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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole sustentabilidade e justiça socioambiental nas metrópoles Cadernos Metrópole v. 15, n. 29, pp. 1-362 jan/jun 2013 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira ssustentabilidade u s t e ntt a b i l i d a d e e jjustiça u s t i ç a ssocioambiental o c i o a m b ie ental nas n a s metrópoles m e trr ó p o l e s PUC-SP Reitora Anna Maria Marques Cintra EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Anna Maria Marques Cintra (Presidente), Cibele Isaac Saad Rodrigues, Ladislau Dowbor, Mary Jane Paris Spink, Maura Pardini Bicudo Véras, Norval Baitello Junior, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery, Sonia Barbosa Camargo Igliori Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Eveline Bouteiller Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Revisão de espanhol Vivian Motta Pires Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (PUC-MG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (UNGS, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona/Espanha) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (UC, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. 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Alonso (FEE, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. 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An analysis of the Metropolitan Region of Barcelona Urbaniza on, migratory dynamics and sustainability in the Brazilian Semi-Arid Region: the role of the ci es in the environmental adapta on process The urban evolu on of the city of Belém: a trajectory of ambigui es and socio-environmental conflicts 15 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social. Análisis de la Región Metropolitana de Barcelona Gemma Vilà Jordi Gavaldà 35 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordes no: o papel das cidades no processo de adaptação ambiental Ricardo Ojima 55 A evolução urbana de Belém: trajetória de ambiguidades e conflitos socioambientais Ana Cláudia Duarte Cardoso Raul da Silva Ventura Neto Territorial segrega on, sta s cal knowledge and urban governance. A Foucauldian approach to the cases of France and Portugal 77 Segregação territorial, conhecimento esta s co Lights and shadows on the territory. Reflec ons on the planning performed by the PAHO/WHO in La n America 99 Luces y sombras sobre el territorio. Reflexiones e governação urbana. Leitura foucaul ana dos casos de França e de Portugual Isabel Pato Margarida Pereira en torno a los planteamientos de la OPS/OMS en América La na Magdalena Chiara Ana Ariovich The unsustainable nature of sustainability. 123 A insustentável natureza da sustentabilidade. From the environmentaliza on Da ambientalização do planejamento of planning to sustainable ci es às cidades sustentáveis Ester Limonad Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 1-362, jan/jun 2013 7 500 years in search of urban sustainability 143 500 anos em busca da sustentabilidade urbana Klemens Laschefski Urbaniza on, environment, risk and vulnerability: in search of an interdisciplinary construc on 171 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade: em busca de uma construção interdisciplinar Lúcia Cony Faria Cidade Urban space, circula on and environmental 193 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental: impasses e perspec vas na área de influência do preserva on: impasses and perspec ves Rodoanel em São Bernardo do Campo, SP in the area of influence of the Beltway Carolina Bracco Delgado de Aguilar in São Bernardo do Campo, SP Angélica Tanus Bena Alvim São Paulo, the unsustainable Metropolis – 219 São Paulo metrópole insustentável – how can we overcome this reality? como superar esta realidade? Pedro Roberto Jacobi Occupa on of urban hillsides: some 241 Ocupação de encostas urbanas: algumas considera ons about resilience and sustainability considerações sobre resiliência e sustentabilidade Mônica Bahia Schlee Urban environmental conflicts and urbaniza on 265 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização na Ressaca Lagoa dos Índios processes at Ressaca Lagoa dos Índios, Macapá/AP em Macapá/AP Gloria Maria Vargas Cecília Maria Chaves Brito Bastos The socio-environmental recovery of urban 289 Recuperação socioambiental de fundos valley bo oms in the city of São Paulo, de vale urbanos na cidade de São Paulo, between transforma on and permanence entre transformações e permanências Luciana Travassos Sandra Irene Momm Schult Regional development and sustainability: 313 Desarrollo regional y sustentabilidad: cultural tourism in Southern Jalisco turismo cultural en la región sur de Jalisco José G. Vargas Hernández Sustainability and environmental jus ce at Baixada 339 Sustentabilidade e jus ça ambiental na Baixada Fluminense: iden fying environmental problems Fluminense: iden ficando problemas ambientais based on the demands to the Public Prosecutor a par r das demandas ao Ministério Público Ta ana Co a Gonçalves Pereira 359 Instruções aos autores 8 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 1-362, jan/jun 2013 Apresentação A perspectiva que orientou a presente edição dos Cadernos Metrópole – Sustentabilidade e justiça socioambiental – foi repercutir criticamente o ambiente de debates ocorridos a partir da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e do conjunto de eventos paralelos organizados pela sociedade civil em reação e de forma complementar ao evento oficial, ocorridos em junho de 2012. A ênfase recaiu sobre o debate em torno de possibilidades de sustentabilidade urbana e de justiça socioambiental, a partir da compreensão das implicações dos atuais modos de produção, reprodução e consumo nas cidades e nas áreas metropolitanas, tanto no Brasil como em outros países. Recaiu também sobre o planejamento e as políticas públicas como potenciais articuladores da presença do Estado e dos movimentos sociais na construção de alternativas comprometidas com a justiça socioambiental e a eliminação das diversas formas de desigualdade. Assim a busca pela constituição de uma área de análise e de prática social e territorial no campo da ecologia política da urbanização é o fio condutor que alinhava o conjunto de textos aqui apresentados. Tal perspectiva, necessariamente interdisciplinar, articula a análise dos processos de produção do espaço em várias escalas espaciais – locais, urbanas, regionais, globais – com as condições mais amplas de reprodução social, nas quais as relações entre sociedade e natureza são centrais. Ao mesmo tempo, estimula o surgimento e a consolidação de formas alternativas de organização territorial, de aprendizado social ou de resistência às tendências homogeneizadoras de mercantilização das diferentes dimensões da vida. Nas duas últimas décadas, o debate ambiental na sua relação com as questões urbanas e territoriais avançou em diferentes perspectivas, ampliando-se para incorporar a urbanização, a economia, o planejamento, as políticas públicas, as práticas cotidianas, entre outras dimensões. Em grande medida, o discurso ambiental permeou a sociedade e, ainda que muito lentamente, consolida a noção de limites e reforça a necessidade de mudança nas formas de uso e convivência com os bens comuns e de fortalecimento do controle social sobre as formas de apropriação da natureza. Diferentes perspectivas ambientais vêm sendo internalizadas na prática dos agentes Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-13, jan/jun 2013 9 Apresentação sociais, tendo como resultado a redefinição tanto de conteúdos e orientações no sentido de uma modernização ecológica das decisões e ações que orientam os processos de produção, consumo e regulação, quanto das relações de poder e lutas sociais que se constituem e organizam em torno de questões socioambientais. Do ponto de vista territorial, considera-se que diferentes configurações socioespaciais da urbanização têm implicações ambientais distintas e ainda pouco conhecidas em sua diversidade. Tais configurações espaciais podem ser identificadas por diferentes formatos de parcelamento do solo, níveis de adensamento demográfico, diferentes padrões e processos construtivos, desiguais níveis de renda e de acesso à habitação, à terra e a equipamentos e serviços, desiguais níveis de educação e acesso a trabalho e renda, entre outros parâmetros. Resultam de processos também diferenciados de atuação dos agentes sociais na produção do espaço. Ainda que no momento atual, em particular no caso brasileiro, as condições de inserção na divisão internacional do trabalho tenham se alterado e as condições de renda e acesso aos meios de reprodução básica tenham tido seus patamares mínimos elevados, as condições de desigualdade persistem e, em alguns aspectos, se aprofundam. O aparente paradoxo do crescimento com persistência da desigualdade, encontra na cidade, na luta pelo espaço e na dinâmica imobiliária, uma de suas mais flagrantes evidências socioespaciais. Tal crescimento vem se dando à custa de formas renovadas de apropriação utilitarista da natureza, modernizadas como economia verde, e legitimadas por discursos que invocam princípios de sustentabilidade ou de resiliência. A esses, cabe sempre acrescentar o eterno corolário dos passivos socioambientais, de educação, moradia, saúde, lazer, cultura, saneamento, entre outros tantos. A constante busca por articulação entre questões, ideários e proposições oriundas dos campos urbano e ambiental continua como uma questão norteadora de várias pesquisas que podem ser identificadas em várias das contribuições deste número. Os textos que abrem os Cadernos Metrópole 29 discutem as dimensões territoriais da urbanização e suas implicações em termos ambientais e sociais, em diferentes contextos. O artigo de Gemma Vilà e Jordi Gavaldà, intitulado Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social. Análisis de la región metropolitana de Barcelona, utiliza-se das formulações teórico-conceituais sobre cidade compacta e cidade dispersa para avaliar os limites e possibilidades da coexistência e justaposição de ambos os casos na configuração atual de Barcelona e sua região metropolitana. Ao fazê-lo, estabelece interessantes relações entre sustentabilidade social e forma urbana que encontram eco em várias outras metrópoles no mundo. De outra perspectiva, o texto Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino: o papel das cidades no processo de adaptação ambiental de Ricardo Ojima questiona as prevalentes visões negativas do crescimento urbano quando vistas pela ótica ambiental, argumentando que contextos territoriais distintos produzem respostas distintas, a exemplo da dinâmica urbana e migratória recente do semiárido nordestino brasileiro, apontando potencialidades e limitações para pensar processo de adaptação diante do desastre natural mais 10 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-13, jan/jun 2013 Apresentação significativo da região que é a seca. Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto, com o texto Reflexos de sustentabilidade de outrora e ambiguidades contemporâneas em Belém, analisam situações tidas como insustentáveis de práticas de mercado referentes ao uso e ocupação da terra e à expansão urbana, em especial as transformações recentes nos ecossistemas de várzea e outros espaços ocupados pelas populações nativas. A segregação territorial vista a partir das estatísticas oficiais em dois países é o tema desenvolvido por Isabel Pato e Margarida Pereira no texto Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana. Leitura foucaultiana dos casos de França e de Portugal. As autoras fazem uma interessante reflexão sobre o exercício de poder a partir do domínio tecnológico da informação e as estruturas de governança que incluem o planejamento urbano. A perspectiva comparada de análise de políticas públicas territoriais também está presente no artigo Luces y sombras sobre el territorio. Reflexiones en torno a los planteamientos de la OPS/OMS en América Latina de autoria de Magdalena Chiara e Ana Ariovich. Políticas de saúde são avaliadas, e nelas são destacadas as dimensões territoriais de políticas sanitárias, bem como as dimensões socioambientais dessas políticas, incluindo questões como mobilidade e localização. O artigo questiona ainda a influência das instituições internacionais de saúde na definição dos setores sociais contemplados pelas políticas nos estados latino-americanos e caribenhos. O debate conceitual proposto neste número dos Cadernos Metrópole referenciado na consolidação do campo analítico da ecologia política da urbanização se beneficia das contribuições do próximo conjunto de artigos: Ester Limonad, como anunciado no título de seu texto – A insustentável natureza da sustentabilidade: da ambientalização do planejamento às cidades sustentáveis, critica a naturalização do discurso sobre a sustentabilidade, em particular seu uso generalizado no sentido de legitimar os discursos e as práticas de planejamento urbano e regional, a exemplo da proposta de cidades sustentáveis da ONU. Em contrapartida, propõe um redirecionamento do debate rumo a práticas transformadoras de planejamento, buscando a construção do que define como economia política do espaço. Klemens Laschefski faz um resgate histórico do conceito de desenvolvimento sustentável, associando seu uso aos momentos de crise dos modos de produção, em seu texto sobre 500 anos em busca da sustentabilidade urbana. Usando o caso de Belo Horizonte, discute para o momento atual a aplicação do Estatuto da Cidade às práticas dos agentes imobiliários que resultam em crescente elitização do espaço. Em Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade: em busca de uma construção interdisciplinar, Lúcia Cony Faria Cidade aborda as condições de injustiça socioambiental presentes na forma desigual pela qual as populações em situação de precariedade social são atingidas por desastres naturais e outras ameaças. A discussão baseia-se em uma revisão bibliográfica de distintos enfoques sobre a vulnerabilidade. O texto reforça a importância da adoção de abordagens interdisciplinares, integrando processos sociais e ambientais e incorporando um olhar espacial nos estudos da vulnerabilidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-13, jan/jun 2013 11 Apresentação O conjunto de artigos a seguir discute, a partir de estudos de caso, implicações espaciais e ambientais de grandes intervenções urbanas/metropolitanas. O texto Espaço urbano, circulação e preservação ambiental: impasses e perspectivas na área de influência do Rodoanel em São Bernardo do Campo, SP, de Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim analisa o processo de produção do espaço urbano e as transformações da paisagem ao longo do Trecho Sul do Rodoanel Mário Covas, na Região Metropolitana de São Paulo, particularmente no município de São Bernardo do Campo, enfatizando o papel dos vários agentes sociais que nele atuam. De forma mais abrangente, Pedro Roberto Jacobi também discute o caso de São Paulo por meio de uma visão panorâmica das relações entre ambiente e sociedade lastreadas no processo de urbanização paulistano. Seu texto, São Paulo Metrópole Insustentável – como superar esta realidade?, reforça a segregação associada à informalidade urbana, as fragilidades ambientais e os crescentes desafios em termos de planejamento e formulação de políticas públicas que se contrapõem à pujança econômica, demográfica, social e cultural da metrópole, num aparentemente incontornável paradoxo. O texto aponta ainda o despreparo da esfera pública para lidar com tal complexidade. Uma discussão sobre as ocupações de encostas e áreas de risco em geral e suas implicações em termos de resiliência e do que chama de sustentabilidade da paisagem é apresentada por Mônica Bahia Schlee no texto intitulado Ocupação de encostas urbanas: algumas considerações sobre resiliência e sustentabilidade. A autora identifica padrões morfológicos, processos e lógicas que originaram as situações estudadas. Além disso, argumenta a favor do importante papel dos espaços livres no fortalecimento da proteção das florestas, da capacidade de suporte e de amortecimento de impactos nas encostas urbanas, e, consequentemente da resiliência e sustentabilidade desses sistemas paisagísticos. Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos, no texto Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização na Ressaca Lagoa dos Índios em Macapá/AP, discutem os conflitos ambientais resultantes de visões e usos diferenciados na ocupação do território. O trabalho contribui para a compreensão dos embates em torno da apropriação de recursos, ao expor as formas e estratégias pelas quais cada agente social busca impor sua visão de mundo e assim legitimar representações e práticas estabelecidas. Ainda no que se refere ao debate sobre práticas de intervenção, a necessidade de articulação entre políticas públicas, especialmente no nível local, já apontada no texto de Jacobi, é retomada e reforçada no artigo de Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult intitulado Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos na cidade de São Paulo, entre transformações e permanências. Focando na urbanização e ocupações de fundos de vale na cidade de São Paulo, por meio da implantação de parques lineares e de infraestrutura de saneamento, o texto aponta o descompasso entre o discurso e as práticas no tratamento das questões urbano-ambientais, principalmente pela falta de coordenação intersetorial e territorial, resultando em intervenções incompletas e desiguais, a exemplo da criação de áreas verdes sem as correspondentes ações de saneamento e urbanização dos assentamentos informais. 12 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-13, jan/jun 2013 Apresentação O artigo seguinte, Desarrollo regional y sustentabilidad: turismo cultural en la región sur de Jalisco, de autoria de José G. Vargas Hernández, discute o potencial turístico de uma região em Jalisco, México. Com base no argumento central de que o patrimônio cultural de uma região constitui um forte elemento motivador para deslocamentos de grande distância, aponta as virtudes de realização de diagnósticos estratégicos e elabora propostas para o desenvolvimento do turismo cultural na região. Fechando o conjunto de artigos, Tatiana Cotta Gonçalves Pereira, em seu texto Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense: identificando problemas ambientais a partir das demandas ao Ministério Público, retoma a temática da injustiça ambiental como um acúmulo de condições adversas e profundamente desiguais a que estão sujeitos os grupos sociais mais pobres e residentes em áreas em que as desigualdades se manifestam de forma contundente, as zonas de sacrifício da metrópole do Rio de Janeiro, conforme a expressão utilizada no artigo. A discussão é respaldada em interessante pesquisa feita junto ao Ministério Público, reforçando seu papel dessa esfera de poder na atuação em prol de melhores condições de justiça socioambiental. Os textos aqui reunidos mostram que muitos avanços ocorreram em termos do debate teórico e da incorporação do mesmo às pesquisas. Por outro lado, expõem de forma contundente a captura e aparente naturalização do discurso ambiental pelo estado e pelas empresas, sem alterações significativas nos processos de produção e consumo ou na adoção de políticas e práticas que resultem em maior justiça socioambiental. As experiências analisadas dificilmente apontam para perspectivas de transformação social ou radicalização nos embates associados a situações de conflitos. Desta forma, os elementos que motivaram a chamada de trabalho deste número temático continuam presentes, e esperamos que os artigos aqui reunidos constituam um estímulo para novas pesquisas e para a continuidade do debate. Heloísa Soares de Moura Costa Organizadora Cadernos Metrópole 29 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-13, jan/jun 2013 13 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social. Análisis de la Región Metropolitana de Barcelona Effects of the urban sprawl and consequences to social sustainability. An analysis of the Metropolitan Region of Barcelona Gemma Vilà Jordi Gavaldà Resumen La crisis del sistema fordista de producción y la aplicación de las nuevas tecnologías han inducido a un cambio de la estructura del territorio: se han ampliado los límites de la ciudad real y ha aumentado la segmentación del espacio. Actualmente, en la Región Metropolitana de Barcelona – RMB –, el modelo de ciudad compacta coexiste con el de la ciudad dispersa, que se yuxtapone al primero creando un nuevo paradigma global. Este artículo intenta dar respuesta a diversas cuestiones en relación a los límites y las posibilidades de este nuevo modelo analizando la situación actual de las áreas de urbanismo disperso de la RMB a partir de la perspectiva de la sostenibilidad poniendo el énfasis en su dimensión social, contribuyendo a avanzar en la sustentación teórica de la relación entre la sostenibilidad social y las formas urbanas. Abstract The breakdown of the Ford production system and the application of new technologies have led to a change in the structure of the territory: the city’s boundaries have been extended and space segmentation has increased. In the Metropolitan Region of Barcelona – MRB –, the compact city model coexists today with the urban sprawl, which is juxtaposed to the first one, creating a new global paradigm. This paper tries to answer several questions about the limits and possibilities of this new model in order to analyze the current situation of the urban sprawl areas of the MRB from the perspective of sustainability, with emphasis on its social dimension, thus contributing to the theoretical framework about the relationship between social sustainability and urban forms. Palabras clave: sostenibilidad social; sostenibilidad ambiental; dispersión urbana; relaciones sociales; Región Metropolitana de Barcelona. Keywords: social sustainability; environmental sustainability; urban sprawl; social relationships; Metropolitan Region of Barcelona. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà En la Región Metropolitana de Barcelona la dimensión social ha resultado ser la gran conviven actualmente dos modelos urbanos olvidada. Los cambios ocurridos en los últimos diferentes: a las ciudades tradicionales años sugieren la necesidad de reconsiderar compactas, propias del modelo mediterráneo, esta dimensión específica de la sostenibilidad se yuxtapone el modelo de urbanismo disperso, para valorar los efectos del nuevo modelo mucho más reciente. La crisis del sistema urbano y territorial. En segundo lugar, analizar fordista de producción y distribución y la la realidad actual de las áreas de baja densidad aplicación de las nuevas tecnologías indujeron de la RMB a partir de un prisma más amplio a un cambio de la estructura del territorio: como es el de la sostenibilidad poniendo se ampliaron los límites de la ciudad real, énfasis en la dimensión social.1 aumentó la segmentación y la especialización f u n c i o n a l d e l e s p a c i o, y l a c o n t i n u a relocalización de las actividades y la ocupación de nuevos territorios se convirtió en la pauta característica del crecimiento urbano. Todo ello La sostenibilidad social según las formas urbanas ha contribuido a la expansión del urbanismo disperso y ha tenido importantes efectos a diversos niveles. La crisis actual plantea nuevas El debate sobre la sostenibilidad: más allá del concepto cuestiones sobre los límites y posibilidades de este modelo. Por ello, en este artículo Hoy, la creciente problemática ambiental, pretendemos dar respuesta a varias cuestiones. económica y social ha hecho revivir las ¿En qué medida estas nuevas dinámicas han preocupaciones planteadas en los años exacerbado – o incluso generado – nuevas setenta y que fueron olvidadas en las décadas formas de desigualdad social en el territorio? siguientes. El neoliberalismo dominante ha ¿Qué límites, posibilidades y retos plantea esta impregnado todos los aspectos de la vida realidad para conseguir un modelo urbano económica provocando funestas consecuencias sostenible? Pensamos, y esta es nuestra en varios ámbitos. Entre ellas destacan – hipótesis, que la morfología urbana y la forma porque han sido las primeras que se han de organizar el territorio es una variable impuesto a nuestra observación – las que fundamental para la sostenibilidad. tienen que ver con el deterioro del medio Nuestro objetivo es doble: en primer ambiente y, en especial, con el agotamiento de lugar, avanzar en la sustentación teórica los recursos no reproducibles. El diagnóstico del concepto de sostenibilidad social y su actual que se impone es contundente: el concreción empírica. El concepto sostenibilidad modelo de crecimiento de los últimos años es aparece en los años setenta del siglo pasado claramente insostenible. muy ligado al de desarrollo sostenible La cuestión es, pues, de crucial (Meadows, 1972) y definido a partir de tres importancia. No en vano, la política y la dimensiones: la ecológica, la económica y la academia han contribuido a dotar de contenido social. En la posterior evolución del concepto, y argumentos a este concepto y, también, a 16 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social aplicarlo en la práctica. Aún así, a menudo y el planeta. En marzo de 1972, auspiciada el término aparece ligado a inconcreciones – por el Club de Roma, aparece The Limits especialmente en el ámbito académico – ante el to Growth , uno de los antecedentes del concepto de sostenibilidad. Este conocido documento plantea como problema central el medioambiental, pero incluye – aunque sin profundizar – aspectos ligados a los valores, las relaciones sociales y el bienestar. El diagnóstico de la situación mundial que se realiza en este trabajo augura que el resultado último de un intento sostenido de crecer conforme al patrón actual será un colapso desastroso. La filosofía del documento queda claramente expresada en una de sus conclusiones: “Tal vez el mejor resumen de nuestra posición sea […] no una oposición ciega al progreso, sino una oposición al progreso ciego”. The Limits to Growth abrió el camino para que en 1987 apareciera formalmente el término sostenibilidad, por ello no es de extrañar que desde sus inicios fuera estrechamente vinculado – como se ha dicho anteriormente – a la idea de desarrollo. El término tiene su origen en el texto de la Comisión Mundial del Medio Ambiente y Desarrollo de las Naciones Unidas conocido como Informe Brundtland 2 (United Nations World Commission on Environment and D e v e l o p m e n t , 19 8 7 ) . El t é r m i n o f u e introducido en un informe cuyo objetivo era diseñar “un programa global para el cambio global”. Se refiere al desarrollo sostenible como aquél que satisface las necesidades de la generación presente sin comprometer las posibilidades de las generaciones futuras para atender sus propias necesidades. Después, en 1992, la Conferencia de Río dio publicidad a la expresión desarrollo sostenible e introdujo la idea de los tres pilares que deben conciliarse: esfuerzo que supone concretarlo en diferentes esferas como pueden ser la social y la urbana. El concepto de sostenibilidad apareció muy unido al de desarrollo (Meadows, 1972). Ha tendido a identificarse, primero, con la esfera medioambiental y, posteriormente, con la económica. Hoy el concepto se hace extensible también a la dimensión social, que ha sido la más olvidada en los discursos académicos y políticos. Con este trasfondo, añadimos a la ciudad en el debate para plantearnos hasta qué punto nuestras ciudades son sostenibles y si hay condiciones que hacen que unas ciudades sean más o menos sostenibles que otras. La pregunta es relevante, no sólo porque hoy la mitad de la población mundial vive en ciudades y todo hace pensar que la población urbana seguirá aumentando en el futuro (United Nations, 2009) sino también, y sobre todo, porque la ciudad cumple el rol de ser nexo entre lo global y lo local (Borja y Castells, 1998). Para responder a esta cuestión, primero nos detendremos a explorar el concepto de sostenibilidad social, su significado y los aspectos que quedan por desarrollar en su aplicación a la ciudad y al mundo urbano. Hagamos, pues, una breve referencia a los orígenes del concepto. Aun con la importancia que ha tomado esta idea en la actualidad, el concepto no es nuevo, ni tampoco la problemática a la que se refiere. Ya en los años sesenta los economistas – aunque no sólo ellos – se percataron de que el modelo de crecimiento económico a toda costa, al fomentar un crecimiento sin límites, no podía mantenerse sin riesgos para la humanidad Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 17 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà el económico, el social y el medioambiental (United Nations, 1992). La sostenibilidad social: los problemas de su concreción Efectivamente, el desarrollo sostenible se entiende como el resultado Basado en la idea de desarrollo sostenible, de la combinación de estas tres esferas. No el estado de equilibrio global, que requiere obstante, la interrelación entre ellas introduce estabilidad económica y ecológica durante otras condiciones necesarias para que se largo tiempo, “debe diseñarse de tal modo produzca un desarrollo sostenible que van más que cada ser humano pueda satisfacer sus allá de los matices terminológicos. De esta necesidades básicas y gozar de igualdad de forma, la confluencia entre los planteamientos oportunidades para desarrollar su potencial e c o l ó g ic o s y e c o n ó mic o s ha n d e s e r particular” (Meadows, 1972). Aunque desde necesariamente viables para tener sentido: su inicio las tres dimensiones mencionadas no todas las medidas que permiten mejorar el aparecían como parte constituyente del medio ambiente son viables económicamente, concepto, en la posterior evolución la esfera ni todo tipo de crecimiento económico es viable social ha resultado ser la gran olvidada. Todavía si se desea minimizar la huella ecológica. Igual hoy su fundamentación teórica y su concreción ocurre con la organización social: ha de ser empírica son muy débiles. equitativa desde el punto de vista económico Al considerar el desarrollo como mejora y soportable para el medio ambiente. El cualitativa se están introduciendo cuestiones adjetivo ‘sostenible’ se reserva para indicar sólo compatibles con una sociedad que, siendo todo aquello que, a la vez, resulta soportable, diversa, evolucione hacia la cohesión interna, equitativo y viable en la combinación de las eliminando situaciones de desigualdad y esferas medioambiental, económica y social discriminación: “[…] sostenibilidad social (Sadler y Jacobs, 1990; Le Berre, 2004). como desarrollo (y/o crecimiento) compatible Todo este recorrido ha desembocado en con la evolución armoniosa de la sociedad el hecho de que hoy, la idea de sostenibilidad civil, fomento de un entorno propicio para la se ha convertido en una panacea. Existen convivencia compatible de grupos cultural y dos factores principales que han contribuido socialmente diversos, y aliento de la integración a la aceptación y éxito de la expresión social, con mejoras en la calidad de vida para ‘sostenibilidad’. El primero es haber ganado la todos los segmentos de la población” (Polèse batalla de lo políticamente correcto hasta el y Stren, 2000). punto de haber adquirido poder legitimador. E s d e c i r, e l á m b i t o s o c i a l e s t á El segundo es su ambigüedad, puesto que estrechamente asociado a la inexistencia de las interpretaciones del término pueden desigualdades y requiere importantes esfuerzos ser múltiples e incluso contradictorias. La para reducirlas. Para conseguir la sostenibilidad falta de acuerdo terminológico, en realidad, social es necesario controlar, hasta hacerlas esconde visiones del mundo distintas y con desaparecer, las situaciones de exclusión frecuencia opuestas. social y segregación territorial, atendiendo 18 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social especialmente a las condiciones de les grupos común con el que se vincula es el de cohesión marginales: “La sostenibilidad social, en este social, seguido de mezcla social. Diversidad sentido, puede ser vista como el polo opuesto social y/o cultural se asocia repetidamente a la exclusión, tanto en términos territoriales a sostenibilidad social, casi siempre a raíz como sociales” (Polèse y Stren, 2000). de la creciente especialización funcional de las ciudades, la falta de mixtura de usos y el advenimiento de la nueva inmigración como un La sostenibilidad social en el ámbito urbano fenómeno social que puede acarrear conflictos de convivencia asociados a su concentración en algunas zonas urbanas (Bayona, Domingo Aunque el desarrollo inicial del concepto de y Gil, 2009). En la bibliografía norteamericana sostenibilidad se produjera al margen de las es frecuente asociar sostenibilidad social ciudades, la importancia de lo urbano en el con desarrollo inteligente (Smart Growth mundo actual ha impuesto la necesidad de Network, 2006). Es una estrategia global de mirar críticamente las ciudades a través de este sostenibilidad regional que sugiere que los tres prisma como un elemento que puede contribuir pilares – eficiencia económica, protección del o arriesgar la consecución de un mundo medio ambiente y elevada calidad de vida y sostenible. De todas formas, si el concepto equidad social – puedan conseguirse mediante de sostenibilidad plantea algunos problemas una política de uso del suelo concertada y importantes de definición, estos se acentúan negociada entre todos los agentes implicados. cuando nos referimos a la sostenibilidad social Finalmente, los conceptos de equidad en el ámbito urbano. social, convivencia colectiva o coexistencia No es fácil generalizar sobre cuál es multiétnica también aparecen vinculados a el tratamiento que dan estos estudios al menudo, aunque siempre se ofrecen de forma concepto de sostenibilidad social. Los motivos muy poco desarrollada siendo elementos son de diversa índole, aunque el principal es tangenciales a la perspectiva global que guía que existe una gran disparidad de perspectivas el análisis de los trabajos. y marcos analíticos inherente a la diversidad La pregunta, ahora, deviene evidente: de prismas con que se trata lo urbano. Esto ¿qué condiciones debe cumplir una ciudad es así fruto de la propia multidisciplinariedad para que sea sostenible socialmente? Nosotros de los estudios urbanos. Asimismo, dificulta entendemos que una ciudad es sostenible el trabajo su recurrente identificación con socialmente cuando tiene la capacidad de otros conceptos que, aunque parecidos e satisfacer las necesidades básicas de su informativos, aportan luz solamente de población en el ámbito urbano y garantiza manera parcial. De hecho, son pocos los determinadas condiciones en el contexto de trabajos que ahondan de manera integral en el una serie de principios orientadores. Como concepto. De todas formas, las características necesidades recuperamos la propuesta de la de lo que es sostenible socialmente parecen Carta de Atenas3 sobre las funciones básicas tener un alto nivel de quórum. El concepto más que debe cumplir una ciudad, que son habitar, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 19 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà trabajar, desplazarse y cultivar el espíritu, 4 un espacio sostenible en insostenible: de la además de incorporar otras necesidades como ciudad compacta a la dispersión territorial de la seguridad, la interacción social, la identidad/ las actividades urbanas, de la mixtura urbana simbolismo y la participación democrática. a la especialización funcional del espacio, y de Los principios orientadores a los que nos la ciudad integrada socialmente a una mayor referimos son la calidad de vida, la equidad, segregación potencial de los grupos sociales la interrelación social, la diversidad social, la en el territorio. democracia y la cohesión social. La recuperación del concepto de sostenibilidad social por parte de quienes se dedican al estudio y análisis de la realidad urbana no parece espuria: la segmentación El urbanismo disperso: nota conceptual y especialización creciente y acelerada del espacio ha dado lugar, junto a la existencia El análisis del urbanismo disperso ha sido de las ciudades tradicionales, a la aparición objeto de trabajo teórico de varios autores, de áreas residenciales dispersas, grandes entre los cuales Indovina – città diffusa – zonas comerciales, polígonos industriales, (1990), Dematteis – reticular city – (1998), áreas pensadas para el ocio que constituyen Garreau – edge city – (1991), Corboz – partes indisociables de un mismo sistema ipercittà – (1994), Ascher – metapolis – (1995), Harvey – the end of the city – (1996) y Capel – exurbanización – (2003). Estos autores han proporcionado definiciones y aportaciones varias en relación a sus características y estructura urbana. Recuperamos el trabajo de López de Lucio (1998) sobre el caso de Madrid como base desde la que analizar las características de las urbanizaciones,5 ya que las características mencionadas por este autor son directamente aplicables a la RMB: 1) descentralización progresiva de la actividad residencial e industrial y, de forma más reciente, de amplios sectores terciarios; 2) suburbanización residencial con un claro predominio de la baja densidad y de la vivienda unifamiliar. 3) fragmentación del territorio y especialización de las piezas – urbanizaciones residenciales, polígonos de viviendas, centros comerciales y de ocio, etc. El territorio urbano expansivo que rebasa continuamente sus propios límites. Las ciudades se extienden, invaden nuevos territorios, consumiendo un recurso no renovable – el suelo – y cubriéndolo de nuevas y costosas infraestructuras. Y al final, más que una realidad urbana donde el ciudadano pueda desarrollar sus capacidades y cubrir sus necesidades, encontramos un espacio amorfo por el que es necesario desplazarse recorriendo cada vez mayores distancias, consumiendo energía y tiempo, y donde la buena calidad de vida parece haber desaparecido. Por ello, defendemos la hipótesis que la morfología urbana contribuye a crear límites así como condiciones de sostenibilidad social. Esta morfología y la forma de organizar el suelo es, pues, una variable fundamental para la sostenibilidad. En este sentido, creemos que hay tres dinámicas que pueden convertir 20 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social disperso es discontinuo, los fragmentos que lo conforman están encapsulados y son distantes físicamente unos de otros. La zonificación no Dinámicas urbanas en la RMB tiene un modelo explícito global, sino que quien la realiza es el mercado en conexión La RMB es la unidad de análisis de este directa con los agentes administrativos artículo. Constituye la ciudad real de Barcelona, teniendo en cuenta oportunidades de ya que proyecta la realidad urbana y funcional accesibilidad, localización y características de de este municipio y de su área de influencia la propiedad del suelo urbanizable; más directa. Su población es de 4.777.042 4) segregación social a escalas espaciales habitantes (2011), ocupa una superficie de inéditas originadas por la distancia entre zonas 3.242,2 km2 y comprende 164 municipios. y actividades, por la expansión exponencial del La evolución reciente de las dinámicas territorio urbano y por la aparición cada vez más urbanas ocurridas en la RMB ha derivado en frecuente de restricciones explícitas de acceso; una compleja situación en la que la ciudad 5) disminución de las relaciones de proximidad compacta y la urbanización de baja densidad y aumento de la importancia de la casa se yuxtaponen y se influyen recíprocamente. individual como centro de un reducido universo Su coexistencia refuerza la segmentación social. Es, a la vez, la base para una serie de social del espacio y plantea nuevos retos a la movimientos radiales motorizados por motivos política urbanística. de trabajo, estudio, compras, ocio, etc.; El proceso se inicia claramente en la 6 ) creación de centralidades periféricas década de los ochenta. A partir de 1981 se alternativas, ya que el nuevo territorio comprueba que Barcelona registra un saldo ur bano requiere un lugar que integre migratorio negativo y que el crecimiento antiguos centros urbanos para los contactos natural se ha estancado, porque también interpersonales, las relaciones comerciales, el modelo reproductivo ha dado un vuelco. el entretenimiento o el ocio. El gran centro Y al tiempo, las migraciones residenciales, comercial regional cubre progresivamente e sp e cialmente d e nt ro d e la RM B, s e esta necesidad. Su centralidad no es tanto multiplican. Esta dinámica poblacional no física como temporal porque se basa en una es distinta de la de otras regiones españolas localización estratégica en relación a los y europeas. Lo sorprendente en el caso de nudos de la red de transporte privado. Cataluña es la subitaneidad del cambio, el 7) empobrecimiento, especialización y paso de una situación de crecimiento explosivo privatización del espacio público. a una de estancamiento. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 21 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà Después, especialmente a partir de 1985, por una calidad de vida superior a la de las el proceso se acelera y acentúa. La Barcelona grandes ciudades y su deseo de viviendas densificada, rodeada de barrios periféricos con unifamiliares más amplias que los pisos de problemas de vivienda, de equipamientos y las ciudades. Todo ello les condujo a buscar de servicios, que se extiende más allá de sus un cambio de residencia. En cambio, para el fronteras administrativas – situando fábricas colectivo de jóvenes, el factor más importante en los municipios colindantes –, se convierte fue la necesidad de contar con una vivienda en una heteróclita realidad urbana que se propia. Llegados a la edad de independizarse dispersa por un ámbito territorial cada vez de sus progenitores, pudieron, en algunos más extenso. Las grandes ciudades de la RMB casos, utilizar residencias secundarias pierden población y crecen los municipios convirtiéndolas en primeras. El fenómeno pequeños, se propaga la tipología del hábitat cruzó categorías sociales. La expansión de unifamiliar – adosado o aislado – y se la ciudad empezó a tomar un rumbo más multiplican las urbanizaciones. extensivo, más disperso. Se pueden distinguir cuatro etapas El segundo momento corresponde a los claramente diferenciadas en esta evolución años 1986-1995. La incidencia del modelo (Alabart, 2007). Cada una de ellas tiene su de producción flexible se manifiesta por lo propia dinámica y responde a necesidades menos en dos aspectos: el incremento de los 6 y a intereses diferentes. La primera abarca precios de los inmuebles – especialmente los años 1975-1985. Se caracteriza por un en Barcelona – y la expansión del ámbito estancamiento del crecimiento de la ciudad ter ritorial met ro p olit ano. A par tir d e central. Los factores que contribuyeron fueron 1986, cuando la crisis económica estaba básicamente cuatro: la hiperdensidad de las remitiendo, los precios de las viviendas se grandes ciudades, influyendo negativamente dispararon alejándose progresivamente de en la calidad de vida; la tipología de la las posibilidades de las rentas medias.7 No vivienda, demasiado homogénea para una podían adquirir una vivienda en Barcelona, ni realidad familiar cada vez más diversificada; siquiera con ayudas de la administración o de la llegada a la edad de emancipación de una la familia. 8 Aparece así un nuevo mercado: el generación que se enfrentaba a una crisis de las urbanizaciones. económica sin precedentes, y la existencia L as migraciones residenciales del de segundas residencias susceptibles de ser período anterior, en especial las de la clase convertidas en viviendas principales. alta, actuaron como grupo de referencia y, Los colectivos que protagonizaron el además, crearon economías de urbanización: cambio fueron, por una parte, población nuevos e quipamientos – realizados o con nivel socioeconómico alto y medio-alto; reclamados –, mayor seguridad en lugares que y por otra, jóvenes. Para la población de las hasta entonces eran inhóspitos, etc. Además, categorías socioeconómicas alta y media- la división del proceso productivo y la alta cobraron sentido, sobre todo, el primer dispersión espacial de la actividad económica y el segundo factor, es decir, sus preferencias generaron expec t ativas de ocupación 22 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social en territorios que antes resultaban poco La crisis financiera y económica global accesibles y, a la vez, nuevas necesidades empezó a golpear a Cataluña y a España en de conexión. Se afianzaba y se extendía el 2008, momento en que se inicia el último modelo de urbanización dispersa. periodo. La crisis llevó al colapso del sector de El nuevo mercado de las urbanizaciones la construcción, al descenso de los precios y a va dirigido a las categorías sociales medias la pérdida de peso relativo de las viviendas y a parejas relativamente jóvenes con unifamiliares en relación a tipologías hijos pequeños. La polarización propia del más compactas ( Vilà y Alabar t, 2011) . momento anterior se reduce porque así lo Asimismo, varias promociones inmobiliarias hacen los dos extremos. Además, la mayoría se detuvieron dejando varios procesos de las construcciones están pensadas para ser de urbanización inacabados y generando residencias principales y su ubicación geográfica nuevos déficits de servicios. Aún hoy, con la es, por exigencias del espacio y del margen de derecha aupada en el poder,12 hay una fuerte beneficio, cada vez más alejada de las grandes incertidumbre en relación a cuándo y cómo ciudades y, en especial, de Barcelona. acabará esta etapa. En el tercer periodo, que corresponde a los años 1996-2007, aun manteniéndose las tendencias anteriores parecen emerger las primeras reacciones de los municipios grandes destinadas a contrarrestar estas Vida cotidiana en la ciudad dispersa dinámicas a partir de políticas de vivienda más incisivas. Concretamente, mediante políticas de En esta sección analizaremos las dinámicas rehabilitación de viviendas y construcción de sociales que se desarrollan en este marco alquiler para jóvenes y mayores. urbano. Analizaremos las relaciones sociales 9 de los residentes en urbanizaciones, su en el gobierno de Cataluña desde 2003 y con participación cívica, los espacios de vida y el PSOE 10 en el gobierno de España desde la gestión del tiempo. El objetivo es evaluar 2004, se promovieron varios estudios, leyes en qué medida este modelo presenta retos y políticas con el objetivo de limitar – e para la consecución de un entorno urbano incluso detener – el fuerte crecimiento urbano socialmente sostenible.13 Con la coalición tripartita de izquierdas disperso, así como para incrementar los nodos territoriales y organizar un transporte Relaciones sociales intermodal. La ley más importante aprobada en Cataluña se centró en la regularización y Las relaciones sociales que se producen entre la mejora de las urbanizaciones con mayores la población que vive en el ámbito disperso no déficits,11 y tenía dos objetivos principales: solo se explican por esta morfología urbana. mejorar las condiciones de las urbanizaciones Influyen el capital social previo de los individuos, construidas antes de 1981 y dignificar sus las motivaciones individuales, la disposición servicios y equipamientos. de tiempo para dedicar a actividades sociales, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 23 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà el momento del ciclo familiar en el que se con el lugar. Ahora haces una comida, que encuentren, las características culturales y montas una vez al año, una barbacoa con socioeconómicas y sus dinámicas relacionales padres de los amigos, o vas a casa de alguien. específicas. Dado que a través del mercado los Pero quiero decir [que] son tres o cuatro veces residentes se han segregado en urbanizaciones al año que hacemos cosas” (mujer de 43 años de categorías socioeconómicas distintas, las residente en Corbera de Llobregat). pautas relacionales son globalmente diferentes El momento del ciclo vital, por tanto, según las urbanizaciones. La configuración actúa como un elemento esencial que se urbana es el elemento marco que puede entrecruza con la mayor tendencia de la favorecer o constreñir tanto las relaciones población que tiene hijos pequeños – o que sociales como el desarrollo de la ciudadanía. quiere tenerlos en el futuro próximo – a La fragmentación del espacio urbano, el desplazarse a las urbanizaciones. La dinámica incremento de las distancias físicas, la falta social que se produce en las urbanizaciones de espacios de encuentro de uso público y, en viene en parte filtrada por este elemento, definitiva, la configuración de la ciudad como aunque, por supuesto, el hecho de conocer espacio orientado al ámbito privado son las personas que ya viviesen en la urbanización características territoriales que inciden en actúa como capital social, multiplicando y mayor medida (Gavaldà y Vilà, 2008). facilitando las relaciones. El cambio de residencia al ámbito Con las relaciones familiares sucede algo disperso supone variaciones importantes en similar a las relaciones sociales: el 67,8% de las relaciones sociales; así lo señalan un tercio nuevos residentes afirma ver a sus familiares de los nuevos residentes. Se puede afirmar que con la misma frecuencia, y la proporción que el hecho de vivir en una urbanización tiende indica una disminución de ese tipo de contactos a reducir la frecuencia de encuentro con los desde que se han trasladado a la urbanización amigos: el 61,3% de los nuevos residentes en dobla la de aquéllos que declaran la dinámica disperso dicen relacionarse con igual frecuencia opuesta – 20,5% y 11,7%, respectivamente. que antes, el 26,8% lo hace con menor La práctica totalidad de los nuevos frecuencia y el 11,5% considera que lo hacen residentes afirman conocer a sus vecinos, con mayor frecuencia: “Se ha perdido mucho el aunque casi un tercio señala que conoce a contacto [con los amigos que tenían en el lugar pocos vecinos. El conocimiento del vecindario de procedencia] y a ella también le sucede. es proporcional, en gran medida, al tiempo Hemos hecho amistades con los padres de los que los entrevistados llevan viviendo en la amigos de nuestros hijos” (hombre de 41 años urbanización. Las relaciones que se establecen residente en Begues). Es un fenómeno habitual con el vecindario presenta una gran gama que buena parte de estas relaciones sociales de intensidad, desde el saludo cordial a las nazcan y se estructuren a partir de los hijos: celebraciones colectivas. Sin embargo, la “En el lugar donde estamos hemos estrechado mayoría de las relaciones que se establecen con algunas relaciones vía hijos, con padres de el vecindario son esporádicas y ocasionales: amigos de los niños. […] Cosas relacionadas “En sentido estricto de vecinos hay alguna 24 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social relación pero no es intensa […], la cuestión Más de la mitad de los residentes es que te los cruzas pero vas enlatado en un (57,7%) dedica tiempo a las asociaciones – 8,3 coche, entonces les puedes saludar y ya está. horas de media por residente. Las que gozan de […] Yo creo que es más difícil hacer vida social mayor implicación por parte de sus miembros en el pueblo porque no te cruzas con nadie y son los centros de encuentro para mayores, los fuera de la escuela es complicado” (mujer de partidos políticos, los centros excursionistas, 36 años residente en Matadepera). los clubes deportivos y las comunidades de El anonimato es un elemento propietarios, todas ellas entre el 70 y el 80%. fundamental que caracteriza las relaciones No es extraño al consistir, la mayoría de ellas, entre vecinos en las urbanizaciones: “Cuando en entidades que solo adquieren significación vamos a casa de alguien es para alguna cena, mediante una participación activa de sus pero también a mi mujer no le gusta demasiado miembros. Por su parte, los equipamientos más relacionarse. Como ha estado tanto tiempo utilizados son los lugares de ocio (30%), los aquí dice que hay demasiado marujeo. […] Es deportivos (22%) y los sociales (17%). uno de los inconvenientes. De todas formas, En las urbanizaciones se registra una aquí si no quieres salir no sales y no te conoce menor actividad lúdica y social que en el núcleo nadie. […] Hay gente que vive aquí que, vamos, del municipio – 65% y 95,3%, respectivamente. ni idea de quienes son” (hombre de 52 años Los niveles de participación y de asistencia son residente en Lliçà de Munt). generalmente bajos en ambos casos. Entre los que señalan haber asistido alguna vez, siete de cada diez reconocen haber participado tan solo Participación cívica de forma ocasional. Estar asociado predispone en mayor medida a participar en estas La participación cívica en las urbanizaciones actividades, sean miembros de las asociaciones es, en general, baja, especialmente si se que las organizan o no. compara con las áreas compactas de la RMB. Como indicador de este ámbito se ha se Tres de cada diez residentes son miembros analizado también la asistencia, en el último de alguna entidad – 1,2 entidades de media año, a un pleno municipal, a una reunión de por residente –, mientras que en el conjunto vecinos o a actos movilizadores sobre aspectos de la RMB esta ratio aumenta a cinco internos o externos de la urbanización. sobre diez. El tipo de entidades a las que se Mediante una tipología que integra cinco asocian en mayor medida son clubes deportivos categorías siguiendo una gradación de mayor y asociaciones de vecinos. En las zonas de a menor participación – asistencia plena, autoconstrucción, las malas condiciones de alta, media, baja y nula –, se detecta que la urbanización y la falta de infraestructuras mitad de los residentes registra un nivel de propician una mayor tendencia a la asistencia nulo (47,5%). A medida que éste reivindicación de demandas a la administración aumenta, más reducidos son los porcentajes a través de asociaciones de vecinos. que conforman las diversas categorías Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 25 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà hasta alcanzar un 2,5% en la de asistencia los 44 minutos de media cuando se viaja en plena. La condición de asociado también transporte público, lo que es más habitual aumenta significativamente la asistencia, con entre las mujeres que entre los hombres. porcentajes unos diez puntos superiores a la media en todos los actos analizados. Las compras diarias prácticamente nunca se adquieren en la misma urbanización, La variable que se apunta como la más puesto que en casi ninguna existe una explicativa de las actitudes relacionales y oferta suficientemente amplia y variada de participativas es el momento del ciclo vital. equipamientos comerciales. Este es, pues, otro En este sentido, es muy común el perfil de factor afectado por la morfología urbana. Los personas que estructuran sus relaciones a partir residentes de urbanización tienden a comprar del entorno social de sus hijos menores y que menos cerca de donde viven que las personas sólo participan de los eventos dirigidos a éstos. que viven en las ciudades compactas. La mayoría de los residentes en urbanizaciones declaran comprar en grandes superficies – Espacio de vida y gestión del tiempo 46,1% de ellos en los supermercados y el 10% en los centros comerciales, que también El espacio de vida, aquel que cotidianamente ofrecen otros servicios y ocio. Asimismo, utiliza la población, se desparrama por una cuando se les pregunta por los productos área mucho más amplia que la utilizada no perecederos, los porcentajes aumentan habitualmente por los residentes de zonas a 72,5% y 14,6% , respectivamente. Estas urbana compactas. grandes superficies están situadas en puntos La ciudad de Barcelona estructura una nodales que solo son accesibles mediante parte importante del espacio de vida de los vehículos privados – el 9 4,3 % de los ciudadanos a nivel laboral en tanto que uno de entrevistados declara llegar en coche. Este cada cuatro trabaja allí. La tendencia a trabajar hecho contribuye a que el tiempo invertido remuneradamente en el propio municipio es en desplazamientos sea mayor. Con el tiempo muy inferior a la de hacerlo en otros municipios estas grandes superficies han ido adquiriendo de la RMB diferentes al de residencia habitual. la función de lugar de encuentro y de relación Sin embargo, los datos muestran una tendencia sustituyendo a los espacios públicos cívicos de particular: a mayor antigüedad residencial, la ciudad tradicional, cosa que repercute en un mayor proximidad al trabajo. empobrecimiento de la función tradicional de Por lo que respecta a los d e splaz amie ntos , el uso d el vehículo vertebración social del comercio de cercanía (Vilà, 2011). particular – principalmente el coche – es La mayoría de tiempo libre de los prácticamente unánime entre las personas residentes se gasta en el hogar, pauta que principales del hogar. La duración temporal del también es común en la RMB en su conjunto. desplazamiento es de entre 22 y 26 minutos Barcelona ha dejado de ser el lugar que para quienes se sirven de una motocicleta o concentra las actividades de ocio, aunque sigue un turismo, mientras que se incrementa hasta siendo importante para todos ellos. 26 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social Conclusiones transferencia de ayuda y, específicamente, en La imagen idílica que a menudo se tiene de por parte de los abuelos, atención en caso de las urbanizaciones no es una realidad para emergencia, etc. –, aspecto fundamental del todas las personas que allí viven. Son los sistema de bienestar social sobre el que se grupos sociales con menos recursos, aquéllos sustentan las sociedades mediterráneas. la solidaridad familiar – cuidado de los hijos más desfavorecidos, los que sufren en mayor En segundo lugar, las urbanizaciones medida los efectos negativos del modelo. también tienen efectos sobre la participación, Algunos los han sufrido desde el principio, el civismo y el ejercicio de la ciudadanía de sus otros lo han hecho posteriormente cuando residentes. Si bien las personas que viven en sus circunstancias personales han empeorado. ellas declaran tener una menor implicación y Todo ello ha repercutido negativamente en participación en entidades que las que viven en su calidad de vida y bienestar aumentando las ciudades, esto no es atribuible únicamente las situaciones de desigualdad, dependencia, a la incidencia del entorno de urbanización. vulnerabilidad y exclusión social. Además, Sí lo es, en cambio, la baja identidad colectiva ciertas características de la ciudad dispersa la y la escasa identificación con el lugar de alejan del ideal de una ciudad sostenible tal y residencia. La falta de elementos simbólicos como se ha planteado en este artículo, tanto que actúen dando identidad y cohesionando en términos sociales como medioambientales la población tiene como efecto principal un y económicos. proceso de identificación débil con el territorio, En primer lugar, el urbanismo disperso lo que termina por generar demandas políticas contribuye a la disminución y debilitamiento demasiado especializadas tales como el arreglo de las relaciones sociales. Aunque su frecuencia de una calle, la iluminación de un tramo, etc. e intensidad depende de muchos factores, la Una tercera problemática de las morfología urbana también tiene impacto. urbanizaciones viene dada por el déficit Intervienen dos factores: por un lado, el diseño de servicios, equipamientos básicos e de una ciudad sin espacio público que actúe infraestructuras. La importancia otorgada a la como lugar de encuentro. Las calles están residencia en detrimento de otras funciones vacías porque la gente no hace vida en ellas, urbanas ha consolidado un déficit histórico en sólo se desplaza haciendo que los encuentros estas áreas. Las carencias no son iguales en sean casi inexistentes. Por otro lado – y eso todas las urbanizaciones ni afectan por igual afecta especialmente a los residentes que han a todos sus residentes, sino que son las de llegado recientemente a las urbanizaciones –, autoconstrucción las que acumulan a día de la distancia y la menor comunicación con el hoy los déficits fundamentales y las condiciones lugar de origen. En la mayoría de los casos el más precarias: a una localización aislada hay cambio de residencia supone una disminución que sumar la falta de infraestructuras básicas de la frecuencia de las relaciones sociales y de suministro, la dificultad de los accesos, las con los amigos cercanos y la familia. Esto construcciones deficitarias y la mala calidad tiene efectos directos sobre los procesos de general de la urbanización. La dinámica del Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 27 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà mercado ha actuado como filtro provocando especializaciones geriátricas, etc. Éste que éstas estén ocupadas por población será uno de los principales retos de futuro con pocos recursos y en riesgo de exclusión inmediato de los municipios. social, aumentando aún más su segregación Esta realidad se agrava con la situación y perjudicando su calidad de vida. Las de crisis económica mundial actual : los personas mayores y las familias con hijos ayuntamientos, otrora receptores de grandes pequeños se convierten en colectivos ingresos generados por el auge de la especialmente vulnerables. construcción, actualmente rayan la bancarrota. Los déficits, sin embargo, van más allá Esta situación ha provocado que muchas de las propias urbanizaciones y plantean infraestructuras, necesarias debido al aumento retos también a nivel municipal. El rápido de la población en las urbanizaciones en crecimiento de la población de los municipios expansión, no se han puesto en marcha o, si receptores y del número de viviendas ha se han iniciado, se han quedado en suspenso. generado nuevas necesidades y ha hecho En estos municipios, los servicios básicos como insuficientes las infraestructuras existentes escuelas, bibliotecas y centros de salud han en los municipios. Por un lado, la llegada de colapsado al enfrentarse con el crecimiento parejas en edad de constituir una familia ha de la población. Esta fragmentación y supuesto el rejuvenecimiento de las estructuras especialización del territorio sigue siendo una de edad de los municipios receptores y ha fuente de la desigualdad social. producido un incremento de la natalidad. Este En cuarto lugar, el incremento de las hecho ha implicado una mayor demanda y la distancias y la dependencia del vehículo necesidad de equipamientos educativos que, privado. La falta de equipamientos y servicios además, se ven reforzados por la disminución en las urbanizaciones provoca que la práctica de la solidaridad intergeneracional. Por otra totalidad de sus residentes tengan que salir de parte, las personas mayores representan ellas para realizar las actividades cotidianas, un colec tivo numeroso que aumentará desde comprar el pan hasta ir a la escuela, al considerablemente en los próximos años. médico, al teatro o a trabajar. La distancia a Especialmente preocupante es la situación de los núcleos urbanos y su comunicación por la parte que cuenta con unos recursos más carretera provoca, al mismo tiempo, que estos precarios, con una menor solidaridad familiar desplazamientos rara vez se puedan hacer o con problemas de movilidad. La falta de a pie o en bicicleta. En la medida en que el servicios de proximidad de todo tipo y la transporte público es también casi inexistente imposibilidad de desplazarse con normalidad e, incluso, inviable, el vehículo privado se consolidan su situación de exclusión. Este consolida como el medio fundamental de hecho está suponiendo el aumento de las movilidad. Facilitar la movilidad de estos necesidades y la demanda de equipamientos residentes es – y sigue siendo – una asignatura y servicios de cuidado específicos orientados a pendiente para las administraciones que, la calidad de vida de este colectivo – hogares frente a la actual falta de financiación, de jubilados, centros de asistencia primaria, posponen este problema. 28 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social Aparte de los efectos medioambientales se consume más agua – un bien preciado en la de la dependencia del transporte privado, este zona mediterránea, especialmente durante los hecho provoca, de nuevo, el establecimiento meses de verano – que en la ciudad compacta de grupos dependientes en términos por la existencia de más zonas ajardinadas de movilidad y de acceso a los recursos con piscina. básicos que reafirma una nueva forma de Finalmente, la seguridad como derecho discriminación y exclusión. Las personas que fundamental no siempre queda garantizado en pueden desarrollarse plenamente en este las urbanizaciones. Numerosas olas de robos y entorno son aquéllas que tienen libre acceso al agresiones se han producido recientemente en vehículo privado, lo que relega a una situación varias urbanizaciones de la RMB. La distancia de dependencia a aquellas personas que, por al núcleo principal del municipio, la tipología diversas razones, no pueden acceder a éste: de vivienda unifamiliar, las calles inhóspitas y mayores con poca movilidad o que ya no deshabitadas por falta de servicios y la poca están en condiciones para conducir, familias iluminación hacen a las urbanizaciones y sus con pocos recursos que no cuentan con residentes muy vulnerables en términos de suficientes vehículos para todos los miembros seguridad. La gente mayor o la que vive sola del hogar, jóvenes que todavía no tienen se encuentra en una situación especialmente edad para conducir y población que no puede desfavorecida. obtener la licencia por razones económicas o En conclusión, el modelo resultante culturales. Todos estos colectivos dependen de es desequilibrado y poco sostenible: tiene otras personas para realizar sus actividades costes medioambientales inasumibles, cotidianas. En el mejor de los casos, las costes económicos comparativamente familias adoptan estrategias para paliar esta elevadísimos y costes sociales que perjudican realidad incrementando el coste y el tiempo a los colectivos más débiles socialmente de desplazamiento y, a menudo, limitando y que hacen necesarias nuevas políticas las actividades posibles. Este hecho plantea públicas. Todo ello se plasma, como se ha retos importantes para la conciliación familiar visto, a través de la segregación territorial y supone una sobrecarga del trabajo familiar y social que lleva implícito el modelo de doméstico. Nuevamente, los colectivos con urbanización dispersa: la monofuncionalidad, menos recursos para contratar servicios y con los problemas de acceso a los recursos y la una menor flexibilidad laboral son los más consiguiente exclusión social que supone, el afectados. En el peor de los casos, cuando no alto coste público por la demanda de servicios se pueden encontrar soluciones dentro del públicos e infraestructuras desconcentrados, núcleo familiar, se convierte en un elemento la escasa mixtura social y demográfica, la de aislamiento, exclusión y vulnerabilidad fragmentación de las relaciones sociales y social muy acusado. de la solidaridad familiar, la inexistencia de Debido al uso intensivo del vehículo lugares públicos, el déficit de planificación y privado, vivir en una urbanización genera escaso control público de las transformaciones mayores niveles de contaminación. Además, territoriales, la baja identificación con el Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 29 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà lugar e incluso la pérdida de conciencia de con una realidad viable desde un punto de lo urbano como un bien público colectivo. En vista económico y medioambiental, equitativa definitiva, supone la máxima expresión entre socioeconómicamente y soportable a nivel la disociación entre la urbs y la civitas, hecho social y medioambiental. Se trata de un modelo que ha llevado a algunos autores a plantearse definitivamente alejado del objetivo de alcanzar esta forma urbana como la muerte de la ciudad una sociedad justa, pacífica y equitativa; en (Choay, 2004). Así pues, lo que se ha establecido definitiva, sostenible. En este sentido, es más como una ciudad ideal se ha convertido, en aplicable que nunca la expresión de José la práctica, en un modelo que ha contribuido Manuel Naredo: “puede ser que no sepamos no sólo a consolidar las desigualdades sino, cómo tiene que ser, pero podemos saber qué no incluso, a aumentarlas. Poco tiene que ver, pues, debe ser” (Naredo, 2004). Gemma Vilà Licenciada en Sociología. Profesora en el Departament de Teoria Sociològica, Filosofia del Dret i Metodologia de les Ciències Socials, Universitat de Barcelona. Barcelona/Cataluña, España. [email protected] Jordi Gavaldà Licenciado en Sociología. Investigador en el Internet Interdisciplinary Institute (IN3), Universitat Oberta de Catalunya. Barcelona/Cataluña, España. [email protected] Notas (1) Para llevar a cabo estos obje vos, presentamos algunos de los resultados obtenidos en las dos últimas investigaciones desarrolladas: Movilidad, solidaridad familiar y ciudadanía en las regiones metropolitanas y Sostenibilidad social según las formas urbanas: movilidad residencial, espacios de vida y uso del empo en las regiones metropolitanas. Ambas inves gaciones están financiadas por el Ministerio de Ciencia y Tecnología y los Fondos Europeos de Desarrollo Regional – FEDER. (2) Originalmente el título del informe era Our Common Future, pero pronto se conoció con el nombre de la doctora Gro Harlem Brundtland, que era quien encabezaba la Comisión. (3) La Carta de Atenas – La Charte d’Athénes –, escrita en el marco del IV Congrès Interna onal d’Architecture Moderne – CIAM – de 1933, se estableció como el nuevo manifiesto urbanís co. Basada en la racionalización de la ciudad, proclamó la zonificación espacial en el sustrato de las cuatro funciones urbanas principales: vivienda, trabajo, ocio y transporte. 30 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 Efectos del urbanismo disperso y consecuencias para la sostenibilidad social (4) Emprender relaciones sociales, participar como ciudadano en los asuntos públicos, usar los espacios públicos y tener una iden dad ligada al territorio. (5) U lizamos la expresión “urbanización” como traducción del término catalán urbanització. Este po de morfología urbana es común en la RMB y se caracteriza por una pología construc va de baja densidad y elevada especialización funcional con un claro predominio de la función residencial. (6) Aunque solo nos referimos a los ciudadanos, los agentes urbanos también modificaron sus intereses y estrategias con el empo. Siguiendo a Capel (1975), consideramos agentes urbanos a aquellos que enen el poder de modificar el territorio a favor de sus intereses. Nos referimos a propietarios del suelo, promotores, constructores, empresas industriales y de servicios y la propia administración. (7) Los precios de las viviendas prác camente se doblaron entre 1986 y 1995. El mecanismo era el propio de los mercados oligopolís cos con escasa o nula transparencia y con elevadas barreras de entrada. La oferta elevada coexis a con la subida de precios: el valor expectante superaba con creces el monto de los precios. (8) Sería lógico pensar que el alquiler era la solución, pero este mercado tenía una oferta escasísima. Tampoco las viviendas de segunda mano eran una posibilidad: a diferencia del resto de Europa, sus precios eran casi tan prohibi vos como los de la construcción nueva. (9) Par t dels Socialistes de Catalunya – PSC –, Esquerra Republicana de Catalunya – ERC – e Inicia va per Catalunya Verds –ICV. (10) Par do Socialista Obrero Español. (11) Llei 3/2009, del 10 de març, de regularització i millora d’urbanitzacions amb dèficits urbanís cs. (12) Convergència i Unió – CiU – en Cataluña y Par do Popular – PP – en España. (13) Presentamos datos primarios de las dos inves gaciones mencionadas en la nota al pie 2. Usamos 1.200 encuestas: 600 se pasaron en 21 urbanizaciones de la RMB – clasificadas de acuerdo con sus caracterís cas demográficas y socioeconómicas –, y las otras 600, en diferentes áreas de la ciudad de Barcelona. Además, se hicieron 25 entrevistas en profundidad. Las citas presentadas están transcritas literalmente a par r de las intervenciones de los entrevistados, cuyos nombres no se muestran para respetar su anonimato. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 31 Gemma Vilà e Jordi Gavaldà Referencias ALABART, A. (2007). Mobilitat residencial, solidaritat familiar i ciutadania a les regions metropolitanes. Revista Catalana de Sociología. Barcelona, v. 22, pp. 23-39. ASCHER, F. (1995). Métapolis, ou l’avenir des villes. París, Odile Jacob. BAYONA J.; DOMINGO, A. e GIL, F. (2009). “La inmigración internacional como elemento de reconfiguración territorial en áreas poco pobladas: el caso de Cataluña (1996-2006)”. In: LÓPEZ TRIGAL, A. et al. (coords.). Despoblación, envejecimiento y territorio. Un análisis sobre la población española. León, Universidad de León. BORJA, J. e CASTELLS, M. (1998). Local y global: la ges ón de las ciudades en la era de la información. Madri, Taurus. CAPEL, H. (1975). 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 15-33, jan/jun 2013 33 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino: o papel das cidades no processo de adaptação ambiental* Urbanization, migratory dynamics and sustainability in the Brazilian Semi-Arid Region: the role of the cities in the environmental adaptation process Ricardo Ojima Resumo A problemática ambiental urbana costuma dar atenção aos centros metropolitanos, deixando às regiões de emigração tradicionais no Brasil o estigma de áreas rurais estagnadas. Entretanto, a transição urbana no país já é generalizada e tais regiões hoje se consolidando como urbanas exercem um papel decisivo na retenção da população. Do ponto de vista da sustentabilidade, o crescimento urbano não deve ser visto como uma questão negativa em si mesma, pois as transições urbanas refletem resultados distintos em contextos e momentos distintos. O artigo busca apresentar elementos que problematizem essa discussão dentro do processo de urbanização recente do semiárido nordestino apontando as potencialidades e limitações para pensar a adaptação diante do desastre natural mais recorrente na região: as secas. Abstract The urban environment issue usually focuses on metropolitan areas, leaving the traditional regions of emigration in Brazil stigmatized as stagnant rural areas. However, the urban transition in the country is already widespread and such regions, which have been consolidating as urban areas, play a decisive role in the retention of population. From the standpoint of sustainability, urban growth should not be seen as a negative issue in itself, because urban transitions reflect distinct results in different contexts and moments. Therefore, the article aims to introduce elements that problematize this discussion in the context of the recent urbanization of the Brazilian Semi-Arid Region, located in the Northeast of the country, showing the potentials and limitations to think about adaptation regarding the most common natural disaster in the region: droughts. Palavras-chave: urbanização; migração; adaptação; meio ambiente; sustentabilidade. Keywords: urbanization; migration; adaptation; environment; sustainability. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Ricardo Ojima Introdução ambientais. Do ponto de vista ambiental, foco central deste artigo, a dinâmica da urbanização apresenta situações não apenas distintas, Quando se discute a problemática ambien- mas que podem ser consideradas praticamen- tal urbana no Brasil, surge imediatamente a te antagônicas, pois os desastres naturais ora imagem de uma grande cidade localizada no afetam a população nordestina com eventos contexto de uma região metropolitana cercada de extrema precipitação pluviométrica (chuvas) de poluição, áreas contaminadas, congestio- concentradas na porção litorânea, enquanto namentos, etc. De fato, essa é uma realidade recorrentemente na região do Semiárido o prin- de praticamente metade da população urbana cipal desastre natural está associado às estia- brasileira e, por essa razão, justifica-se todo o gens severas e prolongadas. Característica essa investimento e preocupação tanto dos estudos que costuma ser generalizada para toda região quanto das políticas públicas específicas. En- Nordeste no imaginário social. tretanto, poucas vezes nos preocupamos com Quando analisamos a distribuição da as questões ambientais urbanas de algumas população nordestina a partir do recorte am- regiões do país, tornando tais “problemas” biental, a população residente na região do muitas vezes invisíveis. Assim, muitas vezes Semiárido correspondia a 40% do total da Re- relegamos a população dessas regiões à polí- gião Nordeste no ano de 2010. Fato que não ticas públicas desarticuladas de acordo com as deve ser considerado irrelevante em termos prioridades setoriais e arriscamos aprofundar de população afetada, pois são cerca de 21,3 injustiças sociais regionais. milhões de habitantes vivendo em um contexto A região nordeste é uma dessas regiões. ambiental complexo e de extrema fragilidade Segundo os dados do Censo Demográfico social e econômica. Tais fatores teriam moti- 2010, é morada de 27,8% da população bra- vado a emigração de grandes contingentes sileira (53 milhões de pessoas) e é a segunda populacionais ao longo dos últimos 50 anos; região em termos populacionais. Proporção entretanto, poucas vezes tais fatores puderam que pouco se alterou desde o Censo Demo- ser devidamente comprovados, pois a existên- gráfico de 1980, quando os 34,8 milhões de cia de fatores de atração migratória na região habitantes da região representavam 29,3% do Sudeste do país sempre tornavam complexa a total do país. É ainda a região brasileira me- análise dos fatores de expulsão da população nos urbanizada (73,1%, em 2010), com uma dessas regiões do Semiárido. proporção da população vivendo em áreas Nesse sentido, o objetivo deste arti- urbanas um pouco menor do que na Região go é analisar o processo de transição urbana Norte do país, mas que nos últimos anos tem (passagem de uma população predominan- se urbanizado rapidamente, trazendo com isso temente urbana) da Região Nordeste a partir algumas preocupações. deste recorte ambiental de modo comparativo Mas a análise da Região Nordeste não para melhor compreender a relação dinâmica pode ser homogênea, pois possui contex- dos fatores ambientais com aspectos migra- tos muito distintos, desde econômicos até tórios, especialmente os fluxos rural-urbano. 36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino Com isso, pretende-se argumentar a respeito A transição urbana tradicionalmente tem do potencial positivo que as cidades exercem sido tratada como o ponto de inflexão no qual no sentido de favorecer a capacidade adap- a população passa a ser predominantemente tativa dos habitantes da Região Nordeste e urbana. Entretanto, essa definição baseada nos especificamente no Semiárido. Inicialmente, dados empíricos não deve ser a única e reduzir será desenvolvido um panorama dos fluxos o debate a números. A urbanização da popula- migratórios recentes privilegiando o processo ção não se restringe a seu aspecto formal de de urbanização; em um segundo momento, a localização, mas principalmente deve ser enten- partir das características sociodemográficas da dido em seu contexto sociocultural, no qual o população e das cidades, levantaremos hipóte- modo de vida urbano passa a ser mais abran- ses sobre o processo de adaptação aos fatores gente do que a mera descrição formal de uma ambientais na região do Semiárido. Por fim, localidade urbana (UNFPA, 2007; Ojima, 2006; avaliaremos esse papel e a capacidade das ci- Martine et al., 2008; Silva e Monte-Mor, 2010). dades diante dos cenários de agravamento das Entre outros argumentos, a definição do que é condições ambientais. urbano varia entre os diversos países do mundo, portanto, a estimativa de que vivemos em uma sociedade predominantemente urbana pode ser Migração e urbanização nordestina motivo de controvérsias metodológicas.1 Trata-se de uma abordagem promissora no sentido de incorporar uma reflexão crítica e substantiva sobre o potencial positivo do fe- A Região Nordeste tradicionalmente é carac- nômeno urbano, sobretudo pela incorporação terizada como o principal centro expulsor da da dimensão demográfica isenta de seu viés população brasileira. As explicações para essa catastrofista e malthusiano sobre a explosão condição são variadas e vão desde os fatores demográfica e da simplificação do debate ambientais (estiagens, desertificação, etc.) até acerca das mazelas urbanas baseadas na mar- os baixos indicadores de desenvolvimento eco- ginalização do migrante nas grandes cidades. nômico como mortalidade infantil, esperança Assim, uma teoria da transição urbana poderia de vida, dinamismo econômico, entre outros incluir um aspecto prospectivo aos desafios fu- (Ab’Saber, 1999; Martine, 1994; Camarano, turos (sociais, políticos, econômicos e ambien- 1997; Oliveira, 2008; Diniz, 1988; Santos e tais) pelos quais passarão algumas regiões do Moura, 1990; Santos, Moreira e Moura, 1990; mundo (África e Ásia) onde a população passa Teixeira, 1998; Ribeiro e Barbosa, 2006; Fusco; tardiamente a viver concentrada em cidades Duarte, 2010). Essa dinâmica das migrações (MacGranahan et al., 2009; Silva e Monte-Mor, nordestinas teve impacto no processo de urba- 2010). A experiência brasileira de transição nização da região, mas trata-se de um aspec- urbana precoce pode, portanto, ser de grande to inserido em um contexto mais amplo: uma valia se for bem compreendida em seus mais transição urbana. Essa associação é que desen- amplos aspectos até os dias contemporâneos volveremos brevemente. (Martine e Ojima, 2013). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 37 Ricardo Ojima Sendo assim, considerando que a con- das cidades é de 40%, e no caso da América centração da população em grandes municí- Latina, entre 1975 e 2000, essa contribuição pios na Região Nordeste é muito mais lenta foi de cerca de 30%. Realizando a mesma do que no conjunto do país como um todo, análise para o Brasil, considerando as gran- como poderíamos pensar na relação migra- des regiões, a contribuição da migração para ção rural-urbana e os dilemas da sustenta- o crescimento urbano do Nordeste teria sido bilidade urbana? Como apontado por Ojima algo em torno de 46% entre 1970 e 2010. e Marandola Jr. (2012), são inúmeros os ar- Um dos aspectos dos fluxos migratórios gumentos para rotular as grandes cidades nordestinos é o processo de concentração da como ponto de tensão na busca pela susten- população em algumas localidades, mas que tabilidade urbana. Entretanto, seriam nos se comparado com o país é bem menos pola- menores municípios do Brasil que as con- rizado. Podemos ver a partir da Tabela 1 que dições de enfrentamento e adaptação aos a Região Nordeste ainda concentra sua popu- fatores ambientais associados, por exemplo, lação em municípios de menor porte popula- ao saneamento básico, planejamento urba- cional. Quase 40% da população residia em no e infraestrutura de serviços, apresentam municípios com mais de 100 mil habitantes, maiores desafios. enquanto que no Brasil como um todo essa Mas a migração não é o único nem o proporção é praticamente invertida, com 55% principal responsável pelo crescimento po- nos municípios maiores. Essa informação adi- pulacional nas cidades. Um exercício de cionada ao aumento no grau de urbanização análise a partir das taxas de crescimento da da Região Nordeste nos leva ao fato de que, população urbana e da taxa de evolução do se há 50 anos atrás o Nordeste abrigava sua grau de urbanização elaborado por Tacoli, população em pequenos municípios rurais, McGranahan e Satterthwaite (2008) mostra hoje ele ainda tem grande parte de sua po- que, na média mundial, a contribuição da pulação em municípios pequenos, mas agora migração rural-urbana para o crescimento com uma população urbana. Tabela 1 – Distibuição da população no Nordeste segundo classes de tamanho da população nos municípios, 1950-2010 Classes de tamanho da população Até 5.000 De 5.001 a 10.000 De 10.001 a 20.000 De 20.001 a 50.000 De 50.001 a 100.000 Mais de 100.000 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010 (NE) 2010 (BR) 0,09 2,56 14,04 52,76 16,36 14,18 1,22 5,88 18,05 43,31 11,58 19,96 2,28 9,01 22,60 32,97 11,73 21,41 1,56 6,97 17,70 31,03 12,97 29,77 1,06 5,52 17,75 27,88 14,67 33,11 1,97 6,06 17,67 24,50 13,43 36,36 1,66 4,87 15,81 23,69 14,05 39,92 2,29 4,48 10,35 16,43 11,70 54,75 Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1950 a 2010. 38 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino Uma análise do grau de urbanização de 1991, enquanto na Região Nordeste isso por classes de tamanho do município con- ocorre apenas no Censo 2010, como pode- firma essa hipótese, pois podemos verificar mos ver na Figura 1. que nos municípios nordestinos maiores, Nesse aspecto, a transição urbana bra- com mais de 100 mil habitantes, a popula- sileira, embora possa ser entendida como ção já era predominantemente urbana des- avançada, ainda é distribuida de maneira de a década de 1970, pelo menos. Assim, desigual. Considerando então essa etapa co- mesmo com uma distribuição relativa de mo uma segunda transição urbana, momen- pequenos municípios equivalente com ou- to em que há acomodação da população nas tras regiões, o processo de transição urba- áreas já urbanizadas e os fluxos migratórios na é relativamente atrasado em relação ao passam a ser predominantemente urbano- país, pois para o Brasil como um todo os -urbano, ainda há elementos importantes a municípios menores já atingiam a marca de serem analisados para pensar o ciclo com- 50% de sua população urbana em meados pleto dessa transição precoce brasileira. Figura 1 – Grau de urbanização por classes de tamanho de população nos municípios, Nordeste, 1970 a 2010 100 90 80 70 60 50 40 30 20 1970 1980 1991 2000 2010 Até 5.000 De 5.001 a 10.000 De 10.001 a 20.000 De 20.001 a 50.000 De 50.001 a 100.000 Mais de 100.000 Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1970 a 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 39 Ricardo Ojima Do total de pessoas que emigraram das no processo de urbanização, mas algumas das áreas rurais nordestinas na década de 1970, características mais marcantes desse grande segundo os dados do Censo 1980, 66% foram contingente de pessoas em movimento pelo residir em áreas urbanas da própria região nor- país têm apresentado mudanças importantes deste. Ilustrando-se, então, a hipótese de migra- nos últimos anos. Uma dessas mudanças é a ções por etapas (Martine, 1980; Harris; Todaro, direção predominante desses fluxos. Por um 1970; Sjaastad, 1962) nas quais o migrante de lado, os fluxos de emigração nas Unidades da origem rural passaria por estágios intermediá- Federação (UF) nordestinas se mantêm majo- rios de modernização através de localidades ritariamente interregionais, ou seja, a maior urbanas menores para migrar novamente para parte das pessoas emigram para estados fora regiões mais distantes e mais dinâmicas em um da Região Nordeste. Mas por outro, é impor- segundo momento. Conforme esses mesmos tante perceber que, entre os imigrantes, os dados, do total dessas pessoas que migraram últimos anos marcaram uma inflexão, pois, se de áreas rurais do Nordeste para áreas urbanas na década de 1970 poucos dos que chegavam na mesma região, um pouco mais da metade à Região Nordeste eram de outras regiões do delas se dirigiu para os municípios de mais de país, nos anos mais recentes já são a maior 100 mil habitantes (55%). parte dos imigrantes, superando inclusive o A dinâmica migratória da Região Nordeste desempenha, portanto, um papel fundamental volume das migrações entre os estados da própria Região Nordeste. Figura 2 – Percentual de imigrantes interregionais, 1970 a 2010 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1970-1980 1981-1991 1990-2000 2000-2010 imigrantes interregionais Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1970, 1991, 2000 e 2010. 40 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino Embora o Nordeste ainda apresente saldos migratórios negativos nas trocas com as Vidas secas e urbanas UFs de outras regiões do país e ainda seja a A literatura tem apontado que, diante dos região brasileira menos urbanizada, novas di- cenários de mudanças climáticas globais, im- nâmicas migratórias e urbanas parecem surgir. portantes mudanças nos fluxos migratórios Com uma população mais urbana, mesmo em poderiam ocorrer, contribuindo para reiterar municípios de menor porte, novas possibili- processos e intensificar os fluxos migratórios dades de atração e, principalmente, retenção de regiões tradicionalmente expulsoras da po- da população potencialmente surgem. Não pulação para as grandes cidades (Bates, 2002; estamos aqui nos referindo apenas aos polos Adamo, 2001; Myers, 1993; 1997; Barbieri et de desenvolvimento mais evidentes como Pe- al., 2010; Barbieri, 2011). Mas, embora a re- trolina/Jauzeiro ou Caruaru, entre outros; mas lação entre estiagens e emigrações na Região principalmente dos pequenos e médios muni- Nordeste do Brasil seja praticamente um con- cípios, agora mais urbanizados e que, com um senso, há ainda lacunas de análise que deixam conjunto de políticas sociais não específicas margem para desarcordos nessa associação para o enfrentamento da estiagem (Araujo, (Martine, 1980; Hogan, 2005). Assim, vale a pe- 2012), aparentemente sentiram mais efeitos na problematizar uma leitura que não seja me- positivos do que as políticas de combate às se- tropolecentrada – onde se analizam os fluxos cas de outrora. migratórios a partir da perspectiva das regiões Com esse breve percurso da relação en- metropolitanas –, mas através de uma análi- tre migrações e urbanização no Nordeste, po- se da dinâmica demográfica a partir de suas demos concluir que, a despeito da pouca aten- regiões de origem: o Nordeste seco. ção dada à relação urbanização e ambiente Segundo o banco de dados do Internatio- nessa região, a sustentabilidade urbana nesse nal Disaster Database (EM-Dat), no Brasil o de- contexto se torna um elemento central a ser sastre natural com o maior número de pessoas melhor analisado. Enquanto se fala em grandes atingidas são as estiagens. E, embora não se projetos de reuso de água, fontes de energia constitua como o principal desastre em termos limpa, redução de emissões de gases de efeito de vítimas fatais, é aquele que historicamente estufa, temos cerca de 39 milhões de pessoas atinge o maior número de pessoas, comprome- vivendo em áreas urbanas de uma região que, tendo as atividades econômicas e a qualidade se não por completo (como veremos no item a de vida. Claro que entender e avançar sobre a seguir), ainda carecem de políticas públicas de vulnerabilidade das grandes cidades é funda- acesso a saneamento básico e precisam enfren- mental, afinal, as consequências econômicas e tar estiagens regulares com poucos recursos. sociais nesses contextos atingem diretamente e Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 41 Ricardo Ojima indiretamente muito mais pessoas. Mas a des- desenvolvidos no âmbito deste Ministério e – peito do volume relativamente maior de atingi- com base em cinco propostas apresentadas – dos nas grandes cidades, as consequências das além de incluir os municípios com precipitações secas prolongadas em municípios pequenos médias anuais iguais ou inferiores a 800 mm, podem ser devastadoras (Ojima e Marandola também passariam a ser incluídos aqueles que Jr., 2012; Ojima e Martine, 2012). apresentassem índice de aridez de até 0,504 e Mas, antes de mais nada, para que uma risco de seca superior a 60%5 (Pereira, 2007). leitura do que poderiamos chamar de “demo- A delimitação, portanto, além de contar com le- grafia da seca” seja realizada de maneira ade- gislação específica que confere a esses municí- quada é preciso fazer um recorte espacial que pios acesso a recursos financeiros para o com- vai além da mera arbitrariedade do recorte das bate às secas, tem uma delimitação claramente grandes regiões brasileiras. Como discutir uma ambiental por contar com critérios técnicos e região tão extensa quanto o Nordeste sem se não apenas políticos. valer de um recorte intimamente vinculado aos Para Furtado (1959), a densidade demo- aspectos ambientais, mas que também seja gráfica dessa região seria incompatível com político? Ojima (2012) realiza uma análise pre- uma economia competitiva e assim seriam liminar do perfil demográfico nordestino con- necessárias políticas de incentivo que mobili- siderando um recorte ambiental-climático-po- zaram importantes contingentes populacionais lítico utilizando a definição oficial definida pelo em fluxos migratórios de modo a polarizar o governo federal dos municípios que compõem desenvolvimento econômico em torno de al- 2 o Semiárido nordestino. A partir desse recorte gumas localidades específicas. Mas, mesmo seria possível distinguir os municípios nordesti- assim, Ab’Saber (1999) salienta que de todas nos entre aqueles que são atingidos diretamen- as regiões com tais características no mundo, te pelas estiagens e aqueles que enfrentam de- o Semiárido nordestino seria uma das mais safios de sustentabilidade urbana semelhantes povoada de todas. A exploração da seca como àqueles de outras regiões metropolitanas bra- elemento constituinte da miséria, desigualda- sileiras na região da Zona da Mata, no litoral de e pobreza na Região Nordeste já foi alvo oriental nordestino. de importantes discussões teóricas (Ab’Saber, A definição dos municípios que compõem 1999; Araújo, 1997; Castro, 2001; Furtado, o Semiárido foi estabelecida pelo Ministério 1959; 1974; 1981) e, consequentemente, pa- da Integração Nacional em 2005 ampliando rece ter sido suficiente para explicar o êxodo a relação de municípios anterior de 1.031 pa- maciço de contingentes da população para os ra 1.133. Abrangendo inclusive 85 municípios grandes centros urbanos, especialmente para 3 da região norte de Minas Gerais. Os critérios o Sudeste. Sendo, para muitos, justificativa utilizados para a inclusão dos municípios nessa ainda das mazelas ambientais urbanas das listagem partiram de um conjunto de estudos grandes metrópoles. 42 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino Figura 3 – Volume e taxa de crescimento da população, Nordeste (exclusive semiárido) e Semiárido entre 1970 e 2010 35 30 milhões de habitantes 25 20 15 10 5 0 1970 1980 1991 2000 Semi-árido 2010 resto do Nordeste Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1970 a 2010. Mas se na década de 1970 a taxa de crescimento da população nordestina era re- valores muito próximos nas duas subáreas nos anos futuros. lativamente alta (2,6% ao ano), apesar do Além disso, apesar da média do cres- saldo migratório negativo nas trocas com ou- cimento para toda a região do Semiárido ser tras regiões do país, podemos explicar o des- relativamente baixa no período 2000-2010 compasso entre as taxas de crescimento do (abaixo de 1% ao ano), em alguns municípios Semiárido em relação ao resto do Nordeste as taxas de crescimento da população urbana pelas migrações intrarregionais que eram pre- (Figura 4) são muito elevadas, apresentando dominantes até a década de 1980. Hoje, ao taxas maiores do que 4% ao ano. Essa con- contrário do que ocorria há algumas décadas, o centração da população em áreas urbanas tem ritmo de crescimento populacional não é mais duas leituras importantes no que se refere aos tão desigual do que as taxas de crescimento desafios para a sustentabilidade. A primeira dos municípios de fora do Semiárido. A Figura 3 delas diz respeito ao enfrentamento das con- mostra que não apenas as taxas de crescimen- dições ambientais adversas, pois em áreas ur- to estão em ritmo declinante, mas também que banizadas há um maior potencial para oferecer o ritmo de crescimento tende a convergir para serviços como educação, saúde e saneamento Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 43 Ricardo Ojima básico para a população, sobretudo devido Outro aspecto recente que ainda não aos ganhos de economia de escala (Martine pôde ser confirmado é o impacto que as polí- et al., 2008). Nesse sentido, a urbanização ticas de transferência de renda, iniciadas pela da população nos municípios do Semiárido criação da previdência rural e culminando no poderia proporcionar avanços significativos Bolsa Família, tiveram nesse processo. Ou seja, na qualidade de vida e nas possibilidades de a dinamização de um mercado consumidor ur- enfrentar os desafios da estiagem. Por outro bano local, embora em pequena escala, através lado, a concentração urbana em municípios dos programas de transferência de renda, tem de pequeno porte populacional traz desafios sido apontada como elemento importante na em termos da capacidade orçamentária e de manutenção de parte da população na região infraestrutura, pois esses municípios apresen- (Araujo, 2012). Nesse sentido, reduz-se o ím- tam, em grande maioria, uma grande depen- peto dos fluxos migratórios de longa distância, dência econômica de transferências de recur- mas mantém-se uma tendência de uma mobili- sos federais e estaduais. dade para áreas urbanas próximas. Há um relativo desacordo em relação aos Em paralelo, restam ainda elementos motivos dessa concentração urbana nos muni- controversos em relação ao processo de urba- cípios do Semiárido. Assim, apesar de um rela- nização e o impacto ambiental, especialmen- tivo consenso em torno da crise do complexo te sobre o conflito no uso da água, pois para pecuária-algodão-policultura de alimentos co- Carvalho e Egler (2003), a urbanização no Se- mo um dos principais fatores explicativos para miárido causaria um aumento no consumo e o êxodo rural da região (Araujo, 2012; Carva- demanda de água, o que agravaria a situação lho; Egler, 2003), outros fatores merecem uma de escassez. Entretanto, o principal setor con- análise mais detalhada. Uma parte importante sumidor de água no Brasil é a agricultura (Car- dos fluxos migratórios para áreas urbanas no mo et al., 2007), com uma participação média Semiárido está relacionada, por exemplo, à de mais de 60% de todo o consumo de água migração de retorno. Migrantes que outrora do país. Como a participação do consumo do- foram em busca de oportunidades econômicas méstico é de apenas 10%, podemos supor que em grandes cidades, especialmente no Sudes- a vida nas cidades, ao contrário, otimizaria o te do país, têm retornado para suas regiões de uso de água, principalmente se considerarmos origem, embora majoritariamente com destino o uso de técnicas de irrigação pouco eficazes em áreas urbanas. em uma região de elevada evapotranspiração. 44 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino Figura 4 – Região do Semiárido na Região Nordeste e taxa de crescimento da população urbana entre 2000 e 2010 Fonte: IBGE, Censos Demográficos 2000 e 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 45 Ricardo Ojima Portanto, ao contrário do que encontramos nas grandes cidades e regiões metropo- reproduz a pobreza e, portanto, os desafios ambientais no local de destino. litanas, a concentração de pessoas em áreas Mas se observarmos a Figura 5, pode- urbanas de municípios atingidos pela seca mos confirmar que há uma associação positi- poderia significar uma menor vulnerabilida- va entre o grau de urbanização e a oferta de de diante dos fatores ambientais extremos. atendimento de domicílios com rede geral de Isso ocorre devido ao fato de que quando a abastecimento de água. Tal associação é mais população está concentrada nas áreas urba- evidente para o ano de 1991, quando ainda nas a possibilidade de oferecer serviços pú- grande parte dos municípios do Semiárido era blicos e otimizar o uso de recursos se torna pouco urbanizada, e 68% dos municípios apre- mais viável, tanto do ponto de vista de ações sentavam baixo grau de urbanização e baixa emergenciais para o enfrentamento das secas, proporção de domicílios com rede geral de como a distribuição de água potável em car- abastecimento de água, simultaneamente. Esse ros-pipa, mas também para investimentos de cenário muda completamente em 2010, quan- médio e longo prazo. O principal argumento do a maior parte dos municípios passa a ter é que parte significativa da literatura sobre o predominância de pessoas vivendo em áreas Semiárido associa a emigração das áreas ru- urbanas. Nesse aspecto, confirma-se a hipótese rais apenas em direção aos grandes centros mencionada por Martine et al (2008) de que as metropolitanos e dessa maneira tratam es- transições urbanas ocorrem de maneira distinta se processo como um aspecto negativo que em cada região. % população urbana % população urbana Figura 5 – Percentual da população urbana versus percentual de domicílios com rede geral de abastecimento de água por município do Semiárido nordestino, 1991 e 2010 % domicílios com rede geral de abastecimento de água % domicílios com rede geral de abastecimento de água Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1991 e 2010. 46 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino A análise elaborada pelos autores se central na estratégia de busca de serviços e refere ao processo global de transição urba- infraestrutura, valendo-se ainda de respostas na, mas pode ser considerada aqui em um multifásicas como a migração de membros contexto social e econômico distinto, pois o do domicílio para áreas urbanas e integrando argumento central é válido: os grandes fluxos atividades agrícolas e não-agrícolas (VanWey, rural-urbano para grandes cidades não devem Guedes e D’Antona, 2008). Essa estratégia de se repetir no Brasil do presente devido às im- complementariedade de uma lógica urbana- portantes mudanças tecnológicas e culturais -agrícola é uma das características da urbani- nos quais o modo de vida urbano se expan- zação extensiva também explorada por Monte- de para além das metrópoles (Monte-Mor, -Mor (2006) e acena para um novo aspecto 2006; Hogan, Marandola Jr. e Ojima, 2010; social que extrapola a tradicional dicotomia Baeninger, 2008). rural-agrícola e urbano-industrial. Assim, a ur- Enfim, é impossível discutir a sustentabi- banização do Semiárido nordestino poderia lidade das cidades sem considerar essa parcela seguir a mesma tendência de complementari- significativa da população brasileira, exposta a dade já identificada na Amazônia, mas devido vulnerabilidades crônicas e que reiteradamente aos aspectos sociais e políticos intervenientes, compromentem todo um sistema social. Enten- merecem uma investigação específica. der a sustentabilidade, portanto, é entender a Nesse sentido, a urbanização do Se- vulnerabilidade e suas múltiplas dimensões miárido contemporâneo não proporcionaria sociais (Ojima e Marandola Jr., 2012; Maran- movimentos migratórios nos moldes do desen- dola Jr. e Hogan, 2006; Marandola Jr., 2009). O volvimento industrial do Sudeste de outrora, mundo urbano é inevitável, pois as tendências pois nem mesmo nessa região essa relação históricas indicam que a população mundial se sustentaria diante de uma nova lógica da desde 2008 é predominantemente urbana e produção industrial flexível (Harvey, 1992; não há previsões de uma reversão nessas ten- Baeninger, 2008). As mudanças no mercado dências (UNFPA, 2007). Portanto, impedir que de trabalho, fluxos econômicos e conjuntura as pessoas continuem a migrar para as áreas de infraestrura do país trouxe consigo transfor- urbanas é tão improdutivo quanto inócuo. Isso mações estruturais que demandam uma adap- não significa dizer que não há que se ter espa- tação para a realidade política e institucional ço e incentivo para a agricultura, especialmen- do Semiárido, pois se considerarmos o desen- te a de subsistência, mas trata-se aqui de evitar volvimento urbano tardio da região a partir da abordagens que dicotomizem as ações políti- mesma lógica de produção fordista, corremos cas em torno de uma ou outra opção. o risco de reproduzir equívocos na forma de Há uma situação de simbiose urbano- planejar (ou não planejar) essa urbanização, -rural saudável e que pode se tornar mais efeti- mas, nesse caso, com consequências negativas va se adequadamente gerenciada. Identificada maiores ainda devido à sobreposição de dile- por D’Antona e VanWey (2009) em algumas mas sociais seculares, especialmente, a pobre- regiões amazônicas, trata-se de uma questão za da região (Arruda, 2011). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 47 Ricardo Ojima A cidade como espaço de adaptação sociais, adaptação, entre outros, seriam fatores relevantes para entender a migração recente no Semiárido. A maior parte dos municípios do Semi- Poucas vezes pensamos na sustentabilidade árido apresenta saldos migratórios negativos, urbana como aquela que garante a manuten- mas, apesar disso, em alguns municípios o ção da qualidade de vida da população, talvez impacto dos saldos positivos é significativo. por essa perspectiva pouco se diferenciar dos Assim, mesmo nas localidades com volumes problemas já existentes (Hogan, 1995; Ojima modestos, como o contingente populacional e Marandola Jr., 2012). Portanto, pensar no no município de destino é pequeno, a migração agravamento da intensidade e frequência da causa maior impacto. Isso nos abre pelo menos estiagem na Região Nordeste imediatamente uma questão importante no que se refere aos nos leva a pensar no agravamento dos confli- fluxos migratórios e o crescimento populacio- tos ambientais nas principais metrópoles do nal nos municípios do Semiárido: os pequenos Brasil decorrentes de novas ondas de migran- municípios, com maiores taxas de migração lí- tes, refugiados das secas. Assim, considerando quida, possuem infraestrutura e capacidade pa- as mudanças significativas dos principais fluxos ra absorver com bons indicadores de qualidade migratórios, sobretudo os de origem rural-ur- de vida os migrantes? bana e de longa distância (Oliveira e Oliveira, A população que reside nesses municípios 2011), identificadas desde a década de 1990 do Semiárido nordestino e aqueles que chegam (Baeninger, 2000; 2008; Brito, 2009; Martine, deverão sofrer com os impactos das mudanças 1994), uma nova abordagem para as políti- climáticas proporcionados, em grande parte, pe- cas públicas poderiam ampliar o potencial de lo padrão de consumo das grandes cidades do adaptação aos fatores ambientais nas cidades Sudeste e Sul do país. Os efeitos do processo do Semiárido. de desertificação podem agravar os impactos A perspectiva de análise dos fluxos mi- já injustos em termos ambientais para o que gratórios adotada por Lee (1966) coloca a ên- a literatura tem chamado de justiça climática. fase sobre a decisão individual de migrar como Segundo Acselrad et al. (2009), a distribuição um cálculo racional ou semirracional que passa desigual da responsabilidade do consumo de por fatores associados ao local de origem ou recursos naturais tende a desbalancear os riscos do destino. Assim, em uma situação de ausên- ambientais entre grupos sociais. Mas a seca não cia de obstáculos intervenientes, os indivíduos é um problema novo, pois a população já con- seriam livres para decidir as melhores alternati- vive com ela. Cabe ao poder público levar em vas para o seu bem-estar e, consequentemente, conta as especificidades da urbanização dessa o equilíbrio social e econômico seria atingido região para propor políticas que viabilizem a re- mais facilmente. Portanto, a complexidade de dução de injustiças socioambientais. análises a partir de fatores externos na decisão Assim, embora o crescimento urbano não individual de migrar como as características do seja em si mesmo o problema a ser enfrentado, ambiente (locais de origem e destino), redes necessitamos um olhar atento para não deixar 48 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino que se reproduzam formas de expansão urbana sobretudo nos aspectos sociais que poderão excludentes em contextos de maior vulnerabili- alterar ou proteger os modos de vida da popu- dade ambiental e social como é o caso do Se- lação (Buttel et al., 2002; Giddens, 2010; Ojima, miárido nordestino. Ou seja, se os indicadores 2009; 2011). As medidas de adaptação devem sociais, sobretudo de acesso a serviços básicos ser, portanto, ações pró-ativas que antecipem como abastecimento de água, saneamento, os desafios a serem enfrentados, pois só assim educação, saúde, são melhores nas áreas ur- poderão ser respeitados os interesses da justiça banas, esse potencial positivo da urbanização socioambiental. precisa estar de acordo com o potencial impac- As cidades são os espaços privilegiados to dos saldos migratórios sobre a população lo- dessas transformações, pois nelas é que pode- cal, pois precisamos estar atentos à capacidade remos encontrar as melhores condições para de gestão e planejamento dos municípios. dar acesso aos serviços sociais e de cidadania De acordo com os dados da Pesquisa de que garantam a negociação política. Construir Informações Básicas Municipais (IBGE, 2010), cidades resilientes passará pela compreensão 73% dos municípios do Semiárido nordestinos das especificidades de cada contexto e, do pon- não possuíam plano diretor e, desses, apenas to de vista do papel das mudanças demográfi- 27% estavam em processo de elaboração em cas nas cidades, é necessário entender como as 2009. Vale destacar ainda que, dentre aque- tendências da mobilidade espacial, do processo les municípios com taxas de migração líquida de envelhecimento, dos arranjos domiciliares, acima de 10% no período 2000-2010 (30 mu- etc., contribuem ou não para este desafio que nicípios), 19 deles não tinham plano diretor. só tende a se tornar mais complexo. Além disso, apenas 64% dos municípios do Se- Enfim, o desenvolvimento deve ser sus- miárido possuem Conselho Municipal de Meio tentável para todos, em quaisquer contextos Ambiente. Enfim, o engajamento das instâncias urbanos. Não podemos reiterar injustiças so- locais de poder são fundamentais para que ciais seculares sob a forma de preocupações de as políticas de adaptação sejam levadas a ca- desenvolvimento regional a partir das premis- bo pelas localidades afetadas (Moser e Luers, sas estigmatizadas na sociedade. Assim, enten- 2008). Afinal, é extremamente necessário que der detalhadamente a dinâmica demográfica haja capacidade institucional de planejar o e, sobretudo, migratória e urbana da região crescimento e o desenvolvimento urbano nos do Semiárido nordestino nos permite refletir pequenos e médios municípios do Semiárido sobre a sustentabilidade de um urbano pouco para que os aspectos ambientais não sejam lembrado, mas que corresponde a mais de 35 novamente deixados em segundo plano e se milhões de pessoas. Onde os desafios da sus- tornando um problema futuro. tentabilidade passam longe do discurso hege- Como já é consenso para diversos au- mônico de economia verde para o crescimento tores, a busca pela sustentabilidade e a adap- sustentado, mas que se não forem planejados tação às mudanças ambientais não deve ser da maneira adequada pagarão a conta, sem ao entendida apenas pela dimensão geofísica, menos terem sido convidados a se sentar à me- pois as questões ambientais se fundamentam sa para o almoço. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 49 Ricardo Ojima Ricardo Ojima Sociólogo e Doutor em Demografia, professor adjunto da do Centro de Ciências Exatas e da Terra da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. [email protected] Notas (*) Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto “Urbanização, condições de vida e mobilidade espacial da população no contexto dos biomas nordes nos: repensando as heterogeneidades intra-regionais” (Edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES n. 18/2012 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, processo: 403853/2012-5). Observatório das Migrações Nordes nas (UFRN/Fundaj). (1) No caso brasileiro, a definição de área urbana é dada por lei municipal específica que define o perímetro urbano. Os dados oficiais publicados pelo IBGE respeitam o critério oficial definido por cada município, sendo que toda sede de município deve ser considerada parte de uma área urbana. (2) Portaria nº 89 do Ministério da Integração Nacional, de 16 de março de 2005. (3) Para fins deste estudo, não serão considerados os municípios mineiros, pois o recorte é específico para a Região Nordeste do país. (4) O grau de aridez de uma região depende da quantidade de água advinda da chuva (P) e da perda máxima possível de água através da evaporação e transpiração, ou a Evapotranspiração Potencial (ETP). (5) Apresentou defict hídrico diário em mais de 60% do período de 1970 a 1990. Referências AB’SABER, A. N. (1999). Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos Avançados, IEA/ USP, São Paulo, v. 13, n. 36, pp. 7-59. ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. D. A. e BEZERRA, G. D. N. (2009). O que é jus ça ambiental? Rio de Janeiro, Garamond. ADAMO, S. B. (2001). Emigración y Ambiente: apuntes iniciales sobre un tema complejo. Papeles de Población. México, n. 29, pp. 143-159. ARAÚJO, T. B. (1997). Herança de diferenciação e futuro de fragmentação. Revista Estudos Avançados, Dossiê Nordeste. São Paulo, v. 11, n. 29, abr. ______. (2012). Economia do semiárido nordes no: a crise como oportunidade. Revista Cole va. Fundação Joaquim Nabuco, Recife, v. 16, n. 1. 50 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 Urbanização, dinâmica migratória e sustentabilidade no semiárido nordestino ARRUDA, D. (2011). A polí ca regional no Brasil: uma análise dos planos para o Nordeste a par r da visão sistêmica. Cadernos de Desenvolvimento. Rio de Janeiro, v. 6, n. 9, pp. 61-91. BAENINGER, R. (2000). Região, metrópole e interior: espaços ganhadores e espaços perdedores nas migrações recentes: Brasil, 1980-1996. In: Textos NEPO 35. REDISTRIBUIÇÃO da população e meio ambiente: São Paulo e Centro-Oeste. Campinas, Nepo. ______ (2008). Rota vidade migratória: um novo olhar para as migrações no século XXI. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais. Caxambu, ABEP. BARBIERI, A. F. et al. (2010). Climate change and popula on migra on in Brazil’s Northeast: scenarios for 2025 2050. Popula on and Environment, v. 31, pp. 344-370. BARBIERI, A. F. (2011). Mudanças climá cas, mobilidade populacional e cenários de vulnerabilidade para o Brasil. 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[Proceedings...]. Nova Orleans, Silver Spring, MD: PAA. Texto recebido em 19/ago/2012 Texto aprovado em 18/out/2012 54 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 35-54, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém: trajetória de ambiguidades e conflitos socioambientais The urban evolution of the city of Belém: a trajectory of ambiguities and socio-environmental conflicts Ana Cláudia Duarte Cardoso Raul da Silva Ventura Neto Resumo Como compreensão sobre o conceito de sustentabilidade urbana evolui no Brasil, as práticas de mercado referentes ao uso e ocupação da terra e expansão urbana introduzem em Belém situações insustentáveis para o contexto amazônico. Até a integração econômica e logística da região ao restante do país, predominavam relacionamentos entre população e território que hoje seriam considerados sustentáveis. Contudo na escala metropolitana, a falta de políticas para o atendimento das demandas sociais geraram situações de ambiguidade, em que ecossistemas de várzea foram ocupados, e após décadas tornaram-se espaços de resistência, de trabalhadores e nativos da região, aos novos processos de expansão urbana conduzidos pelo setor imobiliário, pautados pela fragmentação, espraiamento e transformação das orlas dos rios em espaços de consumo. Abstract While the understanding about the meaning of urban sustainability evolves in Brazil, market practices related to land use and occupation, as well as urban expansion, have introduced in the city of Belém unsustainable circumstances from the perspective of the Amazonian context. Before the economic and logistic integration of that region into the country, sustainable relationships between people and territory were prevailing. However, at the metropolitan scale, the lack of policies to meet social demands have generated ambiguous situations, in which flood plain ecosystems have been occupied, and after decades have become spaces of resistance for workers and natives, against the new urban expansion processes led by the real estate market, which are guided by fragmentation, sprawl, and transformation of river margins into consumption spaces. Palavras-chave: sustentabilidade urbana; Belém; Amazônia; Baixadas; setor imobiliário. Keywords: urban sustainability; Belém; Amazon; flood plains; real estate. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto Discussão sobre sustentabilidade: trajetória do debate sobre o meio ambiente urbano A partir do final da década de 60, nos países desenvolvidos, a crescente preocupação da opinião pública acerca das implicações ambientais das atividades humanas sobre o meio ambiente contribuiu para consolidar a discussão a respeito da necessidade de se incorporar elementos de sustentabilidade ao desenvolvimento econômico. Daquele momento em diante, passaram a ser confrontadas duas trajetórias diametralmente opostas e naturalmente conflitantes: o desenvolvimento econômico, entendido como o uso indiscriminado de recursos naturais e a consequente geração de resíduos; e o meio ambiente, sob a perspectiva da existência de recursos naturais limitados, e da capacidade de a natureza absorver, reduzir ou tornar inofensivos os resíduos gerados pelo desenvolvimento (Hardoy et al., 2001, p. 337). As primeiras considerações detalhadas que evidenciam esse conflito emergiram no relatório Limits to Growth, publicado pelo Clube de Roma em 1974. Esse relatório dedicou-se a evidenciar a pressão exercida sobre os recursos naturais decorrente do padrão de crescimento dos países ricos, além de apresentar importantes contribuições sobre a possibilidade de se estabelecer uma condição de estabilidade econômica e ecológica que pudesse ser sustentável a longo prazo. Em grande parte, o material apresentado pelo Clube de Roma em Limits to Growth, em conjunto com outros trabalhos publicados entre os anos de 1970 e 1980, foram incorporados ao relatório Our Common 56 Future publicado em 1987 pela Brundtland Commission, que, apesar de não apresentar ideias originais, consolida a necessidade de o Estado mediar o conflito entre desenvolvimento econômico e meio ambiente por meio da formulação de políticas públicas. A partir desse ponto, a expressão “desenvolvimento sustentável” foi legitimada no âmbito de governos e agências internacionais, forçando-os a partir para sua aplicação prática (Hardoy et al., 2001, p. 343). Apesar de o relatório elaborado pela Brundtland Commission em 1987 já incluir um capítulo dedicado à sustentabilidade urbana, somente em 1996, na conferência de Istambul, o tema efetivamente foi incorporado ao âmago das discussões sobre o desenvolvimento sustentável. Segundo Hardoy, Midlin e Satterthwaite (2001, p. 339), é surpreendente que a temática urbana tenha passado ao largo das discussões sobre sustentabilidade por pelo menos 20 anos, na medida em que: a) é nas cidades que passou a se concentrar grande parte da crescente população mundial; b) é dentro das áreas urbanas que é consumida e desperdiçada a maior parte dos recursos naturais do mundo; c) as políticas definidas para as áreas urbanas são de grande implicação para o consumo de recursos naturais, na medida em que esse consumo está diretamente relacionado à forma dos seus edifícios e mesmo à forma urbana dessas cidades. Especificamente ao que se refere às políticas urbanas, os autores argumentam que essas deveriam ter um papel central dentro das estratégias nacionais de sustentabilidade, destacando a escala local (urbana) como fundamental para o sucesso do conceito de desenvolvimento sustentável na escala global. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém Contudo, como mostram A scelrad relacionadas ao mesmo – habitação, sanea- (1999, p. 79) e Costa (1999, p. 55), tratar de mento básico, controle do uso da terra, trans- sustentabilidade urbana, ou mesmo buscar de- porte coletivo, etc., pulverizando a discussão finições sobre o que representa o conceito de sobre o urbano a partir da década 1980. Além sustentabilidade, apresenta-se como uma ta- disso, a condição urbana tornou-se um ele- refa complexa e, por vezes, contraditória. Em mento difusor de novos movimentos sociais parte, essa dificuldade se deve à banalização que passaram a reivindicar acesso aos meios do termo em razão de seu emprego contínuo de consumo coletivos, em que a dimensão como mote publicitário de grandes empresas ambiental também estava incluída, ainda que multinacionais, ou então por agências inter- de uma forma mais técnica. nacionais que o incluem no bojo de interesses Av a n ç a n d o n e s s a s o b s e r v a ç õ e s , particulares e que pouco tem a ver com a con- Steinberger (2001) aponta a distinção existen- ciliação entre preservação do meio ambiente e te entre as pesquisas que buscam uma defini- objetivos de desenvolvimento; percebe-se que ção mais precisa de sustentabilidade urbana, outro segmento tem se concentrado em usar com algumas partindo das manifestações de o termo focando unicamente na sua dimensão insustentabilidade da cidade e buscando es- ecológica e sem se preocupar em contemplar tratégias para torná-la sustentável, enquanto as necessidades humanas (Hardoy et al., 2001, outras defendem a sustentabilidade da cidade pp. 345-346). Por outro lado, a aplicação do de per se, observando o lado positivo da aglo- conceito à dimensão urbana traz consigo meração para a otimização do uso de recursos. conflitos teóricos de difícil conciliação. Esses Não existiria dessa forma o “ser sustentável”, conflitos tendem a se concentrar em duas mas sim o “estar sustentável” (Steinberger, grandes frentes: uma que envolve a trajetó- 2001, p. 10), o que se coaduna com o defini- ria da análise ambiental e da análise urbana, do nas instâncias internacionais e apontado que se originaram de áreas do conhecimento por Costa (1999, p. 62). Nesse caso, a alter- diferentes, mas convergem na proposta de um nativa apontada por Steinberger (2001, p. 10) desenvolvimento urbano sustentável; e outra é compreender que a expressão “desenvolvi- mais restrita à dimensão prática, em que se mento urbano sustentável” é composta por verifica um distanciamento entre formulações três elementos-chave: desenvolvimento como teóricas e propostas de intervenção (Costa, objetivo macro, finalístico e permanente; sus- 1999, p. 56) tentável como objetivo meio, adjetivo de um Costa (1999, p. 57), ao analisar as tra- estado temporário; e espaço urbano (conteúdo jetórias distintas de construção de conceitos e continente do meio ambiente) como objeto relativos às questões urbana e ambiental, de gestão. A ideia do espaço urbano, como demonstra que o fato de os estudos sobre o objeto de gestão para viabilizar a sustentabili- urbano da década de 1970 terem se consti- dade ambiental, tem suscitado discussões que tuído de forma hermética favoreceu a subs- envolvem questões mais específicas à prática tituição do debate sobre o espaço urbano no de gerir a cidade, incidindo em alguns casos sentido amplo, pela discussão sobre aspectos sobre sua forma urbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 57 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto Acselrad (1999, p. 79) organiza analiti- “crescentemente impregnaria os habitantes camente o discurso da “sustentabilidade urba- das cidades com substâncias nocivas e tóxi- na” em três matrizes discursivas. Numa primei- cas por sua artificialidade” (Acselrad, 1999, ra perspectiva, teríamos o grupo que defende p. 84) e cujo resultado seriam inevitavelmen- uma representação tecno-material da cidade, te implicações sanitárias (emissões líquidas e em que a eficiência energética dos processos gasosas) resultantes de uma sociedade fun- passa a ser o princípio norteador da gestão ur- damentada no consumo desenfreado de mer- bana. Nessa caso, a cidade é entendida como cadorias, especialmente veículo automotores; um sistema termodinâmico aberto, em que a b) políticas de preservação do patrimônio, co- ideia básica para viabilizar a sustentabilidade mo forma de fortalecimento do sentimento de é a de que, para uma mesma oferta de ser- pertencimento dos habitantes a suas cidades, viços, haja uma minimização do consumo de mas também como estratégia de promoção energia fóssil e de outros recursos materiais, de uma imagem que marque a cidade como explorando o máximo os fluxos locais e satis- forma de atrair capitais na competição glo- fazendo critérios de conservação de estoque bal; c) políticas que viabilizem arranjos entre e de redução de volume de rejeitos (Acselrad, a ideia de eficiência energética e qualidade 1999, p. 82). Contudo, a analogia a um sistema de vida, pautando-se em diretrizes nas quais termodinâmico aberto serve também para as- a forma urbana é um fator determinante para sociar o espaço urbano como um locus privile- a sustentabilidade, persegue-se nesse caso a giado de uma produção crescente de entropia, noção de cidade compacta nos moldes de ci- o que eminentemente levaria a um quadro de dades tradicionais europeias, em que a alta insustentabilidade que só poderia ser revertido densidade e o uso misto tendem a apresentar por ações de planejamento urbano, pautando- elevado desempenho energético por reduzir -se em estratégias ou tecnologias poupadoras as distâncias dos trajetos. de espaço, matéria e energia, e voltados para a reciclagem de material. Por último, haveria uma matriz da sustentabilidade urbana que enxergaria a cidade Uma segunda matriz técnica que o au- como espaço de legitimação das políticas ur- tor define é pautada na ideia da cidade co- banas; nesse caso inclui-se prioritariamente mo espaço da “Qualidade de Vida”, na qual na discussão uma dimensão política inerente à planejamento urbano busca intervir na mi- cidade, e essa passa a orientar as estratégias croescala da cidade e na sua forma urbana, de planejamento voltadas para sustentabilida- articulando algumas estratégias específicas, de urbana. Nesse caso, entende-se a insusten- tais como: a) componentes mercantis da exis- tabilidade como resultado de uma incapacida- tência cotidiana e cidadã da população urba- de das políticas urbanas adaptarem a oferta na, pensado por razões de qualidade de vida. de serviços urbanos à quantidade e qualidade Nesse caso, existiria uma imposição mais ra- das demandas sociais, resultando no que o dical das ideias de planejamento e gestão da autor classifica como uma queda de produti- cidade, quando questionam-se algumas ba- vidade política dos investimentos urbanos. O ses técnicas do urbano, visto como algo que papel do planejamento nesse caso, seria o de 58 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém viabilizar mecanismos distributivos de acesso ineficiência de políticas que, a partir da tentati- aos serviços urbanos disponíveis na cidade. va de controlar o uso da terra urbana, poderiam Complementarmente, Hardoy, Midlin e viabilizar um ganho de desempenho no quadro Satterthwaite (2001, p. 371) entendem que de sustentabilidade urbana em nossas cidades. uma governança local pautada por diretrizes Como mostra Villaça (2011), em grande parte de sustentabilidade deva conciliar desenvol- os planos diretores municipais não conseguem vimento com preservação do meio ambiente, dar conta de questões que vão além das leis articulando o atendimento de demandas dos de zoneamento, fortemente influenciadas pelos habitantes de uma dada cidade com padrões interesses do setor imobiliário. Maricato (2011) de consumo de seus habitantes e a produção por sua vez, atribui o fracasso generalizado das das empresas locais geridos para causar o tentativas de controle do uso da terra urbana a menor impacto possível para o meio ambien- uma questão estrutural de formação da socie- te, seja no entorno da cidade seja para outros dade brasileira, que nos dias de hoje converteu ecossistemas que estariam para além da escala a terra urbana em um nó que, caso não seja so- local. Dessa forma, estaria incorporada a noção lucionado a tempo, tende a agravar rapidamen- de que cada cidade também gera impactos nas te o processo de insustentabilidade urbana em escalas regional e global. nossas cidades, tornando-as cada vez mais ci- Em se tratando das cidades brasileiras, dades inviáveis (Maricato, 2011, pp. 185-191). Steinberger (2001, p. 11) cita a constituição de A segunda parte desse texto apresenta uma 1988 como marco da inserção de questões re- leitura da trajetória de Belém, uma grande ci- lacionadas ao meio ambiente urbano, incluídas dade localizada na Amazônia, e das ambigui- principalmente na matriz discursiva que enxer- dades e indefinições associadas à leitura de ga o espaço como legitimação das políticas suas perspectivas de sustentabilidade. urbanas apontadas por Acselrad (1999). Trata-se da inserção no texto da Constituição de Normativas que contemplavam a função social da propriedade, entre os princípios gerais da A Belém Amazônica ordem econômica, junto com a possibilidade instituída de qualquer cidadão fiscalizar bens A inserção de Belém no contexto amazôni- ambientais, históricos e culturais. Em ambos os co está associada a séculos de história e a casos, as diretrizes poderiam fortalecer estra- circunstâncias socioeconômicas, territoriais tégias de planejamento e desenho urbano que e culturais, que merecem ser brevemente buscassem a sustentabilidade urbana, especial- recuperadas como pano de fundo para a dis- mente no combate à especulação imobiliária cussão de processos e transformações ora nas áreas centrais, mas também no controle do em curso na Região Metropolitana de Belém. uso da terra. O papel da natureza na ocupação do territó- Contudo, 25 anos após a promulgação rio amazônico foi marcante. Os grandes rios da Constituição de 88, e quase 11 anos da desempenharam papel logístico importante, aprovação do Estatuto da Cidade, constata-se a tanto para mobilidade de pessoas quanto de Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 59 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto mercadorias. A região historicamente foi con- prática de macrodrenagem de áreas de várzea siderada como de difícil ocupação, devido à que serviu de exemplo para os séculos seguin- barreira que o rio e a floresta constituíam à tes, em uma racionalidade do domínio humano aglomeração urbana (Corrêa, 1987). sobre a natureza (Trindade Jr.,1997). A distribuição de núcleos urbanos adota- Na escala regional, a viabilidade de pro- da no período colonial seguia a acessibilidade visão de serviços e infraestrutura em uma capi- dos grandes rios, priorizando a defesa e con- tal dependia de sua capacidade de aglutinar e quista do território, ainda disputado por por- aglomerar, além de sua importância econômi- tugueses e espanhóis. Belém foi fundada na ca. A exuberância da natureza tornava impen- entrada da bacia Amazônica, o que por séculos sável a ideia de pressão sobre o meio físico e lhe garantiu o controle do litoral e do acesso sistemas ecológicos, e a drenagem de várzeas aos grandes rios continentais. Desde o século para incorporação de áreas outrora alagadas XVII, a economia da região baseou-se na explo- ao traçado da cidade, no século XVIII, expres- ração de produtos através de ciclos extrativis- sava a vitória econômica e técnica do homem tas (temperos, artigos alimentícios) que cons- sobre a natureza amazônica (Cruz, 1973). A tituíram uma rede de pequenas localidades de primeira área drenada em Belém, o alagado apoio à armazenagem dos produtos escoados do Piri, deu lugar à praça D. Pedro II, espaço pelo porto de Belém. Tais características forma- monumental em frente aos palácios dedicados ram uma rede dendrítica, com várias pequenas ao poder político, que nasceu articulada com cidades portuárias distribuídas nas margens outras áreas abertas.1 Tal operação permitiu a dos rios, que dispunham de conexão direta com articulação entre as duas freguesias em forma- a metrópole Belém (Corrêa, 1987). ção da Cidade e da Campina. A administração pombalina do século Nas aglomerações menores, nas comuni- XVIII e a criação da Companhia Geral de Co- dades menos importantes política e economi- mércio do Grão-Pará e Maranhão em 1755, camente, houve uma miscigenação entre índios deslancharam uma segunda fase na estrutura- e portugueses que gerou a cultura ribeirinha ção desse território, com o objetivo de integrar extrativista e contava com sua produção pau- a região aos novos paradigmas comerciais in- tada pelo paradigma da abundância, uma vez ternacionais, e de fazer a transição do capita- que sua mão de obra era familiar e negava o lismo mercantil para o capitalismo industrial sentido na acumulação baseada na explora- (Vicentini, 2004). Essa fase de dinamismo ge- ção exaustiva dos recursos humanos e naturais rou a diferenciação de funções urbanas, segui- disponíveis. O ribeirinho não podia sacrificar a da pela ampliação de funções comerciais e de própria família para ampliar a produção, nem serviços, que confirmaram Belém como capital pensava em ampliar a exploração da natureza econômica da região e ponto de controle do além do necessário para sua vivência e susten- comércio e do monopólio dessa Companhia na to no território (Costa, 2009). região (Corrêa, 1987). Essa condição garantiu A relação com a natureza assegura para a Belém melhorias na sua infraestrutura física, as cidades e vilas ribeirinhas da região o que expansão de sua malha viária e início de uma Jacobs (2001) classifica como “estoque inicial 60 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém de energia” (bônus da água, terra, madeira e capitais, resultantes de um complexo sistema alimento fartos), elemento primordial para o de crédito, o sistema de aviamento, através do surgimento de uma nucleação urbana em um qual o Barão da Borracha viabilizava moradia, determinado ponto do espaço. Esse estoque alimento e transporte da produção do serin- inicial é o que permite, segundo a autora, que gueiro, que produzia o látex na floresta, para se estabeleçam as primeiras trocas entre co- a cidade. munidades ou núcleos urbanos vizinhos, e in- Se, por um lado, o Aviamento pode ser fluenciaria também a configuração dessas co- entendido como um sistema econômico pró- munidades. Construir palafitas de madeira em prio da região, redesenhado a partir do con- pequenas comunidades de famílias que viviam tato da sociedade amazônica com um sistema da pesca e da extração de produtos da floresta, altamente monetizado, como o capitalismo e usavam a água dos rios para abastecimen- industrial europeu, por outro, desempenhava to, transporte, etc., foi estratégia exitosa para o papel de elemento sustentador e articulador ocupação das várzeas e estabelecimento de de toda a estrutura social da região, servindo vilas e comunidades ribeirinhas (Wagley, 1957). como elo entre duas extremidades representa- Por outro lado, ao final do século XVIII, das pelo “macro-núcleo” urbano e o “micro- cidade e vilas ribeirinhas tinham a importância -núcleo extrativista” (Santos, 1980). Entre- proporcional à largura dos rios onde as mes- tanto, era um dos mais severos mecanismo mas se localizavam, crescendo segundo um pa- de concentração de riqueza a médio prazo já drão monocêntrico, organizadas ao longo das vivenciados no país, ao possibilitar a drena- margens dos rios, com limitada penetração no gem da riqueza produzida no interior para as território. A feira era o principal equipamento duas principais capitais da região amazônica, à urbano, localizado na margem do rio, e extra- época Belém e Manaus (Santos, 1980, p. 155). polava sua condição técnica, atuando também Do ponto de vista ambiental, o sistema não como espaço articulador dos ribeirinhos da impactava a floresta, mesmo sendo extrema- área de influência do núcleo urbano em ques- mente perverso do ponto de vista social, devi- tão. Ainda hoje a matriz, a rua comercial, o tra- do à forte hegemonia das oligarquias regionais piche e a feira em frente ao rio marcam a pai- (Sartre e Taravella, 2009). sagem urbana tradicional da região (Cardoso e Lima, 2006). Por outro lado, as capitais da região, e especialmente Belém, receberam um forte re- Ao fim da Companhia Geral de Comércio direcionamento de excedentes do circuito pro- do Grão Pará e Maranhão houve um período dutivo pelas elites econômicas da exploração de estagnação econômica que só foi superado gomífera para a aquisição de imóveis urbanos, com a instalação do ciclo da borracha (Corrêa, o que, ao coincidir com os desdobramentos da 1987). Houve a divisão do estado do Grão Pará aplicação da Lei de Terras de 1850 na cidade, e Maranhão, em Pará, com capital em Belém, viabilizou as primeiras formas de produção e Amazonas, e criação de uma nova capital, rentista na cidade e a configuração do circuito Manaus. A economia da borracha gerou novos imobiliário local. Em grande parte, esse movi- povoamentos e concentrou excedentes nas mento se fortalece pela necessidade de lastrear Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 61 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto os empréstimos do Sistema de Aviamento em grande parte dessas áreas desde o século XVIII ativos fixos, principalmente imóveis e navios (Mourão, 1987), arrendam parte dessas terras (Weinstein, 1993). para a produção agropastoril por meio de pe- A constituição de um patrimônio imobi- quenas propriedades conhecidas localmente liário na cidade servia de lastro para as ope- como “vacarias”; nelas produziam-se leite, hor- rações financeiras que viabilizavam o sistema taliças, mas ocorria a criação de pequenos ani- de aviamento que, somados à diligência do mais para abastecimento da população. Na es- governo local e aos desdobramentos da apli- cala regional, o abastecimento da capital com cação da Lei de Terras de 1850 na cidade, per- gêneros alimentícios de primeira necessidade mitiram a configuração do circuito imobiliário era garantido pelos municípios localizados ao local (Ventura Neto, 2012). Paralelamente a longo da estrada de Ferro Belém-Bragança esse processo, era praticada uma política de (EFB), que ligava a capital ao litoral entre os concessões de serviços públicos de infraestru- anos de 1908 até 1957 (Andrade, 2010). Pro- tura urbana para grupos da iniciativa privada, dutos manufaturados também passaram a ser ligados politicamente à intendência municipal, produzidos localmente, num processo de subs- e em parceria com sócios estrangeiros (Sarges, tituição de importações iniciado após a quebra 2004), viabilizando a implantação de um plano da economia gomífera em 1912, devido ao de alinhamento pensado para a Primeira Légua isolamento da região e inviabilizado a partir da 2 patrimonial de Belém que permitiu a estrutu- integração rodoviária do país (Santos, 1980). ração global da primeira légua patrimonial da Nesse período, entre o declínio da bor- cidade (Ventura Neto, 2012). Se, por um lado, racha e os anos 1960, a cidade de Belém te- essa sistemática atendia interesses específicos ve seu crescimento populacional estagnado, da elite urbana de Belém, beneficiária do Siste- e outras cidades ribeirinhas apoiaram-se em ma de Aviamento, por outro permitiu que uma ciclos próprios, como o da juta em Santarém, quadrícula de ruas (Figura 1) fosse implantada ou o do caucho e da castanha-do-pará em Ma- por toda a porção de terra firme da cidade que, rabá. Contudo, apesar da crise econômica da mesmo tendo sido ocupada completamente só região, Belém manteve sua proeminência na em 1960, favoreceu a distribuição de usos e rede urbana da região, ainda em função da sua tipologias segundo a hierarquia viária, e a for- posição estratégica de último ponto de conta- mação de grandes quintais nos miolos de qua- to entre os produtos extraídos da floresta e o dra, a arborização de ruas, a criação de praças mercado externo, mas também em função da e parques urbanos, sob inspiração do plano de estrutura portuária construído no período de expansão de Barcelona (Duarte, 1997). auge da exploração gomífera. Além disso, a Nessa expansão, as áreas alagadas da cidade permanecia como o locus preferencial cidade, típicas várzeas amazônicas, que para da elite regional em função da infraestrutura serem ocupadas requeriam grande volume de urbana e de serviços especializados (bancos, recursos para macrodrenagens, foram evitadas teatros, cinemas, energia elétrica, transporte por décadas. Em função disso, outros grupos da urbano, etc.), também heranças deixadas pelo elite urbana local, que eram proprietárias de ciclo econômico anterior. 62 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém Figura 1 – Plano de alinhamento executado na Primeira Légua patrimonial da cidade, contornando áreas baixas e alagáveis Fonte: Muniz (1904). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 63 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto Pode-se dizer que até a década de 1950, penetração natural ao território amazônico, de- quando ocorreram as alterações nas estruturas terminava que as distâncias entre as comunida- produtivas e mercantis da periferia nacional des obedecessem à dinâmica de deslocamento (Cano, 2008), Belém estava mais próxima das a remo do ribeirinho pelos rios da região, o que práticas associadas atualmente à sustentabili- contribuiu para a formação de muitos peque- dade urbana, tanto pela sua relação com a re- nos núcleos (vilas e comunidades) separados gião, quanto pela forma urbana resultante do pela distância determinada pela exaustão física processo descrito. As considerações de Rees e do ribeirinho e de sua família durante a luz do Wackernagel (1996) sobre sustentabilidade dia. As centenas de comunidades existentes ao preconizam que uma sociedade só se torna efe- longo dos rios Tocantins e Tapajós ainda teste- tivamente sustentável ao adotar a diretriz de munham essa formação (Pinho, 2012; UFPA/ que cada geração deveria herdar uma quanti- FUNPEA/ELN, 2006). dade adequada de acessos a recursos naturais Vilas e cidades tinham sua configuração per capita, nunca inferior ao que foi deixada por gerações anteriores. Nesse aspecto, o uso do rio como modal principal para o transporte, tanto de mercadorias quanto da população, ao mesmo tempo que viabilizava uma via definida ao longo do rio, com as atividades comerciais, produtivas, simbólicas e institucionais localizadas e penetração restrita no continente a poucas ruas habitacionais (Figura 2) (Cardoso e Lima, 2006). Figura 2 – Imagens de cidades ribeirinhas tradicionais que utilizam o rio com modal principal para o transporte de pessoas e mercadorias Fonte: foto de Luciano Thormazelli, em 2006 (reprodução autorizada). 64 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém Fonte: foto DAU/UFPA, em 2006 (reprodução autorizada). Na escala regional, a penetração no Em 2012, autoridades locais estão lon- território foi viabilizada com a implantação da ge de estabelecer parâmetros máximos de malha ferroviária do Estado, que introduziu consumo de recursos aos habitantes urbanos, um novo paradigma e um novo referencial de ou de reduzir o desperdício de recursos natu- consumo de energia. A existência das “Vaca- rais e consequentemente as human footprints. rias” nas baixadas, de indústrias locais e das Essas políticas são essenciais, na medida em colônias agrícolas nos arredores de Belém, que a população das áreas industrializadas tem comunham um cenário inspirador para quem apresentado níveis de consumo de recursos na- busca sustentabilidade nas cidades em tem- turais muito além do disponível na região em pos atuais. Como defendido por Hardoy et al. que suas cidades estão inseridas, drenando os (2001, p. 365), o estímulo à produção local recursos de países pobres e impondo seu modo para o atendimento de demandas da popula- de vida e padrão de consumo a populações que ção urbana, o estreitamento das relações entre antes conviviam mais harmonicamente com o área rural e área urbana, e também a limitação meio ambiente, ocasionando mudanças rele- ao uso de recursos naturais disponibilizados vantes à escala global. nas redondezas da cidade têm sido apontados Contudo, tampouco o isolamento é op- como alternativas para assegurar um desen- ção desejável, pois de nada adianta o equilíbrio volvimento urbano sustentável. do balanço energético sem atendimento das Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 65 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto demandas sociais. O sistema ribeirinho aten- a integração do mercado nacional depois da dia o abastecimento, transporte, moradia, mas execução da malha rodoviária incluída no bojo não tinha como obter educação e saúde; isso do Plano de Metas do governo JK. Os produtos não era notado enquanto as políticas sociais industrializados que entraram no mercado lo- não estavam estruturadas, mas na medida em cal, provenientes do parque industrial do cen- que as cidades se tornaram os únicos locais tro-sul do país, inviabilizaram a produção de de acesso a esses benefícios, no decorrer do manufatureira local e o abastecimento através século XX, o mundo rural tornou-se progressi- das vacarias (Trindade Jr., 1997). Em paralelo, vamente lugar do atraso, e exportador da ru- a região assistiu à desestruturação de parte ralidade atrasada para as periferias urbanas de sua estrutura produtiva regional na época (Borzacchiello, 2008). de declínio econômico, o que contribui para um forte processo de migração rural-urbana da população rural (Cano, 2011), processo in- A Belém contemporânea tensificado com os projetos federais. Houve adensamento da Primeira Légua patrimonial A integração econômica da Amazônia ao resto de Belém, com ocupação dos miolos de quadra do país, com foco na exploração de matéria- por vilas de casas, e ocupação das baixadas por -prima e produção de energia, foi pautada por assentamentos informais (Cal, 1987), que após uma visão desenvolvimentista e de clara explo- 30 anos de aterro progressivo pela própria po- ração da natureza por processos técnico-quí- pulação foram incorporados à cidade (Mourão, micos, e impôs uma racionalidade concorrente 1987) (Figura 3A). àquela que já orientava a produção de cidades As referências para a organização do es- na região (Bacelar, 2000). As rodovias se im- paço urbano de Belém tornaram-se cada vez puseram como nova forma de relacionamento mais externas à região, fortalecendo a percep- entre cidades, na escala regional, e se constituí- ção de que rios e várzeas eram obstáculos à ram em eixos de expansão urbana, na escala expansão das cidades, que requeriam grandes local, instituindo uma nova dinâmica que tende volumes de recursos devido a pujança da natu- a se distanciar do paradigma da floresta e se reza na região. Os planos oficiais para a recupe- aproximar da racionalidade industrial, também ração das áreas de baixada da cidade (40% associada à ocupação de terra firme (Cardoso, da Primeira Légua patrimonial) estabeleceram, 2012; Homma, 1993). num primeiro momento, que a viabilidade da A relação prioritária entre as capitais obra dependeria da possibilidade de essas áreas do Norte passou, do ponto de vista político, a serem incorporadas ao mercado imobiliá rio ser mediada por Brasília, e do ponto de vista (Sudam, 1976). Cabe destacar, que o que o Esta- econômico pelas capitais da Região Sudeste do classificava como "recuperação da baixada" (IPEA; IBGE; Unicamp, 2002). Os processos tinha uma conotação de limpeza social, eviden- de industrialização iniciados em Belém no iní- ciado no relatório produzido para subsidiar as cio do século XX e posteriormente, durante a intervenções de macrodrenagem naquele mo- Segunda Guerra Mundial, se modificaram com mento; de caráter fortemente sanitarista, sem 66 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém incorporar diretrizes de sustentabilidade urbana de aterro e adensamento, que permitiu que para aquelas áreas (Figuras 3B e 3C). uma população pobre se estabelecesse próxi- Coincidentemente, o caso da ocupação ma ao centro da cidade, mantivesse o contato das áreas de várzea é muito interessante e ins- como rio e gradativamente integrasse seu local pirador do ponto de vista da sustentabilidade. de moradia à cidade, em uma combinação de Essa ocupação urbana pode ser encarada co- exploração do meio natural, sacrifício da saúde mo uma estratégia de subsistência da popula- das famílias, e ação política clientelista (Cardo- ção tradicional da região na sua adaptação às so, 2007). Curiosamente o que se iniciou como áreas urbanas. A ocupação da orla da Baía do uma agressão ambiental, tornou-se efetiva so- Guajará evoluiu de usos regionais, para o porto lução do ponto de vista social. da cidade, e os primeiros foram transferidos pa- Concomitantemente à consolidação da ra a orla do Guamá, onde os usos ribeirinhos tí- ocupação das várzeas, ocorria a produção de picos foram acompanhados pela ocupação das conjuntos habitacionais pelo BNH muito afas- baixadas com moradias em um processo lento tadas do centro, como parte da estruturação Figura 3 – Fotografias em diversos momentos mostrando as mudanças em uma das primeiras baixadas saneadas em Belém 3A – Tipologia tradicional das baixadas existentes nos bairros antes das obras 3B – Início das obras de retificação do canal e construção da Avenida Visconde de Souza Franco 3C – Conclusão das obras e inauguração da Avenida Visconde de Souza Franco em 1972 3D – Fotografia panorâmica do ano de 2010 evidenciando a verticalização na área Fonte: http://fauufpa.wordpress.com/2012/05/02/doca-de-souza-franco-decada-de-1970/; Ventura Neto (2012). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 67 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto Figura 4 – Remanejamento da população de baixada na área central para conjunto habitacional localizado na periferia da cidade à época, distando 9 quilômetros em relação à moradia original Fonte: mapa feito a partir de Shapes de GIS cedidos pela Celpa e pela Cohab. 68 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém da ocupação da segunda légua patrimonial de serviços e equipamentos urbanos) (Acselrad, Belém e do que viria a ser posteriormente a ci- 1999; Hardoy et al., 2001) dade de Ananindeua. Naquela oportunidade a Ainda que o espaço produzido informal- produção de habitação para as classes popu- mente tenha limitações e precariedades (ruas lares esteve articulada ao remanejamento exi- estreitas, carência de infraestrutura, adensa- gido pela macrodrenagem da bacia das Armas, mento excessivo), o mesmo garante aos seus realizada nos anos 1960 em área localizada moradores efetiva mobilidade a partir de trans- nas proximidades do porto de Belém, entre os porte público, a pé ou de bicicleta; diversida- bairros de Reduto, Nazaré e Umarizal, deslo- de de usos, boa conexão com a cidade formal cando a população por 9 quilômetros em rela- e oportunidades de geração de renda, todos ção à moradia original (Figura 4). Essa ação de aspectos positivos se considerarmos que o es- drenagem não só promoveu uma intensa valo- praiamento e o consumo energético sejam fa- rização imobiliária na região (Figura 3D), que tores de insustentabilidade. O fato de não ter tanto liberou terra, como saneou socialmente havido planejamento prévio foi compensado a área, incorporando-a completamente para pela natureza gradual da ocupação e das me- o setor imobiliário de mercado (Ventura Neto; lhorias realizadas, o que permitiu que sua po- Cardoso, 2011). pulação original pudesse permanecer na área A ocupação das várzeas garantiu o direi- (Cardoso, 2007). to à cidade às populações oriundas do interior Bastante diversa desse processo foi a do estado, com forte relação econômica, téc- ocupação da segunda légua patrimonial de nica e cultural com as águas. Se resgatarmos Belém, que não contou com a implantação de a discussão sobre sustentabilidade ampliada um plano de alinhamento a exemplo do que exposta por Steinberger (2001) verificamos aconteceu com a primeira légua, nem tampou- que com apoio de planejamento e políticas co com o controle urbanístico da ocupação das urbanas corretamente dirigidas seria possível terras pelo setor público. A segunda légua de corrigir carências e estabalecer um ponto de Belém teve suas glebas ocupadas correspon- equilíbrio que destacasse as quatro dimensões dendo ao limite das fazendas que a compu- desse conceito mencionadas pela autora (éti- nham (Ventura Neto, 2012), estruturadas pelo ca, temporal, social e prática); Intervenções percurso de um ramal da antiga estrada de que articulem aspectos de engenharia e so- ferro que conectava a cidade à vila de Icoaraci. cioambientais, que se proponham resolver as Esse ramal de ferrovia foi substituído por uma carências de saneamento e os problemas de rodovia (Rod. Augusto Montenegro), que teve saúde pública, tratar cursos d’água de forma a maior parte de seus lotes lindeiros reserva- compatível com o ecossistema de várzea, po- da e a construção de muitos conjuntos habita- dem explorar a resiliência das configurações cionais por trás desses lotes ou transversais à criadas espontaneamente, tanto do ponto de rodovia, até os anos 1980 sob financiamento vista do balanço energético (proximidade) do BNH.3 As terras lindeiras reservadas eram quanto da capacidade de atender as deman- constituídas por terrenos muito grandes (100 das da população (moradia, trabalho e renda, x 500 m), que tiveram ocupação iniciada a Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 69 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto partir dos anos 2000 por condomínios fechados projeto Ver-o-Rio. Essas ações foram seguidas horizontais de médio e alto padrão e grandes por uma onda de investimentos do setor imobi- estabelecimentos varejistas. No final dessa dé- liário em torres de apartamento voltadas para cada houve uma mudança de estratégia, com a baía do Guajará no bairro do Umarizal. Esse a associação de novos equipamentos aos con- foi o bairro que sofreu mais intensa transfor- domínios, como os grandes shopping centers, mação desde a realização da já citada macro- com o intuito de constituir novas centralidades, drenagem do igarapé das Almas. A elevada que resultaram na formação de uma nova fren- concentração de torres de alto padrão viabili- te de expansão imobiliária pelo setor privado zou a retirada de usos produtivos antigos na que se autointitulou Nova Belém, e assimilação orla do bairro, tais como o moinho de trigo, que de incorporadoras nacionais de capital aberto. após ser demolido é substituído por quatro tor- Nesse caso, a inspiração clara é a do subúrbio res de apartamentos e escritórios localizados norte-americano, que apesar de resultar de na margem da baía do Guajará (Ventura Neto e uma produção formal conta com claras limita- Cardoso, 2012). ções de desenho urbano, prevalecendo a frag- Um exemplo de intervenção recente do mentação, o espraiamento, a completa depen- setor público nessa linha de ação é o aterro e dência do transporte individual, a segregação criação de uma via de contorno na orla do rio socioespacial, além de existir carência de verde Guamá, em área anteriormente ocupada por e de áreas públicas. palafitas. Observa-se que a articulação desse A mais recente manifestação desse pro- tipo de intervenção a novas ações de macro- cesso foi a adoção da paisagem como um ati- drenagem vem alterando significativamente o vo para a valorização dos empreendimentos. status das áreas de orla e de antiga várzea, nos Essa linha teve início com a discussão sobre a bairros em que a ocupação informal seguiu o abertura de “janelas para o rio” no final dos plano de alinhamento original da cidade; nes- anos 1990, que negava a ocupação ribeirinha ses casos há maior potencial de retorno do in- tradicional como legítima ou adequada pa- vestimento imobiliário na produção de novas ra as orlas da cidade, sob clara influência das tipologias, e tendência de gentrificação. Outra experiências inglesas (Docklands em Londres), subvertente da ocupação de orlas ocorre em norte-americana (Boston e Baltimore, nos outras áreas da RMB, afastadas da área cen- EUA), e da escola do planejamento estratégico tral onde existem grandes extensões de terras de Barcelona (Ximenes, 2010). vegetadas. Essas iniciativas incluem condomí- Essa linha de ação foi apoiada por uma nios de redes internacionais e de grupos como série de intervenções do poder público nas o Alphaville, que estão privatizando grandes áreas de orla, de ocupação formal da cidade, faixas de orla e cobertura vegetal na ilha de tais como a região do Forte do Castelo, ou a Caratateua (zona rural de Belém), sob o discur- área portuária que deu origem ao complexo tu- so da qualidade ambiental. A distância desses rístico da Estação das Docas (Figura 5A), com empreendimentos do centro metropolitano é um caráter mais turístico, e por obras mais pon- tão significativa que sua viabilidade dependerá tuais de abertura de espaços públicos como o da constituição de novos subcentros, internos 70 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém Figura 5 5A; 5B – Intervenções urbanas (waterfronts) realizadas pelo Governo do Estado (Estação das Docas) e Prefeitura Municipal de Belém (Portal da Amazônia) na orla fluvial da cidade 5C; 5D – Empreendimentos de alto padrão que usam como mote publicitário a “vista para a Baía do Guajará” 5D; 5E – Empreendimentos de alto padrão localizados fora da área central que estão privatizando trechos da orla fluvial da área de expansão da Região Metropolitana de Belém Fonte: http://www.estacaodasdocas.com.br/; http://www.flickr.com/photos/m_hermes/7567158512/; Mello (2009); Ximenes (2010); http://belem.olx.com.br/alphaville-belem-iid-132263939; http://miritigolfemarina.com.br/marina.php. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 71 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto aos empreendimentos ou em áreas de grande de terra firme. A expansão urbana associada centralidade metropolitana, e de arranjos mul- a processos de conversão de área rural não timodais de acessibilidade. Destaque-se que a planejados, à dependência do acesso rodoviá- combinação de orla, desenho urbano de alto rio e da ação do setor imobiliário de mercado, padrão, atividades de lazer e controle privado produz assentamentos pouco sustentáveis seja do solo resulta em um novo relacionamento pelo ponto de vista do atendimento da popula- com as águas completamente diferente daque- ção, seja pelo consumo energético necessário le que caracterizou Belém como uma cidade decorrente da distância entre moradia e local ribeirinha no passado. A Figura 5 apresenta de trabalho, e equipamentos urbanos em geral. algumas dessas intervenções, junto com os em- A produção de habitação voltada para o per- preendimentos imobiliários que vem se apro- fil de moradores semelhante ao das baixadas priando da orla fluvial da cidade. atualmente acontece nos municípios periféricos à Região Metropolitana de Belém, determinada pelo preço da terra, e intensa fragmentação da Conclusão configuração urbana. A cidade pode ser solução, ou lugar onde os fatores positivos da aglomeração sejam Em que pese a experiência de séculos de uma potencializados, com impacto positivo sobre a relação equilibrada com o bioma amazônico, preservação do bioma, ou podem se tornar es- observamos a forte concorrência das estraté- paços de conflito, reproduzindo racionalidades gias de uso e ocupação do solo impostas pelo econômicas importadas que usam a natureza capital imobiliário, diante da ambiguidade da como slogan de propaganda e se superpõem e atuação do setor público no que se refere à im- agravam os conflitos já em curso há décadas plementação de políticas urbanas comprometi- na cidade e na região. O debate sobre a ocupa- das com a sustentabilidade. Ao mesmo tempo ção das margens dos rios e a transformação em que Belém é apresentada como a capital dos ecossistemas é ideologizado por relações brasileira com maior extensão de assentamen- de poder, o que dificulta a avaliação rigorosa tos precários (Marques, 2007), que em grande de quais sejam os melhores exemplos a seguir. medida correspondem às áreas de baixada que Pouco se conhece a respeito da relação entre foram ocupadas informalmente, e que guar- homem e natureza praticada há séculos na dam uma articulação de origem com a tradi- região, e identidade amazônica é difusa dian- ção ribeirinha, tais assentamentos apresentam te da ambiguidade da sociedade e do poder grande potencial de atendimento de diretrizes público local sobre qual trajetória abraçar. Os relacionadas com as diversas interpretações do consensos são estabelecidos a partir do uso de conceito de sustentabilidade urbana. marketing, sem considerar as demandas e ne- A inação do setor público nessas áreas, cessidades dos habitantes em desvantagem. justificada pelo fato de elas serem irregulares Por outro lado, as pressões sobre o meio do ponto de vista fundiário, favoreceu a disse- físico agora tendem a ser controladas por minação do paradigma exógeno de ocupação grupos externos à região e voltadas para o 72 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 A evolução urbana de Belém segmento de alta renda, e uma discussão a res- federais, que vem sendo agravados pelas estra- peito das assimetrias entre recursos disponíveis tégias do setor imobiliário e do posicionamen- à população das diferentes áreas da cidade es- to do setor público, que não valoriza o plane- tá por acontecer. O reordenamento das redes jamento, a democratização da informação, e de infraestrutura e a distribuição dos serviços a politização da discussão ambiental (para a e equipamentos são um passivo a ser enfren- região e para a cidade) na Amazônia. Por fim, tado, desde a época dos fluxos migratórios dos o interesse genuíno pelo debate da sustentabi- anos 1980, decorrentes dos grandes projetos lidade ainda é algo distante. Ana Cláudia Duarte Cardoso Graduada em Arquitetura e Urbanismo, mestre em Planejamento Urbano e doutora em Arquitetura. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e Pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale. Belém/PA, Brasil. [email protected] Raul da Silva Ventura Neto Graduado em Arquitetura e Urbanismo, mestre em Arquitetura e Urbanismo, doutorando do Programa de Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp. Campinas/SP, Brasil. [email protected] Notas (1) Tais como a doca do Ver-o-Peso e a Praça Frei Caetano Brandão, onde estão a Catedral Metropolitana, a igreja jesuí ca de Santo Alexandre, o atual museu de arte sacra, e o Forte do Castelo, marco de fundação da cidade. (2) Define-se como Primeira Légua patrimonial de Belém, a porção de uma légua de terras doada pela Coroa Portuguesa como fundiário patrimônio da cidade a contar do marco de fundação da cidade. (3) Os inters cios desses conjuntos foram ocupados por assentamentos informais a par r dos anos 1990, com condições de conexão com a cidade muito piores do que as ocupações das baixadas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 55-75, jan/jun 2013 73 Ana Cláudia Duarte Cardoso e Raul da Silva Ventura Neto Referências ANDRADE, F. H. P. de. (2010). De São Braz ao Jardim Público - 1887 - 1931: um ramal da Estrada de Ferro de Bragança em Belém do Pará. Tese de Doutorado. São Paulo, Pon cia Universidade Católica de São Paulo. ASCELRAD, H. (1999). 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A Foucauldian approach to the cases of France and Portugal Isabel Pato Margarida Pereira Resumo O artigo resulta de uma reflexão sobre as estatísticas oficiais produzidas para o conhecimento da segregação territorial, desenvolvidas nas últimas décadas em França e Portugal. Parte-se da ideia de que as preocupações de base e as metodologias adotadas na produção do conhecimento estatístico traduzem as mudanças epistemológicas e políticas que caraterizam o planeamento e a intervenção urbana. Primeiro discute-se o conceito de segregação territorial, e, em seguida, analisa-se, numa abordagem foucaultiana, as relações entre o conhecimento estatístico e o exercício de poder. As estatísticas são olhadas como uma tecnologia de governabilidade ao serviço da governação urbana dirigida a territórios urbanos segregados, que se revela empenhada no controle e visibilidade como estratégia política. Abstract This article is the result of a reflection on the official statistics produced for a better understanding of the territorial segregation that has developed in the last decades in France and Portugal. The point of departure is the idea that the main concerns and the methods adopted in the construction of the statistical knowledge reflect the epistemological and political changes that characterize urban intervention and planning. Firstly, the concept of territorial segregation is discussed, and then, using a Foucauldian approach, the relations between statistical knowledge and the exercise of power are analyzed. Statistics are perceived as a technology of governability in the service of urban governance, focusing on segregated urban territories. This technology is deeply committed to control and public visibility as political strategies. Palavras-chave: segregação territorial; bairro social; estatística; governação urbana. Keywords: territorial segregation; council states; statistics; urban governance. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Isabel Pato e Margarida Pereira de segregação que revelam os diagnósticos Introdução estatísticos efetuados em cada um desses países? A segunda prende-se com a relação entre No momento em que nos países da União conhecimento estatístico, como um domínio Europeia se formulam as escolhas na afeta- do conhecimento político, cuja produção é ção dos fundos financeiros comunitários para atravessada por processos de governabilida- 2014-2020 e que as orientações da Comissão de que arquitetam a governação. Nessa linha Europeia reforçam a necessidade de direcionar questiona-se: o que revela a evolução do co- o investimento para a inclusão social e o com- nhecimento estatístico produzido em cada um bate à pobreza (CE, 2011), ganha importância dos países sobre as formas de governação dos a avaliação dos resultados da intervenção pú- territórios segregados? blica dirigida às famílias e aos cidadãos mais O artigo está organizado em duas par- desfavorecidos do ponto de vista econômico e, tes. A primeira é dedicada à relevância da pro- por isso, abrangidos no plano do direito pela dução estatística na governação e às exigên- proteção social em matéria de habitação. cias que as transformações do funcionamento Essa avaliação é tanto mais pertinente do Estado (territorializado) colocam a essa quanto mais cresce o interesse dos Estados forma de conhecimento. Procura-se explicitar pelas políticas territorializadas como resposta em que medida as estatísticas podem reve- à ineficácia dos sistemas clássicos de proteção lar a contemporaneidade do diagnóstico de social das populações mais pobres, relacionada Foucault (2007) quando examina a evolução com a retração do Estado social imposta pelas do regime de governação centrado na disci- 1 políticas do défice (Delcourt, 2008). plina, característico dos séculos XVII e XVIII, Essa reflexão parte da ideia de que as para o regime de governação que visa a se- preocupações de base e as metodologias ado- gurança, centrado nas técnicas de vigilância, tadas na produção do conhecimento estatístico de diagnóstico e de transformação dos indi- para a determinação do “estado de segrega- víduos incluídos numa série: a “população”. ção” traduzem as mudanças epistemológicas No essencial, trata-se, portanto, de identifi- e políticas que caraterizam o planeamento e a car no presente os “controlos reguladores” intervenção urbana. (Foucault, 1976, in Cunha, 2009) próprios da Tendo como casos de estudo França e governação das áreas urbanas segregadas em Portugal, o artigo procura responder a duas cada país. A segunda parte integra uma aná- questões de partida. A primeira parte da pre- lise da evolução das formulações do conceito missa de que a classificação estatística é uma de segregação, colocando a ênfase nos terri- forma de definição do objeto a ser governa- tórios marcados por processos de segregação do, dentro de um campo próprio de poder e do tipo filtering down. O intuito é demonstrar política. Nesse sentido, se a designação pro- as relações entre a produção do conhecimento duz a categoria (categorias de pessoas, ca- estatístico e as preocupações que marcam a tegorias de territórios), quais as concepções agenda política em cada país. 78 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana Por fim, interpelam-se aquelas formu- da inovação (Innerarity, 2002). Dessa forma, o lações e os sentidos implícitos aos resultados aparelho de Estado orienta-se para os “servi- da produção estatística adotados em França e ços de proximidade”, para a particularização, e Portugal para a identificação e caraterização chama a sociedade civil a ser parte ativa da sua dos espaços segregados. Examina-se, em con- própria governação. A consubstanciação das creto, a evolução dos indicadores considerados políticas sociais inspiradas nessas orientações e divulgados, incluindo sua referenciação es- implica uma transformação na forma de con- pacial, seguindo a hipótese de que os indica- dução da economia política, global e situada. dores selecionados para o “retrato da segrega- O processo de governação nas políticas ção” servem e expressam uma racionalidade territorializadas desafia o aparelho estatal política específica na qual ganha importância a encontrar formas de relação entre os sub- o controlo das populações e a visibilidade da sistemas parciais da governação. Segundo própria intervenção. Innerarity (2002), para realizar esta transição o Estado deve ser capaz de empreender, pelo menos, três mudanças nos processos de gover- As estatísticas como tecnologia de governabilidade nação: passar de uma ordem hierárquica para uma ordem heterárquica; promover a conexão comunicativa ao invés da autoridade direta; e definir e implementar a intervenção a partir de A política contemporânea confronta-se com uma composição policêntrica em alternativa a uma complexidade de processos, problemas e uma posição central. projetos que impõem transformações no fun- A territorialização da intervenção não cionamento das redes e atores da intervenção significa o declínio da política central de Es- territorializada. As políticas econômicas, sociais tado, mas o fim de uma forma específica de e de segurança elaboram-se por referência política que se vê substituída por outra. Os a territórios específicos na natureza e escala interesses dos Estados não desaparecem nes- 2 (os bairros problemáticos, as freguesias, as se multiplicar de níveis de territorialidade, mas áreas urbanas para a reconversão urbanística, sofrem uma ampla modificação. As políticas os bairros de realojamento…). A intervenção territorializadas exigem um programa político territorializada apela à responsabilização das novo, no qual o exercício do princípio da “uni- entidades estatais e parceiros de trabalho na dade política” na governação passa a ser cen- partilha alargada de estratégias e recursos de tral e segue fundamentalmente duas vias: uma, intervenção. É no território, no local, que os fazendo uso das tecnologias de governabili- problemas terão de ser resolvidos, e é próximo dade que apelam à participação de múltiplos das populações que se deve atuar, de modo intervenientes que se introduzem na política concertado, articulado e preventivo, preconi- local para servir formas especificamente locais zando-se, assim, os princípios da subsidiarieda- de gestão.3 É, no fundo, a expressão da lógica de, da transversalidade e complementaridade, heterárquia e da policentralidade que carac- da integração e da multidimensionalidade e teriza a função política contemporânea num Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 79 Isabel Pato e Margarida Pereira crescente apelo à racionalização das opções e especialistas do “social” pretenderam modelar práticas. A outra via para o exercício do princí- o comportamento fazendo uso das normas es- pio da “unidade política” na governação mobi- tatísticas e da intervenção, que trabalhavam ao liza a coordenação e a supervisão estatal que, nível societal. sem seguir um sentido descendente clássico, Com uma mesma linguagem (aparente- tende a acentuar a centralização e a normali- mente) neutra e conhecimento especializado, zação, tirando partido de processos subtis “da a estatística serve a avaliação da implemen- técnica política” (Innerarity, 2002). tação política pondo em prática as políticas Na genealogia do estado moderno auditáveis. A retração dos recursos dirigidos às Foucault (1995, 2007) detém-se sobre o apare- políticas sociais e urbanas, a generalização de cimento, na viragem do século XVI para o sé- formatos rígidos de contratualização público- culo XVII, de uma descrição de conhecimento -privado entre Estado e entidades e entre Es- requerido pelos que governam completamente tado e cidadão, ou ainda a tendência para o nova. O soberano deve conhecer não apenas a espartilhamento das macroinstituições estatais lei, mas também os elementos que constituem em “autonomização” surgem em estreita rela- o estado. O conhecimento (savoir) necessário ção com o crescente recurso à lógica atuarial. é o conhecimento das coisas, que compreende A política auditável rege-se pela avalia- a “realidade do estado”, precisamente o que ção mensurável dos inputs e outputs e sobres- na época se chamou “estatísticas” (Foucault, tima a consecução de objetivos mensuráveis 2007, p. 236). (Strathern, 2000). A produção de categorias Com o surgimento do Estado Moderno, estatísticas não é independente das políticas a “população” analisada com base nas séries auditáveis, contribuindo as estatísticas para estatísticas assume-se, em definitivo, como ob- sustentar a ideia, comum entre os liberais, de jeto político “unificador”. Porém, a partir da que existem domínios autônomos que obede- década de 1970, este objeto deixa de ser exclu- cem a leis e tendências próprias. sivamente pensado como objeto de governa- Nos dois países, as políticas auditáveis ção forjado nas séries estatísticas, para passar tendem a atravessar todos os domínios da in- a ser a base para a generalização das lógicas tervenção pública, desde a ação social, ao en- atuariais de gestão próprias das companhias sino, passando pela saúde, segurança e outros de seguros e de todas as instituições que recor- domínios que extravasam o estritamente eco- rem ao cálculo do risco. nômico que esteve na sua gênese. São a base As estatísticas assumem um papel “legis- para a negociação de meios, incluindo os sim- lativo intelectual” (Bauman, 1992, in Haggerty, bólicos. A partir delas se constróem os rankings 2001, p. 44), uma capacidade que “envolve o de escolas, se negociam e alocam meios, se direito de ditar as regras a que o social deverá promovem patentes, se sustenta a continuida- obedecer”, e cuja autoridade “foi legitimada de do financiamento de projetos. pelo reconhecimento do melhor julgamento, Como defende Foucault (2007) a propó- de um conhecimento superior garantido pelo sito das instituições, dos procedimentos, das próprio método da produção estatística”. Os análises e reflexões, dos cálculos e táticas que 80 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana permitem exercer formas complexas de po- quanto mais marcadas são as fronteiras espa- der, os procedimentos que suportam a produ- ciais que separam os diferentes grupos que a ção e divulgação do conhecimento estatístico constituem (Harvey, 1996). A relativa homo- (sistemas teóricos, aparelho administrativo que geneidade da composição social interna a ca- realiza a coleta, meios de divulgação…) são da área, e distinta das áreas envolventes, leva parte do conjunto de tecnologias de governa- a que muitas vezes o conceito de segregação mentalidade que traduzem um regime especí- seja adjetivado de social, projetando os efeitos fico de governação (Foucault, 1995, 2007). A da segregação e subestimando os processos estatística apoia a generalização da lógica au- que estão na base da organização espacial ditável, base dos sistemas desenhados para a que a gera. supervisão e o controlo. A evolução do sentido dado ao conceito Antes de analisarmos o papel desem- de segregação não pode ser desligada da dou- penhado pelas estatísticas no plano da racio- trina e da prática urbanística (Caldeira, 2000; nalidade política e das práticas contemporâ- Bauman, 2005). Assim se explica que no pós- neas da governação liberal (Haggerty, 2001; -guerra dominasse um corpo doutrinário empe- Durão, 2008b), designadamente na unifica- nhado no provimento das técnicas industriais ção do poder e do Estado (territorializado), e urbanísticas que sustentou o movimento impõe-se uma análise das relações entre as moderno, promotor de um modelo de urbaniza- concetualizações académicas e políticas do ção funcionalista do tipo zonal, enquanto hoje conceito de segregação. a segregação seja entendida também como o resultado de uma intervenção mais pontual ligada aos processos de privatização e de espe- Mensuração da segregação territorial: da questão acadêmica à questão política cialização do espaço urbano (Barata Salgueiro, 1998, 2000, 2001). No artigo Études sur la Banlieue, escrito em 1950, Pierre George4 demonstra que o conhecimento geográfico participou ativamente Na acepção geográfica, o conceito de segrega- na construção do modelo de habitat do movi- ção é acompanhado pelos adjetivos “espacial” mento moderno. A geografia, como as restan- ou “urbana”. A segregação é um processo e tes ciências sociais, foi então impelida a contri- estado de separação de grupos sociais distin- buir para a sustentação da política voluntarista tos que se manifesta na constituição de áreas de um Estado empenhado num modo especí- de fraca diversidade social, separadas por limi- fico de provisão de habitação caracterizada tes claros entre cada área e as que a envolvem pela normalização e pela grande volumetria (Ascher, 1998). Como um estado da condição que marcaria desde então a periferia das cida- urbana ou como processo, a segregação tem des (Vieillard-Baron, 2001, p. 90). Em França, sido sobretudo olhada como resultado das de- os grands ensembles dos anos 1950 resultam sigualdades sociais prévias, considerando-se de uma política centralizada, fundada na ur- que uma sociedade é tanto mais inigualitária gência de responder a um défice habitacional Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 81 Isabel Pato e Margarida Pereira premente e abraçada pelos grandes constru- A partir dos finais dos anos 1970 o mo- tores que, respeitando as exigências governa- vimento moderno, como referência conceitual mentais de quantidade, rapidez e economia em e base programática da (re)construção da ci- matéria de construção, prefiguraram a cidade dade, passa a ser muito contestado. A crítica do amanhã: a cidade fundada sobre a racio- que geógrafos, arquitetos e urbanistas ende- nalidade, a estandardização e os valores cole- reçaram dirigia-se, num primeiro momento, à tivos. A mesma relação entre o conhecimento normalização dos modelos de habitat, em es- científico produzido e o modelo progressista pecial à arquitetura demasiado sumária,6 por- pode ser ilustrada a partir do relatório Denvers que resultante de empreendimentos confiados (1958), da responsabilidade do ministério da a um só promotor e à generalizada escassez construção francês, que concebeu a políti- no provimento de equipamentos. Fazia-se uso ca de habitação como um ramo específico da de modelos de determinação da segregação política industrial – a construção civil – basea- baseados na análise normativa e estatística e, do no tríptico “industrialisation, typification, consequentemente, na determinação da des- répétitivité”. É importante explicitar as condições nas quais, em França, ocorreu a defesa desse modelo de habitat. Para acolher a mão de obra convidada a reconstruir o potencial econômico das grandes infraestruturas de um país destruído pela guerra, foram construídas soluções provisórias para albergar essa mão de obra, tanto pelo Estado como por iniciativa dos próprios, incluindo-se nesses últimos os célebres bidonvilles dos emigrantes portugueses (ver a esse propósito Carvalheiro, 2008). França sofreu uma verdadeira política urbana de pós-guerra, cujos resultados urbanísticos estão hoje incorporados nas cidades do país. Das 17 cidades francesas com mais de 50.000 habitantes, 15 foram fortemente atingidas pelos bombardeamentos, deixando dezenas de milhares de famílias desalojadas. Às necessidades de realojamento colocadas pelos bombardeamentos, acresceu um aumento da procura ligada à entrada de população imigrante. A aposta no alojamento no período do pós-guerra explica que entre 1953 e 1965 se tenham construído 2/3 dos grands ensembles5 (Vieillard-Baron, 2001). proporção entre equipamentos e quantitativos 82 populacionais a servir. Essa crítica começa a ter impactos políticos, verificando-se ainda na década de 1970 um abrandamento da construção de habitação social no ritmo e na escala volumétrica (Vieillard-Baron, 2001). A partir dos anos 1980, à crítica formulada ao modelo zonal acresce outra, que resulta da análise da gestão dos bairros de habitação a custos controlados – HLM (Habitation à Loyer Modéré). Em França, esses estudos estão na base do que viria a constituir-se como a política de cidade7 que, apesar de direcionada para a base construtiva (operações de demolição8 e de reabilitação dos espaços públicos e de alojamentos em muitos bairros), se orientou também nessa fase para os processos de gestão. Na mesma década, assiste-se à consolida ção de um discurso político e acadêmico orientado para a “crise das periferias”. Para responder à “crise das periferias” surge, em 1982, a Commission nationale pour le développement social des quartiers (CNDSQ) que sucedeu ao dispositivo Habitat et Vie Social de 1977 (Tissot, 2007). Nesse país, e de Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana certo modo duas décadas depois em Portugal, Nos últimos anos, a tônica tem sido co- a produção científica orienta-se para méto- locada na própria intervenção. Se a construção dos de análise mais próximos dos contextos, política dos bairros sociais em Portugal e dos procurando aferir os efeitos dos dispositivos bairros genericamente designados HLM ou paliativos entretanto criados para territórios e cités se revela diferente, possuindo França uma formulação política muito mais elaborada e articulada, em ambos os países dominam nesses espaços residenciais populações em situações de desfavorecimento que têm justificado a continuidade de uma intervenção pública territorializada. Entre os dispositivos para a formulação das formas de intervenção, as estatísticas são fundamentais para sustentar o processo decisório de definição dos “territórios” alvo de medidas de discriminação positiva e montar a máquina infraestrutural que dê corpo àquela intervenção. A natureza distinta e os níveis de formulação política e de intervenção nas áreas urbanas segregadas nos dois países é, desde logo, evidente na produção estatística que envolve a caracterização dos territórios e populações segregadas. Sem prejuízo dessa diferenciação, em ambos os países a análise da segregação ocorre através de uma combinação de duas das três análise propostas por Lussault (2003) para determinar o “estado de segregação”: a seleção de indicadores que permitam a leitura “externa” e a avaliação e quantificação da segregação “interna”. Mas a seleção de indicadores (das leituras interna e externa) seguem evoluções distintas e traduzem potencialidades e limitações específicas inerentes à própria tecnologia estatística, indissociáveis das formulações políticas mais comuns em cada país. Comecemos pelo caso francês. populações (a política de cidade). De certo modo, essa viragem acompanhou a procura de novas formas de olhar e de intervir sobre os bairros segregados. Num colóquio organizado em Bordéus pelos centros de estudos associados à rede Perimetro (ver Pato, 2008), a geógrafa Marie-Christine Jaillet, participante ativa desse movimento, lembra que na maioria dos encontros de investigadores sobre as periferias urbanas organizados em França nos anos 1980 se constatou a impossibilidade de sustentar o modelo centro-periferia para explicar os processos geradores e perpetuadores das desigualdades sociais. A centragem na periferia9 reorientou o estudo da polis no seu conjunto. A crescente interdependência entre espaços ativada pela “compressão do espaço” (Harvey, 1989) sustenta-se também na reestruturação e polinucleação metropolitana. O território perde o atrito (Harvey, 1989; Ascher, 1998) e o modelo centro-periferia, o significado explicativo. Em alternativa, a geografia seguiu duas linhas explicativas: a que se debruça sobre as dinâmicas de transformação metropolitana e destaca os processos de autonomização da periferia; e a que inscreve a segregação numa lógica de rede assente na mobilidade (Lussault, 2003, p. 831). A geografia passa a interessar-se já não apenas pela produção urbana, mas também pela legitimação dessa produção através dos processos de apropriação. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 83 Isabel Pato e Margarida Pereira França: as estatísticas na avaliação de uma política de cidade (desenhada como) integrada produzidas duas monografias locais que, não permitindo medir as desigualdades e compará-las com entidades idênticas (indivíduos e territórios), impulsionaram a mudança do objeto central em análise, através da estatística da segregação, que passa da “pobreza” para os Desde o aparecimento, em 1945, do Institut “territórios da pobreza”. National de la Statistique et des Études A trajetória da produção estatística sobre Économiques (INSEE), a ligação entre essa a segregação traduz, no caso francês, parte da entidade e os ministérios foi uma realidade, lógica política que acompanhou a reforma dos mas só em 1991, com a criação do Ministério bairros, inscrita na reforma do próprio Estado. da Cidade, se configura dentro do INSEE o pro- O militantismo “social”, ilustrado por associa- grama “Villes”, especificamente voltado para ções como a ATD-quart monde, é abandonado, o estudo das áreas segregadas. Esse programa para se encarar a produção estatística ao ser- traduziu-se no lançamento de um inquérito de viço da ação pública, agora em nome da “mo- escala nacional sobre os bairros-alvo da políti- dernização dos serviços públicos”. No quadro ca de cidade. Através deste inquérito (financia- dessa modernização, as delegações regionais do pelo mundo da ciência e da administração), do INSEE visaram adaptar a produção estatís- pretendeu dotar-se a política de cidade de tica às especificidades da procura de potenciais uma legitimidade assente quer em convicções clientes. A reforma da administração constituiu sociais quer na autoridade administrativa. O assim uma oportunidade para impor outras for- inquérito beneficiou da experiência adquirida mas de fazer mais “eficazes”, designadamente ainda nos anos 1980 no âmbito de estudos para as funções de supervisão e controle da in- realizados nas aglomerações de Lyon, Reims e tervenção polinucleada. Orléans (Tissot, 2007). As preocupações em foco levaram à se- Esses estudos foram desencadeados leção de indicadores tradutores de “deficiên- após o lançamento, em 1984, do programa cias cumulativas” e à progressiva referenciação Développement Social des Quartiers, mas sua espacial desses dados aos bairros do programa gênese está ligada à iniciativa levada a cabo Développement Social des Quartiers das aglo- pela associação ATD-quart monde que pre- merações atrás referidas. Esta análise cons- tendeu recensear a “nova pobreza”. Essa ini- tituiu a base para a legitimação política da ciativa começou por incidir sobre a realização seleção dos “bairros sensíveis”, uma vez que, de fóruns regulares sobre o tema, alargando- até aos anos 1990, esses territórios foram se- -se posteriormente à produção estatística. De lecionados em “função do conhecimento dos fato, em 1991, essa associação conquista o parceiros locais” (Tissot, 2007, p. 120). apoio financeiro do Estado e das regiões, assim Nesta trajetória, a produção estatística como da Caisse d’Allocation Familiales (CAF), reforça a categoria de “bairro” como objeto do Commissariat Général du Plan (CGP) e da e como método de estudo, ampliando a aná- Direction Départementale de l’Équipement. São lise quantitativa de indicadores econômicos e 84 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana sociais caracterizadores das respectivas popula- Técnicos ou teóricos, os obstáculos à ções. A utilização de indicadores referenciados estandardização dos métodos de análise e se- ao bairro e às aglomerações (progressivamente leção dos territórios e do tratamento da infor- estandardizada para a França metropolitana), mação mantêm o conhecimento estatístico to- realizada em 1996, resulta no destaque das es- talizador12 ao nível dos grandes números, que pecificidades daqueles territórios, em contraste permitem legitimar a política de cidade e de com os respectivos municípios e conurbações algum modo contrapor as representações me- urbanas.10 Nessa primeira fase, os indicadores diáticas demasiado presas a sintomas (como escolhidos resultam da aplicação dos dados os motins). Os números, construídos para e a do recenseamento de 1990 para os bairros da partir da arte da governação (Foucault, 2007), política de cidade, entretanto referenciados acabaram por servir apenas como “ferramenta nas cartas 1/25000 do Institut Géographique de convicção” caraterizadora de uma “entida- National (IGN). de [que se pretende] objetiva” (Tissot, 2007). Essa maneira de descrever os bairros de- Ou seja, a produção estatística com a estan- senha novas formas de interpretação, de diag- dardização nacional possível acabou por não nóstico e de ação sobre o território. Os bairros servir para a delimitação de bairros, permitida passam a ser um objeto de conhecimento para apenas a avaliação quantitativa de uma polí- destacar a amplitude das diferenças entre eles tica concebida de maneira clássica para atuar e o restante território, com implicações na le- sobre objetos homogêneos. Nesse sentido, para gitimação da política de cidade, que se afirma alguns, a produção estatística é também ina- definitivamente como política de Estado em propriada para a pretendida avaliação da polí- 1991. A análise evolutiva, destacando o perío- tica de cidade (Tissot, 2007). do 1990 e 1999, é parte desse processo. No que toca aos indicadores extraídos Já neste milênio, equaciona-se pela pri- dos dados coletados pelos recenseamentos meira vez a possibilidade de delimitação de gerais, esses traduzem os problemas julgados novas áreas a integrar na política de cidade a constitutivos na descrição administrativa dos partir dos dados do INSEE. Ou seja, considera- bairros: população e povoamento, pobreza e -se a possibilidade de rever e/ou alargar o nú- precaridade, habitat e mercado de alojamento, mero de territórios abrangíveis pela política de escolaridade e formação, emprego e vida cívica cidade a partir de uma análise georreferencia- (Tissot, 2007; Vieillard-Baron, 2001). Para além da. Mas a dificuldade de contemplar na análi- desses, o conjunto de indicadores especifica- se os bairros não referenciados como îlot11 da mente considerados para o desenvolvimento política de cidade para os quais as delegações dos “retratos de bairro” integra a percentagem regionais do INSEE não procederam à desagre- de estrangeiros. Esse indicador mostra que a gação da informação, assim como a dificuldade descrição estatística não foi indiferente à ênfa- de utilizar os dados de outras administrações se na fratura social e à orientação política para com capacidade de coleta, colocou entraves a a implementação de medidas para a coesão essa opção. social e territorial, muito ligadas à natureza Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 85 Isabel Pato e Margarida Pereira pretensamente problemática da “etnicização” retorno do papel central dos Conseils locaux dos “bairros sensíveis” (Benveniste, 2005, de sécurité, a primeira entidade com competências de atuação territorializada na política de cidade, apelidados de Conseils locaux de sécurité et de prévention de la délinquance (CLSPD) desde 2002 (Pato, 2011). Os bairros voltam a ser olhados como territórios dotados de problemas intrínsecos geradores de sentimentos ansiogénicos, desta feita ligados à juventude em desvio. A alternância entre a designação “bairro sensível” e “bairro em dificuldade”, que marca a literatura e o discurso político nos anos 1990, evidencia a tensão que contrapõe a perspectiva que atribui ao território as “causas dos seus défices” e a perspetiva que coloca a tônica nas insuficiências estruturais reveladas nos contextos. Com a ênfase na delinquência juvenil e na pequena criminalidade, legitima-se o recuo do Estado social materializado no corte financeiro da ação social, fortemente baseada na ação das associações locais, e no avanço de uma governação performativa de um regime de segurança (Foucault, 2007). Vieillard-Baron, 2005; Body-Gendrot e Withol de Wender, 2007). O estudo desenvolvido em Lyon já considerava a presença de estrangeiros como uma “deficiência cumulativa” dos bairros. Mas é nos dados não publicados ( Fiches de profil des quartiers de la Politique de la Ville ) que se reflete a valorização política da estrutura étnica dos residentes dos bairros. Nessas a desagregação dos estrangeiros é apresentada por grandes grupos (magrebinos, europeus da UE, europeus de fora da UE, …). Todos os indicadores destas Fiches são desagregados por categorias de estrangeiros. Em 2004, é criado o Observatoire National des ZUS (Zones urbaines sensibles), sob a alçada do Ministério da Cidade. O objetivo foi a avaliação da evolução das desigualdades sociais e diferenças entre as ZUS e outras zonas da cidade, considerando as transformações residenciais e urbanísticas, na saúde, no sucesso escolar e mobilização de políticas públicas. Esse organismo é responsável pela elaboração do relatório anual da política de cidade a apresentar à Assembleia Nacional. Desde então, nas estatísticas publicadas surgem novos indicadores ligados ao insucesso escolar e à delinquência juvenil, mantendo-se o desdobramento dos indicadores por taxa de estrangeiros, com exceção dos dados relativos ao insucesso escolar, para o qual se opta pela percentagem de crianças com progenitores estrangeiros. A inclusão desses novos indicadores revela uma mudança de perspectiva diante da raiz dos problemas, com ressonâncias na forma de intervenção. Os problemas da escolaridade e da delinquência anunciam o 86 Portugal: significados políticos de uma mensuração (setorial) da segregação territorial À luz da produção estatística para a leitura da segregação desenvolvida em França, a definição estatística da segregação em Portugal apresenta especificidades ligadas a dois fatores fundamentais: a natureza dos territórios segregados e o cariz setorial que continua a dominar ao nível do Estado central a perspetiva analítica e interventiva sobre esses territórios. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana No que respeita à realidade urbanística de promoção de habitação tanto cooperativas dos territórios segregados, é necessário consi- como associações de moradores. Neste período derar duas dinâmicas que têm sido estudadas, implementam-se os Planos Integrados (áreas ora em simultâneo ora individualmente, em de expansão urbana de grande dimensão e função de objetivos específicos dos seus im- elevada densidade que configuravam “cida- pulsionadores: os bairros sociais e os bairros de des novas”), os empréstimos às Câmaras (que habitação precária, ausentes nas publicações devido a fortes constrangimentos financeiros oficiais divulgadas. No que refere aos bairros se revelaram mais uma medida de mudan- sociais importa ter presente que a lógica do ça política do que um efetivo instrumento de realojamento que esteve na sua gênese dotou- promoção habitacional) e o Programa de Auto- -os de características diferentes dos bairros -Construção (que concedia vantagens fiscais às HLM em França, onde, apesar de tudo, desde os famílias de fracos rendimentos que desejassem anos 1970 se manteve uma maior diversidade construir a habitação); 13 socio-ocupacional. 2) entre os anos 1980 e o início dos anos Em Portugal, nem sempre a habitação 1990, a intervenção estatal adota uma lógica social se destinou aos mais pobres. A inter- keynesiana dirigida aos grupos mais desfavore- venção do Estado Novo (1926-1974) preten- cidos. Contudo, os resultados foram marcados dia suprir tanto carências de habitação para pela insuficiência quantitativa, com o peso re- esse grupo (ainda que de forma residual), co- lativo da habitação social no parque imobiliário mo permitir a fixação de quadros médios em português a baixar entre 1973 e 1993. A lógica áreas específicas do país (com destaque para de atuação que acabou por prevalecer foi a do as atuais metrópoles de Lisboa e Porto), e para incentivo à aquisição de casa própria no merca- o povoamento de áreas rurais, através dos co- do privado dirigida a famílias com capacidade lonatos. Os diferentes programas de promoção de recurso ao crédito; de habitação social incrementados estão pro- 3) em 1993 surge o Programa Especial de fundamente ligados às modificações políticas Realojamento (PER) para as Áreas Metropolita- e socioeconômicas que atravessaram a socie- nas de Lisboa e do Porto, destinado a conceder dade portuguesa no século passado. Guerra et às autarquias apoio financeiro para construção al. (2001) identificam quatro fases distintas na ou aquisição de habitações dirigidas ao realo- política de habitação social em Portugal, com jamento de famílias residentes em habitações lógicas e estratégias de intervenção diferentes. precárias (barracas), sob a forma de benefí- Dessas fases destacamos três ocorridas depois cios fiscais e parafiscais e de financiamento da “revolução” de abril de 1974 na sequência bonificado.14 da qual se restaura a democracia: Na base do desenho territorial e finan- 1) após o 25 de abril, o Estado intenta ceiro do PER esteve o recenseamento das ne- uma mudança através da substituição dos me- cessidades de realojamento realizado junto dos canismos de mercado por uma estatização da municípios entre 1991 e 1992. Mas a morosi- ação, tanto central como local. Em ambos os dade na implementação do programa e a per- casos, pela primeira vez, integra nas iniciativas petuação das estratégias de fixação em bairros Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 87 Isabel Pato e Margarida Pereira de habitação precária das famílias mais pobres francesa, persistem até hoje lacunas no plano tornou o PER desajustado às necessidades da produção estatística para a caracterização reais em cada bairro. Esse desajustamento ge- da realidade sociourbanística aliada a essa rou inúmeras ações de protesto e de resistência forma de alojamento. Essa diferença não pode 15 ser dissociada da delegação nos municípios da ao desalojamento. A estrutura do PER colocou os municípios função de formulação e priorização política de no centro da ação, em contraste com a lógica programas integrados capazes de pôr em rela- centralizadora que caraterizou a política de ha- ção as diferentes dimensões da vida das popu- bitação social até então. Mas, no que mais dire- lações. tamente se refere à problemática em discussão, De fato, enquanto em França, desde os a lógica do realojamento revelou a prevalência finais dos anos 1970, a política de cidade per- de uma perspectiva setorial centrada na habi- siste como política de Estado para a interven- tação no plano da intervenção do Estado, mes- ção territorializada em áreas de concentração mo quando diversos autores continuam a ques- de populações desfavorecidas, em Portugal só tionar o teor “social” da política de habitação em 2005, com a Intervenção “Bairros Críticos”, social (Queiroz e Gros, 2002). o Estado central assume uma política volun- Até 1995, a produção estatística para a tarista expressamente dirigida à componente caracterização da habitação social seguia uma sociourbanística. Essa política teve um caráter lógica tecnocrática orientada para a inventa- experimental (abrangendo apenas três bairros, riação e o controle financeiro. Assim se explica dois na área metropolitana de Lisboa e um na em parte a degradação física a que chegaram área metropolitana do Porto) e não foi capaz alguns bairros propriedade do então Instituto de impulsionar uma política de Estado assumi- de Gestão e Alienação do Patrimônio Habita- damente integrada. cional do Estado (IGAPHE).16 Ou seja, o nível de Porém, na sequência da Iniciativa “Bair- degradação dalguns desses bairros, e de outros ros Críticos”, em 2010, é lançado o Inquérito propriedade de instituições de caráter público- à Caracterização da Habitação Social (2009, -privado, dão conta do fraco investimento polí- 2011) que introduz a categoria estatística de tico e financeiro na habitação social. “bairro social”. No documento metodológico A partir de 1995 (e na sequência do PER) que acompanha o referido inquérito pode ler- dá-se uma ampliação da estatística produzida, -se: “A presente operação estatística resulta que passa a integrar novos indicadores, desa- da colaboração entre o INE e o Instituto da gregados à escala do concelho e capazes de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) e tem traduzir as dinâmicas de crescimento ocorridas como principal objetivo a recolha de informa- 17 ção de base para a caracterização do parque Já na primeira década do milênio, o conjunto habitacional com vocação social em Portugal”. de indicadores revela novas preocupações, (Inquérito à Caracterização da Habitação So- mais ligadas à monitorização das transações cial, Documento Metodológico, 2010, p. 8). financeiras entre o Estado, via autarquias, e Esse inquérito resulta de uma operação-piloto no final da década de 1990 nesta matéria. 18 as famílias. Porém, ao contrário da realidade 88 de levantamento do patrimônio público com Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana vocação social lançado pelo IHRU, em 2008. Em segundo lugar, o recenseamento de bairros É iniciado em 2010, com uma periodicidade classificados como Área Crítica de Recupera- anual, e tem como ano de referência 2009. ção e Reconversão Urbanística (ACRRU)19 nos Destina-se a analisar a situação da habitação diferentes municípios expressa a incorporação social em Portugal, por município, no que se política da preocupação com a realidade urba- refere à: nística ligada aos elementos de uso coletivo. – caracterização do parque de habitação Um e outro permitem reunir informação poten- social que considera o número de bairros ou cialmente sustentadora de uma priorização em núcleos habitacionais, número e idade dos termos de intervenção. edifícios, e o número e tipologia dos fogos existentes; Por outro lado, a periodicidade anual adotada revela uma estratégia de avaliação e – forma de ocupação do parque de habitação monitorização adaptada às aceleradas dinâmi- social, descrita pelo tipo de ocupação, número cas de transformação da oferta de habitação de contratos existentes e efetuados e número de social, tanto no que se refere aos alojamentos fogos atribuídos por tipo de atribuição; disponibilizados pelos municípios, como aos in- – receita e despesa do parque de habitação vestimentos financeiros associados ao PER. social, incluída nas últimas a despesa com o Ao contrário da realidade francesa, esse edificado, a conservação de equipamentos e de inquérito não permite nem a identificação no- estabelecimentos comerciais e ainda nas inter- minal nem a referenciação espacial, quer dos venções nos espaços públicos envolventes; bairros sociais quer dos casos específicos das – reabilitação, que integra o número de fogos áreas críticas de recuperação e reconversão reabilitados, a despesa prevista e gastos efeti- urbanística. Nas estatísticas oficiais, o bairro vos, entre outros. social individualiza-se, mas é mantido como A incidência sobre os domínios físico e indivíduo estatístico anônimo indexado a um financeiro e a periodicidade da coleta revelam concelho. À semelhança do que se passa nas preocupações específicas com os bairros sociais estatísticas da criminalidade recolhidas nas que merecem uma análise. Em primeiro lugar, esquadras, nas estatísticas oficiais produzidas o inquérito representa a adoção de uma pers- para caracterizar o “estado de segregação” a pectiva que extravasa o domínio do edificado informação não é tratada com a finalidade de habitacional, considerando os equipamentos, se transformar em conhecimento local, mas an- comércio e espaço público. Encontramos aqui tes como um “produto para consumo externo e o eco do célebre artigo de Isabel Guerra “As político” (Durão, 2008b). pessoas não são coisas que se ponham em Ainda em relação com a espacialização, gavetas” (Guerra, 1994) que retrata o “gosto e considerando as variáveis contempladas nos pela casa e o desgosto pelo bairro” sentido pe- recenseamentos gerais (em especial à popula- los habitantes dos bairros sociais, assim como ção e à habitação), a produção estatística em das orientações para a construção de bairros Portugal permite diagnósticos sociais e eco- sociais avançadas por Fonseca Ferreira um ano nômicos referenciáveis aos bairros sociais re- após a criação do PER (Fonseca Ferreira, 1994). lativamente detalhados, aglutinando os dados Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 89 Isabel Pato e Margarida Pereira sociodemográficos recolhidos à escala da sub20 Loures, 2004), a seleção de indicadores revela seção estatística. Mas essa análise encerra a integração de preocupações políticas seme- limitações que nos afastam das possibilidades lhantes às identificadas em França, designada- do caso francês, pois não existe uma exata cor- mente quando se questionam os habitantes so- respondência entre os indicadores desagrega- bre a conflitualidade entre grupos, os espaços dos à subseção e os disponibilizados ao nível de conflito, a evolução da conflitualidade e os do concelho. Essa incompatibilidade analítica grupos responsáveis. Do mesmo modo, a ques- compromete a quantificação da segregação tão étnica surge na caracterização da popula- “interna” e “externa”. Em todo o caso, a in- ção inquirida, demonstrando sua pertinência vestigação urbanística e social, quer acadêmi- política de fato, mesmo quando essa é delibe- ca quer das instituições tutelares, não se tem radamente subvalorizada no discurso político. debruçado sobre as possibilidades que a infor- A produção estatística mostra que a mação caracterizadora dos défices estruturais ampliação da ação social sobre a tutela das ligados ao perfil socioeconômico das popula- Comissões Locais de Freguesia ou do Alto Co- ções residentes nos bairros sociais que as esta- missariado para a Imigração e Diálogo Inter- tísticas oficiais já hoje oferecem. cultural (ACIDI) não tem contribuído para uma O confronto entre a realidade da pro- maior articulação da intervenção pública terri- dução estatística portuguesa e francesa que torializada como política de Estado. Porém, a sustenta a identidade estatística dos bairros prevalência na estatística da perspectiva seto- sociais, como medida específica da segrega- rial centrada na habitação não significa a ine- ção, não ficaria completo sem uma referência xistência de uma intervenção local tendencial- à produção estatística local, por um lado, e às mente mais integrada, pois essa ocorre com estatísticas produzidas pelo ministério respon- frequência à escala do município dentro da sável pelas forças de segurança que integram lógica das “novas políticas sociais” sustenta- informação coletada ao nível local (esquadras das em parcerias locais. A natureza da produ- de polícia) e informação judicial, por outro. ção estatística oficial significa que a avaliação Começando pelas primeiras, em Portugal es- dessas formas territorializadas de intervenção tas são asseguradas pelos municípios e outras não integra as prioridades políticas das últimas entidades coletoras, nomeadamente no âmbito duas décadas. 21 dos Diagnósticos Sociais de Freguesia ou de Já atrás se referiu que a produção esta- programas específicos desenvolvidos por “con- tística local também incorpora a questão étni- sórcios” de parceiros com intervenção na ação ca, evitada nos grandes números das estatísti- social nos bairros. cas oficiais. Essa inclusão acompanha a amplia- Nesses inquéritos levados a cabo a ní- ção da intervenção pública e público-privada vel local (do município e freguesias), de que no domínio da ação social dirigida aos bairros. é exemplo o questionário que esteve na base Nessa intervenção ganha centralidade, desde do estudo sobre os níveis de satisfação diante 2001, o ACIDI, contribuindo para a recorrente do bairro desenvolvido há quase uma década sobreposição entre bairros sociais e bairros de no município de Loures (Câmara Municipal de imigrantes. O peso da população com raízes na 90 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana imigração explica esta tendência, mas as con- raros, assim o bairro é classificado como de al- sequências deste desenho institucional estão to, médio ou baixo risco. ainda por apurar, na medida em que o papel do Esses estudos, apresentados através da ACIDI tem contribuído para adiar o debate que imprensa, dão conta de duas tendências que urge sobre a necessidade de articular numa po- marcam uma mudança da natureza da inter- lítica de Estado a intervenção integrada sobre venção do Estado nesses territórios, tornando- os territórios (todos) segregados. -se clara a prevalência da polícia como um dos Isso porque a intervenção do programa 22 “parceiros” da territorialização da intervenção: Escolhas dirigido aos “jovens dos bairros” da por um lado, a territorialização seletiva da ação responsabilidade do ACIDI se caracteriza por policial, muito mais artilhada e aparatosa nos uma arbitrariedade na seleção dos territórios- bairros (Durão, 2008a, 2008b; Wacquant, 2004; -alvo da discriminação positiva, na medida em Cunha, 2008; Pato, 2011); por outro, o forte que o incremento de projetos de intervenção empenho da Polícia como macroinstituição depende da capacidade de se formar no terre- em dar visibilidade a essa intervenção, numa no um consórcio para a intervenção. lógica de mise-en-scène securitária revelado- Finalmente, no que toca às estatísticas ra da instauração de um regime de segurança produzidas pelas forças de segurança, os re- (Foucault, 2007) já estudada por outros autores sultados de um estudo realizado pelo Minis- a partir de outros quadros teóricos (Wacquant, tério da Administração Interna (2005) levou 2004; Durão, 2008b). à identificação no universo de bairros sociais e de bairros de habitação precária dos “bairros perigosos”, sem que fossem divulgados os critérios que sustentam a definição dos bairros Notas conclusivas inscritos na geografia do risco (Pato, 2011). Posteriormente, um outro estudo da autoria O artigo refletiu sobre as relações entre a pro- do mesmo Ministério (MAI, 2007) apelida os dução estatística caraterizadora das áreas ur- territórios-alvo de uma atenção especial da banas marcadas pela segregação territorial e a polícia de “bairros em risco”. Nesse estudo, natureza das políticas de discriminação positi- os critérios subjacentes àquela classificação va que caraterizam a governação urbana con- são divulgados, resultando da combinação de temporânea. Enquanto em França a produção um conjunto de indicadores: condicionantes estatística revela preocupações de avaliação da arquitetônicas dos bairros, densidade popula- política de cidade orientada para uma interven- cional, número de residentes com anteceden- ção territorial tendencialmente mais integrada, tes criminais, número de casos de desordem ao articular variáveis do domínio urbanístico pública, número de agressões a elementos e socioeconômico, em Portugal a produção policiais e número de casos de crimes prati- estatística centralizada mantém o caráter se- cados por residentes (desses bairros) fora do torial que tem marcado a intervenção públi- bairro. Consoante esses valores são elevados/ ca definida a nível central. A centralidade da preocupantes, médios/significativos ou baixos/ habitação na problematização da questão da Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 91 Isabel Pato e Margarida Pereira concentração da pobreza traduz a preocupação Escola23…) mais orientada para o controle e do controle por parte do Estado do processo de a repressão; e empenho na elaboração de um implementação do PER. conhecimento estatístico totalizador que dá vi- O conhecimento sobre a segregação es- sibilidade ao aparatus estatal, e que se inscreve pacial sustentado na análise de um conjunto no jogo de transparência versus ocultação de de indicadores potencialmente reveladores informação para evitar a revelação pública de dos contrastes entre os bairros e entre esses matérias sensíveis. e os espaços envolventes (as comunas e aglo- Essas conclusões autorizam a colocação merações urbanas) desenvolvida no caso fran- de novas questões quando se pretende pers- cês não se realiza em Portugal. Daqui decorre pectivar formas de governação urbana capa- que a análise estatística da intervenção em zes de intervir sobre a redução e/ou a diluição matéria de habitação não foi suficiente para da segregação urbana. Uma primeira questão permitir empreender uma efetiva análise ur- prende-se com a criação de instrumentos geo- banística, designadamente por descurar a re- estatísticos que possam traduzir os efetivos dé- ferenciação espacial dos bairros segregados. fices estruturais que introduzem e perpetuam Trata-se, assim, sobretudo de empreender fragilidades nos territórios e populações segre- um controle à distância, baseado nos grandes gadas, diante de outros territórios. Em ligação números, uma vez que o tratamento da infor- com a primeira, uma segunda questão declina mação publicada não permite a construção de mais diretamente da relação entre a produ- conhecimento local. ção do conhecimento estatístico e o exercício Simultaneamente, assiste-se ao aumento do poder e remete para o aprofundamento do do interesse pelas estatísticas locais capazes de conhecimento sobre os efetivos modelos de apoiar o processo de decisão política como res- governação (da segregação) urbana à escala posta à necessidade crescente de coordenação local, num momento em que se coloca a ne- e supervisão dos processos de intervenção ter- cessidade de reforço da coordenação e super- ritorializados, mas também como forma de dar visão estatal. visibilidade à intervenção municipal. Enfim, num tempo em que é indispen- Finalmente, a introdução de indicadores sável gerir a tensão entre a desnacionalização na classificação dos bairros segregados, ligados dos territórios das cidades (Brenner, 2010) e não ao retrato estrutural da segregação, mas assegurar a equidade territorial (intra) urba- às características (julgadas) intrínsecas aos na, como construir o conhecimento estatístico territórios em termos de composição étnica e para a avaliação e a intervenção pública, asse- (in)segurança, revela uma mudança no estilo gurando que as estratégias de territorialização de governação em ambos os países que segue não passem de formas específicas de controle duas tendências: instauração paulatina de um e repressão e/ou de ferramentas de suporte regime de segurança, tal como o conceitualiza da transferência para a sociedade civil e par- Foucault (2007), ou seja sustentador de uma a ceiros sociais da função pública de garantia de intervenção territorial seletiva (da Polícia, da justiça social? 92 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana Isabel Pato Licenciada em Geografia e Planeamento Regional; Mestre em Planeamento Regional e Urbano; Professora Doutora em Geografia Humana; Investigadora do e-Geo – Centro de Estudos em Geografia e Planeamento Regional da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Portugal. [email protected] Margarida Pereira Licenciada em Geografia; Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica em Geografia e Planeamento Regional; Professora Doutora em Geografia e Planeamento Regional, especialidade de Planeamento e Gestão do Território; Professora Associada do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Investigadora do e-Geo – Centro de Estudos em Geografia e Planeamento Regional da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Portugal [email protected] Notas (1) No conjunto de casos analisados na obra supracitada, são sobretudo os Estados com regimes de proteção universal menos fortes que mais territorializam a proteção social em territórios e grupos alvo (Delcourt, 2008). (2) Limite administra vo e polí co de menor dimensão em Portugal. (3) Ainda que as normas e normalizações postas em prá ca numa economia de poder específica tendam a sustentar-se nas organizações já existentes no terreno e/ou a gerar outras organizações muito próximas das primeiras. (4) XII Cahier de la Fonda on Na onal des Sciences Poli ques que o geógrafo dirigiu (Vieillard-Baron, 2001, p. 90). (5) Em 1948, o número de alojamentos construídos para habitação social rondava os 40.000 e em 1959 os 320.000. A duração da construção por empreendimento médio passou no mesmo período de cerca de 3.500 horas para menos de metade – cerca de 1.250 horas (Pinson, 1992, in Vieillard-Baron, 2001). O mesmo autor cita vários estudos que ques onaram a construção massiva de alojamentos diante da oferta de habitação a reabilitar e desocupada. (6) Entre a Lei de Prorrogação das ZUP (Zones Urbaines Prioritaires), em 1959, e a lei de orientação fundiária que ins tui as ZAC (Zones d’Aménagement Concerté), em 1967, a maioria dos grandes conjuntos habitacionais resultou em construções massivas, de que é exemplo a “cité 4000” na Commune de Courneuve, urbanização que veio alojar mais de 15.000 habitantes, cuja construção se fez por processos experimentais de prefabricação pesada. (7) A poli que de la ville (aqui designada de polí ca de cidade) não significa no sen do literal uma atuação dirigida a toda a cidade. Trata-se de uma polí ca orientada para áreas específicas da cidade: os “bairros sensíveis”, definidos em função de problemas de alojamento, problemas ligados ao quadro sico, socioeconômico, de emprego, de escolaridade, de saúde, de segurança pública e de equipamentos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 93 Isabel Pato e Margarida Pereira (8) Desde 1988 es mam-se cerca de 5.000 alojamentos demolidos por ano, o que corresponde a uma taxa de demolições (rela vamente aos existentes) de 0,5%. A região parisiense concentra ¼ do total de demolições da França metropolitana. O Plan Na onal de Renouvellement Urbain (1999) previu a aceleração dos processos de demolição. O ministro da Cidade propõe chegar na década seguinte a valores entre os 10.000 e os 15.000. As demolições não são consideradas um “fim em si mesmo” nem um “ato de urbanismo nega vo”, mas encaradas como a úl ma solução, quando tudo o resto já tenha sido tentado sem sucesso (Vieillard-Baron, 2001). (9) Ainda Vieillard-Baron (2001) ques ona a per nência da associação da problemá ca dos “bairros” à periferia, alegando que, em 1994, antes da generalização dos contrats de ville da política de cidade, à parte da região parisiense, mais de metade dos bairros considerados sensíveis pertencem aos centros das cidades. (10) Uma conurbação corresponde a uma aglomeração formada pela união de vários centros urbanos inicialmente separados por espaços rurais (INSEE, Conceitos, h p://www.insee.fr/fr/methodes/ default.asp?page=defini ons/conurba on.htm, acessado em 24 de setembro de 2012). (11) Unidade mínima territorial considerada na produção esta s ca em França. (12) Foucault (1975) propõe a oposição entre conhecimento individualizador e conhecimento agregador. Seguindo essa proposta, o primeiro preocupa-se com o conhecimento público acerca do objeto e é dominantemente lido através dos comportamentos de indivíduos estatísticos como en dades discretas, enquanto o segundo corresponde às esta s cas como contraponto agrega vo necessário ao desenho das prá cas e das possibilidades da governação liberal, mas também à reiteração da visão mundana da realidade dos bairros e dos modos de intervenção sobre os bairros. (13) Designadamente pela presença de profissionais de serviços beneficiaram de formação, tais como trabalhadores do comércio, prestadores de serviços especializados da restauração, vigilantes e trabalhadores em serviços pessoais de higiene e embelezamento. Essa tendência foi também iden ficada na análise da organização social em quatro metrópoles brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre – a par r da pesquisa realizada durante quinze anos no Observatório das Metrópoles (Lago e Mammarella, 2010). (14) O financiamento estatal contemplou apoios des nados à aquisição de terrenos, infraestruturação e construção. Dez anos mais tarde, em face do evidente desajustamento entre o PER e a realidade do setor da habitação, o regime jurídico deste programa é revisto e passa a integrar também a reabilitação. (15) Ver a este propósito o documentário Via de Acesso, de autoria de Nathalie Mansoux (2008). (16) Organismo que juntamento com o Instituto Nacional de Habitação (INH) compõem hoje o Ins tuto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) com a tutela da habitação social. (17) São exemplos desses indicadores o número de divisões, o número médio de divisões, a super cie habitável das divisões, o número de pavimentos, entre outros. Para esses indicadores, passam a considerar-se os valores para os fogos licenciados e fogos concluídos. (18) Destacam-se os seguintes indicadores: número de contratos de compra e venda, montante financeiro envolvidos nestes contratos, valor médio dos prédios hipotecados, entre outros, todos desagregados por concelho. 94 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 77-97, jan/jun 2013 Segregação territorial, conhecimento estatístico e governação urbana (19) As Áreas Crí cas de Recuperação e Reconversão Urbanís ca (ACRRU) são definidas como áreas do parque de habitação social “em que a falta ou insuficiência de infraestruturas urbanís cas, de equipamento social, de áreas livres e espaços verdes, ou as deficiências dos edi cios existentes, no que se refere a condições de solidez, segurança ou salubridade, a njam uma gravidade tal, que só a intervenção da Administração, através de providências expeditas, permita obviar, eficazmente, aos inconvenientes e perigos inerentes às mencionadas situações.” (Inquérito à Caracterização da Habitação Social, Documento Metodológico, 2010, p. 8). (20) Unidade mínima espacial nas estatísticas portuguesas, usualmente coincidente com um quarteirão urbano. (21) Os Diagnósticos Locais de Freguesia são a base para a intervenção das Comissões Locais de Freguesia, criadas em 2007. São compostas por um conjunto de en dades empenhadas na ação social local que se comprometem dentro do quadro da Lei a trabalhar em Parceria. A criação das Comissões Locais de Freguesia enquadra-se na tendência das novas políticas sociais de envolvimento da sociedade civil nos processos de governação passíveis de subsidiariedade. (22) Programa de âmbito nacional de incidência territorial, tutelado pela Presidência do Conselho de Ministros, e fundido no Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) que visa promover a inclusão social de crianças e jovens provenientes de contextos socioeconômicos mais vulneráveis, par cularmente dos descendentes de imigrantes e minorias étnicas, tendo em vista a igualdade de oportunidades e o reforço da coesão social (h p://www.programaescolhas. pt/apresentacao). (23) Concre zada nos Territórios Educa vos de Intervenção Prioritária. Referências ASCHER, F. (1998). Metápolis, acerca do futuro da cidade. Oeiras, Celta. BARATA SALGUEIRO, T. (1998). Lisboa, metrópole policêntrica e fragmentada. Finisterra. Lisboa, v. 32, n. 63, pp. 179-190. ______ (2000). Fragmentação e exclusão nas metrópoles. Sociedade e Território. Porto, n. 30, pp. 16-24. ______ (2001). Lisboa: periferia e centralidade. Oeiras, Celta. BAUMAN, Z. (2005). Confiança e medo na cidade. 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Reflections on the planning performed by the PAHO/WHO in Latin America Magdalena Chiara Ana Ariovich Resumen La incidencia de las variables socio ambientales, las condiciones de localización y los factores m ov ili d a d , s o n p r o b l e mas q u e lla ma n a aproximarnos a la salud desde un enfoque territorial, buscando no sólo localizar los procesos de salud-enfermedad sino también comprender sus relaciones recíprocas. El trabajo recorre las distintas propuestas de la OPS/OMS que orientaron el diseño de política sanitaria en América Latina y el Caribe en las últimas seis décadas destacando sus contribuciones e insuficiencias para pensar la cuestión territorial, haciendo referencia a las políticas implementadas en Argentina y Brasil. El trabajo echa luz sobre las nociones de territorio implícitas en estos planteos bis a bis el papel que cada una de ellas confiere a los actores, mostrando la necesidad de construir un diálogo entre política sanitaria, geografía y análisis de políticas. Abstract The impact of social-environmental variants, of location and of mobility factors is a problem that demands an analysis of health according to a territorial approach, in an attempt not only to locate the health-disease processes but also to understand their mutual relations. The study investigates the various proposals of the PAHO / WHO that guided the design of the health policy in Latin America and the Caribbean in the last six decades, highlighting their contributions and shortcomings to reflect on the territorial issue, and referring to the policies implemented in Argentina and Brazil. The study sheds light on the notions of territory implied in these proposals and on the role that each one of them gives to the actors, showing the need to build a dialogue between health policy, geography and policy analysis. Palabras clave: salud; política sanitaria; territorio; OMS/OPS; actores. Keywords: health; health policy; territory; WHO/ PAHO; actors. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Magdalena Chiara e Ana Ariovich Introducción las orientaciones de política sanitaria para América Latina y el Caribe, con particulares referencias a las políticas en Brasil y Argentina. Aunque evidente en su materialidad, la relación Finaliza el recorrido, con una entre “salud” y “territorio” es una encrucijada sistematización de los aportes de estos que ha sido escasamente visibilizada desde planteos y la identificación de aquellas la mirada sectorial, enfrentando el riesgo de insuficiencias que aler tan acerca de la opacar matices y obturar nuevas preguntas. necesidad de construir un diálogo entre política Con el interés de echar luz sobre esta sanitaria, geografía y análisis de políticas. relación, este trabajo hace un recorrido “desde adentro” de la política sanitaria interrogando a las directrices de la OPS/OMS en relación a cómo ha ido apareciendo la cuestión territorial y cuáles han sido los actores jerarquizados en esa construcción. La importancia de este Estrategias y modelos: principales hitos en los planteos de OPS/OMS análisis radica en que estas orientaciones expresan modelos descriptivos y normativos Hacia mediados del siglo XX, las Naciones que dialogan con las lógicas profesionales Unidas (ONU) creó la Organización Mundial y académicas, legitimando prác ticas y de la Salud (OMS), organismo responsable aportando modos de analizar la política de establecer la agenda de investigaciones sanitaria y su contexto. prioritarias en salud, articular opciones de Una mirada apresurada podría concluir política, prestar apoyo técnico a los países y que el territorio ha estado ausente en la vigilar las tendencias sanitarias mundiales, mirada sectorial; sin embargo, el recorrido estableciendo a la Organización Panamericana realizado en este trabajo muestra la aparición de la Salud (OPS) como su oficina regional en de distintas nociones en estos planteamientos: las Américas. desde la imagen de “control militar” de Desde entonces, ambos organismos mediados del siglo pasado expresado en los ocupan un lugar preponderante en la programas de erradicación de la viruela y conceptualización de la “cuestión sanitaria”, la malaria, hasta conceptos más complejos siendo responsables ( a través de sus presentes en las propuestas de redes de propuestas y directrices) de la reorganización servicios de salud, dando cuenta de un proceso de los sistemas de salud y de la formulación de construcción histórica y conceptual que vale de políticas en la región. El combate contra la pena interrogar. las enfermedades transmisibles a través de El trabajo comienza presentando los los “Programas Verticales”, el modelo de la hitos más significativos de las propuestas “Atención Primaria de la Salud”, la propuesta de la OMS/OPS en los últimos sesenta años de los “Sistemas Locales de Salud”, la para, posteriormente, poner el foco en cómo estrategia de los “Determinantes Sociales fue emergiendo la cuestión territorial en de la Salud”, la propuesta de “Municipios, 100 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio Ciudades y Comunidades Saludables” y el Difenil Tricloroetano), animó la acción de la modelo de “Redes Integradas de Servicios de recientemente creada OPS, identificando a Salud”, son los hitos principales en estas seis éstas como enfermedades a ser erradicadas. décadas (Figura 1). Se trata de propuestas, En este contexto se forja el modelo de los estrategias y/o modelos que presentaron “programas verticales” que sigue vigente hasta continuidades y rupturas en los modos como la actualidad, conviviendo con otras formas conceptualizar el proceso salud-enfermedad, de concebir la política sanitaria, denominadas en los instrumentos propuestos y en los actores “horizontales” (Tobar et al., 2006, pp. 15-18). privilegiados, que estuvieron y están presentes Esta forma de organizar la política sanitaria en la arena sectorial con distinta capacidad de logró la eliminación de la viruela y la declaración orientación de las políticas. de su erradicación en la Asamblea Anual de la Entre los años 1946 y 1958, el combate Salud de 1980, dejando importantes huellas en de las enfermedades transmisibles (viruela y la institucionalidad del sector: la creación de las malaria) organizó el modo de pensar y de hacer unidades de epidemiología en los ministerios, política sanitaria. La noción de “erradicación”, las rutinas de vigilancia epidemiológica y fundada en los adelantos científicos como el la aplicación de programas de control de descubrimiento de vacunas y del DDT (Dicloro enfermedades transmisibles (OMS, 1974). Figura 1 – Planteamientos de OPS/OMS (1950 a la actualidad) Sistemas Locales de Salud (SILOS) (1988) Atención Primaria de la Salud (1978, Declaración de Alma Ata y 2005 Renovación de APS para las Américas) Municipios y Ciudades Saludables (1998 Declaración de Atenas) Redes Integradas de Servicios de Salud (2007) Determinantes Sociales de la salud (2004/2008) Programas Verticales (Control de enfermedades Transmisibles) (1946/58) Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 101 Magdalena Chiara e Ana Ariovich Sin embargo, el combate de la malaria los distintos enfoques: acceso y cobertura fue menos exitoso; la reaparición de casos universal; atención integral e integrada; puso en evidencia otros factores asociados promoción y prevención; orientación familiar al mosquito, lo cual llevó a reemplazar la y comunitaria; mecanismos de participación política de erradicación por una política activa; políticas y programas pro-equidad; de control (Tobar et al., 2006, p. 18). La primer contacto; recursos humanos vigilancia epidemiológica focalizada en grupos apropiado ; recursos físicos adecuados ; y territorios en situación de vulnerabilidad, acciones intersectoriales (OPS, 2005). sentó las bases de las orientaciones que Los ejemplos de iniciativas orientadas reaparecerían (décadas más tarde) de la mano al fortalecimiento de la APS en la región de los organismos internacionales de crédito son abundantes y diversos. En el marco en los noventa con la focalización. del Sistema Único de Salud (SUS) de Brasil, Un nuevo planteo, el de las intervenciones merece destacarse el Programa Salud de horizontales se abrió paso con el modelo de la Familia (PSF) 1 que fue desarrollándose la Atención Primaria de la Salud (APS) en desde 1994 de manera progresiva a partir de un contexto caracterizado por el progresivo experiencias pilotos dispersas, hasta llegar crecimiento de la poblacional mundial y por a convertirse en una propuesta de alcance altas tasas de natalidad y de mortalidad nacional bajo la órbita del Ministerio de Salud infantil, acompañadas con una expectativa (Suárez-Bustamante, 2010; Harzeim, 2011). de vida bastante baja. En la Conferencia Basado en Equipos Básicos con población Internacional sobre la Atención Primaria de la a cargo, el programa busca reorganizar la Salud de Alma Ata desarrollada en el año 1978, práctica asistencial centrando sus acciones la OMS reconoció a la APS como estrategia en la atención integral de la familia, con de atención integral de la salud, basada especial énfasis en la prevención y promoción en la prevención de la enfermedad y en la (Gomes-do-Espírito-Santo et al., 2008; Schillig promoción de la salud (OMS, 1978, punto IV). Mendoza, 2011). En la amplitud del consenso con el que contó En el caso argentino, la prioridad esta estrategia desde aquella declaración, sobre la atención primaria de la salud fue convivieron enfoques diferentes de concebir la establecida más recientemente a través del APS (Rozenblat, 2007; Forti, 2009). Plan Federal de Salud (PFS) (2003/7) y se Dos décadas más tarde y en un intento expresó de manera singular en el Programa por consolidar una noción convergente PROAPS/Remediar (posteriormente sucedido de APS, la OPS propuso la “Renovación por el FEASP/Remediar+Redes),2 el Programa de la Atención Primaria de la Salud en las Médicos Comunitarios y, más recientemente, Américas”, como forma de afrontar los el Plan Nacer (actualmente denominado nuevos desafíos epidemiológicos y mejorar las “Nacer/Sumar”). Los centros de atención persistentes inequidades en la atención. Esta primaria de la salud (CAPS) son para estas concepción reformulada de APS, recupera iniciativas efectores estratégicos a fortalecer integralmente los contenidos presentes en a través de la provisión de medicamentos 102 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio esenciales (Maceira, Apella y Barbieri, 2005), proveyendo las bases técnicas y operativas la incorporación y formación de recursos sobre las cuales se organizó el SUS, en cuyo humanos profesionales en APS (Rossen, 2006) contexto la autonomía municipal sobre la y el aporte de recursos financieros contra atención ambulatoria (bajo ciertas condiciones cumplimiento de metas sanitarias sobre de regulación) pasó a tener un rol destacado población en el Plan Nacer (Potenza, 2012). (Arretche, 2003). En la estructura institucional Si bien la APS fue enérgicamente del SUS, los servicios básicos de salud son sostenida hasta la actualidad, convive a su vez gestionados por el municipio, mientras que los con otras estrategias y modelos que fueron niveles más complejos de asistencia se prestan apareciendo a partir de mediados de la década por contrato o convenio con la red privada o de los ’80. En la década de los ochenta, el estatal (Azevedo Mercadante et al., 1994). modelo de los “Sistemas Locales de Salud 3 A diferencia de lo que sucede en Brasil, (SILOS)” fue concebido por OPS como un el caso argentino no presenta claridad en camino complementario para alcanzar un la distribución de funciones entre niveles uso más eficiente de los recursos en un de gobierno existiendo distintas realidades escenario regional de fuerte crisis económica. provinciales en cuyas historias se fueron Estos sistemas han sido definidos como: “un forjando estructuras sanitarias con distinta conjunto interrelacionado de servicios de salud, potestad de los municipios sobre los servicios sectoriales y extrasectoriales, responsable de salud. En algunos casos, esas diferencias se de la salud de una población en una zona deben a procesos de descentralización hacia específica cuyos límites son casi siempre los de los municipios; en otros, se trata de situación una o varias unidades geopolíticas” (Gutiérrez, de vieja data resultado de la provincialización o 1991, p. 618). En términos generales, los SILOS municipalización de hospitales originariamente planteaban la profundización de los principios a cargo de instituciones de la beneficencia; básicos establecidos por APS, pero enfatizando las provincias de Córdoba, Corrientes, Buenos la jerarquía de la acción local como instancia Aires y más recientemente Santa Fe y Misiones estratégica para lograr la adecuación de son ejemplos de esta diversidad. la atención a las demandas y necesidades particulares de los territorios implicados. Saltando las fronteras del sector, la década de los ’80 albergó otra propuesta La jerarquización de la arena local que que jerarquizaba el nivel local, enfatizando expresan estas orientaciones estructuró parte el desafío de gobernabilidad con que se de las reformas del sector en Brasil. Con el enfrentaban las ciudades. La iniciativa proceso de descentralización y municipalización “Municipios, Ciudades y Comunidades de la atención, los gobiernos locales se Saludables” buscó aplicar la promoción de convirtieron en actores fundamentales de la salud a los contextos locales, adaptándose la provisión universal de servicios sanitarios favorablemente a los escenarios de la básicos (Falleti, 2007; D'Ávila Viana et al., descentralización, proceso en curso en los 2009). Este proceso se inicio a comienzos de la países de América Latina desde los ochenta y década de los 80’ y se consolidó en el año 2000 que se profundizaría en la década siguiente de Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 103 Magdalena Chiara e Ana Ariovich la mano de las reformas neoliberales. Desde esta en el análisis de las particularidades que perspectiva, un municipio o comunidad puede presentan los determinantes sociales en ser “saludable” si presenta una estructura para los entornos urbanos, haciendo eje en tres trabajar por la salud o si comienza un proceso cuestiones: la gobernabilidad, la métrica para conseguirlo, promoviendo la adopción de de los problemas sanitarios urbanos y los estilos de vida saludables y creando entornos determinantes de la salud y la equidad (OPS, que los favorezcan. Sin duda, esta iniciativa 2008). Desde el concepto de “salud urbana” demanda el desarrollo y fortalecimiento de comienza a abrirse una nueva orientación la acción intersectorial, la participación de la en el enfoque de los determinantes sociales, ciudadanía y la gobernanza (conformación que pretende analizar cómo se manifiesta en y fortalecimiento de las redes) para su cada ciudad los determinantes de la salud, implementación. y cómo el estudio de estos determinantes Pasado el decenio neoliberal, y habida debe traducirse en acciones multisectoriales cuenta del desplazamiento que sufrió la OPS/ y participativas vinculadas con la promoción OMS por parte de los organismos multilaterales de la salud y con la formulación de políticas de crédito, emergió una nueva propuesta que públicas en contextos urbanos (OPS/OMS, colocó a la problemática de la salud en un 2011a). contexto más amplio. Reconociendo como Anidando en la propuesta de los principal y más remoto antecedente el Informe SILOS y en el marco de la ya mencionada Lalonde de 1974, el planteamiento de los “Renovación de la APS en las Américas” del “Determinantes Sociales de la Salud (DSS)” año 2005, comenzó a promoverse de forma fue impulsado desde finales de la primera sistemática el desarrollo y fortalecimiento de década de este siglo, con el objetivo de lograr redes de atención de salud como respuesta a mejores impactos sobre las poblaciones. la fragmentación que se profundizaba en los Desde este abordaje, se buscaba integrar en países de la región. En el marco de la de la XVII la perspectiva sectorial a factores económicos, Cumbre Iberoamericana de Ministros de Salud educativos, ambientales, culturales y de de 2007 se señaló la importancia y necesidad género, tradicionalmente considerados como de desarrollar redes basadas en la atención externos al sector, como causas de parte de primaria, financiadas por presupuesto público las desigualdades sanitarias entre países y que garantizaran una cobertura universal. y dentro de cada país (Comisión sobre los Recogiendo los problemas emergentes del Determinantes Sociales de la Salud /OMS, balance de las reformas neoliberales, se 2008, p. 1). Esta forma de concebir los atribuía esta segmentación al predominio problemas involucraba, necesariamente, a de programas focalizados en enfermedades, otros sectores cuyas acciones tienen impacto riesgos y poblaciones específicas, la separación directo sobre la situación de salud de una de los niveles de atención como producto de población determinada. la descentralización de los servicios y a los Contemporáneamente con estos debates, la OPS/OMS recupera esta perspectiva 104 déficits en la cantidad, calidad y distribución de los recursos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio Frente a estos problemas, la acuerdo a las particularidades de cada estado conformación de redes fue visualizada como conforme los recursos disponibles (Dourado una estrategia de integración de los servicios y Mangeon Elías, 2011 y Dourado, 2010). de salud. Aunque la noción de Redes Integradas El caso argentino muestra experiencias de Servicios de Salud (RISS) admite múltiples que, recuperando el modelo de redes de interpretaciones, la OMS (2008) ha formulado servicios, desafían las complejidades de una definición amplia, que comprende distintas un sistema altamente fragmentado pero modalidades de integración: “La gestión y universal. Merecen destacarse la experiencia entrega de servicios de salud de forma tal que del Hospital El Cruce Alta Complejidad en las personas reciban un continuo de servicios Red, 4 el Programa Nacional de Cardiopatías preventivos y curativos, de acuerdo a sus Congénitas5 (incorporado desde hace más de necesidades a lo largo del tiempo y a través dos años al Plan Nacer) y el Programa FEASP de los diferentes niveles del sistema de salud” (Fortalecimiento de la Estrategia de Atención (OPS/OMS, 2008, p. 9). Primaria de la Salud)/ Remediar+Redes. Nuevamente encontramos en El recorrido realizado hasta aquí Brasil y en Argentina ejemplos de esta muestra distintos modelos y estrategias perspectiva aunque con diferente nivel de que han coexistido y continúan conviviendo organicidad. Reconociendo los avances en los planteos de la OPS / OMS. Estas pero también las limitaciones que mostró propuestas han interrogado y diagnosticado la estructura municipalizada que resultó de los problemas, delineando a su vez el diseño la descentralización del SUS en Brasil, hacia de posibles soluciones que se expresan en principios de la década del 2000, a través de distintas iniciativas en la región. Esta rápida la Norma Operacional de Asistencia a la Salud retrospectiva pone en evidencia continuidades, (NOAS) se llevó adelante la regionalización algunas rupturas e importantes núcleos de como “estrategia necesaria para que el complementariedad que podrían ser indagados proceso de descentralización se profundizara desde muy diferentes puntos de vista. pari passu la organización de la red de En este trabajo nos interesa asistencia, dando mejor funcionalidad al hacer foco en un aspecto que adquiere sistema y permitiendo una provisión integral de particular relevancia para el análisis de la servicios a la población” (Dourado y Mangeon implementación de la política de salud: las Elías, 2011, p. 207). En ese nuevo contexto distintas nociones de territorio que cobran institucional, la esfera estadual pasó a ordenar vida en estos planteos, los actores que se el proceso de regionalización sanitaria con un privilegian y que las sostienen y su capacidad Plan Director de Regionalización, instrumento de organizar desde las ideas la práctica en la que traduciría la planificación regional de implementación. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 105 Magdalena Chiara e Ana Ariovich La emergencia de la dimensión territorial y sus actores cómo ha ido apareciendo la cuestión territorial y cuáles han sido los actores jerarquizados en esa construcción. Retomamos, a modo de ejemplo, algunas de las iniciativas de Brasil y Argentina recuperando las nociones Desde mediados del siglo pasado, las de territorio implicadas en la práctica de las directrices de la OPS/OMS han modelado políticas. la institucionalidad en salud, orientando Los modos de conceptualizar la noción de financiamientos, proponiendo formas de territorio en el campo de las ciencias sociales organización, apor tando instrumentos, han ido progresivamente abandonando definiendo competencias a desarrollar y visiones espacialistas, moviéndose hacia otras difundiendo modos de conceptualizar las concepciones que dan cuenta de su carácter políticas. histórico (Dematteis y Governa, 2005 y Amin, D e la s d is t in t a s a p r ox ima ci o n e s 2005). En esta última perspectiva, que destaca posibles, retomamos una perspectiva del neo- el carácter construido, dinámico, determinante institucionalismo que enfatiza la relevancia que y determinado del espacio por la acción de los tienen los mapas cognitivos en el modelado de actores, las preferencias de los actores: concepciones particulares del mundo que se encuentran vinculada a los procesos culturales que dan sentido a la acción. Desde esta interpretación, [...] las instituciones son las convenciones sociales ( comprendiendo en ést as a los símbolos, ritos, costumbres y significados) a partir de las cuales los individuos interpretan el mundo que los rodea y crean su concepción de la realidad social. Los individuos son socializados en una cierta perspectiva del mundo, aprenden las convenciones sociales y con ellas construyen una forma aceptada de hacer las cosas; esto uniforma el comportamiento y facilita la interacción social. (Vergara, 2001, p. 2) [...] la territorialidad [puede entenderse]… como relación dinámica entre los componentes sociales ( e conomía , cult ura , instit ucione s , poderes) y aquello que de material e inmaterial es propio del territorio donde se habita, se vive, se produce. (Dematteis y Governa, 2005, p. 33) Esta aproximación jerarquiza aquellos procesos enlazados que se dan entre los actores (y sus relaciones en el entramado) y el territorio, en el seno de los cuales se inscribe el campo de la política sanitaria. Dado que el territorio es el escenario en el que tiene lugar y se configura la fragmentación y la inequidad de los sistemas sanitarios en Desde esta perspectiva y retomando América Latina, parece importante interrogar conceptos de la geografía y del análisis a las propuestas de la OPS / OMS en su de políticas, resulta interesante interrogar potencial para conceptualizar la cuestión el derrotero que han seguido las territorial, dando cuenta del alcance y de las conceptualizaciones de la OPS/OMS acerca insuficiencias que presentan para incorporar al de la política sanitaria, poniendo el foco en territorio en la agenda de salud. 106 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio La noción de control epidemiológico en la región, jerarquizando a los Ministerios nacionales. El modelo denominado de “los programas El territorio aparece en esta perspectiva ver tic ales” es quizás uno de los más como objeto de un control político y cuestionados pero paradójicamente aquel que epidemiológico en el contexto de la expansión sobrevivió junto a otras orientaciones que se y desarrollo de las instituciones centrales sucedieron, denominadas – en oposición – del Estado Social en la región; fundado “aproximaciones horizontales”. en diagnósticos que están asociados a la Surgido en la postguerra en el periodo tecnología disponible a difundir y en las denominado llamamiento regional a las normas que se deben aplicar. Con relación a armas contra las enfermedades transmisibles, esto último, un rasgo merece destacarse: la el modelo de los programas verticales fue construcción epidemiológica en función del tributario de dos procesos: los adelantos objetivo de erradicación de una enfermedad científicos como el descubrimiento de las tiene como consecuencia un territorio vacunas y del DDT (Tobar et al, 2006, pp. homogéneo, o bien la necesaria (en el 15-16) y el desarrollo de las instituciones del contexto de esta forma de pensar la política) Estado Social, caracterizado por la creación simplificación de sus particularidades. de una red pública subsidiada por y/o provista Esta idea tiende a quebrarse con la por el Estado, pero en el caso de América reaparición de los casos de malaria y la Latina con fuertes limitaciones territoriales resistencia a las tecnologías conocidas, (Andrenacci y Repetto, 2006, p. 10). emergiendo entonces la heterogeneidad Inscripto en una lógica top-down, este del territorio y sus actores en las rutinas modelo busca resolver (“erradicar” en el y procedimientos. La realización de planteo original y más extremo) un problema diagnósticos y encuestas, la delimitación de de salud a través de estrategias independientes áreas/ problema, la aplicación de DDT para que comprenden la fijación de normas de interrumpir la transmisión, las campañas de atención, la organización adecuada de los prevención y el desarrollo de sistemas de recursos y la racionalización del uso de la vigilancia epidemiológica, son las rutinas e tecnología, en el marco de un marco temporal instrumentos que adoptan estos programas y a adecuado (Tobar et al., 2006, p. 16). través de los cuales se esbozan otras nociones Estas ideas fuerza se traducen en una fundadas en la complejidad y singularidad. concepción mecanicista de la organización sanitaria que jerarquiza el poder central, en tanto responsable del entrenamiento La participación como clave y la gestión de los recursos humanos. La posibilidad de disponer de la tecnología y la Desde hace más de tres décadas y bajo el vocación por hacerla accesible a la población lema “salud para todos”, los organismos afectada, convergen con el desarrollo de las i n t e r na c i o n a l e s d e s al u d h a n v e n i d o instituciones centralizadas del Estado social sosteniendo que la Atención Primaria de la Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 107 Magdalena Chiara e Ana Ariovich Salud (APS) es la herramienta primordial a la participación activa de la familia, la que disponen los gobiernos para mejorar la comunidad, los referentes barriales, los agentes accesibilidad a la atención y lograr la equidad y promotores sanitarios, los organismos no y la extensión de la cobertura de salud para gubernamentales y las organizaciones sociales todas las poblaciones de manera costo efectiva para promover comportamientos y estilos (OMS, 1978). de vida saludables y mitigar los daños socio Sin embargo, la im plement ación ambientales sobre la salud. eficiente o eficaz de esta estrategia supone, Este entramado de actores se despliega ya desde el documento de Alma Ata (1978) en un “espacio de proximidad”, definido en adelante, el desarrollo de ciertos requisitos por la poblacional perteneciente al área que van más allá de lo estric tamente programática de inter vención. Se trata tecnológico o vinculado con la infraestructura: de un territorio vinculado a la noción de un enfoque intersectorial y multidisciplinar de “comunidad”; la APS se implementa y se la atención, concebida de manera integral, y la desarrolla como puerta de entrada con vínculo participación de la comunidad con un enfoque con la familia y la comunidad (OMS, 1978, de derechos (OMS, 1978, punto IV). punto VI): “un ámbito al que las personas Varios años más tarde, La Renovación de la Atención Primaria de la Salud en las pueden llevar toda una serie de problemas de salud” (OMS, 2008, p. 12) Américas (2007) refuerza la necesidad de Este “territorio de proximidad” se dotar a la APS de una orientación familiar y vuelve estratégico para la implementación, comunitaria, acorde a las necesidades de salud definiendo en simultáneo la demanda de de una población definida, mecanismo para prestaciones y creando posibilidades y afrontar los nuevos desafíos epidemiológicos condiciones en cuyo contexto cobran vida los y mejorar las inequidades persistentes en la procesos de atención integral. atención de la población (OPS, 2007); la APS Nuevamente, en la política sanitaria reorienta la atención desde el tratamiento d e B r a si l y A r g e n t i n a s e e n c u e n t r a n de la enfermedad y la rehabilitación hacia ejemplos de esta perspectiva. En el procesos que contemplen también estrategias Programa de Salud Familiar de Brasil, de prevención y promoción de la salud. subyace la noción de un territorio En este marco, esta estrategia privilegia “construido desde lo local”, de alcance dos tipos de actores. Por una parte, jerarquiza definido y cuya población está adscripta el trabajo de los equipos multidisciplinarios a un equipo básico sanitario responsable del primer nivel, quienes adquieren del desarrollo de actividades de promoción responsabilidad sobre la población adscripta y prevención (Suárez-Bustamante, 2010 ; perteneciente a un territorio geográfico H a r ze i m , 20 11) . U n e q u i p o d e s a l u d delimitado por la proximidad (OMS, 2008). integrado por profesionales y por agentes Por otra parte, jerarquiza la colaboración comunitarios es responsable activo (intra y de nuevos actores en las dinámicas de la extramuros de los servicios) de la situación atención; desde el primer nivel se convoca de salud del conjunto de las familias que 108 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio habitan ese territorio (Gomes-do-Espírito- las propuestas de los “Sistemas Locales de Santo et al., 2008; Schillig Mendoza, 2011). Salud (SILOS)” y de “Municipios, Ciudades y En el contexto argentino, la noción Comunidades Saludables”, hicieron emerger de “proximidad” está también presente en el “territorio de lo local” trascendiendo así distintas iniciativas enfatizando no sólo el la noción de “proximidad” que jerarquizaba fortalecimiento de los centros de atención la APS. primaria de la salud sino también las relaciones L a propuest a de los SILOS es la con otros actores. Distintos incentivos buscan responsable de inaugurar en la región el fortalecer la estrategia de APS en las distintas ingreso de lo local al debate sanitario. En la jurisdicciones a la vez que ordenar la práctica XXXIII Reunión del Consejo Directivo de la de los equipos municipales y estaduales OPS del año 1991, se destacaba “la urgente (provinciales en el caso argentino) hacia la necesidad de acelerar la transformación de responsabilización nominada de la población los sistemas nacionales de salud, mediante el en territorios delimitados. En aquellos desarrollo y fortalecimiento de los sistemas casos en que los servicios se encuentran locales de salud (SILOS) como táctica operativa municipalizados, el nivel local comienza a de la estrategia de la atención primaria” jugar en los procesos de gestión interpelando (Paganini, 2008, p. 32). Su propósito principal las fronteras de la proximidad y abriéndose a fue impulsar la toma de decisiones en los la lógica multi-escalar de la gestión. sitios donde se generan los problemas y, por consiguiente, propiciar la descentralización de facultades y recursos hacia las instancias La jerarquía del nivel local periféricas. Recuperando trazos de los modelos anteriores, una noción algo más compleja de En las últimas décadas del siglo XX y principios territorio está presente en la resolución de del siguiente tuvo lugar en la región una dicha reunión.6 revisión profunda de las competencias públicas Una primera cuestión a destacar es en el campo de la política social (Andrenacci y que la noción del territorio delimitado desde Repetto, 2007, p. 9), expresada en el sector la epidemiologia se politiza poniendo el salud por procesos de descentralización y foco en la construcción de una “propuesta de autarquía de los establecimientos que geográfica poblacional (…) influenciada por tuvieron lugar en un contexto caracterizado las necesidades de la población definidas por una franca expansión de la demanda en términos de daños y riesgos” (Paganini, (Almeida, 2002a y2002b; Fleury, 2001 y 2007; 2008, p. 21). El aspecto que diferencia más Sojo, 2011). claramente a los SILOS, es la invitación a dar En el marco general de estas reformas, las iniciativas para la reorganización de los un “salto” hacia una escala más comprensiva, el “territorio local”. sistemas planteadas por la OPS delimitaron A diferencia de la propue st a de nuevos recortes espaciales para la política “Municipios, Ciudades y Comunidades sanitaria. Aunque con anclajes diferentes, Saludables”, la iniciativa de los SILOS busca Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 109 Magdalena Chiara e Ana Ariovich mantener la especificidad sectorial, con foco desde múltiples dominios de la vida social: en la atención. Pivoteando sobre el rol del saneamiento, educación, trabajo, modos Municipio como coordinador de distinto tipo de vida, ambiente. En la complejidad de los de articulaciones intrasectoriales entre niveles factores comprendidos en esta perspectiva, y con otros subsectores, e intersectoriales con la acción intersectorial y la participación otras áreas gubernamentales y con el sector ciudadana son rasgos que distinguen el modo privado (Paganini, 1999, p. 21). Aunque de acción de la estrategia en el territorio local. manteniendo un recor te sectorial, esta En esta perspectiva, el territorio se construye propuesta conceptualiza el territorio desde política y socialmente con los ciudadanos, otras dimensiones: la cuestión del poder, del a través de la gestión democrática y del Estado, del financiamiento y de la coordinación fortalecimiento de la participación como intergubernamental, se suman a la noción de elementos esénciales. “proximidad” y sus actores, complejizando así el concepto de territorio. En un esfuerzo por operacionalizar el concepto de entorno saludable de cara a Acorde al clima descentralizador de la rescatar las contribuciones de esta estrategia época en América Latina, la propuesta apuesta para el cumplimiento de los Objetivos de a que las instituciones locales asuman un papel Desarrollo del Milenio (OPM),8 la propuesta de estructurante de los SILOS. El territorio para MCCS retorna a los espacios de proximidad y esta propuesta es “o local; sin embargo, los aparecen la vivienda, la escuela, los mercados documentos refieren al espacio de actuación y el trabajo, como entornos saludables desde de los SILOS y llaman la atención acerca de los cuales actuar e integrar sinérgicamente la necesidad trascender las fronteras de lo (OPS/OMS, 2006, p. 39). municipal para dar cuenta de la densidad de A diferencia de la propuesta de los SILOS, los actores que juegan en esa arena (Paganini, las referencias al contexto del sistema sanitario 2008, p. 33) así como la pertenencia orgánica tanto nacional como de otros subsectores, a un sistema nacional de salud como entidad están ausentes en la estrategia MCCS; lo global y la articulación en red de servicios mismo sucede con los Estados nacionales. Los interrelacionados (Paganini, 1999, p. 22) actores jerarquizados son los gobiernos locales Con el foco puesto en la gobernabilidad, (con referencias explícitas a los alcaldes) y las la iniciativa “Municipios , Ciudad e s y Organizaciones No Gubernamentales (ONG) y Comunidades Saludables” (MCCS) aporta Organizaciones Sociales Comunitarias (OSC). una noción de territorio más comprensiva La delimitación de actores está hablando tomando distancia de las cuestiones más duras de una aproximación a la gobernanza de 7 del sector. Adaptándose a los escenarios de las ciudades haciendo foco en el papel del la descentralización en América Latina, la municipio cooperando en redes con otros propuesta busca aplicar la promoción de la actores gubernamentales y de la sociedad. salud a los contextos locales, jerarquizando En ambas propuestas, el territorio los procesos a través de los cuales es posible ingresa a la agenda sanitaria jerarquizando lo alcanzar una mejora en las condiciones de vida local, aunque con recortes diferentes tanto en 110 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio relación a los dominios de la vida social como a las escalas de análisis. Delimitando desde los problemas sociales Estos planteos han permeado de diferente modo a las políticas en los países Las dinámicas sociales que caracterizan de la región; los contrapuntos entre Brasil y al nuevo siglo imprimen una complejidad Argentina vuelven a mostrar diferencias. La social, económica, demográfica y ambiental descentralización y municipalización de la salud sin precedentes, generando importantes pública en Brasil da cuenta de la jerarquización desafíos a la gestión de las políticas de de los espacios locales, que comienzan a salud, que se vuelven más dramáticos en expresarse como territorios complejos y con los países más pobres. Factores como el mayores niveles de autonomía en articulación envejecimiento de importantes sectores de directa con los actores e instituciones la población, el progresivo incremento de sanitarias de la esfera regional. Se trata de las enfermedades crónicas en detrimento un territorio local fortalecido, pero cuya de las infectocontagiosas, la incorporación planificación y funcionamiento se ensambla – de tecnologías diagnósticas y terapéuticas intrasectorialmente – con el ámbito regional, más sofisticadas y costosas, impac tan a la vez que armoniza con los lineamientos diferencialmente en los sistemas sanitarios generales y las regulaciones que le confiere de acuerdo a sus recursos, siendo fuente la institucionalidad del federalismo en el de importantes inequidades. Esta forma de marco del SUS (Arretche, 2003; D'Ávila Viana concebir el contexto en el cual la población et al., 2009). En Argentina, las experiencias experimenta sus problemas sanitarios, de municipalización de los servicios de salud abre una nueva perspectiva que enfatiza muestran la complejidad del territorio local no la influencia de los determinantes sociales sólo en la dinámica política sino también en las en la configuración del proceso de salud dificultades para delimitar sus fronteras: desde enfermedad (OMS, 2011, p. 2). fuera del ámbito local, actores del subsector Aunque los documentos relativos a la público intervienen y condicionan las acciones perspectiva de los Determinantes Sociales de los denominados “actores locales” junto de la Salud ( DSS) no hagan referencias al sector privado y de la seguridad social. La explícitas, el territorio se expresa a través diversidad de experiencias descentralizadoras de la enunciación de los factores sociales, y la ausencia de una política ordenadora desde económicos y políticos que impactan en los el nivel nacional han dado lugar a importantes perfiles epidemiológicos de las poblaciones. La disparidades regionales, encontrándose una preocupación por la desigualdad remite a un multiplicación de respuestas locales de distinta espacio donde se hacen visibles la desigualdad calidad, eficiencia y equidad en el acceso a los en las condiciones de vida de la población en servicios (Chiara, Moro, Di Virgilio, Ariovich y general y las condiciones de salud-enfermedad Jiménez, 2011). en particular, así como también la desigual Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 111 Magdalena Chiara e Ana Ariovich distribución de los recursos (Equipo de Equidad Desde una visión topológica en Salud de la Organización Mundial de la Salud, 2005, p. 10) Tras las reformas neoliberales, los primeros Acorde con esta mirada estructural de años de esta década renovaron en la región la los problemas que demarcan y jerarquizan expectativa acerca del rol de las instituciones el territorio, los responsables de priorizar estatales en los distintos sec tores ; la estas recomendaciones son quienes formulan intervención del Estado nacional a través de e implementan políticas de salud a escala políticas y programas con impacto en la calidad nacional. de vida de la población y destinadas a resolver El núcleo de reflexiones, aportes y las inequidades y desigualdades sociales, se estudios en torno a la “salud urbana” avanza hizo cada vez más frecuente en el conjunto de de un modo más explícito en el análisis de las los países latinoamericanos (Gudynas et al., particularidades que imprime el territorio en la 2008; Danani, 2009). salud de los distintos entornos urbanos. Este En este escenario, el desarrollo de recorte historiza y localiza en el espacio el Redes Integradas de Servicios de Salud debate sobre la equidad, haciendo eje en las (RISS) se introduce como un instrumento brechas y en los circuitos de reproducción de para que los Estados puedan asegurar una la desigualdad en el territorio: “El enfoque de atención más integrada, eficiente y equitativa la equidad en salud urbana implica orientar frente a los altos niveles de fragmentación los esfuerzos hacia la reducción de las de sus sistemas de salud. El diagnóstico de diferencias en resultados y riesgos de salud partida de estas propuestas avanzaba sobre entre diferentes áreas urbanas y los grupos distintos factores, pero básicamente hacía humanos que las habitan” (OPS, 2008, p. eje en las consecuencias de las reformas 40). Este enfoque recupera y problematiza neoliberales: el predominio de programas la dimensión política del territorio como focalizados en enfermedades, riesgos y determinante en la cuestión sanitaria e poblaciones específicas; la segmentación de incorpora a sus actores y a las relaciones los niveles de atención como consecuencia sociales que allí se despliegan: de la descentralización de los servicios; los problemas en la cantidad, calidad y Estos marcos reconocen la complejidad del proceso multinivel por medio del cual los determinantes y los distintos actores juegan un papel crítico en la determinación de salud de los residentes urbanos (…) Se incluye aquí la forma en que los niveles de participación y descentralización, las innovaciones sociales y los intereses de los diversos actores afectan la salud urbana. (OPS, 2008, p. 39) 112 distribución de los recursos; y la existencia de culturas organizacionales contrarias a la integración (OMS, 2007; OPS/OMS, 2008). Este diagnóstico desafiaba a su vez las autoridades sanitarias a resolver las tensiones e ineficiencias resultantes de la coexistencia (desarticulada) de las clásicas intervenciones verticales con aquellas horizontales animadas por el modelo de la APS. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio Si bien las propuestas orientadas a la de los servicios de salud es uno de los fines conformación de redes alcanzan distintas de la política que se ve condicionada por la escalas, subyace en ellas una noción del singularidad del sistema federal y la trama de territorio orientada por propósitos casi las relaciones intergubernamentales, factores exclusivamente sanitarios, desde la cual que configuran la complejidad del territorio se integran (desde una lógica reticular) desde el plano político institucional (Dourado distintos ámbitos locales. Esta aproximación y Mangeon Elías, 2011). busca racionalizar y optimizar los recursos Aún sin tener cobertura nacional, la disponibles en cada región (frecuentemente noción de “territorio en red” comienza a escasos) para maximizar resultados. permear distintas iniciativas de la política Las redes de servicios dan lugar así a sanitaria también en el caso argentino. Las una nueva noción de territorio para diseñar experiencias presentadas en el apartado e implementar las intervenciones sanitarias anterior abonan (desde la inversión en que estructura en un mismo entramado equipamiento, el pago por práctica médica, a un conjunto disperso de efectores para la mejora en infraestructura y el desarrollo interrelacionar servicios con distinto nivel de sistemas de información) a la articulación de complejidad. Se trata de un territorio que de los servicios de salud independientemente presenta una lógica topológica, en donde d e la ju r i s d i c c i ó n r e s p o n s a b l e d e la los flujos y las redes de interacción surcan el gestión ( nacional, est adual / provincial espacio regional y conectan “a distancia”, como municipal). El Hospital El Cruce Alta permitiendo la continuidad de los recursos y las Complejidad en Red coordina desde los prestaciones en una escala mayor. Las redes servicios de alta complejidad a cinco hospitales posibilitan así – siguiendo a Dematteis (2002)– y a 152 centros de salud en cuatro municipios la coordinación, la colaboración y el diálogo del sur del Gran Buenos Aires, mientras que, con la globalidad, desde las coordenadas con alcance nacional, los Programas de propias y las necesidades específicas de cada Cardiopatías Congénitas y Remediar+Redes comunidad local. buscan construir un territorio de la nodalidad También en este caso las políticas nacionales son caja de resonancia de confiriendo distinta jerarquía al nivel estadual (denominado provincial en el caso argentino). estos planteos a la vez que espacios de Este recorrido muestra que el territorio reformulación desde la práctica. Partiendo de ha estado y está presente en las orientaciones una propuesta orgánica y con alcance nacional, y prescripciones de la política sanitaria, aunque la regionalización del SUS de Brasil supone con ciertas insuficiencias para describir y la necesidad de integración de los distintos analizar la complejidad de la relación de mutuo componentes del sector para garantizar el condicionamiento que tiene lugar entre el ejercicio efectivo del derecho a la salud en todo territorio y los procesos de toma de decisiones el país. En esta propuesta, la regionalización de la política sanitaria. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 113 Magdalena Chiara e Ana Ariovich Un intento por recapitular avances e insuficiencias Los límites del esfuerzo por simplificar la complejidad Tal como se viene analizando, los distintos El aspecto más destacado de esta forma planteamientos que ha aportado la OPS/OMS concebir el territorio de la acción sanitaria se sobre los problemas de salud y las respuestas relaciona con su capacidad para simplificar la desde la política sanitaria, llevaron implícitas complejidad. Dos caminos novedosos se abren distintas nociones de territorio operando desde esta perspectiva. como “anteojos conceptuales” al momento de su implementación. El primero, tiene que ver con que la política sanitaria deja de ser cuestión de El recorrido realizado descompone expertos para convertirse en un conjunto la complejidad de la cuestión territorial de procedimientos a ser cumplidos por en distintos aspectos que son enfatizados actores diversos ampliando así el alcance diferencialmente por las estrategias y modelos: territorial de la acción. En segundo lugar, la noción de control epidemiológico presente en esta forma de recuperar el territorio permite los programas verticales, la participación como construir y delimitar las fronteras a partir de uno de los emergentes más evidentes de la crisis un determinado problema sanitario, pasible de aquel modelo y la constitución de la APS de ser resuelto a través de la tecnología como paradigma de intervención, la jerarquía disponible. del nivel local enfatizada en la propuesta El p o t e n c i a l si m p l i f i c a d o r d e l a de los SILOS y de Municipios, Ciudades y complejidad del territorio que subyace a esta Comunidades Saludables, la delimitación del noción de territorio debe ser matizado en el territorio desde los problemas expresado en el plano empírico. Lo que es percibido como enfoque de los determinantes sociales de salud fortaleza desde el diseño en los niveles y en las especificidades de la salud urbana y, centrales con altos niveles de especialización, más recientemente, la visión topológica del re sult a insuf iciente en el nivel d e la territorio, presente en la propuesta de Redes implementación donde la especialización es Integradas de Servicios de Salud. mucho menor y la complejidad y multiplicidad Estas nociones que devuelven las orientaciones de la política sanitaria son de actores y sectores involucrados se hace evidente. aportes que resulta necesario recuperar En la implementación, los problemas para pensar la relación entre política “saltan las fronteras” del sector y ponen sanitaria y territorio, detectando a su vez las en cuestión a las variables epidemiológicas insuficiencias que llaman a la necesidad de como criterio exclusivo de delimitación de los profundizar su conceptualización. territorios objeto de políticas. 114 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio Sobre la necesidad de dar cuenta de las distintas escalas de la participación restringidas (caras al paradigma neoliberal) que pueden conducir a una peligrosa auto responsabilización de la población local acerca En la atención primaria de la salud, el territorio ingresa a la gestión de la política sanitaria a partir de la delimitación de un área programática que recoge, por un lado, de los éxitos o fracasos en torno al acceso a la atención, omitiendo otras escalas en las que se despliegan importantes articulaciones del entramado de actores. las demandas particulares de las familias y, por el otro, convoca a la participación activa El desafío de politizar lo local de la comunidad. El territorio se define como un espacio físico de continuidad, donde los Lo local aparece en la agenda sanitaria vínculos se determinan por relaciones de como una perspectiva que integra por proximidad. primera vez en las propuestas de OPS/OMS, La escala espacial de lo local sobre distintos aspectos de la cuestión territorial. la que descansa esta propuesta es la que Sin abandonar la especificidad sanitaria, posibilita los contactos y la cooperación entre la propuesta de los SILOS lleva de manera los actores involucrados en los procesos de la bastante explícita una noción de territorio atención de la salud; la dimensión territorial que parte de una mirada epidemiológica y emerge como una herramienta que permite la puebla de actores, jerarquizando el papel a las comunidades definir sus necesidades y de coordinación del gobierno local en un derechos. espacio que necesariamente debe trascender No obstante su utilidad y pertinencia, la escala de proximidad. La noción de territorio un recorte circunscripto a lo próximo y que implícita en la estrategia de Municipios, presupone la interacción fluida entre actores Ciudades y Comunidades Saludables (MCCS) (o potenciales actores) en presencia de un es más amplia y está asociada al concepto de conjunto dado de recursos locales, corre el promoción de la salud. riesgo de aislar a la comunidad del contexto Ambas propuestas comparten la noción mayor y desatender a la incidencia de otros de lo local como el lugar de realización actores (cuya acción no necesariamente está de las necesidades de la población y de localizada en el territorio de proximidad) pero consenso entre los actores. Sin embargo, que también intervienen en el desenlace de la una mirada atenta acerca del entramado que política sanitaria. constituye al territorio permite reconocer – Cabe resaltar además, que si bien la en estas propuestas – distintas formas de inclusión de la familia y la comunidad como conceptualizarlo. En un caso, la propuesta de un actor clave del territorio en los procesos de los SILOS pone el foco en la responsabilidad atención primaria es – sin dudas – un aporte sanitaria y establece un recorte sectorial novedoso y valioso de la propuesta de la APS, más preciso, recuperando la complejidad esta premisa ha derivado en las versiones más de las relaciones entre subsectores y con el Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 115 Magdalena Chiara e Ana Ariovich conjunto del sistema nacional de salud, que sanitarias en los territorios particulares, no se operan en un territorio. En el segundo caso, jerarquiza el rol de los actores que intervienen la noción de local que dibuja la estrategia de más activamente. De los documentos se MCCS es más comprensiva y menos sectorial desprende una noción de territorio sin actores al tiempo que se permite realizar un recorte explícitos, ya que no hay mención específica a más nítido de lo local y sus actores, con escasa autoridades locales responsables o referencias problematización de las otras escalas que al sector salud y a sus efectores locales, como operan en un territorio. así tampoco a sujetos de la comunidad sino que Sin desconocer la significativa contribución de estas propuestas para pensar la equidad sanitaria es una responsabilidad compartida (OMS, 2011, p. 1). la cuestión territorial en la política sanitaria, Destacando el salto a la complejidad quedan planteadas algunas cuestiones de las que esta perspectiva supone para el análisis, cuales dar cuenta en el análisis de lo local y define una agenda demasiado abierta en la que aluden a cómo se juegan las relaciones que las responsabilidades de los distintos intergubernamentales en el territorio, si la actores del sector quedan diluidas en el escala de los actores se corresponde con la conjunto de los determinantes. Los desafíos escala de la representación ciudadana, cuál es pasan por la agenda de la coordinación, el rol de las instituciones estatales por sobre el interjurisdiccionalidad e intersectorialidad municipio para garantizar el ejercicio efectivo en tanto medios para una integralidad del rol de coordinación. Sin duda se trata de abordaje que la perspectiva de los de preguntas que trascienden a la cuestión determinantes demanda. territorial pero que pueden ser ocultadas por estereotipos excesivamente optimistas que jerarquizan lo local sin problematizar las complejas relaciones entre escalas que en estos espacios tienen lugar. La virtualidad del territorio en la búsqueda de instrumentos de políticas La iniciativa en torno al establecimiento de Actores difusos en un escenario complejo redes de servicios de salud adopta una visión más sistémica y menos fragmentada del territorio, donde distintos flujos de interacción La propuesta de los determinantes sociales y complementariedad vinculan y articulan un focaliza su atención en las condiciones sociales conjunto disperso de servicios y prestaciones y estructurales que determinan la salud de las de diferente complejidad y/o especialización personas en los distintos territorios, dejando en un mismo espacio, que esta vez alcanza una en un segundo plano los factores de riesgo escala regional. individual. En este esquema se resignifica la Si bien desde este planteo se da cuenta jerarquía del hospital en su papel para articular de la complejidad inherente a las cuestiones y articularse en el conjunto de la red, en cuya 116 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio dinámica se cualifica a un territorio más amplio espacialistas, proponiendo concepciones que recoge la existencia de distintas escalas. que dan cuenta de su carácter histórico. Sin La APS se convierte en la estrategia embargo, la sola invitación a desnaturalizar desde la cual las autoridades regionales y el carácter meramente espacial y dado del centrales pueden lograr una integración territorio no parece ser suficiente para hacerlo funcional del territorio para las intervenciones operativo como dimensión en el análisis de la sanitarias (OPS/OMS, 2011b). política sanitaria. En esta propuesta el territorio se La revisión realizada en este trabajo transforma – siguiendo a Brugué et al. (2002) fue recuperando las nociones de territorio – en un complejo espacio virtual y dinámico, que subyacen a los planteos de la OPS / flexible a los intercambios. Las distancias OMS, organismo que orientó parte de las físicas y operativas se relativizan, posibilitando políticas en la región. Con distinto énfasis y una continuidad adecuada a las necesidades delimitación, estas nociones han buscado de los procesos de atención de la salud y a poner el foco en los procesos enlazados que una mayor racionalización y optimización de se dan entre los actores, la estructura social los recursos disponibles. y el territorio, en cuyo contexto se inscribe la En esta propuesta los desafíos son política sanitaria. menos conceptuales que operativos. Pensar Aún destacando el aporte de cada las acciones en salud desde esta perspectiva perspectiva, el recorrido realizado en este supone orientar la implementación, el trabajo muestra también las insuficiencias de diseño de los instrumentos y las inversiones, estos planteos y la necesidad de construir un considerando al territorio configurado por las marco conceptual que, abrevando también redes como unidad de intervención. en la geografía y en el análisis de políticas Finalizando, los modos de conceptualizar públicas, pueda dar cuenta de la especificidad la noción de territorio en el campo de las sanitaria de esta articulación entre actores, ciencias sociales fue abandonando visiones estructura social y territorio. Magdalena Chiara Licenciada en Ciencias Antropológicas y doctoranda en Ciencias Sociales. Docente Investigadora Asociada del Área de Política Social del Instituto del Conurbano UNGS. Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires, Argentina. [email protected] Ana Ariovich Mágister en Sociología Económica, Docente Investigadora Asistente del Área de Política Social del Instituto del Conurbano – UNGS. Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires, Argentina. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 117 Magdalena Chiara e Ana Ariovich Notas (*) El trabajo se realiza en el marco de la inves gación colec va “El territorio en la agenda sanitaria: instrumentos y modos de ar culación en el subsector público en el Gran Buenos Aires” que comenzó a desarrollarse en el Ins tuto del Conurbano de la UNGS en el año 2010. (1) www.saude.gov.br/atencaoprimaria (2) h p://www.remediar.gov.ar/ (3) La descripción de la propuesta de los Sistemas Locales de Salud está realizada con base a Paganini, 1999. (4) h p://www.hospitalelcruce.org/pdf/planestrategico.pdf (5) h p://www.plannacer.msal.gov.ar/index.php/pages/incorporacion-de-cirugias-de-cardiopa ascongenitas (6) Resolución de la XXXIII Reunión del Consejo Directivo de OPS/OMS del año 1991, titulada “Desarrollo y Fortalecimiento de los Sistemas Locales de Salud, SILOS-10”. (7) Esta estrategia reconoce como antecedente el Movimiento Europeo de Ciudades Saludables Mediados de mediados de la década de los 80, particularmente importante en el proceso de recuperación de los Ayuntamientos Democráticos en España. Constituyó una forma de operacionalizar la “Carta de Ottawa para la Promoción de la Salud” de 1984 y se formalizó en 1998 en la Declaración de Atenas para las Ciudades Saludables. Declaración del Director Regional de la OMS para Europa (Llorca, 2010). (8) Se trata de un conjunto de ocho propósitos de desarrollo humano que en el año 2000, los 192 países miembros de las Naciones Unidas acordaron alcanzar para 2015. Dada la naturaleza del acuerdo, interpelaron a los dis ntos organismos de las UN y a sus estrategias. Referencias ALMEIDA, C. (2002a). O SUS que queremos: sistema nacional de saúde ou subsetor público para pobres? Ciência e Saúde Cole va, v. 18, n. 4, pp. 417- 437. ______ (2002b). Equidade e reforma setorial na América La na: um debate necessário. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, 18 (suplemento), pp. 23-36. ______ (2008). “La implementación de la reforma en Brasil. La dinámica del Sistema Único de Salud y algunos resultados”. En: CHIARA, M.; DI VIRGILIO, M. M. y MIRAGLIA, M. Ges ón Local en Salud: conceptos y experiencias. Los Polvorines, UNGS. AMIN, A. (2005). Regiones sin fronteras: hacia una nueva polí ca del lugar. Ekonomiaz, n. 58. ANDRENACCI, L. y REPETTO, F. (2007). Universalismo, Ciudadanía y Estado en la Política Social La noamericana. Mimeo. 118 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 99-122, jan/jun 2013 Luces y sombras sobre el territorio ARRETCHE, M. (2003). 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From the environmentalization of planning to sustainable cities Ester Limonad Resumo Nas duas últimas décadas, a questão ambiental e da sustentabilidade passou a integrar e converteu-se em um fator emblemático de legitimação dos discursos e práticas do planejamento urbano e regional. Uma das evidências mais palpáveis dessa convergência do planejamento e da sustentabilidade é a proposta de cidades sustentáveis da Organização das Nações Unidas, que surgiu ao início da década de 1990. Sua adoção por mais de trinta países torna urgente uma leitura crítica do desenvolvimento sustentável e da natureza da ambientalização do discurso do planejamento, que contribua para se avançar rumo à construção de uma economia política do espaço e a uma prática de planejamento, que instrumentalize a participação social em uma perspectiva transformadora. Abstract During the last two decades, sustainability and environmental issues have become an integral part and an emblematic legitimating factor of urban and regional planning discourses and pratices. The United Nations’ sustainable cities programme, created during the 1990s, is one of the most tangible evidences of such convergence between planning and sustainability. As it has been adopted by more than thirty countries, it is necessary and urgent to perform a critical reading of sustainability and of the nature of the environmentalization of the planning discourse, so as to move towards the construction of a political economy of space and of a territorial planning pratice that aims at social transformation. Palavras-chave: questão ambiental; política do espaço; sustentabilidade; cidades sustentáveis; planejamento. Key words : environmental issues ; politics of space ; sustainabilit y; sustainable cities; planning. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 Ester Limonad "O mundo pode ser mais sustentável!" metrópoles sustentáveis e a preservação am- "Insira a sustentabilidade no seu dia a dia com biental. Sem dúvida, a sustentabilidade con- 1 o Santander". Quando lemas desse tipo apa- verteu-se em uma obsessão generalizada, das recem em sítios eletrônicos de bancos, de cor- populações indígenas ao Banco Mundial, bem porações multi e transnacionais, simultanea- como uma ampla gama de grupos diversos mente ao pipocar de testes em redes sociais entre os quais se contam desde órgãos de go- contemporâneas ( Facebook, Twitter, etc.) verno a empresas multi e transnacionais: todos e em revistas de negócios, esportes, moda se declaram favoráveis em preservar a nature- e, inclusive, eróticas, destinados a avaliar se za e a lutar pelo desenvolvimento sustentável. "você é sustentável?", pode-se concluir que Sem embargo cada qual se proponha a fazê-lo a ideia da sustentabilidade invadiu de forma com base em agendas e interesses diferentes e avassaladora o cotidiano e a reprodução das por vezes totalmente contraditórios, sem che- diferentes esferas sociais. Em todos lados, em gar a explicitar claramente o que entendem por todas partes, tornou-se lugar comum falar em desenvolvimento e muito menos o que enten- sustentabilidade. O termo, associado nas duas dem por sustentabilidade. Partem, assim, mui- últimas décadas do século XX à questão am- tas vezes do pressuposto de que isso está claro biental, por seu caráter aparentemente neu- e subentendido em suas propostas. tro, acrítico e acima de interesses de classe Este ensaio tem por norte destacar as (Rodrigues, 2006, p. 112) rapidamente se con- contradições entre desenvolvimento, apropria- verteu em um sucedâneo da ideia de um mun- ção privada da natureza e os discursos sobre a do melhor, um mundo sustentável. Em decor- sustentabilidade, em particular os discursos re- rência, passa a ser adotado, de forma indis- lativos à sustentabilidade do desenvolvimento criminada, para adjetivar propostas, práticas e e do planejamento. Discursos que soem servir coisas, como uma forma de legitimação e de de suporte a questões relativas à gestão dos reforço positivo. O corolário é a multiplicação recursos hídricos, a bioengenharia de semen- exponencial de práticas sustentáveis, de ati- tes, ao crédito de carbono e a apropriação da vidades de turismo sustentável, de propostas biodiversidade por parte de alguns países do de gestão sustentável de espaços naturais e mundo em detrimento de outros (detentores sociais e, como não poderia deixar de ser, de ou não de biodiversidade e tecnologia). Insere- cidades sustentáveis. -se, portanto, em uma perspectiva crítica de Embora as opiniões divirjam e permaneça construção de uma economia política do espa- obscuro o que seria a sustentabilidade, plane- ço, que contribua para aclarar e compreender jadores, arquitetos, urbanistas, ambientalistas, as relações sociais de produção e as necessi- geógrafos, advogados e outros profissionais dades que se impõem para sua reprodução na passaram a defender as cidades sustentáveis, contemporaneidade. 124 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade Algumas novas velhas questões capital e a reprodução de grupos sociais não hegemônicos, entre a dominação e a apropriação social do espaço. Com base nessa contradição irrompem conflitos sociais diversos em Desmatam-se florestas, em seu lugar plantam- disputa pelos meios que garantam sua sobrevi- -se outras árvores, eucaliptos, pinheiros ou mo- vência e reprodução. Esses conflitos perpassam noculturas alienígenas. Explora-se petróleo em a questão ambiental contemporânea e permi- alto mar em campos marítimos com nomes su- tem vê-la como parte integrante da reprodução gestivos como jubarte, garoupa, etc. Não se tra- social e da produção social do espaço, como tam de homenagens à fauna marinha, mas de uma expressão da relação sociedade-natureza justificar a exploração de petróleo ou gás na- e das formas de apropriação social do espaço tural em áreas de reprodução desses animais, necessárias à reprodução de uma dada socie- alguns ameaçados de extinção. No âmbito do dade (Lefebvre, 1991). A questão ambiental, agronegócio se comercializam a preços eleva- assim, pode ser entendida em estreita relação dos produtos orgânicos, isentos de produtos com os processos sociais constitutivos de cada nocivos, embora produtos transgênicos mais sociedade e com a produção social do espaço baratos vicejem em diversos lugares. Os quais geográfico (Santos, 1985). podem colocar em risco através da polinização Neste contexto, parafraseando Rodrigues a reprodução de plantas com sementes, apesar (1998), a ideia de sustentabilidade ao ser as- das proibições e interdições adotadas por al- sociada sem critérios e de forma indiscrimina- guns países. da à questão ambiental contribui para “jogar Essas ações, além de serem comprova- uma cortina de fumaça sobre estas contradi- damente desastrosas em termos ambientais ções, pois não propõe alterações nos modos de para a fauna e flora nativas, afetam as con- produzir e de pensar do modelo dominante”. dições necessárias à sobrevivência de popula- Por outra parte, a sustentabilidade aparece ções nativas. Pois, ao transformar-se suas pos- como uma pedra de toque de caráter dúbio, à sibilidades e formas de apropriação do espaço medida que diferentes atores e agentes, desde social altera-se a espacialidade das relações intelectuais a técnicos de governo e de insti- que esses grupos sociais estabelecem com o tuições diversas, se propõem a defendê-la e meio para se reproduzir e sobreviver. O consu- passam a adotá-la quase que como epítome mo crescente do espaço, ao mesmo tempo em de uma sensibilidade ambiental. Um exemplo que propicia a manutenção e sustentabilidade nesse sentido encontra-se na esfera empresa- do desenvolvimento do capitalismo na con- rial e corporativa, que se manifesta no esforço temporaneidade, contribui para destruir a base de empresas de diversos ramos industriais, do de subsistência e de reprodução de grupos na- comércio e de serviços de conquistarem selos tivos originários. de certificação ambiental, que abrangem desde Evidencia-se, assim, a contradição os certificados ISO 140002 aos selos verdes ou básica entre a produção de valores de tro- outras rubricas encaradas como política e am- ca e valores de uso, entre a reprodução do bientalmente corretas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 125 Ester Limonad Jamais na História, os Estados nacionais, a teoria social crítica (Lopes, 2006, p. 34), ao as corporações multi e transnacionais estive- envolver, a um só tempo, instituições interna- ram tão preocupados em se mostrar ambiental- cionais, Estados nacionais, diferentes esferas mente sensíveis como na contemporaneidade. de poder e distintos agentes e atores sociais, Urge entender o caráter dessa preocupação. cada qual com interesses e concepções pró- Há que se explicitar que as certificações e ró- prias, permite sua complexificação em diversas tulos ambientais além de serem elementos escalas. Um exemplo nesse sentido é o conflito de competividade no âmbito do marketing que perpassa hoje a proteção da biodiversida- de marcas e produtos, são uma expressão da de, campo de enfrentamento entre proposições guerra de patentes e confrontos sociopolíticos decorrentes do regime de proteção de patentes travada em escala internacional entre corpo- e as demandas sociais relativas ao "reconheci- rações multinacionais, Estados nacionais e mento da particularidade do estatuto de bem diferentes grupos sociais. Evidenciam, dessa comum para os saberes tradicionais e autócto- maneira, o confronto clássico entre o saber fa- nes" (Milani, 2008, p. 291). zer (know-how, savoir faire) e o conhecimento Nesse sentido, retomando Milton Santos (knowledge, connaissance), entre formas arrai- (1985, 1996) e Henri Lefebvre (1991), pode-se gadas de apropriação social e formas capitalis- dizer que a questão ambiental refere-se à ma- tas de dominação e transformação do espaço nifestação de um aspecto das diferentes esfe- social. Confronto esse passível de ser entendi- ras da reprodução social e das relações sociais do, com base em Lefebvre (1991), como mais de produção. Um aspecto que, embora estives- um aspecto da materialização do conflito geral se sempre presente, até a emergência da preo- entre os domínios do vivido e do concebido, cupação ambiental durante a década de 1980, entre espaços de representação e representa- foi pouco explicitado e explorado no âmbito de ções do espaço, que tem por base a contradi- alguns ramos das ciências humanas. ção básica entre valor de uso e valor de troca. Trata-se, então, da conformação de uma Confronto que Boaventura de Sousa Santos nova questão social? Essa indagação já preo- (2006) define, por sua vez, como zonas de con- cupou outros autores (Costa, 2000; Steinberger, tato e de conflito intercultural. 2001). De uma perspectiva dialética pode-se A adoção indiscriminada e sem discer- dizer que sim, se se entender por novidade a nimento no âmbito técnico-institucional, por inserção da dimensão ambiental na reflexão governos e empresas, da ideia de sustentabili- sobre a questão social contemporânea. Ao dade como um sinônimo ou sucedâneo isento mesmo tempo, pode-se dizer que não, pelo fato de contradições e conflitos da questão ambien- de problemas e questões ambientais eventual- tal, contribui para ideologizar a questão socio- mente atravessarem os conflitos sociais, embo- espacial (ver a respeito Rodrigues, 1998) e, ao ra sem constituir propriamente o foco da refle- mesmo tempo, faz com que se perca de vista xão. Ignora-se, assim, pelo sim e pelo não, que seu caráter complexo e transescalar. Pois, a am- por seu próprio caráter e condição a questão bientalização da questão social, entendida aqui social desde sempre foi e é também uma ques- como a incorporação da dimensão ambiental tão ambiental. Seja por seu caráter espacial, 126 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade pois as coisas sempre acontecem em algum tecnológico, à eficiência econômica e ao cresci- lugar, seja pelo fato de que a própria reprodu- mento sem riscos" (Milani, 2008, p. 292). ção social presume historicamente uma relação Por conseguinte, além de se converter sociedade-natureza e uma concepção de na- em um fator emblemático de legitimação de tureza, pois o espaço, o ambiente, a natureza diferentes práticas sociais, a questão ambiental sempre integraram e integram, desde sempre, passa a integrar e a perpassar os discursos do como base, suporte e meio, as diferentes esfe- planejamento e do desenvolvimento urbano e ras de reprodução social (Lefebvre, 1991), que regional. Portanto, não só a produção teórica presumem intrinsecamente, cada uma per se, mas a prática de planejamento defrontam-se uma concepção e forma de apropriação da na- na contemporaneidade com um impasse em tureza. Portanto, interpretar a incorporação e que é necessário integrar a dimensão social e institucionalização da problemática ambiental ambiental – à medida que ambas integram a como “a construção de uma nova questão so- produção social do espaço (social). cial e uma nova questão pública” (Lopes, 2006, Cabe, portanto, uma leitura crítica da pp. 34-35), implica ignorar que a ambientaliza- incorporação da ideia de sustentabilidade ao ção, ao invés de gerar uma nova questão so- planejamento e seu desdobramento prático cial, evidencia uma dimensão da problemática em projetos de intervenção como as cidades social relacionada desde sempre à reprodução sustentáveis, de modos a termos elementos social. Assim, a ambientalização da questão que nos permitam avançar rumo à construção social deve ser compreendida como uma ex- de uma economia política do espaço e a uma plicitação dos conflitos que hoje atravessam a prática crítica de planejamento territorial, que reprodução social em torno da relação socieda- instrumentalize a participação social em uma de-natureza, o que permite entendê-la como perspectiva transformadora. parte integrante das arenas de enfrentamento entre capital e trabalho na contemporaneidade (Offe, 1984). A questão ambiental, ao impor dialeticamente limites ao desenvolvimento capitalis- A ambientalização do planejamento ta, em nome da preservação da natureza, seja para as gerações futuras ou como reserva de Se a incorporação da dimensão ambiental apa- valor para o próprio desenvolvimento futuro rece como uma novidade no âmbito do pla- do capitalismo, evidencia a contradição entre nejamento, a preocupação com a gestão dos interesses sociais localizados e interesses priva- recursos naturais marca inclusive as primeiras dos, entre reprodução social e acumulação de tentativas de se definir o planejamento, de um capital. A desconstrução da questão ambiental ponto de vista técnico e neutro, na perspectiva contribui, dessa maneira, para explicitar seu de contribuir para o desenvolvimento social e caráter geopolítico e estratégico para o desen- econômico após a segunda guerra mundial. volvimento do capitalismo, bem como eviden- Em uma recuperação do papel do gru- cia "numerosos mitos relativos ao progresso po "Economia e Humanismo" do Padre Louis Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 127 Ester Limonad Joseph Lebret e seus colaboradores, durante as planejamento territorial contemporâneo, ao de- tentativas de recomposição econômica e so- finir que "o planejamento é um processo de or- cial de Lyon, na França do pós-guerra, Olivier denamento e previsão para conseguir, median- Chatelan (2008, p. 108) aponta o surgimento te a fixação de objetivos e por meio de uma das primeiras evidências de um discurso vol- ação racional, a utilização ótima dos recursos tado para o planejamento do território. Dos de uma sociedade em uma época determina- embates latentes entre abordagens marxistas da” (Cinva, 1960). e o enfoque social humanista de especialistas Essas definições pioneiras de planeja- da Igreja católica é elaborada, entre 22 e 28 mento, além de serem portadoras de diferentes de setembro de 1952, a Lettre de la Tourette. visões e interesses, carregavam em si mesmas Já, então, entre os colaboradores do grupo, alguns problemas. A começar pela ideia de destaca-se a contribuição da geografia aplica- ação racional, que marcou várias propostas da voluntarista de Jean Labasse (1973), bem e práticas de planejamento daquele período como seus estudos sobre a região de Lyon (1950-1960). (Chatelan, 2008, p. 117). De forma inovadora Primeiro, pela inexistência de ações para a época, esse documento propunha que puramente racionais, por ser impossível elen- o ordenamento territorial fosse pensado como car a um só tempo todas as variáveis e suas o resultado de uma reflexão-ação coletiva na consequências como demanda a proposta ra- perspectiva da transformação social, ao mesmo cional; segundo, pelo fato de a realidade em tempo em que se contrapunha à intervenção estudo não permanecer estática e imutável tecnocrática centralizada e às iniciativas de ca- durante o processo de análise, diagnóstico ráter estritamente local. O documento salienta- e prognóstico, conforme requer a proposta va, ainda, de forma pioneira, a necessidade de do modelo racional-global de planejamento um desenvolvimento que conjugasse as ques- (Etzioni, 1973). Esse modelo racional-global tões sociais e culturais às metas econômicas. de planejamento, elaborado no Massachusetts A intenção, então, era através de uma análise Institute of Technology (MIT) durante o alvo- racional prévia do território alcançar “a utiliza- recer da Guerra Fria, no início da década de ção ótima dos recursos, valorizar a terra, equi- 1950, embora relegado a um segundo plano par o espaço de modo a possibilitar o desen- nas práticas de planejamento, tem sido privi- volvimento humano” (Chatelan, 2008, p. 108). legiado nos estudos de impacto ambiental. Anos mais tarde, em 1958, a Carta de los Andes, elaborada no "Seminário de Técnicos e Funcionários em Planejamento Urbano", realizado na cidade de Bogotá – Colômbia, sob os auspícios do Centro Interamericano de Vivenda e Planejamento – (Cinva, 1960), descartava os aspectos socioculturais almejados pela Lettre de la Tourette e propunha uma das primeiras definições oficiais sobre o que seria o Seu caráter enciclopédico e multidisciplinar 128 possibilita incorporar diferentes conjuntos de variáveis, mensuradas em uma matriz de dupla entrada com ponderações tipo custo-benefício. A matriz de Leopold e de seus colaboradores (1971) constitui um exemplo paradigmático da metodologia adotada em diversos estudos de impacto ambiental no Brasil e em outros países. Embora a matriz procure contemplar todas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade as variáveis, as atribuições de valor são feitas Através de um discurso técnico concernente à de forma mecânica com ponderações subjeti- alocação adequada dos recursos escassos pa- vas, muitas vezes relacionadas aos interesses ra o bem-estar humano, se subsumia a domi- em jogo. O que acarreta problemas e conflitos nação da natureza à lógica do mercado. Esse de diversas ordens ao se incorporar a variável discurso, em aparência neutro e em nome de humana e social, reduzida muitas vezes a uma um pretenso bem comum, servia para mascarar variável antrópica, como se os seres humanos a dominação hegemônica exercida através das fossem formigas. relações de produção sobre os trabalhadores e À complicação introduzida pela ação ra- a natureza. Dominação necessária para garan- cional soma-se a “utilização ótima” que, por si tir a própria existência e de desenvolvimento mesma, remete a outro problema: ótima para do capitalismo. quem, segundo quais critérios e segundo que O que mudou de lá para cá? interesses? Em síntese, a “utilização ótima” Qual o segredo do sucesso da persistên- depende dos objetivos, que por sua vez são cia e sustentabilidade do desenvolvimento do estabelecidos por quem promove o planeja- capitalismo? O segredo do sucesso do capita- mento. De fato, o processo de planejamento lismo reside não apenas em sua constante rein- é variável e depende de quem o promove: o venção, como a mitológica fênix que sempre Estado, as corporações ou grupos sociais com ressurge de suas próprias cinzas, mas, também, interesses específicos. Além disso, há que se em sua capacidade de articular, organizar, su- considerar, que muitas vezes mesmo a partici- bordinar, controlar e gerir países diversos em pação é planejada no processo de planejamen- um único sistema global, em que as dimensões to (Limonad, 1984). econômicas, sociais e ambientais da reprodu- Enfim, a proposta de utilização ótima dos ção social se interpenetram e confundem, co- recursos naturais no processo de planejamento mo assinala Arturo Escobar (1995, p. 71). Insti- pode ser vista como um vínculo precoce do pla- tuições internacionais como o Banco Mundial, nejamento com a questão ambiental, ainda mais o Fundo Monetário Internacional, a Organiza- ao se substituir o termo ótima por sustentável. ção Mundial do Comércio, a Organização dos Essas concepções e ideias orientaram Países Produtores de Petróleo, a Organização a prática de planejamento no Brasil ao longo Econômica dos Países Desenvolvidos (OECD), de quase quatro décadas, a partir da segunda entre outras, contribuem para a manutenção metade do século XX, quando o planejamento e para o exercício desse controle por meio do estatal sequer se preocupava com os aspectos incentivo ou implementação de políticas de de- sociais e muito menos com os atores e agentes senvolvimento econômico e de industrialização diretamente envolvidos (Lamparelli, 1982). em diversos países (Escobar, 1995, p. 71). No entanto, mesmo a ideia de uma ges- Nessa perspectiva de exercício da hege- tão ótima dos recursos naturais tem sua ori- monia, obliteram-se as lutas e conflitos sociais gem nas concepções liberais da economia polí- que foram, em parte, responsáveis pelo surgi- tica do capitalismo do século XIX, inspiradas no mento da ideia de desenvolvimento susten- pensamento de Locke (Harvey, 1996, p. 131). tável. A visão que vigora e prevalece é que a Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 129 Ester Limonad origem da ideia de desenvolvimento susten- outro, interesses corporativos e governamen- tável residiria nas discussões iniciadas com a tais que atendem à lógica de reprodução do Conferência da Biosfera, promovida pela Unes- capital em escala global. co em 1968, a qual se seguiu o Relatório de A noção de desenvolvimento sustentável Dennis Meadows: “Os limites do crescimento”, surge, dessa forma, da necessidade que essas divulgado em 1972 na Conferência das Nações lutas sociais e demandas de organizações não Unidas em Estocolmo. Esse relatório foi finan- governamentais e de comissões das Nações ciado por um bloco de corporações industriais Unidas impuseram de se rediscutir a concep- (Fiat, Olivetti, Volkswagen, Ford), políticos e ção, então vigente, de desenvolvimento (Mela cientistas de vários países, que se formou em et al., 2001, pp. 80-81). 1968 e ficou conhecido como Clube de Roma. Esses conflitos e os mecanismos gerais Desconsidera-se, assim, o fato de que a de controle do sistema capitalista fizeram com ideia do desenvolvimento sustentável e sua in- que questões vistas, inicialmente, como especí- corporação ao discurso do planejamento teria ficas e localizadas, conquistassem outras esca- suas raízes não nas ideias neo-malthusianas las e saíssem do âmbito puramente local e con- do Clube de Roma e relatório Meadows, mas tribuíram para converter a questão ambiental na emergência de conflitos sociais em diver- em um problema global. sas partes do mundo relacionados às formas O Relatório Bruntland, elaborado pos- de gestão e apropriação dos recursos naturais. teriormente em 1987, durante a ascensão do Disputas por água potável, por terras férteis, neoliberalismo em escala mundial, veio coroar por fontes combustíveis sempre existiram e são os estudos do Clube de Roma e os que se se- tão antigas quanto a humanidade. Qual a novi- guiram, contribuindo para sacramentar a ne- dade então? cessidade de um desenvolvimento sustentável A novidade do século XX estaria na re- em nome de um futuro comum, ao chamar a sistência à modernização e ao desenvolvimen- atenção para a finitude dos recursos naturais. to, ao direito à diferença por parte de grupos Extirpou, assim, da noção de desenvolvimento sociais compostos por indígenas, quilombolas sustentável o caráter de luta dos conflitos so- e camponeses. Distintos dos luditas do século ciais que lhe deu origem. Ao esvaziar o sentido XIX, pequenos produtores agrícolas, campone- social da questão ambiental, viabilizou a ins- ses e populações indígenas em diversos países trumentalização da ideia de sustentabilidade mobilizam-se em defesa da preservação de sua para a preservação ambiental, em consonância condição de existência contra a imposição de com os interesses hegemônicos. Além disso, uma modernização, muitas vezes incompleta contribuiu para alimentar correntes ambienta- e excludente, que se traduz pela expansão es- listas de inspiração neomalthusiana, que em pacial do capitalismo em escala global, e pela nome de uma escassez dos recursos naturais destruição das relações pretéritas de produção. defendem exclusivamente a natureza em detri- Confrontam-se, assim, de um lado grupos so- mento de questões sociais. Releva-se, assim, o ciais diversos mobilizados para preservar seu fato de que a finitude e escassez dos recursos modo de vida, sua condição de existência e, de naturais são socialmente criadas e dependem 130 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade muitas vezes dos interesses em jogo, das alian- como a solução para um capitalismo sadio. ças existentes no nível da divisão internacional Mesmo John Maynard Keynes, inspirador dos do trabalho e do estágio de desenvolvimento planos de ajustes macroeconômicos pós-1945, das forças produtivas para que este ou aquele ao tratar do desemprego estrutural também se recurso seja considerado esgotável. preocupa com a sustentabilidade do desenvol- A noção de sustentabilidade, no con- vimento do capitalismo. texto neoliberal emergente, se propagou A ideia, em si, portanto, não é nova. Po- velozmente, porém com uma tradução equi- rém é atraente e sedutora. Propostas, planos e vocada em português, seguindo o trocadilho práticas de diferentes matizes políticos, enga- italiano traduttore, traditore (tradutor, trai- jadas e críticas ao status quo, tendem a incor- dor). A expressão sustainable development porar valores capitalistas hegemônicos sem o em inglês significa desenvolvimento durável, perceber. Contribui para isso, o termo susten- o que faz com que seja traduzido para o fran- tabilidade remeter a possíveis cenários futuros cês como développement durable e não como desejáveis em contraposição a cenários catas- développement soutenable, o que evidencia a inadequação da tradução para o português como desenvolvimento sustentável (Moraes, 2001, p. 54). De fato, a noção de desenvolvimento sustentável refere-se a teorias de desenvolvimento econômico, nas quais o desenvolvimento refere-se a uma mudança qualitativa nas estratégias de reprodução social e nos vínculos econômicos prevalecentes, relevando os limites do crescimento econômico. Não obstante a noção de sustentabilidade do desenvolvimento ostente ares de novidade, suas origens podem ser localizadas em diversos autores do pensamento econômico. David Ricardo, em 1817, já levanta a possibilidade de o crescimento econômico se sustentar e prolongar ao longo do tempo. Karl Marx, em A Ideologia Alemã, questiona a duração do capitalismo diante dos limites impostos pelas relações sociais de produção ao desenvolvimento das forças produtivas e sua transformação em forças destrutivas. Por sua vez, a concepção de “destruição criativa” de Joseph Schumpeter é inspiradora para aqueles que veem a sustentabilidade tróficos, somado ao fato de, segundo Acselrad Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 (1999, p. 80), os discursos da sustentabilidade serem portadores de representações e valores gerais, sem se preocupar em construir um conceito explicativo. Além da cooptação político-ideológica, a ausência de um esforço explicativo e o sentido vago do termo contribuem para legitimar políticas diversas e articular diferentes discursos em torno de uma estratégia comum – em particular estratégias voltadas para o desenvolvimento urbano e local ou regional com a preocupação ambiental e sustentável. Resulta daí, uma obstacularização aos movimentos sociais contrários a essas práticas e políticas direcionadas à apropriação social do espaço e que tendem a ameaçar suas condições de vida e reprodução. Primeiro, porque a mera associação da noção de “sustentabilidade” à essas propostas implica admitir a existência de apenas uma forma adequada de uso: a sustentável (Acselrad, 1999). Segundo, significa ignorar as diferenças existentes, relativas à diversidade social e às formas de apropriação social do espaço. E, terceiro, implica obliterar que a ideia de sustentabilidade é forjada com 131 Ester Limonad base em interesses específicos relacionados à Desenvolvimento é olhar para o futuro. É ou- apropriação material do espaço necessário his- sar, é mudar o patamar de crescimento, superar toricamente à reprodução das diferentes esfe- os interesses de lobbies localizados. Cabe aqui ras das relações sociais de produção (meios de uma analogia com um bebê recém-nascido, produção, força de trabalho e família). que se apenas crescesse e não se desenvol- De fato, o termo sustentabilidade sig- vesse, ao fim de dezoito anos teríamos um ser nifica coisas completamente diferentes para instintivo, não pensante por onde entra comida diferentes pessoas, mas de acordo com David por um lado e sai merda do outro. Desenvol- Harvey (1996, p. 148) “é muito difícil ser a fa- vimento implica adaptabilidade, em mudanças vor de práticas ‘insustentáveis’ assim o termo qualitativas, em última instância implica avan- cola como um reforço positivo de políticas e çar e transformar a realidade vigente. política conferindo-lhes a aura de serem ambientalmente sensíveis”. Caberia, portanto, como assinala Lélé (2002), uma rigorosa redefinição conceitual pa- Organizações governamentais e não go- ra se poder adotar essa expressão criticamen- vernamentais encamparam o desenvolvimento te e, em nosso entender, de forma passível de sustentável como o novo paradigma do desen- apropriação pelos grupos sociais envolvidos. volvimento urbano e econômico, e isso se explica, em parte, por permitir uma ambientalização de suas propostas e planos esvaziada de questões sociais e em nome de um futuro comum. Enfim, embora o caráter abrangente e atual do desenvolvimento sustentável lhe confira força política e contribua para legitimar Da sustentabilidade do desenvolvimento ao desenvolvimento urbano sustentável distintas práticas, as formulações prevalecentes indicam sua debilidade conceitual por sua per- O documento do Habitat (UN, 2001) inicia-se cepção incompleta da degradação ambiental e com um prêambulo de Kofi Anann, que reco- da pobreza bem como por sua falta de clareza nhece que devido às forças da globalização quanto à própria sustentabilidade, participação o mundo ingressou no milênio urbano, pois e emancipação social. aproximadamente pouco mais da metade da Além disso, passa desapercebida a pró- população mundial se tornou urbana. Enten- pria contradição de termos que perpassa a de, ainda, que embora a globalização afete as própria ideia de desenvolvimento e de susten- áreas rurais, se faz mais presente nas cidades. tabilidade. Existe desenvolvimento não susten- Entende, assim, que o “desafio central para a tável? Pois, se o desenvolvimento é insustentá- comunidade internacional é claro: fazer com vel, é apenas momentâneo. Então, merece ser que ambas a urbanização e a globalização chamado de desenvolvimento? De crescimen- sirvam a todas as pessoas, ao invés de deixar to? Mais uma vez, mais uma questão óbvia, bilhões para trás ou nas margens”. Por conse- crescimento e desenvolvimento são diferentes. guinte defende que 132 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade As cidades devem promover a governança, planejar e agir estrategicamente para reduzir a pobreza urbana, a exclusão social e promover o status econômico e social de todos os cidadãos e proteger o meio ambiente de forma sustentável. (UN, 2001 – Foreword) articulação desses dois programas e define a cidade sustentável como um lugar que dispõe de um acervo durável de recursos naturais para garantir a sustentabilidade (durabilidade) do desenvolvimento social, econômico e físico, e que conte com uma segurança durável contra riscos ambientais que ameacem o seu desen- Essa afirmação contribui para situar o volvimento (UNCHS/Unep, 2005). Programa de Cidades Sustentáveis (SCP) das Um indicador do êxito desse programa Nações Unidas como uma das evidências mais é a dimensão que assumiu em menos de vinte palpáveis da ambientalização do discurso do anos. Atualmente opera em mais de trinta paí- planejamento e da preocupação com um de- ses de forma diferenciada, com participações senvolvimento urbano sustentável. Esse pro- diversificadas. Sua proposta geral é formar grama, criado no início da década de 1990, quadros de governo mediante a capacitação e surge quase como uma decorrência do êxito instrumentalização de autoridades locais e de do desenvolvimento sustentável como fer- seus parceiros para a gestão e planejamento ramenta de legitimação de práticas urbanas urbano ambiental sustentável das cidades. neoliberais. Sua criação unificou as agendas Da mesma forma que no caso do desen- de desenvolvimento sustentável do Programa volvimento sustentável, não há uma definição Ambiental das Nações Unidas (United Nations conceitual, precisa e rigorosa do que se enten- Environment Programme – UNEP) e do Centro de por uma cidade sustentável ou, lembrando para os Assentamentos Humanos das Nações os argumentos tratados antes, do que se po- Unidas (United Nations Centre for Human deria caracterizar como uma cidade durável. Settlements – UNCHS). No entanto, não o são todas, em sua maioria? O Programa Ambiental das Nações Uni- Então, por que falar em cidades sustentáveis? das (UNEP), criado em 1972, enfatizava a im- Ou mesmo duráveis? Ao invés de aceitar acri- portância do planejamento e da gestão dos as- ticamente uma definição ou programa mínimo sentamentos humanos, em particular em áreas do que se considera uma cidade sustentável, urbanas, com uma preocupação indireta com cabe entender criticamente a proposta de cida- a qualidade ambiental desses assentamentos des sustentáveis. sociais. De certa forma, o Centro para Assen- Grosso modo, os estudos e abordagens tamentos Humanos, criado em 1978, converge em geral sobre as questões ambientais rela- para as preocupações do primeiro ao passar a cionadas ao espaço urbano podem se dividir, promover o que designa de padrões sustentá- conforme a proposta de Whitehead (2003), veis de vida em áreas urbanas e rurais, havendo em dois grandes veios, o aporte técnico e o a sido posteriormente designado de UN-Habitat priori, ao qual acrescentamos aqui o reformista e o revolucionário ou subversivo. O aporte técnico, para Whitehead (2003), se caracteriza por interpretar o desenvolvimento (United Nations Human Settlement Program). O Programa das Cidades Sustentáveis das Nações Unidas nasce assim como uma Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 133 Ester Limonad urbano sustentável, pura e simplesmente, como desenvolvimento urbano sustentável é reifica- uma questão técnica relacionada ao planeja- do como portador de algo positivo em si mes- mento urbano, gerenciamento de tráfego, ado- mo (Whitehead, 2003), servindo de panaceia ção de tecnologias limpas e ao desenho urbano. para todos os problemas, sociais, espaciais e Resultam desse aporte propostas sustentáveis, temporais. Essa fetichização da sustentabilida- adotadas por arquitetos, urbanistas e técnicos de, ao mesmo tempo que legitima as propostas de prefeitura, que são vendidas e alardeadas sustentáveis, lhes confere um caráter neutro e como fórmulas mágicas de resolução dos pro- apolítico, afinal quem é contra a sustentabilida- blemas urbanos. Porém, a despeito de suas boas de? Releva-se, assim, a existência de diferentes intenções, essas propostas caracterizam-se pe- interesses de classe, de desigualdades socioes- lo exercício demiúrgico do saber técnico e por paciais, bem como os conflitos e práticas es- fazer tabula rasa do que existe. Ao adotar uma paciais que produziram historicamente aquele solução técnica, como por exemplo imprimir um espaço, objeto de intervenção. modelo ideal de cidade sustentável com adap- Edward Jepson Jr. (2001, p. 506) assi- tações a diferentes cidades, afinal cada caso é nala que a conjunção planejamento sustenta- um caso, se reduz a cidade a um conjunto de bilidade, que se adota nesse enfoque para as volumes construídos, de massas ambientais, cidades sustentáveis, permite integrar, a um só artérias de tráfego e de circulação, em que tempo, campos disciplinares para produzir po- prevalecem tecnologias limpas e áreas despo- líticas públicas mais coerentes e abrangentes, luídas. O que não for funcional, ou adaptável atores sociais em um processo produtivo ou esteticamente, tende a ser suprimido. Nesse ambiental com foco na comunicação, valores e sentido, como questão técnica, embora sejam diferentes instituições de modo a alcançar uma geograficamente localizadas, as intervenções abordagem cooperativa e integrada. Tem-se, aparecem como algo direcionado a atender por conseguinte, que as propostas de cidades um interesse geral comum. Pois, por princípio, sustentáveis desde a perspectiva ontológica todos teriam condições de usufruí-las. Porém, partilham lógicas universalistas de integração, via de regra, isso não ocorre. Em parte, em inclusão e cooperação social, espacial e tem- virtude das formas de regulação, apropriação poral, entre atores e agentes sociais, entre cen- social do espaço e das relações sociais de per- tro e periferia, entre passado e presente, entre tencimento, que contribuem para erigir barrei- local e global (Acselrad, 2004). A solução dos ras invisíveis na cidade (Sennet, 2001, p. 266). problemas para as abordagens ontológicas ou a priori estaria no nível da vontade política e do engajamento da população por meio da construção de um consenso social e de uma identidade comunitária, de modo a reduzir ou mesmo eliminar as possibilidades de confronto. A cidade deixa, assim, de ser o lugar do debate, da diferença e da possibilidade de transformação social. Essas propostas arquitetônicas e urbanísticas são, assim, implementadas ignorando o que lhes antecede e sucede, alheias às diferenças e desigualdades socioespaciais. No enfoque a priori , ou ontológico, as propostas e estudos assumem a existência a priori de uma cidade insustentável a ser transformada em sustentável. O 134 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade Os enfoques e estudos elaborados a par- serem implementados de forma uniforme, de tir da perspectiva crítica reformista tendem a acordo com programas ou modelos mínimos encarar o desenvolvimento sustentável e a pro- pré-definidos para alcançar uma situação de posta de cidades sustentáveis como uma pos- sustentabilidade. Pelo contrário cada espaço, sibilidade viável de imprimir mudanças, ainda cada território e lugar, cada cidade possuem, que limitadas. Conscientes das limitações das cada um per se, uma história espaço-temporal propostas de desenvolvimento sustentável dos própria e uma articulação particular com ou- dois veios anteriores, buscam imprimir soluções tras escalas. No caso das cidades sustentáveis, com um caráter transformador, com a observa- as propostas não se limitam a ser apenas uma ção de que “não vêem ser necessário ou sen- outra alternativa de investimento para o capi- sato assumir um compromisso exclusivamente tal, mas constituem uma remodelação radical com a transformação”, por entender que “a re- de projetos neoliberais em áreas urbanas loca- forma agora é melhor do que nada e a transfor- lizadas (Whitehead, 2003, p. 1203). E, isso se mação pode não ser imediatamente possível” evidencia na feira de fórmulas sustentáveis de (Hopwood, 2005, pp. 49-50). Propostas com desenvolvimento expostas durante o Fórum esse tipo de inspiração geralmente buscam Mundial For a Better Future, promovido pelo engajar governos e grupos sociais em torno de Programa Habitat das Nações Unidas no Rio de questões comuns, de modo a promover ações Janeiro em 2010. diretas. Não obstante tenham consciência das Enfim, cabe apontar a perspectiva sub- assimetrias de poder existentes e das nuances versiva, ainda em construção. Essa subversão do jogo político, buscam soluções de compro- se pretende uma transformação do instituído misso. Nutrem ativismos sociais em torno de por meio das práticas socioespaciais, como questões específicas e buscam articulá-los com uma transgressão no campo da luta política, ações de governo. O que, em última análise, por se propor a subverter o instituído na pers- acaba por contribuir para criar situações de pectiva da mudança social. A subversão é en- consenso ou de desmobilização social, à medi- tendida, assim, aqui como expressão de atos da que, muitas vezes, as reformas alcançadas políticos de movimentos anti-hegemônicos e contribuem mais para manter e conservar o expressão de desejos latentes de mudança e de status quo do que facultar a criação de uma outra ordem social de caráter transformador. Quanto às práticas, soluções e cidades sustentáveis, há de se considerar, primeiro, que a despeito do mote sustentável, essas soluções não sustentam equanimemente todos os interesses envolvidos (Whitehead, 2003) e isso se aplica às propostas de cidades sustentáveis. Há de se considerar, ainda, que as chamadas soluções sustentáveis tampouco constituem objetos planejados genéricos, passíveis de construção de uma outra ordem social. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insuficiência das estratégias de ação consagradas de planejamento em solucionar os problemas sociais evidenciam o notório descompasso entre o projeto e a realização e apontam para a necessidade de se subverter radicalmente o processo de planejamento. Não se trata tão somente de propor um planejamento insurgente como o querem alguns, mas de incentivar a subversão do instituído. Nesse sentido, Randolph e Gomes (2010) introduzem 135 Ester Limonad três elementos como constituintes de um novo de transformação social, de construção de uma planejamento, a saber a comunicação, o es- outra ordem, mediante a subversão da ordem paço e o tempo. Esses três elementos, em seu vigente, que não se traduz pelo incentivo à vio- entender, referem-se às principais contradições lência, à destruição. Trata-se de superar a visão no mundo contemporâneo, que compreendem do planejamento como monopólio do Estado o consumo no espaço versus o consumo do e passar da identificação de necessidades e espaço (Lefebvre, 1991), a lógica instrumental versus a lógica comunicativa (Habermas, 1981); as práticas abstratas versus as práticas concretas; o pensamento indolente versus o pensamento cosmopolita (Souza Santos, 2003) que ameaçam a própria convivência social. O planejamento subversivo proposto por Randolph (2007, 2008) pretende ser construtivo à medida que procura ser uma “mediação” entre essas contradições, ou seja, se propõe, nada mais e nada menos, a superá-las. Nesse contexto, o planejador aparece como mediador, que contribuiria para a superação de contradições. Por conseguinte, nesse caso, assume funções da mais alta complexidade e converte-se, assim, em uma figura mediática da maior importância para o avanço de uma transformação voltada para a racionalidade comunicativa, para a construção de um espaço diferencial de valores de uso e um pensamento cosmopolita baseado nas experiências sociais das populações exploradas e oprimidas. Um modo alternativo e subversivo de planejar, segundo o autor, deve reconhecer as contradições entre a cidadania formal e a cidadania substantiva, bem como trabalhar em nome da expansão de direitos de cidadania. Não se trata, portanto, de propor meramente um planejamento insurgente no nível da transgressão, da revolta contra a ordem instituída, mas, sim, um planejamento que se proponha a criar um espaço diferencial. Um planejamento que permita abrir perspectivas prioridades pelo Estado, para a identificação 136 de necessidade e prioridades por parte da população. Não no âmbito dos espaços de poder, mas no âmbito dos espaços cotidianos das práticas sociais e espaciais que podem dar origem a formas substantivas de exercício de cidadania, bem como do aproveitamento de outras formas de apropriação dos recursos naturais e das fontes de informação e de uma orientação nova para práticas de planejamento. A construção das mediações necessárias prescindiria, assim, da autorização e concessão de espaços de participação por parte do Estado, o que abriria nesse sentido uma outra perspectiva para a discussão da sustentabilidade do desenvolvimento, mais próxima do caráter da luta social que lhe deu origem. Algumas considerações finais, ou como ser contra o desenvolvimento sustentável? Sob o argumento de minimizar os impactos da produção capitalista do espaço sobre o meio ambiente, planejadores e técnicos de governo, por sua vez, propugnam o desenvolvimento urbano, ou mesmo o desenvolvimento sustentável, o turismo ecológico, a urbanização sustentável controlada, a agricultura ecológica, o zoneamento econômico-ecológico em escala regional, etc. Esses discursos de planejamento, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade embora ambientalizados, vão de encontro às de produção. A questão ambiental contempo- próprias práticas de organização, regulação e rânea e os conflitos sociais dela decorrentes, produção do espaço. Práticas que se revelam, assim, podem ser entendidas como a materia- por assim dizer, ambíguas, no concernente à lização da contradição entre a apropriação e a sustentabilidade que se propõem a promover. dominação social do espaço, que tem por base Nesse sentido, as propostas de desenvolvimen- a contradição entre valor de uso e valor de tro- to sustentável e, por vezes, a ambientalização ca, como apontamos ao início. do planejamento têm um fundo comum, por Com a diluição da diferenciação rural- assim dizer, instrumental que contribui para -urbano, avanço da urbanização, e industriali- esvaziar em parte o sentido social da questão zação da agricultura, o espaço como um todo ambiental e para ocultar o caráter estratégico se converte em objeto de disputa de diferentes que o espaço social assume para a reprodução lógicas e enfrentamentos sociais, que resul- do capital na contemporaneidade. tam em impactos ambientais diferenciados. De fato, a produção social do espaço em Por um lado expandem-se as áreas urbanas, si, necessária às diferentes esferas da reprodu- por outro criam-se extensos desertos verdes ção social, envolve uma apropriação da natu- de monoculturas como parte de complexas reza e de espaços pré-existentes. Isto faz com cadeias produtivas que articulam globalmente que as contradições e conflitos fundamentais diversos locais. Resultam daí crescentes pres- das sociedades contemporâneas voltem-se pa- sões pela ocupação e uso de áreas de preser- ra disputas em torno do espaço social diante vação e proteção ambiental, que se expressam da reapropriação e ampliação espacial do do- em conflitos entre a função social e ambiental mínio da lógica capitalista. do espaço. A questão ambiental aparece, assim, Tais conflitos decorrem, por um lado, como mais uma expressão dos conflitos entre do caráter excludente da produção capitalis- diferentes formas de apropriação social (Porto- ta do espaço, que ao mesmo tempo em que -Gonçalves, 1992), tanto no nível das repre- produz novos espaços urbanos, recupera es- sentações como na própria materialidade dos paços degradados, incorpora espaços a pro- processos socioespaciais. A articulação entre dução agroindustrial e alija desses espaços so- ambas dimensões constitui o cerne da pro- cialmente produzidos e equipados crescentes blemática ambiental e é tanto condição como contingentes de trabalhadores. A esses restam resultado do processo de produção de transfor- as periferias carentes de infraestruturas e equi- mações no espaço social. pamentos, ou ainda as orlas de rios, lagoas e Na luta pela dominação do espaço social, mananciais e as encostas de morros. Por outro, aquilo que se pode, contemporaneamente, de- esses conflitos decorrem, também, da ânsia do signar de espaço natural, ou espaço absoluto capital imobiliário em incorporar espaços com (Lefebvre,1991), torna-se na lógica capitalista amenidades naturais ao seu processo produti- reserva de valor, objeto de cobiça e aparen- vo, como um fator diferencial, particular e não temente escasso em relação às necessidades reprodutível, para maximizar sua captura de capitalistas da reprodução das relações sociais rendas diferenciais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 137 Ester Limonad Evidencia-se, assim, a interação ambiente “natural” e ambiente “construído”. intervenção sobre o real – planejamento tecnocrático, urbano, regional e ambiental. A partir do exposto até aqui, torna-se De onde, se manifesta a importância patente a conformação de um paradigma que de uma economia política do espaço, que dê combina e contrapõe dialeticamente diferentes conta da relação espaço, sociedade e meios processos e esferas de reprodução social, que de produção, como um meio de superar os podem ser entendidos como disputas e enfren- aparentes hiatos em termos das escalas es- tamentos pelo espaço necessário à reprodução paciais, dos níveis de governo e das arenas das diferentes esferas sociais (dos meios de políticas (Brandão, 2007) que atravessam as produção, da força de trabalho e da família). relações entre os diferentes agentes e atores A ambientalização do discurso do planejamento pode contribuir, em última análise para relacionados à produção e apropriação social do espaço. viabilizar a regulação e dominação do espaço Emergem, assim, diversas questões a se pelo capital e pelo Estado, ao garantir a aloca- considerar, que cabem ser apontadas como ção de recursos naturais necessária à acumula- perpectivas possíveis de trabalho. Destacam- ção, bem como para manter e ampliar os siste- -se entre elas o mapeamento, a qualificação mas hegemônicos de poder. Dessa forma, essa e a necessidade de um novo olhar sobre os ambientalização estaria relacionada ao caráter agentes institucionais, os global players e ato- geopolítico que assume a questão ambiental res sociais envolvidos na produção social do contemporânea, uma vez que não se encon- espaço. O que demanda voltar os olhos para o tram mais em causa apenas os interesses locais papel do Estado e do poder público, de modo e regionais – tratar-se-ia, sim, de uma nova in- a se ter meios de construir as mediações ne- terface da inter-relação local-global, em que o cessárias para superar o conflito latente entre global busca interferir nos desígnios do local e diferentes interesses articulados em distintas criar reservas ambientais para exploração futu- escalas, as necessidades locais e a afirmação ra controlada pelas forças hegemônicas. de marcações sociais e identitárias de diferen- Diversos estudos e pesquisas apontam tes grupos sociais. para a existência de uma lógica geral, não Disputas e conflitos em torno do espa- transparente, que perpassa os diferentes pro- ço social, antes localizados e demarcados, cessos espaciais, que se manifestam como se ganham agora outras escalas e significados foram singulares e únicos, que marcam os lu- com a globalização dos mercados, dos fluxos gares de forma específica e particular, como se e crescente complexificação da divisão espa- algo novo estivesse emergindo (Carlos, 2010; cial do trabalho, que perpassam as diferentes Lencioni, 2010). esferas de reprodução social. Isso contribui de Por conseguinte, as mudanças que ora forma dialética, em larga medida para o capi- se impõem exigem novos cuidados metodoló- talismo contemporâneo assumir, mais do que gicos, e novos procedimentos de aproximação nunca, um caráter civilizatório (Ianni, 1997), ao real e à construção do objeto teórico, bem pretensamente progressista e moderniza- como tornam obsoletos os instrumentos de dor, em nome da preservação ambiental e do 138 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 A insustentável natureza da sustentabilidade desenvolvimento econômico e social, em esca- diversos e de governos locais em diversos paí- la regional ou local. Por outro lado, a erupção ses. Essa articulação em várias escalas emerge, e multiplicação de conflitos sociais diversos em assim, como um terreno propício de cooptação torno do ambiente construído, dos ambientes político-ideológica e de apaziguamento de naturais, em síntese do espaço social, são uma tensões sociais, em que em nome de um hipo- tradução da espaço-materialidade contempo- tético futuro comum se abandonam projetos rânea da contradição capital-trabalho, cuja de modernidade passados. A possibilidade de marca hoje é a instabilidade e volatilidade de construção de uma sociedade mais equânime, fixos e fluxos (Santos, 1996) que se manifesta a superação da exclusão social exige o reco- e imiscue em todos os aspectos e esferas da nhecimento do caráter instrumental e político vida social contemporânea. da ideia de sustentabilidade e de que, mais do Enfim, não há como menosprezar a per- que nunca, o espaço se tornou estratégico para cepção do sistema capitalista, que vai muito a reprodução das relações sociais de produção. além das possibilidades de investimento finan- Assim, a cidade, como espaço de convergên- ceiro e do desenvolvimento local e regional, cia, aglutinação e enfrentamento de diferen- puro e simples em defesa da sustentabilidade tes lógicas e interesses sociais, representa na do desenvolvimento. A ideia de sustentabili- contemporaneidade um terreno crucial para a dade, por seu caráter aparentemente inócuo construção de um espaço diferencial e de uma e neutro, propicia a articulação de interesses sociedade mais equânime. Ester Limonad Arquiteta. Doutorado em Planejamento Urbano e Regional. Professor Associado IV da Universidade Federal Fluminense. Niterói/RJ, Brasil. [email protected] Notas (1) Disponível em: <h p://sustentabilidade.bancoreal.com.br/default.aspx?utm_source=google&utm_ medium=cpc&utm_term=Sustentabilidade&utm_campaign=sustentabilidade>. Acesso em: 23 fev 2011. (2) ISO 14000 são certificados criados na década de 1990 pela International Organization for Standar za on (ISO) atribuídos a empresas e ins tuições. Esses cer ficados servem para atestar o cumprimento de um conjunto de normas e diretrizes rela vas à gestão ambiental por parte dessas empresas e ins tuições. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 139 Ester Limonad Referências ACSELRAD, H. (1999). Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Campinas, ano I, n. 1, pp. 79-90. ______ (2004). Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curi ba, n. 107, pp. 25-38. BRANDÃO, C. A. (2007). Território e Desenvolvimento: as múl plas escalas entre o local e o global. Campinas, Unicamp. CARLOS, A. F. A. (2010). A "ilusão" da transparência do espaço e a "fé cega" no planejamento urbano: os desafios de uma geografia urbana crí ca. Cidades, v. 6, n. 10, pp. 12-30. CHATELAN, O. (2008). Exper se catholique et débuts de l’aménagement du territoire à Lyon (19451957). Chrétiens et sociétés XVIe-XXIe siècles, n. 15, pp. 107-128. Disponível em: http:// chre enssocietes.revues.org/index1042.html. Acesso em: 23 fev 2012. CINVA (1960). A Carta dos Andes. São Paulo: Bem-Estar. 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 123-142, jan/jun 2013 500 anos em busca da sustentabilidade urbana 500 years in search of urban sustainability Klemens Laschefski Resumo Este artigo apresenta um resgate histórico do surgimento do termo desenvolvimento sustentável. Mostra que a busca pela sustentabilidade sempre esteve vinculada às diversas crises dos modos de produção do espaço feudal e capitalista. As analogias em tempos recentes, demonstrado a partir da aplicação do Estatuto da Cidade em Belo Horizonte, confirmam a condição de insustentabilidade social das cidades urbano-industrial-capitalistas. Isso, porque são beneficiados empreendimentos imobiliários privados ditos sustentáveis que estimulam a elitização do espaço. Propostas concretas para as sociedades urbanas socialmente sustentáveis apresentam elementos comuns à ilha Utopia, dos escritos de Thomas Morus, de 500 anos atrás, reafirmando a necessidade de considerar a categoria espaço como produto social e as relações de poder sobre o território na conceituação da sustentabilidade urbana. Abstract This article presents a historical review of the origins of the term sustainable development. It shows that the search for sustainability has always been connected with the several crises of the modes of production of the feudal and capitalist space. The analogies in recent times confirm the condition of social unsustainability of the urban-industrial-capitalist cities, which is shown through the application of Brazil’s City Statute to the municipality of Belo Horizonte. The reason for this is that it benefits the so-called sustainable, privately-owned real estate undertakings, which stimulates the elitization of space. Concrete proposals for socially sustainable urban societies have similarities with the Island of Utopia, from the writings of Thomas More 500 years ago, reaffirming the need to consider the category “space” as a social product, and the power relations over territory within the conceptualization of urban sustainability. Palavras-chave: sustentabilidade urbana; desigualdade social; produção do espaço; empreendedorismo imobiliário; marginalização; justiça ambiental. Keywords: urban sustainability; social inequality; production of space; real estate undertakings; marginalization; environmental justice. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 Klemens Laschefski Introdução desenvolvimento sustentável, que mobilizaram e mobilizam inúmeros agentes de instituições públicas, entidades da sociedade civil, setor pri- O documento final da Conferência das Nações vado e academia, não foram produzidos resul- Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, de- tados significativos que indicam um caminho nominada “Rio+20”, enfatiza a chamada eco- claro para o “futuro que queremos”. Ao con- nomia verde como uma ferramenta importante para a “erradicação da pobreza” e a manutenção do “funcionamento saudável dos ecossistemas da Terra” (Nações Unidas, 2012, p. 9). Ao nosso ver, a consagração do termo economia verde consolida o discurso que concebe a sustentabilidade como um conjunto de problemas técnicos e administrativos que visam solucionar as questões sociais e ambientais contemporâneas adequando o sistema econômico atual. Essa tendência é resultado da confluência das políticas neoliberais e das políticas ambientais internacionais, ocorrida nos anos 1990, referendadas, por um lado, pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida também como Rio-92, e, por outro lado, pela fundação da Organização Mundial do Comércio em 1995. Assim, não surpreende que a economia verde seja considerada, no documento final da Rio+20, um meio para “[...] oferecer opções para decisão política, sem ser um conjunto rígido de regras” (Nações Unidas, 2012, p. 9). Entendemos que, com essa confluência das políticas ambientais e neoliberais, houve, de fato, um afastamento do conteúdo político da crítica ambiental que surgiu a partir dos anos 1960 e que intensificou fortemente, na época, a busca por alternativas para a sociedade dita moderna diante da insustentabilidade dos modelos de desenvolvimento baseadas na industrialização. Porém, apesar do sucesso dos discursos sobre soluções “pragmáticas” para alcançar o trário, numa perspectiva global, nada indica o 144 fim do agravamento dos problemas ambientais e da desigualdade social. Diante disso, esse trabalho procura retomar a crítica política às contradições inerentes à sociedade urbano-industrial-capitalista, visando analisar o que chamamos aqui crise da busca da sociedade sustentável. Partimos da hipótese que o surgimento dessas contradições não são processos recentes, mas têm suas raízes em processos históricos que transformaram as relações da sociedade com o meio físico. Tal observação parece óbvia, já que é amplamente reconhecido que os processos de industrialização e os novos processos de urbanização induzidos por ela, transformaram a “cara” do mundo. No entanto, embora muitos discursos se refiram às questões espaciais de forma descritiva, não se iniciou ainda um debate que problematize a sociedade urbano-industrial no que diz respeito à sua espacialidade. Consequentemente, observamos que as relações socioespaciais como elementos importantes para analisar o “pano de fundo” da situação de não-sustentabilidade são negligenciadas. Nessa perspectiva, procuramos mostrar que as questões da sustentabilidade estão, na verdade, relacionadas às formas contraditórias de produção e reprodução do espaço na sociedade moderna. Trata-se, então, de acordo com Lefèbvre (1994), de uma crise da atual produção política e social do espaço. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana Após uma breve reflexão sobre a origem da política internacional, no relatório intitulado e o atual significado do termo desenvolvi- World Conservation Stratagy – Living resource conservation for sustainable development , publicado em 1980 pela IUCN (International Union for the Conservation of Nature). Esse relatório resume os principais pontos debatidos na época em relação às falhas das políticas para o desenvolvimento de países do então chamado Terceiro Mundo. As discussões se concentraram em aspectos econômicos sem considerar os aspectos sociais e, sobretudo, os ecológicos. Diante das consequências de questões como o agravamento da pobreza, os problemas ambientais e a depredação dos recursos naturais, o relatório aponta como estratégia a reformulação e ampliação dos objetivos do desenvolvimento, considerando a “limitação dos recursos” e a “capacidade de carga” (carrying capacity) dos ecossistemas. Além disso, os autores do relatório destacam as necessidades das gerações futuras como parâmetro para ”[...] providenciar o bem-estar social e econômico. O objetivo da conservação é de segurar a capacidade da Terra para sustentar o desenvolvimento e apoiar toda vida (IUCN, 1980, p. I, tradução nossa). A argumentação faz referências às principais ameaças ao modelo de desenvolvimento, detectadas por Meadows et al. (1972), entre as quais estão o crescimento exponencial da população e da economia, que deveriam ser limitados para evitar a sobrecarga do planeta. Os autores utilizaram também o termo sustentável, mas referindo-se a um sistema mundo, no sentido físico, que fosse ”[...] 1) Sustentável, sem colapso súbito e incontrolável [...] [e] 2) [...] Capaz de satisfazer aos requisitos materiais básicos de todos os seus habitantes” (Meadows et al., 1972, p. 158). Esse livro gerou muita polêmica nos debates mento sustentável, mostramos que o adjetivo sustentável já foi utilizado em discursos sobre a crise econômica do século XVII e XVIII causada pela escassez de madeira (Carlowitz, 1713/2000), que apresentam semelhanças com os debates atuais sobre a limitação de recursos naturais e o consumo de energia. Essa crise ocorreu às vésperas da ascendência do capitalismo industrial, sendo originada nos conflitos socioterritoriais que marcaram a Idade Média tardia, os quais resultaram na reconfiguração dos direitos de uso e posse da terra. Segundo Lefèbvre (2004), trata-se da mudança funcional do modo de produção do espaço que antes girava em torno da cidade comercial e passa a girar em torno da cidade industrial. Nesse processo, emergem novas formas de desigualdade social que permanecem até os dias de hoje. Sobre essa base, analisamos processos recentes de avanço do modo de produção do espaço urbano-industrial-capitalista no Brasil, traçando um paralelo com acontecimentos históricos da Europa central. Finalmente, procuramos mostrar que os atuais discursos sobre cidades sustentáveis apresentam elementos já delineados por Thomas Morus há 500 anos atrás, quando ele apresentou a sua ficção do sistema espacial da sociedade Utopia. As origens da noção da sustentabilidade De acordo com a maioria dos livros especializados, o termo desenvolvimento sustentável foi empregado, pela primeira vez, no contexto Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 145 Klemens Laschefski políticos internacionais devido à sua demanda subsumidas na gestão ambiental. Tais medidas pelo “crescimento zero” das curvas de cresci- têm sua origem no conceito de modernização mento econômico e populacional, pois colocou ecológica, introduzido por Huber (1982), en- em questão o modelo do desenvolvimento eco- tendido como progresso tecnológico que ini- nômico em vigor. O relatório da IUCN signifi- ciaria uma fase de “superindustrialização” dos cava, portanto, o esboço de um discurso mais processos produtivos que, ao mesmo tempo, ou menos consensual de resgate do termo apresentariam soluções para os problemas am- desenvolvimento, porém adjetivado como sus- bientais. Além disso, houve um reconhecimen- tentável. Dessa forma, o texto virou base para to de que as políticas públicas deveriam ser a definição do termo pela Comissão Mundial elaboradas de forma participativa, a exemplo sobre Meio Ambiente das Nações Unidas, que das iniciativas de formular Agendas 21 nacio- o define no chamado Relatório Brundtland, em nais e locais que objetivam a definição de me- 1987, como "[...] o desenvolvimento que satis- tas concretas para conciliar os interesses eco- faz as necessidades atuais sem comprometer nômicos, sociais e ambientais, na esperança de a habilidade das futuras gerações em satisfa- alcançar o consenso a respeito dos caminhos zer suas necessidades" (CMMD, 1991, p. 9). para a sustentabilidade. É nesse sentido que Porém, chamamos atenção à continuação do observamos as teses do Relatório Brundtland, texto, em que consta: produzido em 1987, reafirmadas no lema economia verde postulado na Conferência Rio+20 o conceito de desenvolvimento sustentável tem, é claro, limites – não limites absolutos, mas limitações impostas pelo estágio atual da tecnologia e da organização social, no tocante aos recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos da atividade humana. Mas tanto a tecnologia quanto a organização social podem ser geridas e aprimoradas a fim de proporcionar uma nova era de crescimento econômico. (CMMD, 1991, p. 9) em 2012. Apesar do surgimento de mercados bastante expressivos para algumas atividades que podem ser encaixadas na economia verde, há, como aludimos, um certo consenso de que estamos distante de solucionar questões como a pobreza e a crise ambiental global, ou seja, estamos distante da justiça intra e intergeracional e do equilíbrio ecológico. Isso porque, seguindo o raciocínio de Sachs (2000), as estratégias supracitadas buscam consertar as falhas Com esse resgate, a ideia de que o cres- do modelo de desenvolvimento por intermédio cimento econômico é o principal motor do do próprio desenvolvimento, desviando-se, desenvolvimento sustentável é amplamente assim, das contradições inerentes à sociedade aceita até os dias atuais. Para concretizar es- urbano-industrial, principalmente no sistema sas tarefas apostava-se em “ajustes” através capitalista. Como indicamos, tais contradições do progresso da ciência que possibilitasse o não são um fenômeno recente, pois acompa- desenvolvimento de técnicas limpas e estra- nharam a história da ascendência da sociedade tégias de mitigação e compensação de im- urbano-industrial-capitalista, na inflexão do pactos ambientais; estratégias administrativas agrário para o urbano (Lefèbvre, 2004), que 146 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana induzia ao fim dos modos feudais de produção senhores pertencentes à aristocracia, à igreja, do espaço. aos monastérios; donos da terra que também ocupavam funções da administração e jurisdição. Assim, de certa forma, a proposta reflete A crise da sustentabilidade do feudalismo como berço do capitalismo as visões e desejos dos senhores de tornarem as florestas mais produtivas. Já naquela época, não se tratou apenas de um discurso técnico embutido numa racionalidade econômica, mas do resultado da luta conflituosa entre autori- Como anunciamos, há autores que atribuem a dade e súditos pela “hegemonia de opinião” origem do termo sustentável a uma publicação (Fetzer, 2002), que, afinal, contribuiu para a alemã de Hans von Carlowitz do ano 1713.1 superação do modo de produção do espaço do Nela, o autor se refere à necessidade do mane- sistema feudal. jo florestal racional para combater a carência Os conflitos sobre o uso das florestas de madeira da época, que, segundo ele, amea- tiveram início na Idade Média e se multiplica- çava a economia do país: ram, sobretudo no século XVI, culminando na Onde o dano surge da negligência do trabalho cresce a pobreza e a carência dos humanos. Também não é possível a produção de madeira tão rápida como na agricultura [...] Por isso, a arte, a ciência, o desempenho e a organização mais perfeita é realizar uma conservação e uso da madeira de tal maneira que se alcançasse o seu uso durável, continuo e sustentável, por que se trata de uma coisa indispensável, pois, sem isso, o país não conseguiria manter a sua existência. (Carlowitz, 1713/2000), pp. 105-106, grifo nosso) Esse trecho é frequentemente citado como a primeira menção ao manejo sustentável no ramo da economia florestal. Contudo, o que nos interessa aqui é o contexto socioeconômico que serviu como justificativa para a apresentação dessa proposta. Antes de entrar nessa temática, cabe lembrar que a obra de Carlowitz representa uma sistematização do conhecimento acumulado por vários séculos pelas autoridades – Guerra dos Camponeses (1524-1525). De modo geral, a revolta é interpretada como uma revolução contra a exploração econômica e a opressão sobre os súditos, exercida de forma cada vez mais abusada pelos senhores. As reivindicações dos camponeses foram resumidas nos 12 Artigos de Memmingen, que pautaram assuntos como a eleição livre dos padres, a abolição da servidão, regulamentos relativos ao décimo e aos serviços prestados aos senhores. Trata-se do primeiro documento conhecido no qual os camponeses referiam-se a um discurso religioso; era influenciado pelo movimento reformista de Martinho Lutero, embora o padre tenha se distanciado radicalmente dos camponeses por causa da violência dos conflitos (Lutero, 1996). Por outro lado, um admirador de Lutero, o teólogo Thomas Münzer, padre da cidade alemã Mühlhausen, se envolveu nas guerras dos camponeses, inclusive justificando a violência com palavras da Bíblia: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”. De certa forma, essas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 147 Klemens Laschefski influências contribuíram para que os campone- território. Em outras palavras, a população rural ses se apropriassem da Bíblia para reforçar as defendia a sustentabilidade de suas formas de suas reivindicações. O resultado foi o estímulo vida, colocando o acesso à terra e aos recursos ao debate sobre o assunto entre os senhores, já naturais na perspectiva de direitos que garan- que a Bíblia, naqueles tempos, legitimava um tissem sua existência. De fato, os 12 artigos de discurso hegemônico, que sustentava a ordem Memmingen são considerados, hoje, como a social da sociedade medieval e pós-medieval. primeira manifestação escrita de reivindicação Em função dos objetivos deste trabalho, de direitos humanos universais (Blickle, 2004). destacamos as reivindicações dos camponeses Assim, podemos interpretar essa “revolução do relativas aos direitos sobre o uso da terra: homem comum” (Bickle, 2004) como luta por 4) Não é fraternal e compatível com a palavra de Deus que o homem pobre não obtém poder de capturar animais selvagens, aves e peixes. Pois, quando Deus o Senhor criou o homem, ele deu a ele o poder sobre todos os animais, o pássaro e o peixe na água. 5) Os senhores se apropriaram das florestas. Quando o homem pobre necessita algo [das florestas] ele precisa comprá-lo com o dobro de dinheiro. Por isso, todas as florestas que não foram compradas [as florestas anteriormente comuns, apropriadas pelos senhores] devem ser devolvidas para a comunidade, para que todos possam satisfazer suas necessidades de madeira para a construção e lenha. [...] 10) Muitos se apropriaram dos pastos e das lavouras que eram posse da comunidade. Queremos essas de volta em nossas mãos. (Blickle, 2004, pp. 26-27, tradução nossa, resumido) justiça ambiental. Apesar de os camponeses, depois da revolta, terem sido considerados derrotados, nos anos subsequentes iniciaram-se reformas que resultaram, em 1555, na formalização do direito ao recurso individual ou coletivo dos súditos contra as ações dos senhores, nas instâncias mais altas da ordem jurídica do então denominado Sacro Império Romano da Nação Germânica. Em consequência, surgiu um sistema complexo de jurisprudência sobre o uso das florestas, constituído em dominium utilis (direitos de uso), dominium directum (direitos de posse) e dominium pleno (direito pleno de uso e posse). Nesse conjunto, os direitos das famílias de usufruir das florestas de forma a garantir o necessário para a sua existência tornou-se um dos pontos mais disputados. Essa norma, chamada Hausnotdurft (Fetzer, 2002, p. 251), abrangeu, além do direito da retirada de lenha Analisando a citação, observa-se que a e de madeira para construir, entre outras coi- luta dos camponeses não era apenas contra os sas, casas e cercas, também sistemas combina- abusos de poder pela nobreza. Um dos princi- dos de pastagem e produção florestal (sistemas pais focos era o restabelecimento e fortaleci- silvipastoris). O direito da Hausnotdurft preva- mento do modo de produção do espaço basea- leceu sobre o uso particular pela autoridade, do nos direitos de uso comum, que eram cada como, por exemplo, para a produção do mer- vez mais desrespeitados pela nobreza, amea- cado. Assim, os usos particulares foram limi- çando o sustento dos camponeses; era uma tados pelo uso comum das florestas. Contudo, luta em torno da distribuição do poder sobre o em decorrência da degradação das florestas, 148 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana causada principalmente pelo crescimento po- material do território durante o feudalismo. pulacional, essa norma foi cada vez mais ques- Também explicam por que esse sistema se tionada pela nobreza, que alegava não se tra- manteve por tanto tempo, elucidando o “de- tar de um direito, mas apenas de uma permis- senvolvimento tardio” de algumas regiões são ou um ato de clemência nos seus domínios alemãs. Numa outra leitura, a relativa estabi- (Grundherrschaften). Os conflitos entre os súdi- lidade do sistema feudal era fruto do aparelho tos – que defendiam seus direitos comuns – e jurídico desenhado para tratar e mediar os os senhores – que reivindicavam seus direitos à “conflitos dos súditos” ( Untertanenkonflikte ), propriedade (Eigentum) – se estenderam até o obrigando as partes de debater suas posições século XVIII, quando ocorre a passagem do sis- num espaço formalmente circunscrito. Tal fato tema feudal para o capitalismo. Em decorrência fornece uma explicação para a suposta falta da ampliação das relações mercantis, tornou-se de potencial revolucionário nos séculos pos- frequente a venda dos direitos de uso das flo- teriores à guerra dos camponeses. Porém, é restas comunitárias ou de seus produtos (ma- preciso destacar que a maioria dos processos deira ou outros produtos florestais) para obter jurídicos, que frequentemente duravam déca- renda monetária – não apenas pela nobreza, das, beneficiava os poderes hegemônicos, in- mas também pelas próprias comunidades cam- troduzindo, assim, as condições básicas para a ponesas. Em consequência, a nobreza procurou implementação do modo de produção capita- sistematizar a contabilização, o destino do uso lista do espaço. das florestas, separando quantitativamente as O que é interessante nesse contexto é necessidades para a Hausnotdurft e para a co- que os senhores, na sua argumentação para mercialização. Como essa nova forma de ren- derrubar os direitos comunitários, obliteraram da monetária permitia sanar as necessidades o crescimento populacional expressivo como básicas dos camponeses por meio do mercado uma das causas da superexploração das flo- ao invés da produção própria, os limites entre restas. Esse era, em princípio, um argumento a produção para o autoconsumo e para a co- relevante, pois a circulação restrita de merca- mercialização ficaram cada vez menos claros. dorias impossibilitava a troca à longa distância Diante da crescente complexidade dos cálculos, da maioria dos produtos. Consequentemente, iniciou-se a busca pelo uso racional das flores- o aumento da produtividade para a subsis- tas baseado em métodos científicos, cujos re- tência das famílias camponesas seria uma sultados foram gradativamente utilizados para contribuição importante para a consolidação enfraquecer o direito à Hausnotdurft. Aos pou- de uma sustentabilidade social. Contudo, ao cos, aumentou também a venda das próprias invés disso, os senhores enfatizavam, nas suas florestas, gerando uma onda de processos jurí- justificativas, o mau uso da Allmende (terras dicos (Fetzer, 2002). comum) pelos camponeses, reivindicando, as- Essas breves considerações mostram sim, a diminuição dos direitos e promovendo o a complexidade das normas política e social- manejo racional das florestas organizado pelos mente construídas que determinaram o modo estudiosos da elite, culminando na sistematiza- de produção do espaço e, assim, a apropriação ção desse conhecimento na obra de Carlowitz, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 149 Klemens Laschefski escrita em 1713. O resultado foi a progressiva devido à transformação de uma sociedade apropriação das florestas pelos senhores como agrária em sociedade urbano-industrial. propriedade privada, com a finalidade de pro- Considerando esse contexto socioeco- duzir excedentes de madeira de boa qualidade, nômico, o manejo sustentável defendido por o que não era possível nos sistemas de uso Carlowitz foi, possivelmente, a primeira propos- múltiplo dos camponeses. Com o impedimento ta de “modernização ecológica”, pois ele não de outros usos, sobretudo os sistemas silvipas- questionou os processos de industrialização e toris, iniciou-se o processo que chamamos aqui urbanização subjacente à crise detectada, mas de monoculturização econômica das florestas. apenas apresentou a possibilidade de resolver Nesse contexto, as florestas são subordinadas o problema por meios técnicos, aumentando a ao valor de troca para atender à crescente de- produção de madeira. Por outro lado, apontou manda dos mercados externos por madeira, o desencontro temporal entre os ciclos de cres- perdendo sua função de sustentar as formas de cimento das florestas e os ciclos econômicos, vida no campo, guiadas pelos valores de uso. reconhecendo, de certa forma, uma limitação do crescimento da produção. Cabe lembrar que, embora o centro da atenção fossem as cres- O manejo florestal no contexto da consolidação do sistema urbano-industrial-capitalista centes demandas industriais, quando fala da necessidade do aumento da produtividade para garantir a Notdurft ou Hausnotdurft, o autor lembrou-se da função social das florestas para as finalidades existenciais comuns. Porém, a so- A compreensão do papel do manejo susten- lução do problema é apresentada como exclu- tável no âmbito do surgimento da socieda- sivamente técnica e administrativa, sem consi- de urbano-industrial-capitalista fica mais derar a questão do direito ao uso do território clara quando analisamos as justificativas de e os conflitos sobre a terra. Anunciavam-se, Carlowitz (1713/2000) para a introdução do então, as temáticas que ainda causam discor- novo sistema. Para ele, as principais causas pa- dâncias entre cornucopianos e malthusionos2 ra a escassez da madeira eram – além dos pon- nos debates contemporâneos sobre justiça am- tos já citados – a demanda da mineração de biental e desenvolvimento sustentável. prata nas montanhas do Erzgebirge (uma área montanhosa na Alemanha central), a construção de navios, a quantidade elevada de madeira usada como material de construção nas crescentes cidades e o uso de carvão vegetal nos vários ramos da metalurgia. De fato, Carlowitz A insustentabilidade do modo de produção capitalista do espaço (1713/2000) se referiu a uma crise energética que, na época, afetava toda a vida social e eco- Numa outra leitura, podemos interpretar que nômica, cuja principal fonte de energia era a o sistema de manejo florestal de Carlowitz madeira. Era uma crise da escassez de recursos foi adotado para fomentar o crescimento 150 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana econômico à custa da sustentabilidade das co- dos países do centro oriunda de tais relações munidades camponesas. Aparentemente, a es- desiguais se apresenta ainda mais expressiva tratégia teve sucesso. Inicialmente, foram plan- quando consideramos a “mochila ecológica”, tadas florestas mistas com espécies nativas, ou seja, a quantidade de material e energia substituídas por plantações de monoculturas acumulada durante os processos de produ- com espécies exóticas, como a conífera Picea ção de bens para exportação (Schmidt-Bleek, excelsa. Em consequência, a cobertura de flo- 1994). Para se ter uma ideia, 43% da produ- restas na Alemanha, hoje, é maior do que nos ção total de energia no Brasil são consumidos tempos de Carlowitz (Schmidt, 2007). nos processos produtivos de bens destinados Contudo, tal fato não é consequência de à exportação (Bermann, 2011). Essa forma uma política que visava ajustar o desenvolvi- do sobre-consumo dos países centrais à custa mento ao ritmo da regeneração dos recursos das nações periféricas pode ser quantificada naturais. Na verdade, a floresta perdeu sua com base em conceitos como espaço ambien- impor tância como recurso, pois a madeira, co- tal (Opschoor e Weterings, 1994) e pegada mo fonte principal de energia, foi substituída ecológica (Wacker-Nagel e Rees, 1996). Tais por carvão mineral, petróleo, energia nuclear, abordagens se referem à quantidade de solo, entre outros, o que diminuiu a pressão pela energia, água e matéria-prima não renovável exploração das florestas. Além disso, com a necessária para os padrões de consumo de consolidação do colonialismo e do imperialis- determinadas sociedades. Tais conceitos per- mo em nível global, estava em plena expansão mitem identificar desequilíbrios em relação à o modo de produção capitalista do espaço, equidade global, ideia normativa segundo a com a ampliação das relações mercantis e da qual todo cidadão do planeta tem o mesmo subordinação de outros territórios. Posterior- direito de usufruir os recursos naturais. A títu- mente, na era pós-colonial, a apropriação terri- lo de exemplo citamos os cálculos do Global torial das sociedades industriais se intensificou Footprint Network que indicam que seriam ne- por meio de relações comerciais desiguais, que cessárias 2,57 terras se toda a população glo- tornaram as nações “em desenvolvimento” bal tivesse a mesma pegada ecológica que os fornecedores de matéria-prima e produtos se- cidadãos alemães (Global Footprint Network, mifabricados de baixo custo. A diferença da 2012a). No caso do Brasil, seriam apenas produção de mais-valia desses produtos em 1,67 terras, contudo com tendência crescente comparação com aqueles industrializados pe- (Global Footprint Network, 2012b), indicando los países de centro configurou uma situação que existe uma injustiça entre os dois países, de dependência econômica dos países peri- com a ressalva de que ambos têm que redu- féricos, que só podiam adquirir os produtos zir o seu consumo per capita para alcançar a industrializados por meio de endividamento equidade global. Embora essas propostas utili- externo. Essa troca desigual, a chamada tese zem critérios que ainda estão causando inten- de Singer-Prebisch, configurou um teorema sos debates, elas estimulam a discussão sobre central na corrente da teoria da dependência a troca ecológica desigual (Rice, 2009), que (Toye e Toye, 2003). A apropriação territorial faz referência à tese da troca desigual citada Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 151 Klemens Laschefski acima. Nesse contexto, a dívida econômica modelo de desenvolvimento, a dimensão es- dos países periféricos é contraposta à dívida pacial é tratada de forma abstrata. Por isso, ecológica dos países do centro, sob a alegação para ilustrar melhor as consequências da ex- que o processo de crescimento econômico foi, pansão do modo de produção espaço capita- na verdade, subsidiado pela apropriação do lista, focalizamos aqui sua materialização no espaço ambiental. Essa interpretação justifica espaço vivido. Não se pode negar que esse as reivindicações para o perdão das dívidas processo resultou numa forte reconfiguração dos países periféricos ou para o pagamento de territorial de abrangência global, caracteri- compensações. zada pela concentração de grande parte da Entretanto, Pádua (2000) apontou a ina- população nos centros urbanos. No entan- dequação da associação da dívida ecológica ao to, sua hinterlândia , denominado campo ou consumo médio de países diante as desigual- zona rural, geralmente é negligenciado na dades sociais internas, já que em países emer- discussão sobre a sustentabilidade urbana, fi- gentes existem classes sociais com patamares cando subordinado às diversas demandas das de consumo equivalentes aos dos países do cidades e se configurando como um mosaico centro. Essa observação nos leva de volta às de recortes espaciais uniformes para a pro- desigualdades sociais presentes nas próprias dução de alimentos e matéria-prima para as cidades, onde as áreas urbanas são locais de indústrias. A produção agrícola, nesse contex- consumo elevado e o campo é transformado to, segue a mesma lógica da produção indus- em área de sustentação desse consumo, re- trial, produzindo exclusivamente mercadorias forçando o processo de produção capitalista específicas com ajuda de novas tecnologias, do espaço. Porém, não podemos esquecer os agroquímicos e maquinário específico. Tais espaços periféricos urbanos, onde se concentra ”paisagens industriais” passam a fazer siste- a população que luta pelo acesso ao consumo micamente parte do ”urbano” e perdem suas e também ao território, como aprofundaremos características, frequentemente subsumidas mais adiante. Assim, é necessário ressaltar que no termo ”rural”. Com a expansão das lavou- a sustentabilidade social não se restringe ape- ras extensas, por exemplo, foram extintos mo- nas à questão de distribuição dos recursos, que dos de produção do espaço de grupos rurais, pode ser reduzida às formas de produção de como camponeses, povos indígenas e outras riquezas abstratas com base no valor de troca populações tradicionais. Em consequência, e, assim, aos debates clássicos entre a econo- processos como o êxodo rural – estimulado, mia de mercado e de estado. Ao invés disso, a por um lado, pela perspectiva de emprego busca pela sustentabilidade tem que considerar remunerado e, por outro, pela apropriação de outras formas sociais de apropriação material e terras camponesas nas mais variadas formas, simbólica da natureza e do meio ambiente, que descritas por Marx como acumulação primiti- foge dos princípios de produção do espaço das va – resultam na monoculturização ecológica sociedades modernas. e social do campo. O termo monoculturização Diante do exposto, podemos ver que, também é usado aqui para se referir à subor- na discussão sobre a insustentabilidade do dinação de áreas de diversidade ecológica e 152 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana cultural a usos especializados de territórios, renda e oportunidades de emprego. Esperava- como o faz a mineração e as hidrelétricas. -se que, dessa maneira, seria alcançada a in- Com a ampliação das possibilidades de serção social de todos os membros dessa no- transporte e armazenagem, a globalização e a va sociedade urbano-industrial-capitalista no flexibilização dos mercados, a hinterlândia dos mercado, estimulando o consumo em massa, espaços urbanos se torna cada vez mais dis- garantindo, assim, o crescimento “autossusten- persa, fluida, impossível de ser relacionada a tado” e o bem-estar da nação (Rostow, 1956). territórios com limites concretos. Diante disso, Esses princípios básicos do desenvolvi- a territorialidade da cidade moderna apenas mento ainda permeiam, de forma modificada, pode ser entendida como elemento concen- as políticas urbanas atuais, sobretudo no Bra- trador de trocas em redes que abrangem o sil. Isso, apesar dos debates sobre as limitações espaço global como um todo, dominado, nas dessa concepção para alcançar o mesmo nível palavras de Santos (1996), pelo meio técnico- de desenvolvimento dos países de centro dian- -científico-informacional necessário para sua te da situação de dependência provocada pela organização. A cidade moderna, então, encon- situação da troca desigual e da situação con- tra-se numa situação de competição, não ape- correncial na luta pelo espaço ambiental. nas no que se refere à alocação de mercados, Também em relação a outros aspectos, mas também em relação à incorporação de as visões idealizadas sobre o desenvolvimen- espaço(s) ambiental(is). to urbano-industrial negligenciam o processo As grandes teorias de desenvolvimen- histórico bastante contraditório da formação to que surgiram na época da descolonização, das cidades industriais europeias, com conse- depois da Segunda Guerra Mundial, previram quências hoje denominadas não sustentáveis, a reproduzir o processo histórico de moder- que se repetem, em parte, nos chamados paí- nização urbano-industrial nos recém-criados ses em desenvolvimento. Na Europa, a oferta Estados-nação de forma planejada em poucas de emprego na fase inicial da industrialização, décadas. No Brasil, investiu-se na criação de por exemplo, provocou um inchaço popula- “polos de crescimento econômico” (Perroux, cional nos centros urbanos, que, combinado 1967), estimulados por políticas de investimen- com a exploração ilimitada dos trabalhadores to em indústrias-chave. Esperava-se que, após industriais, envolvendo até o trabalho infantil, a chamada fase take off (deslanchamento), ini- criou condições extremamente insalubres e ciada pela geração de renda nessas indústrias gerou profundas tensões sociais. Nos centros e a inclusão de alguns segmentos sociais no industriais de Londres e Hamburgo, por exem- mercado, surgiria um processo “bola de neve” plo, a construção de moradias, a infraestrutura que beneficiaria a sociedade como um todo. sanitária, os serviços sociais e os sistemas de Isso porque os trabalhadores assalariados, por saúde não acompanharam tais dinâmicas. As sua vez, aqueceriam a economia em função da condições de vida pioraram drasticamente, a demanda por alimentos, roupas, entre outros. ponto de o mau estado de saúde dos trabalha- Consequentemente, outras indústrias e servi- dores ameaçar a própria acumulação do capi- ços seriam atraídas, os quais, de novo, gerariam tal, sobretudo nos casos de epidemias. Exemplo Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 153 Klemens Laschefski disso foi a epidemia de cólera em Hamburgo, seus arredores, com os setores de serviços ad- em 1892, que matou 8.600 habitantes, com re- ministrativos e de comércio para atrair investi- flexos profundos na economia local. Segundo dores internos e externos. De fato, foram prin- Schubert (1993), a epidemia foi motivo para cipalmente as mineradoras de países europeus a adoção de políticas públicas para a reestru- que se apropriaram de grandes terrenos, ex- turação urbana, que envolveram, entre outras plorando matéria-prima e produtos semifabri- ações, a construção de moradias adequadas, cados, enquanto a maior parte da produção de um sistema eficiente de abastecimento de mais-valia acontecia em seus países de origem. água, postos de saúde e um programa de revi- Apenas posteriormente se instalaram indús- talização construtiva de bairros populares. Inte- trias de fabricação de máquinas e automóveis ressante notar que, já em publicações de 1906, destinados ao mercado interno. foi mencionado que tais medidas – que, nos Contudo, como em muitas outras cida- dias de hoje, são recorrentes no planejamento des de países “em desenvolvimento”, a conse- ambiental urbano –, propiciaram, além do me- quência de tais políticas foi o desencadeamento lhoramento da qualidade de vida para alguns, a de processos incontroláveis, como a migração especulação imobiliária e a concorrência entre rural e a periferização do espaço urbano. Tais edifícios comerciais e administrativos e prédios fatos tornaram necessária a criação do Plambel residenciais nos centros da cidade, processo (Planejamento Metropolitano de Belo Horizon- chamado em inglês de city building. Os bairros te), pela Lei Estadual nº 6.303, em 1974, que populares, em decorrência do melhoramento assumiu, além das questões de desenvolvimen- da infraestrutura dos meios de transporte de to industrial, assuntos relativos à habitação. De massa, foram construídos fora dos limites da modo geral, segundo Motta (2011), as políticas cidade, indicando um processo de aprofunda- habitacionais se concentravam principalmente mento da segregação social (Schubert, 1993). na construção de novas moradias por meio de Analisando o processo de urbanização programas de financiamento direcionados para de Belo Horizonte, podemos observar – mes- a população de baixa renda, ao mesmo tempo mo sem uma cisão tão impactante como aque- em que se procurou, por meio de remoções ou le gerada pela cólera em Hamburgo – pro- intervenções urbanas, a extinção de áreas domi- cessos semelhantes. Trata-se de um exemplo nadas pela autoconstrução de habitações. Um de cidade planejada na concepção moderna exemplo é o Projeto Vila Viva, iniciado em Be- urbano-industrial delineada acima. O espaço lo Horizonte no ano de 2000, frequentemente urbano era, inicialmente, planejado de acordo apresentado como modelo de urbanização e com determinadas funções sociais, econômi- desfavelização. Apesar das aparentes melhorias cas e administrativas, que ainda se refletem na área – a custo de remoções e outros impac- em nomes de bairros como Cidade industrial, tos profundos nas relações socioespacias –, Funcionários, entre outros. Os planejadores instaurou-se um processo recorrente de valo- focalizaram as “condições de produção” para rização de imóveis, que se tornaram, assim, indústrias-chave ligadas à siderurgia e meta- inacessíveis para o grupo-alvo: as camadas so- lurgia em função das riquezas de minério nos ciais mais carentes. Motta (2011) destaca que 154 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana uma das principais causas desse descompasso são os principais palcos de conflitos ambien- é que todas as políticas habitacionais visaram o tais. Tais conflitos ambientais podem ser: distri- financiamento de moradias; com o efeito, as ha- butivos, que ocorrem em torno da aplicação de bitações foram concebidas como mercadorias. recursos públicos para o acesso à água potá- Consequentemente, os subsídios para os pro- vel ou à instalação de equipamentos urbanos gramas de habitação foram apropriados pelo e infraestrutura de saneamento para melhorar empresariado do ramo através de processos de a qualidade de vida na região; espaciais, que especulação imobiliária, direcionando-os a gru- se referem à localização de fontes poluidoras, pos com condições econômicas consolidadas como fábricas, que afetam a população pelas para liquidar as dívidas a médio e longo prazo emissões gasosas, liquidas ou sonoras que se (Motta, 2011; Costa, 2003). Assim, explica-se espalham no espaço; territoriais, que giram em a continuação das lutas pela moradia e o sur- torno de como determinados grupos realizam gimento de novas favelas em tempos atuais, formas de vida que não correspondem aos sig- evidenciando, assim, a insustentabilidade das nificados atribuídos por outros grupos, como, formas atuais de urbanização. por exemplo, a ocupação de áreas de risco. Ainda segundo Motta (2011), podemos, Entendemos que essa diferenciação de con- nesse contexto, diferenciar conflitos em torno flitos torna-se necessária diante das possíveis 1) da permanência e acesso à moradia, que respostas para sua resolução. As duas primeiras envolve, além da construção de moradias e da categorias, os distributivos e os espaciais po- regularização fundiária de bairros existentes, dem, em princípio, ser amenizados por meios ocupações de terrenos e prédios abandona- técnicos e administrativos e uma gestão ade- dos; 2) de questões de infraestrutura, como quada. Os conflitos ambientais territoriais, por a implantação e/ou melhoria do sistema de sua vez, indicam as contradições profundas do saneamento (redes de abastecimento de água próprio modo de produção capitalista do espa- eficientes, redes coletoras de esgoto, cana- ço e da distribuição de poder sobre o território lização e recuperação de córregos devido a (Zhouri e Laschefski, 2010), que apontam a ne- enchentes constantes); dos transportes (asfal- cessidade de repensar a configuração socioes- tamento e abertura de vias, implantação ou pacial como procuramos mostrar a seguir. melhoria de linhas de ônibus); da instalação Obviamente, os conflitos ambientais não de rede elétrica, entre outros; e 3) de obras de se restringem aos bairros populares; problemas urbanização, geralmente realizadas pelo poder ambientais como poluição, tráfico intenso, im- público, que implicam remoções ou mudanças permeabilização dos solos, enchentes, entre no modo de vida. outros, afetam a população urbana como um Todos esses conflitos tangenciam ques- todo, porém de forma desigual. Dessa forma, tões da sustentabilidade urbana, tanto em rela- os conflitos ambientais indicam também aspec- ção à desigualdade social como aos problemas tos da desigualdade social que, ao final, tem o ambientais. Lembramos que os bairros popula- seu reflexo na violência urbana. Por causa de- res, sejam eles formais ou informais, são locais la, muitos moradores com renda mais elevada onde se manifestam injustiças ambientais, pois consideram insustentável a vida urbana nessas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 155 Klemens Laschefski condições e procuram sossego e segurança fora da cidade ou em loteamentos fechados com aparência fortificada (Laschefski, 2006; Men- O metabolismo socioambiental e as relações do poder donça, 2003; Costa, 2003). Enuncia-se, assim, mais uma contradição: a urbanização promove Diante do exposto, fica claro que a busca por a aproximação espacial dos moradores das ci- cidades sustentáveis tem que considerar o dades, mas, diante da insegurança do cotidia- metabolismo urbano, mostrado por Lefèbvre no, eles fogem, optando pelo isolamento indi- (1991) a partir do exemplo da relação de uma vidual, pelo distanciamento no espaço social casa com o contexto socioespacial: nas mais variadas formas de guetos (além dos empreendimentos imobiliários, podemos mencionar clubes e shopping centers com acesso restrito, entre outros). Se considerarmos que o espaço ambiental de Belo Horizonte ultrapassa os limites da cidade construída, confirma-se a tendência à monoculturização da hinterlândia, que se materializa na expansão do setor agropecuário comercial e na instalação de grandes barragens como Furnas, Três Marias e Irapé. Nesse contexto, destacam-se as áreas de mineração, que formam, junto com as indústrias da siderurgia e extensas plantações de eucalipto e Pode-se ver [a casa] como um epítome da imobilidade com os seus contornos fortes, frios e rígidos [...] Contudo, uma análise crítica, sem dúvida, destruiria a aparência de solidez desta casa […] À luz dessa análise imaginária nossa casa emergiria como permeada por fluxos de energia de todas as direções que passam para dentro e fora através de todos os caminhos imagináveis: água, gás, eletricidade, linhas de telefone, sinais de rádio e televisão, entre outros […] a cidade [...] consome quantidades colossais de energia, física e humana, [...] é efetivamente uma fogueira constantemente flamejante. (Lefèbvre, 1991, pp. 92-93, tradução nossa) pinus para produção de carvão vegetal, um complexo agroindustrial que ocupa grande Na citação, observamos que a estrutu- parte das áreas centrais e da região norte de ra espacial está intrinsecamente vinculada ao Minas Gerais e do Vale do Jequitinhonha. Essa consumo individual das pessoas. Mesmo um situação gera inúmeros conflitos ambientais cidadão “ecologicamente correto” tem pos- territoriais junto às populações tradicionais, sibilidades limitadas de reduzir seus padrões com processos semelhantes aos que acon- de consumo devido à estrutura socioespacial teceram na Alemanha, como descrito acima dispersa na qual organiza seu cotidiano. Os sis- (Laschefski, 2010). temas de água e esgoto, o tratamento do lixo, Assim, o modo de produção capitalista as linhas de transmissão de energia elétrica, do espaço produz cidades que expressam a in- a rede viária do comércio, seja para alimen- sustentabilidade do atual modelo de desenvol- tos ou bens duráveis, envolvem caminhos de vimento, que gera as chamadas crises ambien- transporte que abrangem todo o globo. As fun- tais globais e desigualdade social. ções sociais básicas como trabalho, compras, 156 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana educação, entre outros, acontecem a grandes sociofísicos que incorporam relações metabóli- distâncias, que só podem ser superadas por cas e sociais específicas. O mundo, de acordo meios de transportes motorizados. Em relação esse autor, seria um ciborgo, parcialmente natu- ao hinterlandia descrito acima, Freund (2010) ral, parcialmente social, parcialmente técnico e lembra que o espaço ambiental dos sistemas parcialmente cultural, sem fronteiras, centros e de transporte baseado em carros e dos siste- limites claros. Assim, quaisquer mudança física mas fast food como produto da agricultura in- e ambiental ou modificação dos fluxos, redes e dustrial e pecuária são insustentáveis em rela- práticas socioambientais não podem ser enten- ção à intensidade de energia e recursos, assim didas independentes das condições históricas, como em relação ao consumo de terras. culturais, políticas ou econômicas e das institui- Nessa perspectiva, revela-se o caráter ções que as acompanham. Esses metabolismos ilusório da interpretação da modernidade socioambientais, frequentemente, abrangem como a possibilidade de relativa libertação tendências contraditórias e conflitantes, sobre- dos constrangimentos ecológicos diante das tudo quando qualidades socioambientais são possibilidades da divisão do trabalho, da tro- reforçadas em um lugar para alguns – huma- ca mediada pelo mercado e da capacidade nos e não humanos –, resultando na deteriora- humana para transformar o mundo biofísico ção das condições socioecológicas de um outro (Goldblatt, 1996). A pegada ecológica da so- lugar, como expresso, de forma abstrata, nos ciedade moderna está mais alta do que nunca conceitos espaço-ambiental ou pegada ecoló- e os indivíduos, inseridos num sistema de pro- gica, apresentados anteriormente. Dessa forma, dução e reprodução de abrangência global, os processos de mudança metabólica nunca jamais foram tão dependentes dos recursos são socialmente ou ecologicamente neutros. materiais. Na verdade, o mercado leva à abs- As redes socioecológicas são permeadas pelas tração das relações socioespacias, ofuscan- geometrias de poder, que decidem, finalmente, do, assim, a base de reprodução material da quem tem acesso aos recursos ou outros com- sociedade moderna, tornando-a invisível aos ponentes do meio ambiente e controle sobre seus integrantes individuais. Iniciativas para a eles e quem está excluído desses imbróglios conscientização da população em relação aos metabólicos (Swyngedouw, 2007). seus padrões de consumo, como parte da edu- Nesse contexto, o autor cita o direito à cação ambiental, são, diante dessas relações cidade, de Henri Lefébvre, que implicaria tam- socioespaciais, insuficientes para alcançar al- bém no direito ao metabolismo. Com respeito guma forma de sustentabilidade. a essa temática, Harvey (2008) afirma que o Segundo Swyngedouw (2007), esse me- direito à cidade abrange muito mais do que a tabolismo socioambiental da sociedade globa- liberdade individual para acessar os recursos lizada, diante do seu conteúdo social e de suas urbanos. Seria mais um direito comum do que qualidades físico-ambientais, precisa ser enten- um direito individual, pois essa transformação dido como uma produção histórica. Qualquer depende inevitavelmente do exercício do poder parque urbano, arranha-céu ou reserva natural coletivo para reformar os processos de urbani- contém e expressa um conjunto de processos zação. Trata-se, de acordo de Harvey (2008), de Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 157 Klemens Laschefski um dos direitos mais negligenciados entre os direitos humanos. Nessas afirmações, reflete-se a ideia de que o primeiro passo para a superação dos impasses socioambientais do espaço urbano seria a verdadeira democratização da sociedade, que implica também a aceitação de situações de conflito ao invés de políticas participativas que promovem consensos artificiais em cam- ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. (Brasil, 2001) pos caracterizados por assimetrias nas relações do poder. Para realizar tais tarefas, essa lei prevê, no seu Artigo 32º, a operação urbana consorciada, que é Do Direito à Cidade ao Estatuto da Cidade: um caminho para a sustentabilidade urbana? Harvey (2008) menciona no seu artigo a conquista dos movimentos sociais urbanos no Brasil, que conseguiram a consolidação legal de reivindicações importantes no Estatuto da Cidade do Brasil, definido pela lei 10.257, de 10 de julho de 2001. De modo geral, essa lei é considerada um passo importante para a garantia do direito à cidade e a democratização das políticas urbanas, devido à regulamentação da função social da terra e da participação na elaboração de planos diretores, entre outros. Citamos o Artigo 2º: A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento 158 § 1 [...] o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. (Brasil, 2001) As operações urbanas são executadas principalmente por intermédio de Parcerias Público-Privadas (PPP). Como exemplo de implementação dessa lei, apresentamos aqui alguns aspectos levantados em torno de uma pesquisa em andamento sobre a Operação Urbana do Isidoro, uma das últimas áreas verdes de Belo Horizonte. Procuramos investigar como a gestão democrática é realizada na prática e em qual sentido os discursos da sustentabilidade social e ambiental são empregados pelos atores envolvidos. Na leitura oficial, a área em questão se caracteriza pela urbanização espontânea e irregular. Para enfrentar essa situação, a prefeitura de Belo Horizonte estabeleceu, no âmbito da operação urbana, uma PPP com o Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana empreendimento Granja Werneck S/A. O proje- Interessa analisar, então, como o empre- to foi apresentado como uma inovação do pla- endimento se relaciona com as comunidades nejamento urbano sustentável e visa à constru- já existentes no entorno da área prevista para ção de 17.500 unidades habitacionais em áreas sua construção, compostas por populações pri- preservadas. O Estudo de Impacto Ambiental vadas do direito à cidade, moradores de bairros (EIA) do empreendimento propõe uma série de informais, parcialmente localizados em áreas medidas em relação à eficiência energética, tra- de proteção ambiental e de risco geológico, tamento de lixo, saneamento e equipamentos ameaçados de remoção. urbanos (MYR – Projetos Sustentáveis, 2011), O fato é que o empreendimento Granja que correspondem, de modo geral, a medidas Werneck é destinado a atender, principalmente, da modernização ecológica promovidas por re- classes sociais com poder aquisitivo mais ele- des de governos municipais como a Internatio- vado. Contudo, de acordo com o regulamento nal Council for Local Environmental Initiatives (ICLEI),3 que já estão sendo amplamente inseridas em políticas públicas municipais. De certa forma, seguem o modelo da cidade compacta, visando à redução das relações socioespaciais através de um setor de serviços, creches, escolas e um centro comercial na proximidade das novas unidades habitacionais. O que chama a atenção é que os empreendedores idealizaram o projeto como a construção de um novo “bairro”, apresentando o centro de serviços e comércio como uma “[...] aldeia [...] que proporcionará, acima de tudo, a volta da vida em comunidade, a noção humanista de lugar e a vida em harmonia com o meio ambiente” (MYR – Projetos Sustentáveis, 2011, p. 34, grifos nossos). O que surpreende é a apropriação de termos que frequentemente são relacionados às formas de vida no campo, fruto de uma trajetória de convivência de gerações, consideradas “atrasadas” em relação à sociedade moderna, ou seja, algo sujeito a um processo evolutivo que dificilmente pode ser ”construído”. Nesse discurso, reflete-se o apelo emocional a uma certa saudade direcionado a possíveis compradores que procuram sossego diante das ameaças urbanas supracitadas. da Operação Urbana do Isodoro, 10% das habi- Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 tações construídas na área interna desse novo bairro deveriam ser destinadas à Política Municipal de Habitação, para atender famílias com renda de 0 a 6 salários mínimos. Porém, no EIA, consta que o empreendimento visa beneficiar o segmento de 3 a 10 salários mínimos: O empreendimento – Granja Werneck – poderá contribuir com o programa – Minha Casa Minha Vida – atendendo a população com faixa salarial familiar acima de três salários mínimos. Para a população que tem renda abaixo deste patamar deverá ser inviável comercializar os imóveis, cujo valor será agregado de custos como o alto valor dos terrenos, impostos, contrapartidas e alta dos materiais de construção. (MYR – Projetos Sustentáveis, 2011, p. 49) Diante das exigências da política habitacional, os empreendedores procuram atender aquele grupo que, segundo o programa governamental Minha Casa Minha Vida, tem acesso ao financiamento de imóveis orçados entre R$80 mil e R$130 mil. A justificativa de considerar apenas grupos com salários maiores é essencialmente baseada na perspectiva de obter, 159 Klemens Laschefski entre as faixas salariais determinadas pelas entendemos que a especulação acelerada, pro- políticas habitacionais, o maior lucro possível. movida por projetos como a Granja Werneck, Como a Política Municipal de Habitação prevê tem potencial de agravar a segregação socio- o atendimento de populações com renda de 0 espacial em função da pressão direta ou indi- a 3 salários mínimos, os empreendedores estão reta para que os moradores atuais saiam da negociando a construção de 1.750 unidades região. Contudo, cabe lembrar que, de forma habitacionais para esse público, mas fora dos contraditória, empreendimentos desse porte limites da área planejada. Verifica-se, assim, a podem levar a um movimento inverso: a atra- afirmação de Acselrad (2004) de que esse tipo ção de um elevado contingente populacional de “empreendedorismo urbano”, promovido na busca de emprego nas residências desses pelo próprio poder municipal, é pautado nas empreendimentos imobiliários como jardinei- vantagens econômicas, que subordinam as for- ros e outros serviços domésticos, que se instala mulações das políticas públicas, gerando novos na região sem a devida infraestrutura urbana, conflitos territoriais na área do entorno. problemática já analisada em outros trabalhos Durante as reuniões de comunicação (Laschefski, 2006; Laschefski e Costa, 2008). social às comunidades vizinhas – exigência do Contudo, cabe lembrar que entidades órgão licenciador para atender os requisitos da sociedade civil organizada, como ONG am- do Estatuto da Cidade com respeito à partici- bientais, compartilham as preocupações em pação –, estão sendo tratados apenas os pos- relação aos futuros problemas do entorno, mas síveis efeitos positivos indiretos oriundos da não se posicionam contra essa forma de em- dinamização econômica da região. No momen- preendedorismo imobiliário. O coordenador do to da conclusão deste artigo, o objetivo princi- Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, pal da comunicação social ainda não foi alcan- alegou: “[...] o projeto tem aspectos positivos çado: esclarecer como as comunidades serão no que tange à área que vai ser ocupada, mas impactadas pelos efeitos direitos e indiretos falta ser discutido o que vai acontecer no en- do empreendimento e discutir a viabilidade de torno” (Manuelzão, 2011). Tal afirmação sur- propostas de amenizar ou evitar os impactos preende diante da possibilidade de supressão negativos (Landes et al., 2012). Contudo, co- da vegetação nativa por causa da construção mo esse processo ainda estava em andamento, dos edifícios e os impactos de aproximada- não é possível uma avaliação final dele. mente 200.000 novos moradores na bacia Além disso, não há clareza sobre as reais hidrográfica. Aparentemente, há certa acei- consequências da supervalorização dos imóveis tação da hipótese de que a preservação das para a população carente. É bem provável que áreas restantes pode ser alcançada por meio será ainda mais difícil adquirir uma moradia da agregação de valor aos imóveis, visando naquela localidade, conquistar a documen- compradores que procuram proximidade com tação de titulação de propriedade dos lotea- as belezas cênicas das paisagens da região. A mentos antigos não regulamentados e, ainda, estratégia da ONG, de acordo de Polignano, é permanecer nesse espaço por causa da eleva- discutir, junto com o poder público e outras li- ção do custo de vida na região. Nesse sentido, deranças comunitárias, propostas para resolver 160 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana as demandas em torno dos impactos do em- Horizonte (Costa et al., 2011). A esperança é preendimento. Assim, para solucionar proble- que a valorização do território municipal evite mas ambientais e sociais, essa ONG assume a reterritorialização de grupos não desejados um papel proativo e propositivo em relação a oriundos de outros municípios. assuntos técnicos e administrativos, mas sem Entretanto, os municípios, ao apostar tocar nos processos políticos que possibilitam na atração de empreendimentos imobiliários essa nova forma de apropriação do espaço jus- privados, negligenciam que entram numa lu- tificada com o discurso da sustentabilidade. ta concorrencial no “mercado de cidades” Tudo indica que o Estatuto da Cidade, (Vainer, 2000), no qual valores relacionados à na forma como está sendo implementado, in- aparência da paisagem e à sensação de segu- duz a um processo que Dagnino (2004) cha- rança social são elementos de marketing. Tal ma a confluência perversa da institucionali- processo transforma não apenas os empreen- zação da participação da sociedade civil e do dimentos imobiliários, mas também as próprias projeto neoliberal. 4 cidades em mercadoria. Em resumo, o projeto Granja Werneck Como esses municípios configuram a está promovendo uma elitização do espaço continuação territorial da área da Operação urbano, adotando uma concepção de sustenta- Isodoro, reduzem-se os espaços para solucio- bilidade que visa, sobretudo, agregar valor de nar o déficit habitacional generalizado. Costa troca aos imóveis comercializados. et al. (2011) também chamam atenção para Costa et al. (2011) observaram que essa a diminuição das áreas rurais nos municípios versão da sustentabilidade urbana elitizada estudados, com consequências em relação às também permeia os Planos Diretores de muni- atividades agrícolas e de segurança alimentar. cípios do vetor Norte da Região Metropolitana Obviamente, nessa realidade, não há espaço de Belo Horizonte, particularmente aqueles para a agricultura familiar ou da pequena pro- integrados à APA Carste de Lagoa Santa, co- priedade, pois a tendência geral é de elevação mo Confins, Lagoa Santa, Matozinhos e Pedro dos patamares de preço da terra. Finalmente, Leopoldo. As políticas municipais procuram, Costa et al. (2011) constatam que a política claro, a regularização e urbanização dos bair- de elitização do espaço urbano, com base na ros populares existentes, mas há uma intenção retórica da sustentabilidade ambiental, ne- explícita de evitar que seus territórios conti- gligencia o fato de que os moradores de alta nuem sendo locais de extensão da urbanização renda são geradores de intensos fluxos de veí- periférica. Ao invés disso, pretendem promover culos, de novas necessidades de consumo, de atividades econômicas em torno do turismo e sofisticada infraestrutura urbana e regional, o loteamentos fechados, mimetizando, assim, que configura novos desafios para o planeja- a expansão elitizada da região Sul de Belo mento urbano. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 161 Klemens Laschefski Sustentabilidade versus equidade: a ambientalização de impasses sociais poder público poderia investir para resolver os problemas de habitação. De fato, há uma tendência de as camadas da população com alta renda de, cada vez mais, investir em edificações localizadas em É bem provável que, contraditoriamente, as áreas montanhosas que necessitam medidas políticas para promover a sustentabilidade construtivas sofisticadas. Tal fato mostra que ambiental à custa da justiça social induzam a definição de áreas de risco é uma construção processos de urbanização “descontrolada” em social; refere-se às pessoas que não têm re- outros lugares, inclusive em áreas de risco e/ou cursos suficientes para acessar as tecnologias destinadas à preservação ambiental. Em prin- adequadas para manter suas casas em decli- cípio, esses recortes espaciais são áreas com ves íngremes. Também não possuem o capital pouco potencial de agregação de valor, confi- social necessário para exigir o “direito de per- gurando-se, no contexto de produção capitalis- manência” em APP, algo admitido para outros. ta do espaço, como “sobras”. Assim, constrói- Exemplo disso é o Bairro Belvedere III, em Belo -se, artificialmente, o conflito entre “o social” e Horizonte, que já está ultrapassando a cumeei- “o ambiental”. ra da Serra de Curral, uma área tombada pelo Frequentemente, os moradores dessas IPHAN, que marca o limite entre os municípios áreas enfrentam o estigma de “pouco esclare- de Belo Horizonte e Nova Lima. Inicialmente, cidos” por colocarem a própria vida em risco, o bairro sofreu uma ocupação desordenada, ou de “problema ambiental” por invadirem promovida por fortes investidores do setor áreas de alto valor ecológico, o que justifica imobiliário, causando inúmeros impactos na sua remoção. vegetação natural, na situação hidrológica, no Referimo-nos aqui à fala de um morador clima e no trânsito, entre outros. Os problemas de um bairro não formalizado, localizado numa culminaram na ameaça de importantes ma- área de APP bastante acidentada, na vizinhan- nanciais em torno da Lagoa Seca e do Córrego ça do projeto Granja Werneck. 5 O morador Cercadinho, um afluente do Ribeirão Arrudas defendeu que o poder público tem que consi- que, por sua vez, pertence à bacia hidrográfica derar que a ocupação da área não é fruto da do Rio das Velhas. A área é de extrema impor- ignorância dos moradores e que o risco como tância para o abastecimento de água potável morador de rua, exposto ao crime, seria bem da população da zona sul de Belo Horizonte. mais concreto do que a possibilidade de um Mesmo assim, a urbanização promovida pe- eventual deslizamento. Consequentemente, os la especulação imobiliária foi posteriormente moradores de bairros irregulares não devem legalizada em desrespeito e subsequente fle- ser considerados como “problema ambiental”, xibilização da legislação ambiental (Amorim, mas, sim, como “problema habitacional”. Con- 2007). Entretanto, as correções necessárias tinuando, alegou que existem técnicas para para manter a qualidade ambiental são rea- diminuir os riscos naquelas áreas, nas quais o lizadas pelo poder público. Vasconcelos et al. 162 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana (2011) mencionam, por exemplo, a instalação que envolvem custos adicionais para os mora- de um novo sistema de drenagem e captação dores. A condição básica para sustentar a vida de água de chuva ao redor da Lagoa Seca, num prédio é a renda fixa e regular, algo raro, para o qual o poder municipal disponibilizou sobretudo entre as pessoas cuja faixa de renda R$7 milhões. O Ministério das Cidades, por sua é de 0 a 3 salários mínimos. vez, prevê, no âmbito do Programa de Acele- A partir do exposto, podemos tirar duas ração do Crescimento (PAC 2), R$1,8 milhões conclusões: por um lado, o discurso ambiental, para um projeto de saneamento integrado em não raramente, é utilizado para destacar a si- torno do Córrego Cercadinho. tuação de ilegalidade de moradores em áreas O exemplo mostra que as camadas mais de sensibilidade ambiental ou de risco. Trata-se, abastadas estão cada vez mais disputando então, da “ambientalização” de um problema os morros – termo tradicionalmente utilizado social: o déficit habitacional. Oblitera-se, assim, como sinônimo de favelas – com as camadas outra ilegalidade: a negligência do direito cons- mais pobres. Obviamente, áreas ocupadas pe- titucional à moradia digna, que, por sua vez, é los primeiros dificilmente serão rotuladas como baseado na Declaração Universal dos Direitos áreas de risco, mesmo quando apresentam as Humanos, de 1948. mesmas características geofísicas e ecológicas Por outro, o tratamento do déficit habi- que os bairros irregulares, o que revela uma in- tacional por meio de instrumentos do mercado justiça ambiental. impede que a parcela da população não inte- No caso de remoções de bairros popula- grada ou parcialmente integrada à economia res de áreas consideradas inadequadas surgem formal usufrua o direito à cidade. Para além novas contradições com capacidade de provo- da garantia desse direito em consequência, car conflitos ambientais. As soluções propos- entendemos que é preciso ampliar o Estatuto tas pelo poder público para os removidos é a da Cidade com a especificação de um “Direito disponibilização de moradias em edificações ao Território”. verticais, em função da falta de espaços destinados a essa finalidade. Contudo, a troca de um barraco por um apartamento pode provocar grandes transformações no modo de vida dessas pessoas, já que determinadas ações Na busca do espaço sustentável e socialmente justo não podem mais ser realizadas. Pensemos, por exemplo, na criação de porcos, galinhas e ou- Confirma-se, então, a afirmação de Hodson tros animais, no cultivo de uma horta ou no uso e Marvin (2008) de que as respostas neolibe- de um fogão a lenha. Tais atividades não são rais dominantes baseadas em tecnologias de apenas um hábito específico; na verdade, com- acordo com o modelo de cidade e coeficiente plementam o sustento dessas pessoas, que, em visam à construção de enclaves para usuá- sua maioria, não têm emprego fixo. Além disso, rios premium. Em contraste a essas propostas morar num prédio significa a regulamentação convencionais, os autores resumem algumas do consumo de energia, água e outros serviços condições básicas para alternativas menos Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 163 Klemens Laschefski direcionadas ao comércio e à tecnologia, com proposta que permeia quase todos os discursos o objetivo de pautar a necessidade de criar ci- sobre cidades sustentáveis. dades justas na agenda urbana. Isso envolve- O que surpreende nas soluções propostas ria principalmente o seguinte questionamento: para alcançar a sustentabilidade com equida- para que e para quem servem as respostas, de é que, em princípio, não há nada de novo. promovendo uma mudança sociotécnica que Já no século XV, na época do cerceamento das procura reformar as cidades existentes e não terras camponesas na Inglaterra e da ascen- a construção de novos enclaves e coeficien- dência da industrialização e do capitalismo, foi tes. Afinal, a sustentabilidade social tem que Thomas Morus que apresentou o desenho da garantir a segurança social, ecológica e ener- ilha fictícia Utopia (derivado do latim, significa gética para todos (e não apenas para alguns “não lugar”) como um recorte espacial limi- privilegiados), por intermédio de políticas que tado, cujos moradores procuravam o consumo procurem lidar com a interconectividade entre equilibrado e distribuído de forma igualitária. os processos sociais e a crise ecológica e social. Morus (2001) – original publicado no início do Perguntamo-nos: é possível criar um século XVI, durante o reinado do Henrique VII – espaço urbano sustentável? Para destacar a acreditava que podiam ser criados sistemas de necessidade de elaborar utopias concretas, produção e consumo dos recursos naturais que lembramos a crítica de Lefèbvre (1991) aos permitissem uma vida em abundância para to- planejadores urbanos soviéticos, que não pro- dos os membros da sociedade, com o consumo duziram um espaço socialista, mas apenas re- se concentrando naquilo que fosse essencial, produziram o projeto urbano dos países indus- eliminando artigos de luxo. Nessa afirmação, trializados, que ”[...] simplesmente continuaria podemos identificar claramente a mesma críti- no caminho de crescimento e acumulação [...] ca feita às sociedades afluentes dos anos 1960 O processo do crescimento puramente quan- (Marcuse, 1969). titativo tem que ser colocado em questão” A ilha Utopia era caracterizada por uma (Lefèbvre, 1991, p. 357). Porém, ele admite que organização socioespacial com estrutura urba- não tinha uma visão concreta do que seria es- na policêntrica, formada por 54 cidades dispos- se espaço novo. Como se pode observar, essa tas em torno da capital Amaurota, sede de um problemática é ainda mais complexa quando governo centralizado, mas com estrutura igual pensamos no metabolismo socioambiental das a todas as outras cidades. Tais núcleos seriam sociedades urbano-industrial-capitalistas. centros de artesanato, educação, ciência e ad- Então, como seria concretamente a ex- ministração. A necessidade de organização cen- pressão espacial do metabolismo socioam- tral do governo explica-se por causa da amea- biental sustentável? Recorremos mais uma vez ça de possíveis invasores e guerras. Contudo, o a Lefèbvre (1991) que alega que a estratégia príncipe não teria mais os privilégios da classe para um projeto socialmente progressivo pode aristocrática, que se destacou por seus bens ser fundada em pequenos e médios empreendi- materiais; seu papel seria mais o de um admi- mentos em cidades compatíveis com esse foco, nistrador do país. No entanto, Morus já previu 164 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 500 anos em busca de sustentabilidade urbana um sistema representativo de conselheiros que, outros, fossem considerados coisas inúteis e junto com o príncipe, formulariam as políticas desnecessárias. Consequentemente, questio- públicas. Tais representantes seriam designa- nou profundamente as relações de poder em dos pelos chamados filarcos ou sifograntes, torno dessas supostas riquezas que fundamen- que, por sua vez, formariam uma assembleia tam a ganância e a corrupção. O resultado das municipal democraticamente eleita. Na escrita reflexões de Morus é um profundo questiona- de Morus, destacam-se também as propostas mento de relações de poder tão prejudiciais para a política populacional e o planejamento para o povo. Embora não abordando explicita- familiar, cujo objetivo seria manter a população mente a situação ecológica, ele entendeu que estável. Cada membro da sociedade, inclusive o consumo ilimitado de bens materiais e do os conselheiros e o príncipe, são obrigados a próprio espaço pelos príncipes, pela corte e pe- trabalhar por dois anos no campo, o que ga- los vassalos era a causa de conflitos territoriais, rantiria a origem de toda prosperidade da so- guerras e injustiça social. ciedade. Assim, Morus considerava o trabalho Nessa breve descrição da visão de Mo- no campo tão nobre quanto as atividades nas rus, refletem-se muitos elementos que mar- cidades, mostrando, assim, que a cidade não cam hoje a discussão sobre sustentabilidade pode ser vista como um sistema de produção e urbana pautada nos princípios do equilíbrio reprodução independente da zona rural. ecológico e da justiça ambiental. Também fica O ponto de partida de Morus era a vida claro que essas questões não podem ser tra- parasitária e faustosa da corte numa época em tadas sem pensar um novo modelo de produ- que os príncipes e seus vassalos viviam num ção do espaço, garantindo, além do consumo luxo exuberante. Porém, abordou também o equitativo e equilibrado dos recursos naturais, enriquecimento da classe burguesa, enquanto o direito ao território. O que surpreende é que aqueles que produzem tais riquezas, sobre- muitos aspectos das propostas e modelos das tudo os homens no campo, eram submetidos cidades sustentáveis atuais não se diferem em à exploração desumana. Além disso, Morus muito da visão de Morus, fechando, assim, o propôs que os bens que simbolizavam a ri- ciclo de 500 anos de busca pela sustentabili- queza, tais como ouro, pedras preciosas, entre dade urbana. Klemens Laschefski Doutor em Geografia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha. Professor Adjunto no Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte/MG, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 143-169, jan/jun 2013 165 Klemens Laschefski Notas (1) Carlowitz era o administrador principal de mineração no governo do Frederico Augusto I, o forte, então Eleitor da Saxônia, Alemanha. (2) Malthusiano: visão pessimista quanto à finitude dos recursos naturais para atender as demandas oriundas do crescimento populacional e a elevação dos padrões de consumo. O termo se refere a obra de Thomas Malthus (1798) sobre o princípio da população (Malthus, 1998). Cornucopiano: visão otimista que acredita que as demandas futuras podem ser atendidas pelo desenvolvimento de novas tecnologias que visem a o mização e a eficiência energé ca e material de processos produ vos que resultem numa elevação da produ vidade no geral. É um termo da mitologia grega e refere-se a um chifre da cabra Amalthea que amamentava o recémnascido deus Zeus. A criança ganhava força extraordinária e quebrava o chifre, acidentalmente, durante uma brincadeira. O chifre possui um poder divino; é fonte ilimitada de tudo que for desejado (Kerényi, 1994). (3) Para mais informações: h p://www.iclei.org/index.php?id=804 (4) De fato, a lei foi criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, que defendeu polí cas de terceira via, que, segundo Giddens (1998), procuraram renovar o neoliberalismo radical e retomar meios de intervenção política para evitar injustiças sociais. Nesse contexto, foram promovidas estruturas e instituições da sociedade civil, que assumiram tarefas sociais para as quais o estado reduzido não se responsabilizou. Em troca, as en dades da sociedade civil ganharam o direito de par cipação na formulação de polí cas públicas. (5) Apresentação durante um seminário realizado no dia 25 de novembro de 2011, no âmbito da disciplina “Aulas Práticas Integradas de Campo”, do curso Ciências Socioambientais, com par cipantes do projeto Granja Werneck, da comunidade quilombola Mangeiras e do bairro Novo Lajedo. Referências ACSELRAD, H. (2004). Desregulação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana. 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Tendo em vista a variedade de questões envolvidas, nosso objetivo é examinar análises sobre ameaças, riscos e vulnerabilidade, buscando entender seus procedimentos, alcances e limites. O texto consiste numa revisão bibliográfica de distintos enfoques sobre a vulnerabilidade. Mostra que abordagens tradicionais na linha físico-ambiental ou na social, com tratamentos quantitativos ou qualitativos, tendem a limitar-se a olhares específicos. Abordagens interdisciplinares, integrando processos sociais e ambientais e acrescentando um olhar espacial, representam uma necessária ampliação de perspectiva nos estudos da vulnerabilidade. Abstract In contemporary cities, natural and induced threats hit particularly hard populations in a state of social insecurity. Extending beyond traditional outlooks on poverty, vulnerability studies acknowledge complex processes which reinforce insecurity in these groups. In light of the variety of issues involved, our objective is to examine analyses on threats, risks and vulnerability, while attempting to understand their procedures, outreach and limits. The discussion dwells on a bibliographic review of different lines on vulnerability. It shows that traditional approaches, either physical-environmental or social, adopting quantitative or qualitative procedures, tend to remain within specific focuses. Interdisciplinary approaches integrating social and environmental processes into a spatial outlook represent a required enlargement of perspective in vulnerability studies. Palavras-chave: risco; vulnerabilidade; vulnerabilidade ambiental; vulnerabilidade social; vulnerabilidade socioambiental. Keywords: risk; vulnerability; environmental vulnerability; social vulnerability; social and environmental vulnerability. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Lúcia Cony Faria Cidade Introdução “modernização da modernização” tem como consequências inseguranças de toda uma sociedade, de difícil delimitação, envolvendo A imensa criação de riquezas que caracteriza lutas entre diferentes facções. Essa fase seria os sistemas sociais contemporâneos acompa- caracterizada por uma dinamização do desen- nha-se de crises econômicas, do crescimento volvimento, que seria tensionado por uma po- da pobreza e da intensificação dos efeitos de tencialidade para provocar consequências con- eventos perigosos. De forma crescente, a dinâ- trárias às desejadas. Para o autor, em diferen- mica do risco tende a se reproduzir em varia- tes lugares e grupos culturais, esses traços se dos graus e combinações em cidades de todos combinam com o nacionalismo, a pobreza em os continentes. O intenso crescimento urbano grande escala, o fundamentalismo religioso, as e usos inadequados do solo potencializam crises econômicas, as crises ecológicas, guerras ameaças advindas de eventos naturais, como e revoluções e, ainda, estados de emergência tempestades, enchentes e deslizamentos, ou decorrentes de grandes catástrofes. Esse con- de ocorrências induzidas, como certos tipos junto caracterizaria o que o autor denominou de contaminação e de doenças e a violência. “o dinamismo do conflito da sociedade de ris- Esses problemas são recorrentes em grandes co” (Beck, 1997, p. 14). cidades no mundo e, em particular, na Amé- Na fase atual, a precariedade que atinge rica Latina e no Brasil. Em áreas urbanas bra- as condições de vida de certos grupos sociais sileiras, a ocupação de áreas de risco, muitas em muitas partes do mundo tende a perma- vezes associada a condições socioeconômicas necer e, em muitos casos, a se agravar. Em um precárias, tende a aumentar, multiplicando os cenário marcado por diferenças intergrupais e agravos aos grupos sociais atingidos. A dificul- interpessoais na capacidade de reação a ad- dade de lidar com impactos negativos caracte- versidades, nas últimas décadas têm aumen- riza situações de vulnerabilidade a danos po- tado o número de estudos da vulnerabilidade. tenciais advindos de diferentes eventos. Assim, Susan Cutter mostra que análises iniciais, al- o texto pretende resgatar perspectivas, bases gumas das quais alimentaram avanços poste- metodológicas e procedimentos de pesquisa riores sobre o tema, tendiam a preocupar-se aplicáveis a análises da vulnerabilidade, com com os efeitos de catástrofes naturais, dando vistas a desvendar seus contornos. A discussão particular atenção à vulnerabilidade de popu- mostra que estudos sobre a temática tendem lações a ameaças ambientais (Cutter, 1996). a privilegiar ora enfoques físico-ambientais ora Por outro lado, examinando estudos com um perspectivas sociais, enquanto novas concep- cunho social, Caroline Moser observa que al- ções avançam em direção a uma visão integra- guns autores consideraram estudos tradicio- da, socioespacial. nais da pobreza insuficientes para expressar O quadro no qual a temática da vulne- a diversidade de aspectos envolvidos. Além rabilidade se inscreve tem sido equaciona- disso, essas análises eram pouco operacionais do como o de uma sociedade de risco. Para para informar ações com vista à prevenção ou Ulrich Beck, em termos políticos, a chamada à mitigação de efeitos danosos da privação 172 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade (Moser, 1998, p. 3). Assim, vários pesquisado- As dificuldades de sistematização da te- res, inclusive alguns ligados a entidades finan- mática surgem, ainda, do fato de o objeto de ceiras internacionais, passaram a incorporar em análise que se pretende construir – processos seus enfoques a questão da vulnerabilidade em que tenham expressão na vulnerabilidade e áreas rurais e urbanas. Por outro lado, alguns seus desdobramentos – tender a ser multifa- analistas passaram a reconhecer ligações entre cetado e complexo. Assim, óticas específicas, processos físico-ambientais e processos sociais; como a físico-ambiental ou a social, tenderiam e a buscar procedimentos metodológicos que a ganhar em aprofundamento e a perder em permitissem uma visão integrada. A partir de generalidade. Ao contrário, perspectivas mul- uma variedade de abordagens, a grande reper- tidisciplinares, como a que se poderia chamar cussão de estudos sobre a vulnerabilidade ali- de socioambiental, apesar de um discurso in- mentou um número de críticas e debates, que tegrador, tendem a perder em precisão, além deram visibilidade ao assunto e desembocaram de carecer de metodologias consolidadas. Em em novos desdobramentos. um terreno em que nem sempre os avanços O entusiasmo com a temática da vulne- são lineares ou progressivos, algumas propos- rabilidade, no entanto, não obscureceu uma tas buscam enriquecer o enfoque da vulne- inegável dificuldade, que é a análise de um rabilidade, incluindo nas análises o papel do fenômeno ou de um conjunto de fenômenos lugar e do contexto territorial nos processos com a mesma designação, que se manifesta de observados. Uma das formas de propiciar in- formas diferenciadas e tem causalidades múlti- terpretações que levem em conta essa com- plas. Uma das manifestações desses complica- plexidade são estudos da vulnerabilidade com dores é a construção de uma base conceitual uma ótica socioespacial. comum. Na verdade, os pontos de partida são A seleção de estudos para revisão baseia- distintos: as ciências da natureza, no caso dos -se não apenas nas diferentes óticas adotadas desastres ambientais; e as ciências sociais, no neste texto, mas também na disponibilidade caso dos processos socioeconômicos com efei- de informações sobre os conceitos e procedi- tos sobre a pobreza. O ponto de convergência mentos de pesquisa adotados. Assim, no te- seria a vulnerabilidade ou suscetibilidade da ma relativo à vulnerabilidade físico-ambiental população para lidar com os impactos de ocor- escolheu-se um estudo sobre deslizamento de rências danosas, de origem físico-ambiental encostas no Brasil. No tema sobre a vulnera- ou social. A forma de enquadrar os processos bilidade social, uma primeira análise envolveu causais já deixa antever as primeiras dificulda- comunidades em Zambia, no Equador, nas Fi- des. Alguns estudos tendem a considerar essas lipinas e na Hungria. Uma segunda análise diz “ocorrências” como eventos pontuais – no respeito a três cidades no Afeganistão, com caso dos desastres ambientais, ainda que ma- uma visão qualitativa abordando a pobreza. tizados por ações da própria sociedade. Outros, Para o tema da vulnerabilidade socioespacial, diferentemente, consideram as “ocorrências” o primeiro exemplo ilustrativo é sobre perigos como parte de um andamento contínuo – no naturais em condados nos Estados Unidos. O caso dos processos socioeconômicos. segundo exemplo trata de áreas urbanas no Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 173 Lúcia Cony Faria Cidade Afeganistão, distinguindo entre vulnerabilidade acasos e eventos extremos, associando a gravi- estrutural e vulnerabilidade inerente. No Brasil, dade de seus efeitos à ação humana. Para Ken são bastante conhecidos estudos nas diferen- Gregory, esses pesquisadores interessavam-se tes óticas, alguns dos quais constam das refe- principalmente por prejuízos e danos, impactos rências bibliográficas ao final deste texto. econômicos e, ainda, pela percepção ambiental, A organização das discussões neste tex- considerando esses estudos como subsídios pa- to reflete, assim, as dificuldades do próprio ra o planejamento (Gregory, 1992, pp. 202-204). campo de conhecimento. A próxima seção, Um desdobramento dessa linha foram análises que trata de aspectos conceituais, começa com de risco, particularmente associadas a eventos uma breve pontuação da evolução dos signifi- perigosos e seus impactos ambientais. Somente cados de vulnerabilidade; e, em seguida, bus- a partir de 1980, estabeleceu-se uma conceitua- ca as acepções mais utilizadas nos enfoques ção mais explícita de vulnerabilidade, embora físico-ambiental, social e socioespacial. A seção marcada por uma variedade de acepções. Susan subsequente volta-se para exemplos de aná- Cutter, por meio de enunciados de diversos au- lises aplicadas, sob a forma de interpretações tores, ilustra diferentes meandros dessa evolu- e procedimentos relativos à vulnerabilidade ção (Cutter, 1996). em áreas urbanas. Embora a organização dos A autora resgata a contribuição de Gabor temas também procure seguir uma divisão se- e Griffith, de 1980, que definiam vulnerabi- gundo as óticas físico-ambiental, social e socio- lidade em relação à ameaça de exposição a espacial, os estudos empíricos nem sempre se materiais perigosos, considerando-a como o apresentam de forma tão definida. Assim, os contexto do risco. Por sua vez, Undro, em 1982, exemplos apresentados podem, por um lado, conceituava-a como o grau de perda por ele- não preencher toda a acepção pretendida ou, mentos em risco resultante da ocorrência de por outro, transbordar as fronteiras delineadas, um fenômeno natural. Com uma visão mais so- contribuindo assim para a flexibilidade do es- cial, Susman et al., em 1984, consideravam vul- forço de sistematização aqui proposto. nerabilidade como o grau pelo qual diferentes classes da sociedade estão diferencialmente em risco. Cutter mostra, ainda, que Liverman, Aspectos conceituais: evolução das acepções de vulnerabilidade em 1990, não apenas estabeleceu uma distinção entre vulnerabilidade biofísica e vulnerabilidade social como já adotava uma visão espacial. Assim, o autor acrescentou uma diferença, entre vulnerabilidade no espaço geo gráfico Multidimensionalidade do conceito de vulnerabilidade e busca de operacionalização (onde pessoas e lugares vulneráveis estão localizados) e vulnerabilidade no espaço social (quem naquele lugar é vulnerável) (cf. Cutter, 1996, p. 531). Desde os anos de 1970, os geógrafos físicos Em continuidade, para Cutter, em 1993, reconheciam a relevância de análises sobre vulnerabilidade dizia respeito à probabilidade 174 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade de um indivíduo ou grupo ser exposto e afe- estabelece distinções que incluem uma pers- tado negativamente por um perigo; era a inte- pectiva dinâmica e ampla. Para a autora, há ração entre os perigos do lugar (risco e mitiga- três temas expressivos nos estudos da vulnera- ção) e o perfil social de comunidades. Blaikie bilidade: 1) a vulnerabilidade como uma con- et al. consideravam vulnerabilidade como as dição pré-existente; 2) a vulnerabilidade como características de uma pessoa ou grupo em uma resposta matizada; e 3) a vulnerabilidade termos de sua capacidade para antecipar, lidar, como perigos do lugar. A primeira linha, que é resistir e recuperar-se do impacto de um peri- a da vulnerabilidade como uma condição pree- go natural, considerando ainda o grau de risco xistente volta-se para a fonte de perigos biofí- causado. Dow e Downing, em 1995, conside- sicos ou tecnológicos. Segundo a autora, esses ravam vulnerabilidade como a suscetibilidade estudos se caracterizam por: a) uma ênfase na diferencial a determinadas circunstâncias. Para distribuição de uma condição de perigo; b) a esses estudiosos, fatores biofísicos, demográfi- ocupação humana de uma zona de perigo; e cos, econômicos, sociais e tecnológicos, como c) o grau de perda associado com a ocorrência idade da população, dependência econômica, de um evento particular (Cutter, 1996, p. 532). racismo e idade da infraestrutura, podiam estar Essa perspectiva enquadra-se mais diretamen- associados a perigos naturais (cf. Cutter, 1996, te no enfoque tradicional, ligado a desastres p. 532). e eventos ambientais. Poderia ser considerada A evolução do conceito de vulnerabilidade expressa a dificuldade de síntese associada como relativa à vulnerabilidade sob uma ótica físico-ambiental. aos fenômenos observados que, a seu turno, A segunda linha, da vulnerabilidade tendem a refletir uma inerente multidimen- como uma resposta matizada, destaca as sionalidade. Além da atenção a aspectos am- respostas e formas de lidar com os perigos, bientais propriamente ditos, aparece em vários incluindo-se a resistência e a resiliência. autores o reconhecimento da relevância da Considerando os eventos perigosos como dinâmica social em um sentido amplo. Os as- construções sociais, essa perspectiva exami- pectos econômicos, sociais, culturais e políticos na distúrbios crônicos, tais como as secas, a passam a ser progressivamente considerados fome, mudanças climáticas ou mudanças am- e integrados nas conceituações e reflexões. bientais. Para a autora, essa visão valoriza a Isso ocorre na atenção não apenas à estrutu- construção social da vulnerabilidade, uma ra de causalidade, mas também às formas de condição com origem em processos históricos a população lidar com os efeitos de situações e socioeconômicos que alteram a capacidade e processos potencialmente danosos. No en- de indivíduos ou da sociedade para lidar com tanto, embora passando a considerar o que se desastres e responder adequadamente a eles poderia chamar de fatores complementares, os (Cutter, 1996, pp. 532-533). Ao explicitar uma estudos continuaram a se desenvolver dentro causalidade social, essa linha ainda se volta de enfoques disciplinares paralelos. para eventos perigosos, de cunho ambiental, No quadro de uma diversidade de li- embora também esteja atenta para as formas nhas, a sistematização feita por Susan Cutter de a sociedade lidar com eles. Poderia ser Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 175 Lúcia Cony Faria Cidade considerada como relativa à vulnerabilidade vulnerabilidade não seguem uma classificação sob uma ótica social. comum, para fins deste trabalho optou-se por Ao lado da vulnerabilidade como uma organizar a exposição conceitual segundo a condição pré-existente e da vulnerabilidade seguinte divisão, que admite análises quanti- como uma resposta matizada, há uma ter- tativas ou qualitativas: bases conceituais da ceira vertente, chamada por Cutter de vulne- vulnerabilidade físico-ambiental; bases con- rabilidade como perigos do lugar. Essa visão ceituais da vulnerabilidade social; e bases combina as duas anteriores e acrescenta uma conceituais da vulnerabilidade socioespacial. visão geográfica. Assim, a vulnerabilidade estaria associada tanto a riscos biofísicos, como a respostas sociais, mas em um domínio de área ou domínio geográfico específico (Cutter, Bases conceituais da vulnerabilidade físico-ambiental 1996, p. 533). A autora propõe um refinamento da perspectiva que originou essa proposta, O primeiro tipo de abordagem do conceito de apresentando um modelo de vulnerabilidade vulnerabilidade (que poderia ser identificado que relaciona risco, mitigação, potencial de com a visão de Cutter sobre a vulnerabilidade perigo, tecido social, vulnerabilidade social, como uma condição pré-existente) foi desen- contexto geográfico e vulnerabilidade biofísica volvido para os estudos de desastres ambien- e tecnológica. A interseção e interação tanto tais. Embora se tenha verificado um avanço no da vulnerabilidade social como da vulnerabili- registro de possibilidades que vão além de es- dade biofísica e tecnológica é que criariam a tudos específicos, algumas análises com obje- vulnerabilidade de lugares, em um processo tivos particulares mantêm uma ênfase discipli- geral interativo (Cutter, 1996, p. 535). O tema nar. Assim, a busca de conceituações precisas da vulnerabilidade como perigos do lugar é in- pode refletir, além de uma tentativa de esclare- troduzido como uma expressão da articulação cer adequadamente o tema, um interesse prá- dos temas da vulnerabilidade de cunho am- tico em obter definições operacionais. Análises biental, social e espacial, com uma perspectiva recentes, com foco na prevenção de desastres de análise interdisciplinar. Poderia ser conside- naturais, têm adotado o conceito de vulnerabi- rada como relativa à vulnerabilidade sob uma lidade com o objetivo de investigar os espaços ótica socioespacial. com maior risco de sofrerem consequências de A utilidade do enfoque da vulnerabilidade para aplicação em políticas públicas levou desastres naturais e, a partir daí, propor medidas de intervenção. a uma busca de formas de operacionalização Em estudo sobre deslizamentos de en- das bases conceituais dessa perspectiva. Essa costas e suas consequências indesejáveis, Ri- busca de operacionalização se aplica tanto a cardo Vedovello e Eduardo Macedo apontam estudos que buscam uma ótica disciplinar, como desdobramento analítico as avaliações como aos que pretendem aprofundar o as- de riscos. Indicam que a relação entre risco e sunto segundo temas interdisciplinares. Dian- vulnerabilidade não é simples, incluindo a com- te de um quadro no qual os tratamentos da binação de vários fatores. Assim, os autores 176 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade apresentam inicialmente uma conceituação Capacidade (C) de enfrentamento como uma de risco, que seria a probabilidade de ocorrên- variável independente, considera-se sua re- cia de um acidente. De forma mais específica, lação inversa com o grau de vulnerabilidade Risco (R) seria o grau de perdas esperadas em e dos danos esperados (Vedovello e Macedo, decorrência de um evento perigoso, natural ou 2007, pp. 83-84). induzido. Assim, apresenta-se uma situação Em sintonia com outros pesquisadores, envolvendo um Elemento em risco (E), que é os autores observam a existência de várias um indivíduo, população, propriedade, ativida- conotações do conceito de vulnerabilidade. de ou ambiente passível de ser afetado; uma Levando em conta o interesse da análise, ado- Ameaça ou Perigo (P), que é a probabilidade tam o enunciado da Organização das Nações de ocorrência de um evento perigoso (caracte- Unidas – ONU, de 2004. Assim, a vulnerabili- rizado também segundo a localização, área de dade seria “... o conjunto de processos e con- alcance e intensidade); a Vulnerabilidade (V), dições resultantes de fatores físicos, sociais, que é a suscetibilidade do elemento ao impac- econômicos e ambientais, os quais determi- to de eventos perigosos; e Danos (D), que são nam quanto uma comunidade ou elemento em consequências esperadas caso o evento ocorra risco estão suscetíveis ao impacto dos even- (incluindo-se estimativas da extensão das per- tos perigosos” (Vedovello e Macedo, 2007, das previstas em função do número de pessoas pp. 83-84). Evidencia-se, nesse enunciado, o ou do valor das propriedades, bens e ambien- reconhecimento de uma combinação de dife- tes naturais sob o risco) (Vedovello e Macedo, rentes dinâmicas na configuração do que se 2007, p. 83). tem chamado de vulnerabilidade. Entre as relações relevantes para a com- Análises de riscos que considerem, de preensão do risco, pode acrescentar-se outra forma completa, os fatores presentes nas for- dimensão, a Capacidade de enfrentamento, ou mulações apresentadas são, no entanto, bas- de mitigação (C), que é o conjunto de meca- tante raras de se encontrar, particularmente nismos para enfrentar as consequências de um devido à necessidade de um elevado grau de acidente, minimizando as perdas e permitindo interdisciplinaridade. A literatura sobre desas- o restabelecimento das condições anteriores ao tres naturais tende a concentrar-se na variável evento. A Capacidade de enfrentamento agiria da ameaça ambiental, ou seja, os aspectos no sentido de reduzir o grau de Vulnerabilidade do meio físico relacionados à probabilidade (Vedovello e Macedo, 2007, p. 83). de ocorrência do evento. Vedovello e Macedo Em síntese, o Risco de sofrer os efeitos (2007) destacam alguns caminhos consagrados de um desastre (o grau de perdas esperadas) pela literatura cientifica para identificar, carac- seria o resultado da interação entre: a) Peri- terizar e gerenciar áreas em situações de risco. go, ou probabilidade de ocorrência de evento Dentre eles, o mais usado é a elaboração de perigoso; b) Vulnerabilidade, ou grau de sus- mapas de susceptibilidades que normalmente cetibilidade ao impacto de eventos perigosos; incluem a sobreposição de mapas de caracte- e c) Danos, ou nível de impactos potenciais rísticas do meio físico. Observe-se que esse mé- dos eventos perigosos. Caso se visualize a todo foi popularizado por Ian McHargh, em seu Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 177 Lúcia Cony Faria Cidade livro Design with Nature originalmente publica- habitacional nas grandes metrópoles brasilei- do em 1969 (McHargh, 1992). ras revela que a luta pela terra urbanizada é Apesar de adotar-se comumente a apli- uma dimensão latente da questão ambiental cação do termo “risco”, os mapas gerados a urbana brasileira. Outros estudos em países do partir da análise de aspectos do quadro na- chamado terceiro mundo também tratam desse tural, a rigor, não podem ser considerados tema, apesar de não utilizarem explicitamente mapas de risco na acepção apresentada. Não o conceito de vulnerabilidade (Hsin-Huang e apresentam o risco (grau de perdas esperadas) Hwa-Jen, 2002). O caso da disputa pela terra e não caracterizam a ameaça ou perigo (pro- urbanizada revela como, em uma situação de babilidade de ocorrência do evento perigoso). escassez, os grupos socialmente vulneráveis Abordam a vulnerabilidade (suscetibilidade do são também mais atingidos pelas consequên- elemento – indivíduo, população, propriedade, cias da falta de determinado recurso ambien- atividade ou ambiente) apenas parcialmente, tal. Nesse caso, a pouca oferta de terra infraes- ao levantar fragilidades ambientais; e não tra- truturada voltada para o mercado habitacional tam da capacidade de enfretamento (mecanis- de baixa renda elevou seu preço, induzindo a mos de mitigação) da população em questão; ocupação irregular de áreas frágeis. Essa ques- nem dos danos (impactos potenciais). tão tangencia outras perspectivas teóricas inti- Análises da vulnerabilidade físico-am- mamente relacionadas aos estudos de vulnera- biental que incorporam aspectos sociais cons- bilidade socioambiental, como, por exemplo, a tituiriam um desdobramento em direção a um noção de justiça ambiental e desigualdade am- enfoque de vulnerabilidade socioambiental. biental e ecologismo dos pobres (Torres, 1997; Estudos sobre vulnerabilidade socioambiental Alier, 2007). ganham corpo com a ascensão do ambienta- A ênfase no papel da gestão urbana ao lismo, que põe em questão a capacidade da afetar o padrão de desigualdade socioeconô- sociedade de dominar a natureza. Surge assim mica informa uma série de estudos posteriores a preocupação com a distribuição social dos que buscam mensurar e mapear a vulnerabili- bens ambientais, que não são mais percebi- dade socioambiental em algumas metrópoles dos como ilimitados. Tais estudos passam a brasileiras. Assim, Humberto Alves define a evidenciar a existência de conflitos em torno vulnerabilidade socioambiental como “uma da apropriação dos recursos ambientais, dos categoria analítica que pode expressar os fe- quais um exemplo são os recursos hídricos. nômenos de interação e cumulatividade entre Autores como Carmo e Hogan e também Men- situações de risco e degradação ambiental donça têm reconceituado essa situação de (vulnerabilidade ambiental) e situações de crescente escassez de recursos hídricos em ter- pobreza e privação social (vulnerabilidade so- mos de vulnerabilidade socioambiental (Carmo cial)” (Alves, 2006, p. 47). Similarmente, Marley e Hogan, 2006; Mendonça, 2004). Deschamps defende a existência de espaços de Outra importante questão socioam- risco ou vulnerabilidade ambiental, nos quais biental brasileira diz respeito à sub-habitação. se concentram populações socialmente vulne- A persistência de situações de precariedade ráveis (Deschamps, 2008, p. 192). 178 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade Uma linha de pensamento relacionada, e normalmente implícita nas definições de Bases conceituais da vulnerabilidade social vulnerabilidade socioambiental, busca responder em que medida a ação da sociedade pode induzir a ocorrência de eventos negativos de O segundo tipo de abordagem do conceito de grande magnitude. Para Ian McHargh, exem- vulnerabilidade (que poderia ser identificado plos de indução humana a desastres naturais com a visão de Cutter sobre a vulnerabilidade seriam casos de inundações ou desmorona- como uma resposta matizada) volta-se para mentos provocados por modelos de ocupação pressões socioeconômicas. A partir de uma lon- do território que desconsideram as caracterís- ga tradição e seguindo movimentos de reestru- ticas biofísicas do terreno e sua capacidade de turação da economia internacional, reformas suporte (McHargh, 1992). Para Rozely Santos, macroeconômicas e um expressivo aumento do de acordo com essa acepção de desastres in- número de pessoas carentes, renovaram-se os duzidos, o que o senso comum entende co- estudos da pobreza. Segundo Caroline Moser, mo desastres naturais seria, na verdade, uma essa atenção sobre o tema, por um lado, contri- resposta de processos ecológicos a alterações buiu para debates conceituais e metodológicos realizadas pelo homem (Santos, 2007). Sob es- sobre o significado e medidas de pobreza; por sa ótica, os desastres ambientais seriam asse- outro, criou o desafio de reavaliar ações para melhados a desastres socialmente produzidos, sua redução. A autora identifica um dualismo como a violência, a fome e outros eventos rela- entre medidas convencionais que identificam cionados à pobreza. pobreza com renda e consumo, levantadas por Possíveis aberturas em direção a uma meio de pesquisas domiciliares de larga escala; perspectiva socioambiental ainda são relativa- e medidas subjetivas que buscam indicadores mente poucas. Em geral, a literatura que trata de pobreza a partir da experiência dos pobres, de vulnerabilidade físico-ambiental enfatiza levantadas por técnicas participativas (Moser, os aspectos físicos do quadro natural e não 1998, pp. 1-2). se aprofunda sobre processos sociais que in- Moser identifica quatro temas relevantes teragem com o meio. Ainda assim, os estudos no estudo da vulnerabilidade: a) a diferença tendem a ser complexos e envolvem amplos entre pobreza e vulnerabilidade; b) a distin- levantamentos e tratamento de informações. ção entre vulnerabilidade e capacidades; c) a Entre as análises que podem oferecer pers- relação entre vulnerabilidade e propriedade pectivas complementares à da vulnerabilidade de ativos; e d) a categorização de estratégias físico-ambiental, estão as que conceituam a de resposta e administração de ativos. Pode-se vulnerabilidade sob o ponto de vista social. considerar que essas perspectivas, orientadas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 179 Lúcia Cony Faria Cidade para a consideração da vulnerabilidade social, mudanças viriam risco e incertezas e uma decli- buscam identificar caminhos para uma supera- nante autoestima (Moser, 1998, p. 3). ção dessa condição. a) A diferença entre pobreza e vulnerabilidade Em anos recentes, consolidou-se o reconhecimento de que a questão da pobreza envolve múltiplos aspectos, entre os quais o temporal; aumentou o interesse sobre estudos A consideração de mudanças ambientais que afetam o bem-estar, incluindo transformações no quadro externo – os aspectos econômicos, sociais e políticos –, expande o sentido tradicional de ameaças para além dos desastres e eventos físico-ambientais. Além disso, que envolvem eventos naturais ou induzidos; a perspectiva inova quando trata dos efeitos e cresceu a necessidade de informar a opera- dessas ameaças, incluindo também os de na- cionalização de políticas. A partir daí, surgiram tureza psicossocial. estudos que adotam um enfoque distinto ou b) A distinção entre vulnerabilidade e capacidades complementar ao da pobreza, que é a perspec- Moser aponta a importante distinção tiva da vulnerabilidade das populações ou de entre vulnerabilidade e capacidades. Considera grupos específicos. importantes os recursos com que os pobres po- Segundo Moser, qualquer definição de dem contar como base para a recuperação de vulnerabilidade necessita da identificação de tempos difíceis. As capacidades de indivíduos duas dimensões tomadas emprestadas da e famílias seriam, dessa forma, profundamente linguagem dos sistemas, a sensitividade e a influenciadas por fatores tão diversos como as resiliência. A sensitividade diz respeito à mag- possibilidades de ganhar a vida, até os efeitos nitude da resposta de um sistema a um even- sociais e psicológicos da privação e da exclusão. to externo; enquanto a resiliência refere-se à Seriam consideradas as necessidades básicas, facilidade e à rapidez de recuperação de um emprego com salários razoáveis e equipamen- sistema com relação ao estresse. Estudo ur- tos de saúde e educação (Moser, 1998, p. 3). bano relatado pela autora adota um conceito de vulnerabilidade que leva em conta essas c) A relação entre vulnerabilidade e propriedade dimensões. Assim, define vulnerabilidade co- de ativos Segundo Moser, a análise da vulnerabilidade envolveria não apenas a parte relativa às ameaças, mas também a resiliência, ou capacidade de resposta para explorar oportunidades e para resistir ou recuperar-se de efeitos negativos de um ambiente em mudança. Os meios de resistência são os ativos e direitos que os indivíduos, famílias e comunidades podem mobilizar em situações difíceis. Assim, para Moser, a vulnerabilidade varia de forma inversa à quantidade de ativos. A autora apresenta mo insegurança e sensitividade que atingem o bem-estar de indivíduos, famílias e comunidades diante de um ambiente em mudança. Para Moser, está implícita a capacidade de resposta dessas pessoas e sua resiliência com relação a riscos diante de tais mudanças. A autora especifica que as mudanças ambientais que ameaçam o bem-estar podem ser de natureza ecológica, econômica, social e política, podendo tomar a forma de choques repentinos, tendências de longo prazo ou ciclos periódicos. Com essas 180 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade uma classificação de ativos utilizada no estu- aspectos é que as famílias mais vulneráveis a do urbano relatado em seu artigo: 1) traba- crises econômicas, com maiores decréscimos lho, ativo mais importante para os pobres; 2) na renda ou no consumo doméstico, são as que capital humano; estado de saúde, que define a contam com uma alta proporção de crianças e capacidade de trabalhar; e educação, que con- velhos, com uma alta relação de dependência diciona a remuneração do trabalho; 3) ativos demográfica. Além disso, famílias pobres ten- produtivos, que permitem renda, sendo para os dem a uma maior probabilidade de elevados pobres o mais importante a habitação; 4) rela- níveis de fecundidade e mortalidade, o que ções domésticas, um mecanismo para compar- contribui para a reprodução da pobreza. As- tilhar a renda e o consumo; e 5) capital social, a sim, é possível analisar a dinâmica e os perfis reciprocidade baseada na confiança advinda de sociodemográficos das comunidades, famílias vínculos sociais (Moser, 1998, p. 4). e pessoas segundo um enfoque da vulnerabilidade (Cepal-Celade, 2002, p. 6). A vulnerabili- d) A categorização de estratégias de resposta e administração de ativos Segundo Moser, para evitar ou reduzir a vulnerabilidade, são importantes não apenas os recursos disponíveis, mas também a capacidade de administrar os ativos de forma a transformá-los em renda, alimentos ou outras necessidades básicas. No contexto urbano, riscos e incerteza decorrem de rendas reais menores, preços elevados e infraestrutura social. Primeiro, há necessidade de distinguir entre dois tipos de estratégias: a) estratégias de elevação de renda, com o objetivo de adquirir alimentos; e b) estratégias de modificação do consumo, com o propósito de controlar a dilapidação de recursos alimentares e não alimentares. Segundo, é preciso observar a importância do sequenciamento de estratégias, que buscam priorizar a preservação dos ativos sobre o atendimento imediato de necessidades alimentares (Moser, 1998, p. 5). A evolução da perspectiva da vulnerabilidade social para uma ótica de vulnerabilidade sociodemográfica se fez inicialmente a partir da incorporação, em análises de vulnerabilidade social, de variáveis de população. Um dos Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 dade demográfica seria, portanto, um conjunto de elementos sociodemográficos articulados a desvantagens sociais. O pressuposto seria de que diferentes grupos sociais apresentam distintas dinâmicas e características demográficas (Hogan e Marandola Jr., 2006, p. 27). Alguns autores apontam a relevância do contexto, ou fatores externos, para a compreensão da dinâmica da vulnerabilidade. A continuidade do debate propiciou, ainda, a expansão do enfoque para incluir aspectos relativos ao papel do Estado e outros atores na oferta de serviços e também à capacidade das populações para reagir às ameaças e recuperar-se de seus efeitos (Moser, 1998; Cunha et al., 2006; Katzman e Filgueira, 2006). Análises da vulnerabilidade físico-ambiental desdobraram-se em uma ótica socioambiental, enquanto estudos da vulnerabilidade social detalharam-se com a inclusão de uma visão sociodemográfica. Essas ampliações, no entanto, revelaram-se insuficientes para caracterizar, em processos complexos, o papel das dinâmicas territoriais e dos lugares. A utilização de uma perspectiva convergente, que se propõe a articular aspectos físico-ambientais e 181 Lúcia Cony Faria Cidade sociais localizados, tem feito uso de uma ótica em que dinâmicas ambientais como inunda- de vulnerabilidade socioespacial. ções, contaminações, deslizamentos e insalubridade tendem a ocorrer em lugares e regiões específicas, estabelece-se uma necessária Bases conceituais da vulnerabilidade socioespacial ligação dos fenômenos observados com delineamentos espaciais. Na medida em que a vulnerabilidade pode atingir indivíduos, grupos, O terceiro tipo de abordagem do conceito de sistemas ou lugares, Cutter ressalta a impor- vulnerabilidade (que poderia ser identificado tância de aspectos como diferenças escalares com a visão de Cutter sobre a vulnerabilida- e, ainda, a capacidade de articulação entre di- de como perigos do lugar) trata de processos ferentes escalas geográficas. Para a autora, a espaciais. Ao tratar de um campo emergente, vulnerabilidade manifesta-se geograficamente voltado para a compreensão de ocorrências sob a forma de lugares perigosos, como áreas que colocam em risco lugares e pessoas e de sujeitas a enchentes e lixões, demandando, as- situações que diminuem a capacidade de pes- sim, soluções espaciais. Dessa forma, a autora soas e lugares responderem a ameaças am- menciona comparações dos níveis relativos de bientais, Susan Cutter chega a identificar uma vulnerabilidade entre lugares ou entre grupos “ciência da vulnerabilidade”. Para a autora, es- de pessoas que vivem ou trabalham nesses lu- se campo de conhecimento informaria políticas gares (Cutter, 2003, p. 6). de redução de risco, de perigos e de desastres. Um aspecto que pode contribuir para os Ademais, articularia aspectos relacionados a estudos sobre vulnerabilidade socioespacial é a riscos, ameaças, resiliência, susceptibilidade di- atenção dada à dimensão espacial de conflitos ferencial e recuperação ou mitigação, em apli- ambientais urbanos. No Brasil, essa perspectiva cações localizadas. Para a estudiosa, longe dis- tem sido divulgada a partir do trabalho de Ha- so, os estudos em curso tendem, por um lado, roldo Torres, que investiga os “aspectos distri- a enfatizar as dinâmicas sociais locais ou, por butivos dos fenômenos ambientais urbanos”. outro lado, a explicitar exposições físicas. Entre Para ele, “... os fenômenos ambientais não as limitações dessas análises, estaria o fato de podem ser plenamente entendidos – do ponto terem aplicações excessivamente amplas, vol- de vista das ciências sociais – sem uma com- tadas para modelos de processos físicos e seus preensão aprofundada de suas dimensões es- impactos humanos regionais e globais; ou de paciais. Fenômenos ambientais são fenômenos serem dirigidas para riscos individuais, esque- espaciais...” (Torres, 1997, p. 17). Para Freitas cendo os riscos múltiplos (Cutter, 2003, p. 6). e Cidade (2012), em análise sobre a ocupação De forma crescente, estudos da vulne- da Área de Proteção Ambiental do Rio São Bar- rabilidade têm explicitado relações entre cir- tolomeu, no Distrito Federal, a relação entre cunstâncias ambientais e sociais. Além disso, processos físico-ambientais, processos sociais há o reconhecimento de que uma compreensão e processos espaciais torna-se bastante evi- mais completa dos processos envolvidos envol- dente. Em estudo sobre a vulnerabilidade dos ve também a dimensão espacial. Na medida jovens e sua distribuição espacial em Brasília, 182 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade registra-se o papel de territórios de risco (Fer- apresentando conceitos e tipos de deslizamen- reira, Vasconcelos e Penna, 2008). tos, causas e consequências, vulnerabilidade e Em sintonia com a discussão relativa a riscos associados aos deslizamentos. A segun- bases conceituais e lembrando que a divisão da parte trata da gestão de áreas suscetíveis proposta busca sistematizar abordagens que, a deslizamentos e situações de risco. Inclui co- não sendo estanques, podem trazer superpo- mentários sobre a avaliação de suscetibilidade, sições, a próxima seção apresenta exemplos avaliação de áreas e situações de risco, medi- de análises aplicadas. Divide-se em: Análises das de prevenção e de mitigação, instrumentos sobre a vulnerabilidade físico-ambiental; Aná- e mecanismos para a gestão de áreas suscetí- lises sobre a vulnerabilidade social; e Análises veis a deslizamentos. Entre esses instrumen- sobre a vulnerabilidade socioespacial. tos está a identificação de características dos instrumentos técnicos, os recursos tecnológicos para a gestão, os instrumentos e mecanismos Interpretações e procedimentos relativos à vulnerabilidade em áreas urbanas institucionais e a participação comunitária (Vedovello e Macedo, 2007). A partir de uma discussão de caráter técnico e disciplinar sobre a caracterização e o diagnóstico de deslizamentos de encostas, Análises sobre a vulnerabilidade físico-ambiental o texto introduz, na estrutura de causalidade, a ação humana. Enquanto mantém uma perspectiva específica voltada para avalia- Um exemplo ilustrativo de análises sobre a ção de áreas sujeitas a risco, volta-se para a vulnerabilidade físico-ambiental é um estudo gestão de áreas suscetíveis a deslizamentos. do Ministério do Meio Ambiente sobre desli- Ultrapassa uma visão estritamente fisico- zamento de encostas. Considera deslizamentos -ambiental ao voltar-se para os instrumentos como: “... fenômenos que ocorrem natural- dessa gestão. Considera necessária a adoção mente na superfície da terra como parte do de um conjunto de atividades de base técnica processo de modelagem do relevo, resultantes acompanhadas de atividades de cunho políti- da ação contínua do intemperismo e dos pro- co, capitaneadas pela sociedade informada e cessos erosivos” (cf. Vedovello e Macedo 2007, organizada. Essa seria uma forma de evitar ou p. 76). A primeira parte trata de conceitos, me- reduzir os riscos naturais ou induzidos pelas canismos e caracterização de deslizamentos de ações humanas. Embora considerem ações hu- encostas. O texto observa que os deslizamen- manas, análises específicas sobre a vulnerabi- tos também podem ocorrer em consequência lidade físico-ambiental enfatizam seu papel na de ações humanas que alteram as característi- causalidade e na gestão, em contraste com es- cas naturais dos terrenos, modificam suas con- tudos na linha da vulnerabilidade social, que dições de equilíbrio ou geram nas encostas for- destacam riscos e recursos, conforme apre- mas menos estáveis do que as originais. Segue sentados a seguir. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 183 Lúcia Cony Faria Cidade Análises sobre a vulnerabilidade social populacionais diante do agravamento da pobreza, o texto aponta a relevância de medidas O primeiro exemplo ilustrativo de análises so- mais amplas do que as utilizadas. Identifica bre a vulnerabilidade social é o estudo do Ban- também a importância de uma visão dinâmica co Mundial sobre Asset portfolio management das relações envolvidas. in an urban economic crisis context, apresentado por Caroline Moser. O estudo urbano foi conduzido em 1992 e envolveu comunidades em Chawama, em Lukasa, Zambia; Cisne Dos, em Guaiaquil, no Equador; Commonwealth, na área metropolitana de Manila, nas Filipinas; e Angyaföld, em Budapeste, Hungria. Quanto a tendências relativas à pobreza, mostrou indicações de que os pobres estavam se tornando mais pobres nas áreas analisadas, com consequências sobre as estratégias de modificação de consumo. As estratégias diante de situações econômicas em deterioração apresentaram diferenças e semelhanças. Aspectos importantes foram: a) trabalho como ativo; b) capital humano como ativo; c) ativos produtivos, tais como a habitação; d) relações domésticas como ativo; e) capital social como ativo. O estudo confirmou a necessidade de utilização de medidas mais completas do que as restritas à renda e à pobreza para refletir tanto os complexos fatores externos afetando os pobres, como suas respostas a dificuldades econômicas. Assim, o referencial baseado nos ativos ultrapassaria uma medida estática da pobreza; e avançaria na classificação das capacidades da população pobre para utilizar seus recursos como forma de reduzir sua vulnerabilidade (cf. Moser, 1998, pp. 5-14). O estudo comparativo indica que embora tenham sido encontradas diferenças entre as comunidades, houve semelhanças quanto a aspectos gerais. A partir de análises detalhadas sobre as estratégias de grupos 184 O segundo exemplo ilustrativo de análises sobre a vulnerabilidade social é o estudo da Afghanistan Research and Evaluation Unit sobre três cidades no Afeganistão. Análises como a de Stefan Schütte sobre três cidades no Afeganistão abordam uma visão qualitativa, voltada para o planejamento urbano e, de forma muito particular, para a pobreza. O termo “vulnerabilidade” foi desenvolvido como uma referência conceitual e analítica para tratar da marginalidade e da pobreza de forma diferente do enfoque apenas econômico. O artigo considera vulnerabilidade, a partir de R. Chambers, como algo que tem “... dois lados: um lado externo de riscos, choques e stress aos quais um indivíduo ou família está exposto; e um lado interno que é a incapacidade de se defender, significando uma falta de meios para lidar com eles sem perdas que causam danos” (Schütte, 2004, p. 1). O estudo busca compreender diferentes formas de vulnerabilidade no Afeganistão; e baseia-se em discussões de grupos focais em três cidades: Kabul, Jalalabad e Herat. Busca ir além da ampla categoria de “grupos vulneráveis”, para se concentrar em “vulnerabilidade de recursos” de diferentes comunidades, famílias e indivíduos. O grupo de pesquisa também buscou conhecer os maiores problemas e riscos enfrentados pelos pobres urbanos (percepção de riscos), como os indivíduos lidam com o problema identificado (estratégia de enfrentamento – o que é feito diante do problema), possíveis soluções (sugestões das próprias Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade pessoas afetadas) e modelos existentes de qualitativa pode contribuir para informar de- autoajuda e apoio mútuo. Os grupos focais senvolvimentos posteriores. A primeira apro- revelaram quatro formas inter-relacionadas de ximação mostrou não apenas a percepção de vulnerabilidade: a) vulnerabilidade ao fracas- riscos, mas também as estratégias de enfren- so na obtenção de renda; b) vulnerabilidade tamento utilizadas pelas comunidades. Permi- à insegurança alimentar; c) vulnerabilidade à tiu, ainda, a identificação de um fator-chave, a saúde precária; e d) vulnerabilidade à exclusão vulnerabilidade de recursos que, por sua vez, se social e à retirada de poder (disempowerment) desdobra em diferentes componentes. Dessa (Schütte, 2004, p. 1). forma, propicia o aprofundamento da análise e Entre os achados, está o fato de que há a proposta de políticas públicas voltadas para diferenças dentro de todos os grupos analisa- o enfrentamento de problemas específicos por dos, desfazendo a ideia de um “grupo vulne- comunidades particulares. As análises apresen- rável”. Segundo o autor, os achados sugerem tadas neste item trataram de distintas formas ainda que a vulnerabilidade, nos casos estuda- de abordar a vulnerabilidade social. Uma com- dos, tende a ser não espacial, uma vez que não binação de aspectos físico-ambientais e sociais se restringe a localidades específicas; e afeta localizados remete a análises em uma perspec- diferentes grupos sociais nas três cidades de tiva socioespacial. formas semelhantes. No entanto, há diferenças dentro de certos grupos; assim, o que é vulnerável não é o grupo, mas certas famílias e indivíduos que pertencem a esses grupos (Schütte, Análises sobre a vulnerabilidade socioespacial 2004, p. 1). O estudo foi além de uma perspectiva O primeiro exemplo ilustrativo de análises so- focalizada em grupos, para adotar um olhar bre a vulnerabilidade socioespacial é o estudo voltado para a vulnerabilidade de recursos, sobre Social vulnerability to environmental segundo o autor, capaz de oferecer uma visão hazards dos condados nos Estados Unidos. Cutter, Boruff e Shirley, em artigo que sintetiza as principais contribuições sobre o tema, chamam a atenção para uma questão de fundo, que é a relação entre os perigos naturais e o potencial de perdas. Acrescentam que, uma vez que as perdas variam com a geografia, ao longo do tempo e entre diferentes grupos sociais, a vulnerabilidade também varia com o tempo e o espaço. Os autores observam que, na literatura, vulnerabilidade tem diferentes conotações, a depender a orientação e da perspectiva de pesquisa (Cutter, Boruff e Shirley, 2003, p. 242). mais realista. Essa perspectiva contempla fatores humanos, financeiros, sociais, físicos e ambientais e, ainda, estratégias de enfrentamento e resultados potenciais positivos e negativos. Os pesquisadores têm a expectativa de que a perspectiva adotada possa ser um instrumento útil para melhorar o impacto de programas voltados para as chamadas populações vulneráveis (Schütte, 2004, p. 1). Embora com base em uma realidade particular, os procedimentos de análise da vulnerabilidade urbana no Afeganistão, no exemplo apresentado, mostram como a análise Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 185 Lúcia Cony Faria Cidade Cutter, Boruff e Shirley consideram que, mitigação – medidas para diminuir os riscos ou embora haja pesquisas sobre a vulnerabilidade reduzir seu impacto – para produzir o poten- biofísica e a vulnerabilidade do ambiente cons- cial de perigo. O potencial de perigo pode ser truído, sabe-se pouco sobre os aspectos sociais moderado ou reforçado por um filtro geográ- da vulnerabilidade. Para os autores, as vulnera- fico, tal como o sítio e a situação do lugar e, bilidades criadas pela sociedade tendem a ser ainda, a proximidade, e também o tecido social ignoradas, principalmente devido à dificuldade do lugar. O tecido social inclui a experiência da para quantificá-las. Os autores lembram que comunidade com os perigos e também a capa- a vulnerabilidade social é, em parte, produto cidade da comunidade para responder, lidar, de desigualdades sociais. Esses seriam, então, recuperar-se de e adaptar-se aos perigos. Esses, os fatores sociais que influenciam ou consti- por sua vez, são influenciados por caracterís- tuem a susceptibilidade de vários grupos se- ticas econômicas, demográficas e residenciais. rem atingidos e que também determinam sua No modelo, as vulnerabilidades sociais e biofí- capacidade de reagir. No entanto, lembram os sicas interagem para produzir a vulnerabilidade autores, a vulnerabilidade também inclui desi- geral do lugar. O artigo apresentado examina gualdades de lugar, como as características de apenas a parte relativa à vulnerabilidade social comunidades e do ambiente construído. Entre (Cutter, Boruff e Shirley, 2003, p. 243). elas estariam o nível de urbanização, as taxas Para Cutter, Boruff e Shirley, há um rela- de crescimento e a vitalidade econômica, que tivo consenso na literatura sobre os principais contribuem para a vulnerabilidade social dos fatores que influenciam a vulnerabilidade so- lugares. Os autores consideram que há poucas cial. Entre eles estão: a) falta de acesso a re- pesquisas comparando a vulnerabilidade social cursos, incluindo informação, conhecimento e de diferentes lugares. É isso o que a pesquisa tecnologia; b) acesso limitado a poder político em questão faz, trazendo uma análise compa- e representação; c) capital social, incluindo re- rativa de vulnerabilidade social, usando como des sociais e conexões; d) crenças e costumes; unidade de análise o condado (Cutter, Boruff e e) estoque e idade das edificações; f) indivíduos Shirley, 2003, p. 243). debilitados e fisicamente limitados; e g) tipo e O estudo utiliza o modelo de vulnerabi- densidade de infraestrutura e linhas de vida. lidade intitulado hazards-of-place (perigos do Não há concordância sobre variáveis especí- lugar) para analisar os componentes da vulne- ficas para representar esses amplos conceitos rabilidade social nos Estados Unidos, utilizan- (Cutter, Boruff e Shirley, 2003, p. 245). do dados socioeconômicos e demográficos do Embora fossem utilizadas inicialmente recorte territorial de condados. Com base em mais do que 250 variáveis, ao longo da pesqui- dados censitários de 1990, os pesquisadores sa, essas foram reduzidas para 42 variáveis in- construíram um Índice de Vulnerabilidade So- dependentes, até reduzirem-se a onze fatores, cial (Social Vulnerability Index – SoVI). Nesse capazes de explicar 76% da variância entre os referencial, “risco” – como uma medida obje- condados. Esses fatores são: 1) riqueza pessoal; tiva da possibilidade de um evento perigoso 2) idade; 3) densidade do ambiente construí- ( hazard event ) –, interage com medidas de do; 4) dependência econômica de apenas um 186 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade setor; 5) estoque habitacional e aluguéis; 6) ra- mulheres em idade reprodutiva, falta de ren- ça – americana africana; 7) etnia – hispânica; dimento regular ou acomodações de aluguel. 8) etnia – americana nativa; 9) raça – asiática; O estudo utilizou-se de duas escalas de 10) ocupação; e 11) dependência de empregos mapeamento em Cabul: 1) na escala urbana, a em infraestrutura. Os resultados mostraram identificação de zonas com condições de habi- que a grande maioria de condados dos Estados tabilidade semelhantes, além de nível de renda Unidos apresenta níveis moderados de vulne- e modo de resposta a insegurança alimentar; rabilidade social. Mostra também que a maior 2) na escala de bairros, selecionou bairros com parte dos condados vulneráveis se encontra na alto grau de vulnerabilidade dentro de cada zo- metade sul do país, indo do Sul da Flórida até a na da cidade. A identificação das zonas foi feita Califórnia, regiões com desigualdades étnicas e a partir de dados quantitativos como acesso a raciais elevadas, assim como rápido crescimen- infraestrutura, centros de saúde, ruas e merca- to populacional (Cutter, Boruff e Shirley, 2003, dos. A escolha dos critérios de vulnerabilidade pp. 251-254). foi definida em um workshop com técnicos da O exemplo mostra as possibilidades de Organização Não Governamental Action Con- utilização de dados censitários para desen- tre la Faim em Cabul. Após a identificação das zonas, e seleção dos bairros, a pesquisa conduziu um estudo de campo para coletar informações adicionais no âmbito familiar, por meio da aplicação de questionários em 50 domicílios selecionados aleatoriamente; e seis grupos de discussão com mulheres e um com homens. Realizaram-se ainda grupos focais e entrevistas semidiretivas. Entre os resultados do estudo apresenta-se a questão espacial, sob a forma de áreas que, embora destruídas, localizam-se próximas a oportunidades de trabalho e, dessa forma, não são tão vulneráveis. Verificou-se também uma deficiência de serviços urbanos: 11 bairros foram identificados com alto grau de vulnerabilidade. Desses, cinco estão também expostos a fatores de risco relacionados ao quadro natural, como a localização em encostas ou em áreas passíveis de alagamento. O aspecto de vulnerabilidade social mais significativo diagnosticado pelo estudo foi a ocorrência de uma grande quantidade de famílias cuja única fonte de renda provinha de volver uma análise espacial comparativa dos Estados Unidos, segundo condados. O mapeamento resultante reflete a estrutura socioespacial do país, construída ao longo de sua história e reforçada, ou modificada, pelas dinâmicas mais recentes. A análise resultante pode subsidiar políticas públicas na escala regional ou nacional. O segundo exemplo ilustrativo de análise sobre a vulnerabilidade socioespacial é o estudo Vulnerability mapping in urban Afghanistan, de Heloise Troc e Erin Grinnell (2004). Em seu artigo, as autoras delineiam dois tipos de vulnerabilidade: a estrutural e a inerente. A primeira, a vulnerabilidade estrutural, é determinada geograficamente. Nesse sentido, o lugar de residência de determinada população afeta o acesso e a disponibilidade de serviços urbanos como saúde, água potável, condições de habitabilidade. O segundo tipo, a vulnerabilidade inerente, é determinado pelas condições socioeconômicas da família. Destaca em particular o fato de existirem Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 187 Lúcia Cony Faria Cidade trabalhos remunerados diariamente. Para as e dos eventos perigosos parece ter sido mais autoras, a insegurança de não conseguir uma antiga. Tem analisado a ocupação humana das fonte de renda regular representa a maior áreas de incidência, as respostas da população ameaça para as condições de vida de determi- e a formas de mitigação dos impactos. Esses nadas pessoas. As entrevistas revelaram que a desastres, naturais ou induzidos, têm atingido insegurança relativa à fonte de renda era mais de forma crescente tanto países chamados de- problemática que a baixa remuneração. As es- senvolvidos como os denominados não desen- tratégias para lidar com a questão também fo- volvidos. As ameaças se fazem mais intensas ram objeto de levantamentos pelo estudo (Troc em áreas urbanas, que concentram grandes e Grinnell, 2004). massas populacionais. A linha que enfatiza a No Brasil, análises integradas articulando pobreza retrata a constatação de que, embora aspectos físico-ambientais e sociais, em uma as populações atingidas pertençam a diferen- perspectiva socioambiental, têm mostrado co- tes grupos sociais, em grande parte dos casos, mo a estrutura urbana e metropolitana pode quem mais sofre os efeitos desses perigos são acentuar os efeitos da segregação socioespa- as populações pobres. Análises dos danos ge- cial. Essas análises, algumas das quais utilizam rados por esses eventos, tendo em vista a ca- Sistemas de Informação Geográfica (SIG), mos- pacidade de resposta das populações, têm en- tram como, em áreas consideradas de risco, há contrado no enfoque da vulnerabilidade uma manifestações particularmente acentuadas da perspectiva bastante frutífera. pobreza e da vulnerabilidade (Alves, 2006; Torres e Marques, 2001). O texto examinou estudos sobre risco e vulnerabilidade, identificando uma multi- Estudos na linha da vulnerabilidade so- plicidade de enfoques. A revisão assinalou cioespacial têm buscado, a partir da disposição dificuldades na formulação de conceitos uní- geográfica, compreender como interage o qua- vocos, adequados para operacionalização em dro socioeconômico, os processos ambientais distintas áreas de conhecimento. A análise e, ainda, a oferta de equipamentos e serviços buscou, ainda, assinalar os procedimentos urbanos. Embora as dificuldades inerentes a adotados em diferentes pesquisas, bem como diagnósticos complexos limitem algumas pes- seus alcances e limites. A discussão apresen- quisas a resultados com ênfase descritiva, es- tou, de forma breve, conceituações e mudan- ses estudos representam avanços. ças no tempo, que evoluíram no sentido de uma abertura do conceito para incorporar, além dos tradicionais riscos ambientais, tam- Notas finais bém considerações sobre a pobreza. Evidenciaram-se, assim, tentativas de incorporar às Os estudos sobre a vulnerabilidade têm encon- dimensões tradicionais aspectos distintos, que trado repercussão em duas áreas principais, a pudessem refletir as múltiplas facetas do te- que trata de ameaças ambientais e a que abor- ma e suas variações. A partir da ótica da vul- da a pobreza. A linha dos desastres naturais nerabilidade físico-ambiental e da visão da 188 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade vulnerabilidade social, uma evolução em dire- socioespacial, como uma expressão espacial ção à interdisciplinaridade é a perspectiva da dos variados processos em estudo, ainda esta- vulnerabilidade socioespacial. ria no início de um percurso. Embora ainda em construção, a temática No caso de grupos sociais que vivem em da vulnerabilidade socioespacial oferece poten- áreas de degradação ambiental, enfrentam os cial para articular linhas de conhecimento até efeitos da pobreza e contam com baixo aten- então paralelas. Um ponto de partida é a visão dimento de equipamentos e serviços públicos, da interdisciplinaridade como uma combinação a inclusão da dimensão espacial da vulnerabi- integrada de conhecimentos disciplinares de lidade pode subsidiar políticas públicas. Nesse ponta com conhecimentos complementares ad- sentido, uma contribuição para estudos am- vindos de outras disciplinas. Nessa acepção, a bientais urbanos integrados seria a identifica- operacionalização da ótica da vulnerabilidade ção e análise de territórios de risco. Lúcia Cony Faria Cidade Arquiteta. PhD em Planejamento Urbano e Regional. Professora Associada da Universidade de Brasília: Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Laboratório de Análises Territoriais e Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais. Brasília/DF, Brasil. [email protected] Nota (*) Este artigo é uma versão atualizada e ampliada do texto Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade: interpretações e procedimentos, apresentado no XIII Enanpur – Encontro Nacional da Anpur; Planejamento e gestão do território: escalas, conflitos e incertezas Florianópolis, SC; Universidade Federal de Santa Catarina; 25 a 29 de maio de 2009. Sessão Livre – SL 49: Dinâmicas socioespaciais da vulnerabilidade urbana e os territórios de risco. Agradeço a colaboração e crí cas da Profa. Clarissa F. Sampaio Freitas, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 171-191, jan/jun 2013 189 Lúcia Cony Faria Cidade Referências ALIER, J. M. (2007). 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Com base na análise da relação entre as redes de circulação e transporte, meio ambiente e uso e ocupação do solo, discute-se a lógica da produção do espaço urbano ao longo do Trecho Sul do Rodoanel Mário Covas na bacia Billings, especificamente no trecho que corta o município de São Bernardo do Campo, Região Metropolitana de São Paulo. Abstract This article analyzes the process of production of urban space and the transformation of the landscape, resulting from (re) production of urban space through the performance of various actors, particularly the state and the real state market. Based on the analysis of the relationship between the networks of circulation and transport, use and occupation of land and environment we discuss the logic of the production of urban space around of the South of Rodoanel Mario Covas, in São Bernardo do Campo municipality, São Paulo Metropolitan Area. Palavras-chave: produção do espaço urbano; transformação da paisagem; Rodoanel Mário Covas; represa Billings; São Bernardo do Campo. Keywords: production of urban space; landscape’s transformation; Rodoanel Mário Covas; Billings Watershed; São Bernardo do Campo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Introducão No caso específico da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), historicamente, a implantação de um sistema de circula- Este artigo1 trata do processo de produção do ção compostos por ferrovias e rodovias, li- espaço urbano e transformação da paisagem, gando São Paulo ao interior do Estado, ao por meio da atuação de diversos atores, parti- litoral (porto) e outras regiões do país, foi cularmente o Estado e o mercado imobiliário. determinante para conformar sua centrali- Com base na análise da relação entre dade e importância nacional. No entanto, o as redes de circulação e transporte (pessoas e mesmo sistema de circulação, quando priori- mercadorias), meio ambiente e uso e ocupa- zou o modo de transportes sobre pneus, foi ção do solo, pretende-se discutir a lógica da responsável pela expansão da sua mancha produção e reprodução do espaço urbano, as urbana, em direção às áreas frágeis à ocupa- intenções e os conflitos entre os atores que o ção urbana, principalmente aquelas que produzem, bem como identificar as recentes abrigam impor tantes mananciais e áreas de transformações da paisagem. preser vação ambientais. O objeto de estudo é o Trecho Sul do Ro- O recente processo de implantação do doanel, inserido na Área de Proteção e Recupe- Rodoanel Mário Covas, via perimetral expressa ração dos Mananciais Billings, particularmente que visa equacionar a crescente crise na circula- o Lote 2, trecho de 6.9 km de extensão, que ção metropolitana, tem sido objeto de polêmi- interliga as rodovias Anchieta e Imigrantes, no cas, visto que dois dos seus quatro trechos, es- município de São Bernardo do Campo. Busca- pecificamente os trechos Sul e Norte (esse ainda -se analisar a (re)produção do espaço urbano, em projeto), atravessam importantes áreas de os impactos ambientais e consequente a trans- preservação ambiental que abrigam importan- formação da paisagem, processos que ocorrem tes reservatórios de água para abastecimento por meio da atuação de diversos atores, parti- público: as represas Guarapiranga e Billings e a cularmente o Estado (representado pelos pode- Serra da Cantareira, respectivamente. res públicos estadual e municipal), o mercado imobiliário e a sociedade civil. São Bernardo do Campo (SBC), município localizado na sub-bacia do reservatório Billings, Nos últimos anos, diversos especialistas região sudeste da metrópole, possui uma situa- e estudiosos (Harvey, 2005; Lefebvre, 1999 e ção peculiar nesse contexto: as duas ligações 2008; Gottdiener, 1993; Villaça, 2001; San- viárias mais importantes do novo empreendi- tos, 2008; Costa, 2006) vêm aprofundando a mento – alças de acesso às rodovias Imigran- discussão sobre produção do espaço urbano e tes e Anchieta – localizam-se em seu território, transformação da paisagem. Na abordagem da proporcionando uma nova acessibilidade intra- produção do espaço urbano, o sistema de cir- -urbana e metropolitana. culação é um elemento estruturante do espa- Desde o início da construção do trecho ço, pois, ao proporcionar acessibilidade, gera que corta o município – Lote 2 do Trecho Sul novas localidades e, ao mesmo tempo, trans- do Rodoanel – em 2006, o governo municipal forma a paisagem. passou a implementar um conjunto de obras 194 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental de duplicação e repavimentação de estradas Bernardo do Campo, busca-se com este arti- que se interligam à alça de acesso do Rodoa- go contribuir para explicitar os impasses e as nel com a Rodovia dos Imigrantes, previstas no perspectivas que se colocam sobre a produ- Programa de Transporte Urbano (PTU) de 2002, ção do espaço urbano e, consequentemente, programa destinado à melhoria da infraestru- transformação da paisagem que ocorrem em tura urbana de circulação. Ao mesmo tempo, áreas preservadas. definiu, no Plano Diretor de 2006, zonas empresariais nessa região buscando atrair empreendimentos de uso industrial e de serviços logísticos, para além da ocupação de baixa renda e de assentamentos precários já existentes nas Produção do espaço urbano e transformação da paisagem áreas de mananciais. A recente instituição da nova lei de pro- A produção do espaço urbano é um processo teção e recuperação dos mananciais – Lei Es- social que envolve a participação de diversos pecífica da Billings, n. 13.579 / 2009, ao mesmo atores da sociedade, entre eles, o Estado, os tempo que incorpora o Rodoanel como área empresários, os construtores e os proprietários de intervenção, definindo diretrizes que bus- fundiários. Para Gottdiener (1993), o espaço é cam orientar o uso e a ocupação desse espaço, entendido como produto social – organizado e exige do poder público municipal a adequação estruturado, que ajuda a recriar ou reproduzir dos instrumentos urbanísticos locais (Plano Di- as relações sociais que o geraram. retor e demais instrumentos de uso e ocupação Paisagem é a expressão formal da pro- do solo) e define instrumentos que possibilitam dução do espaço urbano, constantemente intervir e regularizar os assentamentos precá- transformada de acordo com a dinâmica e os rios existentes. interesses dos atores que produzem o espaço Além da melhoria de acessibilidade e cir- urbano. Assim, espaço e paisagem têm rela- culação, a conexão do Rodoanel com as rodo- ções entrelaçadas, pois ao mesmo tempo que vias Anchieta e Imigrantes, associada à presen- o espaço é produzido, a paisagem é transfor- ça dos mananciais da sub-bacia hidrográfica mada. Isso pode ser observado na transição Billings, e dos investimentos em infraestrutura de um espaço periurbano, com uma paisagem por parte do poder local na área de influência, ainda “natural”, para um espaço urbano, com indica um conjunto de conflitos e de interesses a paisagem transformada e apropriada pelo em relação à dinâmica urbana e imobiliária do novo processo de produção socioeconômica município, e ao mesmo tempo contribui para que ali se instala (Aguilar, 2010). exacerbar a segregação socioespacial da população de baixa renda que ali habita. A compreensão adequada dessas questões requer a análise da relação espaço/tempo, A partir da compreensão dos proces- e paisagem/natureza, considerando-se a mu- sos reais em curso, na área de influência do tabilidade da percepção desses termos, como Trecho Sul do Rodoanel, no município de São explica Leite (2006, pp. 13-14): Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 195 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim [...] a percepção do tempo e da natureza muda com a evolução cultural, o que exige a procura de novas formas de organização do território que melhor expressem o universo contemporâneo, formas que capturem o conhecimento, as crenças, os propósitos e os valores da sociedade [...]. [A] natureza e a cultura juntas, como processos interagentes, conferem forma e individualidade aos lugares. Os ritmos de produção, transporte e consumo, por exemplo, interagem com os ritmos climático, hidrológico e biológico para moldar uma paisagem cujos padrões de produção e utilização variam de acordo com o contexto específico da sociedade. Para Carlos (1994), a paisagem urbana é a manifestação formal do processo de produção do espaço urbano. É produzida e justificada pelo trabalho, considerado como atividade transformadora do homem social, fruto de determinado momento de desenvolvimento das forças produtivas. Sendo o espaço o suporte das relações sociais e das funções ecológicas, a relação entre o aspecto simbólico da paisagem e a escolha do modelo de desenvolvimento urbano interfere no processo de ordenamento do espaço urbano e da paisagem, como cenário físico, estético e emocional em que se processa a atividade humana como explicado por Saraiva (1999, p. 17). Ou seja, o modelo de desenvolvi- enquanto espaço é a soma da sociedade e da paisagem, sempre mudando de configuração na medida da movimentação do social. Uma vez que o espaço é o produto social, ou “expressão da sociedade” (Castells, 1999, p. 499), a produção do espaço pela sociedade capitalista resulta em espaços de contradições, representando na paisagem as desigualdades sociais e as disputas pela apropriação do espaço. A paisagem urbana contemporânea é o resultado do modelo econômico globalizado, da ambiguidade e dissolução das relações sociais e da fragmentação do território, interligado e ao mesmo tempo dividido pelas redes de fluxo e comunicação, tanto físicas quanto virtuais. O cenário da paisagem urbana pode ser apreendido pela descrição da lavra, que Bauman extrai de Schmitt (apud Bauman, 2003, p. 119): Virtualmente todas as cidades do mundo começam a apresentar espaços e zonas poderosamente conectadas a outros espaços ‘valorizados’, cruzando a paisagem urbana e as distâncias nacionais, internacionais e até mesmo globais. Ao mesmo tempo, porém, muitas vezes há em tais lugares um palpável e crescente senso de desconexão local em relação a áreas e pessoas fisicamente próximas, mas social e economicamente distantes. mento adotado e a forma como a sociedade se De um modo geral, a produção do espaço comporta interferem na produção do espaço, urbano resulta na transformação da paisagem, ao mesmo tempo em que sofrem interferência comumente apropriada por aqueles que podem dessa mesma produção de espaço, transfor- comprá-la, num processo de “enobrecimento”2 mando a paisagem. do espaço, enquanto a população de baixa Relacionando espaço e paisagem, Mil- renda participa da produção social do espaço, ton Santos (2008) afirma que paisagem é a em geral, por meio da apropriação irregular de configuração geográfica ao alcance do olhar, áreas não propícias à ocupação urbana. 196 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental Assim, a produção social do espaço ma- A forma como a sociedade é organizada terializa os interesses dos agentes dominantes determina como os grupos dominantes dentro da sociedade capitalista, tendo como resul- da mesma interferem nessa produção. Entre- tado a transformação da paisagem, compro- tanto, o próprio conceito de produção precisa metendo assim a construção da cidade como ser especificado, porque interfere no significado prática social. da expressão “produção do espaço” (Lefebvre, ibid., pp. 53-55). Produzir, ensina o citado autor, deve-se entender em sentido amplo, para além Atores que (re)produzem o espaço urbano e transformam a paisagem O crescimento dos centros urbanos faz o espaço natural ser consumido, produzindo o espaço urbano. A ocupação do solo torna os espaços remanescentes disputados e cada vez mais raros, principalmente em locais onde há interesse de investimentos públicos, em infraestrutura, aliados ao capital privado. A partir da valorização, pelo capitalismo, dos espaços livres, Martins classifica o próprio espaço como uma nova raridade (2008, p. 9): da mera produção de objetos e materiais trocáveis, mas englobando a produção de conhecimentos, obras, alegria e prazer; em resumo, a produção tanto intelectual (mental), quanto material (física). A produção, do espaço, aparentemente desarticulada, dominada (pela técnica e pelas normas), depende de interesses diversos e de grupos distintos, que encontram no Estado uma unidade. Essa produção depende de uma encomenda e de uma demanda, muitas vezes com a predominância (mesmo que oculta) de alguns desses interesses. Não sendo o espaço nem neutro nem inocente, uma das forças políticas responsáveis pela falta de neutralidade [...] mobilizado pela valorização capitalista, o espaço passou a integrar as novas raridades. Se outrora o pão, os meios de subsistência eram raros, “agora, não em todos os países, mas virtualmente à escala planetária, há uma produção abundante desses bens; não obstante as novas raridades, em torno das quais há luta intensa, emergem: a água, o ar, a luz e o espaço”. do espaço é o Estado: “aparelho que organiza Dessa forma, “o espaço inteiro torna-se a articulação entre eles a ponto de o espaço o lugar da reprodução das relações de produ- ser produzido e a paisagem ser transformada ção”. Diante do conceito de espaço como a em pontos do território onde há concentração soma da paisagem e da sociedade, “toda so- de interesses comuns aos mesmos (Lefebvre, ciedade produz ‘seu’ espaço, ou, caso seja pre- 1999, p. 119). ferível, toda sociedade produz ‘um’ espaço” (Lefebvre, 2008, p. 55). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 o espaço geográfico de modo a exercer seu poder sobre os homens” (Lipietz, 1988, p. 150). Dentre os que intervêm no espaço, encontram-se proprietários fundiários, promotores imobiliários, poderes públicos, coletividades locais, bancos e organismos de crédito, arquitetos, etc. A divisão do trabalho entre tais atores, separando suas atividades e papéis, mascara O papel do Estado é fundamental para a produção do espaço urbano e na ação de 197 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim fazer convergir os interesses conflitantes dos estatal no meio urbano através da legislação grupos de poder, aos seus próprios interesses. urbanística, uma vez que as leis de uso e Lipietz ao tratar do espaço do capital, na mes- ocupação do solo, por meio dos parâmetros ur- ma linha de entendimento de Lefebvre, afirma banísticos, condicionam as taxas de lucro obti- que “à medida que o Estado se apresenta co- das em cada fragmento do território. mo ‘comunidade ilusória’ que funciona como O espaço urbano, segundo Carlos (1999, ditadura de uma classe, o espaço que ele do- p. 83) “se produz na contradição entre os inte- mina e organiza é o espaço do poder desta resses do poder político, dos empreendedores classe (ou coalisão de classes)” (Lipietz, 1988, imobiliários e dos empresários, de um lado, e p. 150). do cidadão, do outro”. Bógus (1988) aponta As formas de atuação de cada um dos atores da produção do espaço urbano são apontadas por Sposito (2006), que relaciona: proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, promotores imobiliários, o Estado e grupos sociais excluídos. Para esse autor, os proprietários dos meios de produção, “personificados pelos donos de grandes indústrias e empresas comerciais”, pela conformação de suas atividades, estabelecem dimensões de ocupação na cidade e grande capacidade de consumo do espaço urbano. Já os proprietários fundiários têm o objetivo de extrair de forma ampliada a renda fundiária de suas proprieda- que o cidadão é o usuário final, um dos atores da produção do espaço urbano. Contribuindo para discussão, essa autora esclarece que: A determinação do valor de uso, do valor de troca e da renda a ser auferida pelo proprietário da terra dependerá dos diversos atores e grupos sociais, atuantes no mercado imobiliário, seja como produtores de imóveis (empreiteiros, incorporadores, instituições governamentais ligadas à produção de habitações), seja como intermediários (corretores de imóveis) ou consumidores (os usuários). (Ibid., p. 21) des,3 buscando mais o valor de troca do que o valor de uso (ibid., p. 24). A figura, a seguir, sintetiza os princi- O Estado tem o papel complexo de ge- pais atores que produzem o espaço urbano. O renciar os conflitos de interesses dos mem- Estado, representa as diversas esferas de go- bros da sociedade de classes, dentre os quais verno – federal, estadual e municipal – envol- se encontram os grupos sociais incluídos e os vidas na produção do espaço por meio da for- excluídos. Para Sposito (ibid.), o Estado atua mulação/instituição das políticas públicas que de forma complexa entre os “conflitos de in- transformam e/ou valorizam o espaço urbano. teresses dos diferentes membros da sociedade Proprietários fundiários, empreendedores, de classes, bem como pelas alianças entre eles, construtores/incorporadores e financiadores, tornando viável a existência simultânea de in- cada qual atuando na cadeia de transforma- teresses distintos de vários agentes produtores ção da paisagem por meio da viabilização das e consumidores do espaço urbano” [...] condições técnico-financeiras da produção Bógus (1988) reforça que deve ser consi- do espaço urbano. Coletividades locais agre- derada também a importância da intervenção gam a participação dos diferentes grupos da 198 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental sociedade civil e classes sociais que atuam Para fomentar o interesse dos atores da de forma organizada ou não na produção do produção do espaço urbano, a questão da locali- espaço urbano. Já o usuário final, representa zação é fator fundamental de atratividade, princi- o(s) indivíduo(s) impactados pela produção palmente para os empreendimentos imobiliários, do espaço urbano, podendo inferir demandas sendo o sistema de circulação (vias e transportes) na paisagem transformada e/ou busca (resul- essencial à produção de localidades, produção e tante da oferta ou da exclusão) de novas op- reprodução do espaço urbano e alteração da pai- ções de paisagem. sagem, como veremos no caso do Rodoanel. Figura 1 – Produção social do espaço urbano: principais atores Fonte: Aguilar (2010, p. 37). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 199 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Sistema de circulação, produção de localidades e segregação socioespacial Para Villaça (1999), um dos elementos determinantes para a estruturação e produção do espaço urbano e consequente modificação da paisagem são os sistemas de circulação, de transporte e de comunicação, que Há uma diferença fundamental entre lugar e lo- transformam determinados pontos do territó- calização. Para Milton Santos (2008, pp. 21-23), rio – pela sua capacidade de deslocamento e o lugar pode ser o mesmo, mas as localizações comunicação, integrando produtos e consu- mudam: “[...] o lugar é o objeto ou conjunto de midores em “localizações urbanas”. O autor objetos. A localização é um feixe de forças so- afirma que a “localização urbana” é determi- ciais se exercendo em um lugar”. Nas palavras nada por dois atributos: rede de infraestrutura do geógrafo: (vias, redes de água, esgotos, pavimentação, Cada localização é, pois, um momento do imenso movimento do mundo, apreendido em um ponto geográfico, um lugar. Por isso mesmo, cada lugar está sempre mudando de significação, graças ao movimento social: a cada instante as frações da sociedade que lhe cabem não são as mesmas. energia, etc.); e, possibilidades de transporte de produtos de um ponto para outro, de deslocamento de pessoas e de comunicação. A acessibilidade é preponderante em relação à presença de infraestrutura, sendo essa “o valor de uso mais importante para a terra urbana, embora toda e qualquer terra o Castells (1999, p. 223) acresce que a lo- tenha em maior ou menor grau” (Villaça, 2001, calização é um valor que se manifesta no valor p. 74). Esse autor enfatiza que a acessibilidade da terra urbana, definida pela “capacidade que é proporcionada pela implantação das redes determinado ponto do território oferece, de de circulação e transporte, entre elas, as vias relacionar-se através de deslocamentos espa- regionais, constituindo um elemento determi- ciais, com todos os demais pontos da cidade”. nante na expansão urbana. A terra em si não tem valor, mas a terra como Em áreas protegidas, a implementação localização, sim. Sendo a produção do espaço das redes de circulação e transporte provoca urbano considerada como produção da locali- transformações significativas e conflitantes. zação, um dos investimentos mais disputados Em alguns casos, o simples fato de uma deter- entre as classes sociais é o sistema de circula- minada área preservada adquirir acessibilidade ção (vias e meios de transporte), pela sua ca- poderá atrair formas irregulares de ocupação pacidade de ligar uma localização a outra e de urbana que, na maioria das vezes, o Estado diminuir o tempo de deslocamento. Portanto, a não consegue controlar. Por outro lado, de for- infraestrutura de transporte é um tipo especí- ma conivente com o próprio Estado e, muitas fico de dominação que determina a produção vezes, até imperceptível para a sociedade, tal do espaço urbano. O principal ator na produ- acessibilidade provoca significativas alterações ção da mais-valia do transporte é o Estado, um no valor da terra que, quando associada às be- dos agentes responsáveis pela implantação das lezas da paisagem preservada, geram um va- vias como obra pública. lor agregado a ser incorporado pelo mercado 200 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental imobiliário, resultando em importantes trans- da circulação, para a acumulação ser mais efi- formações no espaço. ciente é preciso aumentar a velocidade de cir- Para Harvey (2005), as relações de culação do capital. Isso torna o fator distância transporte, a integração espacial e a anulação menos importante do que o fator velocidade. do espaço pelo tempo referem-se, portanto, à O transporte serve para anular o espaço pelo produção do valor e à dinâmica da acumula- tempo; daí a importância e a vantagem da ção. Admitindo-se que a circulação do capital aglomeração em centros urbanos. O esforço de gera valor, a constante mudança de localiza- criar novas oportunidades para a acumulação ção (incentivada principalmente pela indústria de capital envolve tanto a expansão quanto a do transporte e comunicação) faz aumentar a concentração geográficas, colocando em ques- mais-valia decorrente da circulação do capital. tão a relação entre centro e periferia. A expan- Como o capitalismo visa a eliminar as barrei- são geográfica possui forças para criar novas ras espaciais, por meio da compressão do tem- oportunidades e para a acumulação do capital. po, são produzidos espaços fixos, subsidiados Já a concentração geográfica propicia a inova- pela construção de infraestruturas físicas fixas, ção tecnológica. Harvey explica isso a seguir, para facilitar os deslocamentos de pessoas e enfatizando Marx (1972, p. 288, apud Harvey, mercadorias, e dar suporte a atividades de 2005, p. 53): produção, de troca, de distribuição e de consumo, como será visto por meio do objeto de estudo: o espaço urbano ao redor do lote 2 do Trecho Sul do Rodoanel, em São Bernardo do Campo (SBC), na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). O transporte é ao mesmo tempo produzido e consumido no momento do seu uso (Harvey, 2005). Ele impacta a matéria-prima e o produto final, pois, quanto menor o tempo do Em geral, parece que o imperativo da acumulação produz concentração da produção e do capital, criando, ao mesmo tempo, uma ampliação do mercado para realização. Em conseqüência, os ‘fluxos no espaço’ crescem de modo notável, enquanto os ‘mercados se expandem espacialmente, e a periferia em relação ao centro [...] fica circunscrita por um raio constantemente em expansão’. (Grafia original) transporte, mais rápida é a entrega da mercadoria e menor é seu custo final; por outro lado, De acordo com Villaça (1999), o Estado é quanto maior o tempo de transporte, menor o responsável pela localização de equipamen- é a velocidade de circulação e mais caro é o tos e infraestrutura urbana e pela regulação do preço final da mercadoria. Assim, a diminuição uso e ocupação do solo, enquanto o mercado do custo da circulação e transporte do produto imobiliário é responsável pela produção de aumenta a acumulação do capital. Ao mesmo novas localidades. A localização é um atributo tempo, a melhoria do sistema de circulação e fundamental para o solo urbanizado, e pas- transporte propicia a redução do espaço pelo sa a fazer parte do processo imobiliário. Daí tempo e a expansão geográfica do capital. a importância da presença de infraestrutura. Sendo o tempo de giro do capital igual Em relação ao vínculo do bem imobiliário com à soma do tempo de produção, mais o tempo o lugar e sua dependência da infraestrutura, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 201 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim principalmente da rede de circulação e transporte, Castro (2006, p. 23) enfatiza que: O preço da propriedade imobiliária mantém uma relação direta com a sua localização em função do acesso e da apropriação dos benefícios públicos que essa localização propicia. A concorrência pela melhor localização por parte dos indivíduos e firmas é, segundo as abordagens neoclássicas da economia urbana, o principal fator responsável pela formação dos preços dos terrenos. Lipietz (1988, p. 124), ao observar o espaço como superfície, destaca que é um bem que tem um preço: preço do solo ou renda fundiária, que pode ser chamado de tributo fundiário, para “designar o fato de que este preço mais tem a ver com uma taxa do que com o valor da mercadoria”. Assim, a forma como essa superfície é apropriada é fundamental para determinar o valor desse solo, dessa localidade. Ou seja, o preço do solo está diretamente ligado ao grau de localidade de um determinado lugar e também aos usos im- Para Lipietz (1988, p. 122), a consideração dos custos de transporte provoca “economias de aglomeração”. Esse autor enfatiza que, uma vez efetuada a escolha de sua localização por uma empresa (e a escolha que se segue por parte das empresas levadas a tratar com ela), não se pode mais conceber uma modificação “sem custos” da localização, a menos que se suponha que todas as empresas combinem mudar ao mesmo tempo. Além do atributo localização, Gottdiener (1985, p. 127) indica o outro atributo que define o valor do espaço: a superfície. Nas palavras desse autor: O espaço não pode ser reduzido apenas a uma localização ou às relações sociais da posse de propriedades – ele representa uma multiplicidade de preocupações sociomateriais. O espaço é uma localização física, uma peça de bem imóvel, e ao mesmo tempo uma liberdade existencial e uma expressão mental. O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilidade social de engajar-se na ação. É ao mesmo tempo um meio de produção como terra e parte das forças sociais de produção como espaço. Como propriedade, as relações sociais podem ser consideradas parte das relações sociais de produção, isto é, a base econômica. 202 plantados em sua superfície. Lefebvre (2008, p. 51), reportando-se ao capítulo final de O Capital, de Marx, intitulado “A fórmula trinitária”, aponta a análise das relações de produção da sociedade segundo três elementos: 1) o capital e o lucro do empreendedor (burguesia); 2) a propriedade do solo e as rendas múltiplas: do subsolo, da água, do solo edificado, etc.; 3) o trabalho e o salário destinado à classe operária. Essa “classificação” implica uma aparente e intencional separação, induzindo a interpretação de que cada grupo recebe parte do “rendimento” global da sociedade. É a ilusão da separação numa unidade, a da dominação, do poder econômico e político da burguesia [...] os elementos que aparecem separados aparecem como fontes distintas da riqueza e da produção, ao passo que é somente sua ação comum que produz a riqueza. Buscando articular renda e localização, Lipietz (1988) analisa o custo dos transportes somado ao custo do solo, valendo-se do pensamento de Alonso (1964, apud Lipietz, p. 125): “A teoria da renda trata da competição pelo Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental uso do espaço e a teoria da localização não do espaço, ligadas diretamente às discrepân- [...]”. Em outros termos, trata-se de ver, no cias de investimentos públicos em áreas dife- solo localizado, um bem raro e, seu preço, um rentes do território, que por sua vez atraem em indicador fornecido pelo mercado: “A renda maior intensidade o investimento privado, pro- desempenharia, então, o papel de uma lei do duzindo espaços de contradição. Nas palavras valor do espaço”. Indo além, Bógus observa de Carlos (1999, p. 81): que a formação da renda não se dá a partir da construção em si, mas do uso do solo viabilizado para as atividades urbanas (1988, p. 20): Pode parecer numa primeira aproximação que o capital aplicado na construção civil – cujo resultado é a produção de casas e edifícios – é que permite a formação de rendas. Entretanto deve-se lembrar que a construção de edificações apenas viabiliza o uso do solo para as atividades urbanas de produção, distribuição, consumo e reprodução, inclusive da força de trabalho. Assim, não é a área construída, em si, a base para a formação da renda. Essa base é dada pelo terreno e pela sua localização no tecido urbano, sendo seu preço e seus usos estabelecidos pelos mecanismos de mercado. Essa autora aponta que o capital incorporador gera a segregação social no espaço. Nesse sentido, é importante destacar que a valorização de certas áreas decorre não da produção de moradias em si, mas das alterações do uso do solo urbano, resultantes da atuação desse capital, possibilitando a criação ou ampliação de rendas diferenciais (Lipietz, 1988, p. 30). A segregação espacial das classes sociais, de acordo com Villaça (1999), entendida como a localização predominante das altas camadas sociais em determinada parcela do espaço urbano, é produzida a partir da disputa pela apropriação das vantagens do espaço, como pela implantação de infraestrutura de transporte. Daí resulta parte das contradições Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 [...] o processo de apropriação privada do espaço produz uma hierarquia espacial coerente com uma hierarquia social, na qual indivíduos, subordinados à divisão do trabalho, hierarquizados socialmente, apropriam-se de forma diferenciada da cidade, e dado que o processo de apropriação é mediado pelo mercado, imposto pela propriedade privada do solo urbano. Esse fato é percebido de forma clara e evidente nos usos da cidade, perceptíveis na paisagem urbana marcada por diversas formas de segregação. Pode-se afirmar que a segregação social urbana, recriada nos diferentes momentos de expansão da cidade, é um processo que organiza o espaço em zonas com alto grau de homogeneidade social interna e com grandes disparidades externas, de umas em relação às outras, tanto por características distintas como em hierarquia (Bógus, 1988, p. 37). Por fim, Carlos, ao tratar dos conflitos e interesses entre os diversos atores da produção do espaço urbano e da transformação da cidade, de valor de uso para valor de troca, afirma Carlos (1999, p. 81): O uso não se dá sem conflitos na medida em que os interesses/necessidades são contrapostos, contraditórios. De um lado os interesses do Estado e dos empresários (muitas vezes coincidentes); de outro, a população. Enquanto os primeiros têm por objetivo a valorização e o poder, a população anseia por condições de vida em 203 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim dimensão plena. (...) Tal perspectiva envolve pensar o sentido da apropriação e do uso dos lugares da metrópole. Envolve pensar o processo que transforma, constantemente, a cidade, de valor de uso em valor de troca. interligadas, sintetizadas a seguir: 1) pesquisa documental; 2) levantamento de campo associado a entrevistas qualitativas com técnicos estaduais, municipais e sociedade civil; 3) análise dos resultados à luz do quadro conceitual construído, por meio de produção de mapas e A transformação da paisagem urbana dados comparativos a fim de compreender a que se expressa de forma complexa a partir ocupação e o processo de transformação da de interações e deslocamentos múltiplos é um área de estudo.4 fator decisivo para compreender a necessidade O Rodoanel Mário Covas da RMSP con- de novas estruturas de circulação na metrópo- siste em ligação perimetral projetada com o le, tais como o Rodoanel. Esse novo sistema objetivo de articular o sistema rodoviário regio- de circulação e transporte busca otimizar flu- nal que liga São Paulo a diversas localidades xos econômicos, com o objetivo de atender às do Estado e do país, evitando a circulação de necessidades de uma logística de circulação e veículos de carga e de passagem no espaço ur- distribuição capaz de suprir as redes de consu- bano da metrópole. mo e produção, evitando que veículos pesados A RMSP, desde o início do século XX, atrai adentrem o espaço intraurbano da metrópole, fluxos provenientes do interior do território es- e ao mesmo tempo impacta um território frag- tadual e de outras regiões do país em direção mentado e ambientalmente frágil. ao porto de Santos. A implantação das ferrovias e de importantes rodovias radiais para facilitar o deslocamento entre interior-metrópole Rodoanel Mário Covas: características e polêmicas e metrópole-porto contribuiu, dentre outros fatores, para a expansão da ocupação urbana da metrópole, gerando impactos ambientais em suas áreas impróprias à urbanização e aumen- Tendo como propósito analisar o processo de tando ainda mais a necessidade de transporte produção do espaço urbano e a transformação de pessoas e de mercadorias. da paisagem a partir da implantação de uma Estudos sobre um grande anel viário cir- obra viária de caráter regional que atravessa cundando a metrópole paulista surgiram com áreas protegidas, a pesquisa que dá origem o aumento da frota automobilística a partir a este artigo elegeu como objeto de estudo o da segunda metade do século XX. Em 1952, Rodoanel Mário Covas, em seu trecho sul, par- foi feito um primeiro esboço que acabou dan- ticularmente o Lote 2, porção que atravessa a do origem às Avenidas Marginais do Tietê e área de proteção dos mananciais da sub-bacia Pinheiros (DERSA, 2004). Trinta anos depois, Billings no município de São Bernardo do Cam- com as marginais completamente congestio- po e interliga as rodovias Anchieta e Imigran- nadas, começou a ser construído o Mini-Anel tes. Os procedimentos metodológicos definidos Viário, circundando o centro expandido a partir para essa etapa desenvolveram-se em fases da Marginal Tietê, Marginal Pinheiros, Av. dos 204 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental Bandeirantes, Av. Affonso Taunay, Complexo dos reservatórios destinados à geração de Viário Maria Maluf, Av. Tancredo Neves, Av. energia elétrica e abastecimento público, foi das Juntas Provisórias, Av. Prof Luís Inácio de criado o Programa Rodoanel, com a divisão Anhaia Melo, Av. Salim Farah Maluf e concebi- da construção em quatro trechos, que seriam do o Anel Metropolitano. implantados no decorrer de 15 anos, a saber: Em 1987, traçou-se nova proposta de in- Trecho Oeste, com 32 km (em operação des- terligação viária das rodovias radiais da metró- de 2002); Trecho Sul, com 53 km (em opera- pole: a Via Perimetral Metropolitana. Nessa, o ção desde 2010); Trecho Leste, com 40 km Trecho Norte passaria por trás da Serra da Can- (em construção); Trecho Norte, com 48 km tareira. No entanto, a distância do Trecho Norte (em licenciamento). em relação à metrópole, tendo como barreira Segundo a Dersa (2004), simulações so- física a Serra da Cantareira, contribuiu para in- bre o tráfego previsto para o Rodoanel tendo viabilizar também essa proposta. como horizonte 2020 indicou que os maiores O projeto é retomado pela Empresa de carregamentos estariam no Trecho Oeste (180 Desenvolvimento Rodoviário S.A. – Dersa, em mil veículos/dia), seguidos dos Trechos Sul (147 1995, que apresentou o Trecho Norte modifica- mil veículos/dia), Leste (113 mil veículos/dia) e do, mais próximo da mancha urbana, intercep- Norte (95 mil veículos/dia). tando a Serra da Cantareira. Em 1997, ocorre a Por um lado, o Rodoanel foi apresentado decisão política de implantação do empreendi- pelo Estado como uma obra rodoviária primor- mento acordada pelas três esferas de governo: dial para a RMSP, cuja função é conectar as ro- Prefeitura Municipal de São Paulo, Estado de dovias radiais que chegam à metrópole e fun- São Paulo e União. cionar como elemento estruturador do tráfego A proposta apresentada pela Dersa é o interno da metrópole. Por outro, as restrições Rodoanel, uma rodovia classificada como clas- ambientais dos Trechos Sul (mananciais) e Nor- se “0”, com acesso restrito, que contornará a te (Serra da Cantareira) acabaram resultando RMSP num distanciamento de 20 a 40 km do em conflitos que ao longo do tempo dificultam centro do município. Sua extensão total será de sua construção. 170 km, interligando os dez grandes eixos ro- A decisão de implantar inicialmente o doviários de acesso à metrópole: Régis Bitten- Trecho Oeste foi estratégica para indicar a ne- court (acesso ao Vale do Ribeira e sul do país); cessidade da via na RMSP. Tal decisão contribui, Raposo Tavares; Castello Branco; Anhanguera; no entanto, para reforçar o quadrante sudoeste Bandeirantes (acesso a todo o interior do Esta- da capital paulista, que, de acordo com Villaça do de São Paulo e ao centro-oeste do país); Fer- (1999), é privilegiado historicamente pelo Es- não Dias (acesso a Minas Gerais); Presidente tado, que, desde o inicio do século, concentra Dutra; Ayrton Senna (acesso ao Vale do Paraíba nessa região investimentos em infraestrutura, e Rio de Janeiro); Anchieta e Imigrantes (acesso principalmente vias de circulação e transporte, ao Porto de Santos e cidades litorâneas). contribuindo ainda mais para o processo de va- Devido ao porte e custo do empreendimento, comparado apenas à implantação Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 lorização desse espaço urbano em relação ao restante da metrópole. 205 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim A finalização do Trecho Oeste em 2002 e ambientais decorrentes seriam pequenos; os o aumento contínuo da frota de veículos parti- ambientalistas, com expressiva representa- culares da RMSP fizeram com que a atenção do tividade da sociedade civil e universidades, Estado se voltasse para a construção do Trecho procuravam indicar que os efeitos ambientais Sul, que conectado ao trecho já construído dimi- e sociais advindos dos impactos da via seriam nuiria o tráfego de passagem em vias internas mais perversos do que os benefícios em relação importantes da cidade, particularmente a Av. à melhoria da mobilidade na metrópole. dos Bandeirantes e Marginal do rio Pinheiros. No âmbito desse debate, estudos impor- O Trecho Sul, associado ao Trecho Oeste, tantes foram realizados por especialistas contra- foi construído para facilitar o escoamento de tados pelo Estado, que defendia sua necessida- cargas e canalizar os fluxos originários do inte- de, e pelos ambientalistas, procurando barrá-lo. rior do Estado de São Paulo e do Brasil Central Biderman (2005), empregando um mo- em direção ao Porto de Santos, sem a neces- delo matemático, realizou um estudo enco- sidade de utilizar o sistema viário urbano do mendado pela Dersa (Estado) para estimar o município de São Paulo. impacto da implantação do Rodoanel na RMSP. O Trecho Sul atravessa os municípios de O autor argumenta que, devido à obra ter um Embu, Itapecerica da Serra, São Paulo, São Ber- número de acessos bastante reduzido, as zonas nardo do Campo, Santo André, Ribeirão Pires, e de seu entorno praticamente não receberiam interligando com o Trecho Oeste, a partir da Ro- vantagens diretas com sua construção, se man- dovia Régis Bittencourt, às rodovias Anchieta e tidas as então condições do sistema viário in- Imigrantes e ao Município de Mauá, de onde traurbano. O modelo indicou que somente em partirá o Trecho Leste. Ao longo desse trecho, alguns poucos trechos poderia ocorrer maior encontram-se os reservatórios de abasteci- atratividade em relação à novos usos, devido mento de água Guarapiranga e Billings, o que às conectividades importantes, com destaque contribuiu significativamente para a discussão para as ligações com as rodovias Imigrantes do Rodoanel como possível elemento indutor e Anchieta, em São Bernardo do Campo (Lote da ocupação irregular em áreas de preservação 2). O autor recomendou atenção por parte das dos mananciais, ampliando a polêmica entre políticas públicas municipais e estaduais ao po- acessibilidade urbana e proteção ambiental. tenciais impactos naquele trecho. Durante o processo de aprovação do pro- Diferentemente dessa visão, Ferreira e jeto nos setores competentes, principalmente Smith (2005), por iniciativa do Instituto Sócio nas audiências públicas do Conselho Estadual Ambiental e da Universidade de São Paulo, do Meio Ambiente – Consema, as polêmicas realizaram um estudo sobre os reflexos da sobre os impactos que a via geraria ao atraves- construção do Trecho Oeste, para efeito com- sar as áreas protegidas foram intensas. O Esta- parativo. Os autores apontam que naquela re- do, por meio dos setores de transporte, defen- gião o Rodoanel foi um elemento catalizador dia que a construção do Rodoanel viabilizaria de novos empreendimentos, iniciando um pro- a melhoria do tráfego na RMSP e os impactos cesso de valorização fundiária e acarretando 206 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental o aumento dos assentamentos informais, e a implantação de uma rodovia “Classe Zero” não seria suficiente para evitar a criação de acessos ilegais e conter o avanço populacional no entorno. Assim, concluíram que efeitos de São Bernardo do Campo e o processo de produção do espaço urbano no Trecho Sul do Rodoanel valorização imobiliária e consequente degradação ambiental poderiam também ocorrer O município SBC, situado na microrregião do nos mananciais sul após a construção do outro ABC,5 sudeste da metrópole paulista, tem cer- trecho da obra. ca de dois terços do território situado em área Assim, para o Estado o Rodoanel repre- de proteção dos mananciais da represa Billings. sentaria uma solução à acessibilidade e à me- A área urbana concentrou-se inicialmente na lhoria da circulação na RMSP, não sendo con- porção norte do município, ao longo da via Ca- siderado um elemento de indução da ocupa- minho do Mar e nas proximidades da rodovia ção irregular, devido às suas características Anchieta, construída em 1953, que atraiu gran- técnicas – via restrita sem passagem em nível des indústrias, principalmente a automobilísti- para ligação com viário local e conexão à rede ca, por constituir um vetor de ligação entre o regional. Para alguns especialistas e ambienta- planalto paulista e o porto de Santos. listas, a acessibilidade promovida pelo Trecho A implantação de grandes indústrias Sul do Rodoanel poderia acentuar o processo em SBC atraiu grande fluxo migratório entre de ocupação da população de baixa renda, de- as décadas de 1960, 1970 e 1980, acentuan- gradando cada vez mais as áreas protegidas. do a ocupação desordenada do município em De qualquer forma, consideramos que direção às áreas de proteção dos mananciais. tais estudos não se excluem. Se por um lado, Em 1976, São Bernardo do Campo é atraves- a melhoria da mobilidade da metrópole é na sado longitudinalmente pela Rodovia dos atualidade fato, por outro, os impactos de de- Imigrantes, outra importante obra rodoviária gradação ambiental, decorrente da acessibili- de caráter estadual. Nesse mesmo ano foi dade que a via promove, embora menos visí- aprovada a Lei de Proteção dos Mananciais veis, também ocorrem. Billings, que restringiu ainda mais o limite da Mas o processo de produção do espaço expansão urbana de SBC, inibindo o parque urbano dirigido pelo Estado em articulação industrial que estava se formando ao redor da com o capital imobiliário, em áreas com maior Rodovia dos Imigrantes. acessibilidade à via, são formas menos ex- A crise econômica dos anos de 1980 e o plícitas e também conflitantes que devem ser contínuo crescimento populacional do municí- examinadas, como veremos na área de influên- pio fizeram com que a demanda por habitação cia do trecho que corta o município de São da população de baixa renda encontrasse es- Bernardo do Campo. paço nas áreas de preservação dos mananciais Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 207 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Billings, caracterizado pelo baixo valor da terra, O Trecho Sul do Rodoanel de certa forma pela disponibilidade, ainda que ilegal, de terre- é uma terceira ruptura, dessa vez transversal, nos vazios. Em 1990, o processo de descentra- no território de São Bernardo do Campo. A área lização industrial incentivado pelo então Go- interceptada pela obra (Lote 2) caracteriza-se verno Collor (1990-1993) impactou na estru- pela ocupação de loteamentos irregulares ou turação econômica de SBC, fundamentada no clandestinos, além de significativa presença in- setor industrial. O resultado foi o aumento do dustrial nas proximidades da via Anchieta. desemprego e contínuo aumento da ocupação A partir de 2006, ao mesmo tempo, em irregular de baixa renda em bairros situados que era fundamental implementar ações de nas áreas de mananciais, nas proximidades das recuperação ambiental, determinados trechos rodovias Anchieta (bairro Montanhão) e Imi- das áreas de mananciais nas proximidades das grantes (bairro Dos Alvarenga). vias de conexão com o Rodoanel passaram a Figura 2 – A abertura da faixa de domínio do lote 2 do Trecho Sul do Rodoanel, em SBC Fonte: Google Earth (15 de dez de 2008) apud Aguilar (2010, p. 227). 208 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental ser vistos pelo poder local como uma possibili- 2006, os investimentos do PTU voltaram-se dade de atrair novas empresas, principalmente para a duplicação da Estrada Galvão Bueno as ligadas ao setor logístico e, dessa forma, ge- e da Estrada dos Alvarengas em seus trechos rar empregos. Assim, as obras de melhoria das que se ligam à Rodovia dos Imigrantes, espe- ligações viárias que se interligam com o Ro- cificamente no ponto em que era implantada doanel, previstas pelo Programa de Transporte a alça de acesso do Rodoanel, definido pelo 6 Urbano (PTU) do município, principalmente Plano Diretor Municipal como zona empresa- em trechos definidos como Zona Empresarial rial estratégica. Estraté gica (ZEE), zona definida pelo novo Paralelamente à implantação do Rodoa- 7 nel, foi instituída pelo Estado a Lei Específica passaram a ser prioritárias para a melhoria da da Billings (Lei n. 13.579/2009), que regula- mobilidade e integração das diversas regiões menta uma nova Lei de Proteção e Recupera- do município (Figura 3). Ou seja, com o início ção dos Mananciais de Interesse Regional do da construção do Trecho Sul do Rodoanel em Estado de São Paulo (Lei n. 9.866/1997).8 Plano Diretor municipal (Lei n. 5.593/2006), Figura 3 – Área de estudo – Obras viárias e Zoneamento Limite da área de proteção dos mananciais Rodovias Represa Billings Limite da área de estudo Trecho sul do Rodoanel (em construção) Programa de transporte urbano Zonas vocacionais Limite do município Área de influência direta do trecho sul do Rodoanel Unidades de planejamento e gestão Bairros Fonte: Aguilar (2010). Produção a partir do material cedido pela EMPLASA e pela PMSBC. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 209 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Segundo a nova lei, a sub-bacia Billings foi dividida em “Áreas de Intervenção”, onde definidos, prevalecendo os instrumentos definidos para a Área de Ocupação Dirigida. foram definidas as diretrizes e normas ambien- Assim, observa-se que se, por um lado, tais e urbanísticas voltadas à garantia dos ob- ambos os atores, Estado e município, imple- jetivos de produção de água, com qualidade e mentaram ações em relação às obras viárias quantidade adequadas ao abastecimento pú- e legislações urbanas que equacionariam os blico, de preservação e recuperação ambien- deflagrados problemas de circulação regional e tal, a saber: Áreas de Restrição à Ocupação local; por outro, a legislação ambiental instituí- (ARO); Áreas de Ocupação Dirigida (AOD); da pelo próprio Estado, embora inovadora uma Áreas de Recuperação Ambiental (ARA); vez que reconhece a necessidade de equacio- Área de Estruturação Ambiental do Rodoanel nar as preexistências por meio de ações de (AER). Em trechos da AOD, a nova legislação recuperação, não definiu parâmetros e normas indica a possibilidade de regularização fundiá- de orientação de usos e/ou restrições ao longo ria, reconhecendo que a recuperação ambien- da nova via, deixando lacunas que fragilizam tal associa-se à urbanização de assentamen- os interesses ambientais. tos precários e regularização da moradia em áreas protegidas.9 Em uma tentativa de fazer prevalecer os interesses ambientais na área de influência direta do Rodoanel, a Lei Específica define a AER–Rodoanel, uma faixa na área de influên- Reflexos das políticas públicas na produção do espaço urbano de SBC cia direta da via, onde deveriam ser indicados usos e atividades compatíveis com a melhoria, A seguir, a pesquisa registrou os principais proteção e conservação dos recursos hídricos; aspectos do processo de produção do espaço buscando conter a expansão de núcleos ur- urbano em andamento entre 2007 e 2009 na banos; incentivar a implantação de unidades área de influência do Rodoanel em SBC. de conservação com ações de educação e de No momento em que o Governo Esta- monitoramento ambiental bem como ações dual confirmou a construção do Trecho Sul de fiscalização para manutenção da tipolo- do Rodoanel para o início do ano de 2007, gia original da rodovia como classe zero. A o setor imobiliário interessou-se por terre- lei específica estabelece ainda que deverá ser nos localizados estrategicamente nas áreas elaborado, no âmbito do Plano de Desenvolvi- de mananciais, deflagrando um processo de mento e Proteção Ambiental do Reservatório expectativa de valorização do preço da terra Billings – PDPA, o Programa de Estruturação (ainda que temporário). Ambiental Rodoanel. A título de exemplificação, nesta pes- No entanto, apesar da explicitação de quisa foram levantados os dados de seis ter- tais diretrizes, tanto o limite da AER quan- renos comercializados entre 2007 e 2010, e to seus parâmetros urbanísticos não foram de um núcleo habitacional, com metragens 210 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental e usos diversificados, na área definida como 10 Embora ainda não totalmente materia- área de influência do rodoanel, conforme a lizado, o processo de modificação do espa- Tabela 1. Os dados coletados foram obtidos ço urbano encontrava-se em curso durante a por meio de uma pesquisa exploratória em pesquisa que gerou este artigo. Os resultados que foram entrevistados alguns proprietários indicam que a região assistia a dois processos desapropriados, proprietários de grandes gle- concomitantes: 1) expectativa de valorização bas comercializadas, empresários e imobiliá- fundiária por parte daqueles que compraram rias e levantados os seguintes dados: o valor terrenos a preço baixo e encontravam-se à de aquisição do terreno, o valor de desapro- espera da valorização imobiliária (expectativa priação (quando houve), o valor do IPTU e o de valorização) para os venderem; ii) Desapro- valor de expectativa de valorização (do pró- priações na Área Diretamente Afetada (ADA) prio terreno em comparação a outros terre- pelo Trecho Sul, praticadas pelo Estado, acima nos da região). do valor venal dos terrenos. Tabela 1 – Terrenos entre 2006 e 2009, em função do Rodoanel Localização Uso 1 Estrada dos Casa serviços 2 Estrada Galvão Bueno* vazio 3 Avenida Angelo Demarchi serviço 4 Avenida Angelo Demarchi recreativo Área (m2) Ano Preço m2 (R$) Total (R$ mil) Tipo de valor 58.306 2007 2009 100,00 500,00 5.830.600 29.153.000 Expectativa de venda Expectativa de venda 249.926 2006 2007 2009 72,169 200,00 350,00 18.034.660 49.985.200 87.474.100 Desapropriação Expectativa de venda Expectativa de venda 40.000 2008 2008 10,00 50,00 400.000 2.000.000 312.000 2007 2009 50,00 150,00 IPTU Desapropriação 15.600.000 46.800.000 Mercado Expectativa de venda 5,00 10,00 10,00 100,00 20.000 40.000 40.000 400.000 IPTU IPTU Expectativa de venda Expectativa de venda 5 Estrada Brasílio de Lima residencial 4.000 2008 2008 2007 2009 6 Estrada Brasílio de Lima residencial 12.000 2008 2008 5,00 15,00 60.000 180.000 IPTU Desapropriação 7 Estrada Marco Polo** núcleo habitacional 5.625 2008 2008 8,00 – 45.000 – IPTU Desapropriação * Em relação à área total do terreno, porém a área de desapropriação foi 15.330,43 m², totalizando R$1.106.187,47. ** Área calculada com base na multiplicação de 45 lotes pela área padrão do lote (125m²). O cálculo do valor de desapropriação é variável em função das benfeitorias. Fonte: Entrevistas com proprietários particulares in loco e contato com as construtoras e empresários, por meio da imobiliária PRIME ABC. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 211 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Por um lado, a acessibilidade propor- A questão central levantada pelos mora- cionada pelo Rodoanel integrada às demais dores foi a seguinte: por que uma obra como obras e legislações urbanas definidas para a o Rodoanel, com tamanho impacto ambiental, área contribuía para a valorização do solo, on- pode ser construída nas áreas de mananciais de assistia-se a um processo de expectativa de com a conivência do Estado (provedor da valorização fundiária por parte daqueles que obra), e esse mesmo Estado é severo em rela- compraram terrenos a preço baixo nessa área e ção à regularização da ocupação irregular? encontravam-se à espera da valorização imobi- Para além do processo de valorização liária para os venderem àqueles que realmente imobiliária resultante das obras de acessibili- “produziriam” o espaço urbano, e transforma- dade articuladas ao Rodoanel, está a dificul- riam a paisagem. A acessibilidade proporciona- dade de transposição e isolamento de alguns da pelo Rodoanel integrada às demais obras e núcleos urbanos de baixa renda localizados legislações urbanas definidas para a área vinha ao sul da obra viária, nas proximidades da contribuindo para a valorização do solo, para represa Billings, fato que contribui para a além do preço real praticado pelo mercado, in- segregação socioespacial da população e do ao encontro das ideias de Villaça (1999). consequentemente para acirrar os conflitos Por outro observou-se que a sociedade ambientais. civil organizada e instruída, ciente das suas Assim, o Trecho Sul do Rodoanel po- obrigações e de seus direitos, durante as ne- de ser visto tanto como articulador quanto gociações pressionou o Estado a pagar pelos desarticulador do espaço intraurbano, contri- terrenos desapropriados o valor de mercado, buindo para (re)produção do espaço urbano e avaliado pelos técnicos especializados, naquele transformação da paisagem em áreas protegi- período, e não pelo valor venal, prática comum das ambientalmente. do poder público, computando ao valor dos Atuam na produção do espaço urbano a terrenos as benfeitorias no custo final da desa- população residente nas áreas de mananciais, propriação. Ao mesmo tempo, tudo indica que em busca da regularização fundiária, e os pro- essa também foi uma estratégia utilizada pe- prietários fundiários, empresários, incorporado- lo Estado para agilizar o início das obras, visto res e construtores por meio da divulgação de que a Dersa vinha realizando diversas palestras suas expectativas de valorização das áreas ao sobre os benefícios do Rodoanel envolvendo as redor do Rodoanel, em busca do aumento da comunidade de baixa renda. mais-valia. Os atores da produção do espaço As entrevistas com moradores de baixa urbano, representantes dos interesses do capi- renda apontaram que a valorização dos terre- tal articulados entre si, influenciaram a decisão nos ocorreram somente naqueles já edificados. dos investimentos públicos, na porção norte Ao mesmo tempo, os próprios moradores pas- do Rodoanel, na continuidade da área de ex- saram a coibir a ocupação de terrenos vazios, pansão urbana. Em pouco tempo, boa parte cientes de que se fossem permissivos com o dos terrenos lindeiros nessa área que esta- avanço da ocupação, correriam o risco de se- vam à venda seria adquirida num processo de rem removidos, sem retorno financeiro. especulação imobiliária. 212 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental Nota-se que a produção do espaço ur- espraiamento da mancha urbana e consequen- bano para atender aos interesses do capital te ocupação de suas áreas ambientalmente suplantam as questões ambientais, que são ao mais frágeis, as áreas de preservação dos ma- mesmo tempo cobradas daqueles que tiveram nanciais, transformando assim sua paisagem. como única alternativa de moradia as áreas de A implantação do Trecho Sul do Rodoa- mananciais, fruto da lógica da produção social nel Mário Covas é objeto de polêmica visto que do espaço, condicionada pelo interesse do ca- seu traçado corta as represas Guarapiranga e pital, promovendo a segregação socioespacial. Billings, responsável pelo abastecimento de Essas tensões sugerem a necessidade de água potável de parte da RMSP. Porém, para o que políticas públicas sejam articuladas de ma- Governo do Estado trata-se de uma importan- neira a atender os interesses coletivos, diante te infraestrutura que contribui para melhorar das prioridades representadas tanto pela pre- a mobilidade da metrópole, perante ao risco servação ambiental quanto pela implementa- crescente de imobilidade urbana. ção de acessibilidade e fluxos resultantes possibilitados pela nova conexão viária. Enquanto o Governo Estadual preocupou-se em apresentar o Rodoanel como Enfim, como perspectiva necessária e uma obra que contribuiria para o ordenamento possível, as políticas públicas em áreas pro- do espaço protegido e funcionaria como uma tegidas devem ser parte de um processo de “barreira” à expansão da ocupação das áreas gestão compartilhada entre Estado, municípios de mananciais, o poder local criou uma expec- e sociedade civil. A definição de consensos pa- tativa de atração de novas empresas e “de- ra implementação de uma gestão integrada é senvolvimento” em função da acessibilidade aspecto fundamental, que aflora e é parte de propiciada pelo Trecho Sul, implantado e me- uma dinâmica de negociações que exige contí- lhorando as vias de conexão do meio urbano nuo aperfeiçoamento.11 com a nova via. Durante a construção da obra, foi ao longo do Lote 2, no trecho de ligação com as ro- Considerações finais dovias Anchieta e Imigrantes, que as atenções do mercado imobiliário e da política municipal As redes de infraestrutura urbana, especialmen- se voltaram, iniciando um processo de valori- te aquelas ligadas à circulação e transporte, in- zação do espaço urbano, por meio da trans- terferem consideravelmente na produção de no- formação da paisagem na área de proteção e vas localidades, tendo como base a articulação recuperação dos mananciais Billings. entre os atores que produzem o espaço urbano, Nesse trecho, a transformação da pai- particularmente o Estado e o capital imobiliário. sagem se materializou com maior velocidade, No caso específico da RMSP, historica- onde é possível averiguar os distintos impas- mente a implantação do sistema de circula- ses entre os atores que produzem o espaço ção – ferrovia e rodovias – condicionou o urbano: Estado – responsável pela obra do Ro- processo de produção do espaço urbano, ao doanel e legislação pela proteção ambiental; mesmo tempo que determinou também o município responsável pelo desenvolvimento Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 213 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim urbano, legislações e instrumentos de planeja- e sua efetiva implantação), o simples fato de mento urbano e uso do solo, bem como pelas esse cortar o espaço urbano de SBC não de- infraestruturas locais; proprietário e empreen- veria induzir à ocupação de seu entorno de dedores imobiliários, interessados em lucrar modo significativo. A ocupação ao longo do com a valorização do solo, sociedade civil, Rodoanel e em pontos estratégicos é na ver- representada pela população moradora em dade derivada de um conjunto de fatores que loteamentos ilegais e favelas na região . contribuem, por um lado, para definir a atrati- A pesquisa em questão evidenciou ou- vidade de novas formas de ocupação de em- tras formas de produção de espaço, menos preendimentos ligados ao setor de logística explícitas, para além da ocupação irregular, nas proximidades do meio urbano, por outro, mas alvo do mercado imobiliário, que vêm para a consolidação de habitação de baixa agregando o valor ambiental articulado à renda e/ou o isolamento dos núcleos existen- nova acessibilidade e com isso induzindo um tes. Tais fatores são: a) conexões do Rodoanel novo processo de produção social do espaço. com as duas importantes rodovias de ligação Em pouco tempo, boa parte dos terrenos lin- entre Santos e São Paulo – vias Anchieta e Imi- deiros nesta área que estavam à venda foram grantes; b) melhorias das ligações viárias de adquiridos, num processo de especulação acessibilidade com essas rodovias, promovidas imobiliária pelo governo local; c) instituição da nova lei de Por outro lado, observa-se também a difi- proteção e recuperação dos mananciais indi- culdade de transposição e isolamento de alguns cando possiblidades de regularização fundiária núcleos urbanos de baixa renda localizados ao para as ocupações irregulares. Esses fatores sul da obra viária, nas proximidades da represa são decorrentes de ações muitas vezes desarti- Billings, fato que contribui para a segregação culadas, que visam interesses próprios, contri- socioespacial da população e consequentemen- buindo para produzir um novo espaço urbano te para acirrar os conflitos ambientais. e transformar a paisagem, reforçando aspectos Assim, o Trecho Sul do Rodoanel pode ser visto tanto como articulador quanto desar- de segregação socioespacial historicamente existentes. ticulador do espaço intraurbano, contribuindo Os atores que produzem o espaço urba- para (re)produção do espaço urbano e trans- no, representantes dos interesses do capital, formação da paisagem em áreas protegidas articulam-se entre si e influenciam a decisão ambientalmente. A obra do Trecho Sul do Ro- dos investimentos públicos, na porção norte do doanel traz maior acessibilidade regional para Rodoanel, área de expansão urbana. Entre to- o município; porém, na prática, tem-se mostra- dos os atores envolvidos (empresários, constru- do como novo elemento de divisão do espaço tores, proprietários fundiários, usuários finais, urbano de São Bernardo do Campo, assim co- etc.), o Estado – representado pelo Governo mo foram, em momentos anteriores, as cons- estadual e município – desempenha papel fun- truções das rodovias Anchieta e Imigrantes. damental, pois cabe a ele articular os demais Embora o Rodoanel isoladamente trans- atores, muitas vezes em função dos seus pró- forme a paisagem (devido ao impacto da obra prios interesses ou em função daqueles que o 214 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental influenciam. É o Estado quem define as obras As perspectivas acenadas com a im- de infraestrutura, determina as legislações, plantação do Rodoanel colocam o município normas e regras que orientarão a produção do diante de um processo que deve ser sistema- espaço urbano e as ações que os demais ato- ticamente negociado e acompanhado, diante res podem realizar sobre esse mesmo espaço. das incertezas e em prol da produção social Isso fica evidente ao analisarmos o processo de de seu espaço urbano. Para tanto, apesar do ocupação que vem se dando ao longo do Ro- importante papel do poder público municipal, doanel, pois embora esse seja fruto da atuação enfatiza-se a necessidade da instituição de um de diversos atores, o Estado tem papel decisivo sistema de gestão metropolitano capaz de co- nesse processo. Ao implementar obras com- ordenar o conjunto de políticas públicas – ur- plementares de infraestrutura e instituir novas banas, ambientais e setoriais – em curso. legislações ambientais e urbanas, o Estado dá Enfim, recomenda-se a construção de início a novas formas de (re)produção e apro- uma agenda urbana e ambiental gerida de priação do espaço e, consequente, transforma- forma negociada e compartilhada pelos repre- ção da paisagem. sentantes dos três segmentos – Estado, Muni- Os conflitos aqui evidenciados indicam cípio e Sociedade Civil – que oriente políticas que as políticas públicas não se apresentam públicas e investimentos públicos e privados como mediações neutras, e, sim, são pensa- ao longo do Rodoanel, contribuindo para um das de forma heterogênea, num marco que processo de produção social do espaço urba- aprofunda as divergências entre os atores no equilibrado e socialmente justo, em prol do que produzem o espaço urbano. interesse público. Carolina Bracco Delgado de Aguilar Arquiteta-urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Coordenadora de Sistemas de Informações Geográficas na empresa Hatch Engenharia. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Angélica Tanus Benatti Alvim Arquiteta-urbanista, Mestre e Doutora em Estruturas Ambientais e Urbanas, docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 215 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim Notas (1) Este artigo é parte das reflexões da Dissertação de Mestrado intitulada Produção do espaço urbano a par r do Trecho Sul do Rodoanel, em São Bernardo do Campo: impasses e perspec vas, de autoria de Carolina Bracco Delgado de Aguilar (bolsista Capes) sob a orientação da Profa. Dra. Angélica Tanus Bena Alvim, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. (2) O termo “enobrecimento” vem subs tuindo o termo “gentrificação” (do inglês gentrifica on), para não caracterizar uma tradução literal do termo que, segundo Arantes (2000), significa a expulsão da população original de certa parte do território, quando essa é valorizada e as condições de vida são encarecidas. (3) Conforme Sposito (2006, p. 24), a renda fundiária, também chamada de renda da terra, refere-se à capacidade que as pessoas têm de se apropriar, sob a forma de dinheiro, de tudo o que é produzido. (4) Vale dizer que o recorte temporal da pesquisa foi o período entre 2005 (aprovação e anúncio da obra) e 2009, evidenciando processos que ocorreram durante a fase de construção da rodovia. Portanto, a pesquisa avaliou um processo em curso, indicando seus impasses e perspec vas naquele momento. Para maior aprofundamento ver Aguilar, 2010. A metodologia empregada na pesquisa de campo será explanada mais adiante. (5) A microrregião do ABC era inicialmente formada por Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, e depois acrescida dos municípios de Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. (6) O Programa de Transporte Urbano de SBC foi aprovado em 4 de setembro de 2002 pelo Governo Federal. Por meio da Lei Municipal n. 5.085, de 26/9/2002, a Câmara Municipal autorizou o Execu vo a manter trata vas junto ao Bando Internacional de Desenvolvimento (BID), rela vas ao Programa de Transporte Urbano de SBC, que integra um programa maior intitulado “Programa São Bernardo Moderna”. (7) O Plano Diretor municipal (Lei n. 5.593/2006) definiu para a porção norte do Rodoanel três zonas de uso: Zona Empresarial Estratégica (ZEE); Zona de Reestruturação Urbana e Ambiental (ZRUA); e Zona de Recuperação Ambiental (ZRA). (8) A legislação de proteção dos mananciais da década de 1970 (Leis n. 898/75 e n. 1.172/7613) foi subs tuída pela Nova Lei de Proteção e Recuperação aos Mananciais, Lei Estadual n. 9.866, de 28 de novembro de 1997. Essa lei ins tui diretrizes de uso e ocupação do solo para cada sub-bacia que só serão validas mediante legislação específica. A sub-bacia Billings é a segunda a ter lei específica, posterior à APRM – Guarapiranga (Lei n. 12.233/2006). (9) Para maior aprofundamento ver Alvim et al., 2010. 216 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 Espaço urbano, circulação e preservação ambiental (10) A área de influência que definimos para a pesquisa levou em consideração os seguintes limites – a Área de Influência Direta para o Trecho Sul do Rodoanel, especificada pelo Programa Rodoanel da Dersa (AID – porção do território que corresponde a uma faixa de 500 m ao longo de cada lado da rodovia); o lote 2, definido pela ligação entre as rodovias Anchieta e Imigrantes; os limites das Zonas Vocacionais e das Unidades de Planejamento e Gestão definidos no Plano Diretor de São Bernardo do Campo, os limites dos bairros, o limite da área de proteção dos mananciais; e, as obras do Programa de Transporte Urbanos. As análises foram produzidas com recursos do so ware SIG sobrepondo imagens e dados. (11) Ressalta-se que a RMSP carece de uma instância de gestão metropolitana. Na sub-região sudeste, que emvolve os municípios do ABCD, alguns arranjos inovadores despontaram no final dos anos de 1990 buscando solucionar problemas comuns, com destaque para o Consórcio Intermunicipal do ABC e o subcomitê de bacia Billings – Tamanduateí. Para maior aprofundamento ver Alvim et al., 2010. Referências AGUILAR, C. B. D. de (2010). A produção do espaço urbano no Trecho Sul do Rodoanel em São Bernardo do Campo (SP): impasses e perspec vas. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie. ALVIM, A. T. B et al. (2010). Das polí cas públicas ambientais e urbanas às intervenções: os casos das sub-bacias Guarapiranga e Billings no Alto Tietê. Relatório de pesquisa (CNPq). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. ARANTES, A. (org.).(2000). Espaço da diferença. Campinas, Papirus. BAUMAN, Z. (2003). Amor líquido. São Paulo, Jorge Zahar. BIDERMAN, C. (2005). Indução a ocupação decorrente de uma obra viária: o caso do Rodoanel. 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 193-218, jan/jun 2013 217 Carolina Bracco Delgado de Aguilar e Angélica Tanus Benatti Alvim FERREIRA, J. S. W. e SMITH, P. (2005). Impactos urbanís cos do Trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas. In: I FÓRUM DE PESQUISA EM ARQUITETURA E URBANISMO. Anais. São Paulo, FAU/Universidade Presbiteriana Mackenzie. CD-Room. GOTTDIENER, M. (1993). A produção social do espaço urbano. São Paulo, Edusp. HARVEY, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume. LEFEBVRE, H. (1999). A cidade do capital. Rio de Janeiro, DP&A. ______ (2008). Espaço e polí ca. Belo Horizonte, UFMG. LEITE, M. A. F. P. L. (2006). Destruição ou desconstrução? São Paulo, Hucitec. LIPIETZ, A. (1988). O capital e seu espaço. São Paulo, Hucitec. MARTINS, S. (2008). “Prefácio“. In: LEFEBVRE, H. Espaço e polí ca. Belo Horizonte, UFMG. SANTOS, M. ([1985]2008). Espaço e método. São Paulo, Edusp. SARAIVA, M. G. (1999). O Rio como paisagem. 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A dualidade das cidades é marcada exponencialmente pelo crescimento da ilegalidade urbana que a constitui, exacerba os problemas socioambientais que se concentram nos espaços urbanos em condições muito precárias de urbanização, com acesso diferenciado aos investimentos públicos. Caracteriza-se por uma ocupação desordenada resultante da falta de uma lógica de governança colaborativa e de despreparo das autoridades para enfrentar situações complexas, como é o caso de regiões muito populosas e conurbadas. Abstract The Metropolitan Region of São Paulo, composed of 39 municipalities and with a population of more than 19 million inhabitants, is a fragile and complex ecosystem. The “unsustainability” that characterizes the pattern of metropolitan urbanization features the prevalence of a process of expansion and occupation of intra-urban spaces that, in most cases, represents a dramatic reality: low quality of life for large sectors of the population. The duality of the cities is expressed by the growth of the urban illegality that constitutes it, exacerbating the socio-environmental problems that are concentrated in urban spaces with precarious urbanization and differentiated access to public investments. It is also characterized by a disorderly occupation resulting from the lack of a logic of collaborative governance and from the unpreparedness of public officials to face complex situations, as is the case in very populated and conurbated regions within the metropolis. Palavras-chave: áreas metropolitanas; sustentabilidade; justiça socioambiental; desigualdade social; desastres ambientais; Brasil. Keywords : metropolitan areas; sustainability; socio-environmental justice; social inequality; environmental disasters; Brazil. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 Pedro Roberto Jacobi Introdução Cidades e desastres urbanos no Brasil No contexto urbano metropolitano brasileiro, os problemas ambientais têm se avolumado As cidades brasileiras e notadamente as gran- em virtude da concentração de urbanização des metrópoles configuram uma realidade na combinada com desigualdade social e seus im- qual os riscos contemporâneos explicitam os pactos no cotidiano da sua população. limites e as consequências das práticas sociais, A “insustentabilidade” do padrão de trazendo consigo um novo elemento a “reflexi- urbanização metropolitano se caracteriza pe- vidade”. A sociedade, produtora de riscos, se la prevalência de um processo de expansão e torna crescentemente reflexiva, o que significa ocupação dos espaços intraurbanos que, na dizer que ela se torna um tema e um proble- maior parte dos casos, configura uma dra- ma para si (Beck, 1992, 2009). A sociedade se mática realidade: baixa qualidade de vida torna cada vez mais autocrítica e, ao mesmo para parcelas significativas da população. A tempo em que a humanidade põe a si em pe- dualidade das cidades é marcada exponen- rigo, reconhece os riscos que produz e reage cialmente pelo crescimento da ilegalidade ur- diante disso. A sociedade global “reflexiva” se bana que a constitui, exacerba os problemas vê obrigada a autoconfrontar-se, e isto implica socioambientais que se concentram nos es- um constante processo de pensar e refletir so- paços urbanos em condições muito precárias bre uma sociedade que produz riscos (Giddens, de urbanização, com acesso diferenciado aos 1997), mas também com os riscos que são es- investimentos públicos. camoteados ou negados (Beck, 2009; Irwin, Introduz-se aqui a preocupação com a 2001), apesar das evidências. Atualmente sustentabilidade urbana, uma dimensão do além dos aspectos associados com os avanços desenvolvimento sustentável, que representa da ciência e tecnologia que criam, surgem no- a possibilidade de garantir mudanças socio- vas situações de risco diferentes das existen- políticas que não comprometam os sistemas tes, muitas das quais imensuráveis. Entretanto, ecológicos e sociais nos quais se sustentam as os riscos socioambientais urbanos configuram comunidades. Onde a insustentabilidade urba- a produção de riscos associados à pobreza, às na reflete a incapacidade da produtividade e desigualdades e à lógica de desenvolvimento dos investimentos urbanos de acompanhar o urbano que ainda prevalece. Historicamen- crescimento das demandas sociais e gera um te, até meados do século XX, os processos conjunto de problemas que se refletem na de- de ocupação de muitas metrópoles brasilei- gradação da qualidade de vida urbana. ras evitaram os terrenos mais problemáticos / 220 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? vulneráveis à ocupação (altas declividades, e o que define a dinâmica que prevalece é que solos frágeis e suscetíveis à erosão), que se a prevenção e minimização das consequências encontravam mais distantes das áreas centrais, dependerão das medidas políticas no contexto onde a pressão pela ocupação era menos in- de cada território. tensa. Entretanto, a partir dos anos 50, com a A literatura sobre desastres ambientais, exacerbação dos processos de “periferização”, notadamente sobre inundações e deslizamen- e mais intensamente nos últimos 30 anos, tos, envolve os temas da segurança e da vulne- ocorrem dois movimentos simultâneos: a in- rabilidade (Marandola, 2009). Essa se configu- tensificação das intervenções na rede de dre- ra pela exposição da população residente em nagem, com obras de retificação e canalização assentamentos humanos precários expostos a dos rios, o aterramento das planícies de inun- risco socioambiental (sujeitos a inundações e dação (áreas de várzea) e sua incorporação à deslizamentos) e que, em virtude situações cli- malha urbana, e a explosão na abertura de lo- máticas severas, se confrontam com a necessi- teamentos de periferia. A função normativa de dade de suportar os impactos do perigo. uso e ocupação na instalação dos processos de Warner (2010) mostra que, em situações urbanização subordinou-se aos interesses das como inundações, os desastres mais comuns e classes de renda alta e média alta. devastadores, os problemas gerados após um À medida que o processo de urbanização evento expõem a falta de planejamento de uso se intensifica para as áreas mais periféricas, o e ocupação do solo, o despreparo das autori- quadro se agrava. Pela falta de planejamento dades e a falta de um ethos de prevenção na de uso e ocupação do solo, as ocupações pe- sociedade. Além disso, não se pode desconside- riféricas ocorrem em áreas de risco, aumen- rar os agravantes associados às desigualdades tando o número de pessoas vulneráveis aos sociais e à precariedade da estrutura urbana, processos naturais (Maricato et al., 2010). A que se tornam vetores da multiplicação de redução da capacidade de escoamento das tragédias urbanas recorrentes, causadas pelo águas, associada à impermeabilização e pre- descontrole do processo histórico de ocupação cária infraestrutura de drenagem urbana, po- urbana não devidamente planejada pelos po- tencializa transbordamentos, deslizamentos e deres competentes. outros efeitos erosivos. Todo esse elenco de Esta reflexão está pautada pela noção de problemas, que podem ser evitados ou pelo risco e segurança como componentes analíticos menos neutralizados ou reduzidos, só poten- de uma realidade socioambiental caracterizada cializa as catástrofes. pela fragilidade na capacidade de respostas Existe uma forte dimensão social no ris- das sociedades com menos recursos, assim co- co, e esse é agravado pela vulnerabilidade das mo pela falta de ações intersetoriais em virtude populações (Ojima, 2009; Marandola, 2009) e da cultura política institucional pautada pelas do contexto físico onde se localizam. A questão ações setoriais e também por aquelas voltadas que se coloca, portanto, é sobre a gestão dos para interesses de grupos econômicos e políti- riscos (Veyret, 2007; Irwin, 2001; Howe, 2005), cos (Warner et al., 2002) Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 221 Pedro Roberto Jacobi Cabe enfatizar que, na sociedade de ris- horizontalmente e configuram grande parte co, os “desastres anunciados” não podem ser das áreas periféricas são construídas, basi- vistos como fatalidades, mas na maioria dos camente, a partir das ocupações de terras casos podem ser previstos e evitados. Nas cida- vazias realizadas por grupos de baixa renda; des brasileiras, configura-se uma lógica perver- da implantação de loteamentos clandestinos sa de distribuição de riscos, que afeta desigual- construídos e comercializados irregularmente, mente a população. No Brasil metropolitano, dos conjuntos habitacionais para a população incluem-se quase 450 municípios, onde vivem de baixa renda produzidos pelo poder públi- mais de 70 milhões de habitantes. Os desafios co; e de assentamentos precários e informais, metropolitanos nos dias de hoje é que as ci- como as favelas e muitos bairros populares dades criem as condições para assegurar uma que compõem as imensas periferias urbanas qualidade de vida que possa ser considerada (Nakano, 2011). E a falta de infraestrutura de aceitável, não interferindo negativamente no saneamento e de equipamentos comunitários meio ambiente e agindo preventivamente para de educação, saúde, lazer, entre outros, é o evitar a continuidade do nível de degradação, traço comum à maioria desses assentamentos, notadamente nas regiões habitadas pelos se- estigmatizados pela precariedade. A tônica do- tores mais carentes. Trata-se de uma realidade minante de produção desses espaços urbanos complexa e heterogênea, na qual as cidades irregulares decorre de omissões históricas do convivem simultaneamente com os problemas poder público, tanto no tangente às ações re- que caracterizam uma realidade de pobreza – gulatórias e de fiscalização, quanto à provisão ocupações irregulares de áreas ambientalmen- de urbanização adequada. A maioria desses te frágeis que se multiplicam pelas cidades, tais assentamentos é construída com pouco ou ne- como encostas e áreas alagáveis, e problemas nhum acompanhamento técnico, encontra-se de saneamento ambiental decorrentes do bai- em áreas ilegais a invasão e ocupação irregu- xo índice de coleta e tratamento de esgotos; e lar, áreas que apresentam risco de deslizamen- os problemas relacionados com padrões eleva- to. Encontra-se também em várzeas inundáveis dos de consumo – poluição do ar e aumento do e áreas de proteção aos mananciais. Nos últi- volume de resíduos sólidos. mos anos, a variabilidade climática e seu efeito As consequências desse modelo urbano na intensificação das chuvas, os desastres têm estão à vista, e a explicação da emergência dos se multiplicado em virtude dos deslizamentos problemas é recorrente: população que mora nos quais toneladas de terra e rochas rolam em áreas inapropriadas e de grande risco; solo sobre moradias e bairros inteiros, predominan- ocupado erroneamente, reduzindo a capacida- temente ocupados por famílias pobres, pro- de de escoamento das águas; e fluxos hídricos vocando verdadeiras tragédias urbanas. Mas que não recebem cuidado ambiental. cabe lembrar também que as águas invadem Para Bonduki (2011), a desigualdade ur- ruas e edificações provocando perda de bens, bana, funcional e social tem se aprofundado, e saúde e vidas. Essas notícias e ocorrências se o resultado é uma metrópole partida e segre- repetem ano após ano. Nas cidades, os desas- gada. As manchas urbanas que se expandem tres naturais nas áreas mais pobres provocam 222 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? impactos maiores em virtude de sua vulnerabi- maior complexidade para a formulação de po- lidade em relação aos recursos hídricos, à falta líticas ambientais centradas no espaço urbano, de saneamento e ao contato com doenças de onde se destaca a problemática da ocupação veiculação hídrica. do solo. As ocupações irregulares em áreas Mas quais os aspectos que devem ser de mananciais e encostas refletem a falta de enfatizados ao abordar o tema da sustentabili- opções para os pobres urbanos. Em virtude da dade urbana? A noção de sustentabilidade im- sobreposição dos interesses privados às de- plica uma necessária inter-relação entre justiça mandas sociais na distribuição de terras nas social, qualidade de vida, equilíbrio ambiental grandes cidades, sem recursos para construir e necessidade de desenvolvimento. Isso repre- ou comprar imóveis em terrenos seguros e senta a possibilidade de garantir mudanças mais próximos do centro, a população pobre sociopolíticas que não comprometam os siste- se vê obrigada a habitar regiões de difícil aces- mas ecológicos e sociais. Observa-se um cres- so, sem estrutura urbana consolidada e, muitas cente agravamento dos problemas ambientais vezes, em áreas de risco. nas metrópoles: o modelo de apropriação do Observa-se que eventos extremos têm espaço reflete as desigualdades socioeconômi- se tornado mais frequentes, ameaçando cada cas imperantes, o período sendo marcado pela vez mais a precária infraestrutura das cidades. ineficácia ou mesmo ausência total de políticas A própria expansão das metrópoles e, conse- públicas para o enfrentamento desses proble- quentemente, das ilhas de calor provocadas mas, predominando a inércia da administra- pela impermeabilização do solo favorece o au- ção pública na detecção, coerção, correção e mento das precipitações. proposição de medidas visando ordenar o ter- As inundações e deslizamentos que têm ritório do município e garantir a melhoria da ocorrido nos grandes centros urbanos do país qualidade de vida. já são consequência das mudanças climáticas. Para as metrópoles, a denominação “ris- Segundo as previsões do IPCC, esses eventos cos ambientais urbanos” pode englobar uma extremos devem se tornar cada vez mais fre- grande variedade de acidentes, em diversifica- quentes nas regiões Sul e Sudeste. da dimensão e produzidos socialmente. Não No Brasil, os números de perdas huma- há como negar a estreita relação entre riscos nas no verão de 2011 trouxeram à tona o custo urbanos e a questão do uso e ocupação do so- social das tragédias relacionadas com catás- lo, que, entre as questões determinantes das trofes naturais. A forma desordenada de como condições ambientais da cidade, é aquela em as cidades cresceram nos últimos 50 anos tem que se delineiam os problemas ambientais de sido a principal causa das tragédias. maior dificuldade de enfrentamento e, contra- Os cenários de risco e as fatalidades ditoriamente, na qual mais se identificam com- urbanas criados pelas ações antrópicas es- petências de âmbito municipal. A tensão per- tão predominantemente associados à forma manente, que se opera no espaço urbano entre de ocupação de terrenos, empreendimen- o interesse público e os interesses privados, tos regulares e aos assentamentos habita- tem se configurado como um dos aspectos de dos por população de baixa renda em áreas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 223 Pedro Roberto Jacobi invadidas. Nas cidades brasileiras, muitas As autoridades públicas explicam tais tra- pessoas moram em áreas inapropriadas e de gédias, geralmente, como as consequências grande risco, e a ocupação inadequada do so- de eventos climáticos incomuns, fora dos pa- lo, com a construção de moradias em terrenos drões previstos, e da suposta irracionalidade de encostas, em margens de cursos d´água, do comportamento da população que aceita áreas de risco de deslizamento, inundações morar em áreas sujeitas a evidentes riscos am- e inundações, é reflexo dessa ocupação bientais e não cuida adequadamente dos seus desordenada que reflete a falta de uma lógica lixos. Apesar da multiplicação das tragédias, de governança colaborativa. o Brasil investe muito pouco em prevenção. Os planos diretores das cidades preve- Segundo a Comissão Especial de Medidas Pre- em instrumentos para enfrentar os desafios ventivas e Saneadoras de Catástrofes Climá- de promover uma urbanização com mais jus- ticas da Câmara dos Deputados, uma análise tiça socioambiental; entretanto, o que se ob- do histórico de tragédias naturais no Brasil servam são desvirtuamentos constantes, e os mostra que pouco se fez para evitar a ação governos municipais, em sua maioria, cedem, da natureza. Entre os anos de 2000 e 2010, aos interesses econômicos e reforçam proces- pelo menos duas mil pessoas morreram em sos, estimulando a ocupação desordenada do acidentes climáticos. Somente em 2010 foram solo. Cabe ainda incluir a incapacidade das comunicadas à Secretaria Nacional de Defesa políticas urbanas na gestão do uso do solo, a Civil ocorrências em 883 municípios. Somado setorialidade na aplicação das políticas am- ao número de mortos registrado na enxurrada bientais com repercussão no planejamento dos de 2011 que devastou áreas de municípios da territórios. Diversos instrumentos permitiriam Região Serrana do Rio, o total de vítimas fatais identificar áreas vulneráveis e estratégias para sobe para quase três mil (Eco Debate – Cida- prevenção, mitigação e adaptação diante de dania e Meio Ambiente, 12/1/2012). eventos extremos em unidades tais como áre- Os maiores desafios da governança do as costeiras e bacias hidrográficas (Steinberg, espaço urbano são a integração intergoverna- 2006; Schult et al., 2010). mental, o aperfeiçoamento da gestão munici- Para Ribeiro (2011), o que se pode obser- pal, que demanda gestores qualificados apoia- var é que mais do que um fenômeno natural, os dos por uma administração que desenvolva desastres são consequência de décadas de des- planejamento estratégico dos municípios, para caso do poder público com o planejamento ur- que eles possam ter uma visão de longo prazo bano e com as políticas setoriais relacionadas, e uma gestão baseada mais na prevenção do e as cidades brasileiras apresentam a marca da que na ação emergencial e curativa. desigualdade até na distribuição social dos riscos decorrentes da precariedade urbana. No atual quadro urbano brasileiro, é inquestionável a necessidade de implementar Mas os desastres também mostram o políticas públicas orientadas para tornar as despreparo das autoridades para, em situações cidades social e ambientalmente sustentáveis, de calamidade, alertar, remover e garantir abri- como uma forma de se contrapor ao quadro de go à população diante de ameaças iminentes. deterioração crescente das condições de vida. 224 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? Dilemas socioambientais na RMSP – uma realidade emblemática em suas periferias a vulnerabilidade em suas dimensões ambiental e social. A dinâmica da urbanização pela expansão de áreas periféricas produziu um ambiente urbano segregado e altamente degradado, com A RMSP está localizada na região Sudeste do efeitos muito graves sobre a qualidade de vida Brasil e é o terceiro maior conglomerado urba- de sua população. Não há como negar a estrei- no do mundo, com 39 municípios, totalizando ta relação entre riscos urbanos e a questão do 2 uma área de 7.944 km . Essa região abriga uso e ocupação do solo, que, entre as questões uma população de 19.667.558 de habitantes determinantes das condições ambientais da ci- (IBGE, 2010), e mais de 11 milhões de pessoas dade, é aquela onde se delineiam os problemas vivem na cidade de São Paulo, em uma área de ambientais de maior dificuldade de enfrenta- 2 1.530 km . A taxa de crescimento na RMSP en- mento, notadamente os recursos hídricos. tre os anos de 2000 e 2010 foi de 0,96% ao A ausência de saneamento em muitos ano, e, apesar da diminuição do crescimento loteamentos e favelas, além de poluir direta- populacional na última década, a elevada pres- mente as águas dos rios e córregos, constitui são demográfica e a urbanização acelerada um problema de saúde e de baixa qualidade de desprovida de planejamento, avançando em vida para a população residente, assim como a direção aos mananciais, são fatores que contri- perda do valor das águas. buíram diretamente para a impermeabilização Uma análise dos principais indicadores do solo e a consequente redução da recarga da qualidade ambiental no município indica o do aquífero, além de sua poluição e redução quadro atual e os impactos sobre a população da disponibilidade dos mananciais superficiais da cidade. (Silva, Mello Junior e Porto, 2011). Inicialmente em relação à qualidade do A dinâmica de expansão da metrópole ar, segundo a Cetesb na Região Metropolitana tem provocado um processo de concentração de São Paulo, o padrão foi ultrapassado em 96 de população de baixa renda em suas áreas dias ao longo de 2011, contra 61 dias em 2010. periféricas, enquanto as áreas centrais são re- A poluição do ar é causada, principalmente, novadas e adensadas, a um preço crescente da pela grande emissão proveniente dos 9,2 mi- terra urbana. Esse padrão de ocupação promo- lhões de veículos automotores leves e pesados ve a expansão da mancha urbana junto às áre- e, secundariamente, por emissões originadas as de proteção ambiental, em especial às áreas em processos de cerca de 2000 indústrias com de proteção aos mananciais, definidas pela Lei alto potencial poluidor (Cetesb, 2011). Essa fro- 9866/97. A dificuldade para a implementação ta gigantesca de veículos constitui a principal de mecanismos efetivos para a proteção dessas fonte de emissão dos poluentes que, em deter- áreas faz com que estas sofram enorme pres- minadas condições meteorológicas, formam o são de ocupação. Esse processo de produção buraco na camada de ozônio, e cabe enfatizar do espaço metropolitano concentra e articula que se trata principalmente dos automóveis Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 225 Pedro Roberto Jacobi particulares. O resultado é o aumento de pes- sobre a qualidade das águas para abasteci- soas afetadas que demandam internação hos- mento público. Além da falta de esgoto trata- pitalar por enfermidades associadas à poluição do, os problemas decorrentes de conexões cru- atmosférica; e as respostas públicas têm sido zadas entre o sistema de esgoto e os sistemas muito limitadas e demoradas. Cabe, portanto, de drenagem natural e de águas pluviais se enfatizar o déficit de transporte público na re- refletem na grande quantidade de córregos e gião e o aumento dos níveis de congestiona- rios poluídos. Os principais problemas se veri- mento, não apenas na cidade de São Paulo, ficam junto às populações que ocupam favelas mas na região como um todo. A RMSP vive e loteamentos irregulares, na medida em que uma profunda crise de mobilidade, e alguns muito frequentemente os cursos d´água são indicadores permitem observar a verdadeira o local de lançamento de esgoto. A poluição dimensão do problema. Segundo Pesquisa Ori- hídrica na bacia hidrográfica está relacionada gem e Destino (apud Rolnik e Klintowitz, 2011), com o despejo de substâncias poluentes e resí- o tempo médio de viagem em transporte co- duos sólidos diretamente nos corpos d’água e letivo é 2,13 vezes superior ao do transporte nas galerias de drenagem de águas pluviais ou individual motorizado. E pelo fato de 74% das sobre as áreas impermeabilizadas e desmata- viagens motorizadas da população com renda das decorrentes das atividades urbanas. de até quatro salários mínimos serem feitas por Em São Paulo, no caso específico de modo coletivo, e que, na renda até 15 salários áreas de proteção aos mananciais (36% do mínimos, cai para 21%, a crise de mobilidade território municipal), a legislação de proteção afeta muito mais a população de renda mais ambiental, datada de 1977, impôs intensas baixa, que só tem essa opção. A lógica pre- restrições ao uso e ocupação do solo e gerou valecente tem sido no geral a intervenção na uma ocupação desordenada do solo, provo- ampliação física e modernização do sistema cando uma desvalorização no preço da terra. viário em detrimento da ampliação efetiva e Em 1997, é aprovada uma nova legislação es- modernização dos transportes coletivos (Rolnik tadual que busca compatibilizar as ações de e Klintowitz, 2011). proteção e preservação dos mananciais com Em relação ao abastecimento de água, a proteção ambiental, o uso e a ocupação do praticamente 100% da população que vive na solo e o desenvolvimento socioeconômico das área urbana da cidade é abastecida com um áreas protegidas, pelo estabelecimento de 3 volume por habitante/ano de 65m . Entretanto, diretrizes gerais para as áreas de proteção e o aumento do número de consumidores, assim recuperação que devem ser regulamentadas como a escassez de novas fontes e a queda na em todas as áreas de mananciais. Cerca de qualidade das águas dos mananciais revelam 48% da população que habita as áreas de uma crescente pressão sobre o abastecimento proteção aos mananciais nos dois maiores de água potável no município. A falta de cole- reservatórios residem em favelas e loteamen- ta de esgoto para mais de 20% da população, tos. Isso dá uma dimensão do problema e do somada à falta de rede coletora em áreas de comprometimento e deterioração dessas fon- mananciais, se constitui num fator de pressão tes hídricas. 226 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? A problemática das inundações tem urbanização (Silva e Galvão, 2011). A amplia- causado um quadro cada vez mais complexo ção da mancha urbana metropolitana tem pro- de problemas que causam prejuízos de ordem vocado a perda de cobertura florestal na RMSP, econômica, assim como danos sociais e de saú- notadamente nas áreas mais periféricas. En- de pública. As situações de risco e de pontos quanto a cidade consolidada apresentava ape- sujeitos a inundação e alagamentos aumen- nas 4% de seu território recoberto por áreas tam, e o número de episódios é alarmante, am- florestadas no ano 2000, na fronteira urbana pliando a situação de vulnerabilidades urbanas. esse índice era de 50% (Torres et al., 2007). Em 2012, segundo o IPT, estimam-se mais de A remoção da cobertura vegetal tem 500 pontos de inundação e alagamento que impactos ambientais: exposição de solos, pro- afetam a qualidade de vida urbana e outras dução de sedimentos, diminuição de áreas de 500 áreas sujeitas a deslizamentos.1 Outros infiltração de chuvas, aumento do escoamento componentes da vulnerabilidade urbana das superficial de água e da temperatura urbana. A populações de ocupações irregulares, na me- ocupação de áreas vulneráveis do ponto de vista dida em que há riscos associados a processos geológico e geotécnico com relevos de alta de- hidrológicos, envolvem principalmente os mo- clividade provoca problemas ambientais cumu- radores de assentamentos precários sujeitos lativos de grande magnitude, principalmente ao impacto direto das águas ou a processos deslizamentos, desabamentos e inundações. de erosão, o que reforça o perigo de pessoas A problemática dos resíduos sólidos tam- serem levadas por enxurradas durante eventos bém se inclui devido à escala de geração e à de chuvas intensas, além de perdas materiais e sua disposição em virtude de saturação e de danos às moradias. limitadas possibilidades de expansão, em virtu- Um aspecto que também não pode ser de da forte pressão urbana no seu entorno. O desconsiderado na metrópole é a perda de bio- principal efeito é a multiplicação de impactos diversidade e cobertura vegetal, e a perda de ambientais negativos associados aos locais de cobertura vegetal tem provocado alterações disposição inadequada de resíduos, o que di- microclimáticas associadas aos impactos plu- ficulta de forma significativa o avanço rumo a viais, responsáveis diretas das inundações na uma gestão sustentável. área urbana. A RMSP apresenta declínio de crescimento populacional anual desde a década de 1970, enquanto as áreas centrais perdem população, a periferia do município de São Paulo Desastres ambientais na RMSP e os municípios periféricos da RMSP apresentam um expressivo crescimento demográfico. Na RMSP, os eventos são relacionados a fenô- Entre 1986 e 2008, a área urbanizada da RMSP menos climáticos, os quais se agravam com a passou de 1.473,70 km² para 1.766,50, perdeu falta de planejamento e infraestrutura urba- 113,10 km² de áreas vegetadas, especialmente na presente nas cidades paulistas (Nobre et nas porções territoriais situadas nas franjas da al., 2010). A RMSP tem características físicas Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 227 Pedro Roberto Jacobi que contribuem para a ocorrência de inunda- no clima da região, tais como diminuição do ções, tais como elevado grau de pluviosidade nevoeiro no centro da cidade de São Paulo e e conformação geomorfológica dessa área. diminuição da garoa típica. Esse fenômeno, Os temporais são frequentes na primavera e, além de possivelmente incrementar a formação especialmente, no verão, e uma das principais de chuvas nos locais onde atuam (Ribeiro et al., consequências são os alagamentos e enchen- 2010), também prejudica a dispersão de po- tes “relâmpagos” que lideram as estatísticas luentes atmosféricos, podendo causar impacto como o segundo maior causador de perda de na saúde da população (Nobre et al., 2010). vida. A gravidade dos temporais depende, Estudos sobre o fenômeno de ilhas de ca- além de outros fatores, do tempo de ocorrên- lor na cidade de São Paulo apontam para dife- cia e da intensidade da chuva. Segundo Olivei- renças de até 10°C no gradiente de temperatu- ra (2011), observa-se um aumento da ocorrên- ra, podendo se observar temperaturas mais ele- cia de eventos extremos entre 70 e 90mm nos vadas nas regiões centrais e mais densamente últimos 20 anos. urbanizadas e as mais baixas temperaturas na Por outro lado, o aumento da frota de periferia serrana e em locais próximos a reser- veículos em circulação na RMSP e a expansão vatórios de água (Sepe e Gomes, 2008). Nesse das vias em áreas de várzea para atender ao sentido, Ribeiro et al. (2010) indicam que, na aumento de tráfego tendem a aumentar o grau maioria dos episódios de chuva, a maior con- de veículos e pessoas expostas aos riscos de centração pluvial formou-se sobre a cidade de inundações, o que implica incremento de vul- São Paulo e, em alguns casos, só ocorreu nos nerabilidade (Nobre et al., 2010). bairro centrais, ou seja, em locais onde a tem- Além de as inundações explicitarem a peratura é mais alta devido ao fenômeno da falta de planejamento de uso e ocupação do ilha de calor. Outro ponto relevante a ser con- solo e o despreparo das autoridades, não se siderado diz respeito ao alcance da brisa marí- pode desconsiderar os agravantes associados tima ao centro da cidade. Assim, possivelmen- às desigualdades regionais, sociais, e à falta de te, a interação entre as brisas e a ilha de calor possibilidades de acesso à moradia adequada deve aumentar o transporte de vapor de água, que se torna vetor da multiplicação de tragé- incrementando a formação de chuvas. dias urbanas recorrentes, causadas pelo des- Desse modo, na RMSP, a incidência de controle do processo histórico de adensamento fortes chuvas provoca deslizamentos de en- urbano não devidamente planejado e controla- costas e inundações em terrenos de baixadas do pelos poderes competentes, o que implica fluviais, o que, associado ao processo histó- desafios em sua gestão (Nobre et al., 2010). rico de adensamento urbano não planejado, Estudos mostram também que, devido ao agrava ainda mais os impactos. Assim, ações desenvolvimento urbano acelerado na região antrópicas – desmatamento, má disposição a partir dos anos 1950, junto com condições de resíduos sólidos, compactação e imper- de tráfego, falta de vegetação e intensa polui- meabilização do solo – levam a modificações ção do ar, iniciou-se processo de formação de nas condições do solo, elevando sua susceti- ilhas de calor, que têm provocado alterações bilidade aos processos naturais, como erosão, 228 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? deslizamentos, assoreamento e inundações (Maricato et al., 2010). Em estudo realizado em 2011, o IPT ma- Dilemas socioambientais e a resposta pública peou 407 áreas na cidade de São Paulo e identificou 1.179 setores de risco, sendo 57% corres- Apesar de existir um quadro que preocupa pela pondentes a áreas de encosta e 43% à margem sua complexidade e pelas dificuldades de gerar de córregos.2 Desse total, 14% apresentou pro- respostas mais efetivas, observam-se algumas babilidade muito alta de ocorrência de proces- ações do poder público na formulação e im- sos destrutivos, 38% apresentou probabilidade plementação de políticas, planos, programas e alta, enquanto os setores com probabilida- projetos que enfatizam a neutralização e redu- de média e baixa de ocorrência de processos ção da degradação ambiental. destrutivos totalizaram 48%. Ainda, nas áreas No tangente ao transporte público, a de risco identificadas no estudo, foram conta- expansão do sistema metroviário e a moder- bilizadas 105.816 moradias, das quais 28.933 nização do sistema ferroviário na região pra- foram classificadas em situação de risco muito ticamente estagnaram. No caso do Metrô, nos alto e alto. últimos 18 anos, foram estendidos apenas 27 A obsolescência de todo o sistema de quilômetros de trilhos, totalizando menos de drenagem urbana diante do crescimento da 75 km. Quanto ao controle de emissão de po- cidade, o assoreamento dos rios e córregos, luentes, a cidade de São Paulo implantou uma problemas pontuais de drenagem, somados política desde 2008, mas, apesar de seu impac- ao pouco controle e monitoramento de áreas to como instrumento de controle, a poluição de risco, contribuem para eventos que causam está mais presente no ar devido aos aumentos prejuízos para toda a sociedade. da frota de carros e do trânsito – mais carros Segundo Maricato et al. (2010), os ce- por mais tempo nas ruas. nários de risco e as fatalidades urbanas, re- A retirada de vegetação e a impermeabi- gistradas todos os anos na RMSP, estão pre- lização do solo nas cidades reduzem drastica- dominantemente associados ao descaso ou mente a infiltração das águas de chuva no solo. imprudência na forma de ocupação dos ter- Os problemas de inundações, alagamen- renos, tanto em empreendimentos regulares, tos e deslizamentos, embora decorram das como em áreas invadidas. Nesse sentido, fica características geomorfológicas e climáticas, demonstrada a importância do poder público, na macrometrópole de São Paulo estão muito no que tange o controle e as restrições de uso relacionados com o padrão de crescimento e e ocupação do solo, diminuindo a vulnerabili- de ocupação urbana pouco controlado. Nesse dade a desastres naturais. sentido, medidas estruturais realizadas com Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 229 Pedro Roberto Jacobi objetivo de mitigar o problema são geralmente Em 1998, foi criado o Plano Diretor de relacionadas com infraestrutura urbana ou com Macrodrenagem da bacia hidrográfica do Alto zoneamento urbano. Têm sido implementa- Tietê, objetivando combater as enchentes da das ações em nível estadual e dos municípios. RMSP com a construção de piscinões, rebai- Técnicos e pesquisadores indicam ser necessá- xamento da calha do rio Tietê, canalização de ria uma política de ocupação do solo que não afluentes e construção de barragens. Os reser- agrave a questão da impermeabilização, e di- vatórios de controle de cheias, os “piscinões”, versas técnicas de intervenção de uso do solo alteram a forma de projetar o manejo das podem minimizar o impacto da impermeabili- águas pluviais, buscando retardar o escoamen- zação. A impermeabilização adquiriu tal dimen- to das águas durante os episódios de chuvas são que mesmo a aplicação de medidas com- intensas. Entretanto, tratam-se os sintomas e pensatórias pode reverter totalmente o efeito não as causas. Os 45 piscinões na RMSP, sen- negativo da impermeabilização. Cabe registrar do 24 de responsabilidade estadual e 21 sob que as obras de drenagem trabalham com um a gestão de prefeituras, sejam superficiais ou determinado critério de segurança em relação subterrâneos, cumprem uma das funções das ao nível de chuva. Mas se houver um volume várzeas – amortecimento do pico das cheias – maior de chuvas do que a previsão adotada no liberando de forma controlada, aos poucos, as projeto, surgem problemas de gestão. E como águas após o final da chuva. Diferentemente no geral se projeta supondo um determinado das várzeas, não podem ser deixados sem ma- nível de ocupação do solo e da bacia, o incre- nutenção, pois rapidamente viram criadouros mento de impermeabilização tornará as obras de mosquitos, depósitos de lixo carreado pela de drenagem cada vez mais insuficientes. chuva. Os piscinões sem manutenção transfor- Desde a década de 1960, ações voltadas mam-se de solução em um novo problema de para o controle de inundações têm sido desen- poluição difusa, podem, inclusive, assorear e, volvidas na RMSP. Tais ações ganharam mais ao invés de conter as cheias, provocar inunda- força na década de 1980 por meio de diversos ções (Rutkowski et al., 2010). estudos nos quais as inundações eram vistas Além dessas medidas estruturais – pis- como uma questão a ser tratada intersetorial- cinões, barragens, rebaixamento e retificação mente, com foco no uso do solo, considerando de calhas –, as soluções não estruturais ou as políticas de transporte, habitacional, de con- preventivas estão sendo introduzidas, como o trole de poluição, de esgotos e de preservação Sistema de Alerta a Inundações de São Paulo, dos recursos naturais. Os resultados têm sido baseado num sistema de monitoramento em pouco satisfatórios, apesar das medidas de re- tempo real para processar modelos de previ- baixamento de nível de água e desobstrução são meteorológica e hidrológica que produzem de rios e córregos e de ações emergenciais (mi- alertas em condições críticas. crodrenagem e planos de drenagem), de médio Apesar da alta probabilidade de en- e longo prazo, prevendo novamente ações vol- chentes na RMSP, a mitigação dos impactos tadas para o disciplinamento do uso e ocupa- desses eventos depende de uma densa re- ção do solo. de de monitoramento de superfície, radares 230 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? meteorológicos com maior sensibilidade para interesse regional do Estado de São Paulo. As a detecção dos estágios iniciais de formação Áreas de Proteção e Recuperação aos Manan- dos sistemas precipitantes e, ainda, a utilização ciais – APRM são territorialmente delimitadas de modelos numéricos de altíssima resolução por áreas de drenagem de corpos de água espacial para uma maior antecipação desses superficiais utilizados para o abastecimento eventos (Pereira et al., 2004). público, sendo assim, sua preservação é impor- Em 1995, deu-se início a um grande tante e vital. A nova legislação enfatiza a im- projeto de despoluição dos corpos de água da portância dos mananciais para abastecimento RMSP, o Projeto Tietê, atualmente na terceira público para a sociedade, e as atividades rea- etapa, mas aspectos como a descontinuidade lizadas nessas áreas devem ser controladas, de das obras durante as sucessões administrati- maneira a minimizar os riscos ambientais de vas, o descaso com o saneamento básico e a eventos que levam à poluição e possível con- falta de transparência na gestão do programa taminação dos reservatórios. A Lei dos Manan- configuram uma realidade que protela a solu- ciais agrega os instrumentos relativos ao uso e ção de um dos maiores problemas da região, ocupação do solo tendo uma visão de gestão o atendimento da população com esgoto cole- descentralizada e participativa. Uma nova pro- tado e seu tratamento. Apesar de 99,42% da posta de zoneamento também surge nessa Lei população da RMSP estar abastecida por água com a criação de áreas de intervenção, quais potável, segundo dados de 2008 da Cetesb, sejam: áreas de restrição à ocupação; áreas de somente 84% dos esgotos gerados são coleta- ocupação dirigida; e as áreas de recuperação dos, e 44% sofrem algum tipo de tratamento. ambiental. Cada área de intervenção permite a Avalia-se que 30% da carga poluidora total é realização de atividades antrópicas de acordo lançada diretamente nos corpos d´água. com sua fragilidade ambiental. O zoneamen- Além dos programas estruturais, algu- to dessas áreas demanda fiscalização do uso mas políticas públicas estão estreitamente do solo e medidas que impeçam a invasão de relacionadas com a questão das inundações, áreas de restrição à ocupação, porém, a ausên- notadamente a legislação sobre proteção aos cia de políticas públicas habitacionais muitas mananciais, que tem como principal instrumen- vezes induz a ocupação clandestina das áreas to o zoneamento urbano em áreas de manan- de preservação aos mananciais. O que tem sido ciais – áreas de vulnerabilidade ambiental onde encontrado na RMSP é a insuficiência no con- há invasões urbanas recorrentes; e os planos de trole dessas ocupações, que são mais intensas bacia, que tratam, dentre outras questões, de em áreas de mananciais que eu outras regiões recursos hídricos na bacia hidrográfica, de me- da RMSP (CBH-AT, 2007). tas e ações para a drenagem urbana. No caso da RMSP, o instrumento mais Tendo incorporado os princípios das le- importante é a lei específica para cada APRM, gislações estaduais e federais sobre recursos também prevista na Lei 9.866/97. Essas leis hídricos, a Lei dos Mananciais (Lei Estadual devem se basear nas diretrizes da referida 9.866/97) estabelece diretrizes e normas para Lei, considerando, porém, as peculiaridades a proteção e recuperação de mananciais de de cada bacia hidrográfica. A complexidade Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 231 Pedro Roberto Jacobi e diversidade do sistema socioambiental na e outros seis municípios compram dela água RMSP entre as bacias de drenagem dos diver- por atacado. Os principais desafios hídricos sos sistemas produtores de água justificam a na RMSP são a escassez de água, a expansão importância de especificar para cada APRM urbana e a pobreza, causa e consequência da quais as ações mais necessárias, adequadas, poluição hídrica, além dos problemas de ma- eficazes; e de que maneira as ações, interven- nejo das águas pluviais e os altos níveis de ções e o controle das atividades antrópicas perda de receita por desperdício de água potá- devem ser efetuados, considerando em cada vel (Rutkowski et al., 2010). Os mananciais da bacia todos os aspectos de suas característi- RMSP e do município de São Paulo estão su- cas ambientais. jeitos a inúmeros impactos, aumentando a sua Embora os problemas decorram de sua vulnerabilidade e risco para a saúde da popu- aplicação, principalmente pela falta de uma ar- lação. Os problemas associados com o estresse ticulação com os poderes públicos municipais hídrico na RMSP, se associam à dependência da integrantes da Região Metropolitana de São água de bacias colindantes em virtude da in- Paulo, o sistema normativo permitiu aliar uma suficiência da bacia do Alto Tietê para garantir estratégia de proteção ambiental, com caráter o abastecimento. Além da escassez de água, a preventivo, assim como a cooperação intergo- expansão urbana e a pobreza tem se configura- vernamental em matéria de uso do solo, em do como fatores de poluição hídrica além dos uma convergência de competências estadual e problemas de manejo de águas pluviais e dos municipal. Sua baixa efetividade criou as condi- altos níveis de perda de receita por desperdício ções para revisão e formulação de nova legis- de água potável (Rutkowski et al., 2010). Se- lação estadual de proteção aos mananciais – a gundo a FUSP (2009), o total de água da bacia Lei 9.866/97 – que passou a incorporar princí- excede, em muito, sua própria produção hídri- pios do sistema de gerenciamento de recursos ca. A produção de água para abastecimento hídricos em sua estratégia de execução. Seu público está hoje em 67,7 m3/s, e 31 m3/s são diferencial é que as medidas específicas apli- importados da Bacia do rio Piracicaba. cáveis às áreas de proteção e recuperação de mananciais são definidas de forma descentralizada nos respectivos planos de desenvolvimento e proteção ambiental. A ênfase é em medidas voltadas ao disciplinamento da qualidade ambiental, com foco em restrição à ocupação, ocupa ção dirigida e recuperação ambiental Caminhos para a sustentabilidade urbana – o enfrentamento sociopolítico dos dilemas socioambientais (Silva e Porto, 2003). Trinta e cinco municípios da bacia do Alto A reflexão sobre as práticas sociais, em um Tietê, 29 representando 79% da população ur- contexto urbano marcado pela degrada- bana da RMSP, recebem seus sistemas de água ção permanente do meio ambiente e do seu e esgoto diretamente da Companhia de Sanea- ecossistema, não pode omitir a análise do mento Básico Estado de São Paulo (Sabesp) determinante do processo, nem os atores 232 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? envolvidos e as formas de organização social diante do aumento na intensidade das chu- que aumentam o poder das ações alternativas vas. Se o processo de expansão urbana man- de um novo desenvolvimento, em uma pers- tiver continuidade como o padrão atual, com a pectiva de sustentabilidade. ocupação dos anéis periféricos cada vez mais A preocupação com o tema do desen- distantes, os arruamentos penetrararão em volvimento sustentável introduz não apenas áreas de solo frágeis, com declividade mais a questão controversa sobre a capacidade de acentuada e com condições impróprias para ur- suporte, mas também o alcance e limites das banização, onde geralmente ocorre perda signi- ações para reduzir o impacto dos danos na vida ficativa de vegetação, o que potencializa novas urbana cotidiana e as respostas baseadas na situações de risco. A necessária reflexão sobre mudança do modus operandi e do que se con- as possibilidades de tornar nossas cidades mais vencionou denominar business as usual. sustentáveis mostra o desafio teórico colocado No atual quadro urbano brasileiro, é in- em relação à formulação de propostas que con- questionável a necessidade de implementar tribuam para alcançar objetivos de sustentabi- políticas públicas orientadas para tornar as lidade nas cidades. cidades social e ambientalmente sustentáveis Coloca-se para a RMSP, e portanto pa- como uma forma de se contrapor ao quadro de ra os 39 municípios, a necessidade de criar as deterioração crescente das condições de vida. condições para assegurar uma qualidade de vi- Uma agenda para a sustentabilidade urbana da que possa ser considerada aceitável, não in- ampliaria o nível de consciência ambiental terferindo negativamente no meio ambiente e estimulando a população a participar mais in- agindo preventivamente para evitar a continui- tensamente nos processos decisórios como um dade do nível de degradação, notadamente nas meio de fortalecer a sua corresponsabilização regiões habitadas pelos setores mais carentes. no monitoramento dos agentes responsáveis Sua inclusão na esfera da sustentabili- pela degradação socioambiental. Torna-se im- dade ambiental implica uma transformação portante observar que, segundo estudo (Nobre paradigmática, constituindo-se num elemento et al., 2010), a RMSP poderá ter um aumento complementar para atingir um desenvolvi- de temperatura entre 2ºC e 3ºC neste século, mento econômico compatível com a busca de e isso poderá provocar uma mudança signifi- equidade. Também é importante que se reforce cativa no regime de chuvas, o que dobraria o a importância de uma gestão compartilhada, número de dias com chuvas intensas. Como com ênfase na corresponsabilização na gestão consequência, inundações serão cada vez mais do espaço público e na qualidade de vida ur- frequentes e com crescente abrangência terri- bana, e que se estimulem cada vez mais ações torial na capital paulista. O estudo alerta que, preventivas, não descuidando da necessidade somente na cidade de São Paulo, há cerca de de lidar com as ações corretivas. 1,6 milhão de pessoas morando em favelas, A participação assume um papel cada concentradas principalmente em áreas de ris- vez mais relevante na denúncia das contradi- co de escorregamento ou inundações, pessoas ções entre os interesses privados e os interes- essas que sofrerão os impactos mais intensos ses públicos, entre os bens públicos e os bens Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 233 Pedro Roberto Jacobi privados, entre uma cultura da desesperança equivocado de intervenções sobre o meio am- que busca benefício atual e desvaloriza o futu- biente que potencializa os efeitos de eventos ro diante da construção de uma cidadania am- extremos. As consequências do desrespeito ao biental que supere a crise de valores e identida- meio ambiente nas ocupações urbanas são no- de e proponha outra, com base em valores de tórias. E o principal desafio que se apresenta sustentabilidade. Isso potencializa a ampliação é que, como as cidades brasileiras não conse- da consciência ambiental e sua tradução em guem acompanhar os problemas gerados pelo ações efetivas de uma população organizada volume das chuvas atuais, é necessário repen- e informada de maneira correta, preparada pa- sar a governança do espaço urbano tanto na ra conhecer, entender, reclamar seus direitos e prevenção e alerta de desastres, como na sua também de exercer sua responsabilidade. atuação pós-desastre. Também é necessário, A modernização dos instrumentos requer sobretudo, se prevenir contra propostas que uma engenharia socioinstitucional complexa abram caminho para uma degradação ainda para garantir condições de acesso dos diver- mais intensa de áreas frágeis e de relevância sos atores sociais envolvidos, notadamente dos ecológica para o equilíbrio dos sistemas na- grupos sociais mais vulneráveis. turais. Essa prevenção e ação responsável só Trata-se, portanto, de reforçar políticas poderão ser alcançadas em uma perspectiva de socioambientais que se articulem com as ou- atuação compartilhada e interescalar entre os tras esferas governamentais e possibilitem a diferentes setores da sociedade (Berkes, 2002). transversalidade, reforçando a necessidade de A problemática ambiental urbana repre- formular políticas ambientais pautadas pela senta, por um lado, um tema muito propício dimensão dos problemas em nível metropolita- para aprofundar a reflexão em torno do restrito no. Mas também cabe enfatizar a contribuição impacto das práticas de resistência e de ex- que a área ambiental deve ter na articulação pressão de demandas da população em áreas com políticas de emprego, renda e desenvolvi- mais afetadas pelos constantes e crescentes mento econômico, reforçando principalmente agravos ambientais. a importância de uma gestão compartilhada Por outro, representa a possibilidade de com ênfase na coresponsabilização na gestão abertura de estimulantes espaços para imple- do espaço público e na qualidade de vida ur- mentar alternativas diversificadas de democra- bana, o que se busca através da constituição cia participativa, notadamente a garantia do de consórcios intermunicipais. acesso à informação e consolidação de canais Na Região Metropolitana de São Paulo, é abertos para uma participação plural. inquestionável a necessidade de implementar Sob o foco do grau de exposição dos gru- políticas públicas orientadas para tornar a cida- pos sociais aos riscos ambientais, a realidade de social e ambientalmente sustentável como socioambiental na RMSP configura um quadro forma de se contrapor ao quadro de deteriora- no qual a continuidade da omissão e/ou insu- ção crescente das condições de vida. ficiência e/ou impropriedade das ações públi- Segundo Ribeiro (2011), a reprodução cas no tratamento dos gravíssimos problemas das cidades tende a perpetuar um modelo associados à ocorrência de eventos extremos 234 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? tenderá a ampliar as tragédias em sua intensi- assinaram documentos centrados no plane- dade, frequência e letalidade. Isso implica rom- jamento da ação local pelo clima. Em 2010, per com o círculo vicioso que tem como conse- prefeitos assinaram o Pacto Global das Ci- quência direta a incapacidade e/ou descompro- dades sobre Clima e se comprometeram com misso para se tomar decisões que reduzem ou ações e responsabilidades voluntárias pelo eliminem os erros essenciais que estão na ori- clima. Em 2011, os prefeitos assinaram a Car- gem desses graves fenômenos. Nesse sentido, ta de Adaptação de Durban, estabelecendo coloca-se a necessidade de fortalecer políticas assim compromissos com a ação para adap- públicas que, sob a égide da justiça ambiental, tação às mudanças climáticas. promovam estratégias de redução de risco, e São exemplos de como as cidades podem de a construção de infraestrutura ser orientada enfrentar questões estratégicas em direção à a partir de uma abordagem preventiva, cuja sustentabilidade local, os governos locais que base é a participação social, o empoderamento conseguem promover ações sustentáveis a par- das comunidades, a cooperação intersetorial e tir de premissas articuladoras da inovação, com interinstitucional e a colaboração entre os seto- a superação das lógicas recorrentes pautadas res público e privado. na manutenção dos padrões tradicionais de Na Conferência Rio+20, apesar da falta uso e ocupação do solo, da ênfase em modelos de definições e metas pelos governos quanto urbanísticos centrados no transporte individual, aos principais temas – o desenvolvimento de e com expansão de mancha urbana que se ex- uma economia verde e inclusiva, o estabeleci- pande horizontalmente destruindo áreas de mento de uma arquitetura institucional global proteção ambiental. dotada de competências e poderes para garan- Após a conferência de Johannesburgo tir a salvaguarda das condições de vida huma- em 2002, os governos locais comprometeram- na e os serviços dos ecossistemas –, foi enfati- -se em ir mais adiante, além do planejamento zada a importância da inovação na governança do desenvolvimento, e abordar fatores especí- dos governos locais e da disseminação das ficos que impedem que muitas cidades e co- “boas práticas” desenvolvidas por algumas ci- munidades alcancem a sustentabilidade: temas dades. Nessa direção, as cidades têm mostrado como pobreza, injustiça, exclusão e conflito; respostas e abordado em alguns casos ques- ambientes insalubres e insegurança. tões de futuro que revelam um compromisso As ênfases propostas para que as cida- com a sustentabilidade local, um dos maiores des avançassem na direção da sustentabilida- desafios do século XXI. de focaram nos conceitos de economias locais Há mais de vinte anos, a Agenda 21 foi adotada pelos Chefes de Estado e gover- viáveis, cidades ecoeficientes e comunidades e cidades resilientes. nos nacionais na Cúpula da Terra no Rio, por Quando se analisam algumas experiên- algu mas ONGs globais, como é o caso do cias locais que avançaram quanto à sustenta- ICLEI – Associação Internacional Governos bilidade, o que se observa é que os governos Locais pela Sustentabilidade (2012), e, mais locais se convertem em incubadoras de inova- recentemente, por algumas coa lizões que ção e implementação em escala, agentes de Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 235 Pedro Roberto Jacobi mudança, e esfera de governo mais próxima lógica que prevalece nos sistemas de limpeza das pessoas, podendo enfrentar os problemas urbana – redução do lixo, reciclagem e coleta globais com soluções sistêmicas localizadas seletiva, políticas de destinação de resíduos. A (ICLEI, 2012). Nesse sentido, as cidades podem palavra-chave “qualidade de vida”, mais in- ter um rol decisivo a partir do fortalecimento ternalizada pelas políticas públicas, tem como de modelos de cooperação descentralizada; do elemento determinante a intersetorialidade apoio à criação de apropriados quadros regu- das ações para criar condições de implementa- latórios locais que permitam soluções urbanas ção de políticas orientadas para a sustentabi- integradas: fortalecer o desenvolvimento de lidade urbana, assim diminuindo os riscos am- ações pautadas pela resiliência e adaptação bientais e a pressão sobre os recursos naturais. às mudanças climáticas; criar novos mercados O principal desafio nos dias atuais é que para economias urbanas verdes inclusivas; as cidades da RMSP e das demais metrópoles promover rupturas estruturais na lógica da mo- brasileiras criem condições para assegurar uma bilidade urbana, do fortalecimento de redes e qualidade de vida que possa ser considerada associações que conectam os líderes locais, de aceitável, não interferindo negativamente no modo a facilitar o intercâmbio de conhecimen- meio ambiente e agindo preventivamente pa- tos, capacitar e promover a ação colaborativa; ra evitar a continuidade do nível de degrada- e criar oportunidades para conduzir a transição ção, notadamente nas regiões habitadas pelos para uma economia urbana verde vigorosa e setores mais carentes. Destaque-se também inclusiva, que aborda a necessidade de redução a importância de uma gestão compartilhada da pobreza e a justiça ambiental. com ênfase na corresponsabilização na gestão No caso da RMSP, a ênfase deve ser cada do espaço público e na qualidade de vida ur- vez mais na intersetorialidade das políticas no bana, e o estímulo crescente às ações preven- âmbito municipal e regional, em que a dimen- tivas, com definição de políticas que avancem são socioambiental estimula uma perspectiva na direção da expansão do transporte público de sustentabilidade e implica mudanças na em âmbito metropolitano, reduzindo o tempo cultura política urbana, enfatizando lógicas de deslocamentos, de utilização de fontes de cooperativas de governança e fortalecendo a energia renováveis. Também se deve atentar participação pública. para as mudanças necessárias, tanto no plano Os temas urbanos, que por excelência da construção e de infraestruturas diante de estão relacionados com o da sustentabili- um quadro que configura mudanças climáticas; dade, são as opções de transporte, planeja- e a promoção de formas combinadas de ges- mento e uso do solo, e acesso aos serviços tão dos resíduos sólidos. A RMSP, assim como de saneamento e infraestrutura básica, todos as demais metrópoles brasileiras, se confronta vinculados com a potencialização de riscos com o desafio de promover economias de bai- ambientais. Isso impõe mudanças profundas xo carbono, e isso representa a adesão a um na questão da ocupação indevida de áreas de novo paradigma que promova a mitigação e a risco, na priorização do transporte público e na adaptação às mudanças climáticas. 236 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 219-239, jan/jun 2013 São Paulo metrópole insustentável – como superar esta realidade? À guisa de conclusão, destaca-se a ensino, em seus diversos níveis, assumirem a importância de multiplicar ações pautadas liderança no compartilhamento de melhores pelo conceito de aprendizagem social, que práticas e ações propositivas para a sustenta- afirmam a importância de as instituições de bilidade metropolitana. Pedro Roberto Jacobi Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. Coordenador do Laboratório de Governança Ambiental (GovAmb/ PROCAM/IEE/USP). Editor da Revista Ambiente e Sociedade. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Notas (1) Informação ob da diretamente de técnico do IPT em outubro de 2012. (2) Informação ob da de técnico do IPT em outubro de 2012. Referências BECK, U. (1992). Risk Society. 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A pesquisa realizada fundamentou-se em contribuições da ecologia da paisagem e da morfologia urbana e se desenvolveu em três escalas complementares de análise, do suporte geo-biofisico ao suporte construído, da escala regional ao lote urbano. Defende-se que os espaços livres localizados nas encostas são fundamentais para fortalecer a proteção das florestas e a capacidade de suporte, de amortecimento e de adaptação a impactos e transformações nas encostas urbanas, contribuindo para fortalecer a resiliência e a sustentabilidade destes sistemas paisagísticos. Abstract The occupation of urban hillsides in the Southeast, Northeast and South regions of Brazil has direct implications for the resilience and sustainability of the urban landscape in these regions. This article reflects on the current situation of the urban occupation of hillsides in some cities of these regions, focusing on Rio de Janeiro, and identifies morphological patterns, underlying processes and the logics that originated them. The research was based on contributions from landscape ecology and urban morphology, and unfolded in three complementary scales of analysis, from geo-biophysical support to the built support, from regional scale to the urban lot. It is argued that the open spaces located on the slopes are critical to strengthen the protection of forests, and the capacity to support, buffer and adapt to impacts and transformations on urban slopes, helping to strengthen the resilience and sustainability of these landscape systems. Palavras-chave: paisagem; ocupação de encostas; espaços livres; resiliência; sustentabilidade. Keywords: landscape; hillside settlement; open spaces; resilience; sustainability. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Mônica Bahia Schlee Introdução é uma estratégia fundamental para alcançar a sustentabilidade. Os danos ambientais muitas vezes ocorrem de forma abrupta e não são O desenvolvimento sustentável tem sido objeto reversíveis. Mas, como apontaram Arrow et de discussão em todo o mundo desde a déca- al. (1995), as mudanças bruscas podem ser da de 1980. Desde que o termo “sustentabili- antecipadas se os efeitos dinâmicos das trans- dade” foi adotado pela Comissão Brundtland formações forem considerados e se medidas (Brundtland e Khalid, 1987), críticas têm de- adequadas de proteção das paisagens forem safiado sua ênfase no crescimento econômico, tomadas. A compreensão do comportamen- progresso tecnológico e economia de energia to de sistemas sociais e ecológicos e de como como meio de perpetuar a hegemonia capita- esses respondem a transformações e perturba- lista (Arrow et al., 1995; Acselrad, 1999 e 2010; ções é fundamental para a construção de es- Ehrlich et al., 2012). Como argumentado por tratégias adequadas de gestão e manutenção Acselrad (1999, 2010), Folke (2006), Holdren da resiliência, da capacidade regenerativa e do (2008) e Ehrlich et al. (2012), o desenvolvimen- desenvolvimento sustentável em bacias hidro- to sustentável deveria buscar a compatibiliza- gráficas urbanas. Em outras palavras, as fases ção entre desenvolvimento econômico, mode- de avaliação e monitoramento são etapas fun- rado e equânime, e a promoção da saúde, in- damentais para a compreensão das condições tegridade e justiça socioambientais para o bem ambientais e socioculturais e dos limites de re- comum das gerações presentes e futuras. siliência das paisagens. As lógicas do crescimento econômico e O planejamento para a sustentabilidade, da segregação espacial, que fomentam e ex- como argumentado por Forman (1995), re- pressam as desigualdades sociais e ambien- quer o reconhecimento da estrutura, da fun- tais, ainda estão indelevelmente impressas nas ção, da dinâmica e do comportamento tran- políticas e práticas governamentais em todo o sitório dos sistemas paisagísticos, bem como mundo e revelam-se de diferentes maneiras lo- da interação entre as atividades humanas e a calmente. Nas cidades brasileiras, e em especial resiliência das paisagens, como fatores inter- no Rio de Janeiro, essa questão merece uma dependentes. Mais recentemente, a interação atenção particular. Pressões imobiliárias e de entre a resiliência e a sustentabilidade das uso da terra sobre as franjas da floresta tropi- paisagens tem sido sublinhada por diversos cal urbana e os corpos d'água situados sobre autores (Holling, 2001; Leitão e Ahern, 2002; as encostas da cidade são contínuas, especial- Folke, 2006; Ahern, 2010 e 2011; Ehrlich et mente no Maciço da Tijuca, onde se localiza o al., 2012, entre outros). Resiliência, segundo Parque Nacional da Tijuca (PNT), dividido em esses autores, é a capacidade de um sistema quatro setores não contíguos. para absorver impactos e adaptar-se diante Este artigo enfoca a dimensão física da das transformações, e a capacidade de recupe- sustentabilidade, relativa à paisagem urbana, rar-se ou reorganizar-se a fim de manter sua e argumenta que entender a realidade urbana, estrutura, função e identidade. Em relação como argumentado por Johnson e Hill (2002), a sistemas paisagísticos, a resiliência alude a 242 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas dinâmicas não lineares e se baseia na inter- dissociações entre o ambiente natural e o am- -relação entre sistemas sociais e ambientais biente construído. (Folke, 2006; Ehrlich et al., 2012). Para Arrow A metodologia aplicada e desenvolvida et al. (1995), Holling (2001), Folke (2006) e nesta pesquisa (Schlee, 2011) fundamentou- Wang (2012), um aspecto fundamental na -se em contribuições da ecologia da paisa- avaliação da resiliência é a compreensão das gem e da morfologia urbana (Mcharg, 1969; condições e funções dos sistemas de paisagem Forman, 1986 e 1995; Turner, 1989; Turner e de seus desempenhos, limites e dinâmicas. A e Gardner, 2001; Weins, 2005; Kostof, 1991; diversidade e a heterogeneidade dos sistemas Lamas, 1992; Panerai et al., 1999; Geoheco, paisagísticos urbanos, tanto espacial quanto 2000; Tangari, 1999; Afonso, 1999) e se de- sociocultural, são, de acordo com Pickett et senvolveu em três escalas complementares de al. (2004), Colding (2007) and Saavedra et al. análise do suporte geobiofisico e do suporte (2012), elementos que contribuem diretamen- construído, a partir de uma leitura sistêmica e te para garantir e fortalecer a resiliência desses matricial. Dessa forma, as estratégias metodo- sistemas. Desse modo, tanto o planejamento lógicas se estruturaram em três níveis sob três como a gestão em busca de cidades resilientes eixos de análise: 1) morfologia da paisagem; e sustentáveis devem integrar processos e fun- 2) processos e agentes de formação e trans- ções ecológicos, culturais e socioeconômicos. formação; 3) legislação. A dimensão espacial urbana da susten- O primeiro nível de análise correspondeu tabilidade requer a compreensão dos proces- à contextualização do Rio de Janeiro, em rela- sos e as relações entre os ecossistemas (ou ção à região onde se localiza, em comparação sistemas naturais) e os sistemas socioculturais a outras quatro cidades brasileiras − Florianó- em diferentes escalas ao longo do tempo. Re- polis, Vitória, São Paulo e Belo Horizonte, à conhecer a importância da configuração, da luz dos aspectos geobiofísicos, paisagísticos, transformação e da interação transescalar da de regulação da ocupação e de proteção das paisagem é fundamental para o planejamento encostas. O segundo nível, à caracterização da sustentabilidade das paisagens. Como será da ocupação nos maciços e morros isolados demonstrado neste trabalho, as etapas de aná- no contexto intraurbano do Rio de Janeiro. lise, avaliação e monitoramento da paisagem O terceiro nível, à ocupação das encostas no são etapas-chave e devem ser executadas em Maciço da Tijuca, com foco em três áreas de diferentes escalas, usando métricas em termos maior detalhamento, localizadas em áreas su- comparativos, de modo a fornecer uma com- jeitas a intensa pressão urbana decorrente da preensão sólida sobre os padrões, processos progressiva valorização imobiliária em bacias e relações de perturbação e de resiliência. O hidrográficas localizadas respectivamente em cruzamento de investigações biofísicas, paisa- suas vertentes sul, leste e oeste. As sínteses fo- gísticas e socioculturais levado a cabo nesta ram geradas pelas conexões entre os quadros pesquisa revela os efeitos dos padrões atuais e matrizes de análise e o mapeamento reali- e processos em curso de desenvolvimento ur- zado em aplicativo de sistema de informações bano e indica interdependências, interações e geográficas (GIS). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 243 Mônica Bahia Schlee Este artigo enfatiza a correlação entre da paisagem e sua interface com a legislação, os padrões de ocupação, a dinâmica das trans- assim como das análises realizadas nas bacias formações e a vulnerabilidade da paisagem hidrográficas e recortes espaciais no Rio de nas encostas urbanas brasileiras à luz das re- Janeiro, quanto às condições geomorfológicas centes discussões sobre sustentabilidade e de encosta, das bacias hidrográficas; do uso resiliência das paisagens. O encaminhamento e cobertura do solo; da situação e regulação das propostas esboçadas, com vistas à rever- fundiária e edilícia; das condições de parcela- são dos processos e padrões aqui descritos, e mento; implantação; altura das edificações e os resultados integrais das análises realizadas tipos construtivos serão discutidos em detalhe nas cidades estudadas, relativas à morfologia em outras publicações. Figura 1 – Cidades brasileiras analisadas Fonte: Schlee (2011). 244 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas Figura 2 – Perfil montanhoso da região Sudeste do Brasil mostra a gradação de altura dos três conjuntos montanhosos que caracterizam o relevo desta região Serra da Mantiqueira Serra do Mar Maciços Costeiros Fonte: Schlee (2011), a partir do aplicativo Google Earth, acesso em 25/5/2011. A paisagem das encostas urbanas do relações entre esses sistemas, através das len- Rio de Janeiro e seus corpos d’água qualifi- tes da morfologia da paisagem, é necessário cam-se como sistemas socioecológicos com- investigar e avaliar diversos parâmetros, entre plexos (Holling, 2001; Wang et al., 2012). os quais as condições geomorfológicas de en- Questões relacionadas à resiliência em áreas costa, da bacia hidrográfica; uso e cobertura montanhosas urbanas e periurbanas envolvem do solo; situação e regulação fundiária e edilí- múltiplas variáveis. Daí a importância de fun- cia; condições de parcelamento; implantação; dir as contribuições da ecologia da paisagem altura das edificações; tipos construtivos e es- e da morfologia urbana. Para esclarecer as paços livres. Figura 3 – Recortes espaciais e bacias hidrográficas analisadas no Rio de Janeiro Fonte: Schlee (2011). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 245 Mônica Bahia Schlee Padrões da paisagem de encostas em algumas cidades brasileiras sociedade brasileira. A permanência de favelas nas áreas valorizadas do Rio de Janeiro e das demais cidades e suas relações de complementaridade e de interdependência com o tecido urbano formal fazem parte desta lógica. Em O processo de apropriação e ocupação das en- relação ao padrão atual de estratificação so- costas no Brasil, inicialmente atrelado à função cial, três cidades se distinguem pela forte po- utilitarista, a serviço da exploração ou do uso larização social entre ricos e pobres nas encos- produtivo dos recursos naturais, ancora-se no tas: Rio (onde o fenômeno é mais expressivo), desenvolvimento da política, da gestão e do Belo Horizonte e São Paulo. São Paulo e Belo estabelecimento da estrutura fundiária urba- Horizonte apresentam padrão de urbanização nas levadas a cabo desde o período colonial. As médio-alto a alto e ocorrência de favelas e lo- montanhas, serras e morros desempenharam teamentos irregulares. Em Belo Horizonte, con- funções diversas nos processos de urbaniza- vivem nas encostas um bairro de alto padrão e ção das cidades brasileiras ao longo do tempo: favelas conurbadas, formando um contínuo ex- defesa e controle do território, abastecimento tenso. Em Florianópolis, encontram-se estratos de água, lenha e carvão, atividades agrícolas e sociais alto, médio e baixo. Nessa última cida- pecuárias, exploração mineral e alternativa de de, o padrão difere-se das demais pela dispo- moradia como forma de evitar as áreas alagá- sição linear da ocupação, perpendicularmente veis foram algumas delas. às curvas de nível, pela presença de edifícios A ocupação das encostas nas cidades li- verticalizados nos morros isolados ao longo da torâneas e nas cidades localizadas no interior costa e pela localização predominante das fa- do Brasil nas regiões Sudeste e Sul apresenta velas na base das encostas. características diversas. A ocupação ao longo Nas cidades litorâneas, os fundos de dos maciços e serras não é contínua nem apre- vale e as principais linhas de drenagem na- senta um padrão único de segregação socioes- tural (rios, riachos e córregos) atuaram como pacial por região. Núcleos de ocupação formal indutores da ocupação, ao longo dos quais e informal apresentam relação de contiguidade se estabeleceram os primeiros eixos de pene- espacial, que varia em função do nível de va- tração e a ligação entre diferentes áreas das lorização do solo nas encostas das respectivas cidades. Nas cidades localizadas no interior, cidades, e entremeiam-se à vegetação arbórea onde a amplitude do relevo não é significati- remanescente. De modo geral, a densidade em va, esses eixos tendem a instalar-se sobre os ambas as formas de ocupação rarefaz-se à me- divisores e linhas de cumea da, espraiando- dida que a topografia se torna mais acentuada. -se posteriormente em direção à jusante. Nas A lógica da regulação da paisagem mon- regiões Sudeste e Sul do Brasil, os percursos tanhosa no Rio de Janeiro e na maior parte de cumeada foram os precursores nas cida- das cidades analisadas seguiu o princípio da des situadas no interior (Belo Horizonte e São polarização social e da segregação espacial, Paulo), onde o relevo montanhoso dominante derivadas da estrutura social e econômica da apresenta declividades mais baixas; enquanto 246 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas nas cidades litorâneas (Rio de Janeiro, Floria- Sendo assim, nas cidades litorâneas a ocupa- nópolis e Vitória), onde as vertentes são mais ção urbana nas encostas tendeu a se iniciar a íngremes e as declividades são mais expres- partir dos fundos de vale, ao passo que nas sivas, os percursos ao longo dos talvegues cidades localizadas no interior houve uma ten- e fundos de vale foram os pioneiros e ainda dência de ocupação a partir dos divisores. O predominam. Essa predominância decorre do padrão descrito não se configura como regra fato de que a ocupação nas cidades litorâneas geral, aplicável indistintamente a todas as ci- analisadas, ainda que possa ter se iniciado em dades brasileiras, apesar de ser útil na análise elevações e promontórios, se espraiou inicial- do processo de ocupação das cinco cidades mente ao longo da costa, onde se situavam mencionadas acima. Em Salvador e Maceió, as funções comerciais e portuárias, seguin- por exemplo, cidades localizadas na região do posteriormente em direção ao montante nordeste do Brasil, a ocupação espraiou-se dos maciços e serras pelos fundos de vale e em suas partes altas, inicialmente ao longo talvegues, guiados pela presença da água e dos percursos de cumeada, em detrimento dos pela maior facilidade de acesso e locomoção. vales e grotões, ocupados só posteriormente. Figura 4 – Exemplos de padrões de ocupação nas cidades analisadas (Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizonte e São Paulo) Fotos: Acervo QUAPA-SEL/SP (2008). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 247 Mônica Bahia Schlee Impactos dos padrões de ocupação urbana na vulnerabilidade das encostas implantadas pelo poder público, bem como a proliferação de redes informais de abastecimento de água implantadas pelas associações de moradores das favelas ou pelos próprios moradores, compostas por um emaranhado A influência do componente geológico ou na- de mangueiras de plástico com vazamentos tural na vulnerabilidade das encostas a desli- permanentes, ou ainda o despejo direto de zamentos varia muito, embora seja consenso efluentes sanitários nas encostas, ocasionam a que as intervenções antrópicas, por meio da infiltração direcionada de fluxos subterrâneos, supressão da cobertura vegetal, cortes e ater- gerando a concentração pontual e a saturação ros, despejo de lixo e alteração das linhas de do solo, contribuindo para a desestabilização drenagem natural potencializam a instabilida- das encostas. Do mesmo modo, os cortes e de, fazendo com que, nas áreas ocupadas, a aterros indiscriminados; o despejo de lixo e suscetibilidade a esses processos se transfor- entulho, que armazenam grande quantidade me em risco potencial com ocorrência de víti- de água nos eventos de chuva, com o aumen- mas fatais. to de carga sobre as encostas; e a supressão Como demonstram os estudos do La- da vegetação arbórea ou sua substituição por boratório GEOHECO-UFRJ (GEOHECO-UFRJ/ bananeiras e gramíneas, potencializam a insta- SMAC-RJ, 2000), as políticas de proteção am- bilidade e a ocorrência dos deslizamentos. biental implementadas a partir de meados da Os parâmetros fixados pela legislação década de 1980 ainda não foram suficientes das cidades analisadas (seja para os loteamen- para ajustar as difíceis relações entre a cidade tos destinados a estratos sociais altos ou bai- e a Floresta Atlântica nas encostas dos maci- xos da população) são insuficientes para lidar e ços cariocas, em especial do Maciço da Tiju- responder à complexa geomorfologia das áreas ca. Ainda não existem medidas e dispositivos montanhosas onde essas se implantaram. Nas adequados na legislação para mitigação ou legislações dos municípios estudados, o parâ- solução dos recorrentes problemas ambientais metro declividade das encostas vem substituin- causados pela associação entre a ocorrência do o parâmetro cota altimétrica na limitação de deslizamentos e a supressão da vegetação ou restrição de parcelamentos. Entretanto, a nativa ou a execução de cortes, aterros, esca- simples substituição de um parâmetro pelo vações e fugas d’água (vazamentos nas redes outro implica a necessidade de avaliações ca- de abastecimento e drenagem) para implan- so a caso. De modo geral, observa-se que, em tação de estradas e edificações, demonstrada sua maioria, as normativas tendem a replicar por Amaral (1996) e Coelho Netto (2005 e parâmetros estabelecidos em outras cidades 2007), por exemplo. ou instituídos nas normativas federais (Lei Além da supressão da vegetação, os 4771/1965, Lei 6766/1979 e Resoluções Co- vazamentos constantes nas redes de abas- nama 302/2002 e 303/2002), restringindo-se a tecimento que atravessam as encostas e as indicar a necessidade da avaliação dos órgãos falhas na execução das redes de drenagem responsáveis pela estabilização das encostas. 248 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas Figura 5 – Os impactos do desenvolvimento urbano nas encostas do Rio de Janeiro e de Vitoria e as cicatrizes deixadas pela exploração mineral nas encostas próximas a Belo Horizonte e Florianópolis Fotos: Acervo QUAPA-SEL/SP (2008). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 249 Mônica Bahia Schlee Dinâmica da paisagem: as ligações entre a configuração da paisagem atual, as configurações pretéritas e seus processos de origem pelo mercado em sentido amplo (fundiário, imobiliário e de trabalho). Nesse sentido, como afirmam Maricato (2001) e Abramo (2003), a estrutura montada no contexto brasileiro contou com as invasões (espontâneas ou organizadas) como alternativa de provisão de acesso a terra urbana. Segundo Maricato (2003), a to- Os imbricados processos de formação e trans- lerância para com a ocupação não legalizada formação da paisagem das encostas do Rio de do solo é coerente com a lógica do mercado Janeiro foram guiados por fatores e agentes fundiário capitalista, restrito, especulativo e aparentemente antagônicos que atuaram, ao discriminatório e com a concentração de in- longo do tempo, como elementos-chave da vestimentos públicos nas áreas valorizadas. estrutura urbana: o suporte geo-biofísico; os Por outro lado, segundo Villaça, as invasões padrões de habitação impostos pelas classes são uma forma de os estratos sociais mais bai- abastadas; o modelo econômico e o mercado, xos da população participarem das vantagens em sentido amplo, englobando o mercado de usufruídas pelas classes abastadas nas áreas terras, os mercados imobiliário e da construção segregadas (Villaça, 1998). civil e o mercado de trabalho em geral; o patri- No Rio de Janeiro, o surgimento dos mônio de terras da Igreja Católica; os conflitos primeiros núcleos de assentamentos formais entre a legislação urbanística e ambiental e a e informais foi simultâneo e gerou relações falta de uma política habitacional. As relações socioespaciais interdependentes. Os primei- de interdependência entre os agentes envolvi- ros núcleos urbanos nas encostas tiveram sua dos e o poder político, condicionadas pela dis- origem com o declínio da agricultura e com a tribuição espacial não equilibrada do mercado abertura de estradas e ruas nas encostas. Os de trabalho e de terras e pela limitada e ten- processos que originaram as favelas guardam denciosa mobilidade intraurbana, perpetuada estreita relação com os processos que gera- pela inexistência de uma rede de transportes ram a ocupação formal nas encostas do Rio públicos de massa, moldaram a morfologia das de Janeiro. Seu surgimento vinculou-se a uma encostas urbanas brasileiras. variada gama de situações, atreladas ao pro- Villaça (1998) destacou a tendência à cesso de formação e transformação do mer- organização hierárquica do espaço urbano cado imobiliário; a realização de obras públi- brasileiro, chamando a atenção para as formas cas; a implantação e localização da atividade peculiares de configuração da segregação es- industrial; a autorização de permanência no pacial intraurbana brasileira, cuja composição local mediante cobrança de taxas ou aluguéis não impede a presença nem a proliferação de pelos proprietários originais; a autorização de outras classes no mesmo espaço. Conforme de- permanência por instituições privadas, religio- monstrado pelo autor, entre outros, a estrutura sas ou públicas, como as forças armadas; as de dominação social e de segregação espacial invasões organizadas por políticos; a doação recorrente nas cidades brasileiras foi forjada de áreas à igreja por proprietários fundiários 250 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas interessados em manter estoques de mão de As razões que levaram as favelas a surgir, obra sob a tutela da igreja nas proximidades se expandir e proliferar na paisagem urbana do de suas propriedades ou a implantação de Rio de Janeiro são variadas e convergentes, em loteamentos que não tiveram o processo de função das conjunturas políticas e econômicas. legalização concluído, conforme foi apontado Como é possível perceber a partir das contri- por Marx (1991), Abreu (1994 e 2001) e Silva buições de Valladares (1978 e 2005), Bohadana (2005a e 2005b), e indicado na presente pes- (1983), Abreu (1994 e 2001), Bonduki (1998), quisa. Os primeiros núcleos das favelas estuda- Vaz (2002), Silva (2005a e 2005b) e Leitão das nas encostas do Cosme Velho e da Gávea, (2009), as relações entre a população favelada por exemplo, foram aparentemente autoriza- e o poder público se estabeleceram de forma dos pelos antigos proprietários das fazendas cíclica, com aproximações (tolerância, aceita- e chácaras, ou pela Igreja Católica (Bohadana, ção e relativo acolhimento das reivindicações 1983; Marx, 1991; Abreu, 1994; Dantas e Sen- dos favelados) nos períodos políticos mais ra, 1994; Abreu, 2001). progressistas ou populistas, e afastamentos Esta pesquisa, embasada em trabalhos (preconceito, indiferença, omissão, negação, anteriores (Bohadana, 1983; Abreu, 1994; marginalização e confronto), de forma geral. Abreu, 2001; Silva, 2005a e 2005b), entre Sua expansão e proliferação foram frutos da outros), mostrou que a maioria das terras indiferença conivente manifestada pelos pode- ocupadas pelas favelas situadas nas encostas res públicos e pela sociedade com a dificuldade analisadas no Rio de Janeiro ocupou áreas em arranjar um lugar para os mais pobres na originalmente de domínio privado. Um dispo- cidade e mesmo com a aceitação tácita desse sitivo recorrente durante o início do processo passivo ambiental e social urbano, pela cren- de parcelamento do solo nas encostas foi a ça de que seria uma situação provisória, a ser alocação de áreas destinadas a reservas flores- resolvida naturalmente pelo mercado ou que tais sem registro no cadastro municipal como caberia ao Estado resolver. propriedade pública. Essas terras, que, dessa À medida que o tempo passava e a situa- forma, servem essencialmente como estoque ção se agravava, razões políticas vinculadas de terras de propriedade privada, permanecem aos interesses de diferentes setores da socieda- à espera de ser exploradas para uso privado, de (a política da bica d’água, os currais eleito- constituindo-se como fator de pressão para rais, o ônus político de medidas impopulares, a mudanças na legislação, principalmente no Rio falta de vontade política, desarticulação entre de Janeiro, onde parte das florestas de encos- as esferas de poder e escassez de recursos para tas é protegida exclusivamente pela legislação planejar a produção habitacional de interesse urbanística. No entanto, quando essas áreas social em âmbito nacional e municipal) e ra- são invadidas por favelas, seus proprietários zões econômicas (as sucessivas crises, o tra- se apressam em abandonar suas terras (já com tamento da questão habitacional sob a ótica ocupantes), doando-as ou permutando-as com econômica e o surgimento de mercados alter- o setor público. nativos aos oficiais) foram agregadas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 251 Mônica Bahia Schlee O potencial dos espaços livres na estruturação de zonas de amortecimento demonstra a Figura 6, esses espaços formam corredores lineares de vegetação arbórea, que aumentam a conectividade ecológica com a área protegida pelo Parque Nacional da Tijuca, e podem servir para estruturar a zona de amor- Como argumentado por Ehrlich et al. (2012), a tecimento do parque na interface floresta-cida- capacidade de suporte, apesar de um conceito de. Além disso, espaços livres podem funcionar fundamental para caracterizar e a dinâmica da como elo entre os tecidos segregados. resiliência das paisagens, ainda é muito difícil O cruzamento de parâmetros biofísicos, de mensurar. O processo gradual de fragmenta- ecológicos e urbanísticos avaliados nesta pes- ção progressivo das manchas residuais de flo- quisa, revelou os efeitos dos padrões atuais restas em torno do Parque Nacional da Tijuca e processos de desenvolvimento urbano em causa impactos diversos, contribuindo inclusive curso, identificou interações entre o ambiente para o declínio da qualidade da água dos rios natural e o ambiente construído nas encostas que nascem em seu território, conforme de- das cidades brasileiras e apontou algumas cau- monstrou Schlee (2002). sas da fragmentação ecológica nas fronteiras O sistema de espaços livres nas encostas das áreas protegidas localizadas em encostas do Rio de Janeiro é amplo e complexo. Especial- urbanas. As análises realizadas nas bacias mente no Maciço da Tijuca, como identificado hidrográficas estudadas no Rio de Janeiro e na presente pesquisa, existem reservas flores- a correlação com as outras quatro cidades tais públicas e privadas ainda não incorporadas brasileiras ajudaram a esclarecer processos ao Parque Nacional da Tijuca; espaços livres de formação e transformação da paisagem e que ainda mantêm uma cobertura vegetal den- a refutar certos dogmas relativos à ocupação sa nos fundos dos lotes privados; espaços livres das encostas urbanas no Brasil. O processo de associados ao uso institucional e espaços livres transformação da paisagem e de sua gestão em torno das favelas que desempenham um descreve ciclos que se entrelaçam no tempo e papel importante para manter a qualidade am- relações que condicionaram – e continuam a biental nos recortes espaciais analisados e para influenciar – as atuais condições ambientais fortalecer a capacidade de suporte e adaptação locais e a sustentabilidade da paisagem das das encostas à ocupação urbana; e, portanto, encostas. Neste artigo, destacamos alguns merecem atenção especial. fatores-chave que ajudam a explicar o pro- Embora transitórios, os lotes vazios nos cesso de transformação da paisagem nas en- loteamentos formais e condomínios fechados costas urbanas no Rio de Janeiro, a partir de representam um estoque significativo de terras, sua urbanização, e podem contribuir para ca- que, com manejo adequado, também pode con- racterizar a natureza dos desafios relativos à tribuir para estruturar a zona de amortecimen- resiliência da paisagem de encostas e embasar to entre a floresta e o tecido urbano. Conforme futuros esforços de regeneração: 252 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas Figura 6 – Espaços livres de domínio privado delineiam uma envoltória em torno dos núcleos de ocupação. Reservas florestais, fundos de lotes e terrenos não ocupados contribuem para formar corredores de cobertura vegetal arbórea na interface com a área protegida pelo Parque Nacional da Tijuca Fonte: Schlee (2011) sobre base cadastral 1:2.000 e ortofotos (2009), PCRJ/IPP/Armazém de Dados, PCRJ/SMU/CGT e levantamentos de campo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 253 Mônica Bahia Schlee Fotos: Schlee (2008 e 2010). 254 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas 1) Estrutura e função da paisagem : a 3) A propriedade da terra e ilegalidade: ocupação de encostas no Rio de Janeiro se ex- atualmente a maioria da terra urbana locali- pandiu pelos fundos de vale, ao longo das prin- zada nas encostas do Rio de Janeiro está nas cipais linhas de drenagem natural, que atuam mãos de poucos proprietários, constituindo la- como vetores de indução da ocupação urbana tifúndios urbanos dispersos na paisagem. Algu- e tendem a concentrar os processos de con- mas dessas grandes glebas não estão sequer solidação e crescimento vertical da ocupação. registradas no cadastro municipal. Quanto ao Os fundos de vale são, como demonstraram os aspecto legal da propriedade, as favelas não eventos de chuva de grande intensidade ocor- são totalmente ilegais. Parte dos assenta- ridos em 2010 e 2011, áreas especialmente mentos foi coletivamente adquirida dos pro- suscetíveis a deslizamentos. Segundo Schaffer prietários anteriores, teve lotes legalizados et al. (2011), os deslizamentos ocorridos na Re- individualmente ao longo do tempo, ou per- gião Serrana do Estado do Rio de Janeiro em maneceu em uso das associações de morado- 2011, por exemplo, foram fortemente potencia- res por permissão de instituições como a Igreja lizados pela ocupação antrópica. Tanto nas re- Católica ou as forças armadas. A configuração giões urbanas, quanto nas rurais, as áreas mais espacial, no entanto, é irregular, na medida severamente atingidas pelos efeitos das chuvas em que não segue o ordenamento, o zonea- foram: a) margens de rios, córregos e nascen- mento e códigos de construção e padrões de tes, definidas pelo Código Florestal como Áreas desenvolvimento urbano estabelecidos para de Preservação Permanente – APPs; b) domí- outras áreas da cidade. Na verdade, só recen- nios montanhosos com declividade acima de temente a administração municipal do Rio de 25º; c) áreas na base dos morros, montanhas Janeiro definiu regulamentos para essas áreas, ou serras; d) áreas localizadas nos fundos de os quais são comuns, de modo geral, a todas vale, em especial junto a curvas, obstruções e as Áreas de Especial Interesse Social, como se desvios dos cursos d’água. essas fossem homogêneas, e dizem respeito 2) Relação entre padrões e processos: a restrições quanto ao gabarito e à proibição assentamentos formais e informais nas bacias de usos e atividades como a armazenagem de hidrográficas estudadas apresentam uma re- ferro velho, produtos inflamáveis e explosivos, lação de contiguidade, ligados pelo rio, pelas gás liquefeito de petróleo e armas e munições. estradas sinuosas que os conectam e pela in- Por sua vez, os bairros de alta renda situados terdependência nas relações sociais, induzidas nas encostas também não cumprem integral- pelo modelo econômico e pelos mercados fun- mente a legislação vigente. Conflitos entre diário, imobiliário e de trabalho. A estratégia os limites das propriedades privadas e terras concebida pelo poder público para minimizar públicas, acréscimos construtivos horizontal e os conflitos gerados pela polarização social vertical, impermeabilidade excessiva da cober- que caracteriza a ocupação das encostas da ci- tura do solo e remoção de vegetação arbórea dade do Rio de Janeiro ainda está centrada na existente também ocorrem nos bairros formais flexibilização dos limites legais e na liberação e condomínios fechados localizados nas encos- das restrições estabelecidas na legislação. tas. Tanto as propriedades particulares quanto Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 255 Mônica Bahia Schlee os assentamentos informais se sobrepõem contribuindo para a valorização imobiliária em sobre áreas de florestas adjacentes, prote- certos casos e refletindo a preocupação com a gidas pelas instâncias federal, estadual ou desvalorização em outros. Apesar dos avanços municipal, formando uma colcha de retalhos obtidos, critérios, dispositivos e parâmetros entrelaçados. O modelo social forjado no Rio para sua proteção poderiam ser aplicados de de Janeiro e as configurações espaciais dele forma mais articulada e integrada. O caráter resultantes nas encostas do Maciço da Tiju- diverso e plural das favelas, em termos de sua ca foram baseados na antiga crença de que configuração interna, de sua dinâmica socio- as forças do mercado imobiliário que favore- espacial, de estratificação socioeconômica, de cem as classes média e alta teriam o poder de tipologias e padrões construtivos, de situação e remover e substituir as favelas. Este estudo uso da terra, ainda não foi compreendido nem aponta uma realidade diferente. assimilado pelas políticas públicas. A perspec- 4) Espaços livres: os espaços livres nas tiva descontextualizada da atuação do poder encostas desempenham múltiplas funções. Eles público nas favelas e em suas franjas, desconsi- atuam como corredores de vegetação que pe- derando a diversidade e a complementaridade netram e cruzam as áreas ocupadas, fazem a das relações entre as favelas e bairros formais conexão ecológica entre a floresta protegida ao seu redor, mina o potencial das políticas dentro dos limites do Parque Nacional da Tiju- públicas para promover a sustentabilidade e ca e os fragmentos florestais situados em suas a inclusão social nas encostas urbanas do Rio bordas e ajudam a manter a capacidade de su- de Janeiro. Além disso, a tolerância em relação porte das áreas montanhosas. Esses espaços in- à ilegalidade e as anistias periódicas para le- cluem as reservas florestais, os fundos dos lotes galização de situações a rigor não legalizáveis, residenciais, os espaços florestados localizados somadas ao caráter discricionário atribuído aos ao longo das bordas das favelas e os lotes va- órgãos de licenciamento, comprometem os es- zios, entre outros. Todas as formas de espaços forços de regulação e controle, evidenciando livres localizadas nas encostas nas partes supe- o conflito de interesses entre a proteção das riores das bacias hidrográficas merecem espe- encostas e a sistemática disposição do poder cial atenção, salvaguarda e proteção, devido à público em viabilizar sua ocupação. sua natureza heterogênea e multifuncional. No Fundamentada em trabalhos anteriores entanto, a negligência, a privatização e a subs- (Ruhe, 1975; Avelar, 1996 e 2003; Avelar e tituição gradual desses espaços livres pelos Lacerda, 1997; Geoheco, 2000; Coelho Netto espaços construídos ocorrem continuamente et al., 2007; Valeriano, 2008), a presente tanto em assentamentos formais, quanto em pesquisa demonstra a necessidade de asso- assentamentos informais. ciar altimetria (já aplicada pela legislação 5) Regulação: a legislação aplicada às de planejamento urbano no Rio de Janeiro), encostas gerou respostas espaciais diferencia- declividade (já aplicada de forma genérica das nas cidades analisadas, potencializadas pela legislação de planejamento urbano em pelos investimentos municipais historicamente outras cidades brasileiras), forma da encos- orientados ao sabor dos interesses do mercado, ta, e a configuração, distribuição e gestão de 256 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas espaços abertos e presença e qualidade da de planejamento urbano com a finalidade de vegetação nativa como parâmetros adicionais formulação de um zoneamento integrado e, fundamentais para promover a resiliência e no caso do Rio de Janeiro, reformular parâme- o planejamento sustentável da paisagem de tros pré-estabelecidos indiscriminadamente, encostas. Como demonstrado por trabalhos restringindo e monitorando cortes e aterros anteriores (Avelar, 1996 e 2003; Avelar e La- em áreas a partir de 15° (aproximadamente cerda, 1997; Coelho Netto et al., 2007), esta 25%) de inclinação e evitando a ocupação pesquisa sugere que não somente as áreas de entre 15° e 25° (aproximadamente entre 25% encostas mais íngremes estão sujeitas a des- e 35%) em áreas côncavo-convergentes e aci- lizamentos de terra. Assim, é imperativo es- ma de 35° (aproximadamente 70%) em áreas tabelecer a bacia hidrográfica como unidade convexas/divergentes. Figura 7 – Além da altimetria, a declividade, a forma da encosta, a extensão da encosta, o tamanho da área de contribuição e as características da sub-bacia e da cobertura vegetal também devem ser considerados na definição de áreas de restrição à ocupação Fonte: Schlee (2011), sobre base cadastral 1:2.000 e ortofotos (2009), PCRJ/IPP/Armazém de Dados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 257 Mônica Bahia Schlee Conclusões altos da população, argumentando que esse ti- Os métodos desenvolvidos e os resultados obti- poder de restringir e gradualmente eliminar a dos na presente pesquisa contribuem para uma ocupação informal. Como foi demonstrado por compreensão dos processos que produziram e este estudo (Schlee 2011), a realidade demons- moldaram a paisagem montanhosa do Rio de tra que esse não é o caso. po de ocupação é mais "sustentável" e teria o Janeiro ao longo do tempo. A análise desses As formas oficiais e informais de ocupa- processos é fundamental para a formulação ção sobre as encostas funcionam como exten- de estratégias e instrumentos para a efetiva são uma da outra. Quando considerados atra- proteção e garantia de sustentabilidade das vés dos processos de estruturação, densidade, encostas urbanas, corredores ripários e cor- tipos arquitetônicos, nível educacional, relação pos d’águas, tanto no Rio de Janeiro quanto com os espaços livres, com os mercados imobi- em outras cidades montanhosas brasileiras. liários e os mercados de trabalho, apresentam Os processos de transformação da paisagem, sinais de complementaridade. Ambas as formas o quadro de polarização social e segregação de ocupação também apresentam similaridades espacial, a regulação e a fiscalização inade- em termos das relações entre o espaço público quadas para controlar a ocupação urbana e os e o espaço privado. Em ambos os casos, há uma padrões espaciais fragmentados têm contribuí- separação bem marcada entre os espaços pú- do para gerar os conflitos socioambientais que blicos ou coletivos (desvalorizados e negligen- caracterizam as encostas do Rio de Janeiro e ciados) e os domínios privados (enfatizados, das outras cidades brasileiras analisadas. fetichizados e priorizados), demarcados com Como argumentou Colding (2007), a muros, cercas e grades nos bairros formais e complementaridade entre diferentes usos do nas favelas, que se expressa pela superposição solo e a existência, a conexão e a integração do domínio privado sobre o domínio público. de gestão entre diferentes tipos de espaços li- A avaliação da morfologia da paisa- vres, tanto os de domínio público quanto os de gem e dos processos de transformação da domínio privado, podem contribuir fortemente paisagem das encostas do Rio de Janeiro in- para garantir a resiliência e a conservação da dicou que os espaços livres contribuem forte- diversidade da paisagem em contextos urba- mente para a resiliência da floresta nas encos- nos. Esses são conceitos cruciais que devem tas da cidade e para a estruturação da zona de embasar políticas e programas para a efetiva amortecimento na transição entre os espaços proteção das encostas urbanas brasileiras. urbanizados e o patrimônio natural ou cultu- Um dos principais entraves à assimilação ral protegidos, uma vez que podem auxiliar na e à prática da ocupação resiliente e sustentável absorção de impactos, na adaptação às trans- nas encostas brasileiras deve-se à perpetuação formações e na interface entre a proteção do do discurso dominante que ainda defende a le- sistema ecológico e a apropriação sociocultural gitimidade da ocupação das encostas por um das encostas. Esta pesquisa empiricizou e dire- único tipo de uso e pelos estratos sociais mais cionou o foco do planejamento sustentável em 258 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas áreas montanhosas urbanas para seus espaços água-comunidade-cidade como uma rede de livres, demonstrando a necessidade de asse- regeneração, um contraponto essencial à forma gurar a heterogeneidade, multifuncionalidade, construída e uma fonte de suporte, convívio, flexibilidade, adaptabilidade e conectividade inspiração e inclusão para a vida nas cidades. entre os espaços livres de forma a contribuir A abordagem metodológica e os resulta- para garantir a capacidade de suporte e a sus- dos obtidos nesta pesquisa se alinham e empi- tentabilidade das florestas e promover a rege- ricizam algumas das teorias emergentes sobre neração do sistema paisagístico nas encostas sustentabilidade e resiliência que se aplicam urbanas do Rio de Janeiro e demais cidades à paisagem das cidades brasileiras. Revelam brasileiras analisadas. Ao mesmo tempo, o ma- também algumas das interações entre natureza nejo do uso da terra e os padrões de ocupação e cidade. A principal contribuição da presente podem e devem ser reorganizados para fortale- pesquisa documentada neste artigo centra-se cer e restaurar as funções ecológicas da floresta na investigação das interações entre os com- através da gradação entre as áreas urbanizadas ponentes ambientais e culturais da paisagem e as áreas protegidas, da integração de fatores em diversas escalas de análise, desde a esca- ambientais, sociais, econômicos e culturais e da la regional a escala do lote urbano. Métodos implantação de transportes urbanos de massa integrados e complementares de análise dos que integrem as cidades como um todo. Tam- processos de ocupação e de transformação bém é fundamental enfrentar os obstáculos da paisagem nas encostas do Rio de Janeiro institucionais, tais como falta de amplos, inclu- foram aplicados, desenvolvidos e contextuali- sivos e bem-definidos direitos de propriedade. zados em relação aos processos ocorridos em O relatório Our Common Journey: A outras cidades brasileiras situadas nas regiões Transition Toward Sustainability (National Research Council Board on Sustainable Development, 1999) e outros relatórios que o seguiram têm enfatizado que o planejamento sustentável requer a conciliação entre o patrimônio ambiental e as demandas sociais e econômicas. A diminuição das desigualdades econômicas, sociais e espaciais é fundamental para aumentar a capacidade de regeneração econômica, paisagística e ambiental no Rio de Janeiro e em outras cidades montanhosas no Brasil. Esta pesquisa contribui para delinear as bases de um urbanismo regenerador (Schlee et al., 2012) que busca entrelaçar funções e dinâmicas urbanas e hidro-ecológicas, celebrando a interface encosta-floresta- Sudeste e Sul do país e aos processos intraur- Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 banos ocorridos em diferentes áreas da cidade. A compreensão do comportamento de sistemas sociais e ecológicos e de como esses respondem a transformações e impactos é fundamental para a construção de estratégias adequadas de gestão e promoção da resiliência, da capacidade regenerativa e do desenvolvimento sustentável em bacias hidrográficas urbanas. Ao fornecer um quadro abrangente dos vários fatores que influenciam a capacidade de suporte e de resiliência das encostas como um sistema integrado de paisagem urbana, este trabalho sublinha as potencialidades dos espaços livres na estruturação e no desenvolvimento da capacidade de adaptação, conexão, amortecimento 259 Mônica Bahia Schlee dos impactos, e, consequentemente, da busca Nas encostas urbanas brasileiras, os por cidades resilientes, social e ambientalmen- espaços livres são fundamentais para for- te mais justas e acolhedoras. talecer a proteção das florestas urbanas e Processos de investigação transdiscipli- estruturar zonas de amortecimento, tanto nar, que apliquem metodologias de campos no Rio de Janeiro, quanto nas demais cida- disciplinares afins como a morfologia urbana des estudadas. Ressaltamos que os métodos e a ecologia da paisagem em ambientes tro- aplicados e desenvolvidos nesta pesquisa se picais de encostas urbanas ainda são poucos. fundem em uma metodologia integrada que Resiliência significa capacidade de absorção de pode vir a ser empregada para embasar o impactos, conexão, adaptação a mudanças e planejamento sustentável e a regeneração regeneração. Os espaços livres são os lugares- da paisagem montanhosa em contextos ur- -chave onde essas interações se manifestam e banos e auxiliar voluntários das comunida- se potencializam. A abordagem multifacetada des, planejadores e tomadores de decisão a aplicada neste estudo pode auxiliar o plane- promover ações de regeneração que rever- jamento, a proteção e a gestão da paisagem, tam eventos de perturbação e incentivem com vistas ao fortalecimento de sua diversida- transformações que conduzam à sustentabi- de, resiliência e sustentabilidade. lidade da paisagem. Mônica Bahia Schlee Arquiteta-paisagista e urbanista, trabalha na Coordenadoria de Macro Planejamento, Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – CMP/SMU/PCRJ. Doutora em Arquitetura, Mestre em Arquitetura da Paisagem e Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. [email protected] Agradecimentos À Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Ins tuto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, Secretaria Municipal de Urbanismo e Sub-Secretaria Municipal de Patrimônio Cultural pelo apoio e pelo acesso às bases cadastrais, ortofotos e cadastro de loteamentos u lizados nesta pesquisa. A Antonio Bernardo de Carvalho, Vera Regina Tangari, Ana Luisa Coelho Ne o, Kenneth Tamminga, Jonathas Magalhães Pereira da Silva, Maria Paula Albernaz, Silvio Soares Macedo, Sonia Afonso, Stael de Alvarenga Costa, Marieta Maciel, Eneida Mendonça, Aruane Garzedin, André Avelar, Henri Acselrad, Maria Rosália Guerreiro, Valdinam dos Santos, Raphael Urbano de Andrade, Ana Lúcia Costa Mendes, Marco Zambelli, Murilo Santos de Medeiros, Gustavo Peres Lopes, Alice Amaral dos Reis, Claudia Muricy, Daniel Mancebo, Antonio Barboza Correia, Carla Cabral, Fernando Cavallieri, Paula Serrano e aos revisores anônimos pelos comentários constru vos. 260 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Ocupação de encostas urbanas Referências ABRAMO, P. (2003). A dinâmica do mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres. Coleção Estudos Cariocas, n. 20030301. 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 241-264, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização na Ressaca Lagoa dos Índios em Macapá/AP Urban environmental conflicts and urbanization processes at Ressaca Lagoa dos Índios, Macapá/AP Gloria Maria Vargas Cecília Maria Chaves Brito Bastos Resumo O estudo aborda os conflitos ambientais resultantes do processo de urbanização do território da Ressaca Lagoa dos Índios em Macapá/Amapá, ocorrido nas últimas décadas do século XX. O objetivo é analisar e avaliar as formas de ocupação do território, considerando o histórico desse processo; os agentes transformadores do espaço; os impactos ambientais; e os conflitos desencadeados, a partir das diferentes visões e usos dados ao território. Utilizou-se como metodologia: pesquisa documental, observação participante na área e conversas informais com os agentes políticos institucionais, econômicos e sociais. Concluiu-se que na luta em torno do território da Lagoa, cada grupo tenta impor sua visão de mundo procurando legitimar suas representações para garantir a continuidade da sua forma de apropriação dos recursos. Abstract This paper approaches the environmental conflicts that have resulted from the urbanization process of the Lagoa dos Índios territory in the city of Macapá (Northern Brazil), which occurred during the last decades of the twentieth century. The purpose is to analyze and evaluate the forms of occupation of the territory, considering the history of that process, the agents that transform the space, the environmental impacts and the conflicts that stem from different views and uses of the territory. The methodology was: documentary survey, participant observation in the area and informal conversations with political-institutional, economic and social agents. We concluded that in the dispute for the territory of the Lagoa, all the groups involved try to impose their worldview in order to legitimate their representations and guarantee the continuity of their own way of resource appropriation. Palavras-chave: conflitos ambientais; urbanização; território; Lagoa dos Índios; Ressaca. Keywords: : environmental conflicts, urbanization, territory, Lagoa dos Índios, undertow. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos Introdução estaduais e municipais; 2) observação par- A Lagoa dos Índios é uma das muitas áreas 3) conversas informais com os agentes polí- úmidas do município de Macapá, denominada ticos institucionais, os agentes econômicos Ressaca.1 É uma área marcada pelo crescente locais e os agentes sociais. ticipante realizada durante visitas à área; e e desordenado processo de crescimento urbano do estado do Amapá, ocorrido, principalmente, a partir das duas últimas décadas do século XX. Situada na bacia do igarapé da Fortaleza, Conflitos ambientais urbanos e território a oeste do núcleo urbano de Macapá, próxima à fronteira com o município de Santana, essa O campo dos conflitos ambientais tem possi- área comporta uma comunidade que se con- bilitado relacionar questões que envolvem o sidera remanescente de quilombo há mais de urbano e seu ambiente. Essa possibilidade é dois séculos. constituída à medida que a análise dos con- Há, no território da Ressaca Lagoa dos flitos ambientais permite avaliar as diferentes Índios, o enfrentamento entre cultura tradicio- formas de uso, de apropriação e de significação nal e vetores da modernidade, o que tem impli- de um determinado território urbano e seus cado danos tanto para o ambiente como para a recursos, considerando-se as práticas políticas, comunidade negra. Nesse território, o uso dos socioeconômicas e culturais estabelecidas pelo recursos naturais mudou de sentido, deixou de grupo social que ali reside. ser somente para a sobrevivência da comuni- Paul Little (2001) é um dos estudiosos dade, para converter-se em bem de usufruto que aponta a abordagem dos “conflitos so- econômico privado e construções de diversas cioambientais” como um importante campo ordens, demarcando, cada vez mais, o processo de estudo e de ação política. Segundo o autor, de invisibilidade expropriadora a que foi sub- esses conflitos são produzidos pelo embate en- metida a comunidade negra, desde o século tre grupos sociais, em função de seus distintos XVIII (Bandeira, 1990). modos de inter-relacionamento ecológico, que A partir desse contexto, a pesquisa pro- envolve o meio social e natural. Essa definição curou analisar e avaliar as formas de ocupação focaliza o relacionamento dinâmico e interde- do território, considerando o histórico desse pendente entre o mundo biofísico e o mundo processo; os agentes transformadores do es- social e identifica as novas realidades socioam- paço; os impactos ambientais; e os conflitos bientais que surgem da interação entre esses desencadeados, a partir das diferentes visões e dois mundos. Conforme Little, os conflitos re- usos dados ao território. lacionados aos recursos naturais geralmente A pesquisa foi desenvolvida entre os são sobre as terras que contêm tais recursos anos de 2004 e 2006 e como procedimento e, portanto, entre os grupos humanos que metodológico adotou três instrumentos: 1) reivindicam essas terras como seu território coleta de documentos em órgãos federais, de moradia e vivência. Por isso é interessante 266 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... situar os conflitos sobre as terras a partir das mesmo tempo, é modificado. Conforme Little dimensões políticas, socioeconômicas e cultu- (2001), o conceito de território surge, assim, rais (Little, 2001). como um produto histórico de processos so- Henri Acselrad (2004) é outro autor ciais e políticos. que avança na discussão sobre “conflitos Na mesma direção, Haesbaert (2004) ambientais”, colocando-os como aqueles que considera que o território é produto da apro- envolvem grupos sociais que têm modos dife- priação de um dado segmento do espaço, por renciados de apropriação, uso e significação um dado segmento social, nele estabelecendo- dos recursos naturais. Esses conflitos têm ori- -se relações políticas de controle ou relações gem quando, pelo menos, um dos grupos tem afetivas identitárias e de pertencimento. a continuidade das formas sociais de apro- Dessa forma, pode-se dizer que o territó- priação do meio, ameaçadas por impactos rio da Lagoa dos Índios é resultado de ações indesejáveis – seja no solo, na água, no ar ou acumuladas através do tempo, tornando-se o nos sistemas vivos –, decorrentes do exercí- produto de uma construção social que inclui cio das práticas de outros grupos que passam o regime de propriedade, os vínculos simbóli- a interagir no território. Acselrad afirma que cos que se reproduzem no espaço apropriado essas práticas são, antes de tudo, condicio- específico, a história da ocupação plasmada e nadas pelas formas sociais e culturais, ou se- guardada na memória coletiva, os usos a ele ja, pelas opções de sociedade e pelos modos designados e as formas da sua defesa. culturais prevalecentes. Considera-se, então, que a produção dos Considerando os pressupostos dos au- conflitos ambientais urbanos na Ressaca La- tores acima, o campo dos conflitos estrutura- goa dos Índios diz respeito a um movimento dos em torno da questão urbano-ambiental se simultâneo das condições territoriais e ecoló- estabelece a partir da dinâmica intricada de gicas, estimulada pelos impulsos das relações relações e disputas de poder que se traduzem entre forças externas e internas à unidade em ações diferenciadas pelo acesso e uso dos territorial, ecológica, histórica ou socialmente recursos do meio urbano. Para Costa e Braga determinada. Segundo Coelho (2005), é a par- (2004), as cidades convivem com diferentes ló- tir desse movimento que os conflitos gerados gicas de apropriação e uso do espaço urbano, por impactos ambientais constituem processos configurando o modo como se organizam as de mudanças territoriais e ecológicas causa- relações socioespaciais e as formas de apro- das por “perturbações” diversas no ambiente, priação do território e seus recursos. a exemplo das ações modernizantes como a A construção do território, nesse sentido, se faz no processo da interação contínua construção de um objeto novo, uma estrada ou uma indústria no ambiente. entre uma sociedade em movimento e um es- Diante dessa percepção, Acselrad (2004) paço físico particular que se modifica perma- considera que os objetos que constituem o nentemente de acordo com as condutas dos “ambiente” não são redutíveis a meras quan- grupos sociais. No processo de construção tidades de matéria e energia, pois eles também do território, o ambiente modifica-se e, ao são culturais e históricos. Todos os objetos do Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 267 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos ambiente, todas as práticas sociais e culturais de construção da Fortaleza São José de Maca- desenvolvidas nos territórios e todos os usos e pá, ou originários da vila de Mazagão edifica- sentidos atribuídos ao meio interagem e conec- da no mesmo período. tam-se material e socialmente. O local onde os negros da Lagoa dos Ín- Essa forma de compreender o conceito de dios se fixaram é conformado por rios, furos, território demarca, cada vez mais, a íntima re- igarapés e lagos, constituintes da floresta tro- lação entre a questão urbana e a questão am- pical de áreas úmidas e de terra firme, o que biental (Monte-Mor, 1997), pois não é possível lhes permitiu progressivamente constituir-se separar a sociedade de seu ambiente físico, já como grupo relativamente isolado e protegido que as duas dimensões constituem um mundo dos interesses escravagistas no período co- material socializado e dotado de significados. lonial. No recurso à fuga e à procura de uma Nesse estudo os conceitos de conflitos existência livre como estratégia de sobrevi- ambientais e território são essenciais para a vência, encontraram na bacia hidrográfica do análise das práticas humanas no ambiente ur- igarapé da Fortaleza condições favoráveis para bano. Assim, de acordo com a abordagem con- a realização de sua existência, o que explica, ceitual procedeu-se à identificação das princi- possivelmente, a forma como os moradores fo- pais mudanças no espaço urbano da área da ram construindo modos de vida e de trabalho Ressaca Lagoa dos Índios, de maneira a verifi- na região (Gomes, 1999). car as diferentes formas históricas de apropria- No memorial descritivo da comunidade ção, ocupação e organização social do territó- existe uma carta, de 1802, que refere a partilha rio estudado, conforme a seguir. das terras para a comunidade com o nome São Pedro dos Bois. E que, a partir dessa partilha, outras vilas se formavam com várias famílias Processo de ocupação da Lagoa dos Índios que vieram para a região da Lagoa. Porém, no decorrer do século XX, essas vilas se separaram, se desfizeram. De uma única partilha, que era a posse São Pedro, surgiu a Lagoa de Fora, A Ressaca Lagoa dos Índios, segundo seus o Coração, o Porto do Céu. Consta também no moradores, inicialmente foi habitada por indí- memorial que em 1962 foi emitida, pela Divi- genas e em seguida pelos negros que ocupa- são de Terras e Colonização, Carta de Adjudica- ram a região após o término do projeto colo- ção2 em favor dos herdeiros Antonio Guardiano nial português, na segunda metade do século da Silva, José Raimundo da Silva, Auta Maria XVIII. Contudo, é difícil saber como índios e da Conceição, Raimundo Cândido da Silva e negros estabeleceram relações na Lagoa e que Manoel Joaquim dos Santos, dando-lhes direito processos “adaptativos” vivenciaram (Little, à posse das terras. 2001). Consta na memória de seus habitantes Ao longo dos séculos XIX e XX, os mora- que, provavelmente, os negros que se instala- dores se estabeleceram na região e iniciaram ram na região são provenientes das relações um processo de intervenção no ambiente, con- escravagistas, estabelecidas durante o projeto figurado pela construção de moradias e pelas 268 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... atividades de pesca, pequenas plantações e Nesse local há o Centro de Convivência, a Igre- criação de gado. Por muitos anos, a forma de ja Católica Nossa Senhora do Carmo, a Escola vida e de trabalho caracterizado pelas ações Estadual Lagoa dos Índios, as casas dos mora- do grupo pouco pressionou os recursos natu- dores e alguns terrenos de particulares. rais da região. Assim, presentemente, percebe- 2) Casas de moradores e mansões ao longo -se que, durante muito tempo, as alterações do ramal Lagoa dos Índios – local de acesso à provocadas pela presença dos moradores ne- rodovia Duque de Caxias3 (atualmente rodovia gros foram tímidas e quase não modificaram o Duca Serra); ambiente da Lagoa. O território pertencente aos primeiros 3) Conjuntos residenciais Cabralzinho, Buriti e Cajari e empreendimentos comerciais; habitantes negros era de difícil acesso e cons- 4) Complexo penitenciário e órgãos de apoio tituía uma área bastante grande que acompa- ao transporte – Serviço Social de Transporte nhava, praticamente, todo o entorno da Lagoa (SEST) e Serviço Nacional de Apoio ao Transpor- dos Índios. Na época, a área explorada por eles te (SENAT); era de uso comunal, e as primeiras moradias 5) Bairros Marabaixo I e II, III e IV; e foram feitas às margens do igarapé da Fortale- 6) Grandes terrenos deixados por herança e za, por ser ambiente propício para a agricultura titulados pelo Instituto Nacional de Colonização e aquisição de alimentação. e Reforma Agrária (Incra), tanto para pessoas No presente, a expansão urbana, pro- de fora do grupo como para moradores negros. vocada pelo crescimento demográfico – que O acesso a esses terrenos se dá pelo chamado se deu de forma horizontal – e pelas constru- Ramal do Goiabal e por ramais secundários. ções de novos empreendimentos no território, Nesses terrenos existem pequenos igarapés que desarticulou a forma de vida e as atividades deságuam no igarapé da Fortaleza. desenvolvidas pela comunidade. As novas di- As novas dinâmicas de ocupação do nâmicas ocorridas no território da Lagoa dos território da Ressaca são evidenciadas pelas Índios, corroboradas pelo processo de urbani- ações de grupos privados e do poder público zação da cidade de Macapá, levaram a comu- que exercem pressão sobre o território da Res- nidade negra a viver uma situação de conflitos saca e, consequentemente, sobre a área da e confrontos com novos agentes que vêm comunidade negra.4 transformando o território. A seguir descrevem-se os agentes e No decorrer das visitas à área, foi possí- impactos ambientais que vêm sendo dese- vel perceber a presença dos novos agentes no nhados na área da Lagoa e que se contra- espaço da Lagoa dos Índios, conforme abaixo: põem ao modo como a comunidade rema- 1) Vila comunitária – local onde reside a maioria dos membros da comunidade negra. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 nescente de quilombo vinha convivendo com aquele território. 269 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos Impactos ambientais decorrentes do processo de urbanização e especulação imobiliária erigidas nos mais diversos locais da cidade, loteamentos foram criados e conjuntos habitacionais foram construídos, sem os mínimos critérios de uso e ocupação do solo. É interessante observar que até 1980 a comunidade negra não havia se preocupado A área Lagoa dos Índios – bem como as demais com o processo de especulação imobiliária tra- Ressacas de Macapá e Santana – foi tombada zida pela acelerada urbanização da Lagoa nem como patrimônio natural pela Lei n. 0455/1999. com a questão das demarcações de suas ter- Entretanto, essa Lei não foi suficientemente efi- ras. Assim, até o final dos anos de 1990, os ob- caz para combater às diversas agressões verifi- jetivos do Estatuto da Associação dos Morado- cadas na Ressaca. res da Comunidade Lagoa dos Índios (AMCLI), O território da comunidade quilombola fundada em 28 de julho de 1995, reafirmavam da Lagoa dos Índios se destaca por ser, ainda, as características rurais da comunidade, esbo- um local que abriga uma paisagem natural çando apenas uma preocupação com a “de- relativamente exuberante dentro da cidade vastação da área”. de Macapá. Em função de sua preservação O território quilombola sentiu os efeitos e de sua localização, próxima ao centro da da instalação de empreendimentos governa- cidade, a Ressaca representa, hoje, no mu- mentais (como a construção da rodovia Duque nicípio, uma das áreas mais cobiçadas pela de Caxias e do Complexo Penitenciário) e de especulação imobiliária com a presença de empresas diversas, constituição de conjuntos empresas de prestação de serviços, bairros, habitacionais e loteamentos, edificações que conjuntos residenciais e loteamentos instala- foram redesenhando o território da Ressaca. dos recentemente, conforme caracterização Atualmente, a comunidade negra vivencia di- no item anterior. versos impactos relacionados às novas dinâ- As políticas traçadas pelos governos fe- micas impostas ao seu território, dentre elas deral, estadual e municipal para a economia a perda de legitimidade de parte significativa amapaense, por meio de grandes projetos de suas terras, aliada à forte antropização da agro-industriais – desde os anos 1950 – e a re- área, evidenciando a perda dos recursos natu- cente implantação da Área de Livre Comércio rais que, até bem pouco tempo, constituíam a de Macapá e Santana (ALCMS) foram respon- base de sua sobrevivência. sáveis pela atração de um número elevado de Portanto, essas novas práticas urbanas pessoas para a região que vieram em busca de configuradas no espaço da Lagoa dos Índios uma perspectiva econômica e social (Porto e vêm motivando situações conflituosas em rela- Costa, 1999). Isso contribuiu mais ainda para ção ao modo de vida e de trabalho do segmen- o crescimento acelerado da cidade, principal- to quilombola dentro do ecossistema Ressaca. mente durante as décadas de 1980 e 1990, Contudo, decorrente do processo de onde ruas foram abertas sem nenhum crité- urbanização e especulação imobiliária, a pró- rio, empresas de diversas naturezas foram pria comunidade negra foi vendendo seus 270 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... terrenos deixados por herança e titulados pelo ser avaliada: os agentes agressores do meio Incra-AP. Esse órgão, em novembro de 2005, ambiente urbano podem ser tanto agentes es- fez um levantamento das propriedades com pecíficos – empresas prestadoras de serviço – títulos definitivos localizados na área contesta- quanto agentes difusos – conjunto de proprie- da. O levantamento destacou que no território tários de residências, banhistas. Porém, quan- reivindicado pela comunidade existem, atual- to aos agentes afetados pela degradação, mente, vinte posses. Desse número, dez têm esses são específicos – grupo quilombola em- recibo de compra e uma está em processo de pobrecido que sofre os efeitos de forma mais regularização fundiária tramitando no Incra. imediata, habitantes do local afetados pela Os títulos definitivos concedidos pelo Incra-AP poluição da Lagoa. Por isso, é primordial iden- aos proprietários, datados entre 1978 e 1999, tificar a problemática da intermediação de in- correspondem a um total de 379,6604 hecta- teresses que envolvem atores plurais e difusos res. Vale ressaltar que entre proprietários com nessa questão, inclusive o Estado. título definitivo estão pessoas descendentes da comunidade e pessoas que adquiriram terrenos ao comprarem de descendentes de mo- Descrição dos impactos radores negros (terras deixadas por herança). Há, também, terrenos com título definiti- 1) Alterações causadas pelo avanço do espaço vo que ficam próximos ao território reivindica- transformado sobre o espaço natural da Ressaca Lagoa dos Índios A atratividade da Lagoa, por sua beleza natural e estética, acelerou o processo de crescimento urbano da sua área, com a presença crescente de novos moradores, o que tem trazido problemas variados. Problemas causados principalmente pela falta de planejamento institucional para o uso do território da Ressaca. A ausência de planejamento por parte dos órgãos responsáveis pelo ordenamento territorial e urbano, os aqui chamados agentes político-institucionais, possibilitou o aumento do número de construções e atividades comerciais no território da Lagoa que, a cada dia, sofre de forma mais contundente com a pressão antrópica sobre os recursos naturais, alterando a paisagem local. A Lagoa, há cerca de duas décadas, era considerada no planejamento do município como zona rural de Macapá; porém, com o crescimento populacional da cidade, do pela comunidade negra, mas que exercem pressão sobre o ecossistema Ressaca. Os técnicos do Incra localizaram quatro terrenos titulados, entre 1982 e 1984, com extensão variada. Portanto, os riscos atuais aos quais está exposta a área da Ressaca Lagoa dos Índios decorrem principalmente de conflitos em torno da ocupação do território urbano e de seu planejamento. A preocupação, desse modo, não recai apenas sobre os aspectos físicos e naturais, mas também sobre a implantação de infraestrutura funcional; a organização socioeconômica e cultural; a preservação do patrimônio histórico e natural; a melhoria da qualidade de vida dos moradores. Aspectos que os responsáveis pelo planejamento da cidade e pela sociedade em geral devem considerar. Observando-se as situações que evidenciam problemas socioambientais na área da Lagoa, uma questão importante deve Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 271 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos hoje, ela se encontra dentro da área urbana na ambientais, mas, sobretudo, pela quase au- parte oeste do município. Atualmente, é como sência de infraestrutura urbana do município se existisse outra cidade composta pelos con- que não oferece serviços de saneamento bási- juntos residenciais, pelos bairros e loteamentos co para a cidade e, consequentemente, para a que formam um enorme conglomerado urbano área estudada. (Veiga, 2003). Isso significa que a parte oeste Observa-se que o Instituto de Administra- da cidade sofreu um forte processo de antro- ção Penitenciária do Estado do Amapá (Iapen), pização, passando a crescer, então, para o en- agente político institucional, segundo nossa ca- torno da Lagoa, processo que vem deixando racterização, é um dos maiores poluidores da visíveis os problemas ambientais na área. área. O Iapen é responsável pela presença de A falta de planejamento e de políticas águas residuais e dejetos humanos que lenta- públicas urbanas tem possibilitado a autoriza- mente polui e degrada a área da Lagoa, pois ção de construções de porte variado, sem levar a rede de esgoto não é suficiente para atender em conta as atuais limitações infraestruturais toda a demanda da penitenciária. O Instituto da Ressaca. Desse modo, o aumento do núme- despeja os efluentes líquidos e demais detritos ro de residências e de atividades na área, e a sob o solo, que aos poucos se infiltra nos cor- falta de saneamento básico concorrem para a pos hídricos. saturação do ecossistema da Lagoa. A falta de saneamento básico, responsa- As empresas pesquisadas foram unâ- bilidade do poder público e, portanto, a cargo nimes em afirmar que sempre utilizaram tra- do agente político institucional; o aumento in- tamento de esgoto próprio, aprovado pelos discriminado de construções, provocadas pelas órgãos ambientais. Já os representantes dos ações dos agentes econômicos; e a abertura de conjuntos habitacionais garantiram que têm ruas e avenidas sem pavimentação têm acen- lixo coletado pela Prefeitura Municipal de Ma- tuado o processo de erosão do solo e carrea- capá (PMM) e água tratada em poço tubular, mento de sedimentos para o leito dos cursos de mas não tem tratamento de esgoto. água da Ressaca. Quanto aos bairros ou loteamentos mais Também, contribui para a contaminação novos localizados do entorno da Lagoa não e degradação da área a presença de banhis- possuem coleta de lixo nem tratamento dos tas e pescadores que jogam diretamente na resíduos sólidos e líquidos. Assim, percebe-se Lagoa, entre outras coisas, garrafas de vidro e que o esgoto proveniente das instalações mais resíduos sintéticos (plásticos), configurando a recentes é diretamente lançado in natura no problemática da ação de agentes sociais. Essa solo ou dentro da parte alagada da Ressaca. É poluição é provocada pela atividade constante visível o descarte dos efluentes líquidos e dos de pessoas que utilizam ou simplesmente pas- detritos domésticos dentro dos corpos hídricos sam pelo local. Um dos lugares mais afetados do ecossistema, produzidos pela presença de por essas atividades é a área localizada ao atividades de órgãos públicos e das habita- longo da rodovia Duque de Caxias – que atra- ções. Essa prática está relacionada à falta de vessa a Ressaca e liga Macapá ao município monitoramento e fiscalização pelos órgãos de Santana. Algumas pessoas utilizam a ponte 272 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... da rodovia, nos dias de semana e, principal- espaço transformado sobre o espaço natural mente nos finais de semana, para o lazer e a fizeram com que o impacto degradante das pesca. Os resíduos decorrentes destas ativi- ações humanas afetasse diretamente a Ressa- dades – garrafas de bebidas alcoólicas, sacos ca Lagoa dos Índios, deteriorando o ambiente e garrafas plásticas, além do fogo usado para urbano nas suas características físicas, naturais assar o peixe apanhado no local – são deixa- e socioculturais. Por isso, em relação a esse dos pelos pescadores e banhistas dentro ou na aspecto, Oliveira e Hermann (2005) lembram borda da Lagoa. que nas cidades a noção de ambiente deve ser Em decorrência dessas atividades, dois vista de maneira mais ampla, incorporando diagnósticos foram realizados na Ressaca aspectos naturais, infraestruturais e paisagís- Lagoa dos Índios: um elaborado por Maciel ticos, indispensáveis ao seu funcionamento co- (2001), a partir da solicitação da Secretaria de mo habitat humano. Meio Ambiente do Estado do Amapá (Sema), e outro por Takiyma e Silva (2003), por meio do 2) Alterações caracterizadas pela supressão da Instituto de Estudos e Pesquisa do Estado do mata ciliar Com a pressão imobiliária exercida sobre a Ressaca pelos agentes econômicos locais, a mata ciliar da Lagoa está quase extinta em boa parte de sua borda. A instalação da rodovia Duque de Caxias pelos agentes políticos institucionais e as diversas construções provocaram a retirada da mata ciliar da Ressaca e, como consequência, o deslocamento da fauna, decorrente da extinção de seu habitat e da redução das áreas de refúgio e alimentação das espécies; além disso, provocaram erosão e assoreamento da Lagoa (Takiyama e Silva, 2003). Dentre as edificações que contribuem para a retirada da mata ciliar está o complexo comercial de propriedade particular (casa noturna Choperia da Lagoa), o supermercado Y Yamada e a Faculdade de Macapá FAMA). Todos esses empreendimentos localizados no espaço do antigo supermercado Casa das Carnes. Esse complexo vem ocupando completamente a borda da Ressaca, lugar de mata ciliar, no lado direito da rodovia Duque de Caxias. Para o complexo comercial, a Sema exigiu em 1997 o Plano de Controle Ambiental Amapá (Iepa). Os diagnósticos apontaram que existe um processo de eutrofização artificial da Lagoa, causado pela intensa ocupação no seu entorno e pela emissão constante de detritos, o que tem provocado aumento significativo de matéria orgânica, facilitando formação de gases venenosos (metano e enxofre), causando a morte dos peixes e tornando a água proibitiva ao consumo humano. A imensa sedimentação na Lagoa provocada pela ação antrópica, pelo aterramento e pela presença de vegetação macrófita, dificulta a penetração dos raios solares na água. Devido a esse processo, há quebra da estabilidade do ecossistema, ocasionando um desequilíbrio entre a produção da matéria orgânica, o consumo e a deposição de lixos de toda natureza. Assim, observa-se que a implosão demográfica dos agentes sociais, a explosão das atividades socioeconômicas dos agentes econômicos locais e a negligência e falta da ação dos agentes político-institucionais têm transformado os espaços urbanos da Ressaca. As alterações causadas pelo avanço do Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 273 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos intitulado “Urbanização da margem adjacente os interesses do complexo comercial do agente da Lagoa dos Índios a Casa das Carnes”. O ob- econômico local e as intervenções dos agentes jetivo do plano era conter o elevado grau de político institucionais, em particular da Sema, degradação ocasionado pela retirada da mata que, a princípio, deveria proteger a qualidade ciliar, pelo despejo de lixo e pela ocupação de- dos recursos ambientais, impedindo dessa for- sordenada da área. Naquela época, o documen- ma, a expansão das obras. to referia-se ao fato de que o Supermercado Do lado esquerdo da rodovia Duque de Casa das Carnes estava “implantado e desen- Caxias (sentido leste-oeste), na margem da volvendo suas atividades próxima a uma área Lagoa, existe a empresa revendedora de bebi- de Ressaca, mesmo sendo considerada área de da Skol, seguida por várias concessionárias de Preservação Permanente, mencionada no Art. veículos, todos agentes econômicos locais, que, 18 da Lei n. 6.938/81” (1997, p. 4). A justifica- apesar de não serem focos de questionamen- tiva dessa intervenção era “harmonizar as edi- tos, também não respeitam os limites para pro- ficações ali implantadas através de suas áreas teção da mata ciliar. A revendedora de bebida de lazer, com contemplação visual que a Lagoa também já construiu calçada e implantou pro- oferece, facilitando através de acessos urbani- jeto de ambientação, ocupando a área reserva- zados, a aproximação das pessoas com a na- da para proteção da vegetação. As concessio- tureza”. O plano evidenciava a implantação de nárias de veículos têm inclusive um restaurante uma barreira de contenção que visava conter para atender aos funcionários nos limites da futuros processos de erosões naturais, bem co- área de proteção permanente. É interessante mo a degradação pela interferência humana, já verificar, ainda, que ao mesmo tempo em que que a área ficaria sob vigilância constante dos há a retirada da mata ciliar ocorre a deposição órgãos ambientais. de entulhos e restos de material provenientes Contudo, o jornal Folha do Amapá (26/8/05) refere-se às obras de ampliação das instalações como sendo “um crime ambiental” praticado contra a Lagoa dos Índios. E acrescenta: As obras de ampliação [da Fama] estão invadindo a Lagoa, aterrando aquela área de Ressaca já tão maltratada pelas mãos, não de invasores comuns, mas de gente esclarecida que a princípio teria de dar em primeiro lugar o exemplo. No final questiona se esse tipo de obra tem li- das construções e das atividades executadas naquele espaço da Lagoa. O que se verifica, então, é a falta de atuação eficiente dos agentes político-institucionais e, portanto, o avanço das atividades dos agentes econômicos locais que transformam o território para suas atividades econômicas, sem considerar os danos ambientais ao ambiente urbano e as populações que vivem dos recursos do ecossistema da Lagoa. 3) Modificação do relevo da Lagoa cença ambiental. E se tem, “é no mínimo estra- As cavas para extração da argila para nho que as autoridades ambientais do Estado produção de tijolos e a disposição inadequada e do município a tenham liberado”. Com isso, de rejeito estão modificando o relevo de algu- confirma-se a questionável convergência entre mas partes da Lagoa dos Índios. Atualmente, 274 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... a Lagoa tem sido poluída em decorrência das 4) Destruição do ecossistema Ressaca atividades das empresas produtoras de tijolos pelas queimadas A seca, principalmente no verão, ocasiona focos de queimadas na Ressaca, provocando a morte de animais e a redução da vegetação na área. A Associação de Mulheres Negras da Comunicada Lagoa dos Índios (AMNCLI) vem afirmando que desconhecem a origem dos incêndios que ocorrem na Ressaca e que as queimadas constantes trazem perdas para a comunidade, principalmente porque elas estão relacionadas diretamente com a extinção da fauna aquática (peixe, tartaruga, etc.). É interessante ressaltar que a pesca é uma das poucas atividades ainda existentes na comunidade. Para o Corpo de Bombeiros do Amapá (CBA), as queimadas na Lagoa dos Índios ocorrem geralmente no verão, quando a temperatura está muito elevada. O CBA aponta que os motivos para o início de uma queimada podem estar associados ao ciclista que passa na rua e joga uma “bituca” de cigarro na vegetação seca; ao morador que pesca e faz fogo nas margens da lagoa para assar o peixe – algo comum na área – deixando vestígios de fogo, muitas vezes potencializado pelo vento constante no local; ou, também, pela existência de garrafas de vidro que entram em contato com o sol intenso, sofrendo processo de combustão no local. A forma de controle do fogo, em geral, é feita com abafadores, mas quando não é possível sua utilização, os bombeiros recorrem à água, método antigo e pouco econômico. Também, algumas vezes, o CBA utiliza o método dos aceiros nos incêndios de grande proporção. Contudo, apesar da ação de fiscalização e monitoramento da área os órgãos ambientais não e telhas (olarias) e das atividades realizadas por barcos e voadeiras de pequeno porte, que transportam os mais variados produtos e materiais, ao longo dos canais que se ligam ao Igarapé da Fortaleza. Como consequência desse impacto, os sedimentos finos (argila, silte e areia fina) são transportados para os corpos hídricos locais, ocorrendo o assoreamento da Lagoa e alterando a morfologia das drenagens. O assoreamento altera também a qualidade das águas (sólidos em suspensão) e a vazão em determinada época do ano (período seco ou chuvoso), interferindo na vida das espécies da flora e da fauna aquáticas (Takiyama e Silva, 2003) e, consequentemente, das atividades de pesca da comunidade quilombola. Dessa forma, as empresas – agentes econômicos locais – que extraem material, recursos naturais de dentro da lagoa, produzem um dano ambiental muito grave, às vezes irreversível, com essas atividades. No entanto, apesar dos agentes sociais da região terem tentado negociar medidas compensatórias e reparadoras para evitar a degradação da Lagoa pelas atividades econômicas, as empresas não têm tido sensibilidade para tais negociações, conforme relato do presidente da ONG, Amigos em Ação. Mais uma vez, a falta de ação e a negligência dos agentes político-institucionais e das ações dos agentes econômicos locais parecem caminhar juntas, produzindo como resultado a degradação da Lagoa e a diminuição do bem-estar e das possibilidades de reprodução social dos agentes sociais que dela e nela vivem. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 275 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos têm conseguido evitar as constantes queima- condicionada pelas ações de bens comuns, das no local. também no âmbito local. Assim, os agentes so- A respeito das queimadas, os gestores ciais são constituídos pelo grupo que se formou da Sema afirmam que o fogo é provocado pela a partir das práticas sociais e da construção de pesca e consumo de lazer que deixa resquícios. uma identidade que faz referência a sentimen- Outra causa apontada é a queima do lixo dos tos de pertencimento do lugar, a um estilo de moradores do entorno que não verificam a ex- vida diferenciado daquele imposto pela lógica tinção total do fogo após a queima. Em geral, de mercado – o caso do grupo quilombola. constata-se que são os agentes sociais os mais Cabe acrescentar nessa caracterização os responsáveis pelas queimadas e os seus impac- agentes político-institucionais. Esses agentes tos na Lagoa. são aqueles constituídos pelo poder público e por suas instituições que, por ação, omissão ou negligência, impõem ou desencadeiam um uso Considerações sobre os agentes do território a partir do modo como estabelecem suas políticas, sendo considerados, portan- Em decorrência dos impactos ocorridos na La- to, também como produtores de espaço. goa dos Índios, observaram-se três tipos de Por meio do trabalho de campo, da ob- agentes presentes no plano local: econômicos, servação participativa no local e de conversas sociais e político-institucionais. informais com moradores e representantes das Seguindo Costa e Braga (2004), os agen- instituições pesquisadas, os agentes apontados tes econômicos são aqueles constituídos por pela pesquisa foram identificados. A análise um agrupamento de setores empresariais, com dos seus papéis na região permitiu fazer al- interesses comuns, cujas atividades econômi- gumas inferências sobre suas ações e sua im- cas estão condicionadas pelas ações de regu- portância no desencadeamento da degradação lamentação e provisão de condições gerais de ambiental e dos conflitos da Ressaca Lagoa produção no âmbito local. Os agentes econô- dos Índios, expostos a seguir. micos locais são, portanto, as empresas que dependem diretamente das regulamentações 1) Agentes políticos institucionais: o poder feitas pelo governo, como é o caso das em- público O Estado é considerado pela literatura sobre conflitos socioambientais como aquele que tem maior peso nas ações que envolvem os interesses dos diferentes agentes em âmbito local. Enquanto produtor de espaço, o Estado é visto como um dos elementos centrais para a definição do valor de uma localidade. Contudo, conforme Penna (2003, p. 57) deve-se levar em consideração uma interpretação do sentido da produção social do espaço que ultrapasse presas prestadoras de serviços e de produção, das incorporadoras imobiliárias e do setor de diversão pública. Inclui-se dentre esses agentes econômicos, as empresas cuja instalação ou ampliação estão sujeitas a restrições impostas pela lei de uso e ocupação do solo. Ainda segundo os autores supracitados, agente social é aquele agrupamento de instituições e/ou grupo social com interesses comuns, cuja atividade de reprodução está 276 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... “uma análise simplesmente política do papel não responde pela ocupação do solo nem pelo do Estado na reprodução e na crise da cidade saneamento. Já o órgão responsável pelo uso para compreender a produção das relações so- e ocupação do solo não responde pelas áreas ciais a partir da sua própria ação”. verdes. Assim, também, ocorre com os órgãos Assim, em função de reverter tendên- responsáveis pela demarcação das terras qui- cias de ocupações, de gerar novas perspec- lombolas, o Ministério de Desenvolvimento tivas de uso, de mobilizar áreas por meio de Agrário (MDA), o Incra e a Fundação Cultural seu tombamento, de instalar grandes equipa- Palmares (FCP) que não dialogam com os res- mentos e de criar infraestrutura, o Estado é o ponsáveis pelas demais questões que envol- principal agente na valoração e na valoriza- vem a comunidade negra. ção do espaço. No caso do estado do Amapá, existe a Se- Considerando-se as questões descritas cretaria Extraordinária dos Afro-Descendentes anteriormente, com relação ao papel dos agen- do Amapá (Seafro) que mantém parceria com a tes político-institucionais, o poder público, nos FCP e a Secretaria Especial de Políticas de Pro- conflitos ambientais, se define a partir da ten- moção da Igualdade Racial (Seppir) que atua são entre desempenhar um papel de mediação em parceria como o MDA. A Seafro não recebe do conflito ou definir-se como parte interessada financiamento do governo do Amapá para suas nele (Sabatini, apud Costa e Braga, 2004). No funções, e fica, dessa maneira, mais vinculada âmbito local, as instituições públicas são extre- aos órgãos federais, o que dificulta suas funções mamente vulneráveis às pressões de agentes administrativas, processuais e de execução. econômicos, como foi confirmado no local de Ademais, cabe chamar atenção para o estudo. As políticas habitacionais tendem, por- fato de que, nos níveis municipal, estadual e tanto, a abrir obras de infraestrutura urbana federal de governo, a cargo da Secretaria de para novas localizações para o mercado imobi- Meio Ambiente e Turismo (Semat), Sema-AP, liário que sustenta a especulação, relegando os e o Ministério do Meio Ambiente (MMA), moradores a uma invisibilidade expropriadora. respectivamente, a política ambiental está Além disso, na esfera pública local ocorrem as desvinculada das demais políticas públicas e disputas de interesses específicos existentes das políticas econômicas, pois ela não é con- entre os diversos setores do poder, no que se siderada nem uma política social, nem uma refere aos objetivos das políticas ambientais política de desenvolvimento. Da mesma forma, urbanas. Essas disputas provocam conflitos en- a responsabilidade dos órgãos ambientais se tre poderes quanto às políticas ambientais, ou restringe à gestão dos espaços verdes urbanos pela ausência delas. e a fiscalização das fontes fixas de poluição. Há, constantemente, uma fragmentação Costa e Braga (2004) afirmam que a forma de político-administrativa da questão urbano- considerar as questões voltadas para a políti- -ambiental, pois as políticas são implantadas ca ambiental não tem possibilitado que essa de forma setorizada havendo pouco diálo- política esteja vinculada a questões como sa- go entre os diversos órgãos governamentais. neamento, sistema de transporte e regulação Desse modo, quem cuida da questão ambiental do uso e ocupação do solo, pois são questões Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 277 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos que, no mais, ficam a cargo de órgãos não integrados, dotados de lógicas distintas e atuação pontual. 2) Agentes econômicos locais Conforme Santos e Silveira (2001), as grandes empresas organizam suas atividades Há, também, contradição entre os obje- criando circuitos espaciais de produção. Para tivos e as diretrizes voltadas para as políticas funcionar, elas devem regular seus processos urbanas, muito frequente entre as ações do produtivos – hoje dispersos no território nacio- executivo, legislativo e judiciário e os órgãos nal –, sua circulação e sua contabilidade. Isso executores. Existem casos em que o legislativo significa, de um lado, a existência de impera- elabora e aprova uma determinada lei, mas os tivos microeconômicos, internos à firma, capa- órgãos do governo não se encontram prepara- zes de vincular, por exemplo, áreas de cultivo dos técnica ou financeiramente para executá-la. e lugares de elaboração dos seus produtos e Outra questão que envolve o poder das embalagens necessárias, e, de outro, a exis- público é o distanciamento entre as políticas tência de imperativos macroeconômicos, como propostas e a realidade dos processos de pro- sua participação mais ou menos explícita na dução do espaço urbano. É o caso da política fixação de tarifas de serviços e insumos. Esses de uso e ocupação do solo e de proteção de imperativos supõem a permanente negociação áreas verdes. Muitas vezes, essa política fica da empresa com o poder público e com outras meramente no plano discursivo – é o caso da empresas, para redefinir seu comportamento Lei 0455/1999 sobre as Ressacas – e do Pla- político e os setores e lugares que lhe interes- no Diretor da cidade de Macapá, concebidos sam. É desse modo que se definem e redefinem a partir de uma lógica normativa distante dos as localizações, as topologias de empresas. rumos já tomados pela produção do espaço As empresas privadas – concessionárias urbano, no qual o aparato regulatório rígido de veículos, revendedora de bebida e par- contrapõe-se à realidade de produção do es- te do complexo empresarial de propriedade paço mais flexível. particular (FAMA e Supermercado) –, entendi- No próprio poder público ocorrem con- das aqui como todas as empresas que prestam flitos, como aqueles entre a agência ambien- serviços, direta ou indiretamente na área e ca- tal e os órgãos do poder local, responsáveis racterizadas como agente econômicos locais, pela realização de obras públicas. As obras vêm sendo alvo de críticas no tocante às res- do Instituto Penitenciário são emblemáticas ponsabilidades na Lagoa dos Índios. nesse caso. A própria administração municipal Os impactos negativos ao meio ambiente provoca impacto sobre o meio ambiente, com e à comunidade são comumente atribuídos a obras de canalização de rios, implantação de essas empresas. Interessadas nos lucros ime- aterros sanitários e depósitos de resíduos. Há, diatos, com avidez pelo solo urbano para am- também, a ausência de continuidade admi- pliação de seus empreendimentos e até para nistrativa, o que emperra as negociações dos a especulação imobiliária, usam os recursos problemas ambientais, feitas de forma lenta e naturais e produzem lixo, poluição, dejetos des- por etapas de longo prazo. pejados no meio em detrimento da melhoria da 278 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... qualidade de vida da população local e da me- entendimento dessas responsabilidades, con- lhoria do ambiente. Dessa forma, as empresas forme preveem os órgãos do estado. privadas aparecem no território como agentes produtores de impactos ambientais negativos ao invés de potenciais parceiros locais no desenvolvimento da área. 3) Agentes sociais A comunidade local, aqui representada por duas associações, é importante protago- Os próprios órgãos estaduais e muni- nista na situação ambiental da Ressaca. Como cipais explicitam que não existem iniciativas agente social, não constitui um bloco monolí- dessas empresas para a minimização dos im- tico de interesses, estruturando-se em grupos pactos ambientais, produzidos por resíduos diferenciados e particulares. Portanto, não se sólidos e líquidos, nem se percebem trabalhos trata de um único grupo de agentes sociais e, educativos junto aos clientes, nem códigos de também, não existem bases consensuais, no conduta, que mostrem que as mesmas podem que se refere a seus anseios e desejos, diante regulamentar seus próprios comportamentos, do destino da comunidade. afastando assim a necessidade de interven- As duas associações representantes dos ção governamental. Assim, muitas críticas são remanescentes de quilombo existentes na La- feitas à ausência de ações e à falta de respon- goa dos Índios diferenciam-se pelo papel que sabilidade desses agentes. A questão está no vêm desempenhando junto aos moradores e fato de, na maioria das vezes, as empresas não pelos projetos requeridos para a comunida- estarem preocupadas nem com o meio ambien- de. Nesse sentido, pode-se dizer que há dois te – sustentáculo de seus investimentos –, nem grupos de interesses: os da Associação de com a socialização dos benefícios gerados por Moradores da Comunidade Lagoa dos Índios elas junto à comunidade. (AMCLI), com cerca de 300 moradores asso- Estariam sob responsabilidade dessas ciados, e da Associação de Mulheres Negras empresas: a implantação de técnicas para auxi- da Lagoa dos Índios (AMNCLI), com 376 mu- liar o uso, de forma sustentável, dos solos, das lheres associadas. águas e das florestas; a redução do lixo e da A disputa de poder entre as associações destinação final adequada do mesmo; o uso de tem emperrado, em alguns momentos, o pro- forma adequada da energia; a proteção à co- cesso de decisão sobre as demandas da comu- munidade quanto ao seu patrimônio cultural e nidade. Assim, elas, muitas vezes têm tido o pa- a projetos sociais; o respeito à herança cultural pel de meras consultoras de políticas públicas, da comunidade local, o investimento na con- muitas vezes já preestabelecidas pelo poder servação e recuperação de patrimônios natu- público. Isso ocasiona a falta de participação rais degradados e a minimização de impactos da comunidade em todas as etapas de plane- gerados pelo uso de materiais biodegradáveis. jamento para a gestão ambiental e do território As responsabilidades das empresas, co- e das ações empreendidas pelos atores pre- mo atores sociais, no desenvolvimento de ati- sentes na área. Além disso, essas associações vidades em escala local são, em tese, muitas, não têm cumprindo o papel de vencer etapas mas o desafio atual está em aproximá-las do como: elaboração de inventários dos recursos Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 279 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos naturais; estudos de potencialidades da área; e identificação daquilo que é considerado como Critérios de definição e tipologia dos conflitos ambientais herança numa comunidade, patrimônios que possam permanecer para as gerações futuras Por meio de documentos coletados e do re- (inclusive o cultural). ferencial teórico baseado em Little (2001) e A visível instalação de empreendimentos Acselrad (2004), buscou-se evidenciar dois comerciais e imobiliários tem se constituído em critérios de análise, de acordo com as novas um dos principais problemas para as famílias dinâmicas socioespaciais e ecológicas presen- da Lagoa dos Índios. O frenético crescimento tes na Lagoa dos Índios e a constituição e/ou urbano-industrial na região comprime o terri- participação dos agentes no local: os usos do tório quilombola, e calcula-se que nos últimos território e as representações ou as visões de vinte anos a comunidade perdeu aproximada- mundo e/ou significados dados a ele. mente 10 mil hectares de terras para empresas e demais empreendimentos comerciais. Os usos do território referem-se à forma como são apropriados, modificados e/ou construídos os objetos (Santos, 1994) presentes nele pelas práticas sociais específicas dos Conflitos ambientais no território da Ressaca Lagoa dos Índios No espaço da Lagoa dos Índios, os agentes político-institucionais, econômicos locais e sociais estão dotados de possibilidades diferenciadas para fazer significar suas ações e suas respectivas visões de mundo. Assim, na busca de formas de apropriação e uso do território e dos agentes. Acselrad (2004) afirma que há uma interface entre mundo social e sua base material. Assim, aquilo que as sociedades fazem com seu meio material [...] não se resume a satisfazer carências e superar restrições materiais, mas consiste também em projetar no mundo diferentes significados – construir paisagens, democratizar ou segregar espaços, padronizar ou diversificar territórios sociais, etc. (p. 15) seus recursos, esses agentes enfrentam-se no terreno, medindo forças entre a imposição de É nesse sentido, então, que é importante novas condicionalidades econômicas e ambien- salientar também a dimensão das representa- tais e a manutenção de atividades tradicionais. ções ou visões de mundo, já que incide direta- Considerando-se essa questão, foram definidos mente na forma como o território é usado pe- alguns conflitos socioambientais representati- los agentes. A variedade de visões de mundo vos na área. ou representações compõe diversos usos que 280 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... se materializam no território da Lagoa e, por- de titulação, não reconhecia o território negro, tanto, define formatos de relações com a natu- e que, por isso viabilizou, no passado, a conces- reza ou com o ambiente construído. são de uso da terra a proprietários não perten- De acordo com a definição dos dois cri- centes ao grupo negro. térios acima, apresenta-se uma tipologia dos As ações da Seafro são feitas em par- conflitos ambientais baseados nas informações ceria com a FCP, a Seppir e o Incra. A Seafro coletadas para o estudo. apóia o processo de titulação e a elaboração de projetos baseados na “sustentabilidade” 1) Conflito pela definição político-institucional econômica (artesanato e criação de peixe) co- do território Este conflito é provocado por interesses divergentes entre os órgãos responsáveis pela demarcação do território como patrimônio cultural (FCP, Seppir, Incra e Seafro) e órgãos ambientais que demarcam o território como área de preservação permanente (Sema e Iepa). As posições divergentes quanto à definição do território proporcionam uma fragmentação político-administrativa em torno de seu uso. A FCP, a Seppir e o Incra realizam estudos para viabilizar o processo de demarcação e titulação das terras da comunidade negra. As ações dessas instituições voltam-se, principalmente, para: realização do Diagnóstico Socioeconômico da Comunidade Quilombola; elaboração e manutenção de projetos econômicos, objetivando o estudo dos aspectos da situação fundiária da área ocupada tanto pela comunidade como por outros agentes; além de avaliar o processo de urbanização e especulação imobiliária exercida na comunidade Lagoa dos Índios. Esses órgãos têm como prioridade a titulação do território da comunidade como área remanescente de quilombo. O Incra enfrenta dificuldades na empreitada a que está designado – demarcar e titular a área da comunidade – por falha da própria instituição que, até o início do processo mo forma de reverter o quadro de quase mi- Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 séria que a comunidade enfrenta. Essas instituições significam o território como espaço de reprodução cultural. A Sema, considerando a urbanização desordenada da área, traçou um diagnóstico para recuperação, preservação e uso sustentado da Ressaca (Maciel, 2001). Diagnóstico elaborado após a aprovação da Lei 455, de 22 de julho de 1999, que dispõe sobre a delimitação e o tombamento das áreas de Ressacas como patrimônio natural. Contudo, em tal diagnóstico não consta referências à comunidade negra, pois ele tem a finalidade, tão somente, de evidenciar a necessidade de preservação do local pelo seu valor paisagístico e como forma de encaminhar propostas para proteger o meio ambiente. O Iepa, em parceria com a Sema lançou, em 2003, o “Diagnóstico das Ressacas do Estado do Amapá: Bacias do Igarapé da Fortaleza e Rio Curiaú”. O objetivo desse diagnóstico foi pesquisar os problemas sociais e ambientais, que direta ou indiretamente estão relacionados ao modelo de ocupação da Ressaca e, sobretudo, proporcionar “ações públicas integradas” dentro de uma gestão ambiental planejada (Takiyma e Silva, 2003). Contudo, não consta nenhuma informação sobre o território da comunidade negra. 281 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos A Sema e o Iepa trabalham com a visão interesses divergentes entre a AMNCLI e AMCLI de que a Ressaca é patrimônio natural, desco- por terem divergentes visões sobre o regime de nhecendo ou ignorando a possibilidade da co- propriedade do território. munidade negra guardar tradições fundadas na Primeiramente, o conflito instaurado ancestralidade. Por isso eles viabilizam ações e entre as duas entidades baseou-se no discurso projetos que, de certo modo, passam desperce- da legitimidade de quem poderia movimentar o bidos pela comunidade, pois não a estimulam processo de demarcação e titulação das terras para o diálogo. da comunidade. Como decorrência, observou- O conflito pela definição político-insti- se que existem dois processos encaminhados tucional do território coloca a Seppir, a Seafro ao Incra, desde 2002: o processo encaminhado e o Incra como responsáveis pela garantia do pela AMNCLI (nº 01420.000072/2002-49) direito étnico e pela demarcação e titulação do e processo em tramitação na Procuradoria território remanescente de quilombo e a Sema, da República no Estado do Amapá e na ao lado do Iepa, como responsáveis pela po- Procuradoria Geral da República em Brasília lítica ambiental e pelos estudos, com espaços (nº 1.1200000025/2003-98). de interferência delimitados e com critérios de A AMNCLI, a partir de orientações da competências diferentes. A posição de cada FCP, organizou e encaminhou a documentação segmento, de certa forma, freia o processo de exigida para o processo de Identificação, Reco- demarcação do território quilombola e inviabi- nhecimento, Delimitação e Titulação das Terras liza a definição dos limites da área da Ressaca. Ocupadas em Território Quilombola da Comuni- Processo que corrobora para o avanço da espe- dade Lagoa dos Índios. Dessa forma, a AMNCLI culação imobiliária e da degradação da Lagoa. reivindicou sua legitimidade para movimentar Isso demonstra na prática um descompasso o processo de demarcação e para dialogar com: entre as ações do próprio Estado nos níveis es- grupos e entidades do movimento negro; ór- tadual e federal e na forma e desconhecimento gãos públicos (FCP, Incra, Sema, Seafro, Seppir); da ação de ambos. empresas (em especial aquelas instaladas ao Dessa forma, trata-se de uma divergência quanto aos usos do território que implica longo da rodovia Duque de Caxias) e com proprietários de terrenos dentro da comunidade. diferentes critérios de demarcação. Abrange Contudo, a AMCLI não se sente represen- também divergências quanto às representa- tada e não concorda com as ações da Associa- ções e significados dados ao território, que são ção de Mulheres Negras. Esse conflito coloca diferentes para os agentes político-institucio- em antagonismos os presidentes das duas as- nais envolvidos. sociações, dividindo os moradores sobre qual associação tem legitimidades para encaminhar 2) Conflito pelo regime de propriedade o processo de demarcação das terras da comu- do território Na Comunidade Lagoa dos Índios, percebe-se o conflito relacionado à disputa de poder, provocado pelas desconfianças e defesa de nidade. Isso contribui para acirrar “diferenças”, 282 tensões e conflitos que atravessam o grupo. Percebe-se que as posições antagônicas das duas associações estabelecem claramente a Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... disputa pelo poder dentro da comunidade, di- aumento de atividades modernizantes no local vidindo os moradores. por parte de agentes econômicos. Há interesses divergentes entre os dois As contradições entre as atividades das grupos, com claras diferenças sobre o regime empresas, dos conjuntos residenciais e as prá- de propriedade desejado no território: os que ticas tradicionais da comunidade negra, no en- querem o uso comunal e os que preferem uma tanto, têm sua face mais expressiva quando se forma de propriedade individual. A disputa de trata da degradação da Lagoa, principalmente poder é para efetivar uma dessas alternativas na área reservada para proteção da mata ciliar que vai incidir na organização territorial do gru- e disponível para pesca; e a deposição de lixo po, nas suas práticas socioterritoriais e na pos- (residual), aterramento e erosão, visíveis a par- sibilidade de acesso e uso dos recursos naturais. tir das práticas cotidianas. A forma de utiliza- O efeito da disputa de poder tem refle- ção dos recursos na Lagoa dos Índios obedece xo direto nos mecanismos de alianças entre à lógica de valorização do capital, refletindo-se a AMNCLI e AMCLI e, de certa forma, gera sobre a qualidade de vida do grupo quilombo- fissuras internas, assim como quebra de soli- la, retificando e reproduzindo desigualdades, dariedade e mobilização da comunidade para conflitos e contradições. Os empreendimentos reverter o quadro adverso em que está inseri- empresariais e mobiliários investem em lucros da, influenciando a falta de desenvolvimento imediatos, porém, despreocupam-se com a local e a resolução dos conflitos no território possibilidade de gerar recursos duradouros por da comunidade. meio da valorização do enorme potencial am- Evidencia-se que o conflito diz respeito a diferentes visões do uso do território, uma biental e cultural da área, além de não gerar emprego e renda para a comunidade local. vez que existe uma estratégia coletivista e ou- As empresas subtraíram espaços que tra mais individualista. Cada uma tem impli- eram de domínio comunitário há mais de dois cações quanto à maneira como se organiza a séculos, introduzindo mudanças nos padrões, comunidade em termos materiais e repercute práticas e estratégias de sobrevivência tradicio- na construção simbólica das práticas sociais a nais e estabeleceram como alternativa a venda serem reproduzidas, já que se trata da forma de terrenos para terceiros, na perspectiva da como se representa e materializa a vida social especulação imobiliária. no território. Assim, o conflito é pelas divergentes formas de apropriação do território e uso dos 3) Conflito pela ocupação do território seus recursos, entre os agentes econômicos e O conflito é produto da ocupação das sociais. A comunidade vê seus espaços reduzi- áreas pertencentes aos remanescentes de qui- dos e substituídos por espaços privados, e os lombo; por invasão da área de matas ciliares investidores a consideram um “obstáculo” a da Ressaca (cuja vegetação serve de refúgio ser removido, mas a comunidade se nega ao para a biodiversidade e compõe a cadeia tró- deslocamento pelas pressões da ocupação de fica da região), pelas constantes queimadas e seu território reafirmando sua identidade qui- destruição do espaço pelas edificações e pelo lombola e redefinindo a relação que institui Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 283 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos com o local. A dimensão simbólica da luta fica mercado exerce sua hegemonia sem ser sub- evidente nos diferentes sentidos atribuídos ao metida ao controle público. Com isso ocorreu objeto dessa disputa de hegemonia – o territó- um agravamento da desigualdade na provisão rio da Ressaca – e explicitados pelos agentes. de moradias e na distribuição territorial de Para as empresas, a Lagoa dos Índios é espaço equipamentos e serviços. Na Lagoa, a exclu- de empreendimento, e o debate sobre seu uso são da comunidade negra é visível pela falta envolve “problemas de custo”. Diferente dessa, de acesso a serviços urbanos e sociais básicos é a visão de mundo construída pelos morado- como saneamento e saúde. Essa questão de- res remanescentes de quilombos. Na luta sim- monstra que existe uma tensão entre a garan- bólica pela legitimidade da posse do território, tia de acesso aos recursos do local e os objeti- os moradores (re)criam o mundo (e as relações) vos econômicos privados. e conferem uma nova dimensão (e qualidade) à A falta de gestão territorial provocou um disputa pela forma socialmente reconhecida (e intenso processo de especulação imobiliária aceita) de apropriação da Lagoa. Para a comu- desde o início dos anos 80 do século XX e favo- nidade, a Lagoa é parte componente da própria receu as ações dos agentes econômicos locais identidade cultural, associada à sua forma de (o capital privado) que expropriaram gradativa- vida. Assim, qualquer percepção diferente des- mente a comunidade negra das suas terras e sa desqualifica sua significação original e des- instalaram novos empreendimentos e conjun- loca o sentido histórico que tem a Lagoa para tos habitacionais. essa população. A polêmica que se estabelece sobre o processo de expansão urbana e o impacto 4) Conflito pelas falhas na gestão territorial dos agentes político-institucionais Esse tipo de conflito é motivado pela ausência de planejamento por parte dos órgãos responsáveis pelo ordenamento territorial e pela fiscalização e monitoramento ambiental. As ações de órgãos como a prefeitura são quase ausentes, tanto para a comunidade negra como para a população de seu entorno. A falta de planejamento institucional e de políticas urbanas para o território da Ressaca, pelo órgão municipal, possibilitou o aumento do número de construções e atividades comerciais, isso contribuiu para fragilizar o ambiente. Nas políticas urbanas voltadas para a Ressaca, o balanço entre o uso público e o privado pende para o lado privado, e a lógica de 284 ambiental causado a Lagoa suscitam duas lógicas opostas: uma instrumentalizada pelos empreendimentos com aquiescência dos órgãos ambientais e, a outra, a lógica da vivência cotidiana da comunidade que presencia a invasão de seu território e os danos constantes provocados pela poluição da área, inclusive depósito de esgoto doméstico e das empresas e de órgãos do Estado. 5) Conflito por divergências entre os agentes político-institucionais e sociais Esse conflito ocorre em torno da disputa pela legitimidade de intervenção no território da Ressaca, provocado pelos interesses divergentes entre sociedade civil e poder público. A ONG “Amigos em Ação”, considera-se uma força capaz de contribuir para o aperfeiçoamento Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... da democracia relacionada com as ações rea- dos costumes e tradições da comunidade. Con- lizadas na Ressaca e para o atendimento real tudo, o presidente não refere à forma como dos anseios da comunidade, apontando a gran- conciliar interesses tão divergentes quanto ao de dificuldade que o Estado tem para cumprir uso do território. seu papel naquele espaço. A ONG coloca-se Os conflitos tipificados, portanto, apon- como a entidade que tem possibilidade de dis- tam para os embates entre diversos agentes cutir abertamente as questões socioambientais dotados de possibilidades diferenciadas para da Ressaca, seja com o poder público, seja com fazer valer suas respectivas visões de mundo e o setor econômico ou com a comunidade. práticas materiais decorrentes, que definem os É nesse sentido que o órgão ambienta- usos que efetivamente se fazem do território. lista se posiciona, ao procurar mobilizar a sociedade civil, diante dos órgãos do governo e empresas em torno da necessidade de discutir, Considerações finais de forma mais sistemática, os problemas verificados na Ressaca. Nesse sentido, a ONG tem A ocupação da área da Ressaca Lagoa dos Ín- se articulado com órgãos do governo municipal dios, pelo menos há 20 anos, tem-se tornado (Semat) e com empresas (Fama), mas ressente- um problema crítico para a comunidade negra -se pela falta de um diálogo mais profundo ali residente, pois os danos não são apenas com o Estado para reverter o quadro apresen- ambientais, mas também culturais. Os novos tado pelas ações de diversos agentes causa- agentes presentes na área da Ressaca trazem dores de danos ambientais. A ONG defende a consigo os vetores da chamada modernidade legitimidade de uma intervenção, com base na que, pela sua intensidade, causam transpo- ideia de preservação do patrimônio natural, em sições e deslocamentos culturais e materiais, nome da conservação do lugar, da preservação bem como conflitos sobre o uso e acesso aos de espécies ameaçadas, no âmbito de um pro- recursos naturais. Portanto, a imposição de es- cesso de gestão. tratégias territoriais, visíveis a partir dos vários A ONG coloca-se, também, como o único problemas socioambientais enfrentados, tem ator que combate qualquer tipo de atividade de constituído uma grande ameaça para a área da degradação na área. Por isso, o presidente da Ressaca e para a continuidade da comunidade ONG estabelece a caracterização de cada gru- negra no seu território. po envolvido na discussão sobre a legitimidade Atualmente, essas questões têm sido ou não das práticas efetivadas na Lagoa, colo- motivo de debate entre diversos agentes: de cando no centro da polêmica as visões sobre o um lado, órgãos governamentais, responsá- uso e significados do território, da seguinte for- veis pela preservação ambiental e cultural da ma: local de beleza cênica que ajuda a garantir área da comunidade negra (agentes político- a realização dos empreendimentos dos agentes -institucionais); de outro, ONG’s e a própria econômicos do capital privado; local de apre- comunidade (agentes sociais) e os agentes ciação estética e de qualidade de vida para os econômicos, com seus empreendimentos conjuntos habitacionais; e local de preservação e negócios, assim como os especuladores Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 285 Gloria Maria Vargas e Cecília Maria Chaves Brito Bastos imobiliários. Essa classificação possibilita de apropriação dos recursos e, portanto, de uso identificar as ações e as visões de mundo que do território. Contudo, é interessante frisar que giram em torno dos elementos que constituem os grupos possuem formas de ação diferentes e a disputa pela mesma base territorial dos re- que cada um procura utilizar a seu favor os ele- cursos (Acselrad, 2004). mentos materiais e simbólicos à sua disposição, Dessa forma, o conflito ambiental urbano de acordo com o lugar que ocupam no espaço expresso a partir das ações apresentadas pelos dessas relações. Só que as assimetrias de poder diferentes agentes presentes na área da Lagoa e os interesses conjunturais determinam o ru- expõe uma dada compreensão do mundo. Per- mo e, até, o desfecho das ações que, dessa ma- cebem-se nitidamente diferenças de poder no neira, favorecem os agentes mais poderosos. interior do campo em que estão inseridos. Na Portanto, considera-se que as políticas públicas luta em torno do território da Lagoa, cada gru- urbanas e ambientais e os agentes institucio- po tenta impor sua visão de mundo procurando nais devem assumir posições menos omissas e legitimar suas representações da realidade, pa- mais justas para com os agentes sociais com ra assim garantir a continuidade da sua forma direitos legítimos sobre esses territórios. Gloria Maria Vargas Doutora em Geografia, Professora Adjunta da Universidade de Brasília. Brasília/DF, Brasil. [email protected] Cecília Maria Chaves Brito Bastos Formada em História, mestre em Desenvolvimento Sustentável, professora da Universidade Federal do Amapá. Macapá/AP, Brasil [email protected] Notas (1) Denominação regional para ecossistema pico das zonas costeiras nos municípios de Macapá e Santana. É uma bacia natural de acumulação hídrica para onde se des nam as drenagens pluviais; dominada pela vegetação de buritizais e pela floresta de várzea ao logo do curso d’água; serve como corredor natural de vento e influencia o microclima da cidade (Takiyama e Silva, 2003). (2) Esta Carta encontra-se nos autos do processo nº 54350.000348/2004-98, no INCRA/AP, que prevê a “Iden ficação, Reconhecimento, Delimitação, Demarcação e Titulação de Terras Ocupadas”. 286 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 265-288, jan/jun 2013 Conflitos ambientais urbanos e processos de urbanização... (3) O acesso à área da comunidade é feito pela rodovia Duque de Caxias (km 9 da AP 20), próximo ao Ins tuto Penitenciário do Amapá (Iapen), na altura do km 4. Nesse local inicia-se o ramal do Goiabal, como é popularmente conhecido pelos moradores. (4) Conforme Penna (2003), a ação presente, os interesses, a cobiça e mesmo as representações atribuídas a essa parte do território têm relação com o valor dado ao que está ali presente. Referências ACSELRAD, H. (org.). (2004). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll. BANDEIRA, M. de L. (1990). Terras Negras: invisibilidade expropriadora. Textos e Debates. Florianópolis, NUER, ano I, n. 2, pp. 7-23. COELHO, M. C. N. (2005). “Impactos ambientais em áreas urbanas – teorias, conceitos e metodologia de pesquisa”. In: GUERRA, A. J. T. e CUNHA, S. B. da (org.). Impactos ambientais urbanos no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. COSTA, H. S. M. e BRAGA, T. M. (2004) “Entre a conciliação e o conflito: dilemas para o planejamento e a gestão urbana e ambiental”. In: ACSELRAD, H. (org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll. GOMES, F. S. 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Mostra como a evolução nas práticas dos órgãos envolvidos não é suficiente para dar respostas adequadas às questões socioambientais ensejadas pelo tratamento dessas áreas e como permanece um descompasso entre o discurso e as práticas no tratamento das questões urbano-ambientais, principalmente pela falta de coordenação intersetorial e territorial. Permanecem, então, intervenções incompletas e desiguais: o saneamento fica restrito às áreas consolidadas, resta um passivo socioambiental na urbanização de favelas, enquanto a criação de áreas verdes intraurbanas segue desconsiderando as duas primeiras questões. Abstract The article deals with the lack of integration among the public policies concerning valley bottom urbanization in the city of São Paulo, focusing on the implementation of linear parks and sanitation infrastructure, and also on slum urbanization. It shows that the progress in the practices of the agencies involved is not sufficient to give adequate answers to the socio-environmental issues that emerge with the treatment of these areas, and that a gap remains between discourse and practice in addressing urban-environmental issues, mainly due to the lack of intersectoral and territorial coordination. Therefore, interventions are incomplete and unequal: sanitation is restricted to consolidated areas, socio-environmental liabilities remain in slum urbanization, and the establishment of intra-urban green areas continues to disregard the first two questions. Palavras-chave: fundos de vale; política ambiental; política urbana; integração de políticas; São Paulo. Keywords: valley bottoms; environmental policy; urban policy; policy integration; São Paulo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Introdução formais que surgem frequentemente de mudanças políticas que concorrem com outros interesses da organização (Mitchell, 1990 apud A importância das questões relacionadas ao Moss, 2004). meio ambiente global, em especial a agen- Em uma visão integrada, é reconhecido da climática, tem demandado dos estados que a efetiva proteção, por exemplo, dos recur- nacionais políticas objetivando o alcance de sos hídricos, não depende exclusivamente de metas acordadas interna e externamente. O instituições de gestão da água. Os aspectos de atendimento de metas, tais como a redução qualidade e quantidade da água são afetados de emissões e das vulnerabilidades, exige, de por um amplo espectro de atividades humanas, outra parte, dos governos locais, o estabeleci- cada uma delas estruturada em seus próprios mento de ações intersetoriais e interescalares arranjos institucionais. Dentre as diversas inte- articulando diferentes instrumentos de planeja- rações, um dos problemas é o frequente vácuo mento e gestão em um contexto de crescente entre a gestão da água e o planejamento do governança urbana ambiental. uso e ocupação do solo (Newson, 1997; Moss, Termos como gestão integrada (Godard, 2004), representado pela inexistência de víncu- 1997) e integração de políticas ambientais lo formal entre as políticas de água – que têm (Jordan e Lenschow, 2010) têm sido objeto a bacia hidrográfica como unidade de planeja- de discussão nas áreas de governança e ges- mento – e as de ordenamento territorial – que tão ambiental como uma necessária evolução têm o município como lócus. dos processos de gestão de recursos naturais Elmore (1985, apud Moss, 2004) tam- e de recursos comuns. Abordagens como o bém observa que existe uma tendência para cross-scale institutional linkages são entendidas como necessárias para atingir condições de sustentabilidade entre sistemas sociais e ecológicos (Berkes, 2002; Cash et al., 2006; Young, 2002). O desafio da interação institucional parte da ideia básica de que a “eficácia” de instituições específicas depende não apenas de sua própria feição, mas também da interação com outras instituições. No entanto, a interação institucional apresenta limites. Os limites não se vinculam somente aos territórios físicos, mas sim às responsabilidades políticas e esferas sociais de influência. Avançar sobre esses limites, onde a jurisdição e o interesse de atores organizados se sobrepõem, pressupõe a existência de conflitos entre instituições políticas e programas se acumularem em torno 290 de alguns problemas, gerando assim trabalho extraordinário. Isso é certamente verdade na arena ambiental em que, nos últimos 25 anos, existe uma concentração no desenvolvimento de uma sofisticada estrutura institucional para gerenciar problemas ambientais, definindo programas no nível federal, estadual, regional e local (Moss, 2004). No Brasil, a partir da década de 1980, diversas políticas são propostas com o objetivo de gerenciar de forma participativa e descentralizada os recursos naturais e o território. Essa é a essência da Política Nacional do Meio Ambiente que criou o Sisnama – Sistema Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal 6.938/81) articulando órgãos e funções nos Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... níveis federal, estadual e municipal, e crian- e da qualidade de vida urbana. Compõem tais do a figura dos Conselhos de Meio Ambiente, espaços várias categorias de áreas verdes, que estâncias participativas e deliberativas nesses em conjunto conformam o que vem sendo três níveis. Dentre os instrumentos da PNMA designado por infraestrutura verde. Eminente- está a criação de espaços territorialmente pro- mente multifuncional, a infraestrutura verde tegidos, que encontra replicabilidade e con- deve contribuir para a manutenção e criação sonância nas políticas florestais (Código Flo- de valores sociais, ambientais e econômicos e restal, Sistema Nacional de Unidades de Con- para a minoração dos riscos relacionados à vul- servação e Lei da Mata Atlântica), na Política nerabilidade física nas cidades. Nacional de Recursos Hídricos e no Estatuto Nas cidades brasileiras, uma parcela im- da Cidade (Plano Diretor, zoneamento terri- portante dessa infraestrutura hoje se encon- torial) entre outras. Tais instrumentos devem tra nos fundos de vale, ao longo dos cursos ter como premissa a proteção e o controle da d’água, que se tornaram locais-chave para a ocupação de áreas frágeis e vulneráveis, tanto implementação de uma série de intervenções do ponto de vista do equilíbrio do ecossistema públicas: para a continuidade de sistemas de como da ocupação humana. esgoto, para reurbanizar os assentamentos Cada política, naquilo que lhe compete, precários, que em grande parte aí se localizam, define estruturas administrativas, produz nor- para proteger as áreas urbanas dos proces- mas e resoluções, permite e estimula a criação sos de inundação e para a implementação de de programas e projetos, e, principalmente, áreas verdes públicas. estabelece instrumentos de gestão e gerencia- No caso da cidade de São Paulo, a falta mento. Porém, a articulação entre essas políti- de integração das políticas públicas relaciona- cas e esses instrumentos não é uma realidade, das à urbanização de fundos de vale, com foco gerando em grande parte a sobreposição e o na implantação de parques lineares e de infra- conflito de ações. Para Almeida (2007), existem estrutura de saneamento e na urbanização de obstáculos na implementação dos instrumen- favelas; mostra como a evolução nas práticas tos, desde aqueles do ponto de vista da escas- de cada um dos órgãos envolvidos ainda não sez dos recursos públicos (humanos, materiais é suficiente para dar respostas adequadas às e financeiros), assim como algumas legislações questões socioambientais ensejadas pelo tra- específicas são genéricas ou restritivas de for- tamento dessas áreas, principalmente por sua ma a não compatibilizar sua aplicabilidade e falta de coordenação intersetorial e territorial. interação institucional. Desde o final do século XVIII, em São Ganham importância, nesse contexto, Paulo, rios e córregos foram objeto de inter- as abordagens do planejamento territorial que venções de saneamento, geração de energia visam o ganho de quantidade e de qualidade e drenagem. A partir da década de 1970, po- dos espaços protegidos em áreas urbanas. Tal rém, começam a se configurar, de forma mais iniciativa incorpora metas que alcançam ações abrangente, os problemas sociais e ambientais no âmbito da política das águas, do clima, de das várzeas em conflito com a urbanização, recuperação e proteção dos recursos naturais pela crescente ocupação dessas áreas por Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 291 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult assentamentos habitacionais de baixa renda, Mesmo condicionantes territoriais legais diver- pela multiplicação de áreas de inundação e de sas influenciam pouco no desenho final dos suas consequências e pela generalização da ca- projetos urbanos. nalização de córregos e construção de avenidas Diante desse quadro das práticas de ges- de fundo de vale como modelo hegemônico de tão do ambiente urbano, complexificado pelas intervenção urbanística. Além disso, a pequena demandas da construção de um espaço mais abrangência dos sistemas coletores e de trata- resiliente, e considerando a intersetoraliedade mento de efluentes, comum às áreas urbanas e a governança urbana, discute-se o caso da brasileiras, originou uma imagem negativa de recuperação socioambiental de fundos de va- rios e córregos e, consequentemente, das áreas le urbanos na cidade de São Paulo. Para tanto, lindeiras aos mesmos. abordam-se a evolução das políticas de urbani- Tanto na gestão pública, como no meio acadêmico, a questão afeta a forma que ga- zação de fundos de vale e o desafio da integração de planos e programas. nhava a urbanificação de fundos de vale que não apresentava crítica relevante, situação que se altera a partir de meados da década de 1990, mas principalmente no começo do século XXI. A atuação do Ministério Público ensejan- Politicas de urbanização de fundos de vale do a aplicação das regras do Código Florestal às áreas urbanas e também um aumento ex- A primeira década do século XXI viu alterações pressivo nos debates acerca das questões am- significativas nas políticas de drenagem urbana bientais em meio urbano, na mídia e no meio e urbanificação de fundos de vale em São Paulo. acadêmico, têm como consequência a dissemi- Em termos de drenagem, após 100 anos nação de novas práticas de urbanificação de de programas que visavam o aumento da con- fundos de vale. dutividade hidráulica, ou a expulsão rápida das No entanto, tais práticas ainda apre- águas precipitadas em meio urbano para ju- sentam inadequações urbanas, ambientais e sante, começou-se a pensar em diversas alter- sociais. A falta de interlocução entre os diver- nativas de reservação dessas águas, a partir sos órgãos públicos envolvidos com a questão da constatação que as intervenções anteriores redundam frequentemente em intervenções não foram efetivas na minoração dos riscos e incompletas: parques lineares com rio poluído, prejuízos das inundações em meio urbano e urbanização de favelas em áreas de risco de seus impactos eram muito grandes nos cursos enchente, remoção de população sem oferta de d’água à jusante. Assim, passou-se da ideia moradias, entre outros. Desde a remoção com- de retificar e canalizar cursos-d’água, com o pleta de moradias localizadas nas áreas lindei- objetivo de expulsar rapidamente toda a água ras aos cursos d’água até sua manutenção em precipitada, para a elaboração de formas de re- faixas muito próximas dos mesmos, os critérios tardamento dessa água. técnicos, principalmente aqueles relativos à Reservar água, entretanto, significou, geomorfologia e à hidrologia importam pouco. principalmente, a construção de reservatórios, 292 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... e, no entanto, mesmo essas medidas não têm aplicado. A segunda é tratar a questão com sido – e nem serão – suficientes para eliminar realismo: não é possível eliminar por completo as inundações, o risco de extravasamento dos corpos-d’água. it must be borne in mind that river channelization and reservoir construction may eliminate small or medium-sized flood events but cannot always hold back large floods. (EEA, 2001, p. 20) Essa premissa gera a terceira: transparência, ou seja, é preciso esclarecer para as comunidades os riscos que continuam presentes em cada medida tomada para mitigar inundações. Por último, mas não menos importante, é preciso considerar a questão ambiental relacionada às Em outras cidades do mundo, algumas inundações, que nos ambientes naturais possui décadas depois do início da construção de re- a função de renovação do substrato, ao carrear servatórios para reter águas de chuva, tornou- mais sedimentos que a vazão de períodos nor- -se cada vez mais evidente a necessidade de mais. Nesse sentido, muitas das ações em curso criar outros mecanismos para a proteção da vi- nas áreas urbanas têm como objetivo “dar es- da e do patrimônio urbano. Warner (2008) de- paço para o rio respirar” (EEA, 2001, p. 78, tra- monstrou como as enchentes são os desastres dução e grifo nosso). mais comuns e devastadores e como os proble- Tais mecanismos estão expressos nos mas gerados após um evento expõem a falta planos de prevenção ao risco em diversos paí- de um planejamento do uso e da ocupação do ses europeus, como na França, cujo primeiro solo, o despreparo das autoridades e a falta de plano dessa natureza se iniciou em 1994, na um ethos de prevenção na sociedade. Assim, de bacia do Rio do Loire, Plan Loire Grandeur uma forma geral, os planos passaram a consi- Nature (WWF, Loire Vivant, 1994; http://www. derar uma série de atividades: o mapeamento inondation-loire.fr/, acessado em 2010). de áreas de risco de inundação, a proibição de Vários Estados-Membros da União Eu- novas construções nessas áreas e a retirada de ropeia apresentam planos próprios de gestão estruturas existentes, a instalação e melhoria e mitigação de riscos de inundação. Porém, de sistemas de previsão e alerta de inunda- as inundações do final da década de 1990 e, ção, a restauração dos rios e a manutenção de principalmente, as inundações de 2002, nas barragens, entre outros. A implantação dessas bacias dos Rios Elba e Danúbio, que provo- ações implicou também a criação de institui- caram cerca de 700 vítimas e exigiram que ções e linhas de financiamento, também desti- aproximadamente 25 bilhões de euros fossem nadas à prestação de socorro e às indenizações pagos em seguros, tornaram premente uma (EEA, 2001). tomada de ação coordenada entre os países. Em termos de políticas públicas, surgem Entre os resultados, foi elaborado um manual premissas importantes para a drenagem urba- de boas práticas e também aprovada uma di- na. A primeira é a necessidade de coordenação retriz europeia específica para gerir e atenuar dos diversos órgãos envolvidos com o tema, as inundações. a fim de que suas ações sejam integradas e A Diretiva 2007/60/CE, relativa à ava- que um rol amplo de tipos de intervenção seja liação e gestão dos riscos de inundação, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 293 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult reconhece a inevitabilidade das inundações e eventos extremos em unidades tais como áreas o papel do uso do solo e das mudanças climá- costeiras e bacias hidrográficas, porém não ticas no acirramento de seu impacto negativo são levados em consideração pelo município e a necessidade de tratar as inundações no quando do processo de tomada de decisão na âmbito da bacia hidrográfica como um todo. A gestão do solo urbano. Tal disfunção decisional diretiva dá aos Estados-Membros a responsa- impacta o ambiente natural urbano, com a sim- bilidade pela elaboração dos planos de gestão plificação e a inadequação da escala de traba- dos riscos de inundação, colocando algumas lho adotada, bem como pela não observação diretrizes metodológicas, como a necessidade de determinadas exigências metodológicas, de mapeamento de áreas inundáveis, e con- tais como: 1) adaptação dos usos às potenciali- ceituais, como “dar mais espaço aos rios” por dades locais, 2) melhor gestão das obras e dos meio da manutenção e recuperação das planí- espaços existentes, não apenas sob um ponto cies aluviais, sempre que possível, bem como a de vista técnico (artificialização), mas também adoção de medidas de proteção às pessoas e sob um ponto de vista organizacional e regula- ao patrimônio. mentar; 3) representação, diagnóstico e avalia- No caso brasileiro, os planos diretores ção dos projetos locais a partir de um sistema das cidades, com base no Estatuto da Cidade, mais amplo (bacia hidrográfica) sobre o qual preveem instrumentos para enfrentar esses pesam as consequências da tomada de deci- desafios como a criação de zonas de interesse são, mas também no qual pode se situar a fon- social e áreas protegidas, transferência do di- te do problema local e sua solução (Agences de reito de construir, entre outros. Porém, a reali- L’eau, 1999). dade da aplicação de tais instrumentos esbarra No começo de 2010, o município de Belo em interesses de grupos econômicos e políticos Horizonte, apoiado em sua Carta de Inunda- que têm influência na aprovação e deliberações ções – instrumento do Plano de Recuperação de ações municipais, mesmo as de base técni- Ambiental de Belo Horizonte –, tomou algumas ca (Almeida, 2007). Alia-se às dificuldades de ações nesse sentido: criou Núcleos de Alerta de implementação das políticas urbanas na ges- Chuvas e implantou placas de aviso em áreas tão do uso do solo, a setorialidade na aplica- inundáveis, que somam 82 “manchas de inun- ção das políticas ambientais com repercussão dação” (Cobrape, 2010). As cartas de inunda- no planejamento do território. Instrumentos ção estão disponíveis no Portal da Prefeitura das políticas ambientais, como o zoneamento (http://www.pbh.gov.br). ecológico-econômico ou ambiental e o plano O plano de drenagem de Belo Horizonte de bacia hidrográfica ou de recursos hídricos, se insere no projeto Switch – Managing Water não constituem, de fato, macrodiretrizes para o for the City of the Future, projeto coordenado pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, Unesco, e mantido pela Comunidade Europeia em seu Sexto Programa Estrutural. Reúne uma rede de pesquisadores, planejadores e consultores, visando à ordenamento da ocupação e uso do solo urbano (Steinberger, 2006; Schult et al., 2009). Os instrumentos citados permitem identificar áreas vulneráveis e estratégias para prevenção, mitigação e adaptação diante de 294 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... cooperação técnica, de pesquisa e ação, para verdes públicos, consubstanciados naquilo que inovação em gestão e manejo das águas em a literatura chama de caminhos verdes, origi- diversas cidades do mundo, com condições nalmente greenways, atende adequadamente a diferentes de desenvolvimento e de questões essa dupla função. a serem tratadas.1 As questões relacionadas à O planejamento de espaços abertos drenagem urbana e risco de inundações são apresenta uma rica bibliografia conceitual e consideradas em Birmingham, Hamburgo e empírica sobre os caminhos verdes. Apesar da Belo Horizonte (http://www.switchurbanwater. manutenção do termo historicamente cons- eu/, acesso em dezembro de 2009). truí do, recentemente o conceito evoluiu da De forma geral, é possível concluir que as ideia de caminhos verdes para a de corredores mudanças conceituais na forma de lidar com as verdes e, mais recentemente ainda, passando a inundações têm redundado em novas políticas integrar uma nova categoria: a infraestrutura de gestão desses eventos. As ações de planeja- verde. No Brasil, usualmente dá-se o nome de mento territorial e intervenção contemporâneas parques lineares às áreas verdes lindeiras aos recaem principalmente em planejamento do rios ou a outras estruturas lineares nos espaços uso do solo, com remoção paulatina da popu- urbanos, ou corredores ecológicos, quando no lação que vive em áreas inundáveis e em políti- âmbito regional e fora de malhas urbanas. cas de “dar espaço para o rio”, protagonizadas Ahern (1995) conceitua os caminhos ver- pelo poder público, como na parcela holandesa des como redes de terrenos que contêm ele- do Rio Reno (Netherlands Water Partnership, mentos planejados, desenhados e geridos para 2010), o Projeto “Make room for the river”, múltiplos objetivos, inclusos aí o ecológico, o também na Holanda (fonte: Room for the river, recreacional, o cultural, o estético, entre outros. http://www.topos.de/, acesso em dez de 2009), Segundo Searns (1995), a palavra “caminho” ou pela comunidade e outros tipos de institui- indica movimento – de água, de pessoas, de ções, como as discussões em curso na bacia animais, de sementes – o que distingue esses do Danúbio, encabeçadas pela World Wildlife espaços livres de outros na cidade, sugerin- Foundation, WWF (Beckmann, 2006). do uma vocação de suporte a deslocamentos. Frischenbruder e Pellegrino (2006) consideram que, por vincular o desenho ou o projeto urbano Criação de áreas verdes urbanas ao longo dos cursos de água como estratégia multifuncional à ecologia, os caminhos verdes podem contribuir eficazmente para a construção de cidades onde se viva melhor, possibilitando o contato entre a população e a natureza e fazendo uma ponte entre os processos sociais e naturais. Nas áreas urbanas, a política de criar espaço O avanço conceitual e metodológico para o rio tem como uma de suas principais no planejamento de caminhos verdes se deu estratégias a criação de áreas que atendam às com sua vinculação à infraestrutura verde co- demandas sociais, mas que possam conviver mo um de seus componentes, no final da dé- com cheias periódicas. A criação de espaços cada de 1990, o que deu ainda mais ênfase Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 295 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult na utilização da Ecologia da Paisagem como metodologia para a análise do território e a proposição de projetos. Benedict e McMahon (2002) definem infraestrutura verde como uma Políticas de recuperação socioambiental de fundo de vale em São Paulo rede de áreas verdes que conservam os valores e funções dos ecossistemas, trazendo benefí- Em meados da década de 2000, começaram a cios para a sociedade. O foco na conservação ser idealizadas novas políticas públicas que tra- em consonância com o planejamento territo- tam as várzeas e rios urbanos no Município de rial e de infraestrutura é, segundo os autores, São Paulo, cujo pano de fundo é formado pelo a diferença entre planejar utilizando o conceito Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002, bem de infraestrutura verde e o tradicional planeja- como os Planos Regionais Estratégicos de 2004. mento de áreas verdes. As águas superficiais ganharam um Nas cidades, a infraestrutura verde tem status importante no PDE; nesse, a rede de como objetivo organizar o espaço urbano para águas superficiais foi considerada como um que esse dê suporte a diversas funções ecoló- dos quatro elementos estruturadores do terri- gicas e culturais. Embora os aspectos bióticos tório municipal e recebeu a denominação Rede e abióticos predominem nas funções buscadas Hídrica Estrutural. 2 Essa rede é composta pe- por meio da introdução da infraestrutura ver- los rios, córregos e talvegues,3 e ao longo dela de, ela também deve ser vista como uma es- devem ser propostas intervenções urbanas de tratégia para que objetivos sociais e culturais recuperação ambiental, drenagem, recompo- sejam alcançados (Ahern, 2007). Dessa forma, sição da vegetação e saneamento. Para tanto, a infraestrutura verde é composta por uma sé- o PDE instituiu o Programa de Recuperação rie de elementos, em ecossistemas naturais ou Ambiental de Cursos de Água e Fundos de Va- restaurados, que conformam nós e conexões, le, que deveria compreender um conjunto de criando uma estrutura para o desenvolvimento ações coordenadas pela Secretaria Municipal territorial (Benedict e McMahon, 2002). de Planejamento (Sempla), pela Secretaria Finalmente, a implantação da infraestru- Municipal do Meio Ambiente (SMMA) e pela tura verde, principalmente dos corredores ver- Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) des e parques lineares, pode ser considerada com a participação da sociedade e o apoio da como política pública adequada para o trata- iniciativa privada.4 mento de fundos de vale urbanos, uma vez que A implementação desse programa teria atende aos objetivos de drenagem detalhados como objetivo promover progressivamente a acima. No entanto, no contexto das cidades implantação dos parques lineares e dos cami- brasileiras, a questão se torna complexa, prin- nhos verdes, de modo a aumentar a permeabi- cipalmente pelo padrão e forma que se deu à lidade nas várzeas, a ampliar as áreas de lazer, urbanização dessas áreas. a integrar as áreas de vegetação significativa 296 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... e de interesse paisagístico, a ampliar e arti- A manutenção dos fundos de vale livres de cular os espaços públicos (preferencialmente ocupação densa e preferencialmente como os arborizados) de circulação e bem-estar dos parques urbanos atende ambos os objetivos; pedestres e construir pistas de caminhada e portanto, a inclusão dos parques lineares idea- corrida ao longo dos vales. Por fim, implantar lizados no PDE e nos PREs é uma tática impor- sistemas de retenção de águas pluviais, quando tante para o programa. necessário. O programa também pretendia re- Para a consecução de suas metas, o pro- cuperar áreas degradadas, promover o reassen- grama estabelece algumas regiões para concen- tamento da população que vive às margens de trar ações: a borda da Cantareira, área limite de rios e córregos, melhorar o sistema viário local, expansão da mancha urbana ao norte, a área promover ações de saneamento ambiental e de proteção aos mananciais sul, nas bacias das localizar os equipamentos sociais nas proximi- represas Billings e Guarapiranga, e nas nascen- dades dos parques. O programa não foi criado; tes do rio Aricanduva, ao leste. As intervenções se houvesse sido, o conjunto das ações previs- do programa nessas regiões devem se dar a tas no plano, se coordenadas, caracterizar-se-ia partir de três critérios: a identificação de proje- como um verdadeiro projeto urbano ambiental, tos de parques lineares, a identificação de im- podendo avançar na solução da desarticulação portantes áreas de produção de água para os entre as ações setoriais. mananciais e a criação de um sistema de áreas A partir dos parques definidos no Plano verdes que possibilite a consolidação de cor- Diretor Estratégico e nos Planos Regionais Es- redores ecológicos (Devecchi, 2008). Por outro tratégicos, e na ausência de um programa que lado, a secretaria atende às subprefeituras que congregasse os diversos órgãos do poder pú- demandam a construção de parques lineares blico, a Secretaria do Verde e do Meio Ambien- em seus territórios. te, por sua atribuição setorial, tinha em suas A análise do universo dos primeiros par- mãos um plano ambicioso do ponto de vista ques lineares em projeto ou em construção da quantidade de parques que lá estavam gra- atualmente, no entanto, não evidencia o crité- vados. Cabia a esse órgão, então, estabelecer rio realmente utilizado para sua escolha. É pos- critérios para implantar um número expressivo sível perceber, no entanto, que a recuperação de intervenções que integravam a Política Am- de áreas públicas, um dos parâmetros do pro- biental do município. grama “100 Parques para São Paulo”, é uma A secretaria criou, então, o Progra- questão importante na escolha dos perímetros ma “100 Parques para São Paulo”. Segundo que vêm se efetivando como parques. A quase Devecchi (2008), a estratégia adotada foi a de totalidade das áreas inseridas nesses é de pro- criar um banco de terras público, adequado à priedade do poder público, o que elimina um prestação de serviços ambientais, e construir grande entrave à consecução dos parques: a um plano de adaptação às mudanças climá- desapropriação de terras. Resta, no entanto, a ticas globais, ainda que não tenham sido de- questão da remoção e realocação dos domicí- talhados, a priori, os parâmetros para tanto. lios que se localizam nessas áreas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 297 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Não há, na seleção dos perímetros, parâmetros relacionados às áreas de maior risco à inundação, mesmo porque o município ainda não conta com um plano de drenagem, nem foram levantadas as manchas de inundação, a despeito dos inúmeros problemas que vive o município no manejo de suas águas superficiais. O plano de drenagem que está em elaboração atualmente considera somente uma parcela do território municipal, seis sub-bacias. O Plano Municipal de Habitação (São articular as ações de diferentes programas habitacionais para integrar a urbanização e regularização de assentamentos precários ao saneamento de bacias hidrográficas, visando sua recuperação ambiental, contribuindo para a recuperação de toda a Bacia do Alto Tietê; • estimular a diversidade de soluções e a adequação dos projetos aos condicionantes do meio físico, visando a melhoria da qualidade paisagística e ambiental do empreendimento habitacional. (São Paulo (Município), Sehab, 2009a, p. 10) • Paulo (Município), Sehab, 2009a) – cuja elaboração foi uma exigência do PDE – coloca Um dos principais instrumentos para para a política habitacional cinco princípios subsidiar as ações da secretaria na consecução fundamentais: moradia digna, justiça social, do Plano Municipal de Habitação é o Sistema sustentabilidade ambiental como direito à ci- de Priorização de Intervenções, uma vez que a dade, gestão democrática e gestão eficiente distância entre a demanda por regularização e dos recursos públicos. A moradia digna está atendimento habitacional e os recursos dispo- relacionada tanto com as questões fundiárias níveis para tanto no âmbito do município, exi- e edilícias do domicílio quanto com o contexto gem que se procedam escolhas sobre em quais urbano e de infraestrutura, que precisa atender áreas intervir. às demandas, o que se vincula imediatamente Um primeiro parâmetro da classifica- com a questão da justiça social, a ideia de que ção estabelece a possibilidade de atuação na a propriedade e a cidade devem cumprir sua própria área, ou seja, se os assentamentos, função social. A sustentabilidade ambiental é loteamentos ou favelas são passíveis de urba- entendida como a garantia do direito à cidade, nização, ainda que parcialmente, ou se devem que suscita a integração entre a política habi- ser removidos. A partir daí, a classificação se tacional e aquelas de desenvolvimento social e dá por critérios de precariedade, e as ações, econômico, mobilidade, saneamento e preser- por tipo de intervenção: remoção, urbaniza- vação ambiental. A gestão democrática reúne ção, regularização fundiária e regularização as estratégias para garantia do controle social registrária. As variáveis utilizadas para medir da política, enquanto a gestão dos recursos vi- a precariedade são agregadas em três grandes sa universalizar o atendimento às famílias de dimensões: infraestrutura, risco de solapamen- renda até seis salários mínimos.Tais premissas to ou escorregamento e saúde – que se agrupa levam a um rol bastante amplo de diretrizes, com uma quarta dimensão, o Índice Paulista dentre as quais se destacam, aqui: de Vulnerabilidade Social. A partir desses cri- articular as políticas municipais de desenvolvimento urbano, de promoção social e de recuperação e preservação ambiental; • 298 térios, estabelecem-se aqueles núcleos mais precários onde devem prioritariamente ocorrer as intervenções. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... Um avanço da metodologia de prioriza- de favelas em muitos casos tem significado a ção é seu agrupamento por bacias hidrográ- criação de um novo passivo, que precisará ser ficas dos afluentes do Rio Tietê, ou por suas novamente objeto de políticas públicas futura- sub-bacias. A ideia então é requalificar todo o mente. Tal prática cada vez mais suportada território dessas bacias a partir do trabalho em pela flexibilização do Código Florestal em seus assentamentos precários. Assim, a priori- áreas urbanas, notadamente pela Lei Federal zação por bacia ou sub-bacia leva em conta a n. 11.977, de 2009, que instituiu o Minha Casa relação entre a área ocupada em determinada Minha Vida, que serve agora como modelo pa- bacia por assentamentos precários e a priori- ra a revisão desse Código. dade de intervenção expressa no índice. Com Com relação ao saneamento, o Progra- a aplicação desse procedimento, as bacias em ma Córrego Limpo, um acordo entre a Prefeitu- pior situação socioambiental serão as primeiras ra Municipal de São Paulo e a Sabesp foi criado focadas pelos trabalhos de urbanização. em 2007 com o objetivo de, por meio de ações Do universo de 1.637 favelas no muni- integradas nas bacias hidrográficas, sanear 300 cípio de São Paulo, há 569 que se encontram córregos no município. A primeira etapa do total ou parcialmente sobre áreas de várzea programa, que terminou em 2009, abrangeu 42 ou sobre o leito de rios, somando aproximada- córregos, e a segunda etapa, 58. As interven- mente 224 mil domicílios. Dessas, 40 se encon- ções programadas são executadas pela Sabesp tram totalmente sobre essas áreas, com quase e pelos diversos órgãos da prefeitura muni- 13 mil domicílios e, de acordo com os critérios cipal. As ações a cargo da empresa estadual da Sehab, elas não são urbanizáveis (São Paulo são relacionadas à eliminação das ligações (Município), Sehab, 2009b). Dentre as restan- clandestinas ou inadequadas, manutenção das tes, há somente duas que não podem ser urba- redes, elaboração de projetos, licenciamento e nizadas, e as demais são passíveis de reurbani- execução de ligações, coletores e estações ele- zação, ainda que sofram algumas remoções de vatórias, monitoramento da qualidade da água áreas de risco ou para desadensamento. e informação ambiental à população local. As 5 Com o imenso e crescente contingente ações municipais são de limpeza de margens e de assentamentos precários em fundo de vale, leitos de córrego, manutenção da rede pluvial, os programas de urbanização de favelas têm contenção de margens e remoção de popula- se pautado pela manutenção dos assentamen- ção das áreas ribeirinhas por onde deve passar tos, por meio da implantação de infraestrutura, a infraestrutura, reurbanização de favelas, im- evitando ao máximo as remoções, o que, em plementação de parques lineares, sempre que determinados casos, pode representar a manu- possível, e notificação de proprietários para tenção de uma situação de risco, em locais vul- que regularizem suas conexões (www.corrego- neráveis à inundação. Ou seja, a urbanização limpo.com.br, acessado em janeiro de 2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 299 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Figura 1 – Urbanização de favela no Recanto do Paraíso, Zona Norte do município de São Paulo Fonte: Foto de Luciana Travassos (2009). 300 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... A meta referencial para os rios é a rela- os trabalhos pudessem ser realizados em curto tiva à classe 3 da Resolução 357 do Conama, prazo (dois anos). Além disso, estabeleceu-se uma água que possa ser convertida em potá- que seriam priorizados os córregos a céu aber- vel a partir de um tratamento convencional ou to e que os trabalhos seriam feitos de forma avançado, o que exige bastante controle da integrada entre os dois órgãos, em suas atribui- recepção de efluentes no corpo d’água. Esse ções. No entanto, ao observar o rol de ações a padrão possibilita também a recreação secun- cargo de cada instituição, fica patente a impos- dária, a irrigação e a pesca, uma vez que exi- sibilidade de cumprimento de todas as ações ge a ausência de substâncias tóxicas na água no horizonte de dois anos, principalmente ao (São Paulo (Estado), Sabesp, São Paulo (Mu- se levar em conta a questão habitacional, uma nicípio), 2007). vez que as remoções e reurbanizações dificil- O Programa Córrego Limpo parte de uma mente acontecem de forma adequada em um constatação inicial de que, mesmo em bacias curto horizonte de tempo. O critério tempo onde foi completada a rede de esgotamento restringe também a consecução de ações às sanitário, permaneceu algum nível de poluição bacias localizadas nas áreas mais consolidadas nos rios, pelo lançamento clandestino de es- do município, onde boa parte das questões de goto, pela disposição inadequada de resíduos saneamento já se encontra resolvida. sólidos, pela falta de manutenção da rede de Nesse contexto, os córregos em que não coleta ou por descontinuidades temporárias na seria viável a implementação das obras no pe- mesma, em razão da execução de obras. Assim, ríodo estimado foram substituídos por outros, ao lado das obras estruturais, devem ser consi- o que possibilitou que, conforme publicado pe- deradas as ações operacionais, como elimina- lo Programa, ao final do primeiro período, 42 ção de conexões clandestinas, manutenção e córregos tivessem sido limpos, ao menos em programas de educação ambiental, ações que, algum trecho. No final de 2011, era anunciada pela sua natureza, são ainda mais efetivas se a conclusão das intervenções em 106 córregos realizadas em parceria com as prefeituras. Uma do município (www.corregolimpo.com.br, aces- das maiores dificuldades na consecução do sa- sado em novembro de 2012). neamento ambiental, segundo o relatório de A questão reside no fato que, embora o apresentação do programa, é a existência de saneamento ambiental, dado o imenso passivo ocupações precárias nas áreas de fundo de va- colocado, seja uma atividade primordial mes- le, uma vez que, como o afastamento de esgo- mo nas áreas mais estruturadas, seu potencial tos é feito por gravidade, nessas áreas devem de transformação urbana e ambiental é mais ser implantados os coletores-tronco. significativo quando colocado em áreas mais Os critérios de priorização para a escolha precárias e em conjunto com outras iniciativas, dos córregos que seriam despoluídos na pri- sejam elas da prefeitura ou do Estado. Confor- meira fase do programa foram estabelecidos me encaminhado, o Programa Córrego Limpo em diversas reuniões entre a PMSP e a Sabesp. acaba restrito às suas atribuições setoriais de Um dos primeiros critérios, e o principal, é que saneamento ambiental. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 301 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult O desafio da integração de planos e programas para recuperação socioambiental dos fundos de vale as ações e os recursos alocados dos principais órgãos vinculados a cada um deles acabem sendo aplicados a regiões diferentes do território, mantendo o caráter setorial das ações do poder público. Embora o passivo urbano-ambiental, de ordenação territorial e de sa- A análise desses planos e programas eviden- neamento ambiental, bem como a ausência cia a importância estratégica que os fundos de áreas verdes públicas por toda a mancha de vale, rios e várzeas adquiriram para a solu- urbana, pudesse ratificar a atuação do poder ção de uma série de questões de cunho social público em qualquer região, a integração en- e ambiental na cidade de São Paulo. Há, nos tre as ações – considerando ainda que cada textos, o reconhecimento de que nessas áreas órgão possui competências não concorrentes se encontra a população mais pobre, vivendo entre si –, a partir da definição de áreas em em situação mais precária. É ali também que comum para as intervenções, possui uma ca- a vulnerabilidade social encontra a fragilidade pacidade de transformação mais expressiva ambiental, de forma mais eloquente. Por outro do tecido urbano e, portanto, pode contribuir lado, é nos fundos de vale que se deve imple- de forma mais efetiva para a melhoria da qua- mentar uma parcela importante das estruturas lidade de vida. de esgotamento sanitário. São, então, locais- O mapa a seguir ilustra essa questão, -chave para projetos urbanos de habitação, mostrando as áreas de atuação prioritária dos áreas verdes, saneamento e drenagem. programas 100 Parques, Córrego Limpo e Mi- Como resposta às questões colocadas, crobacias Prioritárias e Favelas Complemen- os planos trazem diversas inovações técnicas tares, as ações realizadas ou em andamento e certamente expõem uma nova abordagem até 2009. com relação ao tratamento a ser dado para os Enquanto a metodologia de escolha fundos de vale urbanos, indicando inclusive a do Plano Municipal de Habitação prioriza as necessidade de articulação entre os diversos ocupa ções mais precárias e, portanto, mais órgãos públicos envolvidos no tema, tanto de vulneráveis, o Programa Córrego Limpo possui âmbito municipal como estadual. Mais do que como premissa a conclusão das intervenções isso, do ponto de vista da observação da rea- em curto prazo de tempo, dois anos. Por outro lidade e das premissas para a intervenção, os lado, o Programa 100 Parques, da SVMA, em- planos possuem abordagens convergentes. Al- bora tenha atendido a algumas subprefeituras gumas questões, porém, merecem discussão. em sua demanda por parques lineares, tem A primeira delas está diretamente re- como política enfatizar a implantação de par- lacionada às diferenças entre as diretrizes de ques em áreas livres de ocupação, na Macrozo- cada plano ou programa – apesar da análise na de Proteção Ambiental,6 principalmente na da problemática e das premissas de interven- Área de Proteção aos Mananciais e na Zona de ção serem semelhantes – o que implica que Amortecimento da Cantareira. 302 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... Mapa 1 – Parques lineares, favelas urbanizadas e córregos saneados Fontes: Metrô, ferrovia e estações: Guia Mapograf (2001); www,cptm.sp.gov.br (2004); www.metro.sp.gov.br (2004); Lume (2004). Município de São Paulo: Logit, s.d. Rios principais e represas: São Paulo (Estado), SMA (2000). Município de São Paulo, Distritos MSP e municípios RMSP: Logit, s.d. Urbanizações concluídas: elaborado pela autora. Córrego Limpo concluído: elaborado pela autora. Parques lineares concluídos ou em fase final: elaborado pela autora. Sub-bacias: São Paulo (Município), Sehab (2009). Mancha urbana 2010: Fontan (2010). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 303 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Assim, é possível dizer que, enquanto os para que surta um impacto regional positi- programas da Sehab começam pelas áreas de vo, principalmente quando se trata de dre- maior conflito, o Programa 100 Parques (com nagem, do aumento de áreas verdes e da exceções) e o Programa Córrego Limpo optam qualidade da água. Quando se analisam as por áreas onde os conflitos são menores, no questões habitacionais, a esfera regional intuito de realizar mais ações em um espaço também não possui indicadores satisfatórios, de tempo mais curto e aproveitar as oportu- principalmente porque em algumas reurbani- nidades. Esse desencontro faz com que as in- zações a quantidade de remoções é muito su- tervenções em áreas de habitação precária nos perior à quantidade de unidades habitacionais fundos de vale, especialmente no que concerne construídas. Assim, embora a precariedade ao saneamento, à drenagem e à criação de es- seja resolvida no âmbito local, ela permane- paços públicos, sejam restritas. ce para uma parcela significativa das famílias, Como consequência, observam-se ina- que provavelmente vão habitar outro assenta- dequações em todos os programas. A criação mento precário, no próprio município ou nos de parques lineares muitas vezes encerra-se outros municípios da Região Metropolitana. nas áreas onde não existem habitações pre- Ao menos até o final da década de 2000, cárias e que não estão vinculadas diretamente em nenhum dos casos as intervenções foram ao saneamento ambiental, resultando muitas implantadas ao longo de um curso d’água intei- vezes em um parque linear com o rio sujo e de- ro, mesmo nas áreas de maior fragilidade am- gradado. Do mesmo modo, as urbanizações de biental, como é o caso das Áreas de Proteção favela, embora implantem sistemas de esgota- e Recuperação de Mananciais. Nessas áreas, mento sanitário em áreas públicas lindeiras aos contudo, já é possível observar uma aproxima- rios, frequentemente não têm um sistema pú- ção entre as obras do Programa Córrego Limpo blico de esgotamento no qual possam conectar e aquelas de urbanização de favelas. E, apesar sua rede criada e não conseguem recuperar a dos planos descritos no capítulo anterior des- paisagem relacionada ao rio, mantendo-o co- tacarem a necessidade de coordenar as ações mo um problema sanitário e urbanístico, ou entre órgãos públicos, a observação das inter- simplesmente tratando-o de forma tradicional. venções programadas no Plano de Metas para Já o Programa Córrego Limpo, por ser implan- 2012 e na segunda fase do Programa Córrego tado principalmente em áreas já estruturadas Limpo, expostas no mapa da página seguinte, e consolidadas, mantém a abordagem setorial mostra que tal coordenação ainda não aconte- do saneamento. cerá em um curto prazo. Uma primeira análise necessária à im- Ao lado disso, observa-se que, à exce- plantação das intervenções na rede de rios ção do Plano Municipal de Saneamento, que e córregos e suas várzeas deve passar pela possui um conselho gestor intersecretarial escala dessas intervenções. De uma forma para o Fundo de Saneamento Ambiental e In- geral, embora as secretarias estejam em- fraestrutura ali estabelecido, os demais planos penhadas em seus programas, a escala das não estabelecem uma forma institucional nas intervenções realizadas é ainda pequena quais tais diretrizes poderiam ser integradas, 304 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... não resolvendo um dos principais desafios à Adicionalmente, ainda que possamos integração das políticas públicas, que é de considerar relevante o montante de recursos gestão. É possível que a força do montante destinados às diversas intervenções, sua com- de recursos colocado no fundo promova inter- paração com outras políticas coloca a importân- venções compartilhadas, mas, sob a mesma cia dada ao tema em perspectiva: o montante estrutura administrativa compartimentada, há de recursos para a canalização de córregos no pouca garantia de mudanças expressivas e de período de 2007 a 2009 é quase cinco vezes o tomadas de ação intersetoriais. valor destinado à criação de parques lineares, A governança é pouco estimulada nos considerando as verbas da Secretaria do Verde planos, considerando principalmente a falta e do Meio Ambiente – SVMA, da Secretaria de de participação da população nas tomadas de Infraestrutura Urbana – Siurb, e o Fundo Mu- decisão. A grande questão aqui é que, mesmo nicipal de Desenvolvimento Urbano – Fundurb que os planos estejam corretos do ponto de (São Paulo, Sempla, 2010). vista técnico, é o controle social que os pode Se por um lado a não integração das legitimar, por um lado, e garantir que sejam ações redunda em políticas que não conse- executados, por outro. Do contrário, aumentam guem romper o caráter setorial, por outro, as chances de que os planos não sejam ple- fazem com que haja um atendimento mais namente utilizados e que os critérios políticos abrangente, com maior distribuição de recursos continuem sobrepujando os técnicos na defini- públicos pelo território. Por conseguinte, nos ção das intervenções. mais diversos locais e contextos socioeconô- Além disso, os planos não consideram de micos da cidade observam-se ações que visam forma expressiva os níveis administrativos mais à melhoria da qualidade ambiental urbana. Tal locais, ou seja, as subprefeituras. Como esses fato demonstra também a importância adquiri- órgãos são também aqueles que estão mais da pela dimensão ambiental, que permeia to- próximos da população, sua presença poderia das as intervenções em curso. Nas áreas mais ser estratégica na discussão, implementação e, consolidadas, essas ações vêm completar a principalmente, na gestão das intervenções e infraestrutura sanitária, o que é necessário. dos espaços criados. Porém, em um contexto em que é imprescindí- Esse último item, monitoramento e ges- vel priorizar a destinação das verbas públicas, tão pós-intervenção, também está em grande seria interessante que essas se destinassem às medida ausente dos planos, e muitas vezes regiões onde esse recurso é mais urgente e on- também, do orçamento municipal, o que ge- de houve, historicamente, menor investimento ra uma série de problemas de pós-ocupação do poder público. Além do mais, nas áreas con- e manutenção e, portanto, precisa ser levado solidadas, poder-se-ia enfatizar as parcerias pú- em consideração. blico-privadas para a realização dessas obras. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 305 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Figura 2 – Trecho do Parque Linear do Ribeirão Itaim: a não completude do sistema de coleta de esgotos mantém a degradação do curso d’água Fonte: Foto de Luciana Travassos (2008). 306 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... Figura 3 – Canalização de córrego em galeria no Jardim Guarani Fonte: Foto de Luciana Travassos (2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 307 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Considerações finais que essas articulações não se manifestam nem na definição de diretrizes de planejamento e ação, nem como base para um arranjo institu- Do ponto de vista teórico e da agenda am- cional inovador. A governança e o compartilha- biental, as políticas de recuperação de fundo mento e a corresponsabilização em conexões de vale e ao longo de cursos de água conver- institucionais não estão claramente objetiva- gem na perspectiva da recuperação socioam- dos nas estratégias e metas dos planos e pro- biental urbana na medida em que ressaltam gramas. Para Berkes (2005) a cooperação de a importância da adoção de novas abordagens multi-stakeholders, a classe emergente de instituições para a promoção da “ciência cidadã” e as redes de movimento sociais podem favorecer a melhoria na gestão dos recursos naturais e do espaço urbano. Para tanto, é necessário que haja um programa intersetorial que, considerando as funções múltiplas das várzeas e dos rios urbanos e os diversos problemas ambientais, sociais e urbanos neles encontrados, priorize as regiões e as sub-bacias da cidade onde as intervenções devem ocorrer, com objetivos e horizontes temporais diversos. O Plano Diretor Estratégico criou as bases legais para um programa que pode cumprir essa função, indicando inclusive seus objetivos e atividades, ao propor o Plano de Recuperação Ambiental de Cursos-d’Água e Fundos de Vale, vinculado à Rede Hídrica Estrutural. Contudo, deixou em aberto quais órgãos participariam da concepção de tal plano e quaisquer procedimentos para sua instituição. Além disso, para que um programa intersetorial seja estabelecido, é preciso que haja um grupo com as mesmas características que o sustente. Esse deve contar com uma equipe técnica composta por funcionários dos diversos órgãos públicos participantes, conformando um verdadeiro grupo de trabalho, com dedicação exclusiva ao tema da recuperação dos fundos de vale. Como os objetivos e demandas para cada intervenção são diferentes, seria em drenagem urbana e do atendimento às demandas por áreas verdes, de lazer e serviços ambientais nas cidades, ou seja, sua importância para a implantação de uma infraestrutura verde. No entanto, no caso analisado no município de São Paulo, bem como nas grandes cidades brasileiras, adotar essas políticas significa ainda lidar com os assentamentos precários que têm ali uma de suas localizações principais, reconhecendo a cidade que ocupa hoje os fundos de vale e resolvendo as questões afetas a essa ocupação. Assim, para além das políticas de drenagem, saneamento e criação de áreas verdes, ganham importância no contexto brasileiro as políticas de urbanização de assentamentos precários e habitação de interesse social. Um dos principais desafios colocados à eficiência, à consolidação e à ampliação dessas políticas é sua integração, o que passa pela interação institucional e sua necessária coordenação, em um ambiente de crescente governança. A integração e articulação institucional podem ser favorecidas com instrumentos multiescalares como o plano de bacia hidrográfica, o plano regional ou metropolitano multisetorial, o zoneamento ecológico-econômico ou, ainda, um programa que considerasse ao menos as bacias onde as intervenções estão acontecendo. O que se observa, no caso analisado, é 308 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... interessante que um órgão de planejamento, a Sabesp e o DAEE), de Habitação e do Meio como a Secretaria Municipal de Desenvolvi- Ambiente. mento Urbano, no caso de São Paulo, fosse pro- A partir do trabalho técnico coletivo, o tagonista em tal grupo de trabalho, assumindo Plano de Recuperação Ambiental de Cursos- um papel de coordenação das ações. O grupo -d’Água e Fundos de Vale proporia um conjun- também deveria contar, no mínimo, com as se- to de estratégias que serão utilizadas em cada cretarias do Verde e do Meio Ambiente, de Ha- caso, para responder às demandas colocadas: bitação, de Infraestrutura Urbana, de Coorde- redução de inundações, aumento de permeabi- nação das Subprefeituras, de Segurança Pública lidade na várzea ou na bacia, urbanização de (em sua divisão de Defesa Civil), de Saúde, de favelas, remoção de famílias de áreas de risco, Assistência Social, de Esportes e de Educação, desafetação de áreas públicas, desapropriação, uma vez que as ações em voga têm relação revegetação e implementação de infraestrutura direta com seus temas de trabalho. De forma de esgotamento sanitário. O plano assim con- mais ampliada, o grupo poderia ser formado cebido deverá servir de diretriz para a prioriza- por diferentes instâncias de governo, contando ção das ações setoriais de cada órgão, com re- também com a participação de órgãos esta- lação às suas políticas para os fundos de vale, duais importantes às obras, como as secreta- e redundaria em intervenções mais completas e rias de Saneamento e Energia (especialmente menos desiguais pelo território. Luciana Travassos Arquiteta urbanista, doutora em Ciência Ambiental, professora contratada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Sandra Irene Momm Schult Arquiteta urbanista, doutora em Ciência Ambiental, professora adjunta da Universidade Federal do ABC. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 309 Luciana Travassos e Sandra Irene Momm Schult Notas (1) As cidades são Acra (Gana), Alexandria (Egito), Pequim e Chongqing (China), Lima (Peru), Cali (Colômbia), Belo Horizonte (Brasil), Birmingham (Grã-Bretanha), Hamburgo e a região do Emscher (Alemanha), Lodz (Polônia), TelAviv (Israel) e Zaragoza (Espanha). (2) Além dela, são elementos estruturadores: a Rede Viária Estrutural, a Rede Estrutural de Transporte Público Cole vo e a Rede Estrutural de Eixos e Polos de Centralidade. Permeando os elementos estruturadores, estão os elementos integradores, a habitação, os equipamentos sociais, as áreas verdes e os espaços públicos. (3) Talvegue é o ponto de encontro entre duas vertentes de morro, podendo conter ou não um curso d’água perene, é usado no PDE provavelmente para incluir as linhas de drenagem que não são permanentemente atravessadas por um curso d’água. No entanto, os talvegues não são de fato considerados nos mapas ou quadros da lei, assim como não o são todos os rios e córregos. (4) Assim está expresso no PDE: a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, durante a gestão de Marta Suplicy (2001 a 2004) teve sua nomenclatura alterada para Secretaria Municipal do Meio Ambiente, voltando posteriormente ao seu nome de origem, enquanto as atribuições relacionadas à urbanização saíram da Sempla e passaram, mais recentemente, à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, SMDU. (5) Diversos trabalhos mostram, no município de São Paulo, a relação entre o crescimento populacional nos fundos de vale, fora deles e os padrões de renda de cada um: nessas áreas a população cresce a taxas maiores que em outros trechos das bacias e possui renda inferior (Travassos, 2004; Alves e Torres, 2006). (6) O Plano Diretor Estratégico definiu duas Macrozonas: de Estruturação e Qualificação Urbana e de Proteção Ambiental. Esta abrange as Áreas de Proteção aos Mananciais, além das Unidades de Conservação de Uso Restrito e as bordas municipais ao leste, oeste e norte. Referências AGENCES DE L’EAU (1999). La ges on intégrée des rivières: pour une approcheglobale. Lyon, Helphi Com. AHERN, J. (1995). Greenways as a planning strategy. Landscape and urban planning, v. 33, n. 1-3, Greenways. ______ (2007). “Green infrastructure for ci es: the spa al dimension”. In: NOVOTNY, V. e BROWN, P. Ci es of the future towards integrated sustainable water and landscape management. Londres, IWA Publishing. ALMEIDA, F. G. de (2007). “O ordenamento territorial e a geografia sica no processo de gestão ambiental”. In: SANTOS, M. et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro, Lamparina. 310 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos... ALVES, H. e TORRES, H. G. (2006). 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The ins tu onal dimensions of environmental change: fit, interplay, and scale. Massachuse s, The MIT Press. Texto recebido em 26/set/2012 Texto aprovado em 5/nov/2012 312 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 289-312, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad: turismo cultural en la región sur de Jalisco Regional development and sustainability: cultural tourism in Southern Jalisco José G. Vargas Hernández Resumen Este estudio tiene como objetivo determinar el potencial del turismo cultural en los municipios que conforman la región 6 del Estado de Jalisco, territorialmente delimitado en el Sur de Jalisco. Primeramente se identifica la demanda de turismo cultural para conocer el perfil del turista cultural bajo los supuestos de que los turistas especialmente motivados por la cultura tienden a viajar distancias más largas que la mayoría de los turistas. Se analizan las motivaciones y satisfacciones de los turistas culturales con el fin de establecer el potencial de mercado de acuerdo con las características del mercado meta en la región Sur de Jalisco. Cualquier operación de las empresas de turismo cultural debe hacer el diagnóstico estratégico, lo que explica el uso del análisis FODA como una herramienta para la planificación estratégica de las empresas de turismo cultural. Por último, se proponen algunas estrategias de desarrollo del turismo cultural en esta región del Sur de Jalisco. Abstract This study aims to determine the potential of cultural tourism in the municipalities that comprise region 6 of the State of Jalisco, Mexico, territorially delimited in the South of Jalisco. First, the demand for cultural tourism is identified to determine the profile of the cultural tourist, under the assumption that such tourists, especially motivated by culture, tend to travel longer distances than most tourists. Then, the motivations and satisfactions of cultural tourists are analyzed in order to establish the market potential in accordance with the characteristics of the target market in the Southern region of Jalisco. Any operation performed by cultural tourism companies should undergo a strategic diagnosis, which explains the use of SWOT analysis, a tool for the strategic planning of cultural tourism enterprises. Finally, some strategies for the development of cultural tourism in the region of Southern Jalisco are proposed. Palabras clave: desarrollo regional; empresas de turismo; Sur de Jalisco; turismo cultural. Keywords: regional development, tourism companies, Southern Jalisco, Cultural Tourism. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 José G. Vargas Hernández Introducción datos e información sobre la práctica de actividades de turismo cultural. Los cambios sociales dinámicos que ocurren en la Región Hay una conciencia creciente de la importancia Sur de Jalisco, hacen que sea difícil obtener de la cultura, las artes, festivales, sitios de información útil como insumo confiable para patrimonio natural y cultural y el folclore. el diseño, la aplicación y la eficacia de las La diversidad cultural es la base del turismo políticas de turismo cultural. cultural y patrimonial. El turismo cultural El objetivo de este estudio es hacer ha estado en el centro de la industria del frente a la falta de actividades de turismo turismo en Europa y ahora otros países cultural y de infraestructura en la Región Sur están empezando a desarrollar sus propias de Jalisco. Uno de los objetivos de este estudio actividades (Nzama, Reyes Magos y Ngcobo exploratorio es recoger aportaciones sobre si 2005). El turismo cultural es un producto la Región Sur de Jalisco se puede transformar turístico en sí mismo y puede dar importantes en un destino de turismo cultural. El concepto contribuciones al desarrollo económico de turismo cultural puede ser formulado regional. El desarrollo implica el diseño, la después de entender las actividades culturales comercialización y la promoción de nuevos que ofrece la comunidad, considerada como productos del patrimonio cultural turístico y las un activo para el desarrollo económico actividades durante la creación de un ambiente regional. El turismo cultural es una opción seguro y de fácil manejo para los visitantes y para crear empleo, mejorar la calidad de vida las comunidades locales. y poner en práctica iniciativas de erradicación A pesar de que la Región Sur del Estado de la pobreza. de Jalisco en México es considerado uno de las Como estrategia de marketing, el turismo más ricas culturalmente en las manifestaciones cultural es una de las últimas palabras de moda y expresiones de la literatura latinoamericana, para atraer a los visitantes a lugares de interés la pintura, etc., el turismo cultural es casi cultural. Destinos de turismo cultural que inexistente. Las comunidades locales no ofrecen productos y servicios culturales ligados suelen estar activamente interesados en temas por la geografía, pueblos, folclore, historia, relacionados con el turismo cultural y no fiestas, experiencias de arte y de rendimiento entienden cuáles podrían ser los beneficios. Por pueden ser comercializados a los visitantes otra parte, existe una falta de datos fiables sobre locales y extranjeros. El turismo cultural en la el turismo cultural para la Región Sur de Jalisco. Región Sur de Jalisco puede ofrecer beneficios El turismo cultural no es ni común potenciales para el desarrollo económico ni universal. Aunque las organizaciones, regional y para los visitantes, así, debido a la gobiernos y comunidades no deben presencia de recursos adecuados. Un enfoque considerarse el turismo cultural como parte de integrado que incluya a todos los interesados sus intereses principales, aprecian y entienden debe ser inclusivo y participativo para asegurar las consecuencias y posibilidades de turismo emprendimientos culturales sostenibles y (Jamieson, 1998). También hay escasez de sustentables, integrales y eficientes de turismo. 314 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad La duración del turismo cultural está es el turismo vivencial se relaciona con la fuertemente influenciada por enfoques visita de paisajes preferidos, lugares históricos, profesionales que se refieren a un concepto más edificios o monumentos y buscan el encuentro, bien que a un determinado conjunto de objetos, la participación y la estimulación con la artículos o productos. La Organización Mundial naturaleza o sentirse parte de la historia de un del Turismo (OMT) define el turismo como lugar (Hall y Zeppel, 1990). el concepto que comprende las actividades Un turista cultural es una persona que se de personas que viajan y permanecen en va más allá de 40 kilómetros de distancia de su lugares distintos al de su entorno habitual, hogar por lo menos una noche y ha asistido a por no más de un año consecutivo por ocio, un centro cultural, que incluyen la visita a una negocios y otros motivos (WTO – World Tourism galería de arte, museo, biblioteca, concierto de Organization, 2000, p. 4). El turismo cultural se música, la ópera y el cine (Australian Bureau define como el movimiento de personas por of Estadísticas, 1997). Hall (1998) define motivaciones esencialmente culturales, que el turismo cultural como el turismo que se incluyen viajes de estudio, las artes escénicas, centra en la cultura de un destino, la vida, el visitas culturales, viajes a festivales, visitas patrimonio, las industrias de las artes y el ocio a sitios históricos y monumentos, folklore y de la población local. peregrinaciones (WTO, 1985). El turismo cultural está relacionado El concepto de turismo cultural abarca con los aspectos culturales que incluyen las una amplia gama de puntos de vista que costumbres y tradiciones de las personas, reúnen un conjunto completo expresiones su patrimonio, historia y forma de vida. El humanas y manifestaciones que realizan los Consejo Internacional de Monumentos y visitantes a experimentar el patrimonio, las Sitios (Icomos) define el turismo cultural como artes, estilos de vida, etc., de las personas que "un nombre que significa muchas cosas para viven en los destinos culturales. Patrimonio muchas personas y aquí radica su fuerza y su turístico se considera generalmente como debilidad" (McKercher y Cros, 2002, p. 24). La el turismo cultural. Patrimonio turístico se teoría del turismo cultural está comenzando refiere a los lugares que visitan los turistas de a debatir temas de especialización de género importancia tradicional, histórica y cultural, con (Aitchson, 2003). el objetivo de aprender, prestar respecto a fines recreativos (Nzama et al., 2005). El turismo cultural se refiere a los viajes que se dirige a proporcionar oportunidades El turismo cultural es un término que y el acceso a los visitantes para disfrutar de abarca los sitios históricos, las artes, las ferias las artes y oficios, museos, patrimonio, fiestas, artesanales, festivales, museos de todo tipo, música, danza, teatro, literatura, sitios y las artes escénicas, las artes visuales y otros edificios históricos, paisajes, barrios y el carácter sitios del patrimonio que los turistas disfrutan especial de las comunidades locales. El turismo de visitar en la búsqueda de experiencias cultural se relaciona con los movimientos culturales (Tighe, 1985). El patrimonio como temporales o a corto plazo de personas a turismo es un sinónimo de turismo cultural, destinos culturales fuera del lugar de residencia Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 315 José G. Vargas Hernández y de trabajo, y donde sus actividades en estos a otros segmentos turísticos (Centro de destinos o instalaciones son las de atender a Estudios de la Secretaria de Turismo – sus necesidades de recreación (Keyser, 2002). Cestur). Un programa especial de incentivos El turismo cultural asocia la palabra "atracción para el turismo relacionado con la cultura o turística y cultural" con el patrimonio cultural valores deben reconocer las contribuciones tangible e intangible. Es también la asistencia que el turismo puede tener para la cultura y de los visitantes entrantes a uno o varios viceversa, para sacar provecho de los aspectos lugares de interés cultural como festivales, positivos y generar sinergias para el desarrollo ferias, museos, galerías de arte, edificios de de ambos sectores. la historia y talleres de artesanía (Bureau of Tourism Research, 2004). Dentro del proceso de diseño y desarrollo, el turismo cultural puede tomar Ivanovic (2008 ) y Cooper, Fletcher, muchas formas. Sharma (2004) se suma al Fyall, Gilbert y Shepherd (2008) sostienen debate de recursos culturales para defender que la mayor motivación para el viaje es los beneficios económicos del desarrollo conocer la cultura y el patrimonio, tanto de programas, recursos y servicios para el emergentes como contribuyentes al desarrollo beneficio de las comunidades locales, creando económico. Ivanovic (2008) sostiene que un equilibrio entre los imperativos económicos el turismo cultural y el patrimonio es un y los impactos positivos y negativos. desarrollo reciente en la actividad turística y, Las actividades culturales del turismo junto con el ecoturismo se están convirtiendo pueden tener un impacto económico sobre en las formas predominantes de turismo el desarrollo regional mediante la creación sustituyendo así al turismo masivo de sol- de empleo y mejora de los niveles de vida. lujuria. Las atracciones culturales y eventos Hanekom y Thornhill (1983, p. 110) describen juegan un papel clave en el turismo cultural las actividades del turismo cultural como y la hospitalidad de los destinos para atraer un conjunto de fenómenos tales como la a los visitantes (George, 2001). El turismo formulación de la política, la planificación cultural es estar viajando para experimentar y y organización de la estruc tura de los participar en los estilos de vida en extinción métodos y procedimientos de selección, que se encuentran dentro de la memoria formación, desarrollo y motivación del humana (Goeldner y Ritchie, 2009). personal, el presupuesto y las operaciones El objetivo de la política de turismo de financiación. Los principios filosóficos cultural es influenciar y atraer a los visitantes de la disciplina del turismo deben ser (Williams y Shaw, 1991, p. 263). Los turistas examinados de nuevo para volver a evaluar con interés especial en la cultura corresponden los fundamentos del turismo cultural. al segmento de "turismo cultural", es decir., Turismo cultural y patrimonial puede tamaño y valor son directamente atribuibles ser considerado como una actividad dinámica a los valores culturales del país, que animen a desarrollada a través de las experiencias los turistas a hacer un viaje. Los turistas con físicas, la búsqueda y la celebración de lo que interés ocasional en la cultura pertenecen es único y hermoso, representada por nuestros 316 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad propios valores y atributos que son dignos de meta (Easton, 1965, pp. 128-129; Ferreira, conservar y transmitir a los descendientes de 1996, p. 404; Cloete y Wissink, 2000, p. 39). tal manera que las comunidades puedan estar Un argumento opuesto subyace para conservar orgullosos de ellos. y proteger la integridad de los recursos turísticos culturales, mediante el control del excesivo hacinamiento, de los recursos y la Marco teórico y revisión de la literatura contaminación ambiental (McDonald, 1999). Turismo cultural y patrimonial trae importantes beneficios económicos y de desarrollo para sitios de patrimonio cultural, La construcción de la teoría y el desarrollo municipios y comunidades. Una investigación son necesarios para poder ser utilizados como empírica llevada a cabo por Besculides, Lee base para la explicación y la comprensión y McCormick (2002) utilizando un enfoque del modelo normativo de turismo cultural basado en los beneficios para examinar las para la Región del Sur de Jalisco. La teoría percepciones de turismo cultural por los para el turismo cultural se ha desarrollado residentes hispanos y no hispanos, mostró para explicar, analizar, evaluar y predecir los que los hispanos cree firmemente que viven fenómenos relacionados (Moulin, 1989 e a lo largo de un camino paralelo del turismo 1990). Sin embargo, un marco teórico para cultural que ofrece beneficios culturales el turismo cultural y sustentar la práctica y tienen una mayor preocupación por su actividades requiere disponibilidad de datos gestión. sobre infraestructura, recursos y habilidades. El enfoque filosófico de turismo cultural Easton (1979) desarrolló un modelo de los grupos de interés, los proveedores y los normativo de turismo cultural haciendo responsables políticos da forma a los valores hincapié en los entornos externos al servicio de y normas de la modelo normativo orientado los parámetros que pueden influir en el logro a desarrollar políticas efectivas en torno al de objetivos, tales como políticos, económicos, turismo cultural. Las comunidades locales que socio-culturales, legales, ambientales, desarrollan y promueven el turismo cultural educativos, de salud, las políticas legales, la y patrimonial pueden necesitar que tengan demografía y el entorno tecnológico, aunque un marco de referencia para la aplicación el número y tipos de entornos posibles pueden efectiva de las políticas locales y nacionales. ser ilimitadas (Ferreira, 1996, p. 403). Cada El desarrollo y promoción de los productos y entorno requiere la adaptación del mecanismo servicios del turismo cultural y de patrimonio de conversión (Easton, 1965, pp. 131-132; requieren de una planificación y ejecución Ferreira, 1996, p. 403). sobre la base de las políticas. Los principios Después de que el objetivo se logra, las filosóficos del turismo cultural son necesarios entradas formadas por el ambiente externo para mantener el diseño e implementación de original generan nuevas necesidades que un modelo normativo destinado a promover las deberá satisfacer por alcanzar una nueva políticas regionales de desarrollo económico. La Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 317 José G. Vargas Hernández literatura sobre la política de turismo cultural enfoque del desarrollo sostenible, sustentable es relevante en el desarrollo de un marco y el desarrollo del turismo de patrimonios normativo. Existe la necesidad de desarrollar culturales tiene como objetivo mejorar el un marco de políticas públicas para el turismo medio ambiente mediante la satisfacción de las de patrimonio cultural. necesidades de las comunidades presentes sin La teoría de turismo cultural "ciudades comprometer la capacidad de las generaciones creativas" recomienda invertir en bienes futuras para satisfacer sus propias necesidades culturales y el patrimonio. Ximba (2009) analizó (WCED, 1987, p. 8). y examinó las variables y principios como la El desarrollo de turismo de patrimonio comprensión del turismo cultural, el desarrollo cultural sustentable y sostenible requiere y la conservación de la cultura, la provisión de las mejores prácticas (Magi y Nzama, de equipamientos culturales, la participación 2002) para satisfacer las necesidades de en el turismo cultural, la aplicación de las los visitantes invitados presentes y las políticas y prácticas de turismo, y los beneficios comunidades anfitrionas locales, mientras que del turismo cultural y patrimonial . El turismo requiere la protección y el fomento de mejores cultural se basa en la participación en las oportunidades para las generaciones futuras. profundas experiencias culturales, ya sea Un turismo cultural sustentable contribuye intelectual, psicológica, estética o emocional al desarrollo de la comunidad si los agentes (Russo, y Van der Borg, 2002) y, como el turismo del turismo y las empresas son eficientes, cultural especializado se centra en un pequeño equitativos y orientados al medio ambiente. número de sitios geográficos, municipios, MacDonald y Lee (2003) examinaron el turismo unidades y entidades culturales. rural cultural en un marco de referencia El modelo normativo permite la teniendo en cuenta el papel de la cultura disposición de los datos y la información en las asociaciones de base comunitaria. sobre las actividades de turismo cultural, de Sus hallazgos sugieren que la cultura en el tal forma que proporcionen las bases para desarrollo del turismo rural es un recurso desarrollar un marco teórico para el turismo valioso y las asociaciones de base comunitaria cultural. La teoría normativa se ocupa de los pueden ser muy eficaces. fenómenos y preguntas sobre el papel asumido El turismo cultural refuerza la identidad por el gobierno y, en general, el sector público y estima de la comunidad local. Brinda la (Hanekom y Thornhill, 1983, p. 71). oportunidad de una mayor comprensión y Un modelo normativo del turismo comunicación entre personas de orígenes cultural sostenible desarrollado por Ismail diversos (Lubbe, 2003). El desarrollo del (2008) propone un modelo de entrada-salida turismo de patrimonio cultural sustentable se (input-output) con un mecanismo de aplicación basa en la suposición de que los recursos y las para garantizar que el turismo cultural instalaciones son finitos, limitados, algunos de sostenible y sustentable facilite las iniciativas los cuales no son renovables, experimentan para el desarrollo regional mediante la la degradación y el agotamiento, no pueden creación de empleo y el alivio de la pobreza. El seguir creciendo para satisfacer las necesidades 318 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad del turismo de masas y una población en es el eje del encuentro, la experiencia y el crecimiento (SARDC, 1994). disfrute de los recursos y las oportunidades La práctica del desarrollo sustentable disponibles para el buscador turístico o de del turismo cultural y patrimonial, requiere ocio (Torkildsen 2007). Turismo cultural y compartir los beneficios entre los visitantes y patrimonial puede ser una herramienta para residentes de las comunidades locales sobre preservar la cultura de las comunidades una base permanente. Para superar algunos anfitrionas. Las políticas turísticas culturales de los problemas asociados con el desarrollo y patrimoniales sustentables deben enfocar del turismo cultural, es necesario aprovechar y regular las actividades y mejores prácticas todas las oportunidades, los conocimientos orientadas a la restauración, mejora y té cnico s , el a p oyo f inancie r o, la co - conservación de los recursos para su uso participación de la comunidad, etc., con el fin presente y futuro continuado y el disfrute de maximizar los beneficios. La participación por los visitantes y la población local (Keyser, comunitaria en el desarrollo del patrimonio 2002). El nivel de mantenimiento, conservación cultural y el turismo debe convertirse en una y preservación de los recursos está relacionado práctica fundamental de un enfoque centrado con el nivel de la infraestructura de turismo en las personas, para incorporarlas en el cultural y las instalaciones. proceso de toma de decisiones en el desarrollo En la investigación se lleva a cabo una de los recursos culturales y patrimoniales y búsqueda bibliográfica de profundidad para para compartir todos los beneficios (Magi y extraer un conjunto de criterios normativos Nzama, 2008). para el turismo cultural y se lleva a cabo un Los participantes en las actividades estudio cualitativo empírico. De los resultados turísticas culturales esperan obtener placer, de esta investigación, por último, se diseña satisfacción o cumplimiento de la experiencia un modelo normativo de turismo cultural. El (Shivers 1981). McKercher y Du Cros (2003) objetivo del modelo normativo para el turismo evalúan una tipología de turismo cultural que cultural sustentable es el de facilitar el análisis, representan los cinco beneficios basados en diseño y formulación de iniciativas culturales de segmentos probados contra una variedad política turística. La teoría del turismo cultural, de variables, tales como las demográficas, basada en criterios normativos se centra en motivaciones del viaje, actividad preferida, la la formulación, diseño e implementación de conciencia, la distancia cultural y la actividad. las políticas de turismo cultural. El entorno Se encontraron diferencias entre los grupos y político externo influye en la política turística sugirieron que el modelo presentado puede del gobierno la que a su vez, puede tener ser eficaz en la segmentación del mercado de un impacto en el desarrollo de un modelo turismo cultural. normativo para el turismo cultural. La teoría de La co-participación en la toma de turismo cultural, basada en criterios normativos decisiones, la propiedad y los beneficios de es necesaria para la formulación de políticas todos los actores involucrados en el desarrollo de turismo cultural orientadas a la mejora del sustentable del turismo de patrimonio cultural desarrollo económico regional. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 319 José G. Vargas Hernández El objetivo de cualquier política de desarrollar estrategias y formular políticas para turismo cultural orientado al desarrollo regional enmarcar la ejecución de algunas propuestas es influenciar y atraer a los visitantes (Williams al respecto, recomendaciones y proyectos. Un and Shaw 1991, pp. 263-264) a través de la modelo normativo para el turismo cultural en generación de la demanda y la prestación de el sur de Jalisco, flexible y dinámica como una servicios turísticos. Richards (1996) realizó una herramienta, ayuda a proporcionar los criterios investigación internacional sobre la demanda y metodológicos y de procedimientos, políticas la oferta de turismo cultural, y encontraron un y estrategias para promover el desarrollo incremento rápido en la producción y consumo económico regional. de los bienes culturales y lugares de interés y atractivos turísticos del patrimonio cultural. Los criterios normativos incorporados Métodos en el modelo puede ser el marco de referencia del entorno macroeconómico externo, el que La investigación sobre el marco normativo para a su vez puede influir en la política social del el turismo cultural se considera necesaria para turismo cultural. Los factores sociales que hacer frente al actual desarrollo económico influyen en el turismo cultural del entorno disfuncional de la Región Sur de Jalisco. El externo se pueden determinar mediante la enfoque de sistemas puede ser utilizado para aplicación de un sistema de evaluación que el propósito de analizar y desarrollar el marco beneficia a todas las partes interesadas. normativo para el turismo cultural (Bayat La aplicación del marco normativo para el y Meyer, 1994, pp. 83-10). El objetivo del turismo cultural depende del compromiso de modelo normativo para el turismo cultural es los agentes del turismo, agencias de gobierno, analizar las fortalezas, debilidades, amenazas y comunidades, etc., para que desempeñen sus oportunidades en todos los factores tales como funciones correspondientes. la infraestructura, las instalaciones, habilidades, Así, los interesados en el turismo c u l t u r a l , l a s c o m u n i d a d e s, a g e n c i a s etc., y sobre todo el diseño e implementación de políticas de turismo cultural en el sur de Jalisco. gubernamentales, gobiernos municipales, etc. El marco normativo está diseñado como tienen la responsabilidad de implementar una herramienta para el objetivo de cambiar iniciativas para desarrollar la infraestructura, la situación actual, las políticas y estrategias instalaciones culturales, atracciones de en una forma más dinámica, y una propuesta turismo cultural, alojamiento, etc. El modelo funcional y flexible para el desarrollo económico normativo es adecuado para describir, explicar regional. El uso de un modelo normativo y analizar las actividades de turismo cultural para el turismo cultural requiere de métodos con el fin de diseñar, desarrollar, promover e cualitativos y cuantitativos de análisis como un implementar políticas orientadas a la creación enfoque para llevar a cabo la investigación. Un de empleo y mejorar las condiciones de una análisis del entorno incluye el macro externo mejor calidad de vida. Un modelo normativo y el microambiente, el medio ambiente y el de turismo cultural puede ser útil para entorno macro marketing, que representa las 320 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad fuerzas externas que influyen en la toma de deficiencia y desviación de los resultados decisiones y el logro de objetivos tales como continuos provenientes del modelo normativo las políticas públicas, económicas, sociales, de turismo cultural en relación con la macro y políticas, demográficas, tecnológicas legal, etc. micro variables ambientales y factores. El microambiente interno de un marco normativo para el desarrollo y la promoción del turismo cultural influye en los proveedores, los canales de distribución, clientes, competidores, los valores comunitarios, políticas locales, La determinación de la demanda de turismo cultural requisitos legales, etc. Los principios rectores y las políticas desarrolladas por el gobierno federal y los gobiernos locales pueden ser los Turismo mexicano en la jerarquía de los países del mundo en el año 2010 criterios básicos para el diseño y desarrollo del marco normativo de referencia para el turismo Cuando se inicia con el siglo XXI, se puede cultural en el Sur de Jalisco. observar que el turismo es de suma importancia El objetivo del modelo normativo para el para el desarrollo económico y la piedra turismo cultural es alcanzar criterios eficaces angular para el desarrollo de servicios con un y eficientes de desempeño para diseñar, valor estimado en 476 000 millones de dólares desarrollar, mantener, promover y fortalecer el (ver Cuadro 1). Por tanto, es una herramienta desarrollo del turismo cultural. El mecanismo poderosa para promover el desarrollo de los de retroalimentación censa cualquier posible pueblos en términos de apalancamiento. Cuadro 1 – Información relacionada con el turismo de México México Crecimiento – 2004 (1) Crecimiento – 2014 (2) Relativo Absoluto Crecimiento Relativo Absoluto Crecimiento Viajes y turismo personal 17 130 133 16 137 124 Viajes de negocios 14 --- 131 12 --- 39 Gasto público 12 58 168 11 62 145 Inversiones de capital 11 93 2 7 94 3 Exportaciones de visitantes 16 113 9 12 115 15 Otras exportaciones 11 15 27 9 15 19 Demanda de viajes y turismo 12 --- 34 10 --- 13 Industria del turismo y viajes 14 108 91 11 103 68 Turismo económico 11 99 52 10 70 14 Empleo de la industria del turismo 22 115 89 19 110 68 Empleo de turismo económico 14 75 42 8 52 4 (1) 2004 Crecimiento real ajustado por inflación. (2) 2005-2014 Crecimiento real anualizado ajustado por inflación. Total 174 países y 13 regiones (la más larga / la más alta / la más grande) es número uno, (el más pequeño / el más bajo / el peor) es número 174. 13 son regiones agregadas sin jerarquía. Fuente: World Travel and Tourism Council. Mexico travel and tourism merging ahead. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 321 José G. Vargas Hernández Tabla 1 – Lugar de México en la lista de 212 países Índice Lugar Apertura turística 54 Precios 66 Recursos humanos 70 Tecnología 71 Social 72 Turismo humano 89 Medio ambiente 92 México ocupa el séptimo lugar entre los principales receptores de turismo internacional, Impacto económico del sector turismo en México después de Francia, España, Estados Unidos, Italia, China, Reino Unido y Austria (véase el De acuerdo con la última información oficial Tabla 1). disponible del Gobierno de México (Turismo Un estudio realizado por el Consejo Boletín Trimestral) el número de turistas Mundial de V iajes y Turismo ( W T TC ) , internacionales a México en 2003 mostró tasas basado en ocho indicadores de Monitor de de crecimiento ligeramente inferiores a los Competitividad Turística (Financial Infosel, que se registraron durante el año anterior, lo 2004) y se aplicó a 212 países, pone a México que representa una reducción significativa del en el lugar 70. Los ocho indicadores son los indicador en 2003. La consideración de que precios, turismo humano, infraestructura, el número total de turistas internacionales en medio ambiente, tecnología de apertura al 2003 (más la colocación de frontera) se observa turismo, los recursos sociales y humanos. El una contracción (-5,1%) como resultado de la índice de precios considera que los costos que caída de turistas fronterizos, pasando de 9,8 pagan los consumidores por los productos y millones de turistas en 2002 hasta 8,3 millones servicios del hotel... los impuestos sobre las de turistas en 2003, una reducción del 15 %. compras de bienes y la utilización de servicios. En 2010, el país recibió 18,7 millones de El índice de turismo humano tiene en cuenta turistas internacionales, con un descenso del "la participación del pueblo en las actividades 5,1% respecto a 2002. El motivo principal por turísticas”. el saldo negativo en el número de turistas se 322 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad debe a la aplicación de la creciente inmigración $3,204 millones en 2003, un 14.5% más que en la frontera con Estados Unidos, causados en 2002. En 2003, se registró una cifra de 47,9 por factores exógenos, como los recientes millones de turistas que llegaron a cuartos de conflictos en el Medio Oriente, la narco-guerra hotel nacionales, lo que significa un aumento mexicana y el síndrome respiratorio severo del 1.3% con respecto al año anterior. En agudo. Aunque hubo un menor número de 2003 el turismo nacional se incrementó hasta turistas internacionales, con respecto a 2002, el el 8.2%, con la estancia media de los turistas ingreso de divisas recibidas en 2003 permitió durante la noche, apuntando especialmente grabar figuras históricas como el resultado a los destinos de playa, mientras que el alcanzado en 2003 el nivel más alto observado destino de las ciudades registra menores en los anteriores últimos cuatro años. tasas de ocupación. Las ciudades del interior Los turistas en medicina y hospitales, son y las grandes ciudades, respectivamente, los que generan más divisas para nuestro país, mostraron una contracción de 2.8 y 1.5 puntos por lo que el turismo transfronterizo fronterizo porcentuales en comparación con los niveles en bienes y servicios médicos presentó un registrados en 2002, mientras que las ciudades cambio positivo que condujo a la entrada de fronterizas mostró un buen desempeño al divisas para crecer, al aumentar el gasto total registrar una ocupación media del 60.2%, que de los visitantes internacionales a México, es 6,3 puntos porcentuales superior a la de un lo que resulta en un aumento significativo año antes. en el exceso de pasajeros. El segmento de En 2004, los viajes y el turismo generaron entradas turísticas terminó en el año 2003 con en México 8.40.200 millones de pesos 10,4 millones, un 4,8% superior a los niveles equivalentes a $73,3 mil millones dólares en presentados en 2002. El gasto aumentó de 8, actividad económica (demanda total). Los 858 millones de dólares desde 2002 hasta 9, impactos directos de esta industria fueron: 457 millones de dólares en 2003, un nivel que 681,354 puestos de trabajo, lo que representa representa un aumento del 6,8%. Dentro de el 2.4% del total. 186.800 millones de pesos este segmento, el turismo interno contribuyó mexicanos equivalentes a EE.UU. $16.3 mil con el 70% de los depósitos totales, el 23% millones del producto interno bruto, lo que de los excursionistas y el 6% restante se equivale al 2.7% del total. Sin embargo, ya registraron como transfronterizos turistas que el turismo afecta a todos los sectores de la (Boletín Trimestral de Turismo). economía, su impacto real es mayor. El segmento de cruceros registró un La economía de este sector directa e aumento del efectivo en 2003 a 35,9 en el indirectamente representa: 2,865,740 puestos año anterior. También hubo una reducción en de trabajo que representan el 10.0% del el flujo de turistas y visitantes-Tras fronterizos total. 643.200 millones de pesos de producto internacionales fuera de México que en 2003, interno bruto, lo que equivale al 9,4% del acumulando una caída de 18.6%. El gasto total. 299.900 millones de pesos mexicanos total realizado por los mexicanos en el exterior equivalentes a EE.UU. 26,2 mil millones registró un superávit en la balanza turística de dólares de las exportaciones, bienes o servicios Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 323 José G. Vargas Hernández y el 13,8% de las exportaciones totales. 168 y el 5.8% a 5.029.550 puestos de trabajo 300 millones de pesos mexicanos equivalentes en la economía del turismo en general para a un 14.7% millones de dólares de inversiones el año 2014; 7.9% en las exportaciones de de capital o 10.7% de las inversiones totales. los visitantes se elevan a 382 300 millones 40.300 millones de pesos equivalentes a EE.UU. de pesos, lo que equivale a 27,3 millones de $35,5 mil millones del gasto público o el 5.1% dólares para el año 2014; 9.9% en términos de de participación. inversión de capital que aumente a 604.700 millones de pesos, equivalentes a 43,2 billones de dólares en el año 2014. 2.3% en términos Crecimiento de aumento del gasto público para llegar a 70,6 mil millones de pesos, equivalentes a US Para el 2004, el turismo en México alcanzó los $ 5 mil millones en 2014. siguientes resultados proyectados: Crecimiento En México, las cifras de turismo cultural real del 11.1% de la demanda total; 9.3% del no se han determinado con precisión. Sólo el producto interno del sector de la industria del Instituto Nacional de Antropología e Historia turismo, 186 800 millones de pesos mexicanos (INAH) ha estimado que han atraído a los equivalentes a $16,3 mil millones de dólares espacios bajo su custodia 16.4 millones de del producto interno bruto para la industria visitantes en 2002. Los visitantes nacionales directamente y 10.7%, 643,2 mil millones de representaron alrededor de las cuatro quintas pesos de producto interno bruto, lo que equivale partes con un total de 13.2 millones de al 9,4% del total, para la economía del turismo turistas y los internacionales representaron en general (costos directos e indirectos); 8% un quinto con 3.2 millones de dólares. Figuras del empleo en el sector turístico con un impacto más recientes reportan que los turistas directo solamente, o de 681,354 trabajos, y el internacionales que visitan los centros del INAH 9.9% o 2.865.740 millones de empleos en la van en aumento sin embargo, entre visitantes economía del turismo en general, con impacto nacionales no hacen distinción entre turistas directo e indirecto. nacionales y residentes nacionales de las Para el año 2014, el turismo en México ciudades en las que los sitios están ubicados. se espera que alcance un crecimiento real La cultura está en el sexto lugar como anual: 7.1% de la demanda turística total para la principal motivación para el turismo interno lograr lo que equivale a 340 000 millones de y el cuarto para el turismo internacional. pesos o su equivalente en $ 167,4 millones de Se estima que el turismo especialmente dólares en 2014. 55% del total del producto motivado por la cultura en México representa nacional total del sector turismo hasta 422 el 5.5% de los pasajeros nacionales y el 3% 900 millones de pesos equivalentes a EE.UU; para los internacionales. En 2011 había casi $124,6 mil millones de dólares a la economía 120 millones de turistas con actividades del turismo en general; 3.1% en el empleo relacionadas con la cultura en México. El en el sector turístico para llegar a 921, 832, gasto por viajes relacionados con la demanda los que trabajan directamente en la industria de turismo cultural es mayor que el promedio 324 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad nacional, debido a un aumento de su ingesta patrimonio intangible, prefieren ver las diaria basada en las actividades en torno al tradiciones y costumbres de las comunidades patrimonio cultural y estancias largas hoteles solo el 9%. Por su parte, los mexicanos y por lo tanto mayor que en otros segmentos prefieren asistir a las actividades relacionadas del turismo. con los activos intangibles (52%) entre todo el sabor excepcional de la cocina regional (13%). La actividad relacionada con el patrimonio Perfil de los turistas con la declaración de culturales material preferido por los turistas mexicanos es la observación de los monumentos arquitectónicos (18%). Esto se relaciona con el interés, más que la apreciación estética Los turistas motivados especialmente por la de la didáctica de la mayoría de los viajeros cultura, tienden a viajar distancias más largas culturales (Cestur, 2011). que la mayoría de los turistas. Para llevar a cabo una incursión cultural, la inversión personal que se necesita por parte de los turistas que expresan mayor interés en el aprendizaje y se involucran en la vida del lugar visitado, lo que requiere más tiempo que un viaje escénico. Las motivaciones y la satisfacción de los turistas culturales Cuanto más se visita los espacios culturales de los demás son visitados, los efectos sobre los Ta n t o p a r a l o s t u r i s t a s n a c i o n a l e s e turistas son más de curiosidad. internacionales, los atributos relacionados con Las principales actividades de turismo la arquitectura y la cultura viva son motivadores cultural son aquellas relacionados con el clave. El lugar de estos factores entre los patrimonio tangible, muy popular entre los nacionales y los extranjeros se invierte, con los turistas motivados especialmente por la temas relacionados con la cultura viva de los cultura, que representa el 48% de todas las de más interés para los turistas internacionales actividades turísticas nacionales y el 63% de y los relacionados con los activos materiales todas las actividades turísticas internacionales. son más importantes para el turista nacional. Los elementos intangibles son por su propia El turista interesado en la cultura, también naturaleza, más difíciles de identificar aunque está buscando precio, el clima, el paisaje y su influencia se manifiesta en un sentido las actividades que pueden satisfacer las general, por impregnación de la cultura por el necesidades y deseos de los miembros que turista visitante. viajan del grupo. En el caso de las actividades de Los turistas culturales mexicanos son patrimonio tangible e intangible, los sitios sensibles a los efectos de costo-beneficio. Los arqueológicos (27%) son las favoritas de destinos de valor son considerados alrededor los turistas internacionales especialmente de la variedad y calidad de las actividades que motivados por la cultura. En cuanto al se ofrecen, y están dispuestos a gastar en las Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 325 José G. Vargas Hernández experiencias, pero no en los servicios que no condición de desarrollo y comercialización ofrecen claras diferencias con respecto a los de la oferta adecuada. México ya está que tienen un estilo interesante. Factores tales involucrado con 8.4% en la participación de como los costos económicos, emocionales y mercado llegando a 7.2 millones de turistas. experiencias físicas son cruciales. La relación Los turistas con un interés ocasional en la entre estos costos y sus beneficios deben ser cultura representan un total de 84.9 millones proporcionadas. Un destino turístico cultural de turistas que viajan al exterior son el 35% con actividades culturales que ofrecen del total. México ya está involucrado en la comodidad y opciones adicionales para el participación de mercado con 8.4%, llegando a ocio y el entretenimiento, es más probable 7.2 millones de turistas. que atraiga turistas y ocasionales visitas especializadas que otros destinos. Turistas culturales en general creen que las ofertas culturales agradables y atractivas son escasas para los niños y adolescentes, y además carecen de la necesaria instrucción necesaria para apreciar las culturas locales. Características de la oferta de destinos turísticos culturales El tamaño y la competitividad de la oferta turística y cultural no pueden ser evaluados a partir de los recursos culturales de manera Mercado potencial aislada sino en relación con su ubicación geográfica y los distintos elementos que convergen para hacer posible la visita. Los Las encuestas para estimar y caracterizar el criterios utilizados para la selección de los volumen actual de la demanda de turismo lugares de destino son: cultural en el mercado nacional indican que a) el papel que desempeñan en el sistema sólo el 5.5% de los turistas nacionales se turístico; consideran particularmente motivados por la b) las características principales que tiene el cultura y el 35.7% tenían un interés casual. En patrimonio cultural; todo el mundo el 37% de los turistas realiza c) las condiciones de infraestructura y servicios alguna actividad cultural durante su viaje y la para la uso turístico, y tasa de crecimiento anual ha sido del 12% en d) características de la población local. promedio desde 2000 hasta el 2010 (Cestur de 2011). La diferencia en la percepción entre los nacionales y los extranjeros se hace México participa actualmente con los más evidente. Como algunos ejemplos de la 554,233 turistas que equivale al 1.8% del diversidad de los recursos turísticos culturales mercado que representan los países de origen, se pueden mencionar los siguientes: Estados Unidos, Canadá, Alemania, Francia, a) las ciudades y pueblos con formas España e Inglaterra, lo que significa que hay arquitectónicas, entornos históricos y un enorme potencial para la penetración, a particulares; 326 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad b) los grupos indígenas con su propia significativamente involucradas también, como producción y técnicas de intercambio, el desarrollo urbano y el sector servicios en costumbres, historias, leyendas, rituales, general que son importantes áreas de soporte celebraciones, comida, etc.; del turismo cultural. c) sitios arqueológicos que están abiertos al público (INAH); d) sitios que marcan el valor histórico desde el Sectores del turismo cultural siglo XVI hasta el siglo XX (Conaculta, 2000); e) objetos: históricos, artísticos y de uso diario, El sector del turismo cultural incluye que se muestran en los museos registrados por organizaciones públicas, privadas y sociales el INAH, Casas de Cultura, museos privados, e instituciones. Esta diversidad de actores estatales, municipales y comunitarios; determina el hecho de que la administración f) eventos y festivales, eventos teatrales, tiene una complejidad mayor que en otros conciertos, cine, danza, etc. campos del turismo. En áreas específicas En cuanto a la infraestructura y los del turismo cultural sobresalen algunas servicios, los turistas interesados en la cultura organizaciones cuya presencia es muy pueden ser alentados a utilizar los segmentos importante en aquellos lugares donde se del turismo, tales como: desarrolla la actividad: hoteles, operadores a) los establecimientos de alimentos y bebidas, turísticos, museos, tiendas de artesanía, agencias de viajes, guías de viajes y alquiler de restaurantes, guías turísticos, centros culturales coches. gestionados por el INAH, etc. b) carreteras que unen las principales ciudades Dentro de las interacciones entre los y carreteras que conectan las ciudades diversos actores en el sistema de turismo pequeñas y los aeropuertos, que para el caso cultural, la estructura básica de comercialización de la región Sur de Jalisco, 3 de los cuales son genera una relación armoniosa entre los internacionales. agentes privados y los actores públicos. Además de estos actores clave, el turismo cultural tiene otros, tales como los agentes Operaciones de la empresa de turismo cultural turísticos culturales, autoridades municipales, estatales y federales, órganos promotores culturales, organismos de la administración de sitios y monumentos, las organizaciones En el turismo cultural, las actividades de las no gubernamentales, universidades, escuelas empresas de diversos sectores de la producción e institutos, empresas de entretenimiento, los están involucradas. Además del sector del transportistas, guías de turistas, agencias de turismo cultural, las empresas e instituciones viajes independientes, promotores de viajes, de otros sectores económicos están asociaciones y clubes, etc. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 327 José G. Vargas Hernández Análisis Fortalezas, Oportunidades, Debilidades, Amenazas (FODA) corporativo Un análisis corporativo de planeación estratégica (Cuadro 2) muestra que, en general, las perspectivas de negocios son favorables para el desarrollo del turismo cultural, pero requiere un mejor uso de los recursos culturales a cabo las mejoras necesarias para aumentar el desarrollo de estas comunidades y las empresas turísticas en sí. Se reconocen seis áreas de acción para proponer una serie de orientaciones estratégicas y planteamientos tácticos que fortalecen y mejoran la relación de las actividades turísticas en su vertiente cultural: 1) revalorización de la relación entre la cultura para fortalecer la identidad de los destinos y el turismo; y del país, ya que hay más fortalezas que 2) sistematización de los instrumentos de debilidades. planificación y control; Hay una necesidad de una mayor 3) fortalecimiento de la organización; certeza sobre el camino a seguir con el fin 4) optimización de la gestión del patrimonio de aprovechar los activos necesarios para cultural; construir sobre el patrimonio cultural y 5) enriquecimiento de la oferta de turismo mejorar la participación de las empresas de cultural; turismo cultural. Existe la voluntad para llevar 6) repensando la promoción y comercialización. Cuadro 2 – Análisis corporativo FODA Externo/interno Fortaleza Debilidad Interno/externo Surgimiento de empresas en el proceso de modernización que valoran la cultura Predominio de firmas con acercamientos convencionales a la cultura y el turismo y la falta de oferta adecuada Oportunidades El reconocimiento de la cultura como el valor de la diferenciación y de la identidad y de su importancia para la competitividad de las empresas Firmas y productos competitivos en valor de cultura patrimonial y participación en el fortalecimiento de las culturas locales Desarrollo y uso simulado de espacios y propiedades convencionales en turismo Amenazas Visión de negocios a corto plazo y predominio de grandes negocios (modelo de masas) como un paradigma La creación de enclaves de negocios sin beneficios locales y regionales El uso del patrimonio cultural limitado al entretenimiento. Competencia de precios y pérdida de rentabilidad, negocios y destinos Fuente: Elaboración propia con base en el análisis de tendencias de varias organizaciones. 328 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad Diseño de circuitos turísticos culturales en el Sur de Jalisco lugares referidos, Centro Histórico y portales de Sayula; visita al Centro parroquial de la Inmaculada Concepción y ex Convento; visita al Museo y Casa de la Cultura Juan Rulfo; visita Turismo cultural circuito "Tras las huellas en la tierra de los grandes artistas....” a la casa de las Artesanías; visita al taller de cuchillería de Ojeda; casa donde nació Juan Rulfo; arquitectura y pinturas del Santuario de Guadalupe y ex Convento Franciscano. El carnaval se escenifica el martes de carnaval Los municipios que integran la ruta cultural: para concluir el miércoles de ceniza (tiempo Zapotlán El Grande, Sayula, San Gabriel estimado: 4 horas) Tolimán, Zapotitlán de Vadillo. Se sugiere la cena con comida típica y pernoctar en Sayula en La Casa de los Patios. 1) Escenarios culturales para el primer día a) Recorrido Centro Histórico de Cd. Guzmán Pintura y Escultura Presidencia Municipal, Columnario de hombres ilustres de Zapotlán el Grande; casa donde nació Juan José Arreola en la calle Lázaro Cárdenas, arquitectura del Portal de Mendoza; arquitectura y escultura templo del Sagrario; pintura, escultura y arquitectura templo de la Tercera Orden y ex convento; pintura, arquitectura y escultura de la catedral; mercado Paulino Navarro; Portales; lugar de nacimiento del pintor José Clemente Orozco; arquitectura Casa Consistorial; arquitectura Palacio de los Olotes; refrigerio restaurant arriba del Portal Hidalgo; vista a patios de casas del Portal Hidalgo (tiempo estimado: 4 horas). Del 12 al 23 de octubre se puede visitar la Feria con todas sus tradiciones y costumbres, que culmina con los carros alegóricos o andas. Se sugiere la comida típica en algunos de los excelentes restaurantes de Cd. Guzmán b) Recorrido en Sayula: Leyenda del poema del ánima de Sayula y ubicación de los principales Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 2) Escenarios culturales para el segundo día Se sugiere desayuno típico en Sayula. a) Recorrido en San Gabriel: en el recorrido de Sayula a San Gabriel se sugieren referencias a lugares mencionados en las obras de Juan Rulfo: Apango, Apulco, etc.; visita a Apango. Vista del Llano Grande, vista a Puerto Los Colimotes, visita al Centro Histórico de San Gabriel, pinturas de Enrique Trujillo y esculturas del Señor de la Misericordia de Amula; visita a la casa donde vivió Juan Rulfo; visita casa donde vivió José Mojica, sacerdote, compositor y cantante; visita a las piedras con petroglifos; visita a Telcampana; visita a la ex hacienda de Apulco donde Juan Rulfo vivió parte de su infancia. Se pueden visitar si se coincide en tiempo, las Fiestas del Señor de Amula que se celebra del 11 al 19 de Enero de cada año, las fiestas del Señor de la Misericordia (tiempo estimado: 6 horas). Se sugiere comer y cenar la comida típica del lugar, así como pernoctar en San Gabriel. 329 José G. Vargas Hernández 3) Escenarios culturales para el tercer día barrocos y bizantinos. Si se coincide en tiempos, a) Recorrido por Tolimán, y Zapotitlán de Vadillo se puede participar de las fiestas religiosas en Se sugiere desayunar en Tolimán. honor de la Virgen de Guadalupe se celebran Visita al Cerro Encantado y al Petacal; vista del 3 al 12 de diciembre, en la cabecera de la Media Luna; visita al Museo en Tolimán; municipal y en San Marcos (tiempo estimado: visita a los Murales del Templo de la Asunción. tres horas). Si se coincide del 6 al 15 de Agosto, se Recorrido por el municipio de Túxpan: visita puede participar la fiesta de Nuestra Señora al Centro Histórico de Túxpan; vista de la Cruz de la Asunción, para apreciar sus danzas y Atrial que data de Siglo XVI y visita al templo tradiciones. Se sugiere comida típica. parroquial; visita a la Casa Indígena, muestra Visita al Centro Histórico de Zapotitlán de de comida típica de Túxpan (La Cuaxala); Vadillo. Se sugiere presentación de poemas y celebración de la boda indígena en la que los leyendas que abundan en el folclore de este contrayentes visten hermosa y complicada lugar, como la del Cerro Chino. Si se coincide indumentaria; presentaciones de danzas en tiempo se puede participar de la Fiestas a la indígenas de Chayacates y Paixtles; por la Virgen de Guadalupe del 1 al 15 de Enero y las tarde visita al Museo Melquiades Rubalcaba. fiestas de María Magdalena celebrada el 22 de Si coincide en fechas, los visitantes podrán julio, el día de la festividad religiosa sacan en participar en el Concurso Regional de Sonajeros procesión la imagen por las calles adornadas que se efectúa del 23 al 31 de mayo y que del pueblo, desfilan carros alegóricos, música y coincide con las fiestas patronales del Señor danza. del Perdón (tiempo estimado: 4 horas). Regreso a Cd. Guzmán, termina circuito turístico cultural. Recorrido por el municipio de Zapotiltic: visita al Centro Histórico de Zapotiltic; visita al templo de la ex hacienda de Huescalapa. Si Circuito de turismo cultural “En la fiesta eterna” coinciden las fechas con las fiestas del Señor del Perdón en las primeras dos semanas del mes de mayo, los visitantes pueden participar. Municipios que comprende el recorrido: Tonila, Túxpan y Zapotiltic. Circuito Turístico Cultural 1) Escenarios culturales Recorrido por el municipio de Tonila: Desayuno y visita en la Ex hacienda La Esperanza, visita Templo Parroquial de Tonila que es una réplica de estilo colonial utilizándose cantera labrada para su construcción; cuenta con reloj suizo considerado entre los pocos de su género; templo de San Marcos, modernista con motivos 330 Municipios que comprende el recorrido: Gómez Farías, Atoyac, Teocuitatlán, Techaluta, Amacueca. 1) Escenarios culturales Municipio de Gómez Farías: visita al Centro Histórico de San Sebastián; visita a la Casa del Artesano (artesanías del tule); participación Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad en talleres artesanales. Los visitantes pueden cada mes de mayo aproximadamente del 8 al participar si coinciden con las fiestas de la 15 (tiempo estimado: una hora). Candelaria el 2 de febrero, las Fiestas de San Andrés del 20 al 30 de noviembre y las fiestas de la Virgen de la Refugio el 4 de julio (tiempo estimado: 1 hora). Municipio de Amacueca: visita al Centro Histórico de Amacueca; visita a las ruinas del convento franciscano, construcción del siglo XVII con fachada de columnas salomónicas y Municipio de Atoyac: visita al Centro Histórico retablo dorado. Visita al Dulce Nombre de Jesús, y vista a las pinturas de Pintura. Cuadro de escultura tallada en madera del Siglo XVI. Si Antonio Castellón, pintado por Zamarripa se coincide en las fechas se puede participar en 1968. Visitas a Centros Artesanales en las ferias taurinas en el tercer domingo de de cinturones, participación en talleres enero, las fiestas del Dulce Nombre de Jesús el artesanales... Si coincide en fechas, los 8 de enero y el carnaval que se lleva a cabo en visitantes pueden presenciar la Fiesta de la el mes de febrero. Salud celebrada el viernes de Cuaresma, y el Carnaval que se realiza en el mes de febrero (visita estimada en una hora). Circuito turístico cultural Municipio de Teocuitatlán de Corona: visita Municipios que comprende el recorrido: a la ex hacienda de San José de Gracia y Zacoalco de Torres, Atemajac de Brizuela, el Panteón Indígena. Se recomiendan dar a Tapalpa. conocer las leyendas en torno a estos dos escenarios. Visita al Centro Histórico de 1) Escenarios culturales Teocuitatlán, visita a centros de artesanías de Zacoalco de Torres: visita al Centro Histórico de sarapes y a coleccionista de antigüedades. Si Zacoalco de Torres; visita a centros artesanales coincide en las fechas en que se visita el lugar, de equipales, participación en talleres se puede presenciar las Fiestas de la Virgen de artesanales, representación de boda indígena. Guadalupe del 1 al 12 de diciembre (tiempo Si hay coincidencia en las fechas, los visitantes estimado: 3 horas). pueden presenciar las Fiestas a la Virgen de Se sugiere la comida típica en algún restaurant de Teocuitatlán. Municipio de Techaluta: visita al Palacio Municipal que data de 1878. Si se coincide Guadalupe el 12 de enero, al Señor de la Salud el 6 de agosto, y las fiestas de san Francisco de Asís el 14 de octubre (tiempo estimado: tres horas). en tiempo, los visitantes pueden presenciar Atemajac de Brizuela: visita al Centro Histórico y participar en los festejos más importantes de Atemajac de Brizuela. Si hay coincidencia de en el municipio que son la feria taurina fechas, los visitantes pueden participar en las que se celebra del 9 al 16 de septiembre; fiestas de Nuestra Señora de la Defensa del las festividades religiosas en honor a San 6 al 9 de septiembre, la romería de la Virgen Sebastián Mártir que tienen lugar del 11 al 20 de la Defensa el 7 y 8 de octubre y las fiestas de enero; y la Feria Anual de la Pitaya durante patronales de San Bartolomé el 24 de agosto. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 331 José G. Vargas Hernández Se sugiere comer en este lugar la comida típica, el cuidado del patrimonio y el respeto por las borrego al pastor con ponche y dulces de costumbres locales; conservas de frutas. 6) promover y utilizar el turismo cultural Tapalpa: visita al Centro Histórico de Tapalpa, población típica de montaña; visita a la Capilla de la Soledad; visita a la Casa de la Cultura (Parroquia de San Antonio de Tapalpa); templo de Juanacatlán y Templo de Nuestra Señora de la Merced; visita al centro de artesanías de papel maché; visita al Hostal de la Casona del Manzano; visita a la Casa del Agua; visita a la Capilla de la Purísima; visita a la capilla de la Soledad. para diferenciar las instalaciones turísticas existentes, la apertura de nuevas oportunidades de mercado; 7) diversificar los mecanismos de promoción y segmentos de mercado con un interés en la cultura; 8) el aprovechamiento de los elementos de identificación cultural de cada región para aumentar la diferenciación de las empresas mexicanas en los mercados nacionales e internacionales; 9) promover el uso de tecnología sostenible Estrategias de desarrollo empresarial del turismo cultural (energías alternativas, reciclaje, etc.). Conclusiones y recomendaciones 1) Mejorar la coordinación de los diferentes factores que intervienen en la actividad de los L a Re g ió n Sur d e Jalis co cue nt a co n programas de desarrollo, la comercialización, la importantes elementos y recursos potenciales participación en la conservación y mejora del identificados como oportunidades y fortalezas patrimonio cultural en las áreas: intersectorial para facilitar el desarrollo y la promoción como e interdisciplinario; destino turístico cultural. Este documento 2) mejorar los mecanismos de formación de identifica la necesidad de un marco teórico recursos humanos; para el diseño de un modelo normativo de 3) facilitar el desarrollo de las pequeñas y la política de turismo cultural sostenible en medianas empresas y servicios de alimentos la Región Sur del Estado de Jalisco, México. para fortalecer el sistema en su conjunto; Los grupos de interés en el turismo cultural 4) fortalecer el vínculo de la acción de las y proveedores en el Sur de Jalisco se pueden empresas con la conservación y mejora del beneficiar de la aplicación de un modelo patrimonio cultural; normativo para promover el desarrollo 5) alentar a las empresas a proporcionar económico regional a través de la creación de información a los turistas sobre las actividades empleo y alivio de la pobreza. culturales que existen en el destino, y Un modelo normativo para el turismo establecer programas de sensibilización para cultural requiere de la participación activa 332 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad de los actores turísticos, las empresas, los comunidades locales. El turismo cultural trae organismos gubernamentales y la comunidad, los mejores beneficios para el desarrollo desde la fase inicial hasta la implementación de una comunidad local después de una de un programa para el desarrollo del potencial implementación efectiva de las políticas de como destino de turismo cultural. El diseño e turismo cultural. La eficacia de las políticas implementación de programas de patrimonio de turismo cultural debe ser evaluada. Las cultural y turismo deben promover, preservar comunidades locales deben tratar de gestionar y mejorar la cultura de las comunidades, los recursos de turismo cultural, mientras que folclore, artes, artefactos, etc. La participación se busca su vinculación con el desarrollo y el activa de todos los interesados en el turismo crecimiento económico. cultural, las agencias gubernamentales y las El gobierno local y municipal juega un comunidades locales en los procesos de toma papel importante en cuanto al turismo cultural de decisiones, no sólo legitima las actividades, para la Región del Sur de Jalisco. Por otra parte, sino que proporciona la experiencia y de la planificación, el desarrollo, la promoción, puesta a tierra para diseñar e implementar las la comercialización y la aplicación de estos estrategias para perseguir la eficacia de las productos y servicios se pueden sostener el políticas de turismo cultural (Blench, 1999) turismo cultural como una actividad económica y promover el turismo cultural responsable, sustentable que puede mejorar el nivel de vida sostenible y sustentable. de los habitantes del Sur de Jalisco. El modelo normativo establece una El diseño y desarrollo de un modelo serie de criterios normativos como un enfoque normativo es concomitante a un conjunto funcional para lograr un turismo cultural en de recomendaciones para la implementación el Sur de Jalisco. Las variables identificadas de un turismo cultural en el Sur de Jalisco. El en el modelo normativo como debilidades, turismo cultural debe ofrecer un valor intrínseco fortalezas, oportunidades y amenazas pueden para el consumo turístico al tiempo que añade ayudar a los agentes del turismo, agencias de valor a los recursos locales de turismo cultural. gobierno, las empresas y la comunidad en su El turismo cultural debe ofrecer soluciones para conjunto, para diseñar y desarrollar productos satisfacer las expectativas de los turistas con culturales y servicios turísticos y las ofertas experiencias memorables. El turismo cultural para los turistas nacionales e internacionales en el Sur de Jalisco puede ser una herramienta que participan en la vida cultural mercado. de desarrollo para la creación de mejores Cualquier desarrollo o promoción de un condiciones de empleo, las oportunidades para producto de turismo cultural tiene que estar el desarrollo económico y el mejoramiento de bien diseñado y ejecutado sobre la base de las los estándares de vida de las personas que viven políticas de turismo cultural existentes. en las comunidades. Las recomendaciones que Un enfoque permanente hacia la práctica aquí se ofrecen son sólo un intento de cambiar del desarrollo sustentable del patrimonio la situación disfuncional actual en un sistema cultural y el desarrollo es un requisito para eficiente de gestión del turismo cultural basado derramar los beneficios sobre y para las en un modelo normativo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 333 José G. Vargas Hernández El desarrollo del turismo cultural y con responsabilidades significativas para requiere atracciones de patrimonio cultural compartir con los guías y operadores turísticos. con el fin de alcanzar los objetivos y la Además de las funciones desempeñadas preservación del patrimonio cultural tangible por las comunidades, los propietarios de e intangible. El ámbito de turismo cultural las instalaciones, y los demás agentes para el Sur de Jalisco puede incluir el turismo económicos y actores sociales y políticos son étnico y el turismo histórico, que comprenden de vital importancia que se involucren en la o b s e r va ció n , la p a r t ici p a ció n y e l estos asuntos. Con respecto al desarrollo, intercambio de expresiones culturales y estilos mantenimiento, promoción y comercialización de vida, la danza y la interpretación musical, del turismo cultural en la Región Sur de ceremonias religiosas, exposiciones de artes Jalisco, es vital para diseñar, formular y aplicar visuales, monumentos, sitios para visitar y una política pública de decisiones. edificios, etc. Iniciativas de turismo cultural Este trabajo sobre el turismo cultural que puede tener éxito en la consolidación se ocupa de la escasez crítica de recursos, de la "mirada" de la etnografía si se diseña la infraestructura y las habilidades entre los y desarrolla itinerarios turísticos relacionados agentes del turismo, negocios, profesionales, con experiencias de vida e interactiva en la comunidades, y ofrece algunas estrategias vida real en los municipios y casas de cultura como recomendaciones para mejorar el o centros. mercado regional con nuevos productos El turismo cultural en el Sur de Jalisco y servicios culturales. Una diferenciación puede ser una oportunidad para que las entre el turismo cultural y el desarrollo comunidades locales puedan comercializar de los recursos de producción cultural es y promocionar en el extranjero períodos de esencial para el diseño e implementación de experiencia, fiestas para compartir y asimilar estrategias de turismo cultural. los valores culturales y experiencias de vida L a implementación de un modelo aprovechando las condiciones favorables del normativo conduce al desarrollo de la clima y el paisaje natural de gran belleza. infraestructura turística cultural, la mejora El diseño de las rutas de turismo cultural es de las capacidades empresariales de la importante, con el apoyo de la necesidad de comunidad, la creación de oportunidades mejorar la infraestructura. Para facilitar la para atraer a los inversores extranjeros y los promoción y comercialización del turismo organismos de financiación, el diseño y la cultural en el Sur de Jalisco, se requiere el implementación de estrategias de marketing fácil acceso a un sistema de gestión de la y promoción, todos ellos lo cual puede información turística. contribuir al desarrollo económico regional del Los centros locales de información Sur de Jalisco. turística en los municipios tienen un papel El fomento del turismo cultural en el importante en la difusión, orientación y Sur de Jalisco tiene un impacto positivo en asistencia a los visitantes, haciendo que el desarrollo de la infraestructura, la oferta los productos y servicios sean disponibles de productos y servicios diversificados en 334 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Desarrollo regional y sustentabilidad el mercado del turismo cultural, la creación desarrollo económico de las comunidades, de empleo, el desarrollo de las capacidades y por lo tanto con la creación de empleo y empresariales de la comunidad, la mejora mejorar los niveles de vida de la gente. de las condiciones de vida, pero lo más Este análisis puede ser el punto de importante, el modelo normativo del turismo partida para futuras investigaciones sobre el cultural tiene un impacto en el marco espacial patrimonio cultural y el desarrollo del turismo, para la sostenibilidad del turismo cultural el marketing y la promoción en la Región del en los sitios y atracciones culturales y el Sur de Jalisco. José G. Vargas Hernández Centro Universitario de Ciencias Económico Administrativas da Universidad Guadalajara. Jalisco, México. [email protected] Referencias AITCHSON, C. (2003). Gender and leisure: social and cultural perspec ves. 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 313-338, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense: identificando problemas ambientais a partir das demandas ao Ministério Público Sustainability and environmental justice at Baixada Fluminense: identifying environmental problems based on the demands to the Public Prosecutor Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Resumo O presente artigo pretende demonstrar, através do resultado de levantamento de pesquisa desenvolvida no âmbito do Ministério Público de Nova Iguaçu, que a região da Baixada Fluminense, já reconhecida como uma zona de sacrifício dentro da metrópole do Rio de Janeiro, tem uma população que sente seus problemas ambientais a partir de questões ligadas justamente à pobreza, à falta de condições básicas de infraestrutura urbana, e ao acúmulo de atividades econômicas poluentes naquele território. E que este sentir da população parece demonstrar a inju stiça ambiental que incide naquele espaço territorial, fruto de políticas públicas mais relacionadas a omissões do que a ações. Nesse quadro, para que haja sustentabilidade socioambiental, é preciso urgentemente reverter tal situação. Abstract The present article intends to demonstrate, through the result of research developed with the Public Prosecutor of the municipality of Nova Iguaçu, that the Baixada Fluminense region, already recognized as a sacrifice area within the metropolis of Rio de Janeiro, has a population that feels its environmental problems based on issues related to poverty, to absence of basic conditions of urban infrastructure, and to the accumulation of pollutant economic activiti es in that territory. This feeling of the population seems to demonstrate the environmental injustice that occurs in that territorial space as a result of public policies that are more related to omissions than actions. In this scenario, in order to have environmental sustainability, this situation must be reversed urgently. Palavras-chave: problemas ambientais; Baixada Fluminense; justiça ambiental; Ministério Público; sustentabilidade socioambiental. Keywords: environmental problems; Baixada Fluminense Region; environmental justice; Public Prosecutor; social and environmental sustainability. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Introdução processo novo; data de início do processo; matéria; local de ocorrência do fato; descrição; qual(ais) era(m) a(s) parte(s) investigada(s); as O que aqui se apresenta são resultados da irregularidades; os pedidos; a maneira como os pesquisa Identificando os problemas ambientais da Baixada Fluminense, desenvolvida no grupo de pesquisa Direito e Justiça Ambiental no âmbito do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em sua sede no município de Seropédica. O projeto de pesquisa teve como objetivo levantar e mapear os principais problemas ambientais de parte da Baixada Fluminense, tendo como referência para análise os processos administrativos de natureza ambiental que tramitam no Ministério Público de Nova Iguaçu (MPNI), na 2ª Promotoria de Tutela Coletiva, entidade responsável pela fiscalização da aplicação e respeito à legislação ambiental dos municípios de Nova Iguaçu, Seropédica, Nilópolis, Japeri, Mesquita e Queimados. O município de Itaguaí deixou de ser competência da 2ª Promotoria de Nova Iguaçu em março desse ano, sendo transferida para o Ministério Público de Angra dos Reis, mas acesso a alguns processos antes dessa transferência foi possível. Dessa forma, a pesquisa adotou metodologia primordialmente quantitativa, e a técnica aplicada foi a de levantamento documental: semanalmente duas graduandas do curso de Direito da UFRRJ passavam uma tarde na sede do Parquet,1 anotando os principais dados dos processos.2 Os resultados são facilmente identificáveis a partir de alguns gráficos e mapas, nos quais se pode visualizar as demandas ambientais da região. Para atingir nossos objetivos, os itens levantados nos processos foram os seguintes: número do processo antigo; número do pedidos eram fundamentados, segundo a legis- 340 lação em vigor; observações; e o resultado até o momento. Cumpre ressaltar que o levantamento de processos na seara administrativa – os chamados inquéritos civis (IC) – se deu por ser de mais fácil acesso dentro da instituição do que os processos judiciais que estariam em andamento nas Varas Judiciais de cada um dos municípios estudados. Essa opção traz duas consequências de natureza metodológica e influi diretamente nos resultados que a pesquisa apresenta. Primeiramente, o levantamento é feito enquanto o problema está sendo apurado, em fase ainda inicial, o que significa que não há uma preocupação com os resultados dos processos,3 mas com os problemas em si, tal como são percebidos pela população que vem ao MPNI denunciá-los. Nesse sentido, tomamos como referência a afirmação de Le Prestre (2000, p. 24) de que “(...) a noção de problema ambiental se coloca no âmbito da escolha. Um problema ambiental não existe senão através do impacto que provoca em certos grupos ou atores. Ou seja, através da maneira como é percebido por estes (...)”. Dessa forma, o que chamamos aqui de “problema ambiental” se caracteriza mais num sentir da população acerca de seu drama ambiental. Logo, em segundo lugar, por conta do levantamento estar sendo feito em autos que ainda tramitam, corremos o risco de que essa percepção, esse sentir, não ser realmente um problema pelo viés jurídico. Queremos dizer com isso que a percepção dos malefícios Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense ambientais pode não ser necessariamente justiça ambiental). Dessa forma, elegemos três uma irregularidade jurídica. Tomemos como categorias para análise: numa primeira verten- exemplo o caso da poluição sonora: para o te, os problemas podem ser definidos como Direito, a emissão de ruídos somente é ilegal “conservacionistas”, quando o problema se dá se superior aos níveis aceitáveis pela norma em ambientes naturais, como rios, águas, ma- NBR 10151. Ou seja, a população pode estar nanciais, Áreas de Proteção Ambiental (APAs), incomodada com determinado ruído que, pe- Áreas de Preservação Permanente (APPs), Re- la norma jurídica, é um padrão aceitável. Há serva Legal (RLs), ainda que por interferência nisso, portanto, um risco: de o sentir não ser da ação humana. Uma segunda natureza seria necessariamente ilegal. de “problemas relacionados ao desenvolvi- Como primeira referência de análise, mento de atividades econômicas”, incidente adotamos a distinção que a doutrina jurídica em casos em que a legislação ambiental ou faz sobre as diferentes categorias constitu- urbanística é descumprida, ou ignorada, pelo cionais de “meio ambiente”. A primeira a ser empresariado, consumidores ou proprietários, constatada é o meio ambiente denominado ou seja, desde que haja uma forte conotação físico ou natural, que é constituído pela flo- econômica/patrimonial em jogo. Criamos a ra, fauna, solo, água, atmosfera, incluindo os categoria “outros” quando não conseguimos ecossistemas. Tal categoria encontra escopo enquadrar o problema levantado em nenhuma no art. 225, §1º, I, VII da Constituição Federal. das duas anteriores. A segunda forma pela qual o meio ambiente é classificado é em âmbito cultural, constituído pelo patrimônio cultural, artístico, arqueológi- O uso do solo na Baixada Fluminense co, paisagístico, manifestações culturais, populares, tendo por base o art. 215, §1º e §2º da A Baixada Fluminense compõe-se dos se- Carta Magna da República. Há ainda o meio guintes municípios: Duque de Caxias, Nova ambiente artificial ou urbano, que é o conjunto Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford de edificações particulares ou públicas, prin- Roxo, Queimados e Mesquita, todos ao norte cipalmente urbanas, cuja base constitucional da cidade do Rio de Janeiro. Alguns estudiosos está nos art. 182, 21, XX e o art. 5º, XXIII. Por também incluem Magé e Guapimirim (a leste), fim, o meio ambiente do trabalho, que é consi- Japeri, Paracambi, Seropédica e Itaguaí (a oeste derado o conjunto de condições existentes no e noroeste). local de trabalho relativos à qualidade de vida A ocupação da localidade se dá partir do trabalhador, e que encontra referência na do século XVIII, mas somente no início do sé- Constituição Federal em seu art. 7º, XXXIII e culo XX, com obras de drenagem realizadas art. 200. 4 em toda a região, é que os migrantes, bus- Outra referência é a divisão dos proble- cando melhores condições de vida na capital mas ambientais por sua natureza, adotando a Rio de Janeiro, ocuparão aquele espaço, que referência que Alier faz aos movimentos am- se caracterizará como periférico dentro da Re- bientalistas (conservacionismo, ecoeficiência e gião Metropolitana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 341 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira A área tem uma concentração industrial No entanto, a localidade se caracteriza maciça, com a presença de grandes e polui- também por suas áreas verdes. Podemos de- doras empresas em toda a região. Somen- monstrar tal afirmativa pela presença da Re- te para citar algumas, Duque de Caxias tem serva Biológica do Tinguá, em Nova Iguaçu, a o maior parque industrial do Estado, tendo Floresta Nacional Mário Xavier em Seropédi- empresas cadastradas como Texaco, Shell, Es- ca, Parques Municipais da Taquara (Duque de so, Ipiranga, White Martins, IBF, Transportes Caxias), de Nova Iguaçu, APA de Guapimirim, Carvalhão, Sadia, Ciferal, entre outras, além Parque Natural Municipal do Curió (Paracam- de uma das maiores refinarias da Petrobrás, bi), APAs da Bacia do Guandu, Caixa d´água a Reduc. O município de Queimados conta e Gericinó-Mendanha. Existem ainda trinta e com um distrito industrial (DI), assim como cinco rios que deságuam na Baía de Guanaba- Xerém, em Caxias. Nova Iguaçu tem fábricas ra, aquíferos, mananciais hídricos e mesmo a como a Granfino, Embelleze, muitas indústrias maior estação de tratamento de água do mun- químicas e indústrias que trabalham com aço do, que fica em Seropédica. e metal. As pedreiras e a extração de areia Dessa forma, a questão ambiental na re- também foram e são as principais atividades gião aparece tanto em ações conservacionistas, econômicas da região, sobretudo em Itaguaí relacionadas a espaços protegidos, como em e Seropédica. Por conta desse uso industrial conflitos oriundos da atuação das empresas do solo, a Baixada é conhecida como zona poluidoras de rios, solos e ar, afetando a saúde de sacrifício, expressão “utilizada pelos mo- e a qualidade de vida da população do entorno, vimentos de justiça ambiental para designar ou numa atuação tipicamente contrária às nor- localidades em que se observa uma super- mas jurídicas ambientais. posição de empreendimentos e instalações Adotando essa linha de ideias como pre- responsáveis por danos e riscos ambientais” missa, o presente artigo pretende demonstrar (Viega, 2006, p. 4). Além disso, o Distrito In- que a região da Baixada Fluminense, já reco- dustrial de Santa Cruz, bairro da cidade do Rio nhecida como uma zona de sacrifício dentro da de Janeiro, maior área industrial da capital, é metrópole do Rio de Janeiro, tem uma popu- vizinho a Itaguaí e Seropédica. lação que sente seus problemas ambientais a É nessa área também que se localizava partir de questões ligadas justamente à pobre- o lixão de Jardim Gramacho (Duque de Ca- za, à falta de condições básicas de infraestru- xias); outros lixões existiam também em di- tura urbana, e que tal posição parece ser refor- versos outros municípios da região (Itaguaí, çada neste momento a partir de algumas obras Seropédica, Japeri, Nova Iguaçu), onde agora que têm reconfigurado todo o espaço metro- se constroem diversos aterros sanitários, re- politano e que tendem a jogar para a Baixada forçando a lógica do sacrifício ambiental por mais poluição e degradação, reforçando a in- parte da população residente. justiça ambiental já configurada naquela área. 342 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense Principais referências conceituais Desenvolvimento Sustentável A crise ambiental tem levado as sociedades a repensarem seus padrões de produção e consumo. A perspectiva de falta de recursos naturais para a continuação do modelo de desenvolvimento e progresso adotado pela maioria dos países ricos nos conduziu à criação de novos paradigmas, sendo o desenvolvimento sustentável o principal deles. O desenvolvimento sustentável, um dos princípios mais importantes do Direito Ambiental, é o marco referencial, início e fim de toda política pública num Estado de Direito Ambiental. O relatório Brundtland, produzido após a Conferência de Estocolmo (1972) pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela primeira-ministra da Noruega, foi o primeiro documento que divulgou e instituiu o conceito de desenvolvimento sustentável: O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais. interpretado por diferentes atores sociais, segundo suas respectivas imagens e interesses. Portanto, ambientalistas numa linha preservacionista tendem a defender uma quase paralisação de exploração da natureza, enquanto ecocapitalistas querem conciliar desenvolvimento econômico com equilíbrio ambiental, vendo no surgimento do problema ambiental um novo mercado de atuação, propondo mecanismos de produção mais “limpos”, reduzindo as “externalidades”, mas, inevitavelmente, explorando a natureza, ainda que “racionalmente”. Num enfoque jurídico, a interpretação do conceito tem sido no sentido de que ele procura agregar dois direitos fundamentais dos povos: o direito ao desenvolvimento econômico e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visando garantir que as futuras gerações tenham meios de sobrevivência tanto quanto as gerações atuais. Essa leitura é bastante dogmática e pouco crítica, uma vez que não define que nível de desenvolvimento econômico se almeja (pois não pode ser o dos países capitalistas ricos, responsáveis pela escassez dos recursos naturais), tampouco aponta como efetivamente chegar lá. Na verdade, para que haja desenvolvimento sustentável, da maneira que for, o próprio Relatório Brundtland reconhece a necessidade da construção de uma nova ordem econômica mundial, baseada numa consciência ecológica e numa postura ética da sociedade diante da produção e do consumo. Como nos ensina Herculano (1992, p. 22), o desenvolvimento sustentável pressupõe “um conjunto de mudanças-chave na estrutura de produção e consumo, inverten- Como o conceito é muito aberto, e pretende ser prático, operacional, ele tem sido Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 do o quadro de degradação ambiental e miséria social a partir de suas causas”. 343 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Logo, em termos de discurso das áreas forma como as relações sociais são produzidas Humanas e Sociais, o desenvolvimento sus- no sistema capitalista. No entanto, é essa visão tentável torna-se também uma bandeira pe- que tem sido consolidada e em torno da qual lo reconhecimento de direitos até então não vem girando o consenso social, fazendo com concretizados em muitos países pobres e para que diversas áreas científicas reformulem seus muitas pessoas: desenvolvimento econômico projetos e visões de mundo, pois a sustentabi- para todos pode, afinal, significar alimentação, lidade se tornou “uma nova crença destinada saúde, educação, moradia, trabalho e renda a substituir a ideia de progresso” (Acselrad, dignos, aliados à vida num ambiente saudá- 1997, p. 1922) vel e garantidos para todos (inclusive para as Desta forma, a proteção ao meio am- gerações futuras). Contudo, é claro que essa é biente se tornou uma das principais referências uma interpretação extensiva do conceito, uma no debate de construção de diversas políticas vez que uma das críticas possíveis de se fazer públicas, tanto no nível da Comunidade Inter- a ele é justamente o fato de não incorporar a nacional quanto internamente. Nesse sentido, questão da desigualdade social. Nesse sentido, o Brasil é considerado um país com uma das vale citar a perspectiva colocada por Coutinho legislações mais avançadas do mundo, sendo (2004, p. 18): referência na área da proteção ambiental. A Constituição Federal de 1988, a primei- A proposta de uma alternativa econômica compatível com a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado tem os seus pressupostos em princípios físicos (termodinâmica), o seu ponto nodal no desenvolvimento sustentável, o seu sujeito numa genérica e abstrata “humanidade” e coloca a ética no lugar da política ou, na melhor hipótese, a política centrada numa ética universal que dependeria, para se efetivar, de a “consciência ecológica” individual assumir a dimensão de “cidadania coletiva”. Não se deve estranhar, portanto, a primazia analítica atribuída à “crise ambiental” e sua desconexão das condições concretas da sua própria produção. ra Constituição brasileira a dedicar um capítulo inteiro ao tema meio ambiente, tem como objetivo a promoção do bem de todos e se fundamenta na dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a Constituição tem como meta criar uma sociedade livre, justa e solidária, o que não será possível enquanto todas as pessoas não tiverem qualidade de vida. Portanto, a defesa e a preservação do meio ambiente são essenciais para que possamos atingir os objetivos constitucionais. Dessa forma, a preservação do meio ambiente é prioridade para a Constituição Cidadã. Assim, a questão do desenvolvimento regular das atividades econômicas na Baixada Logo, há nessa concepção, como aponta Fluminense, levantadas pelo grupo de pes- o autor, uma boa dose de ingenuidade, uma quisa, demonstra como o desenvolvimento vez que acredita na redenção da humanidade sustentável é um conceito que nada tem de pela ética e em uma tomada de consciência prático, e que ele não concilia, pelo menos até como condições suficientes para a mudança na aqui, o desenvolvimento econômico e a preser- exploração do meio ambiente, abstraindo da vação da natureza, mesmo porque a prática 344 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense industrial é historicamente agressiva ao meio ambiente e, no momento histórico em que vivemos, a ideia de sustentabilidade ainda precisa ser mais bem incorporada ao imaginário coletivo, e a prática sustentável precisa ser empiricamente construída. Justiça ambiental parcela desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes de operações industriais, comerciais e municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais, locais ou tribais, bem como das consequências resultantes da ausência ou omissão dessas políticas. (Bullard apud Acselrad, 2004, p. 9) Dessa forma, a percepção de que alguns grupos sociais – como negros e pobres – con- Além da questão das práticas sociais a serem vivem com indústrias poluidoras e depósitos criadas para que se alcance o desenvolvimento de lixo, enquanto os brancos e ricos têm como sustentável, o movimento por Justiça Ambien- vizinhos parques e áreas de consumo dotadas tal também tem sido uma referência sobre a de equipamentos coletivos, sempre com toda crise ambiental na perspectiva das áreas Hu- infraestrutura urbana necessária, deu origem, manas e Sociais. Isso porque o conhecimento nos Estados Unidos, ao movimento por maior nessas áreas tem como objeto central o ser hu- igualdade na distribuição espacial desses ris- mano em suas relações, e a preocupação com cos. O que se propõe é, na verdade, a incorpo- uma sociedade mais justa e equânime tende a ração da problemática dos riscos ambientais na ser um dos principais problemas para os profis- agenda política. Nesse sentido, o movimento sionais da área. acrescenta ao problema da desigualdade so- Assim, o movimento social e o conceito cioespacial o enfoque ambiental, buscando normativo de Justiça Ambiental (Swyngedouw demonstrar que diversas lutas ao redor do e Cook) nos auxiliaram a fazer uma leitura crí- mundo, e muito mais antigas que o próprio mo- tica sobre a natureza dos problemas ambien- vimento, são lutas por justiça ambiental.5 Não tais em uma zona de sacrifício, permitindo-nos significa, portanto, a construção de uma nova perceber que muitas vezes tais problemas não bandeira, mas, sim, que a questão da distribui- são os mesmos das áreas privilegiadas da cida- ção desigual dos riscos e malefícios ambientais de (ou da Região Metropolitana). O conceito de deve ser levada em conta na formulação de di- justiça ambiental se constitui na versas políticas públicas, sobretudo as sociais. [...] busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço de políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que nenhum grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deve suportar uma Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 O movimento não se resume, entretanto, apenas à luta por maior igualdade na ocupação do espaço urbano saudável e estruturado, demandando também: a) uma real participação, justa e democrática, das comunidades atingidas pelos malefícios ambientais no processo decisório, ou seja, é preciso superar formalismos (como as Audiências Públicas) e garantir que todos sejam realmente 345 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira ouvidos e tenham suas posições levadas em conta; b) o reconhecimento de que as políticas urbanas e ambientais são formuladas em desrespeito a determinados grupos, tais como ne- objetos geográficos), e cada forma encerra uma fração do conteúdo. O espaço, por conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento. gros, pobres ou mulheres, provavelmente por conta de sua ausência de voz e peso político, Dessa forma, o espaço é resultado da in- entre outros fatores, reconhecendo que são tervenção humana, e a intervenção humana é esses grupos minoritários que suportam as in- sempre em certo espaço, e isso não foi esque- justiças ambientais; c) o restabelecimento dos cido pelo grupo de pesquisa. Ao pesquisarmos recursos e das capacidades necessárias para o espaço da Baixada Fluminense, temos como formar e manter uma comunidade saudável, premissa de que ele é permanentemente cons- e, quem sabe, sustentável, superando os im- truído através e a partir de um jogo de interes- pactos ambientais negativos que muitas vezes ses, nem sempre claro e transparente, em que o destroem comunidades de pescadores, índios, sistema capitalista e sua racionalidade atuam etc. (Pereira, 2012). como mola propulsora. Ao mesmo tempo, ele é fruto das atividades que ali se desenvolvem, Outras duas categorias: o espaço e os conflitos socioambientais O espaço, como categoria da Geografia, é entendido como produto das atividades humanas em suas relações intersociais e também na interação com a natureza. O espaço, que para o Direito é solo, lugar onde se desenvolve toda forma de vida, é percebido como resultado material e simbólico dos desejos, sonhos, políticas e técnicas que o homem aplica em sua atuação cotidiana. Assim o conceitua Santos (1991, p. 58): O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos espaciais, e, de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (da sociedade) não é independente da forma (os 346 e assim, a alta densidade industrial, a pobreza urbana e os riscos ambientais presentes nesse espaço não são fortuitos, mas consequências do agir humano. Nesse sentido, pensamos a Região Metropolitana do Rio de Janeiro como um território: um espaço onde os grupos sociais se organizam, ocupando-o e utilizando-o, construindo suas próprias percepções subjetivas. Há no espaço do território uma série de territorialidades, na medida em que o sentido e a percepção desse variam em suas dimensões políticas, econômicas, culturais, sociais e simbólicas para cada grupo social. Também não perdemos de vista o fato de que em tempos de globalização, vem ocorrendo sistematicamente novos arranjos e reconfigurações dos espaços metropolitanos, com atores que decidem o uso do território às vezes muito distantes desse, conforme explicita Harvey (2005, p. 171): Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense [...] o poder real de reorganização da vida urbana muitas vezes está em outra parte, ou, pelo menos, numa coalizão de forças mais ampla, em que o governo e a administração urbana desempenham apenas papel facilitador e coordenador. O poder de organizar o espaço se origina em um conjunto complexo de forças mobilizado por diversos agentes sociais. É um processo conflituoso, ainda mais nos espaços ecológicos de densidade social muito diversificada. Em nosso caso, sabemos que a produção do espaço metropolitano fluminense gerou uma série de periferias, de cidades-dormitório, de zonas de sacrifício. Estudos apontam que cerca de 800 mil pessoas trafegam diariamente pelos municípios da região, que têm alto grau de integração, indo e voltando do trabalho ou estudo, fazendo um movimento pendular periferia – núcleo urbano – periferia. Ocorre que, com a frequente competição entre as cidades para atrair investimentos e gerar empregos nessa sociedade global, os governos abandonaram o administrativismo e aderiram a “uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico” (Harvey, 2005, p. 167). Como explica Harvey (2005, p. 170): reflexivos de tal mudança através dos impactos sobre as instituições urbanas, assim como sobre os ambientes urbanos construídos. Portanto, o espaço das cidades e regiões metropolitanas sofre influências políticas, econômicas e sociais cotidianamente, sendo alvo de planejamento, mas também de ações não planejadas, sendo construído e reconstruído todos os dias (Santos, 2009). Esse fenômeno de reconstrução pode ser claramente percebido na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), que sofre um processo de requalificação de seu território a partir de algumas políticas públicas que visam melhorar a mobilidade e a integração entre os diversos municípios da região, sobretudo por conta da cidade vir a sediar alguns jogos da Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016). Assim, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro amplia sua zona de influência e expande suas fronteiras metropolitanas. Hoje, a região metropolitana do Rio de Janeiro é composta, segundo a Lei Complementar 105/02, atualizada pela Lei Complementar 133/09 por 19 municípios, que são: Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita, Nilópolis, A condição capitalista é tão universal que a concepção do urbano e da “cidade” também se torna instável, não por causa de alguma definição conceitual deficiente, mas exatamente porque o próprio conceito tem de refletir as relações mutáveis entre forma e processo, entre atividade e coisa, entre sujeitos e objetos. Assim, quando falamos da transição do administrativismo urbano para o empreendedorismo urbano nessas últimas duas décadas, temos de reconhecer os efeitos Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica, Tanguá e Itaguaí. Desses municípios, nenhum é considerado rural, embora Guapimirim e Seropédica apresentassem, em 2000, um percentual de pessoas em domicílios rurais ainda significativo – 33% e 21%, respectivamente. Logo, o que temos assistido é o traçado de um novo desenho urbano para o centro do Rio de Janeiro, a partir de projetos urbanos 347 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira como o Porto Maravilha, que tem como um maneiras menos agressivas e mais limpas (e de seus objetivos tornar o porto central mais caras) de explorar a natureza. E os trabalhado- ligado ao comércio e ao turismo, jogando para res precisam manter seus empregos, muitas ve- o porto de Itaguaí (antigo Sepetiba) as ativida- zes identificando políticas e fiscais ambientais des portuárias típicas. Está sendo construído o como inimigos. A própria sociedade tem tam- Arco Metropolitano do Rio de Janeiro (AMRJ), bém demonstrado essa percepção em diversos com 145 km, maior obra financiada pelo PAC, casos famosos: a preservação ambiental, ou a na nítida intenção de ligar o porto de Itaguaí prática sustentável (embora, em nosso sentir, ao polo petroquímico de Itaboraí (também em ainda não evidenciada), é uma prática vista construção) e desafogar vias da cidade do Rio como impedimento ao “progresso”. Confome por quem não precisa passar por ela. ressalta Antunes (2004, p. 36): E é nesse espaço que também surgem os chamados conflitos socioambientais. O entrelaçamento dos direitos ao desenvolvimento econômico e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é bastante justificável em função do atual estágio da sociedade de consumo, e pode ser facilmente compreendido pela maioria das pessoas. No entanto, sua prática não é tão fácil, conforme já relatado. Isso porque é A ambiguidade das normas jurídicas destinadas à proteção do meio ambiente decorre, em grande parte, do fato de que elas existem como um compromisso entre o desenvolvimento das atividades econômicas que se utilizam de recursos ambientais – bens dotados de valor econômico – e a sua preservação que, em última análise, busca reservá-los para posterior utilização. imprescindível, para que haja sustentabilidade, uma mudança significativa no modo de produ- Portanto, os conflitos socioambientais ção: as empresas e os países devem procurar se são uma realidade mundial, e, embora não se- desenvolver de maneira sustentada, utilizando ja teórico, o grupo da pesquisa esteve atento a os recursos naturais, mas preocupando-se em essa questão também. repô-los, se possível, ou preservá-los, se a reposição não for possível. Contudo, a maioria dos países (e das empresas) ainda não conseguiu equacionar tal Resultados obtidos questão, pois a legislação ambiental, por sua natureza preventiva e protetiva, muitas vezes Em um ano de pesquisa foi possível o levan- freia o desenvolvimento normal das atividades tamento e a sistematização de 105 processos, industriais, fazendo com que se coloque um sendo 101 inquéritos civis, três procedimentos conflito inevitável entre a preservação do meio preparatórios e uma ação civil pública.6 O nú- ambiente e a atividade produtiva, o que en- mero pode parecer pequeno; contudo, é im- globa, além do empresariado, a própria classe portante ressaltar que a enorme maioria dos trabalhadora. Ora, os empresários querem con- processos é extremamente volumosa, tendo em tinuar produzindo e lucrando, e assim resistem média oito volumes, e que as visitas ao Parquet às exigências da legislação, que estabelecem são feitas apenas uma vez por semana por 348 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense duas alunas de graduação que, até então, não a partir do depósito irregular de resíduos da tinham intimidade no manuseio dos autos. construção civil na Bacia Hidrográfica do Sarapuí. Também há um caso de terraplanagem em uma APA, como também devastação de vege- Categoria Constitucional de Meio Ambiente tação para extração mineral irregular. Achamos dois casos de danos ao meio ambiente cultural, que estão relacionados, Dos 105 processos, apenas dez podem ser ca- ironicamente, ao próprio desconhecimento tegorizados como problemas relacionados ao das prefeituras. No município de Mesquita a meio ambiente natural. parte investigada é justamente o município Assim, por exemplo, foi denunciada a que pretendia construir o Fórum da cidade possibilidade de maus tratos a animais, duran- demolindo a Caixa D´Água da Fábrica Bras- te a atividade de rodeio ocorrida durante a Ex- ferro, que parecia ser tombada pelo próprio poSeropédica, no município de Seropédica, em município, em uma aparente confusão admi- ofensa a diversas normas constitucionais e in- nistrativa. O outro caso partiu da denúncia de fraconstitucionais, sobretudo o art. 225, caput, professores de História de Nova Iguaçu, que §1º,II e §4º da CF/88 e a Lei 10.519/02. viram a possibilidade de destruição de uma Outros dois casos referem-se a desmatamento/poluição em áreas de APP, um no muni- torre da antiga Igreja Nossa Senhora da Piedade, conjunto urbano tombado. cípio de Nova Iguaçu, em que a faixa marginal Todos os outros processos – noventa e de proteção e de represamento do rio Véu da três – podem ser classificados como perten- Noiva era desmatada dentro de propriedade centes à categoria meio ambiente urbano, uma particular. O outro caso se referia a possível vez que são problemas relacionados à vida nas dano ambiental, no município de Mesquita, cidades e ao modo de vida urbanos. Categoria constitucional de meio ambiente Cultural 1% Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 349 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira desenvolvimento de atividades econômicas”. Problemas ambientais por sua natureza Além destes, enquadramos nessa categoria os casos de devastação de vegetação e de minera- Sob este enfoque, entendemos que apenas qua- ção em Área de Proteção Ambiental. tro processos podem ser categorizados como Em “outros” categorizamos 37 proces- “conservacionistas”. O primeiro é o referente à sos. Muitos têm relação com ocupação irregu- possibilidade de maus tratos aos animais par- lar do solo para fins de moradia por parte da ticipantes de rodeio em Seropédica, uma vez população pobre, não podendo tal ação ser que, embora haja atividade econômica, a pre- relacionada com atividade econômica. Há tam- ocupação externada é com a saúde do animal, bém muitas denúncias ligadas a omissões ou não havendo uma condenação moral àquela irregularidades do poder público na gestão de atividade econômica. Outro seria o desmata- obras, ou em processos de licenciamento, além mento, em área particular, de faixa marginal da característica marcante da Baixada Flumi- de rio, conforme relatado acima. Embora seja nense, que é categoria em outra classificação: possível que o desmatamento tenha ocorrido a falta de infraestrutura administrativa das para a realização de atividade econômica, não prefeituras municipais. Exemplos típicos são os é possível afirmar isso apenas pelos fatos nar- seis inquéritos que investigam a estrutura da rados nos autos. No processo em que há depó- Secretaria de Meio Ambiente em cada municí- sito irregular de resíduos da construção civil na pio ou outros sete que interrogam acerca da Bacia Hidrográfica do Sarapuí fica claro que o elaboração de Plano Municipal de Gestão de problema se dá a partir da atividade econômica Resíduos Sólidos, o que acaba por levar à falta de construção civil, e, por isso, optamos por in- de infraestrutura urbana adequada. Assim, po- cluí-lo na categoria “problemas relacionados ao demos apontar: Problemas segundo natureza ambiental (ALIER) Conservacionistas 4% Relacionados ao desenvolvimento econômico 59% 350 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense Principais problemas ambientais Ao mesmo tempo, o Parquet abriu seis inquéritos civis para apurar se os municípios de Identificar os problemas ambientais de maneira Seropédica, Nova Iguaçu, Nilópolis, Mesquita, específica consistiu em uma tarefa difícil, pois, Queimados e Japeri elaboraram e implemen- em geral, o problema ambiental se apresenta taram o Plano Municipal de Gestão Integrada de maneira complexa e integrada, sendo difícil de Resíduos Sólidos, o que é um dos serviços localizá-los em uma única categoria. públicos de saneamento básico. Tomemos como exemplo a questão da Além disso, existem dois casos de lotea- ausência de saneamento básico. O Ministério mentos sem infraestrutura alguma, inclusive Público abriu três inquéritos civis para apurar abastecimento de água. Todos esses casos fo- se os municípios de Mesquita, Nilópolis e Ita- ram colocados como problemas de infraestru- guaí dispunham de sistema de saneamento bá- tura urbana. sico, solicitando aos mesmos que informassem O mesmo ocorre na investigação do ex- ao órgão, por meio de planilhas individualiza- cesso de poluição atmosférica lançada por uma das por pedreira em Nova Iguaçu: além do lançamento áreas ou bairros integralmente dotados de sistema de saneamento básico, incluída a prestação de serviços de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais, consoante art. 3º da Lei 11445/07. de partículas no ar, investigou-se se a empresa possuía licença ambiental para tal extração, e, ainda, se ela estava de acordo com o zoneamento urbano. Assim, acaba ocorrendo a incidência de mais de um problema. Dessa forma, é possível apontar os seguintes problemas ambientais: Problemas ambientais Falta de infraestrutura urbana – 29% Poluição –31% Funcionamento de empresa sem licença ambiental – 12% Uso indevido do espaço público – 8% Desmatamento de áreas protegidas – 5% Falta de infraestrutura administrativa – 15% Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 351 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Como “poluição” pode ser de diversos tipos, apontamos: Poluição 3% Atmosférica Sonora Por resíduos lançados no solo Por resíduos lançados em águas/esgotos E, numa relação dos problemas com os municípios investigados: Mapa – Principais problemas por município Uso indevido do espaço público – 58% Falta de infraestrutura urbana – 16% Funcionamento de empresas sem licença – 37% Falta de infraestrutura administrativa – 27% Falta de infraestrutura urbana e poluição – 23% Desmatamento e falta de infraestrutura administrativa – 15% cada Falta de infraestrutura admnistrativa – 40% Falta de infraestrutura urbana e outros – 30% cada Poluição – 37% Falta de infraestrutura urbana – 21% Falta de infraestrutura urbana – 33% Falta de infraestrutura urbana, poluição e funcionamento de empresas sem licença – 17% cada Poluição – 41% Outros – 15% LEGENDA Seropédica Nilópolis Nova Iguaçu Itaguaí Japeri Mesquita Queimados Fonte: desenho de Camila Borghezan. 352 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense A partir dos quadros, é possível levantar O despejo de resíduos é uma questão algumas conclusões. Primeiramente, é interes- vital do século XXI, pois nosso modelo de con- sante notar que os problemas relacionados à sumo acaba por produzir lixo em excesso: só poluição ocorrem nos municípios com maior o município do Rio de Janeiro produz 9,5 mil atividade industrial, sobretudo Nova Iguaçu. As toneladas diárias, e dessas, 7,5 mil vão para denúncias estão relacionadas, em sua maioria, o aterro sanitário de Seropédica. Não é à toa a atividades industriais ou comerciais. Relata- que a Política Nacional de Resíduos Sólidos mos algumas a seguir, apenas para ilustrar. (Lei 12305/10) e a Lei Nacional de Saneamento Em termos de poluição atmosférica, há Básico (Lei 11445/07) foram sancionadas: pre- denúncia contra uma antiga pedreira que, em cisamos equacionar essas questões. Na pesqui- sua atividade, lança um pó fino no ar, que entra sa, os resíduos aparecem em muitos casos. Há, nos pulmões das crianças e adultos do entorno, por exemplo, lançamento de óleo e resíduos provocando diversas doenças respiratórias. Em de limpeza de fossa em galerias de drenagem Nova Iguaçu, há também o caso de uma usi- por uma Viação em Mesquita; despejo irregu- na de concreto que é vizinha à pedreira, fun- lar de resíduos químicos, tanto em Nova Iguaçu cionando sem licença ambiental e gerando um quanto Seropédica, por empresas de casas pré- ar poluído que detona problemas respiratórios, -fabricadas e químicas. Há ainda inquérito para coceira e irritações nos moradores e na escola apurar se a empresa responsável pelo aterro municipal vizinha. O abaixo-assinado chegou sanitário de Seropédica (em funcionamento há ao MP com 140 assinaturas. O detalhe é que pouco mais de um ano, recebendo atualmente tanto a pedreira quanto a usina de concreto 8 mil toneladas de resíduos domésticos por dia) estão em área não permitida pelo zoneamen- implantou um sistema de captação e tratamen- to municipal, junto com uma usina de asfalto to de biogás, que era uma das condicionantes mais duas de concreto. de sua Licença. Há caso também de armazena- Já a poluição sonora se relaciona a ativi- mento irregular de resíduos em um restaurante dades comerciais. Em Seropédica, temos quatro em Nova Iguaçu, gerando proliferação de veto- quiosques que foram investigados devido ao res e fortes odores na vizinhança. som alto durante a noite. Contudo, os donos Outra categoria de muita incidência é informaram que são os clientes que, durante o a “falta de infraestrutura urbana”. Nesses consumo de álcool, ligam o som de seus car- casos, aparecem principalmente situações ros, fato que eles entendem não poder impedir. relacionadas à ausência de saneamento bá- Relatam inclusive que a polícia é sempre cha- sico, em seu sentido amplo. O Ministério Pú- mada, mas os consumidores abaixam o som e blico cobra que os municípios elaborem Plano voltam a aumentá-lo depois. Em Nova Iguaçu, Municipal de Saneamento Básico e também a denúncia é semelhante: barulho em uma Plano Municipal de Gestão Integrada de Re- Piscina Bar, agravada a situação por questões síduos Sólidos. Há também caso de um lo- relacionadas ao armazenamento e acondicio- teamento clandestino em Queimados sem namento dos alimentos e pelo descarte inade- nenhum tipo de equipamento urbano: escoa- quado dos resíduos sólidos do restaurante. mento de águas pluviais, iluminação pública, Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 353 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira esgotamento sanitário, abastecimento de problemas ambientais estão relacionados a água potável, energia elétrica pública, vias de questões de cunho sociais. Nesse sentido, vale circulação. A energia residencial, os morado- a pena citar o relatório do Brasil para a Confe- res providenciaram. Em outro loteamento em rência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Nova Iguaçu, esse irregular e não clandestino, e Desenvolvimento: não havia luz, água e nem asfalto. Um caso que chama a atenção pela forma como o MP relata a situação ocorre em Seropédica. O Parquet define o caso como “omissão do poder público”. Trata-se de falta de saneamento, mas que gera risco de enchentes e transbordamento de esgoto, ocorrendo a proliferação de vetores, colocando em risco a saúde da população. Outro caso curioso é a no- [...] as duas causas básicas da crise ambiental são a pobreza e o mau uso da riqueza: os pobres são compelidos a destruir, no curto prazo, precisamente os recursos nos quais se baseiam as suas perspectivas de subsistência a longo prazo, enquanto a minoria rica provoca demandas à base de recursos que em última instância são insustentáveis, transferindo os custos uma vez mais aos pobres. tícia de desmoronamento de um muro, em Nova Iguaçu, cujos escombros ainda estariam no Cumpre ainda ressaltar que cabe ao Po- local, obstruindo a livre circulação de veículos e der Público se estruturar para efetivar a pro- pedestres da rua, impedindo o restabelecimen- teção ambiental definida constitucionalmen- to da rede elétrica e a avaliação de danos a veí- te. Nesse sentido, embora contemos com leis culos particulares. A questão é que o muro caiu boas, os municípios da Baixada Fluminense porque estava em local instável, não resistindo investigados não têm arrecadação suficiente à chuva forte. para constituir seu próprio órgão ambiental, Dessa forma, podemos perceber que bem como não têm empresa de limpeza pró- muitas vezes é a ausência de condições básicas pria (à exceção de Nova Iguaçu), e seus ater- de vida que gera o “problema ambiental”. A ros estão sendo construídos em regime de ausência de saneamento básico gera doenças consórcio e com parceiros privados. Nos seis como desidratação e leptospirose, além da con- casos categorizados como “falta de infraes- vivência com odores e animais transmissores trutura administrativa”, todos são inquéritos de diversos tipos de doença. O desmatamento em que o MP questiona os municípios acerca de áreas de maneira precária, com queima- da organização do sistema municipal do meio das e sem o mínimo de preservação, é que vai ambiente, que deve “ser composto, no míni- gerar a erosão do solo, o desaparecimento de mo por conselho municipal do meio ambiente, córregos e os desmoronamentos em época de fundo municipal do meio ambiente, órgão ad- grandes chuvas. A concentração de empresas ministrativo executor da política publica muni- poluidoras em determinados municípios (zo- cipal e guarda municipal ambiental”. Nenhum nas de sacrifício) gera doenças respiratórias e município tem essa estrutura dentre os seis in- alérgicas pela poluição do ar, contaminação da vestigados: a) Seropédica tem apenas secreta- água e do solo, enfim, baixa qualidade de vida. ria de meio ambiente; b) Japeri tem secretaria Não há dúvida: nos países pobres, os grandes de meio ambiente e agricultura e fez concurso 354 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense para guarda municipal; c) Nilópolis tem a se- Nesse sentido, equacionar a questão am- cretaria de obras, meio ambiente e agricultura, biental parece exigir, de fato, novos modelos fez concurso para guarda municipal e tem fun- de produção, novos modos de agir e de pensar do, mas sem conta e sem indicação de adminis- o ambiente e mesmo o desenvolvimento, não trador; d) Queimados não tem nem secretaria, podendo esse ser entendido meramente como o meio ambiente é tratado pela secretaria de desenvolvimento econômico, sem incorporar fazenda; e) Nova Iguaçu tem secretaria de meio maior distribuição da renda, do conhecimento ambiente e agricultura, guarda municipal, fun- e dos riscos ambientais. do, conta, faltando nomear o administrador do fundo; f) Itaguaí tem guarda municipal ambiental, mas como cargo comissionado, e o órgão executor é a secretaria de agricultura, meio Conclusão ambiente e pesca. Não tem fundo, nem conta, nem administrador. Ressalte-se que o questio- É possível relacionar espacialmente pobreza e namento da Promotoria é com a intenção de maior concentração de atividades poluentes, averiguar se esses municípios estariam rece- que atingem a saúde e o bem-estar da popu- bendo repasse do ICMS verde, de acordo como lação ocupante daquele espaço geográfico, tal art. 3º da Lei 5100/07. Ou seja, a falta de estru- qual propõe o conceito/movimento de Justiça tura define a falta do repasse. Ambiental. Nesse sentido, o Desenvolvimento Dessa forma, parece-nos que a pobreza, Sustentável é incorporado como a grande refe- seja da população, seja do próprio município, rência discursiva da nova ordem mundial, em gera injustiças ambientais e zonas de sacrifício que o Poder Público, as empresas e as pessoas que devem ser reconhecidas como consequên- devem assumir novas posturas e novas cren- cia de políticas públicas perversas, e, por isso, ças acerca de seus modos de vida, reduzindo modificadas, sob pena de não alcançarmos a produção e o consumo para a sustentabili- nenhum tipo de sustentabilidade ambiental, dade e manutenção da qualidade de vida para sustentando o que já existe, ou seja, desigual- as gerações futuras, ainda que não esteja claro dades socioambientais e espaciais. Como escla- se a ideia de sustentabilidade incorpora uma rece Vieira (2009, p. 102): dimensão socioambiental em sua implementa- Na realidade, não se trata de escolher entre meio ambiente e desenvolvimento, mas sim entre diferentes formas de desenvolvimento, algumas das quais se preo cupam com o meio ambiente, enquanto outras não. Os esforços internacionais para a preservação ecológica do planeta só serão bem-sucedidos se atenderem ao pré-requisito de mais justiça econômica para os países pobres. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 ção. Contudo, sem essa dimensão manteremos a produção de injustiças, num círculo vicioso. Portanto, compatibilizar o desenvolvimento e a preservação de um ambiente saudável é um dos grandes desafios da humanidade, e o processo histórico demonstra que, até aqui, as minorias políticas sofreram mais as consequências dessas práticas, trabalhando e vivendo próximas a locais poluídos ou degradantes. 355 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Ainda que esteja ocorrendo uma reconfigura- Metropolitana do Rio de Janeiro, a Baixada ção da região metropolitana do Rio de Janei- Fluminense é reconhecida como uma área in- ro, com novos usos e funções para o centro e dustrial, poluída e mais pobre do que a capi- periferias, podemos observar pelos processos tal. Os casos levantados em pesquisa desen- apurados, que a população da Baixada Flumi- volvida na Universidade Federal Rural do Rio nense tem uma percepção de seus problemas de Janeiro apontam para uma correlação entre ambientais numa linha claramente vinculada a falta de infraestrutura urbana e a produção ao desenvolvimento de atividades econômicas de intensa poluição em espaços vulneráveis, no meio urbano, ou seja, é ela que paga o ônus como os principais problemas ambientais sen- do desenvolvimento. tidos pela população, contribuindo com a te- Portanto, a formação de zonas de sa- se que identifica a crise ambiental como uma crifício é uma demonstração da distribuição consequência do nosso modelo de desenvolvi- desigual dos riscos ambientais, seja entre paí- mento, e que joga para determinadas minorias ses, seja em um país. No espaço da Região os riscos ambientais. Tatiana Cotta Gonçalves Pereira Graduada em Direito, Mestre em Direito da Cidade e doutoranda em Sociologia e Direito. Professora Assistente de Direito Ambiental e de Direito Urbanístico do Departamento de Ciências Jurídicas, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Seropédica/RJ, Brasil. [email protected] Notas (1) Expressão em francês que significa Ministério Público. Tal expressão é bastante utilizada no Direito pátrio. (2) As alunas, por serem graduandas e estarem no meio do curso, apresentaram dificuldades no manuseio e compreensão dos processos que levantaram, e talvez esse seja um dos fatores de, ao fim de um ano, termos pouco mais de 100 processos catalogados. Mas, além de elas fazerem o levantamento sem ter do ainda disciplinas como Direito Ambiental e Direito Processual Civil, que facilitaria a compreensão dos termos técnicos, também nham que manusear processos muito volumosos, em média com seis volumes. Nossa avaliação, entretanto, é que muito se aprendeu nesse caminho, o que é, enfim, uma das principais funções de uma pesquisa em nível de graduação. 356 Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Sustentabilidade e justiça ambiental na Baixada Fluminense (3) Um inquérito civil é um procedimento administra vo inves gatório, inquisi vo, instaurado e presidido pelo próprio Parquet, cujo obje vo é a coleta de elementos de prova e de convicção para futuras atuações processuais (Ação Civil Pública) ou extraprocessuais (facilitando conciliações extrajudiciais em conflitos ambientais como Termos de Ajustamento de Conduta), se a Promotoria assim entender, podendo também ser arquivado, se nada for apurado como irregular. (4) É preciso esclarecer que essa referência nos pareceu muito di cil de ser u lizada, sobretudo essa dis nção entre meio ambiente natural e meio ambiente urbano, posto que nos dias de hoje não é possível perceber uma natureza intocada, imune à ação humana, ni damente de conotação urbana. De fato, nos parece que as grandes questões ambientais estão no contexto urbano. Assim, só foi classificado como meio ambiente natural o inquérito civil que inves gasse problemas diretamente relacionados à fauna e à flora, em que a intervenção humana exis a, mas não foi alvo da denúncia. (5) “O pulmão preto produzido no local de trabalho, os folheados de amianto em casa, e a carga de fumaça nos parques infan s” fazem parte da temá ca ambiental, segundo Swyngedouw e Cook (p. 17). (6) Procedimentos preparatórios é o estágio inicial, quando se recebe a denúncia; a fase seguinte é o inquérito civil e, se necessário, pode ocorrer a propositura de ação civil pública. Os dois primeiros procedimentos são administra vos, o úl mo judicial. Referências ACSELRAD, H. (1997). Sustentabilidade e Território nas Ciências Sociais. VII ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais. pp. 1909-1934. ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (2004). Jus ça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Fundação Ford. ALIER, J. M. (2007). O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valorização. São Paulo, Contexto. ANTUNES, P. de B. (2004). Direito ambiental. Rio de Janeiro, Lúmen Júris. COUTINHO, R. (2004). “Direito ambiental das cidades: questões teórico-metodológicas”. In: COUTINHO, R. e ROCCO, R. (orgs.). O direito ambiental das cidades. Rio de Janeiro, DP&A. HARVEY, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume. HERCULANO, S. (1992). Do desenvolvimento (in)suportável à sociedade feliz. Ecologia, Ciência e Polí ca. Rio de Janeiro, Revan. ______ (2002). Riscos e desigualdade social: a temá ca da Jus ça Ambiental e sua construção no Brasil. In: I ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS. Anais. Indaiatuba, SP. Cad. Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 357 Tatiana Cotta Gonçalves Pereira LAGO, L. C. do (2000a). Divisão socioespacial e mobilidade residencial: reprodução ou alteração das fronteiras espaciais? Disponível em: <h p://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/ Todos/migt11_4.pdf>. Acesso em: 28 nov 2011. ______ (2000b). “O que há de novo na clássica dualidade núcleo-periferia: a metrópole do Rio de Janeiro”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (org.). O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro, Revan/Fase. LE PRESTRE, P. (2005). Ecopolí ca internacional. São Paulo, Senac São Paulo. PEREIRA, T. C. G. (2012). Jus ça ambiental e cidade: a luta pela igualdade espacial na Urbe. Post no blog Direito e Urbanismo do grupo de pesquisa LADU (Laboratório Direito e Urbanismo) do Prourb/ FAU/UFRJ. 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Metrop., São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 339-358, jan/jun 2013 Instruções aos autores ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos livres terão fluxo contínuo de recebimento. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho. O Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es), deve ser enviado juntamente com o artigo. O conteúdo do texto é de responsabilidade do(s) autor(es). NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os trabalhos devem conter: • título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; • resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português e em inglês; • identificação do autor, com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência; • referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico. Os trabalhos devem ser encaminhados para o email: [email protected] ou para o endereço: Cadernos Metrópole – Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil. É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005. Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Belém Universidade Federal do Pará Simaia Mercês [email protected] Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Luciana Andrade [email protected] Brasília Universidade de Brasília Rômulo Ribeiro [email protected] Curitiba Ipardes Rosa Moura [email protected] Fortaleza Universidade Federal do Ceará Clélia Lustosa [email protected] Goiânia Universidade Católica de Goiás Aristides Moysés [email protected] Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues [email protected] Natal Universidade Federal do Rio Grande