Os tres Mosqueteiros.p65

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Os tres Mosqueteiros.p65
Capítulo XXVI
A tese de Aramis
D’Artagnan nada dissera a Porthos sobre o ferimento e nem a respeito da
duquesa. Era um garotão muito esperto o nosso gascão, apesar de sua pouca idade.
Assim, fingira acreditar em tudo o que lhe contou o glorioso mosqueteiro,
convencido de que amizade alguma se sustenta diante de um segredo revelado,
principalmente quando se trata de orgulho ferido; além disso, existe uma certa
superioridade moral sobre aqueles de quem se conhece a vida íntima.
Ora, d’Artagnan, em seus projetos de intrigas futuras, e decidido a fazer de
seus companheiros os instrumentos de sua fortuna, não tinha escrúpulos em reunir
antecipadamente em suas mãos os fios invisíveis com a ajuda dos quais pretendia
conduzi-las.
Contudo, ao longo da jornada, uma profunda tristeza apertava o seu coração:
pensava naquela bela senhora Bonacieux, que pretendia lhe dar um prêmio pelo
seu devotamento; no entanto, devemos nos apressar em dizer que esta tristeza
vinha menos da felicidade perdida pelo jovem gascão, do que do temor pelo
sofrimento certamente experimentado pela pobre mulher. Para ele não havia dúvida
alguma, ela fora vítima de uma vingança do cardeal, e como todos sabiam, as
vinganças de Sua Eminência eram terríveis. Como conseguira cair nas graças do
ministro era algo que ele desconhecia, e sem dúvida teria sido revelado pelo senhor
de Cavois, caso o capitão dos guardas o tivesse encontrado em casa.
Nada faz o tempo caminhar, e abrevia o caminho, do que o pensamento absorto
de uma pessoa, envolvida em seus problemas. Nestes momentos, a existência
exterior lembra um sono, cujo pensamento é o sonho. Pela sua influência, o tempo
perde sua medida, o espaço não tem mais distância. Parte-se de um lugar, chega-se
a outro, eis tudo. Do intervalo percorrido nada resta em sua lembrança além de
uma vaga bruma, na qual se esvaem mil imagens confusas de árvores, montanhas,
paisagens. E foi tomado por esta espécie de alucinação, que d’Artagnan percorreu,
no passo determinado pelo seu próprio cavalo, as oito léguas que separam Chantilly
de Crèvecouer, sem que, ao chegar nesta vila, ele sequer se lembrasse de qualquer
coisa encontrada pelo caminho.
Apenas ali sua memória voltou; sacudiu a cabeça, percebeu a estalagem onde
deixara Aramis, e esporeando o cavalo, colocou-o em trote rápido, parando diante
da porta de entrada.
Desta vez não foi o dono quem o recebeu, mas a dona; d’Artagnan era excelente
fisionomista, lançou um olhar sobre a gorda mulher, reconheceu-a, percebendo
que não precisaria dissimular diante dela, nada tinha a temer da parte de um rosto
tão alegre.
Minha boa senhora, perguntou-lhe o gascão, poderia me dizer o que aconteceu
com um dos meus amigos, que fomos obrigados a deixar aqui, há mais ou menos
doze dias?
Um belo homem, jovem, de vinte e três, vinte e quatro anos, doce, amável,
bem talhado?
Além disso, ferido no ombro.
É esse mesmo!
Exatamente.
Tudo bem, senhor, continua aqui.
Ah! Por Deus, senhora! Exclamou d’Artagnan, colocando os pés na terra e
jogando as rédeas do seu cavalo para Planchet, a senhora me devolve a vida!
Onde está ele, esse caro Aramis, para que o abrace? Posso assegurar-lhe que estou
ansioso em vê-lo!
Perdão, senhor, mas não acredito que possa fazer isso nesse instante.
E qual a razão? Por acaso estará na companhia de uma mulher?
Jesus amado! O que está dizendo? O pobre jovem! Não, senhor, ele não está
com uma mulher.
E na companhia de quem ele se encontra?
Com o cura de Montdidier e o superior dos jesuítas de Amiens.
Meu Deus! Gritou o gascão, assustado, o pobre amigo está passando assim tão
mal?
Não, senhor, ao contrário; após ter ficado melhor, a graça divina tocou-o, e
ele decidiu entrar para a ordem.
É justo, concordou d’Artagnan, tinha esquecido que ele era mosqueteiro
interino.
O senhor ainda insiste em vê-lo?
Mais do que nunca.
Tudo bem, senhor, basta subir a escada, á direita do pátio, no segundo andar,
o quarto número 5.
D’artagnan lançou-se na direção indicada e encontrou uma dessas escadas
externas, como ainda encontramos hoje em dia nos pátios das antigas estalagens.
No entanto, não se chegava tão facilmente à presença do homem; Bazin estava
parado no corredor, e barrou sua passagem, com uma vontade enorme, fruto de
anos e anos de espera: afinal, Bazin via-se prestes a alcançar o resultado que sempre
esperara.
Com efeito, o sonho do pobre Bazin sempre fora o de servir a um homem da
Igreja, aguardava com impaciência o momento antevisto, onde Aramis iria jogar
às urtigas seu uniforme militar, passando a vestir a sotaina. A promessa, sempre
renovada a cada dia pelo jovem homem, afirmando que não tardaria a mudar de
hábito, é que o fizera permanecer a seu serviço, sem medo de perder sua alma.
Assim, Bazin estava no cúmulo da alegria. Segundo toda a probabilidade,
desta vez o seu patrão não voltaria atrás. A união da dor física com a dor moral
produzira o efeito tão longamente esperado: Aramis, sofrendo ao mesmo tempo
no corpo e na alma, tinha finalmente voltado seus olhos e seu pensamento para a
religião. Ele olhava o duplo acidente que lhe adviera como um aviso do Céu, ou
seja, o desaparecimento súbito da sua amante e o ferimento em sua espádua.
Portanto, dá para compreender que nada podia, na disposição em que se
encontrava, ser mais desagradável para Bazin do que a chegada de d’Artagnan;
isso poderia lançar seu patrão de volta ao turbilhão das idéias mundanas que o
ocuparam tanto tempo. Assim, resolveu defender bravamente a porta do quarto;
como fora traído pela dona da estalagem, não podia dizer que Aramis não se
encontrava; resolveu tentar provar ao gascão ser o cúmulo da indiscrição perturbar
o seu patrão no meio da piedosa conferência de que participava desde cedo, e que,
no dizer de Bazin, não iria terminar antes da noite.
Todavia, d’Artagnan não levou em conta o eloqüente discurso do mestre Bazin,
e como não se dignava iniciar uma polêmica com o criado do seu amigo,
simplesmente afastou-o com uma mão, e com a outra bateu na porta do quarto
número 5.
A porta abriu-se, e d’Artagnan entrou no quarto.
Aramis, em vestimentas negras, com os cabelos arrumados numa espécie de
penteado mais parecendo uma bandeja no cocoruto da cabeça, estava sentado
diante de uma mesa oblonga, coberta de rolos de papel e de enormes volumes infolio; à sua direita, sentara-se o superior dos jesuítas, e à esquerda o cura de
Montdidier. As cortinas estavam semi cerradas, deixando passar apenas uma luz
misteriosa, num dia de sonho. Todos os objetos mundanos, que porventura
pudessem chamar a atenção dos olhares quando se entra no quarto de um homem
jovem, principalmente se o homem jovem é um mosqueteiro, tinham desaparecido,
como por encanto; e, certamente com medo de que a visão de alguns objetos
pudesse fazer retornar em seu patrão as delícias deste mundo, Bazin fizera desaparecer
sorrateiramente a espada, as pistolas, o chapéu com pluma, os broches e pingentes
de ouro e de outros materiais.
Em seu lugar, d’Artagnan acreditou perceber, num canto obscuro do aposento,
uma espécie de cilício, suspenso na parede.
Com o barulho que d’Artagnan fez ao entrar, Aramis ergueu a cabeça,
reconhecendo seu amigo. No entanto, para grande surpresa do gascão, sua aparição
não pareceu produzir grande impressão no mosqueteiro, tanto o seu espírito estava
desligado das coisas mundanas.
Bom dia, d’Artagnan, disse Aramis, creia, estou muito contente em vê-lo.
Eu também, respondeu o jovem, embora não saiba bem com que Aramis tenho
a honra de conversar.
A ele mesmo, meu amigo, a ele mesmo...mas o que o fez duvidar de mim?
Pensei ter me enganado de quarto, acreditei, a princípio ter vindo parar no
aposento de algum homem da Igreja; além disso, não estou entendendo, você na
companhia destes homens...pensei que estivesse muito doente.
Os dois homens lançaram sobre d’Artagnan, cuja intenção compreenderam
imediatamente, um olhar quase ameaçador; o gascão, porém não se importou.
Acho que estou perturbando, meu caro Aramis, continuou d’Artagnan, porque,
pelo que estou vendo, sou levado a acreditar que estava se confessando com estes
senhores.
Aramis enrubesceu ligeiramente.
Você me perturbar? Oh! Ao contrário, caro amigo, juro-lhe, e como prova do
que digo, permita-me dizer que estou muito contente em o ver são e salvo.
Ah! Ah! Pensou d’Artagnan, ele está voltando a si...menos mal.
Porque, este senhor, que é meu amigo, conseguiu escapar de um rude perigo,
continuou Aramis, com unção, apontando d’Artagnan com a mão aos clérigos.
Louvado seja Deus, senhor, responderam os religiosos, inclinando-se em
uníssono.
Nunca deixei de louvar o Senhor, meus reverendos, respondeu o jovem homem,
devolvendo o cumprimento.
Você chegou bem na hora, caro d’Artagnan, disse Aramis, espero que tome
parte na nossa discussão, e esclareça o assunto. O senhor principal de Amiens, e o
senhor cura de Montdidier, juntamente comigo, discutimos algumas questões
teológicas, assuntos que nos interessam há algum tempo, e ficaria encantado em
ter a sua opinião.
O conselho de um homem da espada não tem o menor peso, respondeu o
jovem, começando a se preocupar com as voltas que a reunião estava dando, e
você pode, com toda a certeza, confiar na sabedoria e conhecimento destes senhores.
Os dois homens saudaram em conjunto com a cabeça.
Ao contrário, retrucou Aramis, e a sua opinião nos será preciosa; eis do que se
trata: o senhor principal acredita que minha tese deve ser principalmente dogmática
e didática.
Sua tese? Mas você está escrevendo uma tese?
Sem dúvida, respondeu o jesuíta; para o exame que precede a ordenação, uma
tese é necessária.
A ordenação! Espantou-se d’Artagnan, não acreditando muito no que dissera
a estalajadeira e Bazin...a ordenaçao!
E olhava, estupefato, os três personagens diante dele.
Ou, continuou Aramis, tomando a pose graciosa na poltrona que teria tomado
se estivesse numa rua qualquer, olhando as mãos brancas e graciosas como as de
uma mulher, mas que eram mortais com uma espada enterrada num peito adversário,
ou, insistiu ele, como declara o senhor principal, a minha tese deve ser dogmática,
ao passo que eu pretendo seja ela idealística. É por isso que estamos discutindo, e
reconheço no assunto desdobramentos magníficos.
“Utraque manus in benedicendo clericis inferioribus necessária est”.
D’Artagnan, cujos conhecimentos eruditos já conhecemos, não pestanejou
diante desta citação, da mesma maneira que não pestanejara diante da citação
feita pelo senhor de Treville, a propósito dos presentes que pretensamente recebera
do duque de Buckingnham.
O que quer dizer, informou Aramis, para facilitar as coisas para o amigo: as
duas mãos são indispensáveis aos padres das ordens inferiores, quando dão a
absolvição.
Admirável assunto para uma tese! Exclamou o jesuíta.
Admirável e dogmática, repetiu o cura, o qual, companheiro de d’Artagnan
no conhecimento do latim, aguardava cuidadosamente o jesuíta falar para
manifestar sua sábia opinião, quase como um eco.
Quanto a d’Artagnan, permaneceu completamente indiferente diante do
entusiasmo dos dois homens de negro.
Sim, admirável! “Prorsus admirabile”! Continuou Aramis; todavia, isto exige
um estudo aprofundado dos Apóstolos e das Escrituras. Ora, admiti a estes sábios
eclesiásticos, com toda a humildade, que os plantões e o serviço no corpo de guarda,
a serviço do rei, fizeram-me negligenciar um pouco o estudo. Assim, eu me
encontraria mais à vontade, “facilius natans”, num assunto da minha escolha,
dentro das questões teológicas, metafísicas e filosóficas.
D’Artagnan aborrecia-se terrivelmente, bem como o cura.
Veja, ele está fugindo ao assunto! Exclamou o jesuíta.
Fugindo mesmo, repetiu o cura, para dizer alguma coisa.
“Quemadmodum inter coelorum immensitatem”.
Aramis lançou um olhar na direção do amigo, percebeu que o jovem balançava
e quase deixava cair o queixo.
Falemos francês, meus pais, pediu ao jesuíta, certamente o senhor d’Artagnan
apreciará mais a discussão.
Sim, estou fatigado pela viagem, e o latim me escapa.
De acordo, disse o jesuíta, um pouco despeitado, ao passo que o cura, satisfeito,
lançou sobre d’Artagnan um olhar cheio de gratidão; tudo bem, veja a vantagem
que alguém teria com esta glosa:
Moises, servidor de Deus...ele não passa de um servidor, veja bem! Moises
abençoou com as mãos; ele ergueu os dois braços, ao passo que os hebreus não
fazem isso; portanto, ele abençoa com as duas mãos. Tanto que o Evangelho declara:
“imponite manus”, e não “manum”. Erga as mãos, e não a mao.
Erga as mãos! Repetiu o cura, com um gesto imponente.
Já São Pedro, ao contrário, de quem os papas são herdeiros e sucessores,
continuou o jesuíta, declara: “Porrige dígitos”. Apresentem os dedos; está
acompanhando o raciocinio?
Certamente, respondeu Aramis, deliciado, mas a coisa é sutil.
Os dedos! Insistiu o jesuíta; São Pedro abençoou com os dedos. O papa também
abençoa com os dedos. E com quantos dedos ele abençoa? Com três dedos, um
para o Pai, um para o Filho, e um para o Espírito Santo.
Todos persignaram-se. D’Artagnan achou melhor acompanhar o gesto.
O papa é o sucessor de São Pedro, e representa os três poderes divinos; o resto,
“ordines inferiores” da hierarquia eclesiástica abençoa em nome dos santos arcanjos
e dos anjos. Os clérigos mais humildes, os diáconos e sacristãos, abençoam com os
punhos, simulando um número indefinido de dedos abençoadores. Eis o assunto
em termos simplificados, “argumentum omni denudatum ornamento”. Com este
argumento, continuou o jesuita, eu escreveria dois volumes do tamanho dos que
estão na mesa.
Em seu entusiasmo, ele batia sobre o enorme volume in-folio sobre Santo
Crisostomo que fazia a mesa gemer sob seu peso.
D’Artagnan estremeceu.
Concordo, disse Aramis, faço justiça à beleza desta tese, mas, ao mesmo tempo,
ela me esmaga. Eu escolhi outra tese, e diga-me, d’Artagnan, se ela é do seu agrado:
“Non unitile est desiderium in oblatione”, ou, melhor ainda, um pouco de remorso
não atrapalha em uma oferenda ao Senhor.
Alto lá! Exclamou o jesuíta, pois esta tese beira a heresia; existe uma proposição
quase semelhante no “Augustinus”, do herético Jansenius, o qual, cedo ou tarde
será queimado pelas mãos do carrasco.
Tome cuidado! Meu jovem amigo, o senhor se deixa embair por falsas doutrinas;
cuidado, pode se perder!
O senhor pode se perder, disse o cura, sacudindo dolorosamente a cabeça.
O senhor toca no famoso ponto do livre arbítrio, que é um perigo mortal. O
senhor aborda de frente as insinuações dos pelagianos e dos semi-pelagianos.
Mas, meu reverendo...retrucou Aramis, um pouco aturdido pela enxurrada de
argumentos que caiam sobre sua cabeça.
Como o senhor provaria, continuou o jesuíta, sem lhe dar tempo de falar, que
se deve esquecer deste mundo quando se oferece a Deus? Escute este dilema: Deus
é Deus, e o mundo é o diabo. Ter remorso do mundo é ter remorso do diabo! Essa
é a minha conclusão.
A minha também, disse o cura.
Mas...por favor, pediu Aramis.
“Desideras diabolum” Infeliz! Exclamou o jesuíta.
Ele tem remorso pelo diabo! Ah! Meu bom amigo, interveio o cura, gemendo,
não lamente pelo diabo, sou em quem lhe suplico!
D’Artagnan sentia-se como um idiota; parecia ter entrado numa casa de loucos,
e iria se transformar num louco também, pelo que estava vendo. Apenas manteve
silêncio, não compreendendo a língua que falavam diante dele.
Mas...esperem um pouco, retrucou Aramis, com uma polidez sob a qual
começava a transparecer um pouco de impaciência, eu não disse que lamento pelo
diabo; não, jamais diria algo assim, isso não me parece ortodoxo...
O jesuíta ergueu os olhos para o céu, e o cura imitou-o.
Não, mas ao menos admita que há enorme mau gosto em oferecer ao Senhor
o que é perfeitamente desagradável. Tenho razão, d’Artagnan?
Acredito piamente! Exclamou o jovem.
O cura e o jesuíta deram um pulo nas cadeiras.
Eis o meu ponto de partida, trata-se de um silogismo: ao mundo não faltam
atrativos, deixo o mundo, assim faço um sacrifício; ora, a Escritura Sagrada
positivamente afirma: Faça um sacrifício ao Senhor.
Isso é verdade, disseram os antagonistas.
E depois, continuou Aramis, apertando o lóbulo da orelha, para torna-lo
avermelhado, assim como sacudia as mãos para torna-las mais brancas, e depois,
eu compus uns versos, que cheguei a mostrar ao senhor Voiture, no ano passado, e
este grande homem me fez mil elogios.
Versos! Ironizou desdenhosamente o jesuíta.
Versos! Repetiu maquinalmente o cura.
Mas recite, recite logo, será ótimo mudar de assunto, pediu d’Artagnan.
Não mudará nada, respondeu Aramis, trata-se de teologia em versos.
Diabo! Resmungou d’Artagnan.
Então, lá vai, disse Aramis, com um falso ar de modéstia, não isento de uma
tintura de hipocrisia:
“Você que chora um passado cheio de encantos,
e que sofre dias de infortúnio,
todos os seus males estarão encerrados,
Quando a Deus oferecer suas lágrimas,
Você que chora!”.
D’Artagnan e o cura pareceram emocionados. O jesuíta persistiu em sua
opinião:
Cuidado com o gosto profano no estilo teológico. E, com efeito, o que diz
Santo Agostinho: “ Severus sit clericorum sermo”.
Sim, que seu sermão seja claro! Declarou o cura.
Ou, apressou-se o jesuíta em interromper, vendo que seu acólito errava a
citação, a sua tese agradará às senhoras, apenas isso; ela terá o sucesso de uma
brincadeira de salão.
Deus agradece! Exclamou Aramis, ironizando.
Está vendo? Está vendo? Declarou enfaticamente o jesuíta, a vida mundana
ainda fala alto ao seu coração, “altíssima voce”. O senhor segue a moda, meu
jovem amigo, e estremeço em pensar que a graça divina não o atingiu.
Fique tranqüilo, meu pai, respondo por mim.
Presunção mundana!
Eu me conheço, meu pai, minha resolução é irrevogável.
Então está obstinado em perseguir esta tese?
Sinto-me atraído pelo tema, e não de outro qualquer; assim, vou continuar
desenvolvendo-o, e amanhã espero que o senhor fique satisfeito com as correções
que irei fazer, seguindo os seus conselhos.
Trabalhe lentamente, concordou o cura, vamos deixa-lo em excelente
disposição.
Sim, o terreno foi semeado, insistiu o jesuíta, e apenas tememos que uma
parte dos grãos caia em solo estéril ao longo do caminho, e que os pássaros do céu
tenha comido o restante, “aves coeli comederum illam”.
Que a peste coma a sua língua latina! Murmurou d’Artagnan, sentindo sua
paciência esgotar-se.
Adeus, meu filho, até amanhã, despediu-se o cura.
Até amanhã, temerário jovem, completou o jesuíta; o senhor promete ser um
dos faróis da Igreja; que o véu vele para que esta luz não seja uma fogueira
devoradora.
D’Artagnan, que durante quase uma hora roera as unhas, começou a esmigalhar
a palha da cadeira onde se sentara.
Os dois homens em negro levantaram-se, cumprimentaram Aramis e o gascão,
e avançaram na direção da porta. Bazin, que atrás da porta permanecia de pé, com
os ouvidos colados nela e tudo escutara com piedoso júbilo, abriu-a , pegou o
breviário do cura e o missal do jesuíta, e caminhando respeitosamente diante
deles, foi mostrando o caminho.
Aramis, por sua vez, conduziu-os até o sopé da escada, e subiu logo em seguida
para se reunir a d’Artagnan, que ainda refletia sobre a cena anterior.
Permanecendo a sós, os dois amigos a princípio guardaram um silêncio
embaraçoso; no entanto, era necessário um deles quebrar o gelo, e como d’Artagnan
parecia querer deixar a honra ao amigo:
Você está vendo, disse Aramis, encontrou-me diante de idéias fundamentais.
Sim, a graça eficaz atingiu-o em cheio, como dizia um destes senhores, ainda
há pouco.
Oh! Este plano de me retirar já está formado há muito tempo, você me viu
comentando o assunto, não é verdade, meu amigo?
Sem dúvida, mas, creia-me, pensei que estava brincando.
Com esse tipo de coisa? Oh! D’Artagnan!
Diacho! A gente brinca até com a morte!
Fazemos mal, d’Artagnan, porque a morte é a porta conduzindo à perdição,
ou à salvação da sua alma!
De acordo, mas, faça-me um favor, não vamos teologisar, Aramis, você já teve
o suficiente para o resto do dia; quanto a mim, quase esqueci o pouco de latim
aprendido a duras penas; além disso, posso garantir que não comi nada esta manhã,
e já são mais de dez horas, estou com uma fome dos diabos.
Ótimo, vamos almoçar imediatamente, caro amigo; devo lembra-lo apenas
que hoje é sábado, e nesse dia não posso nem ver, nem comer carne. Se você
quiser me acompanhar na refeição, ela se compõe de alimentos cozidos e de frutas.
O que você entende por alimentos cozidos? Perguntou o gascão, inquieto.
Entendo por espinafre, cenouras e outras coisas assim, retrucou Aramis; mas,
em sua consideração, admitirei ovos, é uma grave infração às regras, afinal os ovos
são uma espécie de carne, pois geram os pintinhos.
Esse festim não é nada suculento, mas...não importa, para gozar da sua
companhia, eu o suportarei.
Fico agradecido pelo sacrifício, disse Aramis; mesmo que seu corpo não o
saboreie, acredite, sua alma aproveitará.
Então, decididamente, Aramis, você entra para a vida religiosa. O que vão
dizer os nossos amigos, e o senhor de Treville? Vão considera-lo um traidor, estou
prevenindo...
Não estou entrando para a vida religiosa, estou reentrando. É a Igreja que
desertei, para gozar a vida mundana, porque talvez você não saiba, mas cometi
uma violência contra mim mesmo ao usar o uniforme dos mosqueteiros.
Não estou sabendo de nada.
Você ignora como eu deixei o seminário?
Sim.
Vou contar-lhe a história; de qualquer maneira, as Escrituras declaram:
“confessem-se uns aos outros”. Assim, confesso-me a você, d’Artagnan.
Eu o absolvo antecipadamente, creia, sou um bom homem.
Não brinque com as coisas sagradas, meu amigo.
Está certo, então fale.
Eu estava no seminário desde a idade de nove anos, ia fazer vinte anos em três
dias, iria ser um abade, e tudo bem. Um dia, quando, conforme meu costume,
estava num salão elegante, onde gostava de ir – era muito jovem, o que você quer!
Nessa época somos fracos – enfim, nesse dia, um oficial que sentia ciúmes de mim
porque eu lia a vida dos santos para a dona da mansão, entrou repentinamente,
sem ser anunciado. Justamente naquela tarde eu traduzira o episódio de Judite, e
começara a recitar os versos para a dama, a qual me fazia todo o tipo de elogios;
debruçada por sobre meu ombro, lia-o comigo. A nossa atitude, que confesso, era
um tanto livre, chocou o oficial; ele não disse nada, mas quando sai, o homem me
seguiu, e me alcançou:
Senhor abade, disse ele, o senhor gosta de bengaladas?
Não posso lhe dizer, senhor, nunca ninguém ousou isso comigo.
Tudo bem, escute, senhor abade, se voltar a esta casa onde esteve até agora, eu
ousarei, garanto-lhe.
Penso ter tido medo, fiquei muito pálido, senti as pernas tremerem, procurei
uma resposta, mas não consegui, e fiquei calado.
O oficial esperava esta resposta, vendo que eu me calava, começou a rir, voltoume as costas e entrou de novo na mansão. Eu voltei ao seminário.
Sou um nobre, um gentil homem, tenho o sangue esquentado, como você já
teve oportunidade de observar, meu caro d’Artagnan; o insulto era terrível, e apesar
de desconhecido por todos, sentia-o remoer vivamente no fundo do meu coração.
Declarei ao meu superior que não me sentia suficientemente preparado para a
ordenação, e a meu pedido, postergaram a cerimônia para dali a um ano.
Fui procurar o melhor mestre de armas de Paris, e contratei o homem para ter
uma aula diária de esgrima, e cada dia, durante um ano, tomei a lição. E depois, no
dia do aniversário daquele no qual fui insultado, escondi a sotaina no fundo do
baú, vesti roupas de nobre, fui a um baile dado por uma dama da sociedade, e onde
sabia que iria encontrar o meu ofensor. Ficava na rua Francs-Bourgeois, muito
perto do quartel.
E realmente, o meu oficial encontrava-se no salão; como o homem cantava
um verso de amor, fitando ternamente uma jovem mulher, interrompi-o bem no
meio de um verso:
Senhor, disse eu, ainda irá se aborrecer se eu voltar a uma certa mansão da rua
Payenne, e irá me dar umas bengaladas, se eu ousar desobedecer?
O oficial fitou-me, espantado, e exclamou:
O que quer de mim, senhor? Não o conheço.
Sou aquele abadesinho que lia versos sobre santos, e que traduziu alguns sobre
Judite.
Ah! Ah! Agora me lembro, zombou o oficial, rindo, mas...o que quer de mim?
Gostaria que o senhor deixasse essa besteira e viesse dar um passeio comigo.
Amanhã de manhã, se me faz o favor, terei grande prazer em atender ao seu
convite.
Nada de amanhã, se me faz o favor, agora mesmo!
Bem, se exige...
Sim, eu exijo!
Então, vamos logo, concordou o oficial, não se preocupem senhoras, será apenas
o tempo de mata-lo.
Saímos juntos.
Conduzi o homem até a rua Payenne, no mesmo lugar de antes, onde ele me
ofendera, como já lhe contei. A noite estava muito clara, um luar magnífico.
Lutamos com nossas espadas, e logo na primeira investida, matei-o.
Diacho! Exclamou d’Artagnan.
Ora, continuou Aramis, como as damas não viram retornar o seu cantor, e
como encontraram-no na rua Payenne, com uma enorme estocada em pleno peito,
todos imaginaram que tinha sido eu, e a coisa causou escândalo. Assim, por algum
tempo fui obrigado a renunciar à batina. Athos, com quem travei conhecimento
nesta época, e Porthos, que conheci nas aulas de esgrima, decidiram pedir um
uniforme de mosqueteiro para mim. O rei gostava muito de meu falecido pai,
morto no sítio a Arras, e isso me foi concedido. Portanto, você compreende que
chegou o momento de voltar ao seio da Igreja, não é mesmo?
E por que hoje, e não ontem, ou amanhã? Qual o motivo de ser hoje, quem
está enfiando em sua cabeça uma idéia tão estapafúrdia?
Este ferimento, meu caro d’Artagnan, foi um aviso do Céu.
Este ferimento? Bah! Você está quase curado, tenho certeza que hoje você
tem um sofrimento muito mais sério, faz você sofrer muito mais.
E qual é ele? Indagou Aramis, enrubescendo.
Você tem um ferimento no coração, Aramis, uma ferida mais viva e mais
sangrenta, ocasionada por uma mulher.
Os olhos de Aramis fecharam-se, apesar dele.
Ah! Disse ele, dissimulando sua emoção sob um camada de negligência, não
me fale destas coisas; logo eu, pensar nisso! Ter aborrecimentos por causa do amor?
“Vanitas vanitorum”. Na sua opinião eu teria me tornado um bobo descerebrado,
e por quem? Por uma galinha qualquer, por alguma criada de quarto, conquista de
quartel?
Perdão, meu caro Aramis, mas acreditava que seus olhos buscavam mais alto
o amor.
Mais alto? E quem sou eu para ter tanta ambição? Um pobre mosqueteiro,
quase indigente, obscuro, que odeia o puxasaquismo e não se encaixa neste mundo?
Aramis, Aramis! Exclamou d’Artagnan, fitando seu amigo, com um ar de
dúvida.
Sou apenas pó, e ao pó retornarei. A vida está cheia de dores e humilhações,
continuou ele, sombriamente, todos os fios que a ligam à felicidade se romperam
nas mãos dos homens, principalmente os fios de ouro. Oh! Meu caro d’Artagnan,
insistiu Aramis, com um amargor ligeiro na voz, creia-me, torne-se um solitário,
assim que puder. O silêncio é a última alegria dos infelizes; tome cuidado para
esconder o seu sofrimento, os curiosos sugam nossas lágrimas como pernilongos
fazem isso até mesmo com pessoas feridas.
É triste mesmo, meu caro Aramis, respondeu o gascão, lançando um grande
suspiro, sua história parece a minha.
Como?
Sim, uma mulher, que eu amo, que eu adoro, foi raptada, não sei onde se
encontra, para onde a levaram; talvez seja prisioneira, talvez esteja morta.
Mas ao menos você tem um consolo, afinal ela não o deixou voluntariamente;
se você não tem notícia dela foi por causa de um rapto, ao passo que...
Ao passo que...
Nada, nada, retrucou Aramis.
Assim, você está renunciando ao mundo? É uma decisão definitiva?
Para sempre. Você é meu amigo hoje, mas amanhã poderá ser apenas uma
sombra, para mim deixará de existir. Quanto ao mundo, é um sepulcro, nada além
disso!
Diacho! Como é triste o que está me dizendo.
O que você quer? Minha vocação me obriga, me atinge em pleno peito!
D’Artagnan sorriu e nada respondeu. Aramis continuou:
Contudo, enquanto ainda pertenço a este mundo, gostaria de conversar com
você, falar dos nossos amigos.
E eu, afirmou d’Artagnan, gostaria de conversar consigo, a seu respeito,
mas...vejo-o tão desligado de tudo, dos amores você zomba, os amigos são apenas
sombras, o mundo é um sepulcro...
Infelizmente, é o que sinto, concordou Aramis, suspirando.
Não falemos mais disso, concordou o gascão, acho melhor queimar essa carta,
que sem dúvida traz alguma nova infidelidade de alguma galinha, de alguma criada
de quarto...
Que carta? Perguntou vivamente Aramis.
Uma carta que chegou para você, em sua ausência, eu a trouxe comigo.
Mas de quem é essa carta?
Ah! De alguma desempregada, ou de alguma criada desesperada; talvez da
criada da senhora de Chevreuse, que foi obrigada a voltar com a patroa para Tours,
a qual, para se fingir de nobre, escreveu num papel de linho perfumado, e colocou
o timbre de cera de duquesa no sobrescrito.
O que você está falando?
Diacho! Acho que perdi a carta! Zombou o gascão, fingindo procurar nos
bolsos. Mas...felizmente o mundo é um sepulcro, os homens, e conseqüentemente
as mulheres são apenas sombras, o amor é um sentimento do qual o amigo se
livra...
Ah! D’Artagnan, d’Artagnan, exclamou Aramis, você está me fazendo morrer!
Ah! Aqui está ela! Disse d’Artagnan, sacando a carta do bolso.
Aramis deu um pulo, agarrou a carta, leu-a, ou melhor, engoliu as letras, seu
rosto brilhou.
Parece que a galinha tem um estilo bem interessante, gracejou o gascão.
Obrigado, d’Artagnan, gaguejou Aramis, quase delirando. Ela foi obrigada a
voltar para Tours, ela não é infiel, ela me ama como sempre! Venha, amigo, deixeme abraça-lo, a felicidade me afoga!
E os dois amigos se puseram a dançar em volta do piedoso santo Crisóstomo,
pisando bravamente as folhas da tese, que caíram no assoalho.
Neste instante Bazin entrou no aposento, trazendo os espinafres e a omelete.
Vá embora, infeliz! Gritou o patrão, atirando nele um pedaço de vela, volte
ao lugar de onde veio com seus horríveis legumes e esta pavorosa omelete! Mande
vir uma lebre assada, um leitão pururuca com alho e quatro garrafas de vinho
Borgonha velho!
Bazin, olhando para o patrão, sem nada entender diante desta mudança,
deslizou melancolicamente os espinafres no prato da omelete, e tudo caiu no
assoalho, junto da lareira.
Eis o momento de consagrar sua existência ao Rei dos Reis, afirmou
d’Artagnan, especialmente se você lhe fizer um favor: “non inutile desiderium in
oblatione”.
Vá para o diabo que te carregue com o seu porco latim! Meu caro d’Artagnan,
vamos beber, por Deus, bebamos muito, vamos encher a cara, e afinal, conte-me
tudo o que aconteceu até agora!

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