Darwin e os fantasmas suecos Candinho nasceu em Bom Jesus do

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Darwin e os fantasmas suecos Candinho nasceu em Bom Jesus do
Darwin e os fantasmas suecos
Candinho nasceu em Bom Jesus do Itabapoama, interior do Estado do Rio. Na escola, seu
professor de História do Brasil lhe ensinou a não esperar nada de nada:
“Este é o pior dos mundos”, disse o professor, “prepare-se para o pior”.
Candinho se preparou tão bem quanto pôde.
Olhando em volta, vendo as tragédias no jornal, ouvindo os dramas dos vizinhos, Candinho
não tinha dúvida: o professor tinha razão: era o pior dos mundos e bastava alguma pequena
distração para que piorasse ainda mais.
Não havia muito espaço para descansar no pior dos mundos.
Essa impressão geral de desencanto e a expectativa assustadora que criava começaram a
atrapalhar o sono de Candinho. Passava as noites esperando pela "grande tragédia" que, cedo
ou tarde, chegaria.
A falta de sono, é claro, piorou um pouco os seus dias.
E quando a falta de sono começou a parecer realmente assustadora, chegaram as férias
escolares.
Os tios de Candinho, com quem vivia desde muito pequeno, também estavam preocupados
com ele. As olheiras e o desânimo do sobrinho não passavam despercebidos. Perguntaram
então se ele não queria viajar.
Rasparam as economias e mandaram Candinho para o Rio de Janeiro.
Com 16 anos, Candinho nunca tinha saído de Bom Jesus e o Rio pareceu um pouco
assustador.
Ele ficou hospedado em um albergue em Copacabana, no Bairro Peixoto. A praça em frente ao
albergue o acalmava um pouco e a visão da praia, onde andava à beira d'água todas as
manhãs, também.
Nos primeiros dias, o que fazia era isso: andar na praia: comer sanduíches e ir aos lugares
aonde os turistas vão.
Acabou ficando amigo de um grupo de suecos que ocupava as outras camas de seu quarto no
albergue. Eles o levaram para festas em casas enfumaçadas, escondidas em Botafogo. Elas
tocavam musica indie, que ele não achava nem boa nem má.
Uma noite, depois de tomar três copinhos de tequila e discutir o horror do pior dos mundos com
uma insetóloga de cabelo pintado de vermelho (e leve odor de formol) chegou à conclusão
natural de sua divagação:
"Mas não tem jeito? Não dá para melhorar nem um pouquinho?"
"Se você fosse um besouro ou uma formiga, eu diria que não." respondeu a bióloga.
"Mas o que eu tenho que fazer?"
"Vem cá."
A insetóloga então convenceu Candinho que nem tudo na vida era tragédia. E ele voltou para
casa sorridente pela primeira vez em muito tempo.
No dia seguinte, ele acordou com uma pequena ressaca, que curou andando à beira d'água e
bebendo água de coco. Os suecos lhe deram de presente um livro de auto-ajuda – em sueco,
que ele prometeu estudar um dia.
Passou por uma livraria e folheou o livro sobre a origem das espécies que a bióloga de preto
tinha recomendado. A seleção natural, ela disse, era mesmo cruel com quem passava por ela.
Mas havia um instinto de preservação da espécie – que às vezes nos poupava do pior dos
mundos por uns minutos.
De qualquer jeito,era estranho pensar em si mesmo como uma espécie de inseto, seguindo
uma seqüência pré-determinada de comportamentos – com incentivos e punições biológicos.
Além de ouvir a bióloga, Candinho conversava muito com os estudantes suecos.
Um dia, ou melhor, uma noite, depois de esvaziarem um garrafão de vinho Sangue de boi e de
discutirem – por horas – o que faz com que as pessoas se sintam mal, um dos suecos
perguntou a Candinho se ele queria ir com eles para a Suécia.
– Não que eu tenha muito o que fazer aqui... Mas não tenho dinheiro para viajar e acho que
não ia conseguir trabalho lá.
– Minha família tem uma casa de campo – respondeu Yurik, um dos estudantes. – Há um bom
tempo procuramos alguém para cuidar dela durante o inverno e consertar algumas coisas, tipo
pintar paredes. Você acha que pode fazer isso?
Candinho ligou para seus tios, ligou para alguns amigos, descobriu um jeito de tirar passaporte
mais rápido e aceitou o que seu professor de História chamaria de proposta de trabalho
escravo. Na prática ele trabalharia em troca de casa, comida e passagem. Mas parecia melhor
do que ficar como estava agora, matando tempo e tendo insônia todas as noites.
Viajou então com visto de turista e se instalou em uma casa no meio do nada. Era uma casa
grande, com paredes de pedra escura, uma casa antiga, como as de filme de casa
assombrada. Com um pouco de boa vontade, dava até para ver fantasmas.
- Fantasmas suecos não falam inglês – diria Candinho depois a um amigo. – Mas acho que
aprendi um pouco de sueco com eles.
Cercado de neve (fora de casa) e de fantasmas (do lado de dentro), Candinho não se
intimidou, foi ver os livros na biblioteca (em viking) e consertar torneiras com defeito (com
instruções em inglês nas peças novas).
Era noite a maior parte do tempo, então parou de se preocupar com quando ia dormir (ou não).
Os fantasmas da casa eram organizados, faziam barulhos de porta rangendo, porta batendo
etc.,quase sempre nos mesmo horários. Candinho não se assustava. Gostava de ler alto, ouvir
a própria voz repetindo Álvaro de Campos e pensar que, se os fantasmas o ouvissem, não
entenderiam nada.
Os fantasmas da casa foram perdendo a timidez à medida que o inverno avançava e as horas
de claridade diminuíam.
Candinho deduziu que o que diziam para ele à noite era “hora do jantar” e, de manhã cedo,
“hora do café”. O café, por sinal, era chá, servido com cream chakers e geléia. Havia muito dos
três nos armários da casa.
Fantasmas suecos e cream crakers eram estranhamente uma companhia mais natural do que
água de coco e turistas bronzeados. O silêncio, quebrado apenas por portas rangendo e outros
ruídos fantasmagóricos, fazia bem a Candinho. Pensou que podia passar a eternidade assim,
trocando torneiras e pondo óleo em dobradiças. Essa idéia (que, ele sabia, passaria longe de
seu futuro real) o acalmou bastante.
Havia alternativa, pelo menos. Se nada mais funcionasse, podia ser caseiro em uma mansão
assombrada na Suécia.
Em três meses, o inverno acabou e voltou a haver gente andando em torno da casa. Nesse
tempo, Candinho aprendeu a ler quadrinhos suecos (havia muitos na biblioteca) e a conversar
com fantasmas – por mais monoglotas que fossem. Falar, apenas, mesmo sem ser entendido,
é uma espécie de terapia.Falar com fantasmas, aparentemente, é ainda melhor.
Mas com o fim do inverno – e da colagem do piso e dos rejuntes entre os vidros das janelas –
era hora de ir.
A família de Yurik lhe deu mil euros e uma passagem de volta. Ele adiou a passagem e foi
gastar seu dinheiro em Estocolmo.
No primeiro bar em que entrou, encontrou um grupo de brasileiros que estava indo para a
Espanha (vindo da Finlândia). Comprou uma dessas passagens regionais baratas e seguiu
com eles para o sul da Europa, para ver os quadros de Goya em Madri.

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