Dissertação

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Dissertação
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO ACADÊMICO
SAMUEL SIMÃO DA SILVA
A REPÚBLICA DE MAQUIAVEL: o equilíbrio que surge da discórdia
São Luís
2015
2
SAMUEL SIMÃO DA SILVA
A REPÚBLICA DE MAQUIAVEL: o equilíbrio que surge da discórdia
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social da Universidade Federal
do Maranhão para obtenção do título de mestre em
História.
Orientadora: Profª Drª Maria Izabel Barboza de Morais
Oliveira
São Luís
2015
3
A REPÚBLICA DE MAQUIAVEL: o equilíbrio que surge da discórdia
SAMUEL SIMÃO DA SILVA
Dissertação de mestrado avaliada em _____/_____/______ com conceito _____________
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Profª Drª Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira (PPGHIS/UFMA) – Orientadora
___________________________________________
Prof. Dr. Dagmar Manieri (História/UFT)
___________________________________________
Prof. Dr. Marcus Vinicius Baccega (PPGHIS/UFMA)
________________________________________________
Profª Drª Adriana Maria Zierer (PPGHIS/UFMA) – Suplente
4
Para Jordan, Sofia e Samyra
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço antes de tudo a minha mãe, pela dedicação em me mostrar os primeiros
passos da vida, a meu pai (in memória) por me mostrar o prazer da leitura, meus
professores da graduação na Universidade Federal do Tocantins (UFT), em especial à
professora Marta Victor, pela dedicação no período de escrita da monografia, primeiro
passo, posso dizer, em direção a essa conquista. E ao professor Dagmar Manieri pela
excelente crítica ao trabalho na época que foi fundamental para o amadurecimento das
ideias presentes nessa dissertação e por aceitar o convite em fazer parte da banca de defesa
dessa dissertação.
A minha namorada (e futura esposa) Joyce, meu melhor presente, pelo apoio em
meus momentos de crise e ótimas sugestões tanto no processo de escrita, quanto nas dicas
de leitura.
A meus filhos, motivo e razão dos meus esforços profissionais.
Mas como não falar de minha orientadora, a profª Maria Izabel Barboza de Morais
Oliveira (UFMA), que desde o primeiro momento sempre esteve do meu lado, dando
carinhoso apoio e orientação precisa.
Ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do
Maranhão, aos seus funcionários Jonathan e Ricardo e aos coordenadores. Aos professores
que ministraram disciplinas que foram fundamentais para o amadurecimento teórico e
metodológico essencial para essa pesquisa: João Batista (companheiro de cigarro nos
intervalos), Josenildo Pereira, cujas críticas sobre o conceito de maquiavelismo me
ajudaram a pensar o tópico que compõe esse texto, Regina Faria, Alírio Cardoso, que
também foi um dos arguidores na banca de qualificação. Ao Prof. Marcus Baccega pelas
sugestões dadas em minha Qualificação de Mestrado. Também sou devedor a Paulo
Giovanny e Marleide Rodrigues por sua fiel companhia nos momentos de crise.
À FAPEMA, por fornecer os recursos econômicos por meio de bolsa.
Aos colegas de turma do mestrado (2013): Adriana, André, Antônio Marcos,
Arnaldo, Camila, Celeste, Jéssica, Josenilma, Leina, Michele, Pedro, Pietra, Raíssa e como
não lembrar sem a devida reverência do meu amigo Rafael Henrique, que desde o primeiro
momento buscou me ajudar, organizando o lugar onde morar, me situando no campus, e
companhia fiel nos bares com as damas e “lordes” da Filosofia, meus eternos e sinceros
agradecimentos.
6
RESUMO
O propósito desta pesquisa consiste em analisar o conceito de república no texto de
Nicolau Maquiavel (1469-1527), Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio,
escrito, provavelmente, entre 1513 e 1517, procurando entender em que medida ele
endossa seus contemporâneos ou se distancia das discussões sobre a liberdade republicana.
Esse pensador florentino viveu em um período fértil da história da Itália que, já no início
do século XVI, convencionou-se denominar de Renascimento, um mito que graças à
contribuição de Jacob Burckhardt ainda persiste. Mas não há de fato uma ruptura definitiva
entre o medievo e o período supra descrito, e isso se aplica também às ideias políticas que
circulavam em Florença entre os séculos XV e XVI herdeiras elas mesmas dos pensadores
medievais. Assim, para compreender o pensamento de Maquiavel é preciso estudar sua
alma, compreender o processo de formação de suas ideias e seus principais conceitos, ver o
lugar de sua formação. Se quisermos compreender os efeitos de suas ideias e o significado
de seus discursos é preciso analisar a matriz de seu pensamento. Só assim cremos ser
possível desvencilhá-lo dos mitos que orbitam em torno de seus escritos, tais como o do
maquiavelismo ou da genialidade criadora, ilusão típica provocada pela crença de sermos a
origem do que dizemos. São extremos que estorvam e bloqueiam o acesso a esse pensador.
Analisaremos então o contexto maior da Itália do período vivido por Maquiavel para
tentarmos ver o autor em situação. Em seguida, focaremos no contexto específico de
Florença, aqui então intercalaremos a vida de Maquiavel relacionando com avida política e
social de Florença para tentarmos ver como foi produzida sua formação pessoal desde os
primeiros passos e em que medida essa formação e o próprio contexto imediato
interferiram no processo de fabricação de suas principais ideias. Para tanto, percorreremos
enquanto princípios metodológicos o caminho já trilhado pelos historiadores Quentin
Skinner e J.G.A. Pocock, pois concordamos que para compreender o pensamento político
de um determinado autor se faz necessária uma compreensão do contexto sócio histórico e
intelectual de onde essas ideias foram geradas, já que os problemas políticos e sociais que
o envolvem lhe dão os motivos, e a maneira como os discursos transitavam lhe proveram
os meios e a configuração de sua linguagem.
Palavras-chave: Nicolau Maquiavel; República; Liberdade; Florença; século XVI.
7
RÉSUMÉ
Le but de cette recherche est d'analyser le concept de la République dans le texte de
Niccolo Machiavel (1469-1527), Discours sur la première décennie de Tite-Live, écrite
probablement entre 1513 et 1517, cherchant à comprendre la mesure dans laquelle il
approuve ses contemporains ou distance de discussions sur la liberté républicaine. Ce
penseur florentin vivait dans une période fertile dans l'histoire de l'Italie qui a déjà au début
du XVIe siècle, classiquement appelé la Renaissance, un mythe que grâce à la contribution
de Jacob Burckhardt persiste. Mais il est en fait une rupture définitive entre le Moyen Âge
et la période décrite ci-dessus, et cela se applique également aux idées politiques circulant
à Florence entre les XVe et XVIe siècles se héritiers de penseurs médiévaux. Ainsi, pour
comprendre la pensée de Machiavel est nécessaire d'étudier votre âme, de comprendre le
processus de formation de leurs idées et de leurs principaux concepts, voir le lieu de sa
formation. Si nous voulons comprendre les effets de leurs idées et de l'importance de ses
discours est nécessaire d'analyser la matrice de sa pensée. Seulement alors nous croyons
qu'il est possible de démêler des mythes qui tournent autour de ses écrits, tels que le
machiavélisme ou génie créatif, illusion typique causé par la croyance d'être à l'origine de
ce que nous disons. Sont des extrêmes qui entravent et bloquer l'accès à ce penseur. Puis
d'analyser le contexte plus large de l'Italie pour la période vécue par Machiavel à essayer
de voir la situation de l'auteur. Ensuite, nous allons nous concentrer sur le contexte
spécifique de Florence, alors voici intercalaremos la vie de Machiavel relatives à la vie
politique et sociale de Florence pour essayer de voir comment il a été produit votre
formation personnelle du stade précoce et dans quelle mesure cette formation et le contexte
très immédiate interféré dans le processus de fabrication de ses principaux éléments. Nous
passons en revue les principes méthodologiques que le chemin déjà foulé par les historiens
Quentin Skinner et J.G.A. Pocock, parce que nous sommes d'accord que, pour comprendre
la pensée politique d'un auteur particulier est nécessaire de comprendre le contexte dans
lequel ces idées ont été générés, que les problèmes politiques et sociaux qui impliquent
vous donner les raisons, et la façon dont vous discours transit ont fourni les moyens et la
configuration de votre langue.
Mots-clés: Niccolo Machiavel; République; Liberté; Florence; XVIe siècle.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................9
1. MAQUIAVEL E A ITÁLIA RENASCENTISTA: o sujeito, a educação e a
política.................................................................................................................................28
1.1 A fragmentada Itália do Renascimento.........................................................................28
1.2 A bela, mas tumultuada Florença.................................................................................48
1.3 Maquiavel antes dos Discursos: contexto familiar e educação.....................................58
1.4 A Florença Política: os Médicis, Savonarola e Maquiavel..........................................70
1.5 Chancelaria e política: a práxis necessária para a teoria maquiaveliana...................80
1.5.1 A experiência de a “Arte da guerra”.....................................................................100
1.5.2 O crepúsculo.............................................................................................................104
2. MAQUIAVEL NO TEMPO........................................................................................132
2.1. As principais leituras..................................................................................................132
2.2. A invenção do maquiavelismo....................................................................................153
3. OS DISCURSOS: a República de Maquiavel............................................................158
3.1 A questão da liberdade no ideário político humanista nos séculos XV: o legado
medieval..............................................................................................................................158
3.1.1 O papado e o poder temporal...................................................................................164
3.1.2 A liberdade de Florença...........................................................................................169
3.2 A oposição de Maquiavel aos humanistas e a defesa dos conflitos sociais como base
para estabilidade da República.........................................................................................182
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................197
REFERÊNCIAS...............................................................................................................201
9
INTRODUÇÃO
O interesse por essa pesquisa surgiu ainda no período de graduação quando
desenvolvemos um estudo sobre as ideias de Estado e sociedade em Maquiavel. Parte do
estudo tornou necessária a análise dos dois principais textos políticos de Maquiavel: os
Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, mais conhecidos como Discursos,
texto concebido provavelmente entre 1513 a 1517, e O príncipe, escrito em 1513. Nos
Discursos há uma defesa do governo republicano, o que não aparece n’O Príncipe, mero
manual da técnica politica. A defesa da forma de governo republicana é acompanhada na
obra maquiaveliana da consideração dos conflitos como componente fundamental para a
garantia da estabilidade política e assegurar as liberdades estabelecidas. Daí, Maquiavel
logo no capítulo quarto do primeiro livro dos Discursos, assegura que “Todas as leis para
proteger a liberdade nascem da sua desunião.”1
Essas declarações nos Discursos, em parte, nos motivaram a uma avaliação da obra
maquiaveliana com o intento de entender qual o conceito de República persistente na obra
desse autor já que este havia sido denominado como defensor do absolutismo monárquico,
buscando relacionar com o contexto de ideias circundantes no período vivido por ele. É
verdade que Maquiavel parece divergir em alguns pontos de sua reflexão dos seus
contemporâneos em questões de política, mas no geral reitera várias das crenças do ideário
político renascentista. Isso se torna evidente quando do próprio postulado de que parte
Nicolau em seus Discursos pensando a República, como demonstrou Skinner, à maneira
ortodoxa, “segundo a qual um dos principais objetivos de qualquer República que preze a
própria liberdade deve ser o de impedir alguma parte da populaça de legislar segundo seus
interesses egoístas e particulares” 2 excluindo a plebe, por exemplo, de participar em
assuntos políticos fundamentais. A aceitação dessa tese implica necessariamente na não
aceitação da crítica “dos que acham” que os conflitos são nocivos à República, conforme o
próprio Maquiavel alega em seus Discursos.
Conhecer o ideário político em que se inserem as ideias deste autor e a maneira como
foram desenvolvidas na Renascença é fundamental para compreender suas formulações.
Analisaremos um pouco de sua sociedade, a fragmentação do território italiano, o cenário
1
MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília, Editora UnB, 2008,
p. 31.
2
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p. 201.
10
florentino e as intrigas palacianas. Tudo isso insere-se nessa investigação de modo a
favorecer o argumento segundo o qual Maquiavel não poderia pensar além das
formulações do seu tempo, pois, ele foi o produto de uma sociedade fragmentada, não
podendo ser seu discurso outra coisa que a própria interiorização desse despedaçamento,
cujo legado remonta ainda ao século XIII. Isso nos fornece, por outro lado, alguns
problemas. Entre estes está a noção de Renascimento, periodo já sacralizado pela
historiografia, segundo o qual a humanidade, ou pelos menos parte dela, esteve envolvida
num verdadeiro frenesi e vigor cultural, segundo Burke,
Ao som da palavra «Renascimento»”, escreveu o historiador holandês
Johan Huizinga, ‘aquele que sonha com a beleza do passado vê púrpura e
oiro’. Mais exactamente vê com os olhos da mente o Nascimento de
Vénus de Botticelli, David de Miguel Ângelo, Mona Lisa de Leonardo,
Erasmo, castelos do Loire, e o poema The Faerie Queene, todos juntos,
numa imagem combinada daquele que foi uma idade de ouro da cultura e
criatividade. 3
Nesse sentido, de acordo Burke, foi graças às definições de Burckhardt que este
período tornou-se sinônimo de “individualismo” e “modernidade” 4, mas é fácil criticar o
historiador suiço, e mesmo tentar fugir das amarras conceituais por ele impostas ao período
descrito que Cassirer acredita não ser possível repetir sem o risco de cair em descredito.5
Por outro lado, seria difícil substituir o brilhantismo elegante de seus estudos pioneiros, por
onde, mesmo que pelo caminho da crítica, não pode ser ignorado.
Mas como comprender esse período sem recorrermos a esse “corte brutal” na
cronologia europeia sem cairmos em imprecisão, mesmo que o próprio termo seja ele
também impreciso, embora Delumeau, por outro lado, acredite que, pelo contrário, “se
suprimíssemos dos livros de história os dois termos solidários – e solidariamente inexactos
– “Idade Média” e “Renascimento”, a nossa compreensão (...) encontrar-se-ia facilitada”6.
Para Dubois,
Está claro que, como expressão de um renascimento cultural e de
ideologia, a Renascença não pode ser compreendida fora da sua dimensão
européia e de um desenvolvimento cronolónogico que a faz abranger
3
BURKE, Peter. O Renascimento. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2008, p. 10.
Ibid., p. 9.
5
CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003, p. 160.
6
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 9. (Coleção lugar da
história).
4
11
vários séculos. Manifestada a partir do trecento italiano, ela se estende até
o século XVII.7
Em todo caso, estamos seguindo o exemplo de Delumeau em manter o termo por
uma questão didática8, mesmo sabendo das confusões que ele faz surgir, afinal, que outra
palavra usaríamos para explicar esse período? Mas ainda assim não deixamos de seguir a
ideia segundo a qual o Renascimento seria um “mito”, à maneira que recomenda Burke:
Quando os historiadores se referem a ‘mitos’, habitualmente falam de
afirmações sobre o passado de algum modo enganadoras ou cuja
falsidade se pode provar. No caso da descrição do Renascimento por
parte de Burckhardt, estes historiadores opõem-se aos vincados contrastes
que ele estabelece entre o Renascimento e a Idade Média, entre a Itália e
o resto da Europa. Consideram que são contrastes exagerados uma vez
que ignoram as muitas inovações produzidas na Idade Média, a
sobrevivência de atitudes tradicionais no século XVI e mesmo mais tarde,
e o interesse italiano pela pintura e pela música de outros países, em
especial dos Países Baixos.9
Burke alerta ainda contra as auto-imagens do período (acadêmicos e artistas) que,
para ele, ao mesmo tempo que são reveladoras também enganam, “Como outros filhos que
se rebelam contra a geração dos pais, estes homens deviam mais do que julgavam à ‘Idade
Média’ que tão frequentemente denunciavam”10. Assim, também é verdade que “Até O
Príncipe de Maquiavel, que por vezes vira deliberadamente do avesso o pensamento
convencional, pertence, num certo sentido, a um gênero medieval, aos chamados
‘espelhos’ ou livros de conselhos aos regentes”11.
Um outro problema encontrado seria o da biografia do autor, e de Maquiavel não
podemos senão apenas, como em outro caso, nos aproximar e tentar ver pela penumbra a
silhueta opaca, “de um escritor em situação”12. Se ele participa de sua época essa é uma
preocupação que devemos levar a sério sem desvio, com o risco de pintarmos um quadro
“ponposo” para um homem medíocre, ou o inverso, mas sabendo que ainda assim sairemos
insatisfeitos dessa empreitada. Mas Sartre confirma que o escritor participa sim de sua
7
DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da Renascença. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995,
p. 9.
8
DELUMEAU, op. cit., p. 10.
9
BURKE, 2008, op. cit., p. 10.
10
Ibid., p. 12.
11
Ibid., 14.
12
GAILLE-NIKODIMOV, Marie. Maquiavel. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 16.
12
época e com ela está comprimetido, marcado.13 Em se tratando de contextualizar de
maneira radical uma ideia, um autor, na biografia, talvez repouse o maior problema, já que
em muitos casos ela se torna quase impossível, principalmente porque em nosso caso
específico não temos outra saída se não recorrer a biografias disponíveis em língua
portuguesa sobre o autor em questão.
Segundo Philippe Levillain, pode-se datar “dos anos 70 o florescimento da
biografia na França”. Interesse esse que também foi visto nos estudos de história em finais
da década de 1970 “entre as 756 teses de história contemporânea” cerca de “46 eram
biografias”. Como resposta às sugestões de Duroselle sobre renovação da biografia, em
1966 Arnaldo Colin havia publicado a tese de Pierre Sorlin sobre Waldeck-Rousseau. Na
introdução da tese o autor se defende das críticas que então a biografia recebia alegando
que “homens ilustres interessavam menos que as massas”, nas palavras de Levillain. Mas
sua tese, ao contrário de outros, invertia o procedimento de análise e buscou “situar” o
biografado “em seu tempo”. “Portanto”, Levillain prossegue, “tratava-se de um estudo”
que, “abandonando o pitoresco, que o autor julgava pouco acentuado no caso do
personagem, submetia este último à prova da história política e social da França
republicana”14. Esse interesse, por outro lado, resulta da crescente necessidade de se
explicar o papel do “sujeito da ação histórica”, preocupação essa que também foi de
Lucien Febvre, segundo Aróstegui,
A escola dos Annales, (...) ao mesmo em sua primeira época, defendeu
sempre que o eixo do histórico era o homem, não a situação nem a
estrutura. Assim Lucien Febvre se perguntava, ao criticar um manual de
história, “e em todo caso, onde está o homem?”, insistindo no fato de que
falar dos indivíduos era tão importante que de outra forma não se poderia
distinguir entre “os jaó-ninguém e os poderosos” e que, afinal de contas,
o homem era a “medida da história. Sua única medida. Mais ainda: sua
razão de ser”15.
Michelet observou de perto os problemas da biografia e esteve preocupado em
que medida as paixões individuais podem alterar o curso dos eventos, mas também buscou
conforme cita Levillain, “em auscultar o interir da alma nacional do que em penetrar
profundamente na [alma] do indivíduo”. Aparentemente querendo dizer com isso o quanto
13
Apud GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 17.
LEVILLAIN, PHILIPPE. Os protagonistas: da biografia. In. RÉMOND, RENÉ. (Org.) Por uma história
política. Rio de janeiro: Editora FGV, 2003, p. 141.
15
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, São Paulo: Edusc, 2006, p. 329.
14
13
o indivíduo tem a dizer sobre o sentimento de uma época. Mas o problema da biografia
reside, talvez, mais na tentação da ficção. Que como foi dito antes, em nosso caso
particular, pouco de material foi selecionado para o estudo biográfico de nosso autor.
Muito, portanto, se escapa, pouco pode ser dito. O risco seria de nas várias tentativas de
buscar fragmentos sobre o autor crermos “que todo detalhe é simbólico”16. O perigo para o
historiador ao lidar com a biografia está em fornecer ao biografado intenções e
racionalidades de forma que este apareça à semelhança do herói preparado desde o ventre
materno, e tendo consciência desse “fato” siga o caminho da verdade se opondo à sua
geração como pregador da justiça. Conforme Levillain,
A ficção provém do suplemento de explicação que o autor se julga no
direito de dar quando a reunião dos documentos não basta para retratar o
personagem. Pois toda biografia resulta da tentação criadora. O autor, por
definição, instruído sobre a vida da pessoa, remonta o curso de um
destino fingindo pela narração constatá-lo ao longo do tempo que passa.
Defronta-se com uma lógica constituída que o leva naturalmente a
imaginar a pessoa como permanentemente consciente do estado que lhe
vale seu status biográfico. A psicologia, o jogo da intenção e da realidade
tornam-se pois princípios de racionalidade, os quais não são
demonstráveis. E o meio mais seguro de justificar esta ficção, quando se
trata de um autor, consiste em se apoiar na realidade literária de sua
obra.17
Em todo caso, para não prolongarmos essa discussão, estamos conscientes que
numa biografia, como a presente nessa pesquisa, não podemos senão tentar seguir a cautela
de Febvre, em seu estudo sobre Martinho Lutero, um destino, e forçosamente reconhecer
que se trata também de “uma opinião” sobre Maquiavel, “nada mais” 18.
As dificuldades enfrentadas pelos historiadores diante dos desafios da História
Intelectual ao longo da história da historiografia têm sido em parte superadas graças aos
esforços de vários pesquisadores desse campo. O definhar das grandes teorias, ou metahistórias19 explicativas, infligiram a necessidade de revisões sobre antigas certezas,
agredindo velhas proposições a respeito da “objetividade e racionalidade nos estudos
16
LEVILLAIN in RÉMOND, op. cit., p. 154.
Ibid., pp. 155-156.
18
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três estrelas, 2002, p. 11.
19
A esse respeito, Julio Aróstegui já havia afirmado que essa crise, ou esse definhar das grandes teorias
explicativas da história, estava “estreitamente relacionada ao esgotamento generalizado dos paradigmas que
(...) haviam exercido uma influência decisiva: o marxismo, o funcionalismo, o estruturalismo e, além disso,
na historiografia, o da escola do Annales” ARÓSTEGUI, op. cit., p. 175. Todas essas teorias tinham em
comum a pretensão à superioridades de seus métodos explicativos da realidade histórica.
17
14
históricos”20, sugerindo novas abordagens nas várias atividades das experiências dos
historiadores, gerando, segundo Oliveira, “profunda crise epistemológica” 21.
A mudança sobre o sentido de contexto histórico que, segundo Marcos Antonio
Lopes22, acentuam o papel das contribuições recentes da história intelectual e o retorno à
literatura enquanto fonte de pesquisa23 estão entre os eventos que acabaram por contribuir
para a manifestação dessa crise teórico-metodológica na historiografia, contribuindo para o
surgimento de outras formulações e esforços “para reconstruir a história intelectual, e foi a
tentativa de Quentin Skinner e John Pocock a que obteve maior influência no que diz
respeito aos temas da política”. 24 Uma das premissas abordadas por Skinner, por exemplo,
foi a de que é fundamental contextualizar o autor à sua época e sociedade não esquecendo
de tentar perceber quais as suas intenções, o que Skinner define como atos lingüísticos.
Segundo ele, “Evidentemente, estudar o discurso político implica estudar fatos históricos,
pois faz parte desse enfoque pensar os discursos como ações”. 25 Dessa maneira, tanto
Skinner quanto Pocock buscam entender o sentido de um determinado autor observando as
influências sofridas por ele través dos meios que frequentou, os livros que leu e de que
maneira os eventos sócio-históricos “agiram sobre ele”.26 Segundo Ricardo Silva:
Poucas abordagens influenciaram tão amplamente a metodologia e a
prática da história do pensamento político do que a modalidade de
“contextualismo linguístico” propugnada pela chamada “Escola de
Cambridge”.Independentemente da avaliação que se faça de tal
influência, o fato é que, desde os anos 1960 – época em que John Pocock
(1962), John Dunn (1968) e Quentin Skinner (1966; 1969) publicaram
seus primeiros ensaios metodológicos – o contextualismo linguístico tem
sido objeto de incessante interesse, tanto de adeptos quanto de críticos.
Um importante resultado de todo esse interesse foi a constituição de um
amplo campo de debates sobre problemas cruciais de teoria e método
que, originários do campo da história intelectual, vêm se revelando
pertinentes a várias outras disciplinas das humanidades, como, de resto,
20
OLIVEIRA, Maria Izabel B. de Morais. História Intelectual e Teoria Política: confluências. In: LOPES,
Marcos A. (Org). Grandes nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 60.
21
Ibid.
22
LOPES, Marcos Antônio. Para ler os clássicos do pensamento político: um guia historiográfico. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 16.
23
OLIVEIRA in LOPES, 2003, op. cit., p. 60.
24
Ibid.
25
POCOCK, J. G. A. Linguagem do ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2003, p. 9.
26
OLIVEIRA, Maria Izabel B. de Morais. Introdução. In: O príncipe pacífico: Boussuet, Luís XIV e Antônio
Vieira. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília – UnB. 2009, p. 3.
15
indica a participação de teóricos da política, filósofos, críticos literários e
sociólogos nos diálogos e disputas.27
Silva constata que as primeiras investidas nesse campo parecem ter sua origem em
Peter Laslett,
historiador que exerceu grande influência nos estudos iniciais de Pocock,
Skinner e Dunn. Em 1956, Laslett declarou, com evidente intenção
polêmica, que “no momento, […] a filosofia política está morta”
(1956:vii). A declaração surgia num contexto em que o tratamento
filosófico das ideias políticas era questionado por uma série de outras
abordagens. As novas teorias concernentes à natureza da linguagem, as
alternativas da ciência política behaviorista e das abordagens sociológicas
da política – dentre as quais o marxismo – passaram a representar sérios
desafios para a filosofia política e a historiografia caracterizadas pela
busca da dimensão intemporal das ideias dos grandes pensadores. Em sua
famosa edição crítica dos Dois Tratados sobre o Governo, Laslett, numa
indicação do procedimento contextualista, afirmava que “nosso primeiro
propósito deve ser um modesto exercício de historiador – estabelecer os
textos de Locke como ele gostaria que fossem lidos, fixá-los em seu
contexto histórico, no próprio contexto de Locke. 28
O que chama a atenção nessas “novas” tendências interpretativas ao tentar suprir ou
acrescentar enquanto contribuição original nas análises históricas de textos políticos é o
próprio alargamento das possibilidades interpretativas 29 entre os historiadores intelectuais.
É compreensível, portanto, o entusiasmo crítico de Fábio André Hahn, em seu artigo sobre
“A tradição interpretativa de Maquiavel”, quando insinua que “as interpretações são
criadas a partir de outras existentes, o que as diferem são as manifestações da voz de seu
produtor ao lado de um coro de outras vozes que tratam do mesmo tema.”30
Uma das vantagens dos argumentos desses historiadores de Cambridge é que eles
rompem, por assim dizer, com a prática “textualista”31 muito mais presente nas exaustivas
leituras dos filósofos da política, ou seja, estudar o texto pelo texto sem levar em
27
SILVA, Ricardo. O Contextualismo Linguístico na História do Pensamento Político: Quentin Skinner e o
Debate Metodológico Contemporâneo. In. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, nº 2, 2010, p.
299.
28
Ibid., p. 301.
29
LOPES, 2007, op. cit., p. 18.
30
HAHN, Fábio André. A tradição interpretativa de Maquiavel. Revista Cantareira – Revista Eletrônica de
História, v. 3, n. 3, ano 4, jul. 2007. Disponível em: HTTP://www.historia.uff.br/Cantareira .
31
A respeito do método textualista, Skinner diz que esse método “embora seus expoentes em geral
afirmassem estar escrevendo uma História da Teoria Política, raras vezes o que nos apresentaram pôde ser
considerado, de fato, História.” Apud LOPES, Marcos Antônio. Aspectos teóricos do pensamento histórico
de Quentin Skinner, Kriterion: Revista de Filosofia, vol. 52, n. 123, Belo Horizonte, June 2011, p. 4.
Disponível em: HTTP://www.scielo.br/scielo.php
16
consideração aquilo que o cerca, e a inserção da noção de contexto vital no estudo dos
clássicos políticos, “preferindo enfocar a matriz mais ampla, social e intelectual, de que
nasceram suas obras”32, como afirma Skinner. Mesmo porque “o texto político deve ser
pensado em sua dinâmica especifica” 33 e não como obras perenes de significados válidos
para todas as épocas e contextos. Há vida efetiva além do texto, vida que pulsa, que
intervém; paixões que não devem ser ignoradas pelo historiador intelectual. Assim,
conforme Oliveira,
Ao contrário da concepção que foi prática dominante nesse campo de
trabalho até a década de 1960 – que pretendia compreender o texto por
ele mesmo, debruçando-se somente sobre as obras dos autores clássicos,
em busca de “elementos intemporais”, perenes, que se prestavam a
responder aos problemas que se formulavam em todos os tempo - ,
acreditamos que para melhor compreensão do texto de um autor é de
fundamental importância tentar enfocá-lo levando em consideração o
contexto social em que foi produzido.34
A questão que não deve escapar ao historiador intelectual é o fato de que o elemento
humano compreende várias dimensões e é passível de mudanças constantes ao sabor dos
eventos que vivencia, não sendo assim possível explicá-lo com uma teoria somente, à
semelhança de um “leito de Procusto.” É nessa direção que reconhece o historiador G.
Cole ao sintetizar, de acordo com Marcos Antônio Lopes, a respeito de sua própria
limitação enquanto historiador ao afirmar que, “Também estou consciente de que minha
escolha de benefícios ou vantagens não é feita à fria e lúcida luz da eternidade, mas sob a
influência da minha época, da minha geração e das minhas predileções pessoais.”35 Essa
perda da inocência por parte do historiador denota uma verdadeira virada na própria
perspectiva do que seja a subjetividade no oficio do historiador, revelando ser ela parte
integrante e necessária da própria prática. Vale lembrar, no entanto, que a teoria é a
ferramenta ordenadora nesse construto intelectual, orientando o historiador em sua
subjetividade, já que essa se manifesta em forma de carências motivadoras e
direcionadoras da própria objetividade da prática histórico-científica.36
32
SKINNER, op. cit., 2003, p. 10.
OLIVEIRA in LOPES 2003, op. cit., p. 64.
34
Ibid., p. 60.
35
Apud LOPES, 2007, op. cit., p. 37.
36
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria histórica: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasilia, 2001, p. 39-40.
33
17
De fato, é nessa direção que Jörn Rüsen irá nos advertir a respeito da importância e
necessidade da teoria da história, no sentido de dissipar os medos da subjetividade por
parte dos historiadores e a pretensão em relação a uma suposta objetividade inerente à
prática do oficio historiográfico. Segundo ele, “a teoria da história é necessária para
solucionar o problema do subjetivismo diante da exigência de subjetividade do pensamento
histórico-científico. Ela exerce aqui uma função motivadora”.37 E acrescenta que à medida
que restringimos a subjetividade na prática de pesquisa causamos um problema de ordem a
afetar o próprio desenvolvimento ordenador da teoria que visa articular as carências
pessoais do pesquisador na própria escolha e desenvolvimento de sua pesquisa no campo
historiográfico e legamos ao limbo metódico as possibilidades de inserirem essas carências
pessoais no ordenamento objetivo do conhecimento histórico.
Melhor esclarecendo: o fio condutor na tarefa de pesquisa histórica seriam, nesse
caso, as motivações pessoais que surgem na pesquisa enquanto subjetividade do
historiador. Aparentemente, o objeto seria um elemento externo ao historiador atraído por
meio de suas motivações pessoais (inquietações se preferirem), mas completam-se na
prática do oficio. No entanto, são as motivações pessoais, voltamos a repetir, que anima a
pesquisa.
Talvez esse argumento mereça uma rearticulação mais precisa. Esse fio condutor
referido acima na verdade se trata de uma apropriação daquilo que Rüsen irá chamar de “a
intenção de descrever e demonstrar”38, e isso sempre que se tratar de dar sentido ao
trabalho histórico. Essas motivações precisam estar em articulação constante, tanto com a
teoria como também o objeto. E deveras é a teoria, segundo ele, que constitui o fazer
histórico uma “especialidade cientifica.”39 Talvez o problema que deva ser pensado seja o
de que esse processo se dê de forma algo parecido como um autômato, à maneira que
Rüsen sugere em outro momento.
Cabe, no entanto, pensar que o trabalho de pesquisa não precisa, necessariamente, ser
uma atividade autômata à semelhança daquele que após entrar em seu veículo automotivo
simplesmente muda as velocidades das engrenagens motoras por meio do câmbio sem
necessariamente pensar em o porquê do veículo se mover. À medida que o historiador
investiga e tece seu texto por meio da escrita toda uma atividade mental e reflexiva entra
37
RÜSEN, 2001, op. cit., pp. 39-40.
Ibid., p. 26.
39
Ibid.
38
18
em marcha buscando recursos teóricos que melhor possam se acomodar às suas intenções
em relação a seu objeto.
Ao nos voltarmos, portanto, aos clássicos da filosofia política também precisamos
percebê-los enquanto embebidos e saturados pelo universo de símbolos próprios ao
momento de sua composição e enquanto atos de intervenção tendo assim um leitor ideal e
potencial ao qual se reporta com a intenção consciente ou inconsciente de interferir nos
quentões políticas e sociais que o afligem. Dessa forma, poderemos compreender os
significados possíveis do seu ato de escrever ou sua intencionalidade. 40 Cercar o texto pelo
seu contexto significa também compreender que a própria intenção do autor ao escrever
seu texto só é possível dentro de seu universo linguístico, onde busca intervir, limitando-o,
portanto, ao ideário (ou ideologias se Bakhtin estiver certo) que subjaz e “vive” no núcleo
das palavras de que se apropria.
Vale lembrar que a linguagem não é estática, mas sim dinâmica e quando um autor a
utiliza, ela, segundo Pocock, já
Foi utilizada e está sendo utilizada para enunciar intenções outras que não
as suas. Sob esse aspecto, um autor é tanto o expropriador, tomando a
linguagem de outros e usando-a para seus próprios fins, quanto o
inovador que atua sobre a linguagem de outros e usando-a para seus
próprios fins, quanto inovador que atua sobre a linguagem de maneira a
induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é
usada. Mas o mesmo que ele fez com outros autores e suas linguagens
pode ser feito com ele e sua linguagem. 41
Isto posto, conforme Oliveira,
O pensamento político de um autor terá valor histórico na medida em que
procuramos relacioná-lo à historia, tentando perceber como alguns
aspectos dos eventos da história efetiva aparecem em seus discursos. Isto
não é uma tarefa fácil, pois muitas vezes se dá de forma implícita. Para
que o historiador consiga recuperar o conteúdo histórico do texto, (...) é
preciso levar em consideração que isto ‘depende muito da forma do texto:
o vocabulário, os enunciados, tempos verbais, etc. 42
Tentar compreender os efeitos da linguagem ou as intenções do autor, segundo
Oliveira, equivale a reconhecer que além do texto e das palavras materializadas na obra
gerada existe história ativa, mas “o conteúdo histórico do texto só é encontrado quando se
40
RÜSEN, 2001, op. cit., p. 26.
POCOCK, op. cit., p. 29.
42
OLIVEIRA, 2009, op. cit., p. 7.
41
19
relaciona o texto ao contexto”43. Esse método sugere que o historiador precisa ir além do
material escrito e observar o entorno onde a obra foi produzida e os discursos vigentes. Os
discursos só possuem inteligibilidade à medida que são relacionados com seu universo
linguístico-discursivo. A fecundidade desse método, que poderíamos chamar, à semelhança
de David Harlan, de contextualismo radical, se manifesta na prática enquanto uma história
do discurso político.
Assim, não seria interessante negar que tais discursos são tentativas de intervenção
nos eventos concretos em que viveram seus emissores. Daí a pretensão dessa geração de
historiadores das ideias ao buscar acessar os sentidos das ideias dos pensadores políticos
buscando sua significação não na obra em si, mas nas influências recebidas por esses
autores, integrando, dessa forma, tanto autor quanto sua obra ao seu universo social,
político, linguístico e cultural particular 44, ou seja, texto e contexto. Segundo Skinner:
(...) Uma insatisfação que sinto diante do tradicional método ‘textualista’
é que, embora seus expoentes em geral afirmassem estar escrevendo uma
história da teoria política, raras vezes o que nos apresentaram pôde ser
considerado, de fato, história. Com razão a historiografia recente chegou
ao lugar-comum de que, se temos em mira compreender sociedades
anteriores à nossa, precisaremos recuperar suas mentalités de dentro, da
forma mais empática possível. Mas é difícil perceber como poderemos
chegar a essa espécie de compreensão histórica se continuarmos, no
estudo das ideias políticas, concentrando o eixo de nossa atenção
naqueles que debateram os problemas da vida política num nível de
abstração e inteligência que nenhum de seus contemporâneos terá
alcançado. Se, por outro lado, tentarmos cercar esses clássicos com o seu
contexto ideológico adequado, poderemos ter condições de construir uma
imagem mais realista de como o pensamento, em todas as suas formas,
efetivamente procedeu no passado. Um mérito que assim me atrevo a
apontar no método que descrevi é que, se for praticado com sucesso,
poderá começar a dar-nos uma história da teoria política de caráter
genuinamente histórico.45
As intenções a que se refere Skinner dizem respeito aos efeitos sociais pretendidos
pelo autor no momento da composição de sua obra. Assim, “quanto mais provas o
historiador puder mobilizar na construção de suas hipóteses acerca das intenções do autor,
que poderão ser aplicadas ao texto”46, mais rica e fecunda será a análise da obra em
questão, segundo Pocock.
43
OLIVEIRA in LOPES, 2003, op. cit., p. 61.
LOPES, 2007, op. cit., p. 54.
45
SKINNER, 2003, op. cit., p. 11.
46
POCOCK, op. cit., p. 27.
44
20
Outro ponto importante abordado por esses historiadores é o método intertextualista
que seria, grosso modo, uma análise comparativa entre as obras produzidas no mesmo
período ou anteriormente ao autor estudado. Assim, “para entender as especificidades do
pensamento político dos intelectuais do passado, (...) é preciso estabelecermos comparação
com outros autores, tanto com os que viveram em seu tempo, como com os que lhe são
anteriores ou posteriores como Maquiavel e Voltaire, respectivamente. No entanto, é
preciso tomar a precaução de não cometer um mero ‘comparativismo textual,”47 explica
Oliveira.
Maquiavel, por exemplo, cuja obra foi considerada um dia “uma das mais perigosas
do mundo”48, não deveria ser olhado como um isolado de seu nicho particular. Então,
olhemos para ele e imaginemos seu mundo (pois é o que nos resta) exilado em sua cabana
em San Casciano, escrevendo as obras que irão lhe render as mais ardentes críticas, após o
que lhe será dada a responsabilidade de ser um dos fundadores e pináculo do pensamento
político moderno.
Sabemos que o autor d’O Príncipe, como qualquer outro autor, “habita um mundo
historicamente determinado.”49 O que implica dizer que as ideias por ele desenvolvidas só
foram possíveis graças às estruturas culturais disponíveis, é o legado. Cada geração deixa
para a posteridade seus códigos linguísticos e éticos que irão condicioná-la em todas as
faces de sua conduta social. Dessa forma, “os modos de discurso disponíveis dão-lhe as
intenções que ele pode ter, ao proporcionar-lhe os únicos meios de que ele poderá dispor
para efetuá-las.”50 Nesse sentido, as intenções de Maquiavel ou de outro autor irão
permanecer na obscuridade. O que se verá serão tentativas de uma aproximação possível
de suas ideias e intenções.
É verdade que quando afirmamos que as intenções de Maquiavel irão permanecer na
obscuridade, tal soa discordante em relação à proposta de Skinner, no entanto, essa não é a
intenção, pelo menos não no geral. Mas vale lembrar que tais tentativas de análises do
discurso e estudo das ideias são apenas, e sempre, tentativas de compreender esse
“pedacinho” de um passado51 que não mais nos pertence, que não mais existe. Apesar de
47
OLIVEIRA in LOPES, 2003, op. cit., p. 65.
FREDERICO DA PRUSIA. O Anti-Maquiavel. (Essai de critique sur Maquiavel). Tradução de Carlos
Eduardo de Soveral. 2 ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
49
POCOCK, op. cit., p. 27.
50
Ibid.
51
JENKINS, Keith. A História repensada. São Paulo: Contexto, 2001, p. 23.
48
21
incômoda, é preciso pensar, ou pelo menos não ignorar, o que Jenkins nos excita a
imaginar quando diz que a história
constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora
esses discursos não criem o mundo, eles se apropriam do mundo e lhe
dão todos os significados que têm. O pedacinho de mundo que é o objeto
de investigação da história é o passado. A história está, portanto, numa
categoria diferente daquela sobre a qual discursa.52
Essa divisão entre passado e presente e a incapacidade da história em trazer
efetivamente os eventos passados é bem ilustrada no exemplo de Robinson Crusoé,
conforme explica Artog, “que, na praia de sua ilha, descobre a marca de um pé na areia, o
historiador, também de frente para o mar, sabe que o outro passou; mas ele sabe, além
disso, que o outro não voltará. A partir do vestígio precário dessa ausência, começam seu
trabalho de escrita”53. A mesma sensação vertiginosa pode também ser sentida no O
viajante sobre o Mar de Névoa, de Caspar David Freidrich, quadro datado de 1818. John
Lewis Gaddis, em seu livro Paisagens da História, como os historiadores mapeiam o
passado, nos apresenta a descrição do quadro:
Um homem jovem de pé sem chapéu, com um casaco preto, num alto
pico rochoso. Suas costas estão voltadas para nós, e ele se apoia em uma
bengala contra o vento que emaranha seus cabelos. À sua frente,
descortina-se uma paisagem semi-oculta pela nevoa, onde as fantásticas
formas de distantes promontórios são parcialmente visíveis. O horizonte
longínquo revela montanhas à esquerda, planícies à direita, e, talvez,
ainda mais longe – não se tem certeza – um oceano. Mas pode ser mais
névoa fundindo-se imperceptivelmente nas nuvens. (...) O viajante sobre
o Mar de Névoa, de Caspar David Freidrich. A impressão que nos dá é
contraditória, sugerindo ao mesmo tempo domínio sobre uma paisagem e
a insignificância do individuo diante dela. Não vemos o rosto, por isso é
impossível saber se a cena à frente do jovem é alegre ou aterrorizante, ou
ambas.54
A insignificância do observador diante da paisagem observada nessa imagem que nos
apresenta Gaddis possui uma riqueza de ensinamentos para o oficio do historiador que
ainda carece ser explorada com mais acuidade. Mas não é incomum encontrar nesse oficio
aqueles que por um deslize ou outro acabam desenvolvendo reflexões e análises sobre
52
JENKINS, op. cit., p. 23.
ARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011, p. 262.
54
GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro:
Campus, 2003. p. 15.
53
22
fenômenos da história, e deixam resvalar pretensões que não cabem nesse oficio, é o caso
por exemplo do deslize do historiador inglês Quentin Skinner numa sugestão no mínimo
curiosa.
O trabalho do historiador consiste seguramente em servir como um anjo
que registra, não como um juiz que condena. Por isso, tudo o que tentei
fazer nestas páginas foi recuperar o passado e colocá-lo diante do
presente, sem tentar utilizar os parâmetros particularistas e facilmente
mutáveis do presente como um instrumento para elogiar ou criticar o
passado. Como orgulhosamente nos lembra a inscrição sobre o túmulo de
55
Maquiavel, ‘nenhum epitáfio pode igualar-se a tão grande nome.
Se trata de evidente deslize, de qualquer forma, Gaddis aponta para outro horizonte
distanciando-se, aparentemente, dessa armadilha. O que sabemos é que os historiadores
não são anjos que apenas registram, mas são operários do tempo que aprenderam a
suspeitar de tais pretensões angelicais. Gaddis, por outro lado, está mais preocupado com
nossa incapacidade de trazer o passado à tona, como se ele estivesse em uma prateleira de
conveniência apenas aguardando que um consumidor qualquer o possua. E dirá então:
(...) o passado, por sua vez, é algo que nunca poderemos possuir. Porque
quando percebemos o que aconteceu, os fatos já estão inacessíveis para
nós: não podemos revivê-los, recuperá-los, ou retornar no tempo como
em um experimento de laboratório ou simulação de computador. Só
podemos reapresentá-los. Podemos retratar o passado como uma
paisagem próxima ou distante, tal como Friedrich o fez com seu viajante
visto de seu posto. Percebemos formas através da névoa e da bruma,
podemos especular sobre o que elas são. Mas salvo com a invenção de
uma maquina do tempo nunca retornaremos para ter certeza.56
Não poderemos possuir uma experiência direta com o passado, amenos, claro, com a
invenção de uma máquina do tempo. O que nos resta são apenas documentos em arquivos
empoeirados aguardando para que os historiadores façam seu desenho e esboços sobre seu
significado; isso é história. Esse seria nosso promontório, lugar de observação que é ainda
carregado por sentimentos que nos acompanha ao longo de nossa formação, enquanto
profissionais e mesmo enquanto pessoa. Nossa experiência, por outro lado, nos permite
algo singular, mas também brutal. Singular, pois esse lugar privilegiado onde observamos
55
SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 134. O itálico é
nosso.
56
GADDIS, op. cit., p. 17. O itálico é nosso.
23
a história nos permite ter um horizonte mais amplo 57 para compreender o passado, mas
também brutal, pois nos leva a fazer afirmações que muitas vezes obscurecem nossa
compreensão sobre esse mesmo passado.
Reconhecer nossa insignificância diante do passado, ao contrário do que poderíamos
imaginar, não provoca um senso de necessidade de uma possível intervenção divina em
nossas ações, mas realça nossa responsabilidade enquanto agentes transformadores
responsáveis pelos acontecimentos da e na história, isso significa tanto bênção quanto
maldição. Embora não possamos experimentar o passado de forma direta, tal como um
experimento em laboratório ou em uma viagem no tempo, há uma consciência (é o que se
supõe) do nosso papel enquanto agentes transformadores da história. Isso é maturidade
histórica. 58A visada de Gaddis está em perceber que o historiador precisará ter a habilidade
de não se perder entre ser dominado diante da imensidão da paisagem, ao mesmo tempo
que sabe, ou tem consciência, de que seu promontório lhe fornece um privilegio único de
dominação exatamente pela distância em que observa seu objeto, o passado.
Esteou sugerindo, portanto, que como a consciência histórica requer um
distanciamento – ou, se preferir, um ato de colocar-se em plano superior
– da paisagem que é o passado, então, também requer um certo
deslocamento: uma habilidade para mover-se para trás e para frente
entre humildade e dominação.59
Talvez por isso ele acabe por se deixar seduzir com Maquiavel, quando esse
argumenta em seu prefácio de O Príncipe, dedicado a Lorenzo de Médici, que “para
reconhecer a natureza do povo precisa-se ser príncipe, e para conhecer bem os príncipes é
preciso ser do povo”60. Esse seria o esquema perfeito para a atuação do historiador diante
do passado, mesmo sabendo (supomos) que Maquiavel estava mais agindo enquanto
cortesão, situação essa que depois irá reconhecer como imprudente nos seus Discursos,
Gaddis faz uma apropriação (imprópria?), indevida ou não, mas consegue extrair dessa
passagem uma estratégia interessante para o oficio do historiador.
Por outro, se torna confusa e obscura a noção de Skinner no que diz respeito ao papel
do historiador quando afirma que o “trabalho do historiador consiste seguramente em
57
GADDIS, op. cit., p. 18.
Ibid., p. 20.
59
Ibid., p. 21.
60
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Ediouro, 2002, p. 111. (Clássicos Ilustrados).
58
24
servir como um anjo que registra e não como um juiz que condena.” 61 Nem uma coisa nem
outra. Atribuir racionalidade ao objeto histórico significa fazê-lo passar por uma constante
transformação, um processo de criação incessante e essencialmente indeterminado, pois
essa mesma racionalidade também é uma invenção social a qual estamos constantemente
aprendendo a crer.62 Essa ignorância (e aqui tememos por divergir nesse ponto de
Ranciére)63 é parte da condição humana, no sentido de ignorar que pensamos o que nossa
época nos permite. O que se chama, por exemplo, de “individualidade criadora’ constitui a
expressão do núcleo central sólido e durável da orientação social do indivíduo.”64 São
nossas misérias presentes e predileções pessoais, portanto, que nos movem em busca de
compreender o passado é “uma vontade de verdade”, e o próprio Skinner já havia
insinuado algo do seu interesse ao expor seu método contextualista que seria, segundo ele,
“lançar luz sobre algumas das conexões entre a teoria e a prática política.”65 Desestabilizar
o passado significa deixá-lo nos surpreender, mas também significa reconhecer que esse
mesmo passado também é um fragmento de nós mesmos.66
Assim, ao ter em mãos a documentação necessária para avaliar o passado em
questão, o historiador terá que abrir mão de uma possível e ingênua segurança de que se
seria possível construir uma imagem realista deste e demonstrar como as coisas
“efetivamente aconteceram”. Necessário se faz perceber que esse passado “é bastante
singular: já passou e, no entanto ainda está presente. O que aconteceu está naturalmente
acontecido, mas ainda assim não nos damos por satisfeitos. Incessantemente, pomo-nos a
rememorar o passado, a interpretá-lo e reinterpretá-lo.”67
Ao mergulhar na pesquisa histórica no caso, por exemplo, da história das ideias e em
especial Maquiavel, se faz necessário, sim, buscar compreender “a matriz mais ampla,
social e intelectual, de que nasceram suas obras.”68 Mas aqui cabe-nos ainda reconhecer
61
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 111.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginaria da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982, p.
13.
63
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon
(org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011, p. 39.
64
BAKHTN, Mikhail (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009, p.
125.
65
SKINNER, 2003, op. cit., p. 11.
66
RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história. In: SALOMON,
Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011, p. 269.
67
Ibid., p. 259.
68
SKINNER, 2003, op. cit., p. 10.
62
25
que ao invocarmos o passado em discurso elaborado por ferramentas conceituais do
arcabouço teórico do historiador, o que será extraído será uma verossimilhança. 69
Nesse sentido, as intenções e paixões ou as “verdadeiras intenções” de Maquiavel
não irão passar de uma elaboração discursiva, e, portanto, uma invenção, se Foucault tiver
razão em seus ataques.70 O método de Skinner é válido no sentido de nos fornecer uma
outra alternativa para a investigação em História das ideias políticas. Mesmo assim, vale
lembrar, “como orgulhosamente nos lembra a inscrição sobre o túmulo de Maquiavel,
‘nenhum epitáfio pode igualar-se a tão grande nome”71.
Daí a importância desse esforço de investigação, esse exercício intelectual que
busca penetrar nesse mundo de ideias, de palavras e gestos em busca de indicações, para
olharmos por dentro das determinações em que Maquiavel (nosso exemplo) viveu, atrás de
insinuações que possam de alguma forma concretizar nossas formulações sobre esse
pensador (ou outro).
Esse método de análise da história intelectual, por outro lado, nos leva forçosamente
a reconhecer que a obra de um autor não terá seu fim quando de sua morte, mesmo porque
esta irá agir como ondas geradas por uma pedra atirada ao lago, um efeito ondulatório que
não poderá ser previsto e controlado pelo autor, não há uma previsão acertada, mas o
improvável. Compreender o que Maquiavel “estava fazendo” no momento da composição
de sua obra inclui, portanto, “ver” que esse fazer se trata de um suscitar em seus
contemporâneos e nas gerações futuras respostas que não foram previstas, atos de falas
gerados em contextos dos mais variados. O procedimento de Skinner define, nesse sentido,
além da interação entre as palavras, e a própria língua do autor em questão, um momento
imprevisto e aberto no tempo.72
As ações de um autor poderão dessa forma não ter um termo. Então, Maquiavel irá
sempre dizer algo a mais por entre as lentes de outros autores e leitores. São nossas
interpretações enquanto historiadores e não Maquiavel quem dirá sobre ele mesmo. Nesse
caso, temos um problema, a interpretação. E isso em função de que não podemos falar das
69
Apud CHARTIER, Roger. A história ou leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p.15.
Referimo-nos aqui às investidas de Foucault em uma de suas conferências a respeito de “A verdade e as
formas jurídicas.” A esse respeito é sugestiva sua afirmação de que “O conhecimento foi, portanto,
inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por
mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana.”
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1996, p. 16. Conhecer
implica penetrar, por assim dizer, algo externo ao homem, inserir-se em um outro estranho e distante.
Significa ter domínio sobre o palpável, ter controle sobre o incontrolável, “a natureza humana”.
71
SKINNER, 1988, op. cit., p. 134. O grifo na citação é nosso.
72
POCOCK, op. cit., p. 30.
70
26
ideias de Maquiavel utilizando os mesmos códigos de linguagem por ele utilizados. Nesse
caso, corremos o risco de falar algo das ideias desse autor que não tenha sido dito, ou
mesmo pensado por ele. Pocock irá insistir nessa argumentação ao analisar que “o
problema da interpretação vem novamente à tona de forma mais urgente, quando temos em
vista que o historiador estuda linguagens para poder lê-las, mas não para falar ou escrever
nelas.”73
É satisfatória a noção de Bakhtin74 sobre a interação entre linguagem e sociedade
para essa investigação, quando é percebido que na tarefa pretendida pelo historiador das
ideias e seus mais variados signos é necessário e parte fundamental do esforço “aprender a
ler e reconhecer os diversos idiomas do discurso político na forma pela qual se encontrava
disponível na cultura e na época em que o historiador está estudando.”75
Assim como não devemos “pensar num texto isolado das circunstâncias em que
surgiu”76, não podemos ignorar que compreender esse contexto é também mapear os
signos componentes da linguagem, a dinâmica do processo de constituição dos conceitos
utilizados por Maquiavel e a composição do seu discurso. Nessa direção se torna possível
perceber os efeitos da linguagem da e na própria estrutura social. O analista do discurso
político deve levar em consideração que o sentido das palavras se dá em determinado
contexto onde a própria linguagem é constituída adquirindo um caráter heterogêneo (para
utilizar um conceito elaborado pela filosofia da linguagem). Essa definição nos permite
notar que o contexto em que se insere o discurso determina o próprio sentido das palavras.
O que leva também a noção de interdiscurso, que para Orlandi, seria a presença da
memória do discurso sustentando as possibilidades do que pode ser dito pelo sujeito,
Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que
torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o
já-dito que está na base do dizível, sustentando cada palavra. O
interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa em uma situação discursiva dada 77.
73
POCOCK, op. cit., p. 30.
Bakhtin sugere, em sua análise dos signos da linguagem e seu processo de constituição, que “o signo e a
situação social estão indissoluvelmente ligados”, semelhantemente não é possível compreender as
formulações discursivas e a concretização das palavras e seus signos sem incluir essas “no contexto histórico
real de sua realização primitiva.” BAKHTN, 2009, op. cit., pp. 16, 107.
75
POCOCK, op. cit., p. 33, (o grifo é nosso).
76
SKINNER, Quentin. Entrevista. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. G. As muitas faces da história.
São Paulo: Editora da Unesp, 2000, p. 310.
77
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes
Editores, 2013, p. 31.
74
27
O percurso que tentamos desenvolver busca nessa direção de um contexto radical
(contexto social e cultural, biografia, e análise do discurso) tentar entender o
desenvolvimento do conceito de República em Maquiavel em relação ao ideário de sua
época. A fragmentada Itália, lugar de desconforto político, a bela Florença que mesmo no
auge de sua cultura letrada não esconde suas feridas pelas constantes intrigas entre as
facções políticas que fervilham no seu meio em gritante contradição com a simetria e
beleza de seus prédios e praças. Ali viveu Savonarola, um beato profeta que também se diz
político, ele também que contrasta-se à irreverência de um Maquiavel que nada possui de
semelhante ao Maquiavel, pós-Maquiavel da literatura elizabetana, dos críticos
maquiavélicos. Homem amargurado, herói nacional, burlesco em seus amores ou teórico
moderno ou quem sabe um homem múltiplo? Não sabemos além do que permite nossa
pálida opinião.
28
1
MAQUIAVEL E A ITÁLIA RENASCENTISTA: o sujeito, a educação e a política
1.1 A fragmentada Itália do Renascimento
A Itália no tempo em que nasceu o autor d’Príncipe era, nas palavras de
Larivaille, “um mosaico de Estados de dimensões territoriais e regimes políticos, estágios
de desenvolvimento econômico, até culturas muito variáveis.” 78 As divisões pareciam
atingir todos os setores79 da vida na península, dando a impressão de uma nau à deriva,
“sem piloto” como cantou Dante que “imperial outrora, lupanar agora!” 80, e de uma
anarquia persistente e nefasta.81 Tratava-se de uma estrutura política visivelmente delicada
em função de sua fragmentação e semelhante a um mosaico quebradiço. Aos vários reinos
e cidades independentes que compõem esse cenário deve-se acrescentar a presença nada
ignorável da Igreja82 e suas pretensões universalistas. Com efeito, é para essa realidade
concreta que Maquiavel acena83, como afirma Manieri. Havia cinco organizações estatais
regionais vivendo em constantes conflitos dominando a vida política italiana, de acordo
com Larivaille:
O Reino de Nápoles, nas mãos dos aragoneses; os Estados Pontifícios; o
Estado florentino, há decênios sob o controle da família Medici; o
Ducado de Milão, e a República de Veneza. Em torno desses cinco
Estados gravitam alguns Estados menores, teoricamente independentes e
soberanos, mas, de fato, obrigados, para neutralizar as ambições e
sobreviver, a alinhar, de acordo com os seus interesses, sua política à de
um outro de seus poderosos vizinhos. 84
Juntam-se a essa composição os particularismos fomentadores de constantes
rivalidades, o que não deixa de fragilizar ainda mais a península, tornando-a presa fácil a
invasões estrangeiras; o próprio Maquiavel não deixou de presenciar os efeitos nefastos
78
LARIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel. São Paulo: Companhia das letras, 1988, p. 9.
(Coleção A vida cotidiana).
79
Cf. BRAUDEL, Fernand. O modelo italiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 39. (Coleção
história social da arte).
80
Cf. ALIGHIERI, Dante. A Divina comédia. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 135-136.
81
Cf. TOUCHARD, Jean. História das ideias políticas. Portugal: Publicações Europa-América, 2003, p. 21.
82
Cf. MANIERI, Dagmar. Teoria da História: a gênese dos conceitos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 63.
83
Ibid.
84
LARIVAILLE, op. cit., p. 9.
29
desse desequilíbrio político. Quando da morte de Lourenço, o Magnífico (1449-1492), os
efeitos desses conflitos se tornam ainda mais evidentes.85
Situarmo-nos nas mediações da Itália maquiaveliana, evidentemente, só é possível
de maneira aproximativa. Braudel, n’O modelo italiano, faz uma pergunta no mínimo
curiosa sobre esse momento que nos ajuda a pensar esse período tendo a cautela, no
entanto, de não incorrermos (mas como não?) no perigo grotesco e impuro do
anacronismo. Caso fóssemos um italiano desse período, diz ele, como veríamos o mundo,
como veríamos a Itália? É claro que se trata de uma imaginação cuja finalidade é apenas
didática de maneira a facilitar nosso acesso, ele mesmo esclarece-nos. De fato, dizer Itália,
como nos adverte o autor, e com mais razão o homem da Itália, cujas singularidades não
podemos alcançar, se tornam por demais perigoso.86 Mas podemos ainda insistir nesta
questão, mas em outra direção dada à gritante disparidade político-cultural da Itália nesse
momento.
Não é possível concebermos o mundo desse período com precisão, se há precisão,
no entanto, ela é apenas ilusória. Não é possível ver as entranhas desse espaço onde viveu
o autor dos Discursos e muito menos ainda olhar com os olhos desse pensador italiano as
intrigas políticas e as disparidades tanto geográficas quanto políticas desse período.
Deveras os italianos dessa ocasião possuem consciência de sua relativa diferença dos
outros povos da Europa, mas eles mesmos dividem-se em diferentes formas de governo
muitas dessas antagônicas entre si; havia várias Itálias.87 Inútil é procurar nesse momento
uma consciência nacional italiana, algo que pudéssemos chamar de italianidade, ou “um
sentimento nacional italiano” 88, como quer nos fazer crer Bernard Guenée. Mesmo com as
incursões estrangeiras, durante alguns séculos, não era possível observar uma mobilização
através de alianças com o fim de resistir a essas invasões, o que insinua, se seguirmos a
orientação de Larivaille, que havia “claramente a ausência de uma consciência política
nacional”. 89
Ainda assim era possível perceber vozes “isoladas” que apelavam para uma aliança
contra os invasores, mas não é possível saber ao certo se de fato se tratava de ecos de
ideias amplamente difundidas ou apenas frutos de uma cultura particular.90 Mesmo o papa
85
LARIVAILLE, op. cit., p. 9.
BRAUDEL, op. cit., p. 31.
87
Cf. Ibid., p. 31.
88
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira, 1981, p. 59.
89
LARIVAILLE, op. cit., p. 10.
90
Ibid.
86
30
Júlio II (1443), cujo pontificado marcou os anos de 1503 a 1513, e a quem se atribui a
furiosa sentença, “fora da Itália os bárbaros”, não demorou em fazer compromissos com os
invasores que ele mesmo deveria expulsar. Quando Maquiavel escreveu seus Discursos
dirigindo-se àqueles que acreditavam “que a felicidade da Itália depende da Igreja de
Roma”91 é em Júlio II que ele pensa, e contra o quadro degradante e frágil da Itália, com
amargo pesar comparava o vigor da França e Espanha com a pequenez política da Itália. E
dirá:
Jamais país algum viveu unido e próspero se não foi submetido
inteiramente, como a França e a Espanha, a um só governo: república ou
monarquia. E se a Itália não chegou a isso e não se encontra igualmente
unida sob a autoridade de uma só república ou de um só príncipe, a única
responsabilidade é a Igreja. Ela conseguiu instalar-se na península e aí
deteve um poder temporal. Mas, por um lado, ela não foi nem bastante
poderosa nem bastante hábil para impor sua supremacia e assegurar-se da
soberania; e, por outro, nunca foi tão fraca a ponto de que o temor de
perder o seu domínio temporal a dissuadisse de chamar uma potência
[estrangeira] em seu socorro contra um outro Estado italiano, que se
tornara, na sua opinião, poderoso demais. Isso é atestado por numerosos
exemplos: assim, no passado, a Igreja apelou para Carlos Magno, a fim
de expulsar os lombardos, que já eram senhores de quase toda a Itália;
assim, nos nossos dias, ela abateu o poderio veneziano com a ajuda dos
franceses, antes de expulsar estes últimos da península com a ajuda dos
suíços. De maneira que, não tendo sido jamais bastante poderosa para
tomar conta da Itália, mas tendo-se oposto sempre a que um outro se
apossasse dela, a Igreja foi responsável por este país jamais se encontrar
unido sob a autoridade de um só chefe, tendo permanecido dividido entre
um grande número de príncipes e senhores. Daí essa profunda desunião e
essa extrema fraqueza que transformaram a Itália na presa não somente
das grandes potências bárbaras, mas de quem quer que se aventurasse a
invadi-la.92
A ausência de unidade política na Itália renascentista, além de favorecer os
particularismos, agravavam ainda mais as já permanentes divisões existentes, impedindo
que a Itália construísse uma política sólida em nível nacional93, mas esse não foi um
problema apenas do século de Maquiavel. Daí a dificuldade de alguns historiadores em
localizar o que poderíamos chamar de uma vida política italiana, ou algo próximo à ideia
de italianidade conforme sugerimos acima.
Se levarmos a sério essa “ausência” ideológica, que se tornou vital para a formação
das monarquias nacionais, como pensar o episódio de Maquiavel ou Guicciardini, Petrarca
91
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 62.
Apud LARIVAILLE, op. cit., p. 11.
93
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 143.
92
31
e Dante antes destes, que de longe foram intelectuais de vigor não comparável, e o
aparente sentimento patriótico manifestado por esses intelectuais e mesmo para já nos
adiantarmos, o próprio movimento dos escolásticos e pré-humanistas? De fato, Larivaille,
sobre os dois primeiros, responde que tanto um quanto o outro foram intelectuais fora do
comum, resultado de uma possível anomalia, um desnível social, por assim dizer, não
podendo ser avaliados como exemplares dos anseios da maioria. 94 Avaliar esses autores
dessa maneira é, por outro lado, por demais temerário.
Quando Maquiavel, por exemplo, no capítulo final de sua obra mais conhecida, O
Príncipe, se dirige à casa dos Médicis para que libertem a Itália da sujeição dos bárbaros é
em Petrarca que ele busca inspiração para seu clamor, “a bravura pegará em armas contra o
furor, e o combate será curto, porque o antigo valor no coração dos italianos não está
morto”95, afirmava. Ele praticamente reproduz Salutati, que, quando da guerra dos Oito
Santos, também adverte os italianos a buscarem reviver esse “antigo vigor do sangue
itálico”.96 O que acontece, no entanto, é que ambos, possivelmente, beberam na mesma
fonte. O que nos leva a crer que O Príncipe pode não representar apenas um interesse
movido por uma cultura particular mítica, resultado de um desenvolvimento individual
contingente desvinculado de sua realidade mais imediata e concreta, principalmente
quando levado em conta que o indivíduo não deixa de ser um íntimo das ideias que
circulam no lugar de onde observa sua realidade social correspondente. Isso explicaria a
ingerência polifônica presente na obra desse autor.
Temos razões para acreditar que todo o pensamento é o resultado de um pensar
possível. Da mesma maneira que Febvre compreendeu, em seu estudo sobre O problema
da incredulidade no século XVI, que Rabelais não podia ser um ateu nesse período, não
seria possível também imaginar que Maquiavel pudesse desenvolver um pensar
desvinculado de sua realidade histórica imediata. Precisamente por não possuir o aparato
mental para tanto, e por uma questão imperativa mesmo. Em outras palavras, “Maquiavel
foi tal qual a Itália” 97 como nos desilude Ridolfi.
É verdade que mesmo depois de 500 anos não encontramos dificuldades em
reconhecer os trabalhos de autores do porte de um Maquiavel, Rabelais (1494-1553) ou de
94
LARIVAILLE, op. cit., p. 12.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 274.
96
Apud GARIN, Eugenio. Ciência e vida civil no Renascimento italiano. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1996, p. 27.
97
RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel. São Paulo: Musa Editora, 2003, p. 29.
95
32
um Alessandro di Mariano Filipepi mais conhecido como Botticelli (1444-1510)98 e da
Vinci (1442-1519), de maneira que somos tentados a reconhecer nesses uma viva
representação do individualismo renascentista. Mas tal reconhecimento não implica que
estes autores fossem algo próximo a um autógeno e/ou a-ideológicos, e, portanto livres
para produzir o que bem entendessem e que seu pensar não fossem entrelaçados pelas
necessidades e possibilidades de sua época. Burke, tomando como ponto de partida a arte
renascentista, nos orienta que “diferentemente do que fazem os artistas contemporâneos –
cuja liberdade é muitas vezes exagerada - os do Renascimento em geral faziam mais ou
menos o que lhes era ordenado. Os limites a eles impostos são parte de sua história.” 99
E não é verdade que Maquiavel escreveu sua História de Florença provavelmente
sob encomenda de Clemente VII, o que não deixou de afetar seu estilo mais direto e
lacônico, presente no príncipe, por exemplo? Antes deste, Dante, não se esquecendo de
seus inimigos, povoou o Inferno com estes, em seu mais conhecido trabalho, A Divina
comedia, com isso nos fornecendo um quadro fértil da política de seu tempo. E sobre a
explosão de tiranos na Itália do século XIII tinha razão ao dizer, e mesmo ali no
Purgatório - mesmo que sua linguagem pareça tendenciosa, como espreita Skinner -, “que
por essa época ‘todas as cidades da Itália’ estavam ‘repletas de tiranos”.100 Também não é
sem razão que a Divina Comedia veio a ser considerada “um compêndio rigidamente
estruturado, sobre a civilização medieval, uma suma poética da Idade Média (tendo como
fonte doutrinária as sumas teológicas e filosóficas de São Tomás de Aquino e como fonte
estética a Eneida virgiliana)”.101 O escandir social de Dante, logo, é também o medir de um
Maquiavel ou Hobbes, cujos pés permanecem pesados e presos, incapazes de transcender
além desse lugar mental cujo promontório particular se encontra rígida e ideologicamente
estabelecido.
O que havia, portanto, ao que tudo indica, era uma correlação de ideias fornecidas
pela sociedade italiana que se estendia até esses indivíduos, que, por sua vez, aprovisionouos com os elementos necessários para a formação de suas consciências, tornando-os um
microcosmo de uma realidade maior já consolidada. O que nos leva a pensar que a própria
consciência desenvolve sua alteridade num processo de influência mútua. Observar esses
98
DELUMEAU, op. cit., p. 423.
BURKE, Peter. O Renascimento Italiano: Cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, 2010,
p. 11.
100
SKINNER, 2003, op. cit., p. 47.
101
ALIGHIERI, op. cit., p. 8.
99
33
autores da Renascença é observar o todo. Mas isso só não explica muito, para compreendêlos é preciso analisar os modos de sua relação com o seu macro sistema de ideias.
Pensaremos, então, à maneira de Bakhtin, que “a consciência individual não só nada pode
explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e
social.”102
Esse intercâmbio nos permite pensar hoje, de maneira mais desconfiada, nas
alegações sobre a formação do individualismo e o desenvolvimento de grandes
personalidades na Itália da Renascença, encarando-os como “o primogênito dentre os
filhos da Europa.”103 No caso de Maquiavel, pode ter sido a pulverização de um povo e/ou
a fantasia coletiva de uma organização política não presente na realidade maquiaveliana
que tenha estimulado e dado as características de sua reflexão e seu desejo mais intrínseco
figurado no príncipe ideal104, conforme pensou Gramsci. Mas a polêmica análise de P.
Herde, em torno do tema da liberdade entre os humanistas adverte sobre o perigo de
acreditarmos “cegamente nas tiradas dos humanistas”, advertência que nos serve também
em relação a nosso autor. Ele entra num campo já bastante saturado de polêmicas, desde
os estudos de Baron e Kristeller sobre o humanismo cívico, e nos fornece um importante
dado sobre como eles [os humanistas] estavam mais ou menos comprometidos com o jogo
político de seus “patrões”. Querendo dizer com isso que (e isso nos lembra a polêmica
dedicatória do Príncipe de Maquiavel) “eles glorificam o tirano quando este lhes paga, e
enaltecem a liberdade quando estão a serviço da República”.105 Se Herde estiver certo, a
semelhança com a economia política dessa Itália não deve ser encarada como mera
coincidência.
Se por um lado não havia unidade política, por outro os italianos compartilhavam
um sentimento, embora ingênuo, de um viver típico italiano, como acreditava
Guicciardini106, que se nutria e era partilhado pela certeza de possuírem o legado de uma
história comum, de serem herdeiros de uma civilização e cultura muito particular.107 Mas
generalizar essa questão nos parece ainda e também arriscado, principalmente quando
calculado que uma expressiva parte da população da Itália renascentista ainda vivia
102
BAKHTN, 2009, op. cit., pp. 34-35.
BURCKHARDT, Jacob Chirstoph. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p.145.
104
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 3: Maquiavel notas sobre o Estado e a política. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, pp. 13-14.
105
GUENÉE, op. cit., pp. 265-266.
106
LARIVAILLE, op. cit., p. 12.
107
Ibid., pp. 12-13.
103
34
principalmente do trabalho com a terra, onde em sua maioria eram analfabetos,
dependendo de reproduções animadas do poder.108 Esses camponeses, segundo um estudo
de Burke, viviam em extremada pobreza e é indigesto confiar que tenham sido atingidos
pelo que conhecemos hoje como Renascimento109, e tenham compartilhado com as
discussões dos humanistas sobre cultura clássica e política. Embora a historiografia
contemporânea tenha aprendido a falar sobre intercâmbio cultural110, ou circularidade
cultural111 isso não significa que de alguma forma essas sociedades estudadas venham em
algum momento adquirir caráter homogêneo, mas, pelo contrário, isso só demonstra o
caráter plurativo e heterogêneo dessas sociedades, pois essas trocas nem sempre se dão de
maneira pacífica. De fato, Carr alerta sobre essa questão, e afirma: “nenhuma sociedade é
completamente homogênia. Toda sociedade é uma arena de conflitos sociais”112 se há uma
regra, essa seria uma. Assim,
Se o humanismo e a admirável civilização do Renascimento não tocaram
muito nas camadas subalternas das cidades, fica claro que a classe
camponesa foi decididamente excluída dela: tão excluída e, aliás,
explorada e pauperizada, que nós podemos nos perguntar se não foi ela,
mais do que qualquer outra, que arcou com as despesas.113
Nesse sentido, a ideia de pluralidade de sentimentos nos parece mais adequada
para descrever esse período na Itália. Se o sentimento de italianidade era presente,
restringia-se apenas a algumas mentes privilegiadas cujo contato com textos clássicos teria
favorecido a ilusão de uma superioridade cultural, de um sentimento pátrio recriado à
maneira de Cicero, apropriado e reiterado por Petrarca, considerado não só como “o
primeiro humanista”, mas também “o primeiro dos modernos”.114
A essa altura, seria mais coerente imaginar, conservando o devido cuidado, que
tanto Maquiavel quanto Guicciardini estivessem, também, apenas reproduzindo uma antiga
tradição literária que vinha de Dante a Petrarca. O fato é que, embora esses pensadores da
Renascença, assim como Bartolo de Saxoferrato (1314-1357) e outros tenham se
apropriado de textos clássicos e de autores humanistas para pensar a liberdade republicana
e dar visibilidade a um suposto sentimento de italianidade, não nos permite questionar sua
108
BURKE, 2010, op. cit., p. 10.
Ibid., pp. 9-10.
110
Ibid., p. 18.
111
A esse respeito ver GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
112
CARR, Edward Hallet. Que é história? São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 87.
113
LARIVAILLE, op. cit., p. 213.
114
HEISE, Pedro. Introdução. In: PETRARCA, Francesco. Triunfos. São Paulo: Hedra, 2006, p. 13.
109
35
seriedade argumentativa e sentimento patriótico, muito pelo contrário. É verdade que
Burckhardt alega que “os apelos realmente sérios, profundamente dolorosos ao sentimento
nacional só se deixam ouvir novamente no século XVI.”115 Mas essa sugestão ignora toda
uma tradição humanista que veementemente argumentou tanto sobre a ideia de liberdade
republicana quanto apelava em direção a um forte sentimento pátrio na Itália, cujos
alicerces podem ser sentidos ainda no medievo. Ora, mesmo entre publicistas medievais já
era possível encontrar o tema da devoção à pátria, assunto esse que Petrarca ofereceu uma
nova aparência, desvencilhando-o de sua associação com a Igreja e apelando para um
interesse maior com a práxis humana nesse mundo.116
O historiador Peter Burke alerta que em princípios do século XV não era possível
falar em unidade cultural ou social na península, e que embora o conceito de Itália fosse
existente limitava-se apenas a uma expressão geográfica. 117 Aparentemente era essa a
primeira consciência de unidade entre os italianos, onde os Alpes eram “unanimemente
considerados a fronteira natural do país, que a despeito da fragmentação territorial, todos
concordam em chamar de Itália”118, afirma o historiador Lalivaille.
Distante dessa consciência geográfica dos limites naturais da Itália do
Renascimento, o que seguia, então, eram os movimentos oscilatórios de uma política
circunscrita apenas no nível das relações entre os Estados e não no interior da Itália de
maneira que pudéssemos chamar de uma vida política harmoniosa, propriamente
italiana. 119
Antes do término do Quattrocento as relações entre as distintas entidades
territoriais puderam se dilatar; isso, talvez, pela ausência de ingerência externa das
potências estrangeiras. Essa ausência de intervenção externa acabou de certa forma
promovendo o desenvolvimento do jogo diplomático entre os italianos.120 A Guerra dos
Cem Anos (1337-1453) havia por demais exaurido a França, e o Império Germânico ainda
não estava em condições de investir suas forças na construção do sonho de unidade
imperial. Por volta de 1454, havia sido assinada a Paz de Lodi em grande parte por
iniciativa de Cosmo de Médicis, manobra essa que garantiu certa estabilidade política e
econômica tanto para Florença quanto para a casa dos Médicis. Mas nem tanto; Martines
115
BURCKHARDT, op. cit., p. 144.
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991, p. 11.
117
BURKE, 2010, op. cit., p. 9.
118
LARIVAILLE, op. cit., p. 13.
119
Ibid., p. 15.
120
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 40.
116
36
alerta que em Florença, em se tratando de política, as facções eram mais ou menos
endêmicas.121 Gaille-Nikodimov assegura que a Paz de Lodi garantiu um período de
relativa estabilidade política entre os principais agentes políticos da Itália (Veneza, Milão,
Florença, o papado e Nápoles). O objetivo primeiro, e aparente, foi impedir que cada um
desses agentes pudessem adquirir poder em demasia por sobre o outro.122 Em sua História
da Itália, Guicciardini lamenta ao afirmar que nesse período,
Movido pelas rivalidades e pela inveja, cada um não deixava de observar
atentamente os movimentos do outro, minando mutuamente todos os
desígnios que teriam permitido a um deles aumentar o poder ou a
reputação, o que não tornava a paz menos estável, mas, pelo contrario,
despertava em cada um deles a pronta vontade de extinguir
diligentemente todas as labaredas que pudessem originar um novo
incêndio.123
Isso não significa que os conflitos estivessem ausentes, e ao longo dos séculos XIV
e XV a Itália continuou a presenciá-los; Florença, por exemplo, estava em guerra contra
Nápoles (1472-1474), Ferrara também submergiu em conflito contra Veneza entre os anos
de 1482 e 1484.124 A Paz de Lodi se configura, deste modo, como uma estranha paz, cuja
estabilidade só é “conservada, ao preço de tratativas diplomáticas e arbitragens.” 125 Mas é
em grande medida dessa estranheza que algumas sociedades estabelecidas acabam tirando
vantagem, essa Itália não é uma Itália feliz. O vigor do seu desenvolvimento cultural, que a
primeira vista pode denotar a ausência de contradições, escode feridas ainda não
cicatrizadas.126
A Renascença italiana, conforme explica o historiador Lauro Martines, “não
desconhecia a violência política, sobretudo visto que raiva explosiva e tumultos contra a
autoridade podem ser consequência das energias vitais ou do estado de alerta de um
povo.”127 As rivalidades e invejas conduziam à instabilidade da paz que a todo momento
era ameaçada. Cosmo de Medici, aparentemente consciente desse estado de violência, por
exemplo, e sendo ele mesmo um pragmático conhecedor da trama política italiana,
procurava por meio de suas manobras políticas extinguir qualquer empecilho capaz de
121
MARTINES, Lauro. Abril Sangrento: Florença e o complô contra os Médici. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2003, p. 61.
122
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 40-41.
123
Apud GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 41.
124
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 41-42.
125
BRAUDEL, op. cit., p. 64.
126
Ibid., p. 60.
127
MARTINES, 2003, op. cit., p. 20.
37
prejudicar seu domínio pessoal. Essa política interna não era um privilégio dos Médicis
somente, mas fazia parte da estratégia de boa parte das famílias aristocráticas que
dominavam o cenário político italiano. É provavelmente nesse momento “que alguns
escritores humanistas precedem Maquiavel na via do realismo político, reconhecendo que
os príncipes seguem antes de tudo os seus próprios interesses.” 128 Embora os conflitos
continuassem uma constante, Gaille-Nikodimov acredita que o período posterior à Paz de
Lodi também foi fundamental para a consolidação dos estados regionais.129
No geral há pouca concordância entre os historiadores sobre as causas mais densas
das divisões políticas da Itália renascentista. E as construções historiográficas sobre o
período vivido por Maquiavel ainda estão, aparentemente, longe de chegarem a um ajuste.
Mas esse quadro de divisões não se aplica à Itália somente, pois se o território italiano era
“um mosaico” de corpos políticos distintos, como afirmou Larivaille, isso também é
presumível em relação ao restante da Europa em princípios do século XV.130 A própria Paz
de Lodi, de certa forma, prefigura desde esse momento o equilíbrio europeu vivido por
volta dos séculos XVII a XIX, sugere Delumeau,131 que na verdade, conforme, Braudel,
pode ser aceito mais como uma retomada ou extensão do que foi a Paz de Lodi.132
Alguns historiadores, não obstante, concordam que foi a partir da Itália dos séculos
anteriores ao XV e XVI que surgiu a “Civilização do Renascimento” cujos contornos se
espalharam por toda a Europa.133 Perry Anderson confirma que “muitas das técnicas
essenciais, tanto administrativas como políticas, foram criadas pela primeira vez na
Itália.”134 Braudel também já havia insinuado algo nessa direção, assegurando que a Itália
no início do “século XIV, embora ainda confundida na massa dos personagens da Europa
já diversificada, desprende-se, toma a dianteira, e afirma sua superioridade.”135 E sobre a
“noção de equilíbrio necessário entre potências políticas”, é a Itália que toma a dianteira,
conforme nos legou Lucien Febvre, que não ignora a importância desta e seu movimento
de vanguarda para a Europa, reconhecendo-a como “sutil”, mas também habilidosa e
depurada:
128
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 41. O itálico é nosso.
Ibid., p. 42.
130
TOUCHARD, op. cit., p. 14.
131
DELUMEAU, op. cit., p. 23.
132
BRAUDEL, op. cit., p. 31.
133
TOUCHARD, op. cit., p. 13.
134
ANDERSON, op. cit., p. 143.
135
BRAUDEL, op. cit., p. 40.
129
38
Foi o gênio italiano que elaborou (...). Na Itália do século 15, cinco
Estados se defrontavam: Milão, Veneza, também Florença, a Santa-Sé e
Nápoles se olhavam, se vigiavam. E [dessa] reflexão nasce a noção de um
equilíbrio necessário. Ela nasce nessa Itália sutil, engenhosa, refinada,
prodigiosamente à frente de todos os outros países, rica de uma
civilização que é produto da mestiçagem fecunda e que deve a
fecundidade original de seus aspectos a seus contatos múltiplos com o
Oriente muçulmano mais helenizado, com Bizâncio de ares asiáticos mas
sempre de fundo helênico. Sim, a noção de equilíbrio político nasce na
Itália. Guichardin está lá para redigir o ato de nascimento desse, no limiar
de sua história. Maquiavel está lá para formular sua teoria.136
O historiador suíço Jacob Burckhardt se arriscou ainda mais além nessa senda, ao
afirmar que a Itália desse momento seria “a mãe” de toda nossa civilização.137
Isso é um tanto curioso e nos leva a pensar, como o próprio Anderson já havia
questionado, por que razão então a própria Itália nunca edificou o seu absolutismo
nacional?138 O que sabemos é que a Itália estava longe de se tornar unificada conservando
parte dessa característica até a campanha de Napoleão Bonaparte em 1796139. A esse
respeito, a reflexão de Maquiavel sobre os danos da Igreja Católica no território italiano
não nos ajuda muito na solução do problema da fragmentação desse território, mas pode
nos servir como ponto de partida.
Se por um lado é verdade que o papado combateu contra as várias tentativas de
unificação territorial da península, também é verdade que, por outro lado, ele foi
notoriamente frágil durante vários e longos períodos140, o que dificulta aceitarmos a
assertiva de Maquiavel sobre a responsabilidade política da Igreja pelo esfacelamento da
península, e sua não unificação141, como sugere nos Discursos e posteriormente em sua
História de Florença, reforçando que os conflitos na Itália tinham como causa direta a
intervenção da Igreja e que “todos os bárbaros que a invadiram foram, no mais das vezes,
chamados por eles [os pontífices]. E tal modo de proceder perdura até nossos dias, o que
manteve e mantém a Itália desunida e enferma.”142 Mas há ainda outros fatores que
precisam ser levados em consideração.
O papado e o Império durante muito tempo haviam coberto o Ocidente com a
ilusória crença de unidade, vista apenas de longe pelos míopes. O Império, por exemplo,
136
FEBVRE, Lucien. A Europa: gênese de uma civilização. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 192.
BURCKHARDT, op. cit., p. 36.
138
ANDERSON, op. cit., p. 143.
139
DELUMEAU, op. cit., p. 23.
140
ANDERSON, op. cit., p. 143.
141
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 62.
142
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 28.
137
39
durante os séculos X e XIII não passou de uma ficção, uma idealização, como afirma
Franco Junior, “pois na prática ocorria uma profunda fragmentação política substantivada
nos feudos, porém limitada pelos laços de vassalagem, que permitiriam às monarquias
recuperar aos poucos seus direitos.”143 A incapacidade desses poderes universalistas de
desenvolverem uma política de unificação sólida na Europa e na península itálica, nosso
caso em particular, resultara no fortalecimento de poderes mais localizados, e nos séculos
XIV e XVI há um acelerar no processo de revigoramento das monarquias. Mas as lutas
entre o papado e o império apesar de ter gerado um hiato que possibilitou a emergência de
várias monarquias, nem por isso se torna necessariamente uma regra, pois na Itália o que
vemos é um caminho contrário. A explicação para esse fenômeno deve estar em outro
lugar.
Na Itália em princípios do século XV, e provavelmente antes disso, as opiniões
acerca da dominação imperial provocavam violentas divisões entre alguns grupos
opositores. Entre estes, os guelfos, por exemplo, eram opositores declarados do imperador
e davam seu apoio ao papado. Já os gibelinos eram favoráveis ao Império. No entanto,
essas oposições não são de todo fortemente enraizadas, “pois os guelfos não recusam
radicalmente a instituição imperial, assim como os gibelinos não condenam totalmente as
liberdades comunais,” isso de acordo com o historiador Bernard Guenée.144 Ele também
assegura que, ainda no século XIV guelfos e gibelinos lentamente vão aproximando suas
expectativas em relação ao domínio imperial tornando-se mais preocupados agora em
preservar sua autonomia contra qualquer influência externa.145 É preciso ressaltar que essa
adesão é relativa e tão somente em relação à influência externa no território italiano, por
parte do Império, pois as aversões no meio de guelfos e gibelinos continuam uma
constate146, “para que a Itália na falta das invasões bárbaras, fosse dilacerada pelas guerras
intestinas”147, como lamentava Maquiavel.
Skinner aponta para o fato de que as pretensões imperiais sobre a Itália possuem
uma longa história, remontado ao tempo de Carlos Magno que ainda em princípios do
século IX havia estendido seu domínio desde a Alemanha ao norte da Itália. 148 O
historiador também menciona que,
143
FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 52.
GUENÉE, op. cit., p. 57.
145
Ibid.
146
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 21.
147
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., p. 36.
148
SKINNER, 2003, op. cit., p. 26.
144
40
No correr do século X, tais pretensões foram novamente asseveradas, e
com vigor, especialmente quando Oto I decretou a anexação do Regnum
Italicum a suas possessões germânicas. Ao ascender Frederico Barbarossa
ao trono imperial, em meados do século XII, os imperadores já tinham
assim duas razões especiais para insistir em que a condição legal do
Regnum do Norte da Itália era de mera província do Império. 149
Em princípios do século XIV a Itália presencia outras duas tentativas de dominação
imperial germânica. Henrique de Luxemburgo conduz a primeira tentativa em 1310, em
1311 cerca Brescia e esmaga as principais rebeliões de Cremona e Lodi. Mas o sucesso
inicial de sua conquista levou algumas cidades inimigas a unirem-se sob a liderança de
Florença que na Itália, desde longa data, havia sido uma das mais ferrenhas defensoras da
liberdade republicana, e no final de 1312 conseguiram repelir as forças imperiais. A
próxima tentativa de dominação imperial não resultou em maior sucesso. Em 1327 Luís da
Baviera, após insistir em seus direitos de dominação na Itália, não conseguiu manter sua
campanha devido seus parcos recursos, os florentinos logo perceberam que não poderia
financiar os seus projetos, e as cidades italianas com facilidade apenas esperaram os
eventos se desenrolarem e procuraram evitar um enfrentamento direto com as tropas
imperiais que não recebendo seu pagamento depressa se dispersaram. 150
Durante as lutas contra as investidas imperiais de construir uma monarquia
unificada na Itália, o papado proveu regularmente o que tinha de melhor, as excomunhões.
Já os fundos e as tropas eram aprovisionados pelas comunas.151 Foram em grande medida
graças à vitalidade das comunas da Toscana e da Lombardia e sua riqueza, como alega
Anderson, que a Itália conseguiu vencer as mais importantes ofensivas de edificação de
uma monarquia feudal integrada, capaz de prover o alicerce para um futuro absolutismo na
península.152 Ao estado pontifício faltavam tanto os recursos financeiros como militares
para conter as forças estrangeiras lhe restando apenas o aparelho imaginativo dos
anátemas. De fato, “financeiramente e militarmente o Estado pontifício, como principado
italiano, era uma unidade deficitária.” 153
A ampliação e fortalecimento de domínios mais localizados, como as comunas,
foram, em parte, resultantes de um vácuo gerado através das longas tensões entre a Igreja e
o Império. Esse espaço foi completado pelas associações burguesas. Franco Junior explica
149
SKINNER, 2003, op. cit., p. 26.
Ibid., p. 28.
151
ANDERSON, op. cit., p. 147.
152
Ibid., p. 142.
153
Ibid., p. 146.
150
41
que, a natureza das comunas mesmo em seu início já representava um tipo de
“conjuração”, uma oposição aos títulos “feudo-clericais”, um exercício social que buscava
quebrar as hierarquias de mando definindo-se como corpo independente.154 No entanto,
precisava-se ainda de uma base legal e ideológica que justificasse essa pretensão.
Esse arquétipo (o das comunas) se encontra, tanto na Itália quanto na Alemanha,
reservado em seus devidos particularismos regionais. Porém, ainda segundo Franco Junior,
é na Itália que encontramos seu protótipo mais agressivo e definido na forma da cidadeEstado.155 Isso se deve, possivelmente, ao fato de que tanto o universalismo da Igreja
quanto do Império não pretendiam anular as instituições comunais, mas englobá-las, e essa
é uma contradição típica e presente nessas duas instituições. É possível que em função
dessa política as comunas tenham obtido um ambiente favorável ao seu desenvolvimento
na Alemanha e Itália, o que igualmente cooperou para frustrar o desenvolvimento dos
estados nacionais nessas regiões. 156 O jogo politico desenvolvido por esses dois
desajeitados gigantes (a Igreja e o Império), que viviam tropeçando nos próprios pés, foi,
portanto, o que debilitou os alicerces territoriais e nacionais da Itália e da Alemanha:
Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas realidades
geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter colônias no Novo
Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos
XVIII-XIX, secularizadas na partilha da África e da Ásia do século XIX,
aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se
corporificar politicamente. Tal ocorreu em 1870-1871, mas como o atraso
relativo já existia aqueles novos Estados precisaram adotar uma política
agressiva, que esteve nas raízes das duas Grandes Guerras do século XX.
O fracasso do nacionalismo alemão e italiano na Idade Média foi fator
essencial para explicar sua virulência nas últimas décadas do século XIX
e primeiras do XX.157
Anderson insiste em atribuir o sucesso das comunas ao seu precoce
desenvolvimento em relação ao capital mercantil. É verdade que durante o Renascimento
as cidades do norte da Itália presenciaram um forte desenvolvimento econômico,
concentrando a maior parte “dos centros urbanos de produção comercial e
manufatureira.”158 Mas essa abordagem, só, não é suficiente para entendermos seu sucesso.
154
FRANCO JUNIOR, op. cit., p. 63.
Ibid.
156
Ibid., p. 66.
157
Ibid., p. 65.
158
ANDERSON, op. cit., p. 146.
155
42
Pois, como já citamos, a Igreja, bem como o autor também admite, e a frágil política do
papado no território italiano foi durante muito tempo ineficaz não conseguindo
Sequer estabelecer um controle sólido e confiável sobre a modesta região
colocada sob sua suserania nominal. As pequenas cidades situadas nas
colinas da Umbria e da Marca opuseram-se vigorosamente à intervenção
papal em seu governo, enquanto a própria cidade de Roma foi muitas
vezes desleal ou causava problemas.159
Persistimos então que o problema não estava somente na fraqueza econômica da
Igreja e/ou nas contradições do Império, mas no aparelho ideológico movido por ambos.
Era preciso um contraponto ideológico que favorecesse os interesses das comunas. E foi
justamente no alicerce da filosofia do Renascimento que a Itália encontrou esse
contraponto. De fato, o sucesso das cidades do norte em expulsar do seu território a Igreja
e o Império permitiu que estas desenvolvessem uma política e cultura muito particular,
fornecendo as bases para uma experiência histórica singular “a que os próprios homens
chamaram de ‘Renascimento.”160
É nesse momento que aparentemente é retomado um interesse maior em definir os
aspectos legais da liberdade republicana de forma a garantir a autonomia das cidades
italianas. A recuperação dos valores clássicos através da investigação em textos da
filosofia política forçou, de certa forma, os humanistas a adotarem uma atitude
diferenciada diante do passado clássico, considerando-o como uma totalidade
desvencilhada do presente, como resumiu Panofsky. 161 A aparente percepção de uma
intensa ruptura com o passado próximo combinou-se com a consciência (contraditória,
diga-se de passagem) de uma continuidade com o passado clássico distante. Skinner fala de
um novo senso de distanciamento, derivando daí “que a civilização da Roma antiga
começou a ser vista como uma cultura completamente distinta, merecendo – e mesmo
exigindo – ser reconstruída e apreciada, sempre que possível, em seus próprios termos.”162
Muitos dos humanistas do Renascimento estavam crentes de serem herdeiros da
civilização clássica e cientes de sua separação do passado próximo. Petrarca não demorou
em chamar esse passado próximo de “sono de esquecimento” e cuja escuridão deveria ser
dissipada para mais uma vez retornarem “à pura radiação do passado”, mas os italianos do
159
ANDERSON, op. cit., p. 146.
Ibid., p. 148.
161
Apud SKINNER, 2003, op. cit., pp. 106-107.
162
SKINNER, 2003, op. cit., p. 107.
160
43
Renascimento não perderam completamente seu apego e mesmo reverência pela tradição
medieval, da qual eram devedores, e em vários aspectos as reminiscências daquela época
se mostraram ainda e continuamente vivas. O que aconteceu, possivelmente, foi um
repúdio (não geral) pelas tradições mais recentes em nome de uma mais antiga, de maneira
a justificar as inovações dessa sociedade ainda mergulhada no tradicionalismo cristãomedieval. Burke explica que essa “admiração pela Antiguidade clássica [foi o que]
permitiu-lhes atacar a tradição medieval como se fosse ela própria um rompimento com a
tradição.”163
Essa contraversão de tempo foi o que permitiu a ilusão de que a Itália seria uma
verdadeira réplica da Antiguidade. Mas se há paralelos (e de fato há) é apenas para
denunciar suas raízes medievais. A consciência de uma ruptura com o medievo é uma
prerrogativa da Renascença que “descobre-se” enquanto fenômeno histórico único sem
precedentes. Certo é que não houve deveras uma ruptura entre o medievo e a antiguidade
clássica, sendo que uma sempre se viu como sucessora e um prolongamento da outra, “uma
extensão natural”, como diz Anderson.164 Daí que essa imitação do passado pelos italianos
só poderia existir como ideal a ser alcançado que não deixava de ser parte necessária desse
processo de construção imaginativa.165 É fundamental nesse ponto, e mesmo necessário
para nosso objetivo, concordar com Ernst Cassirer sobre as várias opiniões aceitas “acerca
de Maquiavel, no que respeita à sua obra e personalidade.” Isso falando sobre as
afirmações, como tambem aqui é dito, que este foi “um filho de sua época”. Para Cassirer,
e seu tom é de desconforto mesmo,
Esta afirmação não tem, contudo, nenhum valor enquanto não possuirmos
uma clara e inequívoca concepção da própria Renascença. E nesse ponto
a situação parece ser desesperadoramente confusa. O interesse pelos
estudos sobre a Renascença recrudesceu nas últimas décadas. Dispomos
agora de riquíssimo material, com fatos novos coligidos por historiadores
políticos e por historiadores de literatura, arte, filosofia, ciência e religião.
Mas no que diz respeito ao principal problema, o problema do “sentido”
da Renascença, parece que ainda continuamos no escuro. Nenhum
escritor moderno podia repetir a famosa fórmula pela Jakob Burckhardt
tentou descrever a civilização da Renascença. Por outro lado, todas essas
descrições dadas pelos críticos de Burckhardt são igualmente discutiveis.
Existem muitos estudiosos, e estudiosos de alta autoridade nas
respectivas especialidades, que decidiram cortar o nó górdio. Preveniramnos contra o uso do proprio termo “Renascença”. “Qual a utilidade de
163
BURKE, 2010, op. cit., pp. 26-27. O colchete é nosso.
ANDERSON, op. cit., p. 148.
165
Ibid., p. 149. Ver BURKE, 2008, op. cit., p. 59.
164
44
discutir a Renascença?, escreveu Lynn Thorndike numa recente polêmica
sobre o assunto. “Ninguém jamais provou a sua existência, ninguém
realmente tentou sequer prová-la”. 166
Além disso, também entendemos que o mais importante, aqui, é o interesse
crescente por firmar as bases legais que justificassem as liberdades republicanas
ameaçadas pelas forças “alienígenas” nesse momento. Não vamos, aqui, demonstrar o
desenvolvimento dessas ideias e a maneira como passaram a circular na Itália
renascentista, fortalecendo um ideário político já existente desde a Idade Média e que
agora são retomados com a utilização de “um novo caminho em direção aos autores
antigos”167, como acredita Garin, trataremos dessa questão com mais lentidão em outro
capítulo.
Em todo caso, ao que tudo indica, e já afirmamos algo nesse sentido, essa Itália se
despontou pioneira em vários campos do saber, isso graças aos seus humanistas, artistas,
homens de negócios, engenheiros e matemáticos, tornando-se, de certa forma, essencial no
que diz respeito ao desenvolvimento europeu.168 Entretanto, esse ainda é um problema
comum na historiografia temática, que vale ser considerado à luz de novos estudos, de
maneira
a
descentralizarmos,
tanto
geograficamente
como
temporalmente,
o
Renascimento.
Skinner, em seu estudo sobre As Fundações do Pensamento político Moderno, fala
de Origens da Renascença, termo complicado de se lidar, pois carregado da noção de
progresso linear, dá a impressão de que os pensadores do século XIII e XIV, por exemplo,
não passaram de uma voz que clamava no deserto aparelhando o caminho para as
“inovações” especulativas e técnicas visíveis nos séculos posteriores. Essa atitude não
deixa de ser injusta, pois leva-nos a tratar todas as transformações e inovações anteriores
ao século XV e XVI de certa forma como bárbaras.169 Mas justo e atraente, por outro lado,
seria, talvez, falarmos de várias renascenças170, já que, segundo René Frereux, “houve
outras”(?). Ou ainda, retomando os argumentos de Febvre sobre o espírito de observação
alegadamente surgido no século XVI, “ele não precisa renascer, reaparecer. Jamais
166
CASSIRER, op. cit., pp. 160-161.
GARIN, op. cit., p. 10.
168
DELUMEAU, op. cit., p. 10.
169
Ibid., p. 9.
170
FREREUX, René. Em torno da Renascença: do século XIV ao século XVI. In: JERPHAGNON, Lucien.
História das Grandes Filosofias. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 115.
167
45
desapareceu. Talvez tome apenas novas formas.”171 Embora o renascimento dê a impressão
de uma ruptura, ele não se afasta decisivamente da Idade Média 172. O que explica o fato de
Skinner, como outros historiadores, ter conseguido localizar, nessa sua busca pelas
origens, as várias tentativas das cidades-Estado italianas em dar uma base legal para sua
autonomia contra as pretensões do Império ainda nos séculos XIII e XIV, encontrando, por
exemplo, Bartolo de Saxoferrato como um dos principais tradutores das reivindicações
sobre a questão da autonomia das cidades italianas.173
Enganam-se, portanto, aqueles que defendem a existência de uma ruptura definitiva
do pensamento humanista com o medievo sem levar em consideração as filiações teóricas
do humanismo, sem as quais não seria possível compreender nosso moderno conceito de
Estado. Da mesma maneira, não é possível compreendermos as reflexões de Maquiavel
sem levar em conta sua dívida e filiações com o humanismo cívico do Quattrocento. Os
humanistas, além disso, por sua vez, possuíam um débito com a cultura erudita de
Bizâncio 174 que embora já tenha sido reconhecido ainda é pouco explorada. Vale outra vez
lembrar, embora esse seja, já, um lugar comum na historiografia, segundo afirma Skinner,
que o “defeito da clássica análise de Burkhardt constitui em isolar a Renascença de suas
raízes medievais.”175
São duas as principais questões que os historiadores atuais do Renascimento
procuram destacar: suas filiações com o medievo e o intercambio cultural com outras
civilizações. Talvez esteja aí a chave para compreendermos esse fenômeno cultural. Mas
muitas das indicações dos historiadores não se destacam por tal reconhecimento. Porém
sabemos que estes são geralmente levados a ver a história sob pontos de vista bem
diversos, “a própria divisão da história em períodos [Idade Média, Renascimento]”, de
acordo com Carr, “não é um fato, mas uma hipótese necessária ou um instrumento de
pensamento, que vale na medida em que for esclarecedora.”176 Porém, como esse
instrumento de análise depende da interpretação, muito fica à margem sem a atenção
devida, em muito graças as constantes divergências entre os historiadores, mas, também, as
171
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 332.
172
FREREUX in JERPHAGNON, op. cit., p. 115.
173
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 30-31.
174
BURKE, 2010, op. cit., p. 19.
175
SKINNER, 2003, op. cit., p. 123.
176
CARR, op. cit., pp. 95-96. O colchete é nosso.
46
várias tendências de interpretação “pode ser julgada pela hipótese que ele adota”.177 A
natureza da história não nos permite abarcar todo o conhecimento de maneira clara e
precisa, mesmo porque, como explica Aróstegui, “não podemos dar conta de todas as
coisas com o mesmo nível de exaustividade” 178. E ainda, segundo Delumeau, “qualquer
construção histórica necessita de rejeições e de silêncios”. 179 A essa altura seria proveitoso
lembrar, como nos alertou Lucien Febvre, que “hipótese sedutora e verdade demostrada
são coisas diferentes.”180
Isso posto, a proposição de que o Renascimento seria uma criação italiana e dos
séculos XV e XVI é tão frágil quanto as afirmações em torno da genialidade criadora de
Maquiavel tantas vezes repetidas. Falando sobre as inovações do Renascimento italiano,
Garin nos adverte que,
Refutar esta ideia não representa mais uma tarefa difícil ou trabalhosa.
Basta retomar uma obra injustamente esquecida do fim do século
passado, ou seja, a Storia del metodo sperimentale in Italia, do Raffaello
Caverni, para ali encontrar a observação de que as escolas do final da
Idade Média já ensinavam muitos dos princípios fecundos dos quais Da
Vinci deveria tirar as suas conclusões de mecânica racional. E, depois de
frisar que um historiador sério se envergonharia de dizer que foi Da Vinci
o criador da ciência experimental, Caverni concluía declarando que não
era difícil descobrir nas tradições científicas anteriores ao século XVI as
fontes naturais das quais jorrava a variedade enciclopédica das doutrinas
professadas pelo grande artista da Renascença. 181
Quando analisada a variedade da Europa e seus talentos, não diríamos também que
houve outras várias explosões culturais ali? Ora, é Portugal quem “descobre a caravela e a
navegação de longo curso – ou seja, a chave do mundo.”182 Strayer, contrariando a tese
prosélita de que a Europa teria seguido o modelo político italiano, demonstrou que a
França embora estivesse dividida em várias províncias divergentes institucionalmente “era
muito mais representativa da realidade política europeia”. 183 O mérito de Strayer, assaz, foi
o de perceber que a França mesmo com o problema das várias províncias independentes,
conseguiu constituir seu Estado, se tornando o primeiro país europeu a lidar com essa
dificuldade com êxito. De forma que “a maior parte dos estados europeus dos fins da Idade
177
CARR, op. cit., p. 96.
ARÓSTEGUI, op. cit., p. 358.
179
DELUMEAU, op. cit., p. 10.
180
FEBVRE, 2009, op. cit., p. 100.
181
GARIN, op. cit., p. 84.
182
BRAUDEL, op. cit., pp. 39-40.
183
STRAYER, Joseph R. As origens medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, 1969, p. 53.
178
47
Média e do princípio da época moderna seguiu, pois, com maior ou menor rigor, o modelo
francês”.184 A difusão da arte gótica e do romance na França ainda no século XIII e o
triunfo da Universidade de Paris nos mostram tão somente que a Europa, como explica
Braudel,
Não é, portanto, o aluno comportado, preocupado unicamente em
aprender, aos pés de um mestre venerado. A história da Itália será
finalmente a história inteira do Ocidente, tomada na globalidade de suas
relações, de suas heranças, de suas aquisições, ou seja, a participação
numa riqueza comum onde cada um dá e recebe. Sem essa riqueza
comum, diz justamente Alexandre Rüstow, sociólogo apaixonado pela
história, “sem esse desenvolvimento comum da cultura urbana da Idade
Média, fragmentada em múltiplas unidades nacionais – entre as quais a
França ou a Borgonha (entenda-se os Países Baixos), não a Itália, detêm
[muito tempo] o papel principal -, o Renascimento não teria sido
possível. 185
Mas os humanistas, ainda assim, chegaram mesmo a acreditar que seriam “novos
romanos” fazendo parte de uma elite privilegiada, acreditando que a Antiguidade podia ser
ressuscitada por meio da imitação, Petrarca chegou a escrever cartas a Cícero; Maquiavel,
falando sobre as organizações política e militar de Roma, defendeu que estas deviam ser
imitadas pelos estados modernos186, mas o fracasso de sua milícia deu visibilidade a
incoerência de seu sonho romano.
Esse novo sentido do passado é um dos traços mais característicos, mas
também mais paradoxais do período. A Antiguidade clássica era estudada
para ser imitada fielmente, mas quanto mais era estudada, menos parecia
possível ou desejável essa imitação. “Como se enganam aqueles”,
escreveu Francesco Guicciardini, “que citam os romanos a cada passo.
Seria preciso possuir uma cidade que tivesse exatamente as mesmas
condições deles e agir segundo seu exemplo. Esse modelo é tão
inadequado para aqueles desprovidos das qualidades certas quanto é inútil
esperar que um burro galope como cavalo.” Porém, muita gente
realmente citava os romanos a cada passo; Maquiavel, amigo de
Guicciardini, era um deles.187
Nem todos estavam de acordo quanto a isso, e o Renascimento pode não ter sido
tão amigável com a Antiguidade como frequentemente se tem pensado, e em muitos casos
chegaram a discordar das posições dos Antigos, aperfeiçoando e corrigindo muitas das
184
STRAYER, op. cit., p. 53.
BRAUDEL, op. cit., p. 40.
186
BURKE, 2008, op. cit., p. 31.
187
BURKE, 2010, op. cit., pp. 228-229.
185
48
lições destes.188 No campo das ideias políticas não foi diferente, pois o que Bartolo faz
nada mais é do que uma reinterpretação e acomodação do código civil romano com o
objetivo de fornecer às comunas lombardas e toscanas uma defesa legal à sua autonomia e
não apenas retórica, como faziam os escolásticos.189
O humanismo não foi apenas um retorno ao antigo. Esse sonho petrarquiano
implicava ao mesmo tempo “progresso e retorno”. De fato, essa ideia não foi apenas
contraditória, mas também ingênua, cujo argumento principal não deixou de ser
possivelmente um álibi. Mesmo assim não deixou de ser, de certa forma, revolucionário.190
Entre as cidades italianas a que mais se destaca nesse plano é Florença. Se a Itália
foi, como sugere Delumeau, “a escola da Europa”191, Florença não significou menos para a
Itália, isto é o que insinua Fernand Braudel:
Florença é o instrumento dos reequilíbrios necessários. Entre os
adversários à espreita, a posição geográfica da cidade do lírio faz dela,
sem o título, uma espécie de capital da península. Tudo para lá conflui e
de lá parte. Acima de seus diversos compartimentos, uma Itália se esboça,
apesar das resistências inércias, cores locais indeléveis. E os artistas
excedentes de Florença se veem em toda parte solicitados: Rossellino
constrói em Roma o Palácio Venezia; Giuliano de Maioano, e assim por
diante... Florença reequilibra a Itália, bate o compasso. Ela é para a Itália
o que a Itália será para a Europa. 192
1.2 A bela, mas tumultuada Florença
Em carta datada de 17 de novembro de 1377, Coluccio Salutati, que então exercia o
cargo de chanceler em Florença e talvez ainda sofrendo do êxtase provocado
possivelmente pelo privilégio de poder, como ele mesmo já havia afirmado um dia ter em
seu túmulo escrito “que fui chanceler de Florença” 193, escreve:
Nesta ilustre cidade, flor da Toscana e espelho da Itália, rival daquela
gloriosíssima Roma da qual descende e cujas antigas pegadas segue,
combatendo pela salvação da Itália e pela liberdade de todos, aqui em
Florença, ocupa-me um trabalho ininterrupto, mas de grande importância.
Não se trata de uma cidade qualquer; não me limito a comunicar aos
188
DELUMEAU, op. cit., pp. 402-403.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 31.
190
BRAUDEL, op. cit., p. 53.
191
DELUMEAU, op. cit., p. 401.
192
BRAUDEL, op. cit., p. 64.
193
GARIN, op. cit., p. 22.
189
49
países vizinhos as decisões de um grande povo; devo manter informados
dos acontecimentos os soberanos e os príncipes de todo o mundo. 194
Não foi a primeira vez que um florentino declamou seu amor por Florença e
definitivamente não seria a última. Para Leonardo Bruni, discípulo de Coluccio, Florença,
“não é inferior a nenhuma cidade italiana, nem pela nobreza de origens, nem pela riqueza,
nem pelas dimensões.”195 Bruni via Florença como uma cidade ideal, seja pelo complexo
dos edifícios ou pela estrutura de sua arquitetura, para ele, “além disso, ela espelhava uma
harmonia sem precedentes para as cidades da época: ‘nada é desordenado, nada
inconveniente, nada sem razão, nada sem fundamento; tudo possui seu lugar, e não
somente certo, mas conveniente e devido.”196 Maquiavel, talvez, entre tantos que
professavam seu amor e elogios por Florença, por vezes excessivos, seja um dos poucos
que não dedicou seus escritos ao louvor de Florença, mesmo em sua “obra histórica ele não
exalta o renascimento da Antiguidade em Florença nem faz o elogio da cidade.”197 Mesmo
assim não deixou de fazer comparações de Florença com Roma (o que não seria novidade
para época), é o que percebeu Michely Pereira em sua dissertação sobre a Recepção e
tradução de Tito Lívio em Maquiavel.198 Já Bruni fundamenta seu louvor no de Aristides a
Atenas, por vezes, copiando quase que descaradamente o texto do Ateniense. 199
A representação de Florença como cidade ideal e herdeira de Roma, cujos alicerces
ainda se imaginava, podia ser sentida nos séculos XIV, XV e XVI, não foi um privilégio
isolado na representação de homens ligados ao serviço da chancelaria florentina, eram
fórmulas prosaicas da argumentação humanista, como os exemplos acima citados. Muito
menos ainda somos autorizados a imaginar que se tratava de meras fórmulas retóricas,
embora o historiador não deva também descartar essa hipótese.
Ao considerar esses arroubos apaixonados pela Florença do Renascimento
vinculada à legendária Roma, Garin aponta:
194
GARIN, op. cit., p. 21.
FUBINI, Riccardo. A Imagen de Florença em Leonardo Bruni. Intenções Retóricas e Percepções
Constitucionais. In: ADVERSE, Helton. (Org.) Filosofia politica no renascimento italiano. São Paulo:
Annablume, 2013, p. 18.
196
BIGNOTTO, op. cit., pp. 27-28.
197
ARANOVICH, Patrícia Fontoura. Introdução. In: MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XIX.
198
CORDÃO. Michelly Pereira de Sousa. Por uma imitazione dele cose antiche: recepção e tradução de Tito
Lívio em Maquiavel. Universidade Federal de Campina Grande Centro de Humanidades, Unidade
Acadêmica de História e Geografia, Programa de Pós-graduação em História, 2010.
199
BIGNOTTO, op. cit., p. 27.
195
50
O mito de Roma e o de Florença, sua filha e herdeira, novo estado-guia
da península, assumem um significado preciso e trazem ressonâncias que
não devem ser menosprezadas, enquanto a evocação da história romana
como exemplo constitui a base cientifica para uma teoria da ação
política.200
É intrigante notarmos que de algum modo os mitos possuem a força de resistir às
intempéries do tempo se instalando no ideário das civilizações. Por isso mesmo, é preciso
lembrar que “todo mito, ao mesmo tempo que diz algumas coisas, esconde outras. Ao
mesmo tempo que revela, também oculta”. 201 Se quisermos apreender o pensamento do
autor Maquiavel, é preciso tentar desvencilhá-lo desse mito em particular, o de Florença 202,
lugar da “mais elevada consciência política [onde] “a maior riqueza em modalidade de
desenvolvimento humano encontra-se reunidas (...) que nesse sentido, por certo merece o
título de primeiro Estado Moderno do mundo”203, como um dia acreditou Jacob
Burckhardt. Braudel também estabelece seus fatos de maneira a demonstrar Florença como
um centro de exportação cultural para toda a Europa, considerando-a um núcleo de
equilíbrio necessário para a Itália. 204
Por vezes não é difícil encontrar as razões pelas quais Florença seja alvo de tantos
elogios. Sim, e de fato, segundo estudos mais recentes, Florença se tornou um centro de
irradiação cultural e política para a Itália, ali, a recuperação dos valores clássicos parecem
ter apresentado contornos mais evidentes. “Sem contar que Florença, naqueles anos, era o
centro da cultura da Europa; partia-se da Alemanha para ali aprender as ciências e as artes,
as ‘novidades’ florentinas eram esperadas e lidas em Paris, pelos doutores da Sorbonne,
como um novo Evangelho”205, argumenta Garin. Mas ainda é difícil localizar as razões
pelas quais tantos indivíduos talentosos surgiram nesse período em Florença. Entretanto,
talvez Leonardo Bruni estivesse certo ao dar crédito à política como a chave desse
desenvolvimento206 que assentou Florença “na linha de frente do Renascimento cultural,
com Veneza e Roma correndo logo atrás.”207 Mas o que o elogio de Bruni e outros
humanistas (para não falar de alguns historiadores) acabam omitindo são as indicações
200
GARIN, op. cit., p. 27.
ARANHA, Maria Lucia Arruda. Maquiavel: a lógica da força. São Paulo: Moderna, 2006.
202
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 13.
203
BURCKHARDT, op. cit., p. 98. O colchete é nosso.
204
BRAUDEL, op. cit., p. 64.
205
GARIN, op. cit., p. 84.
206
BURKE, 2010, op. cit., p. 39.
207
MARTINES, Lauro. Fogo da cidade: Savonarola e batalha pela alma de Florença renascentista. Rio de
Janeiro: Record, 2011, p. 21.
201
51
(que em certo sento sentido estão mais para gritantes rivalidades do que meras indicações),
dos antagonismos ainda persistentes entre as facções florentinas e a convivência de valores
clássicos com a cultura medieval. Mas ainda assim Bruni ostenta que, “tivemos êxito em
equilibrar todas as secções de nossa cidade, de modo a produzir harmonia em todos os
aspectos da República.”208
Segundo Viroli:
A Florença do final do século XV, o Quattrocento, era ao mesmo tempo
magnífica e miserável. A beleza de suas igrejas, edifícios públicos e
privados, de suas ruas e praças, o talento e a criatividade de seus
cidadãos, a vivacidade da vida artística e intelectual faziam dela uma
cidade única na época; apenas Veneza seria capaz de sustentar uma
comparação.
Era [por outro lado] objeto de amor e de ódio. Amada por sua beleza e
elegância e odiada por sua insensatez política e pela mesquinharia e
egoísmo de grande parte de seus cidadãos. Maquiavel compartilhava
desses sentimentos, os quais o acompanharam por toda sua vida,
inspirando seus pensamentos e ações.209
Se é verdade que, de certa forma, Florença se constitui um bom exemplo de como
se dava o jogo político na península itálica, graças à sua condição privilegiada210, por outro
lado, Florença também se destaca por ser a mais fraca das cidades-estados em matéria de
renda regular e número de soldados profissionais, “apesar de seus muitos banqueiros e de
sua excepcional posição de capital financeira. Assim uma guerra podia ser especialmente
difícil para os florentinos e sua república.”211 Mas isso não tira o mérito de ser uma cidade
de elevado vigor espiritual e pujança cultural. Não era nem grande, mas também não se
constituía das menores, ou muito menos foi apenas uma cidade, no sentido hoje entendido,
era uma cidade-Estado.212
Dotada de um território importante: a república de Florença era um dos
cinco principais centros do poder no território italiano, com Veneza, o
ducado de Milão, os Estados Pontifícios e o reino de Nápoles. O seu
território estendia-se por uma superfície de 15 000 km², desde a Úmbria
até aos arredores de Bolonha, obtido através de conquistas, como San
Miniato ou Pisa, e de compras, como Arezzo, Livorno ou Borgo San
Sepolcro. O seu domínio não era total sobre este espaço, uma vez que
208
SKINNER, 2003, op. cit., p. 95.
VIROLI, 2002, op. cit., pp. 27-28. O colchete é nosso.
210
LARIVAILLE, op. cit., p. 15.
211
MARTINES, 2003, op. cit., p. 21.
212
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 23.
209
52
Siena e Lucca não eram seus súbditos; mas, em contrapartida, dispunha
de acesso independente ao mar Tirreno. 213
Aliás, segundo alega Kristeller, Florença se sobressai também pela preocupação
com as liberdades políticas através do pensamento humanista que ali floresceu por volta do
século XV.214 E foram muitas as figuras que ali contribuíram para o fortalecimento do
reino das ideias, como, por exemplo, Alberti, Leonardo, Guicciardini e Maquiavel, para
citar apenas alguns. 215
Mas nem tudo é tão claro assim, e se esse florescer do humanismo parece claro,
ainda está mal explicado. A leitura meritosa de Kristeller é a que nos impede de ver uma
novidade no humanismo florentino e nos permite corrigir alguns equívocos ao “permitir
um sentido preciso, despido de qualquer anacronismo, ao termo ‘humanismo’. Antes dele
esse conceito geralmente foi usado da forma mais vaga possível, a fim de proporcionar
uma caracterização da Renascença como um suposto ‘novo movimento filosófico.”216
Assim, ele, segundo Skinner, acaba por ferir de morte esse mito assinalando que os assim
chamados humanistas “na verdade eram instrutores profissionais ou expoentes das artes
retoricas, e portanto estavam interessados num aspecto da cultura cívica italiana que nem
era novo, nem essencialmente filosófico.”217
De qualquer maneira, Florença, ainda, surge como aquela que não só teria
experimentado um salto em suas “inovações” culturais, mas também nas reflexões
políticas, cujas nuances, quando observadas ao longe, produzem a ilusão de que Florença
teria sido o primeiro dos estados modernos. Maquiavel em algum momento de sua
História de Florença concebe Florença “como um ser absolutamente vivo, e o processo de
desenvolvimento desta como um processo individual e natural” 218 e inevitável. Mas, por
certo, tal apelo retórico possivelmente tenha tido a intenção de orientar seu leitor, também,
no sentido de mostrar a ruína de sua cidade natal como um processo natural e também
inevitável haja vista a corrupção desse organismo pelos seus compatriotas. Ademais, era
essa sua compreensão sobre a república, a disposição temática dos Discursos demonstra
que ele via esse regime político com a dinâmica de um ser vivo que nasce, cresce e morre,
213
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 23.
Apud SKINNER, 2003, op. cit., p. 123.
215
BURKE, 2010, op. cit., p. 24.
216
SKINNER, 2003, op. cit., p. 123.
217
Ibid., pp. 123-124.
218
BURCKHARDT, op. cit., p. 105.
214
53
como todos os regimes políticos219, mas o que não está claro são as ressonâncias à
filosófica à noção platônica de corrupção.
Em todo caso, seria preciso fazer uma radiografia dessa Florença maquiaveliana
para entendermos melhor a “epifania” do momento florentino.
O executivo de Florença era reduzido a uma estreita hierarquia de conselhos, eram
estes a Signoria composta de oito magistrados e o Gofaloneiro da Justiça posicionado no
topo dessa administração.220 O Gofaloneiro da justiça além de presidir o conselho era
também responsável e o chefe das milícias.221 A Senhoria (ou Signoria) era a suma
magistratura, o Gofanoleiro fazia parte desta, sendo, então, nove membros ao todo
geralmente escolhidos entre as quatro divisões da cidade, mas estes eram escolhidos
alternadamente e por pouco espaço de tempo. Larivaille ainda explica que,
A senhoria é assessorada por dois conselhos restritos, que lhe dão
assistência na direção colegial da cidade: o colégio dos dezesseis
gonvaloneiros (...), que reunia os porta-estandartes das dezesseis
companhias armadas ou gonfalões (...) das quais se compõe a milícia
citadina; e, finalmente, o colégio “dos anciães”, para o qual cada divisão
envia três representantes. As decisões da senhoria só se tornam válidas se
forem adotadas por maioria de dois terços, o que põe a cidade ao abrigo
das decisões apressadas, mas por vezes conduz a um certo imobilismo, a
uma indecisão que pode ser perigosa em caso de tensão.222
Ao lado dessas três organizações do executivo havia ainda vários outros conselhos
e cargos isolados que garantiam a administração da cidade e a estabilidade do território
florentino, alguns desses, inclusive, com funções não muito definidas, como, por exemplo,
os ufficiali di parte guelfa, cujos cargos eram geralmente preenchidos por membros de
grandes famílias. Era também uma assembleia eleita. 223 Em caso de guerra, a Senhoria
podia junto com o Gabinete de Guerra dos Dez administrar questões relativas ao poder
diplomático.224
Era na administração da Senhoria, nas suas prerrogativas de convocar, inclusive os
mais proeminentes cidadãos florentinos, e comandar em questões relevantes que consistia,
219
MARTINS, José Antônio. Pelo povo, para o povo. In: Discutindo Filosofia. Maquiavel: as verdadeiras
ideias de um pensador incompreendido. São Paulo: Escala educacional, ano 1º, nº 4, p. 35. [Edição especial].
220
MARTINES, 2011, op. cit., p. 15.
221
LARIVAILLE, op. cit., p. 16.
222
Ibid.
223
Ibid., p. 17.
224
MARTINES, 2011, op. cit., p. 15.
54
segundo Martines, “a solidês e a força do governo republicano de Florença.”225 Uma ampla
e complexa base colegial era o sustentáculo dessa administração. O critério para o
preenchimento desses cargos também não era dos mais simples, como alega Martines, que
incluía o tempo de residência na cidade, não menos de trinta anos, o tempo de pagamento
de impostos, mas principalmente e geralmente pertencer as oligarquias locais. 226
Em resumo, o Estado florentino está submetido a uma organização das
mais refinadas, assaz densa, sem dúvida (...). Uma organização que pode
produzir conflitos entre magistraturas como prerrogativas por vezes
maldefinidas, mas que, em contrapartida (pense no caso de Florença!),
salvaguarda os pontos essenciais das liberdades republicanas: graças,
notadamente, ao rotativismo rápido dos cargos, e graças, igualmente, a
um sistema eleitoral, também muito refinado. 227
O sistema rotativo de eleições encerrava como aparente propósito impedir a
instalação de um poder pessoal e tirânico, de maneira a estorvar as liberdades individuais.
Por outro lado, essa triagem, representada pelo modelo de eleição e seus critérios de
elegividade, pode também significar, além da aparência democrática do sistema, um
complexo aparelho de exclusão, já que a maioria, figurada ali na plebe, não possuía
participação direta nesse processo de escolha dos membros candidatos aos cargos públicos,
pelo contrário, as classes subalternas sendo conservadas distantes das grandes decisões
eram mantidas (se Larivaille estiver certo, e é bem provável que esteja) em constante
controle e vigilância. 228
Estamos, portanto, diante de um sistema do qual a plebe (o que nós
chamaríamos hoje de povo) está irremediavelmente excluída; de um
Estado em que o povo – il popolo, que, na terminologia da época, designa
os artesãos e a pequena e media burguesia – se encontra cuidadosamente
reduzida a uma participação mínima; em resumo, de uma republica
oligárquica cuja máquina administrativa está nas mãos dos representantes
da alta burguesia e das grandes famílias aliadas a ela. Com exceção de
uma eventual intervenção de uma potência estrangeira, as ameaças contra
um regime dessa natureza não podem, de imediato, vir de baixo: nem da
plebe estritamente vigiado e mantido afastado dos postos decisivos.
Logicamente, o perigo só pode vir do próprio interior do sistema, de um
clã de poderosos que monopolizam em seu proveito os privilégios
reservados à oligarquia, apoiando-se, em caso de necessidade, no
reservatório de forças de manobra representado pelo povo. E é
225
MARTINES, 2011, op. cit., p. 16.
Ibid.
227
LARIVAILLE, op. cit., p. 18.
228
Ibid., p. 20.
226
55
efetivamente no interior do sistema oligárquico instituído que vai se
desenvolver, e finalmente triunfar, o impulso hegemônico de uma
família: a dos Medici.229
A classe dirigente que se instala na cidade em princípios do século XV fazia parte
de um grupo de famílias que surge em Florença ainda no século XIII, a quem Lauro
Martines chamou de “carreiristas”, querendo dizer com isso que pouco a pouco algumas
famílias começaram a se destacar através de um refinado e perigoso jogo de alianças. Entre
estes podemos destacar os Médicis e seu mais laborioso arquiteto, Cosmo de Médici, avô
de Lorenzo o Magnífico. Viroli destaca:
As grandes famílias florentinas, o verdadeiro coração político da cidade
tanto no bem quanto no mal (...). Uma dessas famílias destacou-se entre
as demais, deixando uma forte marca na história e na vida de Florença.
Ricos, astutos, decididos, os Medici construíram um vasto e duradouro
sistema de poder baseado em uma rede de amigos e partidários,
progressivamente organizada graças a uma cuidadosa política de
concessão de favores. Ofereciam a alguns a ajuda necessária para a
abertura de negócios ou para superar dificuldades financeiras; a outros,
empréstimos para os dotes destinados a casar suas filhas com distinção e
proveito. A outros, ainda, auxílio para resolver problemas com a justiça
ou com os impostos devidos. Desse modo, os Medici se tornaram os
verdadeiros senhores da cidade, apesar de declararem freqüentemente sua
condição de cidadãos ‘como os demais’ e de Florença conservar as
aparências de uma república livre.230
Os historiadores frequentemente atribuem realismo político e pragmatismo a
Cosmo. Talvez seja verdade. Após o exílio de 1433, tramado por Rinaldo degli Albizzi231,
Cosmo começa projetar seu domínio pessoal em Florença. A partir de então, conforme cita
Maurizio Viroli,
O poder dos Medici tornou-se praticamente indiscutível a partir de 1434,
quando Cosme, o Velho, voltou triunfante do exílio impelido por seus
inimigos. Em pouco tempo, Cosme conseguiu reduzir à miséria ou exilar
todos aqueles que eram capazes, por riqueza ou influência, de prejudicar
seus projetos. Para triunfar sobre seus inimigos, não hesitava em violar
leis ou esmagar regras morais. Quando o criticavam por ser inescrupuloso
e amar “mais a si próprio do que à Pátria e mais a este mundo do que ao
outro”, respondia [bem ao estilo maquiaveliano] que “os Estados não
podiam ser governados com o rosário nas mãos.”
229
LARIVAILLE, op. cit., p. 20.
VIROLI, 2002, op. cit., p. 28.
231
LARIVAILLE, op. cit., p. 21.
230
56
Com isso ele queria dizer que aqueles que pretendem conservar e
aumentar seu poder político não podem se guiar pelos princípios da moral
cristã.232
Nos próximos vinte anos que sucedem seu retorno, Cosmo elabora uma série de
mecanismos estratégicos de maneira a concentrar o poder entre uns poucos favoráveis ao
seu domínio. 233 De acordo com o elaborado sistema de rotação e eleição para os cargos
políticos de Florença não seria possível de forma direta tal projeto sem agredir os alicerces
da república, e “conhecendo bem seus compatriotas, todavia, sabendo que o seu partido,
por mais poderoso que fosse, não tinha nem os meios de impor um poder sem partilha
numa cidade visceralmente presa à divisão dos poderes” 234, Cosmo então elabora uma rede
de clientes favoráveis ao seu domínio, e mesmo entre algumas famílias rivais. Dessa
maneira astuciosa, Cosmo, mesmo sem atrair para si títulos oficiais, inaugura um sistema
de dominação que durará várias gerações nas mãos dos Medícis. É de se concordar com
Larivaille, que se sente a vontade em afirmar que Florença tenha sido uma república pouco
democrática.
O sucesso dessa empreitada mediciana pode ser atribuído, em parte, à ocultação do
poder, que Cosmo fez questão de deixar nas sombras, mas só se levarmos em conta que, “o
poder é tanto mais potente quanto menos se deixa ver” 235, como alega Bobbio. E de fato,
Cosmo, ao governar Florença de sua loja, se torna um bom exemplo de como geralmente
se comporta um governo pessoal e autocrático, já que este “não pode dispersar o ‘gabinete
secreto’, que é exatamente o lugar no qual o poder é menos visível possível. As decisões
devem ser tomadas em segredo, porque o povo não deve conhecer, não deve saber.”236 Mas
é muito pouco provável que tal projeto pudesse ser imaginável sem os recursos
econômicos disponíveis pelos Médicis, graças à fortuna construída por Giovanni di Bicci,
como era conhecido o bisavô de Lorenzo. Afinal, segundo Martines, “energia, ambição e
comércio de dinheiro marcaram grande parte do passado dos Médicis e garantiram seu
futuro”.237
Ao que parece, essas práticas tirânicas se tornaram uma tendência no século XV na
Itália. Mas, assim como em Florença, o avanço de formas despóticas de principados não
232
VIROLI,. 2002, op. cit., p. 29.
MARTINES, 2003, op. cit., p. 65.
234
LARIVAILLE, op. cit., p. 21.
235
BOBBIO, Noberto; VIROLI, Maurizio. Diálogo sobre a república: os grandes temas da política e da
cidadania. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 105.
236
Ibid., p. 106.
237
MARTINES, 2003, op. cit., p. 59.
233
57
afetou definitivamente o estilo de governo das cidades-estados, como Milão e Nápoles, por
exemplo. Em contrapartida, em Florença e Roma, por possuírem uma tradição republicana
bem enraizada o que se presenciou, segundo Skinner, “foi um demorado conflito entre os
defensores da ‘liberdade’ republicana e os expoentes das práticas que se acusava de
tirânicas.”238
Ao contrário do que geralmente se pensa, o Renascimento não empregou seu
talento somente na arte e literatura, mas boa parte das forças utilizadas foram dedicadas à
política. Florença, como alega Martines, seria um bom exemplo dessa prática.239
A política é a própria vida. Essa alegação surpreendente poderia ter sido
eleita o lema prático de todos os homens ambiciosos das classes
florentinas abastadas, porque os altos cargos de Florença faziam seu
detentor ser honrado, temido e adulado. Ofereciam aos homens uma
identidade mais sólida, e sua realidade era praticamente palpável. O
contemporâneo mais jovem de Lorenzo de Médici, Guicciardini, disse
certa vez que nunca ter sido membro dos Priores, para um florentino,
equivalia praticamente a nunca ter sido homem. Ele se referia aos
cidadãos com patrimônios, e queria dizer que a vida sem grande honraria
era a vida de alguém que não conseguira obter seu quinhão pleno de ser e
fazer.240
O fato de Guicciardini dirigir-se aos homens de posse, candidatos em potencial aos
cargos públicos, é sintomático de uma mudança de perspectiva por parte de alguns
humanistas do período, que coincide com a ascensão dos vários príncipes na Itália e em
Florença. Os primeiros humanistas geralmente dirigiam seus textos a um corpo mais amplo
de concidadãos. Mas em finais do século XV, parece ter existido uma mudança de foco
pelos humanistas que se concentram agora na figura do príncipe, tendendo, segundo
Skinner, “a minimizar a importância do cidadão individualmente considerado, e a centrar
toda a sua atenção na figura muito mais importante e influente do príncipe.”241 Mas isso
não significa que alguns desses pensadores (talvez a maioria) não fossem republicanos.
Quando Maquiavel, por exemplo, escreve O príncipe, ele não deixa de resguardar suas
preferências pessoais quanto a melhor forma de governo, a república. Mesmo de outra
forma, quando ele se refere ao principado está se referindo a um regime político que em
sua natureza, quanto implantado, não anula as instituições republicanas.242 O principado,
238
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 134-135.
MARTINES, 2003, op. cit., p. 73.
240
Ibid., p. 79.
241
SKINNER, 2003, op. cit., p. 137.
242
MARTINS in Discutindo Filosofia, op. cit., p. 22.
239
58
segundo Martins, conserva em vários aspectos componentes da dinâmica política
republicana. 243 E disso os humanistas estavam informados.
É possível então que as várias tiranias do século XV tenham encontrado amparo no
amplo discurso de alguns humanistas graças à influência destes na cidade. Entendamos, em
Florença, muitos dos principais intelectuais humanistas desde Coluccio Salutati exerceram
funções na chancelaria, estavam, portanto, próximos às misérias e triunfos da vida política
da República de maneira que teorizavam sobre necessidades imediatas à Republica
florentina. Garin argumenta:
O humanismo impôs-se, marcado por este selo; o seu ensinamento não
baixou das cátedras universitárias ou dos retóricos de cortes refinadas.
Inaugurado por Petrarca, teve sua cátedra mais importante no Pallazo dei
Signori de Florença; os seus mestres foram os chanceleres da República:
Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Carlo Marsuppini, Poggio
Bracciolini, Bemedetto Accolti, Bartolomeo Scala. 244
Mas no geral as análises desses intelectuais careciam de uma base mais sólida sobre
o processo de desenvolvimento das comunas italianas indo geralmente buscar exemplos
em culturas antigas (Grécia, Roma) para explicar fatos contemporâneos, como é o caso de
Maquiavel, cuja tendência para os modelos antigos o desvia de um exame mais detalhados
dos problemas da república florentina.245 Repetindo assim o mesmo problema de que ele já
havia censurado ao afirmar que “a Itália parece ter nascido para ressuscitar coisas mortas”,
como cita Viroli. 246
1.3 Maquiavel antes dos Discursos: contexto familiar e educação
Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, provavelmente em 3 de maio de 1469247, foi
o terceiro filho de uma sucessão de quatro. Precedido por duas irmãs de nomes afetuosos,
243
MARTINS in Discutindo Filosofia, op. cit., p. 22.
GARIN, op. cit., p. 25.
245
TOUCHARD, op. cit., p. 22.
246
BOBBIO, 2003, op. cit., p. 130.
247
Apesar de Marie Gaille-Nikodimov sugerir que Maquiavel tenha nascido em 4 de maio de 1469, optamos
por 3 de maio em função de que é maior a incidência dessa data na bibliografia especializada consultada.
Tanto Skinner quanto Maurizio Viroli, por exemplo, estão de acordo sobre essa data. Roberto Ridolfi faz
referência à mesma data. Em nota ao primeiro capítulo de sua obra, Ridolfi cita o arquivo ad annum da obra
de Santa Clara, onde está registrado que Maquiavel “nasceu no dia 3 às 4 horas, foi batizado no dia 4”. Cf.
RIDOLFI, op. cit.; TOUCHARD, op. cit., p. 22; SKINNER, 1988, op. cit., p. 14; VIROLI, 2002, op. cit., p.
21.
244
59
Primavera e Margarida248 e um irmão caçula, Totto, cujo nome foi dado “em memória de
um tio benfeitor.”249 Conforme Marie Gaille-Nikodimov,
Maquiavel cresce entre a cidade e o campo, entre uma cidade prestigiosa,
poderosa e embelezada pelos seus muitos artistas e o burgo de
Sant’Andreà e Percusina, onde a família possui uma casa rodeada por
duas propriedades (os poderi), il Borgo e il Poggio, e onde ele próprio
viverá depois de ser dispensado do seu cargo público em 1512, por
ocasião do regresso dos Médicis ao poder. 250
Alguns biógrafos, entre eles Roberto Ridolfi, considerado um referencial no assunto,
concordam que o pai de Maquiavel, Bernardo Maquiavelli, teria sido um jurista e em
Florença “deram-lhe o título de ‹‹senhor››”251 - messer Bernardo -, “mas ao contrário da
maioria dos advogados e dos tabeliães florentinos obtinha escassos ganhos” 252, o suficiente
apenas para manter os gastos de uma rigorosa economia doméstica. 253 Bernardo refez-se
um pouco economicamente, graças a uma herança deixada por Totto Machiavelli, tio de
Maquiavel, mas aparentemente não foi suficiente tendo que garantir-se, em parte, com seu
trabalho como advogado.254
A falta de opulência por parte de Bernardo, pai de Maquiavel, chegou a tal situação
que em Florença cogitava-se sobre a pureza desse ramo familiar. Ridolfi, em sua Biografia
de Nicolau Maquiavel, informa que alguns chegaram a pensar em ilegitimidade jurídica255,
ou seja, que Bernardo seria um filho ilegítimo dessa estirpe, um bastardo. Mas é possível
que esses ataques de inimigos políticos de Maquiavel possuíssem apenas a intenção de
manchar a sua reputação durante o exercício de suas funções na chancelaria. E, de fato, boa
parte dos ofensores nutriam certa antipatia para com o governo de Soderini 256, a quem
Maquiavel servia como secretário da primeira chancelaria e era amigo, o que pode explicar
parte dessas birras e aversões em relação a ele. Entretanto, há outra possibilidade a esse
respeito, seria o fato de Bernardo ser possivelmente “devedor de impostos”. Assim, podese também cogitar que, tal como sugere Ridolfi, essas acusações a messer Bernardo não
248
Cf. VIROLI, 2002, op. cit., p. 19.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 19.
250
Ibid., p. 29.
251
Ibid., p. 22.
252
VIROLI, 2002, op. cit., p. 21.
253
Cf. ibid., p. 20.
254
RIDOLFI, op. cit., p. 18.
255
Ibid.
256
Piero Soderini, irmão do bispo com o qual Maquiavel cumpriu varias missões, foi eleito Gonfaloneiro
vitalício em Florença em 1502.
249
60
passassem de uma referência à sua condição de velhaco e não a uma suposta situação de
bastardo, já que existem provas sobre a legitimidade de Bernardo 257, o que não tira a
obscuridade das acusações.
Esse mesmo Bernardo parece ter obtido considerável prestígio entre alguns
humanistas como Bartolomeo Scala, por exemplo, que havia ocupado a primeira
chancelaria em Florença durante a infância de Maquiavel, e foi autor de um “panfleto
“Sobre as Leis e os Julgamentos Legais (...) escrito em 1483 em forma de diálogo, entre
ele próprio e ‘meu amigo íntimo’ Bernardo Maquiavel”.258 De qualquer forma, as
considerações adquiridas por Bernardo Maquiavel não impediram que ele passasse por
dificuldades, é o que lembra Gaille-Nikodimov,
Quando nasce Nicolau, os Maquiavel retiram da terra grande parte dos
seus rendimentos: Bernardo é relativamente pobre e administra mais os
bens da família do que aumenta o patrimônio. Não se encontra nenhum
vestígio dele como jurista da cidade. Maquiavel não crescerá nem viverá
numa grande abastança econômica e queixar-se-á várias vezes. 259
É bem verdade que “o poder econômico dos Maquiavel é relativamente modesto”260,
e ele lamentará algumas vezes sobre sua pobreza, mas exagera a respeito de sua condição
e dirá: “nasci pobre, e aprendi antes a padecer do que a gozar.” 261 E “em Florença, quem
não tem poder ‘não encontra cão que lhe ladre’, escreveu Nicolau na Mandrágora, sua
mais bela comédia, composta em 1518.” 262 Essas queixas e alusões à sua indigência não
passavam, possivelmente, em sua maioria de exagero, pois, “na época, já não era pouco
possuir terras e casa própria em Florença” 263, como era o caso de sua família.
Aparentemente, “Nicolau era muito ligado ao pai” 264, parecendo às vezes mais
amigos na relação do que pai e filho; como em todas as amizades trocavam gracejos e
brincavam entre si, é o que aludem alguns documentos que restaram. 265 As relações entre
pai e filho na Itália do período aqui estudado não eram tão amigáveis no sentindo que hoje
257
Ver nota ao capítulo 1º, nº 4º, in RIDOLFI, op. cit., p. 311.
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 16-17.
259
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 22.
260
Ibid.
261
apud VIROLI, op. cit., p. 20.
262
VIROLI, op. cit., p. 20.
263
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 22-23.
264
VIROLI, op. cit., p. 21.
265
Ibid.
258
61
compreendemos, mas isso não quer dizer que uma relação fraterna afetuosa não fosse
possível, e o caso de Maquiavel não é uma exceção.
Geralmente, nessa época, o pai possuía um verdadeiro reinado na família, como
atesta Larivaille, e em muitos aspectos a unidade familiar italiana lembra a gens latina266 e
os casos de espancamentos a filhos não eram uma prática incomum267, Delumeau também
atesta esse fato.268 Aparentemente, “as leis não reconhecem mais ao chefe da família do
Renascimento o direito de vida ou morte sobre os seus, mas suas prerrogativas continuam
sendo muito extensas.”269 Embora no quadro da jurisprudência seja permitido ver no chefe
de família desse período um tirano desprovido de afeto, Larivaille, em um exame mais
cuidadoso e no qual boa parte de nossos argumentos se baseia a esse respeito, atesta,
Na literatura e nas cartas familiares da época não faltam cenas de família
cheias de intimidade e ternura. O próprio Maquiavel, no capítulo final de
suas histórias florentinas, evoca com uma ponta de censura, por tratar-se
de um homem de Estado, o gosto que Lourenço, o Magnífico, tinha por
certos ‘jogos infantis [...]: tanto que se podia vê-lo com frequência no
meio dos filhos e das filhas, participando dos divertimentos’. E, numa
comédia do mesmo autor, uma esposa evocando a vida de seu marido
antes do tolo namorico que criou conflito entre o casal, traça um quadro
edificante do que deve ser o dia de um bom burguês florentino da época,
equitativamente dividido entre os negócios, a vida social e a vida
familiar.270
A partir desse panorama, podemos imaginar (e somente) como seria a relação entre
Bernardo e nossa personalidade central. Apesar dos exageros de imagens fraternais
utilizadas por VIroli em seu O Sorriso de Nicolau, quando fala da relação entre Bernardo e
Nicolau, não está longe das possibilidades a julgar pelo relato do contexto da época
elaborado por Larivaille acima. Viroli, é certo, assume um olhar paternal sobre seu herói
(Maquiavel) e nos diz,
Bernardo jamais pôde dar-lhe riqueza ou poder, mas Nicolau o amou do
mesmo jeito, ou melhor, talvez por isso mesmo dedicasse a ele um
sentimento singularmente terno, desprovido da reverência e do temor que
os pais ricos e poderosos com frequência inspiram em seus filhos. 271
266
LARIVAILLE, op. cit., p. 223.
Ibid., p. 224.
268
DELUMEAU, 2011, op. cit., p. 331.
269
LARIVAILLE, op. cit., p. 223.
270
Ibid. p. 225.
271
VIROLI, op. cit., p. 22.
267
62
Embora seja tentador seguir Viroli nessa representação, o pudor da pesquisa histórica
não permite e nos força lembrar que a escassez de documentos não admite observar os
sentimentos de Bernardo e Maquiavel em sua relação. Nos Diários, um dos poucos
documentos restantes, não há registro dos sentimentos, do desenvolvimento da
personalidade e das ambições de Maquiavel. 272
Sobre a mãe de Maquiavel, Madonna Bartolomea d’Nelli273, sabe-se pouco a seu
respeito, pois “não restaram cartas, nem recordações que nos permitam conhecer seu
caráter e sentimentos pelo marido e pelos filhos.” 274 O que sabemos é que era uma mulher
aparentemente culta, chegando a compor alguns poemas de caráter religioso. É bem
possível que tenha sido daí que Maquiavel tenha herdado sua índole para a poesia e
sensibilidade para observar a vida.275 O fato de sua mãe ser lembrada enquanto uma
mulher culta pelos biógrafos não implica dizer que de alguma forma tivesse obtido
educação formal semelhante aos homens do período ou que gozasse de privilégios
característicos das “mentes superiores”, mas é algo que não deve ser ignorado, ainda mais
se quisermos compreender parte do caráter poético da obra desse autor que chegou a
receber o status de “divina prosa’ por um crítico da literatura italiana”. 276 A sociabilidade
familiar na Itália do período renascentista está posicionada a certa distância do que
imaginou Burckhardt no seu estudo sobre A cultura do Renascimento na Itália, um ensaio.
Ao afirmar, por exemplo, que no período acima descrito “a mulher gozava da mesma
consideração conferida aos homens”277, recebendo em certo sentido a mesma educação que
os homens.
Em estudo mais recente, Delumeau discorda veementemente dessa afirmação,
sugerindo que se é verdade que “os jovens das classes abastardas seguiam cada vez mais
para o caminho do colégio, as jovens em geral ficavam em casa.” 278 De fato, Larivaille
insiste nessa direção afirmando que boa parte da educação das jovens após a saída do
convento, isso por volta dos onze ou doze anos, ficava sob a responsabilidade da mãe. 279
Por outro lado, o século de Maquiavel vê surgir muitas mulheres cultas, mais do que os
272
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 10.
Ibid., p. 19.
274
VIROLI, op. cit., p. 22.
275
Ibid.
276
Ibid.
277
BURCKHARDT, op. cit., p. 352.
278
DELUMEAU, op. cit., p. 356.
279
LARIVAILLE, op. cit., p. 228.
273
63
séculos anteriores280, mesmo entre as cortesãs.281 No quadro geral da Europa, as mulheres
não gozavam de igualdade com os homens, mas sempre houve aquelas que se destacavam
pela parcimônia e elevada inteligência. É Delumeau que nos ratifica ao elaborar uma
imagem elegante sobre esse tema, ao dizer que,
No tempo de Carlo VI, Cristina de Pisan queixava-se melancolicamente
da injustiça cometida contra o sexo fraco em matéria de instrução: ‘Se
existisse o costume de meter as raparigas na escola e se, normalmente,
lhes ensinassem as ciências como se ensinam aos rapazes, elas
aprenderiam e entenderiam as subtilezas de todas as artes e ciências tão
perfeitamente como eles’. Cento e cinquenta anos mais tarde, a mesma
queixa podia ser reiterada. Se, no início do século XVI, nos é descrito um
país onde se dá a mesma instrução às crianças dos dois sexos, este país é
imaginário e chama-se ‘Utopia’. Mas já se tinha provado que as mulheres
de elite, cujo espírito se educara no meio familiar, também podiam ser
instruídas e possuir tanto sentido artístico quanto os homens. As filhas de
Thomas More e as irmãs de Pircakheimer, humanista e matemático de
Nuremberga, contava-se entre as pessoas mais sábias do tempo e até liam
em grego. A mulher do impressor Robert Estienne, Perrete Bade, ela
própria filha de outro impressor, era uma boa latinista e ajudava o seu
marido na correção das provas. Os seus filhos falavam latim, como
Montaigne, desde a mais tenra idade. Vittoria Colonna, a marquesa de
Pescara declamada por Miguel Ângelo, foi uma poetisa de talento.
Margarida de Navarra lia e percebia o italiano, o espanhol e o latim. Não
parece que tenha escrito ou falado estas línguas. Mas contribuiu bastante
para dar a conhecer Platão em França, e a sua curiosidade intelectual
manteve-se viva até aos seus últimos dias. Protectora dos homens de
letras, ela própria também escritora, foi, no sentido mais nobre do termo,
282
uma mulher sábia.
Outra questão importante que deve ser lembrada é que ser escritor na Florença do
Renascimento, em geral, era uma atividade de horas vagas, sendo exercida paralelamente a
outras atividades, assim seria, segundo Burke, “um pouco mais fácil uma mulher se tornar
escritora.”283 Com a ausência de documentos, é impossível um acesso direto para
compreendermos a relação de Bartolomea, mãe de Nicolau, durante sua infância. Mas a
comparação com outros nomes desse período pode nos ajudar a elaborar um quadro
aproximado. “Na civilização ocidental, o reconhecimento da criança acompanhou o passo
da afirmação do individualismo. Por isso, operou-se de forma lenta.”284 Não se via a
infância como um momento original, mas como pequenos adultos. No Renascimento
280
DELUMEAU, op. cit., p. 356.
BURCKHARDT, op. cit., p. 355.
282
DELUMEAU, op. cit., p. 356.
283
BURKE, 2010, op. cit.
284
DELUMEAU, op. cit., p. 329.
281
64
acontece um desabrochar e reconhecimento da infância, mas ainda assim afetos e mimos
por parte dos pais aos filhos estavam diretamente subordinados a condições econômicas
mais gerais. 285 Delumeau faz um esboço interessante sobre esse tema e na ajuda a
compreender esse fenômeno.
Os pais paupérrimos não tinham tempo ou vagar para dar mimos aos
filhos demasiado numerosos. O testemunho de Thomas Platter (14991582), um humanista de Basileia, filho de uma humilde camponesa do
Valais, é, a este respeito, revelador: ‘A minha mãe era uma mulher forte e
corajosa, mas rude; quando o seu terceiro marido morreu, manteve-se
viúva; trabalhava como um homem para poder criar o melhor possível os
últimos filhos que tivera do marido. Cortava os fenos, malhava o trigo e
fazia outros trabalhos que incumbiam mais aos homens do que às
mulheres. Ela própria enterrou três dos filhos, quando estes morreram
numa grande epidemia de peste, pois pagar o enterro ao coveiro durante a
epidemia de peste custava demasiado caro. Também era muito rude para
com os filhos mais velhos, por isso raramente íamos a casa dela... Certa
manhã, uma grande geada branca tinha caído sobre as uvas enquanto se
faziam as vindimas; ajudei-a a vindimar e comi uvas geladas; tive
tamanha cólica que pensei que ia rebentar. Então, de pé à minha frente,
ela riu-se e disse: ‘Se quiseres, rebenta! Por que é que as comeste?’ (...)
Apesar disso, era uma mulher honesta, recta e piedosa; todos
reconheciam e elogiavam-na.’ Muitas mulheres do povo, na época do
Renascimento, deviam assemelhar-se à mãe de Thomas Platter. Lutero,
que sempre teve profundo respeito pelos seus pais, queixava-se de a mãe
lhe ter batido muitas vezes, e por ninharias.286
Não é um quadro completo evidentemente, mas olhando para esse rascunho é
possível ter um vislumbre maior sobre Bartolomea e nos ajuda a pensar nas várias
possibilidades de seu lugar no ambiente doméstico e na formação de Nicolau Maquiavel e
assim não ignorar o impacto dela nos primeiros anos sobre o pensamento dele, mas o
silêncio na documentação, tanto no Diário de Bernardo ou nas cartas restantes do nosso
autor, além de turvar nosso esforço interpretativo, nos diz mais sobre o contexto
maquiaveliano do que, talvez, se tivesse restado alguma documentação enumerando as
facetas do caráter daquela que foi a mãe e responsável por parte da educação e cuidado de
um dos mais aclamados pensadores da modernidade.
285
DELUMEAU, op. cit., p. 331.
DELUMEAU, op. cit., p. 331. Sobre a mãe de Lutero conta-se que certa vez o castigou de forma tão
brutal que o garoto verteu sangue e tudo isso por causa de uma avelã. – D’AUBIGNÉ, J.H. Merle, História
da reforma do décimo-sexto século. Vol. I. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, s.d., p. 134.
286
65
Maquiavel nunca foi um homem de muitas posses, é bem verdade, e a família
aparentemente pertencia a uma antiga linhagem de nobres empobrecidos, como insinuamos
anteriormente, mas vale notar que, segundo Gaille-Nikodimov,
A família de Maquiavel tem um passado político que radica a sua história
pessoal na de toda Itália e na de Florença em particular. Os antepassados
de Nicolau foram sem dúvida nobres gibelinos que abandonaram o seu
castelo de Montespertoli, burgo situado no Val di Pesa, entre Florença e
Siena, para se estabelecerem em Florença. Ao longo dos anos, estes
nobres gibelinos tornaram-se guelfos e aprenderem ofícios urbanos. Em
1260, o nome Maquiavel é citado pelo cronista Villani como sendo de
uma das principais famílias do partido guelfo obrigadas a exilar-se fora
de Florença. Alexandre Maquiavel, um desses guelfos exilados, irá
morrer na Terra Santa.287
Esses ancestrais (os guelfos) foram em um primeiro momento “partidários da
autonomia das cidades livres.” 288 A história de Maquiavel em Florença é carregada pelo
envolvimento de sua família nos eventos políticos da cidade. As lutas entre gibelinos e
guelfos são uma constante nesse cenário de controvérsias a respeito da autonomia das
cidades da Península Itálica. É possível perceber, inclusive, que “na sua História de
Florença, uma vez sem exemplo, ele mistura a história da sua família com a da cidade,
evocando o antepassado Jerónimo” 289, sugerindo o profundo envolvimento que havia de
seus ancestrais com a política florentina.
O fato de sua família não ser considerada uma grande família, como indicam seus
biógrafos, nem por isso impedia o seu envolvimento em conflitos com os grandes de
Florença. Segundo Gaille-Nikodimov, “A primeira carta que conservamos de Maquiavel
constitui disso um testemunho direto: ‘Pigmeus que somos, atacamos gigantes’, declara o
jovem Maquiavel ao evocar um conflito que opõe a sua família à poderosa família dos
Pazzi.”290
Além do evidente envolvimento político da família, que possuía cerca de dois
séculos de história em Florença, não podemos deixar de lado o próprio momento vivido
por Maquiavel, o Renascimento, mas claro, com a devida cautela ao conceito. Ele nasce
em meio a um efervescente emaranhado de “novas” ideias e a essa altura “o século XV
parece ser um século de ouro para Florença. Ao longo deste ‘século de ouro’, a cidade de
287
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 19.
Ibid., p. 20.
289
Ibid., p. 21.
290
Ibid., p. 22.
288
66
Maquiavel torna-se um modelo artístico para todo o continente europeu, e os comerciantes
apoiam ativamente os seus artistas e os seus letrados humanistas.” 291 E esse
“desenvolvimento artístico e humanista em Florença não deixará de ter influência no
pensamento de Maquiavel.”292 O ideário político desse momento é densamente afetado por
esse fenômeno.
Bernardo, pai de Maquiavel, “era um estudioso entusiasta das humanidades”293, e
a amizade acariciada com Bartolomeo Scala 294 nos ajuda a entender o dedicado interesse
pela educação de Nicolau. O interesse crescente por uma educação moral mais ampla, cujo
propósito seria a formação de um homem e não mais apenas um ensino funcional 295, deve
também ser elencado como um dos fatores relevantes no processo de sua formação moral e
intelectual. Não bastava o interesse de messer Bernardo pelos estudos das humanidades,
era preciso também os meios sociais e econômicos para garantir que tal atitude pudesse
favorecer o pequeno Nicolau e ele possa surgir definitivamente “ligado à realidade
histórica do seu tempo”.296 De acordo com Delumeau,
Na época do Renascimento, a regulamentação dos estudos e o novo
interesse em proteger moralmente a juventude modificaram de forma
radical a vida escolar, e, a pouco e pouco, acabou-se com a anarquia
medieval neste domínio. Se os regentes estavam agora submetidos a uma
regra severa, com muito maior razão estavam também os alunos. O
estudante da Idade Média aceitava uma disciplina corporativa e a
iniciação dos ‘caloiros’ pelos alunos ‘protectores’ ou mais antigos. Mas
não obedecia e não tinha de obedecer aos seus mestres que, sobretudo
quando se tratava do ensino das ‘artes’, eram apenas colegas mais velhos,
os primi inter pares. Esta situação mudou totalmente entre 1450 e 1600.
Ganhou-se consciência de que a criança e o adolescente eram seres
diferentes dos adultos, dos quais deviam ser protegidos (...). Os
pedagogos dos novos tempos achavam que a disciplina era o único meio
de isolar as crianças de um mundo corrompido e de incutir-lhes hábitos
virtuosos. Ao mesmo tempo, percebeu-se que a tarefa dos mestres não era
apenas instruir, mas educar.297
291
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 27.
Ibid.
293
SKINNER, 1988, op. cit., p. 16.
294
Ibid., pp. 16-17. “Na juventude de Maquiavel, a primeira chancelaria foi ocupada por Bartolomeo Scala,
que manteve seu cargo como professor na universidade enquanto durou sua carreira pública e continuou a
escrever sobre temas tipicamente humanistas, constituindo suas obras principais um tratado de moral e uma
História dos Florentinos. À época em que o próprio Maquiavel esteve na Chancelaria, as mesmas tradições
foram mantidas de maneira notável pelo sucessor de Scala, Marcello Adriani. Também ele foi transferido de
uma cátedra na universidade para a primeira chancelaria e, do mesmo modo, continuou a publicar trabalhos
acadêmicos humanísticos, inclusive um livro de textos sobre o ensino do latim e um tratado vernáculo Sobre
a Educação da Nobreza Florentina.” Ibid., p. 16.
295
DELUMEAU, op. cit., p. 345.
296
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 15.
297
DELUMEAU, op. cit., p. 346.
292
67
Apesar das elevadas despesas que envolviam fornecer uma educação humanista
aos filhos no período em que viveu Maquiavel298, pois “a época do renascimento
correspondeu certamente a uma aristocratização da cultura e dos meios intelectuais” 299,
Bernardo procurou dar a seu filho uma boa formação nos studia humanitatis que, conforme
Ridolfi,
No dia 6 de maio de 1476, (...) começou a estudar o Donatello, isto é, os
primeiros elementos da língua latina, com seu professor Matteo: tinha
sete anos, portanto estava em dia com preceitos pedagógicos da época.
No ano seguinte, teve outro professor de gramática, um tal Battista da
Poppi, na igreja de São Benito. 300
Quando do seu décimo segundo aniversário “Maquiavel já havia sido promovido
para o segundo estágio e passara aos cuidados de um famoso professor, Paolo da
Ronciglione, que ensinou muitos dos mais ilustres humanistas da geração de
Maquiavel”.301 Recorrer a um preceptor era uma prática comum e recomendada pelos
pedagogos da época e, como afirma Delumeau,
Aconselhavam que se desse um preceptor à criança, pelo menos antes dos
dez anos. Erasmo, que dedicou vários tratados ao problema da educação,
Vives, que foi ‘o mais fiel intérprete e comentador de Erasmo’, o cardeal
Sadolet, autor de um De liberis recte instituendis (1533), também
recomendavam o recurso a um preceptor, porque desconfiavam dos
mestres-escola da época e sabiam que, em geral, os pais de família não
tinham tempo ou instrução necessária para ser professores dos seus
filhos.302
No Diário que Bernardo havia conservado no período entre 1474 e 1487 é
registrado, em 15 de novembro de 1481, que “Nicolau está agora escrevendo suas próprias
composições em latim.”303 Essa educação corresponde a uma educação básica de acordo
com as possibilidades econômicas dos seus pais, e abrangia a gramática e o latim, também
se incluíam matemática, mas não contém o grego muito em voga na Itália nesse período. 304
Há uma especulação de que Maquiavel teria completado seus estudos na
Universidade de Florença. Se levarmos em consideração a amizade mantida por Bernardo
298
SKINNER, 1988, op. cit., p. 17.
DELUMEAU, op. cit., p. 349.
300
RIDOLFI, op. cit., p. 19.
301
SKINNER, 1988, op. cit., p. 17.
302
DELUMEAU, op. cit., p. 348.
303
SKINNER, 1988, op. cit., p. 17.
304
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 29.
299
68
com Bartolomeo Scala, que também matinha um cargo como professor nessa
universidade305, não seria de se admirar que, com a influência muito próxima e constante
dele, ele tivesse ingressado na universidade. Skinner também insinua algo parecido quando
cita Giovo que, em suas Maximas, sugere “que Maquiavel recebeu a melhor parte de sua
educação clássica de Marcelo Adriani.”306 Este ocupou uma cátedra nessa universidade
durante muitos anos antes de ocupar um cargo na primeira chancelaria. 307 Por outro lado,
esse dado sobre o ingresso de Maquiavel na universidade é contrariado por GailleNikodimov, ao afirmar categoricamente que “Maquiavel não vai para universidade
estudar.”308 Essa afirmação parece mais coerente com o contexto vital maquiaveliano, onde
os humanistas estavam cada vez mais preocupados com a educação dos filhos de origem
aristocrática. 309 Até onde se sabe, é bem verdade, a maior parte da educação clássica de
Nicolau foi desenvolvida de forma autodidata. Isso esclarece em parte a sua futura
dissonância entre os humanistas de sua época, já que, segundo Touchard, era “demasiado
pouco grego e de modo algum platônico”310, enquanto os humanistas italianos eram em sua
maioria bons filólogos e filósofos.311
Situando-se deste modo à margem desses pensadores, Maquiavel irá desenvolver
seus poderosos argumentos e crítica mordazes às ideias desses humanistas. No entanto, e
de fato, Nicolau só se torna compreensível quando consideramos os “aspectos mais
originais e criativos de sua visão política (...) como uma série de reações polêmicas –
algumas vezes satíricas – contra o corpo de crenças humanistas de que foi herdeiro e que
basicamente continuou a endossar.”312 Não é repreensível, ou mesmo imprudente,
considerá-lo um filho do humanismo, mas um filho, possivelmente, não tão submisso. 313
Apesar de sua formação não ter sido semelhante à recebida pelos letrados de
Florença, ele vive cercado de livros no espaço familiar, “o pai consagra parte considerável
dos rendimentos à compra de obras (...) pede emprestados.”314 No Diário de Bernardo está
registrado um empréstimo do texto das Filipinas de Cícero, também Como fazer um
Orador, Sobre a Obrigação Moral do mesmo autor e a aquisição da História de Tito
305
SKINNER, 1988, op. cit., p. 16.
Ibid., pp. 17-18.
307
Ibid., p. 18.
308
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 30.
309
DELUMEAU, op. cit., p. 349.
310
TOUCHARD, op. cit., p. 26.
311
Ibid.
312
SKINNER, 1988, op. cit., p. 8.
313
RIDOLFI, 2003, op. cit., p. 30.
314
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 30.
306
69
Lívio.315 Esse último foi adquirido “em troca da constituição de um índice dos nomes de
lugares contidos na Década para o impressor Nicollas della Magna.”316 E foi precisamente
essa cópia das Décadas de Lívio que quarenta anos depois servirá como referência para
Maquiavel compor os seus Discursos, considerada sua mais ambiciosa obra de filosofia
política.317 É provável que ele tenha entrado em contato com esses autores ainda muito
cedo, e nessa pequena biblioteca da família tenha encontrado suas primeiras delícias e
aventuras intelectuais.
Mas essas não foram as suas únicas leituras, como atesta Gaille-Nikodimov:
A sua obra, através de referências explícitas e implícitas, testemunha uma
vida enriquecida por numerosas leituras, a da Bíblia e de uma série de
autores latinos – César, Cícero, Flávio Josefo, Herodiano, Horácio,
Justino, Juvenal, Lucrécio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Salústio, Suetónio,
Tácito, Terêncio, Tibulo, Tito Lívio, Virgílio. Deve-se acrescentar a esta
lista já longa alguns autores gregos acessíveis em latim ou toscano.
Aristóteles, Diógenes Laércio, Platão, Plutarco, Políbio, Tucídides,
Xenofonte. Por último, Maquiavel leu alguns dos seus contemporâneos
ou autores do Trecento e do Quattrocento, historiadores, cronistas,
homens de letras e tradutores: Giovanni Villani, Poggio Bracciolini,
Leonardo Bruni, Flavio Biondo, no caso dos primeiros, e Dante Alighieri,
Francesco Petrarca, Giovanni Boccacio, Luigi Pulci, Lodovico Ariosto,
no dos segundos.318
O que se vê nessa lista exaustiva de clássicos se constitui em um fundo comum
onde Maquiavel e seus contemporâneos buscavam alicerçar seus argumentos. Os
pensadores políticos desse período recorriam constantemente a essa herança clássica, o que
não é estranho para o período muito menos para o biografado em questão aqui. É preciso
“levar em conta o fato de que na sua época, se pensava através do filtro da Antiguidade.” 319
E Nicolau não se sentirá um estranho no meio do pensamento humanista de sua época, pelo
contrário, “Maquiavel se sente membro de uma comunidade cultural” 320, como assegura
Gaille-Nikodimov, e sua obra atesta isso através de vários exemplos de figuras de
315
SKINNER, 1988, op. cit., p. 17.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 30. A maneira pela qual Bernardo adquire suas Décadas de Lívio está
de acordo com uma pratica comum no período Renascentista. Peter Burke afirma que “algumas pessoas que
necessitavam determinados livros simplesmente os copiava à mão, enquanto outros pediam para alguém que
lhes copiasse.” BURKE, op. cit., p. 87.
317
SKINNER, 1988, op. cit., p. 17.
318
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 30.
319
Ibid., p. 28.
320
Ibid., p. 31.
316
70
linguagens utilizados. O diálogo do leitor com o livro é um bom exemplo disso. Em carta
de Maquiavel enviada a Vettori, escrita em 1513, lemos:
Com chegada da noite, eu volto para minha casa e mergulho nos meus
estudos. Logo após fechar a porta, tiro as roupas cobertas de barro e lama
para vestir trajes suntuosos e curiais. Assim, vestido apropriadamente, eu
entro nas antigas cortes dos homens da antiguidade, nas quais, recebido
afetuosamente por eles, me alimento daquela refeição que é somente para
mim e para a qual nasci. Aí não me sinto envergonhado de falar com eles
e de lhes perguntar as razões de suas ações, e eles, com sua gentileza, me
dão suas respostas. Desse modo eu passo quatro horas sem sentir
aborrecimento algum, sem me lembrar de meus problemas, sem lamentar
minha pobreza e sem que qualquer receio da morte me perturbe. Entregome inteiramente a essa conversa.321
A imagem do diálogo com os antigos e a cena descrita por Maquiavel são lugarescomuns da literatura de sua época “presentes, por exemplo, em Cícero, Petrarca, Dante,
Boccacio, Alberti e até nos escritos de alguns mercadores escritores do século XV.”322
Além disso, e o que mais nos interessa, aqui, é saber que ele acrescentou à sua educação da
infância leituras que foram fundamentais para o desenvolvimento de seus argumentos
futuros, leu “os filósofos antigos, sobretudo os historiadores: Tucídides, que relatou a
guerra entre Esparta e Atenas que iria dilacerar a Grécia; Tácito, que narra a corrupção de
Tibério, Calígula e Nero; e, principalmente, aquele Tito Lívio, que o pai, Bernardo, havia
adquirido com tanto esforço”.323
1.4 A Florença Política: os Médicis, Savonarola e Maquiavel
O ano do nascimento de Nicolau Maquiavel (1469) foi também marcado pela morte
de Pedro Médici (o Gotoso), pai de Lourenço de Médici (1449-1492) (O Magnifico) que
nessa época já tinha 20 anos de idade. A partir de então, Florença foi governada por esse
príncipe que, segundo Gaille-Nikodimov “é, com o avô Cosmo, o mais célebre dos
Médicis”. 324
Os Médicis, à semelhança de outras grandes famílias burguesas que se tornaram
notáveis na história de Florença, surgem nesse espaço, provavelmente no século XIII,
como já sugerimos em tópico anterior, “quando começam a aparecer em posições de
321
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 199.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 31.
323
VIROLI, op. cit., pp. 23-24.
324
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 31-32.
322
71
governo importantes pela eleição ao novo cargo de Priores das Guildas, a Signoria”. Lauro
Martines, estudioso desse período, traz um dado interessante sobre essas famílias e afirma:
“eles foram capazes de associar riqueza comercial com autoridade política, e a partir daí
qualquer lugar no topo da escala social foi sempre uma união de riqueza e cargo político
importante”.325 Tanto é que mais tarde Lourenzo afirmaria em tom nada irônico, mas
carregado de um “realismo” alinhado a de um Maquiavel, que, “ser rico em Florença e não
ter cargo e autoridade política era correr o risco de aniquilação.”326
Vale reiterar que com o fortalecimento dessas famílias (os Strozzi, os Médici e os
Pazzi) os jogos da política em Florença passam a concentrar-se em suas mãos. O poder dos
Médicis, no entanto, só irá ser destacado com a insurgência de Cosmo (1389-1464), que,
após um exílio de 10 anos, estabelece uma administração refinadamente implacável, se
destacando em poderio das demais famílias. Após seu exílio, cujo regresso ocorre “a 5 de
outubro de 1434”327, Cosmo procura remover o poder das mãos dos que se opõem ao
domínio dos Médicis, procurando “reforçar os mecanismos institucionais que lhe
assegurassem o poder.”328 Gaille-Nikodimov alega que uma das estratégias de Cosmo foi
“estabelecer a preeminência do gonfaloneiro sobre o podesta e o capitão do povo.”329
Evidentemente, os cargos de maior responsabilidade no governo seriam preenchidos por
partidários dos Médicis que indicariam as posições nos cargos de menor importância na
máquina administrativa, deixando o centro das decisões nas mãos de Cosmo. Apesar da
evidente concentração de poder nas mãos de Cosmo, ele tinha a preocupação de deixar sua
administração ter a aparência de uma república popular, mas, vale lembrar e talvez de
forma mais eloquente (para utilizarmos de uma fórmula de Larivaille) o que acontecia era
que “Cosme governa Florença a partir de sua loja”330 ou seja, lenta, mas gradualmente,
Cosmo procurou assegurar que as principais decisões passem pelo crivo de sua aprovação
e para garantir que tal seja assim, irá distribuir seus partidários nos vários cargos decisivos
da República.331 É o que diz ainda Gaille-Nikodimov,
Cosmo governa, por vezes, em sua própria casa. Assim, em 1459 e 1463,
o encontro dos accopiatori tem lugar no seu palácio da vida Larga e não
325
MARTINES, 2003, op. cit., p. 57.
Ibid., p. 61.
327
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 35.
328
Ibid.
329
Ibid.
330
LARIVAILLE, op. cit., p. 21.
331
Ibid.
326
72
no palácio da Senhoria. Numerosos assuntos são tratados em sua casa.
Mas Cosmo tem a preocupação constante de aparecer, apesar de tudo,
como simples cidadão e não como chefe do governo. Usa quando
necessário essa identidade, recusando a Pio II, por exemplo, dinheiro para
a cruzada: um cidadão privado nada pode fazer, diz ele, numa República
livre e popular. Mas o domínio dos Médicis é bem real: os cognomes com
que se atavia sucessivamente Cosmo de Médicis são disso prova:
chamam-lhe, em primeiro lugar, civis togatus, depois comparam-no a
Augusto e, por ocasião da sua morte, atribuem-lhe o titulo de ‹‹pater
patriae››.332
Cosmo, com suas manobras, esvaziou, por assim dizer, todo o potencial democrático
das instituições florentinas, tornando-se uma espécie de senhor absoluto de Florença, e a
maneira como os príncipes lidavam com ele e o tratavam dão prova de sua influência. Em
cerca de trinta anos, como atesta Larivaille, ele (Cosmo), exercendo seu poder através de
testas-de-ferro, “impõe, gradualmente, através de múltiplos disfarces, uma ‘monarquia
larvada’: um sistema de governo pessoal”. 333
Essa concentração de poder nas mãos dos Médicis acabou atraindo a atenção de
famílias rivais como os Pazzi, por exemplo, que em 1478 com o apoio do papa Sisto IV
tentam assassinar Lourenço e Juliano (1453-1478). Juliano é morto, mas Lourenço
consegue escapar após intensa luta com os conspiradores. Nessa época, Maquiavel já tinha
“nove anos de idade e dava duro em seu estudo de latim” 334, como nos lembra Martines. A
lembrança desse evento deixará marcas fortes na reflexão dele e depois de quarenta anos
ainda será lembrado de maneira vívida em sua História de Florença, talvez não pelo
atentado em si, mas pelo horror do espetáculo de mortes que se segue. E nos Discursos
demonstra a imprudência de se conspirar contra dois príncipes ao mesmo tempo. 335
Após a escapada de Lourenço do local onde os conspiradores haviam assassinado seu
irmão, envia cartas pedindo ajuda ao duque de Milão com urgência. Adepto de uma
postura realista em assuntos políticos à semelhança de seu avô Cosmo, Lourenço não
aguarda a ajuda ocioso e retoma o controle da situação, esmagando com violência todos
aqueles que haviam participado da conspiração. A situação exigia urgência e segundo
Martines “foram dispensadas mesuras jurídicas. A emergência elevava o poder dos Priores
acima da lei comum e os estatutos foram suspensos. Era necessária uma demonstração
332
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 36.
LARIVAILLE, op. cit., p. 22.
334
MARTINES, 2003, op. cit., p. 148.
335
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 323.
333
73
certeira de justiça”.336 Maquiavel nos testemunha sobre essas demonstrações de justiça e
violência, deixando resvalar uma pitada de admiração pela ação de Lourenço:
Nesse ínterim, toda a cidade se armara, e Lourenço de Médici,
acompanhado por muitos homens armados, fora para casa: o Palácio
havia sido recuperado pelo povo, que matara ou aprisionara os que o
haviam ocupado. Por toda a cidade já se gritava o nome dos Médici, e por
toda parte viam-se corpos esquartejados nas pontas das armas ou
arrastados pela cidade; e todos perseguiam os Pazzi com palavras cheias
de ira e feitos de crueldade. Sua casa já fora ocupada pelo povo, e
Francesco, nu como estava, foi de lá retirado, levado ao Palácio e
enforcado ao lado do arcebispo e dos outros (...). Rinato de’ Pazzi,
enquanto tudo isso acontecia, estava em sua quinta; ao saber de tudo, quis
fugir disfarçado, mas foi reconhecido no caminho e levado preso a
Florença. Messer Iacopo de’ Pazzi também foi preso ao transpor as
montanhas, por que os montanheses, que sabiam do ocorrido em
Florença, vendo a sua fuga, apanharam-no, e ele foi levado para Florença:
e, embora muito suplicante, não lhe foi atendido o pedido de ser morto no
caminho. Messer Iacopo e Rinato foram condenados à morte, quatro dias
depois dos fatos, e, entre as mortes que naqueles dias houvera, tantas que
as ruas se encheram de corpos esquartejados, nenhuma foi mais
lamentada que a de Rinato, que era considerado homem sábio e bom (...)
o corpo de Iacopo de’ Pazzi foi antes depositado na sepultura de seus
antepassados, mas depois foi de lá retirado e, como excomungado,
enterrado junto aos muros da cidade; de lá novamente desenterrado, foi
arrastado nu por toda a cidade pela corda com que fora enforcado; e,
como a terra não tivesse lugar para a sua sepultura, seu corpo foi atirado
ao Arno.337
Após o atentado, de 26 de abril 1478, Lourenço sairá mais forte para dar continuação
à política de dominação desenvolvida por seu avô Cosmo, mas também “marca o início da
mais dramática crise que a dominação dos Médicis conheceu”.338 Eventos como esses irão
favorecer ainda mais o endurecimento do domínio político dessa família, atraindo várias
calamidades de ordem política sobre Florença, gerando um período de crise que irá eclodir
com a ruína da “dinastia” dos Médicis.
Lourenço governara Florença durante toda a sua vida seguindo os passos de seu avô
também no mecenato. As várias reformas desenvolvidas por ele podem ser vistas como um
prolongamento da política de Cosmo. Foi herdeiro de uma vasta fortuna e as alianças com
outras famílias aristocráticas de Florença só tenderam a acentuar seu poder, mas os seus
investimentos na política florentina não foram capazes de contrariar as oposições que
336
MARTINES, 2003, op. cit., p. 161.
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., pp. 501-502.
338
LARIVAILLE, op. cit., p. 24.
337
74
conduziram Florença às guerras que, de acordo com Larivaille, só conseguiram minar o
equilíbrio entre as forças rivais em Florença. 339
Junta-se a incompletude administrativa do domínio político de Lourenço a
insatisfação com seu fracasso em relação à gestão de fundos privados e públicos que
chegou a deixar ir à falência algumas das principais filiais da casa dos Médicis. 340 Esses
constantes fracassos fomentaram dúvidas sobre as razões e motivos da chegada de
Lourenço ao poder que talvez tenha sido preservado, apenas em função dos interesses das
elites em manter o modelo aristocrático em Florença após a morte de Cosmo. Mas
Lourenço também contou com o apoio e favor das alianças construídas pelo seu avô, com
Milão, por exemplo, cujo apoio, de acordo com Gaille-Nikodimov, foi decisivo para que
ele fosse estabelecido no governo de Florença 341, que junto com seu irmão Juliano ainda
eram jovens e inexperientes. E é bem verdade que, quando da morte de seu pai, Lourenço
com o interesse de revigorar a aliança com seus aliados escreve a Galeazzo Maria Sforza
“a 4 de Dezembro de 1469, para com ele renovarem a amizade e garantirem o seu
apoio”.342
Mas o fracasso na gestão dos negócios 343 da cidade, os prejuízos nas finanças e as
constantes guerras foram enfraquecendo seu domínio e fortalecendo seus opositores, e
despertando vozes discordantes que agora podiam ser ouvidas por toda parte. Larivaille
explica que, durante os últimos anos do governo de Lourenço, sua mão se torna mais e
mais ferrenha, e que, apesar do crescente prestígio no exterior, dentro da cidade o que se
viu foi um crescente autoritarismo. Não é de se admirar, portanto, que aumentasse o
número de descontentes com a forma pela qual ele passou a dirigir seu governo. E entre
esse coro de vozes opositoras estava o monge Girolamo Savonarola “que não hesita em
insurgir-se contra a tirania”. 344
É preciso concordar com Martines em sua análise final da derrocada dos Médicis.
Lourenço espalhou o terror por Florença, após a conspiração dos Pazzi, suscitando temores
que não poderiam resultar em outra coisa senão em uma conspiração contra seu domínio.
339
LARIVAILLE, op. cit., pp. 24-25.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 36.
341
Ibid., pp. 36-37.
342
Ibid., p. 37.
343
Vale lembrar, segundo Jean Delumeau, que Lourenço se interessava pouco por questões relativas as
finanças bancarias se “interessando mais pela política e pelas letras do que pelo banco. O seu principal
conselheiro em matéria de banca, Francesco Sassetti – o diretor da Tavola de Florença - , seguiu o exemplo
do seu mestre. Supervisionava de cima, frequentava demasiado os humanistas e muito pouco o escritório”
DELUMEAU, op. cit., p. 206.
344
LARIVAILLE, op. cit., p. 27.
340
75
“Com um líder de tamanho talento, e levando em conta o total controle de cargos
importantes exercidos pela oligarquia, era preciso uma guerra ou um ato de terrorismo para
derrubar Lourenço, seus amigos e suas criaturas”. 345 Os Médicis confundiram desde
Cosmo as atividades públicas com os interesses familiares particulares, o que não era uma
novidade no cenário da Florença desse período, mesmo entre outros grupos oligárquicos.
Embora Lourenço tenha sido um homem notável, de acordo com Maquiavel346, essas
qualidades não o impediram de pôr, com precisão não comparável, é o que nos diz
Martines, “a república florentina à beira de um abismo”:
Primeiro disseminando medo e promessas, e em seguida sabendo como
explorar esse medo em seu astuto recrutamento das ambições dos
cidadãos. E, enquanto agia para transformar a autoridade política
florentina em propriedade dos Médicis, sua constante afirmação era que o
bem de Florença e o bem da família Médici eram uma só. Ele chegou até
a acreditar nisso.347
Com a morte de Lourenço de Médicis em 1492 seu filho Pedro de Médicis (14711503) assume o poder com a mesma idade do pai: 20 anos. Após sua morte, no entanto,
nos diz Maquiavel, “começaram a germinar suas más sementes que, depois de não muito
tempo, por não estar vivo quem as soubesse debelar, arruinaram e continuaram arruinando
a Itália”. 348 O lamento visível nessa passagem demonstra parte de sua percepção do que os
Médicis representaram para Florença. Lourenço não mais podia conter as forças que
estavam em andamento e Pedro de Médicis conseguiu acelerar o processo. Larivaille nos
diz que Pedro não possuía a mesma habilidade para poder conter as ondas que ameaçavam
varrer Florença, suas tentativas desastradas de levar adiante a política de seu pai resultaram
em graves erros e prejuízos, tanto na condução da política externa quanto nas questões
internas. “Em resumo, o descontentamento acumulado em dois anos é tal que, no dia
seguinte à passagem dos exércitos de Carlos VIII, em novembro de 1494, os Médicis são
expulsos da cidade”. 349 Essa data marca o fim de um período de cerca de 150 anos de
345
MARTINES, 2003, op. cit., p. 319.
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., pp. 555-558.
347
MARTINES, 2003, op. cit., p. 320.
348
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., p. 558.
349
LARIVAILLE, op. cit., pp. 28-29.
346
76
dominação de governo oferecido pela estirpe dos Médicis 350 e abre uma nova era para
Florença, como alguns esperavam e acreditavam. 351
Quando da emergência dos Médicis ao poder, a estratégia básica de Cosmo consistia
em um equilibrismo político empenhado em ampliar sua influência através das relações
diplomáticas com o exterior e conquistar o apoio popular, estratégia que lhe rendeu a fama
de pater patrieae. Não foi diferente o que aconteceu com as outras oligarquias logo após a
deposição dos Médicis em 1494. Larivaille, no entanto, afirma que a diferença “em relação
aos tempos longínquos em que Cosmo se apoiava no povo para ir contra seus pares” 352 era
que agora o povo possuía um novo porta-voz que, embora, possivelmente, ingênuo, era
possuidor de um entusiasmo arrebatador: Girolamo Savonarola (1452-1498).
A destituição dos Médicis num primeiro momento não significou um retorno da
República, pois outras vultosas famílias pretendiam continuar a governar a cidade,
excluindo das decisões a grande massa da população. Esses interesses entram em choque
com outras vozes que exigem uma participação popular mais significativa, por isso, GailleNikodimov insiste na importância de Savonarola nesse contexto, cuja argumentação acaba
dando “um sentido mais global aos acontecimentos extraordinários ocorridos na cidade e
mistura na sua argumentação a autoridade divina.”353 E, de fato, as suas prédicas e a
análise que Maquiavel faz sobre os acontecimentos em torno de 1494 parecem “ter sido
atraídas pela mesma necessidade de explicar o desastre que se bateu sobre eles” 354, como
menciona Burke. Mas faltava a Maquiavel um conhecimento mais acurado da realidade
econômica e da natureza dos eventos sociais ocorridos em Florença, ele “vê apenas na
política um jogo de vontades, de paixões, de inteligências individuais.”355
Maquiavel tece algumas críticas nocivas para com Savonarola, é verdade, mas, essas
críticas devem ser avaliadas no próprio contexto em que foram construídas; tendo isso em
mente, não seria prudente ignorá-las, se quisermos compreender mais desse fenômeno. No
entanto, Martines, em um estudo no mínimo curioso e nada parcimonioso sobre esse frade,
analisa que, “nos anos 1490, auge da Alta Renascença, a figura mais proeminente de
Florença não era o Magnífico Lourenço de Médici, nem mesmo Michelangelo ou
350
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 51.
BURKE, op. cit., p. 278.
352
LARIVAILLE, op. cit., p. 29.
353
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 51.
354
BURKE, op. cit., p. 279.
355
TOUCHARD, op. cit., p. 23.
351
77
Maquiavel, mas – como ele mesmo costumava dizer – um ‘pequeno frade’ de Ferrara,
Girolamo Savonarola.”356
Não sabemos ao certo as razões mais profundas do sucesso desse frade em Florença.
Episódio que aparentemente incomodou Maquiavel que após suas críticas ironiza sobre a
pretensão dos florentinos de sua elevada sabedoria, reconhecendo, por outro lado, a
dignidade do frade,
Os florentinos não se julgam ignorantes ou grosseiros, e, contudo,
Savonarola conseguiu convencê-los de que conversava com Deus. Não
tenho a pretensão de decidi se ele estava certo ou equivocado; sobre um
homem tão extraordinário só se deve falar com respeito. Lembro apenas
que muitíssimas pessoas acreditaram no que dizia sem nada ver de
sobrenatural que pudesse justificar a sua crença; a sua doutrina, suas
dissertações, a sua vida, eram suficientes para que se ouvisse com fé as
palavras que pronunciava.357
Talvez um olhar no entorno em que esse frade desenvolve suas críticas à corrupção
do clero e dos líderes políticos florentinos pode nos ajudar a resolver esse problema. Mas
Braudel antecipa-se nessa questão, e afirma:
De todo modo, na civilização altamente intelectualizada do humanismo,
houve excluídos, pessoas condenadas ao silencio. Um historiador dizia
recentemente que “uma das razões do sucesso de Savonarola talvez fosse
o rancor dos florentinos médios contra a cultura demasiado exclusiva,
demasiado aristocrática dos humanistas do circulo mediciano”. É
possível, provável mesmo. 358
Seja como for, é notável que a Itália passava por sérias crises políticas e a Igreja não
estava mais longe da corrupção do que os príncipes italianos. Tanto Maquiavel quanto
Savonarola não ignoravam as razões da crise na Itália e Florença. E, de fato, ele próprio foi
profundamente influenciado pela voz desse frade.359 Aparentemente, ambos estavam
conscientes da necessidade de uma reforma radical para evitar a completa ruína da Itália
nas mãos dos povos vizinhos.
Gaille-Nikodimov sugere que o êxito de Savonarola deve ser entendido como um
tipo de resposta a preocupações amplamente partilhadas, tanto por aqueles que
participavam de suas convicções religiosas quanto de outros pensadores laicos de
356
MARTINES, 2011, op. cit., p. 20.
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 59.
358
BRAUDEL, op. cit., p. 66.
359
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 65.
357
78
Florença360, como é caso de Maquiavel e Francesco Guicciardini (1483-1540), o qual
“escreve que a cúria esqueceu a salvação das almas e os preceitos divinos e utiliza a
autoridade espiritual para fins temporais. Vive no luxo e na luxúria.” 361
Os ânimos dos florentinos não mais estavam dispostos a tolerar a corrupção que se
alastrava, principalmente agora que era evidenciada pelos seus frutos. Nesse contexto,
Savonarola se torna o principal agente de uma reforma política e religiosa em Florença. Os
sermões do frade, mesmo com seu caráter profético, eram uma novidade. Ela residia, no
entanto, mais no estilo e no vigor com que procurava agitar as massas, é o que diz GailleNikodimov:
Savonarola procura antes de mais comover, agitar o seu público através
das palavras justas e verdadeiras, pronunciadas sobre a influência de
Deus e animadas pela graça do Espírito Santo, pela caridade e pela
sabedoria divina. É por isso, sem dúvida, que os letrados que vão ouvi-lo
à igreja de San Lourenzo, habituados à língua de Dante, de Petrarca e de
Boccacio, não o pareciam: Savonarola toma liberdades com gramática
latina clássica, improvisa em função das reações do seu auditório,
esforça-se por tomar claro e simples o texto bíblico. 362
Evidentemente, não foi sua eloquência que acabou irritando os ânimos da aristocracia
florentina. Prior do convento de São Marcos e convicto da crise vivida em Florença, não
desperdiçava a oportunidade de lançar seus dardos inflamados “contra a corrupção e o
paganismo renascente”.363 Burke diz que o monge dominicano chegou a direcionar suas
denúncias a pintores que “mostram a Virgem Maria vestida como uma prostituta”. O que
acabou convencendo e atraindo alguns pintores para a sua causa, segundo ele.364
Por volta de 1494, segundo uma prática comum em Florença, secretamente cidadãos
espalhavam bilhetes anônimos pedindo o retorno da “liberdade republicana.”365 Talvez por
isso, dando eco a esses clamores, a “audiência de Savonarola não pára de crescer, não só
nos meios populares, mas igualmente entre os grandes e até entre intelectuais” 366, o que
boa parte da aristocracia não esperava, talvez, fosse que o frade buscasse favorecer, o que
de fato aconteceu, mais a grande massa da população do que interesses particulares
aristocráticos. Em suas denúncias de corrupção, frequentemente insistia que os “homens de
360
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 57.
Ibid.
362
Ibid., p. 58.
363
LARIVAILLE, op. cit., p. 29.
364
BURKE, op. cit., p. 191.
365
MARTINES, 2011, op. cit., p. 58.
366
LARIVAILLE, op. cit., p. 29.
361
79
vida pública deveriam servir ao bem comum, nunca aos interesses particulares.” 367
Conhecedor que era do governo mediciano, reconhecia, segundo Martines, a necessidade
de fazer leis “que não permitam a qualquer homem transformar-se em dono ou tirano
(capo) da cidade.”368
Vincula-se a isto o contexto da Rebelião de Pisa (1496) que contribuiu para com a
cristalização de certo descontentamento a Savonarola. 369 Vários grupos passaram a sentirse ameaçados pela influência crescente do monge dominicano sobre a massa popular, mas
as relações nada amistosas nos conselhos administrativos (o Grande Conselho e os
conselhos restritos) eram o que mais agravavam as tensões já quase generalizadas pela
cidade. 370 No momento em que sugere que Florença não deve entrar em oposição à França
juntando-se à liga anti-francesa, julgando ser o rei francês um instrumento de Deus para
reformar a Igreja, ele começa a dar seus primeiros passos rumo à fogueira. 371
Gaille-Nikodimov acredita que a insistência de Savonarola em manter uma aliança
com o rei da França foi um dos estopins de sua ruína e acrescenta:
É a ocasião para os arrabiati – os enraivecidos, assim denominados
porque recusam a paz e a união pretendidas por Savonarola – se lhe
oporem abertamente. Apoiados pelos franciscanos, invejosos do êxito do
prior de San Marco, estes homens, na sua maioria oligarcas privados do
poder pela instauração do Grande Conselho e da possibilidade de se
vingarem (...) acusam Savonarola de ser responsável pelo fracasso
florentino em Pisa. Convencem o papa Alexandre VI a impedir
Savonarola de pregar. O papa deixa-se facilmente convencer, tanto mais
que tenta romper as alianças italianas estabelecidas pelo rei de França e
ficou irritado com a difusão de um resumo das visões de Savonarola.372
Durante um tempo ele acata a proibição do papa, porém, volta pregar, mas agora se
utilizando de panfletos.373 Obviamente essa atitude obstinada de Savonarola não foi bem
vista pelo papa que o ameaçou de excomunhão, chegando a fazê-lo de fato em 1497.374
Larivaille garante que, “desde então, os dias do monge dominicano estarão contados”375 e
desmorona em constante descrédito entre o povo.376 No ano seguinte, após uma série de
367
MARTINES, 2011, op. cit., p. 90.
Ibid., pp. 90-91.
369
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 60.
370
LARIVAILLE, op. cit., p. 30.
371
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 60.
372
Ibid., pp. 60-61.
373
Ibid., p. 61.
374
LARIVAILLE, op. cit., p. 31.
375
Ibid.
376
Ibid.
368
80
deslizes, como a recusa de pegar em armas para lutar contra seus opositores buscando fazer
uma guerra, como ele mesmo chamava “com a paz no coração”377, foi preso não
manifestando resistência na noite de 9 de abril de 1498. Após ser torturado “é enforcado e
queimado com dois dos seus companheiros (...) a 23 de Maio de 1498 na praça da Signoria,
após ter afirmado que Deus lhe concederia a graça de passar sem ferimento pelo meio do
fogo.”378
1.5 Chancelaria e política: a práxis necessária para a teoria maquiaveliana
A carreira política de Maquiavel tem seu início quando da deposição dos Médicis,
momento em que se instala em Florença um governo republicano. Ele foi inserido no cargo
de secretário da segunda chancelaria, que ocupou entre os anos de 1499 a 1512. A
aprovação para o cargo de secretário da Segunda Chancelaria é envolto de obscuridade e
ocorre a 19 de junho 1498.379 Quando de sua eleição ele tem quase 30 anos e ainda é uma
figura desconhecida no cenário da política florentina.
Na época da eleição de Nicolau Maquiavel para o cargo da chancelaria,
tradicionalmente eram escolhidos candidatos que possuíssem certas habilidades
consideradas fundamentais para o exercício das atribuições do cargo, como, por exemplo:
“habilidade diplomática, (...) [e] possuir um alto grau de competência nas assim chamadas
‘disciplinas humanas.”380
Ele conseguiu ser nomeado em uma idade relativamente jovem, não sabemos os
verdadeiros motivos que levaram à sua eleição, mas é possível que a oposição nutrida por
ele às doutrinas de Savonarola junto com as amizades mantidas pelo seu pai com alguns
humanistas e a predominância desses intelectuais na chancelaria da cidade, como foi o caso
tanto de Coluccio Salutati quanto de Bartolomeo Scala, que morre em 1497 sendo nesse
momento substituído por Marcelo Virgilio Adriani, tenham favorecido sua escolha. A
própria expansão e imposição do humanismo em Florença, por assim dizer, deve-se em
parte a esse fator – a presença desses intelectuais no Pallazo dei Signori de Florença – e
377
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 62.
Ibid.
379
Ibid., p. 70.
380
“Esse conceito de studia humanitatis tinha origem em fontes romanas, especialmente Cícero, cujos ideais
pedagógicos haviam sido retomados pelos humanistas italianos do século XIV, vindo a exercer uma poderosa
influência nas universidades e na condução da vida pública italiana.” SKINNER, 1988, op. cit., p. 15. O
colchete é nosso.
378
81
deixaram uma marca nada ignorável na vida política e cultural de Florença e de toda a
Itália.381
É preciso então verificar um pouco mais essas sugestões se quisermos entender o
porquê de Maquiavel ter sido admitido nesse cargo cujas atribuições e responsabilidades
incluíam tomar sob seu comando homens mais velhos cuja experiência em assuntos
públicos extrapolavam as do jovem Nicolau. E o caso Savonarola não deve ser ignorado.
Segundo Ridolfi,
O rio Arno levava ainda os restos da fogueira que havia consumido os
despojos do frei Savonarola, e uma revolução, iniciada logo depois da
queda do dominicano, aconteceu de mansinho na República Florentina.
Os magistrados piagnoni [chorões, eram os partidários de Savonarola]
tinham sido todos destituídos de seus cargos e substituídos por homens da
facção oposta. Os primeiros a serem depostos foram os do Conselho dos
Dez, os do Conselho dos Oito de Guarda, e os dos Colégios da Senhoria;
depois, descendo sempre, até os últimos oficiais do Palácio tiveram que
dar lugar a quem não tinha se envolvido com o frei senão para contradizêlo ou ofendê-lo, e, quanto mais à vista o tivessem feito melhor para
eles. 382
Não era segredo que Maquiavel se opunha aos discursos moralizantes do frade
Savonarola. Se essa oposição possuía sinceridade ou era apenas fruto de oportunismo
cínico não sabemos, mas, os registros das descrições sobre as prédicas desse frade
desenvolvidas por ele e que foram enviadas ao embaixador florentino em Roma, Riccardo
Becchi corroboraram a oposição sua ao monge.383 Falando de um ponto de vista pessoal e
moral, entre Savonarola e Maquiavel só há contrastes, e talvez por isso o segundo tenha
feito em sua análise das prédicas savonarolianas um julgamento político complexo, mas no
geral negativo. A esse repeito, Gaille-Nikodimov nos adverte que,
Enquanto Savonarola defende a palavra profética, que reforça a crença na
providência divina e confirma que esta última, e não o determinismo
astrológico ou a magia, rege o mundo e o curso da história, Maquiavel
apresenta um discurso político em O Príncipe, nos Discursos e n’A
História Florentina nos antípodas da profecia. Em O Príncipe, é sob os
traços do vencido que Savonarola aparece, à luz do seu fim infeliz na
Piazza della Signoria. É um herói negativo: o profeta desarmado.
381
GARIN, 1996, op. cit., p. 25.
RIDOLFI, op. cit., p. 17.
383
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 69-70. A esse respeito, ver também, VIROLI, op. cit., p. 49. O texto
de Viroli tem a vantagem de ser menos enfadonho que a biografia de Robero Ridolfi.
382
82
Savonarola é aquele que não dispõe ou não sabe encontrar a força
necessária para executar o seu projeto político. 384
Essa postura anti-Savonarola sem dúvida deve ter favorecido Maquiavel, atraindo a
simpatia do novo governo anti-savonaroliano. Mas não devemos supervalorizar essa
oposição e considerar a ruína do profeta como o evento que abriu as portas da chancelaria
para o jovem Nicolau, assim como entende Ridolfi. 385 É bem verdade que a queda do
“profeta desarmado”386 foi de significativa importância para a eleição de Maquiavel. Não
cabe, no entanto, ignorar outros fatores referentes a essa eleição como, por exemplo, a
presença de Bartolomeo Scala (amigo de Bernardo) e Marcelo Virgilio Adriani na
chancelaria não muito antes de sua eleição. Não é um caminho seguro, portanto,
sobreestimar os eventos em torno da morte de Savonarola enquanto contributo à eleição de
Maquiavel tratando como coisa de menos importância as relações de apadrinhamento
existentes em Florença quando o assunto eram cargos políticos.
Desde a morte de Coluccio Salutati houve várias mudanças nas atribuições dos
cargos da chancelaria e o prestígio e função do cargo de Chanceler, por exemplo, a muito
não são mais os mesmos, tornando-se, em alguns momentos, mais um adorno sem o
necessário peso político 387. Entre Coluccio Salutati, cujos discursos soavam como se
fossem verdadeiros oráculos, e Bartolomeu Scala, a quem Eugenio Garin, estudioso desse
período, em seu estudo sobre Ciência e vida civil no Renascimento italiano, chama de
“vaidoso cumpridor de ordens”388, há um contraste gritante. E no processo de aquisição
dos cargos da chancelaria não foi diferente. A esse respeito, não se torna enfadonho
recorremos a Burke que, além da vivacidade de sua análise, esclarece-nos sobre essa
questão,
(...) a administração das repúblicas [italianas] estava muito longe do
modelo weberiano de uma burocracia impessoalmente eficiente. De fato,
384
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 66.
RIDOLFI, op. cit., p. 31.
386
A expressão é de Maquiavel que no capítulo VI d’O Príncipe desenvolve sua mais conhecida critica a
Savonarola explicando por que do seu fracasso: “daí o porquê de os profetas armados vencerem e de os
desarmados fracassarem. A natureza dos povos é, além do que eu já disse anteriormente, variada: ao mesmo
tempo em que é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil firmá-los na persuasão. Convém, pois, providenciar
para que, quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer à força. Moises, Ciro, Teseu e Rômulo não
teriam conseguido fazer os seus povos observarem por muito tempo suas leis se estivessem desarmados. É o
que, nos tempo que ocorrem a frei Girolamo Savonarola, que fracassou ao tentar introduzir uma nova
ordem.” MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 144.
387
GARIN, op. cit., p. 38.
388
Ibid.
385
83
sob certos aspectos, tais como a ética corporativa dos funcionários,
Florença parece ter sido menos burocrática do que Milão (Witt, 1983, p.
112s). O sistema oficial pode ter valorizado igualdade de mérito, mas é
preciso levar em conta aquilo que os italianos de hoje chamam de
sottogoverno, o porão da administração. Em Veneza, por exemplo, alguns
postos eram comprados, vendidos e dados como dote. Em qualquer
estado italiano deste período é difícil subestimar a importância das
ligações familiares e também do que se conhece eufemisticamente como
‘amizade’ (amicizia), em outras palavras, os laços entre patronos
poderosos e seus dependentes. As muitas cartas ainda existentes dirigidas
a membros da família Médici nos anos imediatamente anteriores à subida
de Cosimo ao poder, em 1434, traçam um vivo retrato da importância da
amicizia para ambas as partes. Essas cartas dão corpo à queixa
contemporânea de Giovanni Cavalcanti de que a comuna florentina ‘era
governada em jantares e escritórios privados [alle cene e negli scrittoi]
mais do que no Palácio. 389
O que Ridolfi chama de “verdadeiro milagre” 390 pode ter sido o resultado de uma
política de apadrinhamento, não rara, como vimos acima, na Itália desse período. Em todo
caso, Maquiavel foi eleito, se beneficiando, além disso, de uma imagem antisavonaroliana. Mas essa reputação sozinha não explica muita coisa nesse caso em questão,
pois, como lembra o próprio Nicolau, “em Florença quem não tem poder não encontra cão
que lhe ladre.” À guisa de acréscimo, Viroli reconhece que nessas questões “parentesco e
amizade significam tudo. Quem não possuía, devia resignar-se a permanecer à margem,
por maiores que fossem suas qualidades.” 391
Skinner acredita que, possivelmente, tanto a formação humanista recebida por
Maquiavel e as amizades que possuía podem ser a chave para entendermos esse acesso à
chancelaria392, tirando assim do “mistério os motivos que levaram o Conselho dos Oitenta
e o Conselho Maior da república a escolher um jovem desconhecido.”393 A esse respeito,
vale observar que o julgamento não conclusivo de Skinner corrobora a análise de Burke já
citada:
Adriani havia assumido seu posto como primeiro chanceler no início do
mesmo ano, e parece plausível supor que se lembrasse dos talentos de
Maquiavel nas humanidades e decidisse recompensá-lo ao preencher na
chancelaria as vagas resultantes da mudança de regime. É provável,
portanto, que tenha sido graças à proteção de Adriani – juntamente,
389
BURKE, op. cit., pp. 256-257. O primeiro colchete é nosso.
RIDOLFI, op. cit., p. 31.
391
VIROLI, op. cit., p. 20.
392
SKINNER, 1988, op. cit., p. 18.
393
VIROLI, op. cit., p. 49.
390
84
talvez, com a influência dos amigos humanistas de Bernardo – que
Maquiavel se viu lançado em sua carreira pública no novo governo. 394
Algumas das reformas no funcionamento da chancelaria, no período em que
Bartolomeo Scala esteve no cargo de primeiro chanceler, considerava a necessidade de
dois homens no governo florentino, constituindo estes: o primeiro chanceler e um escriba
responsável por redigir ou/e elaborar propostas de reformas. Sobre as atribuições desse
último cargo Maquiavel era inteiramente susceptível de assumir, segundo GailleNikodimov.395
As atividades que seguirão as responsabilidades de Maquiavel em relação ao
cargo serão de fundamental importância para o amadurecimento de suas ideias políticas. O
contato com as intrigas palacianas, os conflitos entre Estados, as guerras, e as manobras
utilizadas para solucionar os problemas entre os estados alimentavam e enriqueciam o seu
arsenal teórico. Em suas missões, não raras vezes teve a “chance de perceber que, em
política, as paixões e os humores contam muito, bem como a arte de manobrar ambas as
disposições de espírito como adulações e cortesias.”396 Talvez por isso tenha alertado que
“as adulações enganam os homens porque com dificuldade se defendem dessa peste.”397
Encarregado de várias missões no território italiano e no estrangeiro, estava em uma
posição privilegiada enquanto observador político, progressivamente se torna um tipo de
conselheiro e, segundo Larivaille, o “homem de confiança (o testa-de-ferro e até o homem
de ação aos olhos da oposição) daquele que era, num certo sentido, o presidente vitalício
da República de Florença: o gonfaloneiro Piero Soderini.” 398
Inicialmente, o secretariado de Maquiavel consistirá, “sobretudo, num trabalho de
escritório: ler cartas, classificá-las, preparar e copiar as respostas.”399 Enquanto chefe dessa
sessão, Nicolau foi colocado também entre “os seis secretários do primeiro chanceler.” Isso
proporcionou que fosse direcionado para outras tarefas, como, por exemplo, a de servir os
Dez da Guerra. Esse comitê, entre outras atribuições, era responsável pelas relações
diplomáticas fora do território italiano, ou seja, agora ele era responsável por secretariar os
embaixadores em várias viagens no exterior “ajudando na tarefa de enviar a Florença
394
SKINNER, 1988, op. cit., p. 18.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 71.
396
VIROLI, op. cit., p. 100.
397
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 253.
398
LARIVAILLE, op. cit., p. 144.
399
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 72.
395
85
informações pormenorizadas sobre os negócios estrangeiros.” 400 Graças a essa nova
atribuição, a partir de 1499, começa uma maratona de missões diplomáticas quase que
ininterruptas.
As missões iniciais estão ligadas ao problema da reaquisição e sujeição de Pisa 401 que
a essa altura tinha se tornado a maior preocupação dos florentinos. 402 Em um momento de
incertezas, Maquiavel é enviado em sua primeira missão em março de 1499 para negociar
com o condottiere senhor de Piombino sobre “um aumento do soldo e tropas mais
numerosas”, já que este estava a serviço de Florença envolvido na questão de Pisa. 403 A
orientação dada a Maquiavel sobre essa missão demonstra de maneira não duvidosa o
caráter contestável de os florentinos dirigirem sua política externa; engano e bajulações
estão presentes nos ingredientes dessa política. 404 A ele é dito:
Expor-lhe-ás, assim, que o nosso mais caro desejo é satisfazer em todas
as coisas Sua Senhoria; dir-lhe-as que conhecemos bem a fidelidade e a
afeição que sempre demonstrou pela nossa República e que o temos na
maior das considerações. Usaras, então, belas palavras para convencer
das nossas boas intenções [...] mas isso com termos bastantes vagos para
que não comprometam a nada.405
Em junho do mesmo ano, viaja em sua segunda missão junto à Catarina Sforza406,
condessa de Ímola, “e também desta vez concernia à guerra de Pisa.” 407 O objetivo dessa
missão era garantir a neutralidade da condessa e, segundo Gaille-Nikodimov, “até mesmo a
sua aliança, na medida em que o seu território era atravessado por eixos estratégicos que
conduziam do Norte e ao Sul da Itália.” 408 Havia também o interesse de negociar com
Catarina a aquisição de armamentos, o recrutamento de soldados e a manutenção do seu
400
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 18-19.
A rebelião de Pisa se dá num contexto peninsular “em que as ameaças se multiplicam em toda parte: se
Lucca permanece neutra, Génova e Siena são-lhe hostis; Veneza, Milão e o papado não deixam de ter
pretensões territoriais. Em particular, Veneza, verdadeira vencedora de Fornovo di Taro, consegue ocupar, no
centro do território florentino, Bibbiena e vários castelos, e, após esta ocupação, renega rapidamente o
compromisso estabelecido com Florença sob a égide do duque de Ferrara para se empenhar noutra operação”.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 72. Há ainda outros conflitos internacionais em que a revolta de Pisa se
insere que não mencionamos aqui.
402
RIDOLFI, op. cit., p. 39.
403
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 73.
404
Ibid.
405
Ibid.
406
A figura de Catarina Sforza surge quase mítica nos escritos de Jacob Burckardt, talvez e principalmente
pela maneira heroica em que defendeu “seu pequeno edifício estado” como afirma Roberto Ridolfi, quando
da morte de seu primeiro marido Girolamo Riario.
407
RIDOLFI, op. cit., p. 43.
408
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 73.
401
86
filho Riario que a essa altura estava a serviço de Florença. 409 Os florentinos desejavam os
serviços de Ottaviano Riario, filho de Catarina, por mais um ano, mas para isso ofereciam
uma quantia inferior a do ano anterior quando tinha sido contratado por 15 mil florins. 410
Viroli, sobre essa missão, indica que em uma leitura atenta dos despachos oficiais,
Maquiavel dá a entender uma leve preocupação em convencer seus superiores a conferirem
o que Catarina solicita, no caso em questão um pagamento mais digno para seu filho. Essa
preocupação dele é no mínimo curiosa. Fica difícil saber se sua inquietação era de caráter
político de fato, ao ver nessa aliança uma parceria fundamental para Florença em termos
fronteiriços ou estava apenas absorvido pelos encantos da beleza da condessa. O estudo
biográfico de Viroli sobre Maquiavel nos mostra aspectos de personalidade que não devem
ser ignorados. Era burlesco em questões de amor, e quando se tratava de mulheres sua
reputação não era muito diferente, não era um dos mais sérios e confiáveis e sua fama de
mulherengo e libido por mulheres eram bem conhecidas.411 E no caso de Catarina, ele
certamente admirava sua beleza. Quando encontrou Catarina ela tinha, segundo Viroli, “36
anos e a fama de sua beleza devia ser bastante conhecida, já que Biagio Buonaccorsi pedira
ao amigo numa carta datada de 19 de julho que trouxesse” um desenho do rosto da
madonna.412 Viroli ainda diz que Maquiavel, “Em sua carta de 19 julho de 1499, afirmava
que se Florença pretendia conservar a amizade de Catarina, deveria agir com fatos e não
com palavras”. 413 Mas, embora ele provavelmente tenha se deliciado com a beleza do
corpo e a grandeza de espírito da condessa, dificilmente deixaria se desviar do seu objetivo
e em uma de suas cartas escreveu que Catarina “botava banca,” demonstrando assim que o
político havia sobrevivido diante da bela madonna.
A missão foi um fracasso, Maquiavel regressa em 1º de agosto e se envolve mais
uma vez com os assuntos da reconquista de Pisa 414, mas não esquecera o contato com a
bela Catarina que, em A arte da guerra, texto redigido entre 1519 a 1520, será lembrada de
maneira quase lendária415, e também será citada nos Discursos.416
Parte necessária do trabalho diplomático consistia no envio de correspondências cuja
função era esclarecer sobre o curso das negociações e os resultados obtidos, a essa altura os
409
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 73.
RIDOLFI, op. cit., p. 43.
411
Ibid., p. 29.
412
VIROLI, op. cit., pp. 53-55.
413
Ibid., p. 54.
414
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 73.
415
VIROLI, op. cit., p. 57.
416
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 325.
410
87
seus relatórios são bastante apreciados, talvez porque não mais se limitasse apenas aos
relatos missivos típicos dessa função, mas desenvolve análises sobre o que observa, tais
como o Discurso Sobre os Assuntos de Pisa Destinado aos Dez (1499), verdadeiro
discurso do método político-militar tendo em vista a reconquista de Pisa.417 Nesse texto,
um dos primeiros, já é possível observar a agudeza das descrições analíticas que busca a
cada seção isolar em análise os detalhes necessários para se submeter Pisa ao controle
florentino, compreendendo que “não se vê nenhum caminho pelo qual Pisa, sem se usar da
força, possa ser recuperada.”418 É difícil não perceber que mesmo nesse texto Nicolau já
raciocina “segundo um modo que reencontraremos de maneira corrente nas obras escritas
ao longo dos anos de 1510.”419
Com o problema da rebelião de Pisa se agravando, os florentinos decidem entrar em
acordo militar com a França. Nesse acordo, Florença entraria com a quantia nada ignorável
de “cinquenta mil escudos de ouro para engajar cinco mil soldados de infantaria suíços” 420,
além de manter a custo também elevado outro corpo de soldados na ocupação de Milão. A
França nesse acordo recrutaria os soldados e colocaria a disposição dos florentinos para a
retomada de Pisa, mas, essa tentativa resultou em fracasso. Skinner, em seu estudo sobre
Maquiavel, expõe sobre esse acordo que o desastre consistiu em que “os mercenários
gascões contratados por Florença desertaram, os auxiliares suíços amotinaram-se por falta
de pagamento, e o assalto teve de ser ignominiosamente cancelado.” 421
Com isso, no início do verão de 1500, Maquiavel e Francesco Della Casa são
enviados juntos à França como uma delegação extraordinária 422 para discutirem sobre o
fiasco da empreitada desenvolvida com a França. As instruções que foram dadas a
Maquiavel tinham como fim esclarecer que os florentinos não possuíam culpa no fracasso
da campanha, e de alguma forma deixar resvalar, ou insinuar, que a culpa seria dos
franceses ao escolher um capitão (Hugo Beaumont) covarde.423 Nesse caso, aparentemente,
Nicolau seria a escolha mais sensata, já que ele esteve no campo de batalha pisano e
417
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 74-75.
MAQUIAVEL, Nicolau. Escritos Políticos & A Arte da Guerra. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 84.
(Coleção a obra-prima de cada autor).
419
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 75.
420
VIROLI, op. cit., p. 62.
421
SKINNER, 1988, op. cit., p. 19.
422
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 75.
423
SKINNER, 1988, op. cit., p. 19.
418
88
presenciou pessoalmente os acontecimentos em questão, para de alguma forma defender
Florença das possíveis acusações dos franceses.424
Os dois embaixadores chegaram a Lião em 26 de julho aparentemente animados com
a incumbência.425 Contudo, esclarece Skinner, logo “descobriram em sua primeira
audiência com Luís XII, o rei não estava muito interessado nas desculpas de Florença por
seus fracassos passados. Ao contrário, queria saber que ajuda poderia esperar de um
governo tão visivelmente mal dirigido.”426 Não houve acordo entre as partes, de um lado os
franceses acusam os florentinos de insuficiência administrativa e econômica, do outro os
florentinos “acusam a França de não respeitar os seus compromissos de aliada” 427.
Maquiavel pode perceber que os franceses só “consideram quem possui armas, ou quem
está pronto para dar”.428 Essa primeira impressão não passou despercebida por ele e ditou a
direção das negociações posteriores na corte francesa.429
A corte estava regularmente fugindo dos focos da peste que então se alastrava pela
Europa, dessa forma os embaixadores tiveram que segui-la onde quer que fosse. Maquiavel
teve que permanecer cerca de seis meses na corte francesa e o resultado foi que durante
essa estadia ele aprendeu, segundo Skinner, “menos sobre a política dos franceses do que
sobre a situação cada vez mais equivoca das cidades-estado italianas.”430 Nesse ínterim
deve ter compreendido a diferença entre ser o orador e representante de uma nação
importante, como na sua missão anterior e estar diante do olhar altivo do maior monarca da
cristandade.431 E conclui que os franceses “estimam grosseiramente e de maneira
desconforme à dos senhores italianos. (...) são inconstantes e levianos. (...) São inimigos do
falar romano e de sua fama. Dos italianos, não tem bom tempo na corte senão quem não
tem mais o que perder e navegar por perdido.”432
A situação na corte da França estava se tornando insuportável para a delegação e
aparentemente mais ainda para Maquiavel que escrevia constantemente pedindo outra
delegação que os substituísse nas negociações com a França. 433 As transações adquiriram
um tom desagradável e os franceses insistiram que Florença pagasse pelo soldo dos
424
VIROLI, op. cit., p. 63.
RIDOLFI, op. cit., p. 53.
426
SKINNER, 1988, op. cit., p. 19.
427
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 76.
428
RIDOLFI, op. cit., p. 56.
429
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 19-20.
430
Ibid., p. 20.
431
VIROLI, op. cit., p. 63.
432
MAQUIAVEL, 2005, op. cit., pp. 67-68.
433
RIDOLFI, op. cit., p. 56.
425
89
soldados, mas o secretário argumentou, segundo Viroli, que Florença já estava exaurida
pelos gastos e que não seria justo pagar soldados que nem haviam combatido, pelo
contrário, haviam se amotinado e abandonado a campanha. Após o que os franceses
ameaçam Florença, caso não cumprissem o acordo, de os considerarem como hostis. O
autor ainda informa:
Se as satisfações políticas são magras, as matérias são ainda mais
esquálidas. O pouco dinheiro que a república dá não é suficiente para que
Maquiavel cubra suas despesas. Para seguir a corte, alugar cavalos,
expedir despachos e se sustentar, precisa usar o próprio dinheiro. Graças
às pressões do irmão Totto, obtém um aumento de salário em agosto, mas
durante toda a missão na França não recebe um tostão de Florença, exceto
os cinquenta escudos que o irmão lhe envia por intermédio de mercadores
florentinos que negociavam em Lião. 434
Aparentemente, ele já estava incomodado com a situação degradante que se
encontrava e Ridolfi alega: “As restrições que tinham aumentavam a desagradável posição
dos emissários e chegavam a lhes impedir de enviar especialmente um homem quando
precisavam.”435 As pesadas despesas e os escassos ganhos impossibilitavam a permanência
dos embaixadores na corte que já acreditavam não poderem mais conquistar benefícios do
rei a menos que a signoria surgisse com uma proposta que agradasse os franceses.
Enquanto aguardavam a nova delegação, a credibilidade do secretário na corte havia
se tornado motivo de riso e sobre a promessa de uma nova delegação para dar continuidade
às negociações teve que ouvir do arcebispo de Rouen com evidente desprezo que, “é
verdade que isto é o que o senhor diz, mas, antes que esses embaixadores cheguem,
estaremos todos mortos.”436 É possível, portanto, que Skinner esteja correto, quando
insinua que a primeira lição que Maquiavel tenha aprendido na corte de França, “foi que,
para qualquer pessoa versada nos procedimentos das monarquias modernas, a máquina
governamental de Florença parecia absurdamente vacilante e fraca.” 437 E como se não
bastasse ele ainda teve que ouvir a humilhante verdade dos franceses de que eles eram
“Senhores de Nada”.438
É nesse período que Cesar Bórgia começa suas manobras militares no território
italiano graças ao apoio financeiro de seu pai o papa Alexandre VI. Maquiavel regressa a
434
VIROLI, op. cit., p. 64.
RIDOLFI, op. cit., p. 56.
436
SKINNER, 1988, op. cit., p. 20.
437
Ibid.
438
Ibid., p. 21.
435
90
Florença após a legação francesa, mas apenas para ser enviado em nova missão em
princípios de 1501 à Pistotia. Até 1502 ele ficará mobilizado nos arredores de Florença,
mas a ameaça representada por Cesar Bórgia não demorou em movimentar os esforços dos
florentinos para enviar uma legação junto ao jovem conquistador.
Os florentinos precisavam concentrar parte de seus esforços diplomáticos, a partir de
então, em Cesar Borgia, já que esse representava uma ameaça iminente. E não sem razão,
já que depois de receber de seu pai, o papa Alexandre VI, o título de duque da Romagna,
por volta de 1501, esse jovem conquistador desenvolve uma série de campanhas bem
sucedidas, tornando-se “a ponta-de-lança e, até certo ponto, o instigador da política
hegemônica do pai.”439 Mas para entendermos a avalanche (e falamos avalanche em
sentido mais preciso) representada por Cesar Borgia precisamos recuar um pouco na
política desenvolvida por seu pai, que chegou, como notou Maquiavel, ser temido de modo
inclusivo pelo rei da França. 440
Antes de Alexandre VI a política desenvolvida pela Igreja romana esbarrava-se
sempre nos interesses dos barões da velha nobreza romana que estavam rigidamente
implantados nos arredores de Roma. A maioria desses barões estavam agrupados em duas
principais facções; eram estas os Orsini e os Colonna. Isso significa que, além dos
problemas inerentes entre os poderes rivais representados pela Cúria e o Capitólio, o papa
em exercício ainda precisava dedicar atenção a essa “terceira força”, como afirma
Larivaille, que embora menos visível podiam em tempos de crise ser decisivos.441 Porém,
talvez o problema estivesse no fato de que os próprios papas, quer por fraqueza ou
partidarismos, em diversos momentos, acabavam por favorecer as rivalidades existentes na
administração pontifical e entre os barões, como notou Maquiavel:
A causa da fraqueza do pontificado também estava ligada à brevidade de
duração dos papados, de dez anos em media: cada papa, à custa de muito
esforço, chegava a submeter uma das facções, mas quando, por exemplo,
conseguia quase aniquilar a facção dos Colonna, seguia-se um outro
papa, inimigo dos Orsini, que fazia reerguerem-se os Colonna mas não
chegava a destruir os Orsini em seu também breve papado. 442
Dado esse imbróglio da política eclesiástica, não é complicado não só compreender o
porquê do poder temporal dos papas nesse período ter possuído tão pouca credibilidade na
439
LARIVAILLE, op. cit., pp. 53-54.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 176.
441
LARIVAILLE, op. cit., p. 48.
442
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 177.
440
91
Itália, (diferentemente do que pensaram os reformadores do século XI quando arrazoaram
diligentemente sobre a necessidade de as autoridades seculares serem assentadas sob a
autoridade dos dignitários da cristandade 443), mas, também, a cuidadosa ironia com a qual
Maquiavel considera o governo dos papas, que tendo um estado não o defendem, e tendo
súditos não os protege444, e apesar de tudo, conforme o arrazoamento de Larivaille, “contra
toda a lógica humana, não são desapossados do seu Estado”445.
Alexandre VI, segundo Ana Echeverría, não foi um papa muito divino, e sua fama foi
a de ter os pés, geralmente, bem firmes nos interesses terrenos, mais preocupado em
defender os caprichos de sua linhagem446, cujos excessos em crueldades e cupidez não
conheciam outra ambição se não a própria, e “não conhecia outra justiça além da perfídia”,
como espraguejou Frederico da Prússia (1712-1786).447 Mas a política de Alexandre VI
acabou por contribuir para o fortalecimento da Santa Sé.448 De fato, ele sempre demonstrou
ser, de acordo ainda com Echeverría, mais brilhante nos assuntos terrenos, o que levou-o a
organizar as finanças da Igreja que encontravam-se deterioradas, através da organização de
vários eventos como, por exemplo, as festividades em torno do jubileu de 1500 que chegou
a atrair para Roma 200.000 peregrinos, e em vários momentos também demonstrou ser
habilidoso arbítrio em questões internacionais.449 Em princípio, antes de mais nada ele não
se esquivou da fruição do poder e do prazer, em vários momentos soube se utilizar de
meios fraudulentos para o fortalecimento da Igreja. A experiência anterior em vários
cargos sobre tudo o de vice-chanceler lhe proporcionou o conhecimento necessário sobre
como lidar com as fontes de renda da Igreja como nenhum outro membro da cúria seria
capaz.450 Talvez resida aí a impressão de caráter prático de Maquiavel por esse papa
belicoso que fomentou mudanças não ignoráveis na situação da Igreja em relação à sua
influência temporal diante da política europeia e da própria Itália, reconhecendo, de fato:
Como nenhum pontífice anterior a ele mostrou como um papa podia
impor-se pelo dinheiro e pela força(...). Embora o intento de Alexandre
não fosse o engrandecimento da Igreja mas sim o do duque [Cesar
443
STRAYER, op. cit., p. 26.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 175.
445
LARIVAILLE, op. cit., p. 50.
446
ECHEVERRÍA, Ana. Los Juegos de equilíbrio del astuto Alejandro VI. In. Historia y Vida. El poder de
los Borgia: Cómo se abrieron caminho hasta conquistar Roma. Barcelona: Prisma publicaciones, 2011, pp.
39-40.
447
FREDERICO DA PRUSIA, op. cit., p. 63.
448
ECHEVERRÍA, op. cit., pp. 39-40.
449
Ibid., p. 41.
450
BURCKHARDT, op. cit., p. 131.
444
92
Bórgia], tudo que ele fez resultou no fortalecimento da Igreja, pois após a
morte dele e a do duque a Igreja foi a herdeira dos esforços de
Alexandre.451
Com nitidez nota-se que o mesmo espírito presente em Alexandre VI pungia o jovem
Borgia que entre os anos de 1499 e 1500 já havia conquistado Ímola e Forli. Após ser
nomeado com o título de Duque da Romagna empreende outro assalto, desta vez contra
Urbino e Camerino. Em 1502 Cesar Borgia enfrentou uma conjuração por parte de seus
principais oficiais, provocada provavelmente pelo temor, não sem razão, como observou
Larivaille, de “serem eles mesmos as vítimas da fome insaciável do seu senhor”.452 Mas o
Duque habilidosamente provoca uma cisão entre os revoltosos antes de atraí-los para uma
armadilha que logo pôs fim a todos. Larivaille afirma que a partir de então o poder do
Duque se impõe por onde quer que este passe. 453
Os florentinos temendo que o Duque direcione sua atenção para seu território
manipulando-os conforme seus interesses, da mesma maneira que se utilizara de pequenos
senhores em suas empreitadas, decidem enviar Francesco Soderini e Maquiavel “para
vigiar os seus feitos e gestos e desvendar as suas intenções. Maquiavel instala-se então em
Imola perto de Bórgia, a quem Luís XII concedera o seu acordo para prosseguir o esforço
militar.”454 Esta legação teve uma duração provável de quatro meses, e está entre as
principais da carreira do secretário como diplomata.
Há um consenso de que a partir dessa temporada Maquiavel tenha adquirido sua
melhor formação no palco da diplomacia, é o que deduz Skinner, por exemplo, já que essas
missões lhe proporcionaram a chance de desenvolver o papel que mais lhe atraia: “o de um
observador direto da arte de conduzir os negócios do Estado que definia a política de seu
tempo”455, tomando parte do processo em condição de assessor. Skinner também insinua
que, “foi também nesse período que chegou a um julgamento definitivo acerca da maioria
dos líderes cuja política ele pode observar ainda em processo de elaboração.”456 Como no
caso do Duque.
No período em que esteve envolvido com essa legação, Maquiavel pôde observar de
perto as várias ações do Duque e delas extraiu várias lições que mais tarde aparecem como
451
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 177.
LARIVAILLE, op. cit., p. 54.
453
Ibid.
454
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 80.
455
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 22-23.
456
Ibid.
452
93
parte fundamental de O Príncipe. De fato, ele reconhece, em evidente tom de admiração,
não possuir “melhores preceitos para oferecer aos novos príncipes do que os vários
exemplos das ações do Duque”457. Entre os eventos presenciados durante essa legação duas
se destacam pela manifestação de impiedade e astúcia desse príncipe novo, Valentino. O
Duque havia conquistando recentemente a Romanha, e à frente da administração da
província encarregou Remirro d’ Orca, que entre outras atribuições de caráter era
conhecido pela sua crueldade e soberba, de maneira que seu governo também confirmou
sua fama de bárbaro pela dureza de sua administração. Para não atrair sobre si reputação
semelhante, Borgia decide pôr fim a Orca:
Para apagar os ódios e ganhar o apoio do povo, ele quis demonstrar a
todos que, se crueldades haviam sido cometidas, não fora da parte dele,
mas sim da dureza de caráter do ministro. Em vista disso, fez com que
certa manhã, na ocasião que lhe pareceu oportuna, Orca fosse cortado em
dois pedaços e exibido em praça pública de Cesena, ao lado de um
pedaço de pau e de uma faca ensanguentada. A ferocidade desse
espetáculo fez com que o povo ficasse ao mesmo tempo satisfeito e
espantado. 458
Outro episódio também sangrento trata-se do súbito massacre dos barões com
capacidade de opor-se aos seus planos militares e políticos. Esses Barões pertenciam à
família dos Orsini em sua maioria, tradicionalmente opositores ao Duque Valentino, como
também era conhecido Cesar Borgia. Eles haviam formado uma aliança contra Borgia e
também aparecem relacionados com a revolta de Urbino, que provavelmente haviam
provocado, de maneira a embaralhar os planos do jovem conquistador. Este, por sua vez,
não entra em choque direto, mas procura ganhar a confiança desses barões, buscando a
melhor ocasião para eliminá-los. A ocasião veio quando a sublevação se tornou
suficientemente evidente para ser ignorada. Os membros dessa assembleia decidiram
aproveitar a ocasião da revolta de Urbino e reuniram suas tropas para se apossarem de
lugares susceptíveis ao domínio do Duque. Florença não havia aderido ficando de fora
dessa revolta dando seu apoio a Borgia. O Duque ainda arrisca negociar e mantém sua
astúcia dissimulada por uma aparente resignação. A França decide também dar seu apoio
ao Duque através do envio de tropas. “Mas em vez de a utilizar para vencer militarmente
os inimigos, prossegue as negociações com eles, a fim de os enganar acerca de suas
457
458
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 149.
Ibid., pp. 151-152.
94
intenções.”459 De maneira que consegue reuni-los em Senigallia, para onde eles foram, nas
palavras de Maquiavel, ingenuamente, para caírem sob o seu poder; foram todos
executados.460 Dessa maneira entre outras o Duque lançou as bases de seu poder. O
secretário não deixou de dar sua aprovação à iniciativa do duque em se utilizar de suas
próprias armas em um momento em que era comum fazer uso de tropas mercenárias,
convencendo-se que, “qualquer um que esteja bem armado e tenha seus próprios soldados
sempre se encontrará numa posição de vantagem, qualquer que seja o curso tomado pelos
eventos.”461
Não nos interessa aqui verificar os efeitos dessas manobras na política florentina, mas
no espírito do secretário que a tudo observava com proximidade e suficiente entusiasmo. O
que a nosso ver prejudicou seu julgamento sobre as ações do Duque. Principalmente no
que diz respeito às várias inclusões feitas em sua obra mais conhecida tornando-o uma
espécie de arquétipo do príncipe ideal capaz de livrar a Itália, unificando-a. Essa admiração
precipitada o impediu de verificar as razões econômicas e políticas mais profundas do
sucesso de Valentino, que em um primeiro momento dependia principalmente do apoio do
pai, de onde boa parte dos recursos lhe afluía, política essa nada estranha aos Borgias. Mas
Valentino foi aquele que geralmente, como sugeriu um embaixador veneziano, se utilizava
do dinheiro do papa para engordar seus adversários para logo depois abatê-los.462 Daí o
aspecto mefistofélico d’O Príncipe percebido por Anderson. 463 Pode-se questionar, é bem
verdade, que buscar uma análise social e econômica por parte de Maquiavel no seu O
Príncipe, seja uma exigência injusta, ou como critica Arnaldo Cortina, “é querer outra obra
que O Príncipe não foi”. 464
Mas o fato é que, o próprio autor d’O Príncipe reconhece na dedicatória dos
Discursos seu “pouco conhecimento do passado”465, limitando-se (e outro modo não
poderia ser), a “tudo o que sei, tudo o que me ensinaram uma longa experiência e o estudo
contínuo das coisas do mundo”.466 É possível que o silêncio de Maquiavel (em temas como
economia) n’O Príncipe seja uma indicação de seu propósito primeiro, como ele explica a
459
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 82.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., pp. 150-151.
461
SKINNER, 1988, op. cit., p. 35.
462
RIDOLFI, op. cit., p. 75.
463
ANDERSON, op. cit., p. 168.
464
CORTINA, Arnaldo. O príncipe de Maquiavel e seus leitores. Uma investigação sobre o processo de
leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 177.
465
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 17.
466
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 13.
460
95
seu amigo Francisco Vettori em carta de 1513, discorrer apenas sobre os principados;
como estes são conquistados, conservados ou perdidos467. Por outro lado, também é
admissível argumentar que a razão desse autor não discorrer sobre estes temas seja o fato
de que ele não podia aprofundar seu discurso além do que podia ser dizível sobre tal
assunto.468 Restando-lhe apenas a superfície para ser observada e considerada. Ou como
ele alega que, “a Fortuna achou por bem que não soubesse discorrer sobre arte da seda e da
lã, e como não sei falar sobre ganhos e perdas, tenho que falar sobre as coisas do Estado,
assim ou faço voto de silêncio, ou falo dessas coisas”. 469 Fato é que “a Antiguidade,
mesmo na Itália, era conhecida de forma apenas superficial”470, essa “insuficiente cultura
histórica” não foi um problema de Maquiavel apenas, justiça seja feita, mas do
Renascimento, o que não deixou de provocar várias falhas e apropriações indevidas,
levando, como exclama Delumeau, a “erros dificilmente evitáveis!” 471
A mudança de atitude na dedicatória dos Discursos em relação ao Príncipe não deve
ser ignorada, mesmo não sendo incomum para o período, pois pode nos ajudar por um lado
a compreender a precipitada admiração cultivada a Borgia e sua própria limitação em
relação às causas da grandeza e fermentação dos principados, além do fator circunstancial.
Ora, Maquiavel na dedicatória dos Discursos despreza aqueles que atribuem aos príncipes
elogios e todas as virtudes, acreditando que quem procede dessa maneira deveria se
envergonhar de tal atitude, pois cegos pela ambição e avareza ignoram a nocividade de tal
atitude472, ele alerta:
Para um julgamento sadio, os homens devem saber discernir entre os que
são verdadeiramente generosos e os que têm apenas o poder material de
agir com liberalidade; entre os que deveriam dirigir o Estado e os que,
sem esta capacitação, se acham às vezes à testa de um império. 473
É cabível, portanto, julgar que a proximidade com os eventos presenciados durante as
missões e em especial no caso de Cesar Borgia tenha de alguma forma afetado seu
julgamento sobre as coisas do mundo. A grandeza das ações do duque teria ofuscado, por
467
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 103.
Ibid.
469
MAQUIAVEL, Nicolau. Carta a Francisco Vettori, Florença, 9 de abril de 1513. In. MAQUIAVEL,
Nicolau. Epistolário: 1512-527. México: Fundo de cultura Económica, 1990, p. 80.
470
DELUMEAU, op. cit., p. 100.
471
Ibid., p. 101.
472
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 13.
473
Ibid.
468
96
assim dizer, a percepção do secretário florentino, principalmente diante da nebulosa e
vacilante política de Florença.
Ridolfi acreditou que as lições dessas missões, e em especial essa legação junto a
Cersar Borgia, só surgem em toda sua força no espírito de Maquiavel em momento
posterior, mesmo porque, afirma ele, “como disse a propósito da missão à França, até
agora se deva falar mais do que de frutos, de sementes. Sementes que em seu próprio
período ocioso germinarão.”474 Por outro lado, Skinner não se deixou driblar pelo contorno
romântico presente no texto biográfico de Ridolfi, (Viroli também resvala para o mesmo
caminho) e explica que “um estudo das Missões Diplomáticas de fato revela que as
avaliações de Maquiavel, e suas epigramas, de um modo geral lhe vieram à mente de
imediato e mais tarde foram incorporados praticamente sem alterações às páginas dos
Comentários e em especial de O Príncipe.”475 Essa coloração precipitada se torna mais
evidente no caso de Valentino, como insinuamos acima, a quem ele passa a reconhecer não
como um mero condottiere soberbo, mas alguém que deveria “ser considerado como um
novo poder na Itália”476.
Assim, os preceitos d’O Príncipe perdem, (embora digam o contrário) por assim
dizer, em profundidade teórica, e por vezes dando aparência de uma coleção de lições
antiquárias resultantes da experiência imediata e confusa do secretário florentino. O fato de
esse escritor ignorar o processo de desenvolvimento e formação das estruturas ideológicas
das monarquias maiores da Europa, que ele inclusive acariciava certa admiração, são
decisivos para esse vazio em sua teoria. Segundo Anderson, Maquiavel não percebeu os
efeitos silenciosos da lenta, mas incomensurável força histórica que movia e legitimava as
grandes casas dinásticas477, nas quais residiam as raízes de um absolutismo emergente,
cujos elementos básicos, bem como explicou Strayer, podiam ser sentidos ainda nos
séculos XII e XIII por quase toda a Europa.478 A história da Europa, como um dia alertou
Braudel,
Desde muito é uma corrida: cidade contra Estado, digamos lebre contra
tartaruga. Ora, a lebre, a cidade mais ágil, ganhou logo no começo, como
era lógico. Mas o século XV, no Ocidente, assiste de novo à subida e à
chegada das lentas tartarugas. O Estado territorial triunfa, observemo-lo,
474
RIDOLFI, op. cit., p. 68.
SKINNER, 1988, op. cit., p. 23.
476
Ibid.
477
ANDERSON, op. cit., p. 166.
478
STRAYER, op. cit., p. 40.
475
97
no próprio Ocidente da Europa, diante do Atlântico, um oceano que ainda
não assegurou sua própria fortuna: a viagem de Cristovão Colombo data
somente de 1492. Precisamente, o Estado territorial se instalou fora das
regiões onde a lebre, isto é, as cidades, já ganhara a corrida. Diante dele,
poucas ou nenhuma cidade, ou cidades não muito poderosas, ou então
isoladas. Foi uma sorte para as monarquias modernas essa ausência de
obstáculo urbano serio diante delas, diante de seus “aparelhos de
funcionários” que conduzem ao desenvolvimento “horizontal” das
grandes formações políticas. Como a Alemanha, lato sensu, como a
Itália, principalmente ela, teriam conseguido se unificar? Elas são
eriçadas de cidades. Aliás, diante do Estado moderno, a cidade isolada
capitulará: Barcelona em 1460, Granada em 1492 e já Constantinopla em
1453, pois o Império Turco cresceu pelas mesmas razões que as
monarquias das bordas do Atlântico, numa zona de economia
retardada.479
A distância de experiência entre as cidades-estados italianas (lebres) e o restante da
Europa, essas lentas e pesadas tartarugas, são abismais. Restando a Maquiavel não outra
alternativa senão um olhar referencial mais circunscrito à experiência italiana que a essa
altura ainda estava mergulhada nas convulsões de aventureiros e tiranos provisórios, em
cujos horizontes (e somente) Cesar Borgia, através de sua conduta considerada criminosa e
ilegítima, poderia se tornar o modelo do príncipe novo coincidente com os anseios do
secretário florentino nesse momento. Se Anderson estiver certo, embora seja pouco
provável, talvez resida aí o verdadeiro anseio do secretário florentino.480
Ainda prosseguindo sobre as missões diplomáticas, ele observou em Cesar Borgia
um aspecto que iria contribuir mais tarde de forma central para sua reflexão com relação à
ação política, o bom emprego da ocasião. Aparentemente, ele chegou a comentar algo
nesse sentido com Francesco Soderini, com quem havia comprido algumas missões, e em
A maneira de tratar os povos rebelados do Vale do Chiana demonstrou a necessidade de o
governo florentino avaliar a situação dos rebelados do Vale do Chiana, tendo em vista
tanto o risco representado pelo duque ao mesmo tempo em que insinua as vantagens de
imitá-lo:
E lembra-me ter ouvido dizer ao Cardeal Soderini que, entre outros
louvores que se podiam dar de grande homem ao papa e ao duque, estava
o de que são conhecedores da ocasião e que a sabem usar muito bem,
opinião esta que está comprovada pela experiência oportuna das coisas
conduzidas.481
479
BRAUDEL, op. cit., p. 44. (Coleção história social da arte).
ANDERSON, op. cit., p. 164.
481
MAQUIAVEL, 2005, op. cit., p. 40.
480
98
Nesse mesmo texto Maquiavel tece uma de suas primeiras críticas à maneira de
Florença gerir os negócios em política, observando que Florença não soube valer-se da
ocasião ao lidar com Arezzo, como fizeram os romanos em situações de crise, ou quando
subjugaram outros povos, como foi o caso das revoltas dos povos latinos. Ainda ressalta a
necessidade do uso da força aliada à sabedoria, crendo ser estas “o nervo de todos os
regimes que alguma vez existiram neste mundo.”482 Para demonstrar tal princípio reportase ao discurso de Lácio Fúrio Camilo, que diante do Senado, entre outras assertivas,
afirmou: “Podemos nos tornar cruéis ou podemos perdoá-los, pois, rebelando-se, nos põem
em perigo com frequência.”483
A comparação histórica, de acordo Gaille-Nikodimov, estava se tornando um recurso
argumentativo ativo, presente nos escritos da época.484 É o que Maquiavel busca nesse
texto, ao mostrar como os romanos souberam se utilizar de ocasiões oportunas para
obterem êxito em suas empreitadas, ao mesmo tempo em que “emite repreensões duras e
severas contra o governo florentino, que recusa seguir os ensinamentos da história”485,
procurando aproveitar o momento quando as oportunidades são favoráveis para a ação tal
como os romanos o fizeram. Por outro lado, não foi sempre que ele teve esse discurso. E
em outras ocasiões defendeu a ideia da importância de “usufruir os benefícios do tempo”,
ou seja, “de contemporizar e deixar o tempo fazer as coisas.”486
Em janeiro de 1503, Maquiavel é substituído junto a Cesar Borgia, e regressa a
Florença. Mas esse não foi o fim das perturbações políticas para Florença. Os
acontecimentos em torno do problema de Pisa voltam a assombrar os florentinos que ainda
nesse mesmo ano é outra vez sitiada junto com a também problemática Arezzo. Mas o
secretário parece estar envolvido apenas em questões mais típicas ao seu ofício na
chancelaria.487 Esse é também o ano da morte de Alexandre VI (18 de agosto de 1503),
marcando o fim da bem-sucedida carreira de Cesar Borgia, mas não o fim das pretensões
terreais da Igreja. Com a morte do papa, junto com o cardeal Francesco Soderine são
indicados para a assistirem ao novo conclave. 488 Em seus primeiros despachos, Maquiavel,
482
Apud GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 83.
MAQUIAVEL, 2005, op. cit., p. 37.
484
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 83.
485
Ibid.
486
Ibid., p. 85.
487
Ibid.
488
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 86.
483
99
concentrado no conclave, avisa que, “por enorme maioria” 489, o cardeal de San Pietro in
Vincoli, Giuliano Della Rovere um antigo inimigo de Alexandre VI, havia sido eleito
como papa assumindo o pontificado com o nome de Júlio II.
A partir de então, Júlio II empreende uma série de investidas contra Cesar Borgia que
logo em seguida é preso em Óstia, sendo forçado a renunciar todas as suas conquistas. Este
foge para a Espanha, encontrando, finalmente, seu fim em 1507. Gaille-Nikodimov
explica:
Maquiavel considera, então, que a fuga de Cesar Borgia para fora da
Itália põe fim a uma certa configuração da relação de forças entre as
diferentes potencias presentes no território italiano. Em 1504, quando
compõe uma narrativa em verso dos acontecimentos ocorridos em Itália e
em Florença desde a incursão de Carlos VIII, conclui com a queda
daquele que tanto admirou, descrevendo “acorrentado e vencido” aquele
que, durante algum tempo, fez tremer Florença e chorar Roma.490
De qualquer forma, a morte do duque, como já sugerimos, não pôs fim às pretensões
da Igreja em assuntos mundanos e em vários momentos Maquiavel reconheceu as
implicações nocivas dessa atitude do clero romano. 491 Júlio II encontrou uma Igreja
praticamente livre das interversões dos barões que tantos entraves haviam incitado a esta,
encontrado o caminho franqueado para o fortalecimento de seu pontificado. Após
Alexandre VI, segundo o autor d’O Príncipes,
Júlio conservou para Igreja a posse de toda a Romanha, manteve
impotentes os barões de Roma cujas facções haviam sido anuladas por
Alexandre e também encontrou o caminho aberto para acumular dinheiro,
de um modo nunca antes praticado antes do tempo de Alexandre.
E Júlio não só se dedicou a manter essas conquistas. Ele quis conquistar
mais, e decidiu apossar-se da Bolonha, liquidar os venezianos e expulsar
os franceses da Itália, alcançando êxito em todos esses intentos e com
489
SKINNER, 1988, op. cit., p. 25.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 86.
491
“Maquiavel não teve necessidade de esperar pelo decorrer dos anos para tomar consciência do dinamismo
e dos efeitos da política pontifical conduzida por Alexandre VI e depois por Júlio I. A partir de 1499,
considera que essa política vai contra os interesses das outras potências italianas e em particular de Florença
relativamente a Pisa. Em 1500, por ocasião da sua legação em França, deplora a aproximação diplomática
entre a França e Roma. Pouco depois, denuncia a ambição do papa de destruir a organização política do
centro de Itália em proveito da Igreja. Desde a dupla formada pelo pai e o filho Bórgia até Júlio II, a ambição
romana permanece a seu ver a mesma. Contrariamente a uma longa tradição de pensadores medievais
investidos na querela acerca da plenitudo potestatis papal, Maquiavel não se interroga se essas pretensões ao
poder temporal por parte do papado são legítimas. Elas existem. Trata-se, antes de mais, uma vez
estabelecida esta constatação, de avaliar os efeitos dessa pretensão sobre a situação da Itália numa época em
que as suas riquezas e o seu território são cobiçados por potências estrangeiras.” Ibid., pp. 87-88.
490
100
muito credito para si, porque tudo que fez foi para fortalecer a Igreja, e
não por algum interesse particular dele. 492
Maquiavel não foi o único a dirigir juízos em relação à postura da Igreja na Itália,
Guicciardini em sua História da Itália (1535) explica que no início a Igreja tinha como
propósito administrar coisas espirituais, mas logo se tornou uma força mundana, cuja
influência estava, inclusive, presente “na origem das guerras e dos incêndios suscitados em
Itália.”493
1.5.1 A experiência de a “Arte da guerra”
Entre 1504 e 1512, segundo Gaille-Nikodimov,
A situação geopolítica de Itália e de Florença não melhora. Em particular,
este período conclui-se com um episódio dramático para Florença: o
saque de Prato, imediatamente seguido do regresso dos Médicis ao
governo. Este episódio marca o fim da carreira de Maquiavel na
chancelaria florentina.494
Maquiavel, no entanto, antes do desfecho desses eventos, segue contínuo em seu
trabalho. Ficou encarregado de organizar uma milícia popular para Florença. Embora não
tenha tido o êxito esperado, foi uma boa oportunidade para colocar em prática suas ideias
no que diz respeito à arte da guerra. Crítico que era das forças mercenárias, “que não
passam de milícias inúteis”495, acreditou ter encontrado nessa iniciativa um modo de livrar
Florença da ruína, que, segundo ele, as forças mercenárias já causaram na Itália em termos
de estrago e fraqueza. 496 Nesse sentido, ele integra e reafirma o posicionamento humanista
quando argumenta sobre a inutilidade e nocividade das forças mercenárias. No capítulo XII
d’O Príncipe, dirá que “para defender seu estado, os príncipes empregam ou suas próprias
milícias, ou milícias mercenárias, ou milícias auxiliares, ou mistas. As mercenárias e as
auxiliares são inúteis e perigosas.”497 Essa foi durante o Quatrocento uma devotada
preocupação entre os humanistas que viam esse tipo de ordenamento militar como uma
ameaça às liberdades conquistadas. E talvez até sintomático da ausência de senso cívico
492
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., pp. 177-179.
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 87.
494
Ibid., p. 91.
495
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 189.
496
ANDERSON, op. cit., p. 167.
497
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., pp. 181-182.
493
101
por parte dos cidadãos que não sentiam-se mais dispostos, como cita Skinner, a “lutar por
sua liberdade em face das agressões da tirania, mas em vez disso se dispõem a colocar a
defesa inteira de suas liberdades nas mãos – absolutamente não confiáveis – de tropas
pagãs e mercenárias.”498 Em A Arte da Guerra Maquiavel reitera a tese da necessidade de
uma força militar composta por cidadãos, buscando nos vários exemplos disponíveis da
Antiguidade uma justificativa para esta.499
O que ele não percebeu foi que além dos Alpes as forças mercenárias se tonaram uma
força necessária e condição prévia para os exércitos regulares. De acordo com Anderson,
as razões “desse equivoco militar, porém, tinha raízes no cerne de seus princípios políticos,
pois Maquiavel confundia os mercenários europeus com o sistema italiano dos
condottieri”. Para Anderson, a diferença básica estava no fato de que estes condottieri,
com suas tropas particulares, podiam deslocá-las ao seu bel prazer de um local para o outro
de acordo com os conflitos locais. Já os mercenários contratados para o serviço dos
governantes régios permaneciam inteiramente sob a gerência destes, geralmente, com o
propósito de construir os alicerces de seus exércitos regulares. 500
Assim, é provável que Maquiavel estivesse apenas reproduzindo as crenças
humanistas e de alguns autores clássicos que com frequência recorria, já “que o sistema de
mercenários em geral funcionou de forma bastante eficaz”501, como demonstra Skinner:
Uma possibilidade a se considerar é que nesse ponto Maquiavel apenas
estivesse seguindo uma tradição literária. O argumento segundo o qual a
verdadeira cidadania envolve o porte de armas fora enfatizado tanto por
Tito Lívio e Políbio quanto por Aristóteles, sendo retomado por várias
gerações de humanistas florentinos, depois que Leonardo Bruni e seus
discípulos retomaram a questão.502
Além desse evidente equívoco havia, por outro lado, outras intenções mais
subtendidas na mente do secretário, se o argumento de Viroli for acertado:
Maquiavel vive a experiência da construção da milícia como uma
oportunidade única de obter aplauso e glória, como havia dito o cardeal
Francesco Soderini. Mas, ao mesmo tempo, sente que tem nas mãos um
498
SKINNER, 2003, op. cit., p. 96.
ANDERSON, op. cit., p. 167.
500
Ibid., pp. 167-168.
501
SKINNER, 1988, op. cit., p. 54.
502
Ibid., pp. 54-55.
499
102
projeto que poderia servir para libertar a Itália do triste destino que as
estrelas lhe haviam preparado.503
Aparentemente esse período foi o momento mais fértil da vida de Maquiavel, pois,
nessa ocasião, enquanto secretário de Florença no governo de Soderini, ele não serviu
apenas como um simples funcionário, mas “era um homem da mais estrita confiança.” 504 É
possível que os modos de o secretário ordenar suas atividades na chancelaria, ou ainda,
talvez, a simpatia nutrida por ele aos ideais republicanos da liberdade, e adepto que era de
uma participação popular mais vigorosa, tenham atraído a atenção do Gofanoleiro Piero
Soderini de quem Francesco Soderini, o Cardeal, era irmão. Esse Francesco é o mesmo
citado antes, com quem Maquiavel havia cumprido algumas missões, e compartilhado de
sua opinião em várias situações como, por exemplo, no caso do conclave que elegeu o
papa Júlio II.
Na primeira década do século XVI Maquiavel já inicia o trabalho de recrutamento
de soldados para a milícia florentina. E em 1506 encaminha um pedido de acessórios e
armas para os soldados.505 Também nomeia chefes de milícia para auxiliarem no processo
de recrutamento. Esse projeto, no entanto, não era uma novidade para os humanistas
florentinos, e, aparentemente, retoma uma antiga tradição das comunas, tanto do centro
quanto do norte da Itália, que, de acordo com Gaille-Nikodimov:
Antes de usarem mercenários, tinham uma organização militar fundada
na ideia de que cada cidadão devia participar na defesa da cidade. E
emprego de condottiere e de soldados estrangeiros desenvolveu-se ao
longo do Quattrocento, à medida que se constituía uma prospera classe
mercantil e se desenvolvia um poder de tipo oligárquico. Com efeito
“dantes”, quer dizer, ao longo do Trecento, “o povo pegava geralmente
em armas e conduzia ele próprio a guerra [...] com o tempo, porem a
condução das operações militares passou a ser responsabilidade de
soldados mercenários. Então, o poder na cidade parecia assentar não na
multidão, mas nos patrícios e nos ricos que podiam dar dinheiro ao
governo e cujos conselhos lhe serviam melhor do que as armas. Foi assim
que o poder popular se desvaneceu a pouco e pouco e o governo assumiu
a forma que lhe conhecemos”.506
503
VIROLI, 2002, op. cit., p. 112.
BARROS, Douglas Ferreira. Homem múltiplo. In: Discutindo Filosofia, ano 1, nº 4. São Paulo: Editora
Escala, p. 16.
505
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 110.
506
Ibid.
504
103
Apesar dos seus esforços em organizar a milícia, Florença parece resistir à ideia,
mas o secretário não se deixa abalar e prossegue; em 1508 alista soldados para outra
investida contra Pisa, aparentemente os liderando em campo. No ano seguinte a cidade se
rende. Essa vitória é atribuída ao secretário, mas isso parece não incentivar sua
permanência no projeto por parte de seus líderes que logo depois retiram-no das
atribuições relativas à milícia incumbindo-o de outras missões. 507
O cenário geopolítico na Itália a essa altura não era dos mais animadores, novas
peças são movimentadas nesse tabuleiro que não para de mudar e colocam em risco
constante a “estabilidade” política italiana. Fernando, o Católico, está entre as figuras mais
emblemáticas, que, segundo Maquiavel,
Podemos considerá-lo quase que um príncipe novo, porque, de rei pouco
importante que era, conquistou fama e glória e se tornou o primeiro rei
católicos. Atentando para as realizações dele, vê-se que são todas
muitíssimo grandiosas, algumas delas extraordinárias. No começo de seu
reinado, assaltou Granada, e esse empreendimento constituiu a base de
seu estado. No começo, agiu sem provocar alarde, garantido, assim, que
não houvesse oposição a ele. Manteve ocupados os barões de Castela,
que, entretidos com a guerra, não tinham tempo para pensar em fazer
outra coisa. Assim, Fernando foi conquistando-lhes prestígio, adquirindo
autoridade sobre eles, que disso não se apercebiam. Naquela longa
guerra, ele conseguiu, com o dinheiro da Igreja e com o do povo,
sustentar e organizar uma milícia que lhe acrescentou grande prestígio.
Além disso, para lançar-se em maiores empreendimentos, sempre se
servindo da religião, ele lançou mão de uma crueldade disfarçada em
piedade, espoliando os marranos e expulsando-os de seu reino, uma ação
que dificilmente pode ser superada quanto à sua torpeza. Sob o mesmo
pretexto, assaltou a África, fez campanha na Itália e recentemente
assaltou a França (...).508
Talvez seja em função desses novos poderes que Maquiavel esteja mais alerta e
frequentemente interessado por assuntos militares. De fato, em contexto posterior dessa
ainda conturbada Itália, “organiza uma milícia a cavalo e procura garantir as defesas de
Florença contra o exército da Santa Liga. Mas o saque de Prato põe fim ao seu trabalho no
domínio militar, tal como ao resto da sua carreira.” 509
Apesar de o projeto de uma milícia não ter obtido os resultados desejados pelo
secretário florentino, o legado permaneceu vivo em algumas das principais mentes da
época. Entre os herdeiros estava o humanista e amigo Francesco Guicciardini, Lodovico
507
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 111.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., pp. 243-244.
509
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 111.
508
104
Alamanni510 e Donato Giannotti, que, após seu retorno de Veneza em 1527, momento em
que os Médicis são expulsos de Florença, organizou uma milícia cívica para resistir ao
assédio ocorrido entre 1529 e 1530.511
1.5.2 O crepúsculo
Após a dissolução do governo de Piero Soderini por volta de 1512, os Médicis
retornam o poder, dissolvendo a república e instalando um governo aristocrático. De fato,
os Médicis, mesmo durante o período em que estiveram longe do poder, mantiveram
influência com grupos da elite florentina, buscando articular métodos que levantassem
“suspeitas sobre a autoridade e a segurança do governo republicano.”512 Quando do saque
de Prato, Florença entra em pânico e muito daqueles que haviam apoiado Soderini agora
acusavam-no de ser responsável pela ruína e males sofridos pela república, devido seu
espírito fraco e hesitante.513 Barros acredita que umas das razões pelas quais Maquiavel
tenha sido deposto de suas funções pode ser atribuído à sua fidelidade ao governo.514 Ora,
a sorte de Maquiavel estava ligada ao regime republicano, como constatou Skinner515,
dessa forma, não seria coerente com o novo governo conviver com um de seus mais fieis
clientes, mesmo que ele posteriormente tenha tentado se convencer do contrário. Nesse
momento ele é obrigado a abandonar suas funções, e
Em 7 de novembro, foi formalmente demitido de seu cargo na
chancelaria. Três dias depois, foi condenado ao confinamento no
território florentino por um ano, custando sua fiança a enorme soma de
mil florins. Então, em fevereiro de 1513, veio o pior de todos os golpes.
Por engano, foi considerado suspeito de envolvimento com uma frustrada
conspiração contra o novo governo dos Medici e, após ser torturado, foi
condenado à prisão e ao pagamento de uma pesada multa. Como
reclamaria mais tarde aos Medici, na dedicatória de O Príncipe, “a grande
e contínua malícia da Fortuna” subitamente se abatera sobre ele com
violência.516
510
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 111.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 175.
512
BARROS in Discutindo Filosofia, op. cit., p. 16.
513
VIROLI, 2002, op. cit., p. 156.
514
BARROS in Discutindo Filosofia, op. cit., p. 16.
515
SKINNER, 1988, op. cit., p. 37.
516
Ibid.
511
105
Em nota que, segundo Ridolfi, havia sido extraviada pelos conspiradores, havia uma
lista de provavelmente vinte nomes de presumíveis partidários da conjura. Essa nota foi
levada para o Concelho dos Oito para investigação, nela, o sétimo da lista era Nicolau
Maquiavel. Se isso se constitui um engano, não sabemos, mas pela avaliação de Ridolfi
distinguimos que Agostino Capponi e Pietropaolo, os principais acusados, não eram muito
prudentes, e que as notas tinham como fim listar entre os amigos alguns daqueles que
“eram pouco amigos dos Medicis”. 517
Com a morte do papa Júlio II e a eleição de Giovanni Médici (1475) (Leão X),
Maquiavel tenta, mas, sem resultados, obter prestígio com o novo governante, através de
seu amigo Vettori. Porém no mesmo período, Maquiavel já irá se auto-exilar em uma
pequena propriedade familiar, onde passou parte da infância, localizada em uma aldeia
próxima a San Casciano. Esse é o fim da “carreira de um hábil negociador e político
especialmente observador crítico.”518 Era o término da carreira, no sentido de que sua vida
pública não mais voltaria a ser como antes, mas é também o início dos seus trabalhos
intelectuais, que, conforme Barros (e outra legião de autores), mudariam “os horizontes do
pensamento político italiano”519. Será nessa pequena aldeia, recluso em sua cabana, que
encontrará “nas antigas cortes dos homens da antiguidade” 520 o prazer dos diálogos sobre
temas “que somente é para mim e para o qual nasci.” 521 No ostracismo maquiaveliano
havia um desejo de viver as aventuras de um momento que não mais pertencia a esse
patriota, mas a esse pensador que agora carecia dos diálogos, das intrigas e teatralidade da
política, a taberna em Sã Casciano junto a moleiros e lenhadores lhe reservava um seleiro
de diversão que as intrigas da tessitura política não podia lhe proporcionar, sua alma, de
certa forma, se regalava e as lembranças de uma vida dedicada à Florença agora eram
preenchidas em seu espírito nas noites de reclusão com outro tipo de aventura, a
intelectual. E será nessa pequena propriedade que nascerão as reflexões que farão de
Maquiavel um dos “protagonistas da filosofia política moderna nascente.”522 É lá que,
segundo Jean Touchard, “desbrava, digamos assim, o terreno onde virão edificar-se as
novas construções.”523
517
RIDOLFI, op. cit., p. 158.
BARROS in Discutindo Filosofia, p. 17.
519
Ibid.
520
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 103.
521
Ibid.
522
BARROS in Discutindo Filosofia, op. cit.
523
TOUCHARD, op. cit., p. 25.
518
106
A vida rústica e por vez grosseira que passou a ter em exílio, não foi de todo
infrutífera, e embora Maquiavel por vezes tenha demostrado não ter apreciado muito esse
distanciamento da chancelaria, foi durante esse período que escreveu suas duas principais
obras políticas, O Príncipe (1513) e os Discursos (1513-1517).524 Em sua propriedade ele
encontra outras formas de prazer que não o teatro da política. A poesia e a literatura além
dos seus trabalhos políticos lhe tomam boa parte do tempo. Em carta (1513) a seu amigo
Vettori, não fala mais em emprego junto aos Médicis, como nas cartas anteriores 525, talvez
por ter percebido que seu amigo ou não estava muito interessado em ajudá-lo, ou não podia
fazê-lo. Mas informa-lhe sobre um pequeno opúsculo que estava escrevendo, Dos
Principados. Resultado de suas vigílias noturnas e das experiências anteriores na
chancelaria. Seu apreço pelas questões do Estado permanece intacto como é possível notar
na correspondência que mantém com Vettori. Nesse período de ócio forçado ele tornou-se
o escritor tal como julgamos conhecer hoje. Segundo Ridolfi, Maquiavel,
Estava completamente absorvido, não ligava para mais nada. Ia a
Florença por tarefas ou por livros. (...) é uma espécie de destino de
Maquiavel dever suas obras-primas à má vontade, à indiferença, ao
egoísmo das pessoas. Aos Medici, que lhe fizeram perder o emprego, o
colocaram em prisão domiciliar, o deixaram por muito tempo no
abandono e na miséria, deve O Príncipe, Discursi... e tantas outras suas
paginas eternas que, com razão se disse “assim como para Dante não se
pode conceber a ...Commedia sem o exílio, tampouco para Maquiavel não
pode ser concebida... sem o exílio da política”. 526
Em Florença a situação política por algum tempo parece adquirir uma configuração
favorável à estabilidade, segundo Gaille-Nikodimov. O trono de São Pedro agora é
ocupado por João de Médicis, a França faz as pazes com o Vaticano. Luís XII casa-se com
524
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 115-116.
Segundo explica Skinner, “A maior esperança de Maquiavel, como confidenciou a Vettori, era de que seu
tratado pudesse servir para atrair sobre sua pessoa a atenção “de nossos senhores os Medici” (C 305). Uma
das razões para que quisesse fazer-se notar desse modo – como deixa claro a sua dedicatória de O Príncipe –
era seu desejo de oferecer aos Medici “uma prova de que sou seu leal súdito”. Suas preocupações nesse
sentido parecem até mesmo ter prejudicado os padrões normalmente objetivos de sua argumentação, pois
com grande tato sustenta no capítulo 20 de O Príncipe que os governantes novos podem esperar encontrar
“mais lealdade e ajuda naqueles homens que no início de seu governo eram considerados perigosos do que
naqueles em quem confiavam no princípio”. Visto que tal tese será mais tarde inteiramente contradita nos
Comentários, parece difícil deixar de admitir que, neste ponto, uma certa dose de súplica, reclamando uma
consideração especial teria entrado na análise de Maquiavel, sobretudo na medida em que, cheio de zelo,
repete que “não devo deixar de lembrar a todo príncipe” que sempre se pode esperar “mais vantagens” de
“homens que estavam satisfeitos com o governo anterior’ que de quaisquer outros.” SKINNER, 1988, op.
cit., p. 41.
526
RIDOLFI, op. cit., pp. 174-175.
525
107
a irmã de Henrique VIII (1491-1547) reconciliando-se com este. Outras alianças são
forjadas proporcionando um movimento em direção à paz, ou paz perpetua, como
chamaram o acordo entre o Duque de Milão que promete defender Florença de possíveis
agressores, negociando uma concordata em 1516 com Leão X, formando com o papa uma
liga em que Florença é inserida.527 Esse período de paz igualmente contribuiu para que
Maquiavel se dedicasse em suas atividades intelectuais, mesmo ali, em seu exílio.
Assim, o principal de O Príncipe foi escrito em 1513, mas seu texto final pode ter
sido concluído apenas no verão de 1514, como atesta Gaille-Nikodimov. Maquiavel enviou
uma cópia manuscrita para Vettori, querendo saber da opinião do amigo, mas teve apenas
um frio silêncio como resposta. O texto em si, relativamente claro e simples em sua prosa,
não procura se utilizar de floreios, e Maquiavel parece bem consciente disso, como explica
na dedicatória do texto: “Não adornei esta obra e nem a carreguei com frases sonoras,
lisonjas ou ornamentos extrínsecos, como muitos fazem em suas obras, porque eu quis que
ela agradasse pela variedade de conteúdos e pela gravidade do assunto.”528
Após a conclusão d’O Príncipe, Maquiavel, aparentemente desiludido de conseguir
um novo emprego na nova administração da cidade, parece dedicar-se mais ao ofício das
letras, segundo Skinner.529 Em 1514, ano provável do termino d’O Príncipe, o secretário,
ou melhor, o ex-secretário recebe autorização para retornar para Florença. É então que ele
oferece o texto a Lourenzo di Piero de Médici, duque de Urbino, também sobrinho de
Lourenço, o Magnífico, talvez por pensar em conquistar a simpatia deste. Mas o resultado
não foi o esperado. Diz-se que Lourenço à época em que foi presenteado com O Príncipe
havia recebido ainda um casal de cães de caça sendo aquele desprezado por estes. Verdade
ou não, fato é que O Príncipe só foi publicado em 1532, em Roma e em Florença
respectivamente. Mas parece ter circulado antes como manuscrito. Contudo, desde sua
publicação foi traduzido e comentado em várias partes da Europa do século XVI.530
Logo depois de sua publicação, O Príncipe se encontrou cercado de sucessos e
escândalos. Originalmente, o texto foi dedicado a Giuliano de Médici, mas, com a morte
deste, transfere sua dedicatória a Lourenzo.531 “No centro dessa breve mais densa página
527
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 122.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 111.
529
SKINNER, 1988, op. cit., p. 79.
530
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., p. 123.
531
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 189.
528
108
estava a consciência de que, para um homem de berço humilde como Maquiavel, impor
regras ao poder principesco era um gesto decididamente audacioso.”532
Essa atrevida pretensão Maquiavel procura resolver propondo um exemplo que na
época já não era desconhecido por seus contemporâneos. Ele antecipa sua defesa contra
aqueles que pudessem acusá-lo de demasiada pretensão, demonstrando que para se
descortinar a verdade se faz muitas vezes necessário certo distanciamento desta. A
realidade efetiva das coisas só torna-se visível ao olhar esquadrinhador do outro:
Do mesmo modo como os que desenham os contornos dos países se
colocam na planície para apreciar a natureza dos montes e sobem até ao
alto para apreciar a natureza das planícies, é também necessário ser
príncipe para conhecer a índole do povo e é necessário ser alguém do
povo para conhecer a índole de um príncipe.533
Nas margens dessa reflexão já é possível ver que se delineia parte da objetividade
pretendida pelo autor. Para se compreender essa figura de linguagem é preciso reportar ao
possível encontro de Maquiavel com um dos mestres da perspectiva renascentista. Quando
Maquiavel esteve na corte de Borgia em Ímola, Leonardo da Vinci, que a essa altura tinha
sido contratado como “engenheiro militar”534, estava presente no séquito.535 Mais tarde a
Signoria encomenda uma pintura a Miguel Ângelo (1475-1564), uma pintura da batalha de
Cascina que confia a da Vinci a pintura, cujo pagamento o secretário da chancelaria havia
ficado encarregado de despachar.536 Meses depois da Vinci elabora um mapa de Ímola
exemplar de sua competência de representar paisagens à distância. 537
O que frequentemente tem sido chamado de cinismo pode ser o resultado do desejo
pela “realidade efetiva” das coisas, nutrido pelo autor d’O Príncipe, diferente daqueles que
“têm imaginado repúblicas e principados nunca vistos e de que nunca se teve notícia.”538 É
possível que essa propensão maquiaveliana, como sugere Ginzburg, tenham “sido se não
inspirada pelo menos reforçadas pela atitude distante e analítica de Leonardo em face da
realidade.”539
532
GINZBURG, 2001, op. cit., p. 189.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 111.
534
Segundo Delumeau, o termo “engenheiro’ empregado pela primeira vez por Salomon de Caus no início do
século XVII, designava originalmente um técnico militar”. DELUMEAU, op. cit., p. 139.
535
GINZBURG, 2001, op. cit., p. 190.
536
GAILLE-NIKODIMOV, op. cit., pp. 87-88.
537
GINZBURG, 2001, op. cit., p. 190.
538
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 199.
539
GINZBURG, 2001, op. cit., p. 190.
533
109
É também uma advertência contra aqueles que buscam olhar a realidade com óculos
coloridos (a expressão é de Isaiah Berlin), por um desejo que esta se enquadre em seus
desejos e esperanças, como o de um modelo de homem que só existe na ficção.540 E de
certa forma, correndo o risco de sermos demasiado anacrônicos, antecipa Nietzsch, ao
constatar sobre as “coisas que parecem virtudes, mas quando praticadas acarretam a ruína e
há coisas que parecem vícios mas quando praticadas trazem a segurança e o bem-estar do
governo.”541 Se dissimular, o fingir ser, favorecer o fortalecimento da república, a
dissimulação seria então uma virtude, já que aqui ela trabalharia como conservadora de
vida. Diferente dos pressupostos dos moralistas retóricos, ele parece não buscar uma mera
performance argumentativa, mas buscou, segundo Adverse, devolver, por vários
mecanismos, sua origem “selvagem”, libertando, por assim dizer, a relação “entre retórica
e poder”, do “jugo da verdade” 542. Sobre o juízo de inverdade Nietzsche também não
estava preocupado com a coisa em si, mas o quanto ela poderia cultivar e conservar a vida.
Um juízo para que se conserve Além do bem o do mal, (acima da maneira habitual de se
pensar) precisaria reconhecer as várias inverdades como própria condição da vida, mas isso
também significa, sem dúvida, enfrentar os preconceitos habituais e os vários sentimentos
de valor.543 Hannah Arendt também esteve atenta sobre essa questão e percebeu a presença
e o papel da inverdade em assuntos políticos, mas não de um de ponto de vista positivo,
A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre
foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos. Quem
quer que reflita sobre estas questões ficará surpreso pela pouca atenção
que sido dada ao seu significado na nossa tradição de pensamento político
e filosófico; por um lado, pela natureza da ação, e por outro, pela
natureza de nossa capacidade de negar em pensamento e palavra qualquer
que seja o caso. Esta capacidade atuante e agressiva é bem diferente de
nossa passiva suscetibilidade em sermos vítimas de erros, ilusões,
distorções de memória, e tudo que possa ser culpado pelas falhas de
nossos mecanismos sensuais e mentais. 544
Essa senda percorrida por nosso autor nos leva necessariamente a crer que ele tenha
percebido que a verdade sempre é o resultado de pontos de vistas diferentes, são resultados
540
BERLIN, Isaiah. A originalidade de Maquiavel. Prefácio in. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São
Paulo: Ediouro, 2002, p. 38. (Clássicos ilustrados)
541
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 201.
542
ADVERSE, Helton. Retórica e poder. In. Discutindo Filosofia. Maquiavel: as verdadeiras ideias de um
pensador incompreendido. São Paulo: Escala educacional, ano 1º, nº 4, p. 31. [edição especial]
543
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 11.
544
ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 15.
110
das representações de um príncipe ou de um povo.545 No entanto, a validade desta só pode
ser percebida pelos seus frutos. Os meios podem parecer nocivos, mas se o resultado for o
de conservar, o julgamento deve ser outro. Daí que para se compreender a “realidade
efetiva das coisas” é preciso estar em uma condição privilegiada, de preferência
periférica. 546
Maquiavel também, à semelhança de seus contemporâneos, demonstra certa
preocupação com os efeitos do poder da “Fortuna” nos negócios humanos. E em sua
análise no capítulo XXV d’O Príncipe ele compara a fúria dessa deusa com um rio
impetuoso:
Eu comparo a sorte [entenda-se Fortuna] a um rio impetuoso que, quando
se encoleriza, alaga as planícies, derruba arvores, destrói edifícios, arrasta
montes de terra. Tudo foge diante dele, tudo cede a seu ímpeto e nada
pode detê-lo. Conhecendo isso os homens deveriam aproveitar o tempo
de quietude para tomar as devidas providências, fazendo canais e diques
para que na próxima cheia esse rio corra através de um canal e o ímpeto
de suas águas não seja tão livre nem tão danoso. A ação da sorte é como a
do rio impetuoso. Ela manifesta seu poder onde não há forças
organizadas para resistir a ela.547
É fundamental, pois, estar atento ao poder da “Fortuna”, mesmo quando ela parecer
ser favorável é preciso não depositar nela uma falsa segurança de maneira que os negócios
humanos se tornem sujeitos aos seus caprichos. Vale observar que Maquiavel, como notou
Manieri, “não propõe uma saída de ordem religiosa para aplacar a ira da Fortuna. Indica,
sim, uma práxis humana (transformadora) para conter seus avanços.”548 De fato, Bignotto
já havia assegurado algo nessa direção, quando percebeu que os humanistas estavam cada
vez mais preocupados com as coisas humanas privilegiando-as, e diferente de alguns
pensadores do medievo (Santo Agostinho, por exemplo), assentam a ação humana como “o
núcleo de suas preocupações com a conservação das estruturas do poder.”549 As
implicações da crítica maquiaveliana sobre a “Fortuna” dizem, igualmente, respeito à
necessidade de uma certa dose de impetuosidade por parte do Príncipe para reger os
negócios humanos de maneira a impedir que essa deusa tenha livre curso. Sua proposta é a
de que para conter o ímpeto da deusa também se faz necessário uma ousadia humana
545
GINZBURG, 2001, op. cit., p. 191.
Ibid.
547
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., pp. 263-264.
548
MANIERI, Dagmar. Teoria da História: a gênese dos conceitos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 64.
549
BIGNOTTO, op. cit., p. 32.
546
111
compatível, essa seria sua práxis humana fundadora, de acordo com Manieri. 550 Pois como
diz Maquiavel,
A sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater nela e contrariá-la. E
se vê que ela se deixar mais facilmente vencer pelos impetuosos do que
pelos cautelosos. Além disso, a sorte, por ser mulher, é sempre amiga dos
jovens porque são menos respeitosos, mais ferozes e com maior ousadia a
dominam. 551
Embora com a figura do rio possa (e de fato) se ter uma ideia de uma deusa furiosa,
essa não era definidamente a maneira como os pensadores clássicos a viam. Pelo contrário,
acreditava-se, como bem notou Skinner, que ela era uma boa deusa, aliás, detentora de
vários dons e bens que eram descritos de formas variadas por esses moralistas. Entre eles
estavam a honra, glória e poder, como preferia acreditar Salústio. E Cícero, em Obrigação
Moral, várias vezes havia enfatizado sobre a necessidade de o homem aspirar a glória,
como o mais elevado dos dons.552
De maneira que entre as várias discussões desses pensadores uma dominava sua
preocupação: qual atitude assumir para persuadir a deusa a ceder aos homens os seus
benefícios? Ora, embora a “Fortuna” seja uma deusa ela ainda é mulher. Eles concluem
então que por ser mulher está inclinada a ser atraída por homens ousados e varonis. A
deusa favorece os bravos, disse Tito Lívio. Cícero estabelece que para se tornar um homem
de fato é preciso estar na “posse da virtus em seu mais alto grau.” Pois a Fortuna gosta de
homens verdadeiramente fortes, que expressam coragem e virilidade.553 Essa interpretação
da “Fortuna” como também da ideia de virtu não sobreviveram ao advento da filosofia
cristã que passou a valorizar um tipo de virtu, ou, nesse caso, virtude, diferente. Era o
triunfo dos mais fracos, de acordo assim com os ensinamentos do Cristo e do auto
aniquilamento paulino.
A Fortuna passa a ser vista como uma força cega e desgovernada que a tudo aniquila
em seu caminho, assumindo, por outro lado, uma postura impassível e indiscriminada ao
distribuir seus dons. Uma forma diferenciada de pensar a natureza da deusa se instala e que
trouxe, por outro lado, um sentido diferenciado sobre sua importância. Boécio (480-525)
550
MANIERI, op. cit., p. 65.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 267.
552
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 45-46.
553
Ibid., p. 46.
551
112
falando sobre os méritos da deusa dizia não serem “absolutamente nada.”554 E ataca o
pressuposto fundamental de que ela poderia de alguma forma ser convencida a
compartilhar seus dons com os mortais, bastando para isso que estes demonstrassem virtu.
Skinner alega que essa mudança de atitude em relação à deusa é o resultado das investidas
de Boécio em reconciliar a “Fortuna” e a providência divina. Ora, o que Boécio faz é um
verdadeiro sincretismo onde a deusa surge como aliada, ou melhor, uma agente da
benévola providência de Deus. Essa crença não deixou de exercer uma profunda influência
sobre alguns dos principais humanistas.
Maquiavel parece ter se esforçado para restaurar o significado clássico desses temas
(Fortuna e virtu) que são centrais em sua obra. Mas nem por isso deixou de compartilhar
com as crenças humanistas e de se utilizar de argumentos da filosofia cristã, como bem
demonstrou Skinner:
Ao discutir ‘o poder da Fortuna nos negócios humanos’ no penúltimo
capítulo de O Príncipe, por sua maneira de tratar esse tema crucial,
Maquiavel se revela um típico representante das atitudes humanistas. O
capítulo começa com a invocação da crença familiar de que os homens
são ‘controlados pela Fortuna e por Deus’, e com o registro da aparente
implicação de que ‘os homens não têm recurso contra a variação do
mundo’, já que tudo é predeterminado pela providência. Em contraste
com esses pressupostos cristãos, imediatamente apresenta uma análise
clássica da liberdade do homem está longe de ser absoluta, já que a
Fortuna é imensamente poderosa e ‘pode ser senhora de metade de nossas
ações’. Mas insiste que supor que nosso destino estaria inteiramente em
suas mãos seria ‘anular nosso livre-arbítrio’. E, já que adere com firmeza
à visão humanista de que ‘Deus não faz tudo, de modo a não tirar de nós
nosso livre-arbítrio e parte da glória que nos é própria’, conclui que
metade de nossas ações, ‘ou quase’, deve estar genuinamente sob nosso
controle, e não sob o império da Fortuna.555
A imagem da “Fortuna” como uma mulher que precisa ser dominada é a mais
marcante e exemplar em sua obra do que ele entende por virtù. E é nessa direção que os
argumentos maquiavelianos contribuem com mais vivacidade para o ideário renascentista
sobre a questão da liberdade. Mas também desenvolve sua crítica à moral humanista.556
Sabemos que Maquiavel, aparentemente, estava consciente de estar partindo contra vários
dos pressupostos humanistas, mas só quando situarmos sua obra no contexto intelectual
mais próximo poderemos chegar a uma conclusão aproximada e vermos em que medida e
554
SKINNER, 1988, op. cit., p. 47.
Ibid., p. 49.
556
SKINNER, 2003, op. cit., p. 150.
555
113
direção caminhava essa crítica ou se endossa o ideário humanista. Por hora, notamos que
através de sua interpretação da “Fortuna” há uma valorização da força bruta nos negócios
humanos. Desfere assim um assalto contra as pressuposições de que o príncipe deveria
levar uma vida virtuosa no sentido da moral cristã. É evidente que Maquiavel considera
essa maneira de pensar ingênua e nociva, “pois um homem em que queira em tudo parecer
bom, procura sua ruína em meio a tantos homens que não são bons.” 557
A manutenção de um governo bem sucedido precisa necessariamente passar pela
trilha da violência, como explica Lefort, e “depende de uma disposição inabalável a suprir
as artes da persuasão mediante o recurso à força militar efetiva.”558 Essa lógica da força
está entre as conclusões positivas da ação de um príncipe em Maquiavel, o fundador de um
estado deveria preferir a força ao invés de a prece.559 Segundo Skinner:
É esse aspecto do principado - que a maior parte de seus contemporâneos
ignorou de forma tão convictamente civilizada – que Maquiavel recupera
nas páginas do Príncipe, com a ênfase que se conhece e os efeitos
polêmicos que se sabem, insistindo na necessidade (como tão bem
sintetizou Wolin) de “uma economia da violência” 560.
Daí ele se utilizar de uma interpretação “inovadora” da deusa, onde tenta recuperar
seu sentido clássico, além de recorrer ao elemento antropológico da doutrina cristã do livre
arbítrio para pôr a ação humana em condição privilegiada nos negócios públicos. Dessa
maneira tenta desviar a atenção de uma interpretação cristianizada e já massificada da
deusa cujo responsável e, talvez, principal expoente pode ter sido Boécio.561
O tom brutalmente erótico a que Maquiavel faz em sua análise da “Fortuna” sugere
que ela aprecie ser tratada de maneira perversa e com isso tendo um agudo prazer. “É
preciso bater nela”, e ainda, por ser mulher, ela “é sempre amiga dos mais jovens porque
são menos respeitosos, mais ferozes e com maior ousadia a dominam.”562 Essa sugestão
maquiaveliana de que os homens podem se aproveitar da “Fortuna” não é própria de
Maquiavel. E é possível localizar a mesma imagem ainda em Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.) e
Piccolomini, como explica Skinner:
557
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 199.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 150.
559
LEFORT, Claude. Sobre a Lógica da Força. In: QUIRINO, Célia G. e SOUZA, M. Tereza Sadek R. de
(org). O pensamento político clássico. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 53.
560
SKINNER, 2003, op. cit., p. 150.
561
ADVERSE in Discutindo Filosofia. Maquiavel, op. cit.
562
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 267.
558
114
Chegara até a explorar as ressonâncias eróticas de tal crença em seu
Sonho com a Fortuna. Quando pergunta à Fortuna ‘Quem é mais capaz
de manter-se sempre ao seu lado?’, ela confessa que se sente
particularmente atraída por homens ‘que mantêm meu poder sob controle
através de uma força de ânimo’. E quando finalmente ousa perguntar-lhe
‘Quem dentre os mortais aceitas de melhor grado?’, ela lhe conta que,
enquanto olha com desprezo para ‘aqueles que fogem de mim’, sente-se
excitada sobretudo ‘por aqueles que me põem em fuga. 563
Se é possível, deste modo, alcançar os bens da “Fortuna”, Maquiavel estabelece que
esse deve ser, portanto, o objetivo do príncipe novo. Necessita, nesse caso, aspirar e
perseguir os meios de como conquistar e manter o estado, princípio esse que encontra ecos
por toda sua obra. Não se trata, portanto, de mera sobrevivência. Nesse ponto, mais uma
vez ele ignora preceitos cristãos fundamentais, tal como expresso, por exemplo, em São
Tomás de Aquino (1224-1274), “segundo o qual um bom governante deve evitar as
tentações da glória e riqueza”, enfatizando que, pelo contrário, ser estes que devem ser
almejados e que a deusa tem o poder de conceder564, mas esse não seria para nosso autor o
objetivo principal do homem de virtù. Segundo Skinner:
Para os novos governantes acrescenta, abre-se até mesmo a possibilidade
de conquistar uma “dupla glória”: não só tem a oportunidade de “criar um
novo principado”, mas também de “fortalecê-lo por meio de boas leis,
boas armas e bons exemplos”. Assim a conquista da honra e da glória
mundanas constituiu o mais alto objetivo para Maquiavel, tal como para
Tito Lívio ou Cícero.565
O que Maquiavel pensa fazer é abrir o caminho para a ação humana em assuntos
mundanos. Rejeita (por uma questão de necessidade), portanto, nos assuntos da política a
virtude mutiladora do cristianismo e reconstrói os valores da virtù clássica, que em sentido
geral e primeiro se tratava de uma força masculina, como esclareceu Manieri. 566 Essa virtù,
além do mais, é um espírito criador, é disposição para ação. É a capacidade de o homem
formar-se não segundo um modelo ideal de príncipe, mas por sua própria experiência
histórica, é que fomenta essa autocriação, cujo processo deve ser uma constante. O
príncipe precisa aprender adaptar-se às mudanças do tempo e as constantes flutuações da
Fortuna. E é também, ainda, conforme Manieri, uma ação voltada para a política.567 De
563
SKINNER, 1988, op. cit., p. 51.
Ibid., p. 52.
565
Ibid.
566
MANIERI, op. cit., p. 65.
567
Ibid.
564
115
fato, para ele não havia homens mais merecedores de elogios do que aqueles que foram
fundadores de estados e cujas conquistas foram possíveis graças à sua virtù. Entre estes
destaca “os de maior excelência foram Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu.”568
Ele parece de todo coerente com as autoridades clássicas em sua definição de virtù,
seguindo boa parte dos argumentos destes e dos humanistas, tratando esse termo “como a
qualidade que permite a um príncipe resistir aos golpes da Fortuna, atrair o favor da deusa
e, em consequência, elevar-se aos píncaros da fama que lhe cabe enquanto príncipe
conquistando honra e glória para si mesmo e segurança para o seu governo.”569
Semelhante à Savonarola, Maquiavel (embora por caminhos diferentes) acaba por
contribuir para resolver alguns dos principais problemas de classificação dos regimes
políticos sintetizando-os, por sua vez, em repúblicas e principados. Sua escrita seca e por
vezes violenta procura não descuidar de sua realidade mais imediata e da maneira como as
coisas se dão, “negligência à procura do melhor regime, da norma política, em proveito de
uma consideração atenta da “qualidade dos tempos” e dos costumes políticos.” 570 É em
certo sentido uma dissidência, principalmente em relação ao gênero Espelhos de príncipes:
O gênero, na forma a ele empregado no período medieval, era composto
por reflexões de orientação moral e política. Estas reflexões, em sua
grande maioria, estavam ligadas ao modelo cristão de virtudes. A idéia,
veiculada nos espelhos de príncipes, segundo a qual ao seguir as
instruções contidas nos manuais de governança o príncipe se tornaria
perfeito e, assim como ele, todo o seu reino, refletindo a teoria, presente
em Santo Agostinho, de que cada realidade terrestre é apenas a réplica
relativamente bem sucedida de um tipo ideal, isto é, “a imagem vista
no espelho é que é de fato a imagem ideal da realidade terrestre”. 571
N’O Príncipe pelo contrário, ele, embora mantenha a distinção entre o bem e o mal,
procura relativizá-los na perspectiva da manutenção do poder. Essa relativização pode ser
explicada, talvez, pelo próprio contexto histórico e geopolítico em que se encontra o autor.
A Itália aguarda um salvador (que bem poderia ser Lourenço, se houve sinceridade no
autor), essa é a conclusão de Maquiavel. Considerações relativas ao dever ser não cabiam
568
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 142.
SKINNER, 1988, op. cit., p. 52.
570
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 125.
571
HAHN, Fábio André. Espelhos de Príncipes: considerações sobre o gênero. Artigo, Disponível em:
http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=134 Acessado em: 28/06/2013.
569
116
nesse tempo de crise, dessa maneira “suas afirmações em matéria de política, ‘para além do
bem e do mal’, começam por adquirir sentido neste horizonte de ‘ruína”. 572
Por outro lado, vale lembrar que o Príncipe em vários momentos demonstra ser uma
obra verdadeiramente circunscrita e circunstancial. É difícil avaliar Maquiavel, portanto,
como um autor além do seu tempo. Cujos fundamentos teóricos tivessem em mente uma
lógica universal e perene. Pensá-lo segundo os argumentos de Cassirer afirmando que
“Maquiavel não escreveu para a Itália, nem sequer para o seu tempo, escreveu para o
mundo”573, crendo ser este mentor de um saber de “alcance universal” ou de uma lógica
política moderna e genérica e que por isso possui a garantia de poder ser transmitido a
quaisquer outros homens574, é ignorar o lugar onde o autor reside na história. O local da
produção ligada à própria experiência de sua vida podem mostrar não um interesse
universal e perene, mas um desejo localizado e uma situação onde resida, talvez, um
interesse particular forjado no medo da punição e da miséria política. Em uma de suas
várias cartas a seu amigo Vettori, de maneira quase que constrangedora e patética, fala
sobre seu texto e o porquê de ter dedicado a um Médici:
O que me leva a dedicar o meu opúsculo a Juliano é a necessidade que
me afligi, porque me consumo e não posso continuar por muito tempo
assim sem que a pobreza faça de mim um indivíduo desprezível; e,
depois, eu gostaria que os Medici me dessem um emprego, mesmo que
começassem por me mandar empurrar um rochedo; porque, se, mais
tarde, eu não conseguisse ganhar os seus favores, eu só teria de culpar a
mim mesmo. Quanto ao meu tratado, se for lido, perceber-se-á que os
quinze anos que passei aprendendo a arte da política, não os passei nem
dormindo nem brincando; e deveria haver grande interesse em se servir
de um homem cheio de experiência adquirida às custas de outrem. Não se
deveria, além disso, duvidar de minha lealdade, porque tendo sido sempre
fiel aos meus compromissos, não é agora que vou aprender a não cumprilos; e não é ao fim de quarenta e três anos – essa é a minha idade – de
bons e leais serviços que podemos mudar a nossa natureza. Da minha
bondade e da minha lealdade, aliás, dá testemunho a minha pobreza
atual.575
Embora não possamos ignorar que a obra do autor seja fruto de sua observação
atenta do conjunto das ações políticas de seu tempo, não podemos deixar de notar seu
desejo obstinado em retomar seu cargo na chancelaria e o quanto esse desejo afetou sua
572
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 126.
CASSIRER, op. cit., p. 16.
574
BIGNOTTO, op. cit., p. 121.
575
Apud LARIVAILLE, p. 150.
573
117
teoria, como citamos em nota anterior (471), ou outra atividade junto ao governo dos
Médicis, mesmo que esta seja o de empurrar uma pedra (possível alusão à maldição de
Sisifo?). Assim, seu texto assume às vezes toda matiz e caráter de uma defesa pro domo,
como já havia nos alertado Larivaille. 576
No mesmo período, que segue ao seu retorno a Florença (1514), é quando começa a
frequentar encontros realizados por alguns jovens humanistas nos arredores de Florença,
organizados nos jardins da família Rucellai, a quem mais tarde dedicará os Discursos.577
Essas reuniões, segundo Martins, eram financiadas por Cosimo Rucellai, neto de uma
importante figura da aristocracia de Florença, Bernado Rucellai, que por sua vez era
parente (cunhado) de Lourenço de Médici, “e se opôs fortemente aos governos
republicanos de Savonarola e de Piero Soderini, do qual Maquiavel foi diplomata”. 578
Bernado Rocellai também foi autor de algumas obras importantes para o pensamento
político da época, entre as quais se destaca um comentário da obra do historiador romano
Tito Lívio, onde destaca principalmente “os valores aristocráticos da República romana
como um dos fatores principais para a sua glória e sucesso” 579. Martins ainda explica que
Maquiavel ao elaborar Discursos, além de usar o mesmo texto, se utiliza de uma
metodologia muito similar a usada por Bernado.580 Parte das discussões realizadas nesse
Orti Oricellari eram sobre temas literários, mas, de um modo geral as discussões giravam
em torno de contextos políticos. Antonio Brucioli, em seus Diálogos, recordará que nessas
reuniões, entre outros conjuntos, muito se debatiam sobre o destino dos regimes
republicanos, como atesta Skinner. O envolvimento desses humanistas não se limitava
apenas a essas conversações, de modo que alguns chegaram a se envolver na conspiração
de 1522, como foi o caso de Jacopo da Diacceto, que logo depois foi executado, e Zanobi
Boundelmonti que junto com Luigi Alamanni foram condenados ao exílio. Skinner
acredita ser provável que os Discursos tenham sido resultado direto desses debates,
demonstrando assim a possibilidade de Maquiavel ter sido profundamente influenciado
pelo contato com Cosimo e os demais membros desses encontros, mesmo que não ao ponto
de se inclinar a participar de alguma conspiração contra o governo mediciano.581 Mas vale
frisar que boa parte da obra já estava em processo de redação antes mesmo do contato com
576
LARIVAILLE, op. cit., p. 146.
SKINNER, 1988, op. cit., p. 79.
578
MARTINES in Discutindo Filosofia. Maquiavel, op. cit.
579
Ibid.
580
Ibid.
581
SKINNER, 1988, op. cit., pp. 80-81.
577
118
esses jovens humanistas, que só se deu dois anos depois de Maquiavel receber autorização
de regressar a Florença (1516).
582
De fato, segundo Gaille-Nikodimov, “ao longo do ano
de 1513, Maquiavel não se limitou a redigir O Príncipe. Iniciou igualmente, sem dúvida
antes do escandaloso opúsculo, a escrita dos Discursos Sobre a Primeira Década de Tito
Lívio.”583
À primeira vista os Discursos parecem se tratar apenas de um comentário sobre a
História de Roma de Tito Lívio, sua principal obra que continha originalmente 142 livros.
Martins explica que do texto original desse autor restaram apenas 35, que ao longo do
tempo foram aparelhados por copistas em conjuntos de dez livros. Os primeiros dez livros
“ou a primeira década, foi um dos poucos que se conservaram integralmente e narram os
feitos desde as origens de Roma até o ano de 295 a. C., ou seja, a época que compreende o
governo monárquico e republicano.”584 A escolha de Maquiavel em comentar os dez
primeiros livros parece ter sido motivada pela temática destes, uma vez que os temas
presentes são relativos “a conservação, as mudanças e a corrupção das instituições
políticas”585, temas caros para esse autor.
Após a descoberta de Tito Lívio por Petrarca, não tardou que o texto do historiador
romano se envolvesse em uma série de apreciações imitativas no meio intelectual de
Florença, e de fato, segundo Gaille-Nikodimov, ele se tornou um dos autores mais lidos ao
longo do Quattrocento: “quando Maquiavel começa a redação dos Discursos, o par RomaFlorença (quer Florença seja concebida como filha de Roma, ou como uma segunda Roma)
é conhecido dos florentinos desde a publicação das crônicas e histórias pré-humanistas.”586
Com Maquiavel o desejo de imitação não foi diferente, mas não deixa de ter os olhos fixos
em sua realidade. Não desvia, conforme Viroli, seu pensamento da “história de Florença, e
aos erros políticos que tinham sido a causa do fim do governo republicano.”587 E, por
vezes, parece nostálgico.588 Mas nem por isso o texto perde sua singularidade em “teoria”
política. Pelo contrário, pelo menos para Martins, para quem os Discursos, entre os textos
desse articulador, formam o conjunto de reflexões políticas mais densas onde “os seus
582
GAILLE-NIKODIMOV, Marie. Maquiavel. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 130.
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, p. 126.
584
MARTINS, José Antônio. Os fundamentos da Republica e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel.
Tese de doutorado. Universidade de São Paulo: Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas,
departamento de Filosofia. 2007, p.13.
585
Ibid.
586
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., pp. 126-127.
587
VIROLI, 2002, op. cit., p. 221.
588
ANDERSON, op. cit., p. 164.
583
119
conceitos políticos estão mais desenvolvidos”. 589 De fato, através do estudo da história de
Roma, segundo Bobbio, “Maquiavel reconstrói a história e o ordenamento das instituições
da república romana comentada por Lívio”. 590 Mas esses autores parecem superestimar
essa obra, que, para Jean Touchard, ao sintetizar o seu conjunto vê nessa mais
“mediocridade” e em vários aspectos:
Por vezes uma indiferença total, por vezes uma retórica serôdia muito
convencional. Declarações monárquicas ou elogios da liberdade, mesmo
do regime tirânico, ressumam dos exemplos clássicos; preocupa-se mais
com a qualidade da forma do que com exatidão ou sinceridade do
conteúdo, e essas dissertações de aparato poucas vezes contêm qualquer
vestígio de pensamento. 591
Ali, aparentemente demonstra sua preocupação primeira, a corrupção política e os
males desta para a liberdade republicana, como sugere Viroli:
Um povo que vive por longo tempo sob o governo de um príncipe
acostuma-se a servir, a buscar favores, e esquece como deliberar sobre as
questões públicas. Acrescenta-se a tudo isso o fato de que um governo
livre, instituído numa cidade corrupta, tem de lutar contra as facções
contrárias, sem poder contar, pelo menos a princípio, com o apoio
popular. Todos aqueles que durante a tirania auferiram vantagens, ou que
se beneficiaram das riquezas do príncipe, imediatamente se tornam
inimigos mortais da república.592
Os Discursos foram marcados pelas conversas ocorridas na casa dos Rucellai, e uma
das preocupações presentes nesses diálogos eram relativos à participação política: quem
são os participantes da vida política? E, por conseguinte, quem pode pretender fazer parte
da vida pública ativa? A ampliação da participação política entre os cidadãos foi também
uma das prerrogativas de Savonarola que de certa forma não encontrou oposição em
Soderini à expansão da cidadania. Mas com o retorno dos Médicis ao poder, Lourenço,
diferente de seus antecessores, não busca uma república aparente baseado na tradicional
política mediciana. Pelo contrário, afirma-se como príncipe da cidade, e em 1515 torna-se
capitão da república florentina. Logo depois, torna-se duque de Urbino, ao custo de
589
MARTINS in Discutindo Filosofia. Maquiavel, op. cit.
BOBBIO, Noberto. Estado, Governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p. 54.
591
TOUCHARD, op. cit., p. 26.
592
VIROLI, 2002, op. cit., p. 222.
590
120
pesados estipêndios para a cidade. 593 Evidentemente, essa política nada popular não
agradou muito os florentinos que tiveram que arcar com as contas do novo príncipe, além
de presenciarem suas liberdades esvaírem-se cada dia mais um pouco. Francesco
Guicciardini estava entre os críticos desse regime, denunciando seu caráter autoritário. Seu
sobrinho mais tarde também o seguirá nessas denúncias.594
Apensar de tudo, das críticas ao governo dos Médicis, mais uma vez instalado em
Florença, os aristocratas buscam acomodar-se ao que Gaille-Nikodimov chamou de contra
modelo de uma república aristocrática. Esse modelo seria, grosso modo, uma imitação do
exemplo veneziano. Assim, os aristocratas pretendiam nem ceder às exigências de um
governo popular, e/ou tirânica. Era um modelo de liberdade política diferente do
pretendido pelo autor dos Discursos. 595 No entender desses reformadores era preciso
manter a liberdade republicana, mas esta era entendida apenas como independência da
cidade. Buscavam uma paz enganadora que não poderia existir se não ao custo da
mutilação de grupos menos favorecidos.
A liberdade romana, entendida por Maquiavel, foi garantida, mesmo esta cidade
sendo turbulenta e conquistadora. Se era turbulenta era porque conquistava. Mas o
contrário também é válido para Roma. E dirá que, “os que criticam as contínuas dissensões
entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram
fosse conservada a liberdade de Roma”. 596 O tom evidentemente polêmico “pretendia”
mostrar os perigos de se buscar a paz entre lobos e cordeiros e a necessidade de ambos
estabelecerem uma atitude de constante alerta um sobre o outro. A convivência no espaço
público, onde vários interesses se chocam, só é possível pelo estabelecimento de
concessões garantidas na forma da lei. No entanto, estas só podem ser articuladas e
fortalecidas na medida em que haja luta por tais garantias. Em política, sempre e
necessariamente, como havia explicado n’O príncipe, tudo gira em torno da busca e
manutenção de poder.
Assim,
O povo romano, relata ele, fez a guerra em troca das leis que lhe
garantiam a liberdade; o senado romano conquistou o seu império
cedendo algumas prerrogativas políticas ao povo. Este funcionamento
político, que tolera as oposições, as dissensões entre os diferentes
593
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., pp. 132-133.
Ibid.
595
Ibid.
596
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 31.
594
121
partidos da cidade e constitui o fundamento do seu império e da sua
vitalidade política, é a absolutamente particular em Roma. Maquiavel não
aspira ver a sua cidade reproduzi-lo tal e qual. Mas, através dele, encara
aquilo que considera ser a verdadeira liberdade política e o curso
histórico que poderia ou teria podido seguir a sua cidade, ela própria
afetada por discórdias civis incessantes, mas incapazes de estabelecer um
regime livre duradouro. 597
Ao longo de sua carreira, Maquiavel também escreveu outras obras significativas. A
Mandragora (1518) e a Arte da Guerra (1520), por exemplo, foram escritas basicamente
no mesmo período em que redigia os Discursos. Após a composição dos Discursos, recebe
uma indicação para um possível emprego no governo mediciano. Lourenço havia falecido
havia pouco tempo e foi sucedido por seu primo o cardeal Giulio, futuro papa Clemente
VII. Segundo Skinner, Giulio “casualmente matinha relações com um dos amigos mais
próximos de Maquiavel, Lourenzo Strozzi.” 598 Não demorou pois que ele recebesse uma
indicação formal para redigir a História de Florença. O texto, após sua conclusão,
provavelmente 1525, foi dedicado ao papa Clemente VII. E ocupou boa parte dos últimos
dias do autor. Aparentemente, esse foi seu trabalho mais cauteloso, onde seguiu com mais
lentidão o estudo de suas fontes clássicas, seguindo de perto os princípios da clássica
historiografia como também faziam os humanistas. Para Maquiavel:
Na história, se alguma coisa há que deleite ou ensine, é a descrição em
particularidades, e, se alguma lição há que seja útil aos cidadãos que
governam as repúblicas, é aquela que demonstra os motivos dos ódios e
das divisões das cidades, para que, diante do perigo em que incorreram
outros, eles possam ganhar sabedoria e manter-se unidos.599
Ora, para os humanistas o sentindo da história era pedagógico, na acepção de que a
história deveria inculcar lições de moral. Salústio é exemplar desse ideário relacionado ao
modo de fazer história. De fato, seus princípios exerceram amplo alcance. Seus discursos
pregavam que o historiador precisava refletir sobre o passado de forma “útil”, e de que a
história deveria “ser utilizada com proveito”, bem como explica Skinner 600, mas, a história
aparece como narração de grandes fatos, as façanhas dos heróis ganhavam proeminências.
A essa altura Maquiavel parece não seguir completamente o ideário humanista e se desvia,
demonstrando-se incoerente e distante dessa perspectiva. A História de Florença é a
597
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 134.
SKINNER, 1988, op. cit., p. 120.
599
MAQUIAVEL, 2007, op. cit.
600
SKINNER, 1988, op. cit., p. 121.
598
122
história da corrupção e degradação de um povo. Daí sua crítica a Lionardo d’Arezzo e
Poggio, que escreveram sobre os feitos dos “florentinos contra os príncipes estrangeiros,
mas que, no que se refere às discórdias civis e às inimizades internas, bem como aos seus
efeitos, eles calaram.” 601 A censura a esses historiadores é mais evidente do que a residente
na escolha do ano em que inicia sua narrativa, 1434. Como já vimos, por esse período,
Cosmo de Médici começa sua empreitada de implantar seu governo pessoal em Florença.
A própria escolha do tema já demonstra que ele não está interessado numa narrativa
dedicada ao elogio, de feitos gloriosos. O que ele chama de erro por parte de seus
predecessores é sua oportunidade de demonstrar como se corrompe uma república. Da
mesma forma de os Discursos, aqui, ele parece, também, apelar para necessidade de
imitação dos romanos, como bem notou Gaille-Nikodimov:
Os Discursos e sobretudo, alguns anos mais tarde, A História de
Florença colocam em evidência que o apelo à imitação dos Romanos, por
mais pertinente que seja, em absoluto, pode ser posto em causa quando
não estão reunidas as condições para imitação. Esta constatação vale em
particular para Florença. Seria bom que Florença seguisse a via romana,
mas não é certo que esteja em condições de fazê-lo: Florença não tem as
suas origens livres; os seus cidadãos são menos religiosos do que os
Romanos cultivavam um estilo de vida dispendioso, enquanto que os
Romanos cultivavam um estilo frugal e modesto. Roma é certamente o
paradigma da República livre, mas Florença deve inventar a sua própria
via para a liberdade, a que seja adaptada à sua natureza e à sua história
especificas.
Maquiavel encontra outra vez seu lugar em Florença, mas é um retorno acanhado,
longe das expectativas do autor. É difícil não notar um certo rancor, no preâmbulo de a
Mandrágora, por parte do autor, insinuando sobre a sua condição, que justo ele a quem a
Fortuna não o havia qualificado para lidar com “ganhos e perdas” é enviado em 1518 para
lidar em Gênova com mercadores florentinos. E em 1520 a Senhoria florentina decide
deslocá-lo para Lucca para resolver também assuntos relacionados a finanças. 602 E dirá:
Se tal assunto não é digno,
ao ser muito ligeiro,
de um homem que quer parecer sábio e grave,
desculpai-o porque se esforça
com estes vão pensamentos
em suavizar a sua triste época.
601
602
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., p. 7.
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 146.
123
Em direção a outro lado não tem
para onde virar o seu olhar.
Porque lhe está interdito
mostrar outras capacidades noutros empreendimentos
e não tem recompensa para os seus esforços. 603
Essa admissão ao governo dos Médicis pode ter sido arranjada talvez por uma
amante, a atriz Barbara Salutati. Ela também inspirou uma de suas personagens de a
Mandragora e Clizia, uma adaptação de Casina de Plauto.604 Ele não trabalhava mais na
chancelaria, evidentemente, mas passa a realizar ocasionalmente missões especiais em
nome dos Médicis. 605 O que pode ter alimentado a esperança de voltar às suas antigas
atribuições.
A essa altura o contexto florentino ainda é favorável à elite aristocrática. E alguns
membros da família dos Soderinis com a ajuda dos franceses organizam uma conjuração
com o objetivo de construir uma república aristocrática, em 1521, mas essa tentativa
fracassou, levando os conjurados a uma segunda tentativa em 1522, que também resultou
em frustração. A política dos Médicis havia se tornado cada vez mais ferrenha desde a
eleição de Júlio de Médici ao pontificado. Entre várias alianças com a aristocracia
florentina, os Médicis mais uma vez se fortaleciam. Outras famílias, no entanto,
procuravam por sua vez forjar alianças contrárias, de maneira que a oposição aos Médicis
estava organizada em torno de figuras proeminentes da cidade, como, por exemplo, Jacopo
Salviati, Nicolò Capponi, os Ridolfis e os Guicciardinis. É por esse período que começa a
surgir no horizonte uma nova crise política que resultará no desterro dos Médicis. 606
E de fato, em 1527, o impensável aconteceu. Roma é saqueada pelas tropas de Carlos
V (1500-1558). As tropas não haviam recebido seu soldo e ao invés de atacarem qualquer
alvo, como já haviam feito antes, se direcionam para Roma, e de acordo GailleNikodimov:
No nevoeiro da aurora, s tropas mercenárias abrem uma brecha na
muralha romana, a leste do Vaticano, e entrem na cidade. Massacram,
violam, torturam, incendeiam e pilham durante vários dias o centro da
cristandade, a cidade que decidia em grande medida os assuntos
florentinos ao longo dos anos de 1520.607
603
Apud GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., pp. 145-146.
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 146.
605
Ibid., p. 147.
606
Ibid., p. 150.
607
Ibid., pp. 156-157.
604
124
Com o saque de Roma e a fuga de Clemente VII, o governo mediciano perde o apoio
papal. Junta-se a isso a impopularidade que o governo vinha sofrendo em função de sua
política autoritária, “em 16 de maio o conselho da cidade se reuni para proclamar a
restauração da república e, na manhã seguinte, os jovens príncipes da casa dos Médicis
deixaram a cidade para o exílio.”608 Para Maquiavel essa parecia ser uma boa notícia para
suas expectativas a um cargo público de prestígio. Afinal, era possuidor de sólidas
simpatias republicanas. Mas sua ligação com o governo mediciano lhe mostrou o contrário.
Para essa nova geração de republicanos, segundo Skinner, “ele deve ter parecido pouco
mais que um envelhecido e insignificante cliente da desacreditada tirania.” 609 Além do que,
esse novo governo era também identificado por ser savonaroliano.610 A fortuna parecia,
para ele, não se cansar de ser irônica.
Pouco depois ele veio a contrair uma doença com a qual teve que conviver até o dia
de sua morte. Maquiavel morre aos 58 anos, em 21 de junho de 1527. Aparentemente após
a ingestão de um medicamento, talvez uma dose excessiva de pílulas à base de aloé, “que a
muito tempo usava para curar suas dores de estômago.”611 Uma suposta carta de um dos
seus filhos dirá que se confessou ao “frade Matteo”612, antes de morrer. Skinner acredita
ser essa confissão pouco provável, já que “Maquiavel considerara com desdém os
sacramentos da Igreja durante toda sua vida.”613 De fato, ele tinha uma postura
relativamente cética em relação à Igreja, mas precisamos ter em mente o século vivido pelo
autor. Ora, esse mesmo espírito crítico com relação aos sacramentos da Igreja não são
visíveis também em Guicciardini e Vettori, que semelhante ao nosso autor escreveram
“verdades não menos amargas e corajosas?614 Ele definitivamente não deveria ser um
beato, mas que não fosse um cristão aos moldes do Renascimento, como bem nos orienta
Ridolfi é improvável e mesmo insustentável, e, como tal, bebia nas mesmas fontes pagãs
do humanismo, mas também leva a marca dos sacramentos, desde seu nascimento através
do batismo e durante a morte não seria diferente. E se é possível falar nesses termos de
Maquiavel, não é também verdade em relação a Lutero, que, ao mesmo tempo que citava
São Paulo, também recorria a Platão por meio do sincrético agostinismo?
608
SKINNER, 1988, op. cit., p. 132.
Ibid.
610
Ibid., p. 162.
611
VIROLI, 2002, op. cit., p. 295.
612
GAILLE-NIKODIMOV, 2005, op. cit., p. 162.
613
SKINNER, 1988, op. cit., p.133.
614
RIDOLFI, op. cit., 473.
609
125
Sobre o estado da religiosidade, apesar de parecer por vezes demasiado excessivo
em generalizações, vale citar Febvre, que nos ajuda ajuizar sobre o quadro da fé nesse
século:
Pois hoje, escolhe-se. Ser cristão ou não. No século XVI, não havia
escolha. Era-se cristão de fato. Podia-se vaguear em pensamentos longe
do Cristo: jogos de imaginação, sem suporte vivo de realidade. Mas não
se podia nem sequer se abster de praticar. Se se quisesse ou não, se se
percebesse claramente ou não, as pessoas achavam-se mergulhadas desde
o nascimento nu banho de cristianismo, do qual não se evadiam nem
mesmo na morte: pois essa morte era cristã necessária e socialmente,
pelos ritos a que ninguém podia furtar-se – mesmo se estivesse revoltado
diante da morte, mesmo se houvesse zombado e se tivesse feito de
brincalhão em seus últimos momentos. Do nascimento à morte, estendiase toda uma cadeia de cerimônias, de tradições, de costumes, de praticas
– que, sendo todos cristãos ou cristianizados, atavam o homem
involuntariamente, mantinham-no cativo mesmo que ele se pretendesse
livre. E, em primeiro lugar, cingiam sua vida privada.615
Exigir de Maquiavel uma postura sisuda e pia e/ou burlesca na hora da morte é ir
além do que nos é fornecido, correndo o risco de uma mera especulação, ou especular por
especular. Ainda é muito persistente a crença por demais confiante de uma certa
secularização presente no Renascimento, onde o homem da época seria, principalmente
aqueles ligados ao processo de produção cultural (escritores, artistas em geral), “um animal
prudente, calculista e racional.”616 Mas o contrário também é válido. Por outro lado, como
adverte Burke, “se vamos discutir o Renascimento em termos de ‘secularização’, devemos
ao menos estar conscientes de que estamos impondo categorias posteriores ao período”617.
Viroli, por exemplo, conta a história de um suposto sonho de Nicolau que este conta
pouco antes de sua morte, já em seu leito, onde supostamente teria feito uma chacota
sugerindo ser melhor ir para o inferno e viver com sábios da filosofia e da política do que ir
para o céu.618 Do outro lado, temos Ridolfi, com uma carta619 de um dos filhos (Pedro
615
FEBVRE, 2009, op. cit., p. 292.
BURKE, 2010, op. cit., p. 236.
617
Ibid., p. 34.
618
Segundo, Viroli, “Conta-se que antes de morrer, em 21 de junho de 1527, Nicolau Maquiavel relatou aos
amigos que o acompanharam até o último momento, um sonho que tivera, e que se tornou célebre nos séculos
vindouros como ‘o sonho de Maquiavel. Disse ter visto um grupo de homens malvestidos, de aparência
miserável e sofredora. Ao indagar quem eram, recebeu a seguinte resposta: ‘Somos os santos e os bemaventurados, vamos para o paraíso.’ Em seguida, avistou uma multidão de homens de nobre e grave aspecto,
vestidos com roupas majestosas, que discutiam solenemente sobre importantes problemas políticos.
Reconheceu os grandes filósofos e historiadores da Antiguidade que haviam escrito obras fundamentais sobre
política e sobre os Estados, entre os quais estavam Platão, Plutarco e Tácito. Perguntou também a eles quem
eram e para onde se dirigiam: ‘Somos os condenados ao inferno’, responderam, Maquiavel termina seu relato
616
126
Maquiavel) de Nicolau, segundo a qual o pai havia se confessado a um frade. Verdade ou
não, não sabemos. Só nos resta tentar entender como se comportavam os homens da época
em relação à religião.
Vale ressaltar que o sentido de Razão no Renascimento possui uma ampla variedade
de significados. Ainda que o conteúdo esteja vinculado à ideia de racionalidade, a palavra
Razão, tal como em nossos dias, é possuidora de certa flexibilidade em seus usos. É o que
sugere Burke:
O verbo ragionare significaria “falar”, mas o discurso, nessa época, era
sinal da racionalidade que demonstrava a superioridade do homem sobre
os animais. Um significado de ragione é “contas”: os comerciantes
chamavam seus livros de contas de libri della ragione. Outro significado
é “justiça”: o Palazzo della Ragione em Pádua não era um “Palácio da
Razão”, mas um tribunal de justiça. A justiça dependia de cálculos,
conforme nos relembra a imagem clássica e renascentista da balança.
Ragione significava também “proporção” ou “razão”. Uma das primeiras
e mais famosas definições de perspectivas, na biografia de Brunelleschi
atribuída a Manetti, chamava-se de ciência que estabelece as diferenças
de tamanho nos objetos próximos e distantes com ragione, uma que pode
ser (e tem sido) traduzida como “racionalmente” ou como
“proporcional”.620
Geralmente atribuímos a Maquiavel apenas as mesmas características de modelo de
homem calculista, mas esse mesmo autor em vários momentos demonstra desprezo pela
política florentina contra aqueles que governam a cidade a partir de suas lojas, uma
referência a Cosmo de Médici, evidentemente.621 Realismo (político ou artísticos),
secularismo e individualismo são características atribuídas a esse momento, é bem
verdade, mas não possuem um sentido real, nos termos de nossa compreensão, tornando-se
assim termos problemáticos.622 Pois, como vimos em parte até aqui, ele também faz uso de
uma série de sistemas de convenções, imitando, apropriando-se e por vezes apenas
repetindo outros autores, tanto medievais como clássicos.
A sobrevivência dos valores cristãos pode ser observada principalmente nas obras de
arte produzidas durante o Renascimento. E o uso político dessas obras também era
explicando aos amigos que queriam antes ir para o inferno discutir sobre política com os grandes homens da
Antiguidade do que ser mandado ao paraíso, para morrer de tédio na companhia dos beatos e dos santos.”
VIROLI, 2002, op. cit., p. 17.
619
Essa carta ainda é alvo de controvérsias sobre sua autenticidade. A esse respeito ver ainda a propósito da
“não ocorrida conversão” de Maquiavel. RIDOLFI, op. cit., p. 471.
620
BURKE, 2010, op. cit., p. 236.
621
Ibid., p. 264.
622
Ibid., 28.
127
frequente. E Maquiavel tal como Guicciardini não ignoraram a importância da religião em
assuntos políticos, aceitando com frequência “que o Estado que conheciam não poderia
manter-se alheio à religião, pois era lícito usar Deus para fins políticos.”623 É verdade que
aqui o uso da religião parece ser meramente técnico, Adverse, no entanto, interfere
esclarecendo:
Recorrer à religião é mais do que se servir de um instrumento. Se por um
lado Maquiavel deixa bastante claro que a utilização da religião se dá por
meio de um inganno (Numa simulou a intimidade com a Ninfa) – e assim
a religião de que o governante necessita não é uma qualidade moral, mas
técnica (...) -, por outro, deixa entrever a presença de um elemento
constitutivo da vida política que transcende o meramente instrumental:
política e religião estão visceralmente ligadas. 624
A religião para ele seria não mais que um instrumento social indispensável, uma
espécie de “cimento utilitário”. Para Berlin, isso representa uma antecipação de SaintSimon e Durkheim. Para ele:
Algumas variedades de religião (por exemplo o paganismo romano) são
benéficas para a sociedade, já que a torna forte ou motivada; outras, pelo
contrário (por exemplo a humanidade e a espiritualidade cristãs),
provocam a decadência e a corrupção: não é necessário que uma religião
se fundamente em verdade, desde que tenha eficácia social. Donde a sua
veneração pelos que organizaram suas sociedade sobre bases espirituais
solidas – Moisés, Numa, Licurgo. 625
É bem provável que um cristão de hoje ruborizasse diante do que talvez
chamássemos de comportamento irracional diante do culto divino. Isso para não dizer
chocados, “e até mesmo um católico romano haveria de levantar as sobrancelhas”, como
imagina Burke:
O cardeal veneziano Gasparo Contarini descreve como os homens
entravam na igreja “conversando entre eles sobre comercio, sobre
guerras, e muitas vezes até sobre amor”. Com muita frequência era
proibido andar pela igreja, principalmente durante a missa (em Modena,
em 1463, por exemplo, em Milão, em 1530), com tanta frequência que
nos leva a concluir que isso devia acontecer o tempo todo. Podia-se
esperar encontrar na igreja mendigos e cavalos, jogadores, professores
dando aulas, e reuniões políticas. Os paroquianos comiam, bebiam e
623
MARTINES, 2011, op. cit., p. 42.
ADVERSE, 2009, op. cit., p. 94.
625
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 31.
624
128
dançavam dentro da igreja para celebrar festas maiores, como as do santo
patrono.626
O estudo de Bakhtin sobre A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
demonstrou o quanto o homem da Idade Média e Renascimento era perfeitamente capaz de
conciliar uma vida burlesca com o aparato da fé exigido pela Igreja. 627 Havia, segundo
Delumeau, um sincretismo otimista, fundado, por vezes, numa cronologia insuficiente das
obras antigas, onde elementos pagãos conferiam “indispensável complemento à graça”,
mesmo que alguns autores fossem criticados “por transformarem a doutrina cristã em
instrumento de devassidão e de iniquidade”. Entre esses autores estavam alguns italianos
que Erasmo havia se proposto “curar”, segundo ele, cita Delumeau, “a coberto da antiga
literatura renascente, o paganismo tenta reerguer a cabeça, tal como entre os cristãos,
existem pessoas que apenas conhecem Cristo de nome, mas respiram interiormente o
paganismo”628. Maquiavel, por outro lado, parecia não se incomodar com isso, e nos
Discursos reitera essas acusações gerais afirmando enfaticamente “sim, nós, Italianos,
somos profundamente irreligiosos e depravados”629. Se se trata de um sarcasmo, não
sabemos, embora pareça evidente. Fato é que pelo menos ele teve seu nome citado pelo
menos uma vez aos Oito da Guarda sob a acusação de sodomia envolvendo uma amante,
Riccia630, isso para não falar de seu encontro em Verona com uma “velha tratante” 631.
A essa altura, se votarmos à questão tanto do sonho de Maquiavel, bem como de sua
confissão, podemos completar sem constrangimento, mas não sem o risco da crítica, que
pode não se tratar de dois cenários, mas de um cenário possível, onde o burlesco vive com
o pio, e o pagão se entrelaça ao homem de fé. Entendamos, isso não significa que ambas as
posições estão corretas, mas dentro de um cenário de possibilidades é bem provável que
sim.
Os séculos XV e XVI, conforme Garin, também viveram um profundo anseio por
religiosidade, como geralmente acontece em tempos de crise, que pode muito bem explicar
a angústia de um Savonarola pela renovação do espírito cristão ou da confissão de um
Maquiavel em seu leito de morte. Garin ainda explica que,
626
BURKE, 2010, op. cit., p. 243.
BAKHTN, 2010, op. cit., p. 82.
628
DELUMEAU, op. cit., p. 377.
629
Ibid.
630
VIROLI, 2002, op. cit., p. 193.
631
Ibid., p. 133.
627
129
Enquanto as reflexões de Maquiavel, ligadas à experiência e à leitura das
historias antigas, acompanha os pensamentos de Da Vinci, o século XVI
abriga, com os exercícios platônicos de Francesco Patrizi e as
extravagâncias de Anton Francesco Doni, as “republicas imaginárias” que
querem salvar anacronicamente, entre invasões e guerras imperiais, a
ilusão da pequena cidade-estado. A realidade efetiva é, entre derrotas e
esperanças, uma ânsia religiosa por um novo século que liberte a
humanidade de toda servidão, conduzindo-a para além daqueles
ordenamentos e hierarquias de classes, que a república platônica e o
estado aristotélico reforçavam, e que a justiça dos Comuns e a das
cidades renascentistas consideravam fundamentadas na natureza e na
razão. Toda a catástrofe de uma civilização exprimia-se no desânimo de
Savonarola e na amargura de Maquiavel. O século XV revelava a sua
ambiguidade: além do anúncio de uma renovação, a tristeza de um ocaso;
e enquanto as esplêndidas cidades decaiam, num clima religioso de
espera, desejava-se uma total renovação, uma condição diferente para o
homem, e a sua liberação da escravidão à natureza e às suas leis. 632
O século de Maquiavel não desconheceu o misticismo das profecias, e Savonarola
estava ali, dando seu testemunho por meio de severas repreensões aos pecados, apontando
para os perigos de enfrentar a implacável fúria divina. O ritmo desconfortante com que as
profecias sobre redenção e intervenções divina ganham crédito parece querer revelar um
certo definhar da “fé humanista no homem, na sua razão, na sua capacidade de edificar: o
homo faber artífice de si próprio e de seu destino”.633 Dividindo espaço com uma Florença
que não é mais a de um Bruni, mas que também é uma Florença mística herdeira não de
Roma, mas de Jerusalém. É preciso reconhecer, dentro desse ambiente onde tudo parece
harmônico, calculado e racional, lugar de um discurso humano equilibrado, que sobrevive
também ali, e em muitos lugares esse discurso dito racional e simétrico “é substituído pelo
arrebatamento religioso” podendo ser sentidos os “ecos das profecias” até mesmo de um
“Joaquiam de Fiore.”634 Delumeau, mais agressivo nesse ponto, constata que o fato de os
homens dos séculos XV e XVI terem considerado a Antiguidade como um todo, não
permitiu desviarem-se de vários equívocos. E explica:
O Renascimento enganou-se igualmente sobre Dionísio, o Areopagita,
uma vez que se atribuía ao companheiro de S. Paulo obras que tinham a
marca do neoplatonismo, cuja primeira referência conhecida – em
Constantinopla – data de 522. Em suma, os humanistas ‹‹optimistas››
basearam numa cronologia errada uma das principais teses do
Renascimento, a saber, que existe um fundo de verdade religiosa em
632
GARIN, op. cit., p. 79.
Ibid., p. 78.
634
Ibid., p. 79.
633
130
todos os povos e que Caldeus, Persas, Gregos, Egípcios e Judeus da
Antiguidade tinham possuído os elementos essenciais da Revelação.635
Marsílio Ficino (1433-1499) chegou a confundir a sabedoria egípcia com um tipo de
esoterismo, ele mesmo não compreendeu, embora platônico, a diferença entre Plotino
(205-270) e Platão (428-348 a. C.)636. Assim, falar de realismo renascentista, ou atribuir
um significado à Razão, seguindo nossos próprios modelos, ou ainda, modelos seculares de
vida, nos parece, de um modo geral, argumentos não válidos para esse momento, e/ou,
como afirma Peter Burke, “é dizer uma coisa sem sentido.” 637
Em todo caso, após a suposta e/ou provável confissão, Maquiavel termina seus dias,
mas não sem antes ter presenciado a Itália ser invadia mais uma vez por estrangeiros, junto
agora com a devastada capital da cristandade. 638 Foi “sepultado no jazigo da família” 639,
“cercado por seus familiares e amigos, em Santa Croce no dia seguinte.”640
Deste modo ele perece, mas apenas para ser “expropriado de si mesmo para se tornar
um guia, um modelo ou um exemplo imaginário da reflexão política.” 641 A variedade de
interpretações em torno de sua obra não mostra apenas a aparente fecundidade de seus
argumentos, mas há qualquer coisa que ainda incomoda na obra do escritor florentino.
Talvez seja a desconcertante simplicidade de sua prosa ao abordar temas tão caros para a
humanidade, que sempre tem-se preferido jogar no subsolo das relações políticas. Vale
lembrar então a conclusão de Skinner:
Mais do que qualquer outro teórico da política, com Maquiavel tem-se
mostrado irresistível a tentação de segui-lo para além de seu túmulo,
resumindo sua obra e colocando-a em julgamento. O processo começou
imediatamente após sua morte e continua até os dias de hoje. Alguns dos
primeiros críticos de Maquiavel, como Francis Bacon, sentiram-se em
condição de conceder que ‘temos uma grande divida para com Maquiavel
e ouros que escreveram sobre o que os homens fazem, e não sobre o que
deveriam fazer’. Mas a maioria dos leitores originais de Maquiavel
sentiu-se tão chocada pelos seus pontos de vista que simplesmente o
denunciou como uma invenção do diabo, quando não como o diabo em
pessoa. Ao contrário, a maioria dos modernos comentadores de
Maquiavel encarou até mesmo suas doutrinas mais escandalosas com um
ar de consciente mundanidade. Mas alguns deles, especialmente Leo
635
DELUMEAU, op. cit., p. 101.
Ibid., p. 100.
637
BURKE, 2010, op. cit., p. 32.
638
GAILLE-NIKODIMOV, 2005, op. cit., p. 163.
639
Ibid., p. 162.
640
SKINNER, 1988, op. cit., p. 133.
641
GAILLE-NIKODIMOV, 2005, op. cit., p. 164.
636
131
Strauss e seus discípulos, continuaram impenitentemente a manter a
opinião tradicional de que (como diz Strauss) Maquiavel só pode ser
caracterizado como um ‘professor do mal. 642
Cultivado esse espectro do Old Nick, por outro lado, sugerido na citação acima nas
palavras de Strauss, perde-se a oportunidade fecunda de aproximação de uma compreensão
apropriada e aproximada dos vários textos de Maquiavel. Segundo Gaille-Nikodimov, “É
preciso manter presentes ao espírito as variadas posturas adotadas, quer concordemos quer
não, por Maquiavel ao longo da sua vida e do seu trabalho de escrita.” 643 Os eventos sóciohistóricos, como já havíamos sugerido e percebemos(?), exerceram uma variada influência
ao longo da vida de Maquiavel, influenciando sua produção intelectual, proporcionando a
matéria-prima necessária à sua reflexão. Mais muito mais do que isso, também demonstra
que esse autor de comédias, tratados políticos e histórias foi um homem situado no seu
tempo. Não é um herói universal, mas estava preocupado com seus dramas locais, com sua
Itália e sua Florença, e, porque não, com suas amantes? Ele talvez tenha sido, embora
relutemos em aceitar, um anti-herói, e de fato maquiavélico, mas o que restou dele, pode
não passar de uma invenção.
642
643
SKINNER, 1988, op. cit., pp.133-134.
GAILLE-NIKODIMOV, 2005, op. cit., p. 16.
132
2
MAQUIAVEL NO TEMPO
2.1 As principais leituras
Não há dúvida entre os pesquisadores de que a obra de Maquiavel se tornou uma das
mais polêmicas e variada em interpretações. Isaiah Berlim já havia notado que “há
qualquer coisa de surpreendente na pura e simples quantidade de interpretações das
opiniões políticas de Maquiavel.”644 Tanto é que Fábio André Hann, em seu artigo sobre a
Tradição interpretativa de Maquiavel, tenta apontar para a importância de se compreender
o significado dessas interpretações desenvolvidas em torno da obra do escritor florentino
de maneira que se torne perceptível a influência histórica dos próprios leitores em sua obra,
como modo possível de compreender essa diversidade de teorias em torno da obra do
florentino. No trilho de Arnaldo Cortina, Hann acredita que, a essa altura, o trabalho de
interpretação dos textos de Maquiavel só é possível levando-se em conta “um coro” de
interpretações já elaboradas de maneira que só podemos prosseguir em trilhas já
percorridas.645 A proposta de Arnaldo Cortina, por exemplo, é a de “estabelecer as
dimensões históricas do próprio processo interpretativo” 646 dos leitores da obra de
Maquiavel. Mesmo assim, o empreendimento não deixa de causar um certo incômodo, e,
como afirmou Raymond Aron:
Quem escreve o nome de Maquiavel no alto de uma folha em branco não
pode deixar de sentir uma certa angústia; depois de outras centenas de
escritores, soberanos, historiadores e filósofos, estudiosos da teoria
política e estrategistas, moralistas e teólogos, ele se prepara para
interrogar a esfinge, o diplomata a serviço de Florença, o patriota italiano,
o autor cuja linguagem – clara em todos os pontos, equívoca no seu
conjunto – dissimula suas intenções, pois as intuições do autor desafiam
há quatro séculos o engenho dos comentadores. Prepara-se também para
fazer a escolha que tantos outros já fizeram anteriormente. Com efeito,
qualquer que seja sua interpretação, não lhe pertencerá (...). O quer que
diga ou faça, já pertencerá a uma das famílias. Não importa se de
maquiavelistas, de maquiavelianos ou de leitores de Maquiavel; chega
tarde demais para fundar uma nova família. 647
644
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 15.
HAHN, 2007, op. cit..
646
CORTINA, op. cit., p. 165.
647
Apud CORDÃO, op. cit., p. 12.
645
133
A primeira leitura que temos notícia da obra desse autor foi desenvolvida por ele
mesmo ainda quando estava em seu exílio após a derrocada do governo de Soderini. Em 10
de dezembro de 1513 em carta a seu amigo, e também embaixador em Roma, Vettori, onde
entre outras coisas que narra, fala-se sobre um escrito político no qual estava trabalhando.
Um pequeno tratado, ou opúsculo, Dos Principados. Sobre o texto o autor não entra em
detalhes, mas hoje, sabe-se, como demonstramos antes, sobre a condição de humilhante
desprezo vivida pelo ex-secretário. E Maquiavel parece querer se utilizar dessa obra como
porta de entrada para um cargo no novo governo mediciano. Já havia tentado antes usar a
influência de Vettori, mas esse não se demonstrou muito interessado. Agora, sua
esperança, parece, “como confidenciou a Vettori, era de que seu tratado pudesse servir para
atrair sobre sua pessoa a atenção ‘de nossos senhores os Medici” 648.
Para tanto, Maquiavel pensou em levar a obra pessoalmente aos seus “senhores”,
com receio de que um tal Ardinquelli tomasse o mérito da obra para si. 649 Segundo Hahn,
Vettori chegou a apoiar essa empreitada, mas não sem antes ler ele mesmo a obra. A
resposta após essa leitura foi um longo e desaprovador silêncio.650 O mais importante, no
entanto, está ligado à dedicatória da obra, que em primeiro momento foi direcionada a
Giuliano de Medicis651, mas logo depois foi transferida para Lourenço, o que levou Cortina
a concluir que o Príncipe não foi escrito “para um príncipe determinado”, mas que “este
poderia ser qualquer um.”652 A isso poderíamos acrescentar, qualquer um da casa dos
Medicis. Por Maquiavel sabemos que seu propósito era o de discutir sobre os principados.
Mas Cortina alega que o ocorrido contraria, em evidência, o intento primeiro do
enunciador, completando, “que a forma de sua organização textual e o fator histórico de
suas leituras levaram a um predomínio do enunciatário do discurso sobre seu tema.” 653 Ou
seja, fica mais evidente que Maquiavel deixou resvalar outros interesses que afetaram
tragicamente sua análise, a dedicatória e o grito final são denunciadores e fortalecem essa
tese.
A leitura da Igreja desenvolvida provavelmente durante o Concílio de Trento (15451563) considerou a obra do autor florentino como possuidora de um caráter nocivo, tanto
648
SKINNER, 1988, op. cit., p. 41.
MAQUIAVEL in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 104.
650
HAHN, 2007, op. cit.
651
Vale lembrar, Giuliano era irmão de Juliano de Médicis, o mesmo que com a ajuda dos espanhóis
destituíram o govaloneiro Soderini
652
CORTINA, op. cit., p. 168.
653
Ibid.
649
134
do ponto de vista da moral quanto da política, como afirma Cortina.654 Sendo considerada
disseminadora de ideias pagãs.655 Esse concílio foi organizado como parte de uma reação
contrária à Reforma ou Contra Reforma. De fato, Burke afirma que, “depois da Reforma, a
Igreja Católica ficou muito mais preocupada com o controle da literatura e, em menor grau,
da pintura.”656 Durante o concílio foi organizado um índice de livros proibidos, o Index,
esse “admirável instrumento de luta”, como afirmou Garin, que foi “posto em prática não
somente para silenciar as vozes dos mortos mas para sufocar imediatamente, já no início,
as dos vivos”657. Várias obras foram consideradas perigosas. Entre estas, estava o
Decameron de Boccaccio 658 e O Príncipe de Maquiavel, listado entre os “autores cujos
livros e todos os escritos são proibidos”.659 Segundo Garin:
A primeira lista dos livros proibidos, feita por Paulo IV, já incluía no
todo, em 1559, (...), Erasmo e até o “cético misticóide Gelli”. Mais
preocupados com as visões de conjunto do que com a análise particular
dos grandes eventos, os historiadores esclareceram o que foi, caso a caso,
a intervenção do Index nos vários lugares e épocas, ilustrando a surda
batalha travada por detrás dos bastidores a respeito de obras, editores,
comércio e circulação de livros vindos do exterior. O bloqueio a
circulação de ideias foi rígido e por vezes implacável. Tudo o que um
século e meio de cultura havia elaborado de ousado, de novo, de eficaz,
foi proibido, mutilado, sufocado. Textos de alto valor artístico ou
histórico, como o Cortegiano de Castiglione, ou as histórias de
Guicciardini, foram sutilmente expurgados e transfigurados pelos
censores; de Gianozzo Manetti a Enea Silvio Piccolomini, de Franceso
Zabarella a Lonrenzo Valla e a Ludovico Vive, tudo o que de mais
aberto, de mais sinceramente religioso tinha sido produzido pela cultura
humanística, foi vetado ou deformado: o platonismo foi bloqueado pela
condenação de Francesco Giorgio Veneto e de Francesco Patrizi da
Cherso: os estudos sobre o pensamento hebraico foram condenados em
Reuchlin, nos seus aspectos maus ousados. Com tudo isto, a nudez das
listas do Index dão somente uma pálida ideia do que foi a luta real, com
as suas intrigas e as suas misérias, quando – como sempre acontece em
tempos de sufocação espiritual – todos apelaram para acusações
demasiado fáceis de impiedade, para atingir inimigos pessoais,
concorrentes perigosos, colegas incômodos e sobretudo novas ideias que
trouxessem dificuldades a indolência dos conservadores.660
654
CORTINA, op. cit., p. 170.
HAHN, 2007, op. cit.
656
BURKE, 2010, op. cit., p. 154.
657
GARIN, op. cit., p. 137.
658
BURKE, 2010, op. cit., p. 154.
659
CORTINA, op. cit., p. 169.
660
GARIN, 1996, op. cit., pp. 137-138.
655
135
Evidentemente não se tratava d’O Príncipe somente, já que havia toda uma trama de
interesses políticos nos critérios estabelecidos de censura das várias obras literárias e
filosóficas. A interpretação da Igreja, segundo Cortina, e a posterior inserção da obra de
Maquiavel no Index foi a mais flagelante e contraproducente leitura desse autor. Supõe-se
ser dessa ocasião o surgimento dos termos maquiavelismo e maquiavélico, que irão
acompanhar sinonimamente sua obra sempre o relacionando a algo negativo e mal. 661
Definitivamente, a Igreja não “concordava” (perdoe-nos o trocadilho) com o discurso
do autor dos Discursos, por várias razões, algumas bem óbvias, por sinal. Primeiro
Maquiavel defende meios nada convencionais de se conquistar o poder e mantê-lo, política
essa que não era estranha aos papas, o que não explica, portanto, a inclusão de sua obra no
Index. Ora, para Berlin:
O fato de os maus parecerem florescer ou de opções imorais parecerem
compensar nunca ficou muito longe da consciência da humanidade. A
bíblia, Heródoto, Tucídides, Platão, Aristóteles – segundo apenas
algumas das obras básicas da cultura ocidental - , o caráter de Jacó, Josué
ou Davi, os conselhos de Samuel a Saul, o dialogo meliano de Tucídides
ou seu relato de ao menos uma resolução ateniense feroz, embora
rescindida, as filosofias de Trasímaco e Cálicles, os conselhos de
Aristóteles aos tiranos na Política, os discursos de Carneades ao senado
romano segundo a descrição por Cícero, a visão de Agostinho do estado
secular a partir de uma determinada posição, e a de Marsílio a partir de
outra – todos esses iluminam suficientemente as realidades políticas para
destruir o idealismo acrítico dos crédulos. 662
Mas o problema não estava, talvez, no fato de uma inverdade, mas no descaramento
do autor em expor e desnudar princípios antes restritos aos bastidores do domínio político.
Contrariando a noção de Adverse663, é nesse ponto que a obra de Maquiavel se torna mais
original, afirmando e trazendo à luz o que até certo ponto os teóricos se acanhavam em
expor e que a política concretizava às ocultas.
Segundo ponto, mas não menos relevante, é o fato de que em vários momentos
Maquiavel havia dado provas do seu desconforto com as intervenções da Igreja em
assuntos temporais. Em O Príncipe defende claramente que o príncipe deve deter um
poder irrestrito, contrariando assim um dos principais dogmas da Igreja sobre a autoridade
661
CORTINA, op. cit., p. 169.
BERLIN In MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 17.
663
ADVERSE, Helton. Maquiavel: Política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 45.
662
136
pontifícia sobre o poder temporal, como ensinaram os pais da Igreja.664 Além do mais, não
deixou de lançar várias críticas à maneira de a Igreja administrar a fé, crendo ser ela
responsável pela própria ausência de religiosidade na Itália.
Obviamente, a leitura da Igreja faz muito sentido, principalmente no contexto da
Reforma, como afirma Cortina, momento esse que a Igreja sofre várias pressões,
frequentemente sendo acusada “de desvirtuar e corromper seus verdadeiros ideais
religiosos e de ser uma instituição corrompida”. 665 Diante dessa situação se fez necessário
uma ação contrária que anteparasse à circulação de obras que pudessem minar a fé na
Instituição da Igreja, e o Concílio de Trento foi o contragolpe a isso, no seio do qual surge
o Index parte de um movimento maior e mais combativo, a Contra-Reforma, cujo objetivo
era o de combater as heresias que se espalhavam. O Index foi para a literatura o que as
folhas de figueiras se constituíram para os corpos nus do Juízo Final de Michelangelo.
Outra leitura importante foi a de Frederico da Prussia (1712-1786). Sua obra, L’antiMachiavel (O Anti-Maquiavel), escrita provavelmente entre 1739 e 1740666, como o
próprio título indica, pretendia ser uma refutação de O Príncipe, “a seguir cada capítulo.”
Capítulo por capítulo o escrito do florentino é refutado em sua “perniciosa moral”. A
refutação de Frederico procura fazer um caminho contrário sob um ponto de vista
moralista. Se Maquiavel “corrompeu a política” e buscou “destruir os preceitos da sã
moral”, Frederico pretende “tomar a defesa da humanidade” considerando ser esse “o
antídoto”. 667 Dessa maneira, ele justifica sua negação d’O Príncipe. Algo que também não
deve ser perdido de vista é o fato de que o texto deste “déspota esclarecido” foi marcado
pela influência de Voltaire (1694-1778) que em 1740, solicitado por Frederico, fez várias
correções e modificações na obra, e em 1847 (Voltaire) manda publicar essa “versão
melhorada.”668 É possível perceber a influência desse filósofo em vários momentos d’O
Anti-Maquiavel, mesmo quando em um raro momento Frederico compartilha da crítica de
Maquiavel ao clero, afirmando o quão “grosseiramente” estes haviam confundido seu
664
Essa doutrina é explicita, por exemplo, em carta de Gelásio a Anastacio escrita, provavelmente em 494 a.
C. segundo Gelásio, “ninguém pode elevar-se por meios puramente humanos acima da posição daquele [São
Pedro] a quem o chamado de Cristo preferiu a todos os demais, e a quem a Igreja tem reconhecido e
venerado sempre como seu primaz”. Apud PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade
Média: Textos e testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p, 122. O colchete é nosso.
665
CORTINA, op. cit., p. 170.
666
Ibid., p. 171.
667
FREDERICO DA PRUSIA, op. cit., p. 7.
668
CORTINA, op. cit., pp. 171-172.
137
ministério “espiritual” “com o temporal.”669 Bignotto diz-nos, de fato, que Voltaire faz eco
às críticas que Maquiavel fazia à religião católica e sua interferência na esfera da política.
Mas sua crítica, é bem verdade, muda “o alvo” e sobre as divisões provocadas pelo
“catolicismo” conclui “ser o grande mal do gênero humano”.670
Embora o texto tenha a pretensão de ser uma defesa da moral contra “o maior
celerado da história”, Frederico não deixou de seguir de perto as orientações do autor a
quem se opunha “durante as várias invasões que empreendeu na Silésia e na Polônia.”671
Seu ponto de vista pode ser explicado como de um sujeito, de certa forma, alheio aos
mecanismos de gerência do poder, se pensarmos na disparidade entre sua crítica antes de
torna-se monarca e sua prática após ser coroado. O fato de ser discípulo de Voltaire não
deve ser ignorado, principalmente levando em conta que esse filósofo das “luzes”, “irritado
com os abusos do poder”, pretendia ele mesmo “esclarecer” os “monarcas europeus,” é
graças a ele, dirá Simone Goyard, que Frederico II se tornará um “déspota esclarecido”.672
De fato, como afirma Cortina:
O que me parece importante também é que Frederico está propondo um
outro manual para os príncipes. Seu ponto de vista consiste em mostrar
que as afirmações de Maquiavel já estavam ultrapassadas, que para um
homem poder ser um bom príncipe no século XVIII deveria perceber a
nova ordem política e econômica que determinava a vida dos vários
países da Europa. Ele parecia pretender ser um porta-voz do homem do
Iluminismo que critica a visão de mundo do homem renascentista. 673
Frederico afasta-se das ideias de Maquiavel pela inversão de uma época preocupada
com um modelo de governante diferente (e esclarecido) do apresentado em O Príncipe e
esquematizado na figura ultrapassada de César Borgia. Demonstrando-se invariavelmente
marcado por uma perspectiva ideológica de progresso forjada pelas garantias históricas
vividas, o que lhe dá, por outro lado, “a garantia de que sua leitura é a verdadeira.” 674 Se
trata de uma noção de história a lá Voltaire, ao apreender “que cada época”, como explica
Manieri (sobre Voltaire), “possui um ser único.”675
669
FREDERICO DA PRUSIA, op. cit., p. 60.
BIGNOTTO, 2010, op. cit., p. 75.
671
CORTINA, op. cit., p. 171.
672
GOYARD, Simone. As “luzes”: A filosofia no século XVIII. In. JERPHAGNON, Lucien. História das
Grandes Filosofias. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 193.
673
CORTINA, op. cit., pp. 170, 185.
674
Ibid., pp. 170, 191.
675
MANIERI, op. cit., p. 99.
670
138
Maquiavel partiu do princípio de que todos “os homens são maus” e de que sempre
“estão dispostos a agir com perversidade”. 676 Já para Frederico II, seguindo os passos de
Voltaire, “o homem é essencialmente bom e puro, a sociedade é que se encarregará de
corrompê-lo”.677 Manieri igualmente explica que, “assim como Montesquieu descobriu o
fundamento da democracia moderna, Voltaire descobre os fundamentos da nova
liberdade.”678 Os princípios civis, diversamente do “homo faber moderno”, nascem
autônomos da virtu do homem, e são resultantes das próprias “condições da formação
social”679 em que o indivíduo se insere. Forçosamente, se seguirmos essa trilha,
perceberemos que não há um lugar para o homem necessariamente mau de Maquiavel.
Candido, ou do Otimismo, de Voltaire, apresenta o homem como sendo bom, e ingênuo
diante do mundo, mas a trama social acaba conduzindo-o à condição de “lobo”. Conforme
Manieri:
No exemplo do próprio Cândido, ele é um personagem bom. Quando da
tragédia no Porto de Lisboa – onde morre a maioria da tripulação do
navio, inclusive o “bom Tiago” -, Cândido “quer atirar-se ao mar atrás
dele”. Mas ao mesmo tempo, num acesso de raiva, assassina dois
inimigos. Cunegundes, assombrada com o ato, exclama: “Como pudeste,
tu que nasceste tão doce, matar em dois minutos um judeu e um
prelado?” Na resposta, Cândido se justifica por estar “enamorado,
enciumado” e por ter sido “açoitado pela Inquisição”. O próprio contexto
da situação (que gerou um homem “ciumento e ferido”) fez com que o
herói de Voltaire cometesse dois assassinados. 680
O Discurso desenvolvido por Frederico II sobre a obra do autor florentino, e seu
ponto de vista, portanto, justifica-se pela presença de um conjunto de ideias sobre o
homem e principalmente sobre a maneira deste conduzir os negócios do Estado, cuja pedra
angular foi uma ideia aburguesada de progresso essencial, no século XVIII, para uma visão
otimista da própria condição humana. A leitura de Frederico II, portanto, está diretamente
subordinada a uma concepção de homem diferente daquela do autor d’O Príncipe.
Enquanto que para Maquiavel era preciso fazer a distinção entre a moral de Estado e
privada, para Frederico II essa distinção era inteiramente inadequada, para este “existe
676
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 30.
CORTINA, 2000, op. cit., p. 192.
678
MANIERI, op. cit., p. 96.
679
Ibid., pp. 96-97.
680
Ibid., pp. 98-99.
677
139
apenas uma moral natural, que deve ser a mesma tanto para o Estado quanto para o
indivíduo”681, conclui Cortina.
J.J. Rousseau (1712-1778), a quem Robespierre havia considerado como “digno do
ministério de preceptor do gênero humano”682, Também possuiu uma relação com a obra
de Maquiavel, que talvez constitua a mais original e arriscada. Sua obra surge num
contexto propício para a fermentação de suas ideias, “com sua obra”, como bem anotou
Goyard, “a invenção da liberdade estava de fato a caminho, pois situava o problema
político no centro de um intenso consenso”683. Sua afinidade com temas republicanos se
deu a partir do estudo do passado e de algumas figuras exemplares 684, como afirmou
Bignotto. Ele estabelece-se no estudo do passado semelhante a seus precursores italianos, e
resguarda para Maquiavel especial admiração.685 Essa orientação ao passado lhe forneceu
as bases para sua crítica, municiando apoio indispensável para a formulação de sua teoria
política.686 Bignotto também explica que “seus elogios do passado, sua crítica da filosofia
iluminista (...) levaram-no à elaboração de uma filosofia política que firmou as bases sobre
as quais se ergueu o republicanismo francês.”687 A leitura de Rousseau, segundo Cortina, é
resultante de sua condição de homem livre:
Que é um dos princípios básicos de sua filosofia, (...) parece estabelecer
uma relação mais intrínseca com O Príncipe de Maquiavel na medida em
que, como este, pretende discutir vários aspectos da forma mais justa de
organização dos Estados, os quais por natureza, devem respeitar a
liberdade individual. Embora O contrato social não se dirija a um “tu”
tão claramente marcado como o do autor florentino, parece fazer uso de
uma forma textual também próxima à de um manual.688
Isso explica a tentativa de Rousseau em reabilitar Maquiavel entre os defensores da
liberdade. Antes de Rousseau, Spinoza elaborou uma leitura próxima do pensador
iluminista. Ambos se preocupam em elaborar uma crítica positiva de Maquiavel,
destacando-o como um defensor da liberdade. Para Spinoza, por exemplo:
681
CORTINA, op. cit., p. 191.
Ibid., p. 193.
683
GOYARD in JERPHAGNON, op. cit., p. 204.
684
BIGNOTTO, 2010, op. cit., p. 87.
685
Ibid., p. 88.
686
Ibid.
687
Ibid.
688
CORTINA, op. cit., pp. 193-194.
682
140
Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se
deve defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que, se não
é fútil a ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá
constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a
preocupar-se sobretudo consigo próprio e, assim, a enganar a população
em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim
acerca deste habilíssimo autor, quanto mais se concorda em considerá-lo
um partidário constante da liberdade e, quanto sobre a maneira necessária
de a conservar, ele deu opiniões muito salutares. 689
Para Spinoza, explica Berlin, O Príncipe foi elaborado à maneira de uma história
exemplar, habilmente elaborada com o intento de desviar a atenção de possíveis
problemas. Segundo ele, “Talvez o autor não pudesse escrever de forma mais aberta com
dois poderes rivais – os da Igreja e dos Médicis – olhando-o com igual desconfiança.”690
Assim, Maquiavel poderia “advertir os homens quanto ao que os tiranos poderiam ser e
fazer.” Para esses dois pensadores, “Maquiavel foi um patriota apaixonado, um democrata,
um crente na liberdade.”691 A variação dessas interpretações pode ser o resultado de um
comprometimento ideológico com uma formação discursiva diversa, ligada diretamente ao
lugar da fala desses leitores, que teria, por sua vez, gerado uma leitura assimétrica e
anômala, mais comprometida discursiva e socialmente que textualmente. Mas, no caso de
Spinoza, fica difícil ser mais preciso sem cairmos em mero invencionismo. Não foi
também Spinoza um rejeitado, e sua filosofia não esteve entre as mais contestadas,
“chegando mesmo a ser insultado”692 [?] Segundo Frereux, isso se torna mais evidente
“sobretudo durante o século XVIII, em que se refutou incessantemente esse homem
odiado, esse “ateu”, esse “ímpio”, esse “maldito”.693 Assim, sua leitura de Maquiavel não
foi ela mesma, talvez, uma tentativa de reabilitar a si mesmo, não seria, assim, possível
então se tratar também de uma empatia pela condição do autor florentino, esse também
“maldito”? Renzo Sereno também se aventurou nesse campo, e desenvolveu uma
interpretação da obra de Maquiavel do ponto de vista da psicanálise para apoiar a hipótese
de que Maquiavel teria escrito uma obra fantasiosa, fruto de uma mente amargurada pela
frustração, e sua dedicatória seria o “apelo desesperado’ de uma vítima da grande
continuada malícia da sorte.”694
689
HAHN, 2007, op. cit.
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 18.
691
Ibid.
692
FREREUX in JERPHAGNON, op. cit., p. 162.
693
Ibid.
694
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 25.
690
141
Isso pode explicar, também, a diferença entre as leituras de Frederico II e a de
Rousseau. Segundo Cortina,
Pode-se perceber que, embora os dois condenem igualmente as ações dos
déspotas e defendam o humanismo no trato entre príncipe e povo, existe
uma diferença entre O contrato social de Rousseau e L’anti-Machiavel de
Frederico II. Essa diferença é decorrente da posição em que se encontram
os dois sujeitos, isto é, o lugar social que ocupam leva-os a
procedimentos de leitura distintos. 695
A atitude de Frederico II ao enunciar a existência de príncipes bons não poderia ser
sem antes condenar os conselhos de Maquiavel como celerados. Seu desígnio é o de
estabelecer com o enunciatário um discurso que demonstrasse a existência de príncipes
bons, onde na qualidade de príncipe estaria protegendo sua própria reputação, em oposição
aos homens que se pervertem tornando-se maus.696
Napoleão desenvolveu uma leitura originária do ponto de vista do próprio exercício
do poder, e por vezes toma os conselhos de Maquiavel como sendo dirigidos diretamente a
ele. Sua leitura, diferentemente das Frederico II e Rousseau, não busca atacar os
pressupostos do autor e/ou condená-los, mas busca destacar as características “de
identificação que pretende estabelecer entre sua visão sobre a conquista do poder e a de
Maquiavel.”697 Nesse sentido dois pontos merecem ênfase, segundo Cortina,
Primeiramente, sua crítica a duas alternativas propostas por Maquiavel
em relação à maneia como se deve proceder para conquistar um Estado
novo habituado a governar-se por leis próprias e em liberdade: arruiná-lo
ou deixar que vivam com suas leis. Da mesma maneira que Frederico II,
Napoleão considera inadequado, para sua época, a proposta de arruinar o
novo Estado, embora não explique por que, ao mesmo tempo que julga
extremamente perigoso deixa-lo viver com suas próprias leis (...).
A segunda questão consiste no fato de o general Napoleão considerar
Maquiavel um moralista em determinadas passagens de seu texto.
Quando o escritor florentino diz que irá mostrar dois exemplos de como
se pode chegar ao principado pelo crime, acrescenta que pretende discutir
o mérito desse procedimento de conquista. Nessa ocasião, Napoleão
introduz uma nota para dizer que a discrição do autor é moralista e muito
intempestiva ao referir-se às coisas do Estado. Essa mesma crítica irá
repetir-se em outras passagens de O príncipe. O que se pode notar é que,
contrariamente a Frederico II, que julga Maquiavel um imoral e um
depravado, Napoleão acusa-o de ser até muito moralista e tímido na
defesa de certos pontos e vista.698
695
CORTINA, op. cit., p. 197.
Ibid.
697
Ibid., p. 207.
698
Ibid., p. 204.
696
142
Nota-se que o posicionamento de Napoleão face ao texto maquiaveliano é o de
alguém que o vê como um manual político, suas anotações demonstram que durante sua
leitura sua postura era a de um “discípulo excelente” diante do mestre instrutor,
Maquiavel. 699
Outra leitura ligada também diretamente à prática do poder foi a de Benito
Mussolini, que, segundo Cortina, e por razões obvias, “estava intimamente ligada aos
dogmas do fascismo da Itália do início do século XX.”700 Para Mussolini, O príncipe seria,
à semelhança do que acreditava Napoleão, um apropriado manual para o homem de
governo. Além disso, seu olhar sobre a obra de Maquiavel é também a de quem busca no
texto “justificativas teóricas para o nacionalismo fascista.” 701
Como exemplo, basta citar a primeira referência de Mussolini ao escritor florentino
ocorrida por volta de 1918, quando das comemorações do terceiro aniversário da entrada
da Itália na guerra. Trata-se de um discurso, portanto, anterior à formação do Partido
Fascista Italiano (1919). Com esse discurso pretendia justificar a importância da entrada na
guerra e reificar o significado positivo da guerra para os italianos:
Mussolini reporta-se ao capítulo VI de O príncipe. Desse capítulo destaca
a referência que Maquiavel faz a Moises, Ciro, Rômulo e Teseu, quando
propõe citá-los como exemplo “dos que foram príncipes pelo seu valor e
não por boa sorte” por meio dessa alusão ao texto maquiavélico,
Mussolini cria, como recurso argumentativo de seu discurso, uma
analogia entre os “príncipes” citado pelo escritor florentino e o povo
italiano. 702
Mas esses fundadores de Estados só se tornaram exemplares (e nesse ponto a
intenção argumentativa de Mussolini se torna mais visível) porque souberam aproveitar as
oportunidades que a sorte lhes oferecia de maneira que os italianos deveriam fazer o
mesmo no que diz respeito à guerra. “Nesse sentido”, afirma Cortina, “o discurso de
Maquiavel serve como recurso de veridicção, isto é, por meio da referência a O príncipe,
Mussolini pretende assegurar a “verdade” de seu discurso.”703 Outro ponto abordado por
Cortina em relação à leitura de Mussolini corresponde ao seu código de crenças ligado ao
Fascismo que, “para poder realizar aquilo que julga necessário, deve privilegiar os fins e
699
CORTINA, op. cit., p. 204.
Ibid., p. 207.
701
Ibid.
702
Ibid., p. 208.
703
Ibid., pp. 208-209.
700
143
não os meios.” Da mesma maneira que para Maquiavel a unidade da Itália dependia do
braço forte de um líder guerreiro, mesmo que essa unidade fosse conquistada a custo da
morte de centenas, essa crença também se tornou a base do pensamento fascista em relação
à Itália de Mussolini. Dessa forma, Cortina finaliza que “a leitura que Mussolini faz do
texto maquiavélico é, portanto, decorrente das relações de significação que se estabelece
entre as figuras e os temas constituintes do discurso presente em O príncipe.”704
Anthony Giddens, por outro lado, demonstrou que o Estado Totalitário em linhas
gerais é um fenômeno quase que exclusivamente do século XX. Onde se destaca como
parte necessária de sua natureza, mesmo levando em consideração suas variações (Itália
fascista, Alemanha nazista, União Soviética de Stalin e Rússia sob os Czares), o monopólio
da violência. 705 Segundo Giddens, “em cada caso um governante ditatorial transforma um
sistema simbólico preexistente em uma base ideológica consolidada de governo,
acompanhada pelo uso invasivo da coerção para suprimir dissidências. O fascismo italiano
foi, de longe, o que menos matou.”706
O que nos leva necessariamente a intuir que o uso por parte do fascismo de
Mussolini, de um sistema de crenças já presentes, buscava justificar por meios de várias
apropriações indevidas um legado italiano heroico, algo no sentido de um destino
manifesto. O uso de analogias apropriadas do texto maquiaveliano tinha como fim fixar
ideologicamente em seu interlocutor a necessidade de um espírito belicoso, que num
aspecto geral se manifestaria na instituição político-ideológico-fascista. Ora, Moises foi
aquele que nas bases do Monte Sinai, após a profanação com o bezerro de ouro, convocou
os filhos de Israel para que matassem todos os revoltosos, “passai e repassai” diz o profeta,
“através do acampamento, de uma porta à outra, e cada um de vós mate o seu irmão, seu
amigo, seu parente!”707 Rômulo também foi protagonista de um estranho e violento projeto
exemplar do uso abusivo da força, como demonstra o caso do rapto das sabinas, que,
704
CORTINA, op. cit., p. 214.
GIDDENS, Anthony. O Estado- nação e a violência: segundo volume de Uma Crítica Contemporânea ao
Materialismo Histórico. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008, p. 308. Sobre o conceito de
totalitarismo ou Estado Totalitário, Giddens explica que desde os primeiros momentos de seu uso da maneira
que hoje empregamos, provavelmente em finais 1920, quando se passou usa-lo como ataque ao fascismo
italiano, desde então “o conceito passou por inúmeras vicissitudes. Foi aplicado a movimentos, partidos,
lideres e a ideias, porém mais comumente incluem a Itália Fascista, a Alemanha nazista (...) além de uma
variedade de Estados tradicionais, especialmente o Egito e Roma, os Estado absolutistas, as sociedades
fictícias como a Republica de Platão. Não é de se admirar que a noção seja chamada de “meretriz conceitual
de filiação duvidosa, pertencendo a ninguém, mas a serviço de todos” pp. 308-309.
706
GIDDENS, op. cit., p. 311.
707
BIBLIA SAGRADA. São Paulo: Editora Ave Maria, Êxodo, cp. 32, vs. 27.
705
144
graças à intervenção destas, seu rapto também não resultou em massacre.708 Dessa maneira
justifica-se o uso da violência e a própria supressão das liberdades individuais em favor de
políticas arbitrárias.
Contrariando essa perspectiva, Antônio Gramsci (1891-1937) procura fazer emergir
o sentido da obra de Maquiavel, observando em primeiro momento o lugar na história em
cujo seio nasce o texto interpretado. De fato, não poderia ser outro o modo de interpelar a
obra de Maquiavel, em se tratando de um pensador cujos pressupostos teóricos e princípios
epistêmicos estão firmemente enraizados, e manifestadamente ligados ao marxismo. De
fato, Claude Lefort dirá:
Gramsci é um pensador marxista; uma teoria da História, não
dissimulada, comanda sua empresa de conhecimento e circunscreve numa
investigação sobre a função exercida pelo discurso maquiaveliano no seio
do discurso social, estando este ultimo determinado pelas condições
econômicas em que se situa seus protagonistas.709
Para Gramsci, Maquiavel não escreveu uma utopia nem mesmo algo imaginário,
pelo contrário, sua obra trata do concreto, da dispersão de um povo, seu intento era o de
“despertar e organizar sua vontade coletiva.” 710 No entanto, embaraçosamente ele também
aponta para aquilo que seria o “caráter utópico do Príncipe”. Querendo dizer, com isso, que
não havia nada na realidade italiana correspondente, ele (o príncipe) “não se apresentava
ao povo italiano com características de imediaticidade objetiva”, concluindo daí que seu
preceito seria, portanto, pura abstração, apontando para “o símbolo do líder, do condottieri
ideal”. 711 Gramsci insinua a partir daí, através e por meio do seu mito-príncipe, que esse
não poderia ser uma pessoa, um indivíduo concreto, mas o protótipo orgânico de uma
vontade coletiva que já reconhecia suas reminiscências históricas encontrando sua
personificação no partido político.712 Daí o caráter de manifesto político conferido à obra
do autor florentino.
O principal que deve ser ressaltado é o lugar da inteligência autônoma da ciência
política de Maquiavel, ou seja, “do lugar que a ciência política ocupa, ou deve ocupar,
708
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Brasília: Editora Kiron, 2011, pp. 66-67.
LEFORT in QUIRINO, op. cit., pp. 9-10.
710
GRAMSCI, op. cit., p. 14.
711
Ibid.
712
Ibid., p. 16.
709
145
numa concepção sistemática (coerente e consequente) do mundo – numa filosofia da
práxis.”713 Para Gramsci, como explica Cortina:
Mais do que um cientista político, Maquiavel foi um político pratico que,
em razão dessa mesma praticidade, não podia deixar de se preocupar com
o dever ser. Nesse sentido, sua intenção nunca foi a de escrever um livro
para modificar a realidade, seu propósito era interpretá-la e indicar a linha
possível de ação.714
Já percebemos que a leitura de Gramsci, de fato, foi marcada por uma visão marxista
compartilhada pelo autor, mas, além dessa evidência, Cortina também constata ainda:
Da mesma forma que se pôde perceber uma relação polêmica entre as
leituras de Frederico II e Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, podese percebê-la na comparação das leituras de Mussolini e Gramsci, no
século XX. Em seu texto há, implicitamente, críticas ao pensamento do
Duce, que o perseguiu e o prendeu durante seu governo fascista na
Itália.715
Enquanto Mussolini observava o Príncipe como um manual que deveria ser seguido,
Gramsci valoriza seu aspecto genial mítico e vê a possibilidade de adaptação da obra à sua
realidade, buscando no texto maquiavélico princípios filiais da práxis, tão cara ao
pensamento marxista. Em todo caso o que distancia entre “a visão eufórica que Gramsci e
Mussolini têm d’O príncipe é a perspectiva ideológica de cada um deles”.716
Evidentemente, essas não são as únicas leituras da obra de Maquiavel, muito menos
foram as únicas teorias sobre esse autor, como demonstrou resumidamente Berlin em seu
ensaio sobre A originalidade de Maquiavel. Destacando entre outros intérpretes Ernst
Cassirer (1945) e Keithi Hancock, por exemplo, para quem Maquiavel seria “um técnico
frio, não comprometido ética ou politicamente, um analista político, um cientista
moralmente neutro”.717 É Cassirer quem talvez mais se incomode com a imagem de um
Maquiavel dócil e afirma,
Ninguém jamais duvidou do patriotismo de Maquiavel. Mas não devemos
confundir o filósofo com o patriota. O Príncipe foi obra de um pensador
– político de um pensador muito radical. Muitos estudiosos modernos
713
GRAMSCI, op. cit., p. 26.
CORTINA, op. cit., p. 217.
715
Ibid., p. 219.
716
Ibid.
717
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 21.
714
146
esquecem, ou, pelo mesmo, avaliam mal, esse radicalismo da teoria de
Maquiavel. Nos seus esforços para lhe limparem o nome obscureceramlhe a obra. Retratam um Maquiavel inofensivo, mas trivial. O verdadeiro
Maquiavel era muito mais perigoso – perigoso nos seus pensamentos e
não no seu caráter. Mitigar a sua teoria significa falseá-la. O quadro de
um Maquiavel cor-de-rosa não é um quadro historicamente verdadeiro. É
uma convenção fabulosa tão oposta à verdade histórica como a
concepção do “diabólico” Maquiavel.718
Karl Schmid, segundo Berlin, também raciocina da mesma forma, com o acréscimo
de que Maquiavel teria mesmo antecipado “Galileu na aplicação de métodos indutivos em
material social e histórico, e não tinha qualquer interesse moral no uso feito de suas
descobertas técnicas - igualmente pronto a colocá-las à disposição de libertadores e
déspotas, homens bons e patifes”.719 Já para Federico Chabod, Maquiavel não seria “de
todo frio e calculista”, mas sim um “apaixonado ao ponto de enveredar pelo irreal”,
Roberto Ridolfi também compartilha desse modo de pensar que vê em Maquiavel “il
grande appassionato”.720
Outra tese interessante da qual compartilhamos seria aquela defendida por Oreste
Toamasini, por exemplo, de que Maquiavel dirigiu-se primeiramente à sua geração, “se
não apenas aos florentinos – de qualquer modo, apenas a italianos”. Nesses termos não
restaria dúvida de que deveria, por sua vez “ser julgado exclusivamente, ou pelo menos
principalmente em termo de tal contexto histórico”.721 Essa também é a posição de
Macaulay e Hegel e influenciou fortemente a leitura do historiador Quentin Skinner.
A ética maquiaveliana definitivamente é uma dissidente da moral clássica, dirá
Skinner, mas apenas para tornar-se representante e porta-voz do discurso da ocasião. A
“nova” moral já estava presente nas relações de poder, “ela existia de fato”, seu
“rompimento”, portanto, se manifesta, no sentido de ignorar um discurso humanista ainda
preso às pretensões clássicas incapazes de desenvolver uma preocupação ajustada à
realidade efetiva das coisas. “Sua atitude”, explica Cortina, “foi tomar para si a tarefa de
documentar o discurso dominante de sua época,” sobre o que podemos chamar de
economia da violência no Estado. Skinner ainda irá destacar, por esse meio, o caráter
heterogêneo que constitui a obra do autor florentino, pois Maquiavel reitera em vários
momentos o pensamento humanista clássico, ao mesmo tempo que tenta provocar uma
718
CASSIRER, op. cit., p. 175.
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 21.
720
Ibid., pp. 21-22.
721
Ibid., p. 23.
719
147
ruptura, como acontece em suas análises sobre virtù e a própria noção de moral, em um
jogo de apropriações discursivas que garantiram-lhe sua “originalidade”.
No Brasil houve pelo menos duas principais leituras da obra de Maquiavel
desenvolvidas respectivamente por Faria (1931) e Escorel (1979). Segundo Cortina, Faria
Observa que o perigo quem muitos pretendem enxergar no texto do
escritor florentino depende da maneira como se interpreta sua obra, pois
“perigosos são todos os grandes ensinamentos” (p. XIII). Segundo seu
ponto de vista, é necessário que o leitor, além de manter fidelidade ao
texto, mantenha fidelidade à obra do escritor, o seja, que é o contexto
integral da obra de um autor que dá sentido ao texto que se pretende
interpretar. E é a partir dessa perspectiva, portanto, que ele propõe
desenvolver sua leitura.722
Faria adverte contra uma leitura que tenda ver em Maquiavel um teórico do
absolutismo, mas salienta ser verdade encontrar “aqui e ali essas vendas de todas as
mercadorias, esse ensino de como trilhar qualquer caminho.”723 A razão deste disparate
pode ser resolvida por uma leitura mais aproximada da realidade imediata do autor. Cortina
comenta que isso se deve possivelmente em razão de que a doutrina de Maquiavel se acha
desvencilhada de qualquer intimidade com a moral, não há um “sentido moral das coisas, o
que predomina em sua obra é uma visão prática dos negócios do Estado, em razão do que
ele opera uma separação entre moral e política.”724 Faria insiste que o interesse primeiro de
Maquiavel foi a defesa da pátria e sua manutenção.
Consolidada essa prédica, Faria estabelece uma relação entre Maquiavel e
Mussolini, crendo que para criar uma nação forte e unificada aos moldes do que pensou
Maquiavel era preciso também um líder forte que correspondesse ao príncipe imaginado
pelo autor florentino. Para Faria, esse líder seria Mussolini. Este “é o homem com quem
Maquiavel sonhou para realizar sua aspiração.”725 Faria ainda entendeu, como cita Cortina,
“que a situação italiana do pós-guerra era muito semelhante à do Brasil de sua época,
Mussolini era visto também como aquele capaz de resolver nossos problemas da década de
1930”.726 Em seu discurso nota-se a necessidade de uma revolução análoga ao fascismo.
Essa seria a saída para o problema italiano e brasileiro. Segundo Cortina, “para isso, (...),
722
CORTINA, op. cit., p. 240.
Apud CORTINA, op. cit., p. 241.
724
CORTINA, op. cit., p. 241.
725
Ibid.
726
Ibid.
723
148
só havia dois caminhos: um regime de terror instaurado por um sargento expulso do
exército ou por um marxista empoeirado ou então uma intervenção estrangeira” 727
Por outro lado, não são somente as ideias do nacionalismo-fascista que transitam pela
interpretação de Faria, como percebeu Sadek. Sua leitura também está impregnada de
elementos de caráter religioso quando fala, por exemplo, de “revolução interior, como livre
aceitação do sofrimento”.728 Para Sadek:
Nesta ordem de ideias, Octavio de Faria se aproxima das formulações da
Igreja Católica e se afasta da outra corrente que esposara na Maior parte
de sua discussão. Aqui, o que está em questão não é mais o Estado, mas
Igreja e o indivíduo, não é mais a elite que tem por missão adequar o
Brasil legal ao real, mas o “sofrimento portador da regeneração” não é
mais a solução política, mas a moralizante-religiosa, que se dá mesmo
“longe dos cargos políticos”; não é mais o poder que deve ser fortalecido
e centralizado, mas o indivíduo que necessita ser educado para a vida em
comum. 729
Por meio de uma violenta recontextualização da obra de Maquiavel para a Itália
fascista do século XX, Faria pretende aglutinar as realidades brasileiras e da Itália em uma
única leitura. A transposição ocorre possivelmente pela percepção de caos nesses dois
contextos e “a necessidade de unificação nacional”.730 Esses elementos comuns seriam os
responsáveis pela formação de sua matriz argumentativa. Mas isso não nos permite
desviar-nos do tom polêmico, pois Faria parece acreditar que haja alguma semelhança
entre o contexto brasileiro vivido por ele, a Itália fascista e a Itália renascentista de
Maquiavel. Essa postura anacrônica, Faria busca justificar “na dimensão psicológica que
(...) dá à sua interpretação do texto maquiavélico, isto é, quando pretende mostrar que, para
Maquiavel, a essência humana é sempre a mesma, imutável ao longo do tempo”731. De
uma forma ou de outra, Faria dá suas cores para um novo príncipe, dando o estatuto de
verdade e perenidade da obra de Maquiavel, o que não deixa de contrariar um dos aspectos
mais caros de sua interpretação, a necessidade de fidelidade ao contexto em que a obra
maquiaveliana foi gerada.
Já Escorel parece querer desmistificar a ideia de que Maquiavel teria sido um
pensador inédito. Para ele, os princípios básicos que deram origem ao conceito de
727
CORTINA, op. cit., p. 242.
Ibid.
729
Ibid.
730
Ibid., p. 243.
731
Ibid.
728
149
maquiavelismo, por exemplo, não foi um invento de Maquiavel, mas já estavam presentes
na “Antiguidade Clássica nas fábulas de Esopo, Fedro e no pensamento dos sofistas
gregos”732, ressurgindo com toda sua força no Renascimento. Assim, a lógica
maquiaveliana não estava em desacordo com sua época, pois se tratava de uma exposição
das principais tendências políticas em andamento, como explica Cortina. Essas tendências
“consistiam no absolutismo real e no secularismo, a partir dos quais nascia o conceito de
Estado moderno”733. Desse modo, segundo Escorel:
O que Maquiavel fez, em suma, foi codificar e difundir as normas
práticas que sempre regularam a conduta humana no plano político, ainda
que frequentemente sob disfarces hipócritas. Se alguma responsabilidade
moral lhe pode ser atribuída, será a de não se te preocupado em submeter
a prática política ao crivo de um código moral meta-histórico; mas isto
resultou do método indutivo empírico que o espírito da Renascença lhe
inspirou ... A reação contra Maquiavel foi tanto maior quanto sua obra
veio pôr a nu a verdadeira motivação e a mecânica real da política de
todos os tempos. Em grande parte, a corrente antimaquiavélica não é
senão ... a manifestação teórica deste principio de arte política elementar:
que certas coisas se fazem mas não se dizem. 734
Ele também procura demonstrar em vários momentos o paralelo existente nas duas
principais obras de Maquiavel, O príncipe e os Discursos. Esse recurso interpretativo, por
meio de uma análise comparativa, busca mostrar as similaridades entre as duas obras do
autor, segundo Cortina. Este percebeu que a obra de Escorel parece opor-se à interpretação
de Faria. Diferente deste, ele tenta mostrar o modo como o pensamento maquiaveliano não
se desvia de sua época, mas, pelo contrário, “reflete a percepção que o autor florentino
tinha da realidade de seu tempo.”735 Como, por exemplo, nos capítulos finais de O
príncipe, Maquiavel exorta o novo príncipe a libertar a Itália da dominação estrangeira,
unificando-a. Escorel dirá que esse pensamento já estava presente em Leão X, que “já
havia proposto a criação de um Estado italiano”736 Daí o caráter histórico-biográfico da
leitura de Escorel em sua obra a Introdução ao pensamento político de Maquiavel. Seu
objetivo aparente foi demonstrar o quanto Maquiavel estava comprometido com o ideário
político e social de seu tempo.
De qualquer forma, conforme explica Berlin,
732
CORTINA, op. cit., p. 244.
Ibid.
734
Ibid.
735
Ibid., p. 246.
736
Ibid., p. 245.
733
150
A visão mais comum dele [Maquiavel], ao menos como pensador
político, ainda é a da maioria dos elizabetamos, tanto dramaturgos quanto
estudiosos, para quem ele era um homem inspirado pelo Demônio para
levar homens bons à danação, o grande subvertedor, o professor do mal,
(...) o inspirador da Véspera e São Bartolomeu, o original de Iago. Esse é
o “Maquiavel assassino”, que merece as famosas quatrocentas e tantas
referencias na literatura elisabetana. Seu nome acrescenta um novo
ingrediente à antiga figura do Old Nick. Para os jesuítas ele é o “parceiro
do crime”, um “escritor sem honra e um incrédulo”, e O príncipe é, nas
palavras de Bertrand Russell, “um manual para gangsters” (a ser
comparado com sua descrição por Mussolini, considerando-o um “vade
mecum para estadistas”, concepção talvez tacitamente compartilhada por
outros chefes de estado). Tal visão é compartilhada por católicos e
protestantes, Gentillet e François Hotman, o Cardeal Pole, Bodin e
Frederico o Grande, seguidos pelos autores de todos os antimaquiavéis,
estando entre os mais recentes Jacques Maritain e Leo Strauss.737
As propriedades presentes no plano dessas interpretações parecem ser uma das
possíveis explicações para essas gritantes divergências entres as várias leituras e noções da
obra de Maquiavel. Cada leitor desenvolve certas expectativas no processo de leitura
privilegiando aspectos comuns presentes no texto que possam fornecer a unidade plausível
para sua interpretação. Isso é notável, por exemplo, na interpretação desenvolvida pela
Igreja, que valorizou o aspecto da moral cristã em sua crítica, explica Cortina. Frederico II
também privilegiou esse aspecto “quando critica o texto por pretender ensinar aos
príncipes uma maneira de agir cruel e desumana em relação às pessoas que eles
governam”738
À medida que a “obra” de Maquiavel se envolve em uma tradição interpretativa, seja
ela no campo da filosofia, da sociologia ou na história 739, ganha diferentes interpretações,
cujos aspectos isotópicos geram uma justificativa para outras leituras, sendo estas em sua
maioria díspares mesmo quando não divergem isotopicamente. Da mesma maneira que
geralmente somos levados a escolher sujeitos de destaques na história das ideias, talvez
não por eles mesmos terem sido supostamente expoentes em algum campo de investigação,
mas pelo fato de atribuirmos status a estes. Assim, o leitor também já carregado com
valores e expectativas inerentes à sua condição histórico-social estabelece suas
preferências no ato de leitura, atribuindo aqui e ali significados que talvez (e geralmente
isso é verdade) não estejam presentes no texto “original” do autor, isso para não falarmos
da já problemática noção de autor e obra. Segundo nos alerta Pocock:
737
BERLIN in MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 28.
CORTINA, op. cit., p. 247.
739
Ibid., p. 248.
738
151
Temos a tendência a selecionar indivíduos ilustres e atribuir-lhes papeis
principais ou importantes que nem sempre eles ocuparam. Mas se tais
papeis lhes tiveram sido atribuídos, não por historiadores, mas por
aqueles que os historiadores estudam, a situação muda de figura.
Certamente precisamos de meios para perguntar se Maquiavel, Hobbes
ou Locke desempenharam na história o papel que convencionalmente
lhes é atribuído.740
Não resta dúvida, portanto, de que precisamos de mecanismos que possam fornecer
suporte para uma análise do discurso da linguagem política, como diz Pocock, pois,
embora a linguagem política, em questão, possa ter sido provocada por “enunciações e
respostas emitidas por atores individuais”741, estes, no entanto, compartilham com seu
núcleo social de sistemas de crenças que, quer seja consciente ou não, dão os motivos e a
forma dos usos da linguagem. Isso se torna mais visível se levarmos em consideração que
o discurso político possui uma dinâmica que no geral escapa ao controle da vontade
individual no momento em que o sujeito se relaciona, por meio de sua “obra”, com seus
interlocutores.
Os textos políticos já chegam até nós carregados de significados, o que ocorre no
processo de leitura é uma ressignificação inerente ao ato de leitura. Isso significa que entre
Maquiavel e Rousseau, por exemplo, não há uma relação linear aos moldes de um diálogo
serial, onde o emissor do discurso precise ser decodificado por seu leitor. Pelo contrário,
segundo explica Orlandi:
Eles estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não
estão separados de forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, o
que propomos é justamente pensar aí o discurso. Desse modo, diremos
que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no
funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos
afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de
constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente
transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de
argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. Por outro
lado, tampouco assentamos esse esquema na ideia de comunicação. A
linguagem serve para comunicar e para não comunicar. As relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de
sentidos entre locutores.742
740
POCOCK, op. cit., p. 77.
Ibid.
742
ORLANDI, 2013, op. cit., p. 21.
741
152
Os conceitos de “república”, “principado”, Fortuna e Virtù, para citar apenas alguns
exemplos, adquirem, aqui, significados outros através de um processo de significação não
independente da história, mas estes só se tornam visíveis e compreensíveis como
realidades efetivas no momento que são vinculadas à história. Marx, conforme explica
Castoriadis, já havia demonstrado a importância dessa premissa, segundo a qual, “a
significação de uma teoria não pode ser compreendida independentemente da prática
histórica social à qual corresponde.”743 O mesmo também é válido para a própria teoria
marxista.
Querer encontrar o sentido do marxismo exclusivamente no que Marx
escreveu, ignorando aquilo que se tornou a doutrina na história, é
pretender, em contradição direta com as ideias centrais desta doutrina,
que a história real não importa, que a verdade de uma teoria esteja sempre
e exclusivamente “no além”, e, finalmente, substituir a revolução pela
revelação e a reflexão sobre os fatos pela exegese dos textos. 744
Segundo Cortina,
Duas questões devem ser observadas para ressaltar a importância desses
procedimentos discursivos no processo de leitura de (...) Maquiavel. Em
primeiro lugar, que as diferentes leituras constroem-se a partir do
destaque que os leitores dão a determinados temas presentes no discurso
maquiavélico, o que será responsável pelo percurso temático de seus
textos de leitura. O que se pôde verificar também nas varias leituras (...)
no decorrer da história é que os leitores iam estabelecendo diferentes
relações isotópicas para os mesmos temas, uma vez que o conceito desses
temas mudava historicamente. Para citar um exemplo, a leitura de
Merleau-Ponty (1960) pretende demonstrar como a noção de “luta de
classes”, que é básica para o pensamento marxista do século XIX, já está
presente num discurso que foi escrito no século XVI. 745
Outra questão destacada por Cortina é a presença de conceitos chaves no discurso de
Maquiavel, como “Estado”, “poder”, “formas de domínio”, “formas de submissão”,
‘liberdade”, “nacionalismo”, conceitos estes que não possuem “um sentido único do pondo
de vista histórico”. Essas noções políticas são, por assim dizer, forçadas, à medida que uma
“nova ordem político-econômica” se estabelece, a assumirem uma distinta configuração,
propiciando relações diferenciadas “entre si para a leitura do texto maquiavélico”.746
743
CASTORIADIS, 1982, op. cit., p. 20.
Ibid.
745
CORTINA, 2000, op. cit., pp. 248-249.
746
Ibid., p. 249.
744
153
Por último, e em relação aos procedimentos de leitura, estão relacionados às
transformações das várias conjunturas, onde estão situados os sujeitos leitores do texto de
Maquiavel. Segundo Cortina, “isso pode acontecer em suas leituras de duas formas
diferentes, por meio do que se chama descontextualização, por um lado, ou
recontextualização, por outro”.747
A leitura particularista de Napoleão é um exemplo de descontextualização, ao tomar
o texto de Maquiavel como manual de instrução, atribuindo valores à obra ligados à sua
experiência. É também o que fez Frederico II ao criticar os princípios maquiavelianos,
como inadequados para sua época. Esse procedimento de leitura ocorre devido às
mudanças de contexto a que o texto é submetido. Nesse sentido, a obra de Maquiavel passa
necessariamente como consequência de uma descontextualização, para o que Cortina
chamou de recontextualização.748 Como é o caso de Mussolini e Gramsci, que atribuem
outra base temática ao texto maquiaveliano, fundada em expectativas vinculadas ao vivido
por esses últimos. Cada leitura está, portanto, diretamente comprometida social e
ideologicamente com o momento vivido, sendo o contexto, também, responsável pelo tipo
de procedimento de leitura adotado, como vimos nesse tópico. O maquiavelismo pode ter
se resultado desse longo processo de descontextualização, recontextualização e
distanciamento.
2.2 A invenção do maquiavelismo
No capítulo primeiro dessa dissertação tentamos demonstrar o quanto Maquiavel
estava séria e necessariamente comprometido com seu tempo. Em vários momentos foi
possível perceber essa cumplicidade, principalmente, talvez, em relação ao “realismo
político” frequentemente atribuído a esse autor como seu precursor, embora Étienne de la
Boétie, (1530 – 1563) também tenha seguido uma trilha semelhante ao realismo político
em sua obra o Discurso sobre a servidão voluntária, ainda que tenha adotado como ponto
de vista o “povo”749. Também agora, nesse capítulo e no tópico anterior, percebemos que
contextos diferentes geraram perspectivas diferentes de sua obra, levando frequentemente a
mal-entendidos, como, por exemplo, no caso do maquiavelismo.
747
CORTINA, 2000, op. cit., p. 249.
Ibid., p. 252.
749
FREREUX in JERPHAGNON, op. cit., p. 122.
748
154
A leitura da obra de Maquiavel, segundo Fábio André Hahn, “não se restringiu
apenas ao público leitor acadêmico, mas, ao contrário, se popularizou entre os
leitores comuns, que a leram sem propósitos práticos ou teóricos, sendo, em geral, levados
à obra pela atração que ela exerce.”750 Junto com a fama de ser um dos fundadores da
ciência política moderna seguiu-se, entre as várias leituras da obra do escritor florentino, o
estigma de ser aquele que, segundo Frederico da Prússia, elaborou uma das obras “mais
perigosas do mundo.”751
Apesar de tudo, seu nome sobrevive, mesmo que como um símbolo de “astúcia,
duplicidade e exercício de má-fé em negócios políticos”, segundo Skinner. O espanto é
quase universal entre os leitores de Maquiavel, e Shakespeare não deixou de reconhecer o
“criminoso Maquiavel” que nunca deixou de ser um objeto de ódios para moralistas de
todas as tendências, tanto revolucionários quanto conservadores.” 752 Notoriedade que
levou muitos escritores pós-Maquiavel a orientar seus estudos políticos em função da obra
do autor florentino, como foi o caso de Frederico II, e Bussuet. Segundo Oliveira,
Em O Príncipe, (...) o italiano Nicolau Maquiavel (...) rompeu com a
tradição de pensamento político ocidental ao desvincular a ação política
das esferas moral e religiosa. No século XVII, o meio eclesiástico
empenhou-se em combater as ideias do autor florentino. Como Bussuet
pertencia a este meio, esta luta fica bem evidente em suas obras
políticas.753
Aparentemente, o maquiavelismo se tornou um lugar privilegiado da tradição
interpretativa da obra de Maquiavel, que poderíamos chamar com justiça de uma
subcategoria interpretativa ao se situar no subsolo de uma tradição que ainda hoje encontra
dificuldades em estabelecer o que seria as “verdadeiras” intenções de Maquiavel ao
escrever O Príncipe e os Discursos. As disparidades presentes nessas obras fornecem as
bases para a fama de oportunista que Maquiavel acabou ganhando nesse longo processo de
interpretação e deformação de sua obra. Conforme Chauí,
Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e
maquiavelismo. São usadas quando alguém deseja referir-se seja á
política e aos políticos, seja a certas atitudes das pessoas, mesmo quando
750
HAHN, 2007, op. cit.
FREDERICO DA PRUSIA, op. cit.
752
SKINNER, 1988, op. cit., p. 12.
753
OLIVEIRA, Maria Izabel Barbosa de Morais. O príncipe pacífico: Bussuet, Luís XIV e Antonio Vieira.
São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2013, p. 137.
751
155
não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num
comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no
maquiavelismo de certos jornais, etc.). 754
Segundo explica Aranha:
Na Inglaterra do século XVI, Thomas Cromwell (chanceler da Inglaterra
no reinado de Henrique VIII), em disputa com o cardeal Reginald Pole,
sugeriu-lhe ironicamente a leitura de O Príncipe. Aceitando ao pé da letra
a indicação, o cardeal “descobriu” na obra a própria mão de Satã e, em
Cromwel, seu discípulo. Outros surgiram acusando Maquiavel de
ateísmo, paganismo, e de fazer apologia ao crime. A expressão Old Nick
(velho Nicolau) torna-se o apelido do diabo. Diz a lenda que em Sam
Casciano ninguém queria habitar a casa onde ele havia morado, temendo
conviver com o demônio. 755
Luís XIV também não escapou das acusações de maquiavélico. Segundo Burke, “era
frequentemente atacado por sua falta de escrúpulos morais, o que os autores dos panfletos
associavam à doutrina da ‘razão de Estado’ e às ideias de Maquiavel, que ele supostamente
teria aprendido do cardeal Mazirin”.756 Que, segundo consta, “todas as políticas
maquiavélicas” havia tentado, “e todos os obstáculos religiosos” desafiado.
A acusação de maquiavelismo não foi restringida ao campo da política, por vezes
penetrando nas mais variadas relações como epíteto aos indignos de confiança ou cuja
postura fosse considerada diabólica, “com ele eram depreciados anglicanos, jesuítas ou
ateus”. Na literatura também encontramos exemplos desse uso sempre e geralmente como
representativo cabal do Mal, como é o caso de Balzac que “ao descrever a mulher que por
predileção levara um barão à ruína, (...) a chama de ‘Maquiavel de saias”. 757
A má notoriedade adquirida pelo texto de Maquiavel, no entanto, pode ser resultante,
além, em sua maioria, de uma leitura desavisada, superficial e meramente textual, é
também o resultado de um processo de imaginação do que seria a moral estabelecida, ética
a que Maquiavel possivelmente estaria se opondo. Atribui-se, portanto, dimensões
filosóficas, modelos de racionalidade por sobre um objeto que quase sempre não passam de
prolongamentos de uma cultura política muito particular, mas que só é possível perceber
por meio de uma leitura que leve em consideração a formação simbólica em que tanto a
754
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Editora Ática, 2005.
ARANHA, op. cit., p. 9.
756
BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem publica de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar,
2009, p. 149.
757
ARANHA, op. cit., p. 9.
755
156
obra concebida quanto os modelos de explicação estão embebidos. É nesse fazer-criar,
acreditamos, que se tecem as críticas em torno das reflexões de Maquiavel. Todas as
imagens (verdades), portanto, a respeito da teoria política maquiaveliana nos parece ser o
resultado de uma invenção subordinada a pontos de vista, primeiramente, tecidos em
condições históricas especificas, tornando possível o surgimento de termos como o
maquiavelismo, ou às analises mais atuais profundamente enraizadas na necessidade de
justificar nossa noção atual do que seria sua contribuição enquanto teórico político e um
dos fundadores do que se convenciona “política moderna”. Segundo Foucault:
É importante lembrar que O Príncipe não foi imediatamente abominado:
foi reverenciado pelos seus contemporâneos e sucessores imediatos como
também no início do século XIX – sobretudo na Alemanha, onde foi lido,
apresentado, comentado (...) – exatamente no momento em que
desaparece toda esta literatura sobre a arte de governar. O que se deu no
contexto preciso da Revolução Francesa e de Napoleão, quando se
colocou a questão de como e em que condições se pode manter a
soberania de um soberano sobre um Estado; no contexto do
aparecimento, com Clausewitz, da relação entre política e estratégia e da
importância política, manifestada por exemplo pelo Congresso de Viena,
em 1815, que se atribui ao cálculo das relações de força considerado
como princípio de inteligibilidade e de racionalização das relações
internacionais; finalmente, no contexto da unificação territorial da Itália e
da Alemanha, na medida em que Maquiavel foi um dos que procuraram
definir e em que condições a unificação territorial da Itália poderia ser
realizada.758
Uma maneira adequada para tentar compreender esse processo seria apreender o
lugar de produção da obra maquiaveliana. A medida que percebemos o texto (autor) como
estando envolvido pelo seu contexto nos aproximamos da compreensão do seu sentido no
momento de sua produção onde o trabalho do autor surge com toda sua atualidade para
seus contemporâneos. O maquiavelismo seria, portanto, uma interpretação anacrônica fora
do eixo onde as reflexões maquiavelianas foram desenvolvidas, um lugar que ignora os
limites do pensar maquiaveliano desconhecendo que todo pensamento é a resultante de
uma forma de pensar possível, não cabendo historicamente uma investigação que ignore o
lugar onde se torna possível tal pensamento.
Os discursos vigentes no contexto do autor estudado regularizam as formas de
pensar daquele que se pronuncia, dando-lhe tanto as intenções quanto as formas de locução
de suas ideias, sendo, mesmo quando se opõe às instituições discursivas, um usuário desses
758
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 278.
157
mesmos discursos. De fato, para Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder
do qual nos queremos apoderar”759
Um estudo, portanto, que não leve em consideração as amarras discursivas do autor
florentino cairá em uma compreensão lesiva de sua obra, ruindo de volta e mais uma vez
na tradição do maquiavelismo.
A questão da interpretação da obra de Maquiavel é um tanto mais embaraçosa
quando percebemos que além de contextualizar a obra de um autor é também forçoso
compreender os vários idiomas de que se utilizava para produzir sua obra para tornar-se
compreendido pelos seus contemporâneos de forma a não corrermos o risco de cairmos no
jogo desonesto de fazer os textos dizerem o que temos vontade que eles digam, como
recriminou Lucien Jerphangnon.760
Maquiavel precisa surgir associado ao seu tempo, ou enquanto autor em situação,
segundo Gaille-nikodimov,
Maquiavel surgirá então ligado à realidade do seu tempo. Os seus
escritos, dos relatórios de chancelaria às obras tornadas canônicas, O
Príncipe, os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, A
História de Florença, sem esquecer os textos menos conhecidos do
grande público, das Decenais à Vida de Castruccio Castracani, mostrarse-ão em toda a sua atualidade para os seus contemporâneos. O seu
pensamento, nos seus meandros e aparentes inconsequências, revelar-se-á
alimentado, suscitado pelos acontecimentos de então e pela maneira
como os homens do século XVI costumavam encará-los e interpretálos.761
O maquiavelismo seria o resultado de um conjunto polifônico de intérpretes da obra
de Maquiavel conectadas a momentos e realidades divergentes das desse autor,
proporcionando um desnível em função da ausência de uma análise contextualista, tal
como sugere Quentin Skinner, capaz de formar uma perspectiva empática em relação a
esse autor e seu contexto. Nesse sentido, o maquiavelismo também é uma invenção ligada
a momentos específicos e necessidades outras que não as de Maquiavel representando
assim, segundo Foucault, “uma espécie de retrato negativo do pensamento de Maquiavel,
em que se representa um Maquiavel adverso.”762
759
FUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 10.
JERPHAGNON, Lucien. História das grandes filosofias. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
761
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 15.
762
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 279.
760
158
3
OS DISCURSOS: a República de Maquiavel
3. 1 A questão da liberdade no ideário político humanista nos séculos XV: o legado
medieval
Os conflitos entre a Igreja e o Império pelo domínio do Regnum Italicum, como
notamos em capítulo anterior, geraram uma lacuna que favoreceu o fortalecimento das
cidades-estados italianas e o surgimento de uma preocupação maior em elaborar uma
estrutura ideológica que justificasse a pretensão por autonomia destas instituições ainda no
século XIII, isso não significa que existisse de fato uma preocupação consciente e
premeditada no todo. Para Skinner, “a essência” dessa luta contra as pretensões imperiais
estava na “tese de que elas [as cidades-Estados] tinham o direito a preservar sua liberdade
contra qualquer intervenção externa”.763 Skinner constata:
A maneira como o termo ‘liberdade’ então veio a conotar tanto a
independência política quanto o autogoverno republicano foi delineada
em dois importantes estudos do pensamento político florentino no século
XIV. Bueno de Mesquita provou, estudando as cartas diplomáticas
florentinas ao tempo da invasão de Henrique VII (em 1310), que, quando
os florentinos tomaram a iniciativa de se opor ao imperador proclamando
‘a liberdade da Toscana’, sua preocupação fundamental consistia em
‘deitar fora o jugo da servidão à tutela germânica’ e reafirmar seu direito
de se autogovernarem (Bueno de Mesquita, 1965, p. 305). Analogamente,
Rubinstein mostrou que os conceitos de libertas e libertá vieram a ser
utilizados ‘quase como termos técnicos da política e diplomacia
florentinas’ no curso do século XIV, e eram quase invariavelmente
usados a fim de expressar essas mesmas ideias de independência e
autogoverno (Rubinstein, 1952, p. 29). Mas essa distinção da ‘liberdade’
não deve ser considerada uma mera invenção do Trezentos. Já
encontramos os mesmos ideais invocados no ano de 1177, no decorrer
das primeiras negociações que jamais ocorreram entre as cidades
italianas, o imperador e o papa. (...) Por liberdade eles entendiam, antes
de mais nada, sua independência do imperador, pois insistiam em que
‘desejaremos aceitar a paz do imperador’ apenas ‘na medida em que
nossa liberdade se conservar inviolada’. E por liberdade também
entendiam seu direito a conservar as formas vigentes de governo, pois
aduziam que, embora ‘não [tivessem] vontade de negar ao imperador
quaisquer jurisdições antigas’, sentiam-se obrigados a insistir em que
‘não podemos em nenhuma circunstância renunciar à liberdade que
763
SKINNER, 2003, op. cit., p. 28. O colchete é nosso.
159
herdamos de nossos ancestrais, e só a perderemos se junto perdermos a
própria vida’ (pp. 444-5).764
O problema de dar uma base legal e ideológica sólida para as repúblicas italianas
veio, nesse caso em particular, e num primeiro momento, por intermédio de Bartolo de
Saxoferrato e Marsílio de Pádua. Bartolo havia estudado na Bolonha e também havia
lecionado direito romano em várias universidades tanto da Toscana quanto da Lombardia.
Quando da emergência do “humanismo cívico”, é possível perceber que esse será um
percurso comum para aqueles intelectuais, com a exceção de que pouco a pouco irão se
implantando em cargos públicos de importância, como bem notou Garin. 765 Parece que as
reivindicações por independência passam assumir nesse período dois caminhos, em função
do vocabulário presente e disponível para Bartolo e depois os humanistas que em parte
retomam algumas premissas desse pensador, mas se utilizam de estratégias diferentes
deste, mesmo quando buscam recursos no domínio da jurisprudência. Pocock explica:
De Bartolus em diante, foram encontrados meios de argumentar que uma
republica era sibi princeps e adquiria imperium mixtum sobre seus
cidadãos e território. De Brunetto Latini em diante, argumentava-se que
uma republica deve revindicar a libertas como pré-requisito para exercer
para si e para seus cidadãos aquela independência e virtude cívicas que
constituíam a melhor vida terrena possível para os homens. A palavra
libertas pode ser encontrada em ambos os contextos, embora houvesse
uma profunda distinção entre seu uso em um contexto jurídico e em um
contexto humanista, um deles vinculado (...) à distinção entre liberdade
no sentido negativo e liberdade no sentido positivo. 766
Conforme Skinner, Bartolo parece ter partido, em seus estudos do direito romano,
com a explícita intenção de “proporcionar às comunas lombardas e toscanas uma defesa
legal, e não apenas retórica, de sua liberdade contra o Império.” 767 A contribuição de
Bartolo foi além de uma mera reinterpretação do direito romano, significou uma variação
que marcaria a modernidade de várias maneiras, mas seu mais importante tributo diz
respeito ao modelo de soberania que caracterizaria os “vários estados separados entre si e
independentes do Império”768. Sua contribuição metodológica foi o primeiro passo rumo a
uma intepretação da lei que rompesse com os pressupostos básicos dos glosadores,
764
SKINNER, 2003, op. cit., p. 29.
Ver GARIN, op. cit., p. 25.
766
POCOCK, op. cit., p. 86.
767
SKINNER, 2003, op. cit., p. 31.
768
Ibid.
765
160
segundo os quais a lei deveria ser interpretada de maneira literal, assim os fatos deveriam
ser acomodados à lei em caso de descompasso entre ambos, e comenta: “não deverá soar
surpreendente que eu deixe de seguir as palavras da Glosa quando elas me parecem ser
contrárias à verdade, ou contrárias quer a razão quer a lei”769. Ele reconhece, é bem
verdade, que o imperador possui, conforme reza o código, dominus mundi. Por outro lado
também alude ao fato de que vários “povos”, ao possuírem condição de cidades livres, se
mostram capazes de exercer as mesmas prerrogativas, conforme cita Skinner: “em nossos
dias, por toda a Itália, todos os governantes das cidades assumem de fato o exercício desses
mesmos poderes legislativos”.770 Ao que parece, Bartolo indica pensar o caso italiano
separadamente e em sua análise, observando que “as leis imperiais, por exemplo, não
obrigam os florentinos, ou outros que se recusam de facto a obedecer aos decretos do
imperador”771
A defesa de Bartolo diz respeito às cidades cujos povos são considerados livres.
Dessa maneira, conclui que estas por não reconhecerem ninguém como superior a elas,
constituem-se, portanto, detentoras de um “merum Imperium em si mesmas”. Se trata de
uma premissa revolucionaria, como bem notou Skinner. A iniciativa de Bartolo ao lado de
seu discípulo Baldo introduz, de fato, um passo decisivo “para a articulação do moderno
conceito legal de Estado”772
As conclusões de Bartolo o levaram a prestar “um grande serviço ideológico à causa
das cidades italianas,” para Skinner, “foi assim que ele assentou numa base legal adequada
as duas pretensões à liberdade que tentavam fazer valer durante a longa luta que travaram
contra o Império.”773 Isso ocorre principalmente no momento em que endossa a tese de que
povos que não reconhecem a soberania do imperador como superior e são capazes de fazer
suas próprias leis não carecem do governo de outro que não de si próprias, nesse caso
afirma categoricamente que, “a própria cidade é sibi princeps, é imperador de si
mesmas”. 774
A imagem de uma ruptura nas crenças políticas estabelecidas e a muito solidificadas
da sociedade feudal num modelo monárquico tal como a do grande monarca universal soa
estranho e precipitado, principalmente quando percebemos que mesmo um Dante e o tão
769
SKINNER, 2003, op. cit., p. 31.
Apud SKINNER, 2003, op. cit., p. 31.
771
Ibid.
772
Ibid., p. 33.
773
Ibid.
774
Ibid.
770
161
aclamado Petrarca, por vezes, ainda pregavam em tom nada insignificante um modelo
político baseado na unificação monárquica, mesmo que Dante estivesse procurando na
Monarquia um ponto de equilíbrio na figura do Imperador perante o Papa.775 Importante é,
portanto, frisar que não se trata de uma ruptura, mas sim, um “retrocesso ideológico” em
favor das liberdades republicanas, se levarmos em consideração que a dominação imperial
na Itália subsistia apenas em caráter teórico 776, não concluindo-se de fato, permitindo de
alguma forma a subsistência e a formulação de ideias opositoras e/ou favoráveis.
O mérito de Bartolo consiste em encetar um caminho ainda pouco questionado sobre
a autoridade imperial, se utilizando de uma interpretação do código civil romano para tal.
O que Skinner ignora, no sentido de dar pouca atenção à sua influência, é que essa teoria já
havia sido formulada, em parte, por Huguccio bispo de Pisa junto com outros canonistas,
desejosos que eram por suprimir ideologicamente as investidas do império diante da
Igreja777. Bartolo precisou dar um passo atrás para então formular sua teoria, que
poderíamos perfeitamente admitir como “neorromana” 778 (para usarmos a terminologia de
Skinner). Evidentemente, isso não retira seu mérito, mas nos permite não acreditar em uma
ruptura vetorial em direção ao moderno conceito de liberdade.
É fácil ignorar as mudanças no espírito dos homens quando as estruturas mentais
caminham em direções não sincrônicas. Os grandes exemplares podem dizer muito sobre
uma época, mas ainda assim muito nos escapa e corremos o risco de imitar aqueles que os
historiadores aprenderam a criticar em seu culto aos grandes vultos. O resumo de
Chistopher Hill sobre as classes dominantes dos estados medievais como sendo as mesmas
dos estados absolutistas779 pode perfeitamente ser aplicado aos estudos das ideias políticas,
no sentido de que elas seguem um percurso mais ou menos semelhante embora de acordo
com o local variem em singularidade. Mas suas filiações ainda assim são perfeitamente
mapeáveis. Como é o caso de Macróbio que ainda no século V, em seu Comentário sobre
o sonho de Cipião, demonstra intimidade com a obra de Cícero, o que fica evidente pelo
próprio título da obra. Mas Macróbio aprofunda alguns dos principais tópicos discutidos
por Cícero, sua leitura, no entanto, foi fortemente marcada pelo neoplatonismo. De acordo
Helton Adverse, “A aplicação de Plotino e Porfirio na leitura de Cícero é tanto mais
775
SKINNER, 2003, op. cit., p. 38.
DELUMEAU, op. cit., p. 19.
777
SKINNER, 2003, op. cit., p. 33.
778
SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 9.
779
ANDERSON, op. cit., p. 18.
776
162
justificada pelo fato do próprio Da republica consistir em uma obra fortemente
influenciada por Platão.”780
Esse exemplo nos ajuda, além do terreno onde as ideias de Bartolo se
desenvolveram, pensar que as mudanças de atitude em política resultam e são fortemente
marcadas pela necessidade de explicar e/ou justificar a dominação política, são tentativas
de intervenção no real e as atitudes diante do real dão a coloração às interpretações deste.
No Norte da Itália, ainda em meados do século XII, conforme Skinner, já
começou a despontar uma nova e notável organização social e política que em vários
aspectos se desvia do modelo feudal. Além do já discutido problema das rivalidades entre
o Império e a Igreja na península. Essas mudanças e conflitos geraram toda uma geração de
pensadores “preocupados” em buscar soluções políticas, teorizando principalmente sobre a
noção de liberdade e como esta deveria ser exercida, já que “as cidades italianas” tinham se
tornado “tão desejosas de liberdade”. 781 E é verdade que por esse período boa parte delas
haviam se transformado em repúblicas autônomas; segundo Skinner, “cada uma delas era
governada ‘pela vontade de cônsules mais que príncipes’, a quem ‘trocavam [do cargo]
quase que anualmente’, a fim de garantir que fosse controlado seu ‘apetite de poder’ e
preservada a liberdade popular”. 782
A maneira, portanto, como esses pensadores articulam o conceito de liberdade é
marcada diretamente pela carência das cidades “livres” em justificar suas pretensões diante
dos principais rivais de sua liberdade, o que nos leva a presumir que era essa a intenção
imediata.
Na luta contra o Império, Bartolo, por meio de sua teoria neorromana da
liberdade, forneceu “intencionalmente” a fundamentação conceitual necessária para que as
cidades repúblicas pudessem se opor, não só com as armas físicas, mas com um aparato
ideológico, que mostrou-se tão eficaz quanto o outro. A partir de então foi possível
encontrar outros meios de consolidar o argumento segundo o qual as repúblicas eram em
elevado sentido sib princeps, e dessa maneira em seu conjunto formavam um tipo de
império misto. Essa postura aparentemente consciente não foi prerrogativa de Bartolo, nem
um fenômeno isolado; quase todos os pensadores do período e talvez mais principalmente
780
ADVERSE, Helton. Virtude Moral e Virtude politica no Renascimento Italiano: O “Sonho” de Dante no
Vita civile de Matteo Palmieri. In: ADVERSE, Helton. (Org.) Filosofia política no renascimento italiano.
São Paulo: Annablume, p. 41.
781
SKINNER, 2003, op. cit., p. 25.
782
Ibid.
163
da Renascença tardia partiram de iniciativas desse tipo, sobretudo devido ao conhecimento
de sua realidade política, já que em muitos casos estes estavam a serviço de algum príncipe
ou papa. Recorrer ao direito romano e/ou a filosofia clássica se tornaram lugares comuns,
estratégias cuja finalidade era estabelecer as bases de uma argumentação convincente.
Maquiavel em sua defesa da liberdade curiosamente não se aproxima de uma análise
jurídica do termo. Interessante, já que a noção de liberdade na Itália, talvez graças aos
esforços de Bartolo, foi em grande medida marcada muito mais por noções jurisdicionais e
jurídicas “do que em termos oriundos de um vocabulário humanista da vita activa e do
vivere civile.”783 Mas Pocock defende que “existem pensadores que, como Maquiavel, não
exibem qualquer relação com o paradigma do Direito Natural, e com respeito aos quais
somos, portanto, obrigados a presumir que pretendem negá-lo ou subvertê-lo”784, o que
pode ser verdade, já que boa parte dos posicionamentos dos pensadores costuma seguir
uma lógica muito própria, e delimitada filosoficamente, ou, como Guenée prefere dizer, “a
diversidade das doutrinas políticas se explica antes de tudo pela diversidade das formações
intelectuais”785. Não há outra forma mais clara de explicar, já que Guenée sintetiza melhor,
para ele,
Alguns historiadores estabelecem uma relação simples entre formação
política e posição política. Segundo eles, apenas com algumas exceções
insignificantes, todos os canonistas foram partidários da teocracia
pontifical, todos os romanistas empenharam-se em aumentar o poder do
príncipe, enquanto todos os filósofos, pelo contrário, influenciados pelo
nominalismo e pelo aristotelismo, manifestaram tendências
“democráticas” a partir do século XIV. Desse modo, as características do
pensamento político no fim da Idade Média são facilmente explicáveis:
enquanto no século XIII o direito romano e o direito canônico
dominavam e justificavam as pretensões de papas e reis, no século XIV,
ao contrário, o Direito perde seu dinamismo, a iniciativa passa para a
Teologia e para a Filosofia, e as sínteses são tarefa própria dos publicistas
que fornecem a justificação teórica aos concílios e às assembleias de
estados. Assim, a nova atmosfera política se explicaria principalmente
por uma nova hierarquia das disciplinas fundamentais.786
783
POCOCK, op. cit., p. 85.
Ibid., p. 84.
785
GUENÉE, op. cit., p. 79.
786
Ibid., pp. 83-84.
784
164
3.1.1 O papado e o poder temporal
O papado durante muito tempo havia fornecido, como vimos antes, seu apoio às
cidades italianas em sua luta contra o Império. Segundo Skinner, esse interesse em apoiar
as cidades italianas veio primeiramente após Barbarossa ter se recusado a sancionar a
“elevação ao trono pontifício” do papa Alexandre III, iniciando assim uma série de
conflitos entre esses dois poderes. Calcula-se ser também desse período o uso do termo
“guelfo”, como referencia “para designar aqueles que eram aliados do papa”787. É nesse
período que “os papas também tinham começado a dar mais, diretamente, vazão a suas
ambições temporais, procurando manipular as políticas internas das cidades do Norte da
Itália.”788
Na obra do averroista, Marsílio de Pádua (c. 1275-1343), a Igreja encontrou a
oposição necessária contra sua pretensão de dominação na Itália. É nele, segundo Frereux,
“que se afirma com maior vigor a separação entre o poder temporal e o espiritual”789. Mas
antes cabe algumas considerações.
Por volta de 1140, aparentemente, a Igreja havia formulado, por meio de Graciano, o
aparato intelectual necessário para legitimar as mais agressivas pretensões a governar in
temporalibus790, diferente da Igreja do século XVI profundamente abalada pelas revoltas
de filhos rebeldes791, no século XII vê-se um esforço por fincar as bases do reino de Cristo
na terra, e a intervenção da Igreja em assuntos temporais não podia mais ser ignorada.
Graciano fundou o código de direito canônico, visando estabelecer a justificativa
intelectual dessa dominação. Esse código, de direito particular da Igreja, que Hobbes
categoricamente afirmou não passar de “usurpação”, “muito embora lhe chamem o direito
de Deus”792, foi o resultado de várias decisões e decretos, o trabalho de Graciano foi,
aparentemente, o de selecionar e organizar, dando a coerência necessária ao texto que de
fato serviu de base para o “Direito Canônico até 1918”793, segundo Hilário Franco Junior.
Sobre a alegação de “usurpação” de Hobbes, seria preciso lembrar o lento trabalho de
787
SKINNER, 2003, op. cit., p. 35.
Ibid.
789
FREREUX in JERPHAGNON, op. cit., p. 113.
790
SKINNER, 2003, op. cit., p. 36.
791
DELUMEAU, op. cit., p. 107.
792
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 572. – (Clássicos Crambridge de filosofia política)
793
FRANCO JUNIOR, op. cit., p. 182.
788
165
ofuscamento das tradições germânicas na construção das “filosofias políticas” medievais,
base para uma teoria do direito na renascença. Para Guenée,
A Idade Média deveria a essas tradições [germânicas] as ideias de
contrato e de liberdade, por exemplo. Não há dúvida que às épocas
merovíngias e carolíngia deveram muito a mentalidade bárbaras. Mas
quanto mais tempo passava, mais se apagavam da memória as lembranças
germânicas, enquanto a Antiguidade sempre renascia através dos livros
relidos ou redescobertos, e através das obras originais que ela inspirava.
Desse modo, no fim da Idade Média, as ideias de contrato e de liberdade
deviam mais aos Decretais e Glosadores do que às velhas tradições
bárbaras, de ora em diante ofuscadas.794
Após o trabalho de Graciano, seguiu-se uma série de outras investidas de papas
juristas, buscando cada vez mais “ampliar a base legal da pretensão do papado a exercer
sua assim chamada plenitudo potestatis”795. Essa aspiração pode ser justificada pela noção
do político ainda presente nessa sociedade no período supra descrito. Segundo Hilário
Franco Junior,
(...), nas sociedades arcaicas, com visão monista do universo, sem fazer
distinção entre natural e sobrenatural, indivíduo e sociedade, a realeza
desempenhava um papel harmonizador, integrador do homem no cosmos.
Ou seja, para aquelas sociedades a realeza não era uma instituição
política (conceito sem sentido para elas), mas uma manifestação do
divino. Mesmo com o cristianismo insistindo em “dar a Deus o que é de
Deus e a Cesar o que é de Cesar” (Mateus 22, 21), as esferas política e
religiosa não se separaram. Na Idade Média o monarca, sem ser deus ou
sequer sacerdote, como nas civilizações da Antiguidade, tinha
inquestionável caráter sagrado. 796
Isso nos ajuda explicar tanto as constantes investidas da Igreja em estabelecer sua
influência em assuntos temporais, como também o surgimento de ritos que buscavam
estabelecer o caráter sagrado das monarquias ocidentais, como foi o caso da unção régia,
por exemplo.797 Noção essa que não esconde a profunda influência da religião nessa
sociedade cujas amarras podia-se notar em todos os setores, onde o desejo quase nostálgico
de imitar os grandes monarcas bíblicos que figuravam como exemplos de justiça e fé não
só atraem um apreço maior pelo divino, mas também as ambições temporais dos papas.
794
GUENÉE, op. cit., p. 86.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 36.
796
FRANCO JUNIOR, op. cit., p. 49.
797
Ibid., p. 50.
795
166
As principais doutrinas sobre a supremacia papal foram no geral aprimoradas
ainda no século XIII. Entre os papas que maior influência deteve nesse campo destaca-se
Inocêncio IV, autor da primeira e sistemática teoria “segundo a qual em sua essência a
sociedade cristã é um só corpo unificado, tendo no papa sua cabeça suprema” 798. Bonifácio
VIII, já na virada do século, conforme Skinner,
Reiterou as mesmas doutrinas naquele estilo bombástico que o distinguiu,
e em particular na sua célebre bula de 1302, Unam Sanctam (...). Esta
começa com a tese tradicional de que na sociedade cristã “há dois
gládios, o espiritual e o temporal”; mas imediatamente passa a insistir em
que “é preciso que um gládio esteja sob o outro, e por conseguinte que o
poder temporal esteja subordinado ao espiritual”. E termina num tom
ainda mais arrogante, esclarecendo que a última instância tanto do gládio
temporal quanto do espiritual deve caber ao vigário de Cristo, uma vez
que “o poder espiritual detém a autoridade de institui o poder terreno e de
julgá-lo caso este deixe de agir como é adequado”.799
É insuficiente um estudo que não demarque a importância da formação dos espíritos
em uma sociedade onde praticamente tudo carecia de representações do caráter sagrado do
poder. Mais prejudicial ainda seria imaginar que os homens e “as exigências do espírito”
como diria Guenée, reagem passivamente diante dessas representações.800
A presença político-ideológico na arte, no geral, garantia nos espíritos a defesa visual
do Papado, e por vezes glorificando ou justificando um determinado regime. Guenée
ressalta:
Os clérigos conheciam há muito o poder dos artistas e eram hábeis em
instruir e convencer através das obras cujos temas inspiravam. A exemplo
deles, príncipes e cidades logo souberam como colocar a arte a serviço de
seu Estado ou de sua política. Desde 1200, os grandes vitrais da catedral
de Estrasburgo lembravam aos fieis a sucessão dos imperadores. Na
França, as catedrais de Paris, Chartres e Reims já ofereciam aos olhares,
no vidro ou pedra, “galerias de reis”, quando, no início do século XIV, a
Grand-Salle do Palais de la Cité foi construída e decorada com estátuas
reais próprias para reanimar o lealismo monárquico de inúmeros
visitantes. Na mesma época, em Veneza, a arte deveria glorificar o poder,
exaltar a ordem e a prosperidade que lhe eram devidas. No palácio
comunal de Siena, entre 1337 e 1339, Ambrogio Lorenzetti pintava os
seus afrescos do Bom e do Mau Governo, transcrevendo em imagens os
ensinamentos aristotélicos. Em 1347, para sublevar o povo contra os
nobres, Cola di Rienzo mandava pintar sobre as paredes do Capitólio os
798
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 36-37.
Ibid., p. 37.
800
GUENÉE, op. cit., p. 70.
799
167
sofrimentos e a humilhação de Roma... Esses exemplos são suficientes.
Expor ideias, fortalecer sentimentos, suscitar paixões, eis o que se espera
nos séculos XIV e XV de uma arte que nunca é gratuita.801
Não se trata meramente de atribuições fortuitas, embora em alguns casos isso seja
verdade, mas de uma exigência social com função pedagógica mesmo. Geralmente,
eventos políticos eram acompanhados por uma aparelhagem de símbolos que visavam
fortalecer sua gravidade. Como foi o caso da restauração da República Florentina em 1494.
De acordo Burke, há um reaparecimento dos símbolos políticos onde o exemplo mais
marcante seria “o Davi de Michelangelo”, esse em muitos aspectos “relembra o Davi de
Donatello e, assim, por extensão, os perigos a que a República conseguiu sobreviver no
século XV. A estátua, portanto, exige um conhecimento dos eventos políticos
contemporâneos para poder ser reconhecida como obra de arte”.802
A Igreja soube fazer uso desses recursos para apoiar suas pretensões. Essa forma
de propaganda, no entanto, talvez não fosse tão eficaz se não fosse acompanhada das ideias
e crenças sobre política e religião que as orbitavam. Seu sucesso demonstra que já havia
um discurso que legitimava as mais variadas formas de dominação.
Por outro lado, essas investidas por parte da Igreja por mais agressivas que fossem
não deixaram de gerar oposição nas várias cidades italianas. Aparentemente a oposição
contra os abusos do clero, conforme Skinner, teve “início na Lombardia, centro e origem
das liberdades comunais”. 803 Pádua entrou em disputa contra a Igreja em 1266, em função
de sua recusa em pagar impostos. Essa disputa deixou o clero de Pádua praticamente sem a
proteção da lei, como explica Skinner.804 Segundo este autor:
Ao mesmo tempo que resistiam aos papas, algumas cidades lombardas e
toscanas começaram a elaborar uma ideologia política que fosse capaz de
legitimar sua contestação aos poderes e imunidades que a Igreja então
pleiteava. Isso se deu basicamente em Florença, que se proclamou
guardiã das “liberdades toscanas”, e em Pádua, que desde a restauração
de seu governo comunal, em 1256, aparecia como a maior defensora dos
valores republicanos.805
Aparentemente, é em Marsílio que essa oposição e o desejo por liberdade ganha mais
visibilidade. Ele resume sua tese demonstrando o equívoco dos dirigentes eclesiásticos em
801
GUENÉE, op. cit., p. 71.
BURKE, 2010, op. cit., p. 158.
803
SKINNER, 2003, op. cit., p. 37.
804
Ibid.
805
Ibid., pp. 37-38.
802
168
relação “à natureza da Igreja, ao supor que fosse ela uma instituição capaz de exercer
qualquer tipo de poder legal, político ou alguma outra espécie de ‘jurisdição coercitiva”. 806
Um dos primeiros ataques consistiu em rejeitar a defesa à imunidade de alguns clérigos à
taxação ordinária. Bonifácio VIII havia, em sua bula de 1296, defendido que clérigos
fossem isentos de taxações, ameaçando de excomunhão os governantes que não
cumprissem com esse “direito”. A resposta de Marsílio é categórica, nesse sentido,
demonstrando a inversão de valores feita pela Igreja dos ensinamentos de Cristo. Para ele
os ensinamentos de Cristo deixam claro a necessidade de subordinação aos governantes
seculares no tocante a propriedade (“Daí, pois, a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é
de Deus”807), separando assim as esferas seculares da espiritual, essa última sendo uma
prerrogativa exclusiva da Igreja. Assim resume sua tese de acordo com a “verdade”:
E a clara intenção do apostolo [são Paulo] e dos apóstolos, mestres
máximos da Igreja ou da é, não se dispõe que ninguém, nem sequer
um infiel, possa ser compelido neste mundo, por meio da ameaça
ou castigo, a observar as normas da lei evangélica, e por isso os
ministros desta lei, os bispos e sacerdotes, não podem nem devem
julgar nada deste mundo por um juízo deste terceiro tipo, nem
obrigar, mediante ameaça ou castigo, a observar os mandamentos
da lei divina, especialmente sem autorização do legislador humano;
porque tal juízo coercitivo não deve, de acordo com a lei divina,
ser exercido ou executado neste mundo, mas somente no futuro.808
E ainda completa:
Vê-se portanto que, de acordo com as palavras de Cristo no Evangelho e
o testemunho dos santos, Cristo não exerceu neste mundo o poder
judiciário, quero dizer, coercitivo, ao qual chamamos de juízo no terceiro
sentido, mas que, como se fosse servo sofreu este juízo de outro
homem. 809
O que ele fez, nota-se, foi desarticular os principais argumentos dos canonistas,
concluindo que a Igreja de Cristo não foi fundada com algum tipo de jurisdição políticosecular, muito menos que os discípulos não estivessem sujeitos a julgamentos seculares,
como pretendia o clero.810 Para Skinner, “a consequência dessa doutrina – diz ele – é que
806
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 40-41.
BIBLIA SAGRADA, op. cit., cp. 22, vs. 21.
808
Apud PEDRERO-SÁNCHEZ, op. cit., p. 141.
809
Ibid.
810
SKINNER, 2003, op. cit., p. 41.
807
169
nenhum membro da Igreja pode pretender um tratamento especial nos tribunais, posto que
‘todos os homens, sem nenhuma exceção”, estão “sujeitos, no que se refere ao julgamento
coercitivo, aos juízes ou governantes seculares”.811 Não se trata de um ataque à religião
cristã, ele não a rejeita, mas aqui, “a autoridade dos padres é reduzida à ordem espiritual”,
admitindo a importância desta no governo da cidade, “inspirando nos homens a aversão
aos vícios e a atração da virtude”.812 Frereux explica que, para Marsílio, isso não significa
que os padres tenham “direito de punir”, muito menos “qualidade para cobrar impostos”,
para ele, a autoridade civil não extrai sua legitimidade da moralidade ou fidelidade à
religião, “mas do consentimento popular”813. Sua doutrina fortemente marcada pela leitura
da Bíblia, que ainda era um dos livros mais lidos814, insiste que tal como ensinou São
Paulo, em sua Epistola aos Romanos, “cada qual seja submisso às autoridades constituídas.
Porque não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram instituídas por
Deus”.815 O preceito de São Paulo, conclui Marsílio, demonstra que qualquer que se
oponha às autoridades seculares, já que estas são instituídas por Deus, se opõe aos seus
ensinamentos.816 As consequências dessa premissa paulina, como sabemos, será de
fundamental importância para a Reforma do século XVI. Ela migra na verdade, mas não
nos enganemos, pois se Marsílio busca uma separação entre os poderes e a subordinação
da Igreja às instituições seculares é apenas para demonstrar seu compromisso com o
Império.817
3.1.2 A liberdade de Florença
Os pensadores dos séculos XIII, XIV e XV buscavam nutrir-se mais ou menos nas
mesmas fontes, mas chegaram a conclusões por vezes divergentes, mesmo que por vezes
Skinner queira mostrar o contrário. Esse problema não é fácil de ser resolvido. Isso está
geralmente ligado aos instrumentos psicológicos que são movidos pelo sujeito desse ou
daquele discurso e a ingerência social. Isso nem sempre acontece de forma consciente. É
fato que o discurso é individual, e por isso pode refletir aspectos da personalidade do
811
SKINNER, 2003, op. cit., p. 41.
FREREUX in JERPHAGNON, op. cit., p. 113.
813
Ibid.
814
GUENÉE, op. cit., p. 85.
815
BIBLIA SAGRADA, op. cit., cp. 13, vs. 1.
816
SKINNER, 2003, op. cit., p. 41.
817
GUENÉE, op. cit., p. 87.
812
170
autor818, mas também é um fenômeno social geral, e ele terá muito a nos dizer sobre o
lugar de sua fala. Assim, um Maquiavel poderia muito bem estar familiarizado com Dante
e Petrarca e ainda assim posicionar-se republicano, já que a sua Florença assim o exigia.
As arengas de Bartolo e Marsílio só se enquadram nessa trama de forma deformada e
pálida, por mais que queiramos dar uniformidade ao todo, há outras forças em atuação que
carecem de mais cuidadoso estudo. Interesses particulares não devem ser descartados, que
ora exaltam esse ou aquele pensador, esse ou aquele regime. Segundo Guenée:
Seria melhor perguntarmos como as principais (...) [teorias]
influenciaram o pensamento político do século XIV e XV. Muitas vezes
nos pareceu que uma grande obra como a de Santo Agostino ou de
Aristóteles pudesse ter determinado uma doutrina e uma posição precisas.
(...) a partir do século IX os teóricos políticos descobriram realmente a
tendência essencial da doutrina de Santo Agostinho, que é absorver a
ordem natural na ordem sobrenatural e tiraram daí a inevitável
justificação para a teocracia pontifical; o agostinismo político e a
teocracia pontifical teriam triunfado juntos, e retrocedido juntos, sob, sob
a pressão de Aristóteles. Na realidade, as coisas não são tão simples.
Deus diz na Bíblia: per me reges regnant, e desse modo justifica a
monarquia de direito divino; mas lê-se no Êxodo: Assumptus est Moyses
de aqua que, esclarecido pela frase das Institutas: Eligitur rite
magistratus de populo, justifica a soberania popular. No século XII, os
partidários do imperador são tão agostinianos como os do papa. Jacques
de Viterbo, Engelbert d’Amonte e Marsílio de Pádua invocam a
autoridade de Aristóteles, mas Jacques (1301) defende a teocracia
pontifical, (...). E São Tomás mantém as coisas num equilíbrio tão
instável, que os ingleses o transformaram no porta-voz dos realistas no
século XVI, (...). Todos são mais ou menos agostinianos no século XII e
aristotélicos no século XIV. Esses grandes pensamentos são ao mesmo
tempo demasiado ricos e demasiado diferenciados para terem justificado
sempre apenas uma só posição política. Em contrapartida, nos séculos
XIV e XV, puderam impor à diversidade dos tempos e das tradições
nacionais uma atmosfera comum, um fundo comum de termos, de temas
e de imagens que toda atitude política definida deve aceitar e utilizar. A
mentalidade política de uma época define-se antes pela banalidade desses
lugares-comuns do que pelos sistemas poderosos e originais que nela
puderam florescer. 819
Não cremos que seja correto definir a influência dos textos clássicos, e ou mesmo da
Idade Média, como banal no sentido descrito por Guenée. A relação entre a formação
intelectual e o meio social são suficientemente marcantes para serem meramente triviais.
Pois, se é verdade que estes em muitos momentos estavam mais preocupados em definir
818
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011, p. 265.
819
GUENÉE, op. cit., p. 87.
171
suas predileções pessoais por meio do uso indiscriminado de doutrinas, o desafio que se
nos apresenta é o de que, “é preciso”, como percebeu Renato J. Ribeiro, “saber a quem o
autor se dirige”820, e a que situação ele se refere, para termos uma noção das escolhas do
tema e dos usos dos conceitos, a própria escolha dos autores pode nos revelar muito. O
comportamento desses intelectuais não diferencia em muito do intelectual contemporâneo,
nesse sentido. A exemplo disso temos o procedimento dos historiadores diante de estudos
que a primeira vista podem denotar trivial, mas que de fortuito nada possuem. Para isso
basta lembrar-se da polêmica causada após os estudos de Baron sobre o humanismo.
Vários historiadores chegam a afirmar que os humanistas talvez não passassem de meros
retóricos, politicamente neutros. O clima entre as interpretações geralmente muda de
acordo com foco do historiador. O próprio Guenée reconhece esse fato,
Sabe-se já há muito tempo que, nos séculos XIV e XV, houve na Itália
uma rivalidade política dramática entre Florença e Milão e que essa luta
se acompanhou de uma intensa batalha de propaganda: a propaganda de
Milão que desenvolvia o tema da pax Italiae, e a propaganda de Florença,
o da libertas. Na atmosfera do século XIX, J. Burckhardt e G. Goigt
acreditaram ingenuamente na propaganda de Florença. Na atmosfera
nacional da unificação italiana, G. Romano e muitos outros acreditaram
ingenuamente na propaganda de Milão. No decurso de uma terceira fase,
na primeira metade do século XX, desenvolveu-se um ceticismo idêntico
em relação às duas propagandas. Houve, de um lado, historiadores
“políticos” como N. Ottokar que punham em ação homens que não
sabiam para onde iam e nem para onde queriam ir, e, de outro lado,
historiadores das ideias como P. O. Kristeller que estudavam o
humanismo se duvidar que os humanistas tinham sido testemunhas e, às
vezes, atores na política de seu tempo. Essa tendência resultava, em 1950,
na síntese de L. Simeoni, que não atribuía nenhum interesse a propaganda
humanista.821
Um problema parecido também pode ser encontrado na retomada de interesse por
Huss, após a Segunda Guerra, mas, como Guenée informa, “o hussismo é justamente um
fenômeno complexo bastante para que cada qual encontre nele a sua verdade”. O mesmo
também pode ser dito em relação ao humanismo italiano.
É difícil não pensar aqui, mais uma vez, nas afirmações de Carr sobre sociedade e
indivíduo e ignorar seu refinado entrelaçamento. De fato, “eles são necessariamente
complementares um ao outro e não opostos” e ainda,
820
RIBEIRO, Renato Janine. A filosofia política na história. In: Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo
contra o seu tempo. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1999, p. 345.
821
GUENÉE, op. cit., pp. 263-264.
172
Todo ser humano em qualquer estágio da história ou da pré-história nasce
numa sociedade e, desde seus primeiros anos, é moldado por essa
sociedade. A língua que ele fala não uma herança individual, mas uma
aquisição social do grupo no qual ele cresce. Ambos, língua e meio,
ajudam a determinar o caráter de seu pensamento; suas primeiras ideias
são provenientes de outras.822
O problema da liberdade na Florença de Maquiavel não deve fugir a essa
formulação.
Antes de prosseguirmos, no entanto, ainda é preciso esclarecer algumas questões
sobre esse modelo de interpretação que pode não ter ficado claro em nossa introdução.
Principalmente diante da injusta crítica de Renato J. Ribeiro, ou ao que chamamos de seu
deslize de interpretação. Contextualizar não significa para o historiador das ideias um
mero “enquadramento”, como ele afirma, ou muito menos um atalho “mecanicista”. Mas
significa compreender que um discurso político é o resultado de uma série de conexões e
distorções que lhe dão sentido, sem o qual não há uma intervenção eficaz por parte do
enunciador. Daí as várias deformações adquiridas pela obra de Maquiavel que em grande
medida resultam do contexto em que foram lidas. Ribeiro não percebeu que não basta
saber para quem o autor se dirige 823, é preciso, além disso, compreender como o texto
significa para o enunciador e enunciatário. Essa noção devemos em grande medida à
influência da hermenêutica nos estudos de história, que entre outros atributos trouxe a
noção de compreensão para os estudos desta área. Ela, segundo Aróstegui, “é o ato de
decifrar a realidade que o texto expressa através da descoberta de seus mais secretos
códigos”824. É verdade que precisamos saber para quem Maquiavel se dirigia, mas antes
cabe compreender sobre o ideário disponível e como esse se movia e como ele se apropria
dos principais conceitos disponíveis para fazer dar sentido seu discurso, além do que, não
seria possível, para este, pensar além do disponível na linguagem política de sua época.
Bignotto comete o mesmo deslize ao chamar o método da história das ideias de
“armadilha” “das filiações conceituais” 825, ignorando que ele mesmo, no seu excelente As
aventuras da virtude e o referencial Maquiavel republicano, recorre frequentemente aos
mesmos mecanismos dessa “armadilha” da história das ideias. Assim, decifrar um
822
CARR, op. cit., pp. 67-68.
Ver RIBEIRO, op. cit., p. 345.
824
ARÓSTEGUI, op. cit., pp. 374-375.
825
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 10.
823
173
pensamento, uma ideia, sem uma contextualização radical, nos parece por demais
quimérico e é exigir do texto que fale por si só.
Ainda, e mais uma vez, sobre a questão da liberdade em Florença é comumente
aceito o pioneirismo de Baron e Kristeller nos estudos sobre o humanismo, mas seria
injusto ignorar o caráter “germinal” da obra de Jacob Burckahardt, como chamou
Adverse.826 O destaque dado à filosofia política do Renascimento demonstra a importância
dessa contribuição, que procurou demonstrar em vários momentos que esse período parece
não só receber, mas também busca recuperar, “o legado do republicanismo clássico, que
remonta a Cícero e Aristóteles, por outro lado, dá nova vida a essa reflexão política,
lançando as bases do que viria a ser o republicanismo na modernidade em suas diferentes
‘matrizes’ (inglesa, francesa e americana)”. 827
Na tese do alemão Hans Baron, segundo a gerência de Adverse, Florença teria se
tornado centro da irradiação humanística, após sua vitória “contra a tentativa hegemônica
de Giangaleazzo Visconti, o primeiro duque de Milão”. A partir de então essa “antiga
comuna citadina” teria se tomado, de certa forma, “consciente” de seu potencial político e
cultural. Skinner complementa:
Baron considera que o desenvolvimento das ideias políticas na Florença
de inícios do Quatrocentos constitui, em sua essência, uma reação à ‘luta
pela liberdade cívica’ que os florentinos foram forçados a travar, por toda
a primeira metade do século XV, contra uma série de déspotas
belicosos.828
Entre estes déspotas, o conflito mais evidente seria contra o duque de Milão, ocorrido
na primeira parte dessas lutas. De acordo com Riccardo Fubini, trata-se de uma idealização
por parte de Baron, do “precoce humanismo greco-latino de Leonardo Bruni, que, desde o
princípio do século XV, reconheceu e celebrou em Florença um modelo republicano que
revivia aquele modelo antigo de Atenas e Roma”.829 Ele também viu nessa tese um tipo de
“projeção acadêmica” laboriosamente adaptada para o renascimento “do mito que tinha
envolvido, na história germânica, a formação do Estado nacional, na sua matriz prussiana”.
Embora paradoxo, Baron estaria se dirigindo, mesmo escrevendo em língua inglesa, “a um
público ignaro, quando não refratário à língua e à cultura alemã”, e, talvez por causa disso,
826
ADVERSE, 2013, op. cit., p. 9.
Ibid., pp. 10-11.
828
SKINNER, 2003, op. cit., p. 91.
829
FUBINI, Riccardo. A Imagen de Florença em Leonardo Bruni. Intenções Retoricas e Percepções
Constitucionais. In, ADVERSE, Helton. (Org.) Filosofia politica no renascimento italiano. São Paulo:
Annablume, 2013, p. 13.
827
174
também se dirige ao trabalho de F. Meinecke sobre cosmopolitismo e Estado nacional, e
ainda ao próprio “espírito de origem” presente em outro trabalho do também ilustre W.
Jaeger. Esse, talvez, principalmente, por se tratar de uma “reação ao espírito igualitário da
constituição de 1919 tornou-se um corajoso defensor, em sentido antidemocrático e
antiutilitarístico, dos valores platônicos e aristotélicos da Grécia antiga.”830 Fubini explica,
e parece acreditar, que um dos “ensaios militantes” de Jaeger sobre “Estado e Cultura”
(1932) teria ditado o tom para a tese de Baron.831 Segundo Riccardo Fubini:
A resistência de Florença a Giangaleazzo Visconti (que ambicionava a
coroa de um Reino itálico ressuscitado) prefigura um evento exemplar
um pouco mais moderno: a própria afirmação, no curso das guerras
napoleônicas, do patriotismo, Leonardo Bruni, uma vez superado o
“perigo” – termo diretamente emprestado de Jaeger – do “classicismo
militante” de seu amigo intimo Niccolò Niccoli (que tem aqui o lugar do
individualismo iluminista, descrito por Jaeger com base em Meinecke),
prefigura a mítica conversão de Wilhelm von Humboldt da desconfiança
nutrida para com a intromissão do Estado na vida individual à
participação militante no governo prussiano, como premissa
indispensável de uma nova pedagogia patriótica fundada sobre os
clássicos antigos e dirigida à formação de uma nova classe dirigente. 832
Essa tensão para Fubini fez surgir um humanismo de matriz germânica, ou
‘atlântica’833. O que, aparentemente e de maneira estranha, provocou em parte a rejeição e
um desvio das principais formulações de Baron. Para Skinner, por exemplo, um dos
problemas centrais de Baron foi de que ele teria ignorado em que medida as ideias
humanistas “não eram novas em absoluto, mas antes, um legado das cidades-repúblicas da
Itália medieval.”834 Ora, mas Skinner parece querer pôr sobre Baron uma responsabilidade
que do ponto de vista da teoria historiográfica nos parece ingênua e, até certo ponto, cruel,
se tivermos em mente que, segundo um dia nos alertou Walter Benjamin, “Articular
historicamente algo passado não significa reconhecê-lo ‘como ele efetivamente foi’.
Significa captar uma lembrança como ela fulgura num instante de perigo” 835, e essa seria
uma parte integrante do que devemos pensar aqui.
Esses humanistas, conforme Skinner, em grande medida seguiram os passos dos
dictatores medievais, inclusive na natureza de educação recebida. Boa parte destes
830
FUBINI in ADVERSE, 2013, op. cit., p. 14.
Ibid.
832
Ibid., pp. 14-15.
833
Ibid., p. 15.
834
SKINNER, 2003, op. cit., p. 93.
835
KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Editora ática, 1985, p. 156.
831
175
possuíam formação jurídica. Semelhante a seus antecessores buscavam dar ênfase
concentrada no “ideal de liberdade republicana”. As ars dictaminis, como era conhecido o
laborioso e elegante trabalho dos dictatores, possuía a princípio objetivos meramente
retóricos. Estavam preocupados mais em elaborar regras gerais para a formulação de cartas
oficiais, por vezes indicando como tais regras deveriam ser aplicadas na prática. 836 Essa
preocupação com a estética do discurso bem elaborado resultou numa série de estudos e
tratados sobre o tema entre os quais Skinner destaca Os preceitos da epistolografia de
Adalberto de Samaria, um “destacado professor de retórica em Bolonha” que se tornou
numa espécie de modelo a ser seguido. O mais importante nesse caso é o fato de que este
estudo “da retórica nas universidades italianas terminou dando origem a uma forma de
ideologia política que se revelou influente”.837
Os livros de conselhos dirigidos aos príncipes, ou “espelhos de príncipes” como
passaram a ser conhecidos ainda no século XIII, possuem sua origem na Ars Dictaminis,
como um outro gênero de escrita política, cujo exemplo mais emblemático foi “um tratado
anônimo intitulado O olho pastoral”. Isso representa uma expansão do que representava o
objetivo dos dictatores. Esses tratados por abordarem temas relativos ao governo se
direcionavam diretamente aos próprios magistrados. Esse modelo, segundo Skinner, não
tardou em ser imitado, e o Príncipe de Maquiavel dá prova disso838, embora seja
considerado revolucionário não no gênero, mas na mudança de direção em relação à moral
e política. Isso em função de que esses “espelhos dos príncipes” buscavam no geral
valorizar as “virtudes cardeais” que deveriam estar presentes no bom governante. Em O
olho pastoral, por exemplo, conforme cita Skinner, “aqueles que querem ser temidos por
seus excessos de crueldade estão completamente errados”839, João Viterbo também não
foge a esse tema e em Do governo das cidades passa a enumerar entre outras virtudes que
o magistrado deveria seguir:
Antes de mais nada temer a Deus e honrar a Igreja, além disso governar
todas as suas ações em conformidade com as quatro virtudes cardeais,
listadas – numa maneira que depois se tornará características dos
moralistas da Renascença – como sendo a prudência, a magnanimidade, a
temperança e a justiça.840
836
SKINNER, 2003, op. cit., p. 50.
Ibid..
838
Ibid., p. 55.
839
Apud SKINNER, 2003, op. cit., p. 55.
840
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 55-56.
837
176
Não é difícil notar, como também percebeu Bignotto, a importância que Cícero foi
adquirindo entre os humanistas.841 Adverse também percebeu essa ingerência ciceroniana
no pensamento pré-humanista, e nas interferências posteriores:
A obra de Cícero, lida durante o período medieval sem despertar grande
admiração, ou mutilada de seu sentindo cívico, irá exercer, no
Renascimento, uma forte influência que pode ser compreendida sob um
duplo aspecto: em primeiro lugar, na relação entre retórica e filosofia e,
em segundo, no campo do pensamento moral e político. Um lugar muito
especial será ocupado pelos textos em que o orador romano trata da
retórica (sobretudo o De oratore, descoberto em 1421), e me que trata do
tema moral (especialmente o De officiis).842
Mas embora pareça evidente essa influência, e tenha havido, segundo Burke, “muita
imitação de (...) escritores clássicos e modernos”, não podemos deixar de pensar que se
trata de uma conclusão geral. Esse é um aspecto da pesquisa histórica do qual dificilmente
conseguimos fugir, o que pode levar a sérios enganos. Ora, no mesmo período também
houve interesses diversos sobre a repetição dos antigos e “na literatura, a imitação de
modelos antigos era objeto de discussão, na qual alguns protagonistas, principalmente
Poliziano, atacaram o ideal de escrever como Cícero”843, conforme Burke.
Skinner está convencido da existência de continuidade entre esses professores de
retórica e os humanistas da Renascença, e, seguindo os passos de Kristeller, ele também
não ignorou a influência, segundo afirma, “de uma forma de teoria retórica nova, e
conscientemente humanista que foi importada da França à Itália na segunda metade do
século XIII, e que teve efeito de causar ruptura e transformação nas convenções vigentes
na Ars Dictaminis”.844
Os esforços imitativos em direção aos clássicos pareciam não mais interessar-se
apenas pela técnica retórica, como foi o caso dos dictadores. Não buscavam um mero
utilitarismo e muitos estudantes passaram a considerar esses autores clássicos como
autoridades sérias, fato esse que, segundo Skinner, faz com “que seja correto considerá-los
os primeiros verdadeiros humanistas - os primeiros autores entre os quais ‘a luz começou a
brilhar’, como mais tarde diria Salutati, em meio às trevas então generalizadas” 845. Entre as
figuras mais exemplares desse novo interesse está Alberto Mussato (1261-1329), que
841
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 15.
ADVERSE, 2009, op. cit., pp. 124-125.
843
BURKE, 2010, op. cit., p. 34.
844
SKINNER, 2003, op. cit., p. 56.
845
Ibid., pp. 58-59.
842
177
também foi discípulo de Juiz Lovato Lovati (1241-1309), ele experimentou relevante
posição na política em Pádua, foi autor de obras inspiradas em “Lívio e Salústio sobre a
República romana”, das quais se sobressai a História dos feitos dos italianos após a morte
do imperador Henrique VII, além de peças em versos latinos.846 Seus esforços de pôr a
literatura a serviço da política estão entre os mais respeitáveis da época, sua obra Ecerinis,
confirma, segundo Skinner, que ele não se via apenas como “um mero erudito e poeta, mas
também um político e propagandista”. Fato esse que fica claro na introdução dessa obra
onde explica seu propósito, que seria em tese “celebrar o valor da luta pela liberdade e pelo
autogoverno”847.
Essas iniciativas demonstram uma clara tentativa de intervenção política, por outro
lado uma crescente conscientização do papel desses pensadores nos principais problemas
de sua época, se tornando o traço mais marcante entre estes. A constante ascensão de
formas de governo concentrados nas mãos de déspotas, confrontavam-se com a defesa da
liberdade exigindo uma reação mais enérgica. Segundo Skinner:
Defrontando-se com essa ameaça de que se extinguisse toda uma
tradição política, esses autores reagiram oferecendo a primeira defesa em
larga escala dos valores políticos que caracterizavam as repúblicas
urbanas. Inspirando-se no quadro literário e retórico (...), eles vieram a
desenvolver uma ideologia voltada não apenas para a defesa, como valor
central, da liberdade republicana, mas também para a análise das causas
de sua vulnerabilidade e dos métodos mais adequados a tentar garantir
que ela não perecesse. 848
Bignotto resume bem esse momento e a importância da aceitação de Cícero, pelos
humanistas, explicando que,
Em uma comunidade ameaçada pela guerra e pela ambição dos tianos do
norte da Itália, a postura do sábio contemplativo parecia insustentável.
Era preciso preservar o patrimônio cultural da Antiguidade, associando-o,
no entanto, a uma ação política eficaz. A retórica era o elo (...) entre a
cultura clássica e a ação republicana. Sendo necessariamente associada à
vida cívica, exigindo a presença de homens dispostos a dialogar, ela
tendia por isso mesmo a mudar a concepção da comunicação humana. Se
é evidente que não podemos dirigir-nos diretamente senão aos homens de
nosso tempo, os humanistas descobriram que a troca de ideias com os
homens do passado é tão fundamental à vida cívica quanto um discurso
pronunciado em uma assembleia. Essa volta aos textos do passado exigiu
846
SKINNER, 2003, op. cit., p. 59.
Ibid., p. 60.
848
Ibid., p. 62.
847
178
a elaboração de um método que evitasse as armadilhas das interpretações
medievais, marcadas pela idéia de que os tesouros da Antiguidade nada
mais eram do que etapa no longo caminho de elaboração do
conhecimento. Quando Petrarca, usando dos recursos fornecidos pela
gramática e pela filologia, escrevia cartas a Cícero e propunha novas
leituras de seus escritos, ele não o fazia simplesmente por gosto literário,
mas porque essa “comunicação” com o passado era fonte de uma nova
visão da vida política.849
A escolha de estabelecer um diálogo com os antigos seria “metodológica” e também
“política”, para esse autor, isso adveio em função de que os humanistas instituíram uma
relação distinta com os textos clássicos e buscaram unir “a retórica à política, insistindo”,
segundo ele, “no caráter essencialmente social da humanidade”, nesse sentido “a verdade
deixa de ser um sistema de proposições para transformar-se em um sistema de relações.” 850
Um traço comum entre esses autores é o fato de se preocuparem com a defesa
tradicional do ideal de liberdade, compreendendo-a como independência e autogoverno.
Mais uma vez é Mussato quem toma a dianteira entre os paduanos exibindo sua
“preocupação (...) pelos valores republicanos de Pádua no começo de sua História dos
italianos”.851 Ele chegou a afirmar com um certo alívio que a cidade depois de livrar-se da
tirania de Ezzelino, a quem Burckhardt não ousou comparar com seus sucessores “no
caráter colossal de seus crimes, mesmo César Borgia” 852, o retorno da República trouxe
consigo “a mais honesta e justa forma de governo”853.
A despeito da oposição manifesta, os despotismos pareciam não encontrar
obstáculos. Para Burckhardt, a queda de Ezzelino não significou “o estabelecimento da
justiça, tampouco”, serviu “como advertência para futuros malfeitores”854. Os séculos XIV
e XV demonstraram, de fato, ser acertada a análise desse historiador, revelando como ele
afirmou “que os exemplos do passado não haviam sido esquecidos”. 855 “O Estado como
obra de arte” fincava suas raízes por meio de iniciativas consciente do uso de todos os
meios disponíveis para o seu estabelecimento. Estranho é que no século XIV Petrarca não
poupou elogios ao mundialmente famoso déspota de Verona, segundo Burckhardt,
Cangrande della Scala, sugerindo que este deveria agir com justiça rigorosa contra aqueles
849
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 15.
Ibid., p. 16.
851
SKINNER, 2003, op. cit., p. 62.
852
BURCKHARDT, op. cit., p. 39.
853
SKINNER, 2003, op. cit., p. 62.
854
BURCKHARDT, op. cit., p. 39.
855
Ibid., p. 40.
850
179
que planejavam diariamente “transformações”, afirmando ser estes rebeldes “e inimigos do
Estado”856. Mas no geral ainda persistia um “ódio profundo” contra esse sistema 857.
Para estes pensadores “a resposta básica”, segundo Skinner, ao sucesso dessa
expansão, aparentemente, seria que “a grande fraqueza das cidades livres deriva da
existência de facções em seu interior” 858, além de, e essa seria uma segunda razão desse
sucesso, e talvez a própria razão da existência de facções nesse momento, o aumento de
riquezas privadas. Maquiavel, seguindo esse mesmo caminho, “sabendo” que os homens
agem geralmente “por necessidade ou por escolha”, no capítulo primeiro do primeiro livro
dos Discursos, seu argumento aparentemente carregado pela noção franciscana de pobreza,
sugeriu, “se não é mais vantajoso selecionar, para sede de uma cidade, local infértil, onde
os habitantes, constrangidos ao trabalho, e menos inclinados ao ócio, possam viver unidos,
sujeitos à concórdia pela sua situação de pobreza”859.
Nessa direção não é difícil imaginar que entre os esforços desses pensadores para
dar resposta a esses dois principais problemas, a essa altura seria de que “o povo deve pôr
de lado todos os interesses pessoais e de facções” 860. A busca por equilíbrio parece ter que
passar necessariamente pelo nivelamento social. Skinner, contrariando a noção de Baron
sobre a influência franciscana nessas premissas, alegou em tom de evidência que os receios
vozeados por autores como Compagni, Mussato e Latini expressam convicções mais
estóicas que franciscanas. Parece razoável, já que estes fazem longas citações de
autoridades estoicas para fundamentar sua defesa ao desapego da riqueza, mas não
podemos descartar por completo a influência posterior franciscana, pois, por outro lado,
“sabemos” que talvez mais que o platonismo, por intermédio do sacerdócio cristão, o
estoicismo sobrevive, assim, seria também lícito falar de um “estoicismo dos PadresIgreja” que coloriu, por assim dizer, “de maneira quase indelével, praticamente até nossos
dias, a moral cristã”861. Dante também fez eco a essas teses, alegando que as riquezas “são
naturalmente vis”, e “estranhas a natureza da nobreza” 862.
Assegurar o bem comum parece ser uma das preocupações que chamou a atenção
desses pensadores, movidos pela convicção de que, se se quer uma sociedade elevada em
856
BURCKHARDT, op. cit., pp. 41-42.
Ibid., p. 43.
858
SKINNER, op. cit., p. 63.
859
MAQUIAVEL, op. cit., p. 20.
860
SKINNER, 2003, op. cit., p. 65.
861
JERPHAGNON, Lucien. As filosofias helenísticas: Epicurismo, Estoicismo, Pirronismo.
JERPHAGNON, Lucien. História das Grandes filosofias. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 73.
862
SKINNER, 2003, op. cit., p. 67.
857
In:
180
virtudes voltada para a vida pública, não se deve focar somente nas instituições, já que
mesmo as melhores instituições não poderiam resistir ao assalto de homens corruptos.
Tanto Maquiavel e depois Montesquieu chegaram a proclamar “que não é tanto o
maquinário de governo, mas o próprio espírito dos governantes, do povo e das leis o que
mais precisa ser defendido”863. Mas essa premissa, os primeiros pensadores retóricos
também compartilharam. Assim, outra preocupação passou a ser a de que tipo de conselhos
fornecer a homens que pudessem vir a torna-ser governantes. Pelo menos num ponto
estavam certos sobre as virtudes que deveriam ser cultivadas.
Latini, por exemplo, dedicou especial atenção a um tema que Maquiavel também
examinará mais tarde. Trata-se do debate “entre aqueles que preferem ser temidos a
amados, e aqueles que antes querem ser amados do que temidos”. Mas Latini, nesse tema,
segue seus predecessores autores de “espelho de príncipes”, e Cícero também está entre as
autoridades que com frequência cita em concordância. Mas é difícil, por outro lado, ainda
não perceber a influência de Aristóteles nesses pensadores que de uma forma ou de outra
estavam cada vez mais preocupados com a prática humana em assuntos terrenos. Essa
mudança de atitude pode ser notada nos escolásticos, que logo perceberam o quanto a
filosofia política e moral em Aristóteles se desviava da proposta de Agostinho. Conforme
Skinner, (e isso é bem evidente), este “representa a sociedade política como uma ordem
determinada por Deus (...). Já a Política de Aristóteles trata a pólis como uma criação
puramente humana, destinada a atender a fins estritamente mundanos” 864. Não se
diferenciando de outros intérpretes, em sua Suma teológica, santo Tomás “naturalmente
procurou adaptar as ideias de Aristóteles sobre o direito e a sociedade civil às condições
que então prevaleciam”865. A presença de Aristóteles pode ser sentida ainda em Bartolo,
nesse caso em especial é possível, mesmo que distante, intuir sobre os equívocos que essas
adaptações poderiam levar. A constante repetição de Aristóteles por Bartolo, segundo este,
visava “desenvolver uma teoria aristotélica da sociedade política, a fim de diagnosticar e
tentar resolver as debilidades internas das cidades-Estados italianas”866.
Segundo uma tese básica entre os pensadores do século XIII, e que depois seria
recuperada, um dos valores da vida política que deveriam ser cultivados seria a “paz e
concórdia”. Essa seria a premissa de um regime popular. Aristóteles já havia afirmado que
863
SKINNER, 2003, op. cit., p. 66.
Ibid., p. 71.
865
Ibid., p. 72.
866
Ibid., p. 73.
864
181
a concórdia só podia ser alcançada quando os desejos dos homens fossem igualizados, o
papel do legislador seria propor mecanismos legais que suprimissem os desacordos867.
Da mesma forma, Marsílio havia acentuado o papel central da paz no seu Defensor
da paz. Segundo Skinner,
Marsílio entende que, da mesma forma que os frutos da paz estão no bom
governo, os frutos da negação da paz devem resultar da tirania, já que
esta é a negação do bom governo (...). Ora, a negação da paz, ou ‘o
oposto da tranquilidade’, é um estado de ‘discórdia e conflito’ (...). Por
isso ele conclui que a chave para explicar por que o Regnum Italicum está
sendo ‘penosamente assediado por todos os tipos de perturbação e de
adversidade’ deve passar pelo exame das causas de sua discórdia e
faccionismo crônicos, que agora o impedem de gozar os ‘doces frutos da
paz’.868
Skinner sugere que essa teria sido uma preocupação comum, tanto entre escolásticos
e os humanistas do século XV. Estes por recorrerem a Marsílio para justificar sua defesa da
liberdade entendida como resultado da busca do bem comum em detrimento de interesses
particulares faccionistas. A principal divergência seria, nesse caso, Maquiavel e sua
politica fatalista. Ao que tudo indica, e já tentamos demonstrar anteriormente, tanto
Marsílio quanto Bartolo não desenvolveram uma teoria desligada da vida política, o que
parece ter influenciado a maneira dos retóricos pensarem a política, que buscavam uma
reflexão mais preocupada com a prática dos devaneios técnicos e abstratos. De fato, sobre
o caso da existência de facções ambos agiram como uma reação direta à sua existência, e,
percebendo ser elas “como a principal ameaça às liberdades das cidades-Estados: é
também uma resposta nova e radical à questão de como garantir essas liberdades” 869.
Os primeiros humanistas do Quatrocentos, ou o “humanismo cívico”, embora partam
do mesmo sistema de interpretação tradicional da liberdade, significando essa autogoverno e independência, encontram outros problemas para a garantia desta. Mas, no geral,
seguem seus predecessores, incorrendo e retomando, segundo Skinner, as “idéias dos
dictadores sobre a liberdade política”, manifestando “inequívoca preferência (...) pela
forma republicana de governo”.870 Dessa maneira, seria incoerente e desonesto, como o faz
Skinner (além de ser contraditório com a análise primeira), dar um caráter revolucionário a
estes. Mas isso não significa que não havia originalidade nessa forma de pensar a liberdade
867
Ver ARISTOTELES. Politica. São Paulo: Martin Claret, pp. 92-93.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 77.
869
Ibid., 80-81.
870
Ibid., p. 100.
868
182
republicana ou da república. O que se nota pelos usos que se fizeram dos clássicos pela
interpretação da virtu do que seria a verdadeira nobreza. A questão da leitura dos clássicos
é algo que não deve ser esquecido, pois tanto as noções de liberdade e/ou virtu nesses
humanistas e em Maquiavel são devedoras dos instrumentos de leitura movidos por estes.
Talvez essa seja a maneira mais adequada de descentralizarmos estes sujeitos dentro desse
processo de significação no espaço da ação imediata de seu pensar871.
3. 2 A oposição de Maquiavel aos humanistas e a defesa dos conflitos sociais como base
para estabilidade da República
Embora o título deste tópico expresse a noção de oposição, nos parece que seria
mais justo falar de contribuição, já que esse autor não se desvia por completo dos
humanistas do século XV e mesmo dos pré-humanistas. Mesmo assim vamos tentar nos
manter fieis ao título, mais por questão didática do que por fato, se é que é possível a essa
altura falar de fatos demonstráveis, se não apenas de pontos de vista. Sobre pontos de vista,
é interessante notar que, longe de ser considerada revolucionária ou visionária, a
contribuição de Maquiavel ao desenvolvimento das teorias republicanas deve ser vista
como sutil, mas uma sutileza cujos efeitos podem ser sentidos desde a Revolução
Francesa872 aos nossos dias.
No contexto que descrevemos até aqui, é possível já perceber que a
“originalidade” de Maquiavel caminha mais ou menos de mãos dadas aos interesses de
seus intérpretes, não se constituindo um dado sólido pelo qual possamos trilhar sem o risco
de repetir e fazer eco a essas leituras. É comum na literatura especializada encontrar
autores que sobre-estimem “a doutrina e/ou teoria” desse autor, se é possível falar nesses
termos da obra de Maquiavel. E nos Discursos, no que diz respeito à sua perspectiva dos
“conflitos sociais” e a noção de “natureza humana” temos motivos para crer que se trata
em vários aspectos de sérios equívocos por parte do autor.
Seus Discursos começam mais ou menos no mesmo programa taxionômico do
Príncipe, mas não vamos entrar nesse mérito aqui, já que fizemos em parte o necessário
para uma introdução ao tema. Em todo caso, ainda se faz necessário compreender um
871
Ver ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP:
Editora Unicamp, 2007, pp. 50-51.
872
BIGNOTTO, 2010, op. cit., p. 21.
183
pouco mais sobre os diálogos políticos existentes em Florença e vermos se há de fato uma
relação essencial entre os Discursos e estes.
Após o golpe que resultou na expulsão dos Médicis em 1494, uma nova geração
de pensadores começa a se interessar pelos estudos desenvolvidos pelos “humanistas
cívicos”. Talvez mais motivados pelo sentimento de indignação contra qualquer tipo de
tirania. Maquiavel parece se dirigir a esses jovens, como aqueles que mereciam ser
príncipes, não pela posse de riquezas, mas “pelas suas qualidades”. 873
Segundo Skinner, o principal dessas reuniões acontecia nos jardins da família
Rucellai que, como já observamos, Maquiavel foi um dos principais frequentadores.874
Francesco Guicciardini (1483-1540) considerado um homem mais urbano, permaneceu
entre os poucos que não esteve envolvido com esses filósofos de jardins, mas nem por isso
deixou de ser um devoto aos ideais republicanos. “Ele conseguiu sobreviver à mudança de
regime em 1512 muito melhor que Maquiavel” 875, como explica Skinner. Entre as obras
desse humanista está uma série de Considerações sobre os Discursos de Maquiavel 876.
Outro importante pensador foi Donato Giannotti a quem já nos referimos antes, um dos
organizadores de uma milícia logo após a morte de Maquiavel durante um “longo assédio
que sua cidade sofreu entre 1529 e 1530”. Com o retorno “dos Medicis, em 1530, ele
padeceu a amargura de um exílio que duraria sua vida inteira, e foi nesse período que
escreveu A República florentina, última e quase nostálgica celebração do já antigo tema da
liberdade florentina.”877 Donato talvez esteja entre os que menos são conhecidos, mas,
segundo Bignotto, “teve seu destino e obra ligados ao nome de Maquiavel” 878. E
semelhante a este escreveu seu principal trabalho após a queda da república florentina.
Todos estes teóricos mantiveram-se de uma forma ou de outra fieis ao ideal florentino da
liberdade política. Por outro lado, Guicciardini parece destoar, no sentido de não
manifestar tanto entusiasmo, e, segundo Skinner, adverte contra “aqueles que pregam a
liberdade com um tal fervor”, sugerindo que estes geralmente só estão preocupados com
seus próprios interesses, e ainda que, “se pensassem que desfrutaria de mais vantagens sob
um governo absoluto, prontamente se poriam a seu serviço”879. Tenhamos isso e mente.
873
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 13.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 173.
875
Ibid., p. 175.
876
Ibid., p. 173.
877
Ibid.
878
BIGNOTTO in ADVERSE, 2013, op. cit., p. 202.
879
Apud SKINNER, 2003, op. cit., p. 175.
874
184
No entanto, Maquiavel faz uso de uma tradição que agora também caía num
estado letárgico que beirava ao servilismo numa Florença que se arrastava por manter os
poucos gemidos por liberdade sob a tutela dos príncipes medicianos. “Sob Lourenço de
Médici, em suma, Florença terminou de afinar-se com as cortes principescas da península,
onde os intelectuais nunca foram mais do que (não importa o que façam) instrumentos
submissos dos príncipes.”880 Mesmo Maquiavel não escapou a essa condição, conforme
explicou Larivaille:
O entreato republicano que separa, em Florença, o exílio dos Medici em
1494 de seu retorno em 1512 reanima num homem como Maquiavel a
velha fé humanista na missão cívica do intelectual, homem de ação e
pensador a serviço da cidade e não mais vassalo dos interesses de um
príncipe. Mas trata-se apenas do renascimento provisório e limitado de
um ideal destinado, após a restauração dos Medici, a ser apenas uma
piedosa ilusão. Malgrado um simulacro de instituições republicanas,
tudo, em Florença, dependerá, daí por diante, de uma família que não
descansará enquanto não tiver fundado um principado hereditário análogo
aos que surgiram na maior parte do território italiano. Maquiavel terá o
mérito de resistir durante anos à sujeição que o espreita, assim como
todos os seus semelhantes, mas o seu combate fora de época termina num
fracasso que confirmará a inelutável condição cortesã do intelectual do
Renascimento.881
Esse aspecto sombrio das relações dos pensadores desse período com seus
príncipes pode nos levar a crer que havia um oportunismo desleal e frágil à ideia de
liberdade republicana. Mas nada é tão simples assim, pelo menos não necessariamente, e
talvez muito menos no caso do nosso autor, como alguns historiadores apontaram. No
entanto, é importante observar que essa postura era mais ou menos corriqueira, não só
entre os humanistas, mas também entre os príncipes da época, como demonstra o caso de
Giannozzo Manetti (1396-1459) que em assuntos eruditos, segundo Martines, possuía
“capacidade para ofuscar outros humanistas” e também “contribuiu para a fama de
Florença como cidade de conhecimento e de mentes argutas”882. Burckhardt, por outro
lado, escreveu que nele se evidenciou “portentosamente o verdadeiro pendor do tirano para
o colossal”883. Mas também não deixou de elogiá-lo pelas suas qualidades e propensões ao
belo e ao conhecimento. Foi dele, alega o historiador, a construção do “mais maravilhoso
de todos os mosteiros” e da catedral de Milão e a conclusão de um palácio em Pavia, para
880
LARIVAILLE, op. cit., p. 162.
Ibid., p. 163.
882
MARTINES, 2003, op. cit., pp. 80-81.
883
BURCKHARDT, op. cit., p. 45.
881
185
onde “transferiu também sua biblioteca e a grande coleção de relíquias de santos”884. Mas
temos que ter cautela em se tratando desse historiador, principalmente se tivermos em
mente que onde outros historiadores, como comenta Burke, “pretenderam contar uma
história Burckhardt teve por objetivo pintar o retrato de uma era” 885, e via a história mais
“como uma obra de arte. Para ele, esta era uma modalidade da literatura imaginativa,
aparentada à poesia”886. Mesmo assim, ainda é difícil substituir sua leitura do período. Em
todo caso, Martines explica que Giannozzo, por volta de 1453, havia sido acusado de
prevaricar contra sua república ao honrar Afonso de Nápoles, cujas relações com Florença
eram instáveis, ao dedicar um trabalho seu a este, o tratado Da excelência do e da
dignidade do homem. Mas, segundo alega o historiador, essa época não era uma “época de
ideologia” e acrescenta:
A Itália tinha estados principescos e estados republicanos. E, se um
homem ganhava a vida graças a um príncipe, era obrigado a prestar
homenagem a esse príncipe e ao ideal da monarquia, mesmo que fosse
originário de uma república. Era isso que faziam os homens letrados da
Renascença e até mesmo os homens de estado, como confirma O
cortesão, de Castiglione. Nada havia de desonroso ou “traidor” em tal
comportamento. Quando Giannozzo finalmente aceitou a ideia de que a
fortuna se voltara contra ele em Florença, e já tendo ganhado a admiração
do rei Afonso por sua conduta como embaixador florentino em Nápoles,
ele naturalmente aproximou-se do rei e produziu dedicatórias elogiando
também a monarquia. Mas isso não anulava sua lealdade republicana a
Florença. As expectativas da época permitiam elogiar uma continuando
comprometido, como cidadão, com a outra.887
O mal-estar de Guicciardini parece residir no fato da percepção de que os homens
do seu tempo pareciam mais preocupados em buscar benefícios para si em detrimento da
cidade, e nosso autor em algum momento dos Discursos também demonstra o mesmo
sentimento nauseante, embora ele mesmo também seja alvo de Guicciardini nessa questão,
reconhecendo como último recurso para frear essa índole o estabelecimento de uma vida
frugal, e leis capazes de neutralizar e conter dentro dos limites convenientes a sua
influência.888
884
Ibid.
BURKE, Peter. Introdução: Jacob Burckhardt e o Renascimento italiano. In. BURCKHARDT, Jacob
Chirstoph. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 20.
886
Ibid., p. 19.
887
MARTINES, op. cit., 2003, pp. 85-86.
888
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 21.
885
186
Maquiavel em seus Discursos aparentemente parece certo de estar prestes a
percorrer “uma senda ainda não trilhada, movido pelo natural desejo que sempre” o “levou
sem receios aos empreendimentos” que considerava “úteis”889. Essa mesma pretensão de
novidade já encontramos no Principe890 e também na sua História de Florença891. Mas
aqui com o diferencial de que sua ousadia parece ser maior, mas é uma ousadia refratária, e
ao se comparar com os navegadores descobridores de terras desconhecidas 892 parece querer
iludir seus leitores da novidade de sua argumentação, em sua luta contra seus próprios
moinhos. Segundo Bignotto,
O próprio Maquiavel, que parecia querer surpreender seus leitores, opera
uma reviravolta no texto, comparando seu projeto de exploração à
imitação da história antiga e ao aprendizado da antiga virtude. Dizendo-se
inovador, ele repete um gesto retórico absolutamente previsível para um
homem da Renascença.893
Esse movimento, que a primeira vista demonstra uma contradição interna no
autor, apresenta também a maneira pela qual via a imitação dos antigos, que para os
humanistas se tratava apenas de um campo de possibilidades, mas que para ele se
constituía em um problema. Segundo Bignotto, por essa via, Maquiavel pretendia também
lançar um convite ao abandono do “universo ideológico de seu tempo”894, mesmo “dando a
impressão de fidelidade” a esse ideário. O equívoco de Bignotto nesse ponto está em suas
tentativas de isolar o autor de sua realidade, que, como já foi dito, não permitia tal
empreendimento. Ela não permite esse despontar genial. Mais justo seria observar que
Maquiavel pode ter tido acesso a um dos trabalhos de Bernado Rucellai (avô de Cosimo
Rucellai, anfitrião nas reuniões do orto), o Castigationes Decadum Livii, por exemplo, que
foi um comentário de parte da obra de Tito Lívio 895 o que pode ter influenciado o próprio
estilo dos Discursos. Maquiavel em algum momento de sua dedicatória também dá a
entender que escreveu o texto sob orientação dos amigos humanistas e talvez mais de
Cosimo Rucellai para quem constantemente leu o manuscrito, alegando “ter sido obrigado
a desenvolver um tema que jamais teria escolhido voluntariamente”, logo depois explica,
após confessar certos “erros cometidos”, ter acertado na escolha em dedicar a obra a esses
889
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 17.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 199.
891
MAQUIAVEL, 2007, op. cit., pp. 7-9.
892
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 17.
893
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 77.
894
Ibid.
895
MARTINS in Discutindo Filosofia. Maquiavel, op. cit.
890
187
jovens humanistas, interferindo que “com tal escolha penso ter demonstrado
reconhecimento pelos benefícios recebidos”896. Dessa maneira dá a entender que os
Discursos seriam frutos das reuniões no Orti Oricellari e dos debates com os amigos;
sobre os “benefícios recebidos” nada sabemos. Por outro lado, no capítulo II do Príncipe,
ele alude a um escrito sobre as repúblicas, tema esse que, segundo alega, havia percorrido
“extensamente em outra ocasião”897. Ora, mas O Príncipe, segundo uma datação
comumente aceita, foi escrito em 1513. Nesse caso ele dá a entender também que os
Discursos, ou pelo menos parte destes, já estavam elaborados antes de começar
a
frequentar o orto dos Rucellai. Isso põe um problema de datação, mas não isenta a hipótese
de que Maquiavel estivesse, nos Discursos, comprometido com os Rucellai.
Felix Gilbert, conforme comenta Martins, estabeleceu, por meio de uma análise
textual e comparativa dos Discursos e a História de Roma de Lívio, já que aquele se
constitui um comentário a este, “que o texto de Maquiavel, com exceção de dois blocos
bem definidos, segue linearmente o texto de Tito Lívio” 898. Estes dois blocos seriam os
primeiros dezoito capítulos do livro primeiro e os nove primeiros do livro III, fora estes os
demais assumem coerência em relação ao texto do historiador romano. Isso se deve ao fato
da mudança de ritmo nesses blocos. Nos primeiros dezoito capítulos ele parece estar
ausente da obra de Lívio, seu texto não assume o caráter de comentário, como fica evidente
em outros capítulos da obra. O que nos leva mais uma vez a pensar que tal iniciativa em
elaborar o texto em forma de comentário tenha surgido através do contato com os Rucellai,
mas também que parte da obra já estava elaborada, talvez mesmo em 1513. Martins, por
outro lado, parece querer se opor a essa ideia, para ele:
Em relação aos dezoitos capítulos do livro I tem-se, todavia, uma
mudança quanto ao método de análise maquiaveliano. Eles não somente
diferem dos demais no que diz respeito ao comentário do texto liviano,
como fazem pouca referencia a este. Entretanto, se de um lado há um
distanciamento do texto histórico, fazendo com que esses capítulos
percam o caráter de comentário, por outro lado é notória a apresentação
detalhada das tipologias dos regimes numa república, dos ordenamentos
políticos que a compõe, dos conflitos e da fida política que a anima e, por
fim, da corrupção que pode se abater sobre ela. Isso confere a esses
dezoito capítulos uma autonomia teórica, tornando-o passiveis de serem
vistos não como um comentário à História, mas como um bloco
896
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 13.
MAQUIAVEL, 2002, op. cit., p. 115.
898
MARTINS, 2007, op. cit., pp. 18-19.
897
188
destacado, configurando-se em uma introdução teórica ao comentário
propriamente dito. 899
Mas o fato de o texto oferecer essas tipologias não explica muito com relação ao
destaque feito por Maquiavel. Mesmo porque já observamos que ele pode ter tido acesso a
História de Lívio ainda muito cedo, e que a obra estava disponível na biblioteca da família.
O mesmo acontece, por exemplo, em relação à teoria da circularidade dos regimes
políticos, presente no capítulo II do primeiro livro dos Discursos, originalmente
apresentadas por Políbio nas Historias, mas este teve, segundo uma informação de
Martins, sua primeira edição latina em 1529, sendo improvável que Maquiavel tenha tido
acesso ao texto. Por outro lado, Gennaro Sasso oferece uma hipótese para este problema
que Martins cita, mesmo em evidente desconforto. Segundo Sasso, havia numa biblioteca
vizinha à Chancelaria florentina “uma parte do livro VI das Histórias de Políbio, traduzida
para o latim”900; e é presumível que Maquiavel soubesse da existência do texto, e, estando
ali tão perto, é possível que em algum momento tenha entrado em contato com a obra, mas
se leu ou não, definitivamente isso foge a nossa alçada; porém, Gaille-Nikodimov confirma
que Políbio estava entre os autores lidos por Maquiavel 901. É razoável crer, portanto, que
os Discursos tenham tido um começo pré-Rucellai, mas o grosso da obra e mesmo o final
do todo em sua configuração deve-se aos encontros do orto; sobre o método e estilo
também não podemos descartar a influência do texto do avô de Cosimo. Isso nos permite
perceber que as contribuições de Maquiavel no geral estão ligadas de uma forma ou de
outra à ortodoxia do pensamento político florentino.
O tema da maldade do homem, presente no capítulo III do primeiro livro dos
Discursos, está entre uma das mais supreendentes afirmações desse autor:
Como demonstram todos os que escreveram sobre politica, bem como
numerosos exemplos, é necessário que quem estabelece a forma de um
Estado, e promulga suas leis, parta do principio de que todos os homens
são maus, estando dispostos a agir com pervesidade sempre que haja
ocasião. Se esta malvadez se oculta durante um certo tempo, isso se deve
a alguma causa desconhecida, que a experiência ainda não desvelou; mas
o tempo – conhecido justamente como o pai da verdade – vai manifestála.902
899
Ibid., p. 19.
MARTINS, 2007, op. cit., p. 24.
901
GAILLE-NIKODIMOV, 2008, op. cit., p. 30.
902
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 29.
900
189
A partir da perspectiva de que os homens são maus, Maquiavel não só repete um
tema ja castigado por autores como Agostino e Savonarola, mas fere sua teoria quase que
de morte, incapacitando-a de um aprofundamento teórico e o impede de inferir uma análise
mais apurada dos acontecimentos em favor de uma história exemplar e uma política
fatalista. Para Bignotto,
Os debates sobre a melhor forma de governo, exigindo cada vez mais
uma forte dose de realismo, podiam ser saciados pela evocação de leis
humanas absolutamente implacaveis e pelo exame rigoroso mesmo dos
tempos mais felizes da república romana. Assim, Maquiavel evoca o
período subsequente à expulsão dos Tarquínios de Roma, para mostrar
que, mesmo nas situações mais felizes, os homens não deixam de se
comportar sob o jugo da necessidade. E quando descreve o
comportamento dos nobres em relação ao povo é tambem nesse sentido
que ele se exprime: “... que demonstra o que dissemos acima: que os
homens jamais fazem o bem, senão pressionados pela necessidade” 903
Essa noção sobre a “maldade natural dos homens”, Bignotto afirma também se
tratar de uma tentativa de dar caráter universal aos Discursos. Por outro lado, Maquiavel
parece não estar preocupado, como no geral o faz, em definir de fato essa “natureza
humana”, limitando-se a descrever “fatos” na história que possam fortalecer seus
argumentos, pelo menos é o que aparece na superficie. Touchard em sua crítica percebeu
que,
Num mundo eterno e determinado, o homem não é totalmente
impontente, e a história, segundo Maquiavel, oferece-lhe lições, mas o
pessimismo tão arraigado com que julga a natureza humana restringi-lhe
o campo de experiências onde lhe seria possível descobrir um nexo
racionalista. “que é um governo, senão o meio de dominar os súditos?”
postas as coisas neste pé, a razão fica condenada a trabalhar muito mais
sobre o plano da técnica política do que sobre o da explicação
histórica.904
Muito mais do que isso é preciso ver que se trata também nesse aspecto numa
reação contra os pressupostos de alguns pensadores humanistas. Se o governo do povo é
melhor do que os dos príncipes, é preciso saber que aqueles possuem propensão para os
conflitos de que devem ser reconhecidos para que se possa buscar o antídoto. Mas não
deixa de ser inconstante em sua argumentação. A defesa retórica da liberdade possuía
903
904
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 83.
TOUCHARD, op. cit., p. 23.
190
como pressuposto básico que a existência de facções no seio da comunidade civil
ameaçavam constantemente o avanço da liberdade. Esse princípio foi enfatizado tanto por
Latini como também Mussato, como vimos em Skinner. O mesmo acontenceu, não no
geral, entre os escolásticos, mesmo que entre estes houvesse várias divergências,
principalmente sobre a questão da soberania popular.905
Mas, como percebeu Skinner, “um colorário que os primeiros humanistas sempre
deduziram da ênfase que também atribuíam à importancia da liberdade rezava que, sendo
esse valor mais bem assegurado sob uma espécie mista de regime republicano, segue-se
que o republicanismo há de constituir a melhor forma de governo”906. Foi assim que Patrizi
afirmou ser a “República preferível ao principado”907. Tanto Guicciardini quanto
Maquiavel endossam em outra ocasião essa propensão, mesmo que aquele pareça por
vezes tímido em suas declarações, concluindo por fim “uma cidade é mais feliz sob o
governo popular do que sob o de um príncipe”. 908 Mas o governo republicano tal como
pensado aqui e idealizado mais tarde por Giannotti (mas não só por ele) num modelo
veneziano era uma forma mista de governo. Falando sobre a circularidade dos regimes,
Maquiavel estabelece assim que a melhor forma de governo seria aquela onde
participariam todas as outras formas de governo num sistema de auto vigilância e mútuo
controle e os grandes legisladores por isso “escolheram sempre um sistema de governo de
que participavam todas, por julgá-lo mais sólido e estável: se o príncipe, os aristocratas e o
povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente”.909
A mesma noção também pode ser vista em Guicciardini que, segundo Skinner, “se tiver de
escolher, sua preferência sempre se voltará para uma forma mista de governo republicano,
já que essa lhe oferece o melhor meio de assegurar que “a proteção da liberdade” seja
garantida “contra qualquer tentativa de oprimir a República” 910.
Maquiavel já havia dado nota de estar preocupado com a maneira com que a
república deveria ser administrada, ou seja, onde deveria estar o centro das decisões, essa
era uma discussão corrente entre alguns pensadores que como resposta tradicional
estabeleceram “que a base de um República bem ordenada deveria ser antes larga que
905
SKINNER, 2003, op. cit., p. 82.
Ibid., p. 178.
907
Ibid.
908
Ibid.
909
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., 25.
910
SKINNER, 2003, op. cit., p. 178.
906
191
stretta, sendo mais adequado ela consistir num Consiglio Grande do que na hegemonia de
uma pequena elite.”911
Essas manifestações demonstram evidente desprezo pela vida política florentina,
beirando a um idealismo, e mesmo Maquiavel parece por vezes fugir “à verdade efetiva
das coisas” reconhecendo que em Florença se tem um exemplo de uma república que sem
conseguir completar seu ciclo não consegue chegar “a ordem perfeita” 912, mas já vimos
que em muitos momentos homens do porte de um Salutati ou Bruni também tiveram seus
momentos de devaneios, por vezes atribuindo a Florença a função de herdeira de Roma e
guardiã da liberdade republicana 913.
Dito isso, Maquiavel constata se referindo ao caso dos Tarquínios, mas uma vez
em tom polêmico, e afirma:
Não quero silenciar sobre as desordens ocorridas em Roma, entre a morte
dos Tarquínios e o estabelecimento dos tribunos. Mas não aceitarei as
afirmativas dos que acham que aquela foi uma republica tumultuada e
desordenada, inferior a todos os outros governos da mesma espécie a não
ser pela boa sorte que teve, e pelas virtudes militares que lhe
compensaram os defeitos. Não vou negar que a sorte e a disciplina
tenham contribuído para o poder de Roma; mas não se pode esquecer que
uma excelente disciplina é a consequência necessária de leis apropriadas,
e que toda parte onde estas reinam, a sorte, por sua vez, não tarde a
brilhar.914
Em outro momento ele parece se demonstrar vacilante em relação ao seu
postulado inicial sobre a natureza do homem, que seria de fundamental importância para
demonstrar sua tese, segundo a qual os homens sempre agem mal, base, portanto, e origem
dos conflitos sociais, já que estes sempre buscam seus próprios interesses em detrimento
do bem público. Demonstrar que as leis podem, por outro lado, corrigir essa maldade é
uma incoerência argumentativa que dificilmente ele conseguiria resolver, mas o que se
nota, de acordo Bignotto,
Em Maquiavel, ao contrário, as leis ocupam o lugar que os Tarquínios
ocupavam enquanto vivos: o lugar do medo original da morte que faz
com que o s homens desejem algo além de seus interesses pessoais. O
caso florentino mostra, no entanto, que a simples existência de leis não é
a garantia da vitoria do bem comum sobre os interesses individuais que
911
Ibid., p. 179.
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 23.
913
GARIN, op. cit., p. 24.
914
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 31.
912
192
caracteriza as grandes repúblicas. Florença tivera nos Médicis seus
Tarquínios, mas fora incapaz de encontrar seu Brutus. A cidade
permaneceu prisioneira dos interesses dos grupos, sem atingir a forma
maior da organização humana que é a república. Sua evocação no
capitulo anterior, que tanto nos surpreendera, parece, pois, destinada a
demonstrar a importância de se tomar Roma como paradigma para o
estudo da liberdade, uma vez que ele foi capaz de transformar o medo da
morte, e o egoísmo natural dos homens, na melhor forma de
organização. 915
Em suma, ele parte de dois pontos cruciais e estratégicos, adotando, assim, como
bem percebeu Skinner, “uma postura inteiramente heterodoxa ao debater o conceito de
liberdade republicana”916. Primeiro já lança dúvida sobre “dos que acham que aquela foi
uma república tumultuada”917 ao mesmo tempo em que reitera o princípio básico do
discurso republicano que seria a garantia das liberdades. Mas outra vez desvia-se em seu
exame das particularidades de Roma e surpreende ao afirmar que “os que criticam as
contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as
causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma”918. De fato, se o objetivo
de uma república é garantir a não aglutinação de poder nas mãos das facções, como fazer
para satisfazer os ânimos da populaça de da aristocracia sem, no entanto, provocar a
dissolução das liberdades? Sua resposta está no fato de que em Roma as leis que
garantiram a liberdade da república foram resultado justamente da desunião. Esse espaço
seria a garantia de que a índole humana para o mau na busca dos próprios interesses seria
freada num movimento contraditório onde o produto destes tumultos se voltariam contra a
própria razão de sua criação, como percebeu Bignotto, gerando um espaço para que sob o
império das leis haja um controle e manutenção do irracional ou faça surgir um novo tipo
de racionalidade em oposição à irracionalidade figurada nos conflitos:
Maquiavel fala da “fortuna” no segundo capitulo como um dos agentes da
construção de Roma; porém a existência dos conflitos na origem de suas
instituições mostra exatamente a insuficiência de se pensar sua criação
simplesmente levando-se em consideração as obras do acaso. As leis que
visam regular os conflitos, longe de se contentarem em aprisionar a
irracionalidade dos desejos humanos em uma camisa de força que
impediria sua manifestação, criam o espaço no qual eles adquirem uma
nova forma de racionalidade.919
915
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 84.
SKINNER, op. cit., p. 201.
917
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 31.
918
Ibid.
919
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 87.
916
193
Evidentemente seus contemporâneos não conseguiram apreciar sua tese sobre os
conflitos. Concordavam que virtù implicava participação política ativa, mas não
conseguiram perceber que os tumultos de Roma “resultavam”, como explica Skinner,
“exatamente de uma intensa participação política, e portanto expressavam a mais alta virtù
cívica”920. A liberdade republicana em Maquiavel, “mais do que uma solução permanente
para as lutas internas de uma cidade, é o signo de sua capacidade de acolher forças que,
não podendo ser satisfeitas, não deixam de buscar meios de se exprimir.” 921
Essa defesa dos conflitos, por outro lado, parece assenta-se talvez principalmente
no próprio princípio antropológico da natureza humana, que ao mesmo tempo que se
alimenta das principais sínteses medievais trata-a como positiva, através de mecanismos de
ressignificação, do ponto de vista da liberdade republicana e do engajamento político. Isso
explica os ataques às “virtudes” da religião cristã desenvolvidos em face dos elogios da
virtù romana. Seus predecessores geralmente não viam dificuldades em associar virtude
cristã ao conceito de virtù. “Ao contrário, não poucas vezes deixaram claro que
consideravam perfeitamente compatíveis a virtù e as virtudes”922. Mas a religião de
Maquiavel, ou melhor, a religião que este analisa, é de caráter “pagão” e nacional, cujo
sacrifício não seria o martírio por amor ao outro ou fé, mas pela pátria. Daí a necessidade
de imprimir nos espíritos a reverência pelo culto divino, evidentemente uma sociedade
guerreira precisa de uma religião compatível, e não deuses que se oferecem como
sacrifício, essa noção seria não só contraditória, mas incompatível. Para Maquiavel,
Os príncipes e as republicas que querem impedir a corrupção do Estado
devem sobretudo manter sem alterações os ritos religiosos e o respeito
que inspiram. O índice mais seguro da ruína de um país é o desprezo pelo
culto dos deuses: o que será fácil de compreender se se souber o
fundamento da religião do país; pois toda religião tem como base alguma
instituição principal923.
Maquiavel, segundo Skinner, ataca os pressupostos de que possa haver
compatibilidade entre as noções de virtù e as virtudes cristãs, como, por exemplo, expresso
por Patrizi. Ele afirma: “todos os cidadãos devem ser educados de um modo que os leve a
920
SKINNER, 2003, op. cit., p. 202.
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 86.
922
SKINNER, 2003, op. cit., pp. 202-203.
923
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 61.
921
194
empenhar-se, firmemente, na aquisição de virtùs”924 num jogo de apropriação onde atribui
para o conceito uma conotação próxima a das virtudes cardeais. Maquiavel, por outro lado,
Insiste em que, se estivermos genuinamente empenhados no ideal da
virtù, e concordamos com a decorrente obrigação de situarmos os
interesses da pátria acima de todos os demais, então não poderemos
continuar supondo que um homem virtuoso e um homem de virtù
necessariamente haverão de se portar da mesma forma. Pois não podemos
imaginar que virtudes como a bondade, a sinceridade e o respeito à
justiça sempre – ou mesmo frequentemente – se mostrem compatíveis
com um firme propósito de alcançar o bem geral da comunidade. 925
O sentido da moralidade política é, portanto, o mesmo, tanto no Príncipe quanto
nos Discursos, mas o mais importante talvez seja aquilo que percebe Sabastian de Grazia.
Conforme comenta Lídia Maria Rodrigo, para este, a filosofia política de Maquiavel, ao
estabelecer como meta pôr lado a lado a natureza humana e o bem comum, nos lega sua
maior contribuição, ao demonstrar que os brutos devem estar a serviço do bem de todos:
Uma vez que eles não podem atingir esta meta guiados pela sua natureza,
resta a alternativa de construir um caminho artificial: esse é o sentido
mais profundo da arte política em Maquiavel. Demandando a luta contra
tendências ruptivas e desagregadoras que o homem carrega dentro de si, a
construção de uma comunidade sociopolítica ou Estado deve ser fruto de
uma construção artificial, obra de uma arte política.926
Isso se aplica também ao legislador, mesmo que sua ação seja considerada
repreensível, mas se está a favor das garantias republicanas deve ser justificada. Mesmo
não possuindo um senso de otimismo em relação ao homem Maquiavel estabelece que é
preciso fazer bom uso do que é típico no homem, a força e astúcia, nesse sentido, conforme
Skinner, ele, “invariavelmente vê o mundo da política como aquele em que os métodos
racionais do legislador precisam ser sempre completados pela ferocidade do leão e a
astucia da raposa”927. É como compreendeu Bignotto: “(...) uma sociedade que não é mais
capaz de canalizar seus conflitos por meio de seus mecanismos legais, não é mais uma
sociedade livre”. 928
924
SKINNER, 2003, op. cit., p. 203.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 203.
926
RODRIGO, Lídia Maria. Maquiavel: educação e cidadania. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, pp. 36-37.
927
SKINNER, 2003, op. cit., p. 206.
928
BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 88.
925
195
O problema talvez esteja no caráter universal que Maquiavel parece querer dar à
sua noção de conflito em uma sociedade, confundido seu leitor numa contradição que em
vão tenta desfazer no capítulo 37 do livro primeiro, por exemplo. Ele parece não ter
percebido o caráter distinto de Roma em contraste com sua Florença. Seu engano foi
considerado por Guicciardini como ingênuo, para este “louvar a desunião é como elogiar a
doença de um enfermo, devido à virtude do remédio aplicado para curá-lo”929. É possível
que essa reação esteja ligada a noção de que os florentinos possuíam em relação ao
governo de Veneza, um tipo de estrutura política mista que de uma forma ou de outra lhes
garantia serenidade administrativa. Assim, mais do que uma reação contra os pressupostos
humanistas, seria possível compreender a defesa dos conflitos em Maquiavel como
oposição ao modelo veneziano. O mesmo aconteceu a Giannotti, mas num caminho
oposto, e sua defesa do regime misto para Florença, acreditando que ela possuía todas as
condições de estabelecer um regime misto, numa releitura de Aristóteles, tão anacrônica
quanto à elaborada por Maquiavel da História de Roma de Tito Lívio. Mas a queda da
República só tornou visível o caráter inconsistente destas teorias. Segundo Touchard,
Maquiavel pensa em termos de Itália exatamente nos pontos em que
Dante pensava em termos de cristandade. A fragmentação da Europa é
demasiada antiga para que, tendo cada uma das partes seguido seu
próprio caminho, os materiais de que a reflexão política dispõe
contribuíam para diversificar as orientações, para abrir mais o leque dos
problemas políticos. No entanto, a unidade da respublica christiana não
acabou de morrer nos espíritos; anima ainda importantes doutrinas. Mas a
pluralidade dos estados torna necessária uma teoria das suas relações,
enquanto a evolução das respectivas estruturas revela a existência de
conflitos entre forças sociais e concepções cujas origens são muito
anteriores ao século XVI930.
Isso distancia a teoria maquiaveliana da noção que constantemente lhe é atribuída
de racionalidade política, deixando mais próxima de uma concepção ideal da coisa. Mas
isso também não seria verdade em relação a todos os outros republicanos? Para Bobbio,
A republica dos republicanos e portanto, também aquela que você
[Viroli] subscreve, é uma forma de Estado ideal, um “modelo moral”,
como foi chamada a republica de Montesquieu, que influenciou os
revolucionários franceses: um Estado ideal que não existe em nenhum
lugar, que existe apenas literariamente (...) tão heterogêneos que é difícil
929
930
Apud SKINNER, 2003, op. cit., p. 206.
TOUCHARD, 2003, op. cit., p. 15.
196
ligar um ao outro com um fio consistente: de Tito Lívio a Mazzini e
Cattaneo, passando por não sei quantos escritores medievais e modernos.
Entre eles há escritores propriamente políticos e historiadores que
escreveram, como Maquiavel, comentários sobre a história de Roma,
considerada uma história exemplar. O Estado como deveria ser, e como
não é devaneios do futuro ou nostalgia do passado931.
A república de Maquiavel, tanto quanto sua teoria política, pode ser compreendida
nesse universo de constantes mudanças e de reminiscências de um passado que era
identificado como sendo parte deles mesmos. O declínio do ideal de liberdade entre os
humanistas e a noção fatalista da política de Maquiavel são sintomas de uma inexorável
realidade que não permitia mudanças numa ordem onde os governos são necessariamente
obrigados a aceitar e viver num eterno ciclo de corrupção e restauração onde as ações
humanas parecia cada dia mais insuficientes. Segundo Skinner,
Se nos afastarmos um decênio dos discursos de Maquiavel, e nos
voltarmos para as Máximas e a história de Guicciardini, encontraremos
uma noção bem mais pronunciada do desequilíbrio entre os poderes da
fortuna e as capacidades do homem. As Máximas começam algumas
reflexões algo convencionais sobre o fato de que a fortuna “desempenha
papel tão grande” em nossas vidas e “tem um poder tão grande sobre os
assuntos humanos” contudo, pouco adiante já se faz ouvir uma nota de
desespero. Guicciardini admite que “todas as cidades, todos os Estados,
todas as regiões, são mortais”, e que “tudo, seja por natureza, seja por
acidente, acaba terminando”, não obstante nossos esforços para
impedir”932.
Mesmo nesse horizonte Maquiavel não buscou uma defesa cega dos conflitos,
pelo contrário, mesmo que sua teoria pareça meio ideal e anacrônica, foi uma estratégia
para tentar burlar os efeitos da Fortuna nas ações humanas, mas também uma inserção,
nada cirúrgica, devemos acrescentar, diferente na maneira de pensar a própria liberdade e
as instituições republicanas933.
Os Discursos mais do que o Príncipes, nesse sentido, devem ser vistos como seu
último suspiro em direção à superfície e mesmo que pela última vez respirar um pouco
mais de liberdade.
931
BOBBIO & VIROLI, 2002, pp. 13-14.
SKINNER, 2006, op. cit., pp. 207-208.
933
Ver BIGNOTTO, 1991, op. cit., p. 88.
932
197
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após trilhar o caminho que nos trouxe a esse ponto, não estamos certo se
conseguimos responder o dilema dessa pesquisa, mas, por outro lado, tentamos demonstrar
a importância de Maquiavel para nossa reflexão política atual, não como um dado efetivo
no sentido de perenidade, mas como um conjunto de possibilidades para pensar nossa
própria relação com o passado. Vimos a importância de conpreendê-lo enquanto autor em
situação, mas sem agredir sua obra de maneira degradante ou fazermos elogios sem a
devida ponderaçao sobre seu ato de escrita.
Isso não significa que as várias leituras sobre Maquiavel estejam “erradas”, mas
trata-se de pontos de vistas diferenciados, como vimos. O próprio Maquiavel em sua
leitura dos clássicos disponíveis em sua época também fez sua própria leitura, por vezes
adaptando à sua própria realidade, como no caso do texto do historiador romano Tito
Lívio. Sua leitura, portanto, é muito particular, só se tornando compreensível à luz de sua
realidade, aliás, segundo Cordão,
Compreensões que evidenciam a ideia de que Maquiavel valoriza
mais as ações humanas do passado do que os escritores que as
representaram. Ou seja, interessa-se mais pelas ações de Cipião,
Rômulo, Fábio, Aníbal, Licurgo, entre outros heróis, do que pelas
narrativas que Tito Lívio, Tácito, Tucídides, entre outros historiadores
antigos, escreveram a seu respeito934.
A frase “ninguém é uma ilha” pode muito bem explicar um pouco do que
tentamos mostrar com respeito aos instrumentos de leitura que moveram essa pesquisa. O
caráter heterogêneo da obra maquiaveliana só nos mostra o quanto também somos
devedores do legado dos clássicos da filosofia política para nossa reflexão política e social
na atualidade, assim como toda a reflexão dos autores da Renascença possuíam de uma
forma ou de outra sua própria dívida com o medievo.
A obra de Maquiavel, portanto, forjada no interior da Itália renascentista, é tão
complexa quanto era a Itália desse momento, mas isso não é verdade também com relação
ao espírito humano? Se essa complexidade nos permite encontrar nossas próprias verdades,
isso se deve também ao caráter múltiplo de nossas ações que nunca é também simples
934
CORDÃO, op. cit., p. 37.
198
quanto a primeira vista podem parecer. Isso pode não ser um cachimbo, como bem nos
advertiu Foucault, e Maquiavel pode ser mais desconcertante quanto nossa percepção
denuncia. De acordo Sérgio Bath, “a pretexto de comentar fatos preteridos, os Discursos
são, uma obra política, que contém mensagem para os contemporâneos”. Mas nem tudo e
tão simples. E entrar no universo psicológico do ato de escrever desse autor e ver por entre
as nuvens que sufocam nossa própria leitura desse ato por si só já deveria nos causar certa
reverência pelo passado, mas nossa curiosidade não permite o silêncio, e quebramos o
próprio silêncio desse autor, dando intenções e motivos para seu ato linguístico. Mas é essa
curiosidade que faz com que os clássicos sobrevivam entre nós e persistam em nos dizer
algo sobre o passado. Segundo Cordão,
Ítalo Calvino chamou a atenção para “(...) o fato de que ler os clássicos
parecem estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece
os tempos longos, o respiro do otium humanista”. Porém, reitera que
clássicos são justamente aqueles livros que persistem mesmo quando há
uma predominância na atualidade de elementos incompatíveis com
sua leitura. Com efeito, no mundo veloz em que vivemos, em que há
uma grande exigência de produção acadêmica, o tempo não nos parece
favorável para ser utilizado com leituras “lentas” e “demoradas”; leituras
de livros, como o Dom Quixote, de Cervantes. Mas, ainda assim, o
fazemos.935
O significado dessa persistência pode não estar nos clássicos em si, mas na
necessidade de compreender nosso passado, mas ainda assim nossa própria compreensão
deste se dá por meio de mecanismos anacrônicos que persistem em nos dizer mais sobre
nós mesmos que este mesmo passado que julgamos explicar.
Tentamos, portanto, compreender mais do que explicar o conceito de república
desse autor. Se encontramos uma verdade nele foi um deslize, foi um não ceder à tentação
de silenciar diante da vontade da percepção.
A república de Maquiavel é mais intrigante do que a noção de astúcia presente
durante toda sua obra. Mas resulta de uma noção do outro sobre ele mesmo que vê a
necessidade de participação ativa na política, noção essa não presente em seus
contemporâneos, segundo ele. Daí o caráter reacionário de sua república nos Discursos
como quer fazer crer Manieri, “tem-se”, diz ele,
935
CORDÃO, op. cit., p. 157.
199
Frequentemente, concebido Maquiavel como um pensador moderno. Isto
se explica, principalmente, por suas ideias sobre a fundação do Estado.
Ao que tudo indica, essa concepção foi motivada pela leitura exclusiva de
O príncipe. Mas quando vamos a outra obra de importância política como
os Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, notamos um
Maquiavel critico com relação a sua época, bem como um intelectual
desejoso de promover os bons tempos de gregos e romanos antigos.
Maquiavel via sua época como um período de decadência: “embora em
nossos dias somente num país haja algumas cidades independentes, na
Antiguidade todos os países eram povoados por pessoas livres” 936.
Mas, por outro lado, vimos que essa noção de decadência também foi uma
preocupação entre os humanistas, que perceberam que a falta de interesse civil pela
preservação da liberdade entre seus contemporâneos consistia na maior ameaça a esta 937.
Nesse sentido, Maquiavel surge como um moderno, sim, mas no sentido de compartilhar
com os seus dos mesmos pressupostos, entre estes os da admiração pelo passado em
detrimento do seu presente. É nesse sentido que ele argumentou em favor de uma religião
nacional e dos “bons costumes”:
Os dirigentes de uma república ou de uma monarquia devem respeitar os
fundamentos da religião nacional. Seguindo este preceito, ser-lhes-á fácil
manter os sentimentos religiosos do Estado, a união e os bons costumes.
Devem, ademais, favorecer tudo o que possa propagar esses sentimentos,
mesmo que se trate de algo que considerem ser um erro. Quanto mais
esclarecido, e maior o seu conhecimento da ciência da natureza, mais
firmemente devem agir assim. 938
Dizer que Maquiavel não é um moderno em função de sua admiração pelo
passado clássico e pelo fato de ser crítico “com relação à sua época, bem como um
intelectual desejoso de promover os bons tempos de gregos e romanos antigos”, não faz
muito sentido num contexto intelectual onde a ordem do dia, pelo menos no geral, foi
elogiar esse passado clássico em detrimento de uma Itália fragmentada e corrupta.
Maquiavel não rompe com seus contemporâneos nem mesmo no estilo da escrita.
Guicciardini esteve ali para notar que Maquiavel não conseguiu perceber o anacronismo de
suas afirmações e o vazio de seu elogio pelo passado, mas também para denunciar a
corrupção de sua época figurada no oportunismo dos humanistas e os efeitos nefastos de
uma religião ausente de valores cívicos.
936
MANIERI, op. cit., p. 69.
SKINNER, 2003, op. cit., p. 96.
938
MAQUIAVEL, 2008, op. cit., p. 61.
937
200
O que foi valorizado por Maquiavel, como percebeu Manieri, “não é uma espécie
de algo “novo”. A “novidade” observada em Maquiavel “parece resultar de um modelo já
prefigurado e que o passado nos revela”. Por outro lado, ele alerta que o próprio conceito
de “moderno” é uma classificação posterior939. O ponto de retorno na obra de Maquiavel
foi um lugar comum para sua época. Se ele foi um moderno ou não, não podemos afirmar
além do que nossa linguagem nos permite, isso em função de não sermos apenas uma
lacuna, nem mesmo o ponto de desaparecimento do discurso da ordem de uma longa e já
estabelecida instituição discursiva. Maquiavel pode ser um moderno, no sentido do que
afirmamos, mas apenas se o interior do conceito, mesmo em sua origem posterior, tornar
compreensível suas ideias em relação ao seu mundo particular.
939
MANIERI, op. cit., p. 67.
201
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