menina indígena

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menina indígena
BRINCADEIRAS DE MENINAS E MENINOS INDÍGENAS NA
COMUNIDADE PATAXÓ DE BARRA VELHA
Gisele Souza1
Joliene do Nascimento 2
RESUMO
Este trabalho parte de questões que têm como base atividades realizadas junto à comunidade indígena Pataxó de
Barra Velha, no Sul da Bahia (Brasil) na área de desenvolvimento infantil, durante o II Estágio de Vivência e
Difusão da Agroecologia em Área Indígena nos anos de 2006 e 2007 com a participação de discentes de vários
cursos e docentes da UFRRJ. O objetivo foi observar as brincadeiras na aldeia indígena dessa comunidade, mais
especificamente objetivou-se perceber a diferença e semelhança nas brincadeiras das crianças entre 4 a 8 anos,
em função das questões de gênero. Os resultados permitem dizer que a criança pataxó possui várias
características e habilidades sociais semelhantes às encontradas em crianças da parte ocidental do mundo, como
por exemplo, nos estilos de brincadeiras, na segregação de grupos de brinquedos e na comunicação verbal.
PALAVRAS-CHAVE: Criança indígena. Jogo.
1 INTRODUÇÃO
As considerações aqui apresentadas partem de questões apoiadas em um trabalho
realizado junto à comunidade indígena Pataxó de Barra Velha, no Sul da Bahia (Brasil) na
área de educação e desenvolvimento humano entre os anos de 2006 – 2007. Um dos objetivos
foi observar e registrar as brincadeiras mais freqüentes em um grupo de crianças indígenas.
Especificamente objetivou-se perceber a diferença e semelhança nas brincadeiras de meninas
e meninos entre 4 a 8 anos, em função do gênero.
As crianças vivem desde o nascimento em ambientes culturalmente organizados, e são
educadas pelos adultos conforme suas crenças, expectativas representações e atividades
mediadas por uma cultura. Apesar do significativo volume de pesquisas produzidas nessa
área, os estudos sobre o desenvolvimento infantil em ambiente cultural e etnias minoritárias
ainda abrangem menor dimensão (BICHARA,1994).
Nessa perspectiva, este estudo pode contribuir para aprofundar o conhecimento de
contextos de desenvolvimento não urbanos, realizar intervenções e oferecer subsídios para
futuras pesquisas.
1
Economista Doméstica. Doutora em Motricidade Infantil pela Universidade Técnica de Lisboa. Professora no
DED da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
2
Economista Doméstica. Mestranda em Educação, Professora Substituta do DED/UFRRJ. E-mail:
[email protected]
1
2 REVISÃO DE LITERATURA
Estudos3 têm sido realizados para considerar o contexto como parte indispensável no
processo de desenvolvimento humano incluindo a caracterização de um subsistema como o
ambiente físico, social, as crenças e práticas do contexto sociocultural de cada pessoa. Assim,
esses subsistemas organizam e norteiam as experiências de desenvolvimento da criança e
fornecem as informações a partir das quais ela constrói sua cultura particular, dentro da
cultura da sua sociedade.
Segundo Sousa (2002), a vivência da criança é determinada por diferentes fatores que
sofrem alterações de lugar para lugar. Cada cultura estabelece os critérios que caracterizam a
infância de suas crianças. Assim, a definição do que é ser criança e o que é infância não pode
ser delimitada de modo generalizado ou universal, através de fatores do tipo cronológico ou
biológico.
Para a autora, a infância é eminentemente cultural e para apreendê-la o(a)
pesquisador(a) precisa ter conhecimento dos aspectos que envolvem a criança em suas
relações com as coisas e as pessoas da comunidade da qual faz parte. Neste caso, a infância
da criança Pataxó traz em sua vivência as manifestações de uma cultura essencialmente rural.
Freire (2009) em sua pesquisa levanta uma questão importante quanto ao modelo de
colonização imposta ao grupo indígena pelos colonizadores portugueses quando chegaram ao
Brasil. Crianças e adultos tinham aulas de catecismo, depois de ofícios artesanais ou trabalhos
agrícolas, entretanto a leitura e escrita não era uma prática constante. Em meados do século
XVIII, o Marques de Pombal proíbe o uso de línguas indígenas, nessa circunstância a
população indígena desaprende sua língua e enfraquece o vínculo com sua cultura.
Sobre a situação das escolas indígenas no século XXI, D’Angelis (2006, p. 160)
afirma:
Em todos os casos conhecidos, o que temos conseguido são escolas mais, ou menos
indianizadas... na esmagadora maioria dos casos são tentativas de “tradução” da escola para
o contexto indígena.
Em relação às brincadeiras, grande número de atividades que acontecem nos espaços
externos aparecem com tendências para um ou outro sexo. As atividades que apresentam
3
BROFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
BRONFENBRENNER, U.; MORRIS, P. The ecology of developmental process. Faculdade de Medicina,
Universidade de Lisboa, 1999.
BRONFENBRENNER, U.; CECI, S. Nature-Nurture reconceptualized in developmental perspective: A
bioecological model. Psychological Review, v.101, n.4, 1994. p.568-586.
2
regras mais simples na formação de equipes ou mesmo nas habilidades motoras têm maior
participação conjunta de meninas e meninos (THORNE,1993). Martin e Fabes (2001)
constatam o fato comum da participação de uma criança em jogo geralmente acompanhada
por outra criança do mesmo sexo, sendo que mais de 50% das crianças só se envolvem com
outro grupo caso o (a) companheiro (a) esteja junto.
Fabes et al. (2003) apontam que, quando uma menina joga em um grupo só de
meninos, ela mostra níveis de atividade com mais vigor em relação à situação oposta (um
menino no grupo só de meninas). Assim, no jogo em grupo de meninos as atividades parecem
ser mais dinâmicas do ponto de vista motor, daí a menina assumir essa qualidade.
Diferentemente, quando o menino joga com um grupo de meninas, ele é exposto a um tipo de
interação mais cooperativo. Nesse contexto, as pesquisas confirmaram tais dimensões no jogo
com crianças do mesmo sexo, pois as escolhas das atividades resultam de reproduções ou
transmissões dos papéis e responsabilidades atribuídas a meninos e meninas; os meninos
apresentam mais estereótipos em suas escolhas do que as meninas, já estas experimentam,
com maior freqüência, atividades com grupo predominantemente masculino.
3 METODOLOGIA
A pesquisa teve como participantes crianças com faixa etária entre 4 e 8 anos
residentes na aldeia de Barra velha. O trabalho foi desenvolvido em 2 etapas: a primeira teve
como foco a identificação da realidade das crianças: quem eram? quantas eram? onde
moravam? Este diagnóstico realizou-se através de encontros, conversas informais com as
próprias crianças, familiares (pai, mãe, tias, tios, avós, avôs, irmãs, irmãos), e ainda na
observação das brincadeiras em casa e na rua4.
Na segunda etapa elaborou-se um protocolo para registrar as brincadeiras, os materiais
utilizados, o local, a formação de grupos de meninos, meninas e grupo misto, os diálogos
entre as crianças. Também houve registro com fotos em máquina digital, todas autorizadas
por alguém da família.
4
Aqui a rua está colocada no sentido do espaço público da aldeia, entretanto poucos veículos aí trafegam.
3
3.1 O espaço e as pessoas
Barra Velha é localizada no extremo sul baiano. A população dessa aldeia sobrevive
basicamente da agricultura, da criação doméstica de frangos, da pesca e da venda de
artesanato, situação que aparentemente pouco se difere das populações rurais da região.
Existem aproximadamente 200 casas, duas escolas, um posto de saúde, uma igreja
católica e uma protestante, um cemitério, e um espaço cultural onde acontecem os rituais
festivos.
Vivem na aldeia em torno de 300 crianças entre dois e doze anos de idade, e o número
de meninas é maior que o de meninos5. Da rotina faz parte ir à escola, ajudar nas tarefas da
família, cuidar das crianças mais novas e brincar. No dia-a-dia, principalmente as meninas,
desempenham pequenas tarefas nas atividades domésticas, no cuidado das crianças e na
confecção de colares.
Em geral as crianças possuem habilidades motoras surpreendentes desde pequenas:
sobem em árvores, andam a cavalo, conduzem carro de boi, manejam enxadas, facas e objetos
variados do mundo dos adultos, carregam baldes e bacias com água na cabeça ou com
vasilhas para lavar. Os grupos e brincadeiras são formados com crianças de idade variada, em
sua maioria, pelo mesmo sexo.
As crianças Pataxó, frequentemente andam descalças, percorrem os espaços da aldeia
a qualquer horário e em qualquer tempo, no sol ou na chuva. Para Oliveira (1998), essa
segurança e liberdade da criança indígena é fortalecida pelo sistema endogâmico das aldeias,
isto é, neste sistema constituem todos uma única família. Assim, as crianças desde cedo
percorrem sozinhas os espaços da aldeia onde todas são conhecidas, amigas ou parentes .
Esse parentesco generalizado permite às crianças entrarem em quase todas as
residências, nos diferentes horários e nos lugares como quartos e cozinha. É também esse
parentesco que permite às crianças alimentarem-se onde estive quando chega a hora da
refeição. Uma vez chegada à hora das refeições, os adultos servem filho, filha e as crianças
que estiverem a brincar com elas. Sem violência ou forasteiros, a aldeia transforma-se num
ambiente especial para a criança onde a brincadeira pode acontecer nos mais diversos espaços
e horários.
5
Esses dados provêm de observações feitas no ambiente da aldeia, não sendo, pois, dados censitários.
4
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante a estadia na aldeia era grande a movimentação das crianças. Essa
movimentação dificultava a localização dos grupos e das brincadeiras, o acompanhamento
dos seus deslocamentos, além de impossibilitar a observação dos grupos, pois enquanto um
brincava na roça, outro brincava nos arredores da casa, dentro da casa, na rua, no rio, na
escola. Esse foi o obstáculo principal no registro das atividades.
4.1 As brincadeiras
As crianças pataxó brincam por toda a aldeia, alguns lugares são mais freqüentados
que outros como o rio e a rua. No verão observou-se que a frequencia de brincadeiras nos rios
aumentava consideravelmente, talvez pelo fato do calor alcançar temperaturas acima de 40º C.
Os meninos preferem brincar em locais abertos, pois suas brincadeiras envolvem
muita movimentação e deslocamentos, já as meninas preferem um local no quintal ou interior
das casas, suas brincadeiras envolvem a imaginação e considerável tempo no preparo do
cenário.
O poder aquisitivo dessa população é muito baixo, assim as crianças usam e
transformam o que encontram em seu contexto. Utilizam os mais variados objetos, desde os
encontrados pelo chão como latas de produtos industrializados, tampas, sucatas, garrafas
plásticas, pedras, pau, folhas, areia, conchas até os utensílios domésticos.
As meninas transformam estes materiais em brinquedos que se assemelham aos do
ambiente doméstico e todos os dias brincam de fazer “comidinha”, os meninos transformam
os mesmos materiais em carros, aviões, motos, facões.
No
decorrer
das
observações
registrou-se
brincadeiras
dramatizadas
que
representavam a cultura indígena no uso de materiais como os colares de sementes, cocar,
enfeites de cabelo, músicas indígenas e na dança do auere6- quando a criança se pinta com
urucum e imita o pajé na feitura de remédios. Deve-se ressaltar que as crianças desde cedo são
estimuladas pelas mães e pais a conhecerem as ervas medicinais e respectivo uso.
Um outro aspecto que chama a atenção é a influência das relações de trabalho na
brincadeira. A utilização de objetos do mundo adulto como faca, enxada, martelo, serrote,
6
A dança do auere é peculiar na região do nordeste. Esse ritual é realizado nas visitas dos pajés e caciques
difundindo-se por todas as áreas e tornando-se um ritual comum e unificador.
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lança, panelas e talheres são usados livremente pelas crianças. Observou-se ainda a influência
da mídia em brincadeiras de polícia e ladrão no rio, exclusivamente pelos meninos.
Pinto (1999), aborda a questão do trabalho no campo e do trabalho doméstico na
divisão ideológica do trabalho infantil atribuído aos meninos e às meninas.
Para as crianças, a participação no trabalho começa com atividades mais fáceis, mas
que envolvem um nível razoável de responsabilidade. As primeiras ajudas, tanto de meninos
quanto de meninas entre os 6 aos 14 anos são basicamente tarefas domésticas. Por volta dos
10 ou 11 anos, inicia-se a diferenciação sexual - a casa é domínio exclusivo das meninas, as
tarefas de limpeza, lavar, cozinhar e tomar conta dos(as) mais novos(as) são delegadas,
essencialmente ao sexo feminino. Enquanto na esfera do campo o trabalho tem participação
de ambos os sexos, mas na maior parte das vezes essa situação ocorre para suprir a falta de
mão-de-obra masculina.
Na tabela 1, os diversos materiais e o uso destes nas brincadeiras da criança pataxó.
Tabela 1: Utilização de materiais por meninos, meninas e grupo misto.
Material
Meninos (%)
Meninas (%)
Grupo Misto (%)
Sucata
75
45
35
Natureza
68
35
20
Doméstico
30
78
55
Brinquedos
45
65
38
Trabalho
68
45
45
Fonte: Dados da pesquisa
As brincadeiras são muito variadas, meninos preferem temas relacionados com
transporte e jogos coletivos (cavalgar, bicicleta, futebol), as meninas preferem atividades
relacionadas com a casa e o cuidado da criança (casinha, fazer comida, mãe e filha).
Entretanto, não acontece quando o assunto é futebol e pique pega na árvore. Essas
brincadeiras na aldeia são vistas como um jogo tanto de menino quanto de menina. Os jogos
normalmente são meninas contra meninos, porém muitos meninos preferem jogar futebol no
time das meninas porque acham que elas ganham mais. É comum ver brincadeiras com
grupos mistos, em geral da mesma faixa etária.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As crianças pataxó apresentam nessas brincadeiras várias características e habilidades
sociais semelhantes às encontradas em crianças de qualquer parte ocidental do mundo, como
por exemplo, as diferenças de estilos nas brincadeiras de meninos e meninas, na tipificação
presente na escolha dos temas, na segregação dos grupos de brinquedos.
As mães também continuam a ser consideradas como as principais responsáveis pelas
crianças. Socialmente esse fato traduz a continuação da desigualdade entre os sexos na família
e, ainda, contribui para a manutenção de posições hierárquicas, principalmente na divisão de
tarefas familiares. Assim, os homens participam menos que as mulheres do trabalho
doméstico, no entanto as mulheres parecem partilhar dessa condição, pois a maioria considera
que determinados trabalhos têm melhor qualidade quando realizado por elas.
REFERÊNCIAS
BICHARA, ID. Brincadeira e cultura: o faz-de-conta das crianças Xocó e do Mocambo
(Porto da Folha/SE). Temas em Psicologia, 1994. p.57-64.
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professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: MEC; SECAD, 2006. Disponível
em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001463/146327por.pdf. Acesso em jan. 2009.
FABES, R.; MARTIN, C.; HANISH, L. Young children’s play qualities in same, other and
mixed-sex peer groups. Child Development, 74, 2003. p. 912-921.
FREIRE, M. A criança indígena na escola urbana. Manaus: Editora da Universidade Federal
do Amazonas, 2009.
MARTIN, C.; FABES, R. The stability and consequences of young children's same-sex
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OLIVEIRA, J. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial,
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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493131998000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: set. 2008.
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PINTO, G. A casa é para raparigas, os rapazes são para trabalhar fora! Revista
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SOUSA, E. O futuro profissional da juventude rural: os jovens Capuxu e os filhos do
Quandu. In: Agricultura Familiar, Meio Ambiente e Desenvolvimento: ensaios e pesquisas m
Sociologia Rural. DUQUE, G. (org.) JP: Editora da UFPB, 2002.
________________. Trabalho é coisa séria. Brincadeira também: Ou de como as crianças
Capuxu trabalham brincando. In: Anais do II Encontro de Pós-Graduação da América Latina.
São José dos Campos, 2002.
THORNE, B. Gender Play: Girls and boys in scholl. Buckingham: Open Universyty Press,
1993.
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