os olhos do carrasco - a casa do mago das letras
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os olhos do carrasco - a casa do mago das letras
OS OLHOS DO CARRASCO Eles não prendem, não acusam, não julgam. Apenas executam a sentença! L P BAÇAN Copyright © 2014 L P Baçan Todos os direitos reservados Proibidas a reprodução e a divulgação sem a expressa autorização do autor. Londrina-PR-Brasil 2014 2 ÍNDICE 1a. Parte – O Carrasco 2a. Parte – Os Olhos da Cidade 3 1a. PARTE O CARRASCO CAPÍTULO 1 Em Nova Iorque, nos bares e estabelecimentos comerciais, há sempre um espaço reservado para recados e ali aparecem os tipos mais diferentes e estranhos deles, tanto um simples recado de pessoa a pessoa como oferta de trabalho, precisa-se ou procura-se, compras, vendas, trocas e transações diversas. Esses recados permanecem por poucos dias e são logo retirados e substituídos por outros, numa rotatividade apropriada para uma cidade com um ritmo tão dinâmico como o de Nova Iorque. Em todos esses quadros de recados e avisos, no entanto, há um recado feito em um cartão plastificado, escrito com tinta nanquim numa letra bem legível, apesar de cursiva, que ninguém ousa retirar. Apareceu nesses quadros dois ou três anos após a Guerra do Vietnã e lá permaneceu. A amarela-se. Em alguns locais, ele foi plastificado ou simplesmente posto dentro de um envelope plástico para conservá-lo. O que é fato é que ninguém ousou retirá-lo de onde ele foi posto há muitos 4 anos. Ele se conserva ali como um refúgio para os desesperados, os desamparados, aqueles com sede de justiça e sem ter a quem recorrer; aqueles que foram humilhados, passados para trás, roubados ou ofendidos de qualquer forma. Esses procuram pelo responsável pelo anúncio, que diz o seguinte: Ele não prende, não acusa, não julga. Ele apenas executa a sentença. Não o procure. Apenas pergunte por ele ou deixe seu nome e telefone junto deste aviso. Se você precisar dele, ele aparecerá! *** Durante os últimos dias, Morgan Hart, corretor da bolsa de valores e responsável por um prejuízo de milhões para seus clientes, vinha recebendo pequenos pacotes com algo que ele apreciava muito: miniaturas de carros de corrida. Morgan estava curioso, pois os pacotes não indicavam um remetente. Vinham apenas, cada vez com um modelo. Julgou que algum fã ou alguma fã descobrira seu hobby e o estava presenteando daquela forma. De seus antigos clientes ele nada mais sabia. Um ou dois haviam se suicidado e Morgan não tinha peso nenhum na consciência por isso. Era um espertalhão. O dinheiro dos clientes havia sumido nos intrincados mecanismos de 5 funcionamento de uma bolsa de valores, só que, em algum ponto do Caribe, eles acabaram sendo depositados numa conta em nome dele. Passada a investigação oficial que lhe cassou a credencial de corretor por mal orientar seus clientes e por negligenciar na leitura e análise dos dados informativos que orientavam as melhores opções de investimento, recolheuse, então, em sua residência, enquanto um advogado hábil cuidava de livrá-lo das acusações secundárias, preparandose para o passo seguinte que era o de comprar um pequeno hotel na Riviera Francesa, onde viveria tranquilo pelo resto de sua vida, com dinheiro suficiente para fazer o que quisesse. Não tinha pressa. O dinheiro estava guardado e o hotel não seria vendido para outro. Esperava apenas o melhor momento para dar o fora do país. Assim, o recebimento daquelas miniaturas tornou-se um hábito e uma diversão para ele. Todas estavam sendo cuidadosamente embaladas para acompanharem-no em sua viagem. Naquele sábado, pela manhã, quando o carteiro passou, Morgan correu até a caixa de correspondência apanhá-la. Entre tantas coisas, encontrou um pacote maior, mas feito com o mesmo papel e endereçado com a mesma letra. Ficou curioso, porque ali poderia haver algo mais que apenas uma miniatura ou, então, seria uma miniatura especial, considerando-se o tamanho do pacote. Levou-o para seu escritório e com uma tesoura cortou rapidamente os cordões que amarravam firmemente o 6 pacote, abrindo-o. Para sua surpresa e deleite, dentro havia uma magnífica miniatura em escala de uma formidável Ferrari Testarossa junto com um bilhete. Curioso, julgou que descobriria, afinal, quem o estava brindando com tão desejados presentes. Abriu o envelope com mãos apressadas e trêmulas. Retirou o pequeno pedaço de papel colorido. Antes de abri-lo, cheirou-o. Cheirava a perfume de mulher. Sorriu e desdobrou-o. Morgan: Seu filho da mãe! Meu pai, John Sanders, matou-se por sua causa, seu ladrão bastardo! Espero que tenha gostado do presente. Só espero que ele não parta seu coração em mil pedaços. Ficou atônito, olhando o pedaço de papel e a miniatura. Então percebeu a pequena lâmpada no interior do brinquedo, piscando. Intrigado, levantou-a para olhar. Havia um mostrador digital nele ao lado daquela lâmpada. — Cinco... Quatro... Três... Dois... Um... — foi lendo ele, imóvel, sem entender o que estava acontecendo. O C-14 é um explosivo com um poder de destruição incrível e muito cruel. Não apenas provoca concussão pelo deslocamento de ar como libera um potencial de energia elevadíssimo, um calor intenso. Foi muito utilizado no Vietnã e em ações terroristas porque, mesmo que não 7 matasse com o impacto, o calor calcinava suas vítimas. Num raio razoável ao redor de petardo, tudo ardia e se partia. A polícia, mais tarde, quando o incêndio foi debelado, julgou ter encontrado pedaços do corpo de Morgan Hart espalhados por todos os cantos do cômodo onde ocorrera a explosão e onde ele se encontrava. Ninguém entendeu o que tinha acontecido. O fogo apagou todas as pistas. A hipótese de que ele tentava montar uma bomba e explodira com ela não foi descartada e sua morte se resume atualmente numa pasta no fundo de um arquivo do Primeiro Distrito Policial da Cidade de Nova Iorque. *** As coisas nunca foram fáceis no Harlem e vinham se tornando cada vez mais difíceis. As gangues de rua impunham uma sinistra lei após o escurecer e quem fosse pego nas ruas, se não fosse membro da gangue que dominava aquele território, estava morto. O tráfico de drogas tornava-se a profissão do momento. Todos queriam trabalhar nos pontos de venda, não apenas para garantir o seu suprimento diário como para ostentar uma espécie de status dentro daquele mundo perigoso. Como empregado do tráfico, tinha arma, munição e respeito. Enquanto isso, os cidadãos honestos tinham de trancar portas e janelas e viver reclusos em suas casas, pois a qualquer hora do dia ou da noite eles apareciam, os viciados e vagabundos, desesperados atrás de dinheiro ou de 8 algo que pudesse ser transformado em dinheiro para garantir-lhes a dose do vício. Monna Silverston fazia um curso de modelo e em seis meses estaria formada. Alguns empresários já haviam manifestado interesse por ela, pois tinha um perfil adequado para as passarelas e para as câmaras. Seus cabelos eram compridos e ondulados. Seus olhos eram incrivelmente verdes, fruto de uma excitante mistura entre pai italiano e mãe negra. Seu grande sonho era sair dali, mudar-se, ter uma vida diferente, cercada de gente bonita e sem sobressaltos. Quando desceu do ônibus e viu Steve e sua gangue, soube que seria importunada. Eles sempre faziam isso, mas jamais a haviam tocado antes. Naquela noite, porém, os Hard Boys, membros de uma das gangues mais temidas do Harlem, estavam procurando diversão. Steve, naquela noite, queria algo novo também. E Monna desceu do ônibus como um presente caído dos céus. — Monna! — chamou ele. Ela apressou o passo, tentando evitar qualquer contato com eles. Steve fez um sinal de cabeça para os amigos que se apressaram e correram pela rua para barrar a passagem da garota. Ela tentou atravessar a rua. Eles a detiveram. O líder da gangue deixou o carro onde estava, um conversível de luxo, e caminhou na direção dela. Ela detestava todos eles e sempre procurara evitá-los. 9 O chefe da gangue chegou perto dela, medindo-a dos pés à cabeça. Ela vestia uma calça comprida colante, revelando as formas perfeitas de seu corpo. Uma blusa de algodão, solta sobre os seios sem sutiã, completava o visual despojado mas extremamente adequado para seu perfil. — Steve, deixe-me passar! Mande seus ratos de esgoto saírem da minha frente. Inesperadamente ele a esbofeteou. — Quem pensa que é? — indagou ele com o dedo espetado no nariz dela, fazendo-a recuar até a parede. — Acha-se muito gostosa? Acha que é melhor do que nós? Ponha-se no seu lugar. Você não passa de uma negrinha metida querendo viver no mundo dos brancos. Não percebeu isso? Aposto como anda dando para todos eles, tentando conseguir um empreguinho. Isso você pode obter aqui, com o velho Steve — disse ele, esfregando a pélvis nos quadris dela. Enojada, ela reagiu instintivamente. Seu joelho subiu e entrou por entre as pernas do delinquente, que gemeu e dobrou os joelhos, quase se agachando diante dela. Ela ensaiou fugir, mas braços fortes a seguraram. Ela ficou trêmula, enquanto Steve recuperava o fôlego, olhando-a furiosamente, as mãos massageando os testículos doloridos pela joelhada. — Cadela maldita! — rosnou ele, furioso, aproximando-se da jovem. — Deixem-me ir! — pediu ela, mas calou-se quando ele a esmurrou com força no queixo. 10 Monna sentiu um estalo na mandíbula e uma dor lancinante quando o osso do maxilar se partiu com o golpe. Os rapazes continuaram segurando-a. Steve tirou uma faca e cortou a blusa dela, desnudando-lhe os seios. — Pode ser um bom prato, rapazes — disse ele. — Levem-na para o carro. Nas janelas e portas da rua poderia haver alguns olhos curiosos observando, mas ninguém se revelou, ninguém foi em socorro dela ou chamou a polícia. O conversível foi seguido por outros carros até um prédio abandonado, onde a gangue tinha seu refúgio. Quando Monna foi levada para dentro, já tinham cortado suas roupas. Ela estava nua. O corpo jovem e virgem foi tocado, beijado e lambido pelos membros da gangue, até ser jogado em um colchão velho diante de Steve. Ele havia terminado de cheirar cocaína algumas carreiras naquele momento. Ficou olhando o corpo da garota, que parecia se mover diante dele numa dança estranha, excitante e convidativa. Ele se despiu e violentou-a. Quando terminou, levantou-se e gritou para os outros: — É de vocês, rapazes! Monna estava desmaiada e isso foi sua sorte. Caso contrário não teria resistido às barbaridades que cometeram em seu corpo, humilhando-a de todas as maneiras. Desenhos macabros foram traçados a ponta da faca em sua pele. Seus mamilos foram extirpados. Jogaram o jogo da velha em sua face direita. Espetaram um osso de galinha como brinco em 11 sua orelha. Sexualmente, não lhe respeitaram nada. Monna foi um objeto nas mãos da quadrilha. — Vamos jogá-la no rio! — sugeriu um deles, quando a festa terminou e eles se desinteressaram. — Sim, joguem-na no rio! — determinou Steve e um grupo deles se apressou em atendê-lo. *** A área do Sexto Distrito Policial da Cidade de Nova Iorque abrange a pior zona da cidade, localizada entre os bairros do Bronx e do Harlem, onde a ação das quadrilhas de droga e das gangues de rua tornou a vida dos policias um constante tormento. Muitas vezes, membros importantes daquele mundo de crime eram apanhados e levados para o Distrito para, no mesmo dia, serem libertados por invasões que pareciam autênticas guerras. Por isso, para o Sexto Distrito eram mandados apenas os policiais mais truculentos, mais duros, mais espertos ou, então, os envolvidos em algum problema. O Sexto Distrito era o cemitério dos tiras. Rusty Brown descobriu isso quando um tiro de AR-15 quase lhe arrancou o braço e ele teve de passar uma boa temporada no hospital, correndo o risco de perdê-lo. Recuperou-se lentamente. Quando o médico o liberou para o trabalho, Rusty havia recuperado boa parte dos movimentos do braço, mas ainda era obrigado a fazer fisioterapia. 12 — Vou lhe dizer o que quero que faça, Rusty. Está vendo aquele armário ali? — Crimes insolúveis? — Esse mesmo. O prefeito pediu ao comissário da polícia um trabalho especial sobre esses crimes. Uma estação de tevê fez uma reportagem mostrando isso, fustigando a inoperância da polícia. Em todos os Distritos isso está sendo feito. Você vai pegar aquilo, passar para o computador e investigar nossos crimes insolúveis. Se precisar de ajuda, o computador vai estar interligado com os outros. Terá toda ajuda que precisar. Rusty Brown reclinou-se em sua cadeira, retirou o cigarro da boca e encarou o seu capitão e chefe do distrito. — Capitão, estou na polícia há quinze anos e sempre trabalhei nas ruas. Não pode fazer isso comigo... — foi dizendo ele. Sem que ele percebesse, o capitão havia apanhado um furador de papel na mesa. Inesperadamente, jogou-o na direção do braço direito do policial, o mesmo que quase fora arrancado pelo tiro. Os reflexos ainda estavam péssimos. O furador bateu no peito de Rusty, que olhou atônito para o capitão. — Imaginemos que você estivesse na rua e de seu reflexo dependesse a sua vida ou a de seu parceiro. O que teria acontecido, Rusty? O policial quis responder, quis protestar e argumentar. Era um homem acostumado ao perigo, não à rotina e à burocracia. Doía-lhe, no entanto, reconhecer que ainda não 13 estava preparado para voltar totalmente à ativa. Poderia morrer se falhasse. Poderia provocar a morte de alguém, inclusive. — Entendeu o que eu quis dizer, Rusty? Sei que é um cara durão, meu caro. Talvez o melhor policial que eu tenho nesta droga de Distrito, mas você tem que reconhecer que não está preparado ainda para voltar. Sei que anda dando duro nos exercícios e não esperava outra coisa. Em breve estará de volta. Até lá, vai ser muito útil se conseguir fazer alguma coisa com esse maldito arquivo. Sei que tem um computador em sua casa e que gosta de brincar com isso. Não tenho ninguém melhor que você. Além disso, com seu faro, talvez encontre algumas respostas em tudo isso e possamos tranquilizar o comissário para ele fazer sua média com o prefeito. Está bem? — Ok, capitão! Você me convenceu! — falou Rusty, aceitando a dolorosa realidade. Era um semi-inválido ainda e precisava fazer alguma coisa para justificar seu salário. O médico dizia que ele podia voltar ao trabalho, mas não ao trabalho de verdade. Estava sendo transformado num simples operador de computador. Apenas por esse detalhe é que o trabalho que teria que fazer não seria um tormento. Estaria com o computador e poderia fazer muita coisa com ele, acelerando a busca por algumas respostas. Estava convicto de que, caso encontrasse algumas naquele monte de papel, poderia negociar com o capitão sua volta às ruas. 14 — Como é que vai fazer com tudo isso? — indagou Sharon Mayfield, uma policial que se encontrava recolhida ao trabalho burocrático, após levar um tiro na perna. — Ainda não sei, Sharon. Mas vai ser duro aguentar. — Fique frio! Eu me senti da mesma forma. A maldita bala que me feriu não me tirou apenas a mobilidade total da perna, mas me afastou de algo que eu gostaria de fazer, Rusty. — Como se sente agora? — Estou dando tudo na fisioterapia, mas o médico foi claro. Vou mancar para o resto da vida e jamais poderei depender desta perna para nada. Em resumo, acabou-se para mim o trabalho na rua. — E você vai deixar que a opinião de um babaca desanime você e a faça desistir? Em resposta, ela se levantou e caminhou até ele. Tomou a mão de Rusty e pressionou-a contra a coxa. — O que sente aí? — indagou ela. — Um buraco... Um pino? Parece um parafuso... — Não consegui ir para a cama com homem nenhum depois do ferimento, Rusty. Não ficou uma coisa bonita de se ver. Depois que retirarem esse maldito parafuso, farão alguns enxertos. Talvez a plástica me faça voltar a ser bonita, mas lá dentro eu sei que existe algo precário que poderá se romper num esforço. Terei de viver com isso. Da mesma forma, você também o fará. Ele fechou o punho com força, mostrando-o à garota. — Já tenho setenta por cento de todos os movimentos... 15 — Vai chegar a quanto? Setenta e cinco? Oitenta? Sabe o que vai acontecer depois? Vão lhe dizer que isso é o máximo, Rusty. Não estou sendo cruel nem pessimista, mas eu passei por isso, amigo. Não tenha ilusões. Não se engane. Ele a olhou quase com ódio por tê-la ouvido falar daquela forma. Depois percebeu que não era ela quem deveria ser odiada, mas aquele maldito bastardo que atirara nele. Um maldito traficante de droga viciado que, durante o tiroteio, apontara aquela maldita arma na direção de Rusty. Ele conhecia aquele homem que mirava nele. Era Goose, um pilantra de primeira com uma ficha policial do tamanho de um jornal de domingo. Conhecia-o. Algumas vezes até livrara a cara dele em flagrantes de droga. E Goose apontara um AR-15 para ele e disparara. Um projétil capaz de perfurar a blindagem de um tanque, partir um trilho ou varar uma parede atingiu seu braço, que ficou preso apenas por frangalhos. Maldito Goose! — Esqueça tudo agora, Rusty. Comece uma nova carreira. Vai trabalhar como detetive. Vai se divertir com esses crimes aí. Vai encontrar coisas muito interessantes... — Como o quê, por exemplo? — Se olhar com cuidado, vai achar muitas vítimas do Carrasco. Ele riu, olhando-a com incredulidade. — Não acredita no Carrasco? — Isso é uma lenda, sabia? 16 — Lenda ou não, mas você viu aquele aviso no bar do Ned? Está lá há mais de quarenta anos. O mesmo acontece em outros pontos da cidade. — É loucura! — comentou ele, rindo. Conhecia aquela história. Era pura fantasia. Ninguém podia fazer aquele tipo de trabalho impunemente por tanto tempo sem nunca ter sido descoberto. Depois, jamais ouvira falar de uma acusação oficial ao Carrasco. Tudo não passava de mais uma daquelas histórias fantásticas contadas nos becos, nas noites frias ou nos acampamentos de crianças ao redor da fogueira. 17 CAPÍTULO 2 Naquela tarde, após seu expediente, Rusty desligou o computador e empurrou as pastas para o lado. Estava cansado, com os olhos doloridos e, o que era interessante para ele, com o traseiro também dolorido. — Está vendo, Rusty. Escapou ileso de seu primeiro dia como burocrata — falou Sharon. — Não sabe a que preço. — Veja pelo lado positivo. Estar aqui dentro tem as suas vantagens. Uma delas é sair no horário. Você pode ir para casa agora e descansar. O que me diz? Ele fez uma cara de quem não compartilhava da mesma opinião dela. — Ei, é tão mau assim ir para casa? — indagou Sharon, fechando sua gaveta e indo até a mesa dele. Rusty levantou-lhe a cabeça, olhou-a nos olhos, depois exibiu a mão esquerda. Havia uma marca branca em seu dedo anular. — Divórcio? — Depois que fui baleado, nossa vida piorou. Ela me deixou, quando saí do hospital. Levou o que lhe interessava e depois mandou um advogado conversar comigo para decidirmos sobre a pensão dela. Quase bati nele. — Não sei o que está havendo com as pessoas, Rusty. Não existe mais amor nem solidariedade. Meu caso não é 18 diferente do seu. Ele me deixou também. Disse que não conseguia fazer amor com uma aleijada. O tom de voz dela chocou-o. Era triste, profundamente triste. Tão triste quanto a dele. — Sabe o que nós dois deveríamos fazer? — indagou ele. — É só dizer... — Vamos até o Bar do Ned encher a cara? Somos burocratas, não temos que estar em forma amanhã... — Tem razão. Estou nessa! Instantes depois os dois deixavam o Distrito. Bastava andar apenas uma quadra e estariam no Bar do Ned onde os tiras da região se encontravam. Ali havia tiras aposentados, na ativa e recrutas da Academia de Polícia conhecendo o ambiente. Quando entraram, Rusty lembrou-se de algo e parou diante do quadro de avisos. Ali plastificada estava aquela estranha e antiga nota sem nome e sem endereço. Apenas aquele pedaço de papel com os dizeres do recado. Sharon parou ao lado dele, Observou da mesma forma. Depois, como se pensassem a mesma coisa, os dois se olharam. — Está pensando o mesmo que eu? — indagou ele. — Acho que sim — respondeu ela. — Eu iria adorar saber que aquele bastardo foi ferrado... — Ah, eu daria tudo para saber que o Goose sofreu muito antes de morrer... Espere aí, Sharon! Somos tiras! Não devíamos ter esse tipo de pensamento. 19 — Claro que não! Devemos confiar na justiça e acreditar que ela punirá os culpados por transformarem nossas vidas em titica de galinha. Vamos encher a cara! — decidiu ele. Naquele momento, um homem velho, negro, de cabelos brancos e ar cansado e sofrido entrou no bar e foi até o quadro de avisos. Tinha um pedaço de papel na mão e prendeu-o com um alfinete ao lado do recado. Tinha um nome e um telefone. Sem nada dizer, o velho ia saindo. —Espere! — disse-lhe Rusty, instintivamente. O velho parou e encarou-o. — Não estou fazendo nada de errado — disse o velho. — Eu sei... Mas porque deixou aquele nome e o telefone ao lado daquele recado? — Eu procuro por ele. — Por quem? — Pelo homem do anúncio. — O Carrasco? — Não sei o nome dele. — Por quê? — Tenho que ir — falou o velho, virando-se para ir embora. — Por favor, espere! Venha tomar um drinque conosco. Gostaria de saber por que faz isso e se isso funciona mesmo. 20 O velho olhou-o com severidade, como se Rusty tivesse cometido uma heresia. Sharon acompanhava tudo com interesse. — Por favor, senhor! Tome uma bebida conosco e conte-nos por que faz isso. É só curiosidade nossa. Venha! — insistiu Sharon, com um sorriso cativante nos lábios. O velho hesitou por instantes e depois, com um suspiro de resignação, deu de ombros e os seguiu até uma mesa vazia. Rusty pediu uísque e cerveja para todos. — Por que fez isso, afinal? — indagou ele para o velho, assim que foram servidos. — Estou colocando esse recado em todos os quadros de avisos do Harlem e do Bronx. Preciso encontrá-lo. É o único capaz de fazer justiça. — O que houve, afinal? — quis saber Rusty. Em resposta, o velho tirou uma foto de sua carteira e mostrou-a aos dois. Era a de uma linda garota, uma mulata jovem, de incríveis olhos verdes. — Esta é Monna, minha filha. Está no hospital com o queixo quebrado, o rosto desfigurado e toda retalhada. Foi retirada do rio, onde uma gangue a jogou, após terem feito com ela o que não se faz à pior das prostitutas — falou o velho e seus olhos se encheram de lágrimas. — Você apresentou uma queixa? — Contra os Hard Boys? Ficou maluco. Eu estaria condenado à morte no momento em que a assinasse. Minha filha queria ser modelo. E seria. Era linda. Agora é um trapo humano jogado numa cama de hospital. Seu rosto está 21 desfigurado... Ela implora para que a matem... Não suporta a vergonha... Rusty fez um gesto e, logo em seguida, outra dose de uísque foi servida ao velho. Com a mão trêmula ele a levou à boca, engolindo-a de uma só vez. Limpou a boca nas costas da mão. — Tenho muitos lugares para ir ainda. Preciso ir agora. Só posso contar com ele para vingar minha filha. Rusty olhou-o e pensou em todos os discursos que poderia fazer sobre justiceiros, sobre tomar a lei em suas próprias mãos, mas desistiu. Nada que dissesse tiraria aquelas lágrimas dos olhos do velho nem devolveriam a beleza ao rosto de sua filha. — Conhece essa quadrilha? — indagou Sharon. — Sim, é uma das piores. Chegamos a prender o líder dela algumas vezes, mas o maldito é liso como uma enguia. Mal chega preso no Distrito e meia dúzia de advogados chega atrás dele com toda sorte de dispositivos legais para soltá-lo. Não conseguimos ainda incriminá-lo. Todos têm medo. Ninguém testemunha ou apresenta uma queixa formal. — Sabe de uma coisa? — falou Sharon. — Eu adoraria que esse Carrasco aparecesse e desse a esse velho a alegria de ver sua filha vingada. — Pensei a mesma coisa... Ned Duran, o dono do bar e tira aposentado, aproximou-se da mesa. 22 — Pobre velho! Soube o que aconteceu com a filha dele! — comentou. — Ned, você está aqui no pedaço a mais tempo do que eu. O que sabe sobre esse Carrasco? — É uma lenda urbana, uma história que contam por aqui... Só isso, Rusty. Não perca seu tempo com ele. A menos que queira correr atrás de uma sombra. — Estou trabalhando com as pastas dos casos insolúveis, Ned. Em muitas delas eu observei que, na capa, havia um C desenhado com tinta vermelha. Sabe o que é isso? — Parte da lenda. Nós costumávamos pôr esse C nas pastas de crimes insolúveis, quando achávamos que eles foram cometidos pelo Carrasco. Uma brincadeira, nada mais! Esqueça! — finalizou Ned, sorrindo e indo cumprimentar o pessoal de outra mesa. Sharon e Rusty se olharam intrigados. — O que achou? — indagou ele. — Se é apenas uma lenda, uma brincadeira, por que não tiram aquele papel do quadro de avisos? — É uma boa pergunta, Sharon. Uma boa pergunta mesmo — afirmou ele, pensativo. *** Alguns dias depois, os Hard Boys estavam reunidos num armazém à margem do Rio Harlem, esperando um negociante que prometera comprar cinco quilos de droga. Vigias haviam sido espalhados por todo o prédio, inclusive 23 no telhado. Estavam lá uma hora antes do encontro e tudo já havia sido vasculhado. O local fora considerado seguro. — O que sabe sobre esse comprador? — indagou Steve a Jeff, seu braço direito. — Sei que é quente, Steve. O cara lutou no Vietnã, está cheio de medalhas e esses negócios de soldado. Está comprando para presentear uns amigos. — Você checou o sujeito? — É limpo, fica frio! Além disso, temos o controle da distribuição. Quem iria brincar com os Hard Boys? — indagou Jeff, estendendo o braço numa saudação. À medida que aumentava o poder e o domínio deles sobre o território, eles se tornavam mais confiantes e mais seguros de si. A polícia não os importunava mais. Haviam comprado os tiras certos no Sexto Distrito, por isso não tinham maiores preocupações. Nenhuma outra gangue ousaria tentar penetrar naquele território. Os Hard Boys tinham armas da pesada e muitos homens. Seus negócios sempre eram feitos com um máximo de segurança. Mais da metade dos delinquentes que faziam parte dela estavam ali naquela noite. Quando a hora se aproximou, a tensão e a impaciência cresceram. — Estão vindo! — anunciou alguém no alto do teto junto a uma janela de ventilação. Um Lincoln negro desceu a rua lentamente com os faróis de luz alta acesos. Quando se aproximou do armazém, buzinou três vezes, dando o sinal previamente combinado 24 entre eles. A enorme porta foi aberta. O carro manobrou e entrou lentamente, enquanto fechavam de novo o armazém. — Há quantos deles lá dentro? — indagou Steve. — Não dá para ver com aqueles vidros escuros. Repentinamente, o porta-malas do carro se abriu. Um dos membros da gangue se aproximou. Havia uma maleta lá dentro. — Tem uma maleta aqui, Steve! — gritou ele. — Traga-a aqui. Por que eles não saem? — Eu não sei — falou Jeff, indo até o carro. Olhou atentamente, mas não conseguia ver no interior do carro. Puxou as maçanetas. As portas estavam travadas. — Steve, acho que eles são apenas cuidadosos — gritou. — Certo, vamos ver o que temos aqui — falou o líder, abrindo a maleta. Havia maços de notas de cem em um envelope em cima. Abriu o envelope. Demorou um pouco para reconhecer aquele rosto na fotografia. — Que diabo é isso? — indagou ele, apanhando um dos pacotes de notas. Havia apenas uma nota de cem no topo do maço. — Quero ver a cara de quem está lá dentro — falou ele, apanhando uma escopeta de um dos capangas ao seu lado. Foi engatilhando e disparando, enquanto caminhava na direção do carro. Os outros homens fizeram o mesmo, arrebentando os vidros do veículo. Quando Steve chegou 25 perto e olhou, percebeu que o carro estava vazio. Havia um estranho e engenhoso sistema de braços hidráulicos e engrenagens ligados ao volante e ao câmbio, encimados por uma caixinha de onde se sobressaía uma antena. — Alguém quer me explicar o que está havendo aqui? — berrou Steve, segurando Jeff pelo braço. — Ali atrás! — falou Jeff, de olhos esbugalhados, tremendo como uma vara verde. — O que há lá atrás? — quis saber Steve, esticando o pescoço. Havia o que parecia ser uma pilha de quatro tijolos presos com fita adesiva. Sobre ela havia um relógio digital que marcava o tempo em ordem decrescente. Fios saiam do relógio e sumiam entre os “tijolos”. Steve viu o cinco, o quatro, o três, o dois e o um. Depois tudo clareou a sua frente, como se as portas do inferno se abrissem para recebê-los. *** Sharon estacionou seu carro diante da casa, bêbada demais para tentar pô-lo na garagem. Mancou até a porta de entrada. Passava das dez. Ao longe podia ver o céu pegando fogo. Alguém dissera que um barracão explodira na beira do rio. Entrou e jogou as chaves sobre o primeiro móvel que encontrou. Deixou o corpo cair no sofá e ficou ali imóvel, sentindo aquele balanço incômodo que a bebida provocava na casa. Naquela noite tinha um consolo especial. Sabia que iria cair na cama, se conseguisse chegar até ela, e dormir 26 pesadamente, coisa que não vinha conseguindo fazer desde que passara a morar sozinha. A solidão era terrível. A ingratidão doía. Quando pensava que conhecia realmente seu marido e precisava do apoio dele, ele simplesmente a abandonara, alegando que não conseguiria fazer amor com uma aleijada. Assim, Sharon não perdera apenas parte da perna e da mobilidade naquele tiroteio. Perdera o marido, a vida sexual, o amor próprio e tudo o mais. Aquela maldita cena voltava constantemente a sua mente. Naquela tarde, quando Rusty falara de seu ferimento, ela reviveu com ele a maldita cena. Gordon Flowers, um cafetão viciado em cocaína, estava espancando uma de suas mulheres na rua, quando Sharon e seu parceiro passavam. — Eu o conheço, Sharon! É um tipo perigoso. Vou pedir apoio — dissera seu parceiro. — Eu vou na frente — respondera ela. Não poderia jamais ficar ali, olhando a maneira cruel como ele chutava e esmurrava a mulher. Saltou do carro com o revólver na mão e deu-lhe voz de prisão. Gordon se voltou para ela rindo como o mais inocente e pacato dos cidadãos. — Ei, o que houve, policial? — indagou ele, caminhando ao encontro dela. — Parado! — ordenou ela. Gordon continuou sorrindo e avançando. Ela nada viu na mão dele. Ele parecia tão inocente, tão ingênuo, avançando daquela forma como se não a tivesse ouvido. Ela 27 ficou ali, parada, enquanto ele chegava e estendia o braço, afastando a arma dela. No momento seguinte ele encostava uma automática na perna dela e apertava o gatilho. Sharon sentiu o tranco e perdeu o equilíbrio, caindo sentada. Ficou olhando para sua calça, que pegava fogo no ponto onde o tiro fora disparado. Ela olhou pateticamente para ele. Viu Gordon caminhar até onde estava mulher que ele espancava e enfiar a arma entre os seios dela, dentro do sutiã. Disse qualquer coisa. A mulher se afastou. O parceiro dela saiu do carro. Gordon estava com as mãos levantadas repetindo que não fizera nada, que alguém havia atirado nela. Sharon continuou, então, olhando para as labaredas em sua calça, achando tudo estranho e belo. Voltou à realidade com o telefone tocando. — Rusty, seu idiota! Eu disse que conseguiria — falou ela em voz alta, lembrando-se da preocupação dele ao vê-la entrar no carro naquele estado. Nos últimos tempos, Sharon estava se tornando uma perita em voltar bêbada para casa. Era incrível como se recordava do último gole, de ter entrado no carro e de ter chegado em casa. Tudo no meio disso era um branco total, como se houvesse acontecido uma mágica qualquer e ela fosse transportada de um lugar para outro misteriosamente. O telefone continuava tocando. Com muito esforço ela se levantou e foi até ele. Sentou-se no assoalho e pôs o aparelho no colo. Levou o fone ao ouvido. — Rusty, eu disse que conseguiria... 28 — Cadela uniformizada! — disse aquela voz vinda de dentro de um pesadelo. Ela demorou algum tempo para entrar em sintonia. Ouvira aquela ofensa um dia, em algum lugar, mas não conseguia se lembrar de onde fora. — Está me ouvindo, cadela? Perdi muito dinheiro por sua causa. Soube que já saiu do hospital e está trabalhado de novo. Vou terminar o que comecei. Jamais uma mulher me passou para trás — afirmou a voz, desligando em seguida. Sharon ficou pateticamente segurando o telefone no ouvido, revivendo tudo, sentindo lágrimas escorrerem de seus olhos. Sem perceber, olhou a perna, esperando ver ali, de novo, o brilho da chama. Demorou algum tempo para entender o que se passava, afinal. — Como? Onde? Esse bastardo... — murmurou ela, pondo o fone no gancho. No momento seguinte ele tocou de novo. Ela deu um salto, jogando-o para o lado como se fosse um animal peçonhento. O fone caiu longe. —Sharon! Você está bem? Sou eu, Rusty! Sharon? Fale comigo, maldição! Você está aí? — ela ouviu a voz dele gritando no fone. Arrastou-se até ele. — Rusty, ele ligou... Ele está dizendo que vai me matar... Rusty... Socorro! — O que está havendo, Sharon? — insistiu ele. — Rusty... Não quero ficar sozinha, por favor! — exclamou ela e começou a chorar alto. 29 30 CAPÍTULO 3 Quando Rusty chegou à casa de Sharon, encontrou a porta apenas encostada. Sacou sua arma e, com receio, empurrou, olhando lá dentro. Sharon estava deitada no assoalho. Tinha vomitado e rolado em seu próprio vômito. — Maldição, Sharon! O que você fez? — murmurou ele, guardando a arma e se aproximando. Ela não estava ferida. Apenas bebera demais, concluiu ele, imaginando o que poderia fazer naquele momento. Não podia chamar uma ambulância ou coisa assim. Iria ser ruim para ela se aquilo fosse divulgado. Trancou a porta e andou pela casa, examinando os aposentos. Descobriu o banheiro. Encontrou ingredientes para o café na cozinha. Deixou a água no fogo e foi até a sala. Sharon estava mal. E cheirava mal também. Apanhou uma toalha no banheiro, embrulhou-a e carregou-a até lá. Hesitou. Não sabia como ela reagiria, mas acabou despindoa. Quando lhe retirou a calça do uniforme, viu o ferimento na perna. A ferida estava cicatrizada, mas formava um buraco de uma tonalidade avermelhada, onde havia uma protuberância, com certeza aquele parafuso de que ela falara. Não era uma visão agradável, mas não era a pior das deformidades. Possivelmente o trauma estava na cabeça de Sharon. Olhando-a, ele se sentiu tentado a fazer amor com ela. Com exceção daquele ferimento, que nada tinha de 31 repugnante, a garota tinha um belo corpo, com seios empinados e rijos, ventre liso e nádegas bem desenhadas. Puxou-a para debaixo do chuveiro e ligou-o. Ela resmungou, tentou se debater, mas acalmou-se logo. A água morna caindo sobre ela era como um calmante. Ele a deixou ali e vasculhou o armário dela. Encontrou sal de frutas e leite de magnésia. Lembrou-se, então, de algo que um dia lhe deram para cortar um porre. Foi até a cozinha, preparou o café, derramou sal dentro, pôs um sal de frutas e um pouco de leite de magnésia. Levou até o banheiro e empurrou tudo aquilo goela abaixo da garota. Ela engoliu sem sentir, forçada. Instantes depois, abriu os olhos como que despertando, sentindo engulhos. Começou a vomitar novamente. Rusty ajudou-a, segurando-lhe os ombros para baixo sob a ducha. Ela se debateu bastante depois se tranquilizou ofegante, começando a tomar consciência do que estava acontecendo. Percebeu que estava nua, mas não tinha forças para fazer nada. Ficou ali mesmo, enquanto ele passava xampu em seus cabelos, lavando-os. Já estava melhor quando ele a ensaboou com uma esponja, lavando-a inteirinha. Ele a ajudou, finalmente, a se levantar e a enxugou. Vestiu-lhe um roupão que estava pendurado na porta do banheiro, depois a ajudou a chegar até a cozinha. Ofereceulhe café quente. Ela bebeu devagar, voltando à realidade. Estava envergonhada por vê-lo ali, diante dela, molhado e com ar cansado. — Eu sinto muito... — começou ela a dizer. 32 — Esqueça... Tudo bem, parceira! Não precisa se desculpar. Sei que faria o mesmo por mim... — Como você veio parar aqui? — Eu telefonei para saber se tinha chegado bem... Você estava agitada... Falando de alguma coisa que tinha voltado. Não sei o que era. Eu também estava um pouco atordoado. Ela se imobilizou por instantes. Seu corpo ficou rígido e seus olhos se arregalaram quando ela se lembrou. — Gordon Flowers! — murmurou ela, num fio de voz. — Quem? — Gordon Flowers, o bastardo que fez isso em minha perna. Ele ligou para mim. Estava preso. Será que o soltaram? Estava aguardando julgamento. Disse que vai terminar o que começou... Eu sou a única testemunha... Ninguém mais viu a arma... A prostituta que estava com ele sumiu... Se ele me matar... — Espere um pouco, Sharon! Do que está falando, afinal? — Ele quer matá-la? — indagou ele. — Quem quer matá-la e por quê? — Gordon Flowers! Se eu morrer, ele está livre. — Espere um pouco! — disse Rusty, indo pegar o telefone. Teve de limpá-lo para poder usá-lo. Discou um número. — Boutty, sou eu, Rusty. Como vai? Certo, eu apareço sim... Claro... Tudo bem com Maggie? Ótimo... Sim... Vou 33 sim... Agora me responda uma coisa: conhece uma figura chamada Gordon Flowers? Ouviu atentamente enquanto seu amigo lhe dava as informações a respeito do criminoso. Quando terminou, foi ter com Sharon. Havia preocupação no rosto dele. — O que foi? — indagou assustada. — Gordon Flowers foi solto sob fiança esta tarde. Está nas ruas de novo, aguardando o julgamento. Se ele telefonou ameaçando, temos que dar um jeito nisso. — O que podemos fazer? — Não sei... Talvez achá-lo... Falar com ele. Assustálo. — Não, não podemos. Só o ajudaria no julgamento. É um sujeito esperto. Tudo bem, eu aguento. Posso e sei me defender. Ele não vai me tratar como a uma de suas prostitutas. — Tem certeza de que ficará bem? — Sim, tenho. Pedirei que grampeiem meu telefone. Se ele ligar de novo, nós o pegaremos. É a melhor maneira. — Vejo que está bem de novo, raciocinando melhor. Eu vou para casa... — Não quer tomar um banho? Tenho algumas roupas do meu ex-marido por aí. Vão servir em você. Pelo menos voltará seco para casa. Ele se olhou. Não estava apenas molhado. Estava cheirando a vômito. — Acho que tem razão. 34 — Vá indo. Vou arrumar uma toalha e as roupas — disse ela. Rusty virou-se e ia deixando a cozinha. — Rusty! — chamou ela. Ele se voltou para olhá-la. — O que achou... Do ferimento em minha perna? Ele pensou por instantes, antes de responder. — Eu estava ocupado olhando tantas outras coisas interessantes que nem reparei nele — falou ele, com malícia no rosto. Por momentos ficaram se olhando. — Vou tomar meu banho — falou ele, enquanto ela esboçava um sorriso novo e feliz. Quando foi ter com ele, levando a toalha e as roupas, Rusty havia tirado a camisa. No ombro e parte do braço, profundas cicatrizes, indicando todo o minucioso trabalho de reconstrução que fora feito em seu braço. Os olhos dela ficaram fixos ali. Rusty tentou se virar para esconder o braço, mas ela avançou, pondo a mão no ombro dele. Carinhosamente seus dedos deslizaram sobre as cicatrizes, onde havia uma sensibilidade adicional. Sem dizer nada, ela foi se encostando nele, até que ele percebesse que ela queria ser abraçada. *** No dia seguinte, Rusty estava envolvido com o computador e as pastas de crimes insolúveis, enquanto Sharon se reunia com o capitão e outros policiais. Haviam passado parte da manhã naquela reunião. Rusty estava 35 apreensivo. Quando ela terminou, Sharon saiu furiosa e foi se sentar a sua mesa. Escondeu o rosto entre as mãos e chorou convulsivamente, chamando a atenção de todos. — Venha, vamos tomar um café? — convidou ele, tomando-a pelos ombros e fazendo-a acompanhá-lo. — O que houve lá dentro? — quis saber. — Eu contei o que houve ontem. Não acreditam em mim... — Eu sinto muito, mas não pude ajudá-la... Só contei o que sabia... — Tudo bem... São uns idiotas! Estão me condenando à morte, sabia? Nem a escuta em meu telefone concordaram em pôr. Não dispõem nem de homens nem de aparelhos. Diabos! Vou ter que me virar sozinha... — De forma alguma. Vamos estudar juntos uma forma de mantê-la protegida — disse ele. Haviam chegado à máquina de café. Ele apanhou dois copos. Sentaram-se num dos bancos do corredor. — Você me fez sentir segura ontem, sabia? — comentou ela. — Você corria perigo maior comigo, sua tola. Ela riu, mas, no momento seguinte, empalideceu. Alto e magro vestindo um casaco vermelho espalhafatoso e um chapéu de abas retas da mesma cor, com diversos colares de ouro no pescoço e anéis no dedo, um tipo esquisito acabava de entrar. Ao ver Sharon, ele diminuiu o passo. Meia dúzia de capangas o acompanhava. Só podiam ser capangas. Nada tinham de honesto na expressão e nas atitudes. 36 — Ora, ora, se não é minha amiga uniformizada — brincou ele com zombaria na voz. — Não sou sua amiga — protestou Sharon, erguendose furiosa e levando a mão à cintura. Sua arma ficara na gaveta. Não a usava no trabalho burocrático. Gordon se aproximou dela até ficar bem perto. — Quero lhe agradecer a oportunidade que estou tendo de me reabilitar... Está certo que está me custando um bom dinheiro, mas eu não me incomodo. Receberei tudo com juros — afirmou ele. Sharon perdeu o controle e, inesperadamente, cuspiu no rosto dele. — Puta uniformizada! — murmurou ele, limpando o rosto. Sharon avermelhou-se e Rusty a viu como uma pantera prestes a dar o bote. Antes que ela se complicasse, ele se interpôs entre os dois, agarrando-a e afastando-a. De passagem, deixou que seu cotovelo atingisse a boca do cafetão, que urrou e caiu de joelhos. — Violência policial! É assim que a polícia sabe agir. Não aceitam um pedido de desculpas — berrava ele no corredor, chamando a atenção. Seus homens o ajudaram a se levantar. — Vai pagar por isso, tira! — disse ele, em voz baixa, olhando Rusty com ódio. 37 — O que há, cara? Você não é nada. Só é bom com mulheres, não é? Por que não me enfrenta? — disse Rusty, encarando-o. Sharon adorou a força como ele a defendia, mas viu o capitão surgir no fundo do corredor. Foi sua vez de abraçar Rusty e tentar afastá-lo dali. — Que diabo está acontecendo aqui? — berrou o capitão com todas as forças de seus pulmões. Ao vê-lo, Gordon cuspiu sangue na mão, depois lambuzou o rosto todo. — Saí sob fiança e mandaram me apresentar aqui. Vim em paz, como cidadão respeitador da lei e olhe o que me aconteceu! — reclamou ele, mostrando o rosto sujo de sangue. — Mayfield, espere no meu gabinete — ordenou ele a Sharon. — Capitão, fui eu que... — ia dizendo Rusty. — E você também, Brown! — E eu, como fico? — indagava Gordon, mostrando o rosto para todos, inclusive para o fotógrafo que havia registrado a cena. — Eu disse agora mesmo! — berrou o capitão para os dois policiais. Depois se voltou para Gordon Flowers. — Eu sinto muito, senhor, mas acredite, isso... — foi dizendo, enquanto caminhava pelo corredor com ele. — Vamos embora antes que eu vomite de novo — falou Sharon enojada. 38 *** Após o expediente, os dois estavam no Bar do Ned. Não se sentiam com vontade de falar. Apenas tomavam a cerveja, olhando-se e lembrando-se do sermão que o capitão aplicara nos dois. Não podiam acreditar que aquilo estava acontecendo. Uma policial era ameaçada por um marginal e nada acontecia. Ele recebia um esbarrão e todo um arsenal de direitos humanos era posto em sua defesa. Rusty aproveitou aquele silêncio para pensar em outra coisa. Estava catalogando todos aqueles casos no computador. Uma ficha resumida havia sido criada e implantada em todos os Distritos. Ele podia cruzar suas informações com a dos outros distritos ou ter acesso a todos os crimes insolúveis da cidade. Naquela tarde, havia falado ao telefone com um amigo do Primeiro Distrito. Lembrando-se de como Ned, um policial antigo, descartara a existência do Carrasco, ele jogara verde ao falar com o amigo. — Bill, estou achando interessante algo aqui. Há diversos crimes, cujas pastas apresentam um grande C em vermelho na capa. Você encontrou algo assim por aí? — Interessante você comentar isso. Encontrei alguns casos assim. — Sabe o que significa? — Dizem que colocam esse C quando o criminoso foge para o Canadá. — Quem lhe disse isso? 39 — Todos aqui. Achei estranho que soubessem que o criminoso tinha fugido para o Canadá. Eles nem sabiam quem eram os criminosos! Aquela conversa aguçou sua curiosidade. Ligou para os outros distritos e descobriu que em todos eles havia pastas anotadas com o mesmo C em vermelho. Conseguiu uma lista desses crimes, falando com cada um dos distritos, só que não pôde acessá-la no computador, porque o sistema estava em fase de implantação e nem todos estavam catalogados ainda. Mais alguns dias e poderia investigar melhor aquele assunto que havia despertado sua curiosidade desde o primeiro momento. Alguém esquecerá um jornal na mesa ao lado. Tomando a cerveja, Rusty olhou a manchete. Interessado, inclinou-se e apanhou o jornal, começando a ler. Falava da explosão da noite anterior e do incêndio que destruíra um armazém à beira do rio. Mais de uma dezena de cadáveres havia sido encontrada, todos incinerados ou destruídos pela explosão. Pelas jaquetas que vestiam, pertenciam todos a uma gangue do Harlem, os Hard Boys. — Sharon... Veja isto! — disse ele surpreso. — Não tenho cabeça para ler jornal, Rusty. Desculpeme! — Ouça isto! Aquela explosão de ontem, lembra-se? — Sim, lembro-me vagamente dela. — Explodiram todo um armazém com uma gangue dentro. — E daí? Alguém fez um favor para a cidade. 40 — Sabe que gangue era essa? — Oh, Rusty! Estou aqui, tentando não pensar em mais nada para ver se esqueço da bronca do capitão e você... — Hard Boys! — cortou-a ele. — Certo! Hard Boys! E daí? — Lembra-se do velho, aquele que a filha fora espancada pela gangue? — Sim... Acha que o velho fez isso? Impossível! — O velho, não. Foi o Carrasco. — O Carrasco, Rusty? Para matar tanta gente, será que não foram a Branca de Neve e os Sete Anões? — Esqueça! — disse ele, levantando-se e indo até o quadro de avisos. O recado que o velho deixara não estava mais lá ao lado do recado original. — O que procura, Rusty? — indagou-lhe Ned. — Um velho deixou um recado aqui... — Esqueça, Rusty! Esqueça! — repetiu Ned, virando as costas e se afastando. 41 CAPÍTULO 4 Após um mês naquele trabalho, Rusty já estava começando a gostar da rotina. Ficava todo o tempo no computador, onde o sistema de catalogação de crimes insolúveis havia sido implantado. Ele podia ter acesso agora a todos os resumos dos crimes acontecidos na cidade. Ao longo daquele mês, havia conseguido também montar um arquivo pessoal de todos os crimes insolúveis em cujas pastas constava uma letra C, não apenas na área do Sexto Distrito, mas de toda a cidade. Aquele assunto o intrigava. Sempre que tocava neles, os policiais mais velhos fugiam do assunto e se negavam a dar maiores informações. Sharon continuava trabalhando próxima dele. Saíam frequentemente no final do expediente. Haviam ido para a cama algumas vezes. Ela parecia bem melhor agora e já não se sentia tão mal por causa do ferimento na perna. Gordon Flowers não foi visto mais no Sexto distrito, mas, algumas vezes, Sharon comentava que o havia visto de relance na rua, num carro, num posto de gasolina ou observando-a de algum modo. Às vezes o telefone tocava, mas ninguém falava. Sharon apenas ouvia a respiração de alguém do outro lado da linha e, nesses momentos, tinha certeza de que era Gordon atormentando-a. O trabalho burocrático não oferecia muitas emoções. Apenas o trabalho no computador compensava para Rusty, que começou a fazer suposições com aqueles crimes todos, 42 buscando um padrão comum, uma pista, algo que pudesse dar algum sentido em tudo aquilo. Numa tarde, o barulho chamou sua atenção. Alguém gritava e esbravejava como um possesso. — Diabos, o que será isso? — indagou ele, olhando para Sharon igualmente curiosa. Saíram para o corredor, no momento em que três policiais tentavam arrastar um negro forte, que se debatia como um louco. Ao ver Rusty, no entanto, ele parou com os olhos arregalados, exageradamente arregalados, fixos no policial. — Ora, ora! Veja só quem está aí! Pensei que estivesse aposentado, Rusty! — ironizou ele. Rusty estava pálido e tremia com a mão a meio caminho de sua arma, olhando o rosto daquele negro a sua frente e lembrando-se da cena, quando ele apontara um AR15 e disparara. Os policiais que o arrastavam se aproveitaram de sua calma, empurrando-o. Ele passou por Rusty e virou a cabeça, sempre rindo, enquanto era levado pelo corredor. Sharon percebeu que Rusty não estava bem. Tocou-lhe o braço, cuja mão repousava na coronha de sua arma, apertando firmemente. Ele tremia. — Rusty, o que houve? — indagou ela. Goose gargalhou no corredor e aquela gargalhada teve o mesmo impacto do tiro no corpo do policial, que se encolheu e abraçou Sharon. 43 — Ei, calma! Está tudo bem! Vamos tomar um café! — falou ela, empurrando-o na direção da máquina. — Quem é esse sujeito? — perguntou. — Esse bastardo é o Goose, o maldito que me disparou o tiro no ombro. Sharon já suspeitava daquilo, mas jamais vira Rusty com aquela expressão no rosto. Era ódio puro, desprezo e desejo de vingança. Estendeu-lhe uma xícara de café. As mãos dele ainda tremiam. Ele tomou um gole, cabisbaixo. — Eu jurei que quando o visse eu o mataria... Não importava em que situação fosse... Mas não consegui... O maldito quase acabou com a minha vida, com certeza destruiu minha carreira, mas não consegui sacar minha arma e dar um tiro naquela boca sorridente e atrevida... — Fique frio, parceiro! Eu sei como você se sente. Senti a mesma coisa naquele dia, quando Gordon apareceu por aqui. A questão toda é conviver com isso... Não podemos sair por aí tomando a lei em nossas próprias mãos... Por mais que tenhamos vontade de fazer isso... — Mas há alguém que faz isso... Há alguém que pode! Ela o olhou intrigada sem entender o que ele falava. — Do que está falando? — Falo do Carrasco. — Tolice, Rusty. Esqueça! É só uma lenda. — Lenda ou não, a neta daquele velho foi vingada. Os Hard Boys foram pulverizados naquele armazém. Terá sido apenas coincidência? Sabe com quem está a pasta da 44 investigação daquele acontecimento? Com o Bill, à beira da aposentadoria, tira da antiga, não é? — Sim, pelo que sei, é. E o que tem isso? — Passe pela mesa dele, quando ele não estiver lá. A pasta fica em um escaninho. Olhe na capa. Desenharam um enorme C em letra vermelha nele. — Ora, Rusty, você está ficando impressionado demais com isso, não? — Não vou lhe responder nada. Apenas passe por lá e dê uma olhada. Além disso, estou fazendo um paralelo entre todos os crimes cujas pastas foram marcadas dessa forma, com um C em vermelho. Sabe o que há de comum entre todos os crimes? — Conseguiu estabelecer isso? — surpreendeu-se ela. — Sim, consegui. Todas as vítimas eram, de alguma forma, acusadas de prejudicar alguém. De alguma forma, elas mereceram a punição. Só que sempre havia tantas pessoas que desejavam a morte delas que não há como se chegar a um suspeito único. Lembra-se do que está escrito naquela nota, no quadro de avisos? — Ele não prende... Não acusa... Não julga... — Ele apenas executa a sentença — completou ele. — E quem determina a sentença? — Sei lá, mas uma sentença é executada. Aconteceu no caso da gangue. Ela ficou pensativa por instantes. Rusty parecia obcecado por aquela lenda, mas, por outro lado, poderia não ser apenas uma lenda. Pensou em Gordon Flowers, nos 45 telefonemas, na maneira como ele a seguia e intimidava. Se aquilo continuasse, ela acabaria perdendo o controle e dando um tiro nele. Como Rusty poderia ter feito naquele momento em que se viu cara a cara com Goose. — Por que não fazemos uma coisa — sugeriu ela. — Vamos procurar esse tal Carrasco. Ele pode ser a nossa solução. — Como assim? — Se continuar assim, eu acabo matando Gordon Flowers e você, fazendo o mesmo com Goose. Vamos nos estrepar! Por que não deixar essa missão com o Carrasco? Ele a olhou indeciso, tentando perceber até que ponto ela falava sério. *** A Corporação Medows havia comprado todo um quarteirão na River Avenue, próximo do estádio desportivo dos Ianques, planejando fazer ali um grande estacionamento, pensando já na próxima temporada de jogos. Nos intervalos entre as partidas, usaria o local para promover shows com bandas famosas, lutas de boxe e outros eventos. O único empecilho eram as centenas de famílias que ocupavam os prédios velhos e condenados em sua maioria. Os tubarões da Medows tiveram que subornar dois ou três políticos para que conseguissem a condenação dos prédios, agradar o prefeito para conseguir o despejo e colaborar com a polícia para que comparecesse e fizesse cumprir a lei. Naquele dia, uma verdadeira operação de 46 guerra fora montada no local. Guindastes, tratores, motoniveladoras e caminhões estavam estacionados ao redor do quarteirão. Especialistas em explosivos estavam preparados para implodir alguns prédios mais altos. Uma multidão, no entanto, ocupava os prédios, recusando-se a sair. Durante a noite, burlando a vigilância, haviam conseguido retornar em desespero aos antigos lares. — O que vamos fazer, senhor? — indagou o engenheiro responsável pela demolição a Charles Medows, presidente da corporação, que se encontrava no interior de sua limusine, visivelmente contrariado. — Por mim explodiria todo esse lixo com a maior rapidez e não me incomodaria. Só que temos de preservar a imagem da Corporação. Quero tentar resolver isso — falou o magnata, apanhando o telefone. Ligou para o prefeito, com quem conversou amigavelmente. Desligou pouco depois e esperou. Minutos mais tarde, as primeiras sirenes começaram a ser ouvidas. Toda a estrutura policial da cidade havia sido deslocada para lá com incrível rapidez. — Vamos tirar esse pessoal daí! — ordenou o próprio comissário de polícia da cidade, assumindo pessoalmente o encargo. De todos os Distritos, policiais foram deslocados para lá. No Sexto ficaram apenas os policiais incapacitados para o trabalho de rua e alguns poucos carcereiros. — Que diabo pode estar acontecendo lá — perguntavase Rusty. 47 — Está parecendo um motim ou uma rebelião. O rádio ficou maluco, com tantas ordens. Dizem que o próprio comissário está à frente da operação. — Espero que ele consiga salvar a cidade desse cataclismo, seja o que for — comentou ele, retornando ao seu trabalho. Quando o próprio comissário se envolvia em alguma coisa, era só para agradar o prefeito que, por seu turno, estaria agradando a algum poderoso que financiava sua campanha. Continuou realizando as associações que vinha fazendo entre os crimes insolúveis, buscando novos ângulos. Ouviu barulho no corredor, mas não se importou. Momentos mais tarde, um tiroteio intenso foi ouvido, vindo do setor da carceragem. Ele e Sharon apanharam suas armas e foram para o corredor. Recuaram imediatamente, quando uma chuva de balas picotou a porta da sala. — Bandidos! Estão resgatando algum prisioneiro! É o diabo! — berrou ele, empurrando Sharon para os fundos da sala. Tombaram algumas escrivaninhas no caminho para protegê-los. Estavam armados apenas com seus revólveres regulares, calibre trinta e oito, que, mesmo sendo poderosos, não eram páreo para as escopetas, Uzi e AR-15 que os bandidos usavam. Dois disparos de escopeta foram suficientes para pulverizar a fechadura da porta. Um pontapé a abriu, deixando-a escancarada. Rusty e Sharon se encolheram atrás 48 da escrivaninha, agoniados. Não tinham defesa contra aquelas armas. Um homem emoldurou-se no batente da porta escancarada e disparou uma rajada com um AR-15. As balas foram perfurando as escrivaninhas tombadas, passaram raspando pelos dois policiais, deitados no piso, sumindo parede afora com uma violência incrível. Rusty tremeu. Conhecia aquele tipo de arma. Conhecia o efeito que um simples projétil podia fazer num ser humano. — Ei, Rusty! Você está aí, aleijado? Eu estou indo embora. Pena que não possamos conversar um pouco. Eu apareço qualquer hora dessas — gritou Goose, gargalhando daquela forma zombeteira que fazia Rusty tremer de ódio. — Olhe uma lembrancinha para você — acrescentou. No momento seguinte, a sala se transformou num inferno. Os bandidos dispararam suas armas contra os móveis, as lâmpadas, as janelas, o computador, contra tudo, destruindo selvagemente o local. Rusty ficou imóvel, com o braço sobre o corpo de Sharon, torcendo para que nenhum deles fosse atingido. Então, de repente, aquele silêncio pesado, enquanto passos e risos soavam pelo corredor. A porta da frente bateu. Rusty se sentiu em outro mundo, levantando a cabeça e olhando o que sobrara da sala. Sharon sentou-se, apoiando o corpo na parede. Ofegava e tremia. — Ainda bem que salvei o arquivo geral a tempo, incorporando-o aos arquivos dos outros Distritos. Senão perderia todo o meu trabalho — falou ele, pateticamente, indo até o computador destroçado pelos tiros. 49 Sharon começou a rir nervosamente. — O que foi? — quis saber ele. — Quase fomos mortos neste inferno e você se preocupa com o arquivo geral do seu computador? — Só que estamos vivos, não estamos? — retrucou ele. Um homem com uma mancha grande de sangue no peito surgiu na porta. Era um dos prisioneiros e fora ferido na invasão. — Os carcereiros... Estão todos mortos... — murmurou, escorregando para o piso em seguida. Um policial com o braço cheio de sangue surgiu, vindo da sala de comunicações. Estavam todos atônitos. Rusty ajudou Sharon a se levantar. Foram até o corredor. Outros vinham dos fundos do prédio, arrastando-se, todos feridos, gemendo, alguns gritando. — Chamem uma ambulância! — gritou alguém. — Alguém avise o capitão — falou Rusty. — Eu tentei... Ninguém responde no carro dele — falou o policial que saíra da sala de comunicações. — Chamem a polícia, então! — berrou Sharon, apoiando as costas na parede e deslizando até sentar-se. Ficou imóvel, olhando os homens sujos de sangue que desfilavam diante dela. Enquanto isso, numa operação impecável, os policiais haviam conseguido remover todas as pessoas que ocupavam os prédios que seriam demolidos. Os engenheiros e técnicos em explosivos percorreram as instalações, instalando os dispositivos que acionariam as implosões. Na semana anterior, haviam trabalho 50 incansavelmente para perfumar as fundações dos prédios e instalar a dinamite. Um início de tumulto foi prontamente dominado pela polícia, que agiu energicamente e manteve o povo afastado do local. Quando tudo estava pronto para as implosões, Charles Medows desceu de seu carro e foi até o caminhão de controle. — Está tudo limpo, senhor. Pode acionar o botão quando quiser — disse o engenheiro-chefe. Em todos os prédios que seriam implodidos haviam sido instalados microfones sensíveis para detectar, até o último instante, a presença de pessoas na área. Ligados a um potente amplificador, qualquer som seria reproduzido num alto-falante instalado no painel de controle das explosões. — Desligar microfones! — ordenou o engenheiro, quando Medows se preparou para apertar o botão. Antes que isso acontecesse, ouviu-se nitidamente um som no alto-falante. — Esperem! — gritou o engenheiro. Todos ficaram atentos ao alto-falante. Eram passos e vozes que comentavam alguma coisa sobre terem conseguido enganar a polícia. — Onde podem estar? — indagou Charles Medows. — Podem estar em qualquer parte. O poderoso homem olhou ao redor. Ali estavam ele, o engenheiro-chefe e mais dois engenheiros auxiliares. — Ninguém ouviu coisa alguma, entenderam? Agora desliguem os malditos microfones! — berrou. 51 A ordem foi cumprida. Ele apertou o botão principal. Como o som de um terremoto, as explosões foram acontecendo em cadeia. De repente, a multidão lá fora, horrorizada, apontava para um dos prédios. Assustadas e querendo sinalizar suas presenças, pessoas surgiram nas janelas de um dos prédios, acenando trapos. No momento seguinte, as explosões lançaram corpos pelas janelas e tudo desmoronou. — Rápido, quero filmes e tapes que possam ter sido feitos desta cena! — ordenou Charles ao engenheiro-chefe. — Avise os homens da segurança imediatamente. Era um atrapalho, mas uma conversa com as pessoas certas faria daquele fato apenas um boato, algo que jamais poderiam ser comprovado. *** Naquela noite, Sharon e Rusty estavam mais sedentos do que de costume. Tomaram alguns uísques, depois continuaram com cerveja. Fumavam nervosamente numa das mesas ao fundo, querendo esquecer o inferno que haviam vivido naquela tarde. Ned, o dono do bar, atrás do balcão, observava-os com preocupação. Conhecia os dois, principalmente Rusty. Sentia, como todos os demais, a fatalidade que quase o mutilara e tirara-o do trabalho na rua. Sabia que ele não aguentaria muito tempo isso, principalmente acontecendo coisas como a invasão daquela tarde, quando cruzou novamente com Goose. Só que nada havia que pudesse ser feito. Dependeria de Rusty sair de tudo aquilo inteiro. 52 — Como vai ser amanhã, Rusty? — indagou Sharon. — Estava pensando nisso agora mesmo. Quando penso que terei de voltar para lá, tremo de medo... Isso está me matando, Sharon. Ouço a gargalhada dele soando dentro de minha cabeça, junto com o barulho daquela maldita arma... — interrompeu-se ele, observando Bill, um policial que trabalhava no mesmo Distrito, sentando-se à mesa ao lado. Bill tinha uma garrafa de uísque na mão e um copo. Foi servindo uma dose atrás da outra e bebendo-as. — Ei, Bill! — chamou-o Rusty. — O que está havendo? Bill ainda tomou mais uns dois goles, antes de respirar e encarar Rusty. — Tudo isso fede, Rusty. Fede! — exclamou ele furioso. — O quê? Nunca vi você beber assim... — Foi algo que vi hoje à tarde... Jamais esquecerei... — Esteve naquela ocorrência lá perto do estádio? — Sim... Vi pessoas serem jogadas para fora das janelas, quando as explosões começaram. Todos viram, Rusty. Todos viram, mas a empresa nega... Se há cadáveres, ficaram sepultados sob os escombros... Só que ninguém admite. O comissário de polícia foi o primeiro a desmentir tudo... — Vai com calma com esse uísque! — recomendou Sharon. Bill pensou por instantes, depois apanhou a garrafa e foi até o balcão conversar com Ned. 53 54 CAPÍTULO 5 Os dois policiais, quando foram apanhar seus carros, comentavam como Bill ficara abalado com o que acontecera naquela tarde, no local das implosões. Era um policial dos antigos e trabalhava nas ruas, embora já contasse com tempo suficiente para pedir uma função mais segura. — Só que, nestas alturas, Rusty, as ruas são o lugar mais seguro — riu Sharon, referindo-se ao ataque efetuado pelos traficantes para libertar Goose. — Nem me fale. Isso vai dar muita confusão ainda, quando sair nos jornais. — Quer apostar como não sai? Política, meu caro Rusty. Política! O noticiário das implosões vai ser a manchete em todos os jornais da cidade por alguns dias. A invasão do Sexto Distrito nem será citada para não obscurecer o grande acontecimento. — Já não tenho mais dúvida quanto a isso — falou ele. Haviam chegado onde estava o carro de Sharon. Ela se apoiou na porta. Rusty encostou-se nela, olhando-a nos olhos, subindo as mãos pelos braços dela, até segurar-lhe o rosto. — Quer companhia esta noite? — indagou ele. — Dê-me um bom motivo para isso — respondeu ela, cheia de provocação. 55 Em resposta ele a beijou nos cantos dos lábios, depois nos olhos, enquanto suas mãos desciam até a cintura dela, resvalando pelos seus seios. Apertou-a contra si, beijando-a. — O que acha disto? — perguntou ele em seguida. ― Poderia ser melhor, mas... Está bem! Você me segue — riu ela, empurrando-o e entrando no carro. — Vá devagar! — ordenou ele. Seguiram despreocupadamente. No caminho, enquanto Sharon ia em frente, Rusty parou numa casa de bebidas. Pretendia comprar vinho e vodca. Ele e Sharon, ultimamente, apenas conseguiam se animar com um pouco de bebida. Ele percebia isso, sabia que era um péssimo sintoma, mas não queria deixar aquilo. Seu braço e sua carreira estavam mesmo prejudicados. Achava que aproveitando um pouco mais da vida daquela forma podia compensar-se. Por enquanto tinha Sharon e, obviamente, um era a muleta do outro. Comprou a bebida, voltou ao carro e tomou a direção da casa dela. Quando chegou, viu o carro estacionado, a porta da frente aberta, mas não havia nenhuma luz acesa. Estranhou. A primeira coisa que Sharon fazia, segundo contara a ele, era trancar a porta e acender a luz, a menos que estivesse bêbada demais para isso, o que não era o caso naquela noite. Ficou no carro, pensando no que fazer, olhando a porta aberta e não percebendo nenhum movimento lá dentro. Resolveu entrar. Sacou a arma e a levou debaixo do saco de papel, onde carregava as garrafas. 56 — Sharon! — chamou, quando chegava à porta. — Acenda logo essa luz... Posso tropeçar com as garrafas — disse, avançando. Não gostava daquele silêncio e daquela escuridão. Olhou ao redor. As luzes estavam apagadas nas casas vizinhas. Havia carros estacionados na rua. Tudo parecia tranquilo como sempre fora naquele bairro residencial. Entrou. Ligou a luz. Sentada no sofá, com uma navalha em seu pescoço, Sharon o olhava com os olhos arregalados. Um homem negro saiu detrás da porta. — É melhor ficar quietinho, tira! — ordenou e Rusty logo lhe reconheceu a voz. Era Gordon Flowers, o cafetão. — Eu sinto muito, Rusty! — disse Sharon, num fio de voz. A lâmina em sua garganta ferira superficialmente a pele, fazendo-a sangrar. — Onde está sua arma? — indagou Gordon, após tê-lo revistado e encontrado o coldre vazio. — Aqui está — disse ele, levantando-a lentamente, sempre olhando para Sharon. Lamentou, naquele momento, que seu braço não estivesse bom. Naquela distância poderia enfiar uma bala na testa do homem com a navalha. Antes que Gordon a seu lado percebesse o que acontecia, enfiaria o revólver em sua boca e estouraria seus miolos. Só que não podia confiar naquele braço. Podia errar o tiro. Podia acertar Sharon e causar sua morte. Entregando a arma a Gordon, no entanto, 57 sabia que, no fim das contas, era isso mesmo o que estava fazendo. — O que temos aqui? — comentou o cafetão, retirando o pacote da mão dele. Examinou a garrafa de vinho e a de vodca, pensando por instantes. Olhou alternadamente para Rusty e para Sharon. Depois abriu a de vodca. Tomou um gole. Estendeu-a a Rusty, que fez um movimento negativo de cabeça. — Acho que não entendeu bem as coisas, branquelo. Eu dou as ordens aqui. Beba! Beba bastante! — ordenou, pondo o revólver na garganta de Rusty. Sem alternativa, ele levou a garrafa aos lábios. Fechou os olhos para não ver a expressão de pavor de Sharon. Estavam dominados, ameaçados e ele nada podia fazer. O sabor forte da bebida amenizou aquele sentimento de impotência. Bebeu até quase engasgar. — Bom! Muito bom! — murmurou Gordon, tomando a garrafa de volta. Levou-a até Sharon, que tremia de ódio e de pavor. Estendeu-a para a garota. — Beba, Sharon! Vai se sentir melhor — falou-lhe Rusty, olhando ao seu redor, tentando encontrar uma forma de saírem daquela situação. A navalha continuava na garganta da policial. Fios de sangue deslizavam por sua pele. Ela apanhou a garrafa e começou a beber. Em poucos goles, ela e Rusty já haviam tomado metade da garrafa. Gordon tomou-a de volta, 58 levantando-a contra a luz. Levou-a para Rusty. Estendeu-a. Ele bebeu tanto quanto podia, deixando menos de um quarto. Estava com engulhos, sentindo o álcool fazer efeito rapidamente. Quase vomitou, mas conseguiu se segurar. — Sobrou um restinho para você, puta uniformizada — falou Gordon, levando o restante para ela. Com mãos trêmulas, Sharon levou a garrafa aos lábios, bebendo o restante. Estavam os dois, agora, embriagados. Viam tudo à distância, como num filme. Não parecia estar acontecendo com eles. A navalha em sua garganta não doía nem assustava mais. Começou a rir. — Bem, o que vou fazer com vocês dois? Principalmente com você, piranha! — comentou Gordon, segurando a garrafa na mão. Sharon olhava-o pateticamente, rindo. Ele estendeu a garrafa, esfregando o bico no pescoço dela. Depois com um puxão repentino, arrebentou os botões da camisa dela. Enfiou o bico da garrafa entre os seios dela. — Ei, cara! Não faça isso! — falou Rusty com a voz enrolada, tentando dar alguns passos na direção deles. Tropeçou nos próprios pés e caiu pesadamente no assoalho. Sharon riu mais alto ainda, divertindo-se com aquilo. Gordon olhou para o homem que segurava a garota, depois para a garrafa que tinha na mão. — Corte a roupa dela — ordenou. Aturdido, Rusty levantou a cabeça, tentando entender o que estava acontecendo. Não conseguiu. Ficou ali deitado, vendo Sharon ser derrubada no tapete. Ela ria, enquanto 59 retalhavam suas roupas. Rusty viu a garrafa, então, mas não entendeu. Ouviu-a sendo quebrada depois. Ouviu Sharon gemer. Sentiu que punham algo em sua mão e que alguém telefonava para algum lugar. Depois tudo se apagou diante dele. *** Quando acordou, Rusty ainda se sentia deslocado no tempo e no espaço. Sentia um gosto estranho na boca. A cabeça latejava estranhamente. Tentou se mover, mas percebeu que suas mãos estavam presas com correias nas laterais da cama. — Que diabos! — murmurou ele, acordando o policial que dormia na poltrona no fundo do quarto. O homem espreguiçou-se, levantou-se e se aproximou da cama. — Ei, Rusty, como está? — indagou. Rusty olhou-o demoradamente, até reconhecê-lo. — Olá, Ben? O que faz aqui? E o que está havendo? Por que prenderam minhas mãos? O policial coçou o alto da cabeça, fazendo uma careta estranha, que Rusty não entendeu. Havia recriminação nos olhos dele. Havia aquela expressão que se usava para dizer a alguém que esse alguém estava numa grande encrenca. Lembrou-se, então, de Gordon. E de Sharon. — Ben, pelo amor de Deus! O que aconteceu? E Sharon? Como está ela? — quis saber, agitando-se na cama. 60 — É melhor se acalmar, homem! — recomendou o policial, segurando-o pelos ombros. — Sharon está bem agora. — Mas o que houve com ela? — Não se lembra? — Eu apaguei, cara... — Posso imaginar. Os dois estavam bem altos. Beberam a garrafa toda... — Fale, Ben! E Sharon? — Conseguiram costurá-la por dentro... — Por dentro? Como assim? — Eu não sei que loucuras vocês aprontaram, Rusty, mas quebrar uma garrafa dentro da vagina de uma mulher não é coisa muito agradável, não? O que houve? Um acidente? Rusty ficou aterrorizado, lembrando-se da garrafa vazia na mão de Gordon, de Sharon sendo despida, de seus gemidos, do barulho de vidro se partindo. Entendeu, então, de que forma o maldito se vingara dela e dele ao mesmo tempo. — E o cara... Pegaram o cara? — indagou, em desespero. — Que cara, Rusty? Pegamos você, bêbado como um gambá. Com uma navalha na mão. Havia mais alguém lá? — Sim, havia... — respondeu ele, percebendo a armadilha que Gordon Flowers havia preparado para eles. — Maldito! — berrou, debatendo-se na cama. 61 O policial apertou um botão. Momentos depois, uma enfermeira e um médico entravam no quarto. — Eu vou pegá-lo! Vou matar aquele filho da mãe! — gritava Rusty, tentando se soltar. O médico deu uma ordem rápida para a enfermeira. Ele e o policial imobilizaram Rusty. A enfermeira aplicou-lhe uma injeção no braço. Rusty quis continuar gritando, mas pouco a pouco sua língua foi ficando pesada. Tentou manter os olhos abertos, mas acabou mergulhando inexoravelmente numa grande escuridão. Ao acordar, viu Bill, Ned e outros policiais. Suas mãos não estavam mais presas. Levantou os pulsos diante dos olhos. Estavam esfolados e com hematomas. — O que aconteceu agora? — indagou, sentindo a boca pastosa. — Por que não estou preso mais? — Nós cuidamos disso, parceiro — falou Bill. — Como se sente? — Como se tivessem passado com um caminhão em cima de mim. Alguém aí pode me explicar tudo isso? — No princípio julgamos que tudo tivesse sido um acidente numa farra dos dois. Depois estranhamos que tivessem ligado para a emergência. Ouvi a gravação. Não era sua voz, mas a ligação foi feita da casa de Sharon. Podem-se ouvir os gemidos dela ao fundo. Ela recuperou a consciência ainda há pouco. Falou de Gordon Flowers, o que bate com o que você delirava, enquanto estava sendo trazido para cá. 62 — Vocês o pegaram? Diga que pegaram aquele bastardo! — falou Rusty, trêmulo de ódio. Bill abaixou a cabeça, incapaz de encará-lo. Os outros policiais no quarto reagiram da mesma forma. — Diabos, o que está acontecendo aqui? Aquele homem é um louco, quase matou Sharon e a mim. Por que não o pegaram ainda? — Rusty, ele tem um álibi. Há uma dezena de pessoas que juram que ele estava num bar, bebendo, quando aconteceu tudo. — E a voz no telefonema? — Não era dele, pode ter certeza disso. — Era do seu cúmplice. Diabos! Eu vou ter que pegar aquele cara, Bill. Eu vou ter que pegá-lo! — Esqueça, Rusty. O capitão já esta sabendo da história e ordenou que você e Sharon não se aproximem de Gordon. Pense bem! Matá-lo só vai complicar sua vida. — Não pode deixar como está, Bill. Ele tem que pagar, não pode ficar assim. — No momento certo, Rusty, ele pagará — disse Bill, olhando para Ned, que se aproximou da cama. Os dois olharam fixamente para Rusty. — Nós prometemos isso, Rusty! — afirmou Ned, estranhamente. Para um policial aposentado, Ned estava assumindo um improvável compromisso. Como iria cumpri-lo? Só que havia algo na maneira como ele falara aquilo que 63 tranquilizava Rusty. Dentro dele, teve certeza que Gordon Flowers pagaria pelo que havia feito. — Confia em nós? — acrescentou Bill. — Sim, eu confio! *** Rusty pôde retornar ao trabalho dois dias depois. Sharon permaneceria mais tempo. Seus ferimentos haviam sido graves. Os pedaços de vidro da garrafa haviam perfurado alguns órgãos internos, que precisavam de cuidados especiais. Quando fora vê-la, antes de sair do hospital, ela segurara a mão dele, olhando-o nos olhos, e dissera: — Quero estar lá quando acontecer, Rusty. Prometa isso para mim! — Do que está falando? — De Gordon Flowers. Bill e Ned estiveram aqui. Sei que vão pegá-lo. Quero estar junto. Quero olhar nos olhos daquele filho da mãe e vê-lo morrer, Rusty. Prometa-me isso! Rusty estava convicto de que havia alguma coisa que Bill e Ned conheciam e não revelavam. Sua primeira suspeita foi aquele C em vermelho nas patas. O Sexto Distrito estava em obras de reconstrução, principalmente a sala de Rusty, que fora destruída pelos disparos. Um novo computador fora instalado numa sala menor, próxima da carceragem. Ali ficava isolado e podia trabalhar mais rápido, sem interrupções. 64 Concentrou-se nos crimes insolúveis onde constava o C na pasta. O capitão havia cobrado resultados. Rusty precisava encontrar alguma coisa para acalmá-lo. Algo interessante, então, aconteceu. Quando foi revisar as pastas, todas elas tinham um C desenhado em vermelho, significando que alguém estava tentando confundir seu trabalho. Isso significava que estava chegando perto de alguma coisa. Senão, por que alguém se incomodaria com isso? Havia feito, antes de ser hospitalizada, uma relação dos crimes de todos os Distritos da cidade com aquela característica. Tentou localizar no computador. Havia sido apagada. Tentou recuperar, mas foi impossível. Alguém não o queria investigando naquela direção. Ligou, então, para seus amigos nos outros Distritos, pedindo que dessem uma olhada nas pastas. Todas, agora, continham uma letra C em vermelho. Se havia alguém querendo impedir que a investigação tomasse aquele rumo, esse alguém só poderia ser um tira. Não apenas um, mas pelo menos um em cada Distrito. Por quê? Com que interesse? O que significava aquilo? Naquela tarde, no Bar do Ned, confidenciou isso ao proprietário. — Rusty, já falei para você esquecer aquilo. Há coisas que merecem ficar sepultadas para sempre. Essa é uma delas. — Só que o comissário quer ver algum resultado. O prefeito está interessado em soluções para esses crimes. 65 — Então esse é o problema... Está certo, siga em frente, mas tenho certeza que não encontrará pistas. Havia outros policiais no balcão que haviam acompanhado com interesse a conversa. Alguns aposentados já, que se reuniram no canto do balcão, com Ned, quando Rusty saiu. O policial não esperava outra resposta de Ned, mas sentia que ele sabia de algo mais e não queria lhe contar. Era cedo ainda. Naquele dia não estava com vontade de beber. Pensou em visitar Sharon, mas doía-lhe vê-la naquela cama, gemendo de dor ao menor movimento. Apanhou, então, um papel que trazia no bolso. Era uma relação de nomes que retirara aleatoriamente de uma daquelas pastas. Ali estavam todas as vítimas de um corretor da bolsa, que simplesmente fora explodido em sua casa. Muitos haviam denunciado seu crime de desvio de dinheiro. Escolheu um dos nomes. Foi a uma cabine telefônica e ligou. Pediu para falar com John Sanders. — Quem está falando? — retrucou do outro lado uma voz feminina. — Aqui é Rusty Brown, sou policial do Sexto Distrito. O nome de John Sanders aparece entre as vítimas do desfalque dado por Morgan Hart, um corretor da bolsa... — O que você está investigando? — Morgan Hart faz parte de uma relação de crimes considerados insolúveis... Estou tentando solucioná-lo ou encontrar alguma pista que esclareça as circunstâncias de sua morte... 66 — Aquele bastardo teve o que merecia! — declarou a voz e Rusty percebeu o ódio que havia nela. Um ódio grande e tão forte como havia na voz de Sharon, pedindo para que Gordon fosse morto na frente dela. — Onde está o Sr. Sanders? — insistiu ele. — Meu pai? Meu pai está morto! — respondeu ela, num fio de voz — Mas eu preciso falar com alguém. Isto está me matando... — soluçou a jovem com a voz embargada. — Tenho seu endereço aqui. Estou indo. Chego em quinze minutos no máximo — afirmou ele. Sentia que havia alguma coisa ali. A voz da garota dava-lhe essa convicção. Apanhou seu carro e rumou para o endereço anotado no papel. John Sanders estava morto. Havia sido uma vítima de Morgan Hart, que também estava morto e seu processo constava numa pasta com um grande C vermelho na capa. Era um dos casos de que se lembrava quando lançara no computador, porque apenas fragmentos da vítima foram localizados. Uma prótese dentária fora decisiva na identificação. Quem havia preparado aquela bomba sabia o que fazia e o que esperava obter com ela. Ao abrir a porta, deparou-se com uma garota de pouco mais de vinte anos, franzina, magra, de óculos grossos, cabelos presos e roupa totalmente fora de moda. Ela o convidou a entrar. A casa era modesta. Os móveis demonstravam que a vida era dura para os moradores dali. 67 — Moro com minha mãe. Ela já foi dormir. Depois da morte de meu pai, nunca mais se recuperou. Sente-se, policial! Sinto não ter nada para lhe oferecer. A morte de meu pai foi uma tragédia adicional para nós. Ele se suicidou, quando soube que todos os seus investimentos haviam sido perdidos. Perdemos o seguro também. Tínhamos uma casa. O banco a tomou. — Em resumo, Morgan Hart não tomou apenas o seu dinheiro... — Destruiu nossas vidas... — afirmou ela. Via-se que lutava bravamente para impedir que lágrimas rolassem pelo seu rosto. — Esta é uma visita oficial, policial? — Não, senhorita. É uma investigação particular. Estou tentando estabelecer as razões da morte de Morgan. Creio que já as encontrei. Preciso saber como isso foi feito. — Quer mesmo saber? Eu fui a responsável pela morte dele. Não digo isso com orgulho, mas esperava me sentir melhor sabendo que ele estava morto. Pelo contrário. Sintome pior ainda. Sinto-me mais criminosa que ele, igual ou pior até. O maldito conseguiu até isso com sua morte, policial. Rusty entendeu o drama daquela garota. Toda a sua vida fora destruída por um homem quando vivo e até depois de morto. Só que ele queria ir mais fundo. Queria mais detalhes. — Como conseguiu isso, senhorita? 68 Ela conseguiu controlar as lágrimas. Enxugou o rosto com as mãos. — Uma vez eu vi, num quadro de avisos de um bar, um curioso recado. Parecia estar lá há muito tempo. Dizia: ele não prende, não acusa, não julga. Ele apenas executa a sentença. Algo assim. Eu conhecia algumas historias sobre isso. Mas jamais pensei que fossem verdadeiras. Quando me vi no fundo do poço, sabendo que aquele bastardo estava livre e que iria gozar aquele dinheiro roubado, apelei para tudo. Recorri à polícia, ao promotor, a advogados. Todos foram unânimes em me dizer que eu nada poderia fazer, principalmente porque isso custaria muito dinheiro. Eu não tinha dinheiro para pôr na cadeia o maldito que havia matado meu pai. — Por isso recorreu ao Carrasco? — Sim. Não acreditava muito. Mas deixei meu nome e telefone. Até havia esquecido o assunto, quando ele me ligou... — Ligou? — Sim, tarde da noite. — E o que ele disse? Como agiu? — Apenas perguntou quem. — Quem? — Sim, queria apenas o nome da pessoa que deveria ser justiçada. Citei o nome de Morgan Hart. Então ele perguntou-me: qual é sentença para ele? Não hesitei. Morte! Eu disse isso convicta que Morgan Hart seria morto. — E daí? 69 — Daí ele não disse mais nada, não perguntou mais nada e simplesmente desligou. Fiquei assustada. Todas as manhãs olhava o jornal para ver se aparecia alguma coisa. Os dias foram se sucedendo. Achei que aquilo fora uma brincadeira de alguém, um trote, até que, finalmente, aquela explosão que pude ouvir daqui. No dia seguinte, estava confirmado: Morgan Hart havia sido pulverizado. Como uma pulga que se esmaga sob a unha do dedo. Pensei que aquilo fosse me deixar feliz... Não! Aquilo está me destruindo. Há alguns dias eu liguei para a polícia. Disse isso que acabei de contar a você. Sabe o que eles me disseram? — Posso imaginar. — É, acho que pode mesmo, policial. Disseram que eu estava maluca, que deveria ir dormir, que não havia como eu provar que havia cometido o crime. E é verdade! É incrível! Causei a morte daquele homem, mas ninguém pode provar isso. — Há algo que eu possa fazer por vocês duas? — Se souber como consigo um pouco de paz, eu agradeceria. Ele pensou por instantes. Depois apanhou um de seus cartões e anotou um endereço no verso. — É da Igreja da Sagrada Família, perto daqui. Procure o Padre Thompson. É um bom homem. Estou certo de que vai ajudá-la. Ela o olhou pateticamente. — Acha mesmo? 70 — Tente, pelo menos — afirmou, sem certeza alguma naquela situação. Quando foi para o carro, pensou se se sentiria daquela mesma forma quando matasse Gordon. E Goose. 71 CAPÍTULO 6 Sharon deixou o hospital. Passava o dia todo na cama. Não tinha ânimo para nada. Sempre que Rusty ia visitá-la, encontrava-a com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. Uma tarde, viu o revólver dela engatilhado sobre o criado-mudo. Recolheu-o e levou-o para o Distrito, mas ninguém podia garantir que ela tivesse uma arma de reserva. — Isso está me matando, Rusty! — disse ela, certa noite. — Eu não posso me sentir tranquila nem em minha própria casa. A qualquer momento ele pode surgir. E você levou minha arma. O que vai ser de mim? Aquilo era algo que o preocupava. Gordon Flowers não deveria estar tranquilo, sabendo que os dois, a qualquer momento, poderiam se vingar. Cedo ou tarde atacaria de novo, desta vez para não deixar testemunhas. Rusty hesitava, no entanto. Pensara em levar outra arma para Sharon, uma escopeta, por exemplo, mas o medo de que ela pusesse fim na própria vida era terrível. Percebia que ela não tomava os remédios corretamente. Notava que ela bebia. Tudo aquilo era uma combinação perigosa. — Sharon, que acha de se mudar daqui? — sugeriu ele uma noite. — Sei de um apartamento barato que está sendo alugado lá no Bronx. Tem dois quartos. Poderíamos ir morar juntos. Seria uma despesa a menos para nós dois. Além disso, você estaria mais segura. — Não tem medo que eu pule pela janela? 72 — Não tem perigo, é no primeiro andar! — riu ele, fazendo-a rir também. Sharon olhou ao seu redor. Sua casa guardava lembranças desagradáveis. Aquele ambiente a fazia lembrarse do marido e de Gordon. A sugestão de Rusty caiu de imediato em sua simpatia. — Sabe que poderia ser algo interessante? — comentou ela. — Poderemos ir vê-lo amanhã mesmo. Ligo cedo para a imobiliária, pedindo a reserva. À tarde, depois do expediente, passo aqui e vamos até lá. Trato feito? Sharon concordou e, pela primeira vez nos últimos dias, ele a via animada e, de certa forma, feliz. Não haviam tocado mais no assunto de Gordon Flowers, mas ambos sabiam que só poderia haver uma solução para ele. Nenhum dos dois sabia como aquilo aconteceria. Só sabiam que aconteceria. Alguma coisa lhes dera essa certeza. No dia seguinte, Rusty acertou com a imobiliária, depois se concentrou em seu trabalho. Mais uma vez o capitão tinha pedido algum resultado. Estava concentrado naquilo, pensando em como todos aqueles casos poderiam ter a mesma história trágica como aquela contada pela filha de John Sanders. Longe de lhe parecer fantasiosa, acreditou nela. Era como imaginou que acontecesse. Um homem ligava, recebia um nome e executava uma sentença. Tudo isso feito de um modo que não deixava pistas. Tudo em nome da justiça. 73 Só que contra a lei. E Rusty indagava-se a respeito disso. Era um policial e conhecia todo o discurso a respeito de não fazer justiça com as próprias mãos. Só que, no caso de Morgan Hart, a justiça fora feita. Não importava por quem. Da mesma forma, o que acontecera com a quadrilha dos Hard Boys mostrava a justiça sendo feita. Era ético? Era correto? Devia estimular? Ou devia combater esse tipo de coisa. Devia contar ao capitão o que ouvira da filha de John Sanders? O capitão acreditaria? O que aconteceria na cidade se aquilo fosse divulgado? Mudaria alguma coisa? — Que diabo! — murmurou ele, achando que tudo aquilo não valia mesmo a pena. No fundo, gostaria de deixar seu nome e telefone junto àqueles recados. Quando o Carrasco ligasse, diria dois nomes, Gordon Flowers e Goose. Depois riria quando soubesse que eles haviam sido mortos como insetos que eram. — Rusty, trabalho fora! — disse o sargento, pondo a cara na porta. — apresente-se na sala de instrução. — Eu? Tem certeza? — estranhou ele. — Absoluta! — confirmou. Por instantes ficou confuso. Afinal, voltar ao trabalho nas ruas era o que mais desejava. Se fosse prudente, conseguiria se sair bem em qualquer situação. Apanhou o coldre de ombro e vestiu-o. Apanhou a arma e cartuchos extras, apanhou seu paletó e foi para a sala de instrução. Instantes depois chegava o capitão. 74 — Daqui a pouco vai haver uma grande festa no lançamento do Estacionamento da Corporação Medows. Estamos destacando policiais para reforçar o trabalho de coordenação de trânsito. Enquanto ele falava, Rusty observava os outros tiras ali na sala. Eram todos os à beira da aposentadoria ou em recuperação como ele. Entendeu logo o motivo da convocação. Iriam apenas cuidar do trânsito e de manter as pessoas afastadas. — ...houve alguns comentários quando da implosão e estão com medo de uma manifestação popular, por isso o trabalho de vocês será o de manter as pessoas afastadas do local da cerimônia de lançamento da obra. O prefeito vai estar lá. Vai haver descerramento de placa, discursos e essas coisas... Rusty não resistiu e levantou a mão. — O que foi, Brown? — indagou-lhe o capitão, contrariado. — Que comentários foram esses? — indagou. — Dizem que havia gente num dos prédios que explodiu — antecipou-se Bill. — Mas nada ficou comprovado. O local foi vasculhado e nada se constatou. Nenhum filme, nenhuma fotografia... — Dizem que os homens de Medows recolheram tudo — cortou-o Bill. — Dizem que Papai Noel existe e que o coelhinho da Páscoa mora em East Side com umas coelhinhas da Playboy. Agora chega. Não estamos aqui para discutir o 75 sexo dos anjos. Vocês têm suas ordens. Irão em quatro carros. Formem as equipes e não quero vê-los aqui até tudo terminar lá! — finalizou o capitão, saindo, visivelmente irritado. — Vou com você, Bill — falou-lhe Rusty. — Certo. Você viu como ele ficou? O maldito sabe o que aconteceu lá. Todos sabem. Três famílias, quatorze pessoas, morreram lá, Rusty. Só que tudo está sendo encoberto. Medows os viu, após tê-los captado pelos microfones de segurança. Mesmo assim, deliberadamente, acionou o botão. Assassinou friamente quatorze pessoas — disse Bill, demonstrando toda a sua revolta. As equipes foram formadas e, logo em seguida, o comboio partiu. Havia muitos policiais no local. Um cordão de isolamento cercava a área. Havia populares com cartazes, manifestando-se contra as mortes na implosão. Panfletos com fotos de algumas das vítimas circulavam de mão em mão. Megafones, no entanto, estavam sendo recolhidos pela polícia. Apesar disso, dentro da área protegida, os convidados se sentiam desconfortáveis. Um bufê servia drinques e salgadinhos. Havia barracas espalhadas, abrigando-os do sol. Recepcionistas davam as informações necessárias. Um trator novinho em folha estava posicionado nas proximidades de um muro. Charles Medows o conduziria até o muro, derrubando-o. Simbolicamente, aquilo marcaria o início das obras. Um outdoor, coberto com uma enorme bandeira americana, seria descerrado, mostrando todo o 76 projeto em perspectiva. Uma banda tocava num coreto improvisado. Bandeirolas agitavam-se ao vento. Políticos, jornalistas, gente influente, todos aqueles habituais frequentadores de colunas sociais começavam a chegar. Aguardavam a presença de Charles Medows. Rusty estava orientando o tráfego na esquina. Ali só era permitida a passagem de carros com motoristas particulares, já que não havia espaço para estacionamento e para que o tráfego fluísse continuamente. Limusines passavam a todo momento. Finalmente, aquela com o emblema da Corporação Medows aproximou-se. O povo vaiou. Alguns tomates foram arremessados. Policiais a cavalo avançaram contra a multidão, contendo os manifestantes. Rusty ficou olhando aquele imponente carro passar. À medida que ele descia a rua na direção do local da cerimônia, um guindaste de demolição, de cuja ponta, presa por fortes cabos de aço, pendia uma bola de ferro de algumas toneladas, começou a girar lentamente. O policial ficou intrigado com aquilo. Um tapume cobria-lhe a visão de quem operava a máquina. Estranhou, no entanto, que a perigosa bola de ferro se movesse na direção da rua. Resolveu, por uma questão de segurança, ir até lá. A chegada de Charles Medows provocou agitação no local. Garotas com faixas e bandeiras se aproximaram da limusine, que era saudada pelos convidados. Ninguém percebia aquela bola de ferro posicionando-se sobre a rua, no ponto onde passaria o veículo. 77 — Que diabo! — ia comentando consigo mesmo, quando, sem ruído algum, a bola de ferro se desprendeu do guindaste e desceu velozmente, atingindo a parte de trás do carro onde estava o passageiro, achatando-a. A confusão foi geral. Rusty ficou atônito a princípio, depois percebeu que aquilo não fora um acidente. Sacou sua arma. Enquanto todos corriam na direção do carro, ele correu para o tapume onde estava a cabine de operação do guindaste. Quando se aproximou, viu um homem descendo. — Parado aí? — ordenou, apontando sua arma. O homem se voltou, encarando-o. — Joe? — reconheceu-o Rusty com surpresa. — Está tudo bem, Rusty. Joe já checou o local. Se havia alguém na cabine, já fugiu e se misturou à multidão — falou Bill, surgindo atrás dele. Rusty continuou apontando a arma, sem entender. Não teria havido tempo para alguém ter descido dali e fugido. Não teria havido tempo para Joe subir a escada de ferro até a cabine, examinar e descer. Alguma coisa não estava correta ali. Joe nem ofegava após o esforço de subir aquela escada. — Eles tinham tudo preparado — comentou Bill e ele e Joe se afastaram, passando por Rusty, que ficou parado, sem entender o que havia acontecido. Voltou-se e olhou na direção da limusine. A confusão era total. Pessoas se agitavam. Uma ambulância havia parado ao lado do veículo que estava sendo cortado por homens do corpo de bombeiros. 78 — Removam essa bola de ferro... — gritou alguém. — Como? — questionou outro. — Usem o guindaste! Homens do Corpo de Bombeiros que estavam de prontidão no local chegaram e subiram a escada até a cabine de controle. O cabo de aço começou a ser baixado lentamente. Rusty continuava atônito com tudo aquilo. Naquela tarde, quando se encontrou com Sharon e a apanhou com seu carro para irem ver o apartamento novo, contou-lhe o que vira. Ela ficou tão perturbada quanto ele. — Você comentou isso no local? — indagou ela. — Eu? Falar alguma coisa? Não, negativo. Negativo mesmo. Quero entender direito o que está acontecendo, Sharon. Há muitas perguntas girando em minha cabeça. Se eu falasse ali, estaria acusando de alguma forma meus amigos da polícia. Todos comentavam a hipótese de acidente como a mais plausível, mas, para mim, Charles Medows foi deliberada e friamente assassinado na frente de uma multidão de testemunhas. — Por policiais? — Não sei, Sharon. Sinceramente não sei. Ele não dissera a ela, mas havia notado que um veículo os seguia. Um veículo que estava parado nas proximidades da casa dela. Não gostou nada daquilo. Realizara algumas manobras, saindo de seu caminho, e o veículo se mantivera atrás dele. Decidiu, então, tomar uma Via Expressa. — Por que está tomando a Bruckner? — estranhou Sharon. 79 — É mais rápida — explicou ele, mas, inadvertidamente, olhou pelo retrovisor. Sharon percebeu logo que ele mentia. Virou-se e ficou olhando aquele carro prateado com vidros escuros que vinha logo atrás. Anoitecia rápido. O outro carro ligou os faróis com luz alta. Rusty não tinha mais dúvidas. — Trouxe sua arma? — indagou ela. — Sim — respondeu ele, sacando-a e entregando-a para a garota. — Que diabos eles pretendem? — indagou ela, tensa. — Como vou saber. Será Gordon Flowers de novo? — Com certeza. Eu sempre soube que ele terminaria o que havia começado — respondeu ela, abaixando o vidro e pondo metade do corpo para fora. — Sharon! — gritou-lhe Rusty, sem entender o que ela pretendia fazer. A garota disparou uma série de três tiros seguidos, que atingiram o parabrisa do carro que os perseguia, sem causarlhe danos. — Maldição! À prova de balas! — exclamou ela, sentando-se de novo. O carro de trás era muito mais potente e acelerou, começando a ultrapassar o deles. Por momentos Rusty teve a impressão que tudo fora um engano e que o veículo os ultrapassaria e iria embora. Quando os dois carros estavam lado a lado, o vidro traseiro do outro veículo começou a se abaixar. Rusty viu com espanto o cano de uma calibre 12. O 80 homem que a empunhava era Gordon Flowers e seu sorriso cínico e zombeteiro. — Abaixe-se! — gritou ele, pisando com força no freio. Como em câmara lenta, viu-se saindo da mira da escopeta e, com horror, percebeu que Sharon era o novo alvo. O disparo arrebentou o parabrisa e transformou o rosto de Sharon numa máscara irreconhecível de sangue. O carro prateado continuou acelerando, sumindo de sua vista. O seu veículo deslizava com as rodas travadas. Um caminhão o atingiu por trás, fazendo-o rodopiar e atravessar o canteiro central. Rusty viu-se entrando repentinamente na contramão. Um furgão, buzinando e piscando os faróis, foi para cima dele. Novo impacto, jogando-o desta vez na encosta da rodovia, fazendo-o capotar. Ouviu o som de freios, de buzinas, de novas batidas. Sentiu um cheiro forte de gasolina. Sharon estava imóvel e amontoada no banco como um boneco sem vida. Ele tentou se mexer, mas sua perna doía terrivelmente. — Com calma, pessoal! Não o removam assim! — A coluna... — Perna, perna presa... — Ela morreu... Tudo aquilo passava por ele. Não participava da cena. Sentia-se afastado dali, sumindo, esquecendo, apagando-se totalmente. *** 81 Aceitar que os ligamentos de seus joelhos estavam irremediavelmente perdidos não foi difícil para Rusty. Aceitar também que seu tornozelo direto perdera toda a mobilidade, dificultando-o caminhar, foi um pouco mais difícil, porque o tirava definitivamente das ruas. Até poderia conviver com o fato de ter perdido a sensibilidade naquele pé. Só não conseguia aceitar era o fato de saber que Sharon estava morta e que Gordon Flowers estava vivo e tinha um bom álibi para a hora do crime. Gritou de dor. Esbravejou. Esmurrou paredes. Bebeu todo o uísque que tinha em sua casa, quando retornou do hospital. Quebrou móveis, inconformado. E nada havia que pudesse fazer. Não conseguia dirigir um carro mais. Para ficar em pé, precisava de uma bengala. Sem a bengala, caía. Com ela, não podia disparar uma arma com precisão. Recebera com profundo desgosto seu afastamento da polícia: era um inválido agora e não tinha utilidade alguma. O seguro lhe proporcionava uma boa soma como indenização. Poderia viver com aquilo. Não tinha maiores necessidades. Sem perceber, começou lentamente um processo de autodestruição. Bebia e dormia. Comia esporadicamente. Até o dia em que Ned foi visitá-lo. — Você está horrível, Rusty. O que tem feito consigo mesmo? Sua casa fede! — observou o outro. — Dane-se, Ned! Ninguém se mete em minha vida. — O que Sharon pensaria de você? — Sharon está morta! — declarou Rusty, com lágrimas nos olhos. — Sharon morreu, Ned! — disse em seguida, 82 compreendendo, talvez pela primeira vez, aquela realidade. — Ela morreu e não há nada que possamos fazer por ela. — Não, Rusty, você se engana. Eu sei que há algo que você precisa fazer por ela. — Eu? Eu não ando em condições de fazer nada, Ned. Mal posso aguentar meu próprio corpo. — O que Sharon lhe pediu, antes de deixar o hospital, Rusty? Ele tentou pensar naquilo, mas parecia que acontecera em outra vida. — Ela queria... Queria estar presente quando Gordon morresse... — E você lhe prometeu isso, não? — Sim, mas... Só se eu recorrer ao Carrasco... Ned ficou em silêncio, olhando Rusty nos olhos. — Tenho uma proposta para lhe fazer, Rusty. Sei que tem algum dinheiro e que precisará investi-lo com cuidado para garantir seu futuro. Eu preciso aumentar meu bar. Ele se tornou pequeno para abrigar meus clientes e amigos. Que tal uma sociedade? Estou certo que renderá o suficiente para nós dois vivermos tranquilamente. — Por que está fazendo isso por mim, Ned? Por que quer me ajudar? Por que vem me lembrar agora de uma promessa que fiz a Sharon? — Uma coisa de cada vez. Você deve algo a Sharon, por isso tem que dar a volta por cima. Tem que sair deste túmulo aqui onde está morrendo aos poucos e voltar à vida. 83 O bar lhe dará mais do que dinheiro. Vai se encontrar todos os dias com amigos, vai se distrair, vai conversar... — E como vou matar Gordon Flowers? Parece-me que as duas coisas estão juntas nessa proposta sua, Ned. Foi isso que eu entendi. Será que estou certo? — questionou Rusty. — Sim, você está certo, Rusty. Mas uma coisa de cada vez. Primeiro, vamos voltar à vida. Depois discutiremos os outros passos. — Ned, o que sabe sobre o Carrasco? — quis ele saber. — No devido tempo, Rusty — descartou Ned. — Mas ele existe, não? Ele pode pegar Gordon Flowers... E Goose também, não? — Sim, ele pode... — E quem é ele, Ned? — Você mesmo pode ser o Carrasco, Rusty — afirmou Ned, enigmaticamente, após uma pausa. *** Nos dias que se seguiram, Rusty se dedicou com muito afinco aos seus exercícios de fisioterapia. Tinha em casa todo o necessário e trabalhava até a exaustão, principalmente no tornozelo imobilizado e no pé sem sensibilidade. Aos poucos foi sentindo melhoras em suas reações. Fizera uma sociedade com Ned no bar. Algumas reformas estavam sendo feitas e demorariam algum tempo. Rusty confiava que, quando da inauguração das novas instalações, poderia entrar lá sem precisar da bengala. Não o animava a perspectiva de ganhar dinheiro, de ver pessoas, 84 de conversar com amigos. Animava-o o que Ned dissera enigmaticamente sobre o Carrasco. Não queria vingar-se de Gordon Flowers. Nem de Goose. Queria fazer justiça, uma justiça que se encontrava de mãos amarradas, contemplando o cadáver mutilado de Sharon e o corpo atrofiado de Rusty. Uma justiça que ele procuraria encontrar a qualquer preço. Homens como Gordon e Goose eram uma ameaça às pessoas, eram um câncer que precisava ser extirpado. Nenhum conceito de legalidade, nenhum sentimento de culpa, nada mais o afligia. Quando pensava naqueles dois homens, Rusty pensava neles como homens mortos. Estavam tendo apenas uma sobrevida, nada mais. Em breve chegaria o momento de desligar os aparelhos que os prendiam ao mundo. Conseguiu voltar a dirigir e, no dia da reinauguração do bar, foi sozinho até lá. Desceu e, sem o auxílio da bengala, acompanhou Ned até o interior do estabelecimento. Estava às escuras, com as janelas fechadas e apenas uma luz acesa nos fundos, jogando uma claridade mínima do ambiente. Viu, então, sentados às mesas, dezenas de homens. Não os reconhecia porque não conseguia ver-lhes os rostos. — O que é isso, Ned? Uma festa surpresa? — brincou. — Não, Rusty, uma revelação. Vamos satisfazer sua curiosidade — falou Ned, levando-o até o balcão, diante do qual havia uma poltrona, onde Rusty se sentou. Ned o deixou ali e foi se sentar numa mesa próxima. Por instantes tudo ficou em silêncio. 85 — Você tem perguntado sobre o Carrasco, Rusty. Estamos aqui para lhe dar todas as informações. Aquilo o havia pego de surpresa. Não tinha dúvidas de que Ned sabia muito mais sobre o Carrasco do que podia contar, mas o que significava a presença de todos os outros ali? — Pergunte, Rusty! — falou uma voz que ele reconheceu. — Está bem, eu reconheci essa voz. Bill, você é o Carrasco? — Sim, eu sou o Carrasco — respondeu Bill. — E eu também — falou Ned. — Eu idem... — Eu... Um a um os homens foram afirmando que cada um deles era o Carrasco, confundindo Rusty. — Não entendo! O Carrasco não é apenas uma pessoa? — Somos muitos — disse alguém. — E por que fazem isso? — Somos todos policiais cansados de ver as leis prejudicarem a justiça. Entendemos que as leis são necessárias, mas a partir do momento em que elas passam a proteger o bandido, o assassino, em prejuízo do cidadão, julgamos que é o momento de fazer a justiça prevalecer. — Vocês matam... — Fazemos justiça, onde as leis falham. — Aquelas pastas, com a letra C em vermelho... 86 — Nós, tiras, marcamos os crimes do Carrasco. Não são nem jamais serão descobertos. Cuidamos disso. — Charles Medows recebeu uma bola de ferro de algumas toneladas na cabeça. Foi o Carrasco? — Sim, centenas de pessoas deixaram recados recado para o Carrasco naquele dia. Pessoas que viram as vítimas inocentes explodindo nas janelas daquele prédio. Um júri popular o condenou à morte. Não é assim que deveria funcionar? E nós executamos a sentença. — Por que estou aqui? — Para ser um dos nossos. De que outra forma vai tirar das ruas criminosos como Gordon Flowers? Ou Goose? Rusty sabia que não precisavam gastar argumentos para convencê-lo. 87 CAPÍTULO 7 Aos poucos Rusty começou a entender que, em torno do nome do Carrasco, havia um grupo enorme de policiais antigos ou aposentados de todos os Distritos da cidade, mantendo viva uma lenda iniciada havia muito tempo. Todas as pistas possíveis, quando eliminavam um assassino, eram apagadas pelos policiais da ativa, de forma que aquela letra C determinava o que devia ser investigado e o que não devia. Tudo era feito com severos critérios. Nenhuma execução era realizada, se o grupo não ficasse satisfeito com o resultado das acusações, apuradas em rigorosas investigações. Só então tratavam de executar o malfeitor. Mesmo essas execuções eram feitas de forma que não houvesse a mínima possibilidade de erro ou de falha. Em sua maioria, eram utilizados explosivos, que não apenas matavam a vítima, mas destruíam tudo ao redor, dificultando as investigações. Ninguém se preocupava que o prefeito havia determinado uma nova investigação nos crimes insolúveis. A morte de Charles Medows tornaria isso ainda mais acirrado. As investigações seriam intensas, mas um C em vermelho já estava rabiscado na capa do processo indicando qual seria o seu destino. Nenhum dos executores chegava a conhecer a vítima pessoalmente. Era uma norma que todos seguiam. Sabiam quem era, o que fizera e por quem fora condenada. Cabia-lhes apenas a execução e, no último 88 momento, no instante definitivo, fazer a vítima entender o motivo de sua morte. — Sharon queria estar presente na morte de Gordon Flowers — comentou com Ned, dias mais tarde, quando Rusty já fazia parte do grupo. — Infelizmente não seria possível antes nem será possível agora — falou Ned. — Aquele calhorda tem que morrer, eu sei, mas devo a Sharon essa promessa. Pensei que poderia matá-lo lá no cemitério, junto ao túmulo dela... Os outros homens se entreolharam. — Não, Rusty, será muito evidente. A ligação entre ela e ele seria rápida. Tudo apontaria na sua direção, a única pessoa que poderia ter interesse na morte dele — explicou Bill. — Eu não me importo. De qualquer forma, poderíamos atrapalhar as investigações de uma porção de maneiras, entre elas usando o que Gordon sempre usou: álibis falsos. No momento da morte daquele safado, eu teria vocês, tiras honestos, tiras aposentados, jurando que eu estava neste bar. O que me dizem? Devemos isso a Sharon. Aquele bastardo terá o que merece e Sharon descansará em paz. Eu sei. Por favor, rapazes! — insistiu ele. — O que acham? — indagou Ned. — Nunca foi feito antes, mas Rusty tem razão quanto à questão do álibi. Se serviu para Gordon Flowers, um covarde matador de tiras, servirá para nós também — ponderou Bill. 89 — Eu acho que devemos fazer dessa forma — acrescentou Joe. — Rusty está certo e nós seremos o álibi dele. — Tudo bem então, Rusty. Como quer fazê-lo? — indagou-lhe Ned. — Vou pensar em algo. Quero que me deixem trabalhar também no caso de Goose, aquele bastardo. — Entenda que nada fará sozinho, Rusty. Terá que contar sempre com o nosso apoio para não ter problemas — alertou Ned. — Não se preocupem, rapazes. Eu cuidarei para que vocês saibam de tudo. Além disso, de que outra forma eu poderia fazê-lo? *** Numa danceteria do Harlem, diversos homens e garotas ocupavam uma das mesas privilegiadas. Havia garrafas de uísque e champanhe sobre ela e ninguém parecia preocupado com as despesas. As mais belas garotas da noite estavam ali e os homens se divertiam sem maiores preocupações. Gordon Flowers, apesar de cercado por duas lindas mulheres, parecia preocupado. Desde que soubera que Rusty Brown estava vivo, após o acidente que matara Sharon, vivia preocupado. Sabia que cedo ou tarde aquele tira viria atrás dele. Destruíra-o. Fizera tudo que fora possível para acabar com ele. Rusty deveria saber que, cedo ou tarde, Gordon iria de novo atrás dele. Assim, estava na hora de liquidar aquele assunto, antes que Rusty melhorasse ainda mais. Pelo que 90 sabia, o ex-policial vinha se dedicando com afinco aos exercícios fisioterápicos e, ao mesmo tempo, treinando tiro ao alvo na Academia de Polícia. Esses eram indícios mais do que suficientes para preocuparem Gordon Flowers. — Ei, Gordon, não está se divertindo! — observou um dos homens do outro lado da mesa. — Tem razão, Milt. Tem algo me preocupando de verdade — respondeu. — E o que é? Vamos resolver isso logo. Gordon inclinou-se sobre a mesa. O outro fez o mesmo. — Aquele negócio do tira, lembra-se? — indagou ao amigo. — Claro, o que houve? — Ele continua se recuperando. Está treinando tiro ao alvo na academia. Acho que ele está vindo atrás de mim, Milt. — Aquele tira? Duvido. Já está por demais machucado para tentar algo assim. — Não, não duvide. Eu sinto, sabe? Eu sinto que ele está preparando algo para mim. — Então vamos dar um jeito nele hoje mesmo! Agora mesmo! Assim você pode voltar para cá a festejar a verdade — propôs Milt. — Acho que tem razão — decidiu Gordon, fazendo sinal para dois outros homens. Os quatros saíram rapidamente e foram para o Lincoln prateado do cafetão. 91 — O que está havendo, Gordon? — indagou um dos homens. — Vamos liquidar um tira — afirmou Gordon. Os outros gostaram da ideia. Subiram no carro e rumaram para o bar do Ned. Naquele horário, já devia estar fechando. Por isso, assim que chegaram, Gordon mandou estacionar o carro e esperaram. Havia clientes lá dentro ainda, que iam saindo pouco a pouco. Rusty se despedia deles com satisfação. Numa coisa Ned estava certo ao lhe oferecer a sociedade. Conversar com os amigos vinha sendo uma boa distração para ele, principalmente porque todos o animavam na nova profissão. — Rusty, quer fechar as cortinas e trancar a porta? Vamos para a melhor hora do dia, a conferência do caixa. — Certo — concordou Rusty, trancando a porta após a saída do último cliente. Depois fechou a cortina de uma das janelas. Quando foi fazer o mesmo na outra, viu aquele carro prateado e imediatamente algo estalou em sua cabeça. Lembrou-se de que, no dia da morte de Sharon, fora um carro como aquele que os perseguira e onde estava Gordon. Fechou a cortina, deixando uma fresta. Não vira aquele carro por ali antes. Tinha os vidros escuros, como os de Gordon, não permitindo que se visse nada em seu interior. — O que foi? — quis saber Ned, percebendo que Rusty continuava na janela, tenso. — Aquele carro! Foi um carro como aquele que nos seguiu no dia em que Sharon foi morta. 92 — Tem certeza? — Sim, sem dúvida nenhuma. Mesma cor, mesmo tipo de vidros... Ned foi ao telefone e ligou, enquanto Rusty vigiava. Viu quatros homens descerem do carro. — Ned, estão vindo — avisou. Seu sócio contornou o balcão, de onde retornou com duas escopetas. Passou uma para Rusty. Ambos ficaram à espera. Rusty reconheceu perfeitamente Gordon Flowers e suas roupas espalhafatosas, seu jeito malandro de caminhar, jogando os ombros e os braços para frente e para trás. — É ele? — indagou Ned, que o acompanhava na outra janela. — Sim, sem dúvida. — Vamos ver o que eles farão. Se os matarmos aqui, será fácil justificar legítima defesa. Gordon e os outros, no entanto, perceberam alguma coisa. Eram os policiais que desciam a rua, após terem sido chamados por Ned. Correram de volta para o carro e arrancaram a toda. — Maldição! — lamentou Rusty. — Estava tão perto que podia enfiar-lhe o cano da escopeta na boca. — Não se preocupe, não faltará oportunidade — acalmou-o Ned. Explicaram que alguns homens tinham tentado invadir o bar e os policiais anotaram a queixa. Quando ficaram sozinhos, Ned encarou o amigo com preocupação. 93 — Vamos ter que nos antecipar, Rusty. Ele tomou a iniciativa de vir atrás de você. Já sinalizou que quer vê-lo morto. Você não tem escolha. Temos de caçá-lo. — Aquele bastardo é teimoso e cuidadoso, Ned. Vai se retrair por algum tempo, depois voltará a atacar. Foi assim das outras vezes. Vamos ter tempo de planejar o que fazer com ele. Não se preocupe. Alguns dias depois, no começo da noite, Bill chegou ao bar com uma expressão de satisfação no rosto. Foi até o canto do balcão, chamando por Ned e por Rusty. — O que tem de novo, Bill? Parece satisfeito — falou Ned. — Tenho uma boa notícia para o Rusty. Acho que podemos pôr as mãos em Goose e liquidá-lo. — Sério? De que forma? — Temos um informante metido na quadrilha dele. Goose vai ser o mensageiro que apanhará com os colombianos uma partida de drogas. Como o negócio será feito em território protegido por outras gangues, apenas ele e o emissário dos colombianos se encontrarão. Minha ideia é darmos um jeito de tirar-lhe a droga e deixá-lo mal com o chefe da quadrilha. Na certa vão liquidá-lo. — Não, não é o bastante para mim, Bill. Quero que ele saiba porque está morrendo e quem o está matando. Eu tenho que puxar o maldito gatilho ou jamais em minha vida descansarei. — Esperem um pouco — falou Ned. — Se conseguirmos tomar-lhe a droga, poderemos montar uma 94 armadilha para ele. Goose fará tudo para recuperá-la. Só temos que deixar tudo preparado para ele. Rusty pensou por instantes. — Sim, Ned tem razão. Quando será a compra da droga? — Hoje, às dez, na margem continental do Rio Hudson, em Union City. Por quê? — quis saber Bill. — Há uma porção de armazéns vazios na margem da cá, em Riverdale, não? — Sim, qual é o seu plano? — quis saber Ned. — Como acha que poderemos tomar-lhe a droga, Bill? — Eu cuido disso. Ele vai usar o Túnel Lincoln, tanto para ir como para voltar. O túnel é considerado território de ninguém. Nenhuma quadrilha o protege lá. — Certo, então. Você toma a droga dele ali e leva para o armazém que vamos escolher. Antes que ele tenha tempo de pensar, vamos ligar para ele e dizer que tudo foi um engano e que a droga estará lá no armazém, à espera dele. Quando aparecer, nós o pegamos. — Bem pensado, Rusty! — elogiou Ned. — Ele irá sozinho, com certeza. Não vai querer que mais alguém saiba que foi apanhado como um pato e roubado. — Certo, pessoal! Vamos definir então, o armazém, a maneira como o mataremos e os outros detalhes — sugeriu Bill. — Vou convocar mais alguns rapazes, principalmente alguns do Terceiro Distrito que atuam na área do Túnel Lincoln. 95 Em pouco tempo, com o auxílio dos outros executores, o plano foi cuidadosamente montado, privilegiando todos os detalhes, por menores que fossem. Rusty ficou admirado com a experiência daqueles homens, planejando a operação. Ao mesmo tempo, sentia a frieza com que se referiam à futura vítima. Goose, para eles, já havia deixado a categoria de ser humano havia muito tempo. Era apenas um alvo agora, uma vítima, um cadáver que caminhava na direção de seu destino final. Percebeu que ele também se sentia da mesma forma e que o invadia não tensão, mas uma ansiedade terrível, uma vontade de apertar logo o gatilho e ver a surpresa nos olhos daquele homem que destruíra sua vida. — Tudo certo, então? Relógios acertados também? Ok! — disse Bill. — Assim que ele passar pelo túnel, teremos a placa de seu carro. Quero que se informe com a telefônica, Mortimer, e descubra o número de seu telefone móvel, passando-o de imediato para o pessoal no armazém. Entendido? Assim que roubarmos a droga, avisamos. Vocês cuidam do resto. Tudo estava acertado, finalmente. Rapidamente os homens saíram. Alguns estariam próximos da casa de Goose para avisar de sua saída. Outros perto do esconderijo normal da quadrilha. O restante, em duas equipes, no túnel e no armazém. Rusty estava no último grupo. *** Goose achava toda aquela precaução uma xaropada enorme. Se os colombianos fossem no Harlem entregar a 96 droga, não haveria problema nenhum. A quadrilha de Goose os protegeria. Não havia, no entanto, nada que os convencesse a atravessar o Rio Hudson para negociar do lado de cá. De qualquer forma, aquele negócio era um passeio. Todas as quadrilhas estavam avisadas e ninguém ousaria tentar nenhum golpe contra ele. Um acordo de cavalheiros evitava guerras sangrentas, onde todos perdiam. Numa cidade como aquela, havia clientes para todos eles. No horário combinado, apanhou seu carro e foi ao encontro dos colombianos. Deixou o Harlem pela Rua Franklin Roosevelt, que era uma expressa que o levaria até a via de acesso ao túnel que passaria sob o Rio Hudson, deixando-o dentro de Union City. O negócio foi realizado sem maiores preocupações. Os dois carros se encontraram na hora e local combinados. Goose desceu com uma maleta contendo dinheiro e o colombiano com outra, contendo a droga. No meio do caminho, fizeram a troca. Enquanto o colombiano conferia os maços de notas, Goose apanhava um aparelho de teste, retirava um pouco da droga de um dos sacos plásticos, testando-a. — Perfeito! — falou o colombiano, satisfeito. — Certo, cara! — respondeu Goose, retornando ao seu carro, Deixou a droga no banco traseiro e tomou o caminho de volta, entrando pelo túnel. No meio dele, porém, repentinamente, deparou-se com um carro atravessado na pista. Freou, amaldiçoando o aborrecimento. Abaixou o 97 vidro, para falar com os homens que sinalizavam para ele passar. Avançou lentamente, passando entre o carro e a parede do túnel. Os homens sinalizaram para o carro de trás parar. Diante do carro de Goose havia uma pilha de engradados, atrapalhando a passagem. — Ei, caras! Tirem essa droga da frente! — gritou ele, após enfiar a cabeça para fora da janela. Sentiu o estalido seco do revólver sendo engatilhado e o frio do metal encostando-se em sua nuca. — Cale a boca, ordinário! Cadê a droga? — indagoulhe alguém, empurrando o cano do revólver contra a nuca dele, fazendo-o abaixá-la. — Está aqui! — falou outro, abrindo a porta e apanhando a maleta. — Esperem aí, caras! Estão cometendo um erro — tentou ele argumentar, mas o homem que segurava a arma deu-lhe um tapa na cabeça. — Fique quieto! Deite-se no banco agora! Vamos ou parto sua cabeça! — Vão se arrepender disso! — ameaçou, fazendo o que lhe fora ordenado. Os homens correram para um carro que os aguardava logo à frente e, no momento seguinte, desapareciam no túnel. Goose saiu do carro desesperado, indo chutar os engradados que atrapalhavam sua passagem. Não conseguia acreditar que alguém houvesse feito aquilo. Significava mais do que uma declaração de guerra. Significava que todos teriam prejuízo e as quadrilhas não gostavam disso. O 98 pior era decidir o que fazer. Não podia retornar até seu chefe e simplesmente lhe dizer que fora roubado. Precisava pensar com calma, por isso pegou o carro e tratou de se afastar dali rapidamente. O que o incomodava era que não pudera ver os homens que o roubaram. Podia ter sido qualquer um, de qualquer quadrilha. Retornava para o Harlem, ainda aturdido, quando o telefone do carro tocou. Imaginou que fosse seu chefe. Não sabia ainda o que diria a ele, mas atendeu. Teria de inventar uma boa história. — Você é o Goose, não? — indagou uma voz totalmente desconhecida para ele. — Sim, e você, quem é? — retrucou ele com rispidez e nervosismo. — Cometemos um erro! — Você? Seu idiota! Eu avisei. — Desculpe-nos! Ninguém nos avisou que essa droga era sua. Alguém nos pregou uma peça e queremos consertar tudo o mais depressa possível. — É só me devolver a droga e ninguém, vai se machucar, está bem assim? — Promete? — Sim, prometo. Agora tratem de devolvê-la logo, antes que eu me zangue — falou ele, furioso. — Há um armazém na Riverdale, 1005. Sabe onde é? — Sei, mas não é território nosso. — Vamos deixar a droga lá dentro, com as nossas desculpas. É só ir lá e pegar — falou a voz, desligando. 99 Apesar de contrariado, Goose estava de novo aliviado e, de certa forma, envaidecido. Alguns idiotas tentaram roubá-lo, mas quando descobriram o erro cometido, voltaram atrás. Na certa algum deles o reconhecera no momento do roubo. Fora audacioso, mas ainda bem que tudo acabava bem. Detestaria retornar ao esconderijo e informar que fora passado para trás. Seguiu na direção do endereço fornecido. Sabia a que armazém se referiam. Era território de outra quadrilha, mas contava que seria reconhecido logo e todos o respeitariam. Quando lá chegou, notou a porta aberta. Avançou com o carro para dentro do armazém. Viu, no meio dele, a maleta aberta e alguns saquinhos espalhados ao redor dela. Examinou ao redor. Estava tudo às escuras. Não pensou em emboscada ou cilada. Se alguém quisesse matá-lo, já o teria feito lá no túnel, na hora do roubo. Desceu do carro sem maiores precauções. Foi até a maleta e se abaixou, começando a guardar os saquinhos lá dentro. Quando a fechou de novo e se levantou, viu alguém surgir lá na frente, com um AR-15 nas mãos. Não o reconheceu. — Está tudo aqui, seu idiota! Da próxima vez, pensem bem no que vão fazer para não cometerem erros. Isso poderia ter custado a vida de todos vocês — aconselhou-os Goose, seguro de si. — Não haverá próxima vez, Goose — disse o homem. — É bom mesmo — frisou o bandido, fazendo menção de se virar. 100 Nesse instante, Rusty, no fundo do armazém, engatilhou o seu fuzil. O barulho fez Goose imobilizar-se. Lentamente o ex-policial foi levantando o fuzil. Havia treinado muitas vezes com aquela arma nos últimos dias. Estava seguro com ela nas mãos. — Espere um pouco aí, cara! O que pensa que está fazendo? — indagou Goose. — Vou lhe dar um pouco de seu próprio remédio — falou Rusty, que tinha Goose perfeitamente delineado contra os faróis do carro. — Ei, homem! Vamos conversar. O que está havendo aqui? — Lembra-se de mim, Goose? — indagou Rusty, avançando alguns passos. O traficante reconheceu-o, afinal. — Rusty, seu bastardo! Eu devia tê-lo matado. O que está fazendo agora? Perdeu o emprego? Está entrando no ramo do tráfico? Eu posso lhe dar muitas lições sobre isso — riu Goose, enquanto a mão subia lentamente em busca de uma automática que trazia no coldre sob o braço. — Enganou-se, Goose! Estou no ramo de extermínio de ratos agora, sabia? Goose não teve tempo de sacar sua arma. Rusty disparou certeiramente. O braço que segurava a maleta foi decepado na altura do ombro, caindo no chão. O bandido recuou alguns passos após o impacto, olhando com estupor o próprio braço, ainda segurando a maleta. Levantou os olhos esbugalhados na direção de Rusty. Viu a labareda de 101 fogo saindo do cano do fuzil, depois sentiu apenas o impacto na testa, jogando-o para trás, sobre o capô do carro. Pouco sobrava de seu rosto para a identificação. Rusty saiu imediatamente pelos fundos, onde um carro o esperava. No momento seguinte, rumavam velozmente para o bar do Ned, onde um grupo de policiais seria seu álibi para aquela morte, caso alguma suspeita recaísse sobre ele. Da forma como Goose morrera, no entanto, tudo ficaria como sendo uma briga entre traficantes. Principalmente porque a droga que estava nos sacos plásticos fora trocada por outra de péssima qualidade. 102 CAPÍTULO 8 Era um sentimento perigoso aquele que Rusty sentia, enquanto, no bar, conversava com os amigos sobre outros assuntos. Não conseguia tirar da mente aquela imagem, vendo o braço de Goose desprender-se do corpo e cair, ainda agarrado à maleta. Sentia-se bem, muito bem com a sensação de ter-se vingado e, ainda por cima, ter matado alguém friamente. Goose não esboçara uma reação mais forte. Apenas ficara ali e se deixara matar. Era algo mais do que poder, força, domínio sobre o outro. Sabia que havia interrompido a vida de um homem. Tirara-lhe tudo, simplesmente. Goose não mais abriria os olhos pela manhã, nunca mais olharia uma mulher bonita ou tomaria um gole de um bom uísque. Goose era carne morta agora. Era um cadáver e não mais assustaria ninguém. Essa sensação viciava. Mal se satisfazia com a primeira morte e Rusty já pensava na segunda. Gordon Flowers tinha de pagar pelo que fizera, pelo que tirara dele. Tinha de pagar por Sharon e pela sua carreira de policial, interrompida estupidamente. Queria vê-lo daquela forma, atônito, inerte, parado, olhando a chegada da morte, convicto de que nada no mundo poderia evitá-la. Naquela noite, no final do expediente, ficaram no bar apenas os integrantes do grupo de extermínio. Nenhum deles comentou sobre a morte de Goose. Estavam mais interessados em planejar o fim de Gordon Flowers. 103 — Certo, pessoal! — disse Ned. — Temos de decidir agora o que faremos com Gordon Flowers. — Tenho uma sugestão — falou um policial que Rusty ficara conhecendo naquela noite. — Antes de qualquer coisa, temos de isolá-lo. — Isolá-lo? Como assim? — quis saber Rusty. — Gordon Flowers está sempre cercado de gente. Jamais o encontrará sozinho. Tem capangas e amigos que o protegem a todo momento. O que temos de fazer é tornar sua vida insuportável, é fazer com que os outros percebam que estar ao lado dele é péssimo em todos os sentidos — esclareceu o outro. — É uma boa ideia! — concordou Ned. — Isso, inclusive, o impedirá de tentar qualquer outra coisa contra Rusty. Como se pode fazer isso, Allan? — Vamos espalhar a notícia para todos os nossos amigos de todos os Distritos. Onde encontrarem Gordon, deverão pará-lo e plantar droga em seu carro. Acusá-lo e a seus amigos. Nada, porém, que caracterize tráfico. O suficiente para ficar caracterizado que são apenas consumidores, assim não serão presos. Toda e qualquer desculpa para atormentá-lo será válida. Entendido? — É uma boa ideia — concordou Rusty, sentindo não poder estar presente todas as vezes em que isso acontecesse, só para ver aquela cara irônica e cínica desmanchar-se. — E o ato final? — Quis saber Bill. — Rusty fica encarregado de prepará-lo. O que me diz? 104 — De acordo. Eu prometi isso a Sharon — afirmou ele, decidido. Não havia ainda conseguido imaginar uma forma de cumprir aquela promessa. Sharon precisava estar presente no momento em que Gordon fosse morto. No dia seguinte, os policiais iniciaram a operação que transformaria a vida de Gordon Flowers num inferno. Durante todos os dias seguintes, não havia um momento em que ele pudesse se sentir tranquilo, tantos foram os aborrecimentos. Quase uma semana depois, Rusty foi, pela primeira vez depois do sepultamento, ao cemitério onde Sharon fora enterrada. Levou flores. Depositou-as sobre o túmulo. Lembrou-se da parceira e mulher, por quem nutria uma afeição toda especial. Estavam ambos despedaçados, quando se encontraram. Os pedaços de um haviam ajudado, ainda que temporariamente, o outro a se reconstruir. — Como, Sharon? Como faço para cumprir minha promessa? — indagou ele, olhando o túmulo feito de mármore, uma preocupação de todos os amigos policiais. Era como uma caixa de mármore branco. Na parte de trás havia um suporte onde se achava uma cruz de ferro pintada de branco. Ao lado, num suporte menor, uma bandeira dos Estados Unidos, pequena, ladeada por uma flâmula da Polícia de Nova Iorque. Na frente, uma placa de bronze continha o nome, data de nascimento e de falecimento de Sharon Mayfield. Ficou olhando para aquela placa. Lembrou-se do funeral. Atrás daquela placa havia 105 uma abertura por onde fora introduzido o esquife. O espaço era suficiente para dois esquifes. Abaixou-se. Examinou atentamente. Para retirar a placa, bastava retirar quatro parafusos que a prendiam ao túmulo, vedado por cimento branco. Uma ideia começou a se formar em sua cabeça. Quando foi para o bar, naquele dia, contou-a a Ned. — É totalmente fora dos nossos padrões, Rusty. Como terá certeza da morte dele? — Terei, não se preocupe. — Não sei! É tão... Macabra. Rusty. Tem certeza que é isso mesmo que quer fazer? — Sim, Ned. Não é por mim, é por Sharon, entendeu? — Certo! Os rapazes virão aqui hoje à noite para uma avaliação do caso do Gordon. Vamos discutir o assunto. — Ok, Ned. E... Outra coisa! Quando começarei a participar dos outros casos? — No devido tempo, Rusty. Agora precisa livrar-se de seus fantasmas. Só então estará pronto para nós — falou Ned, tranquilizando-o. *** Gordon Flowers simplesmente não acreditava no que estava acontecendo com ele. Havia uma semana que sua vida fora transformada em um inferno. Os amigos que o rodeavam haviam se afastado como se ele fosse um leproso. Seus capangas estavam todos presos ou simplesmente haviam sumido, cansados, talvez, de tantos aborrecimentos. Tinha contatos na polícia. Ligou para saber o que estava 106 havendo e por que o perseguiam. Simplesmente informaram que desconheciam. Que ele estava tendo apenas uma maré de azar, aparecendo no lugar errado e na hora errada. — Diabos, homem! Não posso sair de casa. Eles param meu carro, quebram as lanternas com seus cassetetes só para me multar. Se estou acompanhado, plantam tóxico em meus amigos, acusando-os. Estou ficando sozinho, homem, e não gosto disso. — Não sei, Gordon, o que possa ser. Se os tiras estão fazendo isso e isso me parece algo pessoal é alguma coisa que você fez a eles. Lembra-se do caso da garota? Podem estar lhe dando o troco agora. — Danem-se vocês! — explodiu ele, desligando. Depois pensou melhor. Na noite em que tentara pegar Rusty Brown, havia sido surpreendido. Policiais foram chamados no Sexto Distrito. Havia certa lógica no que lhe fora dito. — Maldito! — praguejou ele, começando a pensar seriamente em Rusty. Poderia ser ele a origem daquela desordem total em sua vida. Não se acostumara a viver isolado. Jamais se acostumaria. Precisava de gente e de mulheres ao seu redor. Nos últimos dias, ninguém atendia seus telefonemas, ninguém estava em casa para ele. As prostitutas que trabalhavam sob suas ordens também haviam sumido, aproveitando-se do momento de fraqueza dele. Os policiais que ele subornava queixavam-se de não terem recebido a 107 propina da semana para fecharem os olhos ao trabalho de suas mulheres. O mundo estava desabando em sua cabeça. — Filho da mãe! — exclamou ele, cada vez mais convicto que Rusty era o responsável por tudo aquilo. Se era assim, daria um jeito de pegá-lo. Ele pagaria pelo que estava acontecendo. Alguém tinha de pagar. Rusty não era nenhum super-homem. Gordon sabia onde ele morava e onde trabalhava. Conhecia seus caminhos e seus horários. Iria dar o troco. Iria pagar na mesma moeda. Pegou o telefone e discou. — Apanhe seu carro e venha até minha casa — disse ele. — Diabos, Gordon, mas você não é boa companhia! — reclamou o outro. — Mingus, já descobri o urubu que está azarando a minha vida, só que preciso de sua ajuda para afastá-lo para sempre. — Por que eu, Gordon? Justo eu? — Porque você é o único dos meus amigos que se parece muito comigo. — Como assim? — Pegue seu carro e venha para cá. Vou deixar o meu carro na garagem, com as chaves no contato e algumas roupas minhas. Quero que as vista, depois pegue o carro e saia para dar uma volta pela cidade. E quando estacionar o seu carro, deixe as chaves. — Só isso? — indagou o outro, após refletir por instantes. 108 — Só isso, Mingus, e eu lhe serei eternamente grato quando tudo isso terminar. Quando desligou, um sorriso de triunfo estampou-se no rosto do cafetão. Iria despistar a polícia. Enquanto corriam atrás do carro com Mingus, ele poderia fazer o que tinha que fazer. Naquele horário, sabia que Rusty estava em casa. Era um bom lugar e uma boa hora para livrar-se de todos os seus problemas. *** Num dos cômodos de sua casa, Rusty havia montado uma academia, com aparelhos para exercícios indicados para suas deficiências e para o físico em geral. Naquele horário, começava a se exercitar. Depois tomava um banho, relaxava um pouco e ia para o bar. Ia começar seus exercícios, quando o telefone tocou. — Rusty, não sei se é o caso de avisá-lo, mas nosso pessoal deteve o carro de Gordon para infernizá-lo, só que Gordon não estava nele. Um amigo usava as roupas daquele cafetão para nos despistar. Não sabemos onde ele está agora. — Deve ter dado o fora da cidade por algum tempo para se livrar do assédio. Vamos ter de encontrá-lo. Já está chegando a hora de dar-lhe o que merece. — Certo. Estamos avisando todos os rapazes. Vamos encontrá-lo em breve! Ao desligar, Rusty ficou pensando. Gordon fora pressionado ao extremo. Podia ter sumido da cidade ou estar preparando alguma. A opção mais plausível era que sumira da cidade. Só que Rusty julgava conhecê-lo um pouco mais 109 que os outros. Gordon sempre fora de surpresas. Por isso pensou melhor. Foi até a janela e sondou os arredores. Havia muitos carros parados na rua tranquila, mas nenhum suspeito. Ainda assim, para sua segurança, foi apanhar a arma, deixando-a junto ao aparelho de ginástica. Começou a se exercitar. Seus sentidos, no entanto, o mantinham alerta. Quis se concentrar no que fazia, mas não conseguia. Era o velho instinto policial falando mais alto, alertando-o, avisando-o de que o perigo o rondava. Havia muito tempo não tinha aquela sensação, por isso desistiu dos exercícios e foi vigiar, oculto atrás da cortina da janela. Os carros continuavam ali, sem nenhuma novidade. De repente, de um deles desceu um homem. Não vestia as roupas normalmente vestidas por Gordon Flowers, mas o jeito de caminhar era o mesmo. O negro olhou para os lados, atravessou a rua normalmente e se encaminhou para a casa vizinha de Rusty. Trazia uma caixa sob um dos braços, semelhante àquelas usadas para embalar flores. Parou diante da outra casa, disfarçou, depois rumou para a casa seguinte, a dele. Rusty pôde ver aqueles olhos traiçoeiros e aquela expressão cínica e perigosa. Gordon parou diante da porta, mas não tocou a campainha. Simplesmente tocou a maçaneta, girando-a. Rusty moveu-se para trás da porta. Gordon entrou, abrindo a caixa e retirando dela uma escopeta, que engatilhou no instante seguinte. Quando avançou um passo, Rusty encostou seu revólver no ouvido do invasor. 110 — Quieto, bastardo! — ordenou, puxando o gatilho para trás. O estalido fez Gordon estremecer. Rusty tomou-lhe a escopeta no momento seguinte e encarou-o. — Ei, homem, vamos conversar com calma! — propôs Gordon, fazendo menção de recuar. Rusty não lhe deu trégua. A coronha da escopeta bateu sobre o nariz do negro, quebrando-o e fazendo-o cair contra a porta, que se fechou. — Você quebrou meu nariz! — gemeu ele, tentando se aproximar rastejando do ex-policial para surpreendê-lo. Rusty estava atento, porém. A coronha bateu de novo no ombro do cafetão, fazendo-o gemer e rolar no assoalho, deixando sangue espalhado na madeira. — É melhor ficar quieto ou vou ter que machucá-lo muito — disse Rusty, aproximando-se de novo de Gordon, que, de joelhos, tentava estancar o sangue que escorria de seu nariz. — Chame uma ambulância! Chame os tiras! — pedia o bandido. — Sim, do jeito que você quer, não? Para que esteja nas ruas de novo em breve? Não, Gordon! Eu não o convidei para vir aqui, portanto, já que veio, terá que se submeter às regras de minha hospitalidade — disse Rusty, vibrando novamente a coronha da arma contra a testa do outro, jogando-o para trás, desacordado. Após se certificar de que ele dormia mesmo, Rusty foi buscar um rolo de fita adesiva. Prendeu os pulsos do 111 cafetão, depois os tornozelos. Em seguida o amordaçou. Para tolher todos os seus movimentos, enrolou toda fita adesiva ao redor do corpo dele, até deixá-lo preso como um pacote surpresa. Então consultou o relógio. Depois foi apanhar o telefone. — Ned, eu peguei o filho da mãe! — informou. — Onde está? — Aqui em casa. — E você? — Estou bem. — Ótimo! Fui avisado que o bastardo tinha enganado todo mundo. Ninguém esperava que ele fosse ao seu encalço, no entanto. O que pretende fazer com ele agora? — Vou esperar anoitecer, depois o levarei até o cemitério. Ninguém, nunca mais, ouvirá falar nele — sentenciou. — Vai precisar de ajuda? — Não, Ned, isto é algo que farei sozinho. Obrigado! — Ele já está morto? — Não, morrerá conforme eu planejei. — Não facilite. Apenas tenha certeza de que ele morreu mesmo. — Tomarei todas as precauções, Ned, pode ficar tranquilo. *** No começo da noite, pouca gente se encontrava no vasto cemitério em Hide Park. Os retardatários que haviam ido visitar algum ente querido já se retiravam. O carro 112 passou despercebido, indo até o local onde estava o túmulo de Sharon. Rusty desceu com ferramentas e um macacão de operário. Parecia que ia fazer um conserto ali. Embora não visse ninguém ao redor, tentou ser o mais natural possível quando soltou a placa de metal e, depois, os tijolos que tapavam a entrada. Ali estava o caixão onde repousava Sharon. Verificou as redondezas, depois foi até o carro, abriu o porta-malas e retirou o corpo imobilizado de Gordon, carregando-o até o túmulo. Depois foi apanhar uma maleta no carro, retornando. Os olhos do prisioneiro refletiam todo o seu horror. Não entendia o que se passava. Não sabia o que Rusty iria fazer com ele, naquele lugar. Só podia resmungar e debater-se, totalmente subjugado. — Sabe quem está enterrado aqui? — indagou Rusty. Gordon moveu a cabeça num sinal negativo. — A puta uniformizada, como você costumava chamála, lembra-se? O horror se tornou maior nos olhos dele. — Ela se sente muito só aí, sabia? Sabe quem fará companhia a ela? Gordon percebeu o que estava para acontecer e se debateu ainda mais. Rusty empurrou-o para dentro do túmulo, deslizando o corpo dele sobre o caixão de Sharon. A cabeça do cafetão ficou voltada para a tampa do túmulo. Rusty, então, acendeu uma lanterna e a pôs sobre o corpo dele, iluminando o interior da sepultura. Apanhou um celular, teclou, fazendo soar o toque de outro, que levava no 113 bolso. Pôs o celular junto da cabeça de Gordon, arrancando, então, a fita adesiva com que o amordaçara. — Homem, você é louco! Tire-me daqui! Socorro! Alguém me ajude! — berrou o cafetão. — Pode berrar, maldito! Ninguém vai ouvi-lo — afirmou Rusty, começando a espalhar recolocar os tijolos com cimento na abertura, antes de encaixar a tampa. Fixou firmemente os parafusos. Rusty guardou todo o material de volta no porta-malas do carro. Depois se sentou diante do túmulo de Sharon, apanhou o celular em seu bolso e ficou ouvindo os gritos desesperados de Gordon Flowers pela noite adentro. Ao redor, tudo estava silencioso como um túmulo, transmitindo uma imensa paz. Só Gordon Flowers não tinha a mesma impressão. *** Rusty demorou alguns dias para retornar ao bar. Todo o tempo continuava ouvindo os gritos do cafetão, enquanto morria lentamente, aprisionado no túmulo de Sharon. Desta vez não tivera nenhuma sensação de força nem de poder. Parecia ter restado apenas um profundo vazio agora, como se as vidas de Goose e de Gordon fossem a justificativa para a sua. Comentou isso com Ned. — Muitos de nós se sentem assim, Rusty. É o que nos mantém nisso, sabia? Esse vazio só é preenchido pela próxima vítima, que passa a ser o motivo de nossa existência. Não fosse isso, muitos de nós já teriam deixado de viver. 114 — E compensa tudo isso, Ned? — Eu não sei, Rusty. Você é que deve responder isso a você mesmo. Rusty pensou no que conversara com a filha de John Sanders, tentando imaginar quem se sentiria feliz com tudo aquilo, mas não encontrou uma resposta. Era um trabalho sujo realmente. Um trabalho que, em nome da justiça, legalizava o assassinato. — Veja bem, Rusty. Esse é o consolo dos humildes, daqueles que não têm a quem recorrer, daqueles que foram postos à margem da lei que não lhes deu justiça. É um trabalho sujo, pode acreditar nisso, mas é um mal necessário. Lembre-se, nós não prendemos, não acusamos, não julgamos. Apenas executamos a sentença. Quem decide é o júri e o júri é o povo. Se a sentença for dada na legalidade de um tribunal, não deixa de ter o mesmo sentido se dado no desespero de quem não pôde fazer prevalecer o espírito da lei. Somos os carrascos, Rusty, e a nós não cabe discutir a sentença. Este é o nosso princípio. Está vendo aquela garota lá na porta? Estou aqui há tanto tempo que posso lhe jurar que sei o que ela vai fazer. — E o que é? — Vai deixar seu nome e telefone para o Carrasco. — Como pode ter certeza? — Vá lá e se certifique. Rusty foi até a porta. Quando chegava, a garota se aproximou do quadro de avisos e, com um alfinete, prendeu seu nome e telefone ao lado do recado do Carrasco. 115 — Espere! — pediu ele, quando ela se afastava. Ela parou intimidada na porta do bar. Não tinha mais de quinze anos. Os cabelos compridos caíam sobre o rosto, tapando metade dele. — Não se assuste, por favor! — pediu ele. — Por que deixou o recado? — perguntou ele. — Porque ninguém quer me defender — respondeu ela, num fio de voz aterrorizado e indefeso. Percebeu que ela estava tendo muita coragem para fazer aquilo. — Defendê-la do quê? — insistiu ele. Ela hesitou. Depois, com uma decisão que refletia todo o seu estado de espírito e a vontade de se ver merecedora de justiça, ela segurou os cabelos e afastou-os do rosto. Havia uma cicatriz monstruosa em sua face, resultado de uma queimadura. Um olho limpíssimo e lindíssimo olhava revoltado para Rusty, enquanto o outro era apenas uma órbita vazia. Ela soltou o cabelo sobre a máscara macabra que era aquela parte do rosto, depois se virou e se afastou rapidamente. Rusty ficou parado, ofegante, inesperadamente atingido por aquela dura realidade. Aquele vazio interior começou a ser preenchido pelo ódio, um ódio inesperado, mas violento, contra alguém que ele nem conhecia. Alguém havia feito àquilo à garota. Alguém que talvez tivesse feito o mesmo a outras ou o faria de novo. Resoluto, foi até o quadro de avisos, arrancou o recado que a garota deixara e foi até o balcão, onde Ned o observava. 116 — Ele é meu! Eu o quero! — afirmou Rusty, decidido. — Você o terá! — respondeu o outro, olhando-o com uma espécie de orgulho entristecido no rosto calejado. 117 2a. PARTE OS OLHOS DA CIDADE CAPÍTULO 1 Aquela era mais uma daquelas malditas noites de sábado, no Sexto Distrito Policial da Cidade de Nova Iorque, o pior, o mais perigoso, o mais temido e o mais assustador de todos eles, abrangendo a área que divide os bairros do Harlem e do Bronx, uma terra de ninguém onde as quadrilhas e gangues de rua acertavam suas desavenças. Quando isso, acontecia, costumava-se dizer que chovia chumbo e sangue nas ruas. Os cadáveres eram recolhidos aos montes e os legistas tinham de fazer horas extras para preencher relatórios, já que a causa da morte era evidente nos buracos que aqueles corpos apresentavam. Ninguém tinha sossego nas noites de sábado, principalmente o Inspetor Joe Bradford, um veterano de muitas noites de sábado. Quando chegava o entardecer e os carros começavam a circular pelas ruas do bairro, ele sentia comichões em suas cicatrizes. — Matt, cadê aquele AR-15 que você me prometeu? — indagou ele, mal humorado, ao sargento encarregado das armas. 118 — Está no seu armário, Joe. Eu o pus lá com dez carregadores e três caixas de munição. Acha que será suficiente para esta noite de sábado? — Se tudo der certo, espero tirar das ruas pelo menos uma centena de filhos da mãe hoje. — Não sei ainda por que você faz isso, Joe, comentou Matt, intrigado. — Está a um passo da aposentadoria e a fica bancando o herói, como se torcesse para levar uma bala desses bastardos. — Pelo contrário. Quero sempre atirar primeiro do que eles e mandar para o inferno o máximo possível. O bandido que você mata hoje é o que não vai baleá-lo amanhã. — Essa é mesmo uma boa filosofia, Inspetor! Excelente para mandarmos divulgar nos jornais. A imprensa adoraria saber como pensamos e como agimos — falou o Capitão Dale. — Eu gostaria de ter um desses jornalistas comigo numa dessas noites de sábado, capitão. Adoraria saber o que eles escreveriam depois de passar uma noite toda ouvindo balas assobiando ao seu redor. — Seu desejo é uma ordem, Joe. Sabe que sempre fiz tudo para agradá-lo. — Espere um pouco! Do que está falando? — estranhou Joe. — Não estamos falando de nada. Apenas que você me deu uma excelente ideia, sabia? Bem dentro do que deseja o Comissário de Polícia, de quem o prefeito exigiu uma 119 campanha para tornar o nome da Polícia mais simpático à população. — Até aí eu estou acompanhando, capitão. O que vem depois disso? — Espere e verá, Inspetor. Tem certeza que não deseja mesmo recolher-se ao serviço burocrático até chegar o dia de sua aposentadoria? — Capitão, nada me tira da cabeça a sensação de que está me preparando uma — falou Joe, com convicção. O Capitão Dale sorriu enigmaticamente e afastou-se assobiando. O Inspetor Joe Bradford ficou pensativo, demonstrando a preocupação nas rugas que vincavam sua testa. O Capitão não gostava dele, isso era fato e todos sabiam disso. Estava sempre preparando alguma coisa para infernizar a vida de Joe. Algo lhe dizia que, antes da aposentadoria, o Capitão ainda lhe aprontaria uma boa. — Isso o deixou preocupado, Joe? — perguntou Matt. — Esse sacana é bem capaz de me aprontar uma última e, com certeza, a melhor delas. — E você, o que vai fazer? — O que posso fazer? Dar-lhe o troco, oras! — Como? — Pensarei em algo. Vou ao arsenal. Quer alguma coisa? — Se vamos sair juntos, pegue uma Doze especial, com uma caixa de munição. Você sempre apronta alguma e eu tenho de lhe dar cobertura. 120 Algum tempo depois, os dois saíam para patrulhar. Anoitecera. Tudo parecia tranquilo, mas os dois policiais sabiam que tudo não passava da calmaria que precede a tempestade. A qualquer momento, tudo aquilo explodiria como uma panela de pipoca. Era o momento de maior tensão para os homens que patrulhavam as ruas dos dois bairros no seu ponto mais delicado e perigoso. Poucos gostavam daquilo. Poucos como Joe e Matt viviam daquela tensão, da adrenalina pura sendo armazenada em seus corpos para, de repente, invadir suas veias, enquanto o inferno se abria diante deles e as palavras eram os sussurros do demônio, convidando-os para a eternidade. Joe parou o carro num sinaleiro. Acelerou forte algumas vezes, testando o motor. — Como está a máquina? — quis saber Matt. — Tinindo — respondeu Joe, de olho o veículo que parara ao lado deles. As janelas eram de vidro espelhado e estavam fechadas, apesar do calor. Apenas uma delas tinha uma estreita fresta aberta, por onde escapava fumaça. Só que o cheiro que o vento trazia na direção deles não era de cigarro. — O que acha que temos ali? — indagou Matt, percebendo a mesma coisa. — Acho que temos um coelho — respondeu Joe, levantando o fuzil AR-15 que estava ao lado do banco e pondo-o no colo. Olhou pelo retrovisor. Atrás deles havia outro carro, enquanto um terceiro veio devagar, entrando pela direita. 121 Estavam fechados entre três carros. A Armadilha do Coelho era uma das brincadeiras mais cruéis que as gangues faziam com os policiais menos experientes. Punham um carro suspeito ao lado de um carro policial que haviam seguido desde sua saída do Distrito. O coelho deveria chamar a atenção dos policiais, depois sair a toda, provocando a perseguição. Quando isso acontecia, os carros que vinham atrás passavam a perseguir o carro dos policiais. Matt olhou disfarçadamente para o carro que vinha avançando lentamente pela direita, depois para o sinaleiro que se mantinha no vermelho anda. A espingarda calibre doze estava em seu colo, carregada com meia dúzia de cartuchos, municiados com seis esferas de chumbo cada um. — Como vai sair dessa? — perguntou Matt. O sinal estava prestes a abrir. Joe tinha de pensar rápido. Mesmo que não saíssem em perseguição ao coelho, ainda tinha os carros a sua direita e atrás deles que, certamente, aprontariam alguma coisa. — Vamos mudar a brincadeira. Vamos brincar de tiro ao pato — disse Joe, engatilhando o seu fuzil. — Vamos estragar mais duas portas? — quis saber Matt, fazendo o mesmo com sua escopeta. — É só lata e tinta — respondeu Joe, no instante em que o sinal abriu. Ele engatou uma ré em seu carro e acelerou forte. Disparou o fuzil contra a porta de seu carro. O poderoso projétil varou a porta e atravessou o carro ao lado. O motorista caiu sobre o volante, disparando a buzina. Matt 122 fizera o mesmo com sua escopeta, abrindo um rombo na porta do seu carro e na do outro, parado ao lado. O motorista foi jogado contra o passageiro no outro banco. Joe soltou a embreagem do carro e recuou, batendo com força no carro atrás deles. Imediatamente os dois saltaram. Do carro abalroado surgiram dois hispânicos com metralhadoras Uzi em suas mãos. Joe simplesmente fez sumir a cabeça de um deles com um disparo de fuzil, enquanto Matt atingia o outro em pleno peito, jogando-o alguns metros para trás. — Malditos tiras! — gritou o passageiro do carro que Matt acertara, com uma automática na mão. Começou a disparar, arrebentando os vidros do carro dos policiais. — Proteja-se Matt! — gritou Joe, virando-se na direção do atirador. Matt agiu instintivamente. Após tanto tempo trabalhando com Joe, sabia como o parceiro agia. Abaixouse. Joe tinha seu fuzil apontado na direção do pistoleiro. No momento em que Matt saiu da linha de tiro, apertou o gatilho. O rapaz jamais soube o que o atingiu. Seu peito tingiu-se de vermelho na hora e ele voou até a calçada. A bala que atravessou seu corpo foi cravar-se na parede de uma loja, abrindo um buraco também. As poucas pessoas que ainda estavam na rua sumiram. Todos sabiam que, a partir daquele horário, as ruas na terra de ninguém entre o Harlem e o Bronx não eram seguras. O cheiro de pólvora foi 123 levado rapidamente pelo vento que soprava. Ainda em alerta, Joe entrou no carro e apanhou o rádio. — Mandem uma ambulância! Melhor dizendo: mandem uma porção de ambulâncias para a esquina da Mayflower com a Rose Street. Há uma porção de presuntos por aqui. — O que houve, Joe? Atropelou uma procissão de velhinhas? — indagou Vick, a operadora do rádio. — Não, Vick. Só resolvemos brincar de tiro ao pato. — Certo, estão a caminho. A noite promete ser movimentada, não? — Com certeza. Câmbio! Escondidos atrás das janelas dos prédios, cidadãos comuns aplaudiam a ação policial. *** O grande armazém abandonado, às margens do Rio Harlem, parecia preparado para uma guerra. Os italianos haviam chegado ao local antes do anoitecer. Equipes de homens fortemente armados vasculharam todos os cantos e foram distribuídos estrategicamente, mantendo severa vigilância. O telhado havia sido ocupado. Duas potentes lanchas patrulhavam os fundos, ancoradas no rio. Carros haviam sido espalhados em cada esquina, todos com quatro homens cada um, armados com fuzis, metralhadoras e pistolas automáticas. Andy Luciano, o filho do patriarca de todas as famílias, Cauzio Luciano, comandava pessoalmente a operação, toda ela montada pelo seu pai. Às oito da noite, tudo estava 124 preparado para o aguardado encontro. De um lado, representando as gangues hispânicas do Bronx, estava Johnny "Arriba" Perez; do outro, falando pelas gangues de negros do Harlem, estava Angus "Baby Face" Colúmbia. A ordem de chegada fora sorteada pelo próprio Dom Cauzio Luciano. Inicialmente, às oito da noite, deveria chegar Johnny Perez, acompanhado apenas de um motorista e de um assessor, advogado ou consultor. Dez minutos depois, Angus Colúmbia deveria chegar com o mesmo acompanhamento. Andy Luciano seria o mediador na mesa de três lugares que fora posta no centro do armazém, sob um refletor. Johnny chegou pontualmente. A limusine estacionou no local indicado pelos homens da segurança. O chefe de gangue desceu vestindo um extravagante terno de seda azul claro, com um lenço da mesma cor amarrado no alto da cabeça. Cordões de ouro com pingentes esquisitos cobriam seu peito. Usava muitos anéis nos dedos das mãos. — Olá, Andy! — cumprimentou. — Johnny, é bom ver você! — disse Andy, apontando a mesa. Caminharam até lá. Johnny olhava atentamente ao redor, observado todo o esquema de segurança montado. — Quando me disseram que se podia confiar em vocês, não esperava tamanha eficiência — comentou Johnny. — Para nós é um prazer participar de um encontro tão importante. — Agradeço a ajuda de vocês — falou Johnny. 125 O líder das gangues hispânicas tomou seu lugar na mesa, sobre a qual havia um grande mapa representando a região do Harlem e do Bronx. Os dois conversaram amenidades, enquanto aguardavam a chegada do terceiro participante da reunião, que também chegou na hora certa. Ninguém se atrasaria para algo tão importante. Angus Colúmbia desceu do carro com um sobretudo verde, combinando com o terno e o chapéu da mesma cor. No pescoço tinha um lenço negro, símbolo das gangues negras. Andy foi recebê-lo e acompanhá-lo até à mesa, onde Johnny esperava-os. Quando o outro se aproximou, Johnny levantou-se. Olharam-se com um ódio que já durava muito tempo, tempo demais até. Um ódio que custara vidas e dinheiro para os dois lados e que, por sugestão dos italianos, precisava acabar para que todos pudessem lucrar. Brigar e matar-se já faziam parte das vidas daquelas gangues. Os italianos julgavam que isso poderia ser evitado com um acordo entre os dois líderes. Para eles, a paz entre as gangues representaria um grande negócio, principalmente a partir do momento em que passaram a controlar toda a entrada de droga vinda do Canadá e da América do Sul. Fatalmente as gangues passariam a ter apenas um fornecedor. Isso já evitaria muitas guerras, principalmente entre os colombianos e jamaicanos, principais fornecedores, que passariam a entregar todo o seu produto à família Cauzio, que se encarregaria de toda a distribuição. O lucro seria sempre imediato e a mercadoria teria um alto giro. 126 — Bem, cavalheiros, o fato de estarem os dois aqui significa que entenderam nossos argumentos, mostrando-se dispostos a negociar não? — falou Andy. — Você nos prometeu grandes lucros. — disse Johnny. — Estamos esperando, pode falar — acrescentou Angus. — Como sabem, fechamos um acordo com os colombianos e jamaicanos. Toda a droga vendida e consumida nesta cidade passará por nossas mãos. — Em que isso nos beneficia? — indagou Johnny. — Simples. Não terão de regatear preços entre os colombianos e os jamaicanos. — Mas teremos que pagar o preço que vocês determinarem — observou Angus. — Haverá um acordo entre nós. A droga chegará a vocês por um preço justo, que não convém discutir aqui e agora. Quem pagará o preço, no fim das contas, são os viciados mesmo. Desde que lhes forneçamos a droga, eles darão um jeito de conseguir o dinheiro. Percebem? — Certo, vejo que o acordo foi bom para vocês. Agora nos mostre como ele será bom para nós — pediu Johnny. — Simples, rapazes. Vocês param com as guerras entre gangues e põem todo mundo no trabalho de distribuição e venda, respeitando os territórios de cada um. Você, Angus, vai manter seu pessoal nos limites do Harlem e Johnny limitará o dele ao Bronx. Cada um terá sua área de venda e o que terá de fazer será apenas estimular o consumo e coordenar as vendas. Nós estaremos na retaguarda para 127 providenciar toda a mercadoria que vocês possam precisar. Estão entendendo? Os dois líderes de gangue pensaram por instantes. O que Andy dizia tinha alguma lógica, mas já fora tentado antes. Não havia como impedir que as gangues rivais se enfrentassem. Angus comentou isso. Johnny concordou com ele. Andy sorriu matreiramente, lembrando-se que seu pai pensara naquilo também. — Bem, rapazes, seus homens gostam de guerrear. É próprio deles, não? — Sim, não há como segurá-los — comentou Angus. — Sim, gostam de sair nos sábados à noite, chutando traseiros negros. Sem ofensas, é claro — corrigiu em seguida Johnny, diante do olhar ofendido de Angus. — Isso terá de acabar — frisou Andy. — Como? — quis saber Angus. — Temos de fazê-los canalizar toda essa vontade de brigar numa outra direção. — Como assim? — insistiu Angus. — Arrumando um inimigo comum. Se os dois lados tiverem um inimigo comum para combater, vão se unir ao invés de se enfrentarem. Johnny e Angus trocaram um olhar de visível entendimento. A ideia de Andy tinha sentido. A questão agora era descobrir quem seria esse inimigo comum. Os dois olharam ao mesmo tempo na direção de Andy. — Quem seria esse inimigo? — indagou Angus. 128 — Só temos um inimigo comum — mencionou Johnny. — A Polícia. — Exato! — confirmou Andy. — Todo o Sexto Distrito — lembrou Johnny. — Principalmente aquele bastardo do Inspetor Joe Bradford. — Esse é o pior de todos. — Gostaria de pôr minhas mãos nele. — E eu de arrancar-lhe o coração com as próprias mãos. Diante deles, Andy olhava-os com satisfação. Havia conseguido seu objetivo conforme seu pai havia previsto. Os dois líderes de gangues já mostravam que havia um elemento capaz de uni-los. — Perceberam, rapazes? — observou ele. Os dois se voltaram para ele. Pensaram por instantes, depois começaram a rir. — Sim, percebemos — comentou Angus. — Você tem toda razão, carcamano — acrescentou Johnny. — Só que Joe Bradford é um só e logo será morto. — Mas a ideia não é matá-lo. E fazê-lo provocar a ira de suas gangues contra ele, infernizar-lhe a vida ao máximo, mas não matá-lo. Joe será mais útil vivo do que morto. Perceberam? Desta vez os dois não demonstraram estar muito certos do que Andy pretendia. — Joe Bradford será importante enquanto canalizar toda a raiva e a agressividade das gangues, perceberam? 129 Enquanto seus homens odiarem Joe e mantiverem a ideia fixa de vê-lo morto, não desejarão brigar entre si. — É... Tem lógica — comentou Angus. — Só que, mesmo assim, ele não vai resistir ao desejo de tantas pessoas desejando vê-lo morto. Cedo ou tarde, alguém vai pegá-lo — mencionou Angus. — Não se nós nos anteciparmos, avisando-o de todas as possíveis emboscadas que forem preparadas contra ele. Compreenderam? Os dois líderes criminosos olharam-se por instantes, depois começaram a balançar suas cabeças num sinal de aprovação. — Muito esperto! — comentou Angus. — Pode funcionar — concordou Johnny. — Vamos trabalhar como anjos da guarda daquele bastardo. Isso vai ser muito interessante. Ao invés de matálo, vamos mantê-lo vivo. — Até o momento em que encontrarmos outro para substituí-lo, não? — Exato, rapazes! Vocês pegaram bem o espírito da coisa — elogiou Andy. — E quando começaremos esse plano? — questionou Johnny. — Antes de qualquer coisa, precisamos estabelecer uma trégua, fixar uma data para que ela seja iniciada e tratarmos de fazer tudo que for necessário para que ela seja respeitada. E nisso teremos de ser rigorosos — frisou bem o gângster. 130 — Nisso ele tem razão. Se deixarmos que a trégua seja quebrada, em pouco tempo voltaríamos ao estágio atual — ponderou Angus. — Exato. Não permitam que isso aconteça sob pena de termos grandes prejuízos. — Entendo — afirmou Johnny. — Temos um acordo então, cavalheiros? — indagou Andy, pondo sua mão aberta sobre a mesa, com a palma para baixo. Angus e Johnny mediram-se por instantes. Depois, com decisão, Angus pôs sua mão sobre a de Andy e Johnny, a dele sobre a de Angus. — Bebamos a isso, sócios — falou Andy, fazendo um sinal para um de seus homens. Um furgão se abriu. Um grupo de garçons desceu com bandejas e travessas, levando-as para a mesa. Os homens presentes no armazém sorriam satisfeitos. 131 CAPÍTULO 2 Joe e Matt haviam encerrado aquela ocorrência e circulado pelas ruas do bairro, percorrendo um caminho aleatório, decidido no momento. Passava um pouco das oito. — Quero comer um bolinho — falou Matt. — Vamos parar na confeitaria. — E eu parecido de um café imediatamente. Acho que ando com algum problema de saúde. Sempre que enfrento uma situação como essa que passamos, fico com vontade de provar alguma coisa doce. — Doce? Não será diabetes? — E eu sei lá? Como é isso? — Não sei, mas tem alguma coisa a ver com açúcar. — Dane-se! Pelo menos até agora não me incomodou. Pararam o carro próximo da porta da confeitaria. Joe deixou o rádio ligado. Do balcão poderiam ouvir algum chamado. Fizeram os pedidos e aguardaram até que fossem servidos em bandejas individuais descartáveis. Retornaram ao carro. Deixaram as bandejas sobre o capô, enquanto comiam. — Vamos falar sério agora, Joe. Quando vai se decidir a pedir a maldita aposentadoria? — Diabos, Matt! Não sei por que todo mundo se julga no direito de me questionar quanto a isso. Sei que terei de sair logo ou serei aposentado compulsoriamente, mas ainda me sinto bem. Sinto-me útil, com vigor, alerta e com 132 experiência suficiente para livrar-me dos perigos. Por que diabos acham que eu me sairia melhor atrás de uma escrivaninha, anotando queixas de velhinhos roubados? — Ei, calma! Sou eu, seu parceiro Matt, lembra-se? Não quis provocá-lo, só lhe fiz uma pergunta. — Ok, esqueça! Acho que ainda estou tenso por causa daqueles malditos que tentaram nos caçar. Já vai passar. Deixe-me comer meu bolinho sossegado. Matt deixou-o quieto. Nos últimos dias, Joe andava meio tenso mesmo e o melhor a fazer nesses momentos era deixá-lo em paz. Imaginava que não devia estar sendo fácil para ele, acostumado à ação e ao trabalho nas ruas, enfrentar a expectativa da aposentadoria. Era um patrulheiro, um vigilante com distintivo, um caçador de recompensas no velho estilo do Oeste. Possivelmente teria sido um delegado federal ou um xerife na reencarnação passada. Nada o fazia se sentir tão bem do que estar que no meio da tensão e do perigo. Agora se aproximava o momento em que o único perigo que ele conheceria seria o de atravessar uma rua ou deparar-se com uma gangue de viciados, ao sair do banco com seu pagamento. Lamentava isso. Lamentava pelo amigo, a quem devia a vida pelo menos meia dúzia de vezes. Joe já se arriscara inúmeras vezes para salvar Matt e o que talvez no fundo também incomodasse Matt era saber que jamais encontraria alguém tão firme e tão dedicado quanto Joe. Com ele sentia-se protegido, indestrutível. Já haviam enfrentado tiroteios memoráveis e era um alívio ter 133 Joe do lado, com um AR-15 nas mãos ou uma escopeta de grosso calibre, distribuindo certeiros balaços. Patrulhar as ruas iria tornar-se mais perigoso após a saída de Joe. Preocupava-se com isso, da mesma forma como se preocupava com o futuro do amigo. O que Joe sabia fazer, afinal? O que iria ser quando o aposentassem? Muitos já o haviam convidado para trabalhar como detetive particular, instrutor de equipes de segurança, preparação de agentes de empresas que prestavam serviços no Oriente Médio, tudo dentro do ramo que ele dominava tão bem. A questão era que o trabalho fácil e sem risco jamais agradaria Joe, acostumado a muita adrenalina do sangue, dia após dia com as mãos cheirando pólvora. Esse era o perfume preferido do inspetor. — Joe, soube que o Rusty está vendendo o bar. Ouviu falar alguma coisa também? — Está vendendo. Ofereceu-me — respondeu Joe, num tom de voz que causou estranheza em Matt. Olhou-o, intrigado. — Ele o ofereceu a você? — Sim, até me fez uma proposta irrecusável. — Que tipo de proposta? — Uma parte de entrada e o restante parcelado em até um ano. — Rusty está mesmo com vontade de vender. O rosto de Joe tornou-se triste e sombrio. — Não, Matt! Ned está morrendo. — Morrendo? Como assim? — surpreendeu-se Matt. 134 — Lembra-se dos ferimentos que ele sofreu naquele acidente que acabou com a carreira dele na Polícia? — Claro que me lembro. Ele acabou sócio do Ned no bar... — Alguma coisa aconteceu durante o processo de cicatrização e em decorrência dos esforços que despendeu numa fisioterapia sem acompanhamento. Bem, não entendo muito dessas coisas de medicina. Sei apenas que um câncer instalou-se nos ossos. Agora já se espalhou pelo corpo todo. Rusty quer voltar para casa, para o Missouri, onde vai esperar a morte — falou Joe e sua voz traía uma emoção que poucas vezes Matt vira nele. Ficou em silêncio. Todos conheciam o Rusty. Possuía um bar na mesma quadra do Sexto Distrito. Para lá iam os policias de folga, os que saíam dos expedientes, os de outros distritos e até os estudantes da Academia de Polícia de Nova Iorque, ansiosos para conhecerem o ambiente onde viviam os veteranos. Tudo no bar lembrava o trabalho policial ao qual Rusty dedicara seus melhores anos de vida, até ter de afastar-se por causa de um atentado que resultou em um acidente terrível. Ter se tornado sócio de Ned o havia ajudado a se manter lúcido e em pé, após toda o sua tragédia. Estava em contato diário com os amigos, ouvia as histórias, repartia sua experiência com os novatos e fazia parecer que ainda continuava na Força Policial. Ned morrera recentemente e isso havia abalado Rusty, o que se agravou quando recebeu o terrível diagnóstico de sua doença. 135 Rusty e Joe eram muito amigos. Joe havia recebido a proposta de Rusty com o mesmo interesse com que este, anos antes, a havia recebido de Ned. Para Joe, era a única coisa que parecia atraí-lo para após a aposentadoria. Continuaria mantendo contado com todos os seus amigos. — O que você respondeu a ele? — questionou Matt. — Sobre o quê? — Sobe a compra do bar. — Rusty me disse-me que Bar do Joe seria um bom nome. Bem, eu não sei. Naquele momento, um carro estacionou ao lado deles. Um garoto com os cabelos cortados bem curtos no estilo militar pôs a cabeça para fora da janela. — Ei, Joe, está acontecendo alguma coisa lá para os lados do rio — disse ela. — Como o quê, Moicano? — Não sei dizer, mas havia muitos carros e muita gente armada por lá. — Algum confronto? — Não, algo mais parecido com uma festa. — Foram lá verificar? — Sozinhos? Nem toda a força do Sexto Distrito seria capaz de dar conta disso. Era negócio grande. Grande mesmo. — Por que não pediu minha ajuda? — Pensa que sou louco? — retrucou o outro, rindo, dado ré e saindo. 136 Bob "Moicano" Jones era um policial do Sexto Distrito também e patrulhava as ruas sozinho, disfarçado de punk. — O que acha que pode ser? — indagou Matt. — Não sei, mas adoraria dar uma olhada. — Isso normalmente acaba rápido, não? — Talvez encontremos alguma coisa ainda. O que me diz? — indagou, olhando para o parceiro. Era aquilo que tornava Joe um policial especial. Nada o intimidava. Aquela sua maldita curiosidade o levava a qualquer lugar, não importavam os riscos. Joe fizera pergunta apenas por formalidade. Matt já o conhecia bem. Ele fazia a pergunta e já tratava de pôr-se em movimento. Matt tratou de entrar logo no carro. Seu parceiro já dava partida no carro, engatando a ré e recuando a toda, fazendo as bandejas que haviam ficado sobre o capô voarem longe. Saiu cantando os pneus. *** Todo o andar de cobertura do Edifício Nevada, na Quinta Avenida, em frente ao Central Park, era ocupado por apenas um velho, servido por uma equipe de seis fiéis e antigos criados, todos conhecedores de seus hábitos e manias. Cauzio Luciano chegava aos setenta anos com grande vitalidade e uma lucidez de mente impressionante para sua idade. Desde a mais tenra idade vinha preparando seu filho, Andy Luciano, para assumir o controle definitivo da família. Após a unificação dos territórios, numa sangrenta guerra travada nos anos oitenta, a família assumira o controle de toda a cidade de Nova Iorque. Já não 137 se dedicavam mais a coisas tão simples como as máquinas caça-níqueis, as prostitutas de rua ou as loterias clandestinas. Administravam grandes conglomerados, ocultos atrás de inocentes fachadas, envolvendo corrupção e apostas no esporte, altas finanças, bolsa de valores e tráfico de armas para bandidos do mundo inteiro. Haviam relutado em entrar para os negócios das drogas, mas perceberam que era preciso uma força poderosa controlando aquele mercado ou as guerras constantes acabariam transformando num inferno a vida de todos. A cada confronto entre gangues medíocres, todas as atenções se voltavam para a Máfia, como se ela fosse a responsável por tudo. Dom Cauzio queria fugir daquela publicidade desagradável que jamais fora interessante para os negócios. Deixava para o filho um patrimônio consolidado e o domínio completo de toda a cidade. — Bom trabalho, filho! — disse-lhe o velho, assim que Andy lhe passou o relatório de tudo que acontecera na reunião. — Pelo menos neste início, tudo aconteceu conforme havia previsto, meu pai. Continuo curioso, no entanto, para saber o que tem em mente com tudo isso. — Em trinta dias faço setenta anos, Andy, e vou cumprir a minha promessa. Vou retirar-me dos negócios. Vou para a minha casa em Miami, levando meus criados e amigos e o suficiente para viver e morrer em paz. Você assumirá o controle de tudo. Será o novo Dom Luciano, Rei de Nova Iorque, como dizem os jornais. Acho que já lhe 138 ensinei tudo que sabia e que você poderia aprender. Agora é com você. — Entendi, pai, mas não vi aonde quis chegar com essa trégua entre os hispânicos e os negros. Não nos seria mais interessante se eles se matassem e nós passássemos a controlar a distribuição da droga também? Temos estrutura para isso. — Não sejamos tão gananciosos, meu filho. Há o bastante para todos em Nova Iorque. — Até o momento em que cada uma dessas partes, ou as duas, descobrir que poderia ganhar mais sem nossa ajuda. — Eles conhecem nosso poder. Não ousariam — falou o patriarca, com segurança. — Agora me deixe! Preciso descansar. Andy acatou de imediato a decisão do pai, despediu-se e foi para o elevador. Desceu até a garagem, onde o esperava uma limusine com alguns capangas. — E então, Andy? — indagou um deles. — O velho ficou satisfeito com tudo. É um grande plano. Só não concordo em repartir, quando podemos ter tudo — comentou ele enquanto entrava no carro. Três homens entraram com ele. Eram seus homens de confiança e que teriam um papel importante na família, quando Andy assumisse o comando. — Algum lugar em especial, Sr. Luciano? — indagou o motorista. 139 — Dê uma volta, Nino, enquanto conversamos. Depois vamos ao Rose Club, mas não quero chegar lá antes das onze. Enquanto o motorista cumpria a ordem recebida, Andy apontou a porta do barzinho da limusine. Um dos homens imediatamente apanhou um copo. Pôs um pouco de gelo dentro, depois serviu uísque na quantidade que o chefe apreciava. Andy tomou um gole, saboreando a bebida, enquanto pensava. A droga recebida poderia ter triplicado o seu valor, caso vendida ao consumidor final. Era isso o que despertava sua cobiça. Como dominavam toda a cidade, queria transformar isso não apenas de fachada, mas na realidade. Nem que, para isso, precisasse rachar algumas cabeças teimosas. — Uma coisa tenho de reconhecer no plano de meu pai. É muito engenhoso em um detalhe importante — comentou. — A que se refere, Andy? — indagou um dos homens. — Vai pôr juntos os dois homens mais importantes desta parte da cidade. Nada melhor para matar ratos que pôlos juntos, todos no mesmo lugar. Se conseguirmos fazer isso com os hispânicos e os negros, o resto da cidade será nosso. Os colombianos e os jamaicanos estão satisfeitos com o acordo e, depois do que fizermos, os outros grupos não ousarão tentar nada contra nós. — Começo a entender seu ponto de vista, Andy. A cidade para a Máfia, como era no início, não? 140 — Sim, antes dessa ralé chegar e tomar conta de tudo. Deixamos que eles ocupassem um espaço na cidade e agora eles querem tudo. É sempre assim. Você dá a mão, logo eles querem o braço e, quando você menos espera, eles o devoraram inteiro. Só que vamos mudar isso, rapazes, e vocês tratem de começar a pensar. Se vão ser meus conselheiros na família, é bom que comecem a pensar como tal — ordenou o rapaz, tomando mais um gole do uísque gelado. *** Johnny Perez estava de volta ao seu covil onde contara aos chefes das gangues sob seu controle o acordo que havia sido feito com os negros e com os italianos. Houve protestos, mas o líder soube convencer os mais intolerantes, acenando com a possibilidade de um lucro muito bom. — Só que vamos estar para sempre nas mãos dos carcamanos. Quando precisarmos da droga, teremos de pagar-lhes o preço que pedirem — lembrou alguém. — Isso é o de menos — afirmou ele. — O preço final quem vai pagar é o viciado. Se cinco ou dez dólares por uma dose, não importa. Em nosso lucro ninguém tocará. Como os negros estarão negociando pelo mesmo preço, não teremos concorrência. Todos trabalharão em paz e todos lucrarão. A lógica da situação era inegável. O que ninguém conseguia imaginar, no entanto, era a trégua entre as gangues, coisa absolutamente impossível. A menos que o Inspetor Joe Bradford fosse transformado no terror das 141 gangues, no pior inimigo de todas elas, na ameaça número um. — Acha que conseguiremos direcionar nosso pessoal para odiar a polícia muito mais do que as gangues rivais? — Teremos que fazer isso, rapazes, se quisermos lucrar. E haverá tanto lucro, tanto dinheiro, que nem durante toda a vida vocês conseguirão gastá-lo. Haverá carros, casas, apartamentos, mulheres, viagens, tudo que sempre desejaram. Poderão tomar banho em notas de mil — exagerou ele, incentivando-os. Para aqueles homens acostumados a sonhar grande, aqueles argumentos eram muito convincentes. — Para quando será essa trégua, Johnny? — indagou um deles. — Devemos começar a partir de agora, mas o prazo fatal é o próximo sábado. A partir daquela data, nenhum confronto deverá acontecer entre as gangues hispânicas e negras, sob nenhum pretexto e em hipótese alguma. Toda e qualquer transgressão deverá e será severamente punida e eu pessoalmente me encarregarei disso, se o chefe da gangue envolvida não tomar as providências. Espero que isso tenha ficado bem claro para todos vocês. Agora vão e espalhem a notícia — ordenou ele. A perspectiva do ganho fácil e do aumento dos lucros deixara todos muito animados. Era com isso que Johnny contava e estava dando certo. Enquanto isso, do outro lado da ilha, no Bronx, Angus Colúmbia acabara de fazer uma reunião semelhante com seus chefes de gangues. Quando 142 eles saíram, Mayrah, uma estonteante mulata de longos cabelos e incríveis olhos verdes foi levar-lhe uma taça de champanhe. Ele estava pensativo. Via o lucro fácil, mas via, também, a chance de aumentar seus domínios. — Por que está tão pensativo? — indagou ela em pé atrás da cadeira dele. Angus continuou pensativo, enquanto ela massageava suavemente os ombros dele, tirando-lhe toda a tensão das duas reuniões de que ele participara naquela noite. — O Harlem e o Bronx são tão pequenos. Não concorda, Mayrah? — Se você o diz, querido, eles são menores ainda. Por que diz isso? — Porque, para mim, para minha grandiosidade, os dois deveriam ser um só. Por que tenho de me contentar apenas com o Harlem, quando posso ter os dois? — Não sem provocar derramamento de muito sangue. Muito sangue mesmo. — Desde que não seja o nosso sangue. Talvez não apenas dominar esses dois bairros, mas toda a cidade. Afinal, nossos irmãos estão por toda parte. — São ideias perigosas, meu negro. Muito perigosas. Ele sorriu. O risco era calculado e o resultado poderia ser muito compensador. Achou que deveria pensar melhor naquela possibilidade. Por seu turno, Johnny também pensava a mesma coisa. Aqueles homens eram rivais, mas, ao mesmo tempo, muito semelhantes um ao outro. 143 144 CAPÍTULO 3 Um carro dos Lobos Vermelhos, conduzindo duas garotas, foi abordado por uma caminhonete com membros dos Águias Negras do Harlem, a poucas quadras do Sexto Distrito num sinaleiro. Tudo estava tranquilo, até que uma das garotas resolveu jogar uma lata de cerveja na caminhonete. Imediatamente alguns ocupantes desse veículo saltaram e começaram a chutar e esmurrar a lataria do carro. As garotas entraram em pânico. Os vidros do carro foram fechados e seu motorista tentou arrancar, mas o condutor da caminhonete lhe cortou a frente, empurrando-o na direção da calçada. Os outros continuaram chutando e amassando a lataria do carro. De repente, como se um vulcão explodisse inesperadamente, o motorista do carro levantou uma espingarda de canos serrados e apertou os dois gatilhos ao mesmo tempo. A poderosa descarga arrebentou o vidro lateral e atingiu em cheio o rosto de um dos negros que chutavam o carro. Dando ré, o motorista do carro ainda tentou se afastar do local, mas quem dirigia a caminhonete saltou em seguida com um fuzil AR-15 nas mãos. A primeira rajada arrebentou o motor do carro. As portas foram abertas com violência e dois garotos desceram, um de cada lado, com espingardas de canos serrados, disparandoas na direção do bando que tentava abrigar-se atrás da caminhonete. 145 — Vão me pagar por este carro — dizia o rapaz, enquanto remuniciava sua espingarda. O negro com o AR-15 disparou a segunda rajada, atingindo-o no peito e jogando-o para trás. O outro garoto levantou sua escopeta e disparou, atingindo o negro, que jogou os braços e o AR-15 para o alto, enquanto era empurrado para trás. As garotas desceram do carro e tinham nas mãos pistolas automáticas, que seguravam com ambas as mãos, enquanto disparavam contra a caminhonete, furando pneus, arrebentando vidros, fazendo rombos na lataria. Nas casas e prédios ao redor, as pessoas deitavam-se no chão, buscando proteção contra aquele inferno de chumbo. Um dos negros conseguiu apanhar o fuzil e disparar nova rajada contra o carro, perfurando a lataria, sem atingir ninguém. — Cachorros! — falou uma das garotas, apanhando uma garrafa no carro. Era um coquetel molotov. Ela acendeu o pavio e o arremessou na direção da caminhonete. A garrafa caiu sobre a cabine, estourando e jogando gasolina em chamas sobre os negros que se escondiam atrás do veículo. — Malditos chicanos! — berrou um deles, tentando apagar-se, batendo com as mãos nas roupas em chamas. O rapaz do carro aproximou-se com sua espingarda engatilhada e apontou-a para os membros da outra gangue, disparando os dois caos sem piedade. A carga especialmente preparada abriu-se num leque mortal, atingindo todos os corpos em chamas, derrubando-os. Alguns ainda ficaram se 146 contorcendo no asfalto. As garotas aproximaram-se e foram imobilizando-os com certeiros disparos de automática na cabeça. Os corpos ficaram imóveis, ardendo macabramente no meio da rua. O garoto hispânico soltou o grito de guerra de sua gangue, no momento em que o carro dirigido por Joe dobrava a esquina e freava violentamente, derrapando de lado. — Que diabo é isso? — indagou Matt, surpreso, olhando aquelas luzes estranhas que ardiam na rua. A resposta veio em seguida com uma série de disparos feitos pelas garotas, atingindo a lataria do carro. Matt agradeceu a blindagem preparada pelo Departamento de Engenharia Policial, mas estremeceu quando viu o rapaz abaixar-se e apanhar o AR-15. — Joe, ele tem um igual ao seu — gritou Matt, saltando do carro e indo ocultar-se do outro lado. — Diabos, esse brinquedinho só fica bem quando eu o disparo contra os outros, não quando os outros disparam contra mim — comentou Joe, erguendo sua arma e disparando-a antes que o outro o fizesse. Sua rajada foi certeira. Três tiros acertaram em sequência o corpo do rapaz, jogando-o contra a lataria da caminhonete. Quando escorregou para o asfalto, deixou uma trilha de sangue. — Filho de uma cadela! Maldito! — gritou uma das garotas, mirando sua automática na direção de Joe. O policial hesitou por instantes. Sempre se sentia assim quando a questão era disparar contra uma mulher. 147 Felizmente para ele Matt não tinha esse problema. Disparou sua Doze contra a garota, jogando-a para trás sobre o corpo em chamas de um negro. A outra garota começou a correr. — Pegue-a, Joe! Pegue-a ou ela não nos dará paz enquanto viver. Joe apontou o fuzil na direção da garota que corria pela rua. Sabia muito bem do que Matt estava falando. As garotas dos membros das gangues eram piores do que cobras. Se alguém matava seu homem, elas juravam vingança. Holden, um patrulheiro de rua, duvidara disso. Matara um membro da gangue Lírios Negros. A garota do morto, um dia, simplesmente entrou no carro de Holden, quando ele saía do estacionamento da Polícia. Preso ao corpo, ela levava um pacote de dinamite. A explosão transformou Holden em partículas. Nem seu distintivo foi encontrado inteiro. — Atire, demônios! — insistiu Matt, no momento em que Joe apertava o gatilho. Lá na frente, a garota pareceu ter sido puxada por uma força invisível. Se corpo arrastou-se no asfalto, ficando imóvel, numa posição grotesca e retorcida. O disparo secionara sua espinha e abrira um rombo em sua barriga, jogando para fora tudo que estava lá dentro. Matt respirou aliviado enquanto remuniciava sua espingarda, engatilhando-a em seguida. Avançou na direção dos corpos que se espalhavam pela rua. Joe seguiu-o, após trocar o pente de sua arma. — Pensei que não fosse atirar — comentou Matt. 148 — Você sabe como me sinto a respeito de matar mulheres. — Pois então não pense nelas como mulheres. Pense nelas como guerreiros, que é o que elas são, na verdade. O som de sirenes aproximando-se indicava que outros carros respondiam ao chamado. Mas só apareciam agora que o tiroteio cessara. — O que temos aqui? — indagou alguém, com um megafone. — Uma besta de megafone! — respondeu alguém. — Quem disse isso? — insistiu o policial com o megafone, enquanto todos os outros riam. As ambulâncias chegaram em seguida. Joe e Matt foram examinar os estragos no carro deles. O Capitão chegou também e, assim que tomou conhecimento do que acontecera, foi ao encontro dos dois. — Muito bem, rambos do meu distrito: que diabo aconteceu aqui? — Uma rusga entre quadrilhas, capitão — explicou Matt, percebendo que Joe afastara-se para não demonstrar sua irritação para com o capitão. — Quando chegamos, estavam todos mortos — acrescentou Joe. — E quem disparou essas balas contra a viatura? Algum defunto por acaso? — Acho que foi alguém nos seus últimos instantes de vida, capitão. Alguém atirou em nós e revidamos, atirando de volta — explicou Matt, tentando consertar. 149 — Espero que esteja falando a verdade, Matt. Seria uma pena ter de puni-los por excesso de força. Joe não resistiu. Saiu de trás de seu carro e caminhou até ficar cara a cara com o capitão, olhando-o nos olhos. — Quando foi a última vez que fez uma patrulha nesta região, capitão? Uma patrulha de verdade? — indagou, irritado. — Cuidado com esse tom de voz, inspetor. Não estou gostando dele. — E eu muito menos de suas insinuações. Já não basta bancar o alvo dia e noite nestas ruas? Temos de aguentar isso? Matt procurou ser diplomático, abraçando o capitão e levando-o dali, antes que Joe perdesse a calma. *** Um grupo de policiais que acabava de sair do turno da noite entrou no bar com ar cansado e a tensão refletida em seus rostos. Quando chegaram ao balcão, Rusty já servira a bebida preferida de cada um deles. — Rusty, se minha mulher soubesse de meus gostos como você sabe, eu seria um homem feliz — comentou um deles. — Como foi a noite, rapazes? — indagou o ex-policial e dono do bar. — O mesmo inferno de sempre — falou Boyle, tirando o quepe e esfregando uma das mãos nos ralos cabelos. — A coisa esteve feia lá pelos lados da Mayflower. — Algum dos nossos? 150 — Não, para azar dos malditos bastardos. Tentaram brincar de caça ao coelho adivinhe com quem... — Joe Bradford? — Ele mesmo. O bastardo é mais liso que uma cobra d'água. Ele e Matt despacharam uma porção deles para o inferno. Depois ainda foram encarar um tiroteio aqui perto. Fizeram o diabo! — É... Joe vai fazer falta quando sair — comentou Rusty, mas ninguém mais o ouvia, ocupados com suas bebidas. Rusty foi até o fim do balcão, onde um velho e grisalho ex-policial bebia sozinho uma cerveja em lata. — Como eu estava lhe dizendo, Rusty, parece que alguma coisa grande aconteceu lá para os lados do rio esta noite. Italianos, chicanos e negros encontrando-se sem tiros nem mortes — comentou Allan White. — Tem alguma ideia? — Nenhuma. — E o resto dos rapazes? — Não falei com nenhum deles. Esperei encontrá-los aqui. — Ficarei atento. Alguém deverá saber o que houve. Rusty retornou ao balcão, onde os policiais terminavam suas bebidas. Repetiu-lhes a dose. — O que houve lá para os lados do rio, pessoal? — indagou ele. — Nada que saibamos. Parece que houve uma reunião. O Moicano passou por lá, mas muito de longe. Joe e Matt 151 foram ver de que se tratava, mas quando chegaram lá, estava tudo calmo e vazio. — Ninguém tem ao menos uma ideia do que esteja acontecendo? — Não sabemos ao certo, Rusty, mas estávamos justamente comentando isso. À medida que a noite avançava, ao invés de aumentarem as confusões, como sempre acontece, foram diminuindo. Dava para sentir nos ossos que alguma coisa estava acontecendo. — Estranho, não? — comentou Rusty com ar pensativo. Quando a madrugada chegou e avançou pela noite, todos os policiais tinham a mesma história para contar. Alguma coisa estava acontecendo e eles desconheciam. Era como se uma trégua tivesse sido decretada entre as gangues. Essa ideia não saía da cabeça de Rusty, à medida que outros policiais deixavam seus turnos e comentavam a mesma coisa. Passava um pouco das duas da manhã, quando Joe e Matt chegaram. Normalmente eles chegavam quando o bar estava fechando, aos primeiros clarões da manhã. — Que diabos estão fazendo aqui tão cedo? — indagou ele. — Deram para beber em serviço agora? — Rusty, está a coisa mais estranha lá fora. Tudo está em paz, nenhum tiroteio depois da meia-noite, todo mundo se respeitando como se estivéssemos num colégio de freiras — comentou Matt. 152 — Acham que isso tem alguma coisa a ver com a reunião lá na beira do rio? — Não sei, mas está tudo muito esquisito — acrescentou Joe, sem estranhar que Rusty já tivesse conhecimento do assunto. Além de aquele ser um bar frequentado por policiais, o próprio Rusty tinha um rádio ligado direto com a Polícia, acompanhando as ocorrências, quando tinha tempo. — O que acham que pode estar acontecendo? — insistiu Rusty. — Não sei, talvez eles tenham resolvido fazer as pazes — respondeu Joe, apanhando a cerveja que lhe fora servida e bebendo no gargalo. — E aqueles patifes conseguirão ficar sem atirar uns nos outros? — continuou Rusty. — Se não puderem atirar uns nos outros, vão ter que encontrar novos alvos — lembrou Matt. Rusty e Joe olharam na direção dele com ares preocupados. Se os bandidos não fossem atirar uns nos outros, quem seriam, então, seus prováveis alvos? Os três haviam chegado àquela conclusão ao mesmo tempo. — Acha que estão tramando alguma coisa em conjunto? — indagou Matt preocupado realmente. Enquanto as quadrilhas se matavam naqueles confrontos malucos de sábado à noite, poupavam balas aos policiais. Sem isso, teriam de encontrar mesmo outra diversão. 153 — Acho bom tentarmos descobrir mais a respeito desse encontro de hoje, Matt. Poderemos estar incluídos nisso sem saber — lembrou Joe. — Eu muito mais do que você. Ainda pode aposentarse e dar o fora a qualquer momento que desejar. Eu tenho de ficar mais cinco anos ainda. Não sei se aguentarei, sendo alvo constante e sem você para me defender — falou Matt, num tom assustado e patético que emocionou Joe. — É, talvez eu o convide para ser meu sócio — comentou Joe. — Se eu e Rusty fizermos negócios — ia falando Joe, mas interrompeu quando viu um velho entrar no bar e ir até o quadro de aviso. Espetou um pedaço de papel com um alfinete ali, depois se retirou discretamente. Joe foi até lá, olhar o que ele deixara. Era um nome e um número de telefone ao lado de um anúncio do Carrasco, aquele que fazia justiça, quando a justiça falhava. Aquela era uma das mais famosas lendas da cidade, mas Joe não acreditava nela. Para ele tudo aquilo não passava de um embuste, uma forma de enganar os incautos, prometendo-lhes algo que jamais teriam. Para ele, eram como os pastores na televisão, prometendo o reino dos céus como se Deus lhes tivesse dado a exclusividade na venda dos ingressos ou dos lotes. Quando retornou ao balcão, Rusty o olhava com interesse. Joe podia sentir em seus ossos que ele sabia alguma coisa sobre aquela história toda, mas jamais a contaria. 154 — Mais um recado para o Carrasco — comentou Joe. — Sabe que em toda parte nesta cidade existe isso. Alguém verá e ligará para lá, passando um trote e... — Há trinta anos que ouço falar no Carrasco, Joe, e até agora não ouvi ninguém reclamar ou dizer que tenha sido enganado por causa disso. Se há algo que é respeitado nesta cidade, pode ter certeza que é ele. — Mas é uma lenda, Rusty. — E de onde surgem as lendas, Joe? O que as mantém vivas? — indagou Rusty desafiador. — Vamos deixar esse assunto de lado. Estou considerando seriamente sua proposta e, se tudo der certo, acho que vou comprar seu bar — falou Joe. — Vai ser o melhor negócio de sua vida, Joe. Depois disso, só precisará arrumar uma mulher que o tolere. — Tive três e todas as três me deixaram. — Porque você era um tira e tiras são péssimos maridos. Quando tiver o bar, será um empresário. Verá como sua vida mudara. Terá mais tempo para dedicar-se a ela, para fazer-lhe carinho e... — Pode parar por aí mesmo! Não adoce tanto a minha boca. O Matt aqui acha que estou tendo problemas com o açúcar — riu Joe, puxando Matt para uma das mesas. 155 CAPÍTULO 4 Aquela estranha noite afetara mais os nervos de Joe do que qualquer outra. Haviam participado de apenas dois tiroteios, quando o normal eram cinco ou até mais. Seus longos anos de experiência diziam-lhe que havia alguma coisa no ar, alguma coisa ligada àquele encontro no armazém, envolvendo italianos, hispânicos e negros. Somando-se a isso, havia o capitão. A cada momento, Joe sentia-se mais irritado e aborrecido com seu superior. Era como se, deliberadamente, estivesse forçando-o a tomar logo a decisão pela aposentadoria. — Eu pensei que você fosse explodir com o capitão lá na rua, Joe — comentou Matt. — Estive a ponto de dar-lhe um murro na boca. Pode imaginar isso? Ele está preparando alguma para mim, Matt. Eu sinto isso. Está me empurrando para a aposentadoria. Sinto que terei de fazer isso, antes de perder a calma e tudo a que tenho direito, — Fique frio! Não vá entrar no jogo dele. É esperto como uma cobra e tem ligações com o gabinete do prefeito. Brinque com ele e acabará queimado, com certeza. Acho que vou para casa, Joe. Ainda bem que esta foi uma noite calma. — Calma demais, Matt, e isso não me agrada de forma nenhuma. Sinto alguma coisa no ar. Sente o mesmo? 156 — Aqui dentro, em meus ossos, em cada uma de minhas cicatrizes — afirmou Matt. — Estou indo. A gente se vê amanhã. Matt foi embora. Joe terminou sua cerveja, acendeu um cigarro e ficou fumando ali, sozinho, olhando os policiais que bebiam, conversavam, entravam e saiam. Pouco a pouco o movimento foi diminuindo. Naquele dia, todos estavam indo embora cedo. Rusty possivelmente esperava isso. Joe aproveitou para pensar naquela proposta. Seria uma boa ideia comprar o bar? Se não o comprasse, o que iria fazer em seguida? O trabalho policial sempre fora sua vida. Enquanto pensava, viu Rusty deixar o balcão e ir até o quatro de avisos. Retirou algo dali, depois voltou ao seu posto, atrás no balcão. Apanhou o telefone e ligou. Falou por algum tempo, sem gesticular, sem demonstrar emoção. Anotou algumas coisas num papel. Após desligar, releu as anotações, dobrou o papel e guardou-o no bolso da camisa. Restavam poucos policiais no bar agora. Rusty foi passando de mesa em mesa, até chegar à de Joe. — Joe, se não se importa, gostaria de aproveitar a noite para fechar mais cedo. Parece que todo mundo resolveu descansar hoje. — Certo, Joe! Eu já estava mesmo de saída. Estou pensando seriamente em sua proposta. Talvez eu compre mesmo seu bar. Agora, pela nossa amizade, por tudo que enfrentamos juntos, conhecendo-me como você me conhece, acha que me darei bem atrás desse balcão? — perguntou, encarando o amigo com seriedade. 157 Rusty debruçou-se sobre ele e seus rostos ficaram próximos. — Joe, se você fizer tudo o que eu faço neste bar, vai se arrepender de não tê-lo comprado antes. Vai se sentir mais em casa do que em qualquer outro lugar. E com uma vantagem adicional: aqui você é o dono. Não haverá nenhum capitão pegando no seu pé, entendeu? — Acho que sim, Rusty Acho que sim — concordou Joe. Estava cansado. Despediu-se do amigo e levantou-se. Caminhava na direção da porta, quando se lembrou de que Rusty fora até o quadro de avisos. Passou por ali. Nada parecia mudado, exceto pelo fato de que o nome e o telefone, anotados num pequeno pedaço de papel e posto ali pelo velho, não mais se encontravam junto ao anúncio do Carrasco. Não podia imaginar o que Rusty faria com aquilo, mas não se incomodou com isso. Não lhe dizia respeito mesmo. Foi para casa, no bairro de Queens, um lugar tranquilo que nada tinha a ver com o inferno que rodeava o Sexto Distrito. Morava sozinho ali. Mulher nenhuma resistira muito tempo em sua companhia. Além de ser tira, Joe tinha um péssimo gênio e muito pouca paciência com mulheres. Achava que elas sempre perguntavam mais do que precisavam saber. Quando entrou e acendeu a luz, a realidade prosaica abateu-se sobre ele. As roupas espalhadas pela sala diziam que já era hora de reuni-las e levá-las à lavanderia. Na cozinha, louça suja na pia e na mesa. A 158 geladeira estava vazia, lembrando-o de que precisava ir ao mercado e comprar alguma coisa decente para pôr no estômago de vez em quando. Foi até o quarto e jogou-se na cama, pensativo. Não podia mais continuar vivendo sozinho. Tinha de arrumar alguém para cuidar da casa. Mas onde? Quem iria querê-lo? Estas eram perguntas que ele detestava fazer-se. Normalmente não encontrava respostas para elas. *** Amanhecia no Bronx. Havia muito tempo que o bairro não conhecia uma noite tão tranquila de sábado. Aquele estranho silêncio que pairou sobre as ruas, sem a presença de carros com escapamentos abertos, disparos de armas de fogo, garrafas arrebentadas nas vitrines e gritos de guerra das gangues, ao invés de tranquilizar os moradores, deixouos ainda mais apreensivos, como se uma tempestade pairasse sobre eles. Alheios a isso, os membros da gangue Selvagens da Noite havia passado toda a noite num comportado bilhar, conversando, bebendo e consumindo drogas, sendo controlados a custo pelo seu líder, que estivera na reunião com Johnny Perez. Quando todos começaram a deixar o bilhar para ir para casa, ele ainda recomendou a todos o máximo de cuidado para evitar qualquer rusga com membros de outras gangues, principalmente do Harlem. — Ei, Mody! — chamou ele. A linda e jovem morena, de pouco mais de dezoito anos, sorriu envaidecida com o chamado, destacando-se das 159 outras e indo ao encontro do chefe. As outras fizeram caretas e reclamaram entre si, mas nada mudaria a decisão de Morales. Mody fora a escolhida para passar o domingo com ele. Não apenas caía nas graças do chefe como sairia da casa dele com preciosos presentes e uma boa mesada. Morales poderia descartá-la logo no dia seguinte ou fazê-la sua companhia habitual, o que significaria uma súbita elevação na posição da garota dentro da gangue. — Quer ir comigo? — indagou ele, quando ela chegou e enroscou-se toda nele. — Como não? — respondeu ela, beijando-o no pescoço e acariciando seu rosto. — É carinhosa, Mody? — Verá que sim. — Então vamos — decidiu ele. O reluzente e novo carro do chefe da gangue estava a sua espera do lado de fora do bilhar. Alguém abriu a porta para ele entrar. Mody deu a volta e alguém fez o mesmo para ela. A garota apreciou aquelas gentilezas, sentindo-se importante. Enquanto Morales ligava o carro, ela se encostou nele e enfiou a mão por dentro de sua camisa, alisando-lhe o peito, brincando com os pêlos, beliscando seus mamilos. Lambeu-lhe a orelha, fazendo-o rir e arrepiar. — Acho que vou gostar de você, Mody! Tem fogo. Gana. Adoro mulheres assim, sabia? — Hum! Hum! — resmungou ela, com o lóbulo da orelha dele preso entre seus dentes. 160 Apesar de liderar uma gangue no Bronx, Morales morava num apartamento da Quinta Avenida, para onde se dirigiu, após sair do bilhar. Ao lado dele, Mody fazia de tudo para agradá-lo e cair em suas graças. Isso poderia significar para ela sua independência financeira. O carro entrou pela garagem. Apesar de os primeiros raios de sol surgindo, a garagem ainda estava às escuras, principalmente porque as luzes estavam apagadas. — Demônios! Que diabo está havendo aqui? Vou ter de chutar alguns traseiros para que isso não aconteça de novo. Estamos no escuro — reclamou ele. Manobrou seu carro até a vaga da garagem. Quando desligou, Mody debruçou-se sobre ele, beijando-o ardentemente, esfregando seu corpo jovem e tenro contra o dele, provocando-o. Morales esqueceu-se logo da escuridão e tratou de aproveitar o que a garota oferecia-lhe. Abriu-lhe a blusa com um puxão que arrebentou botões. Livrou-se do sutiã dela e alisou seios firmes, com bicos pontudos e salientes. — Que linda você é! — murmurou ele, com a voz rouca. Naquele momento, uma potente lanterna foi acesa e a luz iluminou todo o interior do carro. — Maldição, homem! — gritou ele. — Desligue logo essa porcaria! — ordenou ele, abrindo a janela do carro como um possesso. Antes que compreendesse o que estava acontecendo, alguém encostou uma espingarda de cano serrado em sua 161 testa e apertou o gatilho. Sangue, cabelos e miolos de Morales Bill foram arremessados contra os seios frescos e intocados de Hellen "Mody" Garcya. *** No prédio condenado e abandonado, na parte velha do Harlem, a festa chegara ao fim. Homens e mulheres espalhavam-se pelo apartamento, muitos ainda nus, alguns delirando ainda pelo consumo exagerado de drogas e álcool. Na suíte, sobre a cama, Morgan "Tripé" estava estendido com três garotas amontoadas sobre seu corpo. Entre suas pernas descansava o impressionante membro que lhe garantia o apelido. Estavam todos exaustos. A festa fora completa e Morgan deu-a como forma de manter seus homens longe dos problemas que fatalmente haveria naquela noite, caso ficassem nas ruas. Estava apoiando Angus Colúmbia em seu plano de dedicar a energia das gangues para fazer dinheiro. Naquela noite não havia poupado gastos, fazendo ver a seus comandados como poderia ser a vida se todos se empenhassem em manter a trégua e em trabalhar corretamente. Todos haviam sido convencidos, seduzidos pelas promessas de riqueza e boa-vida. Os primeiros raios de sol entravam pelas janelas, iluminando os corpos exaustos. A porta dos fundos abriu-se silenciosamente. A faxineira entrou, com os cabelos caindo sobre o rosto e uma aparência geral masculinizada. Atravessou a cozinha e a sala e foi direto à suíte. Uma das garotas acordou. A mulher fez-lhe um sinal para que fizesse silêncio e saísse do quarto. A 162 garota obedeceu. A faxineira acordou as outras e repetiulhes o gesto, sempre pedindo silêncio e dando a entender que Morgan não queria ser acordado. As jovens deixaram o aposento silenciosamente. A faxineira fechou a porta e olhou o impressionante negro estendido na cama. Aproximou-se dele. Morgan resmungou alguma coisa e abriu os olhos. Virou-se para o lado e apanhou uma garrafa de uísque, tomando um gole. Só então percebeu a presença da faxineira. — Quem diabo é você? — indagou ele. — Vim fazer a limpeza — respondeu a outra pessoa, com uma voz masculina grave e ameaçadora. Tomado de surpresa, Morgan quis reagir, mas uma pistola automática com silenciador foi enfiada em sua boca, provocando-lhe ânsia de vômito. Uma foto foi posta diante de seus olhos. Era de uma linda e jovem garota loura, de olhos incrivelmente azuis e um rosto delicado de anjo. — A garota tinha apenas dezesseis anos e você a estuprou de todas as formas possíveis, depois a entregou a seus capangas. Ela está louca hoje, internada num sanatório de onde jamais sairá. — Espere, homem! Vamos negociar — ia propondo Morgan, mas sua boca encheu-se de fumaça quando o gatilho foi apertado. Miolos e sangue ficaram grudados no travesseiro, enquanto ele se imobilizava, com os olhos arregalados. Seu matador limpou o cano da arma no lençol da cama, depois a guardou sob o vestido, tirando dali uma navalha. Sem 163 demora alguma, cortou o descomunal membro de Morgan "Tripé" e enfiou-o dentro da boca aberta do gângster. Saiu sem ser visto, da mesma maneira como havia entrado. *** A notícia de que havia sido decretada uma trégua entre as gangues com a intermediação dos italianos espalhou-se rapidamente pela cidade, sensibilizando as gangues dos outros bairros. Todos acabaram procurando os italianos e negociando a mesma coisa. Assim, a trégua estendeu-se por toda a cidade e os Distritos Policiais tiveram dias atípicos, atendendo brigas domésticas e roubos avulsos. Nada envolvendo gangues acontecia e isso incomodava os policiais. Andy Luciano, no entanto, jamais se sentira tão importante. Todo o tempo seu pai tivera razão. As gangues de toda a cidade estavam comendo em suas mãos. O controle da droga devolvia à Máfia uma importante fatia dos lucros no setor, ao mesmo tempo em que resgatava sua importância histórica no contexto da marginalidade de Nova Iorque. Era justamente esse ponto que o tornava o homem mais poderoso da cidade naquele momento. Seu pai o havia preparado corretamente. Andy era ambicioso, mas sabia avaliar suas posições. Nova Iorque era sua. As gangues estavam sob seu controle. Com elas, poderia estender seus domínios para Nova Jérsei e para os territórios do Estado ainda não dominados por nenhuma das famílias. 164 Estava discutindo isso com seus conselheiros, uma semana após a reunião que decretara a trégua que, a partir daquele sábado, não mais poderia ser violada. — Isso não muda meus planos. Só estou reavaliando minha estratégia. As gangues serão nossas aliadas. Com elas estenderemos nosso poder sobre os territórios vazios, fornecendo a droga para as gangues do interior do Estado. Vamos dominar todos os territórios vazios existentes ao nosso redor e negociar aqueles que já estiverem ocupados. — E o que seu pai diz de tudo isso? — questionou um deles. — Em três semanas ele se retira e eu assumo. Acha que preciso prestar contas de meus atos a ele? Não terei carta banca, Lino. Eu serei Dom Luciano, percebeu? — Poderíamos fazer algo para marcar esse dia, não? Se você quer o apoio das quadrilhas, por que não promove uma grande festa, convidando os líderes e seus principais assessores. Comemoraremos o aniversário de seu pai e sua posse como novo Padrinho. — Gostei da ideia, Lino. Providencie. Não poupe gastos. Será um importante investimento para nós. Agora vamos tratar da segunda fase do nosso plano. Falei com Perez e com Angus. Os membros das gangues estão inquietos. Aproveitamos a semana de trégua para espalhar por toda parte que Joe Bradford é o responsável pela morte de Morales Bill e de Morgan "Tripé". Algumas ações começam a ser preparadas contra o policial. Vamos ver como isso funciona na prática. Se der certo, usaremos tiras 165 de todos os Distritos para canalizar a agressividade dos delinquentes, mantendo-os sob controle. — Quando começam a usar Bradford como alvo? — A partir de hoje. Só espero que não o matem na primeira tentativa — falou Andy, rindo a valer. Os outros riram juntos. A alegria do futuro chefão era a alegria de todos. *** — Telefone para você, Joe — avisou Matt, passandolhe o fone. Aquela estava sendo uma noite de tédio no Sexto Distrito. Nada acontecia. Os bairros estavam em paz. Em algumas ruas, os moradores haviam posto cadeiras nas calçadas para conversar e apreciar a noite. No Sexto Distrito, Joe sentia em suas cicatrizes alguma coisa pairando no ar e não gostava nada daquilo. Atendeu, identificando-se: — Joe — disse uma voz feminina aveludada e doce. — Se for passar pela Mayflower esta noite, olhe no telhado do Mac's, na esquina da Daisy Street. Alguém poderá estar a sua espera lá. — Quem é você? Um riso cristalino e cinematográfico ouviu-se do outro lado. — Somos os olhos da cidade, Joe, para sua proteção — afirmou a voz, desligando. — Que diabos! — murmurou ele. — O que houve, Joe? — indagou Matt. 166 — Acho que já demoramos demais para iniciar nossa ronda, Matt. Vamos começar pela Mayflower hoje — disse ele, apanhando o fuzil AR-15 que havia acabado de lubrificar e montar. Matt entendeu logo que o telefonema tinha alguma coisa a ver com tudo aquilo. Apanhou sua escopeta e seguiu-o. Ao invés de rumar para o estacionamento, Joe chamou o elevador. — Aonde vamos? — quis saber o parceiro. — Ao arsenal. — Munição? — Não, uma luneta com visor noturno. — Vai fazer alguma emboscada? — Não, vou livrar-me de uma. — Tem algo a ver com aquele telefonema? — Sim. Alguém me ligou informando-me que alguém nos espera no alto do Mac's, na Mayflower. — Por que nós? — Porque desconfio, meu parceiro, que há muita gente que não gosta de nós nesta cidade, só isso. — É! Acho que você tem razão — concordou Matt, seguindo-o. 167 CAPÍTULO 5 Joe e Matt já estavam no carro, preparando-se para sair, quando o capitão aproximou-se, acompanhado de um desconhecido, fazendo sinais para que Joe esperasse por eles. — Que diabos ele vai inventar agora para me atormentar? — resmungou Joe, aborrecido. — Não fique nervoso, parceiro! Mantenha a calma! — recomendou Matt, temendo que Joe explodisse com o capitão a qualquer momento. — Joe e Matt, este é Buck Mortimer, jornalista do Sunday, que vai acompanhá-los nas rondas desta noite — informou o capitão, debruçado na janela do motorista. Joe e Matt entreolharam-se sem nada entender. Joe encarou seu superior em seguida. — Capitão, ele é um civil — observou surpreso. — Buck Mortimer já cobriu algumas guerras pelo mundo afora e tem experiência de combate. Irá com vocês como parte de um programa desenvolvido diretamente pelo prefeito e pelo comissário de Polícia, visando estreitar as relações entre nós e a imprensa. Buck foi altamente recomendado e, apesar de saber dos riscos que corre, quero que coloquem a vida dele acima de qualquer outra coisa, entenderam? Joe ia dizer alguma coisa, mas Matt pôs a mão no braço dele e apertou, dando a entender que era para ele se 168 calar. O inspetor engoliu seco, enquanto Buck Mortimer olhava-os com expectativa, esperando uma decisão. O inspetor virou-se, então, estendendo o braço e destravando a porta traseira do carro. — Entre, Buck! Seja bem-vindo ao inferno! — falou Joe, esperando que ele entrasse. O jornalista mal havia se acomodado e Joe acelerou o carro, saindo em velocidade, demonstrando todo o seu descontentamento. Se a política do capitão com tudo aquilo era forçar Joe a pedir a aposentadoria, estava conseguindo. Antes que acabasse fazendo uma besteira com a cara do capitão, precisava pedir seu afastamento. Um clima pesado instalou-se no interior do carro. Buck Mortimer era um jornalista experiente, sabia que correria riscos estando naquele carro, principalmente num sábado à noite, mas reconhecia que não havia melhor ponto de observação do que aquele. Alguma coisa estava acontecendo na cidade. Uma coisa estranha que estava tirando as gangues das ruas e transformando-as em local seguro e tranquilo para os moradores. Nova Iorque, no entanto, jamais fora daquele jeito. Podia sentir no ar que alguma coisa estava para acontecer. Era a mesma sensação que precedia as batalhas, nas guerras que havia coberto pelo mundo todo. Joe não ligou para a presença dele no carro. Pelo contrário, deixou bem claro que ela não apenas o aborrecia, mas incomodava também. Matt, por outro lado, concluiu 169 que Buck nada tinha a ver com tudo aquilo e que poderiam colaborar um com o outro em seus respectivos trabalhos. — Bem, Buck, não sei se nas coberturas que fez chegou a circular de carro na zona de batalha. — Sempre de tanque ou blindado, jamais de carro. — Então vamos começar do princípio. Meu nome é Matt e o nosso motorista, que, diga-se de passagem, está de péssimo humor, é o Inspetor Joe Bradford, uma lenda viva na Polícia de Nova Iorque. — Já ouvi falar dele — afirmou Buck. — Ótimo! Deve saber, então, que Joe está em vias de se aposentar e isso está dando nos nervos dele. Por isso não o estranhe. Continuando... Estamos numa viatura policial sem identificação, utilizada em patrulhas. Em caso de tiroteio, o melhor local para você ficar é deitado no fundo do carro. As laterais e o teto são reforçados com blindagem que seguram a maioria dos projéteis. — Exceto do AR-15 — acrescentou Joe. — Obrigado por lembrar-me, Joe. Como ele disse, Buck, exceto do AR-15. — Nesse caso, como faço para me proteger? — Se alguém estiver atirando em você com um AR15? — indagou Joe. — Sim. — Reze, reze muito para que o atirador tenha má pontaria. — Joe está brincando — corrigiu Matt. — Nesses casos, saia do carro e fique do lado oposto ao do atirador. 170 Terá duas blindagens para protegê-lo. Elas não deterão as balas, mas amenizarão os estragos, pode ter certeza — esclareceu Matt. — E se alguém atirar um coquetel molotov no carro, trate de sair e correr para longe também — acrescentou Joe. — Vocês correm esses riscos todos os dias? — surpreendeu-se o jornalista. — Principalmente aos sábados — informou Matt. — E o que acham que está havendo na cidade? O que significa essa trégua dada pelas gangues? — Significa muita encrenca a caminho, pode ter certeza — adiantou Matt, percebendo que Joe dirigia o carro por uma rua paralela à Rua Mayflower. Depois, à altura da esquina com a Daisy Strett ele parou. Desceu do carro, levando seu AR-15. — O que está havendo? — indagou Buck. — Rotina, apenas rotina — respondeu Matt, apanhando a escopeta. — Fique no carro. Há perigo do lado de fora. Buck olhava para os lados, sem entender onde estava o perigo. Joe havia instalado o visor noturno e a luneta em seu fuzil e agora examinava o telhado do prédio onde ficava a Loja Mac's. — Algum sinal? — indagou Matt. — Se está lá, está imóvel, ou mais para o canto. Vamos ter de fazê-lo sair, parceiro, e isso pode ser perigoso. — Como quer fazer? 171 — Vou atravessar a rua a pé e entrar naquele beco em frente ao Mac's. Você pega o carro e retorna até o começo da Mayflower. Avança devagar. Quando o bastardo lá em cima puser o nariz para fora, eu o acerto. — Se houver um lá, não? — Não acho que foi um trote, Matt. Não mesmo. — Ok, parceiro! Vou voltar a fazer o que me pede. E o jornalista? — Deixe-o quieto. Só o mande ficar de cabeça abaixada. Vamos fazer-lhe uma surpresa. — Deixe comigo. Enquanto Matt retornava ao carro e fazia o retorno para ir tomar a Mayflower em seu começo, Joe enfiou o fuzil sob o paletó e caminhou bem junto à parede, atravessou a rua e entrou no beco. Dali, no escuro, podia observar todo o telhado da loja diante dele. Não via sinal de alguém lá. Pelo visor de infravermelho podia observar tudo sem problema. Começou a pensar que tudo poderia não passar de um trote apenas, mas, subitamente, viu o que parecia ser fumaça de um cigarro ou um baseado, subindo atrás da mureta, no alto do prédio de três andares. Aquela fumaça indicava a presença de alguém lá. Destravou o fuzil, engatilhou-o e esperou, atento a qualquer movimento. Matt já devia estar no começo da rua. A qualquer momento alguém teria de surgir lá em cima. — Bastardo filho da mãe! — murmurou ele, quando uma cabeça surgiu atrás da mureta. 172 Um homem, usando um gorro de esquiador apontou no alto do prédio, olhando a rua. Depois se abaixou para, em seguida, tomar posição de tiro com um fuzil especial de longo alcance e possivelmente com projéteis de hipervelocidade. Matt estava em perigo, por isso tratou de agir rápido. Mirou cuidadosamente e disparou. Viu o gorro voar para cima, levando junto muito do conteúdo da cabeça do atirador. O som do disparo ficou vibrando na rua, ecoando estranhamente, alertando as pessoas que começavam a acreditar que estavam livres do inferno costumeiro. Matt ligou a sirene do carro e avançou a toda, ao ouvir o tiro. — Você o pegou? — indagou Matt, saltado do carro com sua escopeta engatilhada e pronta para disparar. Joe havia corrido esconder-se atrás do carro, examinando o telhado com o visor da arma. — Sim, arranquei a cabeça do bastardo. — Algum sinal de mais alguém? — Não, havia apenas um. Vou subir lá para verificar. Chame a técnica e o rabecão. Joe atravessou a rua e entrou no beco atrás do prédio, alcançando a escada de incêndio. Ouviu passos atrás dele e voltou-se, pronto para disparar. — Sou eu — gritou Buck. — Deus do céu, homem! Não faça mais isso. — Vou subir com você. — Não, não pode. É assunto policial, área não liberada à imprensa até que a Polícia Técnica examine. 173 — Seu comissário disse ao meu editor que vocês dariam todo o apoio necessário ao meu trabalho. Joe pensou por instantes. Sabia o que aquilo significava. Se não fizesse o que ele pedia, o jornalista iria se queixar com o editor, que se queixaria com o comissário, que se queixaria com o capitão, que chamaria Joe e lhe daria o maior sermão do mundo. Não teria paciência para isso. — Está bem, mas fique atrás de mim — ordenou Joe, enroscando a correia do fuzil no ombro e começando a subir pela escada. Tudo estava em silêncio ao redor. Todo o bairro parecia haver parado após aquele disparo, como se a trégua fosse coisa certa e já perpetuada. Joe não estava gostando nada disso. — Caramba! Olhe a cabeça dele lá no outro lado — apontou o jornalista, assim que chegaram ao telhado. Joe examinou o local. Havia um maço de cigarros e fósforos no piso, junto à mureta, bem como um fuzil especial para atiradores de emboscada, com mira telescópica e visor noturno. Quem estivesse na mira dele no momento do disparo dificilmente escaparia. A caixa de projéteis junto ao rifle mostrava o tipo de bala empregada, capaz de percorrer mil metros em menos de um segundo. — Rapaz! O sujeito estava mesmo preparado — observou Buck, inclinando-se para examinar o rifle. — Conhece esse tipo de arma? — indagou Joe. — Sim, é infalível. 174 De lá de cima Joe ficou olhando as viaturas que chegavam e tentando imaginar por que alguém se daria ao trabalho de montar uma emboscada como aquelas. E quem fora a misteriosa mulher que ligara alertando-o? Tudo isso apenas confirmava para ele que alguma coisa estranha, muito estranha, acontecia na cidade. *** Allan White entrou e foi direto ao seu lugar, no fim do balcão. Assim que ele sentou-se, Rusty já lhe servia sua bebida preferida. — Alguma coisa nova? — indagou Allan. — Não, tudo tranquilo. Fez um ótimo trabalho com o Morales — elogiou Rusty. — E você lidou direitinho com o Morgan. Allan sorriu, levantando seu copo, num brinde. Rusty tentou sorrir também, mas o espasmo de dor foi maior e ele fez uma careta, esforçando-se para manter-se em pé. Tirou um envelope do bolso e mastigou rapidamente um dos comprimidos. — Eu sinto muito, Rusty — murmurou Allan, percebendo a dor e o sofrimento do amigo. Rusty estava morrendo um pouco a cada dia. O câncer espalhara-se por todo o seu corpo. A amputação de um braço, que algum tempo antes teria salvado sua vida, fora recusada por ele. Queria morrer inteiro. Agora só podia combater a dor com doses maciças de analgésico, mas isso estava apressando também a sua morte. 175 — Quanto tempo ainda, Rusty? — indagou Allan, fazendo um esforço enorme para conseguir articular a pergunta. — Um mês, dois no máximo. — E o bar? — Joe está se decidindo ainda. Mas terá de aposentarse primeiro. Do modo como o capitão o pressiona, acho que ele não resistirá muito. — Acha que poderemos contar com ele? — Estou certo que sim. — Conheço-o há muito tempo. Seria ótimo poder contar com ele. É um homem decidido e de coragem, com um senso de justiça muito grande. — Eu me encarregarei de prepará-lo para o assunto, Allan. — Claro que sim, Rusty. E falando nele, olhe quem está chegando. Joe estava entrando, acompanhado de Matt e de Buck. Enquanto os dois passavam direto, Joe parou diante do quadro de avisos. Um nome e um telefonema estavam anotados num pedaço de papel que uma mulher pregava ao lado do recado do Carrasco. — Por que faz isso? — indagou ele, curioso. — Porque espero justiça. — Já esteve na Polícia? — Meia dúzia de vezes. — O que aconteceu com você? 176 — Minha filha está noiva e vai se casar daqui a três semanas. Ela é virgem. O chefe da gangue da nossa rua soube disso e ameaçou-a. Se ela não dormir com ele antes do casamento, ele matará minha filha e seu noivo. — E o que lhe disseram na Polícia? — Que nada poderiam fazer, enquanto não houvesse um crime — soluçou a mulher, com os olhos cheios de lágrimas. — E o que acha que esse Carrasco vai poder fazer por vocês? — Justiça — afirmou ela, virando-se e saindo. — Como pode ter certeza disso? — ainda indagou ele, mas ela já havia saído, deixando-o sem resposta. Intrigado, foi até a mesa, onde estavam Buck e Matt. — O que fazia lá? — indagou Matt. — Buck, você que é jornalista e deve conhecer o submundo, o que sabe sobre uma lenda urbana chamada de Carrasco? — Tanto quanto você, que é policial. Se existe ou não, não sei. É algo que se mantém ao longo do tempo. Por que pergunta isso? — Curiosidade apenas. Joe já se sentia mais à vontade com Buck. Conversaram animadamente. Buck queria saber de tudo sobre a dura vida de um policial num distrito tão perigoso como o Sexto. — Joe, telefone! — avisou-o Rusty. 177 Estranhando que alguém ligasse para ele, Joe foi até o balcão atender. — Alô, Joe! Fico contente que tenha acreditado em mim — disse aquela voz de mulher inesquecível, fazendo-o arrepiar-se dos pés à cabeça. — Quem é você? — Não seja rude, Joe. Devia agradecer-me primeiro por ter salvado sua vida. E para provar que não fiquei zangada com a sua grosseria, vou dar-lhe uma nova dica. — Quem é você? Como soube da emboscada? — Se você for até a janela e olhar disfarçadamente para a direita, vai ver um carro verde, grande, parado, com os faróis apagados, mas o motor funcionando. Adivinhe quem eles estão esperando. — Quem é você? Como sabe dessas coisas? — insistiu ele, intrigado com aquela voz e aquela inesperada ajuda. — Sou os olhos da cidade, Joe, atentos para protegê-lo do perigo — disse a voz. — Isso não quer dizer nada. Por que está fazendo isso? — perguntou, mas ouviu apenas o sinal de desligado soando em seu ouvido. — Maldita seja! — praguejou ele, batendo o telefone. — Ei, Joe, calma, ou terá de substituir quando comprar o bar — comentou Rusty. O inspetor retornou à mesa, onde Matt, pela expressão dele, percebeu que alguma coisa estava errada. — O que é, Joe? 178 — Alguém lá fora a nossa espera — informou. — E o diabo é que estou apenas com o meu trinta e oito. — Rusty deve ter alguma arma de verdade com ele — lembrou Matt. Joe foi até o balcão. — Rusty, você tem alguma arma pesada por aí? — Além da quarenta e cinco? — Sim. — Tenho um rifle Vanguard, de nove milímetros. — Tem visor noturno? — Não, mas tenho um holofote lá fora que ilumina qualquer ponto da rua. Por quê? — Tem alguém lá fora querendo brincar de tiro prático com a minha silhueta, assim que eu aparecer na porta. Rusty olhou na direção de Allan, que percebeu que havia algo errado e tratou de se aproximar. — O que está havendo? — quis saber. — Alguém com uma surpresa para o Joe lá fora. — Verdade? Por que não devolvemos a surpresa? — propôs ele, com um sorriso matreiro nos lábios. Matt e Buck haviam se aproximado. Outros policiais também. Joe Explicou-lhes o que estava havendo. Todos estavam dispostos a ajudar. — Tem certeza que é mesmo uma emboscada, Joe? — indagou Allan. — Sim, tenho — afirmou, se mencionar como chegara àquela conclusão. 179 Sabia que poderia confiar naquela voz. Já provara uma vez que não mentia. 180 CAPÍTULO 6 Andy Luciano ria alucinadamente, enquanto Valery, sua namorada, passeava nua pelo quarto, demonstrando como havia falado com Joe Bradford. Havia determinado aos líderes das gangues que toda e qualquer iniciativa de ataque a Joe deveria ser informada a ele, para que pudesse avisá-lo. Tudo estava funcionando às mil maravilhas. Naquela noite, ele já se livrara de uma emboscada na Mayflower e, dentro em pouco, estaria livre de outra, na porta do Bar do Rusty, a menos de uma quadra do Sexto Distrito. Desejou nunca estar na pele de alguém como Joe Bradford, cuja vida iria se transformar num inferno nos próximos dias, sempre com alguém o caçando, sempre na mira de algum louco. — Como me saí, querido? — indagou a garota, atirando-se na cama, sobre ele. Andy abraçou-a e beijou-a, acariciando seu corpo jovem e tentador. — Uma atriz. Uma verdadeira atriz — elogiou ele, contendo o riso. — Vamos sair e fazer alguma coisa? — pediu ela. — Claro que sim. Hoje estou muito feliz. Vá tomar um banho e vestir-se. Eu a alcanço num minuto. Só vou discutir um assunto com meus conselheiros — informou ele, saltando da cama. 181 Ela caminhou na direção do banheiro da suíte. Antes de entrar, voltou-se para ele, que vestia um roupão sobre o corpo nu. — Se eu demorar um pouquinho, você vem esfregar minhas costas? — perguntou ela, com voz melosa. — Claro que sim, querida, não apenas suas costas, como seu corpo todinho — prometeu ele. — Vou esperar, viu? Ele jogou um beijo para ela, depois abriu a porta da suíte e caminhou pelo corredor. Na sala do amplo e moderno apartamento, num dos prédios mais valorizados da Quinta Avenida, seus conselheiros conversavam. — Vamos sair, Andy? — Sim, gostaria de comer alguma coisa e depois dançar um pouco. Escolham bons lugares, depois liguem pedindo que nos esperem — ordenou ele. — Além disso, estive pensando em algo... — O que tem em mente, Andy? — indagou Lino. — Que tal oferecermos um prêmio pela cabeça de Joe Bradford. Vai dar motivação aos rapazes das gangues e infernizar a vida daquele tira. — Se fizer isso, cedo ou tarde alguém vai acertá-lo. — Não importa. Há muitos tiras no Sexto Distrito. Poderemos usar outro depois. Só para ver as coisas esquentarem um pouco. — Se quer assim, eu cuido disso — prometeu Lino. — Não seja miserável com o prêmio, Lino. Essas gangues estão nos dando um lucro fantástico. 182 — Sem dúvida, Andy. Subimos o preço em vinte por cento e, mesmo assim, as compras continuam aumentando. Todo mundo tem droga na porta de sua casa. Até por telefone estão fazendo pedidos — informou Nuno Ascante, o conselheiro e contador. — Até compras com o cartão de crédito foram feitas. Estão facilitando de todas as formas e o Departamento de Narcóticos anda tonto, sem saber o que fazer. — Conseguimos montar uma grande operação, rapazes. Quero que estudem a melhor forma de aplicarmos isso. Nuno, analise aquela proposta do Banco do Caribe, acho excelente a ideia que deram. Agora, rapazes, vamos aproveitar a noite. É madrugada de sábado, é hora dos lobos uivarem. *** Quatro rapazes fumavam nervosamente no interior do carro. Todos portavam armas de grosso calibre e mantinham seus olhos fixos na entrada do Bar do Rusty. Assim que Joe Bradford pusesse o nariz para fora, receberia mais balas do que seu corpo poderia comportar. — Caramba! Que demora! — protestou um deles. — E se entrássemos lá e acabássemos com todos eles? — Seria ótimo! Quanto menos porcos no distrito, melhor para nós. Se não podemos atirar nos chicanos, vamos usar os tiras como alvo. — Calma, pessoal! Joe Bradford está sendo caçado porque deve algo a nós. Matou Morgan "Tripé" e pagará por isso — falou o motorista do carro, o mais calmo dos quatro. 183 — Vou lá dar uma olhada — insistiu um deles. — Deixe-o ir, Job. Com esse cabelo curto e essa cara de honesto ele parece até um tira da academia. — Sim. Dou uma olhada e já digo o que poderemos fazer. E se esse bastardo resolveu dormir na mesa do bar? Ficaremos aqui até o dia amanhecer. — Ok, Ned, vá lá, então — decidiu Job. — Só não vá inventar nenhuma gracinha, entendeu? — Deixe comigo, Job — falou o rapaz, tirando o casaco comprido que usava e enfiando a camisa para dentro da calça, antes de descer. Quando caminhou para o bar, tinha a aparência inofensiva de um calouro da Academia de Polícia, igual a muitos outros que passavam pelo bar todos os dias. Assim que entrou, fechando a porta atrás de si, ouviu meia dúzia de estalidos e os canos de diversas armas serem encostados em sua cabeça e nuca. — Nenhum movimento, filho de uma cadela, ou arrebento sua cabeça e colo-a na parede — rugiu Joe. — Quem é você? — Sou Ned Jenkins, calouro da Academia de Polícia — respondeu o rapaz assustado e pego de surpresa. — Jedah Hawk, conhece este bastardo aqui? — indagou Joe, chamando pelo chefe dos instrutores da Academia. O Sargento aproximou-se e encarou o delinquente. — Não é, nunca foi e jamais será um calouro da nossa gloriosa Academia — afirmou ele. 184 Matt já o havia revistado, tomando-lhe uma pistola quarenta e cinco. — Nada mau para um calouro — comentou. Inesperadamente, porém, o rapaz debateu-se e correu para a porta. Os policiais foram no seu encalço. Ele gritou para seus amigos no carro. Um deles abriu a janela e pôs para fora o cano de uma escopeta. Antes que fizesse alguma coisa, um dos policiais surgiu ao lado do carro, segurando o cano da arma e enfiando um revólver no nariz do pistoleiro. — Armadilha! — gritou ele, apertando o botão do vidro elétrico, que começou a subir. O motorista do carro engatou a marcha e acelerou. O policial disparou no homem que segurava a escopeta e saltou para o lado, no instante em que o a rapaz ao lado do motorista virava-se e disparava sua arma, estilhaçando o vidro. Outros policiais estavam ocultos atrás do carro. Haviam saído pelos fundos do bar e contornado o veículo verde, escondendo-se atrás dele sem que os seus ocupantes percebessem. Agora, ao verem o carro partindo, concentraram o fogo de suas armas nos pneus. Joe e Matt saíram do bar e atiraram também, seguidos pelos outros policiais. O rapaz que corria ao encontro do carro foi atropelado pelos seus próprios amigos. Joe apontou o rifle cuidadosamente na direção do motorista e apertou o gatilho. O parabrisa estourou em cacos, enquanto o corpo do motorista era prensado contra o assento, com um rombo enorme no peito. A bala atravessou-lhe o corpo e foi atingir o passageiro no 185 banco traseiro. Desgovernado, o carro derrapou e parou. O motorista caiu sobre a buzina, disparando-a. O homem a seu lado saltou com um AR-15 pronto para abrir fogo. — Protejam-se! — gritou alguém. Joe ignorou o perigo. Seu oponente estava aturdido e nervoso. De qualquer modo, não poderia esperar até que ele desse uma rajada, por isso mirou cuidadosamente, enquanto o outro engatilhava o fuzil e levava-o ao ombro, preparando a mira. Joe apertou o gatilho, mirando no meio da cabeça do marginal, que foi jogado para trás e caiu imóvel no asfalto, com a cara deformada e irreconhecível. Um silêncio mortal pairou na rua. Policiais de plantão no Sexto Distrito saíram à rua, com armas pesadas. — O que houve aí? — gritaram. — Alguém quis entregar uma encomenda e deu-se mal — respondeu Rusty, olhando Joe com admiração. Já ouvira muitas histórias sobre aquele homem, mas jamais o vira em ação. Joe era frio o bastante para entrar para o seleto grupo a que Rusty e Allan pertenciam. Um grupo tão seleto e tão secreto que nem mesmo seus amigos mais íntimos tinha conhecimento de suas atividades. Um grupo que era uma lenda na cidade e fazia tudo para manter a lenda sempre viva e respeitada. *** Joe acordou sentindo o corpo dolorido e a cabeça doendo. Na madrugada, seus amigos haviam-no acompanhado até sua casa, preocupados com novos atentados. Começava a ficar claro que alguém queria sua 186 cabeça. Virou-se e ficou olhando para o telefone, que continuava tocando. Atendeu, finalmente. — Fico feliz que esteja vivo, Joe — sussurrou aquela vez de veludo ao telefone. — Como ficou sabendo da emboscada? — indagou ele, acordando de todo e esquecendo-se das dores no corpo. — Não vou lhe dizer, Joe. Não seja teimoso. Eu, os olhos da cidade, só quero protegê-lo, seja mais agradecido. — Quem é você? Como, diabos, soube de tudo? — Ouça bem, Joe, porque não vou repetir. Neste momento, há um bando de motociclistas indo na direção de sua casa. Levam coquetéis molotov, muitas armas e munição. Se não quiser ver sua casa incendiada, trate de fazer alguma coisa urgente. Deveria ter atendido antes o telefone — frisou a voz, desligando em seguida. — Diabos! — praguejou ele, pensando no que fazer. Estavam querendo mesmo sua cabeça e não restava a menor dúvida quanto a isso. Pensou em como proteger sua casa e também a de seus vizinhos. Aquele era um bairro simples e quieto. Não merecia ser infernizado por toda aquela violência. A melhor coisa a fazer era fazer com que os motociclistas o seguissem para outro lugar. A melhor direção seria a do Lago Meadow, com sua área de recreação em reformas e, consequentemente, vazia naquela hora e naquele dia. Foi até um armário e apanhou um Winchester e a munição, além de uma automática Colt quarenta e cinco. Era tudo que tinha para uma batalha como aquelas. 187 Apanhou o telefone e discou para a casa de Matt. Esperava poder contar com a ajuda dele, mas ele não atendia. — Demônios! — exclamou, desistindo. Não podia esperar muito tempo. Não sabia onde estavam os motociclistas nem podia esperar por eles dentro da casa, por isso levou suas armas e a munição para o carro, ligou o motor e ficou do lado e fora, olhando os dois lados da rua. Pôde ouvir ao longe o ruído das motos aproximandose. Esperou até que elas surgissem, antes de entrar no carro. Arriscou-se até ter certeza de que o reconheceriam e sairiam em sua perseguição. Quando isso aconteceu, acelerou seu carro e arrancou, cantado os pneus. Os motociclistas viramno e aceleraram suas motos, saindo em sua perseguição. Felizmente era domingo e, naquele horário, as ruas do bairro estavam tranquilas, sem movimento algum. As motos eram possantes e podiam manobrar com mais facilidade nas esquinas estreitas. Joe percebeu que elas se aproximavam perigosamente. Estranhos ruídos na lataria denunciavam que eles disparavam contra o carro, usando armas com silenciadores. Joe alcançou a Via Expressa Island e, com isso, pode aumentar a velocidade. As motos fizeram o mesmo. De repente, um carro-patrulha surgiu com a sirene ligada, perseguindo o carro de Joe, sem perceber que o perigo vinha em seu encalço. — Idiotas! Olhem para trás! — gritou Joe, pondo o braço para fora e fazendo sinais para o carro-patrulha. 188 Seus ocupantes não entenderam, continuando na perseguição. Um dos motoqueiros avançou e emparelhou sua moto com o carro policial. O carona estava com uma garrafa de gasolina na mão. Disparou sua arma contra o estopim, acendendo-o. Os policiais nada entenderam. A garrafa foi jogada no interior do carro, que se iluminou todo, enquanto labaredas saíam pela janela. Pelo retrovisor, horrorizado, Joe viu o carro-patrulha derrapar, depois capotar em alta velocidade, transformado numa bola de fogo. — Bastardos! Filhos da mãe! — gritou ele, tomando a passagem que o levaria ao estacionamento do lago, vazio àquela hora. Havia barreiras pelo caminho e ele foi arrebentando todas elas, procurando por um local seguro onde pudesse defender-se. Sua chance agora era que outras viaturas policiais estivessem na perseguição também e chegassem em seu auxílio, antes que os motociclistas o pegassem. Avançou em alta velocidade, percebendo algumas máquinas paradas e agrupadas próximas do lago. Entrou com seu carro por entre elas, parando-o e saltando, levando as armas e a munição. Subiu num trator, preparou a Winchester e esperou. Naquele momento de extrema tensão, algo inesperado veio-lhe à mente. Era uma cena de um velho filme de faroeste, quando diversos índios perseguiam o herói e a heroína, que se refugiaram atrás de algumas rochas. Os índios avançavam em bloco, gritando e brandindo suas lanças e arcos. O herói, então, numa ação 189 inesperada, mirou no cavalo do homem que vinha à frente do bloco. Quando o atingiu, o cavalo rolou na poeira e os índios que vinham atrás caíram juntos, quando suas montarias tropeçaram no inesperado obstáculo. Talvez desse certo com ele também. Assim pensou, assim fez. Quando as motos surgiram, entrando no estacionamento do lago, ele mirou no primeiro deles, à frente do bloco. Seu Winchester tinha uma mira especial, infalível. Quando apertou o gatilho, o piloto da moto abriu os braços e caiu para trás. Sua moto derrapou e ficou saltando espetacularmente. A cada salto, outras se juntavam a ela, numa confusão de poeira, ronco e gritos de dor. Três ou quatro deles conseguiram livrar-se da confusão, mas estavam desorientados. Joe foi abatendo um a um como numa sequência de tiro ao pato em um parque de diversões. Restaram os homens caídos, arrastando-se nos pedregulhos, alguns tentando erguer suas pesadas motos e dar-lhes partida. O som de sirenes desesperou-os. Tentaram correr na direção da estrada. Joe atirou junto aos pés deles. — Não fujam! — gritou ele. — Quem tentar sair levará chumbo. Havia muita gasolina espalhada no local. Garrafas quebradas haviam ensopado os homens que as levavam dentro de suas jaquetas. Apesar do aviso de Joe, alguns ainda tentaram arriscar suas chances. Uma das motos pegou, mas o motor rateou, fazendo estourar o escapamento, lançando uma bola de fogo. Imediatamente o local transformou-se num inferno. Os motociclistas corriam para 190 todos os lados com os corpos transformados em tochas vivas. — Deus do céu! — exclamou Joe, surpreso ante aquele inesperado desfecho. Os carros que chegavam a toda, com as sirenes abertas, trataram de desviar-se daquela cena dantesca. Joe saltou do trator com as armas acima da cabeça. Estava em outro distrito e torcia para que, entre aqueles policiais, houvesse um que o reconhecesse. — Maldição, Joe! — gritou um deles. — Não basta você fazer bagunça no seu distrito? Agora vem trazer um pouco para nós? Que diabo aconteceu aqui? É o seu jeito de fazer o churrasco de domingo? — Diabos, Sargento Sppud, por que demoraram tanto? Pensei que não fosse dar conta de todos esses malditos bastardos — respondeu Joe, aliviado. — É sério que está com a cabeça a prêmio? — indagou o sargento. — Por que diz isso? — Um de meus informantes me contou essa novidade. O que andou aprontando por lá? — É o que eu gostaria de saber também. De repente, todo mundo resolveu fazer tiro ao alvo em mim. O que seu informante disse, afinal? — Que alguém disse a ele que você foi decretado inimigo número um das gangues e que alguém estava pagando cinquenta mil pela sua cabeça. 191 — Cinquenta mil? Puxa, é o salário de um ano. Isso vai deixar muita gente tentada. — E você potencialmente morto. Quanto tempo acha que poderá resistir numa cidade como esta? Logo virão caçadores de todos os bairros e de todas as ruas. Se eu fosse você, inventava logo um jeito de escapar disso. Por que não se aposenta logo e se muda para Miami Beach? — Você está parecendo meu capitão, Sppud. Aliás, se não o conhecesse bem, diria até que encontraram uma forma de me forçar a pedir a aposentadoria — disse ele. — Até a vista, sargento. A gente se vê por aí! — Ei, espera aí. Preciso tomar suas declarações. — Esqueça, sargento! Foi uma guerra de gangues, não percebe? Alguma disputa por causa de território, de droga, de armas ou qualquer coisa assim. É só copiar dos outros relatórios — falou Joe, afastando-se. — Pensando bem, será mais fácil pôr isso no relatório do que tentar entender o que houve aqui — comentou o policial, tirando o chapéu e coçado a cabeça. 192 CAPÍTULO 7 Joe sentia-se mal naquela reunião, onde todos falavam dele e manifestavam uma preocupação exagerada com sua saúde. Tudo porque o boato do prêmio pela sua cabeça havia se espalhado por toda a cidade. Gente nova e estranha estava aparecendo no bairro. Bob "Moicano" Jones, que trabalhava infiltrado nas gangues, comentava que estava vindo gente até de Nova Jérsei atrás do prêmio. Joe havia tido uma amostra do que aquilo representava. Nos últimos dias havia passado seu tempo entre atender telefonemas daquela misteriosa voz e enfrentar ou fugir de emboscadas. Estava ficado cansado de tudo aquilo. — O que estou tentando dizer é que não podemos esconder Joe para sempre, nem passar todo o nosso tempo protegendo-o. Temos outros assuntos para tratar. A região é pesada, não temos homens suficientes. É tudo muito problemático — frisava o capitão. — Isso não significa que devamos deixá-lo a sua sorte — protestou Matt. — Joe deu muito de si a este Distrito. Com exceção do capitão, creio que todos nós por aqui devemos nossas vidas a ele pelo menos uma vez. Temos de apoiá-lo agora. — A questão não é essa, pessoal — interrompeu-os Joe. — Na realidade, não preciso de proteção. Os olhos da cidade são a minha proteção — lembrou ele. 193 — Isso aí também me cheira muito mal. Tudo cheira mal nessa história toda — lembrou o capitão. — Ainda não entendi quem é o seu anjo da guarda e por que o protege, Joe. — Sinto muito, capitão, mas não posso ajudá-lo nisso. Sei tanto quanto você ou qualquer outro. — Só que não estamos avançando para lugar nenhum — protestou Albert Finey, dos Assuntos Internos, chamado a participar da reunião. — O que temos aqui é que Joe foi escolhido como alvo por algum motivo. Isso concentrou toda a atenção das gangues nele. Enquanto isso, não se tem notícia de nenhum tiroteio ou enfrentamento entre eles. É como se Joe fosse o inimigo comum que os mantivesse distraídos, impedindo-os de lutar entre si. — Graças aos céus, uma voz inteligente em tudo isso — elogiou Joe. — Ei, isso tem lógica mesmo. E começou depois daquela reunião entre os líderes das gangues hispânicas e negras com os italianos. Lembra-se disso, Joe? — Sim, como não. — Além disso, nunca a droga foi tão livre e tão fácil nesta cidade. O Departamento de Narcóticos está simplesmente perdido. A teoria mais plausível é que os italianos centralizaram a distribuição e conseguiram a trégua entre as gangues, concentrando as energias e o trabalho delas na distribuição e venda do produto. E lamento informar que estão vendendo de tudo, da velha marijuana ao 194 que há de mais moderno, o êxtase, passando pelo crack e todas as outras porcarias. — E eu entrei nessa como o bobo da corte? Por que eu? — quis saber Joe. — Tinha que ser alguém. Por que não você, Joe? Quem é o nome mais respeitado na região? Que tira provoca medo nas gangues? Quem as trata com energia em excesso? — ponderou "Moicano" Jones. Um policial entra na sala apressadamente. — Estão assaltando a loja de bebidas da Mayflower. Quincy e Fred Barnnes estão lá e pedem ajuda. — Diabos! De novo! — comentou Joe, levantando-se e rumando para a porta. Matt seguiu-o sem pestanejar. Antes que o capitão pudesse dizer alguma coisa, os dois já haviam passado por suas mesas e apanhado suas armas. — E ele ainda pergunta por que as gangues não gostam dele — opinou Albert. Enquanto o alerta era transmitido aos demais carros em patrulha, Joe e Matt já se aproximavam do local. Buck, quando os vira saindo apressados, correra para o carro também. Sabia que onde aqueles dois estavam ali também estaria a ação. — Você cuida da frente, Matt. Eu vou passar pelo beco e tentar entrar pelos fundos da loja. Quanto a você, Buck... — Já sei, o melhor lugar é o lado oposto dos atiradores. Joe parou o carro um pouco antes de chegar ao cenário do assalto. Matt tomou o volante, enquanto ele corria rente 195 às paredes na direção do beco que levava aos fundos da loja de bebidas. Quando Matt estacionou o carro ao lado da outra viatura, chamaram Joe pelo rádio. — Joe vai tentar entrar pelos fundos — informou Matt. — Uma mulher telefonou. Mandou dizer que eram os olhos da cidade para o Joe, que era para ele não entrar na loja de bebidas, pois tudo não passava de uma armadilha. — Diabos! — praguejou Matt, sem saber o que fazer naquele momento. Joe estava indo direto para uma cilada e não havia como avisá-lo. — Quantos homens estão lá dentro, Quincy? — indagou ele. — Dois — respondeu o outro policial. — Onde estão? Não consigo vê-los. — Estão escondidos, mas estão lá, pode ter certeza. — Temos de fazer alguma coisa, é uma cilada. Antes que Matt pudesse fazer alguma coisa, Buck correu na direção do beco. — Vou avisar o Joe! — gritou, enquanto corria. — Maldição! Só me faltava esta agora — disse Matt. Outros carros começavam a chegar. Não havia movimentação alguma dentro da loja. Respirou fundo e correu, imitando Buck. Encontraram-se nos fundos da loja. A porta estava aberta, mas não havia sinal de Joe. — Joe, caia fora daí. Os olhos da cidade ligaram. É uma armadilha! — gritou Matt. 196 Em resposta, uma rajada de metralhadora saiu pela porta e picotou a parede do lado oposto. Os policiais lá fora, alertados pelos tiros, começaram a disparar. O inferno instalou-se dentro da loja de bebidas. — Buck, corra até a frente do beco e avise que há um policial lá dentro — pediu Matt. Buck atendeu-se, mas quando surgiu correndo do beco, algumas armas voltaram-se na sua direção. Ele foi baleado diversas vezes, sendo jogado para trás. — Oh, não! — exclamou Matt, colado à parede, ouvindo vidros partindo-se lá dentro e balas ricocheteando nas paredes. Não viu nenhum sinal de Joe e desesperou-se, sem saber o que fazer. Lá fora alguém ordenou aos policiais que cessassem fogo. Matt aproveitou para sair do beco. — Seus idiotas! Seus malditos idiotas! Balearam um civil — gritou ele, inclinando-se sobre Buck, que, apesar dos inúmeros ferimentos, estava vivo ainda. — E o Joe, Matt? Onde está ele? Os paramédicos chegaram para retirar Buck dali. O capitão acompanhava-os. — Que diabo aconteceu aqui, Matt? — indagou furioso, ao ver Buck ferido. — Esses idiotas atiraram nele. — E o Joe? — Lá dentro. — Ouvi pelo rádio que era uma armadilha. 197 — Vou tentar localizá-lo — falou Matt, retornando à porta dos fundos. Outros policiais seguiram-no. Quando chegavam, viram o corpo coberto de sangue do policial deslizar para fora da loja. Fora ferido diversas vezes. Antes que entendessem o que ele fazia, Joe acendeu o isqueiro e jogouo para dentro da loja. Houve um instante de expectativa, depois toda ela explodiu, quando o álcool esparramado incendiou-se. Lá na frente, com as roupas em chamas, os dois pistoleiros saltaram pela janela estilhaçada, disparando suas armas. Em resposta, mais de vinte armas foram apontadas contra eles. Seus corpos foram jogados de volta ao inferno dentro da loja pelos impactos de tantas balas. Nos fundos, Matt amparava o parceiro, que respirava com dificuldade. — Acertaram-me, Matt. Meus próprios amigos. Eu tinha os bandidos em minha mira. E meus amigos me acertaram — repetiu ele, tossindo. Um fio de sangue escorreu pelo canto de sua boca. Seus olhos se voltaram para o céu. Joe achou que era a última vez que o via. *** Alguns dias depois, num iate ancorado ao largo da ilha, com uma maravilhosa vista dos arranha-céus de Nova Iorque, Andy encontrava-se com seus amigos e sócios para uma avaliação dos resultados do trabalho conjunto. Nenhuma das partes tinha reclamações. Nunca haviam ganhado tanto dinheiro e gozado tanto a vida como nos 198 últimos dias. A droga fluía generosamente nas veias da cidade e o Departamento de Narcóticos estava impotente. Eram tantos os pontos de venda, todos controlados pelas gangues e em locais de difícil e perigoso acesso, que nada podia fazer. Garotas bonitas passeavam por entre eles na coberta do iate, servindo drinques. Andy deu a cada um dos novos parceiros um presente. Eram caríssimos e luxuosos Rolex de ouro. — Você está nos deixando muito mimados — comentou Johnny. — Ora, rapazes! Gosto disso. É minha maneira de dizer que reconheço o bom trabalho que estão fazendo. E quanto ao Joe, sabem se ele escapou? — Está no hospital entre a vida e a morte. Perdeu um rim, o fígado foi afetado, o pulmão também. Se sobreviver, será um farrapo de homem apenas — informou Angus. — E os membros das gangues, como estão reagindo agora que não têm um inimigo comum? — Não parecem muito preocupados — disse Johnny. — Parece que descobriram que têm um amigo em comum. — Como assim? — quis saber Andy. — Dinheiro é o amigo comum. Perceberam que podem ter tudo que sempre desejaram e que não precisam mais brigar entre si, disputando migalhas. — Ótimo, estão ficando inteligentes. Agora, amigos, gostaria de convidá-los para a festa de aniversário de meu 199 pai. Será daqui a uma semana, neste mesmo iate. Quero que os chefes das principais gangues estejam presentes. — É quando assumirá o controle da família? — indagou Angus. — Sim. A partir desse dia, serei o novo Chefão. — Como naquele filme? — Exatamente como naquele filme. — Será um homem muito poderoso — comentou Johnny. — E só me manterei assim com a ajuda de vocês. Soube que há muitos territórios livres no Estado, onde gangues autônomas controlam o tráfico. Quero, com a ajuda de vocês, controlar tudo isso. — Não precisamos de tanto — comentou Johnny. — Acho que há mais dinheiro que podemos gastar só aqui, no que fazemos agora. — Deixe-me contar-lhe um fato. Meu pai está velho. Deve ter mais uns cinco ou dez anos de vida, mas não tem nem vigor nem saúde para gozá-los, apesar de ter dinheiro. Quero que aconteça diferente comigo. Quero juntar todo o dinheiro que puder e depois me aposentar ainda jovem, com saúde, disposição e tesão para usufruir tudo que tiver juntado. Acho que vocês deveriam pensar da mesma forma. Nada é suficiente em nosso negócio, rapazes. Nossa sociedade mostrou-se muito lucrativa. Não temos de comprar tiras, políticos, juízes ou autoridades como antes. Quando repartimos o nosso lucro, não teremos de separar a parte dos corruptos que antes nos sugavam. Certamente eles 200 vão protestar e reagir contra nós, só que estaremos fortes e unidos, tão fortes e unidos que eles terão medo de nós, de nossa força e de nosso poder. Por isso devemos todos pensar da mesma forma, entenderam? Perceberam a dimensão do que somos agora? A cidade é nossa, está em nossas mãos. Se hoje decidirmos que ela deve arder até suas fundações, temos meios de incendiá-la e fazê-la queimar. Johnny e Angus entreolharam-se. Começavam a compreender o papel deles em tudo aquilo e o poder que detinham nas mãos. A aliança com os italianos fora uma das melhores decisões de suas vidas. — Andy, estamos surpresos e gratos a você pelo que está acontecendo. Esperamos corresponder à altura de suas expectativas — disse Johnny. — Fiquem comigo e não se arrependerão, amigos — afirmou Andy. — E não se esqueçam de avisar seus liderados. Os presentes de aniversário para o meu pai devem ser significativos. O valor nem é tão importante. A questão é fazê-lo sentir-se valorizado com o presente. — Não se preocupe, Andy, não vamos decepcionar seu pai. Já descobrimos tudo que agrada a ele. Ele ficará encantado com nossos presentes — garantiu Angus. — Agora chega de negócios, rapazes. Vamos aproveitar essas belas garotas a nossa disposição — decidiu o gângster, aplaudido por seus sócios. *** Quando abriu os olhos, a sensação que experimentou foi a de que todas as ressacas de sua vida estavam presentes 201 ao mesmo tempo. O corpo doía e a boca estava seca e com um gosto horrível. Respirar era difícil e dolorido. Um tubo entrava por sua boca, machucando sua garganta. Seus braços estavam presos com esparadrapo às laterais da cama e agulhas estavam espetadas em cada um deles, ligadas a mangueiras que vinham de tubos pendurados em suportes dos dois lados da cama. Uma mulher examinava tudo aquilo. Apesar do uniforme e do gorro que prendia seus cabelos, podia perceber que era bonita e madura, com um corpo roliço e apetitoso. Ele resmungou alguma coisa, tentando chamar a atenção dela. Ao vê-lo com os olhos abertos, ela sorriu. — Ora, vejam! Até que enfim resolveu acordar, seu preguiçoso — disse ela, num tom meio infantil que o fez rir também. Gostou de ser tratado daquela forma. — Como se sente? — indagou ela. Ele moveu a cabeça num sinal afirmativo. — Isso é bom. Muito bom mesmo — afirmou ela. — Vou chamar o médico. Acho que poderemos desligar alguns dos tubos ligados em você — informou ela, saindo. Joe tentou pedir a ela que ficasse. Ainda estava assustado. Pouco se lembrava do que havia acontecido. Sabia que estivera na loja de bebidas, que vira os dois homens e enquadrara-os na mira de seu fuzil. Alguém gritou lá fora, nos fundos da loja. Uma rajada de metralhadora foi disparada, depois tudo se transformou num inferno. A partir 202 daí, tudo era nebuloso e indeterminado. Não conseguia lembrar-se do que havia acontecido. Com satisfação, viu a enfermeira retornar em companhia de um médico, que se inclinou e, com uma pequena lanterna, examinou-lhe os olhos. Outros médicos chegaram também. Retiraram o lençol que cobria o corpo do policial. Olhando, Joe pode perceber que havia algumas novas cicatrizes em sua pele. Algumas realmente grandes. Cuidadosamente retiraram o tubo de sua garganta. Um gosto amargo veio-lhe à boca e ele teve ânsia de vômito, mas nada havia para ser vomitado, a não ser aquele gosto amargo. — Como se sente? — indagou-lhe o médico que retirara o tubo. — Com a maior das ressacas — respondeu ele e sua voz estava estranha, áspera, grave e dolorida. — Seja bem vindo de volta, Joe Bradford. Você escapou de uma boa. Tiramos quase meio quilo de chumbo de seu corpo, sabia? — brincou o médico. — Quando vou poder sair daqui? — indagou Joe e todos se olharam surpresos, depois começaram a rir. — Por que tanta pressa? Vai precisar de algum tempo antes de poder voltar para casa. — E o meu trabalho? — indagou ele, preocupado. — Não sei, Joe. Acho que não poderá mais voltar ao seu trabalho, não depois e tudo que passou. Pelo que sei, já tem tempo para aposentar-se. Acho que é o melhor que tem a fazer, sabia? Já não terá a mesma mobilidade nem as 203 mesmas condições físicas de antes. Terá que aceitar que é um novo homem, Joe. Com limitações, mas ainda vivo. Sabendo cuidar-se, viverá até os cem anos. Joe olhou-o com desespero. Aquele médico não sabia o que estava dizendo. O trabalho na Polícia era a vida para ele. Se não pudesse voltar para lá, se tivesse que viver como um inválido, melhor seria que aquelas balas não tivessem sido retiradas de seu corpo. Simplesmente não estava preparado para aquilo, da mesma forma como nunca estivera preparado para sua aposentadoria. Enganava-se e vinha enganando todo mundo, afirmando que se aposentaria logo, que compraria o bar do Rusty e que tudo seria maravilhoso em sua vida. Compreendia, naquele momento, a dura realidade e isso era dolorido demais. Tão dolorido que ele não pôde conter as lágrimas que começaram a rolar de seus olhos. — Tudo bem, pessoal, isso é um bom sinal — falou o médico. — Vamos deixá-lo sozinho. Tem muito em que pensar agora. Um a um os médicos que o haviam visitado foram saindo, até que restasse apenas a enfermeira. Ela ficou ao lado da cama, olhando com piedade para a expressão perplexa e dolorida nos olhos do paciente. De repente, sem que o próprio Joe entendesse, ela começou a chorar também. Segurou a mão dele, apertando-a com as suas. Depois se inclinou lentamente e depositou a cabeça no peito dele. 204 CAPÍTULO 8 Joe Bradford já havia sido ferido muitas vezes. Em todas elas, sempre se esforçara ao máximo para apressar sua cura, pois não via a hora de voltar à ativa. Agora era diferente. Joe era considerado um inválido e essa era a pior parte. Se não quisera aposentar-se íntegro, teria de fazê-lo agora, obrigatoriamente, além de estar condenado a um resto de vida cheio de cuidados com a saúde. Aquele tiroteio não apenas o invalidara para o trabalho policial. Aquelas balas o haviam matado por dentro. Matt foi visitá-lo um dia, mas ficou pouco tempo. Para ele também era difícil ver o velho parceiro preso a uma cama de hospital. — Buck, apesar dos ferimentos, vai sobreviver — informara Matt. Joe não sabia dizer se aquilo era um alívio ou não para ele. Buck sabia dos riscos que corria. Mesmo tentando salvar a vida de Joe, o ex-policial não conseguia sentir nada pelo jornalista. Já era difícil demais lidar com os seus sentimentos em relação a ele mesmo. A única coisa que dava certo alento a ele era quando Debrah, a enfermeira, vinha atendê-lo. Havia, da parte dela, um cuidado muito grande para com ele. Um cuidado que começava ir além dos deveres rotineiros do trabalho. Debrah, não raras vezes, quando completava seu turno, passava pelo quarto dele e ficavam conversando. 205 — Por que faz isso, Debrah? — indagou ele, um dia. Aquela era uma pergunta que ele desejava fazer havia muito tempo, desde aquele dia, quando acordara e soubera que jamais voltaria à Polícia. Quando ele chorou, ela chorou com ele. — Ficar aqui, conversando com você? — Sim. Todo mundo fica apressado para ir para casa quando termina o trabalho. Só você não. Os olhos dela revelaram uma tristeza muito grande, mas foi apenas por pouco tempo. Debrah era uma mulher muito forte e sabia disfarçar suas dores e sofrimentos muito bem. — Moro sozinha, Joe. Se voltar para casa agora, vou ficar vendo tevê até o sono chegar. Esquentarei alguma comida congelada. Não tenho motivo algum para cozinhar. — Por quê? — interrompeu-a ele. Ela silenciou e ficou olhando para ele, sem entender a pergunta. Aquela perplexidade no rosto dela já era uma resposta. Joe concluiu que era o mesmo que o fazia ficar no Bar do Rusty até a hora de fechar. Ir para casa para quê? — Sou sozinha, Joe. — E por que é sozinha? É uma mulher jovem e ainda muito bonita e atraente. Não entendo. — Essa é uma longa história, Joe. Não tenho acertado em meus relacionamentos. Enfermeiras têm um sério problema quanto a isso. — Como os tiras, eu suponho. Ninguém quer morar com um tira. 206 — A menos que ele seja um tira aposentado — sugeriu ela. Ele conseguiu sorrir. Após alguns dias de imobilidade e reflexão, Joe já podia conviver com a ideia. Pouco a pouco se conscientizava de que jamais voltaria a fazer tudo o que fazia antes. Isso não seria de todo ruim. Poderia comprar o Bar do Rusty. Conviveria com o pessoal, estaria no meio deles sem os riscos de antes. — Você já reage melhor à ideia da aposentadoria — observou ela. — Quando se falava nisso antes, sua expressão era da mais pura e violenta revolta. Agora você se mantém sereno, apesar de haver certa tristeza em seus olhos. — Acho que posso aceitar a ideia, Debrah, já que não tenho mesmo escolha. — E o que fará quando sair daqui? — Não sei ao certo. Tenho um amigo que está morrendo de câncer. Ele tem um bar e quer vendê-lo para mim. Talvez eu o compre. — Um bar? Que interessante! — Um bar só de tiras. Abre às oito da noite e fecha quando o último freguês vai embora. — Vai ser ótimo! Quando eu fizer o turno da noite, sei para onde ir e tomar um drinque, antes de ir para casa dormir — comentou ela. — Sim. E talvez possamos ir juntos para casa. Para a mesma casa — disse ele, sem pensar. Ela o olhou com seriedade e com uma tensão nova no rosto. Sondou-o demoradamente, enquanto Joe descobria-se 207 surpreso consigo mesmo. Havia muito tempo não fazia uma proposta a uma mulher. Aquela saíra tão espontaneamente que o surpreendera mesmo. — Fala sério, Joe? — Acho que nunca falei tão sério em minha vida, Debrah. — Podemos ter uma vantagem. Fazendo o turno da noite, teremos todo o tempo restante para nos conhecermos melhor — falou ela, com ar sonhador e um sorriso de ternura e malícia nos lábios. Joe sorriu também. Era tudo muito estranho, como se estivesse dividido em duas partes. Uma era aquela calma e tranquila, que gostaria de descobrir com Debrah, na ternura de um amor de outono, criando um relacionamento maduro e sem sobressaltos, aceitando sua atual condição. A outra era o velho guerreiro lambendo suas feridas e preparando planos de guerra e vingança. As duas conviviam estranhamente dentro dele. *** Para Matt, fazer a ronda noturna com um novo parceiro era estranho, muito estranho. Não tinha aquela mesma segurança que sentia com Joe. Além disso, seu parceiro não conhecia aquele trajeto, não sabia onde estavam os pontos perigosos, os becos de onde os desocupados atiravam garrafas na viatura, quando não, coquetéis molotov. Tinha de treinar seu novo parceiro. Tinha de prepará-lo. Talvez aquela pretensa calma que reinava nas ruas fosse o melhor momento para fazer isso. O problema era que, segundo Bob 208 "Moicano" Jones, alguém decidira que, para quebrar a monotonia, as gangues deveriam escolher um novo alvo. E ele, Matt, fora o alvo escolhido. Até então, haviam rodado quase todo o trajeto da ronda inicial, sem incidentes. Iriam percorrer a Mayflower até o final, depois retornariam direto para o Distrito. Alguma coisa o deixava tenso. Eram suas velhas cicatrizes coçando. — Pare um pouco, Vincent! — pediu ele ao seu amigo. Apanhou o fuzil AR-15 que Joe costumava usar e que ficava no carro agora. Com o visor noturno ele esquadrinhou todo o trajeto a sua frente, olhando becos e telhados. Nada à vista, só que aquela sensação não passava. — O que houve, Matt? — indagou seu novo parceiro. — Não se, Vince. Alguma coisa aqui, nas minhas cicatrizes. — Quando as minhas coçam, indicam chuva. — O céu está limpo, parceiro. Não acho que seja esse o motivo. — Vamos lá, Matt. Não me diga que está com algum pressentimento? — Não sei, mas não gosto particularmente desta rua. Não foi por nada que Joe e eu decidimos deixá-la para o final da ronda. Vá em frente, devagar. Vince pôs o carro em movimento. A rua estava vazia naquela hora da madrugada. As vitrines iluminavam generosamente as calçadas. Os postes de iluminação conservavam ainda todas as lâmpadas intactas, depois que 209 foram respostas, após a trégua das gangues. Tudo parecia um caminho tranquilo. — Cuidado! — avisou Matt, quando se aproximavam de uma esquina. De um lado surgiu um caminhão de entrega de leite. Do outro, um furgão de entrega de jornais. Inesperadamente, os dois chocaram-se de frente, de forma inexplicável. — Diabos! — exclamou Vincent, parando o carro e fazendo menção de descer. — Não! — gritou Matt, segurando-o pelo braço. — Pode haver alguém ferido naqueles veículos. — Eles simplesmente cortaram nossa passagem, Vincent. Manobre o carro. Dê uma ré — ordenou Matt. Seu parceiro ficou estático, sem entender o que estava acontecendo. — Faça o que eu disse! — berrou Matt, sentindo falta de Joe. Naquele momento, ele saberia exatamente o que fazer, pensou Matt, virando o corpo para olhar para trás. Na outra esquina, duas carretas atravessaram a rua, parando uma com a frente encostada na outra, barrando a passagem. — Matt, o que está havendo? — indagou Vincent, sem entender. — Acho que é o inferno, Vincent — falou ele. Matt estendeu o braço e engatou a ré. — Recue devagar até o meio da quadra — ordenou. Vincent obedeceu-o. Com o visor infravermelho, Matt olhou os telhados acima das luzes da rua. Pôde ver muita 210 gente lá em cima, todos armados. A caça ao pato iria começar. — Vincent, acha que pode passar entre o caminhão de leite e o prédio? — Se for preciso, posso tentar. — Então tente, Vince. Tente como nunca tentou nada em sua vida. Tente como se o diabo estivesse em nossos calcanhares, porque é isso que está acontecendo. A Rua Mayflower dividia os dois bairros, o Harlem e o Bronx. De um lado, nos telhados, membros das gangues negras. Do outro, os hispânicos. Ao invés de atirarem uns nos outros, tinham um alvo comum para alegrar sua noite de sábado. Quando Vincent acelerou o carro, o inferno abateuse sobre eles. Os projéteis vinham de todos os lugares, dos telhados e dos becos, dos caminhões nas duas esquinas, de portas e janelas inesperadamente tomadas por membros das gangues. Os dois policiais experimentaram a sensação de estarem numa panela de pipoca, só que ao invés de suaves e deliciosos flocos brancos, eram pesados e mortais fragmentos de chumbo. Os tiros de escopeta arrebentaram os vidros. Os de AR-15 foram demolindo o veículo. Os de fuzis especiais de caça foram transformando os corpos de Matt e de Vincent numa sanguinolenta massa de carne e ossos despedaçados. Sirenes soaram ao longe, avisando que o socorro inútil e tardio estava a caminho. Os tiros cessaram repentinamente. Um silêncio de morte reinou naquele ponto da rua. Do alto de um telhado uma garrafa de coquetel 211 molotov desceu certeiramente sobre a lataria do carro. Do tanque perfurado, o combustível escorria. O fogo provocou a explosão que estremeceu os prédios e assustou toda a rua. O carro despedaçado e em chamas era um trágico marco daquela violência feita de ressentimentos e crueldade gratuitos. *** Naquela manhã de domingo, Joe sentia-se bem. Apesar de ser o dia de folga de Debrah, ela fora até o hospital. Joe recebera autorização para tomar sol. Ela o empurrou na cadeira de rodas até o jardim onde outros pacientes caminhavam. Numa das alamedas, ela parou a cadeira o ajudou-o a levantar-se. Com passos vacilantes no início, ele a acompanhou. Estava um belo dia e Joe já se sentia melhor, bem melhor. A companhia de Debrah ali, junto dele, tocando seu corpo, despertava-lhe sensações que julgara adormecidas dentro dele, fazendo-o sentir-se vivo realmente. Já devia muito àquela mulher. Pouco sabia sobre ela, sobre sua vida, seus desenganos e sofrimentos. Isso, àquela altura da vida dele, pouco importava. Contava apenas o fato de serem dois solitários que, de repente, descobriam que um tinha algo a oferecer ao outro. Para surpresa dele, Rusty e Allan surgiram no fim da alameda. — Ei, aqueles dois são meus amigos — apontou ele, satisfeito por receber aquelas duas visitas. — Quer que eu o deixe a sós com eles? — Não, eu quero que você fique comigo. 212 Os dois amigos pararam diante dele. Joe ficou penalizado com o estado de Rusty. A doença parecia ter evoluído muito naqueles dias em que não o vira. Estava pálido, mais magro e caminhava com dificuldade, apoiandose no braço de Allan. — E então, meu amigo, como está? — perguntou Rusty e Joe não conseguiu responder. Abraçou os dois e começou a chorar. Debrah olhou-os com ternura. Allan fez um sinal para que ela os deixasse a sós com eles. Por instantes ela hesitou, depois voltou até onde estava a cadeira. Levou-a até um banco à sombra e sentou-se para esperar. Joe não se lembrava de mais da última vez que chorara daquela forma. Não sabia se era pena de Rusty ou se era o fato de receber a visita ou, ainda, a alegria íntima de saber que ainda estava vivo. A presença de Rusty lembrava-lhe a morte inexorável que puxava seu amigo para o túmulo. — Que bom ver que você está bem, Joe — disse Allan. — Acho que pode suportar o que temos a lhe dizer. — De que se trata? — surpreendeu-se ele. — Matt... Eles o pegaram ontem, na Mayflower — falou Rusty, com pesar. — Morto? — Sim. Felizmente não sofreu, Joe. Prepararam-lhe uma cilada. — Malditos! — murmurou o ex-policial, apertando os olhos com força e sentindo-se entontecido. 213 Tudo que o ligava à Polícia parecia ter sido destruído. A morte de Matt era a coisa mais dolorosa para ele agora. Respirou fundo e tentou imaginar-se como das outras vezes em que fora ferido e que se recuperara rápido para ir atrás de quem o havia atingido. Queria pensar da mesma forma agora. Queria agir da mesma forma agora, mas o guerreiro estava inválido, estava inutilizado e essa impotência era o pior sentimento de sua vida. A revolta interior e o desejo de vingança esbarravam em sua condição física, em suas limitações atuais, às quais ainda não se acostumara, mas com as quais teria de conviver para o resto de sua vida. Chorou amargamente por isso. Chorou por ter sido reduzido àquela inútil sombra do guerreiro de antes. — Deus! — murmurou ele. — Eu daria tudo para fazêlos pagar por isso, Rusty. Se houvesse uma forma de promover a justiça contra esses assassinos, eu a procuraria, nem que tivesse que vender minha alma ao diabo. Rusty encarou-o com seriedade, olhando-o bem no fundo dos olhos. Lá no banco, olhando-os, Debrah percebia que alguma coisa acontecera para emocionar Joe daquela forma. Pensou em intervir, mas preferiu deixá-los resolver aquilo entre eles. — Joe, ouça bem o que vou dizer para você — falou Rusty. — Aqueles bastardos! — reclamava Joe. — Joe! Joe! — insistiu Allan, segurando-o pelos ombros, tirando-o daquele transe feito de ódio e impotência. 214 Joe Bradford pareceu voltar à realidade, encarando os amigos com os olhos ainda cheios de lágrimas. — Está bem! Está bem! Já estou calmo — murmurou ele, limpando os olhos. — Joe, e se eu lhe disser que, mesmo em seu estado, mesmo com todas as suas limitações, você pode conseguir a justiça que busca e vingar-se daqueles bastardos? O ex-policial encarou-os como se não entendesse o sentido daquilo que lhe era dito. — Joe, você pode vingar-se deles e fazer justiça — repetiu Rusty. — Como? — surpreendeu-se Joe. — Lembra-se do Carrasco? — Meu Deus! Aquilo é uma lenda, eu não recorreria àquilo por nada em minha vida. — Nem para vingar a morte de Matt? — questionou Allan. — Nem sabendo que o Carrasco sou eu, é o Allan e uma porção de outros tiras e veteranos de guerra, espalhados pela cidade, cansados de tanta impunidade? Joe entendia cada vez menos do que seus amigos falavam. Olhava-os com incredulidade, tentando captar o sentido exato do que eles diziam. — Joe! Allan, Ritter, Mozart, Ferrer, MacFade, eu e uma porção de outros formamos o que se chama na cidade de Carrasco, percebe? Somos muitos. Quando alguém nos procura, verificamos o que é e juntos traçamos planos para que a justiça seja feita. Temos pessoas nos Distritos, que nos 215 dão proteção, despistando as investigações, quando alguma ameaça chegar perto de nós, o que é muito difícil. Somos cuidadosos. Cada ação é planejada cuidadosamente e somente é executada quando temos certeza de que não haverá falhas. Ainda assim, sempre há uma equipe de retaguarda para garantir a manutenção da lenda. Joe olhava surpreso para seu amigo. Já ouvira falar de algo assim, como um Esquadrão da Morte ou um Grupo de Vigilantes, mas jamais vira nada de concreto ou soubera de uma pista que indicasse a existência real daquela lenda. — Rusty está morrendo, Joe. Seu bar é uma das bases mais importantes de nosso grupo. Precisamos que você assuma o posto que Rusty está deixando. Precisamos que o Bar do Joe continue sendo a base do Carrasco. O que me diz? Joe estava atônito e surpreso demais para responder. Dentro dele, porém, o guerreiro inválido percebia a nova e única chance de voltar a empunhar sua arma. 216 CAPÍTULO 9 Rusty Banner morreu três dias após aquela visita feita a Joe no hospital. Allan assumiu temporariamente os trabalhos no bar, enquanto esperavam pela total recuperação de Joe, já que, em seu testamento, Rusty deixava o estabelecimento para ele. Debrah acompanhou Joe até o cemitério. Incontáveis amigos de Rusty estavam lá, prestando-lhe sua última homenagem. Joe percebeu muitos desconhecidos, bem como ex-policiais de outros distritos. Todos faziam parte daquela confraria de justiceiros da qual, em breve, ele seria parte importante. No meio da semana, Joe recebeu alta, mas não foi para sua casa por insistência de Debrah, que o levou para a sua. Ali, pelo menos, ele estava a salvo. No caminho de ida, ela tomou todas as precauções para não ser seguida. Temia por ele e imaginava que alguém pudesse querer terminar o trabalho que começara. Não sabia que, para as gangues, Joe Bradford era carta fora do baralho. No sábado pela manhã, Allan passou por lá e levou-o para o bar, pouco antes de anoitecer. Muita gente estava lá, todos pertencentes ao grupo. — Nós o trouxemos aqui, Joe, porque sua chance de fazer justiça chegou. Nesta noite, Cauzio Luciano comemora sua aposentadoria e seu filho, Andy Luciano, está assumindo o comando de todas as famílias de Nova Iorque. Na festa estarão os líderes de todas as gangues do 217 Bronx e do Harlem, inclusive Johnny Perez e Angus Colúmbia. A festa acontecerá no Lucille, iate de Andy, que circulará por toda a baía. Minamos todo o iate. Quando ele deixar o píer, todos lá dentro estarão condenados. Oferecemos a você a chance de apertar o detonador — disse Allan. Joe encarou a todos com incredulidade. Aquilo era totalmente diferente de tudo que já fizera como policial. Muita gente inocente morreria, como os tripulantes, as garotas convidadas, algum inocente útil ou outro idiota capaz de aceitar um convite de um mafioso. — Não! — protestou ele. — Não pode ser assim. Eu preciso olhar nos olhos de cada um, antes de matá-lo. — Joe, compreenda! Não trabalhamos assim — disse Allan. — Mas é como eu quero fazer. Esses homens são meu problema, é pessoal agora. Desde o velho Luciano, que deve ter tramado tudo isso, até os idiotas do Johnny e do Angus. Quero pegá-los um a um, frente a frente, para que saibam quem os matou. — Entenda, Joe, jamais teremos uma chance como esta. Haverá uma porção deles naquele iate. Todos os ratos numa só ratoeira. Basta jogá-la na água e afogar todos eles — ponderou Ritter, um policial aposentado. — Entendo seu ponto de vista, Ritter, mas quero que entenda o meu também. Não me importa saber o que acontecerá depois, não é problema meu. A questão é que esses quatro homens, Cauzio Luciano e seu filho, Johnny 218 Perez e Angus Colúmbia tiraram-me tudo que me era mais importante. Minha carreira, minha saúde e meu parceiro. Pagarão por isso o preço que eu estipular. Houve alguns protestos. Antes que houvesse discussão, Allan tomou a palavra. — Muito bem, pessoal. Temos duas propostas. Uma de Allan, pedindo para cuidar pessoalmente desse caso e outra de Ritter, para que prossigamos com o plano original. Como Joe está entrando agora, peço para ele o privilégio de decidir a sua primeira missão. Sugiro que o apoiemos de todas as formas e que ele faça a sua justiça. De acordo? Após ligeira hesitação, todos acabaram levantando o braço e apoiando a proposta de Allan. — Isso nos leva a uma regra aqui, Joe. Será sua primeira e última missão de caráter pessoal. Depois de terminá-la, terá de encarar as demais missões como um problema do grupo, entendido? — Sim, entendi e aceito a proposta — afirmou ele. *** A calma que havia reinado na cidade por algum tempo começou pouco a pouco a ser perturbada. Com as gangues dedicando-se inteiramente ao tráfico e ganhando muito dinheiro, pequenos marginais começaram a organizar gangues para assaltar postos de gasolina, lojas de bebida e supermercados. Outros, mais ousados, escolheram os bancos. Novos cafetões invadiram as ruas, brigando pelo controle das mulheres, submetendo as prostitutas a seus desmandos. Em toda parte, onde houvesse uma 219 possibilidade de dinheiro fácil, surgiam delinquentes prontos para ocupar o espaço vazio. Logo os tiroteios começaram a acontecer. As novas gangues, constituídas de renegados das outras gangues, perceberam que o tráfico era o melhor negócio de todos e começaram acontecer escaramuças entre eles. A população voltou ao medo antigo. A Polícia começou a ter mais trabalho ainda do que antes. Alheios a isso, fascinados pelo dinheiro fácil, as gangues hispânicas e negras contabilizavam os lucros e gastavam o dinheiro, perdendo a noção de realidade. Após transferir todo o poder para o filho, Dom Cauzio Luciano mudou-se para uma mansão em Miami, numa das ilhas artificiais, onde desfrutava de segurança, conforto e tranquilidade. Estava ali havia seis semanas, seguindo um ritual diário todo próprio. Pela manhã, acordava e nadava um pouco na piscina particular. Depois do desjejum, caminhava pelo imenso parque ao redor da casa, com vista para o mar. Após o almoço, dormia. No meio das tarde ia pescar no cais em frente da casa. Guarda-costas acompanhavam-no todo o tempo, exceto quando pescava. Dom Luciano dizia que eles faziam muito barulho e espantavam os peixes. Às vezes ele pegava alguma coisa, mas o importante para ele era ouvir o barulho da água, ver as lanchas que passavam diante da casa e acenar para as pessoas, como fazia, naquela tarde, enquanto pescava. Subitamente, um puxão na linha. Com um sorriso ele esperou, até que a ponta 220 da vara vergasse. Quando isso aconteceu, sorrindo, ele puxou com força e começou a recolher a linha. Percebeu que havia muitas bolhas na água. — Que diabo é isso? — indagou ele, vendo um homem-rã surgir, agarrado à ponta da linha. — Dom Luciano? — indagou Joe, levantando a máscara. — Sim, e você, quem é? — Joe Bradford, tira do Sexto Distrito de Nova Iorque. Ex-tira, aliás, graças a você e ao seu filho. O velho fez menção de levantar-se. Joe não lhe deu tempo. Ergueu o arpão e disparou. A seta atravessou o corpo do velho. Joe puxou-o para dentro da água, recolocou a máscara e mergulhou, nadando para longe dali. *** Para Andy Luciano, a morte do pai foi um choque. Por mais que tentasse entendê-la, não conseguia chegar a nenhum nome que estivesse por trás daquilo, principalmente porque seu pai já havia se aposentado. Julgou que só poderia ser uma vingança de caráter pessoal, envolvendo tudo que podia para tentar chegar a uma resposta. Naquele dia, após o sepultamento do pai, ele retornou a seu apartamento. Estava muito abalado e pusera seus homens nas ruas para tentar encontrar alguma resposta, enquanto tomava um comprimido e tentava dormir um pouco. Valery, sua namorada, caminhou pelo apartamento, estranhando que os criados não estivessem lá. O telefone tocou. Ela foi atender. 221 — É do apartamento de Andy Luciano? — indagou uma voz que ela julgou reconhecer. — Sim, aqui é Valery. Andy está dormindo agora, não poderá atender. — Eu só queria transmitir a ele meus pêsames — disse o homem, do outro lado, desligando. Estava num furgão, perto do prédio onde Andy morava, vestindo roupas da companhia de manutenção de elevadores e usando uma barba postiça. Junto dele estavam Allan e mais dois homens, todos empenhados em ajudá-lo. — É ela! — comentou Joe. — Ela é os olhos da cidade! — Do que está falando, afinal? — estranhou Allan. — Nada, esqueça — descartou ele, após pensar por instantes. Seria complicado demais explicar aquilo. — Ele está lá. Os homens saíram todos e conseguimos convencer os criados que Andy dera ordem para que tirassem folga. É com você agora, Joe — falou Ritter. Joe desceu do furgão, levando uma caixa de ferramentas. Quando entrou fez um sinal para o porteiro e foi direto para o elevador social. Pendurou uma placa de interdição na porta e subiu em seguida até a cobertura. Travou o elevador, assim que ele parou. A porta abriu-se para um hall, antes da porta do apartamento. Foi até lá e testou a fechadura. A porta abriu-se, sem que ele precisasse arrombá-la. Sacou uma pistola com silenciador e caminhou, 222 atravessando a ampla sala de piso espelhado e obras de arte espalhadas desordenadamente por toda parte. — Quem é você? — indagou Valery, assustada, surpreendendo-o na sala. Joe olhou para ela e sorriu. Retirou a barba postiça. Ela o olhava sem reconhecê-lo. — Você é os olhos da cidade. Eu sou os olhos do Carrasco! — informou ele. Por instantes ela ficou perplexa. Depois, ficou ainda mais assustada. Ia gritar, mas Joe não lhe deu tempo. Levantou a arma e apertou o gatilho uma vez. A bela atingiu a testa de Valery, jogando-a contra uma estátua de mármore, que tombou contra a parede, arrebentando ruidosamente um espelho de puro cristal. O barulho ficou ecoando no amplo apartamento. Joe escondeu-se atrás de um sofá. Andy Luciano chegou em seguida, vestindo apenas cuecas e meias. — Demônios, Valery! Estou tentando dormir um pouco — gritou ele, assim que entrou na sala. Viu, então, a garota caída, com um buraco na testa e a parede suja com sangue e miolos. A estátua tombada refletia-se estranhamente nos cacos do espelho. Os olhos do gângster encheram-se de pavor e ele olhou ao seu redor. Joe surgiu a sua frente, encarando-o. — Quem é você? — indagou Andy. — Lembra-se de Joe Bradford? — Não sei quem é você — disse-lhe Andy, num fio de voz, percebendo a pistola na mão dele. 223 — Matt, meu parceiro, manda-lhe lembranças e espera vê-lo no inferno — disse, levantado a arma. — Não! Eu tenho muito dinheiro Posso fazê-lo um homem rico — quis argumentar Andy, mas nada daquilo interessava a Joe. Apontou e apertou o gatilho. A cabeça de Andy moveu-se violentamente para trás, quando o projétil atravessou-a, levando cabelos, sangue e miolos para decorar surrealisticamente a parede atrás dele. Seu corpo caiu pesadamente para trás. Joe deu a volta e retornou ao elevador. Recolocou a barba. Quando chegou ao térreo, alguns homens de Andy Luciano estavam ali, à espera de um elevador. — Podem usar este, rapazes. Acabei de consertá-lo — disse Joe, retirando o aviso, pondo-o na caixa de ferramentas e saindo tranquilamente. *** Uma semana depois, o caos voltara ao seio das gangues. Com a máfia em reestruturação, as gangues perderam seu fornecedor de drogas e os colombianos e jamaicanos aproveitaram-se disso para fortalecerem-se, já que eram os únicos fornecedores. As gangues voltavam pouco a pouco a disputar pontos de venda. A concorrência acirrada provocava uma migração dos consumidores de um para outro lado. Johnny Perez, num rasgo de inteligência, concluiu que ele e Angus Colúmbia precisavam conversar. Enquanto os italianos não retornassem com a organização anterior, estava nas mãos dos dois impedir que aquilo 224 degenerasse numa guerra entre as gangues rivais, com prejuízos para ambas as partes. Conseguiu um encontro com Angus. Os dois iriam se encontrar no cais e, acompanhados apenas de um assessor cada um, iriam dar uma volta pela baía, enquanto aparavam as arestas surgidas. Lino Ventura, conselheiro de Dom Luciano, providenciara a proteção e o barco. Repentinamente, houve nova trégua, então, que duraria até que os dois líderes conversassem. Isso se refletiu nas ruas. Os informantes captaram. Joe ficou sabendo. Seus amigos também. O que deveria ser secreto tornara-se conhecido demais. — Eu digo que devemos continuar com a trégua e, caso os italianos não possam voltar a nos fornecer de imediato, que compremos toda a droga dos colombianos e jamaicanos — ponderou Angus. A poderosa lancha rasgava as ondas, passando ao largo da Estátua da Liberdade, rumo a mar aberto. No interior da luxuosa cabine, os dois homens, acompanhados de seus assessores, tentavam chegar a um acordo. Lá fora, nos comandos, não havia ninguém. A tripulação inocente fora dominada e atirada ao mar com coletes salva-vidas. Joe e mais dois amigos assumiram o controle. Vestindo um uniforme, Joe foi sozinho até a cabine e bateu. Um dos assessores atendeu. — O senhor Ventura mandou este vídeo com algumas instruções de Andy antes de morrer. Achou que seus sócios deveriam ver isso. 225 O capanga levou o DVD para dentro. Joe vestiu um colete salva-vidas e atirou-se no mar com seus amigos. Logo atrás vinha uma lancha para recolhê-lo. Enquanto isso, na cabine, ligavam o televisor e começavam a assistir ao vídeo. Primeiro surgiram imagens feitas por emissoras de televisão. Retratavam a loja de bebidas queimando e Joe sendo posto na maca, com o corpo coberto de sangue. Depois, eram cenas de um carro em chamas todo destruído, ardendo no centro da Rua Mayflower. — Que porra é essa? — indagou Angus. — Não tenho a menor ideia — respondeu Johnny. Surgiu na tela o rosto de Joe Bradford. — Acho que vocês, seus bastardos filhos de uma cadela, lembram-se de mim, não? Joe Bradford! Meu parceiro Matt e eu mandamos lembranças. Esperamos que o inferno seja o castigo que merecem, filhos de uma puta! Os dois homens ficaram olhando um para o outro. Os capangas saíram da cabine. Voltaram em seguida, aterrorizados. — Não há ninguém no comando. Estamos sozinhos aqui — falou um deles, assustado e trêmulo. — Acho que nos pegaram, Angus — falou Johnny, pateticamente, antes de ver um clarão surgir diante de seus olhos e lançá-lo na escuridão total que acolheu os pedaços de seu corpo, quando ele foi atirado ao ar, juntamente com os outros. O barco desmanchou-se numa bola de fogo. *** 226 Era começo de dia. O último policial cansado havia deixado o bar. Joe foi até o quadro de avisos e retirou um recado ao lado do anúncio do Carrasco. Caminhou até o balcão. Apanhou o telefone e discou. Uma voz cansada e triste atendeu-o, após algum tempo. — Você procurou por mim? — indagou. — Sim, graças a Deus. Você é minha última esperança de justiça — falou o velho, do outro lado da linha. Joe ouviu atentamente, enquanto anotava tudo numa folha de papel. Quando desligou, dobrou a folha e guardou-a num escaninho secreto do balcão. Debrah surgiu na porta, com um ar cansado, mas feliz. — Ei, me dá uma carona? — pediu ela. — Para onde quiser ir, minha querida — disse ele, abrindo os braços para recebê-la. FIM 227