódios iniciais, bem como ao quarto (objeto de análise deste estudo), opta-se por não adotar tal nomenclatura na medida em que, como veremos, as sentenças da instância narradora se encadeiam, notadamente, às das personagens, sendo a denominação discurso indireto livre mais precisa por, justamente, prever tal encadeamento. 3 Utiliza-se, aqui, a recente tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, em cotejo com o original em inglês (JOYCE, 1992). 4 Curiosamente, a maior subjetividade, oriunda da vida interior da personagem, acaba, também, por incidir sobre a própria instância narradora, dada a personificação da chaleira na quinta sentença do quarto parágrafo (“sentada, apática e acocorada”) — personificação, esta, que se pode, quiçá, atribuir, igualmente, à personagem, a despeito da sintaxe não-fragmentada típica à instância narradora. 5 Esta variação, ao que parece, vincula-se mais à instância narradora do que, propriamente, à personagem, pois não há, em princípio, nenhuma alteração significativa no teor daquilo que a personagem faz, do que, a ela, ocorre, de com quem ela interage ou de onde ela se encontra. A instância narradora demonstra, assim, certa independência em relação àquilo que narra, já que a ação não é a motivação (ou não é a única motivação) à sua suscetibilidade. Trata-se de algo que, no decorrer do romance, será explorado ostensivamente. 6 Uma outra hipótese, possível apesar de algo problemática, seria a atribuição desta segunda sentença à instância narradora. “Minha escrivaninha”, o local sobre o qual se escreve, sobre o qual se desenvolve a escrita, logo, algo afim àquela(a) que escreve, no caso, à instância narradora. O termo “ela” implica que não se trata de uma outra gata, mas, sim, da mesma que se encontra junto a Bloom. Isto, de um lado, mina a univocidade de uma tal assimilação, mas, de outro, abre espaço a uma espécie de projeção da instância narradora sobre a cena romanesca, sobre Bloom e sobre aquilo que lhe é afim. Não se trata de algo, propriamente, estranho à intersecção de vozes e de modos narrativos, até o momento, abordados. 7 De todo o abordado até o momento, torna-se possível abstrair uma espécie de padrão narrativo, o qual será, a propósito, utilizado em todo o episódio: a) predomina, substancialmente, o discurso indireto livre afim a Leopold Bloom; b) a despeito desta predominância, a instância narradora assume, também, a narração em diversas passagens; assunção, esta, de ordem estratégica, centrada naquilo que é exterior à personagem, em suas falas não-interiores e em demais aspectos não-internos (falas das demais personagens, sons e demais dados referenciais, como, por exemplo, “os carvões estavam avermelhando”), de modo, justamente, a conferir inteligibilidade à vida interior de Bloom. Lembrando, ainda, o primeiro parágrafo do episódio, seus traços oitocentistas, pautados na onisciência quanto à personagem, bem como na descrição algo pormenorizada e supostamente neutra e distanciada da ação — muito se pode atribuir a tais traços. De um lado, podem ser um elemento constitutivo de uma espécie de mosaico www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006 relativo a distintos estratagemas narrativos, do qual Ulisses é, certamente, exemplar, bem como um resíduo dos capítulos anteriores, mais “tradicionais”. De outro, no que se refere ao quarto episódio especificamente, podem ser compreendidos como sendo um procedimento que, apesar de não-predominante e de minimizado conforme decorre a ação, possui uma certa funcionalidade; esta, no caso, relativa ao item “b”. 8 Excetuando, obviamente, casos em que, como ocorre a Bloom, o discurso interior de uma outra personagem humana adviesse dela própria a partir da mediação efetuada pela instância narradora. 9 Sim, este distanciamento da instância narradora é, também, relativo ao espaço na medida em que sua condição de não-personagem implica um posicionamento espacial dúbio no que se refere à ação. 10 Trata-se, de um lado, de um dos fatores que mais auxiliam Ulisses na narração de um único dia; de outro, de um dos aspectos mais tensos na relação do romance com a epopéia homérica. 11 “A” e “B” se referem às duas premissas, e “C”, à conclusão inferida a partir da sobreposição destas. Já os números se referem às quatro relações proporcionais feitas por Bloom. 12 Ainda que, visivelmente, constrangido e descontente em sua profissão, tanto que almeja a uma carreira literária — o fato de ser professor vincula Stephen ao mesmo estrato sócio-cultural relativo à erudição. 13 Possivelmente, pode tratar-se, também, de uma divisão cultural-religiosa, visto que Bloom é um judeu em um país que viveu e vive um conflito, muitas vezes, violento entre duas facções cristãs, o catolicismo e o protestantismo. Seria duplo, portanto, o status da marginalidade de Bloom. 14 Por exemplo, a de trabalhador (não-empregador) judeu (não-cristão) desprovido de maiores saberes eruditos etc. 15 Pode-se perguntar se o decorrer do romance, a radicalização das experimentações retórico-lingüísticas frente ao narrado a ponto de diluir as fronteiras psicossociais e formais por meio das quais se estipula a identidade de uma personagem ou, até, da instância narradora — se isto não é uma maneira mais radical de se lidar com este mesmo impasse. Neste caso, talvez, a abolição de tais compartimentos ou divisões seja realizada de maneira categórica porque por meio de sua anulação sumária. O romance, então, empreenderia uma espécie de pura circulação ao preço da perda de uma série de parâmetros que, por mais que frustrem a, digamos, utopia em jogo, são, por outro lado, precisamente, aquilo viabiliza sua formulação. Ou estes parâmetros, ainda assim, permaneceriam na medida em que sua destruição só seria atestada efetivamente mediante a tentativa (ou a execução) de sua reconstrução projetiva?