revista casa de machado

Transcrição

revista casa de machado
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REVISTA CASA DE MACHADO
BARROS, Hudson dos Santos & SILVA, Rita de Cássia Gemino da. (orgs.)
Rio de Janeiro
Faculdade Machado de Assis
2011
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 4
2. EDITORIAL .................................................................................................................... 8
2
3. ARTIGOS CIENTÍFICOS .............................................................................................. 9
3.1
SAUDADE
DE
NÓS
MESMOS:
VISÕES
SOBRE
A
ABOLIÇÃO
DA
ESCRAVATURA E A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NA OBRA DE MACHADO
DE ASSIS
Mariana da Silva Lima .......................................................................................... 10
3.2 O IMAGINÁRIO E A CRIATIVIDADE COMO BASES DA CRIAÇÃO POÉTICA
Rita de Cássia Gemino da Silva .............................................................................. 21
3.3 O LEGADO TEÓRICO DOS ESCRITORES NORTE-AMERICANOS: LITERATURA,
VERDADE E TRADIÇÃO NA CRÍTICA DOS SÉCULOS XIX E XX
Hudson dos Santos Barros ................................................................................ 35
3.4 AS CONSTRUÇÕES DE RELATIVIZAÇÃO EM CARTAS QUINHENTISTAS
Bianca Graziela da Silva .......................................................................................... 44
3.5 DESAFIOS DO FEMINISMO: UM MOVIMENTO SEMPRE EM MOVIMENTO
(TEORIA, PRÁTICA EPOLÍTICA)
Maximiliano Torres .................................................................................................. 59
3.6 FELLINI E O CINEMA FELLINIANIO
Julia Scamparini ........................................................................................................ 76
3.7 BOÉCIO E SANTO AGOSTINHO NA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DA DIVINA
COMÉDIA: INFLUÊNCIAS E RUPTURAS
Hudson dos Santos Barros ........................................................................................ 91
3.8 DOIS MEROS PASSEIOS: VARIAÇÕES DO PEQUENO NA OBRA DE ANTON
TCHEKHOV
Mariana da Silva Lima ............................................................................................. 105
3
4. OUTROS GÊNEROS DA ESTANTE DE MACHADO ............................................... 118
4.1 CINEMA NOVO
Eleazar Diniz .............................................................................................................. 119
4.2 CONCURSO LITERÁRIO MARCA ÉPOCA NA FACULDADE MACHADO DE
ASSIS
Américo José Mano Júnior ...................................................................................... 123
4.3 INTIMIDADE
Hudson dos Santos Barros ....................................................................................... 125
4.4 NATUREZA
Maria da Conceição dos Santos ................................................................................. 127
4.4 ESSA SOU EU... ATÉ QUE ME PROVEM O CONTRÁRIO
Conceição de Maria Pacheco da Silva ...................................................................... 128
4.5
EVADIR-SE
Conceição de Maria Pacheco da Silva ...................................................................... 128
4.6
MATEMÁTICA LITERÁRIA
Valkiria de Oliveira dos Santos ................................................................................. 129
4.7 TEMPESTADE EM HATTI
Cássio L. Maia .......................................................................................................... 130
4.8
TEM UNS DIAS
Maria do Socorro Ferreira Mendes ........................................................................ 132
4
4.9
AS DIFICULDADES ME VENCEM OU BRIGO COM A VIDA
Maria do Socorro Ferreira Mendes ........................................................................ 132
Apresentação
LÍNGUA, LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS
Prof. Dr.ª Mirian da Silva Pires1
1
Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela UFRJ e professora de Literatura Brasileira na
UFRRJ.
5
Fundado em 1999, o Curso de Letras da Faculdade Machado de Assis foi pioneiro no
histórico bairro de Santa Cruz. Desde então, há mais de dez anos, esse Curso tem
acrescentado qualidade de vida intelectual à comunidade acadêmica, estimulando o ensino, a
pesquisa e a produção de trabalhos científicos. A criação de uma revista, que contemple parte
dessa produção, é um sonho antigo da Instituição, nascido junto com o próprio Curso de
Letras. A primeira manifestação nesse sentido foi o lançamento, naquela ocasião, da revista
Fama Literária. A revista não vingou, mas o sonho, este, manteve-se vivo e realiza-se agora,
materializado neste primeiro número da revista Casa de Machado.
A escolha do seu título não poderia ser mais feliz, uma vez que homenageia com justiça o
nome da Faculdade, a qual, por sua vez, deve seu nome ao grande mestre das letras, Machado
de Assis. Exemplo de superação e vitória, a biografia do escritor inspirou os fundadores da
Instituição a acreditar que o empenho e a determinação na realização de um plano são os
primeiros passos para uma grande obra. A Casa de Machado surge como parte dos planos da
Faculdade Machado de Assis, e se sustenta pelo esforço empreendedor de seus organizadores,
Rita de Cássia Gemino da Silva e Hudson dos Santos Barros.
A Revista está dividida em três seções temáticas: Língua, Literatura e Outras
Linguagens. A seção Língua da Revista está contemplada pelo artigo de Silva intitulado “As
construções de relativização em cartas quinhentistas”, que investiga as ocorrências de
estratégias de relativização em construções cortadoras e copiadoras, mostrando que tal uso
dos relativos já é verificado desde o século XVI. O corpus do presente artigo, constituído por
cartas quinhentistas, é parte de uma pesquisa mais alentada, que estuda as relativas nos
séculos XVI, XVII e XVIII. O resultado final desse trabalho, adianta Silva, “poderá revelar
interessantes descobertas dessas que são, atualmente, formas tão aceitas no falar de inúmeros
falantes do português, no Brasil ou além mar.”
Abre a segunda seção da Casa o artigo de Lima, “Saudade de nós mesmos: visões sobre
a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República na obra de Machado de Assis”. A
leitura de Lima, centrada no último romance de Machado de Assis, Memorial de Aires,
recupera o mesmo narrador machadiano de fina ironia, que trapaceia seus leitores com a
ilusão de que, agora, já no fim da existência, reconcilia-se com uma visão mais amena da
vida. Lima persegue as pistas que Aires vai deixando nos seus apontamentos, discreta e
diplomaticamente, como convém ao narrador, quase como um jogo cifrado – cujo código é a
arguta linguagem corrosiva de Machado, que dissimula a má-fé dos personagens por trás de
ações virtuosas. Baseada em John Gledson, no estudo Machado de Assis: ficção e história,
Lima desvela a estrutura paradigmática da narrativa com relação à história social do Brasil no
período registrado por Aires. Ao cabo, como demonstra a análise, Memorial de Aires repisa o
mesmo tema da traição, que vem pontuando os romances anteriores de Machado de Assis,
uma vez que, conclui a articulista, “a traição também pode ser, em grande medida, um
elemento definidor da relação dos brasileiros com o Brasil.”
É importante ressaltar o espírito com que esse primeiro número da revista Casa de
Machado se constrói, ao reunir vários textos sob a rubrica Língua, Literatura e Outras
Linguagens: em suas páginas coabitam artigos com temáticas e abordagens diversas. Assim,
mais do que procurar a interlocução interna entre os textos presentes, é necessário
acompanhar a multivocidade que amplia o alcance da revista. Desse modo, no segundo artigo,
intitulado “O imaginário e a criatividade como bases da criação poética”, Gemino incursiona
pelas veredas do imaginário e suas representações na criatividade poética. Sem descurar da
sustentação teórica e metodológica, Gemino defende a necessidade de uma pesquisa empírica,
livre de regras pré-estabelecidas, que efetivamente contemplem teoria e prática no fazer
pedagógico. O artigo propõe uma educação capaz de, como escreve a própria autora,
“contextualizar as próprias experiências com as experiências vivenciadas no decorrer da vida
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de cada sujeito-criador.” Apostando no aprendizado-experiência que envolva os sentidos, ela
dirá que, ao se tratar de poesia, “esbarramos em toda a carga sinestésica que um texto poético
infere sobre aquele que o lê ou o cria.”
Em “O legado teórico dos escritores norte-americanos: literatura, verdade e tradição na
crítica dos séculos XIX e XX”, Barros vem mapeando considerações em torno da literatura e
sua função na história do pensamento humano, e do povo norte-americano em particular,
garantindo a este uma independência efetiva que não fora lograda com independência política
da Inglaterra. Partindo dos estudos teóricos do século XIX, Barros contrapõe a visão
romântica à leitura realista deste mesmo século. No primeiro momento, autor e obra serão
elevados à dimensão do sagrado. Na tomada crítica do segundo novecentos, apesar da
valorização cientificista que envolve a própria arte, Barros reconhece que a literatura ainda
mantém uma missão heróica, salvadora, capaz de espelhar os erros da sociedade que pretende
corrigir. No século XIX, afirma Barros, “o escritor captura o ritmo estranho e irregular da
vida e torna o texto literário uma forma de testemunho crítico da realidade”. À luz do século
XX, a investigação nos domínios da linguagem elucida a verdade como construção e se torna
capaz de “conduzir o leitor, através do poético, a um envolvimento ativo com um
autoconhecimento significativo.” Desse modo, Barros realça a importância da literatura na
formação cultural e identitária do povo norte-americano, e sublinha: “a descoberta de si e do
outro perpassa a leitura de textos que, com valiosa qualidade estética, testemunharam, ao
longo dos anos, entrelaçamentos de ações humanas”.
O artigo seguinte desloca-se da história nacional e coletiva para a questão mais pontual do
percurso feminista. Em “Desafios do feminismo: um movimento sempre em movimento
(teoria, prática e política)”, Torres discute as desigualdades sócio-históricas nas relações de
gênero, construídas equivocadamente a partir de concepções apoiadas na natureza biológica.
Como afirma Torres, “O corpo é a materialização da dominação, o locus do exercício do
poder por excelência.” O autor vem demonstrando o processo de subjetivação da identidade
sexual, cristalizado na visão patriarcalista da sociedade e no tratamento diferenciado entre os
poderes masculino e feminino, com a supervalorização daquele em detrimento deste. Apesar
disso, o estigma do corpo e suas implicações biológicas não sufocaram a consciência do
feminino como uma condição superável. Portanto, como afirma Torres, “pensar o feminismo
é procurar entendê-lo como um movimento sempre em movimento”, movimento esse que, de
acordo com o próprio articulista, vem de um feminismo singular para se impor, hoje, como
um feminismo plural. Partindo de vários estudos, Torres cita autores como Bachofen, Engels,
Muraro e Bourdieu que encetaram pesquisas no campo das relações humanas, legitimando o
interesse crescente sobre a questão feminina. O autor ainda endossa seu discurso com os
trabalhos pioneiros de mulheres como Mariana Coelho, por exemplo, que ao abominar o
tratamento essencialista da questão contribuiu na construção histórica do movimento de
emancipação paulatina da mulher.
Diversificando ainda mais as abordagens temáticas da revista, O artigo de Scamparini está
voltado para a linguagem cinematográfica, focada na riqueza do cinema de Fellini. Ao longo
de 40 anos dedicados à sétima arte, o cineasta deixou indelével sua marca no tratamento
poético de seus temas, impregnados pelos conflitos humanos, cuja autenticidade de
sentimentos era deflagrada pela leitura onírica do mundo. Fellini, que cresceu numa Itália em
luta para fortalecer a sua identidade moderna em meio à ameaçada de guerra, estréia como
jornalista, ainda em Rimini, cidade natal, abordando os fatos da época sob traços caricaturais.
Mais tarde, em Roma, seus filmes apresentarão esse mesmo desvio na leitura da realidade.
Sob a aparência do cômico ou do grotesco, podem-se inferir tomadas implicitamente políticas.
Nas palavras da articulista, “O exagero, o grotesco, o onírico, e os recursos que fazem rir
fazem também evadir, e o espectador mais uma vez precisará atentar a uma camada de
significação que se localiza além do mais sedutor para captar discursos sobre a sociedade, seu
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país, a política.” Com esse trabalho, recortado de sua tese de doutoramento, Scamparini
contribui para ampliar a filmografia felliniana, ainda de pouca divulgação no Brasil, apesar da
sua importância no âmbito internacional.
“Boécio e Agostinho na escrita autobiográfica da Divina Comédia: influências e
rupturas” é mais uma valiosa contribuição de Barros para a revista. No seu artigo, Barros
especula sobre a Idade Média, analisando um dos autores importantes da época: Dante
Alighieri. Num período em que a experiência individual deveria ser subsumida na experiência
da vida cristã, voltada para a salvação da alma, Dante concebe A Divina Comédia, que
sustenta com a “escrita de si”, conjugando bios e poiésis. Segundo Barros, é baseado no
exemplo de Boécio e Agostinho, como paradigmas de autoridade, que Dante equaciona, na
sua arte, a autonomia do pensamento individual e a entrega do espírito cristão. Tanto o exílio
do primeiro quanto a narrativa da ascese pessoal do segundo justificaram o caráter
autobiográfico de suas respectivas obras. Esse caráter Dante assimila para transgredir, dando
forma poética à própria busca pelo caminho da salvação religiosa, como esclarece Barros:
“Ainda que detalhes não sejam revelados, o poeta florentino permite, de forma alegórica, a
retratação de uma persona impulsionada por valores bem definidos e que exige uma
remodelação da conduta à luz da reflexão, do poético e da religião.” Na sua crítica a uma
Igreja degradada pela atuação de papas corrompidos, Dante defende a ideia de valores
universais, resguardados na pureza da Mãe Igreja jamais conspurcada. Na Comédia, afirma
Barros, é possível encontrar “a desordem das estruturas político-religiosas de sua época”,
cabendo ao poeta elevar-se acima dessa conjuntura, dando à própria isenção uma tonalidade
ao mesmo tempo universal e individualista.
O último artigo da Revista, intitulado “Dois meros passeios: variações do pequeno na obra
de Anton Tchekhov”, versa ainda pelo cânone universal. Neste trabalho, Lima aborda a
poética de Tchekhov e a notável modernidade da sua crítica, vazada em textos curtos, de
temas insignificantes, na virada do século XIX para o XX. Mantendo-se conforme à visão
realista da época, Tchekhov, com uma sensibilidade genial, singulariza sua narrativa com o
tratamento insólito que dispensa às coisas miúdas. Lima nos mostra que Tchekhov,
defendendo a neutralidade diante da matéria narrada, mantém seu narrador protegido sob o
distanciamento da focalização externa. No entanto, através do discurso indireto e da
contaminação do olhar do personagem, esse mesmo narrador, sem abdicar da objetividade,
consegue incursionar pelos sentimentos do personagem, ao mesmo tempo que cativa a
simpatia do leitor. Nas palavras de Lima, “Tchekhov realiza uma curiosa imersão da voz
narrativa na psiquê das personagens protagonistas – assim, o escritor expõe acontecimentos
por si só banais, mas de modo inusual”. Com pleno domínio da linguagem literária, Tchekhov
classifica de “truque” o seu talento de transformar o pequeno e o banal em obras grandiosas.
Em seu artigo, Lima analisa como ocorrem esses truques.
Inaugurando a última seção da Revista, expressivamente denominada Outras
linguagens, Diniz nos convida a um passeio pela cena cinematográfica dos anos 50,
estendendo-se aos anos 80, com ênfase no memorável Cinema Novo. Cinéfilo confesso, o
autor nos apresenta um panorama bastante rico daquele momento, lembrando cineastas
importantes e suas obras premiadas. De modo geral, o expectador brasileiro, pouco informado
da tradição cinematográfica do país, costuma relacionar o Cinema Novo aos anos 60, com
referência quase exclusiva a Glauber Rocha. Diniz corrige essa falha da nossa memória, ainda
mostrando que “O que ficou (...) não só deu visibilidade internacional ao nosso cinema como
também consolidou o que agora se pode chamar de Cinema Brasileiro.”
Em seguida, Mano faz o resgate da memória cultural da FAMA ao recordar o Prêmio
de Literatura FAMA em Prosa e Verso. A seção finaliza com a contribuição literária de
professores e alunos, concretizando, assim, as palavras de Mano: “A publicação desta revista
refresca nossa memória e nos estimula a progredir.”
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Agradeço a Rita Gemino e a Hudson dos Santos Barros, organizadores da revista, o
convite para fazer a apresentação desse primeiro número, o qual, desejo crer, abrirá as páginas
para muitos outros números que serão acolhidos na Casa de Machado. E que entrem, agora,
os leitores
Editorial
A produção de uma publicação acadêmica é parte essencial do processo de integração
entre ensino, pesquisa e extensão; trata-se de uma etapa que consolida o papel do professor
como construtor de saberes e o papel da instituição de ensino superior como elo indispensável
de incentivo à formação profissional. Uma produção de tal importância, além de divulgar
conhecimentos e estimular direcionamentos profissionais, reflete o compromisso conjunto de
renovação do pensamento; reflete também a vontade conjunta de confrontação daquela
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passividade que impossibilita o enriquecimento do humano; por fim, espelha o desejo de
contribuição social através da corroboração de valores que prezam a elaboração contínua de
bens científicos, pedagógicos e culturais. É, portanto, adotando tais perspectivas que esta
publicação afirma sua vitalidade: o conjunto de saberes aqui estruturados se lança a público
com o intuito de legar uma marca duradoura de intervenção formativa nas mentes dos mais
variados leitores.
A revista Casa de Machado foi organizada sob a tutela de uma profícua
multiplicidade. Está dividida em duas partes principais: a primeira é composta por artigos
científicos escritos por professores (mestres e doutores pesquisadores) e abrange textos que
trafegam pelos conhecimentos das áreas de literatura, crítica literária, lingüística, pedagogia,
cinema, história, sociologia e filosofia. Em determinados textos, duas ou mais dessas áreas
estão entrelaçadas de modo tão intenso que desafiam classificações rígidas sobre a
preponderância de um campo de atuação. Esses artigos seguem normas acadêmicas
específicas, por isso estão marcados por um padrão. Esse fato, contudo, não minimiza o vigor
da produção tampouco a diversidade metodológica. A segunda parte da revista abarca textos
de maior liberdade formal; a seção intitulada “outros gêneros da estante de Machado”
contempla tanto escritos de valor epistemológico quanto artístico. Os gêneros aqui presentes
são o ensaio, a poesia e o testemunho. Trata-se de um relevante espaço de dinamização do
poder da linguagem na construção renovada da criatividade, da reflexão e da emoção. Nessa
seção, temos a participação de professores e alunos, fato esse que corrobora ainda mais essa
renovada construção. É nessa integração entre docentes e discentes que esta revista consolida
de modo eficaz o papel do ensino superior como provocador de autonomia e como defensor
da liberdade de expressão.
Abrimos, assim, esta publicação conduzidos por uma gratificante satisfação pela
concretização de uma importante via de formação acadêmica. Os textos aqui presentes são
resultado do esforço de cada autor em sua busca contínua pela maturidade intelectual. São
escritos que traduzem o íntimo desejo de superação do óbvio, de revitalização do
entendimento humano. É partir desses pressupostos e da inspiração na argúcia da autonomia
crítica machadiana que a revista Casa de Machado é inaugurada. Mais do que apenas uma
entre outras, pretendemos que nossa revista seja uma valorosa fonte de renovação do
pensamento e de interesses assim como de edificação de novas visões de mundo.
Rita Gemino & Hudson Barros
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ARTIGOS CIENTÍFICOS
SAUDADE DE NÓS MESMOS:
VISÕES SOBRE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
E A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NA OBRA DE
MACHADO DE ASSIS
Mariana da Silva Lima2
2
Doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ e bolsista da FAPERJ.
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RESUMO: O ensaio visa analisar o modo como Machado de Assis abordou em sua obra dois eventos
fundamentais para a História do Brasil: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. Ocorridos no
biênio de 1888-1889, esses acontecimentos nos remetem de imediato para o romance Memorial de Aires, cuja
ação se desenrola nesse período, e para a série de crônicas intitulada “Bons dias!”, redigida nesse intervalo e
registrando os eventos, por assim dizer, no calor da hora.
Palavras-chave: Machado de Assis; crítica e interpretação; literatura e história.
1. Considerações iniciais
Este ensaio visa analisar o modo como Machado de Assis abordou em sua obra dois
eventos fundamentais para a História do Brasil: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da
República. Ocorridos no biênio de 1888-1889, esses acontecimentos nos remetem de imediato
para o romance Memorial de Aires, cuja ação se desenrola nesse período, e para a série de
crônicas intitulada “Bons dias!”, redigida nesse intervalo e registrando os eventos, por assim
dizer, no calor da hora.
Se o contexto histórico e político do período é bastante evidente nas crônicas – como
espero demonstrar na segunda parte deste texto –, o mesmo não costuma ser dito a respeito do
romance em questão. Com a óbvia exceção da parte do enredo relacionada ao barão de Santa
Pia, a crítica tem sido unânime em dissociar os acontecimentos do Memorial de Aires da
história brasileira. Essa relação foi iluminada por um excelente ensaio de John Gledson,
integrante do livro Machado de Assis: ficção e história, em cujos argumentos me baseio para
a presente análise.
Ocupando a posição especial de último trabalho na obra de Machado de Assis, o
Memorial de Aires é em geral tido como o “canto do cisne” do escritor, como o livro em que
o autor se reconciliaria com a existência. Assim, o fato de o romance ter sido publicado em
1908, ano da morte de Machado, acabou influenciando suas apreciações críticas, a ponto de se
identificar o autor ora com o personagem Aguiar, ora com o narrador Aires. No primeiro caso,
a associação se deve ao retrato de um casal de idosos sem filhos, Aguiar e Carmo, e ao fato de
o próprio Machado ter confessado a Mário de Alencar que sua esposa Carolina havia sido a
fonte de inspiração para a personagem de Carmo. Desse modo, a harmonia e a felicidade do
casal representariam “a contrapartida de uma excessiva preocupação com o pessimismo de
Machado” (GLEDSON, 2003, p. 248).
No segundo caso, a identidade entre autor e narrador deriva principalmente da
narração em primeira pessoa (que leva o leitor a acreditar em tudo o que o narrador diz),
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sendo reforçada pela semelhança talvez proposital entre as iniciais dos sobrenomes do autor
Joaquim Maria Machado de Assis e do narrador José da Costa Marcondes Aires. Além disso,
o fato de o narrador ser um diplomata sexagenário suscita aproximações com a cultura de
Machado de Assis e com o fato de que ele estava no fim da vida.
Em ambos os casos, a tentativa de aproximar pontos de vista internos à obra aos do
autor expressariam “o desejo de preencher, com material dos romances, as muitas lacunas em
sua biografia”, como afirma John Gledson (2003, p. 248), e remeteria àquela leitura que faz
ver no Memorial de Aires o sinal de sua “reconciliação com a existência”.
Contudo, o ensaio de Gledson é elaborado no sentido de refutar essas visões. Partindo
de uma abordagem que, como o título de seu livro de ensaios aponta, estabelece ligações entre
a literatura e a história, o crítico afirma que pretende apresentar uma nova visão do último
romance de Machado. Após observar que o livro foi relativamente negligenciado em parte
devido à monotonia do enredo, ele defende que o romance é não só interessante mas também
importante, e isso devido a três elementos principais: primeiro, pela época em que decorre a
ação (1888-1889); segundo, pelo caso amoroso de Tristão e Fidélia, que é mais interessante
do que parece à primeira vista; terceiro, pelo fato de os dois aspectos estarem interligados.
2. A abolição no Memorial de Aires
Gledson inicia sua reflexão questionando os motivos que teriam levado Machado a
situar a ação do romance nos anos de 1888 e 1889, elemento em geral ignorado pela crítica.
As anotações do conselheiro têm início no dia 9 de janeiro de 1888 (quando completa um ano
de regresso da Europa, aposentado da carreira diplomática) e se estendem até
aproximadamente 30 de agosto de 1889 (após a partida do casal Tristão e Fidélia para a
Europa). Desse modo, a ação abrange a Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888, e é
interrompida cerca de três meses e meio antes da Proclamação da República, ainda que a
História pouco pareça se relacionar com o enredo. Essa aparente falta de ligação entre os
acontecimentos do enredo e os da história brasileira levam Gledson a afirmar (2003, p. 249):
“O romance – neste sentido, como Dom Casmurro ou as primeiras quatro obras – parece
tratar quase exclusivamente de assuntos domésticos”.
Segundo Gledson (2003, p. 249), os acontecimentos do Memorial dão lugar a uma
pergunta óbvia que, no entanto, está longe de ter uma resposta fácil: “qual era a opinião de
Machado sobre a abolição?”. A opinião do Conselheiro a respeito seria bastante clara: “é
melhor que a liberdade venha tarde do que nunca, e deveríamos nos alegrar moderadamente”.
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Gledson lembra que a posição do narrador como diplomata “não lhe permitiu tomar partido na
questão e, mesmo em maio de 1888, seus 'costumes diplomáticos' o impedem de participar
das celebrações”. Muitos encerram a questão nesse ponto, considerando que “as opiniões de
Machado são as de Aires, moderadas e equilibradas, mas, no fundo, do lado certo”.
Entretanto, essa solução deriva do equívoco de se acreditar na identidade entre autor e
narrador (equívoco muito presente nas análises críticas dos três outros romances escritos na
primeira pessoa – Memórias Póstumas, Casa Velha e Dom Casmurro), e “equivale a ignorar
uma parte muito importante do enredo, a referente ao Barão de Santa Pia”. Além desses
motivos, de ordem literária, há outro que, de imediato, desautoriza a leitura das opiniões do
Conselheiro como sendo as do autor: sabe-se hoje que Machado tomou parte nas
comemorações do treze de maio desfilando em carro aberto na companhia de Ferreira de
Araújo.
No que se refere ao Barão de Santa Pia, portanto, a situação apresentada é a de “um
fazendeiro tradicional, a favor da escravidão, numa área extremamente dependente do
trabalho escravo – o Vale do Paraíba do Sul”. Ele liberta seus escravos antes do treze de maio,
mas apenas como uma maneira de reafirmar seu direito à propriedade: “Quero deixar provado
que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só
pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso” (10
de abril de 1888). Como veremos, Machado criou uma situação muito parecida em uma
famosa crônica de “Bons dias!”, mas nesse caso faz uso de uma ironia ferina para criticar
pessoas que transformavam algo inevitável em virtude. No caso do Barão de Santa Pia, ele se
mostra até relativamente sóbrio. O Barão morre logo depois (em 20 de junho), o que não
encerra – antes inicia – a questão da libertação dos escravos. Gledson comenta (2003, p. 250):
Até este ponto, simplesmente seguimos um processo paradigmático. Se
acreditarmos, baseados na História, que a Abolição trará “o desmantelo... às
fazendas” (10 de abril de 1888), então é difícil evitar a conclusão, a que já deve ter
chegado, anteriormente, mais de um leitor, de que o grito do vendedor ambulante,
no início do romance – “Vae vassouras!” (...) – significa “Ai de Vassouras!” (a mais
importante cidade da área do Paraíba), bem como “Vendem-se Vassouras!”. A
morte do Barão talvez até simbolize esse processo. Quando Fidélia herda a fazenda,
no entanto, as coisas se tornam mais problemáticas. Porque a moralidade e o
altruísmo parecem impedir a marcha desembaraçada da inevitabilidade econômica.
A análise dessa parte do enredo implica acompanhar as ações de Fidélia em relação
aos escravos, com o objetivo de apreender seu sentido. Quando fica sabendo do ato do pai,
sua vontade é “ir ter com ele, não para invectivá-lo, mas para abraçá-lo; não lhe importam
perdas futuras” (11 de abril de 1888). Ao herdar a fazenda, Fidélia considera a possibilidade
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de ficar lá de vez e administrar a propriedade, mas a refuta, dizendo a Aguiar que ficaria “se
fosse útil, mas parece-lhe que a lavoura decai, e não se sente com forças para sustê-la” (02 de
julho de 1888). Sua atitude para com os ex-escravos se torna mais clara no trecho a seguir,
que Aires anota no dia 10 de agosto de 1888, quando Fidélia retorna de uma visita à fazenda:
Fidélia chega da Paraíba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar
tristes; sabendo que ela transfere a fazenda pediram-lhe que não, que a não
vendesse, ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa e ter o
dom de cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que libertem; são
vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás
de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres
sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não teria onde os empregar logo.
Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não torne à roça, recomendá-los ao
novo dono da propriedade.
A passagem deixa claro que Fidélia se desincumbe de qualquer responsabilidade
concreta quanto ao destino dos ex-escravos, e que tudo o que pode oferecer são palavras,
como a última frase o atesta. Gledson (2003, p. 251) chama atenção para o jogo com “cativar”
e “cativeiro”, que expressaria, segundo ele, no mínimo, insensibilidade, já que a beleza e o
encanto de Fidélia teriam pouco a ver com o caso, e “o que os escravos tentam fazer é forçar
Fidélia a reconhecer sua dívida para com eles: se a fazenda for vendida, é claro que eles não
serão beneficiados”. Ela, por sua vez, “está cada vez mais firme na ideia de vender Santa Pia”
(1o. de agosto de 1888).
Dois meses depois, a verdade se torna mais clara, quando o desembargador Campos
diz a Aires que “os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a deixar
o trabalho, e ela quer ver como está aquilo, antes de concluir a venda de tudo” (03 de outubro
de 1888).
Depois do casamento com Tristão, Fidélia acaba dando a fazenda aos libertos, e fica
claro que ela não faz isso por não poder vendê-la: “Já não se vende Santa Pia, não por falta de
compradores, ao contrário: em cinco dias apareceram logo dois” (15 de abril de 1889). O
verdadeiro motivo não é tão claro, mas pode-se ter uma ideia dele quando Dona Carmo conta
a Aires que Fidélia decidiu-se pela dádiva seguindo um conselho “insinuado” por Tristão, e
que acha “possível que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no
casamento”. Quanto a essa motivação, diz Gledson (2003, p. 254): “Não seria a primeira vez,
na ficção de Machado, em que a satisfação pessoal, de um tipo relativamente trivial, está
ligada da maneira mais cínica a questões públicas mais amplas”, lembrando que o paradigma
pode ser descoberto em Brás Cubas.
Os comentários de Aires a respeito da decisão lançam ainda outra luz sobre a questão.
15
Ele aplaude a mudança de plano (“Se eles não têm planos de ir viver na roça, e não precisam
do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos”), mas em seguida lança uma pergunta
fundamental: “Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhámoça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita coisa neste
mundo mais interessante” (15 de abril de 1888). Como Gledson aponta (2003, p. 254), basta
que o leitor pergunte a si mesmo sobre os verdadeiros resultados da doação para obter uma
resposta: “Claro que os escravos seriam incapazes de operar a fazenda: sem nenhum capital,
nenhum hábito de autonomia, uma herança de subserviência forçada e da ignorância, como se
poderia esperar deles algo diferente?”. Neste ponto, portanto, Aires partilha da indiferença de
Fidélia para com os libertos, e “sua esperança caridosa de que eles possam superar a herança
da História é, suspeita-se, destinada a confortar sua consciência”. Gledson conclui assim sua
análise da parte do enredo relativa à libertação dos escravos:
Três coisas, todas elas fundamentais para uma interpretação correta e frutífera do
Memorial de Aires, surgem dessa análise. Em primeiro lugar, o romance mostra a
verdadeira história da Abolição, e não (como antigamente pensava eu que fosse)
revela uma exceção à história geral. (...) Em segundo lugar, ele introduz dúvidas
sobre as motivações reais que estão por trás do casamento de Tristão e Fidélia (...).
Em terceiro lugar, e acima de tudo, esta análise deveria ensinar-nos a desconfiar de
Aires como narrador. (GLEDSON, 2003, p. 254-5)
Em relação ao primeiro ponto (o modo como o processo da abolição é retratado no
romance) ele escreve:
As ações de Fidélia são, em última instância, não menos típicas que as de seu pai
(que foi, afinal, aparentemente generoso também, ao libertar seus escravos um mês
antes da lei). Nada existe de excepcionalmente perverso aqui (mesmo no caso do
Barão), mas tampouco há virtude verdadeira, exceto nas palavras. As ações seguem
simplesmente os ditames da necessidade econômica, com resultados que serão
desastrosos para os escravos: nem, da parte de Fidélia ou Aires, existe qualquer sinal
real de que o desastre os preocupa. Poderíamos resumir isso citando as palavras,
para mim inesquecíveis, de um historiador – “A abolição libertou os brancos do
fardo da escravidão, e abandonou os negros à sua própria sorte”.
Até aqui, no entanto, a análise de Gledson detém-se na parte do enredo cujas relações
com a História são mais ou menos evidentes. A grande contribuição de sua leitura reside nas
partes subsequentes, em que destrincha o romance até captar nele um sentido alegórico para a
história do Brasil. Voltaremos ao exame do romance no final deste texto; por ora, vejamos
como a Abolição e a Proclamação da República foram vistas nas crônicas.
3. A abolição em uma crônica de “Bons dias!”
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Na crônica da semana em que a lei da Abolição foi assinada, o cronista (2003, pp.
150-152) ironiza que tinha previsto o treze de maio, “tanto que na segunda-feira, antes mesmo
dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha (...). Alforriá-lo era nada; entendi que,
perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar”. No meio do jantar,
levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as ideias
pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo
Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e
imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os
homens não podiam roubar sem pecado.
A nova condição dos negros alforriados é retratada com maestria no modo como o
cronista comunica o fato a seu escravo: diz-lhe que é livre para ir para onde quiser, mas que
também pode ficar; afinal, já conhece a casa, e ainda terá um ordenado – “Um ordenado
pequeno, mas que há de crescer. (...) uns seis mil-réis; (...) No fim de um ano, se andares bem,
conta com oito. Oito ou sete”. O cronista completa: “Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um
peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade”.
Ele lhe explica que o peteleco era um ‘impulso natural’, que não anulava ‘o direito civil
adquirido pelo título que lhe deu’. “Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados
naturais, quase divinos”. Assim, Machado reproduz, por meio da voz narrativa, atitudes
recorrentes em boa parte da elite brasileira. “Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí
para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe
besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e
(Deus me perdoe!) creio que até alegre”. Próximo ao fim da narrativa, revela sua intenção:
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus
eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia
da família, libertava um escravo (...); que esse escravo tendo aprendido a ler,
escrever e contar (simples suposição) é então professor de Filosofia no Rio das
Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que
obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes
que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de
restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Nesse texto, o cronista assume um ponto de vista comum na classe dominante para
melhor evidenciar o absurdo de suas atitudes. A situação de Pancrácio ilustra o destino que se
abriu a muitos dos escravos libertos pela nova lei: sem ter para onde ir e sem conhecer outras
funções que não aquelas relacionadas ao trabalho nas lavouras, famílias inteiras se viram, da
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noite para o dia, nas ruas e sem perspectivas de trabalho. Lembre-se das palavras do Barão de
Santa-Pia, com a carta de alforria de seus escravos na mão: “Estou certo que poucos deles
deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que vou lhes marcar, e
alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer onde nasceram” (10 de abril de 1888).
O ano seguinte ao da Abolição da Escravatura testemunhou a Proclamação da
República, e a relação entre esses dois eventos é o tema da crônica que analisarei a seguir.
4. Da Abolição à Proclamação da República
A crônica de 27 de maio de 1888 é composta por um diálogo imaginário entre um
meteorito que havia caído no interior da Bahia mais de um século antes e o oficial da Marinha
José Carlos de Carvalho, chefe da expedição responsável por trazê-lo para o Rio. Quando a
expedição chega à Bahia, contudo, dois vereadores locais tentam impedir que o meteorito saia
do estado, argumentando que ele pertence à Bahia, já que caiu ali3. A pedra pergunta pelo
motivo da objeção:
– Mas por que é que aqueles dois votaram pelo embargo?
– Questão de federalismo...
E o nosso amigo explicou o sentido desta palavra, e o movimento federalista que se
está operando em alguns lugares do império. Mostrou-lhe até alguns projetos
discutidos agora, para o fim de adotar a constituição dos Estados Unidos, sem fazer
questão do chefe de Estado, que pode ser presidente ou imperador.
Aqui o meteorólito, sempre vagaroso e científico, piscou o olho ao Carvalho.
– Carvalho, disse ele, eu não sou doutor constitucional nem de outra espécie, mas
palavra que não entendo muito essa constituição dos Estados Unidos com um
imperador...
Cheio de comiseração, explicou-lhe o nosso amigo que as invenções constitucionais
não eram para os beiços de um simples meteorólito; que a suposição de que o
sistema dos Estados Unidos não comporta um chefe hereditário resulta de não
atender à diferença do clima e outras. Ninguém se admira, por exemplo, de que lá se
fala inglês e aqui português. Pois é a mesma coisa.
Entretanto, confessou o nosso amigo que, por algumas cartas recebidas, sabia que o
que está na boca de muitas pessoas é um rumor de república ou coisa que o valha,
que esta ideia anda no ar...
– Noire? Aussi blanche qu'une autre.
– Tiens! Vous faites des calembours?
– Que queria você que eu fizesse, retorquiu o meteorólito, metido naquelas brenhas
de onde você foi me arrancar? Mas vamos lá, explique-me isso pelo miúdo.
E o nosso amigo não lhe ocultou nada; confiou-lhe que andam por aí ideias
republicanas, e que há pessoas para quem o advento da república é certíssimo.
Chegou a ler-lhe um artigo da Gazeta Nacional, em que se dizia que, se ela já
estivesse estabelecida, acabada estaria há muitos anos a escravidão.
Nisto, o meteorólito interrompeu o companheiro, para dizer que as duas coisas não
3
John Gledson afirma que, ao tomar conhecimento dessa crônica, pensou que a objeção dos dois vereadores
fosse uma invenção de Machado, mas que depois verificou a veracidade do fato, que havia sido noticiado em um
telegrama publicado no Jornal do Comércio no dia 23 de maio de 1888.
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eram incompatíveis: porque ele antes de ser meteorólito fora general nos Estados
Unidos, – e general do Sul, por ocasião da guerra de secessão, e lembra-se bem que
os Estados Confederados, quando redigiram a sua constituição, declararam no
preâmbulo: “A escravidão é a base da constituição dos Estados Confederados”.
Lembra-se também que o próprio Lincoln, quando subiu ao poder, declarou logo que
não vinha abolir a escravidão...
Ao que o oficial replica: “Mas é porque lá falam inglês”. Novamente Machado brinca
com as diferenças do clima para justificar o fato de que ideias estrangeiras se deturpam
quando são importadas para o Brasil. Para os que defendiam que o Federalismo e a República
vinham juntos, Machado lança a pergunta: “mas que tipo de Federalismo? Que tipo de
República?”. E a resposta vem em forma de trocadilho – no ar/ noire; ou seja, essa não será
uma república negra, mas tão branca quanto qualquer outra.
Não apenas isso mas, como a pedra convenientemente nos lembra, a Confederação
do Sul, durante a Guerra Civil, era uma República baseada na escravidão. As lições
deprimentes a serem tiradas da História incluem até Lincoln. Ninguém pode deixar
de ver com que mistura de indiferença e desespero Machado viu o inevitável
advento de uma República branca, dominada por uma oligarquia “federal” – isto é,
com base local, nos Estados – ainda apoiada numa versão da escravidão.
(GLEDSON, 2003, p. 167)
Desse modo, ele mostra a maneira como o sentido da palavra federalismo pode variar,
conforme esse federalismo se dê no Brasil ou nos Estados Unidos. Como observa John
Gledson (2003, p. 169-170),
Machado dava mais crédito às interpretações históricas dos acontecimentos do que
às puramente ideológicas: 'Monarquias' e 'Repúblicas' significavam pouco para ele,
abstraídas de suas raízes sociais e históricas. Esta perspectiva também está na base
de sua oposição ao federalismo (uma repetição das mesmas forças destrutivas que
produziram, por exemplo, a revolta 'farroupilha') e do ceticismo com que ele encara
os casamentos constitucionais de parlamentarismo e republicanismo, ou de
federalismo e Monarquia.
É, portanto, a precisão no modo como diferencia as ocorrências históricas de
fenômenos semelhantes que leva Machado a observar que, no Brasil, a vinda da República se
conciliaria com a estrutura baseada no latifúndio.
5. O significado alegórico do Memorial de Aires
Cabe agora retornarmos ao romance com o fim de extrair algumas conclusões sobre a
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visão que Machado apresenta sobre o biênio de 1888-1889 em sua obra. Gledson (2003, p.
278) defende da seguinte maneira a necessidade de se considerar o enredo do Memorial
paradigmático ou alegórico:
Aqui, as principais chaves para a descoberta do significado alegórico são a traição
em si (que ocorre, como deveríamos lembrar, também em nível social, com a traição
dos escravos por Fidélia) e suas origens em Lisboa (“Em Lixboa, sobre lo mar...”).
Fundamentalmente, os dois jovens traem seu país, tanto de maneira literal, pois
partem para Portugal com o dinheiro ganho no Brasil (e com a escravidão), como no
plano metafórico, com o abandono dos pais postiços, Aguiar e Carmo. O processo,
Machado parece dizer, é contínuo: a história do pai de Tristão, um comissário de
café que se casa com uma brasileira de uma região cafeicultora (...) e depois vende
tudo, voltando para sua terra, é igualmente sintomática em termos de realismo
histórico. Então, sugiro que em seu derradeiro romance, como em obras anteriores,
Machado aborda o condicionamento do Brasil por seu passado colonial, gerador de
hábitos que se prolongaram por muito tempo depois da Independência oficial.
Como Gledson aponta, “os mais complexos significados e possibilidades do romance
giram em torno de Fidélia, da mesma maneira como ela é, no plano psicológico, o
personagem mais complexo e misterioso”. Ele menciona a luta despropositada entre os pais
de Fidélia e Eduardo, seu primeiro marido, e considera a tentativa de Fidélia de fazer na morte
o que não pôde fazer em vida, colocando os retratos deles juntos na sala, como algo que seria,
como seu próprio casamento, um ato teatral, sem base sólida na realidade. Nesse sentido, a
tentativa de conciliação de Fidélia apontaria para o projeto conciliatório do Império para o
Brasil: “Machado associou conciliação, acima de tudo, com o projeto político do Império, um
projeto destinado ao fracasso por não ter base suficiente na realidade social” (GLEDSON,
o
2003, p. 279). Outro exemplo é o sonho que Fidélia conta em uma carta de 1 . de agosto de
1888:
Contou-lhe em carta um sonho que teve ultimamente, a aparição do pai e do sogro,
ao fundo de uma enseada parecida com a do Rio de Janeiro. Vieram as duas figuras
sobre a água, de mãos dadas, até que pararam diante dela, na praia. A morte os
reconciliara para nunca mais se desunirem; reconheciam agora que toda a
hostilidade deste mundo não vale nada, nem a política nem outra qualquer.
O fato de que as duas figuras aparecem em “uma enseada parecida com a do Rio de
Janeiro”, e “sobre a água” (não em terra firme), associado ao dado de que é no Rio que Fidélia
e Eduardo se encontram pela primeira vez, no teatro, parece sugerir que a Corte “é o cenário
natural da conciliação artificial, de acertos políticos com raízes duvidosas na realidade”. Daí
Gledson amplia a alegoria, afirmando que “o acerto político do Império, baseado na
conciliação (mas escondendo o conflito infrutífero, estéril) está prestes a enfrentar seu teste
supremo, a abolição da escravidão”.
20
Gledson retoma uma figura aparentemente secundária na trama, o Dr. Osório, que
“simboliza a possibilidade de um casamento brasileiro para Fidélia e, o que é bastante
significativo, com um representante de outra área econômica importante, o Norte”. Para o
ensaísta, uma união com ele representaria um acordo interno, o que no entanto não acontece.
O que acontece é o contrário: “acima de tudo, trata-se de uma história externa”, já que, com
todas as probabilidades foi concebida em Lisboa e “Tristão é um estrangeiro cujas tentativas
de parecer brasileiro simplesmente enfatizam sua hipocrisia”. O casamento com Fidélia e a
volta a Portugal representam
mais um exemplo de traição, que se repete em toda a História do Brasil, mais
dramaticamente, talvez, no período entre 1808 e 1831, que terminou com a partida
forçada do Imperador do Brasil e pretendente ao trono português, Pedro I e IV, para
Lisboa, de onde viera a Corte em 1808. (GLEDSON, 2003, p. 281)
Desse modo, Machado faz um julgamento pessimista do Segundo Reinado nesse
romance. Gledson (2003, p. 281) afirma que “como sempre, o ideal da conciliação é a chave,
e suas falsas imitações ou as consequências do seu fracasso jazem em torno de nós do
romance, que começa num cemitério”. Ele lembra que
O casamento de Fidélia com Eduardo e sua 'conciliação em efígie' entre seu marido
e o pai estão do lado da falsidade e do auto-engano. O casamento com Osório é um
ideal autêntico, mas impossível. Assim, e da maneira mais trágica, é o casamento de
Carmo e Aguiar – autenticamente harmonioso e claramente modelado no do próprio
Machado, mas estéril e, em última instância, atraiçoado e abandonado, apesar de
todos os esforços deles.
Gledson descreve ainda outra possível sugestão de leitura do enredo, relacionada à
suposta coincidência entre a primeira notícia de Tristão e o anúncio da Abolição. Ele lembra
que “as duas coisas são deliberadamente relacionadas por Aires” (“Não há alegria pública que
valha uma boa alegria particular”) e propõe a seguinte interpretação:
Aqui, pelo que me parece, Machado muito possivelmente mostra a reencenação de
uma síndrome comum na História do século XIX no Brasil: a aprovação de uma
medida liberal visando a modernizar o Brasil que conduz a um grau de euforia e
esperança de um futuro luminoso, atraindo investimentos estrangeiros que, por sua
vez, conduzem a um boom, e depois a uma quebra, com seus inevitáveis ganhadores
e perdedores. (...)
A última frase do livro – 'Consolava-os a saudade de si mesmos' – representa,
também nesse nível alegórico, toda a escala do desastre. O inverso de contínua
traição é a contínua e patética busca de uma identidade. Como diz Machado na
crônica da Imprensa Fluminense, 'o melhor, acrescento eu, é possuir-se a gente a si
mesmo'. Esta traição é, em última instância, um roubo do eu, cujas origens
remontam, sem dúvida, às do próprio Brasil como colônia”. (GLEDSON, 2003, p.
281-2)
21
Talvez traição seja de fato a palavra-chave para a interpretação de Machado do país. Se
ela paira soberana sobre aquele que talvez seja seu romance mais lido e discutido, Dom
Casmurro, as análises de Gledson vêm revelando que, ao fim de uma leitura histórica de sua
obra, a traição também pode ser, em grande medida, um elemento definidor da relação dos
brasileiros com o Brasil.
6. Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. Melhores crônicas/ Machado de Assis. Seleção de Salete Almeida Cara.
São Paulo: Global, 2003.
____. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2a. ed. rev. São Paulo: Paz e Terra,
2003.
O IMAGINÁRIO E A CRIATIVIDADE COMO
BASES DA CRIAÇÃO POÉTICA
Rita de Cássia Gemino da Silva4
C’est dans l’Art que l’homme se dépasse
4
Mestre em Educação pela UNIG, graduada em Letras e Pedagogia, Especialista em Língua Portuguesa pela
FEUC , docente dos Cursos de Matemática da FAMA e de Pedagogia da FIC, professora das redes municipal e
estadual do Rio de Janeiro, Coordenadora do Curso de Letras da Faculdade Machado de Assis, escritora e
poetisa.
22
definitivement lui-memê.
(Simone de Beauvoir)
RESUMO: Este trabalho procura levantar algumas questões sobre a importância do imaginário como fonte da
criatividade poética e a função da escola na integração desse fazer. Tem-se como principal característica mostrar
que a criança é um ser sensível e, em sua essência, carrega uma vontade imensa de modificar, de expandir suas
ideias, de consagrar seus ideais e de pôr em prática sua criatividade. Ela guarda suas imagens, e na releitura que
faz do mundo; as interpreta, dando-lhe a face do signo linguístico que norteia o seu imaginário. Ambos, a
criatividade e o imaginário, deflagram a liberdade de expressão individual distinguindo um ser do outro e através
dessa interconectividade é possível provocar a criação do texto poético.
Palavras-Chave: Imaginário, Criatividade, Poesia, Escola, Práticas Pedagógicas.
1. Procedimentos Metodológicos
A base de pesquisa para este trabalho5 é especificamente de preceitos práticos com o
método ancorado de forma empírica, voltada para a descrição de situações concretas e para a
intervenção de ações orientadas em função da resolução de problemas efetivamente
detectados na coletividade educacional. Com isso, seguimos as diretrizes do que hoje é
denominada pesquisa-ação.
A teorização da pesquisa se dá a partir da observação e descrição de situações
concretas e do fato de encarar os diversos campos de atuação antes de se ter elaborado um
conhecimento teórico relativo ao tema. Na análise das ações em que os pesquisadores
desempenham um papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, estabelecemos
um constante vaivém entre a dedução do geral ao particular e a indução do particular ao geral.
Embora de forma empírica, não deixamos de lado as questões relativas às referências
teóricas sem as quais a pesquisa-ação não teria sentido. Dessa forma, as diretrizes para os
procedimentos metodológicos do trabalho partem primeiro de uma situação-problema, que é a
necessidade de provocar novas propostas para prática de texto poético na escola. A partir do
levantamento dessa questão, teoriza-se a fundamentação sobre o imaginário, a criatividade e o
cotidiano escolar.
2. Resgate do conceito de Imaginário
5
Este artigo foi revisado e ampliado, a partir da dissertação de Mestrado intitulada: Um caminho com vista à
interdisciplinaridade para a prática de texto poético na escola - Imaginário e Criatividade.
23
Discorrer sobre o conceito do termo imaginário no início de um novo século, em que o
homem espera resgatar o significado de representação do mundo, tem se tornado quase que
impossível. Seria necessário ancorar alguns conceitos desse termo no percurso da história da
humanidade a fim de disponibilizar de forma mais concreta a questão.
Em algum momento da Antiguidade Grega, a dualidade entre o real e o imaginário
reforçava os preceitos da conduta humana, potencializando a capacidade de imaginação,
abarcando dois domínios que não se interagiam; de um lado, a capacidade de perceber pelos
sentidos, o comportamento pessoal ético adaptado à realidade; de outro, o devaneio, a fantasia
e a arte.
Na Idade Média, a religião contrapõe o racional e a epifania, colocando o homem num
estado contemplativo de sublimação entre o onírico e a razão. O Renascimento traz a
possibilidade de que tudo possa vir a ser conhecido; conhecimento este que só poderá ser
aceito através de um rigor científico. A chamada Fase de Sucessão do imaginário implicará
um julgamento severo sobre a questão.
Na Fase de Subversão, o imaginário, em pleno século XIX, torna-se a única realidade:
somente através dele o real cria possibilidade de existência. O sonho é valorizado, a
imaginação reina e, como reforça Saison (2002), “Oscila-se entre a esperança, após o desvio
provisório, de uma reconciliação final do imaginário e do real, e a recusa definitiva de toda a
realidade exterior para ouvir apenas as obscuras vozes interiores.” Nessa fase, no que diz
respeito à visão social, o imaginário permanece subversivo, oscilando entre o oculto e o
ignorado.
O reequilíbrio entre o imaginário e o real vislumbra o fim do século XX, século das
imagens, da (re)construção dos valores morais, da mediação entre o ser e o estar. A chamada
Fase da Autorização do imaginário alcança o portal de um novo tempo, de onde a soberania
do pensamento se aloca nos questionamentos explosivos que procuram restituir ao homem a
condição de (des)velar o que reside em si.
O imaginário, então, realça a contemplativa força do homem de (re)valorizar e
(re)dimensionar o que antes foi sucessivo e subvertido, possibilitando, dessa forma, a
imensurável condição humana de surpreender o inviável.
Nesta atual conjectura, em que o escopo do estudo sobre o imaginário ganha
dimensões cada vez mais científicas, vários teóricos têm procurado reforçar a “autorização”
do imaginário, trazendo no bojo das pesquisas relevantes conceitos sobre o termo.
24
Na história do conceito de imaginário, vamos encontrar suposições diversas. Ao
abordar a questão na ótica de diferentes autores e em diferentes épocas, René Barbier (2001)
afirma:
O termo imaginário tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, o
imaginário é tudo o que não existe: uma espécie de mundo oposto à realidade dura e
concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens
fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns
representam o imaginário como o resultado de uma força criadora radical própria à
imaginação humana. Outros veem apenas como uma manifestação de um engodo
fundamental para a constituição identitária do indivíduo.
A partir dos resultados de um estudo em que resgatamos as concepções sobre o
imaginário que cabiam para reforçar os questionamentos ora defendidos, organizamos
algumas diretrizes que puderam ratificar nossa prática sobre o tema. Com isso, teóricos como
René Barbier, precursor da abordagem transversal; Edgar Morin, com o pensamento
complexo; Gilbert Durand e a (re)valorização do imaginário que atravessa o pensamento de
Cornelius Castoriadis e a vida em sua cotidianidade, enfocada por Michel Maffesoly,
serviram como arcabouço de nossa pesquisa, contribuindo de forma eficaz para alicerçar os
pressupostos referentes ao imaginário que constitui um dos pontos fundamentais deste
trabalho.
3. O imaginário infantil e a escola
O que entendemos, hoje, como imaginário tem um sentido muito amplo quando
colocado dentro de um fazer pedagógico. Quase que a totalidade das ações humanas exige
algum tipo de conhecimento, às vezes superficial, outras vezes aprofundado, oriundo da
experiência pessoal, do senso comum, da cultura partilhada em um círculo de especialistas ou
da pesquisa tecnológica ou científica. Mas a questão do imaginário está além das conjecturas
científicas. Trata-se de sequelas que há tempos a humanidade carrega e que consequentemente
a educação reproduz.
O imaginário esteve quase sempre obrigado a permanecer adormecido no traço
construtivo da personalidade do homem. Se assim não acontecesse, seria possível obtermos
um reequilibrado e harmonioso ser humano, completo na sua formação como sujeito
imaginante, como ser físico e detentor de um pensamento direto sobre as imagens que o
mundo estabelece e que não são oriundas de sua imaginação. Sufocar as ações ou estimulá-las
25
talvez seja o ato imprescindível para a transformação das atitudes. É Sacristán (2000, p.159)
que adequadamente diz:
Caminhando para a meta, existe uma via privilegiada para comunicar idéias ou
princípios com a ação dos professores, que reside nos elementos estruturadores do
currículo. É preciso sempre reconhecer seus valores quando, por suas condições,
contribuam para desenvolver um modelo pedagógico adequado e não sufoquem a
capacidade profissional dos professores, mas a estimulem.
A escola deveria ser o espaço privilegiado onde as crianças, desde a primeira infância,
pudessem instituir as formas gerais de estar nas palavras, nas imagens, nas próprias coisas,
nas escalas de valores em que se encontram entre o real e o imaginário, e uma maneira eficaz
de alavancar o ser imaginante que cada criança leva em si é dar voz ao silêncio sedimentado
que habita a imaginação do aluno. Quando abrimos a porta para que o aluno revele aquilo que
pensa além do que o livro didático, a lição ou o conto de fada lhe obriga interpretar, estamos
automaticamente libertando a possibilidade dele ir além do que o senso comum institui como
o mais certo, estamos abrindo a porta para o ato de imaginar. Postic (1993, p.13) revela-nos:
Imaginar é uma atividade de reconstrução, até de transformação do real, em função
dos significados que damos aos acontecimentos ou das repercussões interiores que
eles têm em nós. Não é afastar-se em relação ao mundo real; é seguir ao mesmo
tempo uma via paralela.
A via paralela entre o real e o imaginário acontece quando oportunizamos dentro das
atividades escolares caminhos que proporcionem os jogos de linguagem e a criação com as
imagens interiorizadas por essas linguagens. A criança retém inúmeros processos linguísticos
para alargamento do que é para eles o limite entre a barreira do real e do imaginário.
A nossa imaginação está impregnada de realizações que, mesmo adormecidas,
escondidas e ocultas, permanecem disfarçadas - por que não dizer repreendidas pelas ações
diárias da sociedade que nos obriga a viver somente o exterior? Essas mesmas pseudorealizações continuam latentes à espera de algo que as faça germinar. A escola possui esse
adubo capaz de fazer brotar as realizações adormecidas no imaginário infantil. Postic (1993,
p.15) afirma que:
Mais profundamente, nossa viagem imaginária alimenta-se de nossas esperanças
ocultas, escondidas há muito, sempre latentes, prontas a germinar ao mínimo
chamado. Parece-nos havê-las afastado porque foram sancionadas pela realidade
social, mas estão presentes em nós e ressurgem à mínima ocasião favorável. E,
sempre, a esse movimento para o interior de si mesmo está associado um
movimento de si para o exterior; vivemos o que poderia ser e o que poderia
despontar em nós, pela ação, o que transformaria nossa vida entre os outros.
26
Na atividade dentro da escola, a criança descobre o mundo exterior e sobre ele exerce
uma ação, com isso sua imaginação se desenvolve. Também através da atividade educacional
a criança se confronta com o outro, com o real, ao fazer descobertas, ao sentir a alegria, o
medo, ao viver conflitos e a expor suas ideias confrontando-as com as do outro.
Por entre a realidade que se opõe àquilo que a criança interioriza no seu imaginário
surgem as possibilidades de se tomar consciência de seus limites, de reconhecer seus temores,
surge a vontade de dominar suas emoções e suas angústias. Para Postic (1993, p.15), “O
imaginário começa onde a realidade opõe, senão rejeição, ao menos resistência: algo não está
diretamente acessível, escapa, mas pode ser adivinhado; permite uma esperança, embora
velada.”
4. A interconectividade entre o imaginário e a criatividade.
Descontínua e compartimentada, a escola ainda não consegue atingir uma percepção
global da realidade a ser transformada; estamos caminhando para esse novo processo de uma
visão sistêmica num enfoque de totalidade e de prevalecimento de procedimentos
metodológicos para apreender o real em suas múltiplas dimensões.
Esse sistema educacional como sistema vivo, que empreende energia e múltiplos
fatores, que cria laços de interdependência e realimentação, ainda está em desenvolvimento
dentro do paradigma atual de universalização.
O aprimoramento dos fatos através da evolução histórica nas conexões externas
envolve a definição de estratégias globalizantes, orgânicas e dinâmicas, capazes de usar as
sensações, os sentimentos, as emoções e a intuição para aprender e não para separar o mental
do físico, o fato da fantasia. Com isso a interconectividade entre o imaginário e a criatividade
se sustenta pelo efeito equilibrador da intuição e da ação dessa intuição. Postic (1993, p.19)
completa indicando que “O movimento dialético entre o imaginário e o racional é aquele que
garante o equilíbrio do sujeito. Seus recursos internos provêm da fecundação entre o racional
e o imaginário.”
Avançar para além das mudanças de paradigmas é configurar algumas atividades que
permitam implementar a racionalidade e a intuição num conjunto único para a formação do
ser criativo. Na prática, promovemos a intercorrência entre o imaginário e a criatividade no
momento que oportunizamos atividades lúdicas com a dança, a música, o teatro, de forma
27
interdisciplinar e prazerosa. Quando facilitamos, através do resgate da simbologia de um
desenho, o que está por detrás do discurso imagético de uma criança de três, quatro ou cinco
anos, abrimos a porta para a formação linguística, mesmo que de forma oral, do seu
conhecimento intrínseco sobre as imagens que fomentam o seu imaginário.
O ambiente da sala de aula ainda continua preso a uma série de atividades préestabelecidas que ocupam todo o momento da prática deixando de priorizar uma rotina mais
prazerosa com as artes, o que vai ocasionar uma maneira diferenciada e esporádica de alguns
professores que para implementar a criatividade recorrem a projetos à margem do
planejamento curricular, apesar de envolverem os alunos num saber interiorizado pelos
conteúdos que abrangem esse planejamento. Como bem coloca Antunes (2003):
Capacidade é o poder humano de receber, aceitar, apossar. Esses verbos de ação
explicam a palavra e justificam sua presença na escola. A escola não pode fixar-se
apenas como centro epistemológico, mas necessita, urgentemente, propiciar aos
alunos a recepção plena de suas capacidades motoras, cognoscitivas e emocionais.
Podemos perceber que as imagens que formam as estruturas do imaginário dessas
crianças afloram através de sua criatividade por meio do desenho que elas criam. Apesar de o
aluno se utilizar de um texto poético imbricado com um outro tipo de manifestação artística,
como a dança, no ato da confecção oral do seu próprio texto, ele redimensiona o seu desenho
às imagens internas e à sua própria experiência alcançada entre o fictício e o real, ou seja,
entre o imaginário e a realidade. Postic (1993, p.21) afirma que “Alimentar o imaginário da
criança é desenvolver a função simbólica por meio de textos, de imagens e de sons.”
Alimentado o imaginário, desencadeamos um novo padrão de conhecimento e de
estímulo à confecção da poesia. Também Duborgel (1992) ratifica que o desenho é um ícone
para a veiculação do imaginário na ação criativa:
Numerosas utilizações escolares esquadrinham o desenho para aí descobrir, prever
ou pressentir o espaço da escrita, a identidade do real habitual, um pictograma
potencial ou falhado, um grafema em embrião, etc. Deste modo, o desenho é, de mil
maneiras, colocado, ou recolocado, na perspectiva da escrita e da língua em
gestação e não na de um ícone em formação.
Até mesmo em crianças que integram a faixa etária entre os seis e onze anos é
intercorrente a confluência entre o imaginário e a criatividade.
Levados a redigirem textos numa concepção clássica de poemas, em versos e estrofes,
os sujeitos-criadores , uma vez desafiados, interagem de forma criativa levando das atividades
com a tinta, a dança e a dramatização, subsídios para a escrita do texto poético. Não é
suficiente utilizarmos somente um texto-estimulador, ou repetição de algumas palavras desse
28
mesmo texto, mas sim, contextualizar as próprias experiências com as experiências
vivenciadas no decorrer da vida de cada sujeito-criador.
Ao ensaiar no cotidiano escolar um mundo ativo, vital, imprevisível, com movimentos
contínuos e descontínuos, incluímos uma convivência mais agradável entre os fazeres
educacionais e os fazeres sociais. Estruturamos novos caminhos para se chegar ao
conhecimento.
Na jornada de se aprimorar cada vez mais a intenção de ensinar, o profissional de
educação alavanca novos empreendimentos e reelabora novos padrões de aceitabilidade no
convívio entre a escola, o currículo e sua própria ideia do que vem a ser o ato criativo. Mudar
na educação implica mudar o aprendiz e aquele que ensina. Phillipe (1998, p.38-39) retoma a
questão da importância de projetos ambiciosos dentro das práticas pedagógicas no contexto
escolar. Esses projetos ratificam que:
Acredita-se que a capacidade de organizar e de animar situações-problema e outras
situações fecundas de aprendizagem suponha competências bastante semelhantes
àquelas exigidas por um procedimento de pesquisa de maior fôlego. Todavia,
enquanto uma situação-problema se organiza em torno de um obstáculo e
desaparece quando ele é ultrapassado, um procedimento de pesquisa parece mais
ambicioso, pois leva os alunos a construírem eles próprios a teoria. O procedimento
em torno do peso de volume e do princípio de Arquimedes pode ser interpretado
como uma sequência de situações-problema: cada uma delas permite o
enfrentamento de um novo obstáculo, que deve ser transposto para que a trajetória
continue. A diferença é que, na mente do professor e, às vezes, na dos alunos,
encontra-se em um programa de trabalho em médio prazo. De modo ideal, é sem
dúvida dessa maneira que se deveria levar os alunos a construírem todos os
conhecimentos científicos, em biologia, química, geologia, física, mas também em
economia ou em geografia.
Sendo assim, podemos reforçar que projetos diferenciados, mesmo que esporádicos,
vêm contribuir para estabelecer novas práticas pedagógicas. Somente no cotidiano da escola
teremos condições para fazer surgir indivíduos capazes de envolver os conhecimentos em
todas as suas áreas de atuação, quer seja no papel social, quer seja no papel de agente
transformador dessa mesma sociedade.
Essa relação entre o ensinar e o aprender coloca professor e aluno – sujeitos do
processo ensino-aprendizagem – em uma cadeia de convivência, onde se misturam os
conflitos, as trocas e as emoções experimentadas. Postic (1993, p.28) reafirma a importância
dessa relação na construção da interconectividade entre o imaginário e a criatividade quando
alerta para a seguinte questão:
Como as relações sociais entre professor e aluno se situam num sistema de normas,
29
seguindo uma forma imposta pela regra social, é no imaginário que se desencadeiam
os afetos, que expressam pulsões e desejos. Em compensação, as produções
imaginárias agem sobre a relação entre aluno e professor. Elas reforçam o conflito
ou são o meio de superá-los, por sublimação.
Mesmo sem um interesse eminentemente filosófico, quando tratamos de poesia,
imaginário e criatividade, esbarramos em toda a carga sinestésica que um texto poético infere
sobre aquele que o lê ou o cria. Ao procurarmos um sentido para a implementação da poesia
dentro do ambiente escolar, nos deparamos com uma carga infinita de emoções, porque, é
claro, a poesia é sublimação, espelho da emoção humana. Desprender toda a bagagem
emotiva que o aluno traz consigo para dentro da sala de aula requer muito mais do que mexer
com sentimentos ou escolher o texto em verso que melhor se adequa para aquele momento.
Mexer e se envolver com a criação de texto em verso vai além do nosso próprio
entendimento e dos sentimentos que carregamos. Talvez por isso tenhamos tantos caminhos a
seguir e tão poucas placas de indicação. Se é difícil conceber na sua totalidade o texto poético,
que, por ser plurissignificante, permanece aberto, inquestionável, imagine articular a sua
prática por crianças de três a onze anos. Fica sempre um desafio, quer seja para o professor,
quer seja para a própria criança.
As discussões entre o desenvolvimento das competências e a reprodução do saber
dividem a escola em dois caminhos conflitantes: um, sobre a visão de um currículo que
consiste em percorrer o campo mais amplo possível de conhecimentos, sem preocupar-se com
sua mobilização em determinada situação, o que equivale, mais ou menos abertamente, a
confiar na formação profissionalizante ou na vida para garantir a construção de
competências; o outro, procura aceitar a limitação de maneira drástica, quanto à quantidade
de conhecimentos ensinados e exigidos para exercitar de maneira intensiva, no âmbito
escolar, sua mobilização em situação complexa. Sobre a questão Sacristán (2000, p.149)
comenta:
Para o professor não é fácil passar de princípios ideais para a prática coerente com
os mesmos, a não ser à medida que possa planejar uma estrutura de tarefas
adequadas na qual se conjuguem conteúdos curriculares e princípios pedagógicos.
Essa é a importância dos meios estruturadores do currículo.
Existe o desafio de se levar ao educador brasileiro condições para a implementação de
competências que possam deflagrar a elaboração de novas práticas pedagógicas. O
profissional de educação que luta em defesa de uma escolaridade que permita a apreensão da
realidade se pergunta: qual é o serviço da escola? Para que ela veio e o que ela pretende?
30
Espera-se que as respostas estejam ligadas àquilo que o aluno necessita para agir na e sobre a
sociedade que o rodeia.
No emaranhado de tentativas estamos atentos, continuamos a procurar, a descobrir
outros meandros, outras vias. A única coisa que realmente sabemos é que o novo século
necessita da cosmovisão, de um indivíduo que reflita sobre o seu fazer e sobre o seu pensar,
porque um ser de relações, na sua totalidade, consegue transferir e/ou aprisionar as imagens
que surpreendem o seu imaginário e sua criatividade.
Possibilitando ao aluno uma interação com o mundo como um fluxo universal de
eventos e processos em que ele, o aluno, interage e é até capaz de modificá-lo, passamos à
metáfora de um conhecimento que permite ao aluno inferir seus diagnósticos sobre a ação,
que por ele deve ser tomada, referente a esses processos e eventos que o circundam. Na
feitura do texto poético, quando entrelaçamos a criatividade e o sentido imaginativo,
instituímos a liberdade de expressão, tão pertinente para a formação da personalidade da
criança.
5. O imaginário e a criatividade como bases da criação poética
A criação humana sempre esteve agregada a preceitos instituídos pela sociedade. Criase por necessidade, não somente por uma questão pessoal, mas, principalmente, pela
exigência que uma sociedade nos impinge.
A educação é espelho dessa situação. O aluno é preparado para criar aquilo que está de
acordo com o método conteudista, seguindo regras e se valendo de uma metodologia voltada
para a passagem de estereótipos convencionais de aprendizagem. Nesse ambiente onde a
criatividade e o imaginário são ignorados no momento da criação, fica difícil dar asas à
imaginação dos discentes e, é claro, de alguns professores, que, formados por uma pedagogia
tradicional, não tiveram oportunidade de desenvolver o seu lado criativo.
Precisamos de métodos pedagógicos estimulantes para poder explorar e organizar
melhor as situações que propiciem a escrita de texto poético na escola. O potencial criativo do
aluno, na construção de significados e conhecimentos que lhe permitam interagir na
sociedade, é o objetivo fundamental no estímulo da construção da poesia. Orientar sua
formação, criar os meios que propiciem o desvelamento e a descoberta do mundo é o
instrumental para formar o sujeito-criador, incentivando-o a construir o saber ler e o gosto
pela leitura.
31
A relação que se estabelece entre o texto infantil e seu destinatário leva-nos à
preocupação com alguns elementos teóricos que ajudem a cumprir os objetivos esperados na
construção do texto poético. Se desejarmos um aluno-leitor crítico, que assuma posições com
independência, é preciso propor estruturas a partir de uma metodologia que oriente as etapas
desencadeadoras entre o imaginário e a criatividade.
A poesia é um gênero literário conhecido como elitista, por isso está presente, através
do senso comum, como sendo encontrado principalmente nas academias de letras, e não nos
bancos escolares. Quando salientamos esse diagnóstico, é para reforçar que o texto poético,
visto na concepção de sua feitura, está bastante longe do ambiente da escola. A poesia entra
na sala de aula como mais um texto a ser conhecido, interpretado, copiado. Não entra como
um texto que possa ser veiculado ao imaginário e à ação criadora do próprio aluno, mas sim
do próprio escritor que o concebeu.
Por que isso acontece? As estruturas do imaginário guardam ou até mesmo formulam
imagens que necessariamente não precisam estar presas a uma realidade já existente, mas a
uma realidade concebida no próprio ato imaginativo do homem. Durand (2002, p.18) reforça
a ideia de que:
O imaginário - o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital
pensador do homo sapiens - aparece-nos como o grande denominador fundamental
onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O imaginário é
esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma
determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra.
Esse conjunto de imagens, que constitui o capital criador do homem, não é estimulado
quando se trabalha o texto poético em sala de aula. Não é permitido ao discente resgatar essas
imagens e proclamar a sua própria intenção sobre o texto poético lido e estudado. Essa
permissão não é concebida pelo professor, não por causa de uma regra fixa, mas por uma
regra institucionalizada pela própria formação de base dos conteúdos educacionais, com isso
ficamos – professores, alunos e poesia - sempre a mercê de padrões fechados sobre o ato
criativo no fazer poético. Como mudar essa situação é um grande desafio para novas
propostas pedagógicas.
Observamos que inúmeras bibliografias tratam do estudo da poesia na escola, seja
através de projetos, oficinas ou resultados de pesquisas-ação implantados em alguns países do
mundo. Contudo sentimos falta de alguma ação mais prática no momento da criação do texto
poético.
Dá-se toda a teoria, inclusive determinando métodos e etapas a serem seguidos, porém
não desprendem o laço fundamental do momento criativo, que é a imbricação do imaginário
32
com a criatividade. É necessário oportunizar a liberdade de expressar as imagens que
alimentam o imaginário. A imagem que mora no imaginário de cada um é o primeiro estímulo
à criatividade da poesia. De acordo com Durand (2002, p.19), “Afinal, o imaginário não é
mais que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos
imperativos pulsionais do sujeito.”
Não se faz necessário procurar fora da própria mensagem, que sobrevive dentro do
imaginário, o fato para haver a criação de um texto poético. Faz-se necessário sim um
estímulo, uma apresentação primeira do que vem a ser um texto poético, suas inferências no
imaginário do leitor, as inferências no momento de criação do escritor que concebeu o texto,
até mesmo a permissão de usar o texto apresentado como sendo um texto-estimulador para
criação do aluno; no entanto, frear, regrar, corrigir, impedir a soltura das imagens latentes no
imaginário no momento do ato criativo é submeter a linguagem humana à sua própria
insignificância. Observemos Durand (2002, p. 29) em seu discurso:
(...) é capital que notemos que na linguagem, se a escolha do signo é insignificante
porque este último é arbitrário, já não acontece o mesmo no domínio da imaginação
em que a imagem – por mais degradada que possa ser concebida – é ela mesma
portadora de um sentido que não deve ser procurada fora da significação imaginária.
O sentido figurado é, afinal de contas, o único significativo, o chamado sentido
próprio não passando de um caso particular e mesquinho de vasta corrente
semântica que drena as etimologias.
Para que os alunos possam progredir rumo aos domínios da criação do texto poético,
convém colocá-los, com bastante frequência, em uma situação de aprendizagem prazerosa e
estimuladora. Não basta que ela, a aprendizagem, tenha sentido, o importante é que ela
envolva os alunos e os mobilize no momento do ato criativo. Sendo assim, faz-se necessário
criar uma organização do trabalho didático, que coloque cada um dos alunos em uma situação
ótima de aprendizagem. Para Postic (1993, p.19), “o pensamento progride de forma linear. A
imaginação se processa em espiral, por alargamento de seu espaço. Ela não se dirige para
níveis mais diferenciados, mais especializados, estende-se por expansão e por conquista de
novos territórios.”
Se a escola quiser manter o desejo de saber e a decisão de aprender, dando um sentido
ao alunado para se apropriar desse conhecimento, terá de envolver mais os alunos em sua
aprendizagem e em seu trabalho. Ter mais tempo é apenas uma das condições necessárias.
Devemos lembrar que a função da escola, que antes era atender a todos, dentro de um
modelo burocrático, descuidando das necessidades e diferenças individuais, hoje é vista
dentro de um paradigma emergente, e tem seu foco voltado para a missão de atender o
33
aprendiz em sua individualidade, aquele que aprende e utiliza os conhecimentos de maneira
diferenciada e autônoma. Para gerar essa autonomia devemos idealizar novos caminhos e
delega-los ao professor. Sacristán (2000, p.147), em O Currículo – uma reflexão sobre a
prática, insere a seguinte afirmação:
O professor tem, de fato, importantes margens de autonomia na modelação do que
será o currículo na realidade. Uma certa filosofia pedagógica e a necessidade de
desenvolvimento profissional dos docentes propõem a conveniência de estimular
essas margens de liberdade. A filosofia da emancipação profissional topa com a
realidade com a qual se confronta para que esse discurso liberador tenha alguma
possibilidade de progredir. Uma série de razões de ordem diversa farão com que, de
forma inevitável, o professor dependa, no desenvolvimento de seu trabalho, de
elaborações mais concretas e precisas dos currículos prescritos realizadas fora de
sua prática.
Vivenciar o processo criativo possibilita conquistas nos níveis interpessoal e
intrapessoal, além do transpessoal. No nível intrapessoal, o ato de criação faculta ao indivíduo
o acesso ao inconsciente, desenvolvendo o autoconhecimento, a percepção do mundo e,
principalmente, o estabelecer de suas próprias linguagens para enfrentar os problemas e
revisitar as trocas sociais imprescindíveis para sua vivência em grupo, no coletivo.
Ao mesmo tempo, no nível interpessoal, o processo criativo estabelece uma melhor
compreensão de si mesmo e dos outros, além de ampliar a capacidade de adaptação e
interação com o mundo que o cerca. Já no nível transpessoal, a criatividade facilita a ligação
do indivíduo com o universo, com isso suprindo algumas necessidades espirituais, pondo em
ação a intuição e o entendimento do aspecto sagrado da existência, do envolvimento entre o
Criador e a criatura.
Entretanto, um dos problemas da educação atual é privilegiar os processos racionais
em detrimento dos procedimentos intuitivos, mostrando-se assim como uma instituição social
castradora de valores criativos.
Os sujeitos que desenvolvem competências para resolver problemas, que têm
habilidades criativas e que são inovadores dentro do contexto da sala de aula, precisam ser
contemplados com realizações pedagógicas que possam valorizar ainda mais o imaginário e a
criatividade, procurando envolvê-los com todos os componentes de uma turma, a fim de
desencadear os vínculos entre o fictício e o racional em cada um. Para Postic (1993), “a
criança deve conseguir alimentar seu imaginário e expressá-lo. O imaginário se cultiva.”
De acordo com Duborgel (1992), a natureza do ato de escrever, define-se através da
noção do que a criança tem como necessário, de ver as coisas como elas são, de observar com
34
método, possuindo bom senso de pensar com clareza e de deduzir corretamente, além de
apreender as características objetivas dos seres e dos objetos, relatando os fatos com uma
objetividade precisa.
Essa natureza, no ato da tecedura do texto poético, necessariamente recorre a uma
gama de afetos e de emoções, assim como à capacidade de efetuar o que cada um de nós faz
com seus sentimentos e seus afetos. O que opera em nossa mente, em nosso espírito, em nossa
individualidade como ser humano não fica somente na objetividade dos gestos, dos objetos,
constrói-se através do emocional, de uma busca do sujeito pela sobrevivência e pelo despertar
de si mesmo. E assim:
Pelo imaginário a criança encontra vínculos entre o mundo e ela, interioriza
significados. O céu torna-se o infinito, a noite, o mistério. São pontos de referência
simbólicos. Toda pessoa tem necessidade de ter, ao lado do mundo real, o das trocas
sociais, o das investigações positivas, uma área de ilusão. (POSTIC, 1993, p.19)
O equilíbrio e o conhecimento interior concedem ao indivíduo especular sobre o que
ele realmente é; qual seu potencial e as qualidades que possui. Com base na sua
potencialidade e na sua capacidade de agir, o ser humano envolvido por um processo de
examinar o seu próprio imaginário, transforma o discurso das imagens em códigos simbólicos
que poderão se transformar nos códigos linguístico de uma poesia.
Ancorar todas essas ideias e ideais e coaduná-los aos inúmeros teóricos é a
possibilidade de estarmos contribuindo para uma transformação mais igualitária entre os
homens, protagonistas no desenvolvimento da criatividade, do imaginário e da poesia.
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36
O LEGADO TEÓRICO DOS ESCRITORES NORTE-AMERICANOS:
LITERATURA, VERDADE E TRADIÇÃO NA CRÍTICA DOS
SÉCULOS XIX E XX
Hudson dos Santos Barros1
RESUMO: O presente trabalho objetiva, através da análise de textos teóricos de consagrados escritores da
literatura norte-americana do século XIX e o início do XX, demonstrar a significativa relação entre literatura,
verdade e tradição na formação da cultura literária dos Estados Unidos. Além explicitar tal associação, este
estudo destaca significativas reflexões sobre o valor da literatura para a construção do autoconhecimento, do
amadurecimento intelectual e ético e da representação dos movimentos humanos. Por fim, busca demonstrar
também a participação de escritores, que paralelamente ao seu legado estético, contribuem para a formação de
um importante repertório teórico sobre a literatura.
Palavras-chave: legado teórico, literatura norte-americana, verdade.
A formação da cultura literária norte-americana contém em sua gênese e
desenvolvimento profícuas reflexões acerca do valor da literatura (e das artes de um modo
geral) como instrumento de construção de verdades e modos de ser. Mais do que um objeto de
veneração estética, a escrita literária é considerada, por inúmeros escritores ao longo dos anos,
uma forma de manifestação da vida, um meio especial de elaboração da verdade. Do século
XIX ao início do XX, alguns dos principais escritores norte-americanos teceram pensamentos
sobre o papel da leitura, da tradição, da arte e do escritor na constituição de uma cultura de
excelência. No século XIX, Emerson e Thoreau defendem a autonomia do indivíduo,
destacando a relevância da incorporação de leituras das principais obras do legado filosófico,
religioso e literário universal. Na esteira do Realismo, Howells, Dreiser e Henry James
produzem significativos insights sobre a seriedade e o poder testemunhal do texto literário.
No início do século XX, Pound e Eliot, evocam a força de elucidação de uma poética de
ruptura e incorporação da tradição literária. O que une esses escritores de contextos tão
diversos é a apologia do vigor formativo da literatura. Esse vigor não implica uma atribuição
dogmática desta, isto é, a visão da literatura como uma corroboração de saberes
consensualmente aceitos e inquestionáveis; antes, o literário é compreendido como uma
marca histórica capaz de promover (tanto no escritor quanto no leitor) uma percepção mais
questionadora dos movimentos humanos.
Essas considerações iniciais iluminam o caminho a ser trilhado no presente estudo. A
partir de textos teóricos dos escritores acima referidos, pretende-se discutir a importância da
1
Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ, professor de literatura norte-americana e literatura inglesa da
Faculdade Machado de Assis (FAMA), professor de português e inglês do Instituto Superior da FAETEC.
37
associação entre literatura, verdade e aprendizado na cultura literária norte-americana.
Objetiva-se aqui demonstrar que o texto literário é considerado como uma ferramenta
indispensável para a consolidação de valores de excelência. Além do corpus artístico, os
citados escritores possuem reflexões teóricas que focalizam a relação entre obra e
autoconhecimento, entre literatura e compreensão de mundo. Nesse repertório crítico, o
literário é entendido como uma fonte de inovações do modo de ser, como uma instância que
une a criatividade desprendida e a seriedade da busca intelectual. Tal estudo permitirá a
visualização de significativas contribuições de uma tradição que, embora não muito antiga, se
constrói com base em uma autoconsciência do valor da criação estética em mundo
desordenado pelas contradições humanas.
No ensaio Arte, Emerson (2005, p. 220) afirma que a alma, por ser evolutiva, jamais
se repete totalmente e que, em todo ato, busca produzir o novo e o belo. Para o referido autor,
toda atividade espiritual possui um impulso criativo; a criação seria uma forma de iluminação
sublime que ensina a exprimir um sentido mais amplo através de símbolos. Para Emerson, o
artista e sua obra distinguem-se por representar o desconhecido, o inevitável e o divino e se
lançar além do tempo presente. A produção artística manifestaria a excelência da alma,
gravaria de modo significante um rastro expressivo na história e tornaria oportuna uma nova
concepção da realidade. Conforme explica, o artista é um emissário do mundo, pois conduz o
pensamento à plenitude exclusiva do objeto; a entrega do artista e percepção apurada deste
transcendem os hábitos e incitam a aprendizagem autônoma. Diz ainda que a obra de arte é
universalmente inteligível e dialoga com seu interlocutor, de forma a engendrar revelações
significativas: “A arte deve estimular e demolir os muros da circunstância.” (Ibid., p. 221)
Vale acrescentar que, embora o pensamento de Emerson esteja associado à noção de
autonomia do pensamento em detrimento da aceitação passiva das leituras, o escritor não
ignora a necessidade de um conhecimento crítico de textos seminais da história literária,
filosófica e religiosa. No ensaio Autoconfiança, ele cita três nomes fundamentais dessas três
tradições: Moisés, Platão e Milton (Ibid., p.54). Emerson executa uma reapropriação das
ações e discursos desses personagens com o fito de arquitetar seus argumentos sobre o tema
da originalidade e da autonomia do pensamento. O ponto fulcral da argumentação reside na
atestação, por parte de Emerson, do mérito que esses três possuem em ter ignorado livros e
tradições. Eis uma frutuosa contradição no discurso do escritor norte-americano: em seu
argumento, ele se refere à tradição para combater a aceitação passiva desta. Ao citar os
referidos nomes, Emerson reconhece implicitamente a importância do saber histórico e da
influência exemplar dos antigos no tempo presente. Ao defender a originalidade, ele se pauta
38
na alteridade e no vigor do legado epistemológico. Um outro exemplo disso está no início de
Autoconfiança, quando Emerson não hesita em dizer: “Um dia desses li algumas poesias,
muito originais e nem um pouco convencionais, de autoria de um renomado pintor.
Independentemente do assunto, em poemas como esses, a alma sempre ouve um conselho.”2
Essas palavras ilustram que, embora a verdade esteja na independência intelectual e na
intimidade da intuição, a fruição do poético pode ser fonte de sabedoria. No exemplo em
questão, o texto literário surge como inspiração e fundamento para a construção das próprias
verdades. Por fim, cabe observar que é por meio de poemas que Emerson inicia seus ensaios,
fato esse que confirma a importância do literário para a expansão do intelecto e na edificação
da busca filosófica.
Em Leituras, de Walden, Thoreau afirma que o ser humano se torna imortal quando
lida com a verdade. Segundo explica, os livros são “o tesouro do mundo e a digna herança das
gerações e nações” (THOREAU, s.d., p.16); são aqueles que instruem e amparam o leitor e o
conduzem a observação da verdade da natureza e de seu destino. O escritor é considerado
como membro de uma aristocracia natural e irresistível da sociedade, sendo capaz de ter mais
influência sobre a humanidade do que reis ou imperadores (Ibid., p. 68). O escritor é aquele
que fala ao intelecto e ao coração da humanidade, é alguém cujas palavras despertam o
pensamento para além das coisas fúteis. Thoreau alerta, contudo, que não é qualquer escrito
que possibilita esse despertar. Conforme afirma, existe uma leitura voltada para a satisfação
de mesquinha conveniência; trata-se de uma leitura superficial cujo resultado é o
embotamento da visão, a estagnação da circulação vital e a degeneração de todas as
faculdades intelectuais. Existe outra leitura, entretanto, capaz de colocar o leitor em alerta, de
perturbá-lo e direcioná-lo à sabedoria. Diz Thoreau: “Devemos ler o melhor da literatura e
não ficar repetindo para sempre o bê-a-bá, sentados a vida inteira na primeira fila da sala de
aula.” (Ibid., p. 69) Afirma posteriormente: “Somos uma raça de acanhados homens-pássaros
e em nossos voos intelectuais elevemo-nos pouco mais alto do que as colunas dos jornais
diários” (Ibid., p. 75). Observa-se que Thoreau defende uma leitura mais reflexiva e
significativa. Para ele, a literatura (principalmente os clássicos) é uma forma de ascensão
intelectual e moral, é uma ferramenta de desvencilhamento da mediocridade do cotidiano. A
leitura do texto literário, caracterizada pelo esforço e pela paciência, opõe-se à voracidade de
leituras que não exigem habilidades intelectuais mais ousadas e que não auxiliam a
construção da nobreza do homem sábio.
2
Id.
39
Tanto Emerson quanto Thoreau percebem o texto literário como uma sublime
realização humana. Para eles, a criação artística evidencia a grandiosidade da alma humana,
sua capacidade de transgredir a superficialidade do cotidiano e perpetuar o viço das mais altas
capacidades intelectuais. O escritor é visto como uma pessoa que possui dons especiais, como
um indivíduo iluminado que assume com coragem sua destreza e que logra captar a essência
da vida. Sua entrega é considerada exemplo da glória; sua produção, uma manifestação da
condição divina do ato de criar. Neste, autor e obra se tornariam sacros, uma vez que
emanariam as possibilidades do natural em um mundo cercado pelas limitações da ignorância.
A obra surge, assim, como uma nova forma de geração de comportamentos. Para os dois
pensadores, a leitura de textos literários pode ser um modo de descoberta de si, descoberta
essa que acontece no real aproveitamento da obra, isto é, em uma leitura que permite a
revelação de quem nós somos através de um espírito interessado e autônomo.
Na segunda metade do século XIX, os escritores do Realismo defendem a prática de
uma literatura crítica, de uma literatura que denuncia as contradições de uma sociedade
encantada com a evolução industrial e econômica em detrimento à valoração moral. A ideia é
que o texto literário é veículo da verdade dos fatos. No artigo Novel-writing and novelreading: an impersonal explanation, Howells (2007, p. 915) diz que o escritor deve ser um
homem honesto, isto é, deve ser um transmissor do knowledge of life (conhecimento da vida).
Para Howells, a beleza do romance está em sua verdade, em sua exposição fidedigna dos fatos
testemunhados. Tal pensamento também é defendido por Dreiser (2007, p. 927) no texto True
art speaks plainly, quando este afirma “The sum and substance of literary as well as social
morality may be expressed in three words – tell the truth.” Segundo o autor, a literatura
precisa ser uma voz de denúncia contra os resultados nefastos das condições sociais de seu
tempo, contra os vícios da riqueza, da pobreza e da ignorância. Para Dreiser, a literatura não
pode mascarar a realidade, escondendo-se sob o véu do discurso da moralidade; antes, ela
deve conduzir o leitor ao entendimento de seu mundo, mesmo que para isso desafie as
convenções morais e artísticas. Segundo afirma, a verdade é o que é, e a revelação daquilo
que é visto (de forma honesta e sem subterfúgio) é a execução da verdade (Id.). Assim como
Dreiser, James (2007, p. 918-920) defende a sinceridade do texto literário. Em The art of
fiction, Henry James diz que o romance precisa se levar a sério; acrescenta que a única razão
para a existência deste é representar a vida. Para o autor, a ficção não se opõe à moralidade,
ao lazer e à educação; no entanto, a literatura não pode prescindir da experimentação, da
curiosidade, da troca de visões e da comparação de pontos de vista. Ainda que realize uma
apologia à lei da execução, isto é, da liberdade de escolha do artista e da inovação, James
40
fundamenta a inovação ficcional no poder de registrar a verdade. A construção do romance
depende um olhar apurado do escritor, da capacidade deste em convocar sua experiência e
torná-la fonte de aprendizagem. Ao lado da aventura da possibilidade criativa, o escritor
captura o ritmo estranho e irregular da vida e torna o texto literário uma forma de testemunho
crítico da realidade.
Para os escritores realistas, ficção não é o oposto de verdade. Segundo afirmam, o
texto literário é um misto de registro e recriação; na captura do real, a técnica e a busca pela
inovação narrativa e lingüística se unem ao estranhamento da descoberta de um mundo hostil
e excludente. A liberdade de expressão da obra se liga à visualização da escravidão das
relações humanas e desponta como um grito de alerta às mentes incautas. Imaginação e
verdade constituem a peripécia do dizer, a tentativa de reunir o despercebido em signos
verossímeis e ousados. Na obra, o escritor ousa, pois constrói um mundo a partir do mundo,
elabora um conjunto de diálogos e relações inéditas que apontam as contradições de
realidades não evidenciadas por completo. Lançada na história, a ficção assegura o caráter
eterno do texto literário ao tornar patentes os paradoxos humanos.
No contexto de geração do modernismo norte-americano, no início do século XX,
Pound e Eliot escrevem sobre o poder divinatório da poesia em um mundo de caos,
fugacidade e impossibilidade. Em Retrospect, Pound (1965, p.35) corrobora a importância de
um fazer poético que reconhece a atuação da tradição nas obras de nomes como Goethe,
Dante e Milton. Nesse artigo, além da defesa do ritmo e do uso de imagens significativas, o
poeta atesta a necessidade de leitura de escritores da literatura universal para a produção do
novo. Segundo Pound (Ibid., p.33), o esforço do poeta consiste em descobrir o que já foi
escrito e o que resta aos escritores de seu tempo realizar. Ele condena a imitação e diz que não
se deve trilhar os mesmos caminhos que os antigos. Esse reconhecimento do débito em
relação à tradição está associado ao amadurecimento resultante de um saber acumulado; isso
significa que a formação do autêntico depende diretamente da leitura e da re-elaboração do já
conhecido. De acordo com Pound, esse amadurecimento exclui a convenção e o clichê;
conforme explica, vida e arte, técnica e verdade são elementos primordiais para a criação de
uma poética inovadora.
Eliot também entende a poesia como uma forma de revelação baseada na reconstrução
da tradição. No artigo Tradition and the individual talent, Eliot (2007, p.1581-1582)
argumenta que pensar a tradição é uma questão essencial. Declara que ela não pode ser
herdada, mas que é resultado de um trabalho intelectual. Para o referido escritor, essa busca
envolve a percepção do historical sense, ou seja, da compreensão de que um poeta só pode
41
gerar o novo reconhecendo seu lugar na história literária: “No poet, no artist of any art, has
his complete meaning alone” (Ibid., p. 1582). Eliot explica que o historical sense compele o
escritor a não somente dialogar com sua própria geração, mas também com seus
predecessores. Com tal diálogo, a tessitura da nova obra alteraria toda a ordem constituída,
formando-se, desse modo, um organismo de formas inaugurais. A escrita literária torna-se
possível, portanto, na aprendizagem eficiente do outro: a validação da nova verdade não
elimina a conquista do saber histórico-literário, mas o lança em direções próprias, tanto no
que se refere a aspectos estruturais quanto semânticos (Ibid., p.1583).
Para esses dois escritores, a relação entre o texto literário e a verdade exige o esforço
de atualização dos temas e da experimentação linguística. Para tal, demanda a superação dos
escritores consagrados de outrora. A leitura e a escrita literária despontam como um projeto
de vida baseado na pesquisa estética, histórica e filosófica. Trata-se de um modo de vida que
se afasta do automatismo imperceptível das massas alienadas; refere-se à concepção de uma
existência que se recusa a se acomodar na ilusória sensação de bem-estar. Nessa intensa
relação com o literário, os dois poetas convocam o leitor ao despertar que agride a passividade
do cotidiano. No poema The rest, Pound (2007, p.1481) escreve sobre a competência
diferenciada dos poetas. Estes são vistos como pessoas com uma percepção atenta da
realidade, como amantes da beleza, por fim, como indivíduos capazes de proferir verdades
não compreendidas pela maioria. No entanto, ainda que possuam tal destreza, eles são
silenciados pelo descrédito: “You of finer sense, / Broken against false knowledge, / You who
can know at first hand, / Hated, shut in, / mistrusted.” (Id.) Na poesia A canção de amor de J.
Alfred Prufrock, Eliot retrata um homem de meia-idade envolto na mediocridade de um
cotidiano que impossibilita a expansão reflexiva. Trata-se de um homem hesitante, que
confessa sua futilidade e inépcia na procura de um sentido maior para sua vida: “Respeitoso,
contente de ser útil, / político, prudente e meticuloso; / Cheio de máximas e aforismos, mas
algo obtuso; / Às vezes, de fato, quase ridículo / quase o Idiota, às vezes.” (ELIOT, 2006, p.
69-74) Esse poema se pauta na distinção entre aqueles que aproveitam com intensidade o
tempo através do esforço intelectual e aqueles que se acomodam na banalidade e se permitem
subjugar pelo pragmatismo. Pode-se ver, portanto, que tanto Pound e Eliot diferenciam entre
os que estão despertos à experiência que maximiza as potencialidades do ser e à experiência
que restringe as escolhas ao automatismo. No citado poema, Pound assim o faz de forma
explícita na distinção entre os poetas e aqueles que desprezam a verdade. Já Eliot traça essa
separação do modo implícito ao retratar um homem entregue ao imediatismo dos sentidos. Os
dois poemas demonstram que a relação do indivíduo com a verdade demanda uma postura
42
engajada. Eles sinalizam também uma provocativa concepção dos dois poetas (presente em
outros poemas e em textos teóricos): conduzir o leitor, através do poético, a um envolvimento
ativo com um autoconhecimento significativo.
Conforme se pode notar, alguns dos principais nomes da história literária norteamericana contribuíram significativamente na validação da importância da literatura para a
formação da cultura e para a aprendizagem pessoal. Cunliffe explica que, desde o século
XVIII, havia uma preocupação com a criação de uma tradição literária nos Estados Unidos
cujo objetivo era romper os laços de submissão cultural com a Inglaterra. A literatura norteamericana estava desprovida de temas locais e escritores consagrados; além disso, as obras
inglesas tinham grande circulação no país, de modo que muitos livros chegavam a ser
pirateados. A nova república, portanto, erguida após a independência de 1776, demandava
uma autonomia cultural imprescindível à identidade da nação: “a independência política não
trouxera independência cultural, e a primeira provocava um clamor em prol da segunda.”
(CUNLIFFE, s.d., p. 54) Mais à frente, afirma Cunliffe: “Tais eram algumas das
perplexidades da literatura americana durante os primeiros anos da nova república. Contra
elas deve ser colocada a grande fé americana na melhoria, fé que iluminava o escritor e o
especulador de terrenos, sem distinção.” (Id.) Já de acordo com os escritores comentados
neste estudo, para o campo da formação cultural, a literatura é vista como uma herança
histórica que transcende sua época e se incorpora no imenso legado artístico universal.
Herança essa que é capaz de nutrir a alma de contínuas gerações e promover a construção de
novas possibilidades de escrita e de pensamento. O literário é considerado um “artefato” de
valor da sociedade, uma presença que se atualiza as questões humanas através de leituras
compromissadas com a construção de novas vias reflexivas. A aquisição desse saber associase a um esforço de aprendizagem, a uma dedicação que exige um afastamento do
pragmatismo cotidiano. Esse esforço não implica somente a memorização, tampouco uma
interpretação circunscrita às fronteiras do textual; antes, ele demanda uma expansão crítica,
isto é, o diálogo entre o novo saber e o anterior, de sorte que tal confrontação permita
relacionar a experiência interpretativa e o desvelar das conjunturas humanas. Nessa
confrontação, o real não se apresenta apenas como um fenômeno circunscrito à percepção
sensorial; antes, ele se desnuda como uma fonte de possibilidades hermenêuticas, ou seja,
como um saber permanentemente destinado à reavaliação e à modificação3.
3
Vale acrescentar que, nos séculos seguintes, essa rígida dicotomia entre a nova nação e a Europa iria ser
atenuada e/ou desaparecer nas vozes de escritores como Henry James, Eliot e Pound. A literatura norteamericana seria vista então como uma imprescindível fonte de contribuição para a literatura universal.
43
Para os escritores destacados, a literatura é um instrumento de amadurecimento da
visão de mundo. Os textos analisados demonstram que a relação entre sujeito e texto literário
liga-se à constituição de um modo de vida baseado na autonomia intelectual, na leitura
aprimorada e na compreensão critica da realidade. Para que isso aconteça, no entanto, torna-se
indispensável o entendimento de que a literatura deve ser levada a sério, de que ela é uma
ferramenta de re-elaboração intelectual e ética. Em outras palavras, a leitura do texto literário
relaciona-se ao exercício de autoconhecimento e à instigação da curiosidade epistemológica.
Nesse exercício, o indivíduo se projeta à concretização das potencialidades do ser. O saber,
mais do que um conjunto de informações, transforma-se em um instrumento eficaz de tomada
de decisões. As verdades testemunhadas pela literatura constituem um arcabouço capaz de
despertar no leitor novas atitudes frente aos paradoxos das relações humanas, tornam-se uma
referência na elucidação do próprio, um fundamento de reestruturação das verdades
individuais. Portanto, no literário, a criação artística e a verdade não são excludentes, mas
possibilitam a irrupção de conhecimentos significativos.
Por fim, foi observado que, desde sua origem, a literatura norte-americana contou com
escritores que reconhecem a indispensabilidade da relação entre a arte, a verdade e a tradição.
Tais escritores, além de terem contribuído com um legado que hoje é considerado como parte
de um relevante corpus literário, colaboraram na instauração de um repertório teórico que
ratifica o vigor da aprendizagem literária (e de sua produção) na representação e no
entendimento dos paradoxos da existência. Essa aprendizagem exige o reconhecimento do ser
humano como um ser histórico que necessita da alteridade para a construção de si. A
concepção veiculada por esses escritores de diferentes épocas e ideias é que o indivíduo não é
apenas parte de seu mundo contemporâneo, mas também um ente imerso na grandiosa
sociedade universal. Por tal razão, a descoberta de si e do outro perpassa a leitura de textos
que, com valiosa qualidade estética, testemunharam, ao longo dos anos, entrelaçamentos de
ações humanas que atestam que a diferença apenas se possibilita na compreensão do que
existe de compartilhado entre homens e mulheres de todos os tempos. Daí a ênfase conferida
à tradição literária (artística) como fonte de pesquisa para a apreensão dessas verdades.
44
Referências bibliográficas
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CUNLIFFE, Marcus. A literatura dos Estados Unidos. São Paulo: Revista Branca, s.d.
DREISER, Theodore. True art speaks plainly. In: BAYM, Nina et alii. The Norton Anthology
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EMERSON, Ralph Waldo. Arte. In: _________. Ensaios. Trad. Jean Melville. São Paulo:
Martin Claret, 2005.
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Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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_______ . The rest. In: BAYM, Nina et alii. The Norton Anthology of American Literature.
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SCULLY, James (org.). Modern Poetics. New York: McGraw-Hill Book, 1965.
THOREAU, Henry David. Leituras. In: _________. A desobediência civil. Trad. Sergio
Karam. São Paulo: L&PM Pocket, s.d.
_________ . A desobediência civil. Trad. Sergio Karam. São Paulo: L&PM Pocket, s.d.
45
AS CONSTRUÇÕES DE RELATIVIZAÇÃO EM CARTAS
QUINHENTISTAS
Bianca Graziela da Silva1
RESUMO: Estudo sobre o comportamento das estratégias de relativização, num corpus composto por cartas
do século XVI, a fim de mostrar que as formas relativas não padrão não são exclusivas do PB ou pertencentes a
uma realidade linguística comum somente ao presente século, no Brasil e em Portugal. Objetiva-se, sobretudo,
detectar ocorrências de formas de relativização não padrão, concorrendo com a padrão no século XVI, no
português europeu, ou seja, interessa-nos saber se as relativas não contempladas na tradição são próprias do
português brasileiro, assim como o conjunto de mudanças atestadas nessa modalidade ou se, no português
europeu, em sincronias passadas, já havia ambiente de realização de construções cortadoras e copiadoras.
Palavras-chave: relativização, século XVI, lingüística .
1. Introdução
Orações relativas ou de relativo são orações subordinadas a um núcleo substantivo, ou
a um elemento equivalente a um substantivo, na oração anterior – o antecedente – e são
encabeçadas, quando desenvolvidas, por um pronome relativo, que retoma esse antecedente.
São conhecidas, tradicionalmente, como orações subordinadas adjetivas. Estratégias de
relativização é a denominação atribuída a um conjunto de três estruturas das quais duas são
ignoradas pela Gramática Tradicional e somente uma “é prescrita”, como se explica a seguir.
Foram levados em consideração os três tipos diferentes de estratégias de relativização.
Em (1), apresentam-se exemplos das estratégias denominadas padrão, canônica ou standard,
por estarem de acordo com o que apregoa a gramática tradicional. Os que se seguem em (2) e
(3) são classificados, pelos estudos que tratam do assunto, como formas relativas não padrão.
Em 2.(iv), tem-se um exemplo da estratégia conhecida como cortadora, em que há ausência da
preposição no início da oração relativa, cujo contexto de realização é o de sintagma
preposicionado. Os dados apresentados em 3.(v) e 3.(vi) ilustram as formas chamadas de
copiadoras ou com pronome cópia ou lembrete. Tal estratégia repete a informação
representada pelo pronome relativo. E, em nosso estudo, consideramos também a cópia por
meio de sintagma nominal (ou preposicionado).
1) A estratégia padrão ou canônica:
(i) Os meninos que chegaram agora devem fazer o trabalho. – Sujeito
1
Mestre e doutora em língua portuguesa pela UFRJ. Professora de língua árabe na UFRJ.
46
(ii) Os meninos que vi devem fazer o trabalho. – Objeto direto
(iii) Os meninos de que gosto devem fazer o trabalho. – Sintagma preposicionado.
2) A estratégia cortadora:
(iv) Os meninos que gosto devem fazer o trabalho. – Sintagma preposicionado.
3) Estratégia copiadora:
(v) Os meninos que vi eles devem fazer o trabalho. – Objeto direto
(vi) Os meninos que gosto deles devem fazer o trabalho. – Sintagma preposicionado.
Dois trabalhos são considerados de base para o estudo das estratégias de relativização:
Mollica (1977) e Tarallo (1983). Entretanto, consideramos a importância de abordar um deles,
Tarallo (1983), em virtude das características afins ao presente artigo.
O autor, dentre outros materiais de fala, utilizou, como corpus diacrônico, cartas e
textos literários referentes à segunda metade do século XIX. Seus dados diacrônicos
constatam, em contextos preposicionados, que a estratégia cortadora havia suplantado a
padrão depois de entrar em concorrência com ela (como ele mostra em tabela na página 207).
O autor mostrou como resultado, de 1880 dados, 178 do século XIX, 59,5% da cortadora
sobre 35,4% da padrão e 5,1% da copiadora.
Estratégias de relativização em contexto preposicionado
(adaptada de TARALLO, 1983, p. 207)
Estratégias
Séc. XIX
Padrão
63 / 35,4 %
Cortadora
106 / 59,5 %
Copiadora
9 / 5,1 %
Total
178 / 100 %
O presente trabalho também utilizou corpora diacrônicos, desejando contribuir com
estudos gerais sobre as relativas ao apresentar conclusões dessas estratégias no século XVI.
Somamos informações a respeito do português europeu aos trabalhos que abordam essa
modalidade.
A pertinência para este estudo recai no fato de as formas não padrão, copiadora e
47
cortadora, estarem sendo consideradas próprias do português do Brasil, surgidas no século
XIX. Consideramos que tais formas já existiam na língua no tempo de Cabral, antes de
chegarem ao Brasil. Essa hipótese é coerente com a ideia de que o fenômeno não é novo, data
de priscas épocas, como aponta Tarallo no exemplo do latim Ultra eum locum, quo in loco
Germani consederant (TARALLO, 1994, p.165) [para além daquele lugar, no qual os alemães
haviam acampado no lugar]. Portanto, considera-se relevante a análise de textos do século
XVI, a fim de observar se as construções relativas são notórias também em tal contexto.
2. As construções de relativização e a gramática tradicional
De um modo geral, os gramáticos apresentam o mesmo parecer no tratamento das
orações subordinadas adjetivas (BECHARA, 1999; CUNHA & CINTRA, 1985; LIMA,
1997). Elas são assim chamadas por funcionarem como adjetivos para um substantivo
antecedente (nome ou pronome). Segundo Luft (2002), tais orações são anexas ou justapostas
ao antecedente mediante um pronome relativo e funcionam como adjunto adnominal ou
aposto desse substantivo. A diferença de função se dá a partir da forma que se apresentem:
sem pausa, funcionam como adjunto adnominal; com pausa, como aposto. Tal diferença gera
uma classificação distinta. As orações sem pausa são classificadas como restritivas, por
delimitarem o sentido do nome ou pronome antecedente. As orações com pausa são chamadas
de explicativas e, ao contrário das restritivas, que são indispensáveis ao sentido cabal do
enunciado, as explicativas podem ser eliminadas sem comprometimento do sentido, pois, de
acordo com Luft (2002), elas se justapõem a um substantivo.
Tais estruturas já passam a ser contempladas por gramáticos interessados em estudar a
língua e suas variações, como por exemplo, Bechara (1999, 2006) e Mateus et al (2006).
Mateus et al admitem haver na fala espontânea duas estratégias de relativização
diferentes das orações relativas tradicionalmente designadas como “subordinação adjetiva”.
As orações subordinadas adjetivas, para as autoras “orações relativas”, são assim designadas
por conta de seu paralelo sintático e semântico com adjetivos – posição pós-nominal, valor
atributivo e de modificador nominal. Fazem parte dessa classificação as relativas sem
antecedente expresso (relativas livres) e relativas com antecedente nominal, que podem ser
restritivas ou determinativas e apositivas, explicativas ou não restritivas. As restritivas
“contribuem para a construção do valor referencial da expressão nominal” (p. 655), ou seja,
restringem a extensão do conceito expresso pelo nome que a oração modifica. As explicativas
exprimem um comentário do locutor sobre o antecedente da relativa.
48
Também, segundo a tradição, designam os constituintes que introduzem as relativas
como “pronomes”, “advérbios” ou “adjetivos relativos” e comentam a propriedade dessas
construções de estabelecerem um nexo anafórico entre o antecedente e o constituinte relativo.
Quanto às estruturas não padrão, as estratégias de relativização, pertencentes, segundo
as autoras, à fala espontânea, comentam que podem ser do tipo que deviam conter SPs em
posição inicial, porém que apresentam somente a forma que – estratégia cortadora, como se
vê em (a); e as consideradas “estratégia resumptiva”, com pronomes pessoais, demonstrativos,
advérbios locativos ou mesmo a repetição do antecedente no interior da oração, como se
mostra em (b):
(a)
O livro que te falei é o mais bonito (em vez de de que te falei...)
“[...] é uma arte que eu dou muito valor.”
“[...] Passo assim os dias que estou em casa.”
(b)
“Temos lá, no meu ano, rapazes que eles parecem atrasados mentais, quer dizer...”
“[...] fui eu e mais uma irmã minha que também ela sabe muito bem de bolos[...]”
“[...] temos aí mulheres a trabalhar as máquinas que acho que essas devem receber mais
que aquelas”
“[...] Que é uma pronúncia cantada que eu própria que sou de cá não a sei muito bem dizer
[...]”
As autoras supõem estar diante de uma tendência de mudança no português europeu
pelo fato de, embora as estratégias sejam consideradas marginais numa perspectiva purista, a
estratégia cortadora faz parte, atualmente, do registro oral de falantes altamente escolarizados.
Nossa perspectiva é que já no século XVI havia ocorrências de tais estratégias no português
europeu mesmo no registro escrito.
Para Bechara (1999, 2006), as orações subordinadas adjetivas resultam de uma
transposição realizada pela oração independente, mediante o transpositor que (representado,
segundo ele, pelo pronome relativo) em relação a outra oração independente que passa a
funcionar como um adjunto adnominal, num nível inferior. Em relação às orações relativas
marcadas por índice preposicional, o gramático alerta para a função sintática do pronome
relativo e para a regência do verbo da oração transposta que tornarão, segundo suas palavras,
imprescindível o uso de preposição introduzindo o relativo. Assim,
49
Em A cidade a que nos dirigimos ainda está longe, o relativo que reintroduz na
oração subordinada adjetiva a que nos dirigimos o substantivo cidade, e vale por
nos dirigimos à cidade, em que o núcleo verbal dirigimos requer um termo
argumental marcado pelo índice preposicional a, preposição que, portanto, não
deve faltar anteposta ao relativo, que funciona como complemento relativo do
núcleo verbal nos dirigimos: A cidade a que nos dirigimos ainda está longe.
(BECHARA, 1999, p. 466)
Bechara (1999, 2006), em seção denominada “Relativo Universal”, reconhece a
existência de uma estrutura – a estratégia cortadora – não recomendada pela língua padrão. O
relativo universal, segundo ele, é um simples elemento transpositor oracional, relativo despido
de qualquer função sintática, a qual vem mais adiante expressa por um substantivo ou
pronome, como em O homem que eu falei com ele. e A amizade é coisa que nem sempre
sabemos seu significado. Sobre a produtividade dessas formas na língua, o autor reconhece
sua importância no uso a partir de comentários como “Frequentes vezes a linguagem
coloquial e a popular” e “o relativo universal se torna, no falar despreocupado, um ‘elemento
linguístico extremamente prático’.”
3. Estudo dos relativos na Carta de Caminha e na Demanda do Santo Graal
Em estudo sobre as estruturas relativas, Barreto (1996) apresenta resultados
interessantes para as pesquisas sobre o assunto. O primeiro deles é a já preferência pela forma
que, nas funções de sujeito e objeto direto, situação evidenciada em estudos sincrônicos. Veja,
a seguir, exemplos com essa forma nos corpora mencionados:
i-
... e seg deziam eses que La foram folgauam com eles./ (fol. 8v, l. 17-8) – Carta de
Caminha.
ii-
... e pensade em este milagre que nosso Senhor nos mostrou. (Cap. CCVI, l. 12-) –
Demanda do Santo Graal.
As construções estudadas não foram encontradas na Carta de Caminha, no entanto, na
Demanda do Santo Graal, foram encontradas estruturas copiadoras na função de objeto direto
e cortadoras, como mostramos abaixo:
iii-
Entam leeo as letras que ambos as ouvirom... (Cap.CCVIII, I. 29)
iv-
...eu te conheço por tam santo homem e por tam leal sergente de nosso Senhor que se
tu o rogares...(Cap. CCVI,I,33)
50
v-
Aquel dia maesmo que esto foi aveo que rei Boorz chegou (Cap. DCCIX, 128). Em
lugar de em que.
Como se pode observar, nas estruturas iii e iv, as e o são formas que repetem,
respectivamente as letras e nosso Senhor. São estruturas que conhecemos, atualmente, como
relativas copiadoras, nas quais se verifica a repetição do termo antecedente na cláusula
relativa.
Em v, nota-se uma estrutura relativa de função preposicionada. Trata-se de uma relativa
de adjunto adverbial, na qual “cortou-se” a preposição que deveria anteceder o termo “Aquel
dia”. A estrutura seria Aquel dia maesmo em que esto foi...
Como já dito, as conclusões de Barreto (1996) estão sendo consideradas no presente
trabalho por se tratar do mesmo assunto e, principalmente, por se tratar de corpora
diacrônicos. A seguir, apresentaremos os resultados da nossa pesquisa em textos de aljamia.
4. Estudo das estratégias de relativização nos textos em aljamia portuguesa
Numa análise sobre o comportamento das estruturas de relativização no português
europeu do século XVI, a partir dos documentos escritos em aljamia portuguesa, chegamos a
algumas conclusões que consideramos importante apresentar.
Aljamia portuguesa, segundo Teixeira (2006), são textos em língua portuguesa escritos
em caracteres árabes. Lopes (1940) afirma que o termo se origina da forma “alajamia”, língua
dos “alajames”, designação árabe para os outros povos.
Foram analisadas como corpus quatro cartas dos oito documentos aljamiados que se
encontram arquivados em Lisboa, na Torre do Tombo. Tais documentos foram publicados por
Lopes (1940), duas cartas são os fac-símiles de dois chefes marroquinos: Sidi Iahia Bentafuf,
alcaide de Safim, e Iahia Ben Bolisba, xeque da Enxovia. As outras duas foram transcritas por
Lopes (1940) e, para este trabalho, utilizaremos a edição semidiplomática e atualizadora
propostas por Teixeira (2006). As quatro cartas possuem um destinatário comum: o rei D.
Manuel.
Considerando o período de produção desses textos, pretendíamos verificar se as
construções de relativização foram produzidas nos mesmos padrões das verificadas em outros
estudos que analisaram textos desse mesmo período.
Logo, consideramos também os
resultados de Barreto (1996), a respeito do português arcaico, em pesquisa na Carta de
Caminha e na Demanda do Santo Graal. Tomamos as palavras de conclusão da autora – as
estruturas relativas, na diacronia do português, merecem um estudo mais profundo e de
51
maior abrangência (BARRETO, p.105) – como elemento de estímulo.
Buscávamos responder se, nos textos em aljamia, registram-se estruturas relativas que
“cortam” a preposição exigida pela regência verbal da cláusula relativa (relativa cortadora)
e/ou estruturas com pronome lembrete ou cópia (relativa copiadora). Ou, melhor, o estudo se
constitui de observações a respeito de construções do século XVI em confronto com as
estruturas pertencentes ao português contemporâneo. Entendemos que as estruturas que
chamamos cortadora podem ter sido construções normais no português da época.
A análise realizada com os textos em aljamia levou-nos a um total de 50 dados. Embora
tenhamos trabalhado com esse número reduzido de ocorrências, pudemos chegar a algumas
reflexões que ora apresentamos.
Verificou-se que, tal como ocorre na Carta de Caminha e na Demanda do Santo Graal,
embora sejam textos de natureza diferente, o relativo que foi o mais usado: dos 50 dados
coletados, 47 são com a forma que; os 3 dados restantes distribuem-se, respectivamente, em 1
dado de o qual e 2 dados de quem, que mostramos a seguir:
1-
fizeram dele enxovio e cativaram-no, o qual fiz soltar com infinda fadiga
2-
meus filhos, a quem entregue vossa bandeira e atabaque e privilégios
3-
Escrita o primeiro dia do mês da terra do xerife, a quem eu tomei sete
aduaresdos seus alarves
Observe, também, os exemplos de que:
4-
e para isto deve Vossa Alteza de mandar a Safim um homem que olhasse por
vosso proveito e pelo do povo
5-
que a coisa que aí houve de me não ver com o capitão, para o que cumpre a
vosso serviço.
Quanto à distribuição das estratégias no corpus, constatou-se que 40 dados são de
sujeito e OD e os outros 10 dados são estruturas de sintagma preposicionado. Estudos
sincrônicos apontam a produtividade das formas de sujeito e objeto direto em detrimento as
de sintagma preposicionado (KENEDY, 2007; BISPO, 2009; SILVA, 2005). Nas aljamias,
80% dos dados são de sujeito e OD, com uma vantagem para o sujeito (23 dados). O que nos
chamou a atenção foi que no ambiente para as três estratégias, nas construções de PP – 10
dados coletados – observou-se a participação significativa das formas que consideramos
cortadora, 4 dados para 6 de padrão. Observem-nas a seguir:
52
6-
A mim me parece que a minha verdade e leal serviço me havia de salvar deles
e das coisas do rei de Fez, porque na hora que me davam algumas cartas que viessem de
Fez, naquela mesma hora as mandava ao capitão... (Bentafuf)
7-
Vinham para Safim para saberem se consertara com o Capitão para corrermos
a ‘Abda em tempo que não fôssemos descobertos. (Bentafuf)
8-
Senhor, o dia que de Portugal parti, me encomendastes a paz e que eu a
comprasse por meu dinheiro; e fiz tudo o que me vossa alteza mandou. (Bentafuf)
9-
Escrita o primeiro dia do mês da terrado xerife, a quem eu tomei sete aduares
dos seus alarves, o dia que para ele parti, e me estou mantendo no seu trigo e cevada que
achei encovado nas suas aldeias. (Bentafuf)
Nas quatro construções acima, o relativo apresenta função sintática de adjunto adverbial
de tempo. A amostra não nos oferece outro dado com essa função, apresentando preposição,
para fins comparativos. No entanto, como é nosso objetivo, podemos comparar tais dados à
ocorrência já citada de construção relativa no Santo Graal: Aquel dia maesmo que esto foi
aveo que rei Boorz chegou (Cap. DCCIX, 128) (BARRETO, 1996). A estrutura é de mesma
função sintática, adjunto adverbial, e apresenta, como referente, a palavra “dia” como nos
exemplos (8) e (9). Mais adiante, buscaremos contrapor esses dados aos de outras cartas
analisadas.
5. Estudo das construções relativas em cartas portuguesas informais
Este estudo foi realizado com um grupo de cartas denominado de CARDS – Cartas
Desconhecidas. São 2000 cartas da esfera privada escritas entre os séculos XVI e XIX. Esses
documentos são de origem judicial (1850 cartas) e familiar (150 cartas).
Das correspondências do século XVI, foram secionadas as de Portugal e em cinco delas
foram encontradas ocorrências do fenômeno estudado. Uma carta (3128) constitui-se em uma
denúncia escrita por Francisco Miranda, padre, enviada ao arcebispo de Évora. As demais
foram escritas originalmente em árabe e traduzidas para consulta em processos do Tribunal do
Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Todas constam do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
O texto 2151 é a tradução de carta árabe de Mohate, cativo de Dom Pero da Cunha, para
Molaj Mofemede Xarife. 2152 é a tradução de carta árabe de Mançor, cativo do Infante Dom
Vasco, para Al Xaqua Nõ Habede Rahamão. A CARD 2153 é a tradução de carta árabe de
Mançor Ataharane, cativo, para Halej Alfaçe seu irmão. E, por útimo, o texto 2154 é a
tradução de carta árabe de Hamoharte, cativo, para Macahode seu irmão. Essas quatro cartas
53
foram traduzidas a fim de serem usadas no processo de Luís Duarte um mouro de vinte anos
de idade, natural de Alcacer Quibir e antigo cativo do Infante D. Luís.
O estudo dessas cartas é bastante pertinente ao que desejamos mostrar sobre as relativas
no século XVI. Assim como as cartas conhecidas como aljamias e a Demanda do Santo Graal,
as cartas de desconhecidos são documentos para a pesquisa linguística estudar fenômenos que
podem ter sua origem em épocas remotas, em modalidades distintas. Assim, seria possível
encontrar, neste recorte de tempo, formas com o corte da preposição requerida pelo verbo da
oração relativa (estratégia cortadora)? E, ainda, realizavam-se estruturas de cópia da
informação do termo antecedente ao relativo? Passamos a apresentar as respostas a essas
perguntas.
Nas cinco cartas acima mencionadas, foram encontras 21 estruturas relativas, das quais
14 são de sujeito e objeto direto e, 5, de sintagma preposicionado. Em relação ao observado
no estudo das cartas aljamiadas, nota-se que as estruturas de PP (doravante sintagma
preposicionado), nestas cartas, representam pouco menos de um quarto dos dados; nas
aljamias havia 20% de estruturas preposicionadas para 80% de sujeito e OD. Esses 24% de
estruturas de PP são todos de adjunto adverbial e, dentre eles, 3 são formas padrão e 2 são
formas cortadora, situação que não nos surpreende, já que nas aljamias e na Demanda do
Santo Graal dos poucos dados de cortadoras observados, todos eram de adjunto adverbial.
Observem-nos a seguir:
10-
nao ha huu mez q. chegui de foraquado he ho q. mi ecomedastes loguo fez na mesma
hora q. nao hechei nehuu Requado/ scilicet q. hisa fogueu co hoto pas.e descaparao (1550 –
CARD 2151)
11-
na carta de molaj mofemede / diz desta manhra.as forcas della / q. he de
hu catevo / hu mohate Em que diz a molaj mofemede / q. ate aguora nao
vos scprevi (1550 – CARD2151)
12-
E lhe pedia q. lhe scprevesse por mtas. vezas q. nao dexe de lhe
scprever a falta de papell por q. he ter o lloguar de seu pai E amiguo / En
mtas. ecomendas pa. hotos mouros (1550 – CARD 2152)
13-
Esta carta he de huu de macor ataharane q. madou a huu seu irmao halej alface /Em
que lhe dizia se s espamta mto. Delle (1550 – CARD2153)
54
14-
Tempo vira em que nos possamos escrever e falar ja q. agora asi He (1560 – CARD
3128)
As estruturas 11, 13 e 14 são formas de sintagma preposicionado cuja preposição
requerida pelo verbo está grafada antes do relativo que. Trata-se da preposição em cujos
antecedentes são na carta, esta carta e Tempo respectivamente. O antecedente Tempo, em
16, concorre com as equivalentes 10 e 11 cujos antecedentes são também expressões
temporais: na mesma hora e mtas vezas (muitas vezes). Para nós, isso significa que, no século
XVI, havia um padrão de uso de preposição em construções relativas de adjunto adverbial,
mas que muitas vezes era substituído pela forma cortadora, conforme se pode observar nos
exemplos a seguir, já vistos, das cartas de aljamia e no estudo de Barreto:
6-
A mim me parece que a minha verdade e leal serviço me havia de salvar deles e das
coisas do rei de Fez, porque na hora que me davam algumas cartas que viessem de Fez,
naquela mesma hora as mandava ao capitão... (Bentafuf)
7-
Vinham para Safim para saberem se consertara com o Capitão para corrermos a ‘Abda
em tempo que não fôssemos descobertos. (Bentafuf)
v-
Aquel dia maesmo que esto foi aveo que rei Boorz chegou _(Cap. DCCIX, 128). Em
lugar de em que.
É interessante comparar, por exemplo, a estrutura 6, das aljamias, com a 11, das cartas
de desconhecidos. Ambas têm o termo hora como antecedente e tiveram suprimidas as
preposições. Uma observação atenta das estruturas – na mesma hora q. nao hechei nehuu
Requado (CARD)/ porque na hora que me davam algumas cartas que viessem de Fez,
naquela mesma hora as mandava ao capitão (Aljamia) – mostrará que há outras semelhanças
que merecem ser mencionadas. A estrutura de aljamia apresenta o sintagma preposicionado
na hora como antecedente, entretanto, Bentafuf repete a informação na cláusula relativa –
naquela mesma hora. A construção poderia ter sido montada sem essa “cópia”: porque na
hora que me davam algumas cartas que viessem de Fez, mandava-as ao capitão, mas parece
que houve a necessidade de um reforço da informação temporal. Essa estrutura coincide com
o sintagma preposicionado que antecede o relativo no exemplo do CARD. Embora tenha sido
analisada como cortadora na seção das aljamias, acreditamos que essa estrutura possa ser
55
considerada uma relativa copiadora, ainda que pareça ter sido uma questão de reforço.
Assim, verifica-se que, em corpora diferentes, pôde se atestar as formas conhecidas
como não padrão no século XVI, resultado que corrobora nossos questionamentos sobre a
origem das formas não padrão de relativas. Bispo (2009) estudou a variação entre as
cortadoras e a estratégia padrão preposicionada numa perspectiva cognitivo-funcional e
concluiu que o falante opta pela cortadora por questões de redução de esforço de elaboração e
processamento; segundo o autor, é menos custoso, em ralação a estrutura relativa de sintagma
preposicionado, a elaboração de uma cortadora. Essa questão também está relacionada aos
seus altos índices de que, para o fato de a cortadora ocorrer quase exclusivamente com esse
pronome. Segundo ele, isso se dá porque o pronome que e a cortadora são estrutural e
cognitivamente menos complexos, logo, mais frequentes que os concorrentes o qual e a forma
padrão preposicionada, respectivamente. Ele considerou a grande demanda de tempo de
produção e processamento envolvidos nas formas o qual e a RPP (doravante, relativa padrão
preposicionada).
Nossos resultados, no corpus sincrônico (2005), mostraram uma conclusão semelhante.
A partir dos estudos de Corrêa (1998) relacionamos a grande incidência de cortadoras às
ocorrências de relativas de sujeito e OD – o mesmo output fonético, ou seja, constrói-se com
que + verbo, sem a presença da preposição antes do relativo. Nas cartas de desconhecidos só
foram observadas duas ocorrências de o qual e, nas aljamias, dos 50 dados de relativas, 47
foram com que.
As ocorrências de sujeito e objeto também são a maioria, representam um total de 67%
das ocorrências e podem ser notadas a seguir:
15-
em peças e en dineyro. me tem pela traycão que me fizerão ela e seu
Irmão (1560 – CARDS3128)
16-
Brites da cosda veo qua trazer seu filho q. se foi sem causa (1560 – CARDS3128)
17-
as forcas della / q. he de hu catevo (1550 - CARDS2151)
18-
E todos q. por mi porgütä (1550 - CARDS2151)
19-
tambem lhe pedia por me.q. nao tomasse palavras defenses que lhe
querem male / E lhe pedia q. lhe scprevesse por mtas. Vezas (1550 – CARD
2152)
56
20-
Esta carta he de huu de macor ataharane q. madou a huu seu irmao halej alface
(1550 - CARDS2153)
21-
pa.hu seu irmao macahode q. he de ecomedas e palavras dos catevos que dao cota de
seu catevero (1550 - CARDS2154)
22-
pa.hu seu irmao macahode q. he de ecomedas e palavras dos catevos que dao cota de
seu catevero (1550 - CARDS2154)
23-
e portanto ouça agora à guarda q. të posta no seu presso (1560 – CARDS 3128)
24-
të posta no seu presso o qual desdo lugar donde estava escreveo hüa carta (1560 –
CARDS 3128)
25-
dizem que /por cartas que escrivy Cà me të qui nesta cassa (1560 – CARDS 3128)
26-
que lhas mãde q. mas de e dizei se no testemunho que todas destes se
dixestes que me querieis mal e me não falavëns (1560 – CARDS 3128)
27-
não falavëns porq. não tenho outras culpas senão as vossas e destas me
cõvë defenderme e ysto fazei lugo cõ recado e secreto / e esas vigayras não
saibão nada de vos në vê jais e se mo aconselhardes mãdarlhe ey pedir trinta
mil reis que em peças e en dineyro. me tem pela traycão que me fizerão ela
e seu Irmão: (1560 – CARDS 3128)
Dentre as quatorze formas de sujeito e OD, destaca-se a construção (28) escreveo hüa
carta a hüa filha spritual sua a qual filha spritual të duas Irmãs (1560 – CARDS 3128).
Essa construção é interessante por dois motivos: (a) por se tratar de uma relativa copiadora, na
qual a cópia do termo antecedente é um sintagma nominal, filha espritual (espiritual); (b) a
relativa é, diferente do que mostram os estudos sincrônicos (SILVA, 2005; BISPO, 2009) e
do que se observam nos dados diacrônicos, encabeçada pelo relativo o qual. O relativo que
costuma ser o preferido nas construções não padrão; é, segundo Bechara (1999/2006), o
relativo universal, forma que acompanha as estruturas que, para o autor, pertencem ao falar
57
despreocupado e distraído, as formas cortadora e copiadora.
6. Conclusão
O estudo de cartas escritas no século XVI foi extremamente proveitoso e faz parte de
uma pesquisa mais abrangente sobre as estratégias de relativização. Considerando que tais
formas têm sido estudadas atualmente numa perspectiva que as inserem na realidade do PB
(doravante Português do Brasil), surgidas no século XIX, acreditamos serem de suma
importância dados de cartas quinhentistas que mostram significativos percentuais de
cortadoras e copiadoras. Entende-se que é necessário repensar a origem dessas construções
em nossa língua e lembrar que o estudo do passado ilumina o presente.
Numa comparação entre os dados de Barreto, em sua pesquisa sobre a Carta de
Caminha e a Demanda do Santo Graal, com nossos dados, levantados das cartas de língua
portuguesa escritas em caracteres árabes (EDIÇÃO TEIXEIRA, 2006), as aljamias
portuguesas, e das Cartas de Desconhecidos (CARDS), do século XVI, constatou-se que a
origem das relativas não padrão data de épocas remotas e tais formas já estavam presentes no
PE. Essa pesquisa dialoga com as conclusões de Kenedy (2007) sobre a estrutura padrão
preposicionada. Segundo o autor, essa forma é antinatural para os falantes das línguas latinas
e, provavelmente, para qualquer outra. Essa conclusão de Kenedy (2007) engloba o PE,
língua que, segundo seus estudos, não apresenta padrão diferenciado – a relativa padrão
preposicionada só é processada em contexto de escolarização.
Nas duas amostras estudadas, assim como no corpus de Barreto (1996), houve
ocorrências de estratégias de relativização não padrão. Nesta, verificam-se ocorrências de
formas copiadoras na função de OD e cortadora na função de adjunto adverbial. Naquelas,
verificamos percentuais significativos das formas não padrão. Nas aljamias há 4 cortadoras
para 6 formas padrão. Nas CARDS, além das estruturas de cópia, há 4 formas cortadoras para
3 padrão.
Esse estudo faz parte de uma pesquisa que estuda as relativas ao longo de três séculos –
XVI, XVII e XVIII – em cartas de natureza diferente, mas que poderá revelar interessantes
descobertas dessas que são, atualmente, formas tão aceitas no falar de inúmeros falantes do
português, no Brasil ou além mar.
58
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59
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Carlos Alberto Faraco. Posfácio de Maria da Conceição e Maria Eugênia Lamoglia Duarte.
São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
60
DESAFIOS DO FEMINISMO: UM MOVIMENTO SEMPRE EM
MOVIMENTO (TEORIA, PRÁTICA E POLÍTICA)
Maximiliano Torres1
RESUMO: Este ensaio busca o entendimento, por meio de alguns exemplos de filósofos, sociólogos
e historiadores, de como e quando a cultura patriarcal começou a se erguer. Com explicações que se
sustentam desde a existência de um suposto matriarcado até a passagem dos nômades aos sedentários,
pensadores – Bachofen, Engels, Muraro, Bourdieu - concordam que a força física do homem, a
compreensão de sua importância na procriação e o capital, fizeram dos homens seres opressores, tanto
das mulheres quanto de outros homens. Também traça um histórico do movimento feminista e aponta
seus valores teóricos e práticos, mostrando que, como um movimento político, o feminismo se
transforma na medida em que se percebe ultrapassado, pois é sempre revisto teoricamente.
Palavras-Chave: Opressão, Patriarcalismo, Cultura, Gênero.
A história do pensamento feminista é uma história da recusa da construção
hierárquica entre masculino e feminino, em seus contextos específicos; é
uma tentativa de reverter ou deslocar seus funcionamentos.
(SCOTT, 1990, p. 13)
O FEMININO É FEITO NUMA FÁBRICA. O masculino é fabricado.
Tudo o que é humano é feito à máquina.
A fábrica é meio antiquada, escura. Contudo, entrevemos
uma linha de montagem que produz e reparte andróides femininos e
andróides masculinos em compartimentos
distintos.
Saem dali para o mercado, na cidade dos homens, onde catálogos,
discursos promocionais já os esperam, onde vão ocupar sempre as mesmas
prateleiras.
Ver. Ouvir. Observar essas palavras que há milênios fabricam
o mundo, suas formas. Falar com elas. Habitar a cidade fantasma.
A fala, fábrica da fábrica.
(GLENADEL, 2008, p. 7)
As epígrafes supracitadas, de Joan Scott – historiadora norte-americana – e de Paula
Glenadel – poetisa brasileira –, nos instigam a pensar sobre os lugares sociais
predeterminados ao que se entende por masculino e por feminino. A primeira, por ser tratar
do excerto de um ensaio específico sobre o tema, aponta, de forma enfática, para a resistência
do pensamento feminista perante as hierarquias androcêntricas. Já a segunda, revestida do
1
Doutor em Teoria Literária, pela UFRJ; Titular de Teoria da Literatura na Faculdade Machado de Assis e coautor do livro Estéticas da Crueldade, Rio de Janeiro: Atlântica Editora – organizado por Ângela Dias e Paula
Glenadel -, com o artigo As faces do desejo em A casa da paixão, de Nélida Piñon; do livro Além do cânone, Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro – organizado por Helena Parente Cunha -, com o artigo As incursões de Eros no
cenário da poesia carioca contemporânea, dentre outros.
61
vigor da palavra poética, denuncia, num tom cômico-paródico, as construções ideológicas de
gênero.
Desse modo, numa estrutura patriarcal, todo o processo de socialização vai reforçar
preconceitos e criar estereótipos para os gêneros, como próprios de uma suposta
naturalização, apoiados na determinação biológica. Ou seja, na diferença biológica apóia-se a
desigualdade social e esta toma uma aparência de naturalidade. Com isso, as relações de
gênero refletem concepções de gênero, que são internalizadas por todos os membros da
sociedade.
Pierre Bourdieu, em suas reflexões sobre o poder exercido pela dominação masculina,
alerta-nos para o fato de que, primeiramente, devemos analisar a realidade como parte
integrante dela, pois, a dominação de gênero se encontra no centro da economia das trocas
simbólicas e esta prática está corporificada, fazendo suas vítimas tanto mulheres quanto
homens. Afirma o antropólogo que:
Quando tentamos pensar a dominação masculina, corremos o risco de recorrer ou
nos submeter a modos de pensamento que são, eles próprios, produtos de milênios
de dominação masculina. Queiramos ou não, o analista, homem ou mulher, é parte e
parcela do objeto que tenta compreender. Pois ele ou ela interiorizou, na forma de
esquemas inconscientes de percepção ou apreciação, as estruturas sociais históricas
da lei masculina (BOURDIEU, 1998, p. 13).
Para o pensador francês, o corpo é o lugar no qual estão inscritas as disputas pelo poder
e é nele, também, que está demarcado todo o capital cultural; é a primeira forma de
identificação desde o nascimento. Por conseguinte, o sexo define a posição de dominado ou
de dominador. O corpo é a materialização da dominação, o locus do exercício do poder por
excelência.
Não é novidade que várias sociedades – algumas com mais radicalidade, outras com
menos – colocaram e, ainda colocam, as mulheres numa posição de subalternidade perante os
homens. A eles são oferecidos todos os privilégios, desde os melhores lugares à mesa, o
acesso à educação, a liberdade de escolher os rumos de suas vidas, até a oportunidade de
ascensão intelectual e social. A elas, simplesmente, o espaço doméstico, a responsabilidade de
cuidar dos filhos e a imposição à passividade, que visa manter a supremacia falocêntrica. Em
tais sociedades, vive-se sob a égide do patriarcalismo. Sobre este termo, já tão discutido,
concordamos com Manuel Castells, quando explica que sua caracterização se sustenta:
(...) pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no
âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o
patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção e do consumo
à política, à legislação e à cultura. Os relacionamentos interpessoais e,
62
conseqüentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e
violência que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo
(CASTELLS, 2001, p. 169).
Essas representações sociais, engendradas pelas construções simbólicas, que colocam o
homem como a norma e a mulher como o desvio, avançam para o campo político e passam a
ser vistas e entendidas como a realidade objetivada. Em outras palavras, a idealização
objetivada torna-se subjetiva por meio das instituições formadoras de consciência que
fornecem o modo de viver à realidade, como se esta fosse constituída por uma unidade de
sentido inquestionável.
A sociedade estabelece os papéis e, com isso, elabora uma somatização cultural da
dominação. Sendo assim, “a oposição hierárquica, binária, entre masculino e feminino parece
fundamentada na natureza das coisas, porque encontra eco praticamente em toda parte”
(BOURDIEU, 1998, p. 17). Nesta realidade:
(...) a ordem masculina está tão profundamente arraigada que não precisa de
justificação: ela se impõe como auto-evidente, universal (o homem, vir, é esse ser
particular que experimenta a si mesmo como universal, que tem o monopólio do
humano, homo). Ela tende a ser tida como certa em virtude da concordância quase
perfeita e imediata que estabelece entre, por um lado, estruturas sociais, como as
expressas na organização social do espaço e do tempo e na divisão social do
trabalho, e, por outro lado, estruturas cognitivas inscritas nos corpos e nas mentes
(BOURDIEU, 1998, p. 18).
Desta forma, percebemos claramente que este posicionamento, ao contrário do que
pensaram por muito tempo alguns teóricos, não é um fato biológico, intrínseco à natureza
humana, que coloca o macho como o ativo e a fêmea como a passiva. Mas, sem dúvida, uma
construção cultural que apresenta a masculinidade como representação da individualidade e a
feminilidade como representação da alteridade; o homem é o centro/eu, a mulher é a
margem/outro, constituída a partir do homem. E é nesse sentido, enquanto atividade
educadora, que a cultura “exerce uma ação psicossomática que leva à somatização da
diferença sexual, ou seja, da dominação masculina” (BOURDIEU, 1998, p. 18).
Muitos pensadores se debruçaram e ainda se debruçam sobre o tema da origem da
opressão feminina, promovendo fervorosos debates em torno dessa questão. Tentam, com
isso, detectar, a partir de um percurso histórico, quais os mecanismos utilizados para colocar a
mulher em subordinação ao homem durante tantos séculos e, também, entender exatamente
quando e como essa postura começou a ruir. Vários são os caminhos, muitas são as
elucidações. Elas perpassam desde a existência de um suposto matriarcado, passando por uma
mutação das sociedades, até a explicação pelo avanço socioeconômico.
63
Johann Jakob Bachofen, em seu livro Mitologia arcaica y derecho materno, a partir de
uma pesquisa de caráter religioso e político do direito materno nos tempos antigos, afirma que
houve um matriarcado e que este resulta da maternidade como princípio, ou seja, da
“associação natural e psicológica mãe-filho” (BAMBERGER, 1979, p. 234). Explica que, em
épocas muito remotas, havia uma liberdade extrema nas relações sexuais. O ato não estava
ligado a uma relação amorosa, era meramente instintivo; não existia o compromisso. O sexo
se dava, na concepção de hoje, de forma promíscua. Sendo assim, o parentesco era
matrilinear; sabia-se quem era a mãe, jamais o pai. Somente à mulher era atribuída a
consangüinidade. Com isso, a mulher, enquanto geradora de vida, possuía um alto escalão de
autoridade; era a legisladora, governava os grupos familiares, os sociais e os religiosos. “A
este estágio avançado do direito materno, seguiu-se uma lei civil promulgada pelas mulheres,
chamada por Bachofen, de ‘Ginocracia’” (BAMBERGER, 1979, p. 234).
O jurista suíço também defende a idéia de que a igualdade e o respeito entre os sexos
determinavam as vidas dos povos ginecocráticos. E que a desestabilização só aconteceu com
o domínio patriarcal, a partir da descoberta do homem sobre a sua parcela na procriação e da
criação do “princípio divino do poder pátrio” (BAMBERGER, 1979, p. 234).
É importante clarificar que tal estudo apresentado sobre o matriarcado arcaico, apesar
de precursor e extremamente erudito, recebeu várias críticas por basear-se somente em noções
de fantasia e ficção. No entanto, percebendo, antecipadamente, “que a falta de evidências
arqueológicas significava que ele não poderia sustentar sua hipótese dos direitos maternos
com dados sólidos” (BAMBERGER, 1979, p. 236), o estudioso clássico adverte o leitor para
o fato de que “o trabalho pioneiro permanece para ser feito, pois o período cultural ao qual o
direito materno se refere nunca foi estudado seriamente. Aqui entramos em território virgem”
(BACHOFEN, 1967, p. 69).
Também explorando territórios virgens, mas baseada em estudos arqueológicos sobre a
espécie humana e outras espécies animais, Rose Marie Muraro observa, em seu Textos da
fogueira, que, nas sociedades arcaicas, período que se estende de quatro milhões de anos até
cerca de cem a trinta mil anos a.C., os grupos sobreviviam da coleta dos frutos e da caça a
pequenos animais, não havendo necessidade da força física.
Nesse período, explana a estudiosa, as culturas eram matricêntricas, com cultos e
oferendas centrados a deusas terrestres. Apesar disso, tais sociedades, como já explicou
Bachofen, se baseavam na parceria e não na dominação feminina. Outro fato que se une à tese
do pensador suiço é o de as mulheres serem vistas como seres sagrados, pois os homens
acreditavam que elas eram fecundadas pelos deuses.
64
No entanto, com o crescimento dos grupos, a coleta de frutos e os pequenos animais não
são mais suficientes para o provimento; faz-se necessária a procura de outros alimentos.
Começa, nesse momento, por volta de 10000 a.C., a caça aos grandes animais e, em
contrapartida, o poder ganha outra proporção, a competitividade aumenta e, está estabelecida
a hegemonia da força física. Com isso, a relação dominante/dominado. Nessa mesma época,
também com a compreensão do papel masculino na fecundação, começa a ruir o matriarcado
e surge a civilização androcrática, dominada pelo poder patriarcal que passou a cultuar um
Deus Celeste. Segundo a socióloga, é ainda neste período que ocorre uma importante
invenção tecnológica:
(...) é a técnica de fundir metais. Logo que aprendem, eles passam a construir os
instrumentos de arar a terra – pás, picaretas e ancinhos –; sistematizam as técnicas
de cultivo e, principalmente, inventam o arado. Aí aparece a agricultura. Eles
deixam de ser nômades, os grupos para cultivar a terra se tornam sedentários.
Começa então a dominar outro tipo de lei, que vem a ser aquela que nos influencia
até hoje. Já não é mais a solidariedade, a partilha, a propriedade comum dos grupos,
mas sim a lei do mais forte e da propriedade privada da terra (MURARO, 2000, p.
33).
Ainda sobre esta questão, Friedrich Engels, estruturado no materialismo histórico - teoria
criada juntamente com Karl Marx, em seu tão conhecido, A origem da família, da
propriedade privada e do Estado – “apresenta uma dinâmica histórica, na qual as mulheres
são transformadas de membros livres e iguais de uma sociedade, a esposas e tuteladas
dependentes e subordinadas” (SACKS, 1979, p. 186), ao estabelecer um contraste
comportamental entre as sociedades sem classes e as sociedades de classes.
Em seu estudo, o filósofo alemão afirma que a opressão feminina teve sua origem,
concomitantemente, com a destruição da ordem tribal igualitária - na passagem dos nômades
aos agricultores sedentários, por volta de 10000 a. C. -, a partir da origem da propriedade
privada, das famílias como unidades econômicas, dos meios de produção e da configuração
de sociedades exploradoras. Pois é nessa fase de desenvolvimento social que o homem
descobre que a força de trabalho poderia ser transformada em objeto de troca e de consumo e
a propriedade privada faria de si o dono e dirigente da família, da mulher e dos demais
dependentes; que estes deveriam, por obrigação, colaborar no crescimento e manutenção dos
bens, uma vez que seu chefe estaria “engajado em uma produção competitiva com outros
chefes” (SACKS, 1979, p. 189).
Desta forma, a importância do homem perante a mulher foi aumentando. A ela, restou o
espaço privado e a obrigação de gerar e criar o maior número de filhos, para que estes
65
pudessem arar e defender a terra. Garantindo, com isso, o excedente econômico. Explica o
filósofo que:
A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa – a
exclusividade no trato dos problemas domésticos – assegurava agora a
preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua
importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a
ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição (ENGELS, 1987, p. 182)
As explanações acima, todas de caráter histórico, apresentam possíveis versões sobre a
dominação masculina. No entanto, várias são as áreas do saber (a filosofia, a sociologia, a
literatura, a mitologia, a psicanálise) que vêm, há tempos, levantando questões e buscando
entendimento sobre o “universo enigmático da feminilidade” (BIRMAN, 1999, p. 9). Apenas
nos apoiamos nestas três versões, a fim de pensar um ponto de partida para uma discussão
sobre o essencialismo do patriarcado, a naturalização da diferença entre homens e mulheres e,
principalmente, o papel do movimento feminista na desconstrução dessa ideologia estruturada
e estabelecida por uma visão masculinista.
Contudo, para falar sobre o feminismo - assunto que vem sendo, nas últimas décadas,
amplamente discutido -, lembremos das palavras de Branca Moreira Alves e Jacqueline
Pitanguy quando esclarecem da dificuldade de estabelecer uma definição sobre o mesmo, uma
vez que “(...) este termo, traduz todo um processo que tem raízes no passado, que se constrói
no cotidiano, e que não tem um ponto predeterminado de chegada” (ALVES & PITANGUY,
1985, p. 7). Sobre a origem do termo e da prática, é Zahidé Lupinacci Muzart quem nos
esclarece que:
Atribui-se a Charles Fourier (1772-1837) a paternidade do vocábulo “feminismo”,
que se tornou corrente na prática política e social no final do séc. XIX e, algumas
vezes, designa a doutrina, porém, mais freqüentemente, a luta que visava a estender
à mulher a igualdade de direitos (políticos, civis, econômicos), privilégio exclusivo
do homem na sociedade. Porém, como prática, o feminismo preexiste ao emprego da
palavra com que é designado. É aliás difícil propor uma origem desta prática que
seja unanimidade entre os estudiosos, pois cada um tem tendência a se referir a ela,
segundo a análise política que faz do feminismo: ruptura individual; expressão
crítica no domínio cultural, engajamento coletivo no combate político (MUZART,
2002, p.14).
Desta forma, pensar o feminismo, como um processo de transformação, é tentar
compreender as suas idas e vindas, as suas conquistas e derrotas, os seus valores e desvalores,
as suas vias e desvios, a sua diversidade e flexibilidade, a sua continuidade sociopolítica e a
descontinuidade de seus estilos, o seu questionamento sobre a dicotomia conceitual entre
teoria e prática. Enfim, pensar o feminismo é procurar entendê-lo como um movimento
66
sempre em movimento.
Sendo assim, para refletir sobre o feminismo, “(...) como um campo teórico, uma prática
interpretativa e, por fim, como um lugar político” (SCHMIDT, 2004, p. 01), tomaremos como
base, obras de alguns pensadores que forneceram subsídios para questionar o império do
patriarcalismo. Vale esclarecer que privilegiamos apenas alguns nomes, tendo como critério
de escolha, a leitura de textos representativos, publicados no século XX. O motivo desta
triagem se deu a partir da noção de que seria impossível discorrer por todas as vozes que
trabalharam em favor dos direitos das mulheres; o que não significa que desconheçamos os
seus valores: sabemos que Christine de Pisan, Louise Labé, Olympe de Gouges, Mary
Wollstonecraft e Nísia Floresta, entre tantas outras, foram extremamente responsáveis na
fertilização de tão infecundo terreno, contribuindo para que outras feministas pudessem arar,
semear e colher os frutos da tão sonhada emancipação feminina.
Começaremos nossa incursão pelas idéias disseminadas no livro A evolução do
feminismo, subsídios para a sua história - publicado em 1933-, escrito por Mariana Coelho, a
quem Zahidé Muzart identifica como “uma das primeiras mulheres a tentar traçar uma história
pouco contada” (MUZART, 2002, p.11).
Portuguesa, nascida em Vila de Sabrosa, sua biografia é um tanto controversa, pois
fontes de dicionários biobibliográficos apresentam diferentes informações quanto à
especificidade do ano de seu nascimento: 1857 (SHUMAHER & BRAZIL, 2000, p. 418),
(OLIVEIRA & VIANA, 1967, p. 267); 1858 (COUTINHO & SOUSA, 1990, p. 441); 1872
(FLORES, 1999, p. 129). O que todos concordam é que em 1892 veio para o Brasil, aí
radicando-se, e foi morar em Curitiba, no Paraná; onde viveu o resto de sua vida, falecendo
em 1954.
Feminista convicta, Mariana Coelho foi, acima de tudo, uma educadora; “mestra de
várias gerações de paranaenses” (MUZART, 2002, p.12). Assim como a já citada Nísia
Floresta, fundou e dirigiu um colégio voltado para a educação feminina, em Curitiba. Em
acordo com a escritora norte-rio-grandense, acreditava que, somente pela educação, as
mulheres teriam a chance de se libertar das algemas sociais impostas pela sociedade
patriarcal, uma vez que o conhecimento traria para a mulher os subsídios para contestar a sua
função; a possibilidade de obter uma profissão e, com isso, a sua independência. Em sua
opinião, “a verdadeira e principal emancipação feminina é a do trabalho” (COELHO, 2002, p.
48).
Contrariando as assertivas da época, Mariana Coelho critica a visão essencialista que
pregava a inferioridade intelectual da mulher como biológica e irrevogável; acreditava que
67
esta era de origem social, uma construção cultural. Defende a idéia de que a dita inferioridade
intelectual das mulheres era resultado da falta de uso de seus cérebros, pois as possibilidades
de desenvolvê-lo, pelo estudo e pelo trabalho, estavam oclusas a estas. Segundo ela:
O sexo feminino, ninguém o pode contestar, tem vivido séculos e séculos
verdadeiramente asfixiado sob a prepotência masculina de acomodatícia tradição, na
qual tem ela impunemente sufocado as suas preciosas faculdades intelectuais e de
trabalho (COELHO, 2002, p. 47).
Calcada nesta certeza, lutava pelo direito ao acesso das mulheres à instrução e ao
trabalho, para que conquistassem meios de sobrevivência, independentes da família e do
casamento. Afirma, com veemência, que:
A mulher educada no preparo de qualquer rendosa profissão – e ela tem provado no
respectivo desempenho, que sua competência é igual ao do homem – não tem receio
do futuro, nem se preocupa com a idéia de que ele lhe proporcione um bom ou mau
marido, nem mesmo a oprime a expectativa de não conseguir aquele que deseja.
Amparada pela sua linda profissão, em vez de aceitar o ambicionado marido-arrimo,
ela pode escolhê-lo, porque o seu trabalho lhe garante a independência, a felicidade.
Seus progenitores não precisam mais expor a mercadoria, rodeando-a de todos os
atrativos para a muitas vezes infrutífera caça (do que resultam quase sempre
casamentos desastrados), porque o seu futuro está garantido pelo seu trabalho
(COELHO, 2002, p. 48-9).
Quanto à sua produção intelectual, Mariana Coelho, além de educadora, também foi
poetisa, contista, ensaísta e tradutora. Recebeu a medalha de prata na Exposição Nacional de
1908, no Rio de Janeiro, pela elaboração de seu livro Paraná mental, que traça a história
literária do Paraná. Mas, foi “no ensaio polêmico que sempre se distinguiu (...), gênero em
que as mulheres deixaram poucas páginas no séc. XIX” (MUZART, 2002, p.13).
Em A evolução do feminismo, a autora apresenta uma compilação de informações sobre
fatos, dados científicos e pessoas que, de diversas formas, puderam auxiliar na defesa da
igualdade intelectual e de direitos sociais entre os homens e as mulheres. Apresentando “um
panorama do tema estudado” (MUZART, 2002, p. 13), comenta a presença das mulheres na
religião, na guerra, na política, na administração, nas ciências, nas artes, nas letras, na
imprensa e no amor. Elaborando subsídios para a história do feminismo, relata as ações de
mulheres em diferentes conjunturas, períodos e locais e descreve, assim, alguns feitos
corajosos, valorizando sempre a ‘superioridade’ feminina. Acredita que “o feminismo – a
mais surpreendente e ruidosa transformação social do nosso século, à qual assistimos
maravilhados, não pode deixar de ser encarado e recebido como progresso” (COELHO, 2002,
p. 33).
68
Mariana Coelho valorizou a superioridade da mulher em relação ao homem, pois
acreditava que a evolução da humanidade dependia da evolução da mulher. Assim como
Bachofen, citado no item 2.1, usou a teoria nunca comprovada do matriarcado para
demonstrar que a mulher pode ser igual ao homem, porque outrora fora superior, e acreditava
que uma sociedade liderada pela mulher seria uma sociedade voltada para a evolução
espiritual, física e moral.
O ensaio, de cunho histórico e político, é bastante instigante e serve de referência, não
só para pensarmos a situação da mulher à época, mas, principalmente, para refletirmos sobre
resultados de conquistas até hoje esperados. No entanto, vale lembrar que o livro reúne textos
escritos entre o final do século XIX e o início do século XX; assim, faz-se necessária atenção
em muitas passagens, pois estas são, em certos aspectos, datadas. A obra, apesar de ainda
dialogar com a contemporaneidade, é um produto de seu tempo e como tal deve ser lida.
Como um livro de ensaios reunidos, escritos antes, durante e depois da I Guerra
Mundial, as preocupações da autora com os resultados deste acontecimento ficam explícitas
no correr do texto. Em sua análise sobre a participação feminina nos bastidores da peleja,
conclui que a guerra fez mais pelo feminismo do que anos de luta e reivindicações das
mulheres. Diz-nos que:
Essa tremenda hecatombe humana, portanto, que convulsionou a terra, não abalou
somente convicções, nem transformou instituições somente; ela veio também
sancionar e justificar o direito do trabalho – e veio modificar velhas rotinas e
preconceitos da sociedade antiga, dando força e amparo aos respectivos
prejudicados – transformando essa sociedade decrépita numa esperançosa sociedade
nova (COELHO, 2002, p. 33).
Apesar de, como dito anteriormente, trazer alguns aspectos que apontem o livro como
ultrapassado, a atualidade de A evolução do feminismo, subsídios para a sua história,
transparece quando percebemos que muitas das reivindicações das mulheres daquela época
ainda não foram consideradas. Nas palavras de Zahidé Muzart:
Quando Mariana Coelho escreve e termina Evolução do feminismo, a guerra já
estava longe, e a luta era pelos direitos das mulheres, direitos que abrangiam não
somente o direito ao voto, mas uma série de questões que até hoje ainda preocupam
os/as estudiosos/as do feminismo e que são objeto de discussão em seminários e
congressos, tais como os direitos iguais ao trabalho e à remuneração, a violência
contra a mulher, o direito dos filhos nascidos fora do casamento. Todas essas
questões, ainda atuais, estão contempladas neste livro de uma pioneira feminista
brasileira que deixou um ensaio político e o registro de uma voz insurgente, coerente
e organizada (MUZART, 2002, p. 18)
69
Seguindo a nossa trilha, deparamo-nos com Simone de Beauvoir que, no clássico O
segundo sexo, ao perscrutar por várias áreas do saber, como a “biologia, psicanálise e
marxismo; bem como pelas cosmogonias, religiões, tratados, crenças e crendices de Ocidente
e Oriente, sempre atenta à concretude histórica que fundamenta tais discursos” (DUARTE,
2002, p. 27), esparge reflexões sobre a situação de subalternidade da mulher, baseada na tese
de que, “sob o patriarcado, a mulher figura como a primeira grande encarnação da alteridade
absoluta” (DUARTE, 2002, 27).
Lançado em 1949, este livro causou tanto admiração quanto estranheza. No entanto,
apesar das várias polêmicas que sempre suscitou, tem servido de referência para grande parte
dos ensaios, debates, discussões sobre os estudos de gênero e, “em alguns aspectos, contribuiu
com os estudos empreendidos pela nova geração de feministas; em outros, foi rejeitado (...)”
(ZOLIN, 2003, p. 52). Sobre essa divergência de opiniões, vale lembrar as palavras de Toril
Moi, para quem Simone de Beauvoir representa uma das maiores teóricas feministas do
século XX. Diz-nos a ensaísta:
Em 1949, quando publicou O segundo sexo, estava convencida de que o advento do
socialismo bastaria para por fim à opressão da mulher e, portanto, se declarava
socialista, não feminista. Hoje em dia, sua posição é diferente. Em 1972, passou a
integrar o MLF (Movimento para a Liberação da Mulher) e se declarou,
publicamente, feminista pela primeira vez. Explicou essa tardia conversão ao
feminismo aludindo à radicalização imposta a este novo movimento da mulher: “As
associações de mulheres que existiam na França antes da fundação do MLF, em
1970, eram, em geral, reformistas e legalistas. Não tinha nenhum desejo de unir-me
a elas. Ao contrário, o novo feminismo é radical” (Simone de Beauvoir, Today, 29);
(MOI, 1995, p.101) 2.
Dividido em dois volumes, O segundo sexo é um livro com “uma argumentação tão
erudita quanto contundente” (DUARTE, 2002, p. 27), bem documentada, alicerçada na lógica
e no conhecimento, que levanta questionamentos e cria polêmicas sobre a situação da mulher.
No primeiro volume, “Fatos e mitos”, são abordados, como explícito no título, os fatos e os
mitos da condição feminina na sociedade. Já no segundo volume, “A experiência vivida”, tal
condição é examinada nas dimensões sexual, psicológica, social e política.
Desta forma, podemos ousar dizer que esta obra pode ser considerada de extrema
importância no que se refere à prática discursiva sobre a situação feminina, pois estabeleceu
uma reflexão que configurou, de imediato, uma plataforma de discussão não só sobre o
feminino, mas, sobre os feminismos. Seu objetivo foi demonstrar que a noção de feminilidade
2
Tradução do autor.
70
é uma ficção arquitetada pelos homens e consentida pelas mulheres; talvez por estas não
estarem preparadas para os rigores do pensamento lógico daqueles, ou talvez por acreditarem
em alguma recompensa, a partir da passividade perante as fantasias masculinas. Seja qual for
o motivo desse consentimento, o que interessa é perceber que o resultado foi a queda na
armadilha da auto-limitação.
Segundo a filósofa francesa, os homens, enquanto sujeito, juiz e parte, chamaram a si os
triunfos da transcendência e ofereceram às mulheres uma pseudo-segurança, elaborando
teorias de aceitação e de dependência; fazendo-lhes crer que tais características são inatas do
seu caráter. Assevera a pensadora que a “representação do mundo, como o próprio mundo, é
operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que
confundem com a verdade absoluta” (BEAUVOIR, 1980, v. 1, p.183), uma vez que, até as
“religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: (...) puseram a filosofia e
a teologia a serviço de seus desígnios” (BEAUVOIR, 1980, p. 16).
Nessa perspectiva, somente aos homens é concedido o status de sujeito pleno,
conquistador da transcendência. As mulheres, por sua vez, já nascem dentro de um modelo
limitado de prescrição que as impede de constituir-se enquanto sujeito, sendo consideradas
sempre o outro do sujeito universal masculino, ou seja, “figuras sem passado, sem história,
sem religião própria” (DUARTE, 2002, p. 27). Com isso, a mulher “determina-se e
diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial
perante o essencial. O homem é o sujeito absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 1980, p. 10).
Ao questionar o determinismo “da universalidade apregoada pelo patriarcalismo”
(DUARTE, 2002, p. 27), Beauvoir não só apresenta uma oportunidade de se pensar a mulher
como sujeito de seu próprio ser; como responsável pelo seu próprio destino, liberta das idéias
pré-concebidas e dos mitos preestabelecidos que não lhe deram possibilidades de escolha. Seu
estudo, assim como o de Mariana Coelho, também elaborado numa época ainda sob o choque
do pós-guerra - sendo este o da II Guerra Mundial -, se faz importante, pois, além de preparar
o caminho para as alegações propostas pelos feminismos radical, liberal e socialista, ainda
hoje, nos serve de alicerce para pensar sobre qualquer tipo de segregação da cultura
hegemônica contra identidades em processo.
Numa pesquisa sobre o feminismo, “tomando como ponto de partida o exame de
certas campanhas pelos direitos da mulher na França de 1789 a 1944” (SCOTT, 2002, p. 23) e
baseando-se na biografia de quatro feministas (Olympe de Gouges; Jeanne Deroin; Hubertine
Auclert e Madeleine Pelletier), Joan Walach Scott, no livro A cidadã paradoxal: as feministas
francesas e os direitos do homem, também nos leva a refletir sobre as bases ideológicas que
71
sustentam a problemática “diferença sexual”. Explica-nos a historiadora que:
Quando se legitimava a exclusão com base na diferença biológica entre o homem e a
mulher, estabelecia-se que a diferença sexual não apenas era um fato natural, mas
também uma justificativa ontológica para um tratamento diferenciado no campo
político e social (SCOTT, 2002, p. 26).
Com a pesquisadora norte-americana, percebemos que a essa diferença com base na
biologização está vinculado um desejo de exclusão, que vai além de colocar o homem como o
centro e a mulher como a margem; encontra-se, também, a formação androcêntrica de uma
identidade que constrói um sujeito unificado, autônomo, absoluto. Essa construção,
fundamentada no determinismo e na naturalização, fornece ao homem o discurso e à mulher,
o silêncio. Como esclarece Eduardo de Assis Duarte, tais organizações hierárquicas e
hegemônicas voltam-se, “portanto, não apenas para a imposição de verdades tidas como
essências absolutas, mas, sobretudo, para o estabelecimento de procedimentos de controle
social, cultural e político” (DUARTE, 2002, p. 13).
Em O poder da identidade, Manuel Castells, ao analisar o histórico do movimento
feminista, o percebe como um movimento social polifônico, estimulante e extremamente
variado que buscou, acima de tudo, negar a “identidade feminina” construída a partir da
ideologia patriarcal e, com isso, caracterizou-se, pelo esforço histórico, individual e coletivo,
de desconstruir tal identidade para redefinir o papel das mulheres na sociedade. Para ele, o
feminismo, constituindo as suas redes de sustentação, esteve sempre “emprestando sua
experiência e fornecendo os materiais discursivos para que a cultura feminina pudesse
emergir e solapar o patriarcalismo no seu mais forte reduto: a mente das mulheres”
(CASTELLS, 2001, p. 217).
Essa busca de conversão dos fundamentos de uma estrutura social hegemônica se deu a
partir da compreensão de que a construção das identidades sociais, tanto nos homens quanto
nas mulheres, sobrevém de um contexto cultural, marcado pelas relações de poder. Desta
forma, as feministas se opuseram à estrutura de produção e reprodução da sexualidade e da
personalidade, sobre a qual as sociedades historicamente se estabeleceram.
Segundo Castells, esse movimento social transformador que lança as bases
fundamentais do questionamento do patriarcado, principalmente no mundo ocidental, e
apresenta-se com o compromisso de opor-se e ultrapassar a dominação masculina “ao mesmo
tempo que esclarece a diversidade das lutas femininas e seu multiculturalismo” (CASTELLS,
2001, p. 210), irrompeu primeiro nos Estados Unidos, no final da década de 60, e na Europa,
no início dos anos 70, propagando-se, nas duas décadas seguintes, para o resto do mundo.
72
Porém, vale lembrar que feminismo ao qual se refere, é o movimento feminista
contemporâneo, pois o próprio sociólogo lembra-nos que as idéias feministas já existem há
bastante tempo, mesmo em versões históricas distintas e específicas. Afirma ele que:
A história do feminismo como tal é antiga, como bem exemplificado pelo
movimento sufragista nos Estados Unidos. Tenho, porém, de admitir que foi apenas
nos últimos 25 anos que observamos uma insurreição maciça e global das mulheres
contra a sua opressão, embora com diferente intensidade dependendo da cultura e do
país. Tais movimentos têm causado impacto profundo nas instituições da sociedade
e, sobretudo, na conscientização das mulheres (CASTELLS, 2001, p. 170).
Sendo reconhecido como basilar no que concerne à transformação das identidades e dos
papéis sociais relativos à dimensão do gênero, o feminismo, como prática e relato, é, na
opinião de Castells:
(...) a (re)definição da identidade da mulher: ora afirmando haver igualdade entre
homens e mulheres, desligando do gênero diferenças biológicas e culturais; ora
contrariamente, afirmando a especificidade da mulher, freqüentemente declarando,
também, a superioridade das práticas femininas como fontes de realização humana:
ou ainda, declarando a necessidade de abandonar o mundo masculino e recriar a
vida, assim como a sexualidade, na comunidade feminina. Em todos os casos, seja
por meio da igualdade, da diferença ou da separação, o que é negado é a
identidade da mulher conforme definida pelos homens e venerada na família
patriarcal3 (CASTELLS, 2001, p. 211).
O questionamento sobre as construções de sujeitos e de identidades nos estudos de
gênero considera uma gama de enredamentos que precisam de uma análise cuidadosa.
Estabelecer o que significa ser homem ou ser mulher requer, antes de tudo, uma reflexão
sobre as formas com as quais os sujeitos se representam enquanto mulheres ou homens.
Historicamente criou-se a concepção essencialista de uma identidade feminina ou das
mulheres, ou seja, uma natureza comum a todas as mulheres. A biologia definia as essências
masculina e feminina, de modo que os comportamentos humanos eram elucidados pela
genética e pela fisiologia. Entretanto, com o passar do tempo e o desenvolvimento do
movimento feminista, o argumento de uma identidade essencialmente feminina foi sendo
questionado, na medida em que os/as pensadores/as defendiam a existência de uma identidade
ou de um sujeito feminino, em referência a um sujeito masculino e que, com base nas
diferenças sexuais, ser mulher é não ser homem.
A psicanálise toma a diferença sexual como um dado da estrutura da experiência do ser
falante. Desde o nascimento se é menino ou menina. Esse destino está escrito no corpo, é
nomeado na linguagem e seus efeitos sobre as identificações e sobre a escolha de objeto não
3
Grifos do autor.
73
permitem que essas escolhas sejam livres. O ser falante repete, não escolhe livremente entre
ser homem ou mulher. Lembrando a afirmativa de Freud, “a anatomia é o destino” (FREUD,
1976, p. 222).
Tal assertiva, enfatiza os efeitos determinantes que as diferenças anatômicas entre os
sexos exercem sobre a nossa constituição como sujeitos humanos. Cada cultura, cada
sociedade, elabora esta diferença de maneira específica, prescrevendo condutas e papéis
adequados para cada sexo. Ao sexo biológico com o qual se é dotado ao nascer, soma-se o
complexo processo de identificação e estruturação psíquicas, cujos pontos culminantes são, na
teoria freudiana, o Complexo de Édipo e o Complexo de Castração, que farão, no melhor dos
casos, coincidir o sexo psicológico com o biológico.
Vale ressaltar que a aplicação da psicanálise como instrumento de leitura dos
movimentos da sociedade exige sempre a demarcação da diferença de ponto de vista com o
pensamento sociológico. Aquela se orienta por um compromisso ético com a clínica sob
transferência e põe em jogo as ficções do inconsciente, com isso, estabelece outra perspectiva,
diferente das ficções do real, adotada pelos sociólogos.
Sendo assim, salvo as diferenças de pontos de vista, importa-nos entender que a partir
dos questionamentos sobre os fundamentos da ideologia falocêntrica e os da construção
sociocultural das desigualdades entre homens e mulheres, o essencialismo sofreu extrema
ofensiva do movimento feminista, principalmente em demandas políticas. Argumentava-se
que tais diferenças essenciais favoreciam os valores tradicionais do patriarcalismo e visavam
manter as mulheres confinadas em seus domínios privados. Segundo Sonia Missagia de
Mattos:
Foi justamente questionando os arranjos convencionais dos relacionamentos que
reduzem a caracteres biológicos (naturais) a determinação hierárquica de lugares e
postos para homens e mulheres na sociedade que emergiram os movimentos
feministas (...). Esses movimentos foram equiparados ao movimento dos jovens e ao
movimento dos trabalhadores e eram ditos, pelo Kaiser Wilhelm (Alemanha: 1910)
como uma das mais perigosas ameaças para a civilização e ordem social dos tempos.
Para Simmel, esse movimento influenciaria “o futuro de nossa espécie de maneira
mais profunda do que a própria questão operária” (SIMMEL, 1993, p. 70);
(MATTOS, 1999, p. 33-4).
Enfim, relembrando a fala de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy sobre a
dificuldade de definição do feminismo, concordamos que há que se ter muita cautela ao contar
e analisar a trajetória passada e as promessas futuras desse movimento. Sabemos que os
tempos são outros, que as sociedades se transformaram (em alguns aspectos para melhor, em
outros para pior), que muitas conquistas foram alcançadas e outras ainda estão por vir. Hoje,
74
já não podemos nos referir ao feminismo singular, mas aos feminismos plurais, pois o
movimento criou muitas frentes e vertentes, com isso, se prodigalizou. No entanto, se não
podemos defini-los, devemos valorizar a sua prática e relato, buscando entender a sua
importância, in lato sensu, para a humanidade. Pois, no dizer de Alejandro Carson:
Seja o feminismo uma posição político-pessoal diante da conduta e do
comportamento cotidiano, seja ele um movimento social, uma forma de pensamento
ou uma perspectiva analítica inserida nas ciências sociais das décadas de sessenta e
setenta, sua emergência pode ser conceitualizada como uma série de eventos
históricos que criaram as condições necessárias para o nascimento de um discurso
que: começou a nomear e descrever os fenômenos de maneira diferenciada; se
desenvolveu e se solidificou após ser elaborado com extrema seriedade cognitiva;
reconheceu como seu objetivo político a desarticulação da ideologia patriarcal e das
práticas sociais, psicológicas e afetivas que a acompanham (CARSON, 1995, p.
194).
Os estudos feministas e de gênero, por acumularem aportes de inúmeras tradições
disciplinares, são, por definição, um campo de conhecimento multidisciplinar e
transdisciplinar. Buscam, desta forma, apontar para a necessidade de pluralizar leituras e, com
isso, atribuir outros sentidos para a escrita. Assim, o feminismo, enquanto um movimento
político transformador, que interroga, desconstrói e critica seus próprios discursos em
desdobramentos que contemplam as variáveis etnias, classes, raças, e o próprio sexo biológico
na constituição do sujeito “mulher”, insere-se em um campo de poder/saber na medida em
que nos alerta para o fato de que a tarefa da teoria feminista contemporânea é, sobretudo, a
“de historicizar o pós-moderno, de politizar a contribuição das teorias pós-estruturalistas,
levando em conta a perspectiva crítica e transformadora do feminismo” (SCHMIDT, 2000, p.
49).
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77
FELLINI E O CINEMA FELLINIANO
Julia Scamparini1
RESUMO: Este artigo introduz uma discussão sobre a presença de variadas camadas de significação em
filmes de Federico Fellini, considerando isto como elemento característico de seu cinema. Após uma breve
apresentação da formação do cineasta, traços de sua poética são organizados em tópicos para que o olhar do
analista possa ler com mais clareza o rol de dizeres que compõem as tramas fellinianas.
Palavras-chave: Federico Fellini; significação fílmica; poética onírica.
1. Introdução
Ele nunca se perguntava se o que estava vivendo era sonho ou realidade,
porque, para ele, o sonho era, propriamente, o estilo da realidade.
(Contardo Calligaris)2
Entre os interessados na sétima arte, é notório que Federico Fellini chamou a atenção
da indústria e da crítica cinematográficas desde que inaugurou sua carreira, e que pouco
tempo depois sua importância como cineasta tornou-se consagrada e inquestionável. Nos
quarenta anos em que realizou filmes, dos anos 1950 até 1993, ano de sua morte, Fellini
explorou características e sentimentos humanos, como a complexidade da psique e o amor
pelo próximo, expôs seus próprios questionamentos e angústias, tratou de temas universais,
como a morte e a memória, e também observou e falou de grupos sociais marginais, da
história e dos costumes de seu país, das origens de seu povo. Ao abordar esta variada gama de
assuntos, aplicou recursos de imagem e cinema que hoje são característicos da sua poética, e
tornou-se, para muitos, um diretor genial, além de extremamente “italiano”. Uma ponte
estabelecida entre o real caricatural e imaginado, além de suas peculiaridades escriturais,
conferiu à sua arte o adjetivo “felliniano” e, ao artista, o status de inovador na história do
cinema e de personagem de referência no âmbito da cultura de seu país.
Até hoje, cerca de vinte livros são lançados anualmente sobre Fellini, os quais variam
entre memórias e curiosidades contadas por colegas de trabalho e amigos, ensaios sobre seus
filmes, correspondências inéditas, sua iconografia romana, sua abordagem da história da
Itália, grandes edições de seus desenhos, de fotos dos sets de filmagem, e de sua obra como
1
Doutora em Letras Neolatinas – Italiano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente
inicia pós-doutorado em Literatura e Cinema na Universidade Federal Fluminense – UFF.
2
Publicado em 21 de abril de 2011 no jornal Folha de São Paulo.
78
um todo. No Brasil, porém, sua poética é pouco estudada, ainda que seja um cineasta
reverenciado por grandes nomes: Glauber Rocha lhe dedicou algumas – belíssimas – páginas,
Ismail Xavier sublinha sua filmografia e contribuição, Luiz Renato Martins escreveu uma tese
sobre seu olhar político. Além destes autores, pouca discussão acadêmica foi produzida sobre
Federico Fellini, um diretor de importância fundamental na história da sétima arte e que
contribui também para as discussões sobre Literatura e Cinema, que hoje em dia estão em
ebulição nos Departamentos de Letras das Universidades brasileiras. Neste artigo pretende-se,
após uma breve introdução sobre a formação do cineasta, apresentar os principais traços de
sua poética apontando para a variedade de mensagens que a riqueza de seu trabalho
cinematográfico deixa mais subjacente do que evidente.
2. Fellini
Natural de Rimini, na Emilia Romagna, Federico Fellini foi criado pela mãe romana e
o pai emiliano, como ele. Nasceu junto ao mar em 1920 e cresceu imerso na cultura fascista
que começaria a dominar, logo em seguida, seu país. Tratava-se de uma Itália unificada há
sessenta anos e cujo povo ainda não se concebia italiano, mas vinha sendo educado a seguir as
doutrinas e ensinamentos fundamentados na tradição, na moral e nos valores católicos
comuns a toda a península.
Como o próprio cineasta afirma, naquela época a guerra era uma presença sentida, em
iminência, a ponto de causar em seu povo a impressão de que era impossível a vida sem a
espera do conflito (FELLINI, 2004, p. 15). A Itália era uma nação que precisava de identidade
para se fortalecer perante o quadro europeu, e a política mostrava a todos que a força que lhes
faltava chegaria com o sucesso de outro conflito bélico. Assim, era difícil não tomar partido
pelo desejo de modernidade, riqueza e poder que o fascio propunha, e desta forma a nação se
reconhecia unida pelo apoio comum ao Duce.
Em meio a este contexto, já na adolescência a consciência social e a sensibilidade
artística eram reconhecíveis no jovem da província que desenhava e ia em busca da
publicação de suas vinhetas. O sucesso das primeiras caricaturas, em 1936, levou à abertura
da Bottega del ritratto, uma oficina de desenhos em Rimini. E algumas de suas vinhetas e
desenhos foram publicados em 1938, em jornais de sua cidade e também no “420” de
Florença, marcando sua veia humorística e pictórica, e inserindo-o no mundo do jornalismo,
o que o levaria logo em seguida a Roma.
Ainda em Rimini, o cinema Fulgor era lugar de diversão e fuga do medo da guerra que
79
estava por vir e de encontro com as divas e o wellfare da América do Norte – entretenimento
que foi proibido depois, quando a Itália e os Estados Unidos se oficializaram inimigos de
guerra. Nos anos 1930 viam-se filmes americanos, sobretudo, quando as produções italianas
eram filmes de guerra ou sobre os romanos, ou seja, pouco sedutores para os nativos da
península frente ao fascínio que chegava da América. O cinema americano “sempre contou
que havia um outro país, uma outra dimensão da vida. Uma dimensão mais eficaz do que o
sermão do padre que no domingo, na Itália, falava do Paraíso...” (FELLINI apud FELLINI &
MARAINI, 1994, p. 36). O mito americano encontrou, na fase inicial da 2ª guerra, seu
máximo de potência e influência mundial, o que foi muito marcante para a infância de um
“rapazinho que vivia na província, em família, com o fascismo, a igreja, o colégio, o cinema
americano, e no verão as alemãs de maiô na praia...” (FELLINI, 2004, p. 32).
No final da década de 1930, Fellini aproximou-se de sua saída definitiva de Rimini. O
trabalho o levara a Florença, onde passou alguns meses, e ali se definiu o interesse pelo
jornalismo como possibilidade de trabalho. Logo depois mudou-se com parte da família para
Roma, que seria a sua cidade para o resto da vida.
Na capital, procurou rapidamente trabalho no periódico “Marc’Aurelio”, que o
admitiu e lhe concedeu uma coluna humorística. Conforme escrevia e definia o estilo da
coluna, nasceu uma galeria de personagens cuja descrição linguística acena às imagens que
seriam posteriormente vistas em seus filmes; e em outra coluna Fellini narrava episódios de
caráter “despudoradamente autobiográfico”, segundo seu mais importante biógrafo, Tullio
Kezich (2007, p. 39). Contemporaneamente, escrevia piadas para o rádio e começava a
colaborar em roteiros cinematográficos. Depois da guerra, abriria a Funny Face Shop para
vender caricaturas aos soldados americanos.
Assim, Fellini foi inicialmente repórter, mas conseguiu encontrar no jornal um espaço
para o que sabia fazer: narrar, desenhar, inventar personagens baseados em sua vida e criar
anedotas, sem ter que se comprometer em escrever notícias, ou opinar sobre a vida política de
seu país. Embora as raízes esquerdistas da Emilia Romagna não tenham se manifestado em
Fellini em caráter de ativismo social, é reconhecível um olhar político atento aos eventos,
ideologias e correntes de pensamento que caracterizaram a sua época, bem como aos
episódios extremos do século XX, que envolveram econômica, política, social e culturalmente
todo o mundo. Fellini sempre recusou assumir o papel de crítico social e político, mas acabou
por expressar suas observações a respeito através de seu trabalho com a imagem e o humor.
Após seu primeiro contato com o diretor neorrealista Roberto Rossellini, para quem
escreveu o roteiro que viria a se tornar o filme Roma cidade aberta, Fellini viaja para filmar
80
Paisà, do qual foi roteirista e assistente de direção. Daí nasce um primeiro interesse pela
profissão de diretor, ainda que não pensasse em deixar de ser roteirista, pois lhe agradava o
descomprometimento da tarefa: o resultado final de um roteiro, além de ser alcançado sempre
a várias mãos, era inevitavelmente alterado pela vontade do diretor. Não obstante, após alguns
anos trabalhando como roteirista para diretores já de considerável importância na cena italiana
da época, divide a direção de um filme com um deles, Alberto Lattuada, e em seguida é
convidado a trabalhar sozinho como diretor de um argumento que se tornaria o filme Abismo
de um sonho.
Seu pontapé na profissão foi dado e teve o impulso de Rossellini, o professor que lhe
mostrou como fazer filmes com maior liberdade, sem demasiado apego ao roteiro e com a
possibilidade de reinventar os meios para chegar aos fins, dando às duas etapas a mesma
importância. Para ambos um filme é o resultado de sua feitura, e não a imagem de uma ideia
pré-concebida:
É isso, acho que com Rossellini aprendi – uma lição nunca traduzida em palavras,
nunca expressa, nunca manisfestada em um programa – a possibilidade de caminhar
com equilíbrio no meio das mais adversas condições, das mais contrastantes, e ao
mesmo tempo a capacidade natural de tirar vantagem dessas adversidades e
contrastes, tranformá-los em um sentimento, em valores emocionais, em um ponto
de vista. Rossellini fazia isto: vivia a vida de um filme como uma aventura
maravilhosa de se viver e, simultaneamente, de narrar. (FELLINI apud VERDONE,
2006, p. 10)
Contudo, ainda que em alguns filmes insira elementos da atmosfera neorrealista, para
Fellini essa corrente da cinematografia italiana tão importante na história do cinema mundial
tinha outro significado: era “no sentido mais puro e original... uma busca em si mesmo e nos
outros. Em toda direção, em todas as direções em que a vida vai” (apud VERDONE, 2006, p.
5). Logo no início do exercício de cineasta Fellini distanciou-se da temática e da estética do
Neorrealismo, e sofreu ao ser frequentemente criticado por não apresentar muito engajamento
ou interesse na representação do real. Sua resposta era reivindicar a grande importância da
autonomia criativa que, segundo ele, poderia ser mais autenticamente verdadeira do que a
tentativa de reprodução da realidade:
O cinema-verdade? Sou mais pelo cinema-falsidade. A mentira é sempre mais
interessante que a verdade. A mentira é a alma do espetáculo, e eu amo o espetáculo.
A ficção pode ir em direção de uma verdade mais aguda sobre a realidade quotidiana
e aparente. Não é necessário que as coisas mostradas sejam autênticas. Em geral, é
melhor que não sejam. O que deve ser autêntica é a emoção que sentimos ao ver e ao
exprimir. (FELLINI apud VERDONE, 2006, p. 11)
O Neorrealismo, promovido a estrela do pós-guerra por importantes revistas da época,
como a Revue du cinema, dera as boas vindas ao cinema italiano. Ao lado disso, a noção de
81
“cinema de autor”3 dava ainda mais força para a originalidade da escritura felliniana, bem
como a abertura dos investidores a filmes deste gênero. A essência do cinema passou a ser
encarnada pelo diretor, e não mais por uma escola. Tratava-se do resgate do papel de artesão e
da afirmação da expressão pessoal do cineasta, e propunha-se a leitura dos estilos autorais
como escrituras cinematográficas, ombreando a figura do diretor com a do escritor. Com tais
tendências, a nouvelle vague e os críticos virando cineastas (como Jean-Luc Godard e
François Truffaut), verificou-se a abertura de uma porta para a veiculação do cinema de autor
no mercado internacional. O fenômeno Fellini advém nesta fase, em que o papel de diretor é
promovido a protagonista do processo cinematográfico, e é integrado ao núcleo de um
mercado de luxo. Isso contribuiu para seu lugar como cânone no século XX.
O impacto de Fellini deu-se sobretudo na ordem de sua orientação temática. Ele
destacou-se da representação do mundo da penúria, da exclusão do mercado, e também do
subjetivismo intimista, explorados diferentemente por Luchino Visconti, Michelangelo
Antonioni, por exemplo. Imprimiu uma marca autoral, talvez não alcançada por outro cineasta
italiano, ao colocar nos filmes os conflitos dos homens, sem julgá-los, através de si mesmo,
expondo sua vida particular, suas crises pessoais, seus questionamentos existenciais, seus
sentimentos mais íntimos. Foi esta, segundo Gianfranco Angelucci4, sua maior contribuição
para a história do cinema.
Como artista, o lugar de Federico Fellini na cultura italiana é equivalente ao de
escritores ou pintores consagrados. A sensibilidade natural de artista, o humor inato, as
primeiras experiências de cinema com Rossellini, a vivência das mudanças do século XX –
tudo isso gerou seu modo de fazer cinema e de olhar o mundo. Sua rica poética,
inegavelmente onírica, é a cristalização de seus olhos perante o mundo: as imagens que via
dormindo, que criava sonhando, têm a mesma importância das cenas construídas em seus sets.
Não obstante, Fellini não deixa de abordar em seus filmes aspectos sociológicos,
academicamente pouco estudados como parte de seu rol temático, mas tão importantes na
trama de suas histórias. Assume-se que a carência de observação científica sobre o
emaranhado de significações nos filmes de Fellini seja reflexo de sua poética, cujo onirismo é,
a nosso ver, um dos aspectos que distinguem seu cinema e que localizam mensagens em um
nível subjacente da comunicação.
3
4
A expressão, criada por Truffaut, surgiu no Cahiers du Cinema, em 1955 (MARTINS, 1994).
Opinião concedida em entrevista.
82
3. O cinema felliniano
Resumir em poucas páginas o domínio de temas e a forma como Fellini faz cinema
não é tarefa simples. Talvez por este motivo, poucos elementos de sua poética tenham sido
realçados pelos que se dedicaram a observar seus filmes, além do sonho e do autobiografismo
– seu traço mais citado, elogiado e também criticado. Depoimentos de estudiosos consagrados
indicam olhares atentos ao cinema felliniano, como exemplificam as citações a seguir:
E quando se fala de ‘felliniano’ pensamos imediatamente naquele modo típico como
a realidade se organiza em seus filmes: algo entre o indistinto, o vago, o grotesco, o
irreal, o triste, o deliquescente, o fascinante. Enfim, um sonho. (ANGELUCCI,
1974, p. 13, 14)
Fellini, um dos poucos que fizeram do cinema parte da arte moderna; o único cuja
imensa obra pode ser colocada no mesmo plano da de Picasso e da de Stravinski... A
estrada, A doce vida, Amarcord, Satyricon, Casanova, Ensaio de orquestra, A cidade
das mulheres, E la nave va são filmes que lançam um olhar magicamente
imaginativo e, ao mesmo tempo, terrivelmente lúcido sobre o mundo moderno,
sobre uma sexualidade grotesca, seu embrutecimento, seu exibicionismo... Os filmes
de Fellini são o ponto mais alto da arte moderna... (KUNDERA apud VERDONE,
2006, p. 12)
Fellini satiriza o inconsciente reprimido da cultura pagã naufragada no fascismo.
Visconti filma a representação simbólica da tragédia. Rossellini documenta as
ruínas. Documentarista do sonho, Fellini o recria magicamente através da cenografia
e atores, o sonho é a projeção da sua Câmera Olho. (ROCHA, 1985, p. 258)
Das palavras de especialistas em cinema e fellinólogos, pode-se concluir que se trata
de um autor capaz de se movimentar em universos temáticos e linguísticos variados, e que ao
mesmo tempo apresenta uma homogeneidade perceptível. Um cinema que se expande
ilimitadamente porque tem como base a liberdade de criação que permite redefinir os fins se
os meios pedem, porque aborda a melancolia através do riso, e o lado irracional e instintivo
humano inspirado na natureza dos palhaços augustos5. Dada a amplitude e a complexidade do
domínio poético de Fellini, o qual exigiria uma tentativa de passagem do abstrato ao
concreto6, pincelamos alguns aspectos de seu cinema tentando apontar como, oscilando entre
realismo e fantasia, seus filmes se comunicam com os espectadores.
5
O clown augusto é rebelde e instintivamente livre; o clown branco têm elegância, inteligência e lucidez
(FELLINI, 1983).
6
Uma tentativa de análise descritivo-interpretativa de seus filmes é feita na tese de doutorado “Do simbólico ao
subjacente: nuances de um discurso sobre a identidade italiana no cinema de Fellini”. Julia Scamparini.
Faculdade de Letras - UFRJ, 2010.
83
4. O autobiografismo e a psicanálise
É através dos sentimentos guardados em sua memória consciente que Fellini fala
“socialmente”, isto é, da e para a sociedade italiana. Não se trata de um cineasta dedicado a
recontar sua história, mas que, através de sua história de vida, suas percepções, seus traumas
pessoais e sensações, cria seu cinema e suas mensagens, sejam elas discursivas ou somente
emotivas. O acadêmico Angelucci afirma, conforme mencionado, que é esta a grande
contribuição de Fellini à história do cinema. Ele inovou quando colocou em imagens
concretas tempo e espaço subjetivos de seus personagens, como se vê em Oito e meio, para
mostrar que o inconsciente de um ser humano dialoga com o seu consciente.
Fotograma 1 – Oito e meio
Fellini admirava o trabalho de Carl Gustav Jung, que interpretava sonhos livre de
amarras a sistemas simbólicos, isto é, sem que significados previamente associados a signos
fossem o ponto de partida para a análise da psique humana. Foi o psicanalista junghiano
Ernest Bernhard o responsável por esta união: Jung e Fellini preferiam ver no sonho a criação
pessoal de referências, índices, símbolos ligados ao passado do sujeito que sonha ou até
mesmo aos arquétipos que sobrevivem no inconsciente coletivo7.
Atraído por esta forma de pensar que tanto vai de acordo com sua maneira de manter
livre a fantasia e a imaginação, Fellini concretiza sonhos, lembranças e pensamentos através
da linguagem cinematográfica. Aos personagens, dá a possibilidade de abrir espaços mentais
em que materializam seus desejos, e a si mesmo permite inventar sua memória, tratar suas
crises, opinar sem tomar partido. O cinema é o espaço que Fellini pessoalmente se concede
7
Memória social de séculos que o estudioso afirma que os homens têm e somente acessam através do sonho e,
quando despertos, inconscientemente. Conceito da teoria psicanalítica de Carl Gustav Jung.
84
para tais devaneios, e nesse sentido é autobiográfico. Ao mesmo tempo, é falando de si que
fala também do que é coletivo:
A fantasmagoria de Fellini, que durante os anos se tornou cada vez mais onírica,
coloca em cena o espetáculo da vida. O mais surreal diretor italiano paradoxalmente
nos convida a uma reflexão sobre a Realidade. O que é a Realidade? Onde acontece?
Dentro ou fora de nós? Na memória que se torna lenda, nos eventos reais que
parecem sonhos, ou nos sonhos que se materializam? [...] ‘Os meus filmes não
devem ser entendidos, devem ser vistos’, lembrou a quem se obstina a subestimar o
significado simbólico da mise en scène estética. (FELLINI & MARAINI, 1994, xiii)
Fellini fala em primeira e em terceira pessoas. Quando se exprime na primeira do
plural, não deixa de inventar para construir significações coletivas. Comunica-se com o
público através de signos simbólicos e indiciais, culturais ou criados, os quais ativam
conhecimentos da psicologia coletiva que, porque são compartilhados, permitem que o
“falso”, o fantasiado lhes esteja sobreposto. Falar de um cinema autobiográfico e psicanalítico
levaria a pensar que se trata de um discurso para si mesmo, egoísta e indecifrável. Fellini, ao
contrário, usa ferramentas para travar um diálogo mais profundo com sua época, investigando
a realidade através da criação, recuperando da memória coletiva assuntos que se
materializaram em discurso, e que, através dele, também ganham representação
cinematográfica.
5. A estética onírica
Segundo Pasolini, o léxico de Fellini é “colorido, raro, bizarro, superescrito, com
pastiches expressivos provenientes dos mais diferentes gostos, tomados dos mais diferentes
mundos” (PASOLINI apud ANGELUCCI, 1974, p. 15). A mise en scène felliniana merece
estudos pictóricos aprofundados, devido ao uso que o cineasta faz da luz, das cores, da
disposição de personagens e objetos em campo. As imagens de Satyricon, as cores e sombras
de Julieta dos Espíritos, as luzes e composições de Oito e meio, a estrutura em blocos de
Roma, a música em todo Fellini. O onirismo felliniano vai do estudo do uso evidente do
sonho em cena, seja ele fruto do desejo, como os sonhos sexuais dos adolescentes em
Amarcord, ou do inconsciente, como os delírios e desejos do protagonista em Oito e meio; é
reconhecido no estudo da composição pictórica e da própria estrutura sintática fragmentária
de muitos de seus filmes; e algumas vezes é transformado em pesadelo, como a loucura de
Antonio em As tentações do Dr. Antonio. O circo foi o “sonho” mais tangível que Fellini
experimentou em vida, conforme se conclui a partir de suas palavras (FELLINI, 1995, 1996,
85
2007a), e por isso ele reaparece em tantos momentos de sua cinematografia.
Fellini optou por criar em estúdio todos os cenários de seus filmes justamente porque
pretendia se destacar do realismo e recriar ambientes para poder usar com mais critério a luz,
e porque não tinha intenção de esconder a linguagem da qual fazia uso. Os mares de plástico
de Amarcord, Casanova e E La nave va, o barulho do vento em todos os filmes, os rostos e
corpos caricaturados com recursos de maquiagem e figurino também compõem a impressão
de sonho que ele consegue transmitir. Os próprios atores são escolhidos a dedo não por sua
competência, mas sim por seu aspecto físico, que depois será sublinhado também pela luz, e,
depois de A doce vida (com exceção de Oito e meio), pela cor.
Se o cinema é imagem, a luz é evidentemente o fator essencial. No cinema a luz é
ideia, sentimento, cor, profundidade, atmosfera, estilo, narração, expressão poética.
A luz é o poder mágico que adiciona, apaga, atenua, esfumaça, exalta, alude,
sublinha, torna crível e aceitável o fantástico ou, ao contrário, cria transparências e
por isso a realidade mas cinza e cotidiana torna-se onírica, fabulesca... Um vulto
opaco... parece inteligente, misterioso, fascinante; um rostão bondoso e pacífico
torna-se sinistro, ameaçador, dá medo. (Fellini apud VERDONE, 2006, p. 8)
‘Não tinha música’ para mim quer dizer ‘não tinha sentimento’. (FELLINI, 1994, p.
22)
O banho de Sylvia na Fontana di Trevi torna-se o encontro dos sonhos de Marcello, o
protagonista d’ A doce vida, e de qualquer romântico. A mulher também é caricaturada, mas
Fellini, nesta cena, a poupa do grotesco e realça sua beleza já voluptuosa. Em outros
momentos, também a bizarrice está presente no sonho: a Saraghina, em Oito e meio, é ao
mesmo tempo símbolo da boa lembrança dos primeiros sinais de desejo sexual, e,
paradoxalmente, sua aparência brutal remete ao pecado que a igreja associava ao sexo. É às
belas que o sexo geralmente está relacionado, mas Fellini liga a feiúra ao lado “maldoso” do
sexo. A Saraghina torna-se um símbolo criado por uma sobreposição de contrastes que
conferem dualidade ao tratamento do tema, tornando-se um exemplo em que a imagem obriga
que o espectador negocie para compreender, pois seu sentido primeiro é apenas parte do
sentido total.
A estética onírica revela o modo felliniano de ver e olhar a vida, e acaba por ser
traduzida em linguagem cinematográfica. Em meio a imagens construídas com tamanha cura
pictórica, a atmosferas criadas com luz e cores, música e rumores, e a personagens tão
expressivos que carregam significado no próprio aspecto, mensagens outras ficam
subjacentes, isto é, menos percebidas à primeira vista. Conforme explicam GOMBRICH &
HOCHBERG (1978, p. 60):
...em todo quadro vemos representada apenas uma cena (ou duas), e a partir do
86
momento que é possível perceber uma infinidade de cenas, mas somente uma é
percebida, isto significa que devemos considerar algo mais que o próprio estímulo,
ou seja: a natureza do observador, o qual, entre todas as possibilidades, responde à
imagem somente de uma forma.
Amparada por um estudo pictórico e cinematográfico, uma análise cognitiva da
comunicação filmica pode visionar, através do onirismo felliniano, a forma como chegam até
o espectador enunciados sobre, por exemplo, críticas e aspectos da sociedade italiana. Ainda
que os mares de Fellini sejam de plástico, é possível encontrar dizeres visuais que estejam
disfarçados pelo sonho, pelo grotesco, pela sátira, já que “sonhar e ver nunca concordam.
Quem sonha muito livremente perde o olhar. Fellini queria lutar contra essa impossibilidade
de coexistência.” (Bachelard apud RISSET, 1994, p. 68).
6. A comicidade e a ironia
A comicidade de Fellini, embora presente mesmo em seus filmes mais tristes ou
densos, é traço evidente de Abismo de um sonho, As tentações do Dr. Antonio, Roma, e
Amarcord. É a vocação adolescente da caricatura a ferramenta mais usada para ironizar o
desespero do personagem Ivan em Abismo de um sonho, que, transtornado, confunde uma
cliente do hotel com um membro da família, fala sem pensar, perde a fala, sua e arregala os
olhos. Wanda, sua recém-esposa, também arregala os olhos, mas o que a motiva é o sonho de
encontrar o xeique branco que está se concretizando – e não o transtorno da dúvida de ter ou
não sido abandonado na lua-de-mel, agonia de seu marido. Análoga riqueza de significado
caricatural é vista no aspecto do Dr. Antonio, em As tentações do Dr. Antonio, que
transparece sua rigidez, sua consternação e, por fim, sua loucura, com o mesmo sucesso
expressivo.
Em Roma, a sátira decai principalmente no comportamento e na língua dos romanos.
A informalidade é levada ao exagero, e a população de Roma torna-se essencialmente maleducada, apesar de altamente carismática. Igualmente carismático é o rol de personagens de
Amarcord. Os professores e alunos parecem saídos de uma prancha de desenhos, e não
encontrados na vida real. A inutilidade de ir à escola também é caricaturada, e o humor pode
fazer passar despercebida a crítica a esta instituição civil. Também a igreja é tratada, em
Amarcord, com doses de comicidade através de um padre que não escuta o que dizem nas
confissões, ensina sem se preocupar com a recepção de suas mensagens, e comparece na
corrida da fanfarra em homenagem a Mussolini.
O elemento caricatural “torna-se o instrumento expressivo para dilatar o imaginário
87
subjetivo através do qual contar os fatos e descrever o caráter dos personagens” (PILITTERI,
1990, p. 27). Mas quando os tipos ironizados são menos personagens do que parte de um
universo alegórico, como no caso do religioso e do fascista Patacca, por exemplo, a sátira e a
caricatura não se referem à história de Amarcord. Itens de um todo, são personagens
simbólicos de um esquema de conhecimentos socialmente compartilhado, no caso, sobre a
igreja e o fascismo, respectivamente. A aplicação de recursos de comicidade, geralmente
através da caricatura e do escárnio são, assim como o emprego da estética onírica, maneiras
de enunciar de modo menos direto e mais subjacente. O exagero, o grotesco, o onírico, e os
recursos que fazem rir fazem também evadir, e o espectador mais uma vez precisará atentar a
uma camada de significação que se localiza além do mais sedutor para captar discursos sobre
a sociedade, seu país, a política.
A expectativa de Fellini, acreditamos, era a de que seu público entendesse o caráter
muitas vezes “tragicômico” de seus enunciados, inevitavelmente vinculado às ambiguidades
dos objetos que o artista abordava, mas não evidente para o espectador mais desavisado, como
observa Risset (1994, p. 8):
... a verdadeira chave de seu fascínio era a inteligência [...] Além disso, não tinha
nenhuma vaidade particular por sua capacidade de compreender signos e linguagens
que os outros não percebiam, convencido de que todos eram capazes de percebê-los
e decifrá-los – bastava um pouco de atenção e curiosidade...
7. A antilinearidade narrativa
É notório que Fellini marca a mudança de sua forma de narrar a partir de A doce vida,
quando opta pela construção em episódios em detrimento de seguir a linearidade objetiva de
uma história. Neste filme, o personagem principal vaga pelos eventos e torna-se o fio que os
interliga e transforma em um conjunto. Mais do que a história de Marcello, o filme será a
reprodução em imagens de um mal-estar que o protagonista personifica. A mensagem central
é, portanto, comunicada de duas formas: através do sentimento de náusea que o filme provoca
no espectador, e por meio da composição do personagem, que vive a náusea dentro do filme.
A partir de Satyricon e, depois, mais evidentemente em Roma, o personagem perde
importância e torna-se protagonista uma cidade, uma civilização, ou uma ideia. É um passo
que Fellini dá no âmbito da história do cinema, desligando-se das amarras da tradição
narrativa e colocando-se em paridade com a evolução literária da época moderna. Uma das
marcas distintivas do cinema moderno é justamente a superação da sintaxe tradicional e a
valorização de marcas enunciativas de direção, como a falta de vínculos entre eventos, a
88
dilatação do tempo, ou usos atípico da câmera.
A doce vida também contribui com a riqueza de diálogos – o que se fortalece com Oito
e meio – e assim define outra novidade, dentro da esfera da cinematografia do diretor. Os
diálogos muitas vezes funcionam como ligação entre eventos, como a explicação de
ocorrências distantes na montagem final da película. O tempo e o espaço subjetivos, que se
intercalam ao tempo e espaço dos eventos representados, é a novidade de Oito e meio. E
Satyricon também oferece uma segunda contribuição, desta vez no que diz respeito às
imagens: em muitos momentos, uma imagem ou cena consegue compor uma história, criando
uma narrativa que não segue uma lógica de combinação com outras, mas somente a da sua
própria presença – como nas grandes obras de arte pictórica. A terceira contribuição de
Satyricon que vale menção é o excesso de “olhares para a câmera” (sguardi in macchina) e as
passagens em travelling que expõem o povo romano, repetidos depois em Roma –
estabelecendo através dos dois filmes uma linha vertical que une profundamente o presente ao
passado.
Fotograma 2 - Satyricon
A estrutura episódica ou fragmentada, a redefinição do papel do personagem principal,
o enriquecimento dos diálogos e das imagens – também devido ao uso da cor, que se torna
meio expressivo –, e usos particulares da câmera tiram dos filmes o caráter de narrativa e, ao
mesmo tempo, sublinham seu caráter de discurso. O cinema de autor sempre contempla
mensagens, sentimentos, pontos de vista, recursos fílmicos inovadores, mesmo quando se
mantém fiel à linearidade narrativa. Ao abandonar esse padrão, o caráter pictórico e
discursivo são aqueles que prevalecem. A maior liberdade com respeito à trama permite que
se fale de realidades através da ficção, já que os eventos e personagens que passeiam pelo
filme estão ancorados em algo que não é a diegese narrativa. Sua ancoragem está nos
89
símbolos, sociais e criados, amparados nos esquemas sociais e nos discursos compartilhados.
Se tem início e fim? Acho que é imoral contar uma história que tenha um início e
uma conclusão. Um filme deve ser, de alguma forma, como a vida: deve conter
imprevistos, eventos inesperados, erros. Ao mesmo tempo um filme, especialmente
aquele que me disponho a fazer, exige um controle absoluto... (FELLINI, 1996, p.
74)
8. As obsessões signológicas
Fellini tem uma visão circular da existência, uma concepção ideal que não apóia seu
percurso na dialética de Hegel, mas em uma fenomenologia que vê na magia do
símbolo e no frescor do signo o propor-se indefinido da realidade como
conhecimento e como amor. (ARPA, 2003, p. 199)
Glauber Rocha lança o termo e o conceito de “signologia felliniana”. O cineasta
pensador refere-se a um elenco que vai das presenças mais evidentes, como o mar e as
mulheres de grandes proporções, a outras, notadas quando se toma o cinema de Fellini como
objeto de estudo: o barulho do vento, as sobrancelhas femininas, o Oriente representado por
mulheres e espetáculos. Ma há ainda outras presenças, um pouco mais sutis, como as grandes
cabeças, os alemães, e os cavalos.
O problema de notar estes signos recorrentes na cinematografia do autor é procurar
um significado para os tais. Tentando fugir do vício do estruturalismo, conclui-se que em cada
filme esses signos obedecem a uma rede de construção de significações diferente e, portanto,
ganham novos sentidos. Mas o passo seguinte é abrir mão do vício de dar significação a tais
aparições – ou pelos menos a algumas delas – e aceitar que um signo, ainda que repetido
dentro de um conjunto enunciativo, possa ter função na rede que faz dialogar os diversos itens
que compõem uma cena ou um enquadramento, mas que não é símbolo ou indício de nada.
Dos elementos da natureza, o mar de Fellini foi presenteado com o significado de
transcendência, já que muitos de seus filmes terminam nele, e o barulho de vento indica
mistério, medo, ou até mesmo sonho, a depender do segmento fílmico em que é inserido. As
sobrancelhas femininas, quando exageradamente levantadas, indicam sexualidade aguçada,
enquanto as retas e curtas são parte do figurino das mulheres mais pudicas, ou de momentos
mais pudicos de uma mulher. A dimensão feminina, segundo a literatura sobre Fellini, dialoga
com sua predileção pela beleza exuberante das mulheres, e pela superioridade que atesta ver
nelas. Já a dimensão das várias cabeças – em Amarcord, Il Casanova, Satyricon – não recebeu
interpretação dos estudiosos investigados, e não arriscamos fazer aqui uma interpretação sem
observação curada. Além destes, há a presença de alemães – imagina-se que o diretor
90
mantinha uma antipatia especial e pessoal por eles –, e de cavalos. Esta última presença
constante foi informada pelo entrevistado Moraldo Rossi, e só depois foi comprovada
empiricamente a predileção felliniana por este animal.
O desafio talvez seja aceitar que imagens muitas vezes não contêm mensagens ou
simbolizam nada, mas contentam-se em serem oferecidas aos olhos do espectador e em
comporem um retrato de poética. Desta forma, colocamo-nos em harmonia com o artista, que
diz:
Talvez eu seja um espectador particular, pois sinto prazer quando estou frente a algo
que é absolutamente verdadeiro não porque é semelhante à vida, mas porque como
imagem é verdadeira por si só, como signo. E é, portanto, vital. É a vitalidade que
me agrada e faz sentir que a operação foi bem sucedida. (FELLINI, 1994, p. 11)
9. Considerações
Este artigo é um recorte da tese de doutorado8 que examina a relação entre o discurso
da identidade italiana difundido pela mídia escrita e sua abordagem pelo cinema felliniano.
Organizar a linguagem felliniana em aspectos nomeáveis foi imprescindível para o
reconhecimento de mensagens em material fílmico; e desenvolver este estudo foi essencial
para concluir que o cinema de Fellini não deixa de ser onírico, mas que os sonhos criados em
seus filmes são muito mais ricos em significado do que se percebe à primeira vista.
A quantidade de citações presentes é proposital e busca a divulgação do que se pensou
a respeito do cinema felliniano. Ao lado das palavras do próprio cineasta sobre a arte à qual
escolheu se dedicar, acredita-se que o estudante de Letras poderá ter maior interesse em se
aprofundar na filmografia do diretor e aproveitá-la com maior familiaridade e emoção.
10. Referências bibliográficas
ANGELUCCI, Gianfranco. “Fellini 15 ½ e la poetica dell’onirico” In Angelucci, G. e Betti
Liliana (cur). Il film “Amarcord” di Federico Fellini. Bologna: Cappelli, 1974.
ARPA, Angelo; ANGELUCCI, Gianfranco. “Angelo & Federico” In Casavecchia, Simone
(cur). Io sono la mia invenzione. L’Europa, Fellini e il cinema italiano negli scritti di Padre
Angelo Arpa. Roma: Studio 12, 2003
ARPA, Angelo. L’arpa di Fellini. L’Aquila, Roma: Edizioni dell’Oleandro, 2001.
8
Ver nota 4.
91
FELLINI, Federico; MARAINI, Toni. Imago, appunti di un visionario. Roma: Semar, 1994.
FELLINI, Federico. Eu sou um grande mentiroso: entrevista a Damien Pettigrew. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
________. Fellini – Raccontando di me. Conversazioni con Costanzo Costantini. Roma:
Editori Riuniti, 1996.
________. Intervista sul cinema – a cura di Giovanni Grazzini. Roma-Bari: Editori Laterza,
2004.
________. Fazer um filme. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
GOMBRICH, Ernest; HOCHBERG, Julian; BLACK, Max. Arte, percezione e realtà. Come
pensiamo le immagini. Torino: Einaudi, 1978.
KEZICH, Tullio. Federico Fellini, la vita e i film. Milano: Feltrinelli, 2007.
MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp, 1994.
ROCHA, Glauber. O século do Cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985.
PILLITTERI, Paolo. Appunti su Fellini. Milano: Franco Angeli, 1990.
RISSET, Jacqueline. L'incantatore: scritti su Fellini. Milano: Libri Scheiwiller, 1994.
ROCHA, Glauber. O século do Cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985.
VERDONE, Mario. Federico Fellini. Collana “Il Castoro cinema”. Milano: Ed. Il Castoro,
2006.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz
e Terra, 2005.
92
BOÉCIO E AGOSTINHO NA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DA
DIVINA COMÉDIA: INFLUÊNCIAS E RUPTURAS
Hudson dos Santos Barros1
RESUMO: Este trabalho examina a construção da poética autobiográfica da Divina Comédia, de
Dante Alighieri, a partir da análise de dois autores fundamentais para o entendimento de sua
finalidade. Por meio da análise dos pensamentos do filósofo romano Severino Boécio, em A
Consolação da Filosofia, e do bispo e santo católico Agostinho de Hipona, em Confissões, objetiva-se
demonstrar que o processo de assimilação e recusa de tais referências é essencial para a elaboração de
um conjunto de saberes que, além de afirmar os valores religiosos medievais, manifesta a tensão entre
a força de uma individualidade questionadora e uma espiritualidade que não abdica dos pressupostos
cristãos. Visa-se, portanto, compreender o poema de Dante como uma escrita autobiográfica que está
alicerçada na legitimação do sagrado e do profano, do enigma e certeza, do singular e do coletivo.
Palavras-chave: Dante Alighieri, autobiografia, tradição filosófica, ruptura.
1. Introdução
A Divina Comédia (escrita entre 13042 e 1320) é o célebre poema épico que narra a
viagem espiritual de nove dias do personagem Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso.
Nesse percurso, iniciado em 1300, na quinta-feira santa, o poeta Dante, guiado inicialmente
por Virgílio (no Inferno e no Purgatório) e, posteriormente, por Beatriz (no Paraíso), realiza
uma viagem de conversão, autoconhecimento e purificação. O foco é a santificação do
personagem em uma jornada que desvela a atuação da graça de Deus. Segundo Freccero
(2007, p.167-168), a Commedia é uma autobiografia espiritual. No entanto, para o teórico, a
finalidade do poema não é narrar eventos biográficos, mas ser um relato de caráter exemplar e
alegórico: a obra, ainda que alicerçada em elementos factuais, seria uma alegoria que
corrobora a continuidade da ação divina sobre a humanidade. No poema de Dante, portanto,
estariam mesclados o histórico, o literário, o mítico, o autobiográfico, o saber filosófico e o
teológico. É por essa razão que Cook e Herzman (1983, p. 272) chamam a Divina Comédia de
“summa literária”, tal a sua força de assimilação de referências. Entretanto, é importante
ressaltar que a obra assume suas referências apenas de forma parcial, isso porque o poeta
italiano recria e adapta saberes em um processo que contrapõe os valores de sua época e o
1
Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ, professor de literatura norte-americana e literatura inglesa da
Faculdade Machado de Assis (FAMA), professor de português e inglês do Instituto Superior da FAETEC.
2
De acordo com Petrocchi, a composição do Inferno é realizada entre os anos 1304-1306. In: PETROCCHI,
Giorgio. L’Inferno di Dante. Milão: Rizzoli Editore, 1978. p. 61.
93
vigor do pensamento próprio.
As referências a Boécio3 e a Agostinho4 são fundamentais para a escrita autobiográfica
de Dante na Commedia, assim como para o entendimento da relação entre o autobiográfico e
o conceito de conversão do poema. Este se reveste de elementos presentes nos dois autores,
componentes esses que aparecem em um movimento de assimilação e recusa. Entender essa
apropriação dantesca torna-se peça-chave para a compreensão de uma conversão baseada na
aceitação da injunção divina e na manutenção de valores individuais; ou seja, trata-se de um
caminho de santidade pautado na união paradoxal entre a indispensável renúncia de si cristã e
a insistente defesa das próprias idéias. Na escrita que testemunha o acontecimento místico, a
palavra-poética manifesta a transfiguração de um indivíduo que não tem os traços particulares
de sua história e de sua personalidade apagados. Embora o caminho de santidade exija a
corroboração da doutrina cristã e a renúncia do pecado, em Dante, a irrupção da força do
pensamento próprio marca uma união entre o singular humano e a ordem divina universal na
experiência da salvação. O diálogo com Boécio e Agostinho traz à baila tais verificações e
permite visualizar a íntima associação entre poesia, filosofia, pensamento religioso,
individualidade e autobiografia em Dante.
Essas considerações iniciais permitirão traçar o objetivo do presente estudo. A partir
do conceito de autobiografia em Dante, será realizado um percurso teórico que visa expor o
significado da escrita autobiográfica nos filósofos Severino Boécio e Santo Agostinho e a
participação dessa escrita na construção da ousadia poética e ideológica do autor da Divina
Comédia. Será demonstrado também, no cotejo entre tradição e assimilação, que a escrita
autobiográfica em Dante é uma poderosa força de expressão da individualidade e do
pensamento autônomo. Ainda que ligado à doutrina cristã e aos valores medievais, o poeta,
através da releitura dos citados autores, constrói um universo de ruptura parcial com a ordem
eclesial de seu tempo e uma afirmação de si que traz à baila o jogo tensional entre
individualidade e subjugação à autoridade.
3
Filósofo e aristocrata romano do séc. VI d.C, autor da obra A consolação da filosofia. Esta foi escrita na prisão
após a condenação de Boécio (pelo rei godo Teodorico) à morte, por traição. Boécio morreu no ano de sua
condenação, em 524.
4
Nas Confissões, obra escrita por volta de 397-400, o bispo católico Agostinho escreve sobre a história de sua
conversão. Nasce, assim, o primeiro texto autobiográfico que, além de narrar os acontecimentos passados,
conjuga em si uma profunda reflexão filosófica sobre a questão da formação da subjetividade. Agostinho relata
os processos de construção de sua personalidade; ele escreve sobre os percursos que foram necessários até que
fossem alcançados os atributos necessários para constituição de uma razão madura e capaz de professar
adequadamente a fé cristã. Os processos que relata fazem parte de um crescimento pessoal, que se refere tanto ao
seu amadurecimento em relação à capacidade de escolha, quanto à capacidade de elaboração do conhecimento.
Foi somente após abraçar a fé cristã que sua escrita se tornou uma ferramenta eficaz de formulação da verdade.
Seus textos mais importantes datam de depois da conversão.
94
2. O protesto em Boécio e em Dante
No Convivio5, obra anterior à Divina Comédia, Dante menciona Boécio e Agostinho
ao refletir sobre a legitimidade da escrita de si. Segundo explica, a regra retórica não permite
que alguém fale de si sem necessidade: “Non si concede per retoricci alcuno di se medesimo
sanza necessaria cagione parlare6.” (ALIGHIEIRI, 2004, p. 46) Diz também que depreciar a si
próprio é vituperável por si (è per si biasimevole) porque o homem deve contar de modo
secreto seus defeitos a um amigo e ninguém é mais amigo do homem do que ele mesmo. Por
essa razão, o local para expor os defeitos é nos pensamentos (ne la camera de’ suoi piensieri)
e não publicamente. Agindo assim, quem se repreende demonstra que conhece seus defeitos e
age de forma correta. Dante acrescenta que não se deve louvar a si próprio também. Quem
isto faz, crê ser considerado bom, fato esse que não ocorre sem uma consciência maliciosa
(maliziata conscienza). Por fim, segundo Dante, tanto o ato de repreensão como o elogio a si
não são testemunhos verdadeiros (sì come falsa testimonza fare) porque não há homem que
seja verdadeiro e justo medidor de si próprio.
Dante afirma, contudo, que há ocasiões em se pode falar de si (Ibid.,p. 48). Uma é
para a defesa de grande infâmia ou perigo: “L’una è quando sanza ragionare di sé grande
infamia o pericolo non si può cessare.” Essa foi a necessidade de Boécio7, que sob o pretexto
de consolação, defende-se da infâmia de seu desterro. A outra ocasião é aquela em que falar
de si possui grande utilidade doutrinadora (Id.) Segundo explica, essa foi a razão que moveu
Agostinho em sua Confissões: “ché por lo processo de la sua vita, lo quale fu di non buono in
buono, e di buono in migliore, e di migliori in ottimo, ne diede esemplo e dottrina, la quale
per sì vero testimonio ricevere no potea8.” (Id.)
Tais menções são significativas, pois demonstram mais do que exemplificações para
uma linha argumentativa sobre a questão da escrita de si: elas revelam a presença de
paradigmas indispensáveis para a compreensão do processo de assimilação e ruptura da
escrita autobiográfica dantesca na construção de uma individualidade confrontadora. Cabe
agora expor a força da presença desses paradigmas.
Em Boécio, a escrita de si liga-se à superação do sofrimento e da solidão causados
5
Obra filosófica composta por quatro tratados, escrita entre 1304 e 1307. Por motivos desconhecidos, Dante
interrompeu a proposta inicial do livro, que deveria ser possuir catorze tratados.
6
I, ii. Não permitem os retóricos que ninguém fale de si mesmo sem necessidade.
7
O poeta se refere aqui ao livro A consolação da Filosofia, que será comentado com mais detalhes logo abaixo,
assim como sua relação com o autobiográfico em Dante.
8
pois pelo processo de vida, que foi de mal a bom, de bom a melhor, e de melhor a ótimo, deu exemplo e
doutrina, a qual não podia receber por si testemunho mais verdadeiro.
95
pelo exílio. Em A consolação da filosofia, Boécio escreve, na prisão, um texto que mistura
poesia e prosa e que expõe a dor de alguém se considera injustiçado por Deus. Acusado de
traição ao defender o senador Albino (que teria mantido uma correspondência secreta com o
imperador Justino em conspiração contra o imperador Teodorico) em Verona, Boécio é preso
em Pavia, em 524, e passa sofrer atrozes suplícios até sua morte naquele ano. A obra é escrita
nos intervalos dos castigos corporais: ela revela um homem questionador da ordem universal,
um personagem que busca entender racionalmente o mistério da vontade divina. Por esse
motivo, a filosofia é personificada, para se tornar mais uma vez sua mestra nesse momento do
sofrimento: “E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz
celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face. E, mal dirigi o olhar a ela,
reconheci minha antiga nutriz, que desde a adolescência freqüentava a minha mente: era
Filosofia.” (BOÉCIO, 1998, p.8) A Filosofia surge para curar um doente, um descrente; seu
objetivo é remediar não somente a dor, mas também fazer com que Boécio “volte a si
mesmo”, com que recupere o sentimento interior de liberdade. Incapaz de pronunciar uma
palavra, o filósofo inicialmente apenas escuta sua mestra: “Não temas nada, é apenas uma
letargia, doença comum aos espíritos logrados. Ele se esqueceu por um momento de si mesmo,
[grifo meu] facilmente recobrará a razão, no entanto somente se recordar quem eu sou.
Ajudemo-lo. Comecemos por abrir seus olhos, que se cegaram pelas coisas humanas.” (Ibid.,
p. 7) Percebe-se, assim, que essa recuperação almejada pela Filosofia exige um
restabelecimento da razão, de modo que seja possível uma compreensão da conjuntura atual a
partir de um reconhecimento de princípios universais. A escrita de lamentação deve ceder
lugar a uma escrita terapêutica, a um texto de reconstrução de si, isto é, de restauração da
confiança nos projetos divinos, de entendimento pela via racional de um propósito
transcendental da realidade. Pela poesia e pela prosa, Boécio constrói um diálogo com a
Filosofia, ou seja, com os conhecimentos que adquiriu ao longo dos anos. Nessa anamnese,
embates contínuos são gerados: a validade dos saberes até então construídos é desafiada pela
verificação empírica de uma situação que parece desconstruir princípios éticos universais.
Cabe à memória e à reflexão inverter essa tensão e posicionar as crenças essenciais em seu
lugar de segurança9.
9
Em Do sumo bem e do sumo mal (De finibus bonorum e malorum), obra de influência em Dante, Cícero
também apóia a relação entre a filosofia e a prática de vida em princípios universais (inatos). Segundo Cícero,
dois são os princípios fundamentais: o amor a si e ao verdadeiro. É a partir destes que o homem pode alcançar a
ordem e a harmonia no exercício dos deveres essenciais. O primeiro dever do homem é conservar-se no estado
da natureza; o segundo é obter as coisas conforme a natureza. A sabedoria procede da natureza, por isso agir
conforme a natureza é agir com sabedoria. Cícero exemplifica dizendo que assim como os membros do corpo
foram dados por certo fim e modo de viver, os apetites da alma também foram concedidos para determinada
96
Nesse texto, o poético, o autobiográfico e a reflexão filosófica são inseparáveis.
Boécio teve que recordar que o sentido da verdadeira liberdade é deixar-se guiar por Deus.
Por tal razão, a Filosofia insiste que ele precisa aceitar os jogos da Fortuna e perceber que a
felicidade terrena nunca pode ser completa. É preciso, mesmo nos momentos mais árduos, ser
senhor de si mesmo, tomar posse de uma vida guiada pela razão. Para que esse domínio de si
ocorra, Boécio deve reconhecer quem é, assim como as leis que regem o universo. Diz a
Filosofia: “Agora reconheço uma outra causa de tua doença, e talvez esta seja a principal:
deixaste de saber o que tu és.”(Ibid., p. 21) Continua: “De fato, é devido ao esquecimento que
estás perdido, que te lamentas de ter sido exilado e privado de teus bens. É porque
desconheces qual é a finalidade do universo que tu imaginas serem felizes e poderosos os que
te acusaram.” (Id.) A cura reside tanto na crença no governo do mundo quanto na aplicação
das leis universais em si. Nesse processo de cura, a escrita funciona como uma anamnese que
une saber e modo de vida, fé e razão, emoção e discernimento.
A Commedia é também um protesto em favor de um exilado, ou seja, uma apologia de
si. Essa apologia ocorre através das profecias escutadas, das condenações testemunhadas e da
afirmação de pertencimento a uma linha de homens divinamente agraciados. É nessa apologia
de si que Dante revela sua inconformidade com as estruturas políticas e religiosas de sua
época: essa discordância define um homem que busca assegurar valores pessoais sem renegar
a fé, que questiona as atitudes e os pensamentos daqueles que detém o poder secular e/ou de
regulação espiritual. O canto XIX do Inferno, por exemplo, traz duras críticas a três papas da
época de Dante e à corrupção da Igreja pelo poder. Nicolas III (1277-1280) é quem se dirige a
Dante no referido canto e quem vaticina a chegada de Bonifácio VIII10 (1294-1303) e
Clemente V11 (1305-1314) para aquela região infernal12. No canto, os papas estão presos em
fossos com apenas os pés de fora, sendo que estes são consumidos por chamas: “le piante
erano tutti accese intrambe; / per che sí forte guizzarvan le giunte, / che spezzatte averien
ritorte e strambe.13” (ALIGHIERI, 2005, p.178-179) Ao se dirigir a Dante, Nicolas III pensa
regra e não para qualquer espécie de vida. Completa que, para viver conforme a natureza, deve-se entender a
ordem do mundo e seu regime. Os preceitos universais estão, portanto, associados ao correto uso da razão.
Compreender a tradição, tomar Deus por modelo, conhecer a si mesmo e exercer a temperança são exemplos
desses preceitos que tornariam o homem um ser livre e feliz.
CÍCERO, Marco Túlio. Do sumo bem e do sumo mal. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. III. p. 89-119.
10
A intervenção de Bonifácio VIII em Florença teria resultado no exílio do poeta. Na diegese do poema, ele era
o papa que estava no poder, uma vez que a viagem de Dante inicia no ano 1300.
11
Papa posterior a Bonifácio VIII, que transferiu a sede do papado para Avignon e que teria comprado seu
ministério
12
ALIGHIERI, op. cit., Inf. XIX, 85-87. p. 182-183.
13
Inf. XIX, 25-27. p. 178-179. plantas dos pés então o fogo lamba-as / e com tal força agite cada junta, / que
97
que este é Bonifácio VIII, que estaria prestes a chegar (morrer). Nicolas continua falando e,
em seu discurso, relata as degradações de seus sucessores, Bonifácio VIII e Clemente V.
Dante escreve A Divina Comédia nos anos posteriores a proibição de entrada em Florença
pelo papa Bonifácio VIII. Foster (1969, p. 47) considera o poema como um ato de guerra. O
teórico mostra como Dante aborda a infidelidade da Igreja em relação ao Evangelho; esta,
tradicionalmente conhecida como a noiva de Cristo, teria se prostituído pela ação de um
papado considerado corrompido pelo poder secular. Sujeita aos poderes do mundo, o ofício
pastoral teria se desviado de sua função primeira: a evangelização. Contudo, Foster diz que a
crítica a uma Igreja degradada pressupõe a visão de uma outra jovem e não-corrompida. O
catolicismo de Dante, nessa percepção, manifesta também um zelo pela Mãe Igreja em
contraste com o desvio papal.
Da mesma forma que em Boécio, a escrita de si em Dante é um protesto de inocência
e um questionamento contra injustiças. Na Divina Comédia, a palavra que encaminha a
restauração interior, também se lança como uma voz de denúncia, indignação e crença na
transformação das conjunturas. Um sentimento de tristeza perpassa a verificação de mudança
da glória para a decadência em Florença. Diante dessa constatação, Dante anuncia a crença no
amparo celestial. Ao assegurar pela experiência mística o mais alto valor da realidade
transcendental, o poeta enfatiza os benefícios da conversão individual na impossibilidade
momentânea de revolução nas conjunturas exteriores. A decadência dos atos humanos não se
apresenta como empecilho para o resgate que incita a vivência espiritual; é nesta e no
exemplo advindo de sua prática que o indivíduo alcança a força para a afirmação de si no
mundo e o impulso para a colaboração na reconstrução da realidade.
Deve-se observar, no entanto, que a Divina Comédia não é apenas um lugar para
relembrar os princípios, como acontece no texto de Boécio. Ela é o lugar da purificação, é o
local privilegiado da graça divina. A memória, antes fonte de perturbações e ilusões, sofre um
processo de reconstrução, para que a experiência do pecado não conduza as escolhas para
longe do amparo da Lei. A dialética do esquecer e do lembrar é essencial para uma
subjetivação cujo sentido existencial está na aceitação indiscutível do plano divino na história.
Lembrar é assumir o que se foi e autenticar a possibilidade de superação. Esquecer é
abandonar as antigas faltas e derrotas e crer na força da proteção mística. É importante
ressaltar, no entanto, que, em sua poética de si, o lembrar, no plano da reescrita hermenêutica,
também direciona a indignação contra os opositores. Portanto, de um lado, no poema sacro, a
rompa os ligamentos nelas ambas.
98
memória é caminho de salvação e, por outro, é uma ferramenta para a afirmação da
autonomia. Ao recordar e atacar seus opositores (também os inimigos da fé), o poeta não se
renuncia completamente. O fim da viagem, cujo ponto máximo é a contemplação, exibe um
indivíduo cuja memória está liberta para a reconstrução de uma nova vida; todavia, o rastro de
uma jornada de embates compõe uma individualidade inquieta com a desordem das estruturas
político-religiosas de sua época. De um lado, a busca de purificação para a construção da
santidade e, de outro, a inquietação com um status quo decadente, a insatisfação com a
vivência institucional da fé e com as vicissitudes do governo terreno.
Dessa forma, o poema, na perspectiva do exílio, vislumbra um sentido transcendental
das desgraças terrenas. O movimento ascensional abrange a reconstrução da desordem
emocional e a asserção da validade dos princípios universais. Dante, entretanto, não caminha
apenas pela via racional; ainda que a confirmação doutrinal e dogmática seja fundamental, o
que importa é vivência pela graça; o que está em jogo é a subordinação do egocentrismo e da
crença da superioridade racional ao poder espiritual. Ainda que Boécio afirme a necessidade
de um abandono em Deus (deixar-se guiar pelo Criador), o percurso fundamental de sua
escrita é a revalidação do conceito. Já na Commedia, a urgência da entrega mística insere o
poético em uma rede de atualização do modo de vida cristão pela experiência transcendental.
Nessa experiência, a razão não é anulada, mas se subordina à ação espiritual para se tornar
mais eficiente.
3. A espiritualidade em Agostinho e em Dante
A necessidade de conversão em um mundo decadente, presente no poema de Dante,
acena a passagem para o paradigma agostiniano. Para Santo Agostinho, o retorno a Deus
pressupõe uma reconquista de si através de uma tortuosa via de contínua luta espiritual e cura
interior: “Vós, que sois o Médico do meu interior – que perdoastes e esquecestes para me
tornardes feliz em Vós, transformando-me com a fé e com o Vosso sacramento – quando se
lêem ou ouvem, despertam o coração para que não durma no desespero nem diga: ‘não
posso’”14. (AGOSTINHO, 2002, p. 218-219) Agostinho não escreve, entretanto, apenas para
sua própria cura, mas também para confirmar a ação de Deus na história humana e incitar a
vivência espiritual em seu leitor. Nessa experiência, a vida de pecado, isto é, de afastamento
de Deus, é considerada uma perda de tempo e um aniquilamento essencial. Trata-se de um
14
X, 3.
99
trajeto em direção a uma identidade que se movimenta a partir de valores transcendentais
universais. Essa identidade não implica necessariamente a desconsideração da história
individual: o passado adquire sentido em relação a imprescindível transformação rumo a um
ideal moral. O leitor, para ser atingido por essa transformação, deve reconhecer como
verdadeiro o testemunho e se engajar na busca de Deus e de si próprio.
Nas Confissões, a busca pela verdade tem um papel central no processo de conversão.
Agostinho se retrata como uma pessoa que desde cedo possuía intenso desejo pelo
conhecimento. A adesão anterior ao maniqueísmo é um indício desse fato. O objetivo de
Agostinho era obter respostas para as indagações filosóficas, principalmente para a questão da
origem do mal: “Buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente.”15 (Ibid., p. 144)
Sem alcançar as respostas satisfatórias que desejava, o maniqueísmo tornou-se uma desilusão:
“Destas quimeras me alimentava eu, então, sem me saciar.”16 (Ibid., p. 64) A definitiva ilusão
ocorreu após o encontro com Fausto, homem conhecedor da doutrina de Manes, considerado
pelos maniqueístas um homem sábio: “Logo transpareceu com suficiente clareza as imperícia
de Fausto nestas ciências em que o julgava eminente, comecei a desesperar de sua capacidade
para me esclarecer e desfazer as dificuldades que embaraçavam meu espírito.”17 (Ibid., p. 102103)
Ainda que a via intelectual seja essencial na conversão, a decisão por um engajamento
radical ao cristianismo pertence também de forma significativa ao campo emocional. A
conversão teve seu passo decisivo na crise: a opção pela castidade (resignificação da
sexualidade) e a renúncia das glórias do mundo foram pontos de distúrbio e hesitação. Por um
lado, uma personalidade impulsionada pelo amor ao conhecimento; por outro, o conflito do
desejo carnal, isto é, a dificuldade de abandonar uma vida sexual em prol de um modo de ser
pautado na renúncia e na conquista de valores considerados maiores. Nota-se, por
conseguinte, que a conversão de Agostinho caracterizou-se pela continuação e pelo
rompimento. Continuação porque ele concedeu voz ao seu desejo pela verdade; rompimento
porque optou pela castidade. Nesse processo, dor e alegria se misturam e unem o humano e o
divino de forma inexorável: a via de santidade se instala no permanente confronto consigo
(com a memória, com os sentimentos, com suas limitações) e na esperança do amparo divino.
A alteridade tem forte influência em todo esse processo. Na leitura dos filósofos
(Aristóteles, Platão, Plotino, Cícero), Agostinho encontra a motivação para a procura da
15
VII, 5
III, 6, p. 64.
17
V, 7, p. 102-103.
16
100
verdade. Com os amigos, tem a companhia para o estudo e para a exposição das indagações.
Enfim, para a experiência de conversão, o outro é decisivo: pode-se citar os sermões de
Ambrósio, o exemplo da conversão de Mário Vitorino, a narração de Ponticiano, a presença
de Alípio no jardim de Milão. A maior participação, contudo, é da mãe, Mônica; a educação,
a oração e a devoção dela são elementos considerados de grande valor para adesão do filho ao
cristianismo. Essa importância é reconhecida no livro IX, parte que Agostinho dedica para
narrar o exemplo de vida da mãe e sua significativa participação na sua formação: “Era
verdadeiramente a serva dos Vossos servos! Todos os que a conheciam Vos louvavam,
honrando-Vos e amando-Vos nela porque lhe sentiam no coração a Vossa presença,
comprovada pelos frutos de uma existência tão santa.” (Ibid., p. 205)
Após a conversão, Agostinho emerge como defensor da fé. Sua busca pela verdade e
sua vivência espiritual associam-se necessariamente à prática institucional da fé. Além da
transfiguração interior, a trajetória agostiniana exigiu o reconhecimento da coletividade cristã.
A opção de Agostinho pela espiritualidade cristã está vinculada ao engajamento eclesial: a
Igreja se torna o lugar de exercício da tradição evangélica e local de contínua corroboração da
decisão angustiada. A ascese mística e a evolução intelectual dependeram diretamente da
legitimação eclesial; por esse motivo, a escrita de si agostiniana torna-se veiculadora da fé
institucional. O pessoal e o coletivo se articulam na submissão às doutrinas, à Bíblia, aos
dogmas, à hierarquia, aos ritos e aos sacramentos. As Confissões são também, portanto, uma
defesa da legitimidade da história e da atualidade da Igreja, de seus ministros e dos saberes
construídos pelos seus seguidores. É importante mencionar que a conversão de Vitorino,
citada por Agostinho, aconteceu em uma cerimônia pública de reconhecimento de fé e
arrependimento dos pecados. Esse fato demonstra a significativa e imprescindível ligação
entre a decisão pessoal e a participação da coletividade (da Igreja como conjunto de fiéis) no
processo de confirmação da fé cristã.
Na Commedia, assim como nas Confissões, a conversão exige o caminho da
santidade. Esta demanda um trabalho sobre si próprio, isto é, uma constante reavaliação da
vida à luz dos princípios evangélicos. As decisões de vida adquirem sentido quando
iluminados pelos valores universais determinados pela ordenação celeste e proclamados pela
Igreja cristã. Dante, de modo similar a Agostinho, precisa direcionar sua razão e suas emoções
para o plano divino continuamente revelado na autoavaliação da escrita-verdade: a
confirmação da fé e da doutrina guia a anamnese e o sentido da experiência mística. No plano
da memória e da escrita, a experiência insere-se no desígnio universal da salvação e o olhar
sobre si desloca o poeta para uma resignificação dos movimentos interiores. O poema sacro
101
traz o testemunho de uma alma eleita para a salvação e torna pública a possibilidade da ação
de Deus nas estruturas mundanas.
A presença e a ação do outro em Dante também são profundas e conflituosas. Em
Agostinho, a ação intercessora da mãe, Mônica, a conversão de Vitorino e a participação do
amigo Alípio na experiência mística de Milão tornam a alteridade uma força imprescindível
para a concretização da ação divina. Em Dante, a alteridade é também fonte de santidade.
Todas as presenças e diálogos ganham sentido em uma relação de subordinação com os
colaboradores especiais da construção da via de santidade. Virgílio, Beatriz, Luzia e Maria
são as presenças seminais do processo e todas as outras se subordinam a elas. Essas figuras
participam de forma mais ativa e direta no processo do que aqueles presentes na trajetória
agostiniana: com Virgílio e Beatriz, a jornada pedagógica; com Maria e Luzia, a intercessão e
orientação do caminho. Em sua jornada, contudo, o poeta defronta-se tanto com almas que
incitam o reconhecimento da necessidade de conversão quanto com outras que estimulam
indignação e censura.
Nas Confissões, a intimidade está mais exposta do que no poema sacro. Agostinho
confirma sua fé e a força da experiência mística na exposição do seus pecados. Em Dante, o
mesmo não ocorre. Qual teria sido o pecado do poeta florentino? O orgulho racional? A
luxúria?
O abandono da fé?
Essa incerteza não elimina, entretanto, o elemento
autobiográfico tampouco a necessidade do caminho de santidade corroborado pelas variadas
alegorias poéticas. A jornada traz à baila figuras que tomam parte das afeições intelectuais e
emotivas do peregrino: Virgílio, Beatriz, Latini, Cacciaguida, por exemplo, são figuras que de
alguma forma foram significativas para Dante. Eles revelam uma personalidade movimentada
pela emoção e nutrida de grande amor ao intelectual; exprimem uma identidade que se
reavalia pela subjugação do racional e do emocional no campo espiritual. Ainda que detalhes
não sejam revelados, o poeta florentino permite, de forma alegórica, a retratação de uma
persona impulsionada por valores bem definidos e que exige uma remodelação da conduta à
luz da reflexão, do poético e da religião. A poética dantesca manifesta a intimidade de
conflitos, mas apenas através de um jogo que revelação e ocultação. Na fratura da palavra, um
“eu” assume a possibilidade de ser compreendido parcialmente. O que vale é o testemunho
da experiência, a força da ação salvífica, o reconhecimento da dificuldade da via de santidade
e a conflituosa relação com a religião institucional e seus mecanismos.
A confissão agostiniana se move no apelo ao valor-verdade do testemunho. Ainda que
reconheça a limitação da linguagem, Agostinho se ampara na intervenção divina e em sua
própria vontade de dizer a verdade sobre si. Por tal razão, a obra se encaminha na perspectiva
102
da sinceridade e da abertura: não adianta querer esconder, pois Deus regula a escrita de si e a
direciona para o fim evangelizador. Mesmo que detalhes sejam ocultos, esse objetivo não é
abalado: fatos significativos são expostos e avaliados em uma atitude que demonstra entrega a
um plano maior. A escrita de si agostiniana promove um sacrifício pessoal em prol da
espiritualidade coletiva, em prol do plano de salvação divino. Na Commedia, esse valorverdade do testemunho não tem a mesma força de assunção que nas Confissões. Não apenas
por se tratar de uma obra poética, mas também por assumir a fratura da palavra: “Oh quanto è
corto il dire e come fioco al mio concetto!18” (ALIGHIERI, 2005, p. 887) O poema possui
também um didatismo incisivo, seja na força das imagens ou na estruturação de conceitos.
Mas seu objetivo não é um retrato biográfico de Dante. O poeta está presente na exposição de
suas referências epistemológicas, emotivas e espirituais, sem, contudo, assumir qualquer
veracidade de fatos. Essa veracidade é fruto da reconstrução histórica e teórica. Isso, contudo,
não elimina a necessária relação da bios com a poiésis. O poema apenas se torna possível por
essa união. O valor-verdade do testemunho existe, mas somente em um jogo de abertura e
ocultamento no que se refere à vida do peregrino. O autobiográfico na Divina Comédia,
diferentemente das Confissões, confessa a possibilidade da verdade na manifestação do
enigma, na legitimação da incerteza de elementos factuais.
Na Commedia, o embate é mais contundente do que nas Confissões. Conforme já
comentado, a espiritualidade agostiniana se movimenta a partir de um elo fundamental com as
estruturas eclesiásticas. Em sua viagem espiritual, o poeta italiano entra em choque tanto com
figuras de oposição política quanto religiosa. Em Agostinho, há a prevalência da integração
com a autoridade religiosa. Deve-se, observar, no entanto, que o embate de Dante com a
autoridade papal é resultado de um exílio forçado, não de uma escolha essencial. Esse exílio
representa, além da distância da amada Florença, além de uma vida não desejada de restrições
materiais, a dificuldade de afirmação e vivência de uma espiritualidade em consonância com
as estruturas eclesiais. A escrita de Dante é fruto da árdua necessidade de conciliação do
mundo sensível e espiritual. Em meio ao desastre pessoal, existe a luta de um homem cuja
arma mais eficaz parece ser a pena que canta a desilusão e a esperança, a descrença e a fé, a
escuridão e a luz.
18
XXXIII, 121-122, p. 887. Como é curto o dizer e como é rouco / a meu conceito!
103
4. Conclusão: o sacro e o profano no confronto de paradigmas
O conceito de autobiografia é elemento fundamental para a compreensão do percurso
ascético em Dante. Isso porque tal conceito permite entender a via de santidade pela lógica do
confronto. O itinerário dantesco de revisões e descobertas, de elevação mística e intelectual,
não elimina a história do indivíduo, tampouco sua visão de mundo. Na Divina Comédia, a
jornada exige o engajamento volitivo do peregrino no plano divino; esse engajamento,
todavia, caracterizado pela renúncia do pecado (de algumas formas de se relacionar com o
mundo, assim como de considerá-lo) e pela entrega, não prescinde da afirmação do próprio,
da asserção de um modo de pensar particular. A escrita da Commedia não é somente uma
reavaliação espiritual de si, mas também uma investidura combativa. O signo poético, além de
lançar o protagonista da aventura mística (e seu leitor) em um caminho de aceitação da
injunção divina, revela uma individualidade que não pode ser negada. Por isso, a releitura
autobiográfica dantesca não constrói uma trilha de subordinação absoluta, de sujeição ao
status quo das conjunturas de sua realidade.
Foi demonstrado que não há uma inserção total da poética de Dante na espiritualidade
agostiniana, tampouco na racionalidade de Boécio. O autobiográfico em Dante inclui o
profano porque não legitima totalmente a tradição e a autoridade. Não se pode negar que
existe a legitimação doutrinal e institucional. No entanto, há também uma ruptura com
determinados atos, pensamentos e figuras da Igreja. O protesto de inocência do poema, cujo
paradigma é a poética de revolta e conciliação de Boécio, é um questionamento da desordem
terrena e um grito contra a injustiça. Mesmo com os questionamentos, as censuras e as
revoltas, a obra traz à baila uma escrita cujo foco está na santidade, na tessitura de um novo
modo de ser, na confissão das limitações diante das vicissitudes do mundo secular e na
entrega do destino ao desígnio supra-humano. Nessa entrega, a tensão entre o próprio e o
universal não desaparece, tampouco impede a progressão da escrita ascética. Por essa razão, o
sagrado advém sob uma perspectiva alternativa: ele se torna com o profano uma peça motriz
para a conquista da salvação cristã.
A escrita de santificação de Dante estabelece um modo privilegiado de relação com o
sagrado. A jornada mística testemunha a manifestação de Deus no plano material e age como
mediadora da relação entre o divino e o humano. Fundamentado na autoridade do poder
superior, o poema de Dante corrobora a doutrina cristã e a urgência de sua vivência; chama a
atenção também à imprescindível atuação da graça, isto é, do dom auxiliador de Deus para a
104
fragilidade humana herdada pelo pecado original. A ação da graça retrata a dependência do
ser humano em relação à perfeição do Criador. Testemunha da justiça divina, o poeta seria um
homem alcançado por um auxílio especial que o teria conduzido por um processo de
aprendizagem, purificação e ascese. Esse processo teria sido uma forma de legitimação
essencial para validar os ensinamentos e as imagens trazidas ao leitor: essa autobiografia de
santificação teria como alicerce a ordenação da luz e de sua ação redentora sobre os homens.
Em Dante, no entanto, essa relação com o sagrado acontece de forma ambígua. Na
Commedia, o sacro e o profano trilham caminhos complementares e se interligam na
construção dessa experiência de conversão. O poema perpassa o entre-lugar, pois conjuga o
cristão e o não-cristão, a palavra-verdade e a palavra-dispersão, a entrega e a recusa, a luz e o
ciframento. Por essa razão, não houve, ao longo da história, um consenso em relação ao texto
de Dante. Aplaudida e condenada, a obra promoveu um intenso debate em sua época e se
consolidou através do tempo sob o signo da dúvida. Carregada de múltiplas referências,
registros míticos e históricos, símbolos e críticas, o poema tornou-se uma alegoria da
possibilidade, visto que a interpretação de seu caráter divino ou secular permanece indefinida.
A relação entre o espírito religioso e os embates ideológicos nas estruturas seculares
assegura ao elemento autobiográfico um papel essencial na estruturação da Commedia. Tal
relação é o ponto-chave para o estabelecimento da conexão entre a diegese do além-mundo,
os conteúdos enunciados e os fatos da biografia de Dante. A obra de Dante não é apenas um
livro de ofício pedagógico, mas também um protesto de inocência. Não é somente uma forma
de sublimação da dor, mas, além disso, um texto de incisivo posicionamento ideológico. O
autobiográfico, embora sem contornos definidos, molda a via santificação na exploração da
memória intelectual, afetiva, política, social e religiosa.
Por fim, em Dante, os paradigmas instaurados pelas obras de Boécio e de Agostinho
são as principais referências (em um processo de assimilação e recusa) históricas de uma
poética sacra e profana, mas o que realmente determina a força inovadora da Divina Comédia
é seu poder de contestação através da corroboração da legitimidade do enigma e da
religiosidade que não abdica da autonomia do pensamento.
5. Referências bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis:
Vozes, 2002.
105
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark,
2005.
__________ . Convivio. Milano: Bur, 2004.
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MAZZOTTA, Giuseppe. Dante, poet of the desert: history and allegory in the Divine
Comedy. Princeton: Princeton University Press, 1979.
106
DOIS MEROS PASSEIOS: VARIAÇÕES DO PEQUENO
NA OBRA DE ANTON TCHEKHOV
Mariana da Silva Lima1
RESUMO: O ensaio analisa o modo como a intensa dedicação do autor russo Anton Tchekhov à breve forma
literária do conto, bem como a recorrência de situações e personagens banais em sua obra, indica uma
sensibilidade para o pequeno. Procura também perceber de que maneira essa obra marcada por aspectos menores
e tidos como “insignificantes” atinge o estatuto de grande obra.
Palavras-chave: Anton Tchekhov, contos, crítica e interpretação.
Eram as pequenas coisas que mais o atraíam.
(Gershom Scholem, falando sobre seu amigo Walter Benjamin.)
Seja na predileção por temas banais e personagens muitas vezes tidos como
“insignificantes”, seja na intensa dedicação à breve forma literária do conto, a obra do escritor
russo Anton Pávlovitch Tchekhov (1860-1904) parece inscrever-se sob o signo do pequeno.
Em seu belíssimo Ensaio sobre Tchekhov, escrito na ocasião do 50o. aniversário da morte do
autor, Thomas Mann (1988) aponta como uma das razões para seu interesse tardio pelos
textos de Tchekhov sua “fascinação pela 'grande obra', pelo 'longo fôlego', pelo monumento
épico perseverado e concluído numa paciência impressionante”. Segundo o escritor alemão,
sua admiração por longos romances de preferência a narrativas breves teria de certo modo
determinado uma atitude de indiferença quando da morte de Tchekhov. Ele acrescenta:
Eu nutria um certo menosprezo por essa forma, sem realmente compreender que
forças íntimas de gênio eram necessárias a fim de obter o curto e o conciso, em que
concisão – talvez a mais admirável – se podia absorver toda a plenitude da vida,
elevar-se inteiramente à categoria épica, que bem pode superar em intensidade
artística o grande, a obra gigantesca que, às vezes, inevitavelmente fica cansativa e
monótona.
De fato, como afirma Thomas Mann em outra passagem, Tchekhov era um “homem
da forma pequena”. Ele manifestou diversas vezes sua vontade de escrever romances, e o fato
de que nunca chegou a redigir nenhum talvez tenha a ver com sua sensibilidade pelo pequeno.
Essa sensibilidade se expressou ainda em sua preferência por personagens geralmente
negligenciados na literatura, como pequenos funcionários de província – a própria província
1
Doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ e bolsista da FAPERJ.
107
demarcando geograficamente a posição marginal desses personagens. Assim, neste ensaio
serão analisados um conto e uma novela de Tchekhov, procurando-se observar como essa
dedicação do autor russo à “forma pequena” traduziu-se muitas vezes no que se poderia
chamar de temas e até personagens insignificantes.
Uma primeira aproximação dessa hipótese pode se dar pela observação de títulos dos
contos do autor. Entre eles, há alguns que despertam a atenção justamente por indicarem
temas que se supõe desinteressantes: O Imprestável, Uma história enfadonha, Falta de que
fazer, Ninharias da vida. O curioso deste procedimento é que, ao qualificar suas histórias
como enfadonhas ou seus personagens como imprestáveis, Tchekhov estabelece com o leitor,
logo de início, uma relação aparentemente pouco adequada, pois o predispõe ao desinteresse.
Além disso, são frequentes as indicações, nos próprios contos, de que o tema é banal e pouco
importante – por exemplo, no já mencionado Ninharias da Vida (TCHEKHOV, s/d.). No
início da narrativa, Nicolai Beliaiev – homem jovem, de uns trinta anos – chega à casa de sua
companheira, “com quem mantinha um longo e tedioso romance”. O narrador completa: “E
de fato, as primeiras páginas deste romance, interessantes e inspiradas, já tinham sido lidas há
muito tempo; agora as páginas se arrastavam e se arrastavam, não apresentando nada de novo
nem de interessante”. Além do jogo, feito nesta passagem, entre duas acepções da palavra
romance – gênero de prosa e namoro, caso –, há um estranho jogo estabelecido com o leitor,
pois, ao avaliar, no primeiro parágrafo da narrativa, o romance de seu personagem como
tedioso, o narrador não parece contribuir muito para despertar o interesse daquele que mal
começa a ler o conto.
O tédio e a monotonia, aliás, constituem uma atmosfera sempre presente nas narrativas
e peças de Tchekhov. Por exemplo, no conto Enxoval (TCHEKHOV, 1991), a casa onde
moram duas das personagens é descrita do seguinte modo: “Em torno da casa, está o paraíso
terrestre, com aquele verdor todo, e pássaros buliçosos; ela porém, cerrou-se para ele... Nela,
no verão faz um calor sufocante; no inverno, é quente como nos banhos, e o ar viciado
mistura-se com o tédio, um grande tédio...”. Além disso, o próprio título do conto aponta para
a espera em que se veem entretidas as duas moradoras daquela casa: uma mulher e sua filha
passam o tempo a costurar as roupas deste eterno enxoval – pois a jovem nunca se casa. Nesse
conto, portanto, a espera, ou a inação, é paradoxalmente transformada em ação.
Tchekhov também transforma a inatividade em ação na maioria de suas peças – mas
neste caso esse procedimento se mostrará ainda mais problemático, pois a ação era tida até
então como elemento característico do drama. No entanto, não cabe discutir aqui o problema
da inação na obra dramática de Tchekhov. Neste ensaio, o foco recairá na parcela
108
propriamente narrativa de sua obra e, para testar a hipótese levantada, os textos discutidos
serão a novela Kaschtanka (1982) e o conto Gricha (s/d.). Estes textos se agrupam por
tematizar ou ter como ponto de vista narrativo crianças ou animais. A criança ou o animal
como protagonista reforça a banalidade dos temas geralmente abordados por Tchekhov, como
atesta Ninharias da vida, outro conto que também tem uma criança no centro da narrativa.
Aqui, a própria escolha vocabular do título já indica a pequenez do tema, já que ninharia é
uma palavra derivada do espanhol niñería, indicando “ação própria de criança”, ou, em outras
palavras, coisa sem valor ou insignificante. Assim, o título indica uma relação interessante,
pois, sendo a personagem principal deste conto uma criança, torna literal a expressão
metafórica “ninharias da vida” e o sentido conotativo de “ninharias”, ou seja, coisas pequenas,
banais, sem importância.
Embora a tradução do título enfatize, neste conto, uma relação entre a suposta
pequenez do tema e a insignificância da protagonista infantil, parece que a insistência com
que Tchekhov utiliza crianças ou animais como foco narrativo aponta para um interesse mais
geral em temas simples e fatos banais. Esta tematização de personagens insignificantes
também se verifica no título de uma coletânea de contos de Tchekhov, Gente sombria. A
preferência de Tchekhov por personagens menores tornou-se célebre, e levou o escritor
Maxim Gorki, com quem Tchekhov manteve uma amizade duradoura, a afirmar em uma carta
(em que comentava a peça Tio Vânia): “Somos gente deplorável, sem dúvida, gente
‘aborrecida’, sombria, abominável. E é necessário ser um monstro de virtude para amar,
lamentar e ajudar a viver estes desprezíveis sacos de tripas que somos” (apud ANGELIDES,
2001, p. 55).
Se a tematização de crianças e animais é uma das vias através das quais Tchekhov vê a
oportunidade de abordar aspectos “pequenos” da vida, verifica-se que, por outro lado, quando
tematiza adultos, a maioria destes se caracteriza por levar uma vida sem interesse ou
importância. O melhor exemplo disso, talvez, seja a novela Uma história enfadonha (1982),
na qual o protagonista, que é também o narrador, se empenha em demonstrar – já a partir do
título – a falta de interesse que é capaz de despertar. Não parece ser à toa que Tchekhov faz
uma insônia ser o traço principal da existência do personagem: Nicolai Stiepánovitch não se
destaca pela coragem ou pela inteligência; o que chama a atenção é justamente a falta de
interesse que a vida do personagem suscita. Em vez de nos depararmos com reflexões a
respeito da vida, da arte ou da ciência, Nicolai descreve como não se interessa por nada – na
verdade, esta novela se caracteriza justamente por apresentar profundas reflexões a respeito da
arte, da ciência e da vida; no entanto, Tchekhov as dissimula, a princípio, ao utilizar
109
estratégias tais como qualificar sua história como enfadonha.
Devido à recorrência de temas banais e cotidianos, bem como de personagens
desiludidas ou até mesmo “desprezíveis” na obra de Tchekhov, o escritor foi muitas vezes
repreendido pela crítica russa. Em 1886, quando começou a atrair a atenção dos críticos – e
embora já tivesse escrito então contos considerados notáveis, como Camaleão, A Morte do
Funcionário e Angústia –, Tchekhov seria duramente recriminado por focalizar “apenas
situações corriqueiras e sem interesse literário” (ANGELIDES, 1995, p. 23). Esta impressão
permanece disseminada mesmo em 1888, ano em que o autor recebeu o prêmio Puchkin.
Sophia Angelides observa que, apesar de o escritor ter recebido o prêmio por unanimidade,
“os membros da Academia emitiriam o parecer de que Tchekhov estava utilizando o seu
talento em ‘trabalhinhos insignificantes’”. Se bem que esta última observação pareça remeter
principalmente ao fato de que Tchekhov costumava escrever, às pressas, contos curtos
publicados na pequena imprensa, ela também demonstra que, de um modo ou de outro, sua
obra é marcada pelas categorias do pequeno e do insignificante.
Acredito que esse momento da carreira do autor deva ser destacado por sintetizar um
traço notadamente paradoxal em seu trabalho literário: afinal, como é que uma obra baseada
em assuntos banais e corriqueiros atinge o estatuto de grande obra? Como o mesquinho tornase grandioso, ou como o insignificante passa a ser considerado como significativo?
Há indicações preciosas a esse respeito em suas cartas. Em 21 de junho de 1887,
escrevia a seu irmão Aleksandr, falando a respeito de seu conto “Felicidade”: “No fundo, é
uma bobagem. Agrada ao leitor por causa de uma ilusão de óptica. Todo o truque está nos
ornamentos postiços, como as ovelhas, e no arranjo das frases. Pode-se escrever até sobre
borra de café e impressionar o leitor através de truques” (ANGELIDES, 1995, p. 64; grifo
meu). Resta verificar, portanto, quais são os “truques” que o autor utiliza para conferir
nobreza e densidade à ninharia. Os dois textos selecionados para esta análise podem iluminar
essa questão.
Na novela Kaschtanka, a fábula se resume aos seguintes acontecimentos: a cadela
Kaschtanka se perde de seu dono e perambula pela cidade; a seguir é abrigada por um
palhaço, por quem é treinada; em sua primeira apresentação circense, encontra os antigos
donos, com quem volta para casa. E só. A partir de um argumento banalíssimo e
aparentemente sem interesse, Tchekhov cria um conto terno, engraçado e até mesmo crítico.
Vejamos como ele faz isso.
Embora a cadela não seja a narradora do conto, temos acesso a suas impressões, pois
as descrições nos são dadas de acordo com o ponto de vista de Kaschtanka. Um dos modos de
110
obter tal efeito é o uso do discurso indireto livre: “Uma jovem cadela ruiva (...) corria de um
lado a outro sobre a calçada e espiava inquieta para os lados. Parava de raro em raro e,
chorando, erguendo ora uma pata enregelada, ora outra, esforçava-se por compreender: como
pudera perder-se?”. Esta última frase, muito embora esteja na terceira pessoa, tem um
equivalente direto na primeira pessoa. Ela equivale ao seguinte pensamento da cadela: como
pude perder-me? (discurso direto). O narrador ainda poderia ter escrito: “esforçava-se por
compreender como pudera perder-se” (discurso indireto). Ao apresentar o pensamento da
cadela como uma interrogação, o narrador aproxima o leitor do ponto de vista da personagem,
ao mesmo tempo em que, mantendo a terceira pessoa, sustenta certo distanciamento do leitor
perante as impressões da cadela.
Há outros modos pelos quais Tchekhov aproxima o foco narrativo do ponto de vista da
protagonista – por exemplo, no nível da substantivação. Ao se perder, Kaschtanka procura seu
dono. O narrador então escreve:
Kaschtanka pôs-se a cheirar a calçada, na esperança de encontrar o seu dono pelo
cheiro do rasto, mas algum canalha passara por ali com galochas de borracha novas,
e agora todos os cheiros suaves misturavam-se com um odor fétido de borracha, de
modo que não se conseguia distinguir nada.
A simples inserção do substantivo canalha aproxima os dois focos narrativos: o do
narrador, explicitado no uso da terceira pessoa e no tom indiferente e distante da narração, e o
da personagem, manifesto no uso de uma série de artifícios, como o da seleção vocabular. Se
mantivesse o tom frio e distante do resto da frase, o narrador poderia contar simplesmente que
um homem passara por ali; todavia, o uso do substantivo canalha nos remete a disposições
subjetivas da personagem – a seu desespero por estar perdida e a sua raiva por um canalha ter
atrapalhado a procura pelo dono.
Contudo, o efeito dessa particularização do ponto de vista narrativo não se limita a
demonstrar disposições subjetivas da personagem; também aspectos da visão de mundo da
protagonista são apresentados. Afinal, somente esse ponto de vista (o da cadela) geraria a
seguinte sentença: “Ela dividia toda a humanidade em duas partes muito desiguais: os patrões
e os fregueses; havia uma diferença essencial entre ambas: os primeiros tinham o direito de
surrá-la, mas ela mesma tinha o direito de agarrar os segundos pela barriga da perna”. Assim,
Tchekhov tematiza de forma aparentemente inocente a divisão em classes da sociedade russa
de sua época. Nesse trecho, a exposição do ponto de vista animal descontextualiza a divisão
social em classes de patrões e empregados, e a ressemantiza: vistos do campo visual
111
fisicamente inferior da cadela, os homens são distinguidos por suas pernas – e com o que eles
ou Kaschtanka têm o direito de fazer com elas: chutar ou morder.
No campo dos estudos literários, esse procedimento é conhecido como singularização,
e consiste em “falar do antigo e do habitual como do novo e do não-habitual”. Em outras
palavras, trata-se de um modo de apresentar literariamente materiais conhecidos aos leitor, de
modo que ele os perceba como desconhecidos, com isso conferindo originalidade e novidade
a matérias que não são novas nem originais. Em suma: não é a matéria que precisa ser nova,
mas o modo pelo qual ela é apresentada é que deve ser singular. Essas ideias foram
desenvolvidas no artigo “Temática” por Boris Tomachevski (VÁRIOS AUTORES, 1976), um
dos integrantes do formalismo russo (corrente de crítica literária que se desenvolveu na
Rússia no início do século XX e inaugurou os estudos modernos na área das Letras). Nesse
texto, Tomachevski cita justamente a novela Kaschtanka como exemplo do procedimento de
singularização, uma vez que, ao apresentar as relações humanas através da psiquê hipotética
de uma cadela (a qual observa à sua maneira tudo o que fazem e dizem os homens, sem nada
disso compreender), essa narrativa ilustra bem os efeitos obtidos a partir da refração de
objetos usuais “na psiquê do herói de quem são desconhecidos”.
Escrevendo sobre o procedimento de singularização em As Viagens de Gulliver,
Tomachevski remete à passagem em que Gulliver visita o país dos Houyhnhnms e descreve
os costumes da sociedade humana a seu hospedeiro-cavalo. Tomachevski observa:
Obrigado a ser extremamente concreto em sua narração, [Gulliver] levanta o
envoltório das belas frases e tradicionais justificações fictícias para os fenômenos
como a guerra, os conflitos de classes, a politicagem parlamentar profissional, etc.
Privados de seu envoltório verbal costumeiro, estes temas tornam-se singulares e
revelam todo o seu lado repugnante. Desta maneira, a crítica ao regime político, um
material extraliterário, obtém sua motivação e integra-se estreitamente na obra.
A explicação integra-se bem ao procedimento seguido por Tchekhov na passagem
analisada, em que o acompanhamento do ponto de vista da cadela leva o narrador a dividir a
humanidade de acordo com os diferentes usos das pernas dos homens em relação ao animal,
evidenciando assim 'o lado repugnante dos conflitos de classes'. O procedimento é reiterado
na sequência da narrativa: após se perder, à noite, já cansada, a cadela se acomoda na soleira
de uma porta e dorme, até que de repente a porta se abre. A par da visão de mundo de
Kaschtanka, aceitamos como verossímil a observação do narrador de que, “pela porta aberta,
saiu um homem da categoria dos fregueses”.
Kaschtanka é abrigada por este desconhecido. Em sua casa conhece um gato, um
112
ganso e uma porquinha, que têm aulas diárias com o desconhecido: os animais aprendem a
fazer reverências, pular barreiras e tocar sinos, entre outras coisas. Passado um mês –
Kaschtanka já está acostumada aos novos inquilinos e a ser chamada por um novo nome, Titia
–, a cadela também começa a ser treinada. O professor se entusiasma com seu desempenho, e
exclama: “– Um talento! Um talento! – dizia. – Um talento indiscutível! Você decididamente
há de ter êxito!”. O narrador comenta: “E Titia acostumou-se a tal ponto com a palavra
“talento” que, ao ouvi-la proferida pelo patrão, sempre se levantava de um salto e olhava em
todas as direções, como se fosse o seu apelido”.
A comicidade dessa passagem (e de tantas outras) relaciona-se primordialmente à
observação imparcial do narrador e a sua capacidade de narrar os acontecimentos de modo ao
mesmo tempo distante e próximo à personagem que acompanha. (E, embora o comentário
restrinja-se a uma situação narrativa específica, relacionada ao treinamento da cadela, é fácil
transpô-lo para o convívio humano, em que não faltam pessoas que prezam tanto receber
elogios que é fácil imaginá-las, ao ouvir “o patrão” proferir expressões tais como “que
talento!”, esboçar reação muito semelhante à de Kaschtanka, “abanando o rabinho” de
prazer.) Assim também na sexta parte da novela, quando a personagem tem uma noite
agitada: “Titia teve um sonho canino: viu um zelador de prédio correr atrás dela com
vassoura, e acordou com o susto”. Kaschtanka – agora chamada Titia – não costumava ter
medo do escuro, mas certa noite acordou atemorizada. Procurando se acalmar, a cadela
começou a pensar em comida, pois assim “o espírito fica mais leve”; foi nessa ordem de
pensamentos que se lembrou de que naquele dia “ela roubara a[o gato] Fiódor Timofiéitch
uma pata de galinha e escondera-a na sala de jantar, entre o armário e a parede, onde havia
muita poeira e teias de aranha”. O narrador acrescenta: “Não seria mau espiar se aquela pata
estava intata. O patrão podia bem tê-la encontrado e comido. Mas era proibido deixar o
quartinho antes do amanhecer”. O acompanhamento do ponto de vista da cadela dá origem a
estes absurdos: a hipótese de que o dono pudesse ter roubado sua pata de galinha.
Mas Tchekhov também utiliza essa técnica em episódios tristes e comoventes: nesta
noite, morre o ganso, Ivan Ivánitch. Há uma ideia geralmente aceita de que os animais
percebem a aproximação de espíritos. Na novela, a presença física da morte como um ente
sobrenatural é sugerida neste momento em que morre Ivan Ivánitch. No meio da noite, o
ganso começa a gritar. A princípio, Titia reconhece que o grito viera dele, embora tenha sido
um grito “antinatural” e muito diferente dos de costume. Ao segundo berro, Titia já duvidava
se o grito tinha vindo de Ivan Ivánitch ou de “alguém estranho”. O patrão acorda e verifica o
que se passa. Quando a luz é acesa, Titia percebe que não havia nenhum estranho no quarto; o
113
patrão examina se o ganso está doente.
Quando o patrão saiu, levando consigo a luz, fez-se novamente a treva. Titia estava
com medo. O ganso não gritava mais, mas ela teve novamente a impressão de que
alguém estava parado no escuro. O fato mais terrível consistia em que não se podia
morder esse estranho, pois ele era invisível e não tinha forma.
Com a insistência dos gritos de Ivan Ivánitch, o patrão retorna ao quarto, e então se
lembra do motivo pelo qual o animal está sofrendo – é notável, em toda esta passagem, o
modo como Tchekhov consegue abordar o tema da morte de modo extremamente tocante e
poético, uma vez que a personagem que morre é um ganso.
– Ivan Ivánitch! O que é isto, afinal? Você está morrendo, não? Ah, eu agora
já me lembro, já me lembro! – exclamou, agarrando a cabeça. – Eu sei a causa disto!
É que hoje você foi pisado por um cavalo! Meu Deus, meu Deus!
Titia não compreendia o que dizia o patrão, mas pelo seu rosto viu que ele
esperava algo terrível. Estendeu o focinho para a janela escura, pela qual, parecialhe, um estranho estava olhando, e pôs-se a uivar.
– Ele está morrendo, Titia! – disse o patrão, juntando as mãos. – Sim, sim,
está morrendo! A morte chegou ao quarto de vocês. O que vamos fazer?
Para se manter fiel ao ponto de vista da cadela, o narrador deve, o tempo todo, mostrar
como ela pode ter interpretado os acontecimentos a que assistia e reagido aos mesmos, uma
vez que ela não compreende a linguagem humana. Por isso as frequentes observações: “sem
nada compreender”, “Titia não entendia nada”. Neste momento da morte de Ivan Ivánitch, a
incompreensão da cadela em relação ao que se passa aumenta sua angústia e, assustada, ela
não sai de perto do patrão:
Titia foi andando junto aos seus pés, sem compreender por que ela sentia tamanha
angústia, por que todos se alarmavam assim, e, procurando compreendê-lo, vigiava
cada um dos seus movimentos. Fiódor Timofiéitch, que raramente deixava o seu
colchãozinho, entrou também no quarto do patrão e começou a esfregar-se junto aos
seus pés. Sacudia a cabeça, como se quisesse expulsar dela pensamentos penosos, e
espiava desconfiado sob a cama.
Finalmente, o ganso morre. Ainda neste instante, o narrador observa a tristeza que
toma conta dos personagens com distanciamento, limitando-se a registrar o que disse o patrão:
“Não, não se pode fazer mais nada! (...) Está tudo acabado. Ivan Ivánitch está perdido!”. O
narrador não se deixa levar pelas emoções dos personagens, e num momento que poderia
constituir um clímax da narrativa, assume um tom impassível – que Tchekhov tantas vezes
defendeu como atitude obrigatória do escritor – e, evitando mesmo pronunciar a palavra
lágrimas, escreve, ainda uma vez mimetizando a visão de mundo de Kaschtanka, que “por
114
suas faces deslizaram gotas brilhantes, dessas que se veem sobre as janelas, durante uma
chuva”. Quanto aos animais, o narrador se restringe a descrever sua atitude: “Não
compreendendo do que se tratava, Titia e Fiódor Timofiéitch apertavam-se contra ele e
olhavam-no aterrorizados”. O tom melancólico fica restrito ao patrão, a quem é dado o direito,
de acordo com a lógica interna da narrativa, de verbalizar suas emoções:
– Pobre Ivan Ivánitch! – dizia o patrão, suspirando com tristeza. – E eu que sonhava
em levar você na primavera para uma casa de campo e passear com você sobre a
ervinha verde. Querido animal, meu bom amigo, você não existe mais! E como vou
passar agora sem você?
Por fim, fica registrada a impressão de Titia, pela qual a morte é vista como uma
sequência de pequenos acontecimentos incompreensíveis:
Titia tinha a impressão de que também com ela ia acontecer o mesmo, isto é, que ela
também, sem que se soubesse por quê, fecharia de maneira idêntica os olhos,
estenderia as patas, arreganharia os dentes, e todos haveriam de olhá-la horrorizados.
Aparentemente, iguais pensamentos fermentavam na cabeça de Fiódor Timofiéitch.
O velho gato nunca estivera tão sombrio e taciturno.
Assim, Tchekhov realiza algo que tanto preconizava em suas cartas: mantém-se
distante dos acontecimentos que narra, limitando-se a descrever o que seus personagens
pensavam. Em carta de nove de outubro de 1888 a Dmítri Grigórovitch, Tchekhov escrevia:
“Ainda não tenho uma concepção política, religiosa e filosófica do universo; mudo-a todo
mês e por isso sou obrigado a me limitar apenas à descrição de como minhas personagens
amam, casam-se, procriam, morrem e de como elas falam” (ANGELIDES, 1995, p. 102).
Na última parte da novela, Kaschtanka estreia no circo – com a morte do ganso, ela é
obrigada a substituí-lo. Mimetizando o ponto de vista da cadela, o narrador escreve que “o
trenó parou junto a uma casa grande, esquisita, que lembrava uma sopeira emborcada”,
associando o formato do circo a um objeto relacionado ao cotidiano da personagem. De modo
semelhante, os animais circenses dão à cadela a impressão de ter visto monstros – Kaschtanka
vê “carantonhas terríveis: cavalares, chifrudas, de orelhas compridas, e uma gorda, enorme,
que tinha rabo em lugar de nariz e dois ossos compridos, roídos em volta, que lhe saíam da
boca”. O próprio dono, ao se vestir de palhaço, se torna objeto de estranhamento para a
cadela:
O patrão começou a despir-se, (...). Despiu-se da maneira como costumava fazê-lo
em casa, quando se preparava para deitar-se sob o cobertor de lã, isto é, tirou tudo
com exceção da roupa de baixo, sentou-se em seguida no tamborete e, olhando-se no
115
espelho, começou a fazer truques surpreendentes. Em primeiro lugar, pôs na cabeça
uma cabeleira com vinco e com dois topetes, que lembravam chifres, depois untou
densamente o rosto com algo branco e desenhou, por cima da tinta branca,
sobrancelhas, bigodes e um rubor nas faces. As suas traquinagens não se limitaram a
isso. Tendo sujado o rosto e o pescoço, começou a vestir um traje extraordinário,
que não se parecia com nada, e que Titia nunca vira quer nas casas, quer na rua.
Kaschtanka, que nunca tinha visto o patrão fazer tais “traquinagens”, fica em dúvida
sobre sua identidade: aquele “vulto desengonçado” e de cara branca “cheirava ao patrão, a sua
voz também era conhecida, patronal, mas havia momentos em que as dúvidas atormentavam
Titia, em que ela estava pronta a fugir do vulto colorido e latir”.
Durante sua apresentação, Kaschtanka é reconhecida pelos antigos donos (que
assistem o espetáculo na plateia), corre até eles e os três voltam para casa. No caminho,
olhando as costas de ambos, Kaschtanka “tinha a impressão de os estar seguindo havia muito,
alegre porque a vida dela não se interrompia um instante sequer”. Suas lembranças do período
narrado ao longo da novela são descritas no parágrafo final: “Lembrou-se do quartinho
forrado de papéis sujos, do ganso, de Fiódor Timofiéitch, dos jantares gostosos, das aulas, do
circo, mas tudo isto lhe parecia agora como um sonho comprido, confuso, dolorido...”.
Assim, a narrativa descreve uma trajetória circular: se no início Kaschtanka passeava
com o dono, a cena final da novela lhe é semelhante. A matéria do texto é constituída
basicamente dos acontecimentos que se desenrolam no intervalo entre esses dois momentos: o
perambular de uma cadela por uma cidade. Se o tema é banal, a complexidade da trama se
revela sobretudo na organização do ponto de vista da narrativa.
Além de ilustrarem uma técnica de composição literária, os procedimentos analisados
acima refletem uma disposição, uma crença particular de Tchekhov na objetividade. Em suas
cartas, é comum a observação de que se deve manter o elemento subjetivo à distância quando
se escreve. Tchekhov nos fornece uma indicação valiosa do modo pelo qual técnica e visão de
mundo estão ligadas quando escreve: “Para representar ladrões de cavalos em setecentas
linhas, eu preciso, o tempo todo, falar e pensar no tom deles e sentir à maneira deles”
(ANGELIDES, 1995, p. 173).
***
Tomemos ainda como exemplo o conto Gricha. O personagem titular do conto é um
menino de dois anos e oito meses, e é colado ao ponto de vista dessa criança que o narrador
descreve seu primeiro passeio e a perplexidade frente à descoberta de uma vida nova. Outra
116
vez, o tema não é o que importa aqui. A narrativa, que não excede três páginas, se resume à
descrição das impressões do menino e, mais uma vez, é no modo como são feitas essas
descrições que Tchekhov escondeu a maestria do conto.
Por exemplo, o quarto da criança é descrito, primeiramente, como o “único mundo
quadrado” que Gricha conhecia até o momento – a visão infantil já é sutilmente dada nesta
descrição através da evocação da forma geométrica quadrado. A seguir, o narrador enumera o
mobiliário e fornece uma descrição seca de sua disposição no quarto: “num canto ficava a sua
cama, no outro, o baú da babá, no terceiro, uma cadeira, e no quarto, uma lamparina ardendo
diante duma imagem”; porém, na sequência, acrescenta detalhes que nos remetem novamente
à visão de Gricha: “Se a gente espiar por baixo da cama, verá uma boneca de braço quebrado
e um tambor, mas atrás do baú da babá há uma porção de coisas diversas: carretéis vazios,
papeizinhos, uma caixa sem tampa e um palhaço quebrado”. Ao remeter o ponto de vista para
os objetos perdidos debaixo da cama, é como se o narrador imitasse a criança engatinhando
pelo chão, e levasse o leitor a se colocar na mesma situação ou a assumir o mesmo ponto de
vista.
Ao tom infantil atingido neste trecho (obtido através do verbo espiar, do diminutivo
papeizinhos), acrescenta-se uma imitação do que seria o modo de pensar típico desta idade – a
associação por traços concretos: “Neste mundo, além da babá e de Gricha, frequentemente
aparecem a mamãe e o gato. A mamãe se parece com a boneca, e o gato, com o casaco de
peles do papai, só que o casaco não tem olhos e rabo”.
A descrição dos arredores do quarto de Gricha obedece à mesma regra: “do mundo
que se chama quarto-de-criança há uma porta que leva para um espaço onde se almoça e se
toma chá”; há também “um aposento onde ficam as poltronas vermelhas” e em cujo tapete
existe uma mancha “pela qual até hoje ameaçam Gricha com o dedo em riste”. Como se vê, as
descrições seguem o ponto de vista do menino (muito embora esteja na terceira pessoa): isso
se evidencia a partir do momento em que os espaços não são denominados (sala de jantar, sala
de estar), mas descritos de acordo com as ações que normalmente ocorrem ou que já
ocorreram nos mesmos.
Semelhante tipo de descrição é aplicado aos familiares do menino – Gricha descreve
as ações normalmente associadas a tais personagens. Por isso o pai, que é apenas vislumbrado
em um aposento onde não deixam Gricha entrar, é descrito como “uma personalidade
altamente enigmática. A babá e a mamãe são compreensíveis; elas vestem Gricha, alimentamno e o põem na cama para dormir, mas para que existe o papai, não se sabe”. Com isso, podese entrever uma sutil crítica às sociedades patriarcais, nas quais o distanciamento entre o pai e
117
os filhos transformam a figura paterna em algo incompreensível para as crianças.
Estas são as impressões costumeiras de Gricha, a que se seguem as descrições do
mundo recém-descoberto. A técnica exposta anteriormente é mantida, e toda a escolha
vocabular relacionada àquelas descrições obedece ao código infantil: “mas neste mundo novo,
onde o sol fere os olhos, há tantos papais, mamães e titias que não se sabe para quem correr
primeiro”. Assim como no momento em que uma multidão de soldados marcha na direção do
menino – “Gricha fica todo frio de terror e lança um olhar de interrogação para a babá: não
será perigoso? Mas a babá não corre nem chora, quer dizer que não há perigo”. O menino
espera da babá, talvez, uma reação que seria natural para ele – como chorar ou correr; uma
vez que esta reação não ocorre, ele conclui estar a salvo.
Logo um homem se junta à babá e a Gricha. Os três deixam a avenida onde estavam e
se dirigem a um quarto, onde encontram uma mulher cozinhando diante de um fogão. O
menino, que está todo agasalhado, começa a sentir um calor insuportável. “Por quê será
isso?”, ele pensa, mas desta vez não consegue chegar a nenhuma conclusão – Gricha é novo
demais, talvez, para estabelecer relações causais relativamente complexas; logo, não associa o
fogão e seu agasalho ao calor que sente. Ele começa a choramingar, no que é repreendido pela
babá. Veja-se a descrição da volta para casa: “Voltando para casa, Gricha põe-se a contar à
mamãe, às paredes e à cama, onde esteve e o que viu. Ele fala não tanto com a língua, como
com o rosto e as mãos. Ele mostra como brilha o sol, como correm os cavalos, como olha o
forno assustador e como bebe a cozinheira...”.
À noite, Gricha não consegue dormir – está com febre devido à exposição ao calor do
forno. As impressões do dia confundem-se em sua mente, e o narrador assim descreve o
delírio febril da criança: “Soldados com feixes, gatos enormes, cavalos, o vidrinho, o tacho de
laranjas, os botões claros – tudo isso juntou-se num monte e oprime-lhe o cérebro”. Gricha se
vira na cama, “tagarela, e, finalmente, não suportando a própria agitação, começa a chorar”.
Nas linhas finais do conto, a mãe de Gricha verifica que o menino está com febre – e “Gricha,
transbordante das impressões da vida nova, recém-conhecida, recebe da mamãe uma
colherada de óleo de rícino”.
Ao exibir os pensamentos da criança, ou ao descrever as impressões segundo o ponto
de vista desta, Tchekhov utiliza o mesmo procedimento de singularização aplicado em
Kaschtanka. Tanto no conto como na novela, a apresentação dos acontecimentos segue o
ponto de vista das personagens titulares, muito embora exista, em ambos os casos, uma voz
narrativa. Nas duas narrativas analisadas, Tchekhov realiza uma curiosa imersão da voz
narrativa na psiquê das personagens protagonistas – assim, o escritor expõe acontecimentos
118
por si só banais, mas de modo inusual. Deste modo, desperta o interesse do leitor não pela
escolha do tema, mas pelo tratamento dado a este. O ponto de vista inusual, surpreendente,
reenquadra o mundo, tornando estranhas ou problemáticas certas percepções habituais da
realidade (como a função do pai ou a divisão social em classes). O que seria aparentemente
uma simplificação ainda maior de fatos banais (pelo olhar de um animal e de uma criança
muito pequena) torna-a, na verdade, um redimensionamento do cotidiano, ressignificando-o
(ou tornando-o, de insignificante que parecia ser, significativo) e – como nas palavras de outro
mestre do conto, Julio Cortázar (1974) – fazendo com que episódios vulgares “irradiem algo
para além de si mesmos”.
Referências bibliográficas
ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchekhov: Cartas para uma Poética. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1995.
___________. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
CORTÁZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto”. IN: Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
MANN, Thomas. “Ensaio sobre Tchekhov” IN: Ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva,
1988.
TCHEKHOV, Anton. As três irmãs; Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
___________. O Malfeitor e Outros Contos da Velha Rússia. Rio de Janeiro: Ediouro, s/ d.
___________. O violino de Rothschild e outros contos. São Paulo: Veredas, 1991.
VÁRIOS AUTORES. Teoria da Literatura – Formalistas Russos. Porto Alegre: Editora
Globo, 1976.
119
OUTROS GÊNEROS DA ESTANTE DE MACHADO
120
CINEMA NOVO
Eleazar Diniz1
Final dos anos cinquenta e começo dos anos sessenta. Era a época da onda
desenvolvimentista, construção de Brasília, JK até João Goulart, lutas pelas reformas de base
e, nesse cenário, inseriu-se o que se costumou chamar de Cinema Novo2.
Um grupo de intelectuais, frequentadores de cineclubes, engajados nos debates
políticos da época, acreditava que poderia haver uma tomada de consciência por parte da
população, principalmente através de um cinema que refletisse a realidade brasileira quase
sempre mascarada pelos canais oficiais. Estavam quase sempre envolvidos em incansáveis
debates no que chamavam de Bar da Líder, cujo nome deveu-se ao fato de ficar perto do
Laboratório Líder, onde eram revelados os negativos dos filmes do grupo.
Inspirando-se no Neorrealismo italiano, movimento cinematográfico surgido após a
Segunda Guerra, que viria influenciar o cinema latino americano e até, como sugeriu Gabriel
Garcia Márquez, o Realismo Mágico, que poderia ter surgido de Milagre em Milão de Vitório
de Sica (Burton, 2003, p. 201), o Cinema Novo começou a produzir filmes quase que
artesanais fazendo, inclusive, dessa falta de recursos, elemento de sua estética inovadora.
Entre os precursores está Nelson Pereira dos Santos que dirigiu Rio 40 graus em 1954
e Rio Zona Norte em 1957, além de produzir O Grande momento, de Roberto Santos, em
1958, o que seria a pré-história do Cinema Novo (Figuerôa, 2004, p. 21) ou o proto-cinema
Novo (Xavier, 2004, p. 16), filmes que incorporaram as ideias do Neorrealismo. Também
Alex Viany, outro nome reverenciado pelo grupo do Cinema Novo havia dirigido Agulha no
Palheiro (1953), Rua sem Sol (1954), Rosa dos Ventos (1957) e Sol sobre a Lama, este último
em 1963, quando o Cinema Novo já mostrava a sua cara. Não se pode deixar de mencionar o
nome de Paulo Emílio Salles Gomes, crítico e intelectual respeitado, que há muito defendia
um cinema que refletisse a realidade brasileira e que teve papel importante na consolidação do
movimento.
O Cinema Novo partiu para a realização de filmes quase artesanais, rejeitando
qualquer forma de industrialização cinematográfica, tendo a Vera Cruz, recentemente extinta,
1
Mestre em Lingüística Aplicada pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor de Língua Inglesa na
Faculdade Machado de Assis (FAMA) e cinéfilo.
2
O presente texto tem como objetivo dar uma visão geral do que foi o Cinema Novo, importante movimento no
cenário cultural brasileiro, listando, basicamente, seus principais filmes e diretores, o que poderá servir como
uma introdução a quem se propuser a conhecer o tema.
121
que, basicamente reproduzia a estética de Hollywood, bem como as chanchadas como
modelos a serem combatidos.
O documentário Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cesar Saraceni e Mário Carneiro,
primeiro sucesso do Cinema Novo, enfoca a chegada de uma indústria à então vila de
pescadores e a ameaça para a atividade destes últimos. O filme foi premiado em Florença,
Bilbao e Santa Margherita.
Nelson Pereira dos Santos havia ido à Bahia com a intenção de filmar Vidas Secas.
Teve que mudar os planos já que, com a chuva que caiu, o sertão floresceu impedindo-o de
realizar o filme. Escreveu às pressas Mandacaru Vermelho (1960), aproveitando, assim, a
presença da equipe que já estava no local. Neste mesmo ano de 1960, Linduarte Noronha,
diretor paraibano realizou o documentário Aruanda.
Vários filmes foram feitos na Bahia: Barravento (1961), de Glauber Rocha, premiado
em Karlovy Vary, na Tchecoslováquia, Bahia de Todos os Santos(1961), de Trigueirinho
Neto, A Grande Feira(1961), de Roberto Pires e, no Rio de Janeiro, foco do movimento, no
mesmo ano, Paulo César Saraceni dirigiu Porto das Caixas seu primeiro longa metragem.
Tocaia no Asfalto de Roberto Pires também é deste ano.
Com o fracasso de Mandacaru Vermelho, Nelson Pereira dos Santos foi em busca de
uma peça de Nelson Rodrigues, adaptando-a para o cinema. Assim surgiu Boca de
Ouro(1962). Roberto Pires também dirigiu, depois de A Grande Feira, o seu Tocaia no
Asfalto (1962). Este ano também foi marcado pelo aparecimento de O Pagador de Promessas,
de Anselmo Duarte e O Assalto ao Trem Pagador de Roberto Farias. Há certa relutância entre
os cinemanovistas em considerar estes dois últimos filmes como pertencentes ao movimento
já que utilizaram uma linguagem um tanto convencional. Isso, no entanto, não impediu que o
Pagador de Promessas ganhasse a Palma de Ouro em Cannes naquele mesmo ano.
O Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) decidiu
produzir um filme, Cinco Vezes Favela (1962), constituído de cinco episódios: Um Favelado,
de Marcos Farias; Zé da Cachorra, de Miguel Borges; Escola de Samba Alegria de Viver, de
Cacá Diegues; Couro de Gato, (1960) de Joaquim Pedro de Andrade, já feito, portanto,
quando da elaboração do projeto e Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman. Foi também o
ano do documentário Garrincha Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade. No ano
seguinte, apareceriam os maiores clássicos do movimento. Deus e o Diabo na Terra do Sol,
de Glauber Rocha; Os Fuzis, de Rui Guerra; Ganga Zumba Rei dos Palmares, de Cacá
Diegues e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.
O Golpe Militar de 1964 veio determinar mudanças de rumo em toda a cultura
122
nacional e o Cinema Novo, como era de se esperar, sentiu o seu impacto. A temática teve que
ser mudada, mas, mesmo assim, apareceu Maioria Absoluta, documentário de Leon
Hirszman, discutindo o analfabetismo no Brasil. O clima, entretanto, era para filmes mais
introspectivos, de reflexão sobre os acontecimentos, como O Desafio (1965), de Paulo César
Saraceni ou que buscavam o diálogo com a Literatura como O Padre e a Moça (1965), de
Joaquim Pedro de Andrade, baseado em poema do mesmo nome de Carlos Drummond de
Andrade; Menino de Engenho (1965) de Walter Lima Jr., a partir do livro de José Lins do
Rego, e ainda, A Falecida (1965), de Leon Hirszman, com base em peça de Nelson
Rodrigues; Luiz Sérgio Person dirigiria São Paulo S. A. (1965); Cacá Diegues, A Grande
Cidade (1966); Glauber Rocha, Terra em Transe (1967); Leon Hirszman, Garota de Ipanema
(1967); Domingos de Oliveira, Todas as Mulheres do Mundo; (1967) Gustavo Dahl, O Bravo
Guerreiro (1968) e Nelson Pereira dos Santos Fome de Amor (1968). O Circo (1965) e
Opinião Pública (1967) foram os dois documentários de Arnaldo Jabor..
Veio o Ato Institucional no 5 que obrigou os cineastas a se tornarem mais alegóricos,
afastando-se ainda mais do que poderia incomodar os militares e, consequentemente, com
filmes de mais difícil compreensão. O resultado seria O Dragão da Maldade contra o Santo
Guerreiro (1969), de Glauber Rocha; Os Herdeiros (1969). de Cacá Diegues; Os Deuses e os
Mortos (1970), de Ruy Guerra e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, baseado
no livro de Mário de Andrade. Este último, com uma visão tropicalista, incorpora até
elementos da chanchada.
A ditadura militar passou a incentivar a realização de filmes com temática histórica e
Joaquim Pedro de Andrade, aproveitando-se de tal abertura e dessa onda “nacionalista de
fachada” (Ortiz Ramos, 1987), dirigiu o sofisticado Os Inconfidentes (1972), servindo-se
literalmente do texto dos autos da devassa e da poesia de Cecília Meireles.
Embora, em 1970, segundo Fernão Ramos, quase todo o Cinema Novo tivesse sido
obrigado a deixar o país, alguns filmes continuaram a ser feitos. Arnaldo Jabor foi buscar
também em Nelson Rodrigues, Toda a Nudez Será Castigada (1972); Glauber Rocha dirigiu
seu último filme, o experimental, A Idade da Terra em 1980.
Possivelmente não fizesse mais sentido a denominação Cinema Novo, mesmo que
alguns cineastas do movimento continuassem fazendo filmes, pois a ideia de uma temática
que norteasse as suas produções há muito já havia desaparecido. O que ficou, porém, não só
deu visibilidade internacional ao nosso cinema como também consolidou o que agora se pode
chamar de Cinema Brasileiro.
123
Referências bibliográficas
BERNARDET, J. C. Brasil em Tempo de Cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
BURTON, J. Repensando os anos 50. In: CINEMAIS. Neo-Realismo na América Latina. N.
34, abril/junho 2003.
CINEMAIS. Neo-Realismo na América Latina. N. 34, abril/junho 2003.
FIGUERÔA, A. Cinema Novo: a onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas,
São Paulo: Papirus, 2004.
RAMOS, F. História do cinema brasileiro. São Paulo: Ciclo do Livro, 1987.
RAMOS, J. M. O. O cinema brasileiro contemporâneo. In: RAMOS, F. História do cinema
brasileiro. São Paulo: Ciclo do Livro, 1987.
SIMONARD, P. A Geração do Cinema Novo: para uma antropologia do cinema. Rio de
Janeiro, Mauad. 2006.
XAVIER, I. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra. 2004.
124
CONCURSO LITERÁRIO MARCA ÉPOCA
NA FACULDADE MACHADO DE ASSIS
Américo José Mano Júnior1
“O que se deve exigir de um escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o
torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e
no espaço.”
Esse pensamento de Machado de Assis ilustrou a capa da antologia do 1º Prêmio de
Literatura FAMA em Prosa e Verso, realizado em 1999, um concurso de poemas e contos,
cujo tema era o próprio Machado, que motivou escritores do Rio de Janeiro a buscarem na
vida e na obra do “bruxo do Cosme Velho” a inspiração para seus trabalhos.
Dentre os poemas premiados, abaixo reproduzidos, estão “Os teus versos que eu escrevi
chorando”, de Rita Gemino (atual Coordenadora do curso de Letras da FAMA), e “O cálice
de Assis”, de Américo Mano (hoje, professor de Literatura Portuguesa da Instituição).
Mesmo tendo êxito quanto ao número de inscritos e quanto à participação do público na
solenidade de entrega dos prêmios, o concurso teve apenas uma outra edição, em 2000, o
suficiente para marcar uma época na história desta casa que leva o nome de quem tanto fez
por nosso país.
A importância de um concurso literário não reside propriamente na escolha de um
vencedor, mas na lisura com que é desenvolvido, transmitindo credibilidade a quem dele
participe, independentemente do resultado.
O Prêmio de Literatura FAMA em Prosa e Verso preencheu todos os requisitos que se
espera de um nobre evento cultural. Sua vida breve deixou saudade.
A publicação desta revista refresca nossa memória e nos estimula a progredir. Que seja
o início de uma etapa sem data marcada para seu final.
Os teus versos que eu escrevi chorando
“Os versos que escrevi chorando”
jazem hoje...
escondidos nos livros,
À procura de um “eco de saudade”.
A penumbra das palavras
ASSISte a um ruflar de tremas.
E eu, poeta angustiado,
Persisto na minha sina (cena).
“Os versos que escrevi chorando”
Secam, hoje, vírgulas incessantes do leitor.
E eu ASSISto sobre o vácuo das páginas,
“Onde queima o óleo” dos poetas,
Aos ardentes olhares
De um ponto final.
E se hoje abrires as folhas de um livro,
Onde jazem “os versos que escrevi chorando”,
1
Professor de Língua Portuguesa e Literaturas; Coordenador do Centro Cultural da FEUC; Poeta.
125
Não fiques com um sorriso de esquiva no rosto.
Porque eu, poeta incansável,
ASSIStirei no tempo
A todos os olhos oblíquos e dissimulados
Que não choraram versos...
Mas ouviram lágrimas.
(Rita Gemino – 5º lugar)
O cálice de Assis
Ao fim do poema, estaremos expostos.
Seus olhos estarão manchados,
Qual minhas mãos lacrimejam agora.
Estaremos definitivamente lado a lado:
Um dentro e outro fora das cinzas.
Ambos queimados.
Não estaremos isentos
Da cicatriz deste momento
Enquanto Assis recobrar de nós
A lembrança de sermos...
− Você sabe bem o que somos!
Ora homens. Ora deuses.
Ora circunstância qualquer, não importa.
O assunto segue, exigindo
Nossa presença na movediça arena.
Ao fim do poema,
Estaremos sinceramente reais,
Tanto quanto um amor
De onze contos de réis.
Estaremos tragicamente escondidos,
Como se estivéssemos a celebrar
Uma traição revelada em cartas.
Estaremos aqui, ao fim do poema.
A mancha prometida a seus olhos
Está garantida...
É desnecessário ressaca para tê-la.
Quanto às minhas mãos,
Pense o que quiser.
Na verdade, delas não brota nada
Que não caiba na pequena taça
Com a qual brindamos agora.
E sempre. Aos vermes. Saúde!
(Américo Mano – 1º lugar)
126
INTIMIDADE
Hudson dos Santos Barros1
Nem tanto corpo, nem tanto mente. Intimidade é mais do que a sinceridade do corpo,
é mais do que a abertura das desconhecidas narrativas particulares.
Objeto intimidade
Nas brechas de sua doce lama, minha intimidade-objeto;
sujeitos opostos em formas dispersas, somos sombra e som;
objetivos sujos em sublimes atos, vertigens cordialmente bárbaras.
Por vezes, sou dono, mestre, algoz; por vezes súdito, sujeitado, objeto:
Somos trocas roucas em tantos papéis – pose e pó,
poder e impostura, posição e porventura...
E depois que a roupa assume, a abjeta aparência,
O mentiroso domínio da satisfação pública, do próprio.
Eterno depois cheio de tímidos vícios do pudor!
Tudo em busca da intimidade sempre perdida!
Tudo à procura da lama que recobre a abjeta brecha da alma.
*************************
Ela é, principalmente, a solidariedade das verdades, a tolerância fraterna da loucura
alheia, o merecimento conquistado no sincero engajamento, a ratificação da diferença na
afetuosa entrega.
*************************
Meus versos dormem
Para serem os olhos que despertam
Dormem para serem os olhos
que despertam a noite dos teus olhos.
Como ventos de inverno eles agridem
Com ventos iniludíveis eles agridem e reformam
Meus versos são vigias
São vigilantes da tua emoção esgotada.
Quietos, atentos, mordazes, salubres,
Os versos guardam
Aguardam o “sim” da tua tímida intimidade
Guardam o melhor ao do teu caos interior
do meu.
Os versos dormem, porém sonham
porém sonham com o algo mais ainda velado
porém crescem em vidas despercebidamente desmedidas
Os versos sonham
1
Professor e escritor, autor da obra Distâncias Pronominais (2011).
127
Para um dia (uma noite) serem tua realidade inaugurada.
*************************
Intimidade é vitalidade que integra humanidades possíveis. Caso assim não aconteça,
só existirá então a descabida indigência de tempos despedaçados.
*************************
Hoje,
vamos reinventar nosso nexo,
longe dos gozos passados, distantes da obscena razão
Com as dúvidas e os medos, entraremos em nossos mundos afins
para, assim, sentirmos o sagrado cheiro da intimidade
erro, acerto, acerto, erro, acerto, acerto, acerto, erro, acerto...
no vão dos possíveis, construiremos mundos em mundos:
o movimento então vira gente que gosta de gente.
Nestas horas,
de doce ócio, construiremos nossas ruidosas normas
com linhas e espaços explícitos,
cheios de adjetivos próprios e impróprios,
ausentes de indiferença nas contínuas semânticas dos corpos
Nestes minuciosos minutos
iremos aprofundar as redundâncias,
para depois apagar nossas próprias regras
será, pois, rasgado nosso apegado manual,
onde vislumbramos os sentidos que nos acomodam
de forma intensa e dolorosa.
Mais uma vez, mais outra, ainda outra...
até que a memória de nossas páginas seja verdadeira poesia...
*************************
Que saudade?
Aquela que inunda o pensamento
e desloca razões.
Que saudade?
Aquela que viaja
para aprender a ter mais saudade.
128
NATUREZA1
Maria da Conceição dos Santos2
Sou um castelo, você, minha torre
Sou sua musa, você é meu exemplo
Sou sua princesa e você, meu rei
Sou a terra e você, o sol
Sou o mar e você, o rio
Sou a tempestade e você, o vento
Sou uma roseira e você, o adubo
Sou uma rosa e você, meu cravo
Sou a flor, você, o campo
Sou a chuva, você, chão
Sou o amor, você, o desejo
Sou as lágrimas, você, o riso
Sou a faísca, você, o fogo
Sou a primavera, você, natureza
Como vê, não posso viver sem você, pois és minha
base sólida
Castelo sem torre não é castelo.
Sem um templo, não posso ser musa.
O que faria uma princesa sem rei?
Se não houvesse céu, o que seria da terra?
Ai do mar se não fosse o rio que corre para ele.
O que seria a tempestade, se não fosse o vento?
Roseira sem adubo murcha e morre.
Como seria triste a rosa sem o cravo.
As flores não existiriam, se não houvesse o campo.
Pra chover é preciso que o chão receba a água em
seu leito
O amor não seria lindo, se o desejo não o
completasse.
Se não fosse o riso, as lágrimas seriam apenas
prantos.
Não tendo fogo, não haveria faísca.
Sem o sol, não haveria também o luar.
Sem a natureza, não poderia existir a primavera!
1
2
Poesia vencedora do projeto “Poesia na Escola” (2004) da Secretaria Municipal de Educação.
Aluna do curso Português / Literaturas da Faculdade Machado de Assis (FAMA).
129
ESSA SOU EU... ATÉ QUE ME PROVEM O CONTRÁRIO
Conceição de Maria Pacheco da Silva (Ninah)1
Até que em vida me digam o vão da doce sina a lembrança
Carregada esvaída sem pudor... Amor insano!
Essa sou eu de vigia.
Em toda a minha inquietação e como me livrar dela?
De anistia de solidão de mundos e sonhos
Vestidos roubados de peças do armário
Desvarios são, e inadequação.
Essa sou eu de joias antigas e beijos roubados
E na dor que acende o fulgor de uma paixão em tormentos e ilusão
Essa sou eu, poetisa...
Em vida e morte, VIVA!
EVADIR-SE
Conceição de Maria Pacheco da Silva (Ninah)
Incrível esse desejo que tenho...
Esse anseio em dor, que acumula que afeta, não sai.
Que invade a alma me arrepia os pelos e me deixa sinais,
Que me arranca a fios me dirige às odes ao vazio entregue em vida a morte.
É meio que um caminho insano maluco cruel que evade as partes do peito e me divide em
grilos, que chega a desfazer todos os meus longos feitos, a saber, que a partida faz parte dos
sonhos.
1
Aluna do curso Português / Inglês da Faculdade Machado de Assis (FAMA).
130
Mas o que ainda me mantém pensante? Meus tolos olhos de anjo. Ainda estou a viver pelo
que digo, escrever e viver já são pra mim a mesma coisa.
E de tudo o mais incrível e desordenado é esse prazer que tenho em me expor, tenho prazer no
que padeço como se estivesse num tabuleiro de xadrez, é tudo que tenho um cálice de absinto
e algumas peças na mão. Traço minha humanidade com a pena de um poeta, minhas culpas
tão caras, tão cruas, meus avanços dissolúveis penetráveis, mas avanços, incontestáveis.
Minha busca tão inocente por um Nilo inexistente.
Um rio de águas calmas, menina coitada, doente...
Incrível é tudo isso que me embala, incrível é ter nascido assim ciente, diferente, solitária, dos
meus dos seus tão solitária! Um anseio por um legado de um dia, quem sabe, ao meu retorno
saber que sou lembrada, que haverá um livro um filho uma árvore plantada.
Incrível essa sombra, que aparece sempre quando o sol avermelha no céu, e se torna menos
quente diante de todo esse peso, e do calejado em minhas mãos, um descanso que ao longe
convida insistentemente a um desconhecido, um oásis que consigo avistar ao longe, nessa
minha viagem, onde é tudo exacerbadamente tão incrível.
Matemática Literária1
Valkiria de Oliveira dos Santos2
Se 2+2 é igual a 4 e 2+4 é um simples 6,
porque não juntar matemática e literatura agora de uma vez?
Veja só meu irmão se vai dar certo,
se liga no refrão e fica esperto!
É matemática
Literária,
É teoria com a prática.
Resolve agora a seguinte expressão:
no Renascimento soma a razão,
mas não subtraia as idéias de Platão.
Achei com a hipotenusa na carta de Caminha
uma índia nua que não fazia figurinha,
muita potência a bela tinha.
É matemática
Literária,
É teoria com a prática.
1
2
Rap criado para a Jornada de Letras e Matemática (2010), realizada na Faculdade Machado de Assis.
Graduada em Letras (Português / Inglês) pela Faculdade Machado de Assis (FAMA).
131
Não importa se mando de Pitágoras ou de Bechara,
vou pra galera com a fórmula de Braskara!
O Barroco está entre a luz e as trevas
ainda procura o valor de Delta.
É matemática
Literária,
É teoria com a prática.
O poeta romântico é pura desilusão,
vive na pressão de resolver sua equação.
Já o Realismo é papo reto sem muita cor,
decifra os problemas sem nenhum caô.
É matemática
Literária,
É teoria com a prática.
É Shakespeare no pedaço e Camões do outro lado
Querendo saber o resultado de quando é 4 ao quadrado.
Responde amigo! Ou está perdido?
Eu perdido? Nada disso, perdido ficou Pedro sem Inês
e eu já sei que a resposta é 16.
É pegadinha? Tenta outra vez!
Tempestade em Hatti
Cássio L. Maia1
http://tempestadeemhatti.blogspot.com/
Sinopse
Antiguidade. A Confederação de Assuwa espreme-se entre o poderio bélico dos
aqueus (gregos) e dos hititas, os senhores de Hatti. Ante aos boatos de uma iminente invasão e
uma possível colisão entre os impérios, a Confederação vê-se cada vez mais fraca e, da menos
pretensiosa das cidades, a mais humilde e, por muitos esquecida, surgem personagens que, de
aspirantes até a escravidão, causam uma reviravolta inesperada e ministrada pelo acaso em
suas vidas e seus senhores, até a alta corte, criando um cataclismo bélico que mudaria todo o
rumo de uma civilização. Uma estória de camponeses, bárbaros, nômades e civilizações, cujo
cenário é um paiol esperando pela simples centelha que o incendiaria e essa centelha surge do
mais comum dos sentimentos, a paixão, que culmina na obsessão e, por fim, muda a história
de uma raça através da guerra, e também do amor. Rica em conjeturas e aspectos históricos
reais, a estória segue entre as veredas progressivas e, por muito, inesperadas da vida de duas
personagens despretensiosas, cujo destino, embora não ecoe através dos tempos, serviu como
um dos alicerces que amparou a existência de muitos, por muitos anos.
1
Aluno do curso Português / Inglês da Faculdade Machado de Assis (FAMA).
132
Considerações Iniciais
Antes de transbordar o leitor com uma estória longa num ambiente completamente hostil,
sinto-me na obrigação, não só em prol de um povo que foi sumariamente ignorado e
desprezado nos livros e contos que concernem à Antiguidade, mas também em prol do
próprio entendimento do leitor.
“Quem foram os hititas?” e “O quê é Hatti?”, são duas perguntas que o leitor
provavelmente vai se fazer, e antes que se confunda com Haiti – que nada tem a ver com Hatti
-, ou que se acredite que criei um mundo paralelo aos moldes de Tolkien (que afinal não seria
uma cogitação absurda, visto que o grande Tolkien influencia gerações e gerações), eu vou
esclarecer os tópicos:
Os hititas (citados como heteus na bíblia e khetas nos livros de Homero) formaram um
povo de extremo poder e apogeu cultural entre 2000 e 1200 a.C. (quando foram suprimidos
pelas próprias guerras internas e invasões de povos longínquos; não só os hititas, mas os
genuínos gregos de Homero, os cretenses e grande parte do império egípcio também foram
'extintos' no que é conhecido como O Colapso da Era de Bronze). Donos de um império
espremido entre os impérios grego, hurrita, assírio e egípcio, os hititas foram protagonistas de
grandes momentos, como A Batalha de Kadesh, quando politicamente derrotaram os egípcios
e tomaram posses egípcias para si, obrigando o rei Ramses II a recuar e mentir para seu
próprio povo – e mais tarde ainda no que se acredita ser o primeiro tratado de paz mundial,
egípcios e hititas retomaram os laços de amizade. Vale citar também as contínuas batalhas
contra os gregos, citados em vários documentos preservados, grandes batalhas contra os
hurritas (que causaram a extinção desse povo) e, por fim, e para o autor a mais importante, a
invasão da Babilônia, na qual o rei Mursili desceu o vale da Mesopotâmia, invadiu, saqueou e
destruiu parte da cidade mais importante do mundo na feita, causando o declínio dos sumérios
e da dinastia do famoso Hamurábi.
Donos, suseranos, em grande parte das famosas cidades de Mileto (que chamavam de
Millawanda), Tróia (que nomearam como Willusa), tinham como sua capital, Hattusa, a
cidade mais importante da Ásia Menor. Múltiplas culturas uniram-se sob uma elite e
fundaram o grandioso império hitita, que dentre outros feitos, tinham conhecimento do ferro,
além do bronze, mais do que qualquer outro império contemporâneo e, por muitos, foram
considerados o maior poderio de seu tempo.
Mas por que são tão desprezados? Essa pergunta, porém, não tem uma resposta fidedigna,
quiçá nunca tenha, mas é possível que pelo desconhecimento de grande parte de sua história
cheia de lacunas, só há 'pouco tempo' foram descobertas as ruínas de Hattusa, ruínas essas que
fascinam seus conhecedores com seus grandes templos, suas robustas muralhas destruídas em
um relevo quase inóspito.
É por isso, leitor, e pela pesquisa que eu, autor dessa singela obra, tenho feito por amor ao
longo dos onze anos desde que conheci os hititas em um grande jogo de estratégia (onde me
fazia a insistente pergunta: por que uma civilização que sequer ouvi falar é uma das mais
equilibradas e fortes desse jogo tão renomado?), que pretendo lhes apresentar por meio deste
romance, entre guerras e amor, um pouco dessa tão magnífica história...
133
Tem uns dias...
Maria do Socorro Ferreira Mendes1
Tem dia que tenho vontade de levantar
Fechar minha porta e me refugiar debaixo da cama
Ou em um buraco qualquer
Que ninguém trouxesse problemas pra me absorver...
Estou cansada, estressada, será que ninguém se manca
Que isso me faz mal, que acaba meu dia?
Não é egoísmo... se for, que Deus me permita!
Ser egoísta por uns dias me deixa um pouco pensar em mim
Estou no meu limite, sou feita de carne e osso, só desejo ficar na minha!
Não sou advogada de defesa, nem de acusação, nem sempre desejo
Manifestar minha opinião...
As dificuldades me vencem ou brigo com a vida
Maria do Socorro Ferreira Mendes
Aprendi a brigar com a vida
de forma dispersa
quando percebi que às vezes ela não era minha aliada
tudo que eu queria, tinha que buscar no tapa
Nada era fácil pra mim, eu desistia muito rápido
até o dia que resolvi ser da vida uma adversária à altura
hoje, ela não me vence tão fácil, sou persistente
não abro mão do que tenho em mente
Já pensou se o lutador cada vez que caísse nunca mais quisesse lutar?
Se as flores nunca mais quisessem desabrochar e se Deus resolvesse nunca mais nos perdoar?
E por isso que insisto, mesmo que ela tente me derrubar, sou valente,
não caio tão facilmente, não consigo nada se eu não lutar!
1
Aluna do curso Português / Literaturas da Faculdade Machado de Assis (FAMA).
134

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