Black Rocket 01
Transcrição
Black Rocket 01
Número 01 Fevereiro de 2008 NESTA EDIÇÃO: Aguinaldo Peres Carlos Relva Charles Dias Joshua Falken Distribuição por Leonardo Carrion www.creativecommons.org.br Ubiratan Peleteiro sta revista nasceu de um projeto criado e coordenado por escritores amadores. A idéia inicial era bastante simples. Imagens de ficção científica foram capturadas na Internet e sorteadas entre os participantes. Dentro de um prazo determinado, cada participante teve de escrever um conto, usando a imagem como tema. Enquanto os contos eram devidamente preparados por uma revisora profissional, o formato da revista começou a ser definido. O resultado é este, a primeira edição da revista de ficção científica Black Rocket: 100% brasileira, do visual ao conteúdo. Você também pode participar da próxima edição. Veja como, no nosso site: www.black-rocket.blogspot.com 2O MERCENÁRIO E O ABISMO Revista de Ficção Científica Número 01 - Fevereiro 2008 Editorial 04 Coordenador e Editor O Fantasma da Doca 6 Aguinaldo Peres 06 CHARLES DIAS [email protected] Revisão BIA NUNES DE SOUSA [email protected] cascodatartaruga.blogspot.com Robby Carlos Relva Editoração 12 CARLOS RELVA [email protected] www.carlosrelva.com Demônios do Passado Charles Dias Para contatar os autores 18 Aguinaldo Peres [email protected] A Solução por um Fio Joshua Falken Carlos Relva [email protected] 26 Charles Dias [email protected] Cidade Suspensa Leonardo Carrion Joshua Falken [email protected] 32 Leonardo Carrion [email protected] O Mercenário e o Abismo Ubiratan Peleteiro Ubiratan Peleteiro [email protected] 39 3 EDITORIAL No universo da literatura há, basicamente, dois tipos de escritores. De um lado estão os que sonham com o estrelato, fama e dinheiro, os que querem ser escritores profissionais. Do outro lado estão os que só querem ter suas histórias lidas e apreciadas: esses são os escritores amadores. Ser escritor amador não é fácil, ainda mais quando o gênero escolhido é a ficção científica. Por que? Simples: por conta do preconceito que ainda ronda esse gênero, seja no meio editorial e cultural, ou mesmo entre leitores. É só alguém dizer que gosta de ficção científica para que quem esteja perto torça o nariz (exceto se também apreciarem o gênero, claro). Mas o preconceito não é o maior culpado de a ficção científica ser um micro-nicho literário no Brasil. A culpa também não é das editoras, que não acreditam ou apostam no gênero. A culpa não é dos leitores, que não se esforçam para acabar com o estigma de que ficção científica é coisa de louco ou nerd. Infelizmente, a maior parcela da culpa por essa realidade é dos escritores brasileiros de ficção científica. Se sortearmos um leitor de ficção científica brasileiro e pedirmos para dizer o nome de três escritores do gênero, as chances dele citar um autor brasileiro são mínimas; com certeza, irá citar escritores norte-americanos como Asimov ou Clarke. Se fizermos a mesma coisa com um argentino, ele, com certeza, citará um autor argentino; se for um francês, idem. Será porque não temos escritores de ficção científica no Brasil? Claro que não. Temos vários, excelentes, que não deixam nada a desejar para escritores de qualquer outro país. Então, o que acontece? Quando alguém abre uma nova empresa de varejo, seja um cinema, uma loja de eletrodomésticos ou uma operadora de celular, a principal providência é fazer propaganda do novo negócio - afinal de contas, a propaganda é a alma do negócio. Só que a maioria dos escritores brasileiros de ficção científica simplesmente não dão bola para isso. O resultado é que pouca gente teve a oportunidade de conhecer e apreciar a ficção científica brasileira, que se tornou uma loja que pouca gente sabe que existe e que, mesmo assim, continua não fazendo propaganda. Por incrível que pareça, a Internet não ajudou muito a mudar esse quadro. Muita gente que escrevia ficção científica antes da Era Digital simplesmente desprezou esse novo meio de comunicação. Quem começou a escrever depois ainda não se mobilizou para mudar as coisas. Enquanto há abundância de contos e livros digitais de ficção científica em inglês, espanhol, francês, russo e japonês, em português a produção literária digital do gênero é mínima e com divulgação limitadíssima. A Black Rocket é uma tentativa de fazer a diferença nessa realidade patética, o resultado da união de escritores amadores de ficção científica que acreditam que a Internet é uma ótima forma de espalhar seus escritos, e que isso pode ser bem feito, com qualidade e bom gosto. Torcemos para que sejamos somente a primeira de muitas revistas digitais de literatura de ficção científica e fantasia a mostrar o talento dos escritores amadores brasileiros. Charles Dias Coordenador e Editor [email protected] 4 O MERCENÁRIO E O ABISMO 5 O Fantasma da Doca 6 Aguinaldo Peres Havia alguma coisa de muito estranho na doca 6, algo que por quase dois séculos escapou ao entendimento de humanos e robôs. O que estaria causando aquelas anomalias, aqueles sons estranhos, aqueles alertas sem motivo aparente? O que há de tão estranho na doca 6? 6 [22 de junho de 2134] Com um estalo, o equipamento de escuta começou a transmitir: — Emergência! ... particular ... solicita liberação ... atracar na doca 6. Problema nos ... manobradores ... citamos equipe de emerg ... Repetin ... A única pessoa presente na sala tentou responder, porém tudo o que conseguiu foi fechar o canal de comunicação e acidentalmente apagar a chamada dos registros, antes de fugir com medo de ser responsabilizado. Quando o controlador retornou à sala com seu cartão de crédito, viu a embalagem de minipizza sobre a bancada, mas não viu o entregador. Deu de ombros e guardou o cartão no bolso do macacão. Com o sindicato dos estivadores em greve, nem se importou em checar o equipamento de rádio e se pôs a comer. Estava no terceiro pedaço quando todos os alarmes dispararam. [6 de janeiro de 2136] Do lado de fora da doca 6, onde ocorrera o grande acidente de 2134, Cintya vestia o traje pressurizado sobre o maiô e reclamava. — Por que eu? — Porque você é uma das poucas engenheiras com certificado de operação no vácuo. — Mas vivemos numa colônia espacial! É como morar numa ilha e não saber nadar... Luther apenas sorriu. Havia outros profissionais aptos à tarefa, porém gostava de apreciar a forma como o traje justo realçava as curvas da colega. Ele a ajudou a colocar o colete com o reservatório de oxigênio e os módulos de bateria. Depois, verificaram juntos a integridade do traje e seus sistemas. A engenheira atravessou a câmara de descompressão instalada há um mês pela turma de manutenção e caminhou cuidadosamente pelos escombros deixados pelo acidente; vigas torcidas e chapas de aço rasgadas. O resto havia sido levado pelas equipes de resgate, pelas seguradoras e pelos catadores de sucata. — Até aqui está tudo normal. Vou seguir agora para o local onde o pessoal de manutenção estava. — O.k. Caminhe com cuidado. As docas ocupavam o último nível da gigantesca estrutura onde a gravidade era apenas três quintos da gravidade terrestre. Isso facilitava a carga e descarga dos cargueiros comerciais nos hangares e também a manutenção nas docas. Cintya avançou para o centro onde o piso de metal fora parcialmente seccionado com o impacto. — Nada ainda. — Tente fazer alguma coisa, barulho, sei lá. Em resposta ao pedido, chutou uma placa de aço que saiu rodopiando silenciosamente na baixa gravidade, ergueu-se um pouco do chão e ricocheteou numa parede até parar. Cintya sorriu por trás da máscara. Ela se lembrava das muitas teorias esdrúxulas propostas pelos colegas do curso de engenharia que iam de alienígenas a fantasmas. No final das contas, a história do Fantasma da doca 6 era apenas uma história. O FANTASMA DA DOCA 6 7 Olhou para o alto, onde podia ver o tremeluzir do brilho do campo eletromagnético da colônia através da rede metálica que cobria o rombo deixado pelo iate espacial. Fora muita sorte não existirem vítimas da colisão. Não havia ninguém na instalação, por causa de uma greve, e nem na pequena nave. — Nada. Nem sons de correntes, nem uivos espectrais, nem luzes piscantes. Vou até o outro lado da estrutura apenas por desencargo de consciência. — O.k! Enquanto caminhava ela pensava no grande mistério: como uma nave sem tripulantes e com o piloto automático desligado poderia ter deixado a órbita de Ganímedes e voado quase quatro unidades astronômicas para atingir exatamente o centro da doca 6? Cintya quase podia ver a simulação da caixa-preta: o iate, em trajetória elíptica para a Terra, mudando subitamente de direção e aproximando-se da colônia espacial. Ajustara a direção e a velocidade conforme o manual de procedimentos e, por fim, atravessara a porta da doca. A nave arrastara os braços de atracação, cortando o metal ao mesmo tempo em que sua carcaça era rasgada e uma grande língua de fogo formada por ar e plasma escapava para o espaço. Fim. Ou assim se pensava até que, há um mês, após meses de investigação e de um demorado processo de licitação, o trabalho de reconstrução fora iniciado e interrompido. Motivo: atividade paranormal. E lá estava ela, como a heroína de algum filme B de terror, caçando fantasmas. Teria rido se... [24 de janeiro de 2227] Beto encostou a testa reverentemente no metal frio. Finalmente havia encontrado a lendária doca 6, abandonada e soterrada por novas camadas metálicas enquanto a colônia espacial se ampliava. — Roy, comece a gravar. O pequeno robô customizado ergueu dois braços munidos com holofotes para iluminar o rapaz de 16 anos, fantasiado de explorador do século XIX. — Sou Humberto Bisk Teixeira, da Sociedade Mitológica do Espaço Profundo. Após infindáveis meses de pesquisa, conseguimos localizar a doca 6, apagada dos registros históricos há dezenas de anos. Atrás desta porta de aço, ocultam-se segredos e mistérios que as gerações passadas acharam por bem relegar às trevas. Mas nós, da SoMEP, lançaremos uma luz nessa escuridão. — Mas antes de abrirmos a porta para os mistérios da doca 6, irei vestir essa máscara. Afinal, não sabemos em que condições se encontra o ar no interior — Beto colocou a máscara, fez sinal de positivo para a câmera e liberou o mecanismo da tranca da porta estanque. A chapa de aço deslizou para o lado, o silvo do ar escapando, um ar frio que fez a pele do rapaz se arrepiar. Próximo ao chão uma nuvem de pó se ergueu. A um sinal, o robô avançou iluminando o interior do hangar. — Como podem ver, o chão está coberto por uma camada de poeira e não existe qualquer marca de pés ou rodas, o que testemunha o abandono do local. Me sinto como os antigos exploradores, entrando numa primitiva catacumba perdida. Agora, seguiremos os passos da engenheira Cintya Luther, a última pessoa a testemunhar fenômenos sobrenaturais que ela relatou, de forma 8 AGUINALDO PERES oficiosa, a uma de suas netas. Sobre seus quatro pequenos pneus, o robô deslizou lentamente para dentro, sempre filmando os locais que iluminava. Humberto sentia orgulho de si, sua voz continuava firme apesar do medo que sentia, pois nunca estivera em um nível tão baixo. Na verdade, era um nível há muito abandonado e somente liberado para as equipes de manutenção. Respirou fundo e seguiu seu robô, mantendo-se dentro do halo de luz. Afinal, se quisesse tornar-se um verdadeiro jornalista investigativo precisava ter a coragem de enfrentar o desconhecido e quebrar algumas regras. O robô parou no centro do hangar, apenas o leve zumbido do motor elétrico marcando o silêncio. Beto se posicionou sob a luz. — Estamos exatamente no centro da doca 6. — Sua voz baixa e solene ecoava nas paredes distantes. — É a partir deste ponto que todos os relatos afirmam que estranhos eventos ocorreram. Ilusões psicossomáticas? Histeria coletiva? Manifestações sobrenaturais? Ou interferência alienígena? Tirem suas próprias conclusões. Abram seus olhos e ouvidos e preparem-se para o extraordinário. O rapaz gesticulou e o robô se pôs em movimento. Ele seguia bem próximo do robô, o sangue pulsando como um tambor em seus ouvidos. E então, a escuridão. Cego, Humberto agarrou-se ao robô, suas mãos tateavam desesperadas pelo botão de liga/desliga pressionando-o várias vezes, sem sucesso. A respiração ofegante embaçou a máscara e lágrimas já escorriam pelo seu rosto quando a luz voltou. — Maldita lata-velha! — Socou, aliviado, a carenagem de plástico. As luzes iluminaram Humberto e a cabeça do robô girou para focar a câmera do rosto do rapaz. Uma voz metálica vibrou no alto-falante: — Quem é você? [7 de novembro de 2291] — Ei, chefe! Tem uma porta trancada aqui. — Trancada? Impossível! — o líder da equipe checou a fechadura eletrônica que havia sido deliberadamente travada. — Maldição! Algum espertinho trocou as senhas. — retirou um decoder da cintura e reconfigurou as senhas. A porta se abriu e um pequeno robô saiu bamboleando pela porta. Era um modelo antiquado, enferrujado. Tinha o plástico manchado, um dos pneus furado e um fio ligava-o a algum ponto no interior escuro. — Levem-me ao seu líder. — O som saiu chiando do alto-falante. — Mas que porcaria é essa?!? — Parece ser o brinquedo de alguma criança, chefe. O que vamos fazer com ele? O responsável olhou carrancudo para o subordinado e para o robô, indeciso entre qual deles seria o mais inútil. — Carlão, o que a gente veio fazer aqui? — Ué, chefe, viemos abrir todas as portas e desligar os circuitos elétricos, antes de inundar o anel do nível 11. O FANTASMA DA DOCA 6 9 — Exato. Então pega essa coisa e joga no lixo com o resto da sucata, enquanto eu desativo esta seção. [27 de fevereiro de 2292] Apesar de não existir na colônia espacial o que a sociedade convencionou a chamar de dia, o tempo continuou a ser medido em períodos de 24 horas, divididos em três turnos que recebiam o nome de 'Manhã', 'Tarde' e 'Noite' por conveniência. E foi o controlador do período noturno quem recebeu a transmissão. — Transportador de sucata, prefixo CCS-64DK, com destino a Terra, pede autorização para deixar a Doca 6. O controlador estranhou a voz do piloto automático, mas não o suficiente para interromper o procedimento de decolagem. — CCS-64DK, autorização concedida, liberando garras de atracação. Aguarde a abertura total do portão. A mão do controlador ficou suspensa sobre o painel de controle, indeciso. O colega ao lado comentou: — Mas nós não temos uma doca de número seis. Os dois ainda se encaravam quando os alarmes soaram. 10 AGUINALDO PERES 11 Robby Carlos Relva Um robô pode amar? A paixão pode encontrar morada em um peito de engrenagens e circuitos? Cientistas dizem que não, estudiosos dizem que sim. O que realmente importa é que aquele robô acreditava que amava e lutaria para defender seu objeto de adoração, nem que para isso precisasse matar. 12 Creio que robôs não se recordam, mas apenas acessam arquivos antigos. A diferença pode parecer insignificante ou sem sentido para um humano, mas é fundamental para uma máquina. E para embasar melhor minha afirmação, tenho quatro fatos a apresentar: Primeiro fato Ao contrário do homem, é muito complicado para nós, robôs, recordarmos sozinhos nossas lembranças porque temos registros demasiadamente detalhados de tudo o que vivemos. É grande a dificuldade em discernir os aspectos mais relevantes de um momento vivenciado. Sempre precisamos do foco de um ser humano. Sei que essa dificuldade pode lhe parecer estranha, mas vou dar um exemplo simples que talvez ilustre bem o problema: um beija-flor visitando um canteiro de flores. O que é mais importante? O belo e rápido movimento do beija-flor, que se assemelha ao vôo dos insetos? A polinização da flor, que garante a perpetuação da planta? O maravilho artifício da natureza, que desenvolve flores que atraem a ave? Ou a incrível aerodinâmica de todas as aves, que proporciona sua fantástica capacidade de voar? Você consegue entender? Para um robô, todas as informações são importantes. Podemos, após observar, relacionar os dados de uma cena e cruzá-los com informações antigas chegando a resultados infinitos! Deixe um robô em frente a um cenário com muitas informações e o verá entrar em estado contemplativo por tempo indeterminado. Humanos riem dessa aflição robótica! Segundo fato A capacidade de reviver intensamente as recordações pode acarretar, em alguns robôs, outro problema muito mais sério do que o de não definir relevâncias: perder-se em suas próprias lembranças e acreditar que tudo o que recorda está acontecendo no momento presente. É um tipo de psicose cibernética que não tem como ser revertida nos casos mais acentuados, obrigando os proprietários do robô a deletar todas as memórias. Acho que conseguem compreender que essa ação significa para nós a própria morte, não? Terceiro fato Existem ainda casos mais graves, quando robôs crêem que lembranças alheias são suas. Suponho que uma boa analogia para essa falha no processamento de dados seria um humano com um distúrbio de troca de personalidade. Mas é muito raro, com apenas dois casos registrados em robôs. Mas, acreditem, nem todas as lembranças de um robô precisam ser digitais. Alguns de nós guardamos um ou outro objeto físico. A explicação para isso? Um capricho robótico ou uma mania de colecionar suvenires com a desculpa de serem lembranças físicas. Afinal, como as recordações são tão fielmente cristalizadas em nossas mentes, não há outra explicação para isso. “Focar uma lembrança?”, você poderia arriscar. Definitivamente, não. Esses objetos são apenas troféus de um momento inesquecível, entre todos os momentos inesquecíveis que é a mente de uma máquina. O meu troféu é uma fotografia. ROBBY 13 Quarto fato E, finalmente, o quarto e raríssimo fato, que antes de ter acometido minha mente era apenas descrito em teorias ciberfilosóficas: as chamadas memórias fragmentadas. Antes que eu explique o que é isso, gostaria de finalmente me apresentar. Eu sou Robby e apesar de o trabalho de juntar os fragmentos do meu passado ter sido muito árduo durante os últimos anos, acho que consegui montar um panorama razoavelmente coeso da minha própria história. O começo é bem fácil de contar e, ironicamente, o mal em minha mente – a fragmentação da minha memória –, contribuiu para que eu pudesse definir as relevâncias! Pois bem. Fui construído no quarto planeta da grande estrela Altair, na constelação de Aquilae. Meu criador foi o dr. Edward Morbius, que usou a tecnologia ancestral dos antigos Krells, uma civilização extremamente avançada e já extinta. Minha finalidade? Servir ao doutor e a sua adorável filha, Altaira Morbius. Como disse, minha lembrança física é uma fotografia, que guardo desde meus tempos em Altair-4. É uma foto que me mostra junto da bela Altaira. A composição me retrata ligeiramente inclinado, colocando um sapato em um dos delicados pés da filha do doutor. Foi obtida com uma câmera antiga, uma verdadeira relíquia de um dos tripulantes da nave Belerophon, que levou Morbius e sua esposa para o planeta. Mas quem tirou a foto não foi seu antigo dono, que já se encontrava morto, e sim o próprio doutor, em um de seus raros momentos de bom humor. Havia um perigo adormecido em Altair-4, um monstro criado pelos pesadelos da tripulação da Belerophon. Quando os homens da nave C-57-D dos Planetas Unidos, comandada pelo comandante J. J. Adams, vieram resgatar os sobreviventes, encontrando apenas Morbius, sua filha e eu, o monstro voltou a agir implacavelmente. Esses desagradáveis problemas resultaram na morte do doutor Morbius. Eu e sua filha acabamos a bordo da nave de resgate. Servi na nave como uma espécie de segundo navegador. Era um trabalho interessante que ocupava meus circuitos integralmente. Infelizmente, meus dias no cruzador estavam contados, devido ao sentimento de ciúmes que o comandante alimentava. Não consigo definir claramente como isso aconteceu, mas estava ligado a meu relacionamento com Altaira, por quem ele estava apaixonado. Após a minha expulsão da nave, arquitetada por Adams, que alegava que eu oferecia risco aos tripulantes devido às minhas características Krell, minha memória começou a se fragmentar. São recordações frágeis e nebulosas, trechos de aventuras em planetas estranhos, galáxias distantes e realidades alternativas que povoam e confundem minha mente digital. Lembro-me de computadores que queriam dominar mundos, de famílias perdidas no espaço. Terras devastadas onde homens e mulheres vagavam em arcas modernas, levando um pouco de esperança aos menos afortunados. Ou heróicas amazonas quase tão belas e formosas quanto a pequena Altaira. Altaira, minha adorável menina, que eu acreditava estar definitivamente afastada de mim, pela vastidão do espaço e inclemência do tempo... Nunca me desfiz da fotografia. O reencontro Desafiando todas as probabilidades, hoje vou rever Altaira! Estou a caminho de sua nova casa no planeta Terra, uma bela residência com grandes janelas panorâmicas e uma vista privilegiada. Já é noite. Toco a campainha e prontamente o portão se abre. Fico entusiasmado com a 14 CARLOS RELVA idéia de que ela também esteja ansiosa por me rever. Subo as escadas e chego à sala principal. Altaira está lá. Ela veste um traje simples, mas elegante. Está linda. — Robby, que prazer em vê-lo! — diz Altaira. — Foi o estúdio que te mandou aqui? Neste instante entra no recinto um homem de porte atlético. É o comandante Adams! Ele se aproxima de Altaira, parece aflito, e tenta afastá-la de mim. “Não! Desta vez, não a perderei!”, pensei. Nos momentos seguintes uma sensação estranha percorreu meus circuitos. Seguro firmemente o braço de Adams e arremesso o seu corpo em direção à janela. O vidro tenta conter o impacto bravamente, contorcendo-se como borracha, mas acaba espatifando em inúmeros fragmentos arredondados. O corpo do comandante cai no piso da garagem. Altaira corre em minha direção aos prantos. Ela está confusa e assustada. Bate em mim várias vezes com os punhos fechados. Abraço-a forte, como um namorado apaixonado, apertando seu peito contra o meu, sentindo o ar esvair de seus pulmões rapidamente. Quando Altaira já está desfalecida a porta atrás de mim é arrombada e sinto um disparo paralisante. Por um momento, tudo se torna escuridão. Quando recobro parcialmente os sentidos visuais e auditivos, percebo que a sala está repleta de policiais. Um dos homens se dirige para a janela já totalmente restituída. — Foi uma queda e tanto, detetive! — diz um policial de cabelos grisalhos. — Ele é um dos atores do novo filme, não é? — É; assim como ela — diz outro homem, agachado ao lado de Altaira. — Ambos participaram da refilmagem de “O Planeta Proibido”. A segunda refilmagem, se não me engano. E então, como o cara está? — Todo arrebentado, mas vai sobreviver. Já chamaram a equipe médica e... Apesar de imobilizado, visualizo um pequeno veículo aéreo pousando na garagem, próximo ao comandante Adams. — O plano de saúde desses caras deve ser muito bom! Os médicos já chegaram. — diz o policial. — E a atriz? — Teve sorte, também está desmaiada, mas não sofreu tantos ferimentos. Então, o velho policial se aproxima de mim. — Esse robô foi usado no novo filme? — Não, — diz o detetive — é uma cópia com inteligência artificial de “Robby, o Robô”, de 1956. Estava na exposição dedicada ao robô, durante o coquetel de lançamento do novo longametragem, junto com figurinos e cenários inspirados no filme original e uma lista completa de todos os filmes de que Robby participou. — Acha que é por isso que o robô pirou? — pergunta o policial. — Pensou que era realmente Robby? — Acredito que sim. Ele fugiu da exposição e veio direto para cá. Liguei para avisá-los do perigo, mas o ator que me atendeu não teve tempo de se proteger ou à namorada. O robô já estava na casa. — E como você descobriu que ele atacaria a atriz principal do filme? — Uma das atrações da exposição é um álbum de fotografias da produção do clássico de ROBBY 15 1956. Percebi que uma das fotos, a de Robby com a atriz Anne Francis, havia sido arrancada. Como Anne interpretou Altaira, supus que o robô enlouquecido poderia estar no encalço da atriz que reencarnou o papel. — Uma bela dedução. E salvou a vida de duas pessoas! — congratulou o policial. — Mas esse robô não me parece completamente desligado... — E não está, o cérebro mnemônico continua ativo. Mesmo se o robô for desligado, isso continua funcionando. Fica constantemente processando dados, cruzando informações. Já vem assim de fábrica. Provavelmente foi aí que o problema começou e a pobre máquina nem se deu conta. Quando os registros caem nessa plataforma secundária, o robô nem fica ciente disso. — Poderíamos, então, dizer que é o subconsciente dele? — De certa forma, sim. Mergulhei novamente na escuridão e não emergi mais. O sonho A radiação dos primeiros raios do sol de Altair-4 é captada pelos meus sensores internos de calor. Como Morbius programou, é hora de despertar. Estou novamente em meu verdadeiro lar. — Acordou, dorminhoco? — diz Altaira. — Venha, quero dar um passeio no jardim. Está um dia maravilhoso! É realmente uma manhã radiante. Posso ouvir o canto dos pássaros que sobrevoam o jardim de Morbius. Posso ver as flores desabrochando. E tenho a certeza íntima que o velho doutor não está em casa. Não há mais ninguém no planeta, apenas eu e Altaira. Sei que o que aconteceu na casa da atriz e aquele diálogo entre o detetive e o policial não foram um devaneio. É o registro mais concreto e fidedigno que tenho armazenado em minha mente há tempos. Também acredito na possibilidade de minhas divagações sobre as dificuldades de um robô recordar lembranças serem apenas alucinações na mente de uma inteligência artificial, que busca desesperadamente a solução para montar uma realidade própria e coesa. Por que minhas idéias fluem melhor agora? Será por causa do coma a que fui induzido? E essa realidade fantástica num planeta concebido pela criatividade humana? É minha mente secundária? Estou sendo completamente deletado e desativado? Ou tudo já ocorreu e os técnicos estão carregando minhas memórias novamente? Altaira está se banhando no lago. Seu frágil corpo nu nada com a desenvoltura de um peixe. Enquanto a vejo, minhas dúvidas vão perdendo importância. Acredito que isto é o mais próximo que um robô pode chegar de sonhar. E podem ter certeza de que vou viver esse sonho intensamente, enquanto durar. 16 CARLOS RELVA 17 Demônios do Passado Charles Dias Em um mundo que começa a esquecer seu passado sangrento e violento, a esperança convive com a devastação, a prosperidade se sobrepõe a velhos pecados de guerra. Nesse mundo de contrastes, uma mulher, acostumada a apagar o passado em nome do futuro, terá de se confrontar com seu maior pesadelo. 18 “A Grande Invasão foi um capítulo especialmente sangrento em nossa história. Os Invasores surgiram das profundezas do espaço e tomaram nosso mundo de assalto. Por falha deles e sorte nossa, não foram rápidos o suficiente para evitar que focos de resistência fossem formados. Em um segundo momento, a resistência se coordenou e conseguiu, após anos de luta, expulsar os Invasores não só de nosso planeta, mas de todo o sistema solar. Ainda hoje, uma década depois do Dia da Libertação, a presença dos Invasores se faz sentir nas velhas feridas de guerra, nos milhões de desaparecidos e, principalmente, na presença vestigial de sua mais infame arma de dominação: soldados clonados de nosso próprio DNA, idiotizados para aceitarem seu comando e que, abandonados à própria sorte, continuam lutando, como se seus senhores ainda dominassem o planeta”. Trecho do prefácio de “História comentada da Grande Invasão” *** A chuva cai pesada sobre as ruínas da cidade destruída, imersa na escuridão da noite. Um vulto caminha silenciosamente por entre restos de carros e prédios demolidos. Então fica imóvel, como um animal farejando. De repente, algo grande e pesado ataca, saltando no escuro. Encontra somente o chão, um segundo antes de receber uma violenta descarga elétrica que ilumina a noite com um brilho azulado e o arremessa contra uma parede. Outros dois atacantes surgem das sombras. Movimentos rápidos e violentos na escuridão. Nova descarga elétrica arremessa mais um atacante desacordado ao ar. Finalmente um último clarão, e está tudo acabado. Uma nave surge no céu com os faróis ligados e gira sobre os escombros. Assim que pousa, um homem desembarca: — Dessa vez você teve sorte, esses clones são mais idiotas que de costume — brincou. — O que importa é que eu os cacei em uma hora e quarenta minutos. Isso significa que você perdeu a aposta. Estou errada, Mariko? — disse a mulher, vestida com uma armadura tática flexível negra como a noite. Sentada sobre um grande bloco de concreto, ela tem a seus pés três homens com rostos idênticos, imundos e desacordados. — De jeito nenhum, chefe — respondeu a piloto da nave. — Isso que dá trabalhar com mulheres, elas sempre se unem contra os homens — reclamou o homem, em tom de brincadeira. — Vamos levá-los para o distrito e depois você vai pagar a aposta que perdeu — concluiu a mulher, saltando graciosamente ao chão. *** No bar lotado, as garçonetes tinham de se contorcer para levar as grandes bandejas carrega- DEMÔNIOS DO PASSADO 19 das de bebidas. Uma banda se apresentava em um pequeno palco tocando velhas músicas de rock, as mesas estavam todas ocupadas e uma pequena multidão se acotovelava ao longo do comprido balcão de alumínio, bebendo e conversando. — Que tal oferecer uma bebida a um irmão de armas, major? — Irina ouviu uma voz masculina sobre seu ombro. Ao virar, deparou-se com um rosto que não via há muito tempo. — Mayers, é você mesmo? — perguntou a mulher, reconhecendo seu sargento dos tempos da guerra. — Sim, senhor — respondeu, fazendo uma continência. — Deixe de bobagem e vamos tomar algo pelos velhos tempos — convidou Irina. Assim que chegaram à mesa onde estavam Mariko e Lopez, Irina fez as apresentações. Mayers continuava o mesmo homem forte de sorriso largo. Um homem de aspecto inteligente o acompanhava e foi apresentado como seu empregador. — Ouvi dizer que você está no ramo da captura de clones — disse Mayers, antes de tomar um gole de cerveja. — É um bom negócio, rendoso e ajuda a manter a forma. Lopez cuida do equipamento, Mariko pilota e eu caço — respondeu Irina. — É exatamente por isso que estamos aqui. Phil, os detalhes são com você — disse o exsargento. O estranho que acompanhava Mayers limpou a garganta antes de falar: — Tenho uma fábrica de processadores quânticos em Chatakawa e estamos enfrentando um problema sério com clones. Contratei Mayers como chefe de segurança e ele sugeriu procurála para cuidar do problema. — Por que alguém abriria uma fábrica em Chatakawa? Naquele lugar só tem areia e sol escaldante — perguntou Lopez. — Estamos lá exatamente pelo sol. Nossa planta é totalmente alimentada por energia solar e não há melhor lugar para instalar painéis solares que em Chatakawa — respondeu Phil. — E qual é o problema com os clones? — perguntou Irina, fazendo sinal para a garçonete trazer outra rodada de bebidas. — Recentemente, terminamos de instalar um novo campo de coletores solares e desde então já sofremos dois ataques de um bando de clones que não sabíamos que existia na região. Por sorte, não conseguiram fazer estragos consideráveis, até agora — respondeu o empresário. — Pensava que Chatakawa já tivesse sido declarada livre de clones — comentou Mariko. — Eles estão em todos os lugares, esses malditos sabem se esconder — respondeu Mayers, com desgosto. — Vocês não têm seguranças para cuidar disso? — perguntou a ex-major. — Já enviamos várias equipes atrás do bando sem sucesso. Por isso Mayers sugeriu que o melhor seria procurarmos você e sua equipe — respondeu Phil. — Vai custar caro — disse Irina. — Dinheiro não é problema — respondeu o empresário com a certeza de quem pode gastar grandes somas sem pensar muito. 20 CHARLES DIAS O restante da noite foi, para Irina, uma mistura de presente e passado. Alegria por estar viva e dor pelas feridas que nunca cicatrizavam por completo. Quando chegou em casa, tomou um banho demorado e chorou amigos que viu tombar. Somente com a ajuda de dois tranqüilizantes conseguiu pegar no sono, já tarde da noite. *** Alguns dias depois da conversa no bar, o grupo viajou para Chatakawa em uma grande nave de transporte. Durante o vôo, reuniram-se para tratar dos detalhes do trabalho. — Vocês já nos mostraram mapas, fotos dos estragos causados, um punhado de informações inúteis, mas onde estão as gravações em vídeo dos ataques? — perguntou Irina, irritada. — Não temos nenhuma — respondeu Phil, visivelmente constrangido. — A primeira coisas que os clones fizeram foi destruir as câmeras de segurança —completou Mayers. — Clones não costumam fazer esse tipo de coisa quando atacam — disse Lopez, em tom preocupado. — A não ser que sejam clones de segunda geração — disse Irina, com desgosto. — Como assim? Há mais de um tipo de clone? — perguntou Phil. — Nos últimos meses da guerra, os Invasores usaram uma nova geração de clones, híbridos com alguma raça alienígena, mais fortes, inteligentes e perigosos que os clones comuns. Quando foram expulsos, os Invasores deixaram todos os clones para trás. Desde então, a prioridade do Comando Militar foi caçá-los e abatê-los antes dos clones de primeira geração. Esses são mais um incômodo do que um perigo. Acreditava-se que a segunda geração havia sido extinta, mas esses ataquem indicam que alguns conseguiram escapar. Por algum motivo, somente agora voltaram a agir — explicou Irina. A reunião terminou muito antes da viagem e depois de um rápido almoço, cada um procurou um lugar onde pudesse tirar um cochilo ou fazer alguma outra coisa para passar o tempo. Irina sentou-se junto a uma das grandes escotilhas redondas e ficou observando a paisagem, enquanto tentava descobrir o que a incomodava naquela missão. Sabia que alguma coisa não fazia sentido naqueles ataques, mas não conseguiu precisar o que era. Isso a fez pensar que precisariam de muito mais informações do que tinham antes que pudesse pensar em um plano de ação. Os dias seguintes à chegada na fábrica foram de planejamento e preparação, até que finalmente estavam prontos para começar a trabalhar. Numa noite escura com ventos fortes, Irina partiu com sua equipe e Mayers em uma nave de transporte rápido. Foram em direção a uma velha cidade abandonada, ao sul da fábrica, e que a ex-major acreditava ser o provável esconderijo do bando de clones. Quando já estavam perto da cidade, Mayers foi chamado por Phil pelo rádio. — Mayers, fomos atacados novamente, dessa vez no portão cinco. Conseguimos conter o ataque. Eles fugiram rumo ao sul, em direção à cidade abandonada — comunicou Phil, nervoso, pelo rádio. — Irina, essa é nossa chance de pegar esses desgraçados — disse Mayers, animado. — Lopez e eu ficaremos na cidade, você volta com Mariko e os segue a partir da fábrica, DEMÔNIOS DO PASSADO 21 com seu pessoal. Se não encontrarmos nada aqui, vamos ao seu encontro e então os pegamos em duas frentes — respondeu a ex-major com tranqüilidade. A nave sobrevoou baixo a cidade abandonada para que os dois vultos saltassem, e então tomou rumo norte. *** A ventania produzia sons estranhos na cidade abandonada. Com o auxílio de uma série de filtros visuais não demorou muito para que a Irina captasse uma leitura térmica anormal em um dos velhos prédios abandonados, intensa demais para ser um dos pequenos animais do deserto, mas muito fraca para ser um clone. — Captei uma leitura térmica anormal em um prédio ao sul — disse a ex-major pelo comunicador. — Você não é a única, também detectei uma flutuação magnética ao norte da cidade que é bem estranha — respondeu Lopez. — Eu verifico a leitura térmica e você, a flutuação magnética. Não vá bancar o herói. Se suspeitar de algum perigo, faça contato imediatamente — ordenou Irina, enquanto caminhava com cuidado em direção à rua larga varrida pelo vento. O prédio estava meio enterrado na areia e todas as entradas estavam bloqueadas. Com agilidade, Irina saltou para o telhado, onde encontrou uma telha solta que retirou sem dificuldade. Antes de saltar para dentro do prédio, checou a carga elétrica da armadura para ter certeza de que poderia se defender se fosse preciso. Por alguma razão, que ela mesma não compreendeu, ajustou a descarga para potência máxima, o suficiente para derrubar meia dúzia de clones grandes de uma só vez. Era um grande armazém vazio. O filtro infravermelho mostrava somente uma mancha colorida a algumas dezenas de metros, era a fonte de calor que havia captado. Depois de tentar mais alguns filtros, Irina teve certeza de que poderia ligar as lanternas da armadura sem que isso representasse perigo. Caminhou com cuidado em direção a fonte de calor, monitorando ao seu redor para o caso de alguma armadilha. À medida que se aproximava, conseguiu vislumbrar uma coluna mais ou menos da sua altura. Quando se aproximou o suficiente, as luzes mostraram uma coluna formada por um feixe de hastes de metal, emaranhado com grossos cabos que serpenteavam pelo chão. Ali, estava empalado um torço de metal fosco com somente um braço, encimado por uma cabeça sem nariz ou boca e, no lugar dos olhos, duas grandes esferas de cristal negro com uma luz vermelha mortiça no interior. Um Invasor. Irina sentiu como se uma bomba de gelo explodisse em seu estômago e teve de usar todo o seu autocontrole para não entrar em pânico. Deu um passo vacilante para trás, as pernas moles, as mãos trêmulas. Pensou que aquilo só podia ser um pesadelo. Dez anos de lembranças de Invasores trazendo morte e sofrimento a assaltaram. Não teve dúvida; ordenou que sua armadura lhe injetasse uma dose de tranqüilizante de combate, pois tinha certeza de que não conseguiria manter o controle por muito mais tempo. — Lopez, você já checou aquela flutuação magnética? — perguntou a ex-major com uma calma artificial. 22 CHARLES DIAS — É um túnel com cabos de transmissão de energia ativos. Isso não deveria estar aqui, não havia nada disso nos mapas... — começou a responder, quando foi interrompido pela ex-major: — Esqueça isso e venha para minha posição agora mesmo, encontrei algo muito mais estranho — disse, sem tirar os olhos do Invasor que continuava inerte. Pouco depois, Lopez chegou ao armazém, vindo pelo mesmo caminho que Irina. Quando viu o Invasor, deixou escapar uma série de impropérios. — Pensei que nunca mais veria um desses malditos — disse, quando finalmente conseguiu articular uma frase, com o medo impresso na voz. — Você não é o único. Agora me diga: o que é que essa coisa está fazendo espetada aí? — ordenou Irina com uma frieza que assustou a ela mesma. Lopez examinou o estranho achado com as mãos trêmulas. Então deu um salto para trás, caindo no chão pesadamente quando perdeu o equilíbrio. Mesmo assim, continuou a se afastar rastejando pelo chão coberto de poeira grossa. — Droga, essa coisa não está morta! — gritou. — Como assim? — perguntou Irina. — Você me ouviu. Essa coisa está viva. Esses cabos o estão alimentando com energia, devem ser os mesmos cabos que achei no túnel fora da cidade — respondeu o velho engenheiro, com a boca seca. Tudo aconteceu muito rápido. Um estrondo de várias telhas desabando nos fundos do armazém fez Irina se virar com um salto. Pouco depois, ouviu um grito de dor de Lopez. Quando se virou, viu o amigo no chão. De pé ao lado dele, um Invasor segurava-lhe o pulso com força, o braço torcido, obrigando-o a permanecer no chão com uma arma apontada para a cabeça. Um tremor involuntário percorreu sua espinha ao encarar os olhos vermelhos do Invasor fixos nela. Para Irina o tempo pareceu congelar, e nada mais existia além daqueles demônios do passado que voltavam para assombrá-la. A soldado se preparou para tentar livrar Lopez daquele abraço mortal, quando uma série de pequenas explosões arruinou sua concentração. Por um enorme buraco aberto numa das paredes, em meio a um turbilhão de areia, surgiram três outros pares de olhos, vermelhos como ferros em brasa. Outros Invasores. A ex-major sentiu que aquele era o melhor momento para fazer alguma coisa. Quando deu o impulso para saltar com fúria sobre o invasor que prendia Lopez, sentiu algo agarrar-lhe com força o pescoço, puxando-a para trás. Debateu-se para entender o que estava acontecendo e só então viu seu captor: o Invasor empalado, que usava seu único braço para subjugá-la. Ainda se debatendo, Irina conseguiu ver quando a cabeça do Invasor que mantinha Lopez imóvel explodiu. Logo depois, ouviu o estampido inconfundível de um rifle de precisão. Enquanto o corpo sem cabeça do Invasor abatido desmoronava, ela sentiu o braço que a mantinha presa afrouxar. Aproveitou aquela chance inesperada para girar o corpo o máximo que pôde e, com a mão esquerda, agarrou o feixe de cabos que subia para o tronco do Invasor. Então, acionou o gatilho junto ao seu queixo e disparou a descarga elétrica de sua armadura. Uma explosão a arremessou no ar violentamente e a ex-major sentiu a dor se espalhar pelo corpo quando caiu desajeitada no chão a uma dezena de metros de onde estava. Ainda assim, virou-se o mais rápido que pôde, pronta para disparar novamente, mas somente viu de relance os três outros Invasores saltarem para dentro do buraco no fundo do armazém. Lopez ajudou-a a se levantar, os analgésicos injetados pela armadura já faziam efeito. Mayers DEMÔNIOS DO PASSADO 23 se juntou a eles pouco depois, vindo de um passadiço junto do telhado, o longo rifle de precisão em suas mãos. — Vocês estão bem? — perguntou o ex-sargento. Antes que pudessem responder o chão começou a tremer e então uma nova explosão encheu o armazém com uma grossa nuvem de areia e poeira. Correram os três para fora com as armas prontas para disparar, mas somente encontraram um enorme buraco no lugar do que um dia havia sido a praça central da cidade. Irina olhou para o céu e ainda conseguiu ver a pequena estrela verde que diminuiu de tamanho até desaparecer, os outros Invasores conseguiram fugir. *** “O Incidente de Chatakawa foi fundamental para que o Serviço de Inteligência colocasse a descoberto os planos dos Invasores para monitoramento e espionagem. É consenso dessa comissão que a finalidade última desses planos seria uma campanha de sabotagem e preparo de uma possível nova invasão de nosso sistema solar. Se os restos dos dois Invasores destruídos pela ex-major Irina, pelo ex-capitão-engenheiro Lopez e pelo ex-sargento Mayers não foram de grande valia nas investigações – a não ser como prova de sua presença física em nosso planeta –, os computadores deixados pelos Invasores sobreviventes foram fundamentais. Nesses computadores, foram encontrados logs de missões e documentos de grande importância. Foi apurado que algum problema no gerador de energia dos Invasores de Chatakawa os obrigaram a se passar por clones, simulando ataques a fábrica de processadores quânticos para roubar energia para alimentar seus equipamentos e manter suas operações até que o gerador fosse consertado ou reposto”. Trecho do Relatório Final da Comissão de Investigação de Incidente de Chatakawa 24 CHARLES DIAS 25 A Solução por um Fio Joshua Falken Dizem os cientistas-poetas que o universo é um grande espetáculo, e que os astros dançam balé obedecendo às notas da sinfonia das equações matemáticas, sob o comando das leis da física. Para uma nave condenada, a única possibilidade de salvação é participar desse espetáculo de titãs. 26 Na faculdade, diriam que era apenas uma missão de rotina. Sem surpresas, sem preocupações. Só que, no espaço, quando você deixa de se preocupar, a Lei de Murphy ataca. Foi o que Susan Kelvin Nicolelis, a engenheira-assistente (estagiária) da espaçonave cargueira Cassini-5, pensou ao recapitular o que tinha acontecido. Tinham acabado de deixar a Estação Mineradora Júpiter, acelerando para retornar para a Terra, quando um grande tremor sacudiu a nave. Susan estava em sua cabine de descanso, mas se levantou imediatamente. Antes que chegasse ao seu posto, os alarmes soaram e a voz do comandante surgiu no intercomunicador: — Atenção, todos, preparem-se para Ejeção Órion! Repito, Ejeção Órion! Imediatamente, ela se encolheu junto à parede traseira da espaçonave, apertando o cinto de segurança posicionado para aquela situação. Não se passou nem mesmo uma pulsação de seu coração artificial antes que sentisse o corpo sendo comprimido violentamente contra a parede, pelo o que pareceu ser uma eternidade, mas foram apenas cinco nanossegundos. A compressão violenta reverteu seu curso, agora lançando-a contra o cinto. Ela sentia as sacudidas da gigantesca espaçonave, sua inércia se rebelando contra as tentativas de controlar seu momento. Assim que os movimentos erráticos chegaram num ponto tolerável, Susan soltou o cinto e foi para o corredor de acesso, contatando seu superior pelo computador de pulso: — Hendrik, já estou indo! O rosto angular e precocemente calvo do engenheiro-chefe Hendrik Zeitner apareceu na pequena tela: — Você está bem, Susan? — Estou! O que... Nesse momento, uma vibração percorreu novamente a estrutura da nave. Seu corpo foi jogado para a direita e ela começou a se sentir mais leve. Aquilo só podia significar uma coisa: — A centrífuga do habitat está parando de girar! — Vá até o módulo central, veja como está a situação e reporte as avarias. Depois que fizer isso, encontre-me na ponte. — Certo! Minutos depois, olhando pela janela do módulo central, Susan já sabia qual era o problema: um cabo eletrodinâmico (de onde ele teria vindo?) estava preso à centrífuga geradora da gravidade artificial necessária para que a tripulação pudesse viver normalmente durante a longa viagem até Júpiter. Era apenas uma questão de realizar uma atividade extraveicular para cortar o cabo e lentamente a centrífuga voltaria a funcionar. Mas não foi aquilo que a fez perceber o tamanho do problema em que ela e a tripulação da Cassini-5 estavam. Embora já soubesse pelo o anúncio da Ejeção Órion, sua mente ficou chocada do mesmo jeito: eles não tinham mais o gigantesco motor de fusão nuclear, nem os dois motores auxiliares. Cinco horas mais tarde, após os consertos de emergência, o comandante Hiroshi Slonczewski reuniu todos na ponte. Dez astronautas de carreira e cinco estagiários, Susan incluída. — Hendrik, você poderia, por favor, nos explicar o que aconteceu? — pediu o superior, de olhos escuros e cabelos prematuramente grisalhos. A SOLUÇÃO POR UM FIO 27 — Sim, comandante. — O engenheiro-chefe ativou a projeção de um holograma da nave que mostrava os seis tanques esféricos de deutério e Hélio-3 na proa, a centrífuga com o habitat da tripulação, os tanques de combustível nuclear da própria nave, o módulo do reator nuclear, o escudo Órion e o módulo de propulsão na popa. — Como sabem, tivemos que executar uma Ejeção Órion, ejetando da estrutura da nave o módulo de propulsão. Isso foi devido ao fato de três sondas recolhedoras se jogarem contra o motor em alta velocidade, afetando seriamente sua integridade, embora não chegando a afetar o reator principal, que está perfeitamente funcional. Fomos protegidos da radiação, e de grande parte da onda de choque, pelo escudo, mas tivemos avarias sérias. — Que tipo de avarias? — interrompeu um dos estagiários, que Susan sabia estar no setor de Navegação Orbital. Susan e Hendrik se entreolharam, enquanto o comandante olhava seriamente para a tripulação. — A detonação do motor causou danos nos sistemas de suporte de vida. Mais precisamente, perdemos parte do oxigênio armazenado para a viagem de volta e parte do sistema reciclador de O2. Temos oxigênio para somente três meses. Como perdemos os motores principais, não podemos atingir a velocidade de escape necessária para deixar o sistema joviano e nos encontrar com a nave de resgate Nightingale-7. Mesmo na velocidade máxima, ela levaria quatro meses para chegar a nossa posição. O comandante explicou que fariam o possível para aumentar a potência dos motores direcionadores, mas todos sabiam que era uma tentativa vã. A verdade era uma só: deveriam se preparar para morrer. Se a Cassini-5 estivesse com pelo menos um motor funcionando, poderia deixar Júpiter mesmo que lentamente, e se encontrar com a Nightingale-7 antes que o oxigênio acabasse. Mas não havia como os motores direcionais gerarem aquele empuxo salvador. A diferença entre a vida e a morte era dela e da tripulação eram apenas alguns delta-v... Susan quase riu com a idéia. Nos últimos quatro anos o que sempre temeu não era a morte – risco da profissão de astronauta que aceitava –, mas a possibilidade de alguém descobrir que seu corpo era completamente robótico. Desde o acidente na sua primeira viagem de treinamento na órbita geoestacionária, apenas seu sistema nervoso central continuava biológico... Foi o que salvara sua vida na ocasião, mas essa situação extrema era contra a lei da Comunidade de Desenvolvimento Terrestre e, se revelada, poderia levar ao seu desligamento sumário. E agora poderia morrer por simples falta de ar... Ela pensou em sua mãe na Terra e em sua melhor amiga Verônica. Nunca mais as veria e nem o Elevador Espacial, que dominou parte de sua infância e toda a sua adolescência, determinando seu destino. Pela janela de sua cabine, Susan observava. Os fios castanhos de seu cabelo, os olhos de cores diferentes, com um brilho desanimado. Via diversas sondas recolhedoras de deutério e Hélio-3, similares as que tinham atingido o motor nuclear de sua nave e que pontuavam a atmosfera de Júpiter, o gigante gasoso. O acidente era tão incomum que alguns membros da tripulação se perguntavam se não teria sido sabotagem da Liga de Defesa do Espaço. Num processo totalmente automático, as sondas recolhedoras desciam até a superfície do planeta e recolhiam os combustíveis nucleares. Eles então eram armazenados na Estação 28 JOSHUA FALKEN Mineradora, também automática, até que naves como a Cassini-5 carregassem o material em seus tanques para levá-lo até a Terra, a Lua, Marte, Vênus e parte dos asteróides. Olhava para a forma que lembravam um haltere: duas esferas conectadas por um fio finíssimo. Na verdade, eram a unidade recolhedora numa ponta e a unidade de armazenamento na outra, ligadas por um duto acoplado a um cabo eletrodinâmico, que gerava o arraste necessário para fazer a sonda descer até Júpiter e... Seus olhos se arregalaram. Como não tinham percebido isto? Quando duas massas conectadas por um longo cabo condutor cruzam o campo magnético de um planeta, gera-se uma corrente elétrica, que pode ser armazenada, e um arraste, que pode ser usado para baixar o sistema de sua órbita inicial. Mas, se uma corrente elétrica percorresse o sistema do cabo numa direção contrária a que seria naturalmente induzida pelo campo magnético, seria gerado um empuxo. Essa força poderia ser usada para acelerar o conjunto, fazendo com que ele fosse para uma órbita superior, assim como as sondas recolhedoras faziam para subirem até a Estação Mineradora. E Júpiter tinha simplesmente o maior campo magnético planetário do Sistema Solar! Susan se levantou imediatamente e correu até a ponte. Sentou-se na cadeira de seu terminal de acesso. Um cabo de conexão saiu discretamente do pulso de Susan e conectou-se ao computador central da nave. Agora, seus sistemas cibernéticos estavam unidos aos da Cassini-5. Mentalmente, começou a acessar e carregar os dados necessários para a simulação que estava criando. Ao iniciar o processamento, cruzou os dedos. Trinta segundos depois, um grito de alegria. — Hendrik! — ela chamava pelo computador de pulso. O engenheiro-chefe da Cassini-5 atendeu com o rosto cansado. — Olá Susan. Seu turno de descanso ainda não aca... — Acho que descobri uma maneira de conseguirmos a velocidade de escape! Ela contou seu plano. Os olhos azul-escuros do engenheiro-chefe brilharam. Mais tarde na ponte de comando, o comandante não acreditava na idéia de Susan: — Você... está brincando... não está? — Na verdade, a idéia dela é obvia e por isso mesmo brilhante — disse o engenheiro-chefe. O rosto de seu superior fez uma carranca. — E porque você não pensou nisso, Hendrik? — Porque fiquei tão focado em fazer os motores direcionais funcionarem com o máximo de potência para tentar nos tirar dessa situação, que me esqueci da alternativa da propulsão por cabo eletrodinâmico — explicou, dando de ombros. — E quanto a Io? As descargas elétricas não poderiam afetar a nave? Aquele era o ponto fraco do plano. O sistema composto por Júpiter e seu satélite Io era o mais eletrodinamicamente ativo do sistema solar. Não era raro que relâmpagos passassem no espaço entre os dois corpos celestes. E os cabos eletrizados poderiam agir como atratores. Susan tomou a palavra: — Comandante, o senhor tem razão em se preocupar com essa possibilidade, mas lembrese de que a nave foi construída para resistir a possíveis descargas como essa. Um sistema de disjuntores pode ser instalado como proteção e, no pior caso, podemos desligar a corrente neles. A SOLUÇÃO POR UM FIO 29 O maior risco provavelmente seria a corrente elétrica entre Júpiter e Io contrabalançar a corrente dos cabos, diminuindo a nossa velocidade. Isso nos obrigaria a fazer mais órbitas ao redor de Júpiter do que o previsto. — E se corrente Júpiter-Io se somar com a dos cabos? — Nesse caso ganharíamos velocidade, provavelmente um grande ganho súbito. Como prevenção, teremos de nos proteger como faríamos para uma Ejeção Órion. A astronauta em treinamento respirou fundo antes de continuar. — Essa tentativa apresenta um risco, mas as simulações mostram que pode funcionar. E certamente é melhor que a outra opção que temos. Hiroshi ficou em silêncio por um momento, olhando para o olho direito azul e o esquerdo verde de Susan. — Está bem, vamos lá! Uma semana de trabalho contínuo depois, estavam prontos para colocar o plano em prática. Lentamente, desenrolaram seis cabos ao longo da nave avariada, três de cada lado. Quando atingiram seu comprimento máximo, a corrente elétrica vinda do reator principal começou a passar por eles, fazendo com que centelhas saltassem entre os cabos paralelos. Quando os indicadores mostraram que a nave começara a acelerar, a tripulação vibrou de alegria. O sistema funcionava! Meia órbita mais tarde, chegaram ao ponto critico do plano: a zona de maior proximidade com Io. A corrente interplanetária se somou a que corria nos cabos. A aceleração aumentou, mas não na proporção temida. O programa escrito para o controle dos cabos administrou a situação perfeitamente O engenheiro-chefe, numa demonstração surpreendente de alegria para quem conhecia suas maneiras contidas, deu um forte tapa congratulatório no ombro de Susan e sacudiu sua mão entusiasticamente. Mais três voltas ao redor do gigante gasoso e a Cassini-5 atingiu a velocidade de escape com suas velas eletromagnéticas enfurnadas. Estavam livres da atração de Júpiter e a nave seguia para o encontro com a Nightingale-7, em um mês e meio. Tempo de sobra. *** Susan descia pela torre de quarenta mil quilômetros do Elevador Espacial, em direção da cidade flutuante logo abaixo, na superfície de seu planeta natal. Da altura em que estava podia ver os círculos urbanos, que envolviam a parte terrestre do sistema, e o sol se pondo na curva do horizonte. Quando finalmente desceu do carro do elevador, viu sua mãe e sua amiga Verônica esperando por ela no saguão de desembarque do gigantesco Terminal Terrestre. — Bem-vinda, filha — sussurrou a mãe em seu ouvido, enquanto a abraçava. — Não nos dê mais um susto desses! — Verônica exclamou, sacudindo seu ombro. A astronauta riu e começaram a andar em direção à saída do terminal. Susan tinha cumprido a principal tarefa de um astronauta: ela retornara para casa. 30 JOSHUA FALKEN 31 Cidade Suspensa Leonardo Carrion No mundo de Mada, viver nas alturas é algo comum, mas não para ele, e por isso sofria. Por amor a Have, teria de fazer uma jornada ao desconhecido, onde nenhum outro guerreiro ousara ir. Somente a descoberta do que há abaixo da linha das nuvens permitirá que ele também se torne um guerreiro e merecedor de sua amada. 32 — Venha, Have, não tenha medo! — gritou o menino de cinco anos. Saltando, deixou para trás o emaranhado de grossos cabos e cordas de cânhamo trançados nos troncos das árvores Txain e aterrissou no solo coberto de folhas. Corria pelo chão incentivando a amiga Have para acompanhá-lo. Seu nome era Mada. Tinha o corpo robusto, pele morena, rosto bonito e uma longa cabeleira sedosa. Caminhava sobre as pernas auxiliado-as com as costas das mãos, que tocavam levemente o solo. A menina tinha a mesma idade e quase o mesmo aspecto, com o corpo mais delgado e cabelos curtos. Com certa dificuldade ela reuniu coragem para descer e caminhar sobre a terra e folhas, deixando para trás as cordas e passarelas que marcavam o limite central da Cidade Suspensa. Diversas outras crianças seguiam o mesmo caminho. Aos poucos todos se dirigiam para fora da floresta de poderosas árvores Txain. Juntamente com alguns adultos, abandonavam a segurança da floresta para a colheita do cânhamo que crescia nas clareiras. O cânhamo era elemento essencial para a cidade. Mais até do que os ovos dos pássaros kri-kraks cujos ninhos eram cuidados pelos habitantes. Sem as fibras do cânhamo, não haveria a Cidade Suspensa sobre o desfiladeiro. Eram de cânhamo os cabos, as cordas trançadas e o tecido das casas-saco. De suas sementes, eram extraídos óleo e verniz, materiais também indispensáveis ao cordame e aos tecidos. — Como você consegue caminhar tão rápido, Mada? — perguntou Have, aproximando-se, com passo vacilante, do menino que já coletava uma braçada de plantas. — Não sei, Have. Sei que gosto de pisar no chão, de correr por aqui. Acho que faço isso bem. — Você fala como se andar fosse coisa de gente! — disse a menina, sublinhando a palavra andar com desprezo na voz. Ambos instintivamente olharam para a Cidade Suspensa, em seu gentil balançado sobre o penhasco. Assemelhava-se a uma imensa teia de aranha, um conjunto vasto de cordas entrelaçadas. Eram amarradas umas às outras e sustentadas sobre o triângulo formado pelos três principais cabos-mãe, tão espessos que nem cinco homens conseguiriam abraçá-los. Os cabos-mãe formavam-se da junção de milhares de cabos menores trançados. Estes, por sua vez, eram amarrados individualmente: na Floresta Txain do Pico Nevado, ao centro; nas escarpas de granito do estéril Monte Faca, na direção do nascer do sol; e em laços em torno do grande obelisco de diamante no Monte Brilhoso, onde o sol se punha. Os três principais cabos eram ligados entre si por centenas de grossos cabos secundários, e destes apareciam os menores em rede. Todos levavam a cidade a crescer para baixo, rumo ao fundo do desfiladeiro na forma de uma gota. Ali, as casas-saco, as passarelas, os aquedutos que traziam a água que escorria do Pico Nevado, os jardins de trepadeiras frutíferas e as milhares de cordas utilizadas pela população para se deslocar em vôo no centro vazio da cidade ou na parte inferior, a nuvem. A nuvem era a sempre presente neblina que impedia as pessoas de enxergarem o fundo do desfiladeiro. Acima, viam apenas a continuação dos três picos que sustentavam a cidade, as nuvens e o sol no céu azul. Era bom ser criança na Cidade Suspensa. *** — Ei, Mada, veeeenhaaaaa! — gritava Have, enquanto se precipitava sobre o vazio central CIDADE SUSPENSA 33 da cidade, segurando com apenas uma mão o cabo, projetando-se no ar para agarrar outro e voar. Mada e Have tinham agora 14 anos e faziam parte da turma que era instruída no vôo por um professor. Mada admirava a habilidade da amiga e dos demais jovens que treinavam como os seus antepassados. Ele, no entanto, continuava solidamente preso à plataforma. O jovem Mada já preenchera os requisitos fundamentais do vôo, o que lhe permitia ingressar na vida adulta e assumir uma posição na sociedade. Podia se deslocar livremente pela cidade e não apenas por onde as crianças ficavam, nas passarelas e nos cabos principais. O vôo, porém, não era para ele um prazer especial, como para os demais. — Ei, lobo, prefere correr na sujeira? Niac era um rapaz alto e delgado, de ossos leves e incrível flexibilidade. Passou por Mada e, depois da provocação, jogou-se no vazio, aparentemente sem qualquer forma de escapar da queda. Agarrando-se a um cabo e logo depois a uma corda solta, deslizou pelo ar como se realmente voasse, como um pássaro. — Vai ver como o “lobo” também sabe voar, Niac! — respondeu Mada, tomando coragem. Segurando um dos cabos, Mada lançou-se sobre a área de treinamento. Have saltou no vazio e veio girando e sorrindo em uma corda paralela. O rapaz sabia que ela se preocupava e não gostava que os demais zombassem dele. — Não é maravilhoso, Mada? — gritou contra o vento, enquanto saltavam rapidamente em uma sucessão de cabos, avançando por toda a extensão central. Have era uma jovem que mostrava em abundância todos os atributos que encantavam os meninos, especialmente Niac. Mada a amava profundamente. — Você não é páreo para mim! — ela riu gostosamente e ultrapassou o rapaz. Realmente não era. Mada não conseguiria acompanhá-la mesmo que tentasse. E não ficava nada triste em vê-la seguir na frente. — Nem pense nisso, lobo, ela é minha! — disse-lhe o rival, chegando pela direita. — Você não tem chance com ela, Niac! — respondeu Mada. Não deixaria Have para Niac, nem que fosse preciso aprender a voar sem cabos, como os pássaros faziam. Porém, no fundo o rapaz não tinha tanta certeza de suas chances, vendo a forma vigorosa com que Niac voava. *** Havia o Monte Brilhoso, o Pico Nevado e o Monte Faca. A descida por eles era impossível, era contra a tradição dos antepassados e também inútil. Nunca fora tentada, nunca fora pensada! Esta era a opinião do clã de Mada e dos demais clãs. Ele agora era um dos aranhas, os responsáveis pela manutenção da cidade e dos ninhos dos kri-kraks. Niac e Have eram pássaros, poderiam dedicar-se à política, à defesa da cidade e várias outras atividades de elite. Isso não importava para a moça, que amava Mada. Mas, para o clã, o pedido de Niac tinha preferência sobre o de Mada. Tinha sido isso que forçara o rapaz a propor o desafio. A tradição dizia que aquele que fizesse um desafio que ninguém se oferecesse para igua- 34 LEONARDO CARRION lar, e se deste desafio resultasse um ganho para a Cidade Suspensa, passaria a integrar o Conselho dos Clãs. A esse costume, era atribuída grande parte dos corpos que despencava para o desfiladeiro, rumo ao desconhecido. Por Have, o aranha Mada traria para a Cidade Suspensa um benefício de tal ordem que seu pedido pela garota certamente ganharia prioridade sobre o de Niac. Há muitos anos Mada pensava em descer. Perguntava-se como seria o mundo longe da cidade e dos montes, o que haveria abaixo da eterna nuvem que marcava o limite inferior da cidade. Para onde iam os pássaros kri-kraks quando não vinham desovar nos ninhos? E os lobos da floresta? Descida impossível; revolucionária, talvez; mas jamais inútil. Mada só tinha que escolher uma das três montanhas. O Pico Nevado oferecia a Floresta Txain, que seguia aparentemente para abaixo das nuvens, mas era habitada pelos lobos e talvez por outros animais perigosos. O Monte Brilhoso era por demais liso, não havia forma de obter apoio para a descida. Restava o afiado Monte Faca, apesar de suas cortantes pedras de granito. Mas, exatamente por causa delas, oferecia apoio para a amarração de cordas. Have veio até os confins da Cidade Suspensa e permaneceu girando em um cabo, enquanto Mada começava a descida pelas escarpas de granito, levando às costas o máximo de corda que conseguira transportar, alguma comida e água. Ela gritava o seu nome, pedia-lhe que voltasse, por ela. — Voltarei por você, Have! — respondia-lhe Mada, até que não se ouviram mais as vozes. Mada continuou concentrado, sempre para baixo. Parava eventualmente para comer ou dormir na rede que trouxera com o equipamento. Os dias pareciam sem fim enquanto o rapaz descia através da nuvem. A luz era como a de um entardecer triste, independente da hora que fosse do dia ou da noite. Finalmente, bem depois de os alimentos e a corda terem se esgotado, quando já começava a sentir os efeitos da fome e sede, o jovem deixou a nuvem para trás. Abaixo, Mada pôde ver o vale formado pelas montanhas, o final do abismo sobre o qual se erguia a Cidade Suspensa. Talvez fosse o primeiro a ver aquele lugar sem que estivesse em queda mortal. Havia um tom de verde nas plantas diferente do amarronzado cânhamo e das árvores Txain dos picos. A água corria entre as montanhas em uma corrente estreita e, mais adiante, alargava-se formando um lago. Perto do lago, Mada podia ver diferentes espécies de pássaros e outros animais desconhecidos. O jovem estava em um platô varrido pelo vento constante e cortante, mais pesado que o das alturas. Sentia-se mais animado, porém fraco. Continuou a descida sem qualquer amarração. Ao pisar em uma pedra que lhe parecera bastante fixa e rugosa, seca e segura, sentiu que seu pé escorregava em algo liso como neve congelada. O rapaz girou seus braços em busca de apoio, mas as pedras se mostraram soltas. Gritou de fúria e indignação quando caiu de costas no vazio. Mada achou que estava morto até perceber que pairava sobre a paisagem do vale. O ar, que deveria estar zunindo ao seu redor enquanto caía, era sólido! Deitou-se de costas e viu, poucos metros acima de onde estava, o platô do qual observara o vale há minutos. Ergueu-se e olhou novamente. Abaixo de seus pés, a ilusão era perfeita. Até sentia o vento nas pernas. CIDADE SUSPENSA 35 — Como isso é possível? — Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, sentiu uma forte tontura e desmaiou. *** — Mada, acorde — a voz era suave como a superfície que o rapaz sentia abaixo de seu corpo. Aos poucos ele abriu os olhos e, surpreso, viu a face de Have. — Have! O que houve? Onde estamos? — o jovem olhava em torno e não conseguia reconhecer o ambiente. Pareceu-lhe que estava dentro de uma caverna do tamanho de uma casa-saco. — Mada, eu não sou Have. Apenas tenho a aparência de Have para que possamos conversar sem que você se assuste. — Quem é você? Onde eu estou? — Venha até aqui — disse o ser, aproximando-se de uma janela.— Antes que possa compreender quem ou o que eu sou, devo contar-lhe quem você é. O rapaz levantou-se da cama e se aproximou. Lá fora, Mada viu o rio e o lago que avistara do penhasco, além de muitas outras coisas incompreensíveis. Havia uma quantidade enorme de objetos, como montanhas, mas diferentes. Também percebeu que existiam três gigantescos montes que subiam em direção às nuvens. Imaginou sua cidade lá no alto e sentiu saudades. O rapaz não podia saber, mas via de perto a poderosa capital de um império. Via seus espaço-portos, prédios e naves. Uma vista revelada apenas para ele, em dezenas de séculos de segredo. Mada sentia que era uma visão bela e boa. — Mada, esta é a Cidade Suspensa hoje. Ela cresceu, evoluiu. Seus habitantes aprenderam muito, descobriram como moldar os metais e a pedra e como dominar os animais. Descobriram o que havia para ser descoberto neste mundo, o que havia nas estrelas e foram até elas. Dominaram outros mundos e criaram um império. Criaram a nós, seus servos. Até que um dia, desapareceram. Mada ouvia, com espanto e sem compreensão, o que dizia o ser-ave. — Deixaram-nos apenas, seus filhos, suas máquinas, além de histórias. Nós continuamos o trabalho de nossos senhores, dominando o espaço, aumentando o império e agregando mundos. Mas o mais importante, Mada, é que há muitos milênios estamos buscando nossos senhores. — Onde está meu povo? E a Cidade Suspensa? — perguntou Mada. — Seu povo e sua cidade estão onde você os deixou. Vê aquele objeto gigantesco, suspenso no ar? Lá dentro, nós construímos uma cópia deste mundo como era nos primórdios. Dentro dele, fizemos nascer novamente os nossos senhores e estamos levando-os pela mão, desde a concepção até a maturidade. Hoje estão na infância, mas um dia poderão caminhar sozinhos e até mesmo voltar a nos conduzir. Você é um dos nossos senhores, Mada. É o mais importante até hoje, porque conseguiu descer da Cidade Suspensa, inaugurando um novo degrau evolutivo. Temos um planeta criado para que seu povo possa continuar a evolução fora do ambiente onde estão. Isso será feito sem que ninguém perceba e você voltará para sua cidade sem recordar este encontro. Casará com sua amada Have e dominará seu povo com um novo pensamento, uma nova idéia. Mada começou a sentir-se dormente quando ouviu o ser dizer: 36 LEONARDO CARRION — Um dia, querido senhor, falaremos de seu nome para um de seus filhos longínquos e todos celebraremos sua coragem e nossa vitória. Você não pode saber, não poderia sequer compreender, mas, como seu servo, tenho de lhe dizer: bem-vindo aos seus domínios, senhor do Universo. *** Mada viveu um longo tempo na planície do planeta preparado pelos servos, sem saber que ele e todo seu povo tinham um dia habitado uma estrutura artificial. Afinal, retornou à sua Cidade Suspensa e desposou sua amada Have. Trouxe ovos de aves exóticas, frutas diferentes, histórias e materiais novos. Só o seu reaparecimento, muito depois de o terem considerado morto, já causou revolução nas crenças dos clãs. A evolução dos habitantes da Cidade Suspensa tomou novo rumo quando Mada se tornou um dos Conselheiros e acelerou-se definitivamente assim que ele assumiu a hegemonia política da cidade. Tudo isso não aconteceu sem que vivesse muitas aventuras, mas isto é outra história. Enquanto isso, o Universo aguardava pacientemente seus senhores. CIDADE SUSPENSA 37 38 O MERCENÁRIO E O ABISMO O Mercenário e o Abismo Ubiratan Peleteiro Um homem atormentado por seu passado desce às profundezas do mar para mais um trabalho. Quando finalmente chega ao seu destino, encontra algo que nunca pensaria ver naquele lugar, e finalmente tem a chance de acertar as contas e redimir seus pecados. CIDADE SUSPENSA 39 A fossa abissal era assustadora. Reinava a escuridão. Não uma escuridão transparente como a do espaço sideral, que ele amava, mas uma escuridão densa, difícil de permear, que ele só conseguia vencer aos poucos com a lanterna. Fez Roger sentir o mesmo frio na barriga que sentira no seu primeiro vôo espacial, ainda na Academia Astronáutica. Fora uma boa época, a última boa fase que tivera na vida, depois das grandes descobertas da infância e das incríveis mudanças da adolescência. Entrou na vida adulta com bons empregos, para os governos de países ricos e depois para as grandes corporações. Então cedeu à tentação da lucrativa informalidade. Foi quando tudo começou a mudar, e para pior. “Quem diria que eu viria parar no fundo do oceano, num equipamento adaptado às pressas!”, pensou Roger. Olhou para cima. Não podia ver quase nada do módulo de suporte à vida, apenas os cabos que se ligavam ao seu traje de mergulho como um cordão umbilical e os dois faróis que o fitavam como os olhos de um leviatã. Mas estava bem clara na sua mente a imagem do módulo, pois lhe lembrara os discos voadores dos invasores alienígenas, só que ele era bem menor, com apenas três metros de diâmetro. Voltou a olhar para baixo, iluminando as profundezas com a lanterna. Via apenas o vazio. Volta e meia, a luz atingia alguma criatura estranha, que imediatamente fugia antes que ele pudesse distingui-la bem. Num dado momento, iluminou dois peixes estranhos. Eram horríveis e não tiveram medo dele. Ficaram parados, com as bocas abertas, cheias de dentes longos e pontiagudos como agulhas, os olhos cegos, sem brilho. Pareciam ameaçadores. Mas Roger não quis alterar a rota. Passou rente a eles, com o arpão em riste, mas apesar do aspecto agressivo eles nada fizeram. — Como está indo, Roger? — soou a voz metálica no comunicador. — Tranqüilo — respondeu. — Ótimo. Daqui a um minuto você atinge o alvo. — E faço meu serviço. — Assim espero. Nunca decepcionara aqueles calhordas, mas eles sempre punham sua competência em dúvida. Trabalhando como mercenário, se dispondo a fazer o serviço sujo que ninguém queria, ganhava bastante dinheiro, mas sempre lhe restavam fantasmas para atormentar a consciência. E ainda, precisava lidar com aqueles pulhas, sempre preocupados com seus milhões, ou melhor, bilhões. Mas, dessa vez, nesse derradeiro trabalho, ganharia o suficiente para livrar-se de ambos: dos pulhas e, quem sabe, dos fantasmas. Se bem que, quanto a estes últimos, talvez não fosse capaz de exorcizá-los todos, principalmente os que habitavam seus pesadelos há mais tempo. Enxergou o lodoso solo oceânico e logo o atingiu. Então, mirou a lanterna para o norte, conforme a informação fornecida pelo empregador. Viu a entrada da caverna numa montanha submarina à frente e acionou os propulsores para levá-lo até ela. As criaturas marinhas fugiam do seu caminho. Algumas tinham luz própria e riscavam o fundo do mar com traços luminosos como pirilampos na noite. Pousou cautelosamente na entrada. Acionou os controles do módulo que, silencioso como uma raia manta, pousou num ponto onde ficaria protegido. Os cabos eram retráteis e ainda havia bastante comprimento para permitir explorar a caverna sem precisar desconectar-se. — Cheguei. Vou entrar. — Boa sorte. 40 UBIRATAN PELETEIRO Roger percorreu o túnel escuro, iluminando-o com a lanterna. Lá no fundo, viu uma luz. Ao se aproximar apagou a lanterna, pois se tornara desnecessária. Chegou numa ampla caverna bem iluminada. Olhando para cima, viu a interface da água com o ar e muitas luzes no teto. Emergiu lentamente escondendo-se por trás de uma rocha que aflorava da água. Percebeu seu traje fazendo o ajuste automático da diferença de pressão. Um surpreendente controle ambiental fazia uma alteração gradual na pressão da água. “Tecnologia alienígena”, pensou Roger. Havia um espaço plano e seco na caverna, com alguns equipamentos. Ali Roger viu o primeiro alienígena. Era uma criatura repugnante. Os seis braços ondulantes moviam-se sobre os controles de um equipamento como vermes se debatendo. As pernas também pareciam tentáculos, mas eram mais grossas e terminavam em pés que mais pareciam ventosas. A enorme cabeça lembrava a de um polvo, as orelhas pontiagudas e triangulares pareciam impróprias para aquele ser gosmento. Roger sacou sua pistola, sem se preocupar com o ruído do metal raspando no coldre. O alienígena voltou o rosto em sua direção, expondo o único olho à mira. Ele lembrou dos gigantescos robôs ciclopes dos invasores que estavam subjugando toda a Terra. Mas essa lembrança não durou um centésimo de segundo. Roger disparou, acertando o olho em cheio. Ao sair, o projétil abriu um grande rombo, dilacerando a cabeça do alienígena e esguichando sangue negro no equipamento. O corpo desabou no chão como um trapo. Roger saiu da água e livrou-se do grande e pesado traje. E começou a jogar o jogo do assassino. Era um jogo do qual não gostava, o jogo que produzia fantasmas, porém era muito bom nele. Esgueirava-se sorrateiro pelos túneis, localizava um alienígena, espreitava-o e depois dava cabo dele. Esperava para ver se outro surgia em socorro e dava cabo dele também. Se não, partia em busca do próximo. Era um alívio que se tratassem apenas de alienígenas. Tinha nojo daquelas criaturas e preferia vê-las mortas. O mesmo não acontecia com relação a outras pessoas. Quando era mais jovem, até que lidava bem com isso. Mas depois, os fantasmas começaram a aparecer, vinham falar com ele nos seus pesadelos, mostravam as fotos das esposas, dos filhos, de todos que os amavam e precisavam deles. Certa vez, um engenheiro importante que ele matou mostrou-lhe a foto do filho doente mental. “E agora, quem vai cuidar do meu filho? Minha mulher é morta, ele não tem mais ninguém!”. Balançou a cabeça com violência para afastar esses pensamentos. Precisava se concentrar. Logo tudo estaria terminado. Ele nunca mais precisaria jogar esse jogo. Nesse dia, o vazio dentro dele finalmente pararia de crescer. Continuou sua busca assassina. Então ele encontrou um velho, sentado, à frente de vastos controles. Não entendeu. Como um ser humano poderia estar ali? Aproximou-se sorrateiramente, agachado, e só se ergueu quando estava bem atrás dele. O velho viu seu reflexo no monitor e virou-se, apavorado. Depois, mudou o semblante para algo mais amistoso e falou: — Você veio me resgatar? — Resgatar? — Sim. Sou prisioneiro aqui. Pensei que você tivesse vindo me resgatar. Quando Roger viu o reflexo do alienígena no monitor, já era tarde. Ele o agarrou, imobilizando-o com seus tentáculos. A expressão no rosto do velho mudou novamente, ficou dura. — Vocês, mercenários, podem ser espertos, mas não são nada inteligentes. Ele abaixou e pegou a arma. Deu um sorriso irônico e continuou: O MERCENÁRIO E O ABISMO 41 — Sabe o que eu estou fazendo aqui? Eu sou o comandante da invasão. Não há alienígenas, só humanos. Sempre nós, os seres humanos. Esses “alienígenas” são criações genéticas minhas. — Não pode ser — falou Roger. — Eles vieram do espaço. — Você pode não acreditar, mas é verdade. Eu vim do futuro. Nos dias de hoje eu era, ou melhor, sou o proprietário de uma empresa em ascensão. Apesar de todo meu privilegiado conhecimento científico, não consegui chegar até onde queria. Sabe como é, muita visão técnica e pouca visão de mercado. —Você está mentindo. Eu mesmo vi uma dessas naves cruzando o sistema solar até chegar à Terra. — Não vou perder tempo te explicando o que é um portal espaço-tempo. Mas tenho uma curiosidade que você vai me esclarecer. Pensei que ninguém acharia meu esconderijo, aqui, nas profundezas da zona abissal do oceano. Quem foi? Algum “concorrente”? — Me diga você primeiro qual é a sua empresa. — Por que quer saber? — Também estou curioso. O velho riu alto e depois falou: — É a Heidelberg S.A. Você ainda não deve ter ouvido falar dela. Como eu disse, ela é apenas uma empresa emergente. Mas não ficará assim por muito tempo. Agora me diga quem é seu empregador? — Eu te enganei. Não vou dizer. O velho gargalhou, tombando a cabeça para trás. — Não vai fazer diferença mesmo. — Com um gesto indicou o monitor: — Com certeza é um desses pontos luminosos. São as principais corporações do mundo. Logo meus ciclopes vão desferir um pesado ataque a todas elas. Então vou contatar meu outro eu e simularemos um acordo com meus falsos alienígenas, usando uma tecnologia de comunicação que ele vai fingir ter inventado. Ele vai cair nas graças de todo o mundo e, através dele, eu vencerei. Mas antes... Apontou a arma para Roger, sorrindo maliciosamente. Fechou um dos olhos e fez mira na testa. Para evitar ser atingido, o falso alienígena encolheu a cabeça para dentro do corpo, como uma tartaruga,. Na primeira fração de segundo que o velho pressionou o gatilho, duas finas lâminas saíram do cabo e, como as mandíbulas de um inseto, cortaram sua mão ao meio. Os dedos caíram no chão, só o polegar restou. O falso alienígena assustou-se com o grito do velho, relaxando um pouco os tentáculos. Roger aproveitou para esmagar o pé da criatura com sua pesada bota. A cabeça saltou para fora do corpo. Roger curvou-se com toda a força e em seguida jogou sua cabeça para trás, atingindo em cheio e com violência o rosto da criatura. Ela o soltou e, rapidamente, Roger sacou a faca e rasgou o adversário de baixo pra cima. As entranhas acinzentadas escorreram para o chão, antes que seu corpo sem vida tombasse. O velho fez menção de pegar a arma novamente, mas hesitou. Fora apenas uma reação instintiva, pois o medo e a dor haviam ludibriado seu discernimento. Roger chutou a cara do velho, afundando todos os dentes. Depois o ergueu e o jogou na cadeira. Colocou o braço nos seus ombros e a arma na sua têmpora. 42 UBIRATAN PELETEIRO — Se me lembro bem, você me chamou de burro. Então eu não serei capaz de operar esse equipamento. E eu quero ver o nome da sua empresa brilhando nesse monitor. Agora! — Eu... posso te dar... muito dinheiro! — gaguejou o velho, enquanto seus dentes caiam e tilintavam no chão. — Eu sei, eu sei. Mas eu não gosto de quem tenta me matar. Tenho um probleminha com isso. Portanto, vou te dar um castigo. Então bota o nome logo aí! Depois que eu tiver dado um fim na sua empresa, a gente negocia. E apertou ainda mais o cano da arma na têmpora do velho, que resolveu obedecer. Quando viu o novo nome piscar no monitor, Roger falou: — Obrigado. Puxou o gatilho, estourando a cabeça do velho. Chutou o cadáver para o lado e sentou-se. — Eu não sou tão burro, velho, mas não tinha como adivinhar onde ficava sua maldita empresa. Mas aposto que consigo descobrir como fazer os ciclopes destruírem-na. Então viu num canto da tela o nome da corporação que o havia contratado para aquele trabalho. Ela se repetia em outros pontos, pois tinha várias sedes. Lembrou-se do dinheiro e depois dos fantasmas. Olhou para todas aquelas luzes e percebeu que eram todas grandes fábricas de fantasmas. Ficou pensativo por alguns instantes, sentindo o seu imenso e frio vazio interior. Depois, levou alguns minutos para aprender como operar os controles. E ordenou o ataque contra todos aqueles múltiplos alvos. Cruzou os braços e relaxou, acompanhando o andamento do combate. Imaginou seu empregador, olhando pela janela do seu luxuoso escritório e vendo o batalhão de robôs, cada qual com cinqüenta metros de altura e apenas um olho luminoso, aproximando-se inexoravelmente. “Os fantasmas agradecem”, foi o pensamento que lhe ocorreu. E no fundo do peito, sentiu uma pontada de algo que há muito tempo não sentia. Mas reconheceu-a imediatamente. Era a esperança de conseguir dormir em paz novamente. O MERCENÁRIO E O ABISMO 43 44