Os tres Mosqueteiros.p65

Transcrição

Os tres Mosqueteiros.p65
Capítulo III
A audiência
Naquele momento o senhor de Treville encontrava-se de muito mau humor;
apesar disso, cumprimentou polidamente o jovem homem, o qual se inclinou até
junto do assoalho; o capitão sorriu ao receber seu cumprimento, cujo sotaque
gascão lembrou-lhe ao mesmo tempo sua juventude e sua província, dupla
lembrança, que faz o homem sorrir em qualquer idade. No entanto, aproximou-se
da porta de entrada da antecâmara, fazendo um sinal com a mão para d’Artagnan,
como que lhe pedindo permissão para tratar de um outro assunto; ali chegando,
chamou três nomes, a cada nome engrossando a voz, de tal maneira que ela
percorreu todos os tons intermediários entre o imperativo e o irritado:
Athos! Porthos! Aramis!
Os dois mosqueteiros, com os quais já travamos conhecimento, e que
respondiam pelos dois últimos nomes, imediatamente abandonaram seu grupo de
conversação e caminharam na direção do gabinete, cuja porta se fechou atrás
deles, após sua passagem. Sua atitude, embora não parecesse muito tranqüila, no
entanto excitou a admiração de d’Artagnan pela calma cheia de dignidade destes
homens, em quem encontrava algo de semi deuses, e em cujo chefe via uma
espécie de Júpiter armado de todos os raios olímpicos.
Quando os dois mosqueteiros entraram, quando a porta se fechou atrás deles,
quando o murmúrio surdo da antecâmara recomeçou, quando, enfim, o senhor de
Treville rodopiou três ou quatro vezes pelo gabinete, silencioso, cenho franzido,
passando a cada vez diante de Porthos e Aramis, mudos e rígidos como numa
parada militar, subitamente parou e, cobrindo-os com um olhar irritado, da cabeça
aos pés, exclamou:
Sabem o que o rei me disse, senhores? E apenas ontem à tarde? Sabem,
senhores?
Não, responderam ambos os mosqueteiros, após um breve silêncio, ignoramos
o que ele disse.
Mas...espero que tenhamos a honra de ficar sabendo, senhor, acrescentou
Aramis, com seu tom de voz mais polido, e a mais graciosa reverência.
Ele disse-me que a partir de agora irá recrutar seus mosqueteiros entre os
guardas do cardeal!
Entre os guardas do cardeal! E Por que? Indagou Porthos, vivamente.
Porque ele acredita que suas videiras necessitam de novas mudas para
fornecerem bom vinho!
Os dois homens enrubesceram até o branco dos olhos. D’Artagnan não sabia
onde enfiar a cara, preferia estar a mais de cem metros sob a terra.
Sim, continuou o senhor de Treville, animando-se na bronca, sim, Sua
Majestade tinha razão, porque, pela minha honra, é verdade, os mosqueteiros
estão fazendo triste figura na corte...ainda ontem o senhor cardeal contava ao rei,
enquanto jogavam xadrez, e com um ar de condolência, o que me desagradou
muito, que anteontem estes endiabrados mosqueteiros – e falando isso num tom
de voz irônico – estes desordeiros, acrescentou, fitando-me com seus olhos de
tigre, causaram uma perturbação num cabaré da rua Férou, e uma ronda de seus
guardas – tive a impressão que iria rir na minha cara – foi forçada a deter estes
perturbadores da ordem pública. Por Deus! Vocês devem saber de alguma coisa!
Deter meus mosqueteiros! Vocês estavam lá, foram reconhecidos, o cardeal citouos nominalmente. A culpa é minha, sim, culpa minha, afinal fui eu quem os
escolhi. Vejamos, Aramis, por que me pediu para vestir a sobrepeliz de militar,
quando a batina lhe cai tão bem? Vejamos você, Porthos, com este cinturão cheio
de pedras preciosas, será que ele sustenta uma espada de palha? E Athos, onde
está o Athos?
Senhor, respondeu tristemente Aramis, ele está doente, muito doente.
Doente? Muito doente? É o que está me dizendo? E que raios de doença é
essa?
Acredito que ele está com rubéola, senhor,interveio Porthos, pretendendo
entrar na conversa, de modo atravessado.
Rubéola? Mas que diabo de história está me contando, Porthos? Rubéola, na
idade dele? Nada disso! Acho que está ferido, sem dúvida...talvez tenha
morrido...Ah! Se eu soubesse...por Deus! Senhores mosqueteiros, deviam evitar
os locais perigosos, deviam evitar brigas nas ruas, deviam evitar duelos, não quero
que sejam motivo de zombaria dos guardas do senhor cardeal, são militares
valorosos, tranqüilos, gente direita, que jamais se mete em rixas, e quando o
fazem, jamais se deixam prender! Disso eu tenho certeza...eles prefeririam morrer
no local a dar um passo atrás...salvar-se, fugir...isso é coisa dos mosqueteiros do
rei!
Porthos e Aramis estremeciam de raiva. Teriam estrangulado facilmente o
senhor de Treville, se no fundo de toda esta censura não sentissem que era a
grande amizade do homem por eles que o levava a assim falar. Batiam com as
botas no assoalho, mordiam os lábios até quase sangrar, e apertavam com toda a
força o punho de suas espadas. Na antecâmara todos tinham ouvido o senhor de
Treville chamar exaltadamente pelos três, e tinham percebido perfeitamente a
sua cólera. Dez cabeças curiosas colaram-se à tapeçaria que encobria a porta, e
empalideciam de ódio, porque suas orelhas ali coladas não perdiam uma sílaba do
que se dizia, ao passo que suas bocas repetiam passo a passo as palavras insultuosas
do capitão a todos os demais presentes na antecâmara. Num breve momento, da
porta do gabinete até a rua, toda a mansão ficou em ebulição.
Ah! Os mosqueteiros do rei se deixaram deter pelos guardas do senhor cardeal!
Continuou o senhor de Treville, tão furioso interiormente quanto seus
comandados, mas escandindo as palavras uma a uma, como golpes de florete no
peito de seus ouvintes, ah! Seis guardas do senhor cardeal detiveram seis
mosqueteiros de Sua Majestade! Bom Deus! Já tomei uma decisão. Vou agora
mesmo ao Louvre, pedir a minha demissão como capitão dos mosqueteiros do rei,
e imediatamente pedirei ao cardeal um lugar de tenente na sua guarda...e se ele
recusar...vou me tornar padre!
Ao final destas palavras, o murmúrio externo se tornou uma explosão: por
todos os lados apenas se ouviam juras de ódio, xingamentos. Os “pelo diabo”, os
“canalhas”, os “malditos guardas” cruzavam os ares. D’Artagnan procurava alguma
tapeçaria na parede onde pudesse se esconder, sentindo enorme vontade de se
enfiar debaixo da mesa.
Tudo bem, meu capitão, exclamou Porthos, exaltado, éramos seis contra seis,
mas fomos pegos à traição, e antes que pudéssemos sacar nossas espadas, dois dos
nossos caíram mortos, e Athos foi ferido mortalmente, também não conseguiu
lutar. O senhor conhece bem o Athos, meu capitão, ele tentou se levantar duas
vezes, e caiu duas vezes. No entanto, nós não nos rendemos, de modo algum!
Conseguimos brigar, e muito, e na retirada nos salvamos com vida. Quanto ao
Athos, pensamos que ele tinha morrido, fomos obrigados a deixa-lo no campo de
batalha, não valia a pena traze-lo conosco. Eis a historia verdadeira! Que diabo,
meu capitão, não se ganha todas as batalhas. O grande Pompeu perdeu a batalha
de Farsala, e o rei François I, ao menos foi o que me disseram, perdeu a batalha
em Pávia.
E tenho a honra de lhe assegurar que matei ao menos um, com a espada
dele...reforçou Aramis, porque a minha se quebrou logo na primeira
estocada...morto, ou ferido...
Não sabia disso, retrucou o senhor de Treville, com um tom de voz um pouco
mais manso. Pelo que vejo, o senhor cardeal exagerou.
Mas, por favor, senhor...continuou Aramis, vendo seu capitão acalmar-se,
ousou pedir um favor...senhor, não diga a ninguém que o Athos se feriu...ele
ficaria desesperado se esta notícia chegasse aos ouvidos do rei, e como o ferimento
é muito grave, afinal a espada atravessou o peito, ele tem medo...
No mesmo instante a porta se abriu e uma cabeça nobre e bela, mas
terrivelmente pálida apareceu sob a tapeçaria.
Athos! Exclamaram os dois mosqueteiros em uníssono.
Athos! Repetiu o próprio senhor de Treville.
O senhor mandou me chamar, declarou Athos, com uma voz fraca, mas
perfeitamente calma, ao menos foi isso o que me disseram os companheiros, e
corri para me colocar às suas ordens...o que o senhor deseja de mim?
E com estas palavras o mosqueteiro, com porte irrepreensível, calmo como
de costume, entrou com passo firme no gabinete. O senhor de Treville, emocionado
até ao fundo do coração diante desta prova de coragem, precipitou-se em sua
direção.
Estava a ponto de dizer a estes senhores, afirmou o capitão, que eu defendo os
meus mosqueteiros acima de tudo, não devem eles expor suas vidas sem
necessidade, porque estes bravos homens são muito queridos do rei, e o rei sabe
que os seus mosqueteiros são os mais corajosos na face da terra. Sua mão, Athos,
ordenou o militar.
E sem aguardar que o recém chegado respondesse a esta prova de afeição, o
senhor de Treville agarrou a mão do mosqueteiro, apertando-a com toda a força,
sem perceber que Athos, apesar de todo o domínio sobre seu corpo, deixou escapar
um gemido de dor, empalidecendo ainda mais, o que parecia ser impossível.
A porta permanecera entreaberta após a chegada de Athos, e apesar de toda
a discrição dos amigos, o segredo do ferimento já era conhecido pela corporação
inteira, e a observação do seu comandante causou sensação. Um burburinho de
satisfação acolheu as últimas palavras do capital, e duas ou três cabeças, levadas
pelo entusiasmo, apareceram pela fresta da porta. Sem dúvida o senhor de Treville
iria reprimir com as mais vivas palavras esta infração às leis da etiqueta, quando
subitamente sentiu a mão de Athos crispar-se na sua; voltou-se para ele e percebeu
que o homem iria desmaiar. No mesmo instante, Athos, que parecera ter reunido
suas ultimas forças para lutar contra a dor, e finalmente vencido por ela, caiu
sobre o assoalho, como um morto.
Um cirurgião! Gritou o senhor de Treville, o melhor, o cirurgião do rei! Pelo
amor de Deus, um médico! O meu bravo Athos está morrendo!
Aos gritos do senhor de Treville todo o mundo precipitou-se no gabinete,
sem que ninguém sonhasse em fechar a porta atrás de si, cada um aglomerando-se
em torno do ferido. Contudo, este interesse inaudito todo teria sido inútil, se o
médico não se encontrasse na mansão; o médico abriu caminho aos trancos na
multidão, aproximou-se de Athos, ainda desmaiado, e como todo o barulho e
confusão apenas o atrapalhassem no seu ofício, pediu que levassem o ferido para
uma sala ao lado. Imediatamente o senhor de Treville abriu uma porta, mostrando
o caminho para Portho e Aramis, que conduziram o companheiro em seus braços.
Atrás dos três caminhava o médico, e atrás do médico a porta se fechou.
Então o gabinete do senhor de Treville, local ordinariamente tão respeitado,
tornou-se momentaneamente uma extensão da antecâmara. Cada um discursava,
bradava, perorava, gritava, jurava, mandando o cardeal e os seus comandados
para o diabo a quatro.
Um momento depois Porthos e Aramis voltaram para o gabinete, e apenas o
senhor de Treville e o médico ficaram na companhia do ferido.
Finalmente, o senhor de Treville reentrou. Athos recuperara a consciência,
e o cirurgião declarou que o estado do mosqueteiro não era inquietante, sua
fraqueza devia-se apenas e simplesmente à enorme perda de sangue ocasionada
pelo duelo.
Em seguida o senhor de Treville fez um gesto imperativo com a mão, e todos
retiraram-se, exceto d’Artagnan, que não esquecera sua audiência, e, com a
tenacidade dos gascões, permanecera parado no mesmo lugar.
Quando todo mundo saiu, e a porta fechada, o senhor de Treville voltou-se e
deu de cara com o jovem homem. O acontecimento anterior fizera com que
perdesse o fio da meada da conversa iniciada. Assim, indagou o que pretendia
dele um tão obstinado solicitante:
Perdão, meu caro compatriota, disse, sorrindo, mas eu o esqueci
completamente. O que pretende? Um capitão nada mais é do que um pai de
família, com maiores responsabilidades. Os soldados são crianças grandes...mas,
como devo obedecer às ordens do rei, e principalmente as ordens do cardeal...
D’Artagnan não conseguiu esconder um sorriso. Diante deste sorriso, o senhor
de Treville percebeu não estar falando com um tolo, e indo diretamente ao ponto
central do que interessava, mudando de assunto, afirmou:
Sempre gostei muito do seu pai. O que posso fazer pelo filho? Apresse-se, não
tenho muito tempo.
Senhor, respondeu d’Artagnan, ao deixar Tarbes, e vir até aqui, pensei em
lhe pedir, em consideração a esta antiga amizade, um uniforme de mosqueteiro,
mas depois de tudo o que vi, receio não estar à altura do favor.
E realmente é um favor, jovem, respondeu o senhor de Treville, mas
certamente não está acima dos seus méritos, e nem deve acreditar que não o
merece. Contudo, uma decisão de Sua Majestade já prevê estas situações, e eu lhe
digo, com pesar, que ninguém é recebido no corpo de mosqueteiros antes de provas
inequívocas de mérito militar, em campanhas, e somente após dois anos em algum
regimento menos favorecido do que o nosso.
D’Artagnan inclinou-se, sem nada responder. Apenas sentiu maior vontade
de abraçar este uniforme de mosqueteiro, depois de saber da grande dificuldade
em o obter.
Mas, continuou de Treville, lançando um olhar penetrante sobre o seu
compatriota, tão penetrante que parecia querer mergulhar no fundo da sua alma...mas,
em atenção ao seu pai, meu velho companheiro, como já lhe disse, quero fazer alguma
coisa por você, meu jovem. Nossos adolescentes de Bearn comumente não são ricos,
e não acredito que isto tenha mudado muito depois da minha partida. Não acho que
você tenha muito dinheiro para sobreviver, não é verdade?
D’Artagnan empertigou-se todo, com um ar orgulhoso, como que querendo
dizer não estar pedindo esmola.
Tudo bem, meu jovem, tudo bem, continuou de Treville, conheço estes ares.
Eu vim para Paris com quatro escudos no bolso, e pode crer, eu duelaria com
qualquer um que dissesse que não podia comprar um castelo.
D’Artagnan empertigou-se ainda mais: graças à venda do seu cavalo, começava
sua carreira com quatro escudos mais do que o senhor de Treville.
Bem, de qualquer maneira, trate de economizar, mas, além disso terá
necessidade de se aperfeiçoar nos exercícios que convém a um gentil homem.
Hoje mesmo escreverei uma carta ao diretor da academia real, e a partir de amanhã
ele o receberá, sem pagamento algum. Não recuse este favor. Nossos fidalgos mais
bem nascidos, mesmo os mais ricos pedem-me isso, e nem sempre conseguem. Na
academia você aprenderá a montar, a esgrima e a dança. Lá terá oportunidade de
fazer bons amigos; de tempos em tempos você virá me ver, dando conta dos seus
progressos e o que poderei fazer por você.
D’Artagnan, muito embora não conhecesse os costumes da corte, percebeu a
frieza desta acolhida.
Infelizmente, senhor, respondeu, vejo bem que a carta de recomendação do
meu pai mandou ao senhor está fazendo falta.
Realmente, concordou o senhor de Treville, fiquei espantado com o fato de
você ter feito uma viagem tão longa se qualquer coisa escrita, uma confirmação
concreta do que está dizendo.
Eu tinha, senhor, e Deus me perdoe, exclamou o jovem, mas ela me foi
perfidamente roubada!
E contou ao militar toda a cena em Meung, descreveu o gentil homem
desconhecido com todos os detalhes, com um calor e sinceridade tão grandes que
encantaram o senhor de Treville.
Eis o que é estranho, disse o capitão, meditando, assim, você citou o meu
nome em voz alta?
Sim, senhor, sem dúvida cometi esta imprudência, mas...o que quer, um nome
como o seu deveria me servir como escudo impenetrável na viagem!
A adulação estava em grande voga na época, e o senhor de Treville amava o
incenso como um rei, ou como um cardeal. Não conseguiu deixar de sorrir,
visivelmente satisfeito, mas o sorriso rapidamente desapareceu, e, voltando a si,
insistiu no assunto de Meung:
Diga-me, continuou, este gentil homem não tinha uma ligeira cicatriz na
testa?
Sim, como se fosse a marca de uma bala de raspão.
Era um homem bonito?
Sim.
Alto?
Sim.
Pálido e moreno?
Sim, sim, isso mesmo. Mas...como é que o senhor conhece este homem? Ah!
Se jamais eu encontro esse sujeito de novo...e pode ter certeza, eu o encontro
nem que seja no inferno...
Ele esperava uma mulher? Continuou de Treville.
Ao menos ele partiu depois de ter conversado um momento com uma jovem
que o aguardava.
E você não sabe o assunto dessa conversa?
O homem entregou uma caixinha para a mulher, dizendo que nela estavam
suas instruções, recomendando-lhe que não a abrisse antes de chegar em Londres.
Esta mulher era inglesa?
Ele a chamou de Milady.
É ele! Murmurou de Treville, é ele! E eu pensei que ainda se encontrava em
Bruxelas!
Oh! Senhor, se sabe quem é este homem, exclamou d’Artagnan, diga-me
onde posso encontra-lo, depois disso eu não o importuno mais, nem precisa manter
a promessa de me ajudar a entrar para o corpo de mosqueteiros, porque antes de
mais nada quero me vingar.
Tome cuidado, meu jovem, retrucou o capitão, e se vir este homem vindo na
sua direção numa rua, mude de calçada! Não tente se bater com um tal rochedo!
Ele o destruirá em poucos segundos.
Isso não me impedirá de...
Eu, se fosse você, insistiu de Treville, não o procuraria, siga o meu conselho.
De repente, de Treville parou, com uma súbita suspeita. A grande raiva
demonstrada pelo jovem viajante era uma coisa muito pouco plausível, afinal, ter
roubado uma carta...será que esta conversa não escondia alguma perfídia? Não
teria este jovem homem sido enviado pelo próprio cardeal? Não estaria tentando
forjar uma armadilha? Não seria este pretenso d’Artagnan um emissário do cardeal,
que estariam pretendendo colocar em seu esquadrão? Uma pessoa preparada para
conquistar sua confiança, e, em seguida, fazer uma traição, como já acontecera
mil vezes? Olhou o jovem ainda mais firmemente. Não conseguiu extrair nada
deste rosto que lhe pareceu muito astucioso.
Sei bem que ele é gascão, pensou, mas pode ser um gascão do cardeal, não
meu. Vamos coloca-lo à prova:
Senhor, disse o capitão, lentamente, pretendo ajudar o filho do meu antigo
companheiro, e tomo como verdadeira a história da carta perdida; e, para que
você perceba qual a política na corte, previno-o de que o rei e o cardeal são os
melhores amigos do mundo, e as aparentes desavenças são apenas uma forma
de enganar os tolos. Não quero que um jovem esperto como você faça mau
juízo de mim, e nem se engane a respeito da minha lealdade. Saiba que sou
fiel servidor de ambos, estou a serviço do rei e do senhor cardeal, um dos mais
ilustres gênios que a França já produziu. Assim, meu caro, se por acaso tiver
algum preconceito contra o cardeal, como o que você viu acontecer entre os
meus comandados, passe bem. Se confirmar isso, eu poderei ajuda-lo, mas
não quero saber da sua pessoa em minha companhia. Espero que a minha
franqueza não seja rude demais.
E de Treville dizia a si mesmo:
Se o cardeal mandou esta raposa, certamente ele não levará nada de volta;
afinal, ele que encontre meio melhor de me espionar; tenho certeza que o moleque
vai criticar o cardeal até não poder mais...
Ao contrário do que esperava de Treville, d’Artagnan respondeu, com a maior
simplicidade:
Senhor, cheguei a Paris com estas mesmas intenções, meu pai recomendoume que eu respeite apenas o rei, o cardeal e o senhor, pois são os três maiorais da
França!
D’Artagnan acrescentou o nome do senhor de Treville aos dois, como bem
percebemos, mas o jovem pensou que esta adição em nada o prejudicaria.
Eu tenho a maior veneração pelo senhor cardeal, continuou, e o mais profundo
respeito pela sua política e atos públicos. Tanto melhor para mim se o senhor fala
francamente comigo, e fico honrado em ter a mesma admiração por ambos; sinto
que talvez esteja sendo franco demais, e isto pode me prejudicar, mas o que quer,
é que sou honesto demais para esconder meus sentimentos.
O senhor de Treville ficou muito espantado. Tanta franqueza, tanta seriedade
causaram-lhe admiração, mas não impediu que mantivesse suas dúvidas; quanto
mais este jovem homem parecia ser superior aos demais postulantes a um cargo,
mais ele temia ser enganado. De qualquer maneira, apertou a mão de d’Artagnan,
e disse:
Você é um bravo jovem, mas neste momento não poderei atende-lo; quem
sabe mais para a frente poderemos conversar.
Ou seja, o senhor pretende que eu me torne digno da sua confiança, respondeu
d’Artagnan. Tudo bem, fique tranqüilo, finalizou, com a familiaridade dos gascões,
o senhor não irá esperar muito.
Assim falando, cumprimentou e voltou-se para sair do gabinete.
Mas, espere, meu jovem, ordenou o senhor de Treville, detendo-o, eu lhe
prometi uma carta de recomendação ao diretor da academia. Você é orgulhoso
demais para aceita-la?
Não, senhor, disse d’Artagnan, e pode ficar tranqüilo, não acontecerá com
ela a mesma coisa do que com a outra. Eu a guardarei tão bem que chegará ao seu
destino, juro-lhe. Azar de quem tentar rouba-la de mim!
O senhor de Treville sorriu diante desta fanfarronada, e deixando o seu
compatriota perto de uma janela onde se encontravam, foi sentar-se atrás de sua
escrivaninha, pondo-se a escrever a tal carta de recomendação prometida. Durante
este tempo,d’Artagnan, que nada tinha a fazer, começou a tamborilar com os
dedos na vidraça, olhando os mosqueteiros indo e vindo pelo pátio, seguindo-os
descuidadamente, até desapareceram da sua vista.
O senhor de Treville, depois de ter escrito a carta, lacrou-a e, levantando-se,
aproximou-se do jovem homem para entrega-la; contudo, no exato momento em
que d’Artagnan estendeu a mão para pegar o envelope lacrado, o senhor de Treville
ficou muito espantado ao ver o seu pretenso protegido dar meia volta, enrubescer
de cólera e pular para fora do gabinete, gritando:
Ah! Pelos diabos! Desta vez ele não me escapará!
Quem, homem, quem? Perguntou um surpreso capitão.
Ele, o ladrão da minha carta! Retrucou d’Artagnan. Ah! Traidor!
E desapareceu.
Diabo de louco! Murmurou o senhor de Treville. A menos, acrescentou para
si mesmo, que tenha sido uma maneira esquisita de se esquivar, vendo que o
golpe não deu certo.

Documentos relacionados

Os tres Mosqueteiros_copia.p65

Os tres Mosqueteiros_copia.p65 Realmente, afirmou o rei, essa casa parece suspeita mesmo; está sabendo de alguma coisa? Na verdade, Majestade, eu ignorava. De qualquer maneira, ela pode ser suspeita em outras partes, mas onde mo...

Leia mais

Os tres Mosqueteiros.p65

Os tres Mosqueteiros.p65 e chegava com toda sua corte e um reforço de dez mil homens; seus mosqueteiros o precediam. D’Artagnan, muito alegre em ver seus companheiros, saudou-os com um gesto expressivo, eles responderam co...

Leia mais

Os tres Mosqueteiros.p65

Os tres Mosqueteiros.p65 seguirá, pela rota de Noyon; quanto a d’Artagnan, irá por onde achar melhor, com a roupa do Planchet, ao passo que o Planchet irá conosco, fantasiado de d’Artagnan, com o uniforme da guarda. Senhor...

Leia mais

Os tres Mosqueteiros_copia.p65

Os tres Mosqueteiros_copia.p65 Oh! Não, o pobre homem, eu sabia que ele era incapaz de me ajudar, mas como poderia servir em outra coisa, pretendia preveni-lo. De que? Oh! Este é o meu segredo, não posso lhe contar nada. De qual...

Leia mais

Os Três Mosqueteiro

Os Três Mosqueteiro — Vá, meu filho. E não se esqueça de que você é um nobre. Quando chegar à corte, só deve curvar-se diante do rei Luís XIII e do Cardeal Richelieu — recomendou o pai de D’Artagnan logo depois de ens...

Leia mais

Os tres Mosqueteiros.p65

Os tres Mosqueteiros.p65 presentes paternos, e que se compunham, como já dissemos, de quinze escudos, do cavalo amarelo e da carta ao senhor de Treville; como imaginamos, os conselhos não faziam parte do enxoval. Com semel...

Leia mais