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Panóptica
Ed. 13 (2008)
Reconciliando os irreconciliáveis: Globalização Neoliberal e
Direitos Humanos
Paul O’Connell*
Tradução
Bruno Costa Teixeira
1. Introdução
Neste artigo pretendo desenvolver e defender, de forma tão direta quanto possível, o
argumento de que a proteção aos direitos fundamentais não pode ser comprometida
e, ao mesmo tempo, deve-se olhar de forma crítica o atualmente dominante modelo
de globalização,1 que chamarei aqui de globalização neoliberal. Meu argumento é no
sentido de que os defensores dos direitos humanos (sejam eles universitários,
militantes populares ou membros de órgãos oficiais de proteção) devem ter uma
postura firme diante das ortodoxias predominantes, a fim de que possam enraizar,
com antecedência, uma verdadeira cultura de proteção aos direitos humanos. Na
primeira parte deste artigo, destaco os contornos daquilo que considero um discurso
dominante e emergente sobre a relação entre direitos humanos e globalização.
Posteriormente, comentarei que esta narrativa foi mal-entendida, ou melhor, falhou
ao interrogar inadequadamente o processo de globalização, e, por fim, ofereço uma
*
LL.B. (Trinity College Dublin), LL.M. (NUI Galway). Lecturer in Law, National University of Ireland,
Galway. Este artigo é baseado no texto originalmente produzido para a Conferência Social de Justiça
e Direitos Humanos na Era da Globalização, ocorrida em Leuven, Belgium em 21-23 de Agosto de
2006 e enriquecida com os comentários de participantes da referida conferência, para os quais
dedico minha gratidão. Antes da conferência, versões anteriores do presente documento foram
beneficiadas pela ajuda dos comentários de Geraldine O'Connell e Padraic Kenna e, posteriormente,
um primeiro rascunho do presente artigo foi beneficiado com a ajuda de dois colaboradores anônimos
da Human Rights Law Review, em relação aos quais o autor também deseja manifestar o seu
agradecimento. Evidentemente que a responsabilidade por quaisquer erros ou deficiências do texto é
do autor.
1
Não obstante o onipresente uso do termo, ainda existe uma significativa incerteza e debate sobre a
gênese precisa, a natureza e o conteúdo do processo designado por 'globalização'. Veja, por
exemplo, Scholte, Globalization: A Critical Introduction (London: Palgrave Macmillan, 2000) at 1-111;
Mittelman, The Globalization Syndrome: Transformation and Resistance (New Jersey: Princeton
University Press, 2000) at 3-31; Held e McGrew, Globalization/Anti-Globalization (Cambridge: Polity
Press, 2002); Amin, Capitalism in the Age of Globalization: The Management of Contemporary
Society (London: Zed Books, 1997); Kirby, Vulnerability and Violence: The Impact of Globalisation
(London: Pluto Press, 2006) at 77-84; Tabb, Economic Governance in the Age of Globalization (New
York: Columbia University Press, 2005) at 39-68; Sjolander, ‘The Rhetoric of Globalization: What’s in
a Wor(l)d?’, (1996) 51 International Journal 603; Sassoon, ‘Globalisation, Hegemony and Passive
Revolution’, (2001) 6 New Political Economy 5; e Weisbrot, ‘Globalization for Whom?’, (1998) 31
Cornell International Law Journal 631. Com efeito, o desacordo é de tal ordem que Scholte comentou
que 'o único consenso sobre a globalização é que não há consenso', ibid. at 39.
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alternativa a este processo, com uma conseqüente discussão acerca da relação
entre os direitos humanos e a globalização.
À medida que estabeleço minha compreensão do modelo atual e dominante do
processo de globalização, quer dizer, a globalização neoliberal, afirmo que esta
forma de globalização é intrinsecamente incompatível com a defesa dos direitos
humanos. Com o intuito de fundamentar esta proposição que proponho para lidar
com o antagonismo entre a globalização neoliberal e os direitos humanos proponho
duas distintas, embora intimamente relacionadas, áreas, a saber: a tensão entre a
globalização neoliberal e os direitos humanos no campo teórico e, o real e negativo
impacto de tal globalização sobre aqueles direitos, na prática. No que tange ao
aspecto teórico devo me concentrar em duas críticas no sentido de que a
globalização neoliberal e os direitos humanos são incompatíveis, nomeadamente, o
conflito ético ou ideológico (ou, na verdade, ontológico) entre as premissas de cada
um e os diferentes papéis que cada um atribui ao Estado.
No que se refere ao conflito entre globalização neoliberal e direitos humanos no
campo empírico e com o objetivo de reforçar meu argumento supramencionado,
utilizo como recurso os trabalhos de três Relatores Especiais das Nações Unidas, no
domínio dos direitos fundamentais: educação, saúde e habitação. Nos últimos anos,
os relatórios produzidos pelos funcionários provenientes de cargos de cada uma
destas áreas indicadas têm indicado uma irredutível tensão entre o modelo
dominante da globalização e a proteção dos direitos humanos. A partir da análise
destes relatórios, pode-se chegar à conclusão de que a tensão entre teóricos da
globalização neoliberal e dos direitos humanos também é manifestada no 'mundo
real'. Após ter demonstrado as incompatibilidades entre os dois elementos aqui
tratados, devo continuar a defender que todos os defensores dos direitos humanos
são confrontados com uma escolha (e não é uma escolha fácil, mas necessária):
aceitar o atual processo global que é intrinsecamente incompatível com o que
defendem, ou utilizar os direitos humanos enquanto paradigma para superar o
desafio presente, e reformar o modelo de globalização contemporâneo.
2. O Padrão Narrativo
Embora acadêmicos de Direito, incluindo os professores universitários
especialmente envolvidos com direitos humanos, 'chegaram um pouco tarde para o
debate acerca da globalização’,2 podem, discernir a emergente ortodoxia neoliberal
da forma como advogados das Nações Unidas abordaram a relação entre direitos
humanos e globalização. Neste ponto, gostaria de pormenorizar a referida e
incipiente ortodoxia e destacar duas principais lacunas dentro do presente padrão de
narrativa. Primeiro, e talvez o mais importante, é o 'prejudicado' modo com o qual
comentaristas abordaram o conceito de globalização em si, tendo em vista que não
assumiram o labor de encarar o conceito de forma geral, mas somente enquanto
algo apolítico e natural.3 Segundo, que é provavelmente conseqüência do primeiro, é
2
Anderson, Constitutional Rights After Globalization (Oxford: Hart Publishing, 2005) at 1.
Esta deficiência presente no convencional discurso sobre globalização e direitos humanos foi, sem
dúvida, assinalada por Alston (mesmo que no contexto mais geral da relação entre globalização do
direito internacional) quando ele escreveu sobre o fracasso de comentadores desse processo. Alston,
3
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a tendência para aceitar a ortodoxia do modelo neoliberal sobre a relação entre
direitos humanos e globalização. Ambas as temáticas serão destacadas e
exploradas neste artigo.
Um exemplo extremo da primeira lacuna pode ser encontrado em um documento
produzido por uma antiga Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, Mary Robinson, quem inexplicavelmente utiliza o termo "globalização" em
10 ocasiões, sem explicar ao menos uma vez o que entende pelo termo.4 De
maneira cômoda, contudo, comentou algo em torno da concepção de
McCorquodale, que, por sua vez, reflete um denominador comum a respeito do tema
– no sentido de que ‘Globalização […] é essencialmente um processo político,
econômico, social e de relações culturais, não restrito aos limites territoriais de
Estado algum e no qual nenhum Estado ou entidade deixa de ser afetado por
influências externas ao seu controle interno’5 – antes de passar a discutir a relação
entre globalização e direitos humanos, sob o pressuposto implícito de que a
definição supra é suficiente para esclarecer os termos do debate.6
Recentemente, um exemplo flagrante desta abordagem da globalização tem sido
apresentada por estudiosos dos direitos humanos tais como Rhoda HowardHassmann.7 Para Howard-Hassmann as forças da globalização não são passíveis
de qualquer freio e as mudanças que elas vão gerar, dentro dos - e entre - Estados é
inevitável. Por conseguinte, o debate em torno do fato de que as alterações forjadas
pela globalização serão boas ou ruins é irrelevante.8 O ponto de vista de HowardHassmann acerca da globalização é um exemplo dos arquétipos prejudicados de
abordagem do tema, porque afirma, pelo menos de forma implícita, que é inviável
trabalhar fora das forças da natureza; este é o discurso dominante que está
surgindo.9 O problema desta abordagem é que ela omite o fato de que a
globalização não é um fenômeno natural, neutro, mas sim um 'contingente processo
histórico'.10 Além disso, as limitações da abordagem acerca da exata natureza e das
‘The Myopia of the Handmaidens: International Lawyers and Globalization’, (1997) 3 European
Journal of International Law 435.
4
Robinson, ‘Shaping Globalization: The Role of Human Rights’, (2003) 97 American Society of
International Law Proceedings 1.
5
McCorquodale, ‘Secrets and Lies: Economic Globalisation and Women’s Human Rights’, (1998) 19
Australian Yearbook of International Law 73 at 73-4. Dizer que esta é uma abordagem a partir de um
denominador comum, significa ter adotado a menos controversa compreensão da globalização, sem
melhor analisar o conceito. Veja Tabb, supra n.1 at 41, acerca das abordagens do conceito de
globalização.
6
Outros exemplos podem ser encontrados em, inter alia, McCorquodale e Fairbrother, ‘Globalization
and Human Rights’, (1999) 21 Human Rights Quarterly 735; Dunoff, ‘Does Globalization Advance
Human Rights?’, (1999) 25 Brooklyn Journal of International Law 125; e Henkin, ‘That “S” Word:
Sovereignty, and Globalization, and Human Rights, Et Cetera’, (1999) 68 Fordham Law Review 1.
7
Howard-Hassmann, ‘The Second Great Transformation: Human Rights Leapfrogging in the Era of
Globalization’, (2005) 27 Human Rights Quarterly 1.
8
Ibid. at 3.
9
It Deve ser dito também que existem notáveis exceções a esta regra geral; ver, por exemplo: Pollis,
‘Human Rights and Globalization’, (2004) 3 Journal of Human Rights 343; Thomas, ‘International and
Financial Institutions and Social and Economic Human Rights: An Exploration’, in Evans (ed.), Human
Rights Fifty Years On: A Reappraisal (Manchester: Manchester University Press, 1998) 161; e Evans,
The Politics of Human Rights: A Global Perspective, 2nd edn (London: Pluto Press, 2005). Estas
exceções são notáveis na medida em que são exceções à regra geral.
10
Held e McGrew, supra n.1 at 126.
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causas da globalização conduzem os agentes sociais, em geral, a conclusões e
prescrições políticas pouco satisfatórias.
A segunda lacuna está na emergente narrativa padrão que é derivada quase
diretamente da primeira. Isto acontece em razão da incapacidade de manter um
debate sério acerca do conceito - e do processo - de globalização, de modo que os
comentaristas desta temática tendem a adotar, explícita ou implicitamente, a
ortodoxia neoliberal no que se refere aos direitos humanos. Ademais, a ortodoxia
neoliberal no que tange aos direitos humanos assume a lógica da expansão do
capitalismo baseado na regra do 'laissez-faire', com o pretexto de que haverá
conseqüente melhora global no que se refere à seguridade social e ao bem-estar,
além de, supostamente, apresentar uma proteção aos direitos humanos, não
obstante o fato de que, conforme observa Thomas11, não há provas concretas para
justificar isso.12 Assim sendo, diante da falta de coragem no sentido de abordar a
natureza real da globalização, o discurso convencional acabou por adotar a
ortodoxia neoliberal, dirigindo-se aos líderes da economia global, com o escopo de
legitimar as políticas por eles implementadas.13
Por exemplo, McCorquodale, que é, geralmente, contrário à existência de qualquer
impacto da globalização sobre os direitos humanos, já afirmou que a reforma das
agências especializadas, como o Banco Mundial, poderá fazer com que tais órgãos
virem 'grandes forças para a proteção dos direitos humanos’;14 de modo a ignorar o
fato de que essas instituições estão, na verdade, empenhadas em servir aos
interesses das elites econômicas e tendem, em geral, a ‘compreender o mundo por
meio de óculos de cor neoliberal’.15 Do mesmo modo, Robinson foi convidado pelo
Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e por instituições
financeiras, bem como pelo presidente dos Estados Unidos da América, para ajudar
na construção de um processo de globalização mais ético e humano,16 ignorando-se
que o papel fundamental destas instituições e do governo dos EUA, ao serviço das
elites econômicas globais, tem sido manter a ordem neoliberal mundial.17
Ademais, a abordagem de Howard-Hassmann é a mais enfeitada. Depois de aceitar
a inevitabilidade do processo de globalização, conforme atualmente constituída, ela
passa a argumentar que, enquanto o declínio do capitalismo global poderia resultar
em 'numerosos custos de curto prazo',18 certamente a ‘globalização pode criar muito
bem um mundo de maior prosperidade, de respeito à democracia e aos direitos
humanos' no médio e no curto prazo.19 É preciso dizer que Howard-Hassmann
oferece pouca ou nenhuma evidência de apoio a esta alegação, além de uma
analogia entre as mudanças econômicas em curso, numa escala global, e da
anacrônica transição do feudalismo para o sistema capitalista de produção, na
11
Evans, supra n. 9 at 4-5.
Thomas, supra n. 9 at 164.
13
Mais questões serão tratadas no que diz respeito às instituições e aos sujeitos ativos que
conduziram a globalização neoliberal em um ponto seguinte deste trabalho; veja o tópico 3 infra.
14
McCorquodale, supra n. 5 at 83.
15
Thomas, supra n. 9 at 166.
16
Robinson, supra n. 4 at 9.
17
See Tabb, supra n. 1 at 41-2.
18
Howard-Hassmann, supra n. 7 at 4.
19
Ibid. at 5.
12
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Europa de séculos atrás20. E, movida pela sua evidente fé no sistema, acaba por
acreditar que este é sinônimo de democracia e de respeito aos direitos humanos.21
Em última instância, Howard-Hassmann está equivocada sobre o ponto que aborda,
mas, mesmo assim, argumenta que o resultado das interações entre a globalização
e direitos humanos não pode, nesta fase, ser previsto com certeza.22 Não obstante
tais equívocos, seu artigo prevê uma valorização implícita da ortodoxia neoliberal
sobre a globalização e os direitos humanos.
O fracasso da maior parte dos discursos convencionais sobre globalização e direitos
humanos, especialmente no que se refere ao conceito de globalização, tem deixado
a literatura desta temática, de um modo geral, em estado insatisfatório. Na falta de
um diálogo capaz de compreender de forma crítica o processo de globalização,
especialistas no assunto não perceberam que 'as causas de muitas violações dos
direitos humanos podem ser encontradas nas estruturas da economia política global,
bem como nos interesses que estas estruturas apóiam’.23 Esse discurso prejudicado
também resulta em uma preocupante situação na qual os defensores dos direitos
humanos acabam por direcionar suas políticas de proteção com base nas atitudes
de grandes violadores dos direitos humanos, no sentido de somente evitar a
repetição das violações históricas.24 No próximo tópico deste artigo, apresentarei
meu entendimento acerca da globalização e, em seguida, usarei tal entendimento
enquanto prisma por meio do qual apresentarei a perspectiva da relação entre
globalização e direitos humanos. Um dos meus principais objetivos neste projeto é o
de recuperar os marginalizados discursos de política de direitos humanos, a fim de
contribuir para a proteção e realização destes, na ordem global atual e futura.
3. Uma Tipologia da Globalização
Neste ponto articularei um entendimento concreto sobre a globalização, para depois
poder enquadrá-lo na discussão do impacto da globalização sobre os direitos
humanos. Tenho a honra de propor a adoção de uma tipologia originalmente
articulada por Richard Falk. De acordo com Falk, a globalização pode ser entendida
como um duplo movimento: por um lado a globalização é impulsionada por cima,
pelos Estados dominantes, pelos agentes econômicos e por instituições
internacionais (IEAIs), pelas elites econômicas e políticas as quais os demais
servem e, simultaneamente, a partir de baixo, pela ampla participação em nível
local, por parte de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e outras
organizações internacionais conscientes e comprometidas com a proteção dos
20
Ibid. at 5-8.
Ibid. at 11 e 24. Sobre o conflito de visões acerca da relação entre capitalismo e democracia (e, por
analogia entre capitalismo e direitos humanos) ver Wood, Democracy Against Capitalism: Renewing
Historical Materialism (Cambridge: Cambridge University Press, 1995).
22
Howard-Hassmann, ibid. at 39-40.
23
Evans, supra n. 9 at 14.
24
Agentes econômicos mundiais, como o Banco Mundial e o FMI, têm sido as principais raízes do
desrespeito aos direitos humanos. Para obter exemplos concretos da ação dos agentes econômicos
internacionais e as instituições políticas no sentido de minar a proteção dos direitos humanos, ver
Conklin e Davidson, ‘The IMF and Economic and Social Human Rights: A Case Study of Argentina,
1958-1985’, (1986) 8 Human Rights Quarterly 227; e Gloyd, ‘Sapping the Poor: The Impact of
Structural Adjustment Programs’, in Fort et. al. (eds), Sickness and Wealth: The Corporate Assault on
Global Health (Cambridge: MA, South End Press, 2004) 43.
21
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direitos humanos.25 Com esta tipologia, gostaria de acrescentar que a globalização
vinda de cima, quer dizer, aquela que chamei de globalização neoliberal, é a forma
dominante na nossa era, e ‘influencia a vida de milhões de pessoas em todos os
continentes’, por uma multiplicidade de formas,26 enquanto que a globalização vinda
de baixo é, principalmente, embora não exclusivamente, voltada para a rejeição da
forma dominante da globalização e para uma alternativa global mais humana.
A. Globalização Neoliberal
Não obstante o fato de que há ainda a necessidade de um debate importante sobre
a natureza e as origens da globalização,27 o meu argumento aqui é no sentido de
que é admissível, na verdade positivamente necessário, a adoção definitiva da
compreensão da globalização, de forma a aperfeiçoar sua abordagem no que se
refere à questão da relação entre globalização e direitos humanos. O ponto de
partida para a compreensão da globalização estabelecida aqui é a rejeição da
tendência para a reificação da globalização e a consciência de um aviso explícito:
'as novas formações sociais que emergem, na rubrica da globalização não são um
fenômeno natural'.28 Neste sentido, então, gostaria de evitar o discurso de que
‘globalização é um processo sem causa’,29 ou sem um agente ativo. Em vez disso,
defendo que a globalização tem sido moldada pela ação humana consciente, a fim
de servir a interesses específicos.
Adamantia Pollis resumiu a essência da globalização como sendo ‘um fenômeno
multinivelado, atualmente sustentado pela ideologia do neoliberalismo’.30 O
argumento central é no sentido de que a influência neoliberal é, de fato, o elemento
definitivo no processo multidimensional vulgarmente chamado de globalização.31
Este processo é percebido por Tabb quando ele observa que durante toda a era da
globalização contemporânea
uma posição ideologicamente dominante sempre esteve na ordem do dia
no mercado neoliberal (lembre-se do Consenso de Washington). Isto
porque apelam à liberalização comercial e financeira, à privatização e à
desregulamentação, à abertura ao investimento direto estrangeiro, com
uma taxa de câmbio competitiva, com uma disciplina fiscal e redução dos
impostos e das empresas do Governo.32
25
Ver Falk, ‘The Making of Global Citizenship’, in Brecher et. al. (eds), Global Visions: Beyond the
New World Order (Boston: South End Press, 1993) 39.
26
Saad-Filho e Johnston, ‘Introduction’, in Saad-Filho and Johnston (eds), Neoliberalism: A Critical
Reader (London: Pluto Press, 2005) 1 at 1.
27
Confira as várias referências supramencionadas n. 1.
28
Evans, supra n. 9 at 6.
29
Kirby, supra n. 1 at 80.
30
Pollis, supra n. 9 at 343.
31
Bem como, ‘Examining the Ideas of Globalisation and Development Critically: What Role for Political
Economy?’ (2004) 9 New Political Economy 213 at 219, o que se notou foi que, 'a globalização tem
suas origens no quadro do alargamento do neoliberalismo e na sua lógica extrema de valorização do
mercado livre em Estados-nação ou organizações internacionais'.
32
Tabb, supra n. 1 at 3.
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Esta opinião é a que foi subscrita por Scholte, que notou que o neoliberalismo
‘geralmente tem prevalecido como o quadro político vigente na globalização
contemporânea’. Com efeito, essa é a influência do neoliberalismo por parte dos
governos poderosos e das IEAIs, haja vista que o ‘neoliberalismo tem geralmente
sido classificado como ortodoxia política a respeito da globalização’.33
No entanto, a influência da doutrina neoliberal no âmbito das chamadas 'salas de
poder' não desenvolveu, fora dessas delas, nenhum avanço social ou humano. Mais
uma vez, o ponto de vista coerente é o de Tabb, quando ele escreve que
a globalização foi principalmente o resultado de um projeto político, uma
agenda das mais internacionalizadas frações de capital inerentes aos
grandes Estados mundiais, levada a cabo em medida significativa , tanto
através das organizações privadas e de consultas à comunidade
empresarial nas economias mais poderosas, quanto através das agências
dos seus governos, sobretudo através da liderança do ramo executivo do
governo americano.34
Quanto a este entendimento de globalização neoliberal, em primeiro lugar e acima
de tudo, deve-se destacar que consiste em 'um projeto hegemônico concentrando
poder e riqueza na elite de todo o mundo, beneficiando especialmente os interesses
financeiros em cada país, e os de Washington’.35 Este é entendimento de
globalização neoliberal aqui exposto.
Obviamente, como Harvey notou, em torno de um projeto de abertura, a
concentração de poder econômico e político nas mãos de uma pequena elite não
ganharia apoio provável do setor popular ou a tolerância deste.36 Por conseguinte, a
fim de fazer avançar a sua agenda central, a retórica do neoliberalismo praticamente
prometeu o sol, a lua e as estrelas para aqueles que adotarem sua ortodoxia. Com
base na crença cardeal de que ‘o mercado funciona perfeitamente e por isso sua
lógica deveria ser alargada a muitas áreas da vida do possível’,37 os defensores do
neoliberalismo acabaram por nortear a 'liberalização das transações
transfronteiriças; desregulamentação da dinâmica do mercado; e de privatização da
habitação e da prestação de serviços sociais,38 argumentando ainda que se os
governos seguirem esta receita mágica do 'laissez-faire',39 como Scholte destacou,
fariam emergir um rápido crescimento econômico, com economias estáveis, e, por
fim, em uma redução generalizada da pobreza e da melhoria no bem-estar material,
dentre outras coisas. Todavia, como Tabb bem ressalvou, já é amplamente aceito
'até mesmo por muitos economistas e políticos do mainstream' que o neoliberalismo
'falhou em termos dos seus objetivos anunciados'.40
33
Scholte, supra n.1 at 35.
Tabb, supra n.1 at 41-2.
35
Saad-Filho e Johnston, supra n. 27 at 1. Esta é a conclusão alcançada no estudo do
desenvolvimento do neoliberalismo: Harvey, Neoliberalism: A Brief History (Oxford: Oxford University
Press, 2005).
36
Harvey, supra n. 36 at 40.
37
Fine, supra n. 32 at 216.
38
Scholte, supra n. 1 at 284.
39
Ibid. at 213.
40
Tabb, supra n. 1 at 3.
34
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Quer dizer, o período da história humana marcado pela ascendência da globalização
neoliberal tem sido caracterizado por ‘um aumento substancial das lacunas do bemestar material, dentro dos - e entre - países'.41 Contudo, Harvey notou que existe
uma constante ao longo do período de globalização neoliberal que reflete 'a
tendência universal no sentido de aumentar a desigualdade social e para expor os
elementos menos afortunados em qualquer sociedade' – seja na Indonésia, no
México ou na Inglaterra – e para refrigerar os ventos da austeridade e de
marginalização crescente’.42 Não obstante sua incapacidade para entregar à maioria
dos habitantes do planeta seus direitos e bens essenciais, o neoliberalismo tem
persistido enquanto a ortodoxia política peculiar ao processo de globalização, e as
razões disso são financeiramente evidentes.
Embora haja a retórica promessa de uma eventual participação da comunidade
global, a verdadeira força motriz da globalização neoliberal tem sido a gama
poderosa de líderes e chefes de Estado dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha e as
várias instituições financeiras que regem a economia mundial, tanto formal quanto
informalmente.43 Na seqüência das revoluções Reagan-Thatcher nas décadas de
1970 e 1980 as virtudes do neoliberalismo foram persistentemente enaltecidas por
dois dos mais importantes países do mundo econômico, político e militar.44 O apoio
a esses governos assegurado por várias IEAIs (FMI, Banco Mundial, GATT e seu
sucessor, a OMC) faz com que governos de todo o mundo ficassem "seguros" para
liberalizar seu capital, sob imposição da ortodoxia neoliberal, no mercado financeiro
de pequenos governos, em troca do acesso aos benefícios da economia global.
Assim, depois da experiência keynesiana, várias IEAIs têm funcionado como
'centros para a propagação' e de execução do 'fundamentalismo do mercado livre e
da 'ortodoxia liberal'.45
As IEAIs realizaram sua tarefa principal em duas frentes. No tratamento dos países
pobres e subdesenvolvidos têm utilizado programas de ajustamento estrutural (PAE)
para impor reformas neoliberais aos governos em troca do muito necessário
capital.46 Em contrapartida, em relação aos mais abastados países agentes do
neoliberalismo pode-se entender que estes fizeram uso da execução do projeto de
hegemonia por meio de regras do comércio internacional, capazes de manter a livre
circulação de capital internacional nos mercados de países de pequeno porte
econômico. A conseqüência destas políticas é que todos os governos estão sujeitos
41
Scholte, supra n. 1 at 131. Veja também Stewart e Berry, ‘Globalization, Liberalization and
Inequality: Expectations and Experiences’, in Hurrell e Woods (eds), Inequality, Globalization and
World Politics (Oxford: Oxford University Press, 1999) 150 a 186, que, após ter revisto um conjunto de
provas empíricas que abrangem vários continentes, concluiu que: ‘Num balanço final, a distância
entre a intervenção estatal e o mercado liberal tende a aumentar a desigualdade dentro dos países’.
42
Harvey, supra n. 36 at 118.
43
Embora as várias IEAIs inter-estatais e de outras instâncias definiram as regras formais da ordem
global, as organizações privadas ao serviço das grandes empresas também desempenham um papel
fundamental na elaboração de ações políticas em nível mundial.
Sobre o funcionamento dos fóruns privados que desempenham um grande papel na definição da
ordem global, incluindo a Comissão Trilateral e o Fórum Econômico Mundial, ver Tabb, supra n.1 at
141-83; and Hanahoe, America Rules: US Foreign Policy, Globalization and Corporate USA (Kerry:
Brandon, 2003).
44
Tabb, supra n. 1 at 9-29.
45
Ibid. at 29.
46
Ver Colas, ‘Neoliberalism, Globalisation and International Relations’, in Saad-Filho and Johnston
(eds), supra n. 27, 70 at 75-9.
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a generalizadas 'disciplinas de mercado', as quais garantem o aumento de suas
estruturas jurídicas e políticas no sentido de gerar mais lucros para as elites globais
e domésticas. Por sua vez, Estados inteiros ficaram à mercê do capricho de
empresas internacionais. Conforme Held e McGrew anotaram
[O] aumento da mobilidade do capita […] desloca o equilíbrio de poder
entre os mercados e os Estados poderosos e gera pressões sobre os
Estados menos poderosos, coagidos a desenvolver políticas favoráveis
ao mercado global, o que inclui o aumento dos déficits públicos e cortes
nas despesas, especialmente referentes aos bens sociais; fazem
também, mais baixos os níveis de tributação que antes eram
internacionalmente competitivos; ocorre a privatização e a
desregulamentação do mercado laboral.47
Assim, os agentes da globalização neoliberal elaboraram um mercado global que,
em primeiro lugar e acima de tudo, está orientado para os interesses das elites
econômicas. Estados individuais foram reduzidos ao papel de meros "facilitadores"
da operação e da expansão do capital global.48
Finalmente, a globalização é entendida aqui essencialmente como: um projeto
político realizado de forma consciente para privilegiar o poder privado em detrimento
do poder público, conforme os interesses das elites locais e globais. Desta forma,
procurou criar um processo de desregulamentação mundial, doutrinando a economia
privada aos interesses do capital transnacional dominante, especialmente por parte
dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Nos tópicos seguintes do presente
artigo, devo interrogar as ortodoxias da globalização neoliberal, à luz das normas ou
princípios consagrados a partir do paradigma dos direitos humanos. O objetivo será
o de destacar as tensões entre a globalização neoliberal e os direitos humanos,
tanto na teoria como na prática, a fim de fundamentar a alegação de que os
segundos não podem ser comprometidos em razão da primeira. No entanto, antes
de proceder com esta questão, quero fazer uma breve menção a um incipiente
contrapeso para a globalização neoliberal, que pode muito bem conter em si
embrionárias bases para uma globalização alternativa propícia à realização e à
proteção dos direitos humanos.
B. Globalização Subalterna
Antes de chegar à consideração a respeito das implicações da globalização
neoliberal sobre os direitos humanos, cabe destacar que o fato de a 'agenda
neoliberal ser a dominante [...] não quer dizer que seja a única' capaz de moldar a
globalização.49 Assim sendo, pode surgir um modelo alternativo ao dominante, isto
é, uma globalização de baixo para cima. A essência desta abordagem é bem
entendida pelos termos "subalterna" ou "contra-hegemônica", ou ainda, "alter"
globalização.50 O termo ‘subalterna’ será o adotado neste trabalho. Ao contrário do
47
Held e McGrew, supra n. 1 at 22-3.
Sjolander, supra n. 1 at 608.
49
Thomas, supra n. 9 at 181.
50
Ver Santos e Rodriguez-Garavito, ‘Law, Politics, and the Subaltern in Counter-Hegemonic
Globalization’, in Santos and Rodriguez-Garavito (eds), Law and Globalization from Below: Towards a
48
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que grande parte da mídia simplista e sensacionalista expõe a respeito dos
adversários à ortodoxia neoliberal, quando os classifica como "antiglobalização", o
termo "subalterna" reflete a proposta original destes adversários que condiz com
uma forma alternativa de globalização. Neste sentido, Tabb emenda que "uma
alternativa à globalização é baseada na internacionalização das preocupações
voltadas à justiça social'.51 Em contraste com a globalização neoliberal, que é
impulsionada por elites econômicas que beneficiam o processo, a subalterna
globalização é impulsionada principalmente pelas vítimas da globalização
neoliberal,52 ‘os marginalizados e seus porta-vozes’.53
Embora os elementos constitutivos da globalização subalterna sejam extraídos de
uma grande variedade de grupos (camponeses, ambientalistas, ativistas dos direitos
humanos e da justiça social, feministas e comunidades indígenas que lutam para
manter sua herança cultural, para citar apenas alguns exemplos), com suas próprias
agendas e motivações,54 há, como Kirby observa, uma reunião em torno de alguns
princípios essenciais:
[…] Apesar das diferenças, o que une o movimento é uma crítica comum
ao mercado corporativo globalizado, com a sua lógica liberalizadora,
imposta pelas elites sobre as comunidades ao longo de todo o mundo e
com conseqüências devastadoras para a solidariedade social e para o
meio ambiente.55
Globalização subalterna é, em muitos aspectos, a antítese do modelo atualmente
dominante de globalização. É orientada para a 'dissociação entre a globalização do
neoliberalismo', de modo a lutar por 'reformas normativas e políticas' capazes de
garantir a conformidade 'das normas de direitos humanos'.56 Também está
preocupada em derrubar a ideologia favorável à ortodoxia dominante no sentido de
que 'as instituições e os resultados do processo da globalização neoliberais são
fenômenos naturais'.57
Em rigor, sua estratégia é dar ênfase à perspectiva dos marginalizados e
excluídos,58 bem como lutar pela democratização do processo de decisão e pela a
difusão do poder. Isso pode ser percebido em manifestações globais deste
Cosmopolitan Legality (Cambridge: Cambridge University Press, 2005) 1. Este não é o lugar para
entrar em um exame detalhado a respeito da natureza da globalização subalterna e daquilo que
Santos e Rodríguez-Garavito destacam como ‘subalterna legalidade cosmopolita’, no entanto, para os
interessados no assunto há várias outras redações extremamente úteis para uma introdução.
51
Tabb, supra n. 1 at 29.
52
Kirby, supra n. 1 at 186.
53
Pollis, supra n. 9 at 352, “descreve a globalização subalterna como 'globalização na base”’.
54
De acordo com Santos e Rodriguez-Garavito, supra n. 52 at 1, os elementos constitutivos da
globalização subalterna são os diversos movimentos contra-hegemônicos e organizações que 'que
articulam sua oposição à ortodoxia neoliberal, através, nomeadamente, de organizações
transnacionais'.
55
Kirby, supra n. 1 at 189.
56
Pollis, supra n. 9 at 354.
57
Santos and Rodriguez-Garavito, supra n. 52 at 18.
58
‘Privilegiar os excluídos enquanto atores e beneficiários de novas formas de política mundial e da
legalidade […] é a estratégia da globalização contra-hegemônica e, seu homólogo jurídico, é a
legalidade cosmopolita subalterna’, ibid. at 9.
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movimento, em eventos como o Fórum Social Mundial59 ocorrido em 2006, em Porto
Alegre, Brasil;60 e na formação de "Tribunais Populares", nos quais as comunidades
locais podem interagir com suas próprias experiências concretas.61 Essencialmente,
a globalização subalterna, ainda que seja algo novo, é uma manifestação
descontente com a globalização neoliberal. É uma tentativa de construir uma
alternativa à lógica do mercado global e combater suas múltiplas e adversas
implicações, de modo prezar uma globalização mais cuidadosa com as
necessidades e os interesses da maioria global.
4. Globalização Neo-liberal e Direitos Humanos: Teoria
Após ter estabelecido uma concreta compreensão da natureza da globalização, o
objetivo deste e do próximo tópico é destacar a tensão entre a globalização
neoliberal e os direitos humanos, na teoria e na prática. Pelo enfoque da teoria,
apresentarei duas questões fundamentais com o intuito de destacar as abordagens
divergentes do paradigma neoliberal e dos direitos humanos. A primeira questão
condiz com distintas visões ideológicas - na verdade ontológicas, acerca das
necessidades humanas. A segunda questão condiz com as abordagens distintas
sobre o papel de cada Estado-nação. Em ambos os casos, meu objetivo é
demonstrar que as exigências da ortodoxia neoliberal divergem de forma
significativa diante da abordagem centrada nos direitos humanos, de modo que
ambos não podem ser conciliados. Assim, somos obrigados a escolher se queremos
privilegiar a ortodoxia neoliberal ou a abordagem dos direitos humanos.
A. Conflito de paradigmas
Neoliberalismo, como o próprio nome sugere, é ‘uma nova linha de uma velha
história’.62 Harvey ofereceu uma definição sobre neoliberalismo nos seguintes
termos
Neoliberalismo é, em última instância, uma teoria político-econômica
praticada com o escopo de garantir o bem-estar humano por meio de
liberdades individuais e da valorização das competências empresariais no
âmbito institucional, caracterizada, em razão de diversas formas de
privatização, de modo a garantir a propriedade, o livre mercado e o livre
59
Ver Teivainen, ‘The World Social Forum and Global Democratisation: Learning from Porto Alegre’,
(2002) 23 Third World Quarterly 621. Santos também comentou que 'O FSM pode ser tido, em termos
organizacionais, como a mais coerente manifestação da globalização contra-hegemônica", e ele
ainda argumenta que "o FSM é concebido como uma luta contra o neoliberalismo'’; ver também
Santos, The Rise of the Global Left: The World Social Forum and Beyond (London: Zed Books, 2006)
at 6-7.
60
Ver Santos, ‘Two Democracies, Two Legalities: Participatory Budgeting in Porto Alegre, Brazil’, in
Santos and Rodriguez-Garavito (eds), supra n. 52, 310; and Baiocchi, ‘Porto Alegre: The Dynamism
of the Unorganised’, in Chavez and Goldfrank (eds), The Left in the City: Participatory Local
Governments in Latin America (London: Latin American Bureau, 2004) 37.
61
Sobre as discussões dos tribunais populares no atual contexto mundial, ver De Feyter, Human
Rights: Social Justice in the Age of the Market (London: Zed Books, 2005) at 136-42.
62
Scholte, supra n. 1 at 34.
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comércio. O papel do Estado é o de criar e preservar um quadro
institucional adequado a essas práticas. O Estado tem de garantir, por
exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Também é preciso
garantir os poderes militar e político, além das estruturas jurídicas
capazes de proteger a propriedade privada e o bom funcionamento do
mercado. Ademais, se os mercados não existem, devem ser criados, por
meio de força estatal, se necessário. De todo modo, além destas tarefas,
o Estado não deve fazer coisa alguma.63
Esta concepção exposta é fundada sobre a filosofia política do liberalismo clássico,
articulada com a escrita de pensadores como Hobbes, Locke e Adam Smith. O
termo 'neoliberalismo', em si, é talvez melhor entendido como a articulação das
teorias econômicas e sociais do liberalismo clássico, em um período histórico
diferente. Neste sentido, o 'neo’ do termo neoliberalismo sem dúvida resulta do fato
de que, na seqüência da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, as
classes trabalhadoras e capitalistas, especialmente as do Ocidente, adotaram,
enquanto compromisso histórico, a concepção de que a intervenção estatal pode
ajudar a manter a saúde do mercado e a seguridade social. A partir deste
entendimento, a ortodoxia liberal clássica foi marginalizada. No entanto, após a
desaceleração da acumulação de capitais, no fim dos anos 1960 e início da década
1970, as elites política e econômica ficaram descontentes com o regime então
dominante e tentaram romper com o compromisso histórico estabelecido.64
Posteriormente, o aspecto liberal e clássico dos conceitos de laissez-faire e do papel
do governo na economia emergiu como a ideologia dominante na economia global,
tanto no campo intelectual quanto na prática (que se dá por meio da política
governamental).65
Embora o neoliberalismo careça de um elemento ético, em todos os sentidos da
palavra, ainda é baseado numa compreensão das relações sociais concretas,
sustentadas pelo “bem-estar”.66 A fundamentação do pensamento liberal clássico, e,
conseqüentemente, do neoliberalismo, é centrada na utilidade marginal do indivíduo,
independentemente da participação alheia.67 Conforme Milton Friedman destacou, o
‘homem livre é aquele que não precisa fazer algo pelo seu país nem receber algo
deste’.68 No mesmo sentido, e no auge da revolução neoliberal, Margaret Thatcher
declarou que não existe 'algo como um sociedade, mas indivíduos, homens,
mulheres e suas famílias'.69 Salienta-se que este entendimento da natureza humana
não é apenas uma observação empírica que informa a filosofia liberal, mas também
um ideal normativo inerente ao liberalismo e, pelo qual, o neoliberalismo pretende
ser institucionalizado. Segundo Mittelman
63
Harvey, supra n. 36 at 2.
Para uma crítica do início do compromisso histórico e da intervenção estatal na economia, ver,
especialmente: Western Europe, see Hayek, The Road to Serfdom (London: Ark Paperbacks, 1986),
especialmente nas páginas 8-17.
65
Ver Harvey, supra n. 36 at 9-38; e Glynn, Capitalism Unleashed: Finance, Globalization and
Welfare (Oxford: Oxford University Press, 2006) at 1-49.
66
Ver Clarke, ‘The Neoliberal Theory of Society’, in Saad-Filho and Johnston (eds), supra n. 27, 50.
67
Ver Macpherson, The Political Theory of Possessive Individualism: Hobbes to Locke (Oxford:
Oxford University Press, 1962).
68
Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of Chicago Press, 1982) at 2.
69
Ver Clarke, supra n. 68 at 51.
64
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[Os] patrocinadores da globalização procuram criar um mercado global no
qual os povos do mundo todo, cada vez mais, se relacionem apenas
como indivíduos. Neste processo, a sociedade está a ser prejudicada e
subordinada ao mercado […] Nesta perspectiva, a globalização é uma
tentativa de alcançar a utopia [neoliberal] no sentido de liberar o mercado
dos controles social e político.70
Dentro deste paradigma, a sociedade está reduzida a uma multifacetada gama de
indivíduos desprovidos de empatia e solidariedade, assim como auto-interessadas
em interagir ‘com o mercado’. Como assinala Harvey, dentro desta concepção, todas
as solidariedades sociais são dissolvidas ‘em favor do individualismo, da
propriedade privada, da responsabilidade pessoal e dos valores familiares’.71
Esta premissa ontológica, conjugada com a fé neoliberal no mercado,72 resulta nos
pontos definitivos da visão neoliberal acerca dos direitos humanos. Por exemplo,
neoliberais são rápidos no escopo de defender um conjunto limitado de direitos civis
e políticos tais como ‘a liberdade de ação individual, a não-interferência no mundo
da economia privada, e o direito de possuir e alienar bens, além dos princípios do
laissez-faire e do livre mercado’.73 No entanto, como Harvey notou, quando o
exercício do mesmo conjunto limitado de direitos ameaça os interesses das elites
econômicas, os neoliberais passam a rever o conteúdo das 'liberdades das
massas’.74 No que diz respeito aos direitos de subsistência, tais como habitação e
saúde, os neoliberais simplesmente não aceitam que estes sejam enquadrados
enquanto direitos humanos. Em vez disso, sempre diante de problemáticas como o
atendimento à saúde da população, os neoliberais alegam que isto ocorre em razão
de falhas individuais na relação de consumo entre os envolvidos (novamente
direcionando todo o esforço para mercantilização e privatização das prestações
sociais).75
Reitero: as fundamentações normativas do neoliberalismo estão em completo
contraste com o que se entende pelo respeito aos direitos fundamentais. Apesar de
ainda não haver consenso acerca da natureza dos direitos humanos,76 é justo dizer
que a idéia de direitos humanos é, no mínimo, fundada sobre uma textura mais
substantiva acerca da concepção do indivíduo e da sociedade, bem como da relação
entre ambos, em detrimento da visão pejorativa exposta pelos neoliberais. Mesmo
se nos limitarmos àquilo que esta previsto na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), podemos perceber que a fundamentação ontológica de tais
direitos é completamente distinta do projeto neoliberal. Serve como exemplo, o
primeiro parágrafo do preâmbulo da DUDH que trata da "dignidade inerente" a todos
70
Mittelman, supra n. 1 at 223.
Harvey, supra n. 36 at 23.
72
Ver Fine, supra n. 32; and Shaikh, ‘The Economic Mythology of Neoliberalism’ in Saad-Filho and
Johnston (eds), supra n. 27, 41.
73
Evans, supra n. 9 at 80. Na mesma linha de De Feyter, supra n. 63 at 28-30, poderíamos entender
isto como o "mercado amigável" na abordagem de direitos humanos.
74
Harvey, supra n. 36 at 70.
75
Ibid. at 65. Para uma mais ampla elaboração deste argumento ver O’Connell, ‘The Human Right to
Health and the Privatisation of Irish Health Care’, (2005) 11 Medico-Legal Journal of Ireland 76.
76
Ver Steiner and Alston, International Human Rights in Context – Law, Politics and Morals, 2nd edn
(Oxford: Oxford University Press, 2000) at 323-557.
71
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os membros da família humana.77 Diante da leitura do artigo do Artigo 1º, ademais,
pode-se perceber que cabe a todos os indivíduos, livres e iguais, 'agir perante um
grupo social' em um espírito de irmandade’,78 A seu turno, o Artigo 29º, estabelece
que todos têm "deveres para com a comunidade, pela qual - e somente pela qual são livres e sua personalidade é possível'.79 Sem falar na presença do
reconhecimento dos direitos inerentes à DUDH, designadamente, à segurança social
e as normas mínimas de saúde, habitação, etc.,80 Resta evidente que os direitos
humanos sob o ponto de vista do indivíduo, da sociedade e das necessidades
humanas são incompatíveis com a ortodoxia neoliberal.
B. O Papel do Estado
A literatura que cuida da temática globalização está repleta de referências ao
declínio do Estado em face das condições expostas pelo processo de globalização
contemporâneo.81 Tendo em vista que a globalização tem sido moldada pelo
exercício da agenda neoliberal, esta mudança no papel do Estado não deve ser
considerada um acessório, um subproduto da globalização, mas enquanto objetivo
central do projeto neoliberal. O neoliberalismo, ou pelo menos a retórica associada a
esse projeto, definiu uma concepção própria do papel do Estado e, o próprio projeto
neoliberal foi muito bem sucedido em razão da aprovação de tal concepção. No
entanto, será sustentado mais adiante que o ideal normativo no que se refere ao
papel do Estado defendido pelos neoliberais é contrário ao papel estatal inerente à
perspectiva dos direitos humanos. Desta forma, as mudanças que o projeto
neoliberal quer desempenhar podem ser um importante fator contribuinte para a
negação dos direitos humanos.
A receita de um Estado neoliberal é fundada sobre a fé econômica subjacente, que
geralmente dá forma à ideologia neoliberal. Harvey resume os elementos
constitutivos do Estado neoliberal da seguinte forma: 'uma força capaz de favorecer
os direitos individuais relativos à propriedade, o Estado de direito, bem como as
instituições que garantem o livre funcionamento dos mercados e o livre comércio', de
modo que 'as empresas privadas e iniciativas empresariais são vistas como as
chaves de inovação e criação de riqueza'.82 Em suma, formam um conjunto
ideológico no qual o Estado é pequeno e o mercado é grande
Neoliberais são particularmente diligentes na busca de privatização dos
bens […] Setores anteriormente desenvolvidos ou regulados pelo Estado
devem ser convertidos para a esfera privada e desregulamentados […]
Privatização e desregulamentação combinadas com a competição, alegase, devem eliminar a burocracia, aumentar a eficiência e a produtividade,
além de promover melhorias qualitativas e reduzir custos.83
77
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, GA Res. 271A (III), 10 December 1948,
A/810 at 71.
78
Artigo 1º, DUDH.
79
Artigo 29(1), DUDH.
80
Artigos 22 e 25(1), DUDH.
81
Confira várias referências supra n. 1.
82
Harvey, supra n. 36 at 64.
83
Ibid. at 65.
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A receita para um Estado neoliberal pretende 'impedir o fornecimento de bens e
serviços no mercado global',84 em vez de introduzir no mercado a lógica da
rentabilidade para as muitas áreas da vida que possível.
Como mencionei anteriormente, os agentes da globalização neoliberal foram
notavelmente bem sucedidos ao sujeitar a maioria dos governos do mundo aos
ditames do mercado. Scholte assinala que as elites econômicas globais devem ter
'pressionado os Estados no sentido de condicionar a seguridade social às
tendências de uma economia globalizante',85 e 'nenhum Estado escapou às
pressões da globalização neoliberal sob a garantia do bem-estar material'.86 No
entanto, não devemos nos precipitar no sentido de assumir que o recuo da ação
estatal foi imposto por tendências exteriores. Kirby observou que a forma
contemporânea da globalização é 'um resultado de uma mudança dentro do próprio
Estado’.87 Em outras palavras, durante a fase contemporânea da globalização
Autoridades [públicas] (Estados e corpos intergovernamentais) [...]
sistematicamente fortaleceram as regras e regulamentos que favorecem a
expansão do mercado global, do mesmo modo que negligenciaram regras
e regulamentos capazes de manter a segurança social e o respeito ao
meio ambiente. Nesta situação, o Estado cedeu espaço para que os
agentes econômicos sejam determinantes nos resultados sociais
emergentes.88
A ironia presente nisso tudo, naturalmente, é a de que o sucesso neoliberal no
assalto ao poder público e à autoridade, no interesse de privilegiar poderes privados,
tem sido alcançado por meio de agências públicas.89
Este último ponto leva-nos a uma das grandes ironias da agenda neoliberal. Apesar
da retórica dos pequenos governos e mercados livres, 'o neoliberalismo não pode
funcionar sem um Estado forte e um mercado obediente às instituições jurídicas'.90
Assim, 'a ideologia da não-intervenção serve como véu para a extensa e
discricionária intervenção; [...] mesmo no que se refere à privatização, o Estado deve
intervir’.91 Deste modo, o assalto neoliberal sobre o Estado é entendido enquanto
uma forma muito seletiva de afastar a ação estatal norteada às responsabilidades
sociais, ao mesmo tempo em que incentiva a coerção estatal no sentido de regular o
mercado, de mantê-lo livre.92 De acordo com Saad-Filho e Johnston, sem a ação
estatal que respeita os direitos humanos, 'a expansão do mercado' impede o acesso
‘a alimentos, água, educação, trabalho, terra, moradia [e] cuidados médicos’.93 Nesta
84
Tabb, supra n. 1 at 372.
Scholte, supra n. 1 at 140.
86
Ibid. at 141.
87
Kirby, supra n. 1 at 90.
88
Ibid. at 129-30. Cários exemplos deste fenômeno no contexto do Reino Unido são fornecidos por
Leys, supra n. 48 at 108-65 and 165-211, em sua discussão sobre a mudança para a comercialização
do serviço público de radiodifusão televisiva e da mercantilização progressiva dos cuidados com a
saúde. Ver também Pollock, NHS plc: The Privatisation of Our Health Care (London: Verso, 2005).
89
Ver Colas, supra n. 47 at 70.
90
Harvey, supra n. 36 at 117.
91
Fine, supra n. 32 at 226.
92
Harvey, supra n. 36 at 76-7.
93
Saad-Filho and Johnston, supra n. 27 at 4.
85
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perspectiva, o sucesso do mercado neoliberal pode ser visto junto com a negação
dos direitos humanos.94
Em contraste com o ideal neoliberal do Estado mínimo, ou pelo menos um estado
desprovido de responsabilidades sociais, o regime internacional de direitos humanos
pressupõe um Estado forte, capaz de realizar os direitos humanos e as obrigações
que lhe forem colocadas. Como argumenta Dunoff, o Estado que respeita o regime
de direitos humanos "é um Estado ativista […] e não um vigilante de mãos atadas'.95
Mais uma vez, mesmo que limitados à leitura dos direitos previstos na DUDH,
podemos constatar a veracidade desta afirmação básica. Tanto o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) quanto o Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR) determinam a
obrigação de respeitar, proteger e cumprir os direitos neles consagrados.96 Os
outros principais tratados de direitos humanos da ONU assumem posições
semelhantes no sentido de respeitar os direitos das mulheres,97 das crianças,98 das
minorias éticas e raciais,99 e dos imigrantes que trabalham no estrangeiro.100
De uma forma geral, Henkin escreve que 'os direitos humanos e sua
internacionalização dependem de governos ativos'.101 Vale reiterar que uma das
principais conseqüências da hegemonia da agenda neoliberal tem sido a de reduzir
a capacidade do Estado no cumprimento de suas obrigações relativas aos direitos
humanos, e, em certos casos, conduzir o Estado no sentido de reforçar e
implementar suas capacidades coercitivas, com a concomitante violação dos direitos
individuais e de grupo, especialmente no que se refere à liberdade de expressão, de
reunião, ao devido processo legal e até mesmo ao direito à vida.102 Conclui-se,
então, que a idéia de Estado na qual o projeto neoliberal está empenhado é
contrária à idéia de Estado que está na base do paradigma dos direitos humanos.
5. Globalização Neo-liberal e Direitos Humanos: Prática
94
Mais informações sobre esta questão estão no tópico 5 deste trabalho: Relatórios Especiais da
ONU.
95
Dunoff, supra n. 6 at 130.
96
Ver Artigo 2º, International Covenant on Civil and Political Rights 1966, 999 UNTS 171; e
International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights 1966, 993 UNTS 3.
97
Artigos 2º e 3º, Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women 1979,
1249 UNTS 13.
98
Artigo 2º, Convention on the Rights of the Child 1989, 1577 UNTS 3.
99
Artigo 2º, Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination 1966, 660 UNTS 195.
100
Artigo 7º, International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and
Members of Their Families 1990, GA Res. 45/158, 18 December 1990, A/Res/45/158.
101
Henkin, supra n. 6 at 7.
102
O exemplo mais evidente de que o Estado neoliberal tem implantado suas capacidades coercitivas
para esmagar a oposição e suas reformas, é dado por aquilo que Harvey tem chamado de 'primeira
experiência neoliberal com a constituição estadual', ou seja, Pinochet do Chile. Harvey, supra n. 36 at
7-8, observa que o golpe que instalado no governo Pinochet foi 'promovido em razão de a empresa
nacional ser ameaçada pelas elites [presidente deposto: Allende]'. Com o apoio dos EUA (secretário
de Estado Henry Kissinger). A violenta repressão aos movimentos sociais e organizações políticas da
esquerda desmantelou todas as formas de organização popular. Outro exemplo claro seria o 'milagre'
da economia da Coréia do Sul, que conseguiu atingir um crescimento econômico sustentado
mediante a implementação da ortodoxia neoliberal, mas o fez com repressão; ver Toussaint, ‘South
Korea: The Miracle Unmasked’, Economic and Political Weekly, 30 September 2006.
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Após ter estabelecido uma clara compreensão da globalização e argumentado que a
globalização neoliberal é, pelo menos em teoria, incompatível com a defesa dos
direitos humanos, este tópico irá demonstrar o presente conflito entre globalização
neoliberal e direitos humanos no 'mundo real'. Os direitos que enfoco aqui são os
condizentes com educação, saúde e habitação.103 No que diz respeito a cada um,
vou levar em conta os relatórios elaborados pelos relatores especiais das Nações
Unidas para cada um dos direitos, com especial atenção para as questões que eles
têm destacado como sendo uma das barreiras para a concretização dos direitos. O
objetivo da análise destes relatórios é compreender em que medida a ameaça
teórica neoliberal se manifesta em detrimento dos direitos humanos, em termos
reais.
A. Relatório Especial das Nações Unidas para a Educação
A primeira relatora especial, no que diz respeito ao direito à educação, foi Katarina
Tomaševski, nomeada para o seu gabinete em 1998. Durante o curso do seu
mandato, produziu uma série de relatórios, prevendo nomeadamente, um quadro
analítico importante para a compreensão do direito à educação. No entanto, o foco
deste artigo será sobre os aspectos dos relatórios que dizem respeito aos
obstáculos e às ameaças ao direito à educação. No seu relatório preliminar, a
Relatora Especial indicou os vários temas que ela acredita ser a chave dos
impedimentos à realização do direito à educação; dentre eles, estava a introdução
de taxas (ao abrigo de uma variedade de nomes) para a escola primária.104 Ela
observou que 'qualquer taxa neste sentido contradiz o fato de que o ensino primário
deve ser livre'.105. Outro tema recorrente salientado pela relatora especial foi o
'possível conflito' entre o Banco Mundial para o mercado da educação e a
abordagem orientada conforme o paradigma dos direitos humanos.106
103
No que diz respeito aos direitos aqui tratados, o foco central será na experiência obtida através
dos Relatórios Especiais e não a doutrina jurídica de cada um deles. Discussões interessante acerca
dos princípios jurídicos aplicáveis a cada um dos direitos aqui tratados podem ser encontrados em
Eide et al. (eds), Economic, Social and Cultural Rights: A Textbook, 2nd edn (Dordrecht: Martinus
Nijhoff Publishers, 2001) especially at Chapters 9 (Housing), 10 (Health) and 14 (Education).
104
A re-introdução de taxas (sob qualquer nome) para o ensino primário, que é um problema
particular nos países mais pobres, juntamente com a tendência mais generalizada no sentido da
comercialização do nível secundário de ensino, são indicativos de duas tendências associadas com a
globalização neoliberal e mantidas pelas grandes corporações, governos ocidentais e diversos IEAIs,
a saber: (i) a retirada gradual das funções sociais por Estados; e (ii) privatização ou mercantilização
dos serviços públicos essenciais.
105
Preliminary Report of the Special Rapporteur on the right to education, 13 January 1999,
E/CN.4/1999/49 at para. 32.
106
Ver Progress Report of the Special Rapporteur on the right to education, 1 February 2000,
E/CN.4/2000/6 at para. 28. Pode-se argumentar que, após sua decisão de abandonar o cargo de
Relator Especial, Tomaševski foi capaz de articular mais diretamente o seu ponto de vista sobre o
impacto do Banco Mundial e outras políticas da IEAI sobre o direito à educação. Por exemplo, em
Tomaševski ‘Globalizing What: Education as a Human Right or as a Traded Service?’ (2005) 12
Indiana Journal of Global Legal Studies 1 at 4, ela argüiu que
Enquanto que o direito humanitário internacional reconhece o direito de todas as
crianças à educação gratuita, o direito comercial internacional torna o acesso à
educação dependente da capacidade de pagamento. O livre comércio não prevê as
salvaguardas para os direitos dos pobres […] Daí compreende-se que a intervenção
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Em seu relatório, observou novamente o uso de propinas escolares em nível
primário e argumentou que essas medidas formam 'uma forma de tributação
regressiva’,107 que ergueu 'entraves financeiros ao acesso ao ensino primário',
resultando no reduzido acesso à escola por parte de crianças pobres e, portanto,
retrocedeu em vez de avançar na concretização do direito à educação’.108 No seu
Relatório Anual de 2001 observou que 'o impacto financeiro da globalização afeta
toda a educação de forma progressiva, na medida em que trata a educação
enquanto uma indústria, de modo a oferecer um serviço que é comercializado, como
qualquer outro desse tipo’. O mais preocupante é que para a referida Relatora
Especial, o acesso à educação seria justamente o instrumento essencial para a luta
contra a forma atual de globalização.109 No seu Relatório Anual de 2003 regressou
novamente à questão das propinas escolares, argumentando que tais encargos
'refletem barreiras ao acesso à educação, em razão da idade e da situação
econômica'.110 No mesmo relatório, salientou o contraste entre a visão da educação
como um direito humano, dos direitos individuais ao abrigo do direito público e da
educação como 'um instrumento de comércio regulado pelo direito privado'.111 Para
a Relatora Especial, a adesão ao paradigma dos direitos humanos, tendo em vista a
situação atual, no que se refere à educação, levará, pelo visto, alguns anos.112
No seu último relatório anual, Tomaševski retornou para a questão da tensão entre a
educação como um direito e da educação como um serviço comercializado. Ela
observou que
Uma parte importante da fundamentação lógica para a educação como
um direito humano era a sua isenção do livre mercado, onde o acesso à
educação é determinado pelo poder de compra. Os recentes desafios a
esta lógica refletem que o direito à educação tem sido substituído pelo
acesso à educação, e o governo tem, portanto, a obrigação de garantir
pelo menos o ensino obrigatório gratuito. A justificação para isso está na
afirmação de que a educação deve ser financiada e, fica implicitamente
claro que deve ser financiada pelo Governo de forma a constituir um
direito individual, em particular para cada criança. A lógica do direito à
educação é entender que a educação não é algo dependente da
capacidade financeira. O paradigma dos direitos humanos obriga o
Governo a financiar adequadamente a educação, para que as crianças
estatal deve salvaguardar a educação gratuita para milhões de crianças pobres e resta
emerge a exigência de medidas corretivas para o livre mercado no que diz respeito à
educação […] No entanto, o financiamento global de políticas públicas trabalha no
sentido oposto, de modo a fazer o comércio de serviços educacionais. [grifo nosso].
107
Special Rapporteur on education Progress Report, ibid. at para. 52.
Ibid. at para. 54.
109
Annual Report of the Special Rapporteur on the right to education, Katarina Tomaševski, 11
January 2001, E/CN.4/2001/52 at para. 5.
110
The Right to Education: Report of the Special Rapporteur, Katarina Tomaševski, 21 January 2003,
E/CN.4/2003/9 at para. 8.
111
Ibid. at para. 20.
112
Ibid.
108
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não tenham que pagar por uma educação privada, quando não podem
assumir os custos disso.113
Por fim, a Relatora Especial chama a atenção para a re-afirmação do primado da
abordagem dos direitos humanos, com base no fato de que 'o livre comércio não tem
as salvaguardas para os direitos das pessoas pobres'.114
B. Relatório Especial das Nações Unidas para a Saúde
Paul Hunt foi designado Relator Especial no que se refere ao direito ao gozo do mais
alto padrão de saúde física e mental, em agosto de 2002. Desde a sua nomeação
tem produzido uma série de relatórios importantes que abrangem vários aspectos do
direito à saúde e questões conexas. No entanto, da mesma forma como ocorreu na
discussão acima sobre o direito à educação, a principal preocupação aqui será em
relação às questões que o Relator Especial tenha identificado como sendo
incompatíveis com a proteção e a realização do direito à saúde. Em seu primeiro
relatório, reconhece que a pobreza foi um fator determinante para a situação
pejorativa da saúde do indivíduo, e que os pobres eram menos propensos a
desfrutar de toda a gama de direitos conexos com o direito à saúde.115 No mesmo
relatório, observou que 'a liberalização do comércio de serviços pode ter impacto
sobre o direito à saúde, de várias maneiras', isto porque, dependendo do regime
regulamentar em vigor, essa liberalização pode ser positiva ou negativa no que se
refere aos direitos humanos.116 Em relação ao lado potencialmente negativo, o
Relator Especial observou que 'um aumento do investimento privado estrangeiro
pode levar a excessivos objetivos comerciais, em detrimento dos objetivos sociais',
como 'a prestação de serviços de saúde de qualidade para aqueles que não podem
pagar as tarifas exigidas’.117
Talvez a mais significativa observação veio em um adendo ao seu segundo relatório,
no qual ele transcreve a experiência de seus encontros e discussões com
representantes da Organização Mundial do Comércio.118 A relação entre a
liberalização do comércio e direitos humanos, feita pelo Relator Especial, merece
citação aqui
A Lei Internacional dos Direitos Humanos não toma posição nem a favor
nem contra qualquer regra especial de comércio ou política, desde que
duas condições sejam respeitadas: em primeiro lugar, o Estado ou política
em questão deve, na prática, realmente aumentar a fruição dos direitos
humanos, incluindo as pessoas desfavorecidas e marginalizadas; em
113
The Right to Education, Report submitted by the Special Rapporteur, Katarina Tomaševksi, 15
January 2004, E/CN.4/2004/45 at para. 8.
114
Ibid. at para. 10.
115
O direito de todos ao gozo do mais alto padrão de saúde física e mental, Relatório do Relator
Especial, Paul Hunt, apresentado em conformidade com a resolução da Comissão 2002/31, 13
February 2003, E/CN.4/2003/58 páginas 4-6.
116
Ibid. pág. 88.
117
Ibid.
118
O direito de todos ao gozo do mais alto padrão de saúde física e mental, Relatório do Relator
Especial, Paul Hunt, Addendum - Mission to the World Trade Organization, 1 March 2004,
E/CN.4/2004/49/Add.1.
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segundo lugar, o processo pelo qual a regra ou a política é formulada,
executada e monitorada deve ser coerente com todos os direitos
humanos e os princípios democráticos. Assim, uma política comercial
pode aumentar o gozo do direito à saúde, inclusive para aqueles que
vivem em situação de pobreza e de outros grupos desfavorecidos, e, se a
política é entregue de uma forma que seja compatível com todos os
direitos humanos e os princípios democráticos, está em conformidade
com o direito humanitário internacional. No entanto, ficou confirmado que,
na prática, as políticas comerciais têm impacto negativo sobre o exercício
do direito à saúde das pessoas que vivem em situação de pobreza ou de
outros grupos desfavorecidos e, em conseqüência, o Estado tem uma
obrigação, ao abrigo do direito internacional humanitário, de rever as
políticas relevantes.119
O Relator Especial não aborda, contudo, uma questão fundamental, qual seja, a
privatização ou não dos Serviços de Saúde, que é um dos objetivos e resultados da
globalização neoliberal, apesar de afetar flagrantemente o direito à saúde. No
entanto, é alegado que há um conjunto substancial de 'provas concretas’ disponíveis
para sustentar a alegação de que a inspiração neoliberal resultou num aumento da
desigualdade e da negação sistemática dos direitos dos pobres e grupos
marginalizados.120 Assim sendo, o Relator Especial acaba por condenar a orientação
política neoliberal como sendo contrária aos princípios internacionais de direitos
humanos; mesmo que - deve-se sublinhar - não é esta a posição adotada pelo
Relator Especial em qualquer um de seus relatórios.
C. Relatório Especial das Nações Unidas para a Habitação
No mês de Abril do ano de 2000, foi designado um Relator Especial da ONU para o
direito à habitação adequada. Durante o curso do mandato (que não terminou até a
data de publicação deste artigo) muitos relatórios foram produzidos. Em seu primeiro
relatório, o Relator Especial declarou sua intenção de olhar para a 'articulação entre
o processo de globalização e a realização do direito à habitação adequada'.121
Também levantou preocupações122 sobre a 'estreita perspectiva econômica' dos
líderes das IEAIs e as potencialidades das suas atividades no sentido de afetar
negativamente o direito à habitação adequada.123
119
Ibid. at para. 11.
Não convém lidar com esta questão aqui devido à falta de espaço. No entanto, para os
interessados em acompanhar a precisão do referido crédito, empírica e ampla evidência pode ser
encontrada em: O’Connell, supra n. 77 at 80-2; Verdugo, ‘The Failures of Neoliberalism: Health Sector
Reform in Guatemala’, in Fort et al. (eds), supra n. 24, 57; Bond, ‘The Political Roots of South Africa’s
Cholera Epidemic’, in Fort et al. (eds), ibid., 119; Tuohy, Flood and Stabile, ‘How Does Private Health
Care Affect Public Health Care Systems? Marshalling the Evidence from OECD Nations’, (2004) 29
Journal of Health Politics, Policy and Law 359; and Labonte, Schrecker and Gupta, Health for Some:
Death, Disease and Disparity in a Globalizing Era (Toronto: Centre for Social Justice, 2005).
121
N.T. No original: Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the
right to an adequate standard of living, Mr. Miloon Kothari, submitted pursuant to Commission
resolution 2000/9, 25 January 2001, E/CN.4/2001/51 at para. 60.
122
Ibid. at paras 58-9.
123
Ibid. at para. 97.
120
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No segundo relatório, retornou aos impactos da globalização em face do direito de
habitação, registrando que as formas destes impactos são "complexas e
variadas",124 de modo que destinou sua atenção aos impactos negativos. O Relator
constatou que no setor da habitação urbana existe uma 'dependência aos
mecanismos de mercado', o que resultou em na tendência para negligenciar as
necessidades habitacionais dos pobres e excluídos.125 O relatório demonstrou ainda
uma série de estudos de casos nos quais serviços municipais de abastecimento de
água foram privatizados, ainda que o direito à água potável esteja intimamente
ligado ao direito à habitação adequada.126
Em seus últimos dois relatórios, o Relator Especial novamente olhou para os
principais obstáculos para a realização do direito à habitação adequada, bem como
a forma com a qual esses impedimentos estão relacionados à globalização. No que
se refere aos desabrigados, o Relator Especial observou que, embora a integração
econômica global continua a gerar riqueza, o número de desalojados continua a
aumentar, e, portanto, 'para os desabrigados e os pobres, os benefícios da
globalização são insignificantes’.127 Além disso, destacou que 'a crescente tendência
para a privatização dos serviços de habitação geralmente resulta em especulação
do mercado de imóveis e da terra e na conseqüente mercantilização da habitação,
da eletricidade e da água', especialmente com a aplicação de taxas para o uso
destes bens.128 No seu relatório final, em 2006, o Relator Especial enumerou uma
série de questões específicas que ele considerou os principais obstáculos para a
realização do direito à habitação adequada; entre elas, o carro-chefe era a 'falta de
vontade dos Estados no sentido de intervir no mercado e garantir que pessoas de
baixa renda possam ter acesso à moradia’.129
D. A Preocupante Tendência Geral
Este debate que antecede aos trabalhos dos diversos relatórios especiais sobre
direitos fundamentais presta-se à conclusão (embora, em alguns casos, mais
diretamente do que n’outros) de que não apenas a globalização neoliberal é
incompatível com a proteção dos direitos humanos na teoria, mas também na
prática. Os vários problemas comuns que os relatores têm destacado como sendo
hostis, quer na realidade ou potencialmente, para a proteção dos direitos com que
seus mandatos são/foram envolvidas incluem: o Estado impotente (ou
impossibilitado de agir); privatização e desregulamentação; pobreza e a imposição
de taxas para serviços essenciais. Essas são todas conseqüências diretas do
projeto de globalização neoliberal e do resultado da estrutura lógica de tal projeto. À
luz disso, devemos prestar atenção ao fato de que o estado dos direitos humanos
não será, em geral, melhor nestes tempos sob a forma dominante da globalização.
124
Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate
standard of living, Mr Miloon Kothari, 1 March 2002, E/CN.4/2002/59 at para. 50.
125
Ibid. at para. 54.
126
Ibid. at paras 56-8.
127
Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate
standard of living, Miloon Kothari, 3 March 2005, E/CN.4/2005/48 at para. 24.
128
Ibid. at para. 25.
129
Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate
standard of living, and on the right to non-discrimination in this context, Miloon Kothari, 14 March
2006, E/CN.4/2006/41 at para. 29.
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Se nos resta algo evidente é que o respeito aos direitos humanos só poderá ser
realizado fora da forma dominante de globalização, e não dentro dela. No próximo e
último tópico reflito sobre as implicações deste ponto de vista, especialmente para
aqueles que estão empenhados na realização e na proteção dos direitos humanos.
6. Conclusão: Direitos Humanos ou o Mercado (deles).130
O ‘grande debate global’, de acordo com Held e McGrew, é o aspecto central do
nosso tempo.131 Aqueles que destinam preocupações aos direitos humanos em face
de forças globalizadas, devem olhar para ‘difíceis questões’,132 e fazer difíceis, mas
necessárias, escolhas. No entendo, a questão que está diante de nós não é,
simplesmente, ser contra ou a favor da globalização per se. Em vez disso, é preciso
pensar ‘nos termos sob os quais a globalização é construída’.133 Especialistas nos
campos das ciências políticas e das relações internacionais, conscientes dos
diversos efeitos provenientes da globalização neoliberal, já clamaram por (graduais)
reformas do sistema, de modo a solicitar a ajuda de poderosos atores econômicos
do processo.134 Contudo, em contraste com esta abordagem, Kirby argumentou que
‘este não é o momento de ajustes (modestas reformas aqui e ali), mas de
providências mais ousadas e transformações fundamentais’.135 À luz do
entendimento da globalização aqui estabelecido e sua relação com os direitos
humanos, é a abordagem de Kirby, no sentido de como responder à globalização
realmente existente.
Em suma, o argumento que norteou este artigo é no sentido de que as condições
para a violação dos direitos humanos estão embutidas estruturalmente no atual (isto
é, no neoliberal) programa de globalização. Se levarmos a sério a necessidade de
proteção e realização plena dos direitos humanos, devemos, de forma consciente,
abandonar o programa hegemônico do neoliberalismo atual. Caso contrário, ‘a
globalização, sustentada pelo neoliberalismo, será expandida e intensificada e,
conseqüentemente, um número crescente de pessoas será marginalizado e todo um
complexo de direitos será abusado’.136 Diante disso, como Harvey observa, seria
‘lamentável abandonar um rol de direitos conquistados historicamente em razão da
hegemonia neoliberal’.137 Felizmente, um dos outros pontos-chave do presente
artigo foi o de que a globalização, por nós experimentada, também é produto de
arranjos e agentes humanos. Assim sendo, pode muito bem ser ‘um’ – ou ‘voltar’ a
ser um – organismo mais humano.
130
N.T.: O subtítulo original traz um jogo de palavras no seguinte sentido: “Human Rights or ‘The(ir)
Market’”.
131
Held and McGrew, supra n. 1 at 118.
132
Evans, supra n. 9 at 28.
133
Tabb, supra n. 1 at 29.
134
Ver Held e McGrew, supra n. 1 at 118-36; and Scholte, supra n. 1 at 283-314. Segundo Scholte,
para a reforma da globalização, será necessário 'convencer adeptos do neoliberalismo - o que inclui
muitos dos ricos e poderosos - a voltar seus olhos para os interesses da democracia’ (at 208).
Destaca-se que esta abordagem geral é contrária ao entendimento da globalização neoliberal
articulado anteriormente neste artigo.
135
Kirby, supra n. 1 at 194.
136
Pollis, supra n. 9 at 355.
137
Harvey, supra n. 36 at 179.
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Não obstante o fato de que está fora do escopo deste artigo estabelecer formas
política, social ou institucional para projetar as reclamações no sentido de proteger
os direitos humanos, é apropriado fazer duas observações pertinentes sobre a
questão, a título de conclusão. Primeiro, agentes ativos e alternativas eficazes,
conscientes da necessidade de uma abordagem sensível dos direitos humanos em
face da globalização já estão presentes em movimentos de globalização subalterna,
e, como De Feyter notou, ‘existe uma necessidade urgente’ de os envolvidos com
direitos humanos reunirem ‘recursos’ para fazer valer este movimento.138 Segundo, é
imperativo para este movimento construir e manter estruturas domésticas, regionais
e globais, capazes de sujeitar o mercado (que é na realidade um dispositivo retórico
para fazer avançar o projeto neoliberal)139 aos controles democráticos, bem como ter
certeza de que isto serve ao interesse de uma maioria globalmente estabelecida.140
Só um movimento como este, utilizando os direitos humanos enquanto ferramentas
para mobilização política, acima de tudo,141 poderá garantir a proteção dos direitos
humanos em um mundo globalizado.
138
De Feyter, supra n. 63 at 6.
Harvey, supra n. 36 at 26, nota que: ‘O Mercado, ideologicamente retratado como o caminho para
promover a concorrência e a inovação' é, na realidade, ‘um veículo para consolidação de um poder
monopolista’.
140
Sobre esta questão ver Kirby, supra n. 1 at 191.
141
Quanto à ideia de direitos humanos como sítios de importância política veja De Feyter, supra n. 63
at 25; Anderson, supra n. 2 at 99 and 119; e Harvey, supra n. 36 at 179-82. Esta questão também é
tratada por Goodhart em: ‘Origins and Universality in the Human Rights Debates: Cultural
Essentialism and the Challenge of Globalization’ (2003) 25 Human Rights Quarterly 935 at p.963,
quem escreveu que os ‘direitos humanos são a melhor e mais efetiva ferramenta política de
resistência aos efeitos da globalização, bem como para reformá-la’. [N.T.: destaque do autor].
139
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